Dados Int ernacionais ernacionais de Catalogação Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Nicodemus, Augustu Augustu s Livres em Cristo - A mensagem mensagem de Gálatas p ara a igreja igreja de hoje / A ugustus Nicodemus. – São Paulo: Vida Vida Nova, 201 6. ePub Bibliografia ISBN 978-85-275-0670-0 (recurso eletrônico) 1. Bíblia NT – Gálatas – Comentários I. Título 15-0203
CDD-227.406 Índices para catálogo sist emático: 1. Bíblia NT - interpretações teológicas
©2015, de Edições Vida Nova
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por S OCIEDADE R ELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA Caixa Postal 21266, São Paulo, SP, 04602-970 www.vidanova.com.br |
[email protected] 1.a edição: 2016 Proibida a rep rodução p or quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos, gravação, esto cagem em banco de dados et c.), a não s er em citações breves com indicação de fonte. Todas as citações bíblicas s em indicação da versão foram extraídas da Almeida Século 21 (A21). As citações bíblicas com indicação da versãoin loco foram extraídas da Almeida Revista e At ualizada (ARA), da Nova Versão Int ernacional (NVI) e da Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NT LH). GERÊNCIA EDITORIAL Fabiano Silveira M edeiros EDIÇÃO DE TEXTO Fernando Mauro S. Pires Cristina Ignacio PREPARAÇÃO DE TEXTO Judson Canto R EVISÃO DE PROVAS Josemar de Souza Pinto COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO Sérgio Siqueira Moura DIAGRAMAÇÃO Assisnet Design Gráfico Ltda. DIAGRAMAÇÃO PARA E-BOOK Felipe Marques CAPA Wesley Mendonça
SUMÁRIO
Prefácio Introdução CAPÍTULO 1 A mensagem de Paulo CAPÍTULO 2 A origem do evangelho CAPÍTULO 3 A defesa do ministério de Paulo CAPÍTULO 4 O evangelho da graça CAPÍTULO 5 A justificação pela fé CAPÍTULO 6 A união com Cristo CAPÍTULO 7 A insensatez dos gálatas CAPÍTULO 8 A experiência de Abraão CAPÍTULO 9 A Lei não salva CAPÍTULO 10 Graça e fé CAPÍTULO 11 A superioridade do evangelho CAPÍTULO 12 Sara e Agar CAPÍTULO 13 Cair da graça CAPÍTULO 14 Guiados pelo Espírito CAPÍTULO 15 Como restaurar um irmão CAPÍTULO 16 Semeadura e colheita CAPÍTULO 17 As verdadeiras marcas de Cristo Considerações finais
PREFÁCIO
oucos assuntos são tão relevantes e necessários para nossos dias quanto a doutrina da justificação pela fé em Cristo. Apesar de a Reforma Protestante do século 16 ter esclarecido, de uma vez por todas, que ninguém é justificado pelas obras, mas somente pela graça de Deus, mediante a fé em Cristo, a tendência humana de justificar-se diante do Criador por méritos próprios continua presente no meio evangélico de nossos dias, sob muitas e diferentes formas. A guarda de determinados dias, a realização de rituais, campanhas e promessas, a entrega obrigatória de dízimos e ofertas, os usos e costumes relacionados com vestuário, a obediência cega a sistemas hierárquicos e a reintrodução de práticas judaicas no culto cristão são apenas algumas das expressões modernas do antigo legalismo combatido com veemência pelo apóstolo Paulo em sua carta aos gálatas. A igreja evangélica no Brasil precisa urgentemente ouvir mais uma vez a mensagem dessa carta, para se livrar da escravidão imposta por falsos apóstolos e pastores, mestres desprovidos da verdade, que espreitam nossa liberdade em Cristo e introduzem regras e normas e rituais humanos no caminho da nossa salvação. Os argumentos que Paulo escreveu em favor da justificação pela fé, sem as obras da lei, são tão atuais e verdadeiros hoje quanto o foram para seus primeiros leitores em meados do primeiro século. O objetivo desta obra é, portanto, apresentar essa mensagem ao público brasileiro. Não se trata, rigorosamente falando, de um comentário exegético da epístola, embora, certamente, seu conteúdo seja o resultado de um trabalho de exegese e interpretativo da famosa carta de Paulo. O livro é resultado de uma série de exposições que fiz na Primeira Igreja Presbiteriana do Recife. As mensagens foram transcritas e editadas por Edições Vida Nova. Minha oração é que seu conteúdo seja usado por Deus para libertar mentes e corações da escravidão do legalismo, mediante a abençoada doutrina da justificação somente pela fé em Cristo.
P
Rev. Dr. Augustus Nicodemus Lopes Goiânia, setembro d e 2015
INTRODUÇÃO
crença de que podemos nos achegar a Deus e receber dele alguma coisa como recompensa por nossas obras e ações é tão antiga quanto o próprio homem. O conceito de salvação nas religiões em geral está comumente associado a um sistema de regras e rituais que exigem obediência para a vida e que proclamam a condenação dos desobedientes. A exceção é aquela religião — permitam-me chamá-la assim — revelada por Deus nas Escrituras do Antigo e do Novo Testamentos. Nela, a salvação é uma dádiva de Deus mediante o sacrifício de seu Filho Jesus Cristo, prefigurado no Antigo Testamento nos sacrifícios de animais, e realizado no Novo. Ainda que Deus tenha revelado que o perdão de pecados é fruto de sua graça e amor, seu povo, a quem essa revelação foi dada, repetidas vezes ao longo de sua longa história transformou a graça de Deus quer em legalismo, o conceito de que a salvação dos pecados é obtida pela guarda da Lei dada a Moisés, quer em licenciosidade, a ideia de que a graça de Deus é tão grande que permite ao pecador salvo ainda viver deliberada e propositadamente na prática do pecado, sem consequências para sua salvação. Da mesma forma que Deus levantou profetas para anunciar a perversão da sua graça pelos judeus do período do Antigo Testamento, alguns legalistas e outros libertinos, ele levantou o apóstolo Paulo para combater essas duas tendências que também surgiam na igreja, logo em seu início. A luta de Paulo contra o legalismo de sua época está registrada em diversas cartas, mas se vê especialmente na que ele escreveu aos crentes da Galácia. A clara exposição da doutrina da graça e a refutação do legalismo religioso torna a Carta aos Gálatas relevante para todas as pessoas de todas as épocas e culturas. O apóstolo Paulo escreveu essa carta aos cristãos da região da Galácia numa tentativa de evitar que eles aceitassem a mensagem de certos pregadores que queriam torná-los adeptos do judaísmo. Alguns missionários judeus que aparentemente haviam se convertido ao cristianismo estavam ensinando aos cristãos não judeus de diversas igrejas recém-fundadas por Paulo que eles precisavam se circuncidar e guardar a Lei de Moisés para serem aceitos por Deus. Os gálatas também tinham ouvido Paulo pregar o evangelho de Cristo e creram que a salvação dos pecados se dava mediante a fé em Jesus somente. Mas, então, apareceram esses outros pregadores ensinando a necessidade de acrescentar à fé em Cristo as obras da lei, sem as quais não poderiam ser, de fato, salvos. Em outras palavras, a mensagem desses “missionários judaizantes” era que o homem necessita fazer alguma coisa — no caso, guardar a Lei — para poder receber o perdão de Deus e ser aceito por ele. Essa “religião das obras” encontra eco no coração do homem pecador e cego para seu estado de perdição. Nada lhe parece mais lógico e natural do que trabalhar e se esforçar para “pagar” por seus pecados e merecer a salvação. Os cristãos da Galácia estavam prestes a aceitar essa mensagem sedutora quando Paulo lhes escreveu. A carta é seguramente da pena do apóstolo — existe pouca ou nenhuma dúvida de sua autenticidade. Existem debates apenas quanto à data em que Paulo a escreveu. Aqui adotamos a posição de que foi escrita em meados dos anos 50, provavelmente durante a estada do autor na cidade de Éfeso (At 18.23; 19.1). Muito cedo na história da igreja sua mensagem já era conhecida e citada por pais da igreja, como Ireneu, Policarpo e Justino Mártir. Os gálatas (Gl 1.2) eram habitantes de um distrito romano da Ásia Menor (correspondente à Turquia atual) que fazia fronteira com a Frígia, o Ponto, a Capadócia e a Bitínia. Paulo passou por aquela região no início da década de 50 durante sua segunda viagem missionária (At 16.6) e, tendo adoecido, ficou um tempo entre eles, ocasião em que lhes pregou o evangelho pela primeira vez (Gl 4.13; cf. 1.8). O apóstolo esteve uma segunda vez com eles quando provavelmente organizou as igrejas de toda aquela área (At 18.23). Foi após a partida de Paulo da região que aqueles pregadores da Lei começaram a visitar as igrejas dali. A mensagem deles, conforme já mencionei, era que os crentes precisavam ir um passo além para poderem ser, de fato, salvos. Eles precisavam se circuncidar e guardar a Lei de Moisés, como os judeus faziam, adotar a dieta judaica — abster-se de sangue, carne de porco e muitos outros alimentos considerados impuros — e guardar as festas e datas do calendário judaico, especialmente o sábado. Segundo o que diziam esses pregadores, Paulo não havia ensinado isso aos gálatas porque era um falso apóstolo. Também afirmavam que ele não estava no mesmo nível dos apóstolos originais, como Pedro, e havia deturpado o ensino original dos Doze. Esses missionários vinham da Judeia (cf. At 15.1). Eram judeus que haviam acreditado que Jesus era o Messias prometido a Israel, contudo não viam a necessidade de abandonar os preceitos da Lei de Moisés. Mais ainda: pregavam que mesmo os não judeus que haviam crido em Cristo deveriam se tornar judeus pela circuncisão e então guardar toda a Lei. Estavam também
A
minando a autoridade de Paulo como apóstolo ao sugerir que ele estava fazendo jogo duplo, pois quando estava entre judeus pregava a circuncisão (Gl 5.11), mas quando estava entre os gentios dizia que isso não era necessário. Segundo eles, Paulo, na verdade, era uma pessoa que procurava agradar a todo mundo para se aproveitar financeiramente das pessoas (Gl 1.10). As igrejas da Galácia estavam dando oportunidade para tais pregadores falarem e, mais que isso, estavam começando a acreditar na pregação deles. Alguns, ao tempo em que Paulo escreveu a carta, já haviam se deixado convencer por eles (Gl 1.6; 4.9,10; 5.7). Obras antigas, como o Comentário sobre as Guerras Gálicas, se referem aos moradores da Galácia como pessoas inconstantes, nas quais não se devia confiar, apesar de inteligentes, sinceras e impetuosas. Isso pode explicar por que tão depressa cristãos daquelas igrejas estavam mudando de opinião e aceitando a mensagem dos judaizantes. Paulo, porém, expressa profundo espanto por essa atitude (Gl 1.6). E, numa tentativa de impedir que a situação se agravasse, lhes escreve com urgência. A Carta aos Gálatas foi escrita muito provavelmente depois de Paulo ter estado em Jerusalém para participar do concílio em que se discutiu de que maneira os crentes não judeus poderiam ingressar na igreja (At 15). A decisão do concílio foi que não se deveria impor a guarda da Lei de Moisés aos gentios que cressem. Essa resolução deveria ser então difundida por todas as igrejas da Síria, Cilícia e Antioquia, e Paulo foi um dos designados para levar a mensagem oficial redigida na ocasião (At 15.23-29). As similaridades entre Atos 15 (a narrativa do concílio em Jerusalém) e a descrição que Paulo faz de sua visita a Jerusalém em Gálatas 2 apontam para a correspondência desses fatos. Alguns, porém, estranham por que, então, Paulo não menciona a decisão do concílio de Jerusalém na Carta aos Gálatas, o que aparentemente teria reforçado seu posicionamento. Esse ponto é ainda hoje motivo de debate entre os estudiosos, havendo inclusive quem defenda que a carta foi escrita antes do concílio, razão pela qual o apóstolo não teria mencionado tão importante decisão. Contudo, Paulo pode ter evitado mencioná-la porque desejava que seus argumentos em prol da justificação pela fé fossem firmados sobre sua autoridade apostólica, não sobre a autoridade do concílio de Jerusalém. Lembremos que os falsos mestres buscavam desacreditá-lo como apóstolo. Paulo tem vários objetivos na carta. O primeiro deles, evidentemente, é defender sua autoridade apostólica. A defesa era necessária não apenas por causa dos judaizantes, mas também porque a autoridade do evangelho que pregava dependia da plena aceitação de Paulo como verdadeiro apóstolo de Jesus Cristo. Ele descreve como Jesus o chamou, soberanamente, quando ele ainda era um perseguidor da igreja, e o constituiu apóstolo, assim como havia feito a Pedro, João e os demais apóstolos. Sua autoridade, portanto, era a mesma dos Doze, a ponto de ele ter confrontado o próprio Pedro, quando este se tornou repreensível (Gl 1.10—2.21). Outro objetivo da carta é combater o ensino dos judaizantes (Gl 3.1—4.31). Para Paulo, a mensagem deles anulava a graça de Deus e tornava a morte de Cristo na cruz irrelevante. Mais do que isso, os que seguissem o ensino deles caminhariam para a perdição, pois não poderia haver justificação de pecados mediante as obras da lei, mas somente pela fé em Jesus Cristo. Ou seja, para o apóstolo, a mensagem dos judaizantes não era apenas uma outra interpretação possível da obra de Cristo; antes, era uma negação direta dessa obra. Assim, Paulo expõe na carta, de maneira clara, veemente e persuasiva, o ensino de que a justificação de judeus e gentios ocorre mediante a fé em Cristo somente, não pelas obras da lei. Por fim, ele aproveita para exortar os cristãos da Galácia a ficarem firmes na fé em Cristo e a viver na liberdade do evangelho, no poder do Espírito (Gl 5.1—6.18). A Carta aos Gálatas tem sido considerada pelos cristãos de todas as épocas uma das mais importantes missivas escritas por Paulo. Bastante similar à Carta aos Romanos, ela tem sido usada para defender a doutrina central do cristianismo. Lutero fez uso extenso dela em sua luta contra o catolicismo romano de seus dias, pois, embora o contexto original da carta tenha sido a controvérsia com os judaizantes, o que estava em jogo então é o que continua em jogo até hoje: De que forma o pecador pode ser aceito por Deus e perdoado de seus pecados? A resposta gloriosa de Paulo é que o pecador é justificado gratuitamente pela fé em Cristo, sem as obras da lei. Foi assim que Lutero combateu a doutrina da salvação ensinada pelo romanismo de seus dias. E é dessa forma que continuamos, hoje, a anunciar aos pecadores o perdão de pecados em Cristo Jesus, mediante a fé, rejeitando qualquer sistema ou doutrina que acrescente a necessidade de obras humanas. É isso que torna essa carta destinada àqueles cristãos da Galácia também relevante para todas as pessoas de todas as épocas e culturas: a necessidade de confrontar a ideia universal de que os seres humanos podem encontrar Deus e ser aceitos por ele com base em méritos próprios. Em nossos dias, mesmo dentro da cristandade, encontramos em diferentes versões esse conceito, quer sob a forma de uma piedade legalista, quer sob a forma da exigência descarada de dízimos, ofertas e sacrifícios vinculados à salvação, quer sob a capa de um fundamentalismo rígido e sem misericórdia, ou ainda sob a égide de experiências possíveis somente a uma “elite espiritual”. O cardápio é variado, mas o prato é o mesmo: o homem pode e deve contribuir de algum modo para sua salvação. Foi contra essa ideia que o apóstolo Paulo se levantou. Para ele, acrescentar as obras da lei, ou quaisquer outras, à obra completa de Cristo realizada em sua morte e ressurreição era o mesmo que negá-lo e virar as costas para a graça de Deus. O evangelho dos “judaizantes”, mesmo com todo o seu linguajar judaico, piedoso e veterotestamentário, era “outro evangelho” (Gl 1.7) e deveria ser rejeitado. Somos libertos mediante a fé em Jesus Cristo. E nada mais.
Capítulo 1
A MENSAGEM DE PAULO
Gálatas 1.1-5 aulo escreveu a Carta aos Gálatas com o objetivo de orientar as igrejas que ele havia fundado na região da Galácia. A integridade dessas igrejas estava sendo ameaçada por falsos mestres, que ensinavam um evangelho diferente daquele que Paulo havia pregado.
P
Abertura da carta O apóstolo inicia a carta de acordo com o procedimento usual na redação das cartas da época. Ele se apresenta, identifica os destinatários — os cristãos da Galácia — e os saúda com votos de graça e paz. Analisemos então a abertura da carta: Paul o, a pósto lo, não da part e d e h omens, n em po r meio de homem al gum, mas por Jesus Cristo e p or Deu s Pai , que o ressusci tou dent re os mortos, e todos os irmãos que estão comigo, às igrejas da Galácia: Graça a vós e paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo, que se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos livrar deste mundo mau, segundo a vontade de nosso Deus e Pai, a quem seja a gló ria pa ra tod o o sempre. Amém.
Paulo, apóstolo
Antes de tudo, Paulo se apresenta como “apóstolo”. Ele usa aqui o termo não em seu sentido mais básico e amplo, que é o de “enviado”, como se estivesse descrevendo sua função de missionário e plantador de igrejas, mas, sim, para designar seu ofício. Paulo está perfeitamente consciente de pertencer a um grupo restrito de homens que Jesus havia chamado. Esse grupo era formado pelos Doze, os quais o Senhor chamou durante seu ministério terreno, e pelo próprio Paulo, que foi chamado pelo Senhor glorificado quando este lhe apareceu no caminho de Damasco. A esses homens o Senhor deu a autoridade e a missão de lançar os fundamentos da igreja cristã e de edificá-la. Havia muitos “apóstolos” no sentido de enviados de igrejas locais, mas os Doze e Paulo eram uma categoria única e à parte. No entanto, a autoridade de Paulo era sempre contestada. Os próprios cristãos questionavam se ele era de fato apóstolo, uma vez que sua convocação se dera após o grupo dos Doze estar formado. Assim, Paulo precisava muitas vezes defender seu ministério apostólico, pois os falsos mestres que se haviam infiltrado nas igrejas dos gálatas estavam se aproveitando exatamente disso. Eles tentavam minar a autoridade de Paulo sob a alegação de que ele não era um apóstolo verdadeiro, por não fazer parte do grupo dos Doze, não ter andado com Jesus e por isso não ter sido convocado pelo Senhor durante seu ministério terreno. Por isso, Paulo, depois de se apresentar como apóstolo, esclarece: “... não da parte de homens” (1.1). Ou seja, ele é verdadeiro apóstolo, não designado por alguma comissão de pessoas ou pela vontade humana. E acrescenta: “... nem por meio de homem algum” (1.1). Seu apostolado, além de não ter origem na vontade humana, não procede de qualquer personalidade. Paulo não obteve essa designação de algum patrono influente que o protegeu e o inseriu nesse ministério. Antes, como ele afirma, é apóstolo “por Jesus Cristo e por Deus Pai” (1.1). Isto é, seu ministério apostólico é tão verdadeiro quanto o dos Doze, porque foi recebido de Jesus Cristo e de Deus Pai. A origem do apostolado de Paulo é a pessoa de Deus e a de seu Filho Jesus. E o apóstolo qualifica Deus como aquele que ressuscitou Jesus. Portanto, Paulo não foi enviado por um deus qualquer, e sim pelo Deus todo-poderoso, que no terceiro dia trouxe Jesus Cristo de volta do mundo dos mortos. Já temos aqui a definição da missão principal de Paulo, pois a palavra “apóstolo” literalmente significa “enviado”. Uma pessoa é enviada com uma missão, com uma mensagem. Paulo foi enviado pelo mesmo Deus que ressuscitou Jesus Cristo dentre os mortos, portanto sua mensagem principal é que Cristo está vivo, é o Senhor e recebeu todo o poder no céu e na terra. No versículo seguinte, antes de especificar a quem a carta é dirigida, Paulo revela que não está sozinho. Ele menciona “todos os irmãos que estão comigo”. Algumas traduções da Bíblia, como a Almeida Revista e Atualizada (ARA), referem-se a essas pessoas da seguinte maneira: “todos os irmãos meus companheiros”. Mesmo sendo apóstolo de Jesus Cristo, Paulo costumava andar com uma equipe formada por pessoas convertidas por meio de seu ministério, as quais ele havia treinado para atuar como obreiros e colaboradores na missão da qual havia sido incumbido. Sabemos de Silas, Timóteo e vários outros cooperadores de Paulo, aqui chamados “companheiros”. Observe que ele assim faz uma distinção entre si mesmo e esses irmãos. Só Paulo é apóstolo; os outros são “companheiros”. Ele foi convocado pelo Deus que ressuscita os mortos, ao passo que os demais trabalhavam sob sua orientação e autoridade.
As igrejas da Galácia
A carta enviada por Paulo e os irmãos que estavam com ele tem como destinatários as “igrejas da Galácia”. Embora aqui a palavra “igrejas” esteja no plural, isso não significa que existam muitas igrejas no sentido universal. Há muitas igrejas locais e numerosos ajuntamentos de cristãos no mundo todo, porém todos eles constituem uma só igreja. Deus só tem um povo, e existe uma igreja somente. No mundo, porém, ela se manifesta nas muitas comunidades organizadas em cidades, em países e em todo lugar. Paulo está se dirigindo, em particular, aos cristãos da região da Galácia. Sabemos, pelo livro de Atos, que essas igrejas surgiram como resultado de seu ministério. Paulo percorreu aquela região pregando a Palavra de Deus. Aquele que ressuscitou Jesus Cristo dentre os mortos estava com ele. E, como enviado de Deus, o apóstolo pregou o evangelho e plantou muitas igrejas, às quais ele agora escreve com o objetivo de orientá-las e instruí-las. Os votos
No versículo 3, Paulo expressa um voto, algo comum naqueles tempos. Voto aqui não significa compromisso, mas a expressão de um desejo com relação aos destinatários. Assim, ele deseja aos irmãos da Galácia: “Graça a vós e paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo”. “Paz” fazia parte da saudação dos gregos na época. Quando uma pessoa conversava com outra ou escrevia uma carta para alguém, era comum que expressasse, no início, um voto de paz. A carta de Paulo segue o mesmo molde. Mas aqui, em vez de desejar apenas “paz”, ele acrescenta “graça”, algo mais precioso que a paz, porque só tem a verdadeira paz quem recebe a graça de Deus, o favor imerecido que ele concede. A graça e a paz que Paulo deseja à igreja provêm de “Deus nosso Pai”. Paulo faz questão de se igualar àqueles irmãos na condição de filhos de Deus — o Deus Pai, que envia sua graça e sua paz a seus filhos. E ele não é nosso Pai somente; é também Pai do Senhor Jesus Cristo. Nesse sentido, somos todos irmãos de Jesus. Estou sempre atento à teologia de nossos cânticos e, de vez em quando, ouço algum que se refere a Jesus como nosso Pai e a nós como filhos dele. Trata-se de um equívoco. Não somos filhos de Jesus, nem ele é nosso Pai. Nós, os crentes, e Jesus somos filhos de Deus, embora ele seja o Filho (com F maiúsculo) e nós sejamos filhos (com f minúsculo). Portanto, não somos filhos de Jesus. Somos irmãos dele porque temos o mesmo Pai. Jesus no evangelho de Paulo
Note que, depois de declarar que foi enviado pelo Deus que ressuscitou Jesus dentre os mortos e de desejar ao povo a graça e a paz provenientes de Deus e de Cristo, Paulo passa a explicar quem é Jesus. No versículo 4, o apóstolo afirma que Jesus é aquele “que se entregou a si mesmo pelos nossos pecados”. Aqui, Paulo faz referência, em primeiro lugar, à mensagem que ele prega como apóstolo, que diz respeito a Jesus Cristo, aquele que entregou a si próprio pelos nossos pecados. Esse versículo aponta para a natureza voluntária da obra de Cristo. Ele não foi impelido ou coagido por ninguém, mas, sim, agiu voluntariamente. Ele tampouco fez isso para “dar o exemplo” lá na cruz, como ensinam alguns teólogos liberais, mas de fato se entregou pelos nossos pecados, que precisavam de punição — tinham de ser pagos, expiados e propiciados. E isso só poderia ser feito pelo nosso Substituto, Cristo, que voluntariamente se entregou para quitar a nossa dívida. Essa é a mensagem que Paulo, na condição de enviado por Deus, tinha de pregar. Ainda no versículo 4, o apóstolo declara que Cristo se entregou pelos nossos pecados “para nos livrar deste mundo mau”. A palavra “mundo” nessa frase, no original grego, se refere a era, século ou tempo. Tanto Paulo quanto a Bíblia de modo geral contemplam e compreendem o mundo e a realidade pela perspectiva de duas eras. Existe a era presente, governada pelo mal, pelo pecado e pelo Diabo, a qual está debaixo da lei que a condena. É o mundo mau, tenebroso e perverso em que vivemos. Há também a era vindoura, mas que já se introduziu na era presente — a era de Deus, na qual ele receberá eternamente a glória, pelos séculos dos séculos. Isso não significa que Deus não é Senhor hoje. Ele é Deus agora e para sempre, como sempre foi no passado. Contudo, como Paulo afirma, o presente mundo “é mau”, e Deus está no processo de nos redimir dele. A plenitude do seu reino ainda está por vir. Cristo entregou-se de maneira voluntária pelos nossos pecados exatamente para nos livrar da era perversa em que vivemos. O verbo grego que na versão Almeida Século 21 (A21) é traduzido por “livrar”, na ARA é traduzido por “desarraigar”, o que nos traz à mente uma imagem interessante. A árvore está presa pela raiz no local em que se encontra. Se você já tentou arrancar até mesmo um simples arbusto bem enraizado, sabe que não é nada fácil, porque a raiz o prende com firmeza ao chão. E, quanto mais dura a terra, mais difícil será arrancá-lo. A humanidade está arraigada no mundo presente, e aqui somos comparados com uma árvore arraigada à impiedade de nossa época. Só o Deus que ressuscita os mortos pode nos arrancar — nos desarraigar — deste mundo mau. Portanto, era esta a mensagem que Paulo pregava: Cristo se entregou pelos nossos pecados não com o propósito de nos fazer felizes — como afirma o evangelho da prosperidade pregado hoje no Brasil, segundo o qual Cristo veio resolver nossos problemas e nos trazer conforto e tranquilidade nesta vida —, mas, sim, a fim de nos desarraigar deste mundo tenebroso, nos
livrar da presente era de maldade e de perversidade. Ele veio inaugurar uma nova era, com a sua própria presença, trazendo assim o reino de Deus para nosso meio. Paulo prossegue dizendo que Cristo fez isso “segundo a vontade de nosso Deus e Pai”. Ele veio se entregar voluntariamente pelos nossos pecados e nos desarraigar deste mundo perverso, e tudo isso estava de acordo com a vontade do Pai. Observe como a Trindade trabalha em conjunto. O Pai planejou segundo sua vontade, o Filho veio e executou esse plano da redenção no tempo e no espaço, e o Espírito veio para aplicar os efeitos da obra do Filho aos pecadores através dos séculos. Essa é a razão pela qual você e eu podemos hoje nos beneficiar do sacrifício de Cristo na cruz, realizado há mais de dois mil anos. Paulo encerra a saudação inicial de sua carta atribuindo a Deus “a glória para todo o sempre” (1.5). Na ARA, traduz-se a parte final dessa expressão por “pelos séculos dos séculos”. A palavra grega aqui traduzida por “séculos” é a mesma que, no singular, aparece traduzida por “mundo” no versículo 4. Nesse versículo, Paulo está literalmente afirmando que Cristo veio nos desarraigar deste “século mau” e, no versículo 5, ele diz: “a quem [Deus] seja a glória para todo o sempre”; ou seja, a Bíblia fala de duas eras diferentes: a era presente — este mundo mau, tenebroso e perverso, no qual estamos arraigados — e a era vindoura — a era de Deus, a qual já adentrou a era presente e na qual Deus receberá eternamente a glória, pelos séculos dos séculos. Nossa conversão, portanto, consiste em sermos desarraigados do presente século, deste tempo mau em que vivemos, e passarmos aos séculos dos séculos, quando daremos a Deus toda a glória. Isso é a vida eterna, e essa será nossa atividade também “pelos séculos dos séculos”.
Conclusão e aplicações Há algumas lições preciosas para nós na abertura da Carta aos Gálatas. Em primeiro lugar, aprendemos qual era o papel dos apóstolos. Eles não foram constituídos por homens; o próprio Deus os chamou para levar a mensagem da salvação ao mundo. O número deles era limitado, e eles não tiveram sucessores. Assim como Pedro não deixou um apóstolo sucessor, Paulo também não criou uma linhagem apostólica — ele tinha apenas “companheiros”. Portanto, muito nos espanta quando em nossos dias aparecem homens que são apóstolos “da parte” de homens. Eles mesmos se constituem como tais ou são ordenados por um conselho “apostólico”. Existe um chamado “conselho de apóstolos” no Brasil que ordena outros apóstolos. Mas tudo isso contraria o que Paulo está dizendo na abertura de sua carta. O verdadeiro apóstolo não vem da parte de homem algum; ele é chamado diretamente por Deus. Se não for assim, não é apóstolo. Os verdadeiros apóstolos foram designados num período específico da história para proclamar a mensagem de Deus e para participar da composição do Novo Testamento, escrito por inspiração divina e deixado como legado à igreja. Portanto, não existem apóstolos nos dias de hoje. Os únicos apóstolos de que precisamos são os Doze e Paulo. A palavra deles está disponível na Bíblia para as igrejas de todas as gerações. Não é mais preciso que outros apóstolos se levantem a cada geração para lançarem outra vez os fundamentos do evangelho. Essa obra já foi concluída. Em segundo lugar, aprendemos com Paulo que a missão dos apóstolos era anunciar o evangelho de Cristo e que esse evangelho provém de Deus. É a boa notícia da parte do Pai de que, segundo sua vontade, o Filho veio ao mundo para morrer voluntariamente pelos nossos pecados, a fim de nos desarraigar do século perverso em que vivemos e nos libertar de nossas iniquidades e do poder do pecado. Recebemos ainda a boa notícia de que ele tem preparado os “séculos dos séculos”, ocasião em que a igreja haverá de glorificar a Deus eternamente por essa libertação maravilhosa. Essa é a essência, o ponto mais importante do evangelho. Tudo o mais que o Senhor nos proporcionar — saúde, prosperidade, tranquilidade, libertação dos problemas — é secundário, uma espécie de bônus. Deus pode nos conceder tais coisas, porém elas não constituem o âmago do evangelho, pois este trata exatamente do nosso desarraigamento do mundo para sermos transportados à era vindoura, quando Deus receberá toda a glória.
Capítulo 2
A ORIGEM DO EVANGELHO
Gálatas 1.6-24 pós a abertura da Carta aos Gálatas, na qual Paulo se apresenta, identifica os destinatários e lhes faz votos de graça e paz, ele passa a discorrer sobre a origem do evangelho que prega e de seu ministério. É importante lembrar que a carta é dirigida às igrejas na Galácia, na ocasião invadidas por falsos mestres que estavam atacando a credibilidade do apóstolo.
A
Estou admira do d e qu e est ejais vo s desvi and o tã o de pressa daq uel e qu e vos chamou pela graça de Cri sto p ara o utro eva ngel ho, q ue d e fato não é out ro evangel ho, senão que há a lguns que vo s perturbam e querem perverter o evangelh o de Cristo. Mas, ainda que n ós mesmos ou um anjo do céu vos pregue um evangelho diferente do que já vos pregamos, seja maldito. Conforme disse antes, digo ou tra vez agora: Se alguém vos pregar um evangelho di ferente daq uele que já recebestes, seja maldito . Pois, será que eu procuro agora o favor dos homens ou o favor de Deus? Será que procuro ag radar a homens? Se estiv esse a ind a a grada ndo a h omens, e u n ão seria servo de Cristo . Mas, irmãos, q uero q ue saib ais que o evan gelh o por mim an unci ado não se b aseia nos homens; porque não o recebi de homem a lgu m nem me foi ensin ado , mas o recebi por uma revelação de Jesus Cristo. Pois já ouvistes como era o meu procedimento no judaísmo, como eu perseguia violentamente a igreja de Deus, tentando destruí-la. E no judaísmo eu ultrapassava a muitos da minha idade entre meu povo, sendo extremamente zeloso das tradições de meus antepassados. Quando Deus, porém, que desde o vent re de minha mãe me separou e me chamou pela sua graça, se agrado u em revelar seu Filh o em mim, para que eu o pregasse entre os genti os, não consultei ninguém. Também não subi a Jerusalém para enco ntrar os que já eram apóstolos antes de mim, mas parti para a Arábia e voltei outra vez para Damasco. Depois de três anos, subi a Jerusalém para conhecer Cefas; e passei quinze dia s com ele. Mas não vi nenh um dos outros apóstolos, a não ser Tiago, irmão do Sen hor. Sobre tudo isso que vos escrevo, declaro diante de Deus que não estou mentindo. Depois, fui para as regiões da Síria e da Cilícia. Eu não era conhecido pessoa lmente pel as i grejas de Cristo na Jude ia. Apena s ti nha m ouv ido dizer: Aque le que nos perseg uia ago ra p rega a fé qu e a ntes ten tava destruir. E glorificavam a Deus por minha causa.
A questão da origem do evangelho que pregamos é fundamental. Se ele fosse mera invenção de homens — dos pais da igreja, de Calvino, de Lutero ou do próprio Paulo —, então todos os que professaram o cristianismo no passado e os que o professam hoje estariam sendo enganados há mais de dois mil anos. Estaríamos todos perdidos, e nossa religião não passaria de ilusão, ou seja, não seria diferente das outras. É muito importante que os autores do Novo Testamento afirmem com frequência que o evangelho pregado por eles não teve origem em homens, mas procedeu do próprio Deus e foi concedido por revelação divina. Assim, as verdades que entesouramos no coração com tanto carinho e defendemos com igual zelo procedem do próprio Deus. Nossa alma e nosso futuro eterno dependem delas. É questão de vida eterna — ou morte eterna — saber se esse evangelho tem origem humana ou divina. O apóstolo Paulo teve de enfrentar essa questão desde cedo em seu ministério. Ele começou a pregar o evangelho e a plantar igrejas na bacia do Mediterrâneo, região que percorreu durante aproximadamente doze anos, e onde era sempre perseguido e confrontado por um grupo que também se dizia cristão, mas interpretava o evangelho de maneira diferente. Os missionários desse grupo ficaram conhecidos como “judaizantes”, pois insistiam que todo cristão gentio deveria também se tornar judeu. Os judaizantes ensinavam que a salvação não se dava pela graça e pela fé somente; segundo eles, os convertidos, além de crer em Jesus, precisavam ser circuncidados, guardar a lei do sábado, abster-se de carne de porco e observar muitas outras prescrições da legislação mosaica. Essas pessoas atacavam constantemente o apóstolo Paulo, porque ele, entre todos os seus pares, era quem pregava com maior clareza — e a um público mais numeroso — a salvação unicamente pela fé em Jesus Cristo, sem as obras que a Lei prescreve. O apóstolo afirmava com veemência que mediante a fé em Jesus, e somente a fé, uma pessoa é justificada diante de Deus. Paulo precisava enfrentar com frequência as acusações desse grupo. Ele chegava a determinado lugar, pregava o evangelho, plantava uma igreja, deixava-a organizada, mas, tão logo partia, os judaizantes entravam em cena, buscando convencer os membros da nova igreja de que 1) Paulo não era apóstolo de verdade, pois não fazia parte dos Doze e não andara com Jesus; 2) ele era um apóstolo de segunda categoria, e a mensagem que ensinava era invenção própria, não provindo de Deus; 3) a doutrina da salvação pela fé, que ele anunciava, era uma simples estratégia de garantir seu sustento por meio da pregação de um evangelho barato. De acordo com essa última acusação, os judaizantes argumentavam que Paulo, ao pregar a salvação pela graça e pela fé, atraía muitos seguidores com uma mensagem que não apresentava exigências nem dificuldades. Tratava-se de um evangelho de graça barata, idealizado para agradar os ouvintes e conquistar popularidade para o pregador. Não era, portanto, uma mensagem de Deus, e Paulo, por conseguinte, não passava de um impostor, um mercenário que, por estar interessado apenas no próprio sustento, inventou essa mentira de que o homem pode ser salvo somente pela fé em Jesus Cristo.
A história se repetiu quando Paulo trabalhou na região da Galácia, onde plantou muitas igrejas. Assim que se afastou, os judaizantes chegaram e começaram a espalhar entre os cristãos as mesmas acusações contra o apóstolo e sua mensagem. Foi para responder a esses ataques e deturpações que ele escreveu a Carta aos Gálatas, a fim de evitar que os crentes da Galácia se desviassem do evangelho que ele pregava e adotassem a doutrina judaizante. Já na primeira parte da carta (1.1-5), como vimos, Paulo afirma ser apóstolo não por meio de homem algum, mas por Jesus Cristo, pela vontade de Deus. Ele explica ainda a essência do evangelho que pregava: Cristo entregou a si mesmo pelos nossos pecados “para nos livrar deste mundo mau, segundo a vontade de nosso Deus e Pai” (v. 4). Era esse o evangelho que os judaizantes consideravam graça barata, pois tinham dificuldades em admitir que alguém pagasse pela culpa de outros. Para eles, seria fácil demais sermos perdoados apenas por acreditar que Jesus morreu pelos nossos pecados. A despeito de tudo que Paulo havia ensinado pessoalmente, muitos membros das igrejas da Galácia estavam começando a dar ouvidos a esses falsos mestres. O apóstolo, então, não esconde seu espanto pela facilidade com que os gálatas estavam trocando o verdadeiro evangelho que ele havia anunciado pelo evangelho dos judaizantes: “Estou admirado de que estejais vos desviando tão depressa daquele que vos chamou pela graça de Cristo para outro evangelho” (1.6). Nos versículos 7 a 9, Paulo chega a pronunciar uma maldição contra todo aquele que pregasse um evangelho diferente do evangelho de Cristo e da graça que ele pregou — fosse um anjo, fosse um apóstolo ou fosse o próprio Paulo. Tal pregador seria amaldiçoado e relegado ao inferno por toda a eternidade! Em Gálatas 1.10-24, o apóstolo passa a falar de suas verdadeiras motivações, procura explicar a origem do evangelho que ele recebeu e defende a legitimidade de sua ordenação. Além disso, Paulo assinala a particularidade de seu apostolado entre os gentios, em que ele tem, de fato, independência dos outros apóstolos, embora a mensagem de todos seja a mesma.
A motivação de P aulo No versículo 10, Paulo se defende da acusação de que procurava agradar às pessoas pregando apenas o que elas queriam ouvir: “Pois, será que eu procuro agora o favor dos homens ou o favor de Deus? Será que procuro agradar a homens? Se estivesse ainda agradando a homens, eu não seria servo de Cristo”. Essa é a resposta de Paulo à acusação de que ele pregava o evangelho da graça para ganhar multidões e encher suas igrejas. Ele responde que, se sua intenção fosse agradar aos homens, não seria servo de Cristo, porque Cristo, o Mestre de Paulo, jamais procurou agradar a alguém no exercício de seu ministério. Podemos citar como exemplo o relato de quando o Senhor Jesus, ao ser procurado por um jovem rico que desejava entrar no reino de Deus, não tentou agradá-lo; ao contrário, o fez recordar de tudo o que Deus requeria dele. Jesus não tinha receio de homem algum. Ele não veio ao mundo para agradar a ninguém, mas, sim, para fazer a vontade de Deus. Às vezes, precisamos escolher entre esses dois objetivos. Seria maravilhoso se pudéssemos sempre agradar a Deus e aos homens ao mesmo tempo. Mas há situações em que precisamos decidir: ou agradamos a Deus ou agradamos aos homens. Jesus Cristo viveu guiado pelo propósito de sempre buscar e fazer a vontade de Deus, mesmo que isso desagradasse às pessoas. Paulo, portanto, está dizendo que, se seu ministério e sua vida tivessem como objetivo agradar aos homens, isto é, obter sua aprovação, então ele havia escolhido a religião errada, porque a que se origina em Jesus Cristo jamais terá esse propósito. Aprendemos com isso uma lição importante para os dias atuais. Há igrejas, comunidades e ministérios inteiros que existem para este único propósito: agradar aos homens, dizer o que as multidões querem ouvir. Nesses lugares, em geral, não se ouve falar sobre pecado nem sobre arrependimento. Não se fala em mudança de vida, em transformação, nem na necessidade de abandonar o pecado e seguir o caminho estreito da santificação. Esse evangelho que é pregado às massas enfatiza a prosperidade e a saúde, com o único propósito de fazer que as pessoas se sintam bem. Outra característica marcante desse evangelho pregado nos dias de hoje é a ênfase na autoajuda. Centenas de livros publicados por autores nacionais e estrangeiros exploram o desejo humano de ser bem-sucedido, de se sentir bem, de ser feliz. O principal propósito do evangelho, no entanto, não é fazer os seres humanos felizes. O autêntico evangelho de Cristo não diz respeito a colocarmos a nós mesmos em primeiro lugar, mas, sim, a Deus, sua glória e sua vontade. Diz respeito a quem é Deus e aos direitos e reivindicações dele, não aos nossos. É lamentável que muitas igrejas no Brasil estejam lotadas apenas por serem lugares onde se prega o que as pessoas querem ouvir. Procura-se ali agradar a multidão. Ora, se alguém busca agradar aos homens dessa maneira em seu ministério, já não pode, segundo Paulo, considerar-se um servo de Cristo Jesus. Todavia, quando afirmamos que não devemos agradar a homens em nosso ministério não queremos com isso dizer que, para sermos verdadeiros servos de Cristo, precisamos ser rudes com as pessoas ou tratá-las com indiferença. Queremos dizer, isto sim, que nosso dever é falar-lhes a verdade de Deus, conforme revelada na Bíblia Sagrada. Paulo está, portanto, expondo a motivação de seu ministério. O seu alvo, em primeiro lugar, era agradar a Deus. É claro que, se pudermos em algum momento agradar tanto a Deus quanto aos homens, faremos isso. No entanto, geralmente somos obrigados a escolher. E o verdadeiro ministro do evangelho — aquele a quem Deus chamou para anunciar as boas-novas da salvação —
deve buscar sempre agradar a seu Senhor no exercício de sua missão e obedecer às suas ordens, mesmo que isso o torne um pregador impopular. Não devemos seguir o exemplo do pregador palaciano de Luís XIV, o poderoso “Rei-Sol” da França. Conta-se que o rei, por motivo de um intenso medo supersticioso, havia proibido que se falasse de morte na sua presença. Mas o soberano ia à igreja todos os domingos, e o pregador da catedral, conhecedor da ordem real, precisava pregar na frente de Sua Majestade semanalmente. Certo dia, porém, ele se esqueceu da proibição do rei e, no meio do sermão, exclamou: “Todos os homens são mortais!”. Bastou um olhar do rei para o pregador se corrigir imediatamente: “Digo, quase todos os homens são mortais!”. Assim como aconteceu com aquele pregador, às vezes as pessoas alteram a mensagem de Deus para agradar aos homens. Mas não era o caso de Paulo. Não era essa a motivação dele e também não deve ser a nossa.
A origem divina do evangelho de Paulo Depois de explicar sua principal motivação, Paulo passa a falar da origem do evangelho por ele anunciado. Ele ensinava que o ser humano é salvo pela graça, que Cristo se entregou a si mesmo pelos nossos pecados e que somos salvos pela fé, sem as obras da lei. De onde ele extraiu esses ensinamentos? Paulo explica, nos versículos 11 e 12: “Mas, irmãos, quero que saibais que o evangelho por mim anunciado não se baseia nos homens; porque não o recebi de homem algum nem me foi ensinado, mas o recebi por uma revelação de Jesus Cristo”. Nesses dois versículos, Paulo declara com muita ênfase que o evangelho que anuncia não é invenção humana. O apóstolo diz que não o recebeu de homem algum e que não estava meramente repetindo o que outros lhe falaram. Ele não aprendeu esse evangelho com ninguém nem era discípulo de pessoa alguma. Sua mensagem não era simples reprodução do ensino de mestres humanos. No versículo 12, Paulo afirma que recebeu seu evangelho mediante “uma revelação de Jesus Cristo”. A palavra aqui traduzida por “revelação” (apokalypsis , na língua grega) está relacionada, em sua origem, ao ato de “tirar o véu”. Trata-se de uma palavra constituída por dois elementos: apo, preposição com o sentido de “a partir de” ou “saindo de”, e kalypto , que significa “véu”. O termo remete a uma ideia bonita. Imagine uma noiva dos tempos antigos, cujo rosto era coberto com um véu no dia do casamento. Suas feições não eram muito visíveis. O ato de revelar consistia em retirar esse véu, e assim a fisionomia da mulher aparecia sem impedimento. Essa era a referência original da palavra aqui traduzida por “revelação”. Desse modo, a ideia transmitida por Paulo é que o evangelho de Cristo — a mensagem de que Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna — era algo anteriormente encoberto. Essa mensagem estava, sim, presente no Antigo Testamento, porém de forma velada. Não podia ser vista com nitidez. Quando Cristo veio ao mundo, foi como se o véu tivesse sido removido, e o evangelho então passou a ser visto com clareza na pregação dos apóstolos. Portanto, ao declarar que recebeu o evangelho mediante uma revelação de Jesus Cristo, Paulo aponta para a origem sobrenatural de sua mensagem. Foi o próprio Deus quem tirou o véu do evangelho diante de Paulo — ele aqui está provavelmente se referindo à sua conversão e ao seu chamado que ocorreram no incidente da estrada para Damasco. Paulo, na época em que ainda se chamava Saulo de Tarso, fazia parte do grupo dos fariseus; era um judeu zeloso das tradições de Israel e estava convencido de que era seu dever perseguir os cristãos e extirpar o cristianismo, pois, segundo cria, tratava-se de uma religião humana. Contudo, no caminho de Damasco, para onde se deslocava na companhia de uma pequena tropa com a missão de prender cristãos e fechar as igrejas da cidade, Cristo lhe apareceu e se revelou a ele. Uma luz intensa brilhou, e ele ouviu uma voz que dizia: “Saulo, Saulo, por que me persegues?”. Paulo caiu ao chão e, atemorizado, perguntou: “Quem és tu, Senhor?”. E a voz respondeu: “Eu sou Jesus, o Nazareno, a quem persegues”. Naquele momento, Paulo compreendeu que aquele Jesus que ele procurava destruir era, de fato, o Messias. Não foi algo que ele aprendeu em seus estudos. O próprio Deus se revelou a ele de forma especial naquela estrada. É a isso que Paulo está se referindo quando diz: “Não o recebi [o evangelho] de homem algum nem me foi ensinado, mas o recebi por uma revelação de Jesus Cristo” (1.12). Em seguida, nos versículos 13 e 14, o apóstolo relembra seus leitores de como era sua vida antes de ser chamado por Deus: “Pois já ouvistes como era o meu procedimento no judaísmo, como eu perseguia violentamente a igreja de Deus, tentando destruíla. E no judaísmo eu ultrapassava a muitos da minha idade entre meu povo, sendo extremamente zeloso das tradições de meus antepassados”. Os gálatas sabiam de seu procedimento no judaísmo, ou seja, a fama de Paulo era grande. Mas o que ele fazia de fato? “Perseguia violentamente a igreja de Deus, tentando destruí-la”. Encontramos essa história mais detalhada em Atos 26, em que Paulo faz um relato da época em que era inimigo da igreja. Lemos também em Atos 7—8 que, quando os judeus apedrejaram e mataram Estêvão, o primeiro mártir cristão, as capas e outras peças de vestuário tiradas para facilitar a ação dos apedrejadores foram deixadas aos cuidados do jovem Saulo. Ele estava lá como testemunha desse apedrejamento e, depois, encabeçou muitas outras perseguições.
Paulo também relata que invadia as casas e saía arrastando homens e mulheres para levá-los presos a Jerusalém (At 8.3). Sem dúvida alguma, ele foi um implacável perseguidor do cristianismo. Em Gálatas 1.13, o apóstolo reconhece que procurava “destruir” a igreja — a qual teve muitos perseguidores, porém poucos foram tão ferozes e cruéis quanto Saulo de Tarso. Não se sabe se chegou a matar algum cristão, mas é provável que, em seu zelo furioso pelo judaísmo, tenha chegado a esse ponto, pois toda vez que se refere a esse período de sua vida ele o faz com tristeza e o considera um tempo de trevas e ignorância. No versículo 14, Paulo acrescenta: “No judaísmo eu ultrapassava a muitos da minha idade entre meu povo, sendo extremamente zeloso das tradições de meus antepassados”. O que, então, Paulo está comunicando aos gálatas com essa descrição de si mesmo? Ao ressaltar quanto se destacava entre seus companheiros, enquanto vivia ainda no judaísmo, ele estaria dizendo algo como: “Vocês querem uma prova de que não recebi esse evangelho de nenhum ser humano? Vocês sabem como eu era. Era um judeu zeloso, um fariseu e um religioso tão fanático a ponto de perseguir os cristãos. Eu devastava a igreja. Era um jovem extremamente zeloso da minha religião. Então, como é que, de repente, um fariseu fanático como eu se transformou num pregador do evangelho? Só há uma explicação: Deus mudou minha vida, o Deus que me apareceu no caminho para Damasco. Ele se revelou a mim e me transformou. Portanto, a mensagem que hoje prego não é algo de que fui pouco a pouco me convencendo ser verdadeiro, até que, um dia, resolvi mudar de religião. Não! Ela teve origem em uma intervenção direta de Deus em minha vida. Portanto, meu ministério e minha mensagem não têm origem humana; eu os recebi do próprio Deus, que veio ao meu encontro e me transformou de Saulo de Tarso em Paulo, o apóstolo”. Isto é o que vemos expresso nos versículos 15 e 16: “Quando Deus, porém, que desde o ventre de minha mãe me separou e me chamou pela sua graça, se agradou em revelar seu Filho em mim, para que eu o pregasse entre os gentios, não consultei ninguém”. Deus separou Paulo antes do nascimento. Ele o predestinou quando o apóstolo nem sequer havia nascido. E, no tempo de Deus, no momento por ele determinado, o Filho se revelou a Paulo. Embora do ponto de vista humano a conversão de Saulo tenha sido abrupta e até radical, Deus já havia planejado tudo isso antes da fundação do mundo. Ele havia predestinado aquele fariseu para a vida eterna e para servir-lhe aqui neste mundo. Podemos extrair desse fato algum consolo. Não devemos perder as esperanças nem mesmo com relação aos maiores inimigos do evangelho, pois não conhecemos o plano de Deus para esses indivíduos. Do mesmo modo, não deve perder a esperança quem tem um filho desviado, o cônjuge descrente ou um vizinho que lhe inferniza a vida. Jamais deveríamos perder a paciência, porque não sabemos o propósito de Deus na vida de determinada pessoa. Afinal, quem diria que Saulo de Tarso era um predestinado? Os cristãos provavelmente achavam que ele era um caso perdido e talvez até estivessem orando para que ele morresse! Ninguém imaginava que Saulo havia sido escolhido por Deus antes da fundação do mundo para ser o maior pregador do evangelho de todos os tempos. Portanto, não perca a esperança. Não desista das pessoas. Continue orando e pregando o evangelho com paciência, porque o mesmo Deus que transformou um fariseu fanático no apóstolo dos gentios pode operar uma transformação em seu filho, cônjuge, vizinho, chefe, colega de trabalho ou colega de escola. Não há limites para o poder de Deus nem para o que ele pode fazer.
A autoridade apostólica de Paulo Deus revelou seu Filho a Paulo. E, quando este finalmente entendeu, através da revelação de Deus, que Jesus Cristo era o Messias esperado, não pediu licença a ninguém para começar a pregar o evangelho. Ele não foi pedir a bênção aos apóstolos em Jerusalém ou confirmar com eles se aquele era de fato o evangelho. Paulo diz, no final do versículo 16: “Não consultei ninguém”. Ele não pediu permissão para pregar, nem foi perguntar a ninguém se de fato Cristo era o Filho de Deus e Salvador do mundo. No versículo 17, Paulo acrescenta que também não foi a Jerusalém pedir a bênção de Pedro. E ele diz isso a fim de deixar bem claro que o evangelho que prega não lhe foi transmitido por homem algum, nem mesmo pelos outros apóstolos, mas que o recebeu mediante revelação direta de Jesus Cristo. A autoridade de Paulo procede de Cristo, e é por isso que ele também se considera apóstolo. Afinal, como se definia um apóstolo? O apóstolo era alguém que havia sido chamado diretamente por Jesus Cristo e também testemunha ocular de sua ressurreição. Nessa categoria, enquadram-se os Doze. Paulo apresenta as mesmas qualificações, porque Jesus, o Cristo ressurreto em pessoa, apareceu a ele e o chamou. É por isso que ele faz questão de dizer que é tão apóstolo quanto Pedro, Mateus, Bartolomeu, André e João. Afinal, o Cristo que lhe apareceu na estrada de Damasco foi o mesmo que convocou os Doze. Seu chamado é posterior ao dos Doze, porém a autoridade que lhe foi conferida é a mesma. Por essa razão, ele não julgou necessário ir a Jerusalém pedir a bênção de quem era apóstolo antes dele, porque o próprio Deus também o havia constituído apóstolo e pregador do evangelho. No restante da narrativa, que segue esse mesmo raciocínio, Paulo conta que, depois de sua conversão, foi para a Arábia (1.17). Não sabemos o que ele foi fazer ali, mas somos informados de que depois voltou para Damasco, a cidade na qual havia se convertido, e permaneceu ali por três anos (1.18). Somente após três anos, Paulo seguiu para Jerusalém a fim de se encontrar com Cefas (ou Pedro). Ou seja, seu primeiro contato com os apóstolos de Cristo ocorreu anos depois do episódio de Damasco! E, ainda assim, ele passou apenas quinze dias
em Jerusalém, tempo insuficiente para “fazer um curso” a respeito do conteúdo do evangelho, mesmo que fosse um curso intensivo. Paulo faz questão de mencionar que passou apenas esses poucos dias em Jerusalém para mostrar que o objetivo de seu encontro com Pedro não foi aprender sobre o evangelho. Para não deixar dúvida alguma, ele afirma no versículo 19 que, além de Pedro, não viu outro apóstolo, e que viu apenas Tiago, o irmão do Senhor. Em resumo, ao escrever essas linhas, Paulo pretende evidenciar três coisas. A primeira delas é sua motivação. Não é seu propósito agradar aos homens por meio da mensagem do evangelho. Ele não o anunciava para se tornar popular e assim encher igrejas. Ele é um servo de Cristo, e seu único desejo é cumprir a missão que Deus lhe confiou. A segunda coisa que o apóstolo está querendo ressaltar é que o evangelho que prega não foi aprendido de homem algum, mas recebido por revelação divina. A maior prova disso foi sua conversão. Ele estava a caminho de Damasco no intuito de fechar igrejas, quando aconteceu sua transformação. Só Deus poderia ter mudado dessa maneira a vida do zeloso fariseu. E a terceira coisa que Paulo está querendo evidenciar é que ele é tão apóstolo quanto os outros, portanto o evangelho que ele prega tem tanta autoridade quanto a mensagem de Pedro, Tiago e João — enfim, a dos demais apóstolos de Jesus Cristo.
Conclusão e aplicações O que podemos aprender dessa passagem que seja ainda hoje relevante para nós? Há várias lições, e a primeira delas é sobre a natureza do evangelho. Ele não foi dado por Deus para agradar às pessoas em primeiro lugar. Não veio estabelecer uma religião populista, que vise tão somente conquistar ouvintes e aumentar o número de membros das igrejas. Em vez disso, trata-se de uma revelação de Deus. Diz respeito a quem é Deus, ao que ele promete e exige de nós, aos seus planos, sua vontade, seu amor e sua misericórdia. O centro do evangelho é Deus, não o ser humano. Nosso alvo na igreja, portanto, não é agradar às pessoas, mas dizer-lhes a verdade, ainda que isso por vezes as desagrade, aborreça ou mesmo seja algo com que elas não concordem. A tarefa do pregador — do ministro, do pastor, dos presbíteros — é agradar a Deus proclamando a verdade que vem dele, ainda que não seja bem recebida por todos. O evangelho diz respeito a Deus em primeiro lugar. A nossa felicidade, a nossa satisfação, vem a reboque; é subproduto, não o alvo principal. A segunda lição que aprendemos é a respeito da origem de nossa religião. Quando surgiu o evangelho? De onde veio? A resposta é que o evangelho não é invenção humana. Se eu fosse criar uma religião, jamais inventaria uma que fosse tão sangrenta, que apela para a horrenda imagem de um homem pendurado numa cruz para salvar pecadores, uma religião que exige que eu mude o coração e abandone diversas práticas que ela afirma serem erradas. Se eu fosse inventar uma religião com o objetivo de arrebanhar um grande número de seguidores, diria assim: “Quem abraçar minha religião poderá viver da maneira que bem entender. Ela fará você feliz, vai curar suas doenças e lhe dar um novo emprego. Nela, o homem pode ter quantas mulheres desejar, e a mulher, quantos maridos quiser. Minha religião não mexe com a vida das pessoas. Venha como está, porque Deus aceitará você de qualquer jeito”. Eu inventaria uma religião dessa, porque estaria assim pregando o que as pessoas gostam de ouvir. Mas não é o caso do cristianismo, que é uma religião que fala da cruz, do arrependimento, da morte, do esvaziamento e da transformação de vida, do tormento eterno e de um Deus tão justo e puro que não pode ver o mal e aceitá-lo. É também uma religião que fala da graça, da misericórdia e do amor de Deus estendidos a todos os que se humilham diante de sua bendita presença. Nossa religião, que é o evangelho pregado por Paulo e pelos apóstolos, é, portanto, santa. Ela tem origem no coração de Deus; foi criada, revelada e concedida por ele. A terceira lição que podemos aprender diz respeito aos chamados “apóstolos” de hoje. Se um apóstolo é o que Paulo descreve — uma pessoa especial que Deus pessoalmente convocou e a quem revelou o evangelho para que fosse pregado ao mundo —, então não existe mais ninguém assim em nossos dias. Os apóstolos estavam no fundamento da igreja, em seu começo. Eles receberam de Deus o evangelho, e vários deles participaram da escrita da Bíblia, na qual temos acesso a esse evangelho, e lançaram assim as bases da igreja como organização. Uma vez que a igreja já foi fundada e organizada, não precisamos de outros apóstolos. Seria como se voltássemos ao início da igreja, depois de já termos avançado bastante em sua edificação. Portanto, não devemos acreditar nessas pessoas que hoje se apresentam como apóstolos de Cristo. Às vezes, condenamos os evangélicos que se dizem apóstolos e esquecemos que o pior exemplo disso é o do papa, que se declara sucessor de Pedro e representante de Deus neste mundo. Para o catolicismo, o protestantismo não passa de uma seita, tanto que ainda hoje, nos cânones da Igreja Católica, está escrito: “Se alguém disser que o ímpio é justificado somente pela fé, entendendo que nada mais se exige como cooperação para conseguir a graça da justificação, e que não é necessário por parte alguma que ele se prepare e disponha pela ação da sua vontade — seja ex comungado” (cânone 9 do Concílio Ecumênico de Trento). Esse documento data da Contrarreforma e é válido para a Igreja Católica até o dia de hoje. O papa se apresenta como vicarius dei, o vigário de Deus na terra, que significa o representante de Deus entre os homens, e afirma que não há outro. Portanto, não merecem crédito todos os que hoje se apresentam assim como apóstolos de Cristo. Não temos mais apóstolos. Hoje temos pregadores e ministros de Deus que ensinam o evangelho transmitido pelos apóstolos. Por fim, a quarta lição diz respeito à revelação. Quando falamos que Deus se revelou a Paulo, estamos falando de uma revelação especial de Deus aos apóstolos de Cristo no início do cristianismo. Não cremos que Deus hoje se revele daquela
maneira, ou que apareça em sonhos ou em visões para ensinar novas verdades às pessoas. Não cremos em novas revelações. Para os que seguem Cristo, tudo que Deus queria revelar já está na Bíblia. Aprouve a ele inspirar pessoas para escrever suas revelações, a fim de que novas revelações não se fizessem necessárias a cada nova geração. Ele revelou tudo de uma vez por todas e registrou esse momento. Agora cabe a nós conhecer Deus pelo estudo da Bíblia. As revelações de Deus estão nela — incluindo as que o Senhor Jesus ensinou acerca do evangelho e que foram transmitidas à igreja por meio de Paulo, Pedro e outros. Não precisamos hoje de “novidades”. Temos apenas de estudar esse evangelho e a ele nos apegar. Você crê nisso? Crê nesse evangelho de todo o coração? Crê de fato que Jesus Cristo é o Filho de Deus e que na Bíblia temos a Palavra de homens inspirados por Deus, que foram canais, instrumentos para a revelação da verdade? Você pode até ter dúvidas — eu também tenho algumas. Há coisas que não entendo. Mas esse não é o problema. Se você crê que a verdade está na Bíblia e que Deus se revela nesse evangelho, então você está seguro, embora esteja sempre no processo de aprender mais e mais a respeito dessa revelação, ainda que jamais entenda aqui na terra algumas coisas.
Capítulo 3
A DEFESA DO MINISTÉRIO DE PAULO
Gálatas 2.1-10 sede do cristianismo ficava em Jerusalém, onde surgiu a primeira igreja. O cristianismo começou dentro do judaísmo. O Messias proclamado pelos cristãos era um judeu, Jesus de Nazaré. A Bíblia usada pelos primeiros discípulos de Jesus era a mesma dos judeus: o Antigo Testamento. Os apóstolos, que lançaram as bases da igreja cristã, embora oriundos de diferentes ocupações, eram todos judeus e foram escolhidos por Jesus entre a multidão que o acompanhava. As expectativas dos primeiros cristãos concentravam-se na esperança da volta do Filho de Deus, que coincidia em vários aspectos com a esperança judaica da chegada do Messias. As primeiras igrejas preservavam algumas características da religião judaica. Os primeiros cristãos de Jerusalém eram todos judeus e ainda mantinham certas práticas do judaísmo. Eles criam que Jesus era o Filho de Deus, o Messias esperado, mas continuavam a frequentar o Templo, como nos tempos do Antigo Testamento. Os primeiros cristãos judeus provavelmente continuaram a guardar o sábado, talvez numa fase de transição, ao mesmo tempo que guardavam o domingo, que já despontava como o dia que haveria de prevalecer para o cristianismo como “dia de descanso”. A circuncisão era um sinal da antiga aliança e da religião do Antigo Testamento, e é provável que os primeiros cristãos de Jerusalém circuncidassem os filhos. Alguns, com certeza, continuavam a observar as leis dietárias dos judeus: não comiam carne de porco e de outros animais proibidos pela Lei de Moisés nem ingeriam sangue. Em suma, preservavam as características que distinguiam os judeus dos outros povos. Sendo assim, era muito difícil para um judeu que havia se tornado cristão vencer a barreira étnica e religiosa e se misturar com os pagãos, entrando, por exemplo, na casa de alguém que não era judeu. Quando o apóstolo Paulo, um fariseu zeloso da lei judaica convertido ao cristianismo, começou a pregar o evangelho aos gentios e dizer que Deus os aceitava pela fé em Cristo Jesus, sem as obras que a Lei de Moisés exigia, muitos cristãos judeus ficaram alarmados. Para muitos deles, Paulo estava pregando um evangelho diferente ao dizer que, para uma pessoa ser aceita por Deus, bastava crer em Jesus Cristo. Ela não precisava se circuncidar, nem ir ao Templo, nem observar regras alimentares, nem seguir o calendário das festas judaicas, como a Páscoa e o Pentecostes. A pessoa era salva pela graça, por meio da fé, sem as obras da lei. A igreja de Jerusalém ficou alvoroçada quando viu surgir no cenário do primeiro século aquele pregador ensinando essa doutrina a outros grupos étnicos. O que teria acontecido com Paulo? Será que ele havia apostatado? Teria ele abandonado a gloriosa religião judaico-cristã? Estaria pregando outro evangelho? Não tardou para que as igrejas fundadas por Paulo se tornassem alvo de evangelistas e missionários judaizantes, que tinham como estratégia visitá-las para tentar “converter” os convertidos de Paulo. O apóstolo chegava a uma região, pregava o evangelho a um grupo de gentios, batizava as pessoas que criam, as discipulava e edificava na fé e organizava a liderança dessa nova igreja. Em seguida, ia plantar mais uma igreja em outro lugar. Mas assim que Paulo partia, esses missionários judaico-cristãos chegavam aos gentios daquela igreja já constituída e perguntavam: — Vocês são cristãos? — Somos — respondiam os cristãos gentios. — Cremos em Jesus Cristo como Senhor e Salvador. Os missionários judeus então diziam: — Que coisa maravilhosa! Nós também somos! E vocês já foram circuncidados? — Não — informavam com estranheza os recém-convertidos. — Como não foram?! Quem pregou o evangelho para vocês? O apóstolo Paulo? Já imaginávamos! Vocês sabiam que Paulo não pertence aos Doze? Ele veio depois. Não faz parte do grupo original dos apóstolos de Cristo. Ele não ensinou que vocês deviam se circuncidar? — Não. Ele disse que pela fé já estamos salvos e não precisamos de mais nada. O que devemos fazer, depois de ter sido salvos, é obedecer a Deus, perseverar na verdade, pregar o evangelho a outras pessoas e fazer parte da igreja. — Não, não, Paulo ensinou tudo errado! Vocês não são cristãos completos ainda. Para que sejam cristãos de fato e possam entrar no reino de Deus, é preciso ir além de somente crer em Jesus. Vocês precisam se circuncidar, deixar de comer carne de porco e sangue, ou seja, parar de viver dessa maneira que vocês vivem. Vocês têm de se tornar judeus, porque Jesus era judeu. A Bíblia que estão lendo é a Bíblia dos judeus. Vocês não podem ser cristãos nem se salvar se não praticarem todas as obras da Lei de Moisés. É preciso se tornar judeu praticante para poder entrar no céu. E a partir daí a confusão se instalava nas igrejas que Paulo havia fundado. Os cristãos passavam a ter dúvidas e ficavam sem saber direito o que responder.
A
Paulo foi então informado de que certos missionários estavam ensinando essa doutrina nas igrejas que ele havia plantado na região da Galácia. Elas estavam sendo minadas pela atividade desses missionários “judaizantes”, como ficaram conhecidos os que ensinavam que a circuncisão era obrigatória a um gentio que se convertia ao cristianismo. Alguns cristãos gentios já haviam se circuncidado, outros estavam pensando em fazê-lo e ainda outros estavam em dúvida. Mas certamente todas aquelas igrejas estavam conturbadas. Paulo não podia retornar à região da Galácia, porque estava plantando igrejas em outra parte, por isso resolveu mandar uma carta, que é esta Carta aos Gálatas, que estamos estudando. Nessa carta, o apóstolo Paulo se defende das acusações feitas pelos evangelistas judaico-cristãos e repreende os gálatas por estarem se desviando tão rapidamente do evangelho que dele haviam recebido. Com base no Antigo Testamento, ele prova que, desde o início, foi anunciado o evangelho da graça e da fé em Cristo Jesus, sem as obras da lei. Então, declara que o judaísmo era provisório, uma religião de sombras e de rudimentos que foi substituída pela vinda de Cristo Jesus. Assim, não fazia mais sentido que uma pessoa que estivesse em Cristo mantivesse aquelas práticas antigas, as quais não tinham mais utilidade. Elas eram apenas figuras, sombras que apontavam para a vinda do Messias, e agora ficaram para trás com sua chegada. O capítulo 2 é a parte da carta em que Paulo defende seu ministério das acusações que lhe eram pessoalmente dirigidas: de que ele pregava outro evangelho e de que era inferior aos Doze, especialmente aos apóstolos Pedro e João, e também a Tiago — o irmão de Jesus que havia ocupado o lugar do Tiago apóstolo, decapitado por Herodes. Esses três eram os principais líderes da igreja de Jerusalém. Paulo, então, apresenta sua defesa. Vejamos o texto: Depois de cato rze an os, sub i o utra vez a Jerusal ém com Ba rnabé , leva ndo Tito também comigo . Sub i p or ca usa de u ma revelaç ão e ex pus a eles o evangelho que prego entre os gentios, mas em particular aos que pareciam se destacar, para que de algum modo não corresse ou não tivesse corrido inutilmente. Mas nem mesmo Tito, que estava comigo, foi forçado a se circuncidar, embora fosse grego, e isso por causa dos falsos irmãos que havi am se int rometido e se cretamente viera m espi ar a lib erdade que temos em Crist o J esus, p ara nos escrav izar. Mas nem por u m momento cede mos, ou n os sub metemos a eles, p ara q ue a verdade do e vang elh o pe rmanecesse conv osco. E aqu eles que pareciam se r importantes, ainda que o tenham sido no passado, isso não me importa, pois Deus não considera a aparência humana, esses, que pareciam ser import ante s, nada me acrescent aram. Pelo co ntrá rio, vira m que o eva ngel ho da i nci rcuncisão me havia sido c onfiad o, assim como a Ped ro o evangelh o da circuncisão. Pois aquele que ag iu por meio de Pedro para o apostolado d a circuncisão também agiu por meu intermédio para o apostolado aos gentios. E quando reconheceram a graça que me havia sido dada, Tiago, Cefas e João, considerados colunas, estenderam a mão direita da comunhão a mim e a Barnabé, para que fôssemos aos gentios, e eles, à circuncisão. E nos recomendaram somente que nos lembrássemos dos p obres, o que também procurei fazer com cuid ado (2.1-10).
Essa passagem pode ser dividida em três partes, das quais podemos extrair lições preciosas a respeito do evangelho que pregamos hoje no Brasil, em meio a muitas lutas e dificuldades. Essas conclusões devem especialmente nos levar a Deus em espírito de gratidão por homens que, como Paulo, lutaram pela pureza do evangelho; caso contrário, todos nós ainda teríamos de nos circuncidar e guardar todos os preceitos das leis dietárias e do calendário judaico. Na primeira parte da passagem, Paulo relata uma viagem que fez a Jerusalém para se encontrar com os apóstolos e lhes expor e defender o evangelho que pregava, não por querer a aprovação deles, mas porque prezava a comunhão com os apóstolos de Cristo. Na segunda parte, ele relembra um embate que teve com os judaizantes, que foram confrontá-lo tão logo souberam de sua presença em Jerusalém. Na terceira parte, Paulo conta que recebeu total apoio dos apóstolos de Jerusalém e relata também como dividiram o campo de trabalho — quem haveria de pregar o que e para quem. No final, ele faz menção aos pobres.
O encontro com os outros apóstolos Quando inicia o relato de uma viagem a Jerusalém (2.1), Paulo afirma que a fez “depois de catorze anos”. Não é possível afirmar com certeza o significado desse “depois”: catorze anos depois do quê? Talvez seja após sua conversão, a qual ele relata no capítulo 1, ou pode ser uma referência à data de sua primeira viagem a Jerusalém, que ele menciona em 1.18: “Depois de três anos, subi a Jerusalém”. Não fica claro nessa carta qual fato está sendo mencionado como referência. De qualquer forma, seja por um critério, seja por outro, o que Paulo está ressaltando com essa afirmação é que ele já pregava o evangelho havia pelo menos catorze anos quando, enfim, resolveu ir a Jerusalém para um encontro com os líderes da igreja judaico-cristã daquela cidade. A informação é importante porque mostra que Paulo era independente dos apóstolos de Jerusalém, que havia sido autorizado por Deus a pregar o evangelho e, portanto, não precisava da aprovação dos Doze. Em seguida, o apóstolo também informa que não estava sozinho. Havia levado consigo dois amigos (v. 1). Um deles era Barnabé, seu companheiro de pregação e um de seus auxiliares. Na mesma categoria, podemos incluir Timóteo e vários outros mencionados por nome nas cartas de Paulo, porém Barnabé era seu principal ajudador, que sempre estava com ele. Também acompanhava o apóstolo nessa viagem a Jerusalém um jovem chamado Tito, a quem mais tarde Paulo haveria de escrever uma carta, incluída no Novo Testamento entre as chamadas Cartas Pastorais (ao lado de 1 e 2Timóteo). Tito era uma espécie de assessor, um “chefe de gabinete”, um ajudante de ordens de Paulo. A esse jovem pastor e missionário Paulo confiava o desenvolvimento e a expansão de seu trabalho, bem como a plantação e a organização de novas igrejas.
Obedecendo a uma revelação
Paulo diz ainda que subiu a Jerusalém em obediência a uma revelação. Não sabemos a que tipo de revelação ele se refere. Teria sido uma revelação particular, na qual Deus apareceu ao apóstolo dizendo algo como “Paulo, quero que você agora vá a Jerusalém se encontrar com Pedro, Tiago e João”, ou teria sido uma revelação de outra natureza? Em Atos 11 está registrado que um profeta chamado Ágabo dirigiu-se a Antioquia, onde Paulo se encontrava, com uma revelação de que haveria uma grande fome no mundo, e, por isso, os crentes de Antioquia decidiram enviar uma oferta aos irmãos de Jerusalém. Se a viagem de Paulo a Jerusalém mencionada em Gálatas é a mesma registrada em Atos 11, então é a essa revelação que Paulo se refere, ou seja, à palavra profética trazida por Ágabo. Essa interpretação faz sentido, porque no final da passagem a questão dos pobres é outra vez mencionada. Caso tenha sido uma revelação particular a Paulo, isso nos leva a uma questão: Deus ainda hoje fala conosco dessa maneira? Deveríamos em nossos dias esperar que Deus apareça de súbito para alguém e diga algo como “Estou lhe revelando que você deve pregar em tal lugar domingo que vem”, ou “Você tem de plantar uma igreja lá em seu bairro”? Os cristãos que fazem parte de igrejas da tradição reformada não creem que Deus ainda se dirija a seus filhos dessa maneira. As revelações pessoais foram restritas ao período apostólico, dadas aos apóstolos e outros homens especialmente designados por Deus para plantar igrejas e estabelecer o evangelho no início do cristianismo, homens inspirados por Deus e infalíveis em seus escritos. Era uma categoria especial de obreiros, que não existe mais. Assim, fica difícil falar em revelação particular de Deus a determinadas pessoas nos dias atuais. Não queremos com isso dizer que Deus não possa se revelar dessa forma, pois ele pode fazer isso se assim desejar; contudo, esse tipo de revelação não deve ser normativo para a igreja. Se você acredita que Deus lhe falou ou revelou algo em particular, não convém exigir que outros acreditem nisso ou que obedeçam a essa revelação, porque a igreja não é obrigada a seguir a revelação particular de ninguém. Ela deve seguir, isto sim, a revelação especial de Deus, que está nas Sagradas Escrituras. A Bíblia, como bem sabemos, é nossa única regra de fé e prática. A igreja se orienta por ela, não por revelações particulares recebidas por algum pastor, presbítero ou outro membro. Como já disse, não é que Deus não possa mais fazer uma revelação desse tipo atualmente, mas se tratará sempre de algo entre a pessoa e Deus, sem valor normativo para a igreja. Não se pode constranger a igreja a acreditar no que foi revelado a um indivíduo em particular ou obrigá-la a seguir o que está sendo ensinado através dessa revelação. De qualquer modo, nessa situação específica narrada na Bíblia, o apóstolo Paulo foi orientado por Deus sobre a necessidade de subir a Jerusalém. Talvez ele tenha ido com o objetivo de ajudar os pobres, se a revelação a que ele se refere é aquela de Ágabo. Mas acabou ocorrendo naquela cidade algo muito mais importante do que Paulo tinha em mente, porque ali foi discutido um assunto de extrema seriedade para o futuro da igreja. Tirando o melhor proveito da viagem
O objetivo da viagem e o que acabou acontecendo nela estão registrados no versículo 2. Na ocasião, Paulo expôs e defendeu o evangelho que pregava entre os gentios. Ele o fez em particular somente aos que pareciam exercer maior influência na igreja, “para que de algum modo não corresse ou não tivesse corrido inutilmente”. O apóstolo parece ter sido um tanto pragmático nessa situação, não é mesmo? Ao se dirigir a Jerusalém, ele deve ter refletido: “Quais são os de maior influência naquela igreja? Quem são os chefes? Sem dúvida, Pedro, Tiago e João. Quero então me reunir com eles”. Paulo não queria perder tempo expondo a qualquer pessoa o evangelho que pregava. Desejava aproveitar ao máximo aquela viagem. Aprendemos com isso que é preciso planejar bem as coisas. Não é errado concentrar esforços num grupo em que a possibilidade de sucesso é maior. Às vezes, muito do tempo e do dinheiro da igreja é investido em trabalhos que, se fossem mais bem planejados, ou executados em outro lugar, resultariam em melhor aproveitamento dos recursos que Deus pôs à nossa disposição. Quando foi a Jerusalém, Paulo sabiamente procurou os de maior influência, aqueles em quem a defesa do evangelho que pregava ocasionaria melhores resultados, a fim de que sua empreitada alcançasse maior êxito. Não é pecado planejar dessa maneira. Temos a missão de pregar a todas as pessoas. Mas como não podemos fazer isso imediatamente, porque não temos o dinheiro, o tempo nem o pessoal suficientes, vamos dar preferência a lançar a semente nos campos que nos pareçam mais frutíferos. Se temos apenas uma rede para lançar, vamos lançá-la naquela parte do mar que sabemos ter mais peixe, não é mesmo? Não é produtivo semear em qualquer campo ou sair lançando a rede em qualquer lugar. Seria um desperdício. Quando eu era adolescente e morava em Recife, saía para pescar com “seu Lisboa” — ele tinha esse apelido porque era português. Esse senhor morava em um barraco à beira-mar havia muitos anos; tinha a pele enrugada pelo sol e possuía uma jangada de madeira, que ele mesmo havia construído. Vivia da pesca que praticava com anzol, em vez de lançar a rede ao mar. Eu gostava de ficar ouvindo suas histórias, até que um dia ele me levou para pescar. Na costa da praia de Pau Amarelo, onde fui criado, era muito bom sair com seu Lisboa para pescar, porque ele conhecia todos os lugares em que havia peixe. Enquanto um leigo como eu olhava o mar e via tudo igual, ele sabia exatamente onde estavam os
“poços”. Quando chegava a um desses locais, jogava a âncora, baixava o anzol, e era só puxar, porque havia peixes em abundância. Da mesma forma, temos poucos recursos para executar nossa missão, por isso devemos buscar com sabedoria identificar exatamente o local onde vamos pregar. Assim, aproveitaremos melhor nosso tempo e nossa mão de obra. A fim de que sua viagem não fosse inútil, Paulo procurou as pessoas com maior influência na igreja de Jerusalém, para expor e defender o evangelho que anunciava. Desse modo, ele pôde convencer toda a igreja de que o evangelho pregado entre os gentios era o mesmo que Pedro proclamava entre os judeus, embora com diferentes aplicações. O evangelho tem uma capacidade extraordinária de adaptação e inculturação, porque é uma mensagem a ser pregada no mundo inteiro. Pelo fato de ter essa natureza, pode ser pregado a judeus, a gentios, a brasileiros de diversas origens. Pode ser proclamado entre as classes mais abastadas dos grandes centros e entre os pobres da periferia. O evangelho que pregamos é capaz de se adaptar à cultura, de se infiltrar nela, de abençoá-la, de transformá-la. Quando Paulo mostrou aos apóstolos de Jerusalém que o evangelho que pregava entre os gentios era o mesmo que Pedro e os demais pregavam entre os judeus, ele ressaltou que apenas as aplicações não eram as mesmas. E essa é a única diferença mencionada aqui. Foi assim que Paulo, o estrategista, o pastor, o missionário e o apóstolo, defendeu os interesses do evangelho em Jerusalém.
O embate com os judaizantes A segunda parte do texto nos apresenta o que aconteceu em Jerusalém. Nos versículos 3 a 5, Paulo fala de uma disputa com alguns falsos irmãos que se intrometeram na reunião entre ele e a liderança da igreja de Jerusalém. Não foi um encontro programado. Esses falsos irmãos provavelmente faziam parte daquele grupo de missionários judaizantes que mencionamos, e Paulo se viu obrigado a debater com eles. Quando chegou a Jerusalém, o apóstolo foi apresentado à igreja e se reuniu com os líderes. Tito estava ao seu lado. Pedro, Tiago e João, que eram todos judeus, devem ter perguntado a Paulo: “Quem é este jovem?”. E Paulo deve ter respondido: “É um gentio que me acompanha na pregação do evangelho”. Foi nesse exato momento que os evangelistas judaizantes o interpelaram: — Ele é circuncidado? — Não, ele é gentio — Paulo respondeu. — Não exijo que os gentios que creem em Jesus Cristo sejam circuncidados. — Mas isso é um absurdo! Ele tem de ser circuncidado e precisa guardar a Lei de Moisés. Você tem alguma coisa contra Moisés, Paulo? — Não, não sou contra Moisés. — Você é contra as obras da lei? — É claro que não sou contra as obras da lei! Apenas creio que estou correto em afirmar que as obras da lei, apresentadas por Moisés no Antigo Testamento, são proféticas, apresentam tipos que já se cumpriram com o advento de Cristo. Por isso, os gentios não precisam se circuncidar para ser cristãos como nós. Nesse ponto, começou a discussão, e Paulo teve de resistir com unhas e dentes. Creio que ele estava disposto até mesmo a romper com os líderes da igreja de Jerusalém, caso Tito fosse obrigado a se circuncidar. É o que dá a entender com o que escreveu. Mas o desfecho não foi esse, como ele informa no versículo 3: “Nem mesmo Tito, que estava comigo, foi forçado a se circuncidar, embora fosse grego [outra palavra utilizada para designar um gentio, pois todos os gregos eram gentios]”. Por que isso? No versículo 4, ele esclarece: “e isso por causa dos falsos irmãos que haviam se intrometido e secretamente vieram espiar a liberdade que temos em Cristo Jesus, para nos escravizar”. Era assim que Paulo enxergava a tentativa de circuncidar Tito. Se o jovem obreiro fosse circuncidado, sendo um gentio, isso seria uma derrota para o evangelho. Não seria um problema pessoal e localizado, mas, sim, um incidente emblemático. Um gentio que tivesse de ser circuncidado para se tornar “um cristão de verdade” colocaria em risco o evangelho, e é por isso que Paulo diz, no versículo 5, que não cedeu “nem por um momento [...] para que a verdade do evangelho permanecesse convosco”. Se Tito fosse circuncidado, os demais cristãos gentios também teriam de passar pela circuncisão. Todos os cristãos teriam de se tornar judeus, e hoje seríamos uma igreja judaica. Essa reunião em Jerusalém talvez tenha sido o momento mais crítico para o evangelho. Decidiu-se ali se prevaleceria o evangelho da graça, da misericórdia e da fé em Cristo Jesus, sem as obras da lei, ou se venceria o “evangelho” dos judaizantes. Imaginemos que Paulo tivesse cedido dizendo algo como: “Tudo bem! Tito, você se incomoda? Deixa pra lá! Não vamos brigar, não; sejamos amigos. Dói só um pouquinho, mas... é só para agradar esse pessoal... só pra gente fazer amizade e estabelecer um bom ‘ponto de contato’. Não queremos encrenca com ninguém”. Se Paulo tivesse agido assim, o evangelho da graça talvez tivesse se perdido para sempre. Teríamos perdido a liberdade que temos em Cristo. O evangelho verdadeiro é o evangelho da liberdade, aquele que nos libera das obrigações legalistas e ceri-moniais da Lei e nos dá a salvação gratuita em Jesus Cristo. Esse evangelho possibilita que qualquer pessoa, por mais pecadora e fraca, seja salva pela fé em Jesus Cristo. Paulo estava lutando não apenas pelo seu amigo Tito, mas pela verdade do evangelho, para que este permanecesse conforme ele havia recebido de Deus e como deve sempre ser. E o resultado desse seu empenho foi maravilhoso.
O apoio dos apóstolos de Jerusalém ao evangelho de Paulo Na terceira parte do texto, que vai do versículo 6 ao 10, Paulo passa a discorrer sobre o apoio que recebeu dos líderes de Jerusalém após o embate com os judaizantes. Ao mencionar “aqueles que pareciam ser importantes”, ele está se referindo a Pedro, Tiago e João, que eram considerados “colunas” da igreja. Paulo, na verdade, não demonstra ter se intimidado com isso, pois afirma que Deus “não considera a aparência humana”. Paulo não ficou nem um pouco impressionado com os três, porque acreditava estar no mesmo nível dos apóstolos Pedro e João e ainda de Tiago, irmão de Jesus e líder da igreja em Jerusalém. “Nada me acrescentaram”, ele diz no final do versículo 6; ou seja, os três não fizeram nenhum acréscimo ao evangelho que ele pregava. Na verdade, nessa reunião, Pedro, Tiago e João puderam constatar que Deus estava agindo também através de Paulo, não somente através deles. Desse modo, conseguiram perceber uma coisa importante: Deus havia designado Paulo para pregar o evangelho aos gentios, assim como designara Pedro para pregar o evangelho aos judeus. Ao perceberem isso, reconheceram, por conseguinte, o apostolado de Paulo. E, como expressão desse reconhecimento, o versículo 9 diz que “estenderam a mão direita da comunhão”. Com esse gesto, os três líderes estavam dizendo a Paulo: “Você é um de nós. Você é como nós, e reconhecemos seu ministério. Não temos absolutamente nada a acrescentar ao que você está fazendo. Sabemos que Deus o escolheu e que você está pregando o verdadeiro evangelho aos gentios. Vá em paz! Nós continuaremos a pregar o evangelho aos judeus aqui, enquanto você se dedica a pregar aos gentios!”. É claro que essa regra não era absoluta, porque, aonde Paulo chegava, ele primeiro pregava aos judeus; só depois falava aos gentios. Da mesma forma, Pedro e os demais apóstolos não pregavam apenas aos judeus, mas também aos que não professavam a fé judaica. O apóstolo João, por exemplo, no final da vida, era responsável pelas igrejas da Ásia menor, que eram gentílicas. A incumbência do ministério de Paulo aos gentios e o de Pedro e demais apóstolos aos judeus não era uma regra absoluta, mas, sim, uma questão de prioridade. Em Jerusalém, definiu-se o principal foco dos ministérios. O que os apóstolos estavam dizendo era: “Nós todos pregamos o mesmo evangelho. Todavia, há grupos diferentes que precisam ser alcançados. Você vai para os gentios, Paulo, e nós continuaremos a pregar aos judeus”. E a única recomendação que fizeram ao apóstolo dos gentios está no versículo 10: “Recomendaram somente que nos lembrássemos dos pobres, o que também procurei fazer com cuidado”. Ainda assim, mesmo antes dessa recomendação, Paulo já estava se esforçando para fazer isso, pois, se nosso raciocínio estiver correto, um dos motivos de ele ter ido a Jerusalém foi entregar aos pobres da primeira igreja uma oferta arrecadada entre os cristãos de Antioquia.
Conclusão e aplicações Podemos nos perguntar o que essa seção da Carta aos Gálatas pode ensinar aos cristãos de hoje. Creio que várias lições podem ser aprendidas com ela. A primeira lição, já mencionada algumas vezes, é que há somente um evangelho. Embora seja pregado a povos diversos, de épocas e culturas diferentes, é o mesmo evangelho. Pedro, Tiago e João estenderam “a mão direita da comunhão” a Paulo em sinal de reconhecimento dessa verdade. É um só evangelho: que Cristo Jesus morreu pelos nossos pecados, ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus, está à direita de Deus, virá para julgar os vivos e os mortos, e quem crer nele será salvo de seus pecados, será perdoado e aceito por Deus e terá a vida eterna — tudo isso somente pela misericórdia de Deus e sem as obras da lei. É esse o evangelho que a Bíblia ensina. A segunda lição é que esse evangelho, embora seja o mesmo, pode ter diferentes aplicações. Ele pode ser contextualizado e se adaptar à cultura. Os crentes de Jerusalém eram cristãos verdadeiros — exceto os legalistas, que Paulo considerava falsos irmãos. Mas os judeus que de fato se convertiam a Cristo praticavam o cristianismo sem renunciar à sua cultura. Circuncidavam os filhos não como um ato religioso, mas como um identificador da cultura judaica e, pela mesma razão, cumpriam as regras alimentares estabelecidas na Lei. Para Paulo, isso não era problema. Quando pregava o evangelho entre os judeus, ele mesmo se comportava como judeu. O evangelho, portanto, pode absorver determinados aspectos culturais. Uma das tarefas mais difíceis da igreja é separar o essencial — o que de fato faz parte do evangelho — daquilo que é simplesmente uma expressão cultural. As expressões culturais podem ser postas de lado, e as tradições podem ser substituídas, mas o evangelho é imutável. Às vezes, ficamos insistindo em tradições, costumes e práticas em nossas igrejas que funcionaram na época de nossos pais, mas que hoje não fazem mais sentido. O mundo mudou, a cultura mudou e uma nova geração já está aí. Precisamos estar atentos a isso, se quisermos que a igreja caminhe e seja relevante para nossa geração. A terceira lição é que devemos buscar a comunhão com todos os cristãos verdadeiros. Paulo foi a Jerusalém e lá procurou a liderança daquela igreja. Em certo sentido, as igrejas que ele fundara eram diferentes em sua expressão e na liturgia; contudo, Paulo queria se acertar com aqueles irmãos. Seu desejo era ter comunhão com eles. Queria que a igreja fosse una, sem divisões, e tomou a iniciativa de explicar seu trabalho diante dos líderes da igreja-mãe. Como resultado, teve a alegria de receber dos
apóstolos e líderes de Jerusalém um gesto de comunhão e o reconhecimento de seu ministério, e assim todos se puseram a marchar no mesmo Espírito e sob a bandeira do mesmo evangelho. É preciso investir esforços constantes para mantermos a unidade da igreja, porque é dessa maneira que damos ao mundo o testemunho de que servimos ao mesmo Deus. A quarta lição é que não devemos abrir mão do fundamental no evangelho. Paulo se dispôs a viajar até Jerusalém para conversar com Pedro, Tiago e João, a fim de expor e entender as diferenças entre o ministério de cada um. Mas não estava disposto a aceitar que Tito fosse circuncidado. Não por causa de Tito em si, seu filho na fé, mas por aquilo que o ato representaria: um desvio fundamental da verdade do evangelho. Ceder nesse caso seria negar que a salvação é pela graça e pela fé, sem as obras. No que era essencial, Paulo era intransigente. Ele declarou mais tarde aos gálatas: “Nem por um momento cedemos”. Paulo era um homem de paz, mas também estava disposto a lutar pela verdade. Penso que ele teria rompido com a igreja de Jerusalém se Pedro, Tiago e João tivessem exigido a circuncisão de Tito; mas os três pensavam como Paulo. Jamais exigiriam que um gentio se circuncidasse. Quem estava cobrando isso eram os legalistas, os falsos irmãos que haviam se infiltrado na igreja e perverteram o evangelho. Do mesmo modo, nós, cristãos, somos homens e mulheres de paz, mas que ninguém tente mexer com as bases de nossa fé! Quando está em jogo aquilo que é central no evangelho, suas doutrinas fundamentais, viramos leões — não no sentido de “devorar os outros”, porque nessa luta estaremos dispostos até ao sacrifício pessoal, e sim no sentido de sermos intransigentes na defesa da “fé entregue aos santos de uma vez por todas” (Jd 3). Não podemos ser vacilantes e indecisos nessas ocasiões. Precisamos entender muito bem o evangelho para não comprometermos a verdade de Deus em nome da convivência pacífica, de uma falsa paz e de uma tranquilidade ilusória. Todos nós gostaríamos de viver em paz com todos, mas há ocasiões em que Deus nos convoca para uma boa discussão, um verdadeiro embate contra os inimigos do evangelho. A quinta e última lição que identificamos no trecho estudado é que devemos ser sempre muito gratos a Deus. Considerando todos os privilégios de que dispomos hoje como cristãos, penso que, em geral, somos muito ingratos. Temos, por exemplo, a Bíblia à nossa total disposição, e em diversas versões. Um dos livros que compõem a Bíblia é a carta que estamos aqui estudando, e percebe-se que ela foi escrita com o sangue, as lágrimas e o suor do apóstolo Paulo. Ao estudarmos a história do cristianismo primitivo, descobrimos quanto custou para que esse e outros livros fossem escritos. Temos todos eles disponíveis na Bíblia, em nossa casa, mas ela fica a semana inteira na estante, pegando poeira (quando não é esquecida no banco da igreja!). Ela é um tesouro que não valorizamos adequadamente. A Palavra de Deus foi escrita com o sangue dos mártires e as lágrimas de homens inspirados por Deus, para que hoje tivéssemos sua revelação e pudéssemos conhecer sua vontade. Agradeçamos sempre por esse imenso privilégio! E que Deus nos ajude a permanecer firmes no evangelho da graça e a ser gratos por ele, pelos apóstolos que lutaram pela sua preservação, pelos pioneiros que vieram pregá-lo em nosso país e pelos pastores que passaram por nossas igrejas ensinando o verdadeiro evangelho da graça, para que eu e você pudéssemos hoje conhecer Deus mediante Jesus Cristo e ter a vida eterna. A Deus seja dada toda a glória! Amém.
Capítulo 4
O EVANGELHO DA GRAÇA
Gálatas 2.11-14 o capítulo 2, o apóstolo Paulo registra um episódio bastante conhecido em que ele teve de enfrentar outro apóstolo. Este era ninguém menos que Pedro, um dos principais líderes da igreja de Jerusalém! Examinaremos agora a passagem para entender o que aconteceu e extrair algumas lições importantes para os dias de hoje.
N
Quando, porém, Cefas chegou a Antioquia, eu o enfrentei abertamente, pois merecia ser repreendido. Porque ant es de cheg arem al guns da part e de Tiago, el e esta va co mendo c om os gen tio s; mas, quand o ele s cheg aram, Cefas foi se reti rand o e se se paran do d eles, po r temer os q ue eram da circuncisão. E os outros judeus também fizeram como ele, a ponto de até Barnabé se deixar lev ar pela hip ocrisia deles. Mas, quando vi que nã o agiam corretamente, conforme a verdade do eva ngelho, disse a Cefas na frente de to dos: Se tu, sendo judeu, vives como os gentios, e não como os judeus, por que obrigas os gentios a viver como judeus?
Certamente, esse confronto entre os dois grandes líderes foi um episódio bastante desagradável. Contudo, ao mesmo tempo, foi de extrema importância para a igreja, já que, no meu entender, foi ganha mais uma batalha a favor do evangelho pregado aos gentios. Se naquela ocasião Paulo tivesse ficado calado, por certo, ainda hoje, todo cristão seria obrigado a se circuncidar, a guardar a Lei de Moisés e a seguir as regras alimentares e o calendário judaicos. Pela graça de Deus, Paulo interveio corajosamente para reverter a situação. Vejamos algumas explicações sobre o episódio, para que possamos entendê-lo em profundidade.
Lei e graça: a história por trás da história Como o homem pode ser justo diante de Deus? Essa é a pergunta mais antiga da humanidade. Na verdade, é o assunto principal de todas as religiões. De que maneira o ser humano, com todas as suas imperfeições, pode ser aceito por um Deus justo, verdadeiro, perfeito e santo, que aborrece o pecado? A resposta a essa pergunta é o tema central do evangelho. Quando Jesus Cristo veio ao mundo e, mais tarde, quando seus apóstolos começaram a anunciar sua Palavra, a mensagem girava exatamente em torno da resposta surpreendente dada pelo cristianismo, que era também a mesma resposta do judaísmo antes de Cristo, quando a religião judaica era entendida corretamente: o homem não é e não pode ser justo diante de Deus por aquilo que ele faz. E por que essa pergunta é tão recorrente? Um dos motivos é a enorme distinção entre Deus e o ser humano. Por mais que o homem se esforce, jamais acumulará méritos e boas ações em número suficiente para alcançar a perfeição que o caráter santo de Deus requer. Além disso, por mais que se empenhe, jamais cumprirá de maneira perfeita a Lei de Deus, sumarizada nos Dez Mandamentos. Não existe, nunca existiu e não existirá pessoa alguma capaz de cumprir à risca as ordenanças divinas, seja em ações, seja em pensamento, seja em palavras. Portanto, não há como o ser humano justificar-se diante de Deus ou ser aceito por ele com base no que pratica ou no que oferece a Deus, por melhores que sejam suas intenções. Mesmo a pessoa mais honesta e sincera está ciente de que, no histórico de sua vida, há vários registros de erros e pecados, ou seja, ocasiões em que ela deixou de cumprir as exigências de Deus ou em que se desviou do padrão divino de conduta, daquilo que está estabelecido em sua Lei. É muito comum a crença de que, no período do Antigo Testamento, a salvação era obtida pela Lei e que, quando Cristo veio ao mundo, o ser humano passou a ser salvo pela graça. Mas não há engano maior. A salvação nunca foi condicionada às obras, nem mesmo no Antigo Testamento. A Lei foi concedida ao povo de Deus não como um caminho de salvação, como se quem fosse fiel a ela pudesse salvar-se por mérito próprio. O propósito dela era outro. A Lei funcionou como uma espécie de precursora de Cristo. Ela foi dada para mostrar exatamente isto: que o ser humano não pode cumpri-la, que ele é pecador e, por isso, necessita de um Salvador, de alguém que intervenha e o perdoe, aceitando-o nessa condição de pecador. Tanto é que a própria Lei não se limitava aos Dez Mandamentos. Havia leis que prescreviam sacrifícios de ovelhas, bois e pombas e várias outras ofertas a Deus como forma de compensar o pecado; ou seja, na própria Lei do Antigo Testamento já estava embutida a noção de que o perdão só é concedido com o derramamento de sangue de outrem, mediante a graça e a misericórdia de Deus. Contudo, nem todos a entendiam dessa maneira. Infelizmente, muitos judeus, creio que a maioria deles, pensaram que a Lei fosse um fim em si mesma. Não bastasse isso, acharam poucos os mandamentos que receberam e criaram ainda outros. Esses novos “mandamentos”, naturalmente, não foram dados por Moisés; eles começaram a ser elaborados depois que os judeus retornaram do cativeiro babilônico para a Palestina, pelos mestres judaicos e seus escribas. À medida que esses líderes interpretavam a Lei de Moisés, acrescentavam mandamento
sobre mandamento, por acreditar que, se os judeus guardassem todos eles, poderiam enfim ser aceitos por Deus. Desse modo, a misericórdia e a graça de Deus prenunciadas nos sacrifícios e na própria aliança, em que Deus prometia misericórdia, foram ficando em segundo plano. Depois que Cristo veio ao mundo e morreu na cruz do Calvário, seus discípulos começaram a anunciar aos judeus que Cristo era o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo, o sacrifício final que a Lei exigia. Era o sacrifício perfeito, visto que Jesus era perfeito, na condição de Filho de Deus e de homem sem pecado, e a cruz foi o altar que Deus preparou para esse sacrifício completo e definitivo. Agora qualquer um que cresse nele, que o recebesse como seu Salvador e aceitasse a obra que ele havia consumado na cruz, seria plenamente justificado, perdoado e aceito por Deus com base na fé, não na Lei e em suas demandas. Os judeus apreciavam especialmente três exigências da Lei, que eram as marcas do judaísmo na época: a circuncisão, a dieta religiosa (não comer determinados alimentos, como carne de porco ou carne com sangue) e o calendário judaico (que estabelecia algumas festas religiosas, a guarda do sábado e outras datas especiais). Assim, quando os discípulos de Jesus, que eram todos judeus, começaram a dizer que essas exigências eram coisas do passado, porque tudo o que a Lei exigia fora cumprido na pessoa de Jesus Cristo, muita gente não gostou. Ao mesmo tempo, muitos judeus queriam aceitar Jesus como Messias e Salvador, mas estavam confusos e perguntavam a Paulo: “Quer dizer que a Lei ficou obsoleta e não precisamos mais nos circuncidar, nem oferecer sacrifícios, nem observar a dieta kosher e o calendário que Moisés nos deixou?”. E o apóstolo respondia: “Exatamente! Todas essas coisas eram simbólicas, tipos que apontavam para Jesus Cristo. Não precisamos mais delas para ser aceitos por Deus. É pela fé em Jesus Cristo, e nada mais, que nos justificamos diante de Deus”. Por esse motivo, naquele primeiro período do cristianismo, os cristãos estavam mais ou menos divididos, e, quando Paulo passou a pregar o evangelho para quem não era judeu, a confusão aumentou. Muitos sentiram-se afrontados pelo apóstolo: “Como você pode pregar o evangelho para quem não é judeu? Jesus era judeu, nossa Bíblia é a dos judeus, as promessas foram feitas aos judeus e Deus fez uma aliança com os judeus, e você está oferecendo Cristo a quem não é judeu!”. Paulo respondia que Deus era Deus de todos os povos e que judeus e não judeus eram todos pecadores, não havendo diferença entre eles. Todos pecaram e careciam da glória de Deus, e todos seriam salvos da mesma forma: pela fé em Jesus Cristo, que não veio para salvar apenas os filhos de Abraão. Cristo era o Salvador de todos aqueles que, em qualquer parte, cressem em seu nome. Diante dessa resposta, a discussão se tornava ainda mais acalorada. Muitos judeus que haviam aceitado Jesus como Salvador, além de confusos, ficavam furiosos com Paulo, considerando-o um traidor de Moisés por menosprezar o que havia de mais glorioso em sua religião, como o Templo e aquelas leis dietárias. Evidentemente, nem todos os judeus que creram se opuseram ao apóstolo, pois muitos entenderam que o Deus dos judeus era o Deus de todas as nações, como estava escrito em Salmos e nos Profetas. Eles compreenderam que o papel da nação judaica havia sido provisório, como um canal de bênçãos para todas as nações. No entanto, alguns cristãos judeus não conseguiam aceitar o que Paulo estava fazendo e decidiram persegui-lo. Em nome de Deus, saíam no rastro do apóstolo para desfazer o trabalho dele. Já mencionei o método desses missionários judaizantes e seu propósito em instituir a circuncisão entre os cristãos gentios. Os argumentos que usavam eram sempre os mesmos: “Jesus não era judeu? Não era circuncidado? Não era filho de Abraão? E Deus não exigiu a circuncisão de Abraão? Como então vocês querem ser cristãos sem se circuncidar? Paulo é um renegado, alguém que foi um fariseu zeloso e judeu exemplar, mas virou as costas para a religião judaica e agora está ensinando que a pessoa pode ser salva de qualquer maneira! Nem apóstolo de verdade ele é... Se vocês querem ser salvos, precisam se circuncidar, parar de comer carne de porco... enfim, guardar todas as coisas que Moisés ensinou, porque não basta aceitar Jesus Cristo; precisam também seguir a Lei”. Os judaizantes não davam trégua: perseguiam Paulo aonde quer que ele fosse. Alguns estudiosos até acham que o “espinho na carne”, ao qual ele se refere numa de suas cartas (2Co 12.7), era a persistência desses missionários judeus em converter os cristãos gentios ao judaísmo. Convém lembrar que eles não negavam que Jesus era o Salvador e o Messias. O argumento deles era que a fé em Jesus não era suficiente; era necessário fazer mais algumas coisas, no caso circuncidar-se e observar outras prescrições da Lei de Moisés. A resposta do apóstolo Paulo
Paulo ficou muito triste quando soube o que estava acontecendo nas igrejas que havia plantado na Galácia. Ele estava longe e quis voltar à região para esclarecer todas as dúvidas dos gálatas, mas as circunstâncias não lhe permitiam. Então, fez o que era comum naquela época: escreveu uma carta. No universo cristão, as cartas praticamente substituíam os apóstolos quando estes não podiam estar presentes. Um tom de tristeza permeia a carta de Paulo aos gálatas e, entre todas as cartas que escreveu, é nessa que ele deixa transparecer maior irritação. O apóstolo estava bastante preocupado porque muitos de seus convertidos estavam aceitando a mensagem dos judaizantes. É provável que alguns já tivessem cedido à circuncisão, e ele lhes escreve com dor no coração, impulsionado por uma ira santa, como o pai que vê o filho seguindo por um caminho que não é correto, ou a mãe que vê os filhos
que criou se desviando da verdade, ou o pastor que vê um lobo se infiltrar no rebanho e sair arrastando algumas ovelhas. Paulo escreve com o coração partido, mas com firmeza, como alguém que conhece a verdade e tem autoridade dada por Deus para ensiná-la. Uma história que se repete
Contudo, o evangelho da graça de Deus não suscitou oposição de inimigos somente na época de Paulo. Ao longo da história da igreja, sempre houve quem se recusasse a acreditar que a salvação é concedida somente pela fé, sem as obras da lei, e que a obra de Cristo é completa, ou seja, nada se pode acrescentar ao que ele fez por nós! A salvação, de fato, já nos foi garantida, pois foi efetuada de forma cabal. Ao ser humano é oferecido um evangelho pleno e definitivo, e é pela fé que nós o recebemos e por ele somos salvos. Mas até hoje essa mensagem da graça vem sendo adulterada. E muita coisa tem sido adicionada a Cristo. Assim, temos Cristo e Maria, Cristo e o dízimo, Cristo e a corrente de oração, Cristo e as observâncias religiosas, Cristo e uma série de outras coisas. A mensagem do evangelho, porém, é Cristo, e ele somente. Nada mais. Por intermédio dele, somos salvos pela graça, misericórdia e favor de Deus. O problema é que para nós, pecadores orgulhosos, é muito difícil aceitar um favor, não é mesmo? Existe até um ditado para quando uma pessoa que esteja passando por uma situação muito difícil, de repente, vê alguém aparecer para lhe fazer um favor inesperado: “Quando a esmola é muito grande, o cego desconfia”. É da nossa natureza. Somos orgulhosos e não queremos ficar devendo nada a ninguém. Receber um favor é quase uma espécie de humilhação. De fato, por causa de nosso orgulho, precisamos nos humilhar para conseguir aceitar um favor que alguém esteja nos oferecendo. E a resistência à mensagem do evangelho evidencia essa nossa natureza pecaminosa, arrogante e prepotente. Gostaríamos de fazer alguma coisa para ser salvos, para não ficar devendo nada, nem mesmo para Deus. Nem dele queremos receber um favor assim. Queremos chegar ao céu, bater no peito e dizer: “Cheguei aqui porque mereci. Conquistei esse direito”. De modo semelhante, há crentes hoje gritando nas igrejas: “Deus, eu quero meu direito! Eu exijo! Eu declaro! Eu determino! Não aceito isso em minha vida!”. Tudo isso é fruto da arrogância de nosso coração pecaminoso e prepotente, cheio de orgulho. Não é de estranhar, portanto, que ao longo da história da igreja encontremos sempre muita gente com dificuldades para aceitar que algo seja concedido unicamente pela graça. De fato, a salvação é pura graça, é favor imerecido e misericórdia da parte de Deus, nada mais. Essa doutrina é o coração do evangelho! Por meio dela, as pessoas encontram Deus, são aceitas por ele e recebem gratuitamente a salvação. A mensagem da justificação pela fé, sem as obras da lei, é a chave que nos abre o céu. Não há como abri-lo com nossos próprios méritos e credenciais.
Pedro é repreendido publicamente por Paulo Foi por compreender essa verdade essencial do evangelho que Paulo não hesitou em defendê-lo a qualquer preço, ainda que isso implicasse um confronto com um dos maiores líderes da igreja, o apóstolo Pedro. E, nessa passagem da Carta aos Gálatas, Paulo relata o incidente e expõe sem nenhum retoque o erro de Pedro. Talvez essa não seja uma atitude, como se diria hoje, “politicamente correta”. Paulo está aqui categoricamente dizendo que Pedro errou feio, cometeu um equívoco lamentável, e que por essa razão o enfrentou cara a cara. Se só isso já não é algo muito elegante, Paulo ainda acrescenta que o confronto ocorreu em público! Contudo, o que estava em jogo naquela ocasião não eram questões particulares, não era um assunto qualquer, mero capricho pessoal, e sim a mensagem inegociável de que a salvação se dá pela graça, sem as obras da lei. Mas como é que as coisas chegaram a esse ponto? Para entender como isso aconteceu, é preciso lembrar que, na época de Paulo, as atividades missionárias estavam centralizadas em duas grandes cidades. A primeira delas era Jerusalém, onde tudo começou. Ali Cristo foi crucificado e ressuscitou, e ali o Espírito Santo desceu no dia de Pentecostes. Em Jerusalém, surgiu a primeira igreja cristã, composta unicamente de judeus que estavam ainda naquela fase de transição que já comentamos. Eles conservavam muitas práticas do judaísmo, continuavam a circuncidar seus filhos, a ir ao Templo, a fazer suas orações três vezes ao dia e ainda se abstinham de comer determinadas comidas, embora soubessem que não eram salvos por meio dessas práticas. Sabiam que eram salvos pela graça mediante a fé em Cristo. Mas o judaísmo havia sido a religião da vida deles, uma prática antiquíssima de seu povo, de modo que tudo aquilo também fazia parte da cultura deles. Assim, eles procuravam observar esses aspectos culturais, e ser judeu, portanto, era mais que uma religião: era uma questão étnica. Mesmo convertidos ao cristianismo, não negavam sua identidade cultural expressa naquelas práticas. O outro centro do cristianismo ficava mais ao norte, para os lados da Síria, numa cidade chamada Antioquia. Os que lá pregaram o evangelho pela primeira vez eram judeus; contudo, não foram somente os judeus das sinagogas que ouviram a mensagem e aceitaram Cristo como seu único e suficiente Salvador: muitos gentios também o fizeram. Assim, uma grande igreja nasceu em Antioquia — uma igreja gentílica tão influente que se tornou a base do trabalho missionário entre os gentios. Junto com outros líderes, Paulo pastoreou a igreja de Antioquia durante três anos. Por recomendação de Barnabé, foi por ela acolhido após sua conversão, quando todos ainda desconfiavam dele, um judeu perseguidor da igreja que, de repente, passou a dizer ter abraçado o cristianismo. O apóstolo permaneceu naquela igreja até partir dali para sua primeira viagem missionária.
Assim, concentrou-se em Jerusalém o cristianismo judaico e, em Antioquia, o cristianismo gentílico. Não se tratava, porém, de dois evangelhos ou dois tipos de cristianismo. O evangelho era o mesmo, só que com ênfases distintas, e o cristianismo também era o mesmo, só que contextualizado de maneiras diferentes. Como já explicamos, Paulo foi a Jerusalém a fim de se encontrar com os três principais líderes da igreja cristã: Pedro, Tiago e João. Nessa reunião ficou acertado que Paulo continuaria pregando aos gentios e que os missionários da base de Jerusalém evangelizariam os judeus. A unidade cristã foi celebrada, e cada um seguiu seu caminho. Algum tempo depois, Pedro foi a Antioquia retribuir a visita e ver como andava o trabalho por lá. Ele sabia perfeitamente que o evangelho era um só e que Deus não fazia distinção de pessoas. Não tinha o menor problema em se sentar à mesa com os gentios e comer a comida deles, até porque ele já havia tido aquela visão na qual Deus baixara um lençol do céu, cheio de animais imundos, e lhe ordenara: “Mata e come”. A princípio, quando teve a visão, Pedro se recusou, afirmando que nunca havia comido nada que fosse proibido pela Lei de Moisés. E a resposta de Deus foi: “Não chames de profano o que Deus purificou”. Foi quando Pedro entendeu que não se tratava de uma ordem a respeito de comida, mas, sim, de pessoas. Deus estava proclamando aceitar todos, judeus e gentios, mediante a fé em Jesus Cristo, e então Pedro foi enviado a Cornélio (At 10.9-43). Portanto, o apóstolo já havia aprendido do próprio Deus a não fazer distinção entre judeus e gentios. Quando Pedro chegou a Antioquia, na condição de líder da igreja de Jerusalém, foi muito bem recebido. Por certo foi convidado para pregar na igreja no domingo, e não faltaram convites para refeições. Assim, o apóstolo judeu e os crentes gentios comiam juntos sem qualquer constrangimento ou preocupação com a dieta prescrita na Lei de Moisés. Entre os gentios, Pedro se portava como gentio. Assim, tudo estava indo muito bem. A comunhão entre o líder judeu e os crentes gentios era maravilhosa, até que, sem aviso, chegou a Antioquia uma comitiva enviada por Tiago, outro líder de Jerusalém, que também pensava como Pedro, isto é, que Deus não fazia distinção entre judeus e gentios. Não sabemos quantos homens compunham essa comitiva, mas, ao que tudo indica, eram daquele tipo de judeo-cristão que não se conformava com a ideia de que era possível ser cristão sem guardar a Lei de Moisés. A presença deles não mudou a teologia de Pedro, mas o apóstolo passou a ter medo. O que aqueles judeus mais radicais diriam ao vê-lo ali comendo despreocupadamente com os gentios? O que Tiago também pensaria dele ao ficar sabendo que esteve assim tão à vontade entre os irmãos não judeus? Enfim, como ficaria sua reputação lá em Jerusalém? E, motivada por pensamentos dessa natureza, a dissimulação se iniciou, como esclarece Paulo: Quando, porém, Cefas chegou a Antioquia, eu o enfrentei abertamente, pois merecia ser repreendido. Porque antes de chegarem alguns da parte de Tiago, ele estava comendo com os gentios; mas, quando eles chegaram, Cefas foi se retirando e se separando deles, por temer os que eram da circuncisão. E os outros judeus também fizeram como ele, a ponto de até Barnabé se deixar levar pela hipocrisia deles (v. 11-13).
A ausência de Pedro à mesa dos crentes gentios foi cada vez mais notada, e alguns cristãos judeus de Antioquia logo perceberam que ele temia a comitiva de Jerusalém. Como resultado, não tardaram em imitar o péssimo exemplo do apóstolo, o que provocou profundo desagrado a Paulo. Entre os que seguiram o mau exemplo de Pedro, estava ninguém menos que Barnabé, o homem que acompanhava Paulo em suas viagens missionárias e que também pregava o evangelho da graça aos gentios! Quando Paulo percebeu o que estava acontecendo, a situação já se tornara bastante crítica. Ele então se levantou decidido a confrontar a dissimulação de Pedro. Por ser um comportamento que afetava toda a igreja, Paulo não chamou o colega em particular, mas o repreendeu publicamente.
A reação de Pedro O texto bíblico registra todo o curso da ação de Paulo e quais palavras ele utilizou para repreender Pedro: “Mas, quando vi que não agiam corretamente, conforme a verdade do evangelho, disse a Cefas na frente de todos: Se tu, sendo judeu, vives como os gentios, e não como os judeus, por que obrigas os gentios a viver como judeus?” (v. 14). O interessante, porém, é que o relato só registra a ação de Paulo e nada diz sobre a reação de Pedro. A única resposta de Pedro a que temos acesso foi dada algum tempo depois, quando ele escreveu sua segunda carta: “Considerai como salvação a paciência de nosso Senhor, assim como o nosso amado irmão Paulo também vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi concedida” (2Pe 3.15). Podemos perceber, com base nessas palavras, algumas qualidades do apóstolo Pedro, que podem ser deduzidas na sua atitude em relação a Paulo mesmo após a repreensão que dele recebeu. O amor de Pedro
Percebe-se que Pedro não guardava o menor rancor de Paulo. Embora este o tivesse repreendido em público, à vista de todos — o que poderia ser motivo para alguma mágoa —, Pedro acatou humildemente a correção, a ponto de se referir a Paulo como “nosso amado irmão”. Pedro não apenas recebeu humildemente aquela repreensão, mas também, ao lembrar-se dela, demonstrou amor, pois sabia que Paulo havia agido daquele modo também por amor. A Palavra de Deus nos diz que o sábio ama quem o corrige (Pv 12.1).
A atitude de Pedro abre a oportunidade para uma reflexão importante. Como reagimos quando alguém nos repreende por algum erro que cometemos? Achamos que fomos injustiçados ou humilhados? Ficamos indignados e levamos para o lado pessoal? Nós todos sabemos bem como é isso. Pedro, de fato, havia cometido um grave erro, mas o amor que demonstrou por Paulo evidencia quanto valorizou ser corrigido. A humildade de Pedro
Imagine quanto foi difícil para Pedro, o líder dos apóstolos de Jerusalém e um dos principais líderes da igreja, receber aquela repreensão à vista de todos! Mesmo assim, ele a acatou humildemente. E não somente isso! O que ele posteriormente escreveu em sua carta demonstra que deu toda a razão a Paulo: “Considerai como salvação a paciência de nosso Senhor, assim como o nosso amado irmão Paulo também vos escreveu” (2Pe 3.15). Com essas palavras, é como se dissesse: “Paulo ensinou, e eu concordo com ele”. Logo a seguir, ele comenta que nos escritos de Paulo “há pontos difíceis de entender” (v.16). Com isso, Pedro está também reconhecendo, diante de todos, que Paulo é tão sábio e inteligente que até mesmo ele tem dificuldade de entender tudo o que suas cartas contêm! Pedro era sem dúvida um homem humilde, um grande homem de Deus. Mas até homens como ele erram. A diferença é que, quando isso acontece, os verdadeiros grandes homens de Deus se humilham e acatam a repreensão. São capazes de admitir que aqueles que os corrigem não somente têm razão, mas também sabem mais do que eles. O reconhecimento da ação de Deus
Pedro vai ainda além de reconhecer a superioridade intelectual de Paulo, ao afirmar que “os ignorantes e inconstantes distorcem [as palavras de Paulo], como fazem também com as demais Escrituras, para sua própria destruição” (v. 16). Ele está, com essas palavras, explicitando que considerava as cartas paulinas parte das Escrituras, ou seja, eram escritos inspirados por Deus. Grandes homens de Deus podem errar, mas os verdadeiros servos do Senhor vão reconhecer os instrumentos usados para corrigi-los. Além de aceitar a correção humildemente, vão agradecer a Deus por tê-los enviado. Saberão reconhecer aqueles que foram de fato usados por Deus; e vão amá-los e respeitá-los.
Conclusão e aplicações O episódio de Antioquia nos permite extrair algumas lições importantes para os nossos dias. A primeira lição que podemos aprender com o que aconteceu ali é que os grandes homens de Deus erram: “Não há justo, nem um sequer” (Rm 3.10). Pedro foi repreendido por Paulo em Antioquia porque “merecia ser repreendido”. E quando é que alguém merece repreensão? Quando fez ou está fazendo alguma coisa errada. E todos fazem coisas erradas. Pedro, o grande líder de Jerusalém, homem de Deus, também errou! Portanto, precisamos ter convicção de que até os grandes homens de Deus cometem erros, e isso deve nos alertar sobre o perigo de depositar nossa esperança em seres humanos. É natural que os membros da igreja comecem a ver seus líderes como pessoas especiais. Em certo sentido, ser pastor é de fato um privilégio. Não há privilégio maior do que ser escolhido para se dedicar exclusivamente ao ministério de Deus. Contudo, isso não torna o pastorado um sacramento, como é dito na Igreja Católica. As ordenações na igreja não são sacramentos. Os pastores são pessoas comuns, como qualquer cristão, e todos são passíveis de erro. Quando um pastor erra e cai, não devemos ficar surpresos. É certo que jamais devemos nos acostumar com o pecado, mas, ainda assim, não deve ser novidade o fato de alguém revelar-se pecador. E há vezes em que pastores, à semelhança de Pedro, se tornam repreensíveis. Grandes homens de Deus podem fazer grandes bobagens. É por isso que você vai encontrar na história da igreja pessoas que foram instrumentos poderosos de Deus para abençoá-la, restaurá-la e avivá-la, mas que tinham “pés de barro”. Acredito que Deus permite isso para nos lembrar de que a glória é sempre e somente dele. A glória não pertence a pastores, líderes, pregadores ou missionários — eles são meros instrumentos de Deus, pessoas como quaisquer outras, a começar pelo apóstolo Pedro. Esse episódio na vida do grande apóstolo de Deus, que “mereceu ser repreendido”, também deveria nos prevenir de qualquer forma de culto à personalidade, prática que infelizmente permeia alguns grupos evangélicos de hoje, com seus autoproclamados apóstolos, “paispóstolos” e outros líderes que se julgam absolutos. Se você, do mesmo modo, apoia-se sem reservas em seus pastores e líderes da igreja, saiba que, caso eles venham a cair, sua fé sofrerá grande abalo. Por isso, sua fé e sua confiança não devem estar baseadas neles. Você pode confiar totalmente apenas no Senhor deles, no supremo Pastor, que é o Senhor Jesus Cristo. Não nos deixemos levar pela aparência. Somos todos pecadores e passíveis de erros. Assim como Pedro errou, nós todos podemos errar. Por isso, a humildade deve ser nossa atitude constante diante de Deus. A segunda lição que aprendemos com esse episódio na vida de Pedro é que o erro de um grande homem de Deus, mesmo depois de ele ter se arrependido, acaba corrompendo muitos. No versículo 12, lemos a descrição do erro que o apóstolo
cometeu: “Antes de chegarem alguns da parte de Tiago, ele estava comendo com os gentios; mas, quando eles chegaram, Cefas foi se retirando e se separando deles, por temer os que eram da circuncisão”. Foi este o principal erro de Pedro: temor de homens. Ele teve medo do que as pessoas pensariam dele, o grande apóstolo e pregador. Ficou imaginando as fofocas que circulariam a seu respeito em Jerusalém e, então, se acovardou. Contudo, o que já era lamentável ficou pior: “Os outros judeus também fizeram como ele, a ponto de até Barnabé se deixar levar pela hipocrisia deles” (v. 13). O erro de Pedro logo começou a ser reproduzido. Mesmo quando o homem de Deus se arrepende, nem sempre é possível consertar todos os efeitos do erro que cometeu, porque o pecado corrompe mentes e corações. Esse efeito corruptor do pecado deve nos levar a ter muito cuidado com nosso procedimento, especialmente se ocupamos cargos de liderança. Um erro como o de Pedro não teria tanto efeito sobre outros se fosse cometido por um crente comum, mas na vida de um líder o pecado tem efeito multiplicador; e é essa a razão da advertência bíblica: “Meus irmãos, muitos de vós não devem ser mestres, sabendo que seremos julgados de forma mais severa” (Tg 3.1). O juízo será mais rigoroso para os líderes, porque sua responsabilidade é bem maior. Assim, qualquer um que exerça um papel de liderança precisa lembrar que suas atitudes têm efeito na vida das pessoas sob sua influência. Quando o pai ou a mãe erram ou, pior, quando insistem no erro, dissimulando, os filhos observam e aprendem da maneira errada. O professor de escola dominical ou o que atua profissionalmente em algum nível da educação formal, o chefe de um departamento de empresa ou qualquer outro tipo de líder têm ascendência sobre muitas pessoas, e o que fazem de errado acaba corrompendo seus alunos, subalternos e liderados. Devemos, pois, orar como o salmista: “Não fiquem frustrados por minha causa os que esperam em ti, ó S\, Deus dos Exércitos; não passem vexame por minha causa os que te buscam, ó Deus de Israel” (Sl 69.6). Essa era a oração de Davi e deve ser também a nossa: que por causa de nossos erros outros não venham a tropeçar também. Uma das piores consequências do pecado é que, além de ficarmos numa situação difícil diante de Deus, podemos induzir os que nos cercam ao mesmo erro. A terceira lição que podemos aprender diz respeito à inspiração da Bíblia. Torna-se evidente com esse episódio que “inspirado” não era o apóstolo, mas, sim, o que ele escreveu. Como vimos nessa e em outras passagens bíblicas, Pedro cometeu erros; contudo, quando ele se sentou para escrever as cartas que hoje temos na Bíblia, Deus supervisionou de tal maneira o processo que o produto final foram textos inerrantes e infalíveis, embora o apóstolo não o fosse. Precisamos aprender bem essa distinção. Apesar de seus erros, Pedro foi um instrumento poderoso de Deus por meio de suas cartas. Da mesma forma, os pastores e pregadores são pessoas falíveis, mas no desempenho de suas funções, ajudados por Deus e sendo fiéis à sua Palavra, são instrumentos para abençoar a igreja e anunciar o evangelho aos que ainda não o ouviram. A quarta lição que aprendemos com o incidente de Antioquia é que, em determinados momentos, precisamos assumir uma posição firme, ainda que isso signifique o confronto com um amigo. O Senhor Jesus Cristo nos diz que quem não o ama acima de pai, mãe, irmão e irmã não é digno dele. Amigos certamente poderiam ser incluídos nessa lista, e aqui vemos Paulo colocando isso em prática. Tão logo percebeu que o evangelho estava em jogo e que Pedro, com sua dissimulação, estava ensinando o contrário do que ele mesmo pregava, tratou de repreender o amigo. Pedro também cria, como Paulo, na salvação pela fé, sem as obras da lei. Quando começou a se separar dos gentios e não querer mais se sentar à mesa com eles, Pedro, na prática, estava dizendo que os gentios eram um tipo inferior de crente e, com isso, endossou a afirmação daqueles judaizantes de que era preciso guardar a Lei de Moisés para ser aceito na comunhão da igreja. A pureza do evangelho estava, desse modo, sendo ameaçada. Paulo, em determinado momento, não sabemos ao certo em que ocasião, aproveita que todos estão presentes, se levanta e diz: “Se tu, sendo judeu, vives como os gentios, e não como os judeus, por que obrigas os gentios a viver como judeus?” (v. 14). É como se Paulo dissesse: “Pedro, se você é judeu e quer viver como judeu, tudo bem. Mas, quando veio aqui para Antioquia, passou a viver como gentio. Deixou de lado o judaísmo, sentou-se conosco à mesa e comeu, esquecendo-se de todas aquelas leis dietárias judaicas. Esteve em total comunhão conosco, mas agora, ao se separar dos gentios, está comunicando que é necessário que eles vivam como judeus para ter comunhão com você. Isso é hipocrisia! Você está falando pelos dois cantos da boca. Por um canto diz que, para ser salvo, basta crer em Jesus Cristo como Senhor e Salvador. Mas, pelo outro, diz que, para ser salvo, é preciso ser judeu. Você tem de ser coerente. A salvação é pela graça, e sua atitude nega isso. Você está destruindo com suas ações o que ensina com palavras”. Que momento difícil para Paulo! Se ele fosse um daqueles brasileiros chegados a “dar um jeitinho”, teria dito ao colega: “Pedro, disfarça. Diz que estão chamando você na esquina. Vamos lá conversar um pouco”. E somente quando estivessem sozinhos diria: “Olha, você sabe como são as coisas, e eu compreendo, mas queria lhe dar uma sugestão. Faça o seguinte amanhã: sente-se à mesa com os gentios, nem que seja só por uns minutos, ok? Vai devagar, Pedro; vamos ver juntos como acertar as coisas para os dois lados”. Mas pela graça de Deus Paulo não agiu assim, e nós devemos imitar seu exemplo. Em situações como essas, temos de deixar a diplomacia de lado, porque o que está em jogo é a verdade do evangelho, ainda que a pessoa errada seja um irmão querido. Quando se trata de uma atitude sem maiores consequências ou de uma questão doutrinária menor, devemos ser tolerantes. Às vezes, há um irmão ou uma irmã em Cristo, zelosos de Deus, amantes do evangelho, mas que estão equivocados em algum ponto doutrinário secundário, que não terá influência alguma. Podemos então chamar essa pessoa à parte e orientá-la, porque nesse caso
o constrangimento seria desnecessário, nocivo até. Se tivermos a oportunidade, conversamos, orientamos com mansidão. Se ela ou ele não quiser acatar, deixamos de lado a questão, caso seja algo que não afetará o evangelho, porque, afinal, somos diferentes uns dos outros e pensamos de modo diverso em tantas coisas. Mas, infelizmente, hoje está se tornado cada vez mais comum o debate público e feroz por questões secundárias. Às vezes, são questões de usos e costumes e de algumas tradições. Não deveríamos brigar por coisas desse tipo. Seria a hora de exercitar a tolerância e o bom senso. Em casos como esses, poderíamos simplesmente deixar para lá e aceitar as diferenças. Contudo, o que estava em jogo no confronto de Paulo e Pedro era o coração do evangelho. E por essas coisas, certamente, devemos lutar. Precisamos, sim, nos levantar, erguer nossa voz e assumir uma posição clara quando o evangelho estiver ameaçado, ainda que, para isso, tenhamos de enfrentar um homem de Deus, caso seja ele a incorrer em erro, porque, como vimos neste capítulo, mesmo os grandes homens podem errar. Devemos, sim, amar as pessoas e ter consideração por elas, sendo gentis sempre que for possível; todavia, isso nunca deve ser feito à custa da verdade. O amor a Deus e à verdade do evangelho está acima de tudo. A quinta lição que podemos extrair dessa passagem diz respeito à importância da doutrina da salvação somente pela graça. Somos salvos não por alguma coisa que possamos fazer, mas apenas pela misericórdia de Deus. Essa doutrina é tão importante que, em sua defesa, com o objetivo de preservar essa verdade, temos o dever de enfrentar, se necessário, até os mais renomados líderes que porventura atravessem nosso caminho. O verdadeiro evangelho é maravilhoso! Sabemos que somos pecadores e que esses líderes são pecadores também. E Deus sabe disso muito mais do que nós; porém, pelo sacrifício de seu Filho, ele proporcionou a todos nós uma salvação completa e perfeita! Por esse motivo, é espantoso que pessoas que já foram salvas pela fé em Cristo Jesus comecem a pensar que o sistema da vida cristã é diferente, que a salvação é mantida por obras ou por mérito. Tais pessoas vivem se martirizando, cheias de culpa, com medo de não serem aceitas por Deus, ou pensam que ele, por alguma razão, está sempre com raiva delas. Se Deus de fato tivesse raiva de nós, não nos teria aceitado como filhos pela graça. E, se ele nos recebeu assim, pela graça, e perdoou todos os nossos pecados mediante o sacrifício de Cristo, o que leva algumas pessoas a pensar que algo vai separá-las do amor de Deus? Se você pecou, arrependa-se, confesse seu pecado a Deus, como Pedro fez, e seja restaurado como ele foi. Não há necessidade de vivermos angustiados, levando novamente um fardo que nós já não podíamos mais carregar quando esse Deus maravilhoso nos salvou pela graça, sem as obras da lei e sem mérito da nossa parte. Que você deixe novamente seu fardo aos pés da cruz, onde o Salvador já realizou o serviço completo. Essa é a mensagem da igreja; não há outra. É a mensagem pela qual ela se mantém de pé ou cai. Que Deus preserve esse evangelho em sua igreja levantando pessoas como Paulo, dispostas a enfrentar qualquer coisa e qualquer um pela verdade que salva.
Capítulo 5
A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ
Gálatas 2.15-18 apóstolo Paulo, em Gálatas 2.15-21, prossegue apresentando os argumentos que utilizou no confronto que teve com Pedro por ocasião da visita desse apóstolo à igreja em Antioquia:
O
Nós, judeu s por n atu reza e não peca dores den tre os ge nti os, sabe mos, cont udo , que o homem não é justi ficado pela s obra s da l ei, mas p ela fé em Jesus Cristo. Nós também temos crido em Cristo Jesus, para sermos justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da lei, pois ninguém será justi ficado pel as obra s da le i. Mas se, procuran do ser justi ficado s em Cristo, nó s mesmos também fomos encon trado s peca dores, seria po r acaso Cristo ministro do pec ado? De modo nen hum. Ora, se reconstruo aq uilo q ue destruí, demonstro que sou transgressor. Pois, pela lei, eu morri para a lei, a fim de viver para Deus. Já estou crucificado com Cristo. Portanto, não sou mais eu quem vive, mas é Cristo quem vive em mim. E essa vida que vivo agora no corpo, vivo p ela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim. Assim, não cancelo a graça de Deus; pois, se a justiç a vem por meio da lei , então C risto morreu inu til mente.
Paulo escreveu a Carta aos Gálatas com o objetivo de ajudar os cristãos da região da Galácia a permanecer firmes no que haviam aprendido do próprio apóstolo, ou seja, que o ser humano é aceito, perdoado, recebido por Deus e justificado de seus pecados mediante a fé em Cristo Jesus. Paulo havia anunciado entre eles as boas notícias do evangelho: quando alguém, judeu ou gentio, se arrepende de seus pecados, após reconhecer que é pecador; quando crê que Jesus Cristo morreu na cruz e derramou seu sangue precioso como pagamento pelos seus pecados; quando pela fé se apropria do sacrifício de Cristo, a obra consumada na cruz do Calvário lhe é imputada mediante a fé, ele tem os pecados perdoados e é aceito por Deus mediante Jesus Cristo. Em suma, Deus já realizou tudo que é necessário para a salvação do homem. Enviou seu Filho, providenciou um sacrifício completo e perfeito, chamou os que são seus, concedeu-lhes fé, mudou o coração deles e os recebeu livre e incondicionalmente em Cristo Jesus. Esse é o evangelho da graça. Essas são as boas-novas que nos são ensinadas no livro sagrado, a Bíblia. Todavia, na época do apóstolo Paulo (bem como em nossos dias), nem todos concordavam com esse caminho, nem todos entendiam que esse era o caminho de Deus. Os judeus, que haviam recebido a Lei por intermédio de Moisés e acrescentado a ela ainda outras leis que eles próprios haviam elaborado, achavam que, para se justificar diante de Deus, não bastava ter fé; era preciso também praticar todas as obras que a Lei exigia. Como já vimos, três elementos eram considerados essenciais na religião judaica daquele período. O primeiro era a circuncisão. O segundo era a observância de uma dieta religiosa que não permitia a ingestão de sangue, de carne de porco e de certos animais e proibia até que o judeu entrasse na casa de quem comesse tais coisas, o que representava uma separação total de quem era judeu de quem não era. Na verdade, a questão da dieta religiosa era o que mais distanciava os judeus dos gentios. O terceiro elemento essencial era o calendário judaico, que estabelecia as festividades e dias sagrados, além do sábado — todos guardados de forma rigorosa.
O ensino de Paulo Quando Paulo começou a ensinar a salvação pela fé em Jesus Cristo, sem as obras requeridas pela Lei, muitos judeus rejeitaram esse evangelho, primeiro porque não criam que Jesus fosse o Messias e, segundo, porque, mesmo que fosse, essa fé implicaria que a Lei de Moisés, com seus mandamentos e preceitos, e a circuncisão, ambas determinadas pelo próprio Deus, não teriam mais validade. Assim, consideravam muito perigosa uma doutrina como essa, que tornava sem efeito as exigências da Lei. Eles pensavam: “Afinal, se dissermos a uma pessoa que ela é salva pela fé, sem as obras requeridas pela Lei, não estaremos de alguma forma incentivando-a a fazer o que é errado, uma vez que, se ela acreditar que será salva pela fé somente, poderá ser tentada a viver de qualquer maneira? Tirar a Lei da equação não seria uma espécie de incentivo ao pecado? A Lei diz o que não se deve fazer, e se ninguém precisa dela para ser salvo, então todas as pessoas estão livres para pecar”. Era essencialmente essa a acusação que os judeus estavam fazendo contra Paulo, e, preocupados com isso, até mesmo os judeus que criam que Jesus era o Messias passaram a perseguir o apóstolo. Onde quer que ele pregasse o evangelho, os missionários judeus tratavam de desfazer seu trabalho, assim que Paulo deixava a cidade, como já explicamos. Esses missionários “judaizantes” não negavam que a salvação era obtida em Cristo Jesus, mas afirmavam que não bastava crer nele. Era preciso crer em Jesus e se circuncidar; crer em Jesus e eliminar a carne de porco da dieta; crer em Jesus e guardar a Páscoa. Ou seja, não bastava crer em Jesus; era necessário também guardar as obras da lei. Segundo o que eles ensinavam, a graça não era nada sem as prescrições do Antigo Testamento e outras tantas que os judeus haviam elaborado no decorrer dos anos. E foi justamente
para preservar o evangelho da graça que Paulo escreveu a Carta aos Gálatas. Era preciso alertar aquelas igrejas de que o ensino dos judaizantes não provinha de Deus, que eles estavam, na verdade, destruindo o evangelho da graça dado por Cristo. Depois de relatar o incidente ocorrido em Antioquia, em que precisou repreender Pedro publicamente, Paulo agora expõe, nos versículos 15 a 21, o restante dos argumentos que utilizou “face a face” contra a atitude repreensível do outro apóstolo. Seu objetivo, ao reproduzir essa argumentação, é salientar que já havia confrontado o próprio Pedro por causa desse mesmo assunto, do qual, novamente, estava tratando em sua carta. Paulo faz isso para mostrar aos cristãos da Galácia a gravidade de estarem se desviando da verdade da doutrina da justificação pela graça. Analisaremos a seguir alguns pontos expostos por Paulo, os quais são fundamentais para o propósito que temos de outra vez anunciar em nosso país essa doutrina extraordinária, dando-lhe o merecido destaque na pregação evangélica. Primeiro: Paulo assinala o fato de que os judeus já sabiam, desde a época do Antigo Testamento, que a justificação ocorre pela fé e que os judeus cristãos tinham uma compreensão ainda mais profunda dessa verdade, já que professavam a fé em Cristo Jesus; segundo: ele também ressalta o fato de que a condição de pecador do ser humano não anula a justificação pela fé (temos aqui uma resposta àquela objeção de que a doutrina da graça incentivaria o pecado); terceiro: ele chama atenção para o fato de que trazer a Lei de volta é um contrassenso, uma vez que pela união com Cristo os crentes já morreram para ela (esse terceiro ponto será estudado no próximo capítulo). Os judeus conheciam a doutri na da justificação pela fé
Paulo recorda a Pedro que a justificação pela fé não era uma doutrina nova para os judeus: “Nós [Pedro, Paulo e os judeus cristãos em geral], judeus por natureza e não pecadores dentre os gentios, sabemos, contudo, que o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo” (v. 15,16). A princípio, esse texto aparenta ser um pouco complicado; para elucidá-lo, talvez ajude explicitar o verbo ser que está implícito na primeira sentença: “Nós, que somos judeus por natureza e não pecadores dentre os gentios...”. O que Paulo está dizendo ao outro apóstolo é o seguinte: “Pedro, eu e você somos judeus de nascimento, portanto nascemos dentro da aliança. Conhecemos bem a Lei de Moisés; não somos pecadores entre os gentios [os judeus consideravam os gentios pecadores e transgressores da Lei por não conhecê-la]. Mas, mesmo assim, nós sabemos que o homem não é justificado por obras da lei. Pedro, você sabe disso, não é mesmo? O Antigo Testamento não ensina que seremos justificados por cumprirmos a Lei”. A graça é do tempo da Lei
Pedro sabia, sim, que as leis outorgadas a Moisés — não matarás; não adulterarás; descansarás no sétimo dia; não comerás isto; não beberás aquilo, e todas as outras — não constituíam o caminho da salvação, porque ninguém é capaz de cumprir completamente esses mandamentos. Ele sabia que as obras requeridas pela Lei eram uma forma de Deus levar o povo a demonstrar gratidão por sua graça, além de servir como marcas de um povo especial. Só os legalistas, os judeus que nunca entenderam direito a Lei de Moisés, é que tentavam obter a salvação por esforço próprio, pela observância rigorosa de todos os mandamentos que ela continha. O problema é que eles nunca conseguiram, já que ninguém consegue guardar a Lei perfeitamente. Homem nenhum se justifica diante de Deus pelas obras. Isso nos mostra como é errado o conceito que ainda circula no meio evangélico de que antes, no Antigo Testamento, a salvação era obtida pela Lei e, agora, no Novo Testamento, pela graça. Paulo afirma exatamente o contrário: “Nós, judeus por natureza [...] sabemos [...] que o homem não é justificado pelas obras da lei...” (v. 15,16). Essa declaração revela que os crentes do Antigo Testamento já sabiam disso. Quando lemos os salmos de Davi, por exemplo, percebemos que esse rei era um crente, um irmão na fé. Nos salmos que compôs, ele fala o tempo todo da misericórdia e da graça de Deus, e dá testemunho de que foi aceito e alcançado pelo favor divino. Davi chega a ponto de declarar que a graça de Deus é melhor que a vida. Naquelas composições musicais, o grande rei de Israel confessa seus pecados e se lança nas mãos bondosas e misericordiosas de Deus. Os salmos 32 e 51, por exemplo, retratam o justo do Antigo Testamento, que vivia pela fé na misericórdia divina. A graça de Deus era principalmente percebida nos sacrifícios que eram feitos no Templo, nos cordeiros imolados e sacrificados, no sangue derramado daqueles animais. O crente judeu do Antigo Testamento entendia que o sangue desses animais sacrificados era uma figura do sangue do Salvador, que seria derramado a favor dele. Ele confiava na substituição que era feita no altar, não nos próprios méritos. A justificação pela fé não é exclusiva do Novo Testamento
No versículo 16, Paulo declara: “Nós também temos crido em Cristo Jesus, para sermos justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da lei, pois ninguém será justificado pelas obras da lei” (v. 16b). Seu argumento é que, assim como os verdadeiros crentes do Antigo Testamento tinham a compreensão de que seriam justificados diante de Deus mediante a fé, agora eles próprios, sendo
também judeus, buscavam a justificação pela fé em Cristo Jesus. A fé que Deus exigia no Antigo Testamento ficou então mais claramente definida como fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus, o Salvador do mundo. No Antigo Testamento, temos como exemplo de salvação pela fé o próprio Abraão. Está escrito em Gênesis que Deus chamou Abraão e lhe prometeu uma descendência, da qual sairia alguém que abençoaria todas as nações da terra. Também está escrito que Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça, ou seja, o próprio pai da nação judaica foi justificado pela fé nas promessas de Deus. Portanto, com base nesse e em outros textos veterotestamentários, percebemos que os judeus por natureza sabiam que ninguém seria justificado e aceito por Deus com base em méritos próprios, mas, sim, mediante a fé em Deus. Compreendiam também que, após a chegada do Messias, todos seriam justificados pela fé nele. O que o cristianismo trouxe de novo não foi a doutrina da justificação pela fé, mas, sim, o ensino de que essa fé deve ser depositada em Jesus Cristo, o Messias aguardado pelos verdadeiros judeus, pelos crentes do Antigo Testamento. A novidade na declaração de Paulo, portanto, é apenas a expressão “em Jesus Cristo”. Essa é a única diferença que distingue o crente do Antigo Testamento do crente do Novo Testamento, uma diferença histórica. Desde a época de Adão, os crentes verdadeiros sempre souberam que o ser humano não é justificado por obras, mas pela fé. Agora, aqueles que creram na chegada do Messias passaram a entender que a fé que salva deve ser depositada mais especificamente em Jesus Cristo, porque esse é o nome do Messias aguardado por muito tempo. O Cristo veio, portanto a justificação agora se dá pela fé nele. Estamos aqui diante da doutrina mais importante do cristianismo — se é que existe uma doutrina mais importante que a outra. Quero com isso dizer que sem esse conhecimento ninguém pode ser salvo, pois nele reside a essência do evangelho: o homem é justificado diante de Deus mediante a sua graça e pela fé nas promessas divinas, mais especificamente pela fé em Cristo Jesus, o Messias esperado, que na cruz do Calvário derramou seu sangue a favor dos pecadores. Se você crê de todo o coração que Jesus Cristo é o Filho de Deus, que ele veio a este mundo com o objetivo de morrer pelos seus pecados e, na cruz do Calvário, derramou sangue por todos eles, então você será salvo. Deus não requer nada além disso. Ele quer apenas que creiamos em Jesus Cristo. A justificação pela fé é uma doutrina que, como já afirmei, precisa ser enfatizada. Um amigo me contou que, recentemente, uma igreja neopentecostal estava anunciando a justificação pela fé e citava um texto bíblico, não sei se de Gálatas ou de Romanos, que sanciona essa doutrina. Esse meu amigo, ao saber disso, pensou: “Que incrível, eles, que só falam em milagres, emprego, saúde, solução de problemas, corrente disto ou daquilo, expulsão de demônios e guerra espiritual, agora estão pregando a justificação pela fé?”. Mas então, em outro ponto, o anúncio dizia: “Dia tal, na Catedral..., justificação pela fé: 300 e poucos homens de Deus, vestidos de juiz, vão bater o martelo sobre sua bênção, vão decretar sua bênção, justificando você, para que possa receber o milagre das mãos de Deus”. A que ponto chegamos! Deturpar dessa maneira a doutrina mais importante do evangelho para propósitos tão escusos. Alguns crentes gostam de assistir a todo tipo de programa evangélico na televisão; contudo, precisamos ter muito cuidado com o que ouvimos. Há muitos mercenários, falsos profetas e falsos mestres que torcem a Palavra de Deus com o único objetivo de obter dinheiro. O que querem é poder, popularidade e riquezas. Para isso, não poupam nem as doutrinas mais importantes do cristianismo. Diante deles, é preciso ter a mesma atitude de Paulo, a de ficar firme e não ceder nenhum instante, em nome da verdadeira doutrina da justificação pela fé. O pecado não anula a justificação pela fé
No versículo 17, Paulo responde a uma objeção: “Mas se, procurando ser justificados em Cristo, nós mesmos também fomos encontrados pecadores, seria por acaso Cristo ministro do pecado? De modo nenhum”. Não se sabe de quem era essa objeção. Talvez fosse dos missionários judaizantes ou da comitiva de Jerusalém. A objeção a que Paulo se refere provavelmente era esta: “Paulo, se somos justificados pela fé, sem as obras da lei, isso quer dizer que você se tornou perfeito? Você não continua a pecar, mesmo depois de convertido? Isso não corresponde a transformar Cristo em ministro do pecado? Se os que Cristo salvou continuam pecando, então ele não estaria promovendo o pecado, já que as obras da lei não importam mais?”. Paulo é taxativo ao responder: “De modo nenhum”. Cristo não é ministro do pecado, porque nem mesmo os judeus guardavam a Lei. Se o cristão tornar a edificar o que já destruiu (v. 18), ou seja, se lhe fosse possível trazer a Lei de volta e passar a observála para chegar diante de Deus, estaria constituindo transgressor a si mesmo, pois faria isso sabendo que restauraria algo que não conseguiria cumprir. Ele pecaria do mesmo jeito. Em suma, com a Lei ou sem ela, o ser humano sempre será um pecador diante de Deus e sempre dependerá da graça, da misericórdia e do favor divinos nesta vida. O restante dessa passagem (v. 19-21) será comentado no próximo capítulo. Vamos por ora apresentar algumas aplicações válidas para a igreja de hoje dos versículos estudados neste capítulo.
Conclusão e aplicações A doutrina da justificação pela fé nos ajudará na hora em que cairmos em pecado, algo que infelizmente acontece com mais frequência do que gostaríamos. Mesmo salvo, ninguém está livre do poder do pecado nesta vida. Fomos salvos da culpa do
pecado. Deus nos aceitou e não vai mais nos condenar ao inferno por causa de nossos pecados, porque Cristo pagou por eles na cruz. No entanto, o processo de nos livrar do poder do pecado é constante: vai durar até o último dia de nossa vida. Quando um crente cai em pecado, o que o conforta? O que lhe dá esperança para se reerguer e continuar? É a lembrança de que já foi justificado e que seus pecados passados, presentes e futuros já foram perdoados por Deus, que Cristo ofereceu um sacrifício completo por todos os pecados que ele já cometeu e que ainda cometerá. Essa garantia, em vez de ser uma licença ou um incentivo para o crente pecar, faz o crente corar de vergonha, porque sabe que está pecando mesmo depois de o seu Salvador ter sofrido e morrido por ele na cruz. Não há doutrina que mais nos quebrante e nos deixe humilhados do que essa. Contudo, ela também nos encoraja quando enfrentamos fraquezas de nossa personalidade, nossos hábitos pecaminosos, nossos defeitos e os erros que cometemos. Se não estivermos seguros da doutrina da justificação pela fé, resta-nos o desespero, a culpa, a angústia e a depressão. Sabemos de muitas pessoas que carregam o fardo da culpa, porque nunca compreenderam a graça, a justificação pela fé sem os méritos humanos, e têm medo de abraçar sem reservas essa doutrina. Quando eu era novo convertido, também hesitei em abraçar a justificação pela fé. Ficava pensando: “Se eu me jogar nessa doutrina totalmente, o que vai acontecer é que vou me sentir livre para pecar à vontade”. Tinha medo de perder o controle da minha vida, até que um dia compreendi que não há incentivo mais poderoso do que a graça para quem quer viver de maneira santa neste mundo. A graça nos encoraja quando caímos e nos dá força para continuar. Isso nos mostra quanto ela é necessária. Por exemplo, não faz sentido participarmos da ceia do Senhor se não compreendemos perfeitamente a doutrina da justificação pela fé. Deus nos justifica, nos perdoa e cancela nossos pecados pelo sacrifício completo de Cristo Jesus, por meio de quem nos recebe pela fé. Se você crê nisso de todo o coração, participará da ceia com profunda alegria e gratidão ao lembrar tudo que Deus fez por você para que pudesse ser seu filho aqui neste mundo. E a mesma motivação se aplica aos demais aspectos do culto e da vida cristã.
Capítulo 6
A UNIÃO COM CRISTO
Gálatas 2.19-21 este capítulo, analisaremos o fato destacado na Carta aos Gálatas de que trazer a Lei de volta é um contrassenso, uma vez que pela união com Cristo os crentes já morreram para a Lei. No capítulo anterior, analisamos as duas primeiras partes da argumentação de Paulo referente ao episódio em que confrontou o apóstolo Pedro. Vamos agora nos concentrar na parte final, que vai do versículo 19 ao 21:
N
Pois, pela lei, eu morri para a lei , a fim de vive r p ara Deus. Já estou cruci ficado com Cristo . Port ant o, n ão sou mais eu quem vive , mas é Cristo quem vive em mim. E essa vida que vivo agora no c orpo, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim. Assim, não cancelo a graça de Deus; pois, se a justiça vem por meio da lei, entã o Cristo morreu inut ilmente.
No capítulo anterior, vimos como Paulo rebateu a objeção de que, se a salvação é pela fé, isso significaria afirmar que não deixamos de ser pecadores e, portanto, Cristo seria “ministro do pecado”, ou seja, essa nova condição incentivaria o pecado. A resposta do apóstolo demonstra que não é isso o que realmente acontece. Quem é de Cristo está morto para o pecado, está unido a Cristo e crucificado com ele. Portanto, quem crê em Cristo morreu para a Lei, morreu para o pecado e agora vive para Deus. Se o crente não vive mais e Cristo vive nele, então ele não vai viver pecando, porque quem vive nele é o Filho de Deus. E é nesses versículos que aprendemos a extraordinária doutrina bíblica de nossa união mística com Cristo Jesus. Essa união espiritual é a base da vida cristã, de nossa salvação e de tudo que Deus nos concede — não recebemos dele nada que não seja mediante Jesus Cristo, que é o mediador entre Deus Pai e os homens. É por meio dele que somos abençoados. Somos escolhidos em Cristo, predestinados em Cristo, justificados em Cristo, aceitos em Cristo, adotados em Cristo e perdoados em Cristo. Também morremos com Cristo, ressuscitamos com Cristo, somos glorificados com Cristo e vivemos neste mundo em Cristo e com Cristo. A doutrina de nossa união com Cristo é fundamental. Precisamos conhecê-la e entendê-la. Mais que isso, precisamos vivê-la. Acredito que muitos cristãos vivem uma vida “subcristã”, sem paz, sem poder para vencer o pecado e sem propósito, exatamente porque ainda não compreendem os benefícios decorrentes dessa união maravilhosa com o Filho de Deus. É sobre ela que o apóstolo Paulo fala nessa passagem. Vamos primeiro definir essa doutrina e, depois, falaremos um pouco de sua necessidade: Por que Deus escolheu esse caminho? Então, veremos como funciona. Em seguida, descobriremos como experimentá-la. Por fim, falaremos de seus efeitos.
Definição da união com Cristo O que Paulo quer dizer com a declaração “Já estou crucificado com Cristo. Portanto, não sou mais eu quem vive, mas é Cristo quem vive em mim”? O que a Bíblia ensina a respeito disso? Segundo as Escrituras, quando Deus, antes da fundação do mundo, elaborou o plano de salvação de seu povo, ele decretou que essa salvação seria feita mediante o Cabeça de seu povo, alguém que viesse ao mundo representando esse povo e que sofresse o castigo merecido por todos os que o compõem, para assim os redimir. Eles então seriam elevados à glória, seriam glorificados mediante a união com ele. Deus, desde a eternidade, planejou que a salvação fosse assim. Esse plano está relacionado com a doutrina do pacto, a doutrina da aliança feita entre Deus e seu povo. Cristo é o mediador dessa aliança. É por intermédio de Cristo que ela se torna real para nós. Deus determinou que sua igreja fosse um corpo ligado a uma Cabeça. Assim, a igreja é, na realidade, o corpo de Cristo. Veja que, no conceito de união exposto na Bíblia, a igreja é representada como um corpo humano, e Cristo é a Cabeça desse corpo. Da mesma forma que o corpo está unido à cabeça, a igreja está unida a Cristo. Tanto a igreja como um todo quanto os crentes individualmente estão ligados ao Senhor glorificado. É essa a realidade que Deus determinou. Contudo, é bom também explicar o que isso não significa. Quando a Bíblia diz que estamos unidos a Cristo, que ele é a Cabeça e nós, o corpo, e que somos um em Cristo Jesus, isso não quer dizer que nos tornamos exatamente como Cristo e agora participamos de sua divindade e de seus poderes. Esse esclarecimento é importante porque uma vertente do evangelicalismo conhecida como movimento “Palavra da Fé” argumenta mais ou menos desta forma: “Nós somos filhos de Deus e estamos unidos a Cristo, que é Deus. Ele tem poder para fazer as coisas acontecerem pela sua palavra. Portanto, o crente verdadeiro, pelo fato de estar unido a Cristo, tem os mesmos poderes que ele. Por isso, meu irmão, decrete a bênção, determine sua saúde e sua prosperidade, porque Cristo está em você e os poderes dele são seus”. Certa vez, assisti a um vídeo do pregador americano Benny Hinn em que ele incentivava as pessoas a
decretar a bênção e determinar que coisas acontecessem. No vídeo, ele afirma que a palavra do crente tem poder para criar realidades, assim como Cristo, pela sua palavra, decretou que os ventos e as ondas se acalmassem, que mortos ressuscitassem e que cegos enxergassem. Segundo ele, temos esse mesmo poder porque Cristo está em nós. E acrescenta: “Não digam que há um Deus dentro de vocês. Vocês são Deus!”. Tenho, porém, uma má notícia para você e para mim. Nessa questão de ser Deus, há uma só verdade: só existe um Deus, e você e eu não somos ele, podemos ter total certeza disso. O fato de estarmos unidos a Cristo não quer dizer que nos tornamos exatamente iguais a Deus, divinos como ele, e que todos os atributos de Cristo são transferidos a nós. Sem dúvida, muitas bênçãos nos são conferidas pela nossa união com Cristo, mas a divindade não é uma delas. Enquanto estivermos neste mundo, seremos pecadores e humanos, mesmo unidos a Cristo. Seremos sempre fracos e vulneráveis, e certamente vamos morrer, caso Jesus Cristo não volte antes. A presença de Cristo em nós, nossa união com ele, tem várias implicações, mas não a de que nos tornamos iguais a Deus.
Necessidade da união com Cristo Outra pergunta que se pode fazer sobre o assunto é: Por que foi necessário que Deus nos unisse a um Salvador, a um Representante? A necessidade surgiu em razão da maneira pela qual nos tornamos pecadores. E como isso aconteceu? Por que nascemos assim? Por que temos essa natureza inclinada para o mal contra a qual temos de lutar a vida inteira? Tudo aconteceu no jardim do Éden. Quando Deus criou Adão e sua mulher, ele não criou a humanidade toda de uma vez. Ele fez isso com os anjos: criou todos eles de uma só vez. Não criou um anjo e uma “anja” e, da união dos dois, foram nascendo anjinhos. Ele os criou em um número definido. Mas, ao criar a raça humana, Deus seguiu outro caminho. Por motivos que só ele conhece, que fazem parte de seus mistérios, desígnios e decretos, apenas um casal foi criado, e desse casal é que posteriormente viria toda a raça humana. Portanto, o primeiro casal — e em particular Adão, que foi criado primeiro — tornou-se cabeça da humanidade, representante da raça humana. Adão é o pai que temos em comum. Todos nós descendemos dele. Adão é nosso pai, o primeiro homem. Por isso, na Bíblia, ele é chamado “velho homem”, porque é o mais antigo de todos os seres humanos. E o que aconteceu então? Pelo fato de Adão ser nosso representante, a história dele é a nossa história. Os atos de Adão repercutiram em toda a sua descendência. Quando Deus fez um pacto com Adão, estabeleceu esse pacto não somente com ele, mas também com todos os seus descendentes, porque estávamos em Adão. E quando este quebrou o pacto, por desobediência a Deus, e tornou-se pecador, Adão não caiu sozinho: toda a sua descendência, que estava oficialmente nele, também caiu. É por isso que, depois da Queda, todos os descendentes de Adão herdaram a culpa e a dívida do pai da humanidade e sua natureza pecaminosa. Já nascemos neste mundo culpados e corrompidos, e foi assim que tudo começou: um homem, o representante da raça humana, desobedeceu a Deus e, por isso, precipitou toda a humanidade no pecado, no desespero, na dor, na miséria e na morte física e eterna. E qual caminho Deus determinou como solução para o problema? Ele enviou à terra o Segundo Homem, o Último Adão (1Co 15.45-47), alguém que, à semelhança do primeiro Adão, representasse o povo de Deus, mas não toda a humanidade. Alguém com quem, à semelhança de Adão, Deus fez um pacto, submetendo-o a um teste: ele teria de assumir a forma humana, habitar entre nós e cumprir integralmente a Lei de Deus, em plena obediência. Também, à semelhança do primeiro Adão, tudo que acontecesse com Cristo aconteceria conosco, como de fato aconteceu. Cristo venceu a morte. Ele foi perfeito, cumpriu a Lei, morreu pelos nossos pecados e ressuscitou. A história de Cristo é a nossa história. Assim como os atos do primeiro Adão repercutiram em toda a raça humana e deixaram uma herança de culpa e pecado, quando nascemos de novo em nossa conversão, recebemos a herança do Último Adão. Agora, estamos unidos ao Segundo Adão da mesma forma que a humanidade está unida ao primeiro Adão. Foi dessa maneira que Deus tratou a situação. Por um homem, veio o pecado e a morte; por outro homem, veio o perdão e a vida. Por um homem, todos morrem; por outro homem, o povo de Deus é vivificado; através de um homem, o pecado entrou no mundo; através de outro homem, veio a salvação, a justiça e a vida eterna. Então, a grande pergunta é esta: Você está pendurado no cinturão de quem? Se está unido a Adão somente, você receberá toda a herança de Adão, seu pai: morte, destruição, miséria e sofrimento. Mas se você, pela fé, está unido a Jesus Cristo, o Último Adão, o Segundo Homem, faz parte de uma nova humanidade, uma nova raça, que será glorificada e transformada quando nosso Representante voltar. A nova raça não sofrerá o juízo de Deus, mas receberá a vida eterna por causa dos méritos do Segundo Homem, do Último Adão, nosso Cabeça e nosso Mediador, Jesus Cristo. Eis a razão de a união com Cristo ser necessária. Ela decorre do fato de que nos tornamos pecadores e sujeitos à morte, mediante a união com Adão. E Deus, ao enviar o Segundo Adão, solucionou nosso problema na raiz.
Como funciona a união com Cristo?
Como essa união ocorre na prática? Como a experimentamos? Antes de tudo, você precisa saber que a união com Cristo não é algo que sentimos, como as emoções ou alguma sensação física que nos faça suar ou ficar com os pelos arrepiados. Trata-se de uma união mística, uma união espiritual , que acontece primariamente diante de Deus, pela perspectiva divina. Deus nos considera em Cristo, nos une a seu Filho e trata conosco em seu Filho Jesus Cristo. Os efeitos dessa união com Cristo, todavia, se experimentam por meio de mudanças de atitude. Veja o que Paulo diz no versículo 20, depois de afirmar que está crucificado com Cristo: “Não sou mais eu quem vive”. O velho Paulo — Saulo, o perseguidor — havia morrido, e agora outro homem, transformado pela presença de Cristo mediante a fé, vivia nessa carne. Experimentamos a união com Cristo de várias maneiras, na prática. Mas ela não é algo que alguém possa obter por si mesmo. Nenhuma pessoa pode resolver que a partir de hoje estará unida a Jesus. É algo que Deus faz. Ele tomou o seu povo e o uniu a seu Filho, e fez o mesmo com você. É possível que até mesmo o cristão verdadeiro tenha dificuldades para entender esse conceito. Por falta de conhecimento, talvez não perceba a realidade e os traços dessa união em sua vida. Mas isso não anula o fato de que ninguém pode ser cristão se não estiver unido a Cristo. Não é algo que alguma pessoa possa fazer por si mesma. É um ato de Deus, que nos une a seu Filho. E esse ato tem os seus efeitos. Contudo, antes de falar dos efeitos dessa união, precisamos nos lembrar que, para que ela pudesse acontecer, Deus nos incluiu na pessoa de Cristo, o qual veio a este mundo, viveu entre nós como homem e morreu crucificado. Paulo declara: “Estou crucificado com Cristo” (v. 19). O apóstolo não está se referindo a uma crucificação física, porque os únicos que poderiam afirmar tal coisa seriam os dois ladrões que foram, literalmente, crucificados ao lado de Cristo. Nós, os demais “ladrões”, somos crucificados espiritual e representativamente em Cristo. Isso quer dizer que Deus nos incluiu na morte de Cristo quando ele foi crucificado. Cristo foi crucificado por mim e por todos os que creem nele como seu Salvador. Quer dizer também que Deus nos incluiu na ressurreição de Cristo. Deus planejou essa união na eternidade e a concretizou em determinado ponto da História, há cerca de 2 mil anos, quando Jesus Cristo, o Último Adão, veio a este mundo em forma humana e nos representou, fazendo certo aquilo que Adão havia feito errado. E como nós experimentamos isso depois de todos esses anos? Como já mencionei, a união com Cristo nos é aplicada quando nascemos de novo pela fé, quando somos regenerados e transformados, feitos novas criaturas pela ação do Espírito Santo. Em termos práticos e concretos, os efeitos dessa união nos são manifestados como uma nova vida depois que a vida de Cristo é aplicada em nós. Tudo que Cristo fez na cruz — a mortificação — e tudo que ele obteve na ressurreição — a vida eterna, a glória, a incorruptibilidade — nos são aplicados e conferidos na união com ele. No tempo devido, desfrutaremos todas essas coisas. Então, em certo sentido, se você, cristão, perguntar o que é preciso fazer para se unir a Cristo, a resposta é simples: não há nada mais o que fazer. Você já está unido a Cristo. A pergunta correta é: como se vive na prática essa união e quais são os efeitos dela na vida do crente?
Os efeitos da união com Cristo No trecho que estamos estudando, Paulo menciona alguns efeitos da vida em Cristo: “Pois, pela lei, eu morri para a lei, a fim de viver para Deus. Já estou crucificado com Cristo. Portanto, não sou mais eu quem vive, mas é Cristo quem vive em mim. E essa vida que vivo agora no corpo, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (v. 19,20). Vamos refletir agora em três desses efeitos. Primeiro efeito da união com Cristo: morremos para a Lei
O primeiro efeito da união com Cristo é a morte para a Lei — algo que nos condena ao revelar o santo padrão de Deus, que exige obediência perfeita. Paulo aprendeu na própria Lei a respeito do Messias e percebeu que pela Lei se morre para a Lei; ou seja, o apóstolo não vê mais todas as suas ordenanças como o caminho da justificação. Ele não apela mais a elas para ser justificado e por elas também não é mais condenado, porque já não está debaixo delas. A Lei foi perfeitamente cumprida por seu Representante, Cristo; por isso, Paulo está completamente morto para ela. Todavia, isso não significa que não devemos seguir os Dez Mandamentos como forma de gratidão a Deus; a ideia principal é que não estamos mais sob a condenação da Lei. Com Cristo, estamos mortos para ela, e, como a Lei só pode condenar os vivos, ela não nos alcança mais. No dia do juízo, quando a Lei trovejar sobre nós — “Não farás para ti imagem esculpida”; “Honra teu pai e tua mãe”; “Não adulterarás”; “Não dirás falso testemunho”; “Não cobiçarás”... —, estaremos fora de seu alcance, pois será proferida como condenação apenas a quem permanece vivo para ela. Nós, que estamos mortos para a Lei, não tentaremos nos justificar diante dela, porque sabemos que ela diz a verdade a nosso respeito: somos de fato seus infratores e merecedores de justa condenação. No entanto, nossa resposta será: “Estamos mortos para a Lei. Já cumprimos nossa sentença, porque um Representante foi executado em nosso lugar. Portanto, a Lei não nos alcança mais”. E, quando no dia do juízo, ela exigir nossa pena de morte, a resposta que daremos será: “Essa pena já foi cumprida, pois Cristo foi condenado à morte em nosso lugar”.
Esse é o primeiro efeito de nossa união com Cristo, e isso afeta nosso dia a dia, porque passamos a viver sem culpa, sabendo que todas as demandas da Lei, todas as suas exigências, já foram cumpridas pelo nosso Substituto. Quem está unido a Cristo desfruta o benefício de saber que está morto para a Lei. O fato de estarmos mortos para a Lei tem um derivado: estamos também mortos para o pecado. Se morremos para a Lei, o pecado não pode mais nos dominar, porque a força do pecado é a Lei; ela tem o poder de provocar o pecado. E onde não há Lei, também não há pecado. Se ela não dissesse “Não adulterarás”, não haveria adultério. Portanto, ao morrer para a Lei, morremos também para o domínio do pecado sobre nós. Uma boa ilustração desse conceito é a história do homem que construiu à beira de uma estrada um hotel maravilhoso, feito inteiramente de vidro. Certo dia, o gerente perguntou ao dono: “O senhor não tem medo de que alguém passe e jogue uma pedra nessas janelas? Porque não coloca uma placa do lado de fora avisando: ‘É proibido atirar pedras’?”. Até então, ninguém havia atirado pedras no hotel, mas o proprietário decidiu seguir o conselho do gerente. Ele então colocou a placa com o aviso, mas logo no dia seguinte uma das janelas do hotel recebeu a primeira pedrada. Por que isso aconteceu? Porque a Lei incita o pecado. Mas, se estamos mortos para a Lei, o pecado perde seu aguilhão, e podemos então vencê-lo. Esse derivado, por sua vez, acarreta outro: vencemos também a morte, porque ela é o “salário do pecado” (Rm 6.23). Se estamos mortos para a Lei e mortos para o pecado, estamos também mortos para a morte. John Owen, teólogo puritano do século 17, escreveu um livro interessante cujo título é The death of death in the death of Christ [A morte da morte na morte de Cristo] .1 Quando Jesus morreu, ele matou a morte. Por isso, quem está unido a ele não sofrerá a morte eterna — poderá até experimentar a morte física, mas um dia será ressuscitado, assim como Cristo ressuscitou, e viverá eternamente com ele. E é isso que Paulo está nos dizendo: pelo próprio ensino da Lei aprende-se que morremos para a Lei. Segundo efeito da união com Cristo: vivemos para Deus
O segundo efeito da união com Cristo é mencionado em seguida, ainda no mesmo versículo: “... a fim de viver para Deus”. Isso implica não só que estamos mortos para a Lei, para o pecado e para a morte, mas também que agora vivemos com um objetivo diferente: vivemos para Deus. Vivemos para sua glória, sua vontade, sua satisfação e seu deleite. Essa é a razão da existência do cristão. Ele vive para Deus. Não vive mais para si mesmo nem por causa dos outros; vive para Deus. Não é à toa que o Catecismo maior de Westminster enfatiza, em primeiro lugar, que “o fim supremo e principal do homem é glorificar a Deus e deleitar-se nele para sempre”. Assim, a vida do convertido recebe nova orientação. Quem passou por uma conversão dramática ou marcante, como foi o meu caso, lembra muito bem como essa nova orientação se iniciou. Até setembro de 1977, eu vivia totalmente voltado para mim mesmo, para servir aos meus desejos, buscar meus interesses, satisfazer meus apetites e desfrutar tudo que servisse para meu entretenimento. Mas, numa noite daquele mês de setembro, quando Deus, pela sua graça, me uniu a seu Filho, minha vida recebeu novo direcionamento. Embora não de modo perfeito, viver para Deus tornou-se meu único objetivo. Ele passou a ser a paixão e a razão de minha existência e, à medida que o tempo foi passando, tudo o mais foi se reorganizando em minha vida. Não é algo que acontece de um dia para o outro. Já faz quase quarenta anos que isso aconteceu e ainda sinto que, embora não haja dúvidas de que vivo para Deus, muita coisa ainda precisa ser trazida para debaixo da orientação divina e desse alvo maior que subjuga e controla todos os demais. Esse é um processo que dura a vida inteira. Mas aquele novo princípio de vida — viver para Deus — foi em mim instalado. Essa é a razão da existência de quem é de Cristo e está unido a ele. Deus é seu deleite, e seu alvo é agradá-lo. Essa é a razão maior de sua existência. Paulo não está dizendo que nos tornamos perfeitos ao nos unirmos a Cristo, mas que o desejo de nosso coração e a paixão de nossa vida passam a ser conhecer mais e mais Cristo, ser como ele, viver para ele e fazer a vontade dele. Quando você percebe a fraqueza de sua carne, quando cai, fracassa, peca, isso não quer dizer que não esteja unido a Cristo. A pergunta é: como você se sente quando isso acontece? Se em seu coração há uma tristeza profunda pelo pecado e um desejo ardente, apesar dos tropeços, de viver para a glória de Deus, saiba que isso é resultado de sua união com Cristo e de viver para Deus, que é a razão de sua existência. Terceiro efeito da uni ão com Cristo: ele vive em nós
Em seguida, Paulo menciona o terceiro efeito da união com Cristo: “Não sou mais eu quem vive, mas é Cristo quem vive em mim” (v. 20). Muitos expressam o desejo de ver Cristo encarnado entre nós outra vez. Mas quem disse que o Cristo vivo não vive entre nós? Ele vive em cada um de nós! Vive em todo verdadeiro cristão! Cristo está sempre presente em sua igreja. Paulo diz que a vida que ele vive agora não é mais vivida pelo velho Paulo: há um novo princípio de vida, a vida do Filho de Deus, que está nele e o faz declarar: “Cristo vive em mim”. Volto, porém, a dizer que esse efeito não é algo que possamos sentir, que provoque arrepios, suor frio, tremedeira ou visões. A presença de Cristo em cada um de nós revela-se em viver como Cristo viveu, andar como Cristo andou, amar ao Pai como Cristo amou e dedicar-se a fazer a vontade de Deus como Cristo se dedicou. Se isso não fizer diferença para você, nada mais fará. É com base na consciência de sua união com Cristo que você poderá enfrentar o pecado, Satanás, o mundo e, por último, a morte,
quando ela finalmente bater à sua porta — pois esse momento chegará se Cristo não retornar antes que isso aconteça. E o que lhe dará confiança no momento final de sua vida terrena? A certeza de que você está unido a Jesus Cristo e que, se ele venceu a morte e está vivo, você viverá com ele eternamente! Quarto efeito da união com Cristo: um amor especial
O quarto e último efeito também se encontra no mesmo versículo, em que Paulo diz: “E essa vida que vivo agora no corpo, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (v. 20b). Cristo me amou e se entregou voluntariamente por mim! Deus ama o mundo, porque fez todas as coisas. Mas ele tem um amor especial e específico, devotado apenas aos que são seus. Paulo diz que Cristo se uniu “a mim”. Ele não se uniu ao mundo inteiro. Por isso, também não orou pelo mundo inteiro, mas apenas por aqueles que Deus lhe deu (Jo 17.9). Que privilégio! Que glória! Poder afirmar que Cristo me amou e se entregou por mim é a questão mais importante da vida, algo que faz toda a diferença neste mundo. Paulo afirma que vive agora pela fé em Cristo: “Essa vida que vivo agora [a vida humana, enquanto aguardamos a vida celestial] no corpo, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim”. Isso significa que Paulo já não vivia mais tentando agradar a Deus por meio da Lei, dos próprios esforços ou do cumprimento de uma religião vazia. Sua maneira de viver passou a ser pela fé em Cristo, que venceu a morte, ressuscitou dentre os mortos, tem todo o poder no céu e na terra, está entronizado à direita de Deus Pai, intercede por nós e um dia voltará para julgar o mundo. Paulo passou a viver pela fé nesse Cristo. E é assim que todos os cristãos devem viver. É para isso que estamos unidos a ele. Os místicos da Idade Média tentaram experimentar essa união com Cristo de maneira equivocada (e há quem pratique hoje coisas semelhantes em busca da mesma experiência). Eles se retiravam para o deserto, isolavam-se em mosteiros e tentavam se mortificar com chicotadas, jejuns extremados e diversas privações, para de alguma forma experimentar os sofrimentos de Cristo e se sentir unidos a ele. Dedicavam também longo tempo à contemplação divina, com a esperança de ver Cristo. Certamente, não é assim que experimentamos na prática a união com Cristo. A Bíblia nos diz que precisamos, acima de tudo, renunciar a nós mesmos. “Não eu, mas Cristo”, não é isso o que Paulo está dizendo? Durante o grande avivamento espiritual ocorrido em Uganda na década de 1930, no qual milhares de pessoas se converteram, a holandesa Corrie ten Boom visitou o país para descobrir o segredo daqueles cristãos e de uma igreja que, apesar de perseguida e martirizada, crescia e transbordava de crentes fiéis. A resposta que ela obteve de um dos líderes foi o texto de Gálatas 2.20: “Não eu, mas Cristo”. Aquela igreja aprendera o significado da morte para o eu. Para que Cristo viva plenamente em nós, é necessário que renunciemos a nós mesmos. Em decorrência dessa convicção, havia uma plaquinha com a frase em inglês Not I, but Christ [Não eu, mas Cristo], que trazia desenhado dentro da letra I um homem orgulhoso de pé e com a cabeça erguida e, dentro da letra C , um homem encurvado, ajoelhado e quebrantado diante de Deus. Quando estudei no Seminário Presbiteriano do Norte, meu sogro, o reverendo Francisco Leonardo, que na época era o diretor, mandou fazer dezenas de quadrinhos com aquela imagem, e um deles foi pendurado atrás da porta de sua sala, bem embaixo, perto do chão. Quando um seminarista entrava na sala com pose arrogante, cheio de si, achando-se dono da verdade, o reverendo Francisco, sentado em sua cadeira, pedia: “Você pode ler aquele quadrinho para mim?”. E apontava para a plaquinha atrás da porta. O rapaz, naturalmente, não conseguia ler os dizeres em pé. Então, abaixava-se um pouco, mas ainda assim não conseguia. Por fim, era obrigado a se ajoelhar para ler o quadrinho. E, enquanto ele estava ajoelhado, o reverendo Francisco chegava por trás dele, colocava a mão sobre a cabeça do seminarista e orava em voz alta: “Ó Deus, tem misericórdia deste teu servo, que está aqui humilhado e de joelhos diante de ti, pedindo a tua graça”. Você deve estar se perguntando se ele fez isso comigo também. Sim, ele fez! Se não cultivarmos essa atitude de renúncia de nós mesmos, jamais experimentaremos o que significa ter Cristo vivendo plenamente em nós. Seremos salvos pela graça, sim, mas não saberemos na prática o que de fato significa experimentar a plenitude da vida de Cristo. É por meio da leitura da Palavra e da ceia do Senhor, que celebra a união com Jesus Cristo, da comunhão com os irmãos e da oração que nos apropriamos dessa união bendita, à medida que renunciamos a nós mesmos. “É necessário que ele cresça e eu diminua” (Jo 3.30). Convém que Cristo viva sua vida em nós mais e mais e que diminuamos cada vez mais. Esse é o caminho para experimentarmos na prática todo o poder decorrente dessa união.
Conclusão e aplicações Podemos extrair desse texto muitas lições práticas para diversas situações, mas gostaria de destacar quatro delas. A primeira lição diz respeito ao crente que porventura pense que o caminho da santificação é o legalismo, o cumprimento de normas e regras. Não sou contra a disciplina pessoal, tampouco reprovo a ideia de se ter um alvo espiritual. Mas é uma atitude evidentemente anticristã tentar se santificar neste mundo pela força da Lei, por normas e regras do tipo: “Não coma isto, não beba aquilo” etc. A dinâmica da santificação e o poder sobre o pecado não provêm de nossa força de vontade, e sim de nossa união com Cristo.
A segunda lição diz respeito àquele que vem lutando contra o pecado há muito tempo e simplesmente não consegue vencê-lo. Hábitos pecaminosos são, de fato, difíceis de ser removidos. Travamos uma luta constante contra nosso temperamento, nossa língua e nossa maneira de ser. Há determinados aspectos de nossa personalidade que sabemos que são errados, pois nos induzem a fazer o que não é correto. Quantas imperfeições há em nós! Passaremos a vida inteira lutando contra elas e, nesta vida, jamais poderemos dizer que chegamos ao ponto de vencê-las por completo. Só na glória isso acontecerá. Mas, enquanto estivermos neste mundo, o caminho para vencer o pecado que habita em nós é a união com Cristo. Se renunciarmos a nós mesmos e deixarmos que ele viva e manifeste sua vida em nós, teremos esse tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja dele, não nossa (2Co 4.7). À medida que nós, como vasos de barro, permitimos que ele viva em nós, a vitória vai sendo obtida. A terceira lição diz respeito a quem está abatido, oprimido e desanimado. Meu desejo é que o estudo desse texto lhe traga profunda alegria ao refletir sobre a doutrina da união com Cristo. Sua união é com Cristo, seu Salvador, o homem mais poderoso do mundo, o Senhor de todas as coisas, aquele que pode guiar a História e todas as circunstâncias de maneira que nada aconteça a você que não seja da vontade dele. Ele amou você, entregou-se por você e vive em você. Pense sempre nisso. A quarta lição diz respeito a quem tem medo da morte. Sim, um dia ela chegará. À medida que envelheço, penso cada vez mais nesse assunto. Como será o dia em que a morte virá bater à minha porta? Terei tempo para uma última reflexão? E se eu morrer na queda de um avião, num acidente de motocicleta, numa batida de carro ou por causa de uma doença? Não temos controle sobre essas circunstâncias, mas podemos ter certeza disto: se pertencemos ao Senhor Jesus e estamos unidos a ele, morreremos na esperança e na certeza gloriosa da ressurreição. A morte não será o fim, assim como não foi o fim para Jesus Cristo. Ele morreu, mas vive. E, se você está unido a ele, a morte também não terá domínio sobre a sua vida. Você haverá de viver com ele e para ele por todo o sempre. 1Edição
em português. Por que m Cristo morreu? (São Paulo: PES, s.d.).
Capítulo 7
A INSENSATEZ DOS GÁLATAS
Gálatas 3.1-5 epois de descrever o conceito da união com Cristo e seus efeitos na vida do cristão (Gl 2.15-21), Paulo passa a se concentrar na experiência passada e na atitude presente dos gálatas em relação a Cristo. Vejamos o que ele diz em Gálatas 3.1-5:
D
Ó gálatas insensatos! Quem vos seduziu? Não foi diante de vós que Jesus Cristo foi exposto como crucificado? É só isto que quero saber de vós: foi pelas obras da lei que recebestes o Espírito, ou pela fé naquilo que ouvistes? Sois tão insensatos assim, a ponto de, tendo começado pelo Espírito, estar ag ora vos aperfeiçoan do pela carne? Será que sofrestes ta nto por nada? Se é q ue isso foi por nada ! Aquele qu e vos dá o Espírito, e que realiza milagres entre vós, será que o faz pel as obras da lei o u pela fé naqui lo qu e ouvi stes?
Como já foi dito, Paulo tinha alguns objetivos ao escrever a Carta aos Gálatas, e o principal deles era impedir que os convertidos da região da Galácia fossem enganados pelos falsos mestres que haviam se infiltrado naquelas igrejas para ensinar outro evangelho. Poucos anos antes, o apóstolo havia passado pela região pregando o evangelho, como era sua prática, e muitos de seus habitantes creram na mensagem de que Jesus Cristo havia sido crucificado pelos seus pecados e de que, mediante a fé nele, receberiam o perdão dos pecados, seriam salvos, recebidos por Deus e com ele reconciliados. Portanto, as igrejas que se formaram na Galácia eram compostas de pessoas que haviam se tornado cristãs ao ouvir a mensagem do apóstolo Paulo. Mas, assim que ele deixou a região para pregar o evangelho em outros locais, chegaram os missionários judaizantes e falsos mestres — falsos porque se apresentavam como enviados de Deus e traziam um evangelho que não era verdadeiro. Já explicamos nos capítulos anteriores os argumentos desses falsos mestres e comentamos as alegações que faziam contra a legitimidade do apostolado de Paulo. O apóstolo, então, escreveu aos cristãos da Galácia uma carta indignada, talvez a mais passional de todas, em que derrama o coração diante dos destinatários. Ele estava perplexo e aborrecido com os convertidos, e mais aborrecido ainda com os falsos mestres. Na carta, Paulo busca mostrar aos irmãos daquelas igrejas que abandonar o evangelho verdadeiro que ele lhes havia anunciado, para seguir a mensagem dos missionários judeus, seria o maior erro da vida deles. Nos dois primeiros capítulos, Paulo defende sua autoridade, reconhecida até mesmo pelos apóstolos de Jerusalém, e relata um confronto que teve com o apóstolo Pedro, que em certa ocasião, na igreja em Antioquia, demonstrou que estava também se deixando levar pela mesma onda desse falso evangelho, que agora havia chegado aos gálatas. A partir do terceiro capítulo da carta, Paulo passa a tratar da doutrina da justificação pela fé com os cristãos daquelas igrejas. Ele começa por refutar o ensino dos falsos mestres e mostrar que o ensino deles era loucura, e seria uma insensatez ainda maior se os gálatas abraçassem esse outro evangelho. Para isso, Paulo apela à experiência dos próprios gálatas — trata-se de uma maneira muito eficiente de conduzir uma argumentação, principalmente quando há uma falha real no procedimento dos interlocutores. Essa estratégia recebe o nome de argumentum ad hominem. Ela ocorre quando alguém direciona a argumentação contra seu interlocutor, sem que, com isso, necessariamente, esse argumento seja falacioso ou vise denegrir o opositor. Ao se valer dessa estratégia, Paulo convida os gálatas a pensar sobre a própria experiência deles: “Vocês estão achando que a salvação agora é pelas obras da lei? Então vamos dar uma olhada na história de vocês!”. Ele, assim, desenvolve seus argumentos lembrando àqueles cristãos a experiência de conversão deles e o que Deus estava fazendo em meio às igrejas que eles compunham. Para tanto, Paulo faz cinco perguntas referentes à experiência dos gálatas, com o propósito evidente de apontar e estabelecer que o caminho correto é o da salvação pela fé.
A insensatez dos gálatas Antes, porém, de comentarmos cada uma dessas perguntas, observe a maneira pela qual Paulo se dirige a eles: “Ó gálatas insensatos!”. Uma tradição cultural da época considerava a região da Galácia uma terra de gente rude e ignorante. Dessa vez, porém, Paulo os está chamando de insensatos não por influência dessa questão cultural, mas por causa da tolice que de fato estavam cometendo ao trocar Cristo por Moisés. Eles estavam trocando a graça pela Lei; a fé, pelas obras! É de fato uma grande insensatez trocar o verdadeiro caminho da salvação, que aceita o pecador, o perdoa e o livra de suas culpas, por outro caminho em que você é obrigado a observar regras e normas e no qual a salvação, por fim, dependerá de seu esforço e mérito. O primeiro caminho — a salvação pela cruz e pela graça — é completo, perfeito e eficaz, enquanto o outro é
incompleto, imperfeito e incapaz de salvar o homem. É insensatez abandonar o evangelho da graça de Deus e o caminho da cruz e ingressar num caminho em que a salvação depende de esforço humano e que, no final, acaba em frustração e perdição. Os gálatas mereciam ser chamados de insensatos! Primeira pergunta:“Quem vos seduziu?”
A primeira pergunta feita por Paulo aos gálatas está intimamente associada à pergunta seguinte: “Não foi diante de vós que Jesus Cristo foi exposto como crucificado?” (v. 1). Evidentemente, o apóstolo não está afirmando que Cristo foi crucificado, literalmente, diante dos gálatas, pois a crucificação ocorrera alguns anos antes e bem longe deles, em Jerusalém. O que Paulo está querendo dizer é que, quando esteve na Galácia, apresentou-lhes o Cristo, e o Cristo crucificado. Sua exposição havia sido tão clara que era como se eles tivessem enxergado o próprio Cristo crucificado. Um provérbio árabe diz que o bom pregador é aquele que transforma o ouvido em olho. Um bom pregador prega de tal maneira que as pessoas não somente ouvem, mas veem o que está sendo dito. E é a uma pregação como essa que Paulo está se referindo. Mediante sua mensagem, o Cristo crucificado foi exposto diante dos “olhos” dos gálatas. A pregação dele havia sido clara e eficaz! Então, como alguém pôde convencê-los a ponto de deixarem de acreditar no que Paulo havia ensinado a eles? “Quem vos seduziu?”, pergunta o apóstolo, espantado. O verbo que aqui é traduzido no português por “seduzir” significa, no grego, literalmente “enfeitiçar alguém”. E isso era mais ou menos o que havia acontecido nas igrejas da Galácia. Paulo está chamando os falsos mestres de feiticeiros. E como um feiticeiro trabalha? Ele geralmente ilude as pessoas com artes mágicas ou truques. Faz que as coisas pareçam ser o que não são de fato. Por exemplo, sempre que assistimos a um número de ilusionismo, ao vivo ou na televisão, ficamos nos perguntando como o ilusionista conseguiu fazer diante de nossos olhos algo que parecia impossível. E exatamente essa perícia do ilusionista é também a do feiticeiro. Eles fazem que as coisas se apresentem de uma maneira que não são e, desse modo, iludem as pessoas, seduzindo-as com suas habilidades. Não é a toa que Paulo chama aqueles missionários judeus de feiticeiros! Esses falsos mestres foram tão astutos que conseguiram apresentar um evangelho falso de tal maneira que pareceu verdadeiro aos olhos daqueles cristãos. “Quem vos seduziu?”, perguntou o apóstolo, embora certamente já soubesse a resposta. No entanto, com essa pergunta, ele queria fazer que os próprios gálatas refletissem sobre o que estava acontecendo: eles estavam trocando o evangelho da graça por outro evangelho, que somente os levaria ao engano. Segunda pergunta:“Foi pelas obras da lei que recebestes o Espírito?”
Para a segunda pergunta (v. 2), Paulo também já tinha a resposta. Mas, ao fazê-la, dessa vez desejava provocar nos gálatas uma reflexão sobre o modo que eles haviam recebido o Espírito Santo: havia sido pelas obras da lei ou pela pregação da fé? Paulo pregou a respeito da fé em Cristo Jesus na época em que esteve na Galácia ensinando o caminho da cruz. E, quando os gálatas responderam à sua pregação e creram em Cristo como o único e suficiente Salvador, uma coisa extraordinária aconteceu: Deus lhes concedeu o Espírito Santo. É isso que Deus faz toda vez que alguém crê em Jesus Cristo como o Salvador que morreu na cruz pelos seus pecados. Estão muito enganados os que pensam que receber o Espírito Santo é uma “experiência” que acontece somente depois da conversão. Em algumas igrejas, essa experiência é denominada “batismo com o Espírito Santo”. Elas consideram esse batismo, seguido de línguas, sinais e prodígios, um momento especial em que o crente recebe o Espírito Santo. Até isso acontecer, ele não será, portanto, um crente completo. Ele já creu em Jesus Cristo, está salvo, mas precisa ainda dessa experiência. Este ensino está evidentemente errado, pois a Bíblia deixa claro que recebemos o Espírito Santo quando cremos em Jesus. Quando cremos na mensagem da cruz, Deus nos concede o Espírito Santo, porque sem isso nem crentes poderíamos ser. Só podemos ser crentes porque o Espírito Santo veio ao nosso coração, enviado por Deus. Paulo, na verdade, está perguntando aos gálatas: “Quando vocês se converteram, qual foi a pregação que ouviram para isso? E, quando o Espírito Santo veio sobre vocês, que tipo de mensagem Deus usou para transformar a vida de vocês e lhes dar o Espírito Santo?”. A resposta era óbvia. Quando isso aconteceu, o apóstolo estava pregando a cruz, a salvação pela fé. O argumento de Paulo é que, se o Espírito Santo foi concedido aos gálatas enquanto ele pregava a mensagem da cruz, então daquela forma Deus havia autenticado sua mensagem, o evangelho da graça. Quando receberam o Espírito, certamente ele não estava pregando que a salvação era obtida por mérito, através das obras da lei ou pela circuncisão. Terceira pergunta:“Sois tão insensatos assim?”
Essa terceira pergunta de Paulo aos gálatas aparece completa no versículo 3: “Sois tão insensatos assim, a ponto de, tendo começado pelo Espírito, estar agora vos aperfeiçoando pela carne?”. O apóstolo está novamente remetendo os gálatas à experiência que tiveram no passado, no caso o início da vida cristã.
O verbo grego que Paulo usa no original, traduzido aqui por “aperfeiçoar”, significa também “amadurecer”, “atingir o alvo plenamente”, daí a ideia de perfeição. Ser perfeito significa alcançar a plenitude do viver cristão, e este é o alvo de todo seguidor de Cristo. Eu gostaria de ser perfeito, no sentido de não ter os defeitos que eu ainda tenho. Gostaria de vencer totalmente o pecado em minha vida e viver de maneira santa, justa, verdadeira e perfeita neste mundo. Espero que esse seja seu alvo também. O cristão verdadeiro anseia pela perfeição. Ele sabe que não conseguirá ser perfeito enquanto viver neste mundo, mas, ainda assim, é o desejo dele. A perfeição virá quando o Senhor Jesus voltar e transformar nosso corpo ou nos ressuscitar dentre os mortos. Então, finalmente, ficaremos livres de toda imperfeição física, mental, espiritual e emocional e seremos tudo aquilo que Deus planejou que fôssemos. Neste mundo, todavia, lutamos para alcançar essa perfeição; por isso, a pergunta que todo cristão deveria fazer é: “Como lutar para alcançá-la?”. Paulo aqui estabelece dois caminhos. O primeiro caminho é o do Espírito, e o segundo, o da carne. Aperfeiçoar-se no Espírito, que é o ideal correto, está de acordo com a mensagem do evangelho. Significa correr a carreira cristã dependendo do que Deus fez por nós e do que ele nos concede. É a vida pela fé, que descansa nas promessas de Deus e aguarda a operação do poder divino. Enfim, é viver na total dependência de Deus. É isso que significa se aperfeiçoar no Espírito, o qual representa aqui tudo que procede de Deus, tudo que é espiritual. O outro caminho é o de tentar aperfeiçoar-se pela carne, e muitos cristãos enveredam por ele. Começam no Espírito, porque foram salvos pela graça e receberam o Espírito Santo pela fé, mas experimentam um retrocesso na vida cristã e tentam então se aperfeiçoar de outra maneira — “na carne”, como diz Paulo, que não significa necessariamente uma maneira pecaminosa, e sim uma dependência do esforço humano. As pessoas que tentam ser santas por esforço próprio querem obter santidade e outras virtudes apenas pela força de vontade, por meio das decisões que tomam, pela quantidade de tempo em que oram, pelo número de capítulos da Bíblia que leem, por quantas vezes frequentam os cultos e assim por diante. Criam dessa forma um sistema de aperfeiçoamento baseado em regras e obras, o qual acaba por aprisioná-las, porque elas passam a confiar na própria carne, em vez de depender completa e inteiramente da graça e da misericórdia de Deus, do Cristo que vive em nós, como Paulo disse no capítulo 2: “Não sou mais eu quem vive, mas é Cristo quem vive em mim” (v. 20). Para os cristãos que deixam de depender de Cristo e passam a confiar na própria carne, o fracasso é certo. Inevitavelmente, eles caem, quebram seus votos, pecam, não conseguem se tornar aquilo que se esforçam tanto para ser e, assim, entram em um círculo vicioso de derrota interior. Não conseguirão alcançar o alvo, que é a perfeição, nem ao menos prosseguir nele, pois estão dependendo de si próprios e acabarão se cansando. Na realidade, aprender a depender de Deus, a viver pela graça, a depender da obra completa de Cristo, não é coisa que acontece naturalmente; vai contra nossa natureza até. A cada dia, temos de exercitar nossa fé a depender de Deus e somente dele. Quarta pergunta:“Será que sofrestes t anto por nada?”
A quarta pergunta de Paulo aos gálatas está no versículo 4: “Será que sofrestes tanto por nada? Se é que isso foi por nada!”. Essa pergunta é tremenda, pois nela está implícito que os gálatas haviam sofrido perseguição ao crer no evangelho, o que era muito comum na época. Quando alguém cria em Jesus e se tornava cristão, imediatamente passava a ser perseguido. A perseguição partia dos judeus, que às vezes apelavam para as autoridades governamentais, ou dos pagãos, que rejeitavam aquela nova seita, ou das próprias autoridades, que viam no cristianismo uma ameaça política. Ser cristão naqueles tempos significava sofrer, por causa de Cristo, até mesmo a rejeição da família. Provavelmente, os gálatas haviam suportado perseguições como essas, sem negar a fé em Jesus Cristo. Mas agora Paulo estava lhes perguntando onde estavam a firmeza, a determinação e a perseverança que tinham demonstrado no início da fé cristã. Será que tudo aquilo fora em vão? Eles estavam abandonando voluntariamente algo que toda a perseguição que sofreram não havia conseguido fazer que abandonassem: sua fé! Os falsos mestres estavam conseguindo arrancá-los da firmeza do evangelho com facilidade. Paulo então os convida a olhar para trás e rever tudo que eles já haviam padecido por causa da fé, a posição firme que haviam tomado outrora na defesa do evangelho. Será que não valeu a pena? Será que foi tudo em vão? Paulo sabia que toda a perseverança dos gálatas no início da caminhada cristã tinha certamente valido a pena. Eles haviam consolidado sua fé e perseverado pelo verdadeiro evangelho, e agora a decisão de voltar a lutar por ele valeria ainda mais a pena, pois os manteria no caminho da salvação pela fé e pela graça de Deus. Quinta pergunta: “Deus realiza milagres pelas obras da lei ou pela fé?”
A última pergunta que Paulo faz aos gálatas, no trecho que estamos analisando, é: “Aquele que vos dá o Espírito, e que realiza milagres entre vós, será que o faz pelas obras da lei ou pela fé naquilo que ouvistes?” (v. 5). Pelo que o apóstolo diz nesse versículo, podemos deduzir que Cristo estava ainda operando poderosamente entre as igrejas da região da Galácia. Paulo usa aqui verbos da língua grega que passam a ideia de ação continuada e presente. Cristo continuava agindo ali de modo impressionante, o Espírito Santo estava sendo dado aos que eram salvos, havia muitos novos convertidos, a igreja prosseguia avançando e, em meio
a tudo isso, muitos sinais e prodígios atribuídos a Cristo ocorriam. Aquele que concedera o Espírito Santo aos gálatas estava operando milagres entre eles, sinal de que aquelas igrejas ainda eram cristãs. É como se Paulo estivesse perguntando: “Quando alguém se converteu no meio de vocês, ele recebeu o Espírito Santo, mas qual mensagem o levou a essa conversão? Que tipo de pregação produz convertidos, sinais e prodígios entre vocês? As curas estão acontecendo em nome de quem: de Moisés? As pessoas estão sendo curadas pelo poder da circuncisão? Ou tudo acontece em nome de Jesus Cristo? Qual é o nome que converte, transforma e opera sinais e prodígios no meio de vocês?”. A resposta só podia ser uma: Jesus Cristo. Com certeza, era ele quem estava fazendo tudo isso em meio aos gálatas. Era o ouvir com fé a pregação sobre Cristo que fazia que as pessoas fossem transformadas, abençoadas, e era essa mesma mensagem que ocasionava sinais e prodígios entre eles. Não havia sido pela “carne” que, no princípio, eles receberam o Espírito Santo, e também não era por esforço próprio da parte deles que Deus ainda estava operando milagres entre eles e os aperfeiçoando. Era pela mensagem simples do evangelho da cruz, do Cristo que sofreu, foi morto pelos nossos pecados e ressuscitou no terceiro dia. Certamente, era por meio dessa pregação que Deus operava no meio deles.
Conclusão e aplicações Neste capítulo estudamos cinco perguntas que Paulo fez aos gálatas a respeito da experiência deles no início da vida cristã com o objetivo de trazê-los de volta à sensatez, ao evangelho de Cristo Jesus. Essas perguntas, porém, podem ainda hoje nos ajudar a refletir em nossa própria experiência como cristãos, a fim de avaliarmos se estamos prosseguindo no caminho proposto pelo evangelho da graça, ou se estamos, como eles, sendo “seduzidos” por outro evangelho. A primeira pergunta de Paulo aos gálatas — “Quem vos seduziu?” —, embora feita há tanto tempo, é bastante pertinente para nós, pois a reflexão que ela pretende ocasionar é com certeza válida para as igrejas dos nossos dias. Como na época daqueles cristãos, vemos hoje muitos falsos mestres no meio evangélico, verdadeiros feiticeiros religiosos, que conseguem manipular a mente e o coração das pessoas. Eles apresentam sua mensagem falsa revestidos de uma capa de verdade, com uma aparência de autoridade, santidade e misticismo que fascina as pessoas. Infelizmente, multidões vão atrás desses falsos mestres, que, no fim, querem apenas o dinheiro, a atenção e a devoção do povo. Até mesmo muitos cristãos se deixam iludir e acabam abandonando a simplicidade do evangelho, por ficarem enfeitiçados com os truques, sinais e prodígios ou, simplesmente, seduzidos pela maneira com que eles se expressam. Assim, afastam-se da fé, que deveria ser depositada somente em Cristo Jesus. Da perspectiva teológica e olhando para um quadro mais amplo, o verdadeiro cristão, ainda que seduzido e enganado por um tempo, nunca haverá de abandonar de maneira final e definitiva a fé em Jesus Cristo como seu Senhor e Salvador. Os que foram salvos pela fé em Cristo são por ele guardados até o fim. Mas não são poucos os que sofrem e ficam machucados espiritualmente pelos falsos ensinos aqui neste mundo. Quando Paulo dirige a segunda pergunta aos gálatas, a respeito de quando eles haviam recebido o Espírito Santo, ele está fazendo um apelo à memória daqueles cristãos, ao que eles já haviam experimentado no início de sua caminhada na fé. De fato, às vezes é bastante proveitoso olharmos para o passado. Conhecer a história de nossa igreja e nossa própria história é um antídoto eficaz contra tentações e falsos ensinamentos. Como foi que você se converteu? Como foi que Deus o alcançou? Olhe para trás e verá mais um exemplo da graça de Deus. Certamente, não foi pelo seu esforço; não foi por mérito próprio. Você sabe que foi a graça, a misericórdia de Deus. Se Deus não tivesse trabalhado por meio das circunstâncias, de sua providência e de uma série de fatores, você não seria hoje um cristão. Em muitos casos, o simples fato de alguém ter nascido numa família evangélica, e desde cedo ter ouvido o evangelho, já aponta para a graça de Deus, o favor e a misericórdia dele. Então, não existe outra maneira de prosseguir praticando o evangelho, a não ser a graça, a fé em Cristo Jesus e a dependência da misericórdia de Deus. “Sois tão insensatos assim, a ponto de, tendo começado pelo Espírito, estar agora vos aperfeiçoando pela carne?” — é fundamental também fazermos a nós mesmos essa terceira pergunta de Paulo aos gálatas. Quantos de nós, salvos pela graça, acabamos nos emaranhando numa existência “subcristã”, sem alegria, sem vitória e sem progresso, justamente porque estamos tentando nos aperfeiçoar por nós mesmos, pelo nosso próprio esforço, pela nossa força de vontade! Por favor, não entenda mal o que estou querendo expressar com este ponto. Não estou dizendo que devemos simplesmente ficar parados em nossas vida cristã, esperando que Deus faça tudo em nós e por nós. Devemos, sim, cooperar com ele, mas, em última análise, nossa força e nossa confiança estarão nele, não em nós. Desse modo, os verdadeiros resultados e frutos do Espírito surgirão com abundância em nossas vidas. Assim como fez em relação ao passado dos gálatas, diante da hesitação que estavam demonstrando em sua fé, Paulo provavelmente nos faria hoje a mesma pergunta: “Será que sofrestes tanto por nada?”. Como disse antes, em momentos de incertezas é bom refletirmos a respeito de nossa experiência desde o início da vida cristã, tudo o que já tivemos de enfrentar, e assim relembrarmos quanto Deus já fez por nós. Poderemos assim constatar que já caminhamos muito! Às vezes, determinada situação no presente pode parecer difícil demais, uma provação para a qual não parece haver nenhuma saída fácil e clara. No entanto, olharmos um pouquinho para trás, ao relembrarmos toda a graça, a sabedoria e a perseverança com que Deus já nos
abençoou, nos ajuda a entender melhor o presente, para então, com base em tudo o que recebemos dele, avançarmos com confiança para o futuro. Por fim, com a pergunta “Deus realiza milagres pelas obras da lei ou pela fé?”, Paulo chamou os gálatas a refletir sobre o que desencadeou toda a ação poderosa de Deus na vida deles e na de muitos ao seu redor. Hoje, do mesmo modo que aqueles cristãos, temos sido testemunhas de quanto Deus tem agido, de modo milagroso, em nossas vidas e na de tantas outras pessoas. E sabemos que isso ocorreu e continua ocorrendo em razão da fé na obra perfeita de Deus em Jesus Cristo, não porque guardamos uma dieta ou determinado dia santo, não porque obedecemos fielmente a algum sistema religioso que nos foi transmitido ou que nós mesmos criamos. Que perseveremos, portanto, na mensagem de fé que ouvimos no início — a da graça de Deus imerecida, em razão da qual temos experimentado e visto verdadeiros milagres de Deus.
Capítulo 8
A EXPERIÊNCIA DE ABRAÃO
Gálatas 3.6-9
N
esta passagem, Paulo fala especificamente do chamado de Abraão e do encontro que o patriarca teve com Deus:
Assim foi com Ab raão, que creu em Deus, e isso l he foi atri buí do como just iça . Sab ei, e ntã o, qu e os da fé é q ue sã o fil hos d e Ab raão. E a
Escrit ura, prevendo que Deus iria justifica r os gent ios pela fé, a nunc iou com ante cedê ncia a boa not íci a a Abraã o, dizen do: Em t i serão abençoad as todas as naçõ es. Desse modo, os da fé são abençoados juntamente co m Abraão, homem que creu.
O chamado e a aliança de Deus Pelo que sabemos da Bíblia, Abraão era idólatra. Por certo adorava muitos deuses em sua cidade, a exemplo de seu pai e qualquer pessoa de sua época (Js 24.2). Não sabemos exatamente por que Deus chamou aquele homem. Na época, ele se chamava Abrão, que, em hebraico, significa “pai elevado”, e alguns intérpretes antigos da Bíblia acreditavam que ele teria recebido esse nome porque era astrólogo e ficava observando o céu a fim de adivinhar o futuro pelas estrelas. Mas são apenas conjecturas. O que sabemos de fato é que Abrão era caldeu, um pagão habitante da cidade de Ur que um dia recebeu a visita do Deus todo poderoso, o Deus verdadeiro. Não sabemos os detalhes dessa aparição. Deus pode ter aparecido em um sonho ou em forma humana, como ocorre em outras ocasiões narradas na Bíblia. O fato é que Deus se apresentou a Abrão e disse: “Você vai sair daqui. Esqueça seus parentes e suas propriedades, porque vou mostrar o lugar para onde você irá. Mais que isso, vou fazer de você um instrumento para abençoar o mundo inteiro”. Quando recebeu essa promessa, Abrão não tinha filhos, pois sua esposa Sarai era estéril e ele já tinha idade avançada; portanto, ter filhos, em seu caso, era humanamente impossível. A despeito de todas essas circunstâncias, Abrão creu no Deus que lhe apareceu. A prova de que ele acreditou em Deus e em suas promessas é que obedeceu a essa ordem prontamente: abandonou sua terra com alguns servos e deixou para trás os parentes, exceto seu pai, Terá, e seu sobrinho, Ló — a decisão de levar este se mostrou mais tarde não muito acertada. Aparentemente, Abrão era uma pessoa de posses (Gn 12.5). Reunindo tudo o que lhe pertencia, ele subiu pelo norte do Eufrates e, então, começou a descer em direção a Canaã. No caminho, morreu-lhe o pai. Por fim, chegou à terra que Deus havia prometido dar a ele e aos seus descendentes (Gn 12.7). Gênesis relata que a peregrinação de Abrão teve altos e baixos. Houve até um período em que ele teve de se refugiar no Egito, abandonando assim Canaã, porque “havia fome naquela terra” (12.10). Quando retornou, estava rico, porque Deus o abençoara (13.1,2). Alguns anos depois, Deus apareceu-lhe novamente, levou-o para um lugar aberto e disse: “Olha agora para o céu e conta as estrelas, se é que consegues contá-las; e acrescentou: Assim será a tua descendência” (15.5). Mais uma vez, Abrão creu em Deus. Contudo, os anos iam passando, e Abrão ainda aguardava pelo nascimento do filho que precisava ter para que dele viesse a descendência que conquistaria a terra da promessa. Então, em um momento de fraqueza, ele buscou um atalho: gerou um filho com uma mulher que não era sua esposa. Já conhecemos a história de Agar, a serva egípcia de Sarai, e de Ismael, o menino que nasceu da união entre Abrão e essa serva de sua esposa. Contudo, no tempo de Deus, chegou Isaque, o filho da promessa, o filho da fé, e Deus abençoou Isaque. Ainda antes do nascimento de Isaque, Deus apareceu outra vez a Abrão e disse: “Vamos fazer um pacto e instituir um sinal, um selo para externar nosso relacionamento. Eu sou o teu Deus, e tu e teus descendentes são o meu povo”. O sinal estabelecido foi a circuncisão. Todos os homens da casa do patriarca deviam ser circuncidados. Seria essa a marca de que eram o povo escolhido de Deus, e eles, por sua vez, não teriam outros deuses. Nessa ocasião, Deus mudou o nome de Abrão para Abraão (“pai de muitos”), o qual, em resposta à aliança proposta por Deus, foi circuncidado aos 99 anos. No mesmo dia, ele circuncidou Ismael, que já tinha 13 anos, e todos os homens de sua casa (Gn 17.23-27). Posteriormente, quando Isaque nasceu, ainda com oito dias de vida, foi também circuncidado. Desse modo, Abraão estabeleceu em si mesmo e em todo o seu povo a circuncisão como símbolo da fé.
Uma incompreensão histórica Já sabemos o resto da história de Abraão. Seus descendentes se estabeleceram na terra de Canaã, mas depois tiveram de ir para o Egito, onde se multiplicaram muito e foram escravizados por quatrocentos anos. Finalmente, sob a liderança de Moisés, foram
libertados pela mão poderosa de Deus e receberam os Dez Mandamentos e a Lei, um sistema legal completo, que contemplava o culto e os sacrifícios oferecidos a Deus, as posses e propriedades, as relações sociais e, em tudo isso, as ações corretas e as incorretas. Entre a primeira aparição de Deus a Abraão e a outorga da Lei aos seus descendentes, haviam transcorrido 430 ou 450 anos, dependendo de como a contagem é feita. Por intermédio de Moisés, a Lei foi entregue aos filhos de Abraão com o propósito de ajudá-los a conhecer Deus e sua santidade. Mas eles não alcançaram essa compreensão. E, durante o resto da história registrada na Bíblia, o povo escolhido de Deus sempre lutou com o fato de a Lei ser pesada demais, em razão de seus muitos mandamentos e de prescrições cerimoniais e litúrgicas bastante complicadas. No entanto, com o passar do tempo, os judeus foram se convencendo de que, se eles eram filhos de Abraão e Deus lhes outorgara a Lei, só continuariam a ser o povo de Deus se a observassem rigorosamente. Passaram, então, a acreditar que a Lei lhes fora dada como um sinal distintivo de povo de Deus. Em vez de seguirem o exemplo de seu antepassado Abraão, que vivia pela fé, preferiram basear seu relacionamento com Deus na Lei e, com a pretensão de que a poderiam cumprir ainda mais fielmente, criaram outras leis. Por exemplo: a Lei ordenava que ninguém trabalhasse no sábado, mas alguém entre os judeus decretou que, se alguém caminhasse mais de um quilômetro e meio no sábado, estaria violando o mandamento. Assim, um número imenso de detalhamentos e novas regras foi acrescentado a um código que já era impossível cumprir. Quando Jesus Cristo veio ao mundo, como o Salvador do povo de Deus, e começou a pregar a salvação pela fé no Filho do homem, que bastava que as pessoas cressem nele, muitos judeus não quiseram acreditar. Haviam se esquecido de que Abraão fora um homem de fé. Tudo o que eles agora prezavam eram a Lei e o cumprimento de regras, normas e estatutos. Os fariseus, por exemplo, a facção do judaísmo que dominava o cenário religioso da época, eram os mestres legalistas e ficaram escandalizados quando apareceu aquele rabino nazareno, um profeta que afirmava ser o Filho de Deus e que bastava crer nele para ser salvo, sem as obras da lei. “Mas, e as ordenanças que Moisés nos deu? E a circuncisão? E comer carne de porco, será mesmo que podemos? De modo algum!”, protestavam. Como podia aquele Jesus ser um profeta verdadeiro se blasfemava contra Deus e violava o sábado? Que tipo de profeta era ele se, no sétimo dia, colhia espigas de trigo, tirava os grãos e comia, mesmo sabendo que Moisés tinha ordenado que não se fizesse trabalho algum no dia de descanso? Ele também curava pessoas no sábado — outra flagrante violação da Lei. Não, definitivamente ele não era um profeta de Deus. Por isso, mataram Jesus. No entanto, a situação não ficou melhor para os fariseus depois que eles, os filhos físicos de Abraão, mataram Jesus, porque logo depois disso começou a correr a notícia de que ele havia ressuscitado dos mortos. Na verdade, a situação só piorou para eles, pois agora, no lugar de Jesus, surgiram doze apóstolos, que começaram a pregar e ensinar a mesma doutrina do Mestre. Em pouco tempo, já havia cinco mil seguidores de Cristo em Jerusalém; logo depois, dez mil, quinze mil, e o número de judeus que foram convencidos de que a salvação, desde os tempos de Abraão e Moisés, era pela fé em Jesus não parava de crescer. Mesmo assim, muitos judeus continuaram a não acreditar e, por achar que os cristãos espalhavam uma falsa doutrina, passaram a persegui-los, com o objetivo de acabar com aquela nova “seita” de uma vez por todas. Exatamente nesse cenário, apareceu um judeu mais feroz do que todos os outros, um jovem fariseu chamado Saulo, que não era de Jerusalém: ele vinha da cidade de Tarso, na Cilícia. Esse jovem decidiu incorporar todo o espírito contrário ao cristianismo daquela época, e então saiu em perseguição dos cristãos. Onde quer que os encontrasse, prendia, assediava e, provavelmente, chegou a torturar muitos deles, tendo até consentido com a morte de pelo menos um: Estêvão, o primeiro mártir da igreja. Acabar com aquela nova religião era o propósito principal de Saulo até que, certo dia, algo extraordinário aconteceu em seu caminho. Ele ia prender um grupo de seguidores de Cristo que se reunia na cidade de Damasco e, para isso, se dirigia para lá com um grupo de soldados. De repente, uma luz apareceu à sua frente, e ele caiu ao chão, atordoado. Então, uma voz que só ele ouvia lhe perguntou: “Saulo, Saulo, por que me persegues?”. Surpreendido, aquele filho de Abraão quis saber: “Quem és tu, Senhor?”. E a resposta: “Eu sou Jesus, o Nazareno, a quem persegues”. A partir daquele momento, o perseguidor voraz tornou-se o maior pregador que o cristianismo já conheceu. Ao tomarem conhecimento do que havia acontecido com o zeloso fariseu, os judeus descrentes perceberam que não estavam obtendo êxito algum, pois até os soldados que enviavam com a missão de matar os cristãos acabavam se convertendo ao cristianismo. Saulo, que passara a se chamar Paulo, estava agora levando multidões ao conhecimento do evangelho, como evangelista, pregador. Então, esses judeus voltaram-se, ainda mais raivosos, contra ele. Decidiram acabar com seu trabalho e, sempre que podiam, o castigavam. Ele foi preso várias vezes, chicoteado e ameaçado de morte. Não bastasse isso, havia os missionários judaizantes que saíam no rastro do apóstolo com a missão de convencer os cristãos por ele convertidos a seguir a Lei, como já comentamos nos capítulos anteriores. Algo que incomodava especialmente aqueles judeus era a doutrina ensinada por Paulo de que os gentios, por intermédio de Cristo, se tornavam verdadeiros filhos de Abraão. Os judeus se vangloriavam muito desse patriarca, o pai da nação judaica e amigo de Deus. Os rabinos, antigos intérpretes da Lei, chegavam a afirmar que esta fora dada a Abrão 430 anos antes de Moisés, para que Abraão a observasse. Tamanho era o orgulho daqueles judeus por se considerarem descendentes de Abraão que, quando o próprio Jesus Cristo lhes disse que precisavam se arrepender e crer, porque o reino de Deus estava chegando, eles lhe
perguntaram: “Precisamos nos arrepender de quê? Somos filhos de Abraão, descendentes diretos do amigo de Deus. Somos circuncidados e temos a Lei. Já somos filhos de Deus; ele é nosso Pai. De que precisamos nos arrepender?”. Jesus então lhes respondeu: “Até das pedras Deus pode dar filhos a Abraão. Vocês, na verdade, são filhos do Diabo, que é mentiroso e assassino, e vocês, como ele, mentem e querem me matar. Abraão nunca faria isso”. Estava assim, desde o ministério terreno de Cristo, instalado o conflito a respeito dessa questão. No texto em estudo neste capítulo, Paulo destaca três pontos da história de Abraão. Nos versículos 1 a 5, o apóstolo argumentou com os gálatas utilizando a própria experiência deles. Agora, nos versículos 6 a 9, o apóstolo apela para a experiência de Abraão, a fim de fazê-los entender que a salvação é pela fé somente, não pela observância da Lei.
Abraão foi justificado pela fé Um dos argumentos dos judeus em defesa da ideia da salvação pelas obras da lei era que Abraão, o pai da nação judaica, o amigo de Deus, tinha conhecimento da Lei. Contudo, Paulo diz no versículo 6: “Assim foi com Abraão, que creu em Deus, e isso lhe foi atribuído como justiça”. Nesse versículo, o apóstolo está se referindo ao episódio em que Deus levou Abraão à noite para um descampado, mandou que ele olhasse para o céu e lhe prometeu tantos filhos quanto as estrelas que conseguia ver. E Abraão creu na promessa de Deus, como lemos em Gênesis 15.6: “Abrão creu no S\; e o S\ atribuiu-lhe isso como justiça”. Essa frase significa que, mediante sua resposta de fé, Deus passou a considerar Abraão um homem justo. Ele passou a aceitar Abraão como uma pessoa justa e perfeita. Não que o patriarca tenha sido transformado naquele instante em uma pessoa sem pecado, mas, a partir daquele momento, Deus passou a considerá-lo salvo, perdoado, alguém aceito incondicionalmente. Foi essa, por assim dizer, a conversão de Abraão. Ali ele creu em Deus definitivamente e recebeu o perdão dos pecados; naquela noite, foi selada sua plena redenção. É isso que a Bíblia quer dizer quando afirma que a justiça de Deus foi atribuída a Abraão. A atribuição de justiça — o ser considerado justo — é a questão mais importante da Bíblia e de qualquer religião. Como nós, pecadores, que temos tantos defeitos e erramos tanto, podemos ser aceitos por um Deus perfeito, que não erra nunca? Como é possível que Deus nos receba como amigos ou, mais importante ainda, como filhos? Certamente, não é pela nossa obediência nem pela guarda dos mandamentos. Quando Deus nos atribui sua justiça e sua perfeição, ele nos imputa as mesmas qualidades que exige de nós; ou seja, ele nos faz uma exigência e nos concede aquilo que está pedindo. E como Deus faz isso? Ele faz isso em nossa vida quando cremos em suas promessas, em sua Palavra, quando, como Abraão, acreditamos que Deus abençoará todas as nações da terra por meio do descendente Jesus Cristo. Naquela noite, Abraão creu que Deus haveria de cumprir essa promessa e, por isso, Deus imputou sua justiça ao patriarca. Com esse exemplo, Paulo está argumentando: “Os judeus alegam que são filhos de Abraão, mas de que forma o patriarca foi justificado: pela Lei? Como ele foi aceito por Deus: guardando o sábado, não ingerindo carne de porco nem sangue, desviando-se dos animais mortos, oferecendo sacrifícios? Não, ele foi aceito porque creu na palavra de Deus, que lhe havia prometido uma multidão de descendentes quando ele, aos 100 anos, não tinha sequer um filho e era casado com uma mulher estéril. Mas, contra toda esperança, Abraão creu. Isso é fé!”. Não é diferente hoje, porque crer em Cristo em nossa época envolve as mesmas dificuldades que Abraão teve. Somos conclamados a crer num Cristo que não vimos, que nos é apresentado como alguém que morreu pelos nossos pecados. Mas nem presenciamos sua crucificação. Somos chamados a crer que ele ressuscitou dos mortos, mas nós não o vimos sair da sepultura. É a mesma dificuldade. Todavia, esse é o caminho da fé, a mesma fé pela qual Abraão foi aceito por Deus. Os verdadeiros filhos de Abraão
A afirmação de Paulo pressupõe um questionamento a respeito de quem seriam os verdadeiros filhos de Abraão, o verdadeiro povo de Deus. Ao que Paulo responde: “Sabei, então, que os da fé é que são filhos de Abraão” (v. 7). Os judeus, além da descendência física de Abraão, alegavam conhecer a Lei e trazer no corpo o sinal da circuncisão, por isso não tinham dúvidas de que eram o verdadeiro povo de Deus, os filhos de Abraão. Diante dessa postura, Paulo retrucou: “Não, vocês são descendentes físicos de Abraão, mas o povo de Deus não é uma raça; é um povo espiritual. A raça ou a nacionalidade não importam. Os verdadeiros filhos de Abraão são aqueles que têm fé como Abraão”. De fato, se alguém é judeu, descendente físico de Abraão, mas não tem a mesma fé do patriarca, quem a tem é mais filho de Abraão que ele. No dia do juízo, ninguém fará teste de DNA para saber se tem sangue judeu correndo nas veias. O que vai contar é se a pessoa teve a mesma fé que o patriarca Abraão. É isso que vai fazer toda a diferença. “Os da fé”, Paulo diz categoricamente, “é que são filhos de Abraão”. No meio evangélico, ainda persiste a ideia de que Deus tem dois povos: os judeus, que de alguma forma estranha e misteriosa ainda são o povo dele, e um povo criado por uma espécie de “plano de emergência”, a igreja, constituída principalmente por aqueles que não são judeus, mas apenas crentes em Jesus Cristo. Segundo essa crença, Israel ainda é a nação predileta de Deus, a descendência de Abraão, e Deus tem um plano especial para eles. No entanto, é bem difícil aceitarmos essa ideia de que Deus
tem dois povos, um terreno e outro espiritual, especialmente conhecendo a afirmação de Paulo aos gálatas: os verdadeiros filhos de Abraão são os da fé. Deus tem e sempre teve apenas um povo. Mesmo nos tempos do Antigo Testamento, nem todo judeu pertencia ao povo de Deus, mas somente os que eram judeus por dentro. A circuncisão da carne não tornava ninguém filho de Deus, mas, sim, a do coração (Jr 4.4). Filho de Deus não era quem observava a Lei externamente, mas aquele que a amava e entendia que ela falava da santidade de Deus e de sua misericórdia que um dia seria manifestada em Cristo Jesus. O judeu verdadeiro não era quem oferecia sacrifícios no altar, mas aquele que olhava para os sacrifícios e dizia: “Deus, sei que um dia enviarás o Cordeiro de Deus, que tirará o pecado do mundo, e por ele serei salvo”. Em suma, nos tempos do Antigo Testamento, as pessoas eram salvas pela fé na intervenção misericordiosa de Deus por meio do Messias que haveria de vir, não pela Lei; e hoje ainda é assim. O povo de Deus não é mais uma nação, e sim aqueles que creem como Abraão creu. Abraão é o pai dos crentes e nosso exemplo. Hebreus 11 menciona pessoas que viveram pela fé, como Abel e Enoque, o próprio Abraão e Moisés. Nós até os chamamos de “heróis da fé”, mas eles eram todos crentes como nós, só que do Antigo Testamento. Abraão já sabia da descendência espiritual
Em seguida, Paulo argumenta que a ideia da descendência espiritual não era estranha ao próprio Abraão. O apóstolo não tinha dúvidas de que Abraão já sabia que a descendência de que Deus lhe falava não era física. Veja o que diz o versículo 8: “A Escritura, prevendo que Deus iria justificar os gentios pela fé, anunciou com antecedência a boa notícia a Abraão, dizendo: Em ti serão abençoadas todas as nações”. O patriarca já havia compreendido que a bênção de Deus alcançaria povos de todas as raças, ou seja, sua descendência não estaria condicionada a uma questão étnica, uma questão meramente física. No dia em que Deus apareceu a Abraão e disse: “Sai da tua terra, do meio dos teus parentes e da casa de teu pai [...] farei de ti uma grande nação [...] e todas as famílias da terra serão abençoadas por meio de ti” (Gn 12.1-3), Deus já estava anunciando o evangelho a Abraão. E de que maneira Abraão abençoaria todos os povos? Por meio de um descendente, o Cristo de Deus, que morreria numa cruz para reunir um povo dentre todos os povos. O evangelho já estava, assim, presente na expressão “de ti”, que se refere a Cristo: “Todas as nações serão benditas por meio de ti”, ou seja, por um descendente que viria de Abraão: Jesus Cristo. Pessoas de todas as nações seriam abençoadas não necessariamente com bênçãos materiais, mas com a bênção da salvação eterna, a justiça de Deus, a mesma que foi imputada a Abraão. É também importante notar como Paulo se refere à Escritura no versículo 8: “A Escritura, prevendo [...] anunciou”. Do modo que escreve, ele equipara a Escritura ao próprio Deus falando. E de fato, por ser inspirada por Deus, o que a Bíblia fala equivale ao que o próprio Deus fala; por isso, atribuímos à Palavra de Deus plena autoridade sobre nossa vida.
Conclusão e aplicações A conclusão a respeito do que Paulo expõe especificamente sobre Abraão está no versículo 9: “Desse modo, os da fé são abençoados juntamente com Abraão, homem que creu”. Quem crê não tenta se justificar pelas obras da lei, mas mediante a fé no descendente de Abraão. E como Deus abençoou o crente Abraão? Deus o abençoou com a vida eterna, ao lhe imputar justiça e recebê-lo como seu na glória. Abençoou-o também ao fazer desse homem um exemplo de fé e de confiança nele. Deus abençoou Abraão no meio de suas muitas provações e dificuldades e em momento algum o abandonou. Deus o abençoou ao perdoar as muitas coisas erradas que ele fez, como dizer que Sara era irmã dele para ser bem recebido no Egito ou engravidar Agar, uma mulher que não era a dele, para tentar acelerar a promessa de Deus. Abraão falhou várias vezes, mas mesmo assim foi abençoado, no sentido de que Deus o perdoou. Deus não o lançou fora por conta disso, porque conhecia suas limitações. Ele o aceitou com seus pecados e falhas, porque sabia que Abraão era pecador. O fato de sermos pecadores não significa que não possamos crer nesse Deus e receber suas promessas. Os da fé são abençoados como o crente Abraão, e só isso nos bastaria. De que mais precisamos nesta vida além de sermos abençoados como Abraão foi? Ele andou com Deus, foi perdoado por Deus, conheceu Deus, teve experiências profundas com Deus, obteve o perdão de Deus e deixou uma descendência, um nome, um exemplo para glória e honra de Deus. Nós cremos como Abraão creu. Cremos em Cristo, o descendente de Abraão, e somos hoje o povo de Deus, comprado e remido pelo sangue de Jesus derramado na cruz do Calvário.
Capítulo 9
A LEI NÃO SALVA
Gálatas 3.10-14 á vimos nos capítulos anteriores que Paulo escreveu a Carta aos Gálatas para evitar que várias comunidades de cristãos abandonassem o evangelho de Jesus Cristo. Ainda hoje, é constante o perigo de igrejas ou crentes, individualmente, se afastarem da sã doutrina do evangelho. Em geral, pessoas se afastam do evangelho por motivos práticos, pessoais e doutrinários. O membro de uma igreja, ou mesmo uma igreja inteira, pode se encantar com outra doutrina, outro ensinamento, e então abandonar aquilo em que cria para seguir um falso evangelho, como era o caso das igrejas da Galácia. Em seu esforço para dissuadi-las do evangelho judaizante, Paulo argumenta:
J
Pois to dos os qu e são das obras da l ei estã o debaixo de maldição . Porque está escri to: Maldito tod o aquele que não permanece na prática de todas as coisas escritas no livro da lei. É evidente que ninguém é justificado diante de Deus pela lei, porque: O justo viverá pela fé. A lei não vem da fé, ao contrário: O que fizer estas coisas terá vida por meio delas. Cristo nos resgatou da maldição da lei, tornando-se maldição em nosso favor, pois está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado em um madeiro. Isso aconteceu para que a bênção de Abraão chegasse aos genti os em Jesus Cristo, a fim de que recebêssemos a promessa do Espírito pela fé.
Com vimos, os gálatas haviam crido em Jesus Cristo como único Senhor e Salvador por meio da pregação de Paulo. Mas os missionários judaizantes, tão logo o apóstolo partiu, vieram e passaram a ensinar que, por serem gentios, eles deveriam também se circuncidar, seguir a dieta religiosa e o calendário judaicos, além de guardar todos os preceitos da Lei de Moisés, para só então serem salvos. A carta que Paulo escreveu em resposta a essa investida dos judaizantes é uma das mais importantes da Bíblia, porque nela ele defende, como em nenhuma outra, a doutrina da salvação pela fé, sem as obras da lei ou de qualquer outra natureza. No capítulo 1, Paulo defende sua autoridade apostólica, negada pelos judaizantes. No capítulo 2, para ilustrar a incoerência de alguém querer obrigar gentios a viver como judeus, ele relata um confronto que teve com o apóstolo Pedro. Nas passagens do capítulo 3 que analisamos até aqui, Paulo usa a experiência dos próprios gálatas, e até mesmo a vida de Abraão, para demonstrar que o fiel, mesmo no Antigo Testamento e não só no Novo Testamento, sempre foi salvo pela graça, não pela Lei. Agora, em 3.10-14, o apóstolo prossegue em seu esforço para trazer os gálatas de volta à sensatez do evangelho. Contra a falsa doutrina da justificação pelas obras, Paulo apresenta outro argumento: quem se propõe viver pela Lei de Moisés para ser salvo está debaixo da maldição que a própria Lei sentencia, pois ela trazia embutida uma condenação contra quem não a cumprisse à risca. Assim, aquele que deseja viver por sua observância já está condenado por Deus, ao passo que Cristo veio nos livrar dessa maldição e condenação. No trecho que estudaremos neste capítulo, Paulo se apoia em quatro argumentos. Primeiro: a Lei põe debaixo de maldição todos os que querem se salvar por ela (v. 10). Segundo: a própria Lei ensina que quem é justo diante de Deus vive pela fé (v. 11). Terceiro: a Lei e a fé constituem dois sistemas mutuamente excludentes — não é possível adotar os dois (v. 12). Quarto: Cristo veio nos resgatar da maldição da Lei (v. 13,14).
A Lei põe todos debaixo de maldição Paulo ensina: “Pois todos os que são das obras da lei estão debaixo de maldição. Porque está escrito: Maldito todo aquele que não permanece na prática de todas as coisas escritas no livro da lei” (v. 10). Os quatro argumentos usados por Paulo no trecho que estamos estudando neste capítulo estão baseados em passagens do Antigo Testamento, o que é no mínimo interessante. No combate à doutrina dos judaizantes, o apóstolo cita a própria Lei, que põe sob maldição todos os que quiserem se salvar por meio dela. É como se Paulo estivesse respondendo diretamente a eles: “Vocês, judeus, estão querendo se colocar acima dos gentios porque eles não observam a Lei, mas ela mesma diz que a salvação é pela fé e que quem vive para obedecer-lhe os preceitos está debaixo de maldição”. A argumentação de Paulo se parece com a atitude de alguém que, durante um assalto, consegue pegar a arma do assaltante e apontá-la contra ele. O apóstolo está direcionando os argumentos daqueles falsos missionários contra eles próprios. A primeira citação que Paulo faz aqui é de Deuteronômio 27, em que está registrada uma ordem de Deus a Moisés. Ao entrar na Terra Prometida, as doze tribos deveriam se dividir em dois grupos: o primeiro grupo ficaria sobre o monte Ebal e o segundo sobre o monte Gerizim. As tribos do monte Ebal iriam proferir as maldições, que se iniciam no versículo 15: “Maldito o homem que fizer imagem esculpida ou fundida, abominação para o S\, obra da mão de artífice, e a colocar em lugar escondido. E todo o
povo dirá: Amém”. As maldições, seguidas pela confirmação do “Amém”, que significa “Assim seja”, continuam até o versículo 26: “Maldito aquele que não confirmar as palavras desta lei, para as cumprir. E todo o povo dirá: Amém”. Eis a prova de que a própria Lei já dizia que é maldito quem não a guardar por completo. Já se percebe aqui a impossibilidade de alguém se salvar pela guarda dos mandamentos, porque ninguém podia cumpri-los plenamente. Isso já estava claro no Antigo Testamento. Não havia um único israelita capaz de obedecer a todos os mandamentos da Lei de Moisés. E assim, por definição, quem quisesse se justificar por esse meio estaria se colocando debaixo de maldição. Ser amaldiçoado por não guardar a Lei significava estar sujeito a apedrejamento pela comunidade de Israel e ser lançado fora da presença de Deus depois da morte, amaldiçoado por Deus para sempre, sofrendo no inferno por toda a eternidade. Então, se algum israelita quisesse se salvar pela obediência à Lei, automaticamente estaria se enquadrando nas regras do jogo: “Para ser salvo desse modo, você terá de guardar toda a Lei. Se errar num único ponto, quebrará a Lei e estará sob maldição”. Quem poderia viver debaixo dessa regra? Quem seria capaz de cumprir esse sistema e se salvar sob tais condições? Na própria Lei, estava claro que ninguém conseguiria. Por esse motivo, Paulo diz que a Lei foi dada não para nos salvar, mas para apontar a necessidade de um Salvador, simbolizado no sistema de sacrifícios. O israelita sempre acabava tropeçando na Lei e, então, contava com o recurso expiatório do sacrifício de animais. Derramava-se o sangue do sacrifício, e o pecado era perdoado. Isso deixa claro que, mesmo no Antigo Testamento, não era a Lei que salvava, mas o sistema de sacrifícios. Era ali que o israelita encontrava misericórdia, graça, perdão e reconciliação com Deus. Portanto, o judeu que confiasse na prática da Lei para ser salvo não havia entendido o propósito dela, que era justamente mostrar a pecaminosidade do ser humano, a fim de direcioná-lo para a misericórdia de Deus, exposta e oferecida no sistema de sacrifícios do Templo. Ainda hoje há quem busque propósitos salvíficos semelhantes ao sistema de salvação pela Lei. São os que procuram se justificar diante de Deus pelo cumprimento de algum tipo de código. Há muitos que dizem: “Não frequento igreja nem sou cristão, mas não bebo, não fumo, não jogo, não mato; vou de casa para o trabalho e do trabalho para casa”. São pessoas que constroem um sistema de moralidade próprio. Mesmo rejeitando as leis da Bíblia, seguem leis construídas por elas mesmas ou adotam sistemas de outras religiões, na esperança de que a obediência a determinados princípios as justifique diante de Deus. Contudo, para detectar a incoerência desses sistemas, nem é preciso usar os Dez Mandamentos como padrão. Basta comparar os códigos que essas pessoas escolheram com o próprio comportamento delas e ficará evidente que ninguém consegue ser coerente nem com as próprias concepções de certo e errado. Todas acabam tropeçando, cedo ou tarde, contradizendo-se e praticando o que elas mesmas consideram errado. A verdade é que ninguém pode se justificar diante de Deus pela própria bondade, por sua honestidade e sinceridade ou por qualquer outra virtude pessoal. Não há nada em nós que nos faça ser aceitos por Deus, porque somos pecadores, manchados pelo pecado, incoerentes, inconsistentes, injustos. Não conseguimos cumprir plenamente nem mesmo aqueles esquemas que, muitas vezes, elaboramos para provar que somos melhores do que os outros — como se isso pudesse, de algum modo, nos justificar diante de Deus! O primeiro argumento de Paulo foi esse. A própria Lei já nos coloca debaixo de maldição: ou guardamos tudo o que ela ordena, ou estamos sujeitos à condenação, amaldiçoados por Deus, agora e por toda a eternidade. Quanto a isso, é muito importante refletir quanto seria terrível ser amaldiçoado por Deus, não só com relação às consequências neste mundo, mas, principalmente, ao sofrimento eterno que Deus reservou aos malditos. No dia do juízo, Jesus dirá aos que confiaram em esquemas legais: “Malditos, afastai-vos de mim para o fogo eterno, preparado para o Diabo e seus anjos” (Mt 25.41). Assim, os que se apoiam nas obras da lei e querem se justificar diante de Deus por esforço próprio estão sob a maldição da própria Lei, porque não podem cumpri-la plenamente.
Ninguém é justificado pela Lei O segundo argumento de Paulo encontra-se no versículo 11: “É evidente que ninguém é justificado diante de Deus pela lei, porque: O justo viverá pela fé”. Para contrastar a impossibilidade de justificação pela Lei com a salvação pela fé, o apóstolo cita Habacuque 2.4. Até é possível alguém ser “justificado” diante dos homens, porque o ser humano não tem a capacidade de sondar o coração de outro. Por exemplo, há pessoas que parecem justas aos nossos olhos: são íntegras, não mentem, são honestas, dedicadas à família, não traem o cônjuge etc. Às vezes, diante dos homens, até merecem a reputação de pessoas de caráter, pessoas de bem. Mas como poderíamos de fato justificar essas pessoas, diante de Deus, com base somente naquilo que vemos externamente? Não conhecemos o coração das pessoas, não sabemos o que se passa na mente delas nem o que fazem quando estão sozinhas, em sua vida mais íntima; por isso, não estamos qualificados para justificar ninguém. Só Deus pode nos justificar, porque ele nos conhece perfeitamente em qualquer situação. É por isso que Paulo diz: “É evidente que ninguém é justificado diante de Deus pela lei”. Não se trata de sermos justificados diante dos homens, parecermos bons ou
termos certa moralidade, mas, sim, de como somos vistos por Deus. E ele nos conhece, sabe tudo sobre nossa vida pública e privada, até nossos segredos mais íntimos. Sabe o que pensamos, sonhamos, desejamos e até aquilo que, mesmo sem termos consciência, está em nosso coração. E isso nos leva à pergunta: Como então alguém poderia se justificar diante de um Deus que conhece tudo? A própria Lei declara que ninguém poderia, e os crentes do Antigo Testamento sabiam disso, como podemos perceber na citação de Habacuque 2.4 feita por Paulo. No contexto do livro em que aparece esse versículo, o profeta Habacuque questiona Deus a respeito do modo com que ele estava agindo para punir seu povo. Por que permitiria que uma nação ímpia dominasse o povo de Israel? E Deus responde que seu povo havia pecado e, por isso, ele estava usando os babilônios para castigá-lo. Mas chegaria o tempo em que a Babilônia também seria castigada por sua impiedade. Habacuque podia confiar nisso, embora parecesse que a justiça de Deus estava demorando demais. E por que o profeta deveria aguardar com confiança? Porque o justo vive pela fé. Ele não vive pelas circunstâncias. Não vive pela realidade que o circunda, mas, sim, pela Palavra de Deus, confiando em suas promessas. Na situação vivida por Israel no período retratado por Habacuque, a nação deveria depositar sua confiança em Deus, não em seu exército. Ora, o profeta está também revelando que o justo, o homem que tem fé, viverá pela graça de Deus e pela misericórdia de Deus, não por confiança em si próprio. Assim, fica evidente que o crente do Antigo Testamento se justificava diante de Deus pela fé em suas promessas. Ao olhar para os animais sacrificados, ele confiava no que Deus dizia a respeito do sangue derramado em prol da alma do ofertante pecador; sangue que apontava para o sacrifício maior que um dia Deus ofereceria pelos pecados de seu povo. Era pela fé nessa promessa que a pessoa era considerada justa diante de Deus, era perdoada e aceita por ele. A própria Lei dizia isso: ela amaldiçoava quem era das obras da lei e dizia que a salvação seria pela fé. Sendo assim, depois da vinda de Cristo Jesus, as pessoas só poderiam ser justificadas pela fé nele. Esse é o segundo argumento de Paulo. A Lei e a fé são mutuamente excludentes
O terceiro argumento de Paulo encontra-se no versículo 12: “A lei não vem da fé, ao contrário: O que fizer estas coisas terá vida por meio delas”. Fé e Lei representam dois sistemas mutuamente excludentes — Lei aqui entendida como legalismo, a tentativa de se justificar por meio da obediência aos preceitos dela. Assim, quando Paulo diz que a Lei não vem da fé, ele está afirmando que a Lei exclui a fé e a fé exclui a Lei. O que ele expõe em seguida é uma citação de Levítico 18.5, que registra: “Guardareis os meus estatutos e as minhas normas, pelas quais o homem viverá, se obedecer a eles”. Guardar normas e estatutos tem aqui o sentido de viver pela Lei. Eram os mandamentos que regiam a vida do judeu que pretendia se justificar pelas obras lei, e nesse sistema não havia espaço para a fé. É o sistema de méritos. Se alguém optar por um esquema de justificação pelas obras, Deus vai julgá-lo unicamente pelos méritos obtidos. É um sistema semelhante ao da universidade. Para ser aprovado nas disciplinas, você precisa tirar determinadas notas nas provas, precisa apresentar o trabalho na data e alcançar certa média. Se você cumprir todos os requisitos, vai ganhar o diploma de bacharel, de mestre, de doutor etc. O sistema de méritos funciona assim. Tudo é obtido por esforço — não há espaço para a misericórdia. Uma universidade séria não dará o diploma a um aluno que tenha sido reprovado nas avaliações, por mais que a diretoria simpatize com ele. É a norma da casa, e o aluno foi informado dela desde o princípio. É a mesma coisa aqui. Se você quiser se justificar diante de Deus pelo mérito, Deus vai tratá-lo exatamente dessa forma. Não haverá espaço para a misericórdia nem para a graça. Se você tropeçar, não poderá pedir perdão a Deus, porque ele vai dizer: “Ora, não foi você que escolheu esse caminho? Você não está tentando se justificar diante de mim pelo cumprimento de normas e regulamentos? Então, vou ter de tratá-lo conforme você merece”. Num esquema como esse, será maldito aquele que não permanecer perfeitamente debaixo da Lei. Pode parecer estranho, mas o não crente costuma pensar que tem méritos diante de Deus. Antes de me tornar cristão em 1977, eu tive uma vida intensamente mergulhada no pecado. Mas, apesar de viver quebrando todos os mandamentos, lá no íntimo eu alimentava um senso de justiça própria. Achava que era melhor que todo mundo, que era uma pessoa muito boa. Isso acontece porque o pecador é cego, não percebe a situação de miséria em que se encontra. No fundo, ele acha que não é tão ruim quanto os outros, que há sempre alguém pior do que ele e que Deus, de alguma forma, vai aceitá-lo por essa razão. Ele não enxerga sua própria realidade. Só Deus consegue abrir os olhos do pecador para que ele enxergue seu verdadeiro estado e perceba que adotou um sistema cujo único resultado não é a vida, mas, sim, a perdição eterna.
Cristo nos resgatou da maldição da Lei O quarto argumento de Paulo está nos versículos 13 e 14: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, tornando-se maldição em nosso favor, pois está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado em um madeiro. Isso aconteceu para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios em Jesus Cristo, a fim de que recebêssemos a promessa do Espírito pela fé”.
Finalmente, uma boa notícia, porque até agora só tivemos notícias ruins. O apóstolo lança a obra de Cristo contra esse pano de fundo terrível e dramático que é a condenação e a maldição que a Lei traz. Paulo agora explica, nesse contexto, o que Cristo veio fazer: ele veio nos resgatar dessa maldição. O motivo é que toda a raça humana estava debaixo da Lei, quer acreditasse nela, quer não; portanto, todo ser humano era maldito, porque ninguém conseguiu cumpri-la. A própria consciência lhes dizia isso, pois a Lei de Deus está gravada até mesmo no coração daqueles que nunca ouviram falar dela ou do evangelho (Rm 2.14,15). Sendo assim, todos sabem a diferença entre o certo e o errado. Cristo veio nos libertar dessa maldição universal que foi fechada, selada e confirmada no momento em que Deus nos outorgou a Lei. E como Cristo nos livrou dessa maldição? A própria Lei de Moisés anunciava a maldição para quem fosse pendurado no madeiro: “Se um homem tiver cometido um pecado digno de morte, e for morto, e o tiveres pendurado num madeiro, seu cadáver não passará toda a noite no madeiro, mas certamente o enterrarás no mesmo dia; pois aquele que é pendurado foi amaldiçoado por Deus. Assim, não contaminarás tua terra, que o S\, teu Deus, te dá como herança” (Dt 21.22,23). Havia diversas violações da Lei de Moisés que eram punidas com a morte — a feitiçaria, por exemplo. Sendo assim, o feiticeiro condenado à morte podia ser apedrejado ou pendurado num madeiro. Os judeus preferiam o apedrejamento, mas às vezes eles penduravam o cadáver da pessoa apedrejada no alto de um mastro para que todos vissem e aquilo servisse de exemplo. A Lei, no entanto, dizia que um corpo só podia ficar pendurado durante o dia. Ao cair da noite, o cadáver tinha de ser retirado do madeiro e sepultado, a fim de não contaminar a terra. Essa era uma prescrição contra exageros na aplicação da pena. Contudo, havia outra questão envolvida nessa prescrição. A pessoa pendurada no madeiro era amaldiçoada por Deus — estava pendurada ali porque não guardara a Lei. Da mesma forma, Cristo se fez maldito pelo seu povo na hora em que foi pendurado no madeiro. A maldição da Lei, que deveria recair sobre nós, Cristo a levou sobre si quando se fez maldito de Deus ao ser crucificado na cruz do Calvário. Ali ele recebeu todo o castigo previsto nessa maldição e fez isso em nosso lugar, pois nós é que deveríamos estar pendurados na cruz. Nós é que desobedecemos à Lei. Mas fomos salvos por alguém que se fez maldito por nós. Cristo se fez maldição em nosso lugar e sofreu o castigo de nossa desobediência. Por isso, a salvação não é por obras, por merecimento, por esforço próprio: somos salvos pela fé no Crucificado, naquele que foi pendurado no madeiro. Quando Cristo se fez maldito por nós, obteve três coisas, que Paulo enumera. Primeira: ele nos resgatou. “Resgatar” significa “comprar”, “libertar alguém de alguma situação mediante um preço”. E o preço nós sabemos qual foi: seu sofrimento e morte naquele madeiro em nosso lugar. Agora estamos livres da condenação e da maldição de Deus e podemos ser abençoados por toda a eternidade, porque ele se fez maldição em nosso lugar. Segunda: “Isso aconteceu para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios em Jesus Cristo, a fim de que recebêssemos a promessa do Espírito pela fé” (v. 14). Não somos judeus, somos gentios, mas a bênção prometida ao judeu Abraão — a promessa de que Deus o abençoaria, estaria com ele e com sua descendência e faria dele um homem feliz e abençoado por toda a eternidade — pode hoje chegar a nós, brasileiros, porque um filho de Abraão, um judeu, se fez maldição em nosso lugar. Portanto, agora a bênção que Deus prometeu a Abraão também alcança, por meio do evangelho, quem não é judeu. Terceira: a dádiva do Espírito Santo, mencionado no final do versículo 14: “... a fim de que recebêssemos a promessa do Espírito pela fé”. Deus prometeu enviar seu Espírito a seu povo. Mas como Deus poderia dar o Espírito Santo aos malditos que violaram a Lei? Só depois que a maldição se cumprisse em nosso Representante! Agora ele envia o Espírito Santo ao coração de todo aquele que crê em Jesus como seu único e suficiente Salvador. Pela fé em Jesus Cristo, recebemos o Espírito Santo, que é a síntese de todas as bênçãos que Deus prometeu a nós. Tudo o que ele prometeu cumprir em nossa vida na terra se resume ao Espírito Santo, porque o Espírito nos transmite paz, iluminação, conhecimento, santificação, esperança, amor — aqueles benefícios maravilhosos que Paulo descreve no capítulo 5 da Carta aos Gálatas. Tudo de que necessitamos pode ser encontrado na pessoa do Espírito: ele representa todas as bênçãos que Deus reservou para seu povo.
Conclusão e aplicações Como já vimos, na essência, só existem dois tipos de religião no mundo, dois sistemas de salvação. Um em que as pessoas tentam se salvar pelo que são e pelo que fazem. O segundo é aquele em que as pessoas são salvas pelo que Jesus fez. Nesse último sistema, elas esperam o perdão e a misericórdia de Deus não baseadas em si mesmas, mas na misericórdia de Deus revelada lá na cruz do Calvário em Jesus Cristo. Assim, essencialmente, só há duas religiões. A pergunta é: Qual delas é a sua? Em qual delas você está? De que maneira você espera ser justificado diante de Deus. Quero concluir conclamando você a se examinar. O coração humano é tão enganoso e nossa tendência à arrogância e à pretensão de autonomia são tão grandes que passamos a confiar em nós mesmos e nem percebemos. Mas é sempre oportuno examinar nossa vida. Diversas coisas acontecem quando a pessoa está confiante em si mesma. Ela se torna arrogante, passa a criticar, a julgar os outros e se acha melhor que todo mundo. Quando deparamos com alguém que exige muito dos outros, que afirma que tudo o que fazem está errado, provavelmente estamos diante de uma pessoa que confia em si mesma, que se vê capaz de obter méritos diante de Deus. Quem realmente sabe que é pecador e reconhece que não é merecedor de nada trata os outros
com humildade, porque reconhece quem ele próprio é de fato. Já foi convencido por Deus de que tudo o que obtém é pela graça. Somente quem já compreendeu a graça trata os outros graciosamente. Quero falar também aos que estão vivendo como a pessoa retratada em Romanos 7.14-24, passagem em que Paulo descreve o que acontece com alguém que tenta se justificar diante de Deus pela Lei: Sabemos que a lei é espiritual; mas eu sou limitado pela carne, vendido como escravo do pecado. Não entendo o que faço, pois não pratico o que quero, e sim o que odeio. E, se faço o que não quero, concordo que a lei é boa. Agora, porém, não sou mais eu quem faz isso, mas o pecado que habita em mim. Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; pois o querer o bem está em mim, mas não o realizá-lo. Pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero. Portanto, se faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim. Desse modo, descubro esta lei em mim: quando quero fazer o bem, o mal está presente em mim. Porque, no que diz respeito ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo nos membros do meu corpo outra lei guerreando contra a lei da minha mente e me fazendo escravo da lei do pecado, que está nos membros do meu corpo. Desgraçado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte? Não creio que Paulo esteja descrevendo aqui a experiência de uma vida cristã normal, e sim a de alguém que pretende se justificar diante de Deus pelas obras da Lei. Mas às vezes acontece também de o cristão tentar agradar a Deus pelos próprios méritos, e então se vê nessa mesma situação. Ele fica angustiado porque percebe em seu próprio coração a impossibilidade de servir a Deus perfeitamente. Sabe o que é certo, mas não consegue pôr em prática, por isso entra em crise. Essa passagem foi escrita para descrever a situação de quem tenta agradar a Deus por esforço próprio. A boa notícia é que essa não precisa ser a sua vida. Isso não é a vida cristã normal. A vida cristã normal está descrita no capítulo 8 de Romanos, quando Paulo diz: “Agora já não há condenação alguma para os que estão em Cristo Jesus”. Cristo veio nos livrar dessa maldição. O texto de Romanos 7 descreve uma pessoa que se sente amaldiçoada. Ela quer cumprir a Lei, mas não consegue, e então se sente debaixo do castigo, sem saber o que fazer, porque está tentando da maneira errada. Não é esse o caminho. O caminho é Jesus Cristo, nossa dependência de Cristo, nossa fé em Cristo, nossa união com Cristo. “Não sou mais eu quem vive, mas é Cristo quem vive em mim”, diz o apóstolo Paulo. Que Deus nos ajude a compreender a imensidão de sua graça! Só pela fé no Crucificado, aquele que se fez maldição em nosso lugar, seremos aceitos por Deus e só assim poderemos agradá-lo nesta vida.
Capítulo 10
GRAÇA E FÉ
Gálatas 3.15-29
N
este trecho, Paulo prossegue com seus argumentos contra a justificação ou salvação pelas obras da lei, para mostrar que somos salvos pela graça e pela fé somente:
Irmãos, eu v os fala rei em termos humano s. Embora fei to por u m homem, nin guém a nul a um t estamen to já val idad o, ne m lhe acrescent a co isa alguma. Assim, as promessas foram feitas a Abraão e a seu descend ente. A Escritura não diz: E a seus descendent es, como se falasse de muitos, mas como quem se refere a um só: E a teu descendente, que é Cristo. E eu afirmo: A lei, que veio quatrocentos e trinta anos mais tarde, não anula o testamento an tes valid ado por Deus, canceland o a promessa. Pois se a herança p rovém da lei, já não p rovém mais da promessa. Mas foi pel a promessa que Deus a conc edeu grat uit amente a Abraã o. Entã o, para que serve a lei ? Ela foi acrescent ada por causa das transgressões, até que viesse o descende nte a quem a promessa havia sido feita, e foi ordenada p or meio de a njos, pela mão de um mediador. Entretan to, o mediad or n ão represent a a pena s um, mas Deus é um só. Entã o, será a l ei cont rária às promessas de Deus? De modo nenh um. Pois, se tiv esse sid o da da u ma lei que pud esse co nced er vi da, a justiça , na v erdade, seri a pe la lei. Mas a Escrit ura c olo cou tud o de bai xo d o peca do, p ara q ue a promessa fosse dada aos que creem pela fé em Jesus Cristo. Mas, antes que viesse a fé, éramos mantidos debaixo da lei, nela con finados para a fé que haveria de ser revelada. Desse modo, a lei se tornou nosso gui a para nos con duzir a Cristo, a fim de que pela fé fôssemos just ifica dos. Mas, tend o cheg ado a fé, já não esta mos su jeitos a esse gui a. P ois tod os sois filho s d e Deus p ela fé em Cristo Jesus. Porque t odo s vós q ue e m Cristo fostes b ati zados vos revest istes de C risto . Não há jud eu n em grego, nã o há escravo nem li vre, não h á h omem nem mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus. E, se sois de Cristo, então sois descendência de Abraão e herdeiros conforme a promessa.
Depois de combater a doutrina judaizante apelando para a própria experiência dos gálatas, Paulo narra a experiência de Abraão, o amigo de Deus, considerado o pai da nação judaica. Como foi que Abraão foi salvo? Como é que ele teve seus pecados perdoados? Não foi pela guarda da Lei, mas, sim, pela promessa de Deus. O “pai da fé” foi salvo pela graça de Deus. Paulo trata disso em 3.6-9. Prosseguindo, nos versículos 10 a 29, ele apresenta uma série de argumentos contra a justificação ou salvação pelas obras da lei. O primeiro deles é o de que viver pela Lei nos coloca debaixo da maldição, mas Cristo veio nos libertar dela, tendo sido feito maldição em nosso lugar ao ser crucificado (v. 10-14).
Os dois esquemas de salvação Paulo continua sua argumentação para mostrar que somos salvos pela graça, pela fé, sem as obras da lei (v. 15-29). Essa passagem não é muito fácil de interpretar, por ser bastante argumentativa. Basicamente, nela é feita uma comparação entre os dois sistemas, ou esquemas, de salvação. O primeiro, que Paulo chama de aliança, foi dado a Abraão e é baseado na promessa que Deus fez ao patriarca quando o tirou da cidade de Ur dos caldeus. Deus prometeu lhe dar uma terra e um descendente (ou descendência) por meio do qual seriam benditas todas as nações da terra. Essas promessas foram feitas quando Abraão ainda era um pagão, um caldeu idólatra (Js 24.2,3). Deus soberanamente o chamou e lhe fez a promessa do evangelho, a promessa de que de sua descendência viria a salvação para todas as nações. Com isso, Deus também estava prometendo que essa descendência seria herdeira de todas as promessas, e diante disso Abraão creu em Deus. Nesse primeiro esquema, temos então conceitos como promessa, herança e aliança, e a resposta de fé dada por Abraão. Quatrocentos e trinta anos depois da promessa, da aliança feita com Abraão, Deus se revelou aos israelitas e lhes outorgou a Lei — os Dez Mandamentos e várias outras leis concernentes ao comportamento individual, ao relacionamento entre a pessoa e Deus, às relações sociais da nação de Israel, que chamamos de leis civis, e leis referentes ao culto, conhecidas como leis cerimoniais. Todavia, os israelitas não compreenderam que a Lei, recebida depois da promessa, era, na verdade, um acréscimo à aliança já estabelecida com Abraão. Acharam que se tratava de uma nova aliança, uma nova dispensação, um novo esquema, como se Deus estivesse agora dizendo que, para que eles fossem salvos, tinham de guardar a Lei, e a salvação não seria mais pela fé, necessariamente, mas, sim, pela obediência absoluta a todos os mandamentos. (Como se alguém pudesse guardar aquela quantidade gigantesca de ordenanças transmitida no monte Sinai!) Desse modo, nessa religião dos israelitas que não compreenderam a promessa de salvação pela fé, vemos o segundo esquema de salvação. Quando Cristo veio ao mundo, encontrou ainda a incompreensão de muitos judeus que, por não entenderem a promessa nem a aliança feita com Abraão, rejeitaram e crucificaram Jesus. E agora, quando Paulo estava pregando o evangelho a todas as nações, novamente apareceram judeus que negavam a graça e ignoravam a promessa, insistindo outra vez na necessidade de guardar a Lei de Moisés para ser salvo.
Os dois esquemas de salvação nas religiões mundiais
Embora haja muitas religiões no mundo, essencialmente existem apenas duas. Uma delas ensina que a salvação é resultado de esforço humano; é a salvação de baixo para cima, a religião dos méritos. Encaixam-se nessa categoria o catolicismo romano, algumas igrejas evangélicas e as chamadas seitas mesmo — como a organização Testemunhas de Jeová, o mormonismo, os setores do adventismo que insistem na guarda do sábado como necessária à salvação — e as grandes religiões mundiais: o islamismo, o hinduísmo e o budismo. O que todas elas têm em comum? No fundo, a mensagem de que o homem é o salvador de si mesmo: ele se salva fazendo alguma coisa. A outra religião, oposta às das obras, é a religião da graça e da misericórdia. Ela ensina exatamente o contrário: a salvação não pode vir do homem; ela vem de cima para baixo. Deus é quem salva, do começo ao fim. É ele que intervém e sai em busca do pecador, porque o ser humano não tem condição por si mesmo de cumprir de modo perfeito nenhum código religioso ou moral, ainda que estabelecido pelo próprio Deus. Portanto, nenhum homem conseguirá ser perfeito ou alcançar um nível de obediência que o torne aceitável diante da divindade. Paulo argumenta, na passagem que estamos estudando, justamente contra a compreensão errada dos judeus de que a salvação poderia ser obtida pela Lei. Em outras palavras, ele combate o conceito de que podemos ser salvos pelo cumprimento meritório da Lei de Deus ou qualquer outro sistema de leis e normas.
A promessa de Deus a Abraão Paulo faz então um contraste entre a promessa feita a Abraão e a Lei. Nesse trecho (v. 15-18), o apóstolo faz referência a um costume romano segundo o qual os acordos, uma vez ratificados, não podiam ser alterados. Por isso, ele diz: “Irmãos, eu vos falarei em termos humanos” (v. 15). Com essa declaração, ele antecipa aos leitores que apresentará uma ilustração do cotidiano para esclarecer o valor imutável da promessa de Deus a Abraão: “Embora feito por um homem, ninguém anula um testamento já validado, nem lhe acrescenta coisa alguma”. Era o que ditava o direito romano da época. Se um acordo estivesse feito e selado, ele não poderia ser revogado, a não ser que ambas as partes concordassem. Ainda hoje, os chamados acordos, os contratos e os convênios, depois de assinados e ratificados, não podem sofrer modificações. O que foi combinado terá de ser cumprido. Com essa ilustração, Paulo está argumentando: “Se é assim até mesmo entre os homens pecadores, imagine numa aliança que foi feita com o próprio Deus!”. O descendente prometido
No versículo 16, ele comenta que as promessas de Deus a Abraão, incluídas na aliança, não foram feitas aos descendentes de Abraão, no plural, o que as estenderia a cada judeu de todas as épocas. O apóstolo afirma, em vez disso, que as promessas foram feitas ao descendente do patriarca. O argumento que Paulo utiliza aqui, típico dos rabinos da época, está baseado no fato de que a palavra “descendente” que aparece na Septuaginta, em Gênesis 12.7, na promessa feita a Abraão, está no singular, não no plural. Paulo tem sido muito criticado porque, segundo alguns estudiosos liberais, o apóstolo teria “forçado” uma interpretação desse termo bíblico, que em versões hebraicas aparece no plural. Contudo, Paulo não está usando as Escrituras hebraicas aqui, e sim a versão grega do Antigo Testamento, a Septuaginta, que de fato traz a palavra “descendente”, de Gênesis 12.7, no singular. Aparentemente, para Paulo, a Septuaginta teria interpretado corretamente o sentido do texto hebraico. Assim, o apóstolo emprega esse ponto para argumentar que Deus já estava assim antecipando que a promessa se consolidaria num descendente de Abraão. Portanto, ela não se estenderia a todos os descendentes do patriarca, mas apenas aos que estivessem ligados a esse descendente. Abraão já sabia que Deus cumpriria sua promessa por meio desse descendente, identificado como Cristo por Paulo no final do versículo. Com isso, Paulo está querendo dizer que as promessas feitas por Deus não se cumprem nos descendentes carnais de Abraão, mas, sim, em sua descendência espiritual, os que têm fé em Cristo, o descendente. Já no ato da promessa, essa distinção estava sendo feita. Como consequência, o fato de alguém ser judeu de nascimento não significa estar automaticamente incluído na promessa de Deus, que diz respeito somente aos que creem no descendente anunciado, Jesus Cristo, tanto judeus quanto gentios. O apóstolo, com isso, já começa a introduzir uma “cunha” na teologia judaizante. Ele estabelece uma separação dentro do povo judeu, ao afirmar que não são todos desse povo que desfrutariam a promessa, mas somente os que receberam, ou ainda receberiam, pela fé, Jesus Cristo. A promessa ratificada
No versículo 17, é retomado o assunto da irrevogabilidade do pacto: “A lei, que veio quatrocentos e trinta anos mais tarde, não anula [ou revoga] o testamento antes validado por Deus, cancelando a promessa”. Paulo afirma que a aliança feita com Abraão é de natureza espiritual, baseada no descendente e ratificada por Deus. Isso significa que ela não podia ser alterada. A Lei veio muitos anos depois e não tinha poder para revogar a promessa. Não foi outorgada como um novo sistema de salvação, como se
Deus tivesse mudado de ideia ali no monte Sinai e revogado a disposição de que o ser humano fosse salvo pela fé no “descendente”. Paulo afirma que isso não aconteceu. Deus não introduziu uma nova aliança, uma nova dispensação, em que a obediência à Lei é que faria que as pessoas fossem salvas. A Lei que veio depois, portanto, não anula a promessa, não revoga o sistema que Deus já havia estabelecido com Abraão, baseado na promessa e na fé. A Lei foi dada por outro motivo, que Paulo explicará em seguida. Antes disso, ele ainda argumenta: “Pois se a herança [as bênçãos que Deus prometeu aos herdeiros espirituais de Abraão] provém da lei, já não provém mais da promessa. Mas foi pela promessa que Deus a concedeu gratuitamente a Abraão” (v. 18). Se para receber a herança que Deus prometeu a Abraão, ou seja, para ser salvo, fosse preciso guardar a Lei, então a promessa estaria anulada, e tudo que Deus prometeu a Abraão não teria mais valor algum. O esquema anterior estaria anulado, porque um excluiria o outro. Portanto, com base nesse raciocínio apresentado por Paulo, fica muito claro que a Lei não representa um novo sistema de salvação, não é uma nova maneira proposta por Deus para salvar o ser humano. A salvação sempre foi e será pela graça e pela fé. Como já dissemos, é um grande equívoco pensar que a salvação no Antigo Testamento era pela Lei e no Novo Testamento é pela fé. A salvação nunca foi pela Lei, mas, sim, pela promessa, pela fé. A Lei não revogou o pacto firmado entre Deus e Abraão, nem anulou a cláusula que previa a vinda do Salvador, em quem todas as nações do mundo seriam abençoadas. Então, com que propósito a Lei foi outorgada? Qual foi a razão de toda aquela pompa no monte Sinai? Qual é o papel dos Dez Mandamentos? Qual foi o objetivo de toda aquela legislação e dos sacrifícios? Paulo responde a essas questões nos versículos seguintes.
O verdadeiro propósito da Lei Paulo inicia o versículo 19 com uma pergunta que surge naturalmente de tudo o que ele havia argumentado: “Então, para que serve a lei?”. E ele mesmo responde: “Ela foi acrescentada por causa das transgressões, até que viesse o descendente a quem a promessa havia sido feita”. Desse modo, o apóstolo afirma que a Lei foi dada, foi “acrescentada”, para caracterizar as transgressões. E o que significa isso? Significa que o objetivo dela foi reforçar claramente a ideia da necessidade do “descendente”, o Salvador, porque quando a Lei diz “Não faça isto, não faça aquilo” ou “Faça isto, faça aquilo”, a transgressão é evidenciada. Sem a Lei, fica difícil dizer onde está o pecado, pois o pecado (ou transgressão) é definido como a quebra da Lei de Deus. Por que roubar é pecado? Porque uma lei diz: “Não furtarás”. Por que mentir é pecado? Porque um dos mandamentos diz: “Não dirás falso testemunho”. Por que a inveja é pecado? Porque o décimo mandamento diz: “Não cobiçarás a casa do teu próximo”. A Lei foi dada, portanto, para evidenciar e caracterizar ainda mais o pecado, a fim de que as pessoas vissem mais claramente por que elas precisam do descendente de Abraão que viria. Em razão de suas transgressões constantes, elas poderiam perceber que necessitavam totalmente de um Salvador. A Lei tinha, assim, um objetivo didático. Observe que ela foi “acrescentada” apenas para evidenciar a transgressão, não para salvar. Veio para diagnosticar a doença do pecado, não para servir de remédio. Vamos a um exemplo. Certo dia, um de meus filhos estava sentindo dores no peito; então, o levamos ao hospital. O médico que o atendeu solicitou uma radiografia, e, por meio dela, descobrimos que meu filho tinha um pequeno problema no pulmão. Com isso soubemos o que estava causando aquelas dores, e ele pôde receber o tratamento adequado. Mas imagine se o médico dissesse após o diagnóstico: “Ferva esta chapa da radiografia na água e faça um chá com ela. Então, é só beber que o paciente ficará curado”. Seria uma grande tolice uma prescrição como essa, não é? Pois era exatamente o que os judeus estavam fazendo. A Lei funciona como uma espécie de radiografia da alma, que oferece uma imagem clara de nosso coração ao apontar em que estamos errando, quais são exatamente os nossos pecados. Usar a Lei como solução para esses pecados é a mesma coisa que tomar um chá da radiografia que detectou o problema no pulmão. A Lei não foi dada para curar nem para salvar; foi acrescentada para mostrar que o ser humano está doente, que é um pecador e precisa da cura que só Deus pode proporcionar. Paulo prossegue e afirma que a Lei deveria vigorar “até que viesse o descendente a quem a promessa havia sido feita”. Portanto, ela foi provisória, planejada para vigorar no esquema de salvação até a vinda do prometido descendente de Abraão. E agora que esse descendente já veio, o qual é Jesus Cristo, a Lei não está mais em vigor. Portanto, seria um completo absurdo nos submetermos a ela como caminho de salvação, porque, além de não ter sido dada para isso, a Lei vigorou apenas por um tempo, até a vinda de Cristo. A Lei é inferior à promessa de Deus
Paulo discorre a seguir sobre a inferioridade da Lei quando comparada com a promessa: “... e [a Lei] foi ordenada por meio de anjos, pela mão de um mediador. Entretanto, o mediador não representa apenas um, mas Deus é um só” (v. 19,20). O apóstolo lembra a seus leitores que a Lei foi promulgada por meio de anjos. Deuteronômio 33.2 de fato registra que Deus, ao outorgar a Lei no monte Sinai, estava acompanhado de um grande número de anjos. Paulo vê nisso uma indicação de que as tábuas da lei escritas por Deus chegaram até Moisés “por meio de anjos”. Isso faz que a Lei seja inferior, por ter sido ordenada desse modo. Não é que os anjos sejam inferiores a nós, mas eles são apenas criaturas, não o próprio Deus. Além disso, o texto
diz que a Lei foi entregue ao povo “pela mão de um mediador”, que era Moisés. No versículo seguinte, ele observa que “o mediador não representa apenas um”, ou seja, ele faz a intermediação entre, no mínimo, duas pessoas. Paulo então conclui que, se a Lei foi dada por anjos e precisou ainda de um mediador entre Deus e o seu povo, ela é inferior às promessas de Deus, porque, ao fazê-las, Deus apareceu pessoalmente a Abraão. Ele não estava acompanhado de anjos nem houve algum mediador. Deus falou diretamente com Abraão. Fica assim evidente, quando se compara a maneira em que ambas foram dadas, que a Lei é inferior às promessas. Além disso, como já foi dito, ela era provisória, pois não tinha o objetivo de salvar ninguém, mas apenas de evidenciar o pecado. É como se Paulo estivesse dizendo aos gálatas: “Por que então vocês querem se circuncidar? Por que querem guardar o calendário judaico? Tudo aquilo era provisório, tinha um propósito que já se cumpriu. Tudo que havia na Lei eram figuras, tipos que apontavam para o que estava por vir”. De igual modo, só podemos classificar como tolice a atitude de certos grupos cristãos de hoje, que querem retroceder aos tempos judaicos sob o pretexto de espiritualidade ou qualquer outra coisa. Estão querendo restaurar uma fase na história da salvação que já passou e foi absorvida por algo superior: o ministério glorioso do evangelho da graça. A Lei não é contrária às promessas
A carta prossegue antecipando mais uma questão que poderia ser levantada diante do que Paulo escrevera até ali e, logo na sequência, expõe sua resposta: “Então, será a lei contrária às promessas de Deus? De modo nenhum. Pois, se tivesse sido dada uma lei que pudesse conceder vida, a justiça, na verdade, seria pela lei. Mas a Escritura colocou tudo debaixo do pecado, para que a promessa fosse dada aos que creem pela fé em Jesus Cristo” (v. 21,22). A Lei não se opunha às promessas de Deus, pois tinha um propósito complementar dentro do esquema de salvação. Se o homem não tivesse pecado, a salvação seria, de fato, por mérito, como havia sido proposto no jardim do Éden. Ali, Deus fez um pacto com Adão, conhecido como o “pacto das obras”. Se Adão obedecesse, teria vida. Se desobedecesse, morreria. Assim, Adão e Eva eram os únicos que poderiam ter sido salvos pela Lei. Mas depois da Queda todos nos tornamos pecadores, por isso a Lei não pode mais nos salvar: “Se tivesse sido dada uma lei que pudesse conceder vida, a justiça, na verdade, seria pela lei”. Caso fosse possível, a salvação seria pela Lei. Mas não era mais o caso. Então, o apóstolo declara que “a Escritura colocou tudo debaixo do pecado” (v. 22). O verbo traduzido aqui por “colocar” tem no texto original grego o sentido de “encerrar” ou “fechar”. Esse verbo era usado, por exemplo, quando os pescadores lançavam a rede ao mar. Eles tinham de fechá-la de tal modo que os peixes não fugissem. Assim, os pescadores encerravam os peixes dentro da rede, sem possibilidade de escape. É o mesmo termo que Paulo utiliza nessa passagem. A Leiencerrou toda a humanidade sob o pecado. Num sentido mais moderno, significa manter alguma coisa fechada hermeticamente, de forma estanque, como algo que foi posto numa lata e vedado com tampa. O pecado é essa tampa colocada pela Lei: todos estão encerrados debaixo dele, sem escapatória. Nesse mesmo versículo, Paulo utiliza o termo grego panta, que é neutro, para dizer que “tudo” está encerrado sob o pecado, pois não há exceção. Você e eu estamos debaixo do pecado, por causa da Lei, que ninguém consegue cumprir. A Lei foi dada para isso. Estamos todos irremediavelmente encerrados no pecado, como prisioneiros lançados numa masmorra de onde não se pode fugir. No final do versículo 22, o apóstolo conclui que tudo foi encerrado sob o pecado “para que a promessa fosse dada aos que creem pela fé em Jesus Cristo”. Se estamos encerrados debaixo do pecado pela Lei, não podemos ser salvos por mérito, porque somos pecadores condenados, peixes apanhados na rede do próprio pecado. Somente pela fé no descendente de Abraão, o Filho de Deus, é que somos perdoados e recebidos por Deus. A Lei, portanto, não é contrária à promessa; na verdade, ajuda a cumprila. A Lei conduz a Cristo
Por fim, a Lei serviu também para nos conduzir a Cristo. É o que Paulo explica: “Mas, antes que viesse a fé [antes da vinda de Cristo], éramos mantidos debaixo da lei, nela confinados para a fé que haveria de ser revelada. Desse modo, a lei se tornou nosso guia para nos conduzir a Cristo, a fim de que pela fé fôssemos justificados” (v. 23,24). O “guia”, nessa passagem, é a tradução da palavra que origina “pedagogo” em português, o substantivo grego paidagōgos. Essa palavra, por sua vez, tem em sua raiz o substantivo pais, que significa “criança”, e o verbo ago, que significa “conduzir”. Portanto, um pedagogo é, literalmente, alguém que conduz uma criança; daí a ideia de mestre e educador. Na época de Paulo, o “pedagogo” geralmente era um escravo instruído, uma pessoa de muita cultura que ficava encarregada da educação dos filhos de seu senhor. O pedagogo detinha a tutela da criança até que ela alcançasse a maioridade e pudesse caminhar por si mesma. Paulo está dizendo que a Lei tinha exatamente essa função. Ela serviu para nos educar a respeito de nós mesmos, para que pudéssemos chegar à consciência plena da necessidade de nosso Senhor Jesus Cristo e, desse modo, atingíssemos a maioridade nele. Mais
uma vez, é confirmada a função provisória da Lei, porque ao chegarmos à maioridade — à fé em Cristo — não precisamos mais do pedagogo, desse guia.
Os herdeiros da promessa O apóstolo Paulo apresenta, como conclusão de tudo o que desenvolveu nos versículos anteriores, três aspectos da situação atual do crente diante da Lei (v. 25-29). Em primeiro lugar, não estamos mais subordinados ao pedagogo: “Tendo chegado a fé, já não estamos sujeitos a esse guia” (v. 25). A Lei, que na condição de pedagogo nos mantinha encerrados sob o pecado, não exerce mais autoridade sobre nós, porque fomos libertados, emancipados, com a vinda de Cristo. A fé chegou, portanto a Lei perdeu seu efeito condenatório sobre nós. Já não há condenação para quem tem fé em Cristo Jesus. Em segundo lugar, agora somos filhos de Deus: “Pois todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus” (v. 26). Os judeus pensavam que eram filhos de Deus por serem descendentes de Abraão. Mas Paulo diz que agora, mediante a fé em Cristo Jesus, tanto o judeu quanto o gentio se tornaram filhos de Deus. Contudo, se somos todos pecadores, segundo o que a própria Lei nos ensinou, como Deus pode nos ter por filhos? É que agora temos fé no Filho de Deus, o descendente de Abraão que se tornou maldição na cruz. Ele levou nossos pecados sobre si, por isso também podemos ser filhos de Deus. Logo depois, Paulo informa que o batismo é o símbolo dessa nova condição: “Todos vós que em Cristo fostes batizados vos revestistes de Cristo” (v. 27). O batismo não salva: ele é o testemunho público de que nos tornamos filhos de Deus, mediante a fé em Cristo Jesus. Paulo, então, declara: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (v. 28). A fé nos nivela. Num sistema de obras, ou de mérito, há sempre uma gradação entre os “melhores” e os “piores”: os que cumprem mais, os que cumprem menos e os que não cumprem nada. O sistema de mérito faz naturalmente distinção entre as pessoas. No entanto, com a salvação pela fé, Deus nivelou tudo por baixo. Agora não há homem, mulher, sábio, ignorante, rico, pobre, branco, negro, amarelo ou qualquer outra forma de diferenciação. A igreja é o único lugar no mundo em que não há distinção real entre as pessoas, porque somos todos um em Jesus Cristo. Externamente, as diferenças permanecem: há homem e mulher, ricos e pobres, brancos, negros, amarelos etc. Todavia, mesmo com toda essa variedade, espiritualmente somos um em Cristo Jesus, porque todos somos salvos da mesma forma, mediante a fé no descendente de Abraão, o Filho de Deus. E é dessa forma que também nos tornamos filhos de Deus. Na igreja não há, portanto, lugar para arrogância, para alguém se achar melhor que o outro, porque no fim somos todos pecadores salvos pela graça de Deus. Em terceiro lugar, somos hoje herdeiros legítimos da promessa: “E, se sois de Cristo, então sois descendência de Abraão e herdeiros conforme a promessa” (v. 29). Paulo estava respondendo com essa afirmação à pergunta que naturalmente seria feita: “Quem então seriam os verdadeiros filhos de Abraão, seus descendentes e herdeiros legítimos? Seriam os judeus?”. “Não”, respondeu Paulo, “os verdadeiros descendentes de Abraão, o verdadeiro Israel, o Israel de Deus, são os que creram no descendente de Abraão, o Filho de Deus, e o receberam pela fé como seu único e suficiente Salvador”. Pensando nisso, a perplexidade que o apóstolo demonstrou diante do comportamento dos gálatas era natural: “Por que vocês estão querendo se circuncidar, observar regras alimentares e seguir o calendário judaico? Tudo isso era provisório. Vocês são filhos de Deus pela fé em Jesus. São os verdadeiros filhos de Abraão. A salvação é pela promessa, pela aliança que Deus fez mediante a fé do patriarca. Não voltem aos rudimentos primitivos! Vivam como filhos de Deus neste mundo!”.
Conclusão e aplicações Qual seria então a importância para a igreja de hoje da argumentação enfática de Paulo a respeito da transitoriedade e inferioridade da Lei perante a promessa de Deus a Abraão? De fato, a discussão parece, à primeira vista, pouco relevante para nós, porque a realidade em que vivemos é outra, e o evangelho ensinado por Paulo prevaleceu, o evangelho da graça, pela fé em Cristo Jesus. Contudo, existe no Brasil, ainda que em pequeno número, um movimento que se esforça para transformar os cristãos em judeus pela circuncisão, que insiste no cumprimento exato daquela dieta religiosa e na observância rigorosa do calendário judaico. Há também certos grupos que são entusiastas das instituições judaicas e adotam algumas delas. Na minha avaliação, isso constitui uma ameaça séria à igreja evangélica no Brasil, pois o esquema de méritos certamente está presente na teologia desses grupos. Trata-se de um esquema de salvação baseado na Lei, ou no mérito pessoal, em que o cristão pode merecê-la se for bom o suficiente, se conseguir cumprir uma quantidade satisfatória de regras e mandamentos. É uma ideia que lentamente vem sendo impregnada na mentalidade de muitos evangélicos brasileiros. Desse modo, a mensagem de que a salvação é pela graça, pela soberana misericórdia de Deus, às vezes é apagada por falta de ênfase ou por não ter sido pregada com a clareza necessária. Por isso, a Carta aos Gálatas é ainda muito importante para nós, mesmo que o contexto em que vivemos seja outro.
Quero concluir dizendo que o evangelho, definitivamente, não é para gente boa, para justos, mas, sim, para pecadores que reconhecem que não podem salvar a si mesmos. Cristo veio ao mundo para salvar pecadores. O descendente de Abraão, o Filho de Deus, Jesus Cristo, tem poder suficiente para salvar o mais vil pecador. A salvação é unicamente pela graça de Deus, não pelo mérito humano.
Capítulo 11
A SUPERIORIDADE DO EVANGELHO
Gálatas 4.1-20 qui, nesta passagem, o apóstolo Paulo continua a demonstrar que a justificação de judeus e gentios diante de Deus só se dá mediante a fé em Jesus Cristo, não por obras da lei ou méritos pessoais. Ele apresenta cinco comparações entre a graça e as obras, entre os efeitos do evangelho e os efeitos do legalismo, com o intuito de provar aos gálatas a superioridade do evangelho. Neste capítulo, veremos os quatro primeiros contrastes apresentados no texto bíblico a seguir:
A
Contudo , afirmo que du rante tod o o tempo em que o h erdeiro é menor de ida de, ele em nada é di ferente de um escravo, mesmo sendo o dono de tudo. Mas está sujeito a tutores e administradores até o tempo determinado pelo pai. Assim também nós, quando éramos menores, estávamos debaixo da escravidão aos princípios elementares do mundo. Vindo, porém, a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido debaixo da lei, para resgatar os que estavam debaixo da lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos. E, porque sois filhos, Deus envi ou ao no sso cora ção o Espírito d e seu Filh o, que clama: Ab a, Pai. Po rtanto, tu não és mai s escravo, mas filho; e, se és fil ho, és também herdeiro por obra de Deus. No passado, quando não conhecíeis a Deus, costumáveis servir aos que por natureza não são deuses; agora, porém, que já conheceis a Deus, ou melhor, sendo conhecidos por ele, como podeis voltar para esses princípios elementares fracos e pobres, aos quai s de novo quereis servir? Guardais dias, meses, tempos e anos. Temo que eu tal vez tenh a traba lhado inut ilment e para convosco. Irmãos, peço-vos que vos torneis como eu, porque eu também me tornei como vós. Nenhum mal me fizestes; e sabeis que foi por causa de uma enfermidade física que vos anu nciei o evangelho pela primeira vez. E não desprezastes nem rejeitastes aquilo que no meu corpo era uma provação para vó s; pelo contrário , me recebestes como se eu fosse um anjo de Deus, como o próprio Cristo Jesus. Onde está aque la vossa alegria? Porque eu mesmo sou testemunha de que, se fosse possível, teríeis arrancado os próprios olho s para dá-los a mim. Será que me tornei vosso i nimigo por vos falar a ve rdade? Aqu eles que mostram interesse pessoal po r vós não agem com boas in tenções, mas, sim, para vos excluir, para que mostreis interesse pessoal por eles. É bom ser sempre objeto de interesse pessoal, e não só qu ando e stou presente convosco. Meus filh os, por que m sofro de no vo dores de parto, até que Cri sto seja formado e m vós, bem que eu go staria de ag ora esta r presente convosco e mudar o tom da minha vo z. Pois estou perplexo a vosso respeito.
Até agora, em nossos estudos na carta, vimos como Paulo defende sua autoridade apostólica contra os falsos mestres, que procuravam diminuí-la para assumir a liderança das igrejas da Galácia (Gl 1—2). Vimos também como o apóstolo defende e expõe que a justificação, tanto de judeus como de gentios, se dá mediante a fé em Jesus Cristo, sem as obras da lei. Em primeiro lugar, ele lembra aos gálatas como eles vieram a crer. Em seguida, expõe as Escrituras do Antigo Testamento demonstrando que Abraão foi justificado pela fé, não por suas obras, algo que é ensinado na própria Lei de Moisés, a qual veio séculos depois de Abraão. Depois, no capítulo 3 da carta, ele explica por que a Lei foi dada a Israel. Então, no capítulo 4, Paulo continua sua defesa, apresentando cinco contrastes que evidenciam a superioridade da justiça da fé sobre a justiça da Lei. Ele contrasta nossa condição anterior de escravos debaixo da Lei com nossa condição atual de filhos de Deus pela fé (4.1-7); nossa antiga vida pagã e nossa vida como cristãos (4.8-11); o início do relacionamento dos gálatas com ele, Paulo, e o estado de desgaste em que esse relacionamento se encontrava naquela ocasião (4.12-17); a atitude dos falsos mestres e sua própria atitude para com os gálatas (4.17-20); e finalmente estabelece um contraste entre Sara, que representava a salvação pela fé, e Agar, a escrava que representava a salvação pelas obras (4.21-31). Este último contraste, porém, merece um estudo exclusivo e será tratado no próximo capítulo. Vejamos, pois, os quatro primeiros contrastes.
Escravo e filho O primeiro contraste feito por Paulo é entre a condição de escravo e a de filho (4.1-7). Nos versículos anteriores, Paulo havia dito que aqueles que creram em Cristo e se batizaram em seu nome eram os verdadeiros descendentes de Abraão e herdeiros de Deus segundo a promessa (3.26-29). Isso introduz o primeiro contraste que ele faz no capítulo 4: “Contudo, afirmo...”. Em resumo, antes de Cristo chegar, éramos como herdeiros tutelados, uma condição bem similar à de escravidão (4.1-3). Na sociedade romana, havia as figuras dos tutores e administradores, que eram uma espécie de professores e guardiães, contratados e estabelecidos pelo pai da família para instruir e educar o filho herdeiro. Esses tutores e administradores tinham completa autoridade sobre o herdeiro, o qual somente assumiria sua herança e sua independência quando se tornasse maior de idade. Nesse sentido, mesmo que o herdeiro fosse senhor de tudo que pertencia a seu pai, ele não era muito diferente de um dos escravos da casa, pois não tinha poder para dispor de seus bens e tomar suas próprias decisões. Vivia debaixo das regras e normas dos tutores e administradores, por determinação de seu pai. Aquela situação haveria de perdurar “até o tempo determinado pelo pai” (4.2). Até lá, por assim dizer, ele era como um dos escravos que o serviam.
Paulo então compara a situação dos judeus e dos gentios antes de Cristo à situação desse herdeiro menor. Era a época da “minoridade” da humanidade, em que ela estava “debaixo da escravidão” (4.3). Era um tempo de servidão, em que estávamos tutelados, por assim dizer, e escravizados por aquilo que Paulo chama de “os princípios elementares do mundo”. Tem havido considerável debate acerca dessa expressão e do que Paulo quis dizer com ela. Originalmente seu significado remete aos rudimentos de alguma coisa, aquilo que é mais básico num sistema de pensamento. É provável que Paulo esteja se referindo aos princípios elementares que os gálatas seguiam antes de conhecerem Cristo mediante o evangelho. No caso dos judeus, seriam as obras prescritas pela Lei de Moisés. No caso dos gentios, as suas religiões pagãs, com seus ritos e práticas ocultas. Aqui é preciso lembrar mais uma vez que Paulo não está combatendo a religião que Deus revelou a Moisés nas Escrituras do Antigo Testamento. Embora dada sob o regime da Lei, aquela era uma religião da graça, que oferecia salvação mediante a fé no Messias que haveria de vir, o qual estava prefigurado no sistema levítico de sacrifícios. O que Paulo está combatendo é o legalismo, uma compreensão e aplicação erradas da Lei de Moisés, como se ela pudesse ser plenamente cumprida e assim salvar dos pecados. Era esse sistema que pregavam os falsos mestres na Galácia. O “porém” de Paulo no início de 4.4 sinaliza a grande mudança trazida por Deus. Ele enviou o seu Filho para nos trazer à maioridade, por assim dizer. Jesus Cristo veio libertar tanto os judeus quanto os gentios da escravidão aos princípios elementares do mundo. Ele veio nos libertar dos sistemas legalistas de religião e das práticas pagãs ocultistas que nos escravizam. Paulo nos diz que Deus enviou seu Filho na “plenitude dos tempos”. A palavra “tempos” nesse versículo remete ao desenrolar de todos os tempos deste mundo, e a sua “plenitude” corresponde ao “tempo determinado pelo pai”, que o apóstolo havia mencionado em 4.2. É o tempo exato estabelecido por Deus antes da fundação do mundo, no qual seu Filho viria para trazer salvação. Toda a história anterior convergia para esse momento, o da chegada do Filho de Deus no palco da história humana. Paulo também diz que o Filho de Deus nasceu de mulher. É evidente que ele está fazendo uma referência a Gênesis 3.15, em que Deus pronuncia o castigo da serpente: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (ARA). O castigo anunciado é que a serpente teria sua cabeça esmagada por um descendente da mulher, ou seja, por um homem. Não há nenhuma outra razão para Paulo ter mencionado que o Filho de Deus nasceu de mulher a não ser esta. Ele quer deixar claro que Jesus Cristo é o cumprimento daquela que foi a primeira promessa evangélica. Ele era o Filho de Deus, mas também o filho da mulher. O apóstolo acrescenta que Jesus Cristo, o Filho de Deus, nasceu “sob a lei”. Se a “lei” mencionada aqui é a de Moisés, e tudo indica que sim, Paulo está dizendo que o Filho de Deus nasceu judeu. Sendo assim, Jesus viveu debaixo de todas as regras, normas, estatutos e mandamentos da Lei de Moisés. Creio que há duas razões para que Deus tenha enviado seu Filho para nascer como judeu: a primeira, para que ele pudesse cumprir toda a legislação mosaica, sendo o único, portanto, a cumpri-la plenamente; a segunda, para poder morrer como amaldiçoado de Deus. A Lei de Moisés amaldiçoava os condenados que morriam pendurados no madeiro. Assim, ele nos regatou da maldição da Lei fazendo-se ele mesmo maldição em nosso lugar (3.13). É isso que Paulo declara em seguida. É esta a razão da sua vinda ao mundo, na plenitude dos tempos: resgatar os que estavam sob a Lei (4.5). Fica claro, então, que a Lei também faz parte dos “princípios elementares do mundo”, os quais de certa forma mantinham a humanidade debaixo da escravidão e da morte. Claro que o problema nunca foi a Lei em si, pois ela é boa, santa e justa. O problema é a nossa natureza pecaminosa que não se sujeita à Lei (Rm 7.11-14). E isso estava sendo agravado pelo ensino deturpado dos falsos mestres. A mensagem deles representava um retorno à escravidão. Cristo, por sua vez, veio nos resgatar dessa condição, “a fim de que recebêssemos a adoção de filhos” (4.5). Deus agora nos adota como seus filhos. Não somos mais escravos. Pode ser também que Paulo esteja deliberadamente fazendo um contraste entre a situação da criança, debaixo de administradores e tutores — em nada diferente de um escravo —, e a situação de filho, que já pode usufruir de sua herança. Dessa forma, ele evidencia como a justificação pela fé em Cristo é superior ao sistema legalista dos falsos mestres. Para mostrar que não somos mais escravos e que somos, agora, seus filhos, Deus enviou o Espírito Santo, que é o Espírito de Cristo, ao nosso coração (4.6). Paulo faz referência ao que acontece na conversão, quando nos arrependemos dos nossos pecados e cremos em Jesus Cristo como nosso único e suficiente Salvador. Pela fé recebemos o Espírito de Cristo, que vem habitar em nosso coração (veja 3.2). Como resultado, podemos nos dirigir a Deus como nosso Pai, sem receios, sem aquele medo que o escravo tem do seu senhor mundano. Podemos chamar Deus de Pai, que é o sentido da palavra “Aba”, a qual o Espírito de Cristo coloca em nossos lábios. Em contraste com uma vida de escravidão debaixo dos princípios elementares do mundo, temos agora uma vida na liberdade do Espírito de Cristo, na qual nos dirigimos ao Criador e Senhor de todas as coisas como nosso Pai querido. Paulo conclui assim o primeiro contraste: “Portanto, tu não és mais escravo, mas filho” (4.7). Contudo, ele não para aí: a conclusão lógica é que, se alguém é filho de Deus, também é seu “herdeiro, por obra de Deus”. Note que Paulo aqui se dirige a seus leitores no singular, “tu”, como se quisesse que cada um deles se sentisse particularmente tocado pelo que ele está escrevendo. Paulo fecha seu argumento da mesma forma que o iniciou em 3.29: somos de Cristo, descendentes de Abraão e herdeiros de Deus. A justiça da fé nos livra da condição de escravos da Lei e nos torna filhos de Deus e seus herdeiros. Querer
viver pelas obras da lei é a mesma coisa que desejar voltar à condição de escravidão, à vida de um menor debaixo de tutores e administradores.
Pagão e cristão O segundo contraste que Paulo introduz é entre a vida pregressa dos gálatas no paganismo e a vida no conhecimento de Cristo e de Deus. O apóstolo apela outra vez para a experiência dos gálatas ao fazer esse contraste entre a antiga maneira de viver deles e sua nova vida como cristãos (4.8-11). O contraste não é tão aparente assim, pois o enfoque é a vida deles quando não conheciam Deus. Mas é evidente que Paulo pretende despertá-los para comparar o antes e o depois de Cristo segundo a experiência íntima de cada um. O apóstolo afirma que eles agora são filhos de Deus e também seus herdeiros (4.7). Porém, antes disso, quando estavam escravizados aos princípios elementares do mundo, eles não conheciam Deus. Eles adoravam e serviam a falsos deuses, que não tinham existência real (4.8). A referência é à vida de paganismo deles. Antes de conhecerem Deus através da pregação de Paulo, os gálatas, bem como os demais moradores do Império Romano, seguiam muitas e diferentes religiões, cheias de deuses, de rituais e normas criados de acordo com a imaginação humana e por seu coração pervertido. Lembremos que as religiões pagãs não são a expressão inocente da religiosidade humana, mas, sim, uma manifestação da rebeldia do coração e da recusa em acolher o que Deus revelou de si mesmo na natureza, conforme Paulo mais tarde escreveria na Carta aos Romanos (Rm 1.18-27). Os deuses venerados, temidos e adorados nas religiões pagãs não eram “deuses por natureza”, deuses de verdade. Eram produto da imaginação humana. Assim também acontece nos dias de hoje. Mesmo com o ser humano se gabando de todo o avanço científico e do progresso que obteve, sempre o encontraremos ajoelhado diante do altar de algum deus que ele mesmo inventou. Contudo, agora os cristãos da Galácia conheciam Deus — o único e verdadeiro Deus. Eles haviam chegado a esse conhecimento através da pregação de Paulo. Na realidade, diz o apóstolo, eles é que passaram a ser conhecidos por Deus, isto é, foram aceitos como seus filhos mediante a justiça da fé em Jesus Cristo. Daí a pergunta de Paulo, num misto de surpresa e indignação: “Como é que vocês, depois de terem conhecido Deus e serem aceitos por ele, desejam agora voltar atrás, para aquela situação anterior?” (4.9). Na verdade, Paulo diz que alguns deles já estavam seguindo as datas do calendário judaico, guardando dias, e meses, e anos — e certamente o sábado (4.10). De forma surpreendente, Paulo iguala a observância de dias, meses, tempos e anos — que eram as exigências do calendário religioso dos judeus — com o retorno à escravidão aos rudimentos do mundo, que ele chama de “princípios elementares fracos e pobres” (4.9). Fracos, porque não podiam salvar; e pobres, em contraste com a tremenda riqueza da salvação pela fé em Cristo. A surpresa causada pela afirmação do apóstolo consiste nisto: os judaizantes eram judeus extremamente conservadores. Nunca adoraram e serviram outros deuses, como os gálatas haviam feito. Contudo, para Paulo, se os gálatas aceitassem a mensagem deles e se deixassem circuncidar, passando a observar a dieta religiosa e o calendário judaicos como condição para serem salvos, eles estariam como que retornando à sua condição anterior ao conhecimento de Cristo, em que serviam a deuses falsos, como escravos dos rudimentos do mundo. Que declaração espantosa! As obras da lei exigidas pelos judaizantes consistiam principalmente na circuncisão, na dieta religiosa, na guarda das festas do calendário judaico e na observância do sábado. É interessante que Paulo, nessa passagem, enfoque apenas as datas religiosas (4.10). Não se pode negar que a guarda do sábado está incluída nessa relação de “dias, meses e anos”, pois era a ênfase maior dos judeus, como sinal distintivo da aliança de Deus para com eles. Assim, resta pouca dúvida de que o apóstolo considerava essa exigência parte daqueles princípios elementares fracos e pobres que escravizavam os homens. A conclusão a que chegamos é que o legalismo judaico é a mesma coisa que o paganismo. Ambos são rudimentos fracos e pobres, os fundamentos mais básicos de religiões humanas incapazes de salvar pecadores. Ambos escravizam e sujeitam os homens a normas, preceitos e regras que nunca foram ordenados por Deus. O que espanta o apóstolo Paulo é a propensão dos gálatas para se deixarem escravizar à religião judaizante, quando já haviam chegado ao verdadeiro conhecimento de Deus e à liberdade em Cristo Jesus, depois de terem deixado para trás as trevas da ignorância. Em resumo, o contraste é entre os gálatas viverem debaixo dos princípios elementares fracos e pobres do legalismo judaico e conhecerem Deus, tendo sido primeiro conhecidos por ele. Caso se deixassem escravizar às obras da lei para a salvação, Paulo teria perdido seu tempo e seu trabalho entre eles (4.11). Os gálatas seriam semelhantes àquele terreno que recebeu a semente, logo deu fruto, mas, por ser terra rasa, o fruto se queimou com o sol (Mt 13.5,6,20,21).
Anjo de Deus e inimigo Ainda argumentando com base na experiência pessoal dos gálatas, Paulo dessa vez faz um contraste entre a atitude inicial deles para com o apóstolo, quando creram na mensagem da justificação pela fé, e a atitude presente, em que os gálatas parecem considerar Paulo um inimigo (4.12-17).
O apelo afetuoso de Paulo no início dessa seção revela sua angústia e seu amor pelos gálatas: “Sede qual eu sou; pois também eu sou como vós. Irmãos, assim vos suplico. Em nada me ofendestes” (4.12, ARA). O apóstolo deseja que os gálatas sejam como ele mesmo é, livre em Cristo, tendo sido outrora também escravo debaixo dos princípios elementares do mundo (4.12). É nesse sentido que afirma ser como eles. Paulo não se sente ofendido por eles terem mudado sua atitude e recorda a maneira afável com que o haviam recebido quando primeiro lhes anunciou o evangelho (4.13,14). Os gálatas sabiam que Paulo havia chegado até eles, pela primeira vez, por causa de uma doença: “E sabeis que foi por causa de uma enfermidade física que vos anunciei o evangelho pela primeira vez” (4.13). Não sabemos a que “enfermidade física” ele se refere. Estudiosos ao longo da história da igreja têm sugerido desde malária, por causa das regiões pantanosas da Panfília, até epilepsia, ou mesmo algum tipo de doença nos olhos, pois o apóstolo afirma mais adiante que os gálatas estavam dispostos a arrancar os próprios olhos como doação para ele (4.15). Contudo, o que Paulo diz nesse último versículo pode se tratar apenas de uma linguagem figurada, hiperbólica, visando exprimir a disposição sacrificial dos gálatas em seu favor. A verdade é que não podemos ter certeza acerca da natureza dessa enfermidade. O que nos interessa, no momento, é que essa enfermidade fez que Paulo se detivesse na Galácia, quando sua intenção original era simplesmente passar por ela. Mas o Deus que guia todas as coisas e que realiza seus planos usou de maneira misteriosa a doença de Paulo para que ele ficasse na Galácia por algum tempo, durante o qual evangelizou os moradores daquela região (4.13). A princípio, a doença de Paulo representou algum tipo de provação para os gálatas. Essa declaração tem sido usada para sustentar a hipótese de que Paulo sofria de epilepsia e que, durante suas crises, se tornava motivo de desprezo para eles. Contudo, é mais uma hipótese do que uma conclusão segura. O máximo que podemos dizer é que essa enfermidade física produziu algum tipo de desfiguração ou tinha sintomas bem desagradáveis. Qualquer que tenha sido a “provação” causada pela doença de Paulo, os gálatas se mostraram atenciosos e carinhosos para com o apóstolo adoentado, a ponto de o receberem como um anjo de Deus, como o próprio Jesus Cristo (4.14). Essa foi a experiência inicial de Paulo entre eles. O apóstolo se lembra com carinho dos dias em que fora tão bem acolhido pelos gálatas, os quais haviam crido no Senhor Jesus e se tornaram seus discípulos. Nada havia em Paulo que pudesse ter provocado essa reação, a não ser a mensagem que ele pregava, da justificação pela graça, mediante a fé em Jesus Cristo. No entanto, Paulo pergunta em seguida: O que aconteceu com aquela alegria que vocês demonstraram a princípio? Onde está aquela disposição para se sacrificarem por mim, a ponto de estarem dispostos a arrancar os próprios olhos e me darem? (4.15). O que o apóstolo sentia agora era hostilidade e rejeição da parte daqueles que, a princípio, o haviam recebido como ao próprio Jesus Cristo. Há um contraste implícito nesse relato de um envolvimento que havia sido tão pessoal, mas que agora despertava lembranças dolorosas em Paulo. A mensagem da justificação pela fé, sem as obras da lei, havia mudado o coração dos gálatas, a ponto de acolherem com muito amor aquele homem doente, estando dispostos até mesmo a se sacrificarem por ele. Naquela ocasião, os gálatas o receberam como um anjo de Deus, como o próprio Cristo. Mas, quando começaram a escutar a mensagem dos falsos mestres, que ensinavam a necessidade da sujeição ao sistema legalista judaizante, a atitude deles para com o apóstolo se alterou bastante. Passaram a olhar para Paulo como um impostor. É que tinham dado ouvidos às insinuações de que ele pregava uma mensagem distorcida, a saber, que somos salvos pela fé sem as obras da lei mosaica. De fato, essa era a mensagem do apóstolo. E, por ter dito a verdade a eles, agora estava sendo considerado um inimigo (4.16). A justificação pela graça desperta o nosso coração para amar; um sistema legalista de salvação nos faz críticos, amargos e inflexíveis. O ponto implícito no que Paulo expressa é o poder superior do evangelho para mudar o coração humano para o bem.
Falsos mestres e Paulo O contraste seguinte é entre a atitude dos falsos mestres que defendiam a submissão à Lei de Moisés e a atitude de Paulo para com os gálatas (4.17-20). O apóstolo acusa esses missionários judaizantes de serem insinceros em suas intenções. A preocupação deles, ao pregar aos crentes da Galácia, não era com seu estado espiritual nem com sua salvação eterna. Eles estavam ensinando o que diziam ser a verdade a respeito da salvação não porque eram zelosos da verdade e do bem, mas porque queriam afastar Paulo dos gálatas e, assim, tomar o lugar do apóstolo no coração daqueles crentes. Eram mercenários mal-intencionados que disfarçavam suas intenções com a capa de palavras piedosas (4.17). No entanto, segundo o que Paulo expressa, a culpa não era somente dos falsos mestres. Os gálatas deveriam ser “sempre zeloso[s] pelo bem”, não apenas quando ele estava presente (4.18, ARA). A crítica velada do apóstolo sugere que aqueles crentes eram instáveis e inconstantes, e que haviam sido influenciados, sobretudo, por sua presença física. Como essa atitude é comum! Pessoas podem se apegar às verdades bíblicas influenciadas pelo carisma pessoal de um líder; porém, uma vez que o líder se ausente, elas abandonam essas verdades e se tornam suscetíveis às distorções de outro líder que aparecer. Contudo, diz Paulo, é bom zelar pelo bem, mesmo na ausência dos líderes que nos ensinaram a verdade. Apesar de tudo, Paulo ainda amava os gálatas e os considerava seus filhos (4.19), uma atitude bem diferente daquela dos agitadores judaizantes. O apóstolo havia sentido as dores espirituais relacionadas ao novo nascimento deles, quando esteve lá pela
primeira vez. Sem dúvida, a referência aqui é às angústias que sofreu em oração diante de Deus, às lutas espirituais relacionadas à pregação e argumentação que lhes apresentou, e também às contrariedades que sofreu da parte dos judeus que contradiziam seu ensino da justificação pela fé. Ele se compara a uma mãe que estava agora passando outra vez pelas dores de parto em prol de seus filhos. Tal era o amor de Paulo pelos seus filhos espirituais da Galácia. Essa não é a única vez em suas cartas que o apóstolo usa essa metáfora, em que se apresenta como uma mãe (cf. 1Ts 2.7; 1Co 4.15; Fm 10). Logo em seguida, porém, Paulo usa a mesma imagem para os gálatas: eles também eram como uma mulher grávida, no íntimo de quem o bebê estava sendo formado. E o apóstolo se angustiava até que Cristo fosse “formado” neles (4.19b). Cristo estaria plenamente formado neles quando se firmassem na doutrina da justificação pela fé e deixassem de ser inconstantes quanto a isso. Que figura poderosa, a ideia de que Cristo está crescendo dentro de nós como um bebê no ventre da mãe! Ao mesmo tempo, no caso dos gálatas, é como se Paulo estivesse preocupado com a possibilidade de eles sofrerem um aborto ao se deixarem levar pela mensagem da justificação pelas obras da lei. Paulo então expressa que desejava muito estar com eles naquele momento de crise espiritual e mudar o tom da sua voz (4.20). Na carta, ele estava de fato sendo severo, direto e incisivo, motivado pela urgência em impedir que os gálatas seguissem outro evangelho. Todavia, se pudesse estar com eles, Paulo esperava mudar o tom de sua voz e falar como uma mãe fala a seus filhos (4.19,20). Mas, naquele momento, não podia deixar de expressar quanto estava “perplexo” a respeito deles, sem saber direito o que fazer para impedir aquele desastre espiritual. Ele já tinha dito que temia ter “trabalhado inutilmente” entre eles (4.11). Não poucas vezes, pastores fiéis assistem impotentes à ação de agitadores e falsos mestres que põem a perder todo o trabalho anteriormente realizado. Nem mesmo Paulo se sentia livre dessa tragédia. A comparação que Paulo faz aqui (4.17-20) servia para demonstrar que a mensagem que ele ensinava, a da justificação pela fé, era verdadeira, em contraste com o discurso fingido e interesseiro dos falsos mestres. O interesse do apóstolo pelos gálatas era genuíno. Era motivado por amor. Ele não queria fazer discípulos seus, mas, sim, discípulos de Cristo. Estava disposto a se sacrificar por eles, como uma mãe por seus filhos. Os agitadores, ao contrário, eram movidos pela sede de poder e de dinheiro, e queriam tomar o lugar de Paulo no coração dos gálatas.
Conclusão e aplicações Podemos pensar em algumas aplicações práticas da passagem que analisamos neste capítulo. Os contrastes usados por Paulo nos levam a refletir sobre a natureza do evangelho e do ministério cristão. O contraste entre ser um filho tutelado, quase um escravo, e ser um filho emancipado e herdeiro pleno dos bens do pai nos mostra que a submissão ao legalismo judaico representa um retrocesso completo naquilo que Cristo fez por nós. Ele veio nos livrar dos rituais da Lei de Moisés. Reintroduzir na igreja cristã festas, rituais e datas do calendário judaico, bem como a guarda do sábado, representa submissão aos tutores e administradores dos quais já ficamos livres mediante Jesus Cristo. Significa voltarmos aos “princípios elementares do mundo”, fracos e pobres, incapazes de trazer a justificação de nossos pecados. Portanto, resistamos firmemente a toda tentativa de judaizarmos a igreja cristã. A Carta aos Gálatas é a resposta de Deus aos que querem que chamemos Jesus de “Yeshua Hamashia”, que guardemos o sábado, que toquemos shofar no início do culto, que tragamos a arca da aliança para dentro do culto, que façamos peregrinações religiosas a Israel para nos batizarmos no rio Jordão e trazermos relíquias como azeite do monte das Oliveiras ou pedras do monte Sinai. Aprendemos também que a inconstância é um dos maiores obstáculos à maturidade cristã. Precisamos perseverar com firmeza na doutrina apostólica da salvação pela fé sem as obras da lei. São muitas as tentações de adicionarmos obras humanas à obra completa de Cristo, e assim nos desviamos do ensino bíblico. Evitemos também ancorar nossa fé na pessoa de nossos pastores. Quer eles estejam presentes, quer estejam ausentes, nossa confiança e nossa lealdade sempre serão a Jesus Cristo. Por fim, façamos uma análise sincera de nosso ministério, como pastores. Os mestres judaizantes estavam “pescando em aquário alheio”. Eles estavam agitando as igrejas fundadas por Paulo para assumir a liderança delas. É assim que falsos pastores e mestres agem. Em vez de pregarem o evangelho da graça aos pecadores necessitados, fazem proselitismo entre os que já se declaram cristãos. Que Deus nos livre de mercenários e falsos mestres!
Capítulo 12
SARA E AGAR
Gálatas 4.21-31
C
hegamos ao ponto da carta em que o apóstolo Paulo extrai lições e aplicações da história de Sara e de Agar, as duas mulheres de Abraão:
Dizei-me vós, qu e que reis ficar deba ixo d a lei : Não ou vis a l ei? P orque está escrit o que Abraã o tev e doi s filhos, um da escrava , outro da l ivre. O que era filho da escrava nasceu de modo natural, mas o que era da livre, mediante uma promessa. Pois bem, isso é uma alegoria: essas mulheres simbolizam duas ali anças. Uma é a alianç a do monte Sinai, qu e dá à luz filhos para a escravidão: esta é Agar. Agar representa o monte Sinai na Arábia e corresponde à Jerusalém atual, pois é escrava com seus filhos. Mas a Jerusalém do alto é livre; e esta é a nossa mãe. Pois est á escri to: Ale gra-te, ó estéri l, tu q ue nã o dav as à lu z; irrompe em gritos d e ale gria , tu qu e não tiv este d ores de part o; poi s os filho s da abandonada são mais numerosos do que os da que tem marido. E vós, irmãos, sois filhos da promessa, à semelhança de Isaque. Entretanto, como naquele tempo o que nasceu de modo natural perseguia o que nasceu segundo o Espírito, assim também acontece agora. Mas o que diz a Escritura? Expulsa a escrava e seu filho, pois de modo algum o filho da escrava será herdeiro juntamente com o filho da livre. Portanto, irmãos, não somos filhos da escrava, mas da li vre.
Vimos no capítulo anterior que o apóstolo Paulo apresenta cinco contrastes com o objetivo de demonstrar a superioridade do evangelho em relação à Lei. Estudamos os quatro primeiros deles e, agora, nos voltaremos para o último, que é um contraste entre Sara e Agar. O argumento do apóstolo tem como base duas histórias de nascimento, a de Ismael e a de Isaque, registradas no livro de Gênesis. Abraão já era um homem de idade avançada quando Deus lhe apareceu com a promessa de uma descendência pela qual seriam benditas todas as nações da terra. O patriarca creu que Deus haveria de cumprir o que prometeu e durante muitos anos aguardou que Sara, a qual era estéril, engravidasse. Os anos passaram, e a promessa de Deus não se cumpria, até que um dia Sara resolveu dar um “jeitinho” na situação. Ela se valeu de um costume existente entre os povos do Oriente Médio. Na época, a senhora da casa que não pudesse ter filhos considerava seus os nascidos de suas servas com seu marido. Sara tinha uma serva egípcia chamada Agar, que fora agregada à família de Abraão durante o tempo que ele residiu no Egito (Gn 13.1,2). Então, Sara propôs a Abraão que ele tivesse um filho com ela. Sara acreditava que com esse expediente eles alcançariam a promessa de Deus, a qual estava demorando a se cumprir. Deus, porém, havia deixado claro que, no tempo determinado, Abraão teria um filho com sua legítima esposa. Mesmo assim, eles tentaram remediar a situação a seu próprio tempo e modo, por meio de uma estratégia carnal e de sabedoria humana. Assim, Agar engravidou e deu um filho a Abraão. O menino foi chamado Ismael. Abraão e Sara estavam convencidos de que era aquele o filho pelo qual Deus haveria de cumprir todas as suas promessas. Deus, no entanto, aparece outra vez a Abraão e confirma que o filho a quem se referia nasceria da esposa legítima do patriarca. De fato, algum tempo depois Sara engravidou e deu à luz um filho, que recebeu o nome de Isaque. Nascia enfim o herdeiro da promessa. O problema é que Abraão estava muito afeiçoado a Ismael. Certo dia, porém, quando Isaque foi desmamado, aos 2 ou 3 anos, Abraão deu uma festa, e Ismael foi visto zombando de Isaque. Sara ficou furiosa e exigiu que Abraão mandasse embora a escrava e o filho dela, porque Ismael não teria parte na herança. Com muita tristeza, ele cedeu à exigência da esposa, mas não antes de Deus prometer abençoar aquele menino, pois era filho de Abraão. Desse modo, foi em Isaque que Deus reconheceu a descendência de Abraão. Pela linhagem de Isaque, nasceu o Messias, Jesus Cristo. Os descendentes de Ismael tornaram-se inimigos da nação israelita. O Antigo Testamento registra que os ismaelitas foram morar numa região que geograficamente corresponde à Arábia, o que aponta para a origem do permanente conflito no Oriente Médio entre judeus e árabes. Paulo consegue extrair da história dessas duas mulheres e seus filhos uma lição importante para as igrejas gálatas. Ele utiliza a história de Sara e Agar para estabelecer um contraste entre a dispensação da Lei, o período em que o povo de Deus vivia sob a Lei de Moisés, e o tempo da graça, o tempo da redenção em Cristo Jesus. O texto em estudo mostra esse contraste entre a Lei e o evangelho, entre Ismael e Isaque, entre a promessa e a carne, entre dois sistemas de salvação. É uma passagem intrincada, pois contém várias comparações, que estudaremos a seguir.
O filho da carne e o filho da promessa
Vemos que Paulo se dirige aos gálatas que queriam se colocar sob a lei: “Dizei-me vós, que quereis ficar debaixo da lei: Não ouvis a Lei? Porque está escrito que Abraão teve dois filhos, um da escrava, outro da livre. O que era filho da escrava nasceu de modo natural, mas o que era da livre, mediante uma promessa” (v. 21-23). O apóstolo pergunta aos cristãos interessados em retornar ao sistema da Lei se eles ignoram o que ela própria diz: a escrava é Agar, a egípcia, e a livre é Sara, a legítima esposa de Abraão, a quem Deus fez a promessa. Paulo então interpreta o nascimento de cada um dos filhos de Abraão e afirma que o filho da escrava “nasceu de modo natural [segundo a carne]”. O que o apóstolo está querendo dizer com isso? Que Ismael nasceu como resultado de um esquema carnal. Não foi algo que Deus planejou ou recomendou. O “natural” aqui (“carne”, em algumas versões) é simplesmente o planejamento humano, a pretensão do homem em querer ajudar a Deus na realização de seus planos e propósitos. Paulo se refere à ideia de Sara de ter um filho por meio da escrava, proposta que resultou no filho de Abrão nascido segundo a carne. O nascimento de Ismael não era o que Deus havia planejado e prometido. No mesmo versículo, o apóstolo menciona o filho “da livre, [que nasceu] mediante uma promessa”. Isaque era o filho que Deus havia prometido a Abraão, nascido de maneira sobrenatural, porque Abraão já era velho e sua mulher, estéril. Foi um nascimento miraculoso, pois Deus estava usando seu poder para cumprir suas promessas. Paulo já vê aqui uma diferença: Ismael e Agar estão relacionados com a carne, com intenções e pensamentos humanos; Sara e Isaque estão ligados à promessa, o nascimento que ocorreu conforme Deus havia prometido.
Tipo ou alegoria? Paulo declara a respeito dessa história de Sara e Agar: “Pois bem, isso é uma alegoria” (v. 24). A classificação desse episódio como alegoria nos traz certa dificuldade, porque nós, da tradição reformada, não damos muito valor às chamadas “alegorias bíblicas”, histórias que guardariam um sentido oculto, que deveria ser descoberto. A palavra “alegoria”, ao longo da história da interpretação bíblica, remete a um sistema de interpretação que procura encontrar em um texto sentidos que não estão claros em uma leitura literal. O problema com esse tipo de interpretação alegórica é que ela possibilita que alguém enxergue na Bíblia o que quiser, enquanto a regra para uma interpretação adequada diz que o texto deve ser entendido em seu sentido mais natural (ou seja, o texto quer dizer aquilo que está dizendo). O pressuposto dessa abordagem sadia é que não existem sentidos ocultos por detrás de um texto bíblico, pois, se Deus quis falar conosco por meio de sua Palavra, ele falou de uma maneira que pudéssemos entendê-la. Há, porém, pastores que gostam de pregar de uma maneira alegórica, extraindo “coisas novas” de certas passagens. Então os ouvintes, fascinados, tecem elogios à grande inteligência do pregador e confessam que já leram o mesmo texto dezenas de vezes sem nunca enxergar nada daquilo. Mas a verdadeira razão de jamais terem percebido aquele significado é porque ele não está lá mesmo. Não se trata de um pastor com inteligência superior ou espiritualidade privilegiada, que descobriu um sentido mais profundo na Bíblia, mas, sim, de alguém que simplesmente inventou, extraiu da própria cabeça, sentidos que não estão no texto bíblico. Muitos conhecem a famosa interpretação alegórica da Parábola do Bom Samaritano (Lc 10.30-35), que alguns atribuem a Orígenes e outros a Agostinho: o judeu que descia de Jerusalém para Samaria representa Adão; o assalto que ele sofreu representa a Queda; o sacerdote e o levita que passam e não acodem o ferido representam a Lei e os sacrifícios, que não podem salvar o homem de seu estado decaído; o bom samaritano representa Jesus; o azeite e o vinho colocados nas feridas representam o sangue derramado pelos nossos pecados; o ato de erguer o judeu do chão representa o novo nascimento; o jumento representa o evangelista; a estalagem representa a igreja; as duas moedas entregues ao dono da estalagem representam o batismo e a santa ceia; a recomendação para cuidar do ferido até que o samaritano volte representa a segunda vinda de Jesus. Contudo, a pergunta nesse caso deveria ser: Quando Jesus contou essa história, era isso que ele tinha em mente? É esse mesmo o sentido da parábola? Embora as coisas que foram ditas a respeito do texto sejam corretas em si mesmas, pois falam de coisas boas, não correspondem ao significado da parábola. Esse é um bom exemplo de interpretação alegórica, uma interpretação “espiritualizada”. Trata-se de uma mensagem correta, porém extraída do texto errado. O texto não está dizendo nada disso. E qual seria então o significado da Parábola do Bom Samaritano? Jesus contou essa história em resposta à pergunta “Quem é o meu próximo?”, que lhe foi feita por um “doutor da lei” logo depois de ele ter falado sobre o mandamento de amar ao próximo como a si mesmo. O sentido da parábola, portanto, é este: meu próximo é aquele que precisa de mim e que está próximo de mim, mesmo que seja meu inimigo, mesmo que eu seja samaritano e ele, judeu. É só isso que essa passagem bíblica significa. Quando alguém começa a extrair sentidos e interpretações de passagens da Bíblia que não estão lá, significa que ele está tratando o texto como se fosse uma alegoria. Como já disse, a tradição reformada é contrária a esse sistema de interpretação, porque entendemos que o texto deve ser lido em seu sentido natural, no sentido mais claro, de acordo com o contexto. Mas aqui deparamos com Paulo interpretando uma passagem como alegoria! Como explicar isso? Simples: Paulo não está usando aqui a palavra “alegoria” no sentido que usamos hoje para falar sobre sentidos ocultos extraídos aleatoriamente de um texto bíblico. O
que se traduziu por “alegoria” nesse texto seria mais bem compreendido como “tipologia”, ou seja, histórias ou instituições de Israel do Antigo Testamento, como o Templo e os sacrifícios, que simbolizavam realidades futuras. Não é difícil perceber essa relação. A diferença entre alegoria e tipologia é que a primeira, em geral, é arbitrária — alguém atribui ao texto o sentido que desejar. Na tipologia, por sua vez, existe uma correlação tipológica e, às vezes, histórica, um fio que une o tipo e o antítipo, a coisa prefigurada e a figura em si. Paulo está dizendo, portanto, que a história de Sara e de Agar, de Ismael e de Isaque, tipificam ou simbolizam realidades que ainda estavam por vir na história do povo de Deus.
O simbolismo da passagem Paulo tem em mente pelo menos três coisas tipificadas na história de Sara e Agar, que ele menciona no trecho que estamos estudando. As duas ali anças
O apóstolo afirma: “Essas mulheres simbolizam duas alianças” (v. 24). É essa a primeira “alegoria”. Sara e Agar representam duas alianças, que são acordos firmados entre Deus e o homem. Mas que alianças são essas? A primeira aliança é definida com relação a Agar: “Uma é a aliança do monte Sinai, que dá à luz filhos para a escravidão: esta é Agar. Agar representa o monte Sinai na Arábia e corresponde à Jerusalém atual, pois é escrava com seus filhos” (v. 24,25). Deus outorgou a Lei de Moisés ao seu povo no alto do monte Sinai, que fica na Arábia, o território habitado pelos descendentes de Ismael. Observe, portanto, que a interpretação de Paulo não é arbitrária, porque existe uma clara correlação. A escrava, que gerou um filho escravo, corresponde à aliança mosaica, a aliança da Lei, que gera filhos para a escravidão. Isso porque a Lei escraviza, ela não veio para salvar. Quem quer se salvar por meio dela se torna de fato escravo. É isso que Paulo está dizendo, e é isso que Agar e Ismael representam. Não podemos concluir com isso que, no Antigo Testamento, todos eram escravos, mas, sim, que qualquer judeu sob a aliança mosaica que quisesse se salvar pela Lei viveria como escravo. Na época de Jesus e de Paulo, os fariseus haviam transformado numa escravidão ainda maior a religião que Deus havia revelado no Antigo Testamento. Por contraste, se Agar representa a aliança mosaica firmada no monte Sinai, que gera filhos para a escravidão, Sara representa a aliança com Abraão, a aliança da graça e da misericórdia, cujos filhos nascem livres, como Isaque. A antiga aliança gera filhos para a escravidão, e a nova aliança em Cristo Jesus, feita pela promessa, gera pessoas livres, filhos de Deus, que nascem no reino de Deus, pois, embora venham a este mundo, já pertencem ao reino celestial. As duas cidades
As duas mulheres também representam duas cidades. Na verdade, uma cidade só, porém entendida de duas maneiras. Paulo diz, no versículo 26: “A Jerusalém do alto é livre; e esta é a nossa mãe”. Por conseguinte, Agar representa a Jerusalém terrestre dos dias de Paulo, ainda “escrava com seus filhos”. A Jerusalém que o apóstolo conhecia vivia debaixo da escravidão. A cidade de Jerusalém não só era escrava de Roma, que na época dominava o mundo inteiro, mas também estava escravizada ao farisaísmo, à religião legalista que enviava missionários às igrejas fundadas por Paulo para também escravizá-las, forçando os crentes a viver sob o sistema da Lei; portanto, a cidade estava também debaixo de uma escravidão espiritual. Essa Jerusalém escravizada por Roma e pelo legalismo farisaico era representada por Agar. Por sua vez, Sara, a esposa legítima, que teve o filho segundo a promessa, representa a Jerusalém celestial (v. 26). Paulo aqui se refere à igreja, porque Jerusalém é um tipo da igreja de Deus, a cidade de Deus, a mãe de todos nós. Foi a igreja que nos gerou. Nenhum de nós poderia chegar a conhecer Deus e seu reino não fosse o ministério da igreja de Cristo, que ao longo da História enviou missionários, traduziu a Bíblia, pregou a Palavra e deu seu testemunho sobre Jesus. Nesse sentido, a igreja é nossa mãe. Paulo, mais uma vez, está comparando o sistema legalista de viver debaixo da Lei, gloriar-se em ser filho de Abraão e ser circuncidado com a nova aliança, a promessa e o pertencer à igreja cristã. Ele cita ainda Isaías 54.1 para dizer que a Jerusalém celestial crescerá mais que a Jerusalém terrestre (v. 27). Era como se ele estivesse profetizando que o cristianismo se tornaria maior que o judaísmo. Diz o texto de Isaías: “Canta alegremente, ó estéril, que não deste à luz [uma referência ao povo de Deus, mas Paulo vê também uma referência a Sara e, por associação, à igreja]; exulta com alegre canto e exclama, tu que não tiveste dores de parto; porque a desamparada tem mais filhos do que a casada”. Talvez o apóstolo tenha visto nessa passagem uma comparação entre Sara e Agar. Sara é a mulher estéril, abandonada pelo marido — no sentido de que ele preferiu outra que lhe desse filhos —, porém a profecia diz que ela terá mais filhos que a primeira. Paulo enxerga uma referência à igreja, que se multiplicaria e cresceria mais que o sistema legalista dos judeus. A História provou isso. O cristianismo cresceu e se expandiu muito mais que a religião judaica.
Os dois povos
Sara e Agar representam também dois povos (v. 28-31). O primeiro povo são os cristãos — “vós, irmãos” —, que são “filhos da promessa, à semelhança de Isaque” (v. 28). O apóstolo traça uma linha de descendência que começa em Sara e termina nos cristãos. Sara gerou um filho segundo a promessa e, por isso, corresponde à Jerusalém celestial, a mãe dos cristãos. Os seguidores de Cristo são, portanto, filhos da promessa como Isaque, os legítimos filhos de Abraão. Há quem diga que hoje Deus tem dois povos: os judeus e os cristãos. No entanto, essa é uma distinção alheia às Escrituras, como já expliquei anteriormente. Os cristãos é que são os verdadeiros descendentes espirituais de Abraão; são os filhos segundo a promessa. O povo de Deus é um só, o da Jerusalém celestial. Além de filhos da promessa, os cristãos nasceram “segundo o Espírito” (v. 29), e há nesse ponto uma referência ao fato de Isaque, nascido segundo o Espírito, ter sido perseguido por Ismael, que nasceu segundo a carne. Na igreja dos gálatas, os nascidos da carne estavam também perseguindo os que haviam nascido do Espírito: “E vós, irmãos, sois filhos da promessa, à semelhança de Isaque. Entretanto, como naquele tempo o que nasceu de modo natural perseguia o que nasceu segundo o Espírito, assim também acontece agora” (v. 29). Diante disso, de acordo com a Escritura, Paulo adverte os gálatas: “Expulsa a escrava e seu filho, pois de modo algum o filho da escrava será herdeiro juntamente com o filho da livre” (v. 30). O apóstolo reafirma que somos os verdadeiros herdeiros, assim como Isaque era o legítimo herdeiro de Abraão. Somos herdeiros de Deus — e finalmente Paulo chegou ao ponto que queria. É como se ele dissesse: “Vocês querem voltar para a Lei? Será que não entenderam a história das duas mulheres de Abraão? Vocês são filhos de Sara, descendentes de Isaque. Vocês nasceram segundo a promessa, segundo o Espírito, e são herdeiros de Deus. Se adotarem a Lei de Moisés como caminho da salvação, estarão se tornando filhos de Agar, que gerou um filho para a escravidão. A escrava e seu filho, que não são herdeiros de Deus, serão lançados fora, e vocês serão lançados fora com eles, porque sem a fé verdadeira em Cristo não herdarão o reino de Deus”. Paulo então conclui: “Portanto, irmãos, não somos filhos da escrava, mas da livre” (v. 31). Com isso, ele reafirma que os gálatas não tinham razão alguma para dar ouvidos aos missionários judaizantes, que pregavam um evangelho baseado no mérito humano, no cumprimento de regras, ou seja, na escravidão. Os gálatas haviam sido salvos pela graça de Deus em Cristo Jesus, eram filhos de Abraão e de Sara, descendentes de Isaque nascidos segundo a promessa. Eram já cristãos livres, nascidos segundo o Espírito e herdeiros de Deus. Que motivos teriam, portanto, para se submeter ao sistema legalista de salvação, que gera somente escravos, os quais por fim serão lançados fora, sem herdar o reino de Deus? É esse o sentido que Paulo vê naquela história.
Conclusão e aplicações Uma das importantes lições que podemos extrair do texto em estudo diz respeito à interpretação da Bíblia. Paulo tinha autoridade, inspiração e iluminação para detectar no texto do Antigo Testamento coisas que por certo nos passariam despercebidas. Ele podia fazer isso porque era um dos apóstolos de Cristo Jesus, e seus escritos, por serem inspirados por Deus, são infalíveis. É uma prerrogativa que nenhum outro cristão de hoje possui. Não temos o direito, mesmo se formos pastores e pregadores, de “descobrir” sentidos ocultos nas histórias narradas no Antigo Testamento, porque não temos a inspiração dos escritores sagrados. Não somos apóstolos, por isso nossa interpretação não será inerrante nem infalível. Não recebemos hoje a inspiração de Deus para revelar coisas desse tipo como eles fizeram. Essa revelação já nos foi dada pelos apóstolos. O Novo Testamento, em certo sentido, nada mais é que a interpretação do Antigo Testamento. Portanto, devemos usar o Novo Testamento como chave para ler o Antigo Testamento. É pela leitura do Novo Testamento, de uma perspectiva orientada para Cristo, o Messias, o Filho de Deus, o ponto central da revelação de Deus, que podemos abrir a porta que dá acesso ao sentido do Antigo Testamento. Ao contrário disso, deve-se repudiar qualquer interpretação ou leitura fantasiosa da Bíblia que procure sentidos onde eles não estão, pois isso contraria o que os apóstolos fizeram. A interpretação da passagem que estudamos neste capítulo, como já expliquei, não é arbitrária: existe uma correlação teológica e histórica entre os fatos do Antigo Testamento e a realidade presente. E Paulo realizou essa interpretação com a profundidade e a autoridade de apóstolo que lhe foram dadas por Deus. A outra lição diz respeito a todos os que, de alguma forma, acham possível justificar-se diante de Deus pelo que são e pelo que fazem. Às vezes, no fundo do coração, muitos têm a esperança de que vão ser aceitos por Deus por serem pessoas boas, por não serem tão ruins quanto os outros, por fazerem determinadas coisas ou seguirem determinados preceitos. Quem pensa assim ainda não nasceu de novo, não nasceu do Espírito nem da promessa. Está vivendo segundo a carne e é tão escravo quanto o filho de Agar. Querer salvar a si mesmo desse modo, sem depender das promessas de Deus, é semelhante à trama de Sara e Abraão envolvendo Agar, em que o casal recorreu a um “jeitinho” humano para alcançar a promessa de Deus. Essa é uma atitude de quem não está dependendo da promessa de salvação da Escritura. Se Deus fosse nos tratar com base em nosso merecimento, seríamos todos condenados ao inferno eterno, pois é essa a condenação que merecemos em razão de sermos pecadores. Quem insiste em se justificar por mérito próprio perante Deus é filho de Agar, vive na escravidão e será lançado fora. A única esperança que temos de ser perdoados e aceitos por Deus é Jesus Cristo, o descendente de Isaque, que veio a este mundo, morreu na cruz pelos nossos pecados e derramou seu sangue precioso para pagar nossa culpa. Mas convém lembrar que,
da mesma forma que Ismael perseguiu Isaque, você também será perseguido. Os filhos de Deus sofrerão perseguição neste mundo por causa de Cristo. Contudo, mesmo assim, você é livre — porque é filho da promessa. Não livre para pecar, mas para servir a Deus e ao Senhor Jesus Cristo. Devemos sempre louvar a Deus por tão grande redenção, pela maravilhosa aliança da graça, na qual obtemos pleno perdão e a promessa de que ele nos receberá na glória, onde desfrutaremos o que nos está reservado como verdadeiros herdeiros de Deus.
Capítulo 13
CAIR DA GRAÇA
Gálatas 5.1-12 circuncisão foi instituída por Deus no Antigo Testamento. Era o sinal ou selo da aliança que Deus estabeleceu com seu povo. Assim como o símbolo de que somos casados é a aliança de ouro no dedo, o símbolo do casamento de Deus com a nação de Israel era a marca da circuncisão, exigida de todos os homens. Para os judeus, a circuncisão era extremamente importante, por isso estavam assustados com o fato de Paulo, também judeu, afirmar que os convertidos não precisavam mais se circuncidar; que a fé em Cristo Jesus era suficiente para o ingresso na família de Deus; que o salvo em Cristo estava isento de guardar a Lei de Moisés; que o símbolo da aliança agora era o batismo, símbolo da circuncisão espiritual do coração. Por isso, na ausência de Paulo, alguns missionários judaizantes chegaram à Galácia para convencer os cristãos gentios daquela região a mudarem de ideia. Paulo respondeu a isso de maneira incisiva:
A
Para a lib erdade foi que Cristo nos l ibert ou. Po rtant o, perman ecei firmes e nã o vo s sujeit eis n ovamen te a um jugo d e esc ravid ão. Eu , Paul o, vos declaro que Cristo de na da vos servirá, se vos deixardes circuncida r. E outra vez declaro solenemente a t odo homem que se deixa circuncidar que ele fica obrigad o a cumprir toda a lei. Vós, que vos justificais pela lei, estais separados de Cristo; caístes da graça. Mas nós, pel o Esp írit o median te a fé, ag uardamos a justiça que é nossa esperan ça. Porque em C risto Jesus nem a circunci são nem a inci rcuncisão valem coisa al guma; mas, sim, a fé que a tua pel o amor. Corríeis bem. Quem vos impediu de obedecer à v erdade? Quem vos conven ceu a a gir assim não vem daquele que vos chama. Com um pouco de fermento toda a massa fica fermentada. Quanto a vós, confio no Senhor que não pensa reis de out ra forma. Mas aque le que vos pertu rba, seja quem for, sofrerá cond enaç ão. Eu, porém, irmãos, se cont inu o pregand o a circuncisão, por que ainda sou perseguido? Nesse caso, o escândalo da cruz estaria aniquilado. Quem dera se castrassem aqueles que vos estão perturbando!
O que estava em jogo entre Paulo e os missionários judaizantes não era mera disputa por espaço, por liderança ou por sustento financeiro. Discutia-se algo muito mais sério: os dois sistemas de salvação. Na maneira de ver daqueles missionários, a salvação era pela fé em Cristo, porém acompanhada da circuncisão e das obras que a Lei determinava. No evangelho defendido por Paulo, que é o esquema bíblico e, portanto, correto, a salvação era pela fé, sem que nada mais fosse necessário. Segundo esse evangelho, a obra de Cristo é completa, é perfeita e não requer qualquer adicional. Não precisamos “ajudar” Deus a nos salvar nem acrescentar nada ao que Cristo já realizou para sermos salvos, porque o sacrifício dele é suficiente, feito de uma vez por todas. Aqui chegamos a uma parte importante da carta. Paulo já havia explicado aos gálatas que, mesmo no Antigo Testamento, a salvação era pela fé e que todas as prescrições da Lei eram provisórias, sombras da realidade que se estabeleceu em Cristo Jesus. Paulo também lhes havia explicado que Abraão, o patriarca que recebeu de Deus a ordem da circuncisão, foi salvo pela fé, não pela circuncisão. Agora, na passagem que estamos estudando, o apóstolo afirma categoricamente que, se eles fossem circuncidados, Cristo não valeria mais nada para eles. Aceitarem a circuncisão implicaria o abandono da salvação pela graça, o que significava que eles estariam perdidos, porque ninguém poderia ser salvo pelas obras da lei ou por qualquer outra coisa, a não ser por Jesus Cristo. Paulo faz essa advertência nos versículos 1 a 6. Nos versículos 7 a 12, ele faz então cair a máscara dos falsos mestres e encerra seu argumento de forma bastante curiosa.
A liberdade do evangelho Logo no início do capítulo Paulo exorta os gálatas a permanecer na liberdade do evangelho: “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Portanto, permanecei firmes e não vos sujeiteis novamente a um jugo de escravidão” (v. 1). Cristo veio nos trazer liberdade. Ele veio nos livrar da condenação do pecado, da culpa e também das obrigações da Lei, que só levam à escravidão. O judeu do Antigo Testamento que não compreendesse direito o propósito da Lei via-se cercado por centenas de regras que regulavam até sua alimentação. Ele descobria, na prática, que aquela era uma situação de escravidão, não de liberdade. Paulo está dizendo nessa passagem que Cristo veio para abolir esse sistema, e agora nos oferece a salvação gratuita. Os seguidores de Cristo Jesus estão livres de qualquer norma como caminho de salvação e, assim, podem servir a Deus voluntariamente. Deus requer de nós apenas que creiamos e recebamos seu Filho como nosso único e suficiente Salvador. Os adeptos de seitas e de outras religiões, ao contrário disso, vivem na escravidão, porque são obrigados a guardar determinadas regras e preceitos, sem ainda terem qualquer garantia de que serão de fato salvos, porque a salvação vai depender de como eles guardam tais prescrições. Basta uma única violação a essas leis — e isso certamente vai acontecer —, e já estarão
condenados, porque a salvação deles é baseada no desempenho pessoal que, como numa empresa, determina sua ascensão ou seu fracasso. Eles veem a salvação como algo que se conquista por esforço, pela sua obediência. Isso é verdadeira escravidão. Deus, entretanto, enviou seu Filho, Jesus Cristo, que cumpriu perfeitamente a Lei por nós e pagou com o próprio sangue, com sua morte na cruz, a culpa de nossos pecados. E o pecado revela a incapacidade humana de obedecer à Lei. Mas agora estamos livres de todas essas obrigações e podemos receber gratuitamente a salvação que Deus nos dá mediante Jesus. Isso é verdadeira liberdade. Imagine então quanto Paulo ficou consternado ao saber que os gálatas, depois de conhecerem a liberdade que o evangelho proporcion proporciona, a, estavam qu queren erendo do se circu circunci ncidar dar para ser salvos! salvos! Ele Ele faz nesse nesse versícu versícullo um apel apelo veement veementee a qu quee permaneçam permaneçam na na liberdade de Cristo e não se submetam a um “jugo de escravidão”. O jugo, ou canga, é uma espécie de forquilha colocada no pescoço de um boi — ou para junt juntar ar dois dois bois bois — a fim de reali realizar a aragem aragem da terra. Na N a visão de Paulo, Paulo, os gál gálatas qu quee se circuncidassem estariam colocando no próprio pescoço uma canga, um jugo, que representa as leis a que eles estariam se submetendo como um boi ao fazer o seu trabalho. Essa era uma exortação bastante expressiva para que os gálatas permaneces permanecessem sem na graça graça do evang evangel elho ho,, ficassem ficassem firmes rmes na na fé fé que que Paulo Paulo lhes lhes hav haviia ensi ensinad nado. o.
As consequências da circuncisão Paulo passa a relacionar as consequências de alguém aceitar a circuncisão depois de conhecer a liberdade do evangelho, as quais analisaremos a seguir. Anulação da obra de Cristo
Ele afirma: “Eu, Paulo, vos declaro que Cristo de nada vos servirá, se vos deixardes circuncidar” (v. 2). Tudo o que Cristo fez seria inútil para eles, porque o evangelho ensina, com muita clareza, que o homem é pecador, indigno de Deus e incapaz de observar os preceitos da Lei. Foi justamente por isso que Cristo veio, para cumpri-la em nosso lugar, pagar por nossos pecados e nos oferecer salvação plena e gratuita; o amor de Deus garante isso. Desse modo, querer acrescentar méritos próprios ou qualquer outra coisa, como a circuncisão, para ajudar Deus em nossa salvação, equivale a desfazer a obra de Cristo. Ou Cristo nos salva completamente ou não salva. Não existe isso de Cristo ser o meu Salvador e eu precisar dar uma “mãozinha” para que ele de fato me salve. O apóstolo deixa bem claro que qualquer tentativa de contribuirmos com mérito próprio, valor pessoal ou esforço para obter o perdão de no nossos ssos pecados, como como se pu pudéssem déssemos os merecer algu algum ma coisa, coisa, tudo tudo isso anul anulaa a obra de Cristo. Cristo. Se agirm agirmos os assim assim, Cristo de nada nos servirá. Ou ele nos salva completamente, sem a nossa ajuda, ou nós mesmos teremos de nos salvar, o que significa perdição total, já que não temos condições de fazer isso. O evangelho é radical assim: ou é pela graça ou é pelas obras. Não há mei meio-term o-termo. o. A Igreja Católica Romana, tentando resolver essa questão, inventou a teoria do sinergismo, segundo a qual o ser humano coopera de alguma forma com Deus na salvação. Os católicos dizem que a salvação é pela graça e pela fé, mas que Deus embute no homem uma espécie de graça ou virtude que o capacita a fazer obras que são recebidas pelo próprio Deus como meritórias. Essa é uma tentativa do pensamento romanista de juntar as duas coisas, as obras dos homens e as obras de Deus. Nós, reformados, entendemos que esses dois sistemas são opostos e irreconciliáveis. Ou somos salvos pela graça, pela fé em Cristo Jesus, ou não há salvação, porque o homem é incapaz de contribuir para a própria salvação. Obrigação de guardar a Lei
Em seguida, Paulo menciona a segunda consequência de trocar o evangelho da graça pela salvação por méritos: “Outra vez declaro solenemente a todo homem que se deixa circuncidar que ele fica obrigado a cumprir toda a lei” (v. 3). A circuncisão é o símbolo da Lei de Moisés, de todo o sistema mosaico. A conclusão do apóstolo, portanto, é que o cristão que se circuncida está obrigado a guardar toda a Lei — os sacrifícios, as regras alimentares, o calendário judaico e tudo mais que ela estipula —, porque a circuncisão não é um rito isolado: é a marca de um sistema inteiro. Assim que alguém se circuncida, está se submetendo ao esquema total de salvação pelas obras da lei. A pergunta que fica implícita aqui é: “Vocês, gálatas, vão de fato conseguir observar todas aquelas leis? Se nem os judeus conseguiram ou conseguem, o que os faz crer que vocês conseguirão?”. O cair da graça
A terceira implicação é semelhante à primeira: “Vós, que vos justificais pela lei, estais separados de Cristo; caístes da graça” (v. 4). O que Paulo está afirmando, mais uma vez, é que os dois sistemas são mutuamente excludentes. Quem decide se circuncidar se desliga de Cristo, e este é o significado da expressão “cair da graça”. Quando os gálatas conheceram a graça, eles se ligaram a Cristo. Mas agora que ouviram o falso evangelho e resolveram “ajudar” Cristo a salvá-los, por meio da circuncisão, eles se desligaram de Cristo e assim caíram da graça.
Esse versículo carece de explicação, porque muitos o usam para afirmar que é possível o crente verdadeiro perder a salvação. Segundo o entendimento dessas pessoas, se alguém que foi salvo por Cristo de repente se circuncida, ou se muda seu pensamento e não mais acredita que Cristo é o único Salvador, essa pessoa perde a salvação. É uma doutrina encontrada, por exemplo, em alguns segmentos da Assembleia de Deus e entre os pentecostais de modo geral. Ela foi inicialmente ensinada por John Wesley, fundador fundador do metodismo. metodismo. O pensamento por trás dessa doutrina é que, mesmo uma pessoa que tenha tomado a decisão de receber Cristo como seu Senhor e Salvador, em determinado momento de sua vida pode apostatar e virar as costas para Cristo. Com isso, ela perde a salvação que havia obtido. Esse pensamento faz sentido para os grupos que não acreditam na predestinação, na eleição nem na soberania de Deus. Para eles, a salvação é mais ou menos assim: Deus preparou tudo e enviou Jesus Cristo, que morreu pelos nossos pecados; o evangelho então é oferecido a todos os homens, e a salvação é como uma máquina que tem um botão vermelho vermelho escrito e scrito play. Se você não apertar o botão, nada do que Cristo fez valerá para sua vida. Você só é salvo quando aperta a tecla play. Assim, em última análise, a salvação depende do ser humano: ele é quem decide se quer ser salvo. Se não aceitar Jesus, você estará perdido, mesmo que Cristo tenha morrido por você. Se não decidir apertar a tecla play, então a máquina da salvação não funcionará. Essa é a visão desses grupos. Ora, se a salvação é uma decisão pessoal, você também pode decidir não se salvar depois de recebê-la. A mesma pessoa que tem o poder de decidir ser salva poderá, mais adiante, decidir que não quer mais essa salvação. Pode virar as costas para Deus, abandonar o evangelho e voltar para o mundo. Nesse caso, ela perde a salvação. Esse é o pensamento de algumas igrejas pentecostai pentecostaiss e de várias várias outras outras denomi denominações. nações. E acho que é também também o pensam pensament entoo de muitos uitos presbiteri presbiteriano anoss que acreditam acreditam que, que, em última análise, a salvação é uma decisão do homem. Contudo, o pensamento bíblico e reformado é que a salvação, do começo ao fim, é obra de Deus. Isso significa que ele não só construiu a máquina da salvação, mas é quem pega a mão do pecador e a faz apertar a tecla play. Porque se Deus não pegar sua mão, não abrir seus olhos e não lhe der o desejo de ser salvo, você nunca apertará aquela tecla. É Deus quem o procura e lhe mostra quem é Cristo. Ele quebranta seu coração, abre seus olhos e ouvidos e faz seu coração se inclinar para Jesus, a fim de que você o receba como seu único e suficiente Salvador. A grande questão é que o ser humano é volúvel: hoje ele quer, amanhã não quer mais; hoje é sim, amanhã é não. Se a salvação depender dele, hoje ele estará salvo, amanhã perdido, num ciclo interminável. Deus, porém, é imutável em seu propósito. Uma vez que o conduziu à salvação, ele não permitirá mais que você retroceda. Ele vai sustentá-lo nesse caminho, vai guardá-lo em sua mão. É o que na teologia reformada chamamos de “perseverança final dos santos”, mas que bem poderia ser chamada de “perseverança final de Deus”, porque é ele quem vai perseverar até o fim por você, sem jamais mudar de ideia. Se ele o trouxe a Cristo e seu coração foi convertido, se hoje você crê em Jesus como seu único e suficiente Salvador, Deus não vai mudar quanto ao desejo de salvá-lo. Ele vai sustentá-lo e guardá-lo até o fim. Afinal, você agora é dele, e ninguém vai arrancá-lo das mãos dele — nem você mesmo. Ele não deixará que você tenha vontade de ir embora. Aliás, vontade às vezes dá, eu confesso. Sou crente há mais de trinta anos, e já houve momentos em que pensei em “chutar o balde”. balde”. Mas essa resolução resolução não não se mantev antevee mais mais do qu quee cinco cinco minu minutos, tos, porque porque em segui seguida eu pensava: pensava: “Se “Se eu voltar voltar as costas para Deu Deus, s, vou para ond onde? e? Eu me me con conheço heço,, sei que sou um pecador e estou ciente ciente da profu profundidade ndidade da depravação depravação do meu coração. Como é que eu vou ficar?”. Então, cinco minutos depois, eu já estava de joelhos novamente diante de Deus. Não há como fugir. Se você é crente de verdade, não conseguirá se desvencilhar de Deus, porque é Deus quem o está segurando. Mas então como podemos explicar este versículo: “Estais separados de Cristo; caístes da graça”? A resposta é que Paulo não está falando aqui de um ponto de vista divino, o da predestinação, o da eleição de Deus; ele está fazendo uma observação de um ponto ponto de vista vista hum humano. ano. Ele Ele está dizend dizendoo algo algo que, se eu dissesse dissesse em um uma igreja, igreja, qual qualqu quer er um con concordari cordaria. a. Se eu dissesse dissesse ali ali “Se “Se negar Jesus Cristo, você vai para o inferno”, todos concordariam, pois quem negar Jesus vai de fato para lá. Mas isso não significa que a pessoa que assim procedesse fosse de fato salva. Se alguém consegue negar Jesus Cristo e abandonar o evangelho para seguir outro sistema, isso apenas revela que ela nunca realmente foi de Cristo. É nesse sentido que Paulo adverte os gálatas. Ele está falando de um ponto de vista externo, está dizendo aos gálatas: “Se vocês seguirem a circuncisão, o evangelho que vocês abraçaram de nada servirá para vocês. A graça que vocês pensaram ter recebido, na qual disseram que criam, na verdade de nada lhes servirá, pois cairão dessa graça em que estão dizendo que acreditam, mas que, verdadeiramente, não acreditam, porque vocês estão querendo querendo se salvar salvar pelas obras e coisas dessa de ssa natureza”. natureza”. Não é por acaso que a descrição descrição do verdadeiro verdadeiro crente crente vem em segui seguida: da: “Mas “Mas nós, pelo pelo Espíri Espírito to medi median ante te a fé, aguardam aguardamos os a justi justiça ça que é no nossa ssa esperança” esperança” (v. (v. 5). O verdadei verdadeiro ro crente crente aguarda aguarda a esperança esperança da justi justiça, ça, ou seja, a mani manifestação da justiça justiça de Deus, do reino de Deus, da salvação que ele preparou. Nós aguardamos isso mediante a fé. É essa a razão de nossa existência. Vivemos a expectativa de que um dia, não sabemos quando, Deus virá em Cristo Jesus para inaugurar seu reino de justiça definitiva neste mundo, para realizar a justiça final, e então ele vai nos receber no céu, onde estaremos com ele para todo o sempre. O verdadeiro verdadeiro crente morre nessa espe esperança, rança, jamais jamais a abandona. Em contrapartida, os falsos crentes, os que nunca realmente foram de Cristo, vão acabar se desviando, caindo da graça e se desligando do Cristo que eles um dia disseram conhecer. No final, eles nunca foram de Cristo. Essa é uma advertência muito séria. Já o crente verdadeiro persevera e aguarda a justiça que provém da fé. Observe que Paulo afirma que isso acontece pelo Espírito
Santo: ele trabalha em nosso coração e em nossa mente, e desse modo nos mantém firmes. Podemos até ser acometidos por graves problemas e dúvidas, é claro, mas o Espírito Santo nos guarda e nos ajuda a superá-los. Há quem pense que ser crente é nunca ter momentos de vacilo, de dúvida ou de questionamento, porém ser crente não garante isso. O que nos está garantido é que, ao passarmos por momentos como esses, o Espírito vai nos ajudar, de modo que perseveremos, não abandonemos a fé e continuemos firmes em Cristo até aquele grande dia em que toda dúvida se dissipará, porque o veremos face a face, conheceremos como somos conhecidos e estaremos na presença de Deus para todo o sempre. Paulo declara ainda: “Em Cristo Jesus nem a circuncisão nem a incircuncisão valem coisa alguma; mas, sim, a fé que atua pelo amor” (v. 6). Com isso, ele quer dizer que a salvação não depende de alguém ser judeu ou gentio, pois ambos são salvos pela fé.
Os falsos mestres Desse ponto em diante, Paulo passa a discorrer sobre os falsos mestres: “Corríeis bem. Quem vos impediu de obedecer à verdade?” (v. 7). A pergunta do apóstolo é retórica, pois ele já sabe a resposta. Foram os falsos missionários judaizantes que enganaram os gálatas com um falso evangelho. Então, Paulo prossegue falando sobre a influência desses homens nas igrejas da Galácia: “Quem vos convenceu a agir assim não vem daquele que vos chama. Com um pouco de fermento toda a massa fica fermentada” (v. 8,9). O apóstolo desmascara assim aqueles falsos mestres ao afirmar categoricamente que eles não vinham de Deus, pois uma influência negativa como essa não poderia vir do Altíssimo. Nesse sentido, Paulo compara a doutrina deles com um fermento que leveda toda a massa em que se infiltra. E essa era justamente a razão do combate que ele estava empreendendo contra eles, porque porque os fal falsos ensinos ensinos e heresi heresias que dissem dissemiinav navam am eram como como um ferm fermen ento to capaz de contami contaminar toda a igreja greja e impedi-la pedi-la de continuar obedecendo à verdade. É por isso que ainda hoje precisamos também combater os falsos mestres, as heresias e os falsos ensinos, porque, como o fermento, eles têm o potencial de contaminar a igreja toda e impedi-la de seguir a verdade de Deus. Paulo faz outra afirmação categórica sobre a má influência dos judaizantes: “Quanto a vós, confio no Senhor que não pensareis de outra forma. Mas aquele que vos perturba, seja quem for, sofrerá condenação” (v. 10). Paulo está triste com a situação, mas ao mesmo tempo mostra-se otimista. Ele acredita que, no final dessa crise, os gálatas vão ter outra disposição e não darão mais ouvidos aos falsos mestres. Mas ainda assim assevera que aqueles que os estão perturbando certamente vão sofrer a justa condenação. No dia do juízo, a mão de Deus cairá rápida e pesada sobre aqueles que torceram o evangelho, perturbaram a igreja e impediram os crentes de seguir a verdade. Pode ser que, neste mundo, eles proliferem e conquistem multidões de seguidores, gente ávida por ouvir palavras que satisfaçam o próprio coração. Deus parece permitir tais coisas para mostrar quem são os verdadeiros crentes. Mas podemos estar certos de uma coisa: naquele dia isso vai acabar. Eles serão condenados e receberão o merecido castigo por suas ações. No versí versícul culoo 11, Paulo Paulo que questi stion onaa a dif difamação amação qu quee os falsos alsos mestres faziam aziam con contra tra ele: ele: “Irm “Irmãos, ãos, se con conti tinu nuoo pregand pregandoo a circuncisão, por que ainda sou perseguido? Nesse caso, o escândalo da cruz estaria aniquilado”. O apóstolo dá a entender que os falsos mestres o estavam acusando de falar pelos dois cantos da boca, porque dizia que a salvação era pela graça em Cristo Jesus, mas havia circuncidado Timóteo. No entanto, ele só fez isso porque Timóteo era judeu. Paulo não via problema em um crente judeu judeu se se circu circunci ncidar dar.. O problem problemaa surg surgia quando quando um um judeu judeu qu queri eriaa que os os genti gentios os se circu circunc nciidassem para ser salvos salvos.. Isso o apóstol apóstoloo não aceitava, porque ia de encontro ao evangelho. No entan entanto, to, tomand tomandoo como exempl exemploo esse caso isolado isolado de Timóteo, os falsos falsos mestres mestres dizi diziam que que Paulo Paulo era hipócri hipócrita, ta, porque também pregava a circuncisão. A resposta de Paulo para essa difamação foi: “Se continuo pregando a circuncisão, por que ainda sou perseguido?”. Por onde quer que passasse, o apóstolo era preso, apedrejado, chicoteado ou denunciado como perturbador da ordem pelos judeus. Portanto, era uma calúnia o que os falsos mestres diziam de Paulo. O apóstolo deixa, por fim, extravasar sua irritação: “Quem dera se castrassem aqueles que vos estão perturbando!” (v. 12). Ele está aqui expressando que, se os falsos mestres tinham tanto interesse assim na circuncisão, que fossem então em frente consigo mesmos e se castrassem de vez! Paulo considerava rebeldia contra Deus a tentativa de impor essa marca ao crente gentio, que assim acabaria negando a fé em Jesus Cristo. É compreensível que estivesse tão indignado com aqueles que estavam pervertendo o simples e puro evangelho de Cristo Jesus.
Conclusão Conclusão e aplicaçõe aplicaçõess Aprendemos com essa passagem que o tipo de tentação que sobreveio aos gálatas pode também nos atingir, só que de outras maneiras. Aqui no Brasil não se fala em circuncisão para os crentes, mas somos tentados por falsos mestres a nos submeter a certas práticas para complementar a salvação, como as boas obras, a caridade etc. Dentro do próprio evangelicalismo, nas seitas neopentecostais, a prosperidade é anunciada como sinal de salvação. Exigem-se determinados sacrifícios, participação em
correntes e tantas outras coisas, como uma uma espécie es pécie de ajuda a juda para que Deus possa salvar salvar o ofertante. ofertante. Contu C ontudo, do, contra c ontra esse tipo de influência teremos de lutar a vida inteira, e até morrer, se quisermos permanecer no puro evangelho. Satanás sempre nos tenta com esse tipo de mensagem. Enquanto permanecemos em Cristo, na cruz, estamos seguros. Mas ele nunca deixa de enviar mensageiros, para que, na hora em que sairmos da cruz, da graça, do evangelho da fé, passemos a dar ouvidos aos falsos mestres, às suas heresias e falsas doutrinas. Quando isso acontece, estamos a um passo de nos desligar de Cristo e cair da graça. Por isso, Paulo adverte: “Permanecei firmes e não vos sujeiteis novamente a um jugo de escravidão”. Com essa advertência, aprendemos também que seremos salvos se permanecermos até o fim. Temos certeza de nossa salvação, porém ela está em processo e só se concretizará se nos mantivermos firmes até o fim, como disse Jesus: “Mas quem perseverar perseverar até o fifim será salvo” salvo” (Mt 24.13). 24.13). Devem Devemos os nos nos valer valer dos mei meios os de graça, da lei leitu tura ra da Palavra Palavra de Deus, Deus, da frequê frequênci nciaa à igreja, da mensagem pregada, da oração, do apego a Deus nas tribulações e nas dúvidas, porque só os que permanecerem é que serão salvos. Infelizmente, muitos caem pelo caminho. Deus tenha misericórdia deles, e de nós também, para que, pelo Espírito, aguardemos a justiça que vem da fé.
Capítulo 14
GUIADOS PELO ESPÍRITO
Gálatas 5.13-26 o capítulo anterior, vimos como o apóstolo Paulo exorta os crentes da Galácia a não se renderem ao ensino dos falsos mestres judaizantes. Caso eles se deixassem circuncidar por aqueles agitadores, estariam se submetendo à escravidão da Lei e abandonando a doutrina da justificação pela graça, mediante a fé em Cristo. Depois de denunciar as más intenções daqueles mercenários, Paulo exorta seus irmãos a que sejam servos uns dos outros pelo amor, o que somente seria possível se eles andassem pelo Espírito Santo, não pela doutrina judaizante:
N
Irmãos, fostes chamad os para a lib erdade. Mas não useis da lib erdade como pretexto para a carne ; an tes, sede servos uns dos out ros pel o amor. Pois tod a a lei se resume numa só ordenança, a saber: Amarás ao próximo como a ti mesmo. Mas se mordeis e devorais un s aos out ros, cuidado para não vos destruirdes mutuamente. Mas e u a firmo: Anda i pelo Espíri to e nu nca sati sfareis os d esejos d a c arne. Porque a ca rne lut a c ont ra o Espíri to, e o Espíri to, c ontra a carne. Eles se opõem um ao outro, de modo que não conseguis fazer o que que reis. Mas, se sois guiados pelo Espírito, já não estais deb aixo da lei. As obras da carne são ev identes, a saber: imoralidade, impureza e indecência; idol atria e feitiça ria; inimizades, rivalidades e ci úmes; ira, ambição egoí sta, discórdias, partidarismo e inveja; bebedeiras, orgias e coi sas semelhantes a essas, contra as quai s vos previno, como já vos preveni ant es: Os q ue as prat icam não herdarão o reino de Deus. Mas o fruto do Espíri to é: amor, aleg ria, paz, paci ênci a, beni gni dad e, bondade, fidelidade, amabilidade e domínio próprio. Contra essas coisas não existe lei. Os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne junta mente com sua s pai xões e de sejos. Se vive mos pel o Espíri to, a ndemos também so b a direção do Espíri to. Não nos torn emos o rgulhoso s, provocan do-no s uns aos ou tros e tendo i nveja un s dos out ros.
Nessa passagem, Paulo aborda os conflitos internos que ocorriam na igreja dos gálatas. Ao que parece, havia brigas e disputas entre eles, a ponto de o apóstolo mencionar com ironia “se mordeis e devorais uns aos outros, cuidado para não vos destruirdes mutuamente” (5.15). Essas brigas aparentemente eram resultado da influência nefasta dos agitadores judaizantes e do legalismo ensinado por eles (5.26). Paulo aponta para o amor como a solução; amor que cumpre a Lei (5.13-15) e que é fruto do Espírito (5.16-26).
Legalismo e libertinagem Paulo começa ressaltando o contraste entre os crentes das igrejas da Galácia e os falsos profetas judaizantes, que estavam pervertendo a fé de muitos gálatas. O apóstolo havia chegado a ponto de desejar que os agitadores se mutilassem totalmente ao praticar a circuncisão (5.12). Em contrapartida, os gálatas eram queridos irmãos, que haviam sido chamados à liberdade em Cristo (5.13). No entanto, havia o risco de os gálatas errarem no outro extremo, o da libertinagem. Não que isso já estivesse ocorrendo; Paulo fala aqui de maneira preventiva. Libertinagem seria uma perversão da liberdade que temos em Jesus Cristo. Ele nos libertou da Lei somente no sentido de que ela não pode mais nos condenar. Essa liberdade da condenação da Lei, mediante a justificação pela fé somente, não implica que somos livres em Cristo para ignorá-la ou deixar de fazer o que ela manda. Por isso, após haver exortado os crentes a não cair no legalismo (que é tentar merecer a salvação por meio das obras da lei), Paulo os adverte contra cair em outro erro igualmente grave, a libertinagem (pensar que a liberdade cristã é uma licença para vivermos em pecado). “Carne” é a nossa natureza pecaminosa, herdada de Adão e Eva. Paulo descreve as suas obras mais adiante (5.19-21). Os judaizantes erravam em ensinar a justificação pelas obras da lei. Por sua vez, os gálatas também corriam o risco de errar ao concluir que, se a justificação é pela fé, logo, não é pelas obras da lei, e assim poderiam usar a liberdade em Cristo como pretexto para “dar ocasião à carne”, alegando que isso não traria qualquer prejuízo à salvação deles. Paulo deseja impedir essa conclusão errada do que ele vinha ensinando o tempo todo na carta, a saber, que Cristo nos libertou da Lei. É verdade que Deus havia chamado os gálatas para a liberdade (5.13). No entanto, essa libertação da Lei não era licença para uma vida na carne, no pecado. Ao contrário, eles eram livres da Lei, mas escravos (“servos”) uns dos outros (5.13c). Deus nos liberta em Cristo da escravidão das regras, normas, estatutos e mandamentos da Lei, porém o faz para que nos tornemos escravos uns dos outros. Somos livres para servir, e servir em amor . Isso leva Paulo ao próximo nível de argumentação: aquilo que os judaizantes queriam por força da Lei os cristãos fazem por amor , não como obrigação meritória.
Quem ama o próximo cumpre a Lei
Paulo resume toda a Lei de Deus no mandamento de amarmos o próximo como a nós mesmos (5.14), um mandamento que já estava em Levítico 19.18. Ou seja, todas as leis que nos foram dadas por Deus através de Moisés, inclusive os Dez Mandamentos, são cumpridas nesta única ação, a de amarmos o nosso próximo da mesma maneira que amamos a nós mesmos. O que o apóstolo provavelmente está querendo dizer é que pelo amor ao próximo eu também demonstro que amo a Deus acima de todas as coisas. Na verdade, só há uma forma pela qual provo que realmente amo a Deus: amando o meu próximo. Quem ama seu próximo não vai falar mal dele, não vai roubar as suas coisas, vai respeitá-lo e não vai dar falso testemunho contra ele. E somente quem ama a Deus de todo o coração vai fazer isso. Nesse sentido, então, todos os preceitos da Lei são cumpridos quando amamos. Essa passagem mostra que o apóstolo, ao denunciar a doutrina judaizante da justificação pelas obras da lei, não estava querendo dizer que a Lei havia perdido o valor para o cristão. Ela permanece como a norma de vida e gratidão para todos aqueles que foram justificados pela fé somente.
Polêmicas da igreja Contudo, parece que os crentes gálatas estavam longe de amar uns aos outros. A advertência de Paulo em 5.15 revela o que estava acontecendo nas igrejas: conflitos, brigas e polêmicas entre os cristãos por causa do ensino dos judaizantes. Quem sabe as igrejas já estavam divididas em grupos, uns seguindo os judaizantes e outros, o ensino de Paulo. A discussão entre eles parece que havia chegado a um ponto extremo. Mesmo que descontemos o tom irônico de Paulo na passagem, ainda assim ela revela uma situação preocupante: os gálatas estavam agindo como animais selvagens empenhados numa luta encarniçada entre si: “Mas se mordeis e devorais uns aos outros, cuidado para não vos destruirdes mutuamente” (5.15). É este o efeito que as heresias e falsos ensinos provocam nas igrejas: lutas e conflitos que acabam gerando separações e divisões. Esse ciclo tem se repetido ao longo da história da igreja cristã. É no mínimo interessante que a palavra grega para “heresia” significa facção ou divisão. O “homem faccioso” que Paulo menciona em Tito 3.10 é, literalmente, “o homem herético”, aquele que provoca dissensões e divisões por meio de heresias. Assim eram os falsos mestres judaizantes. E assim são os falsos mestres hoje.
Somente dois caminhos Em contraste com as brigas entre os gálatas, Paulo apresenta a vida no Espírito como o caminho para o amor que cumpre todos os mandamentos e vence a carne: “Mas eu afirmo: Andai pelo Espírito e nunca satisfareis os desejos da carne” (5.16). Aqui e nos versículos seguintes podemos verificar que Paulo associa a doutrina da justificação pela fé ao andar no Espírito e ao fruto do Espírito. Quem anda no Espírito não satisfaz os desejos da carne, não está sob a Lei, dá o fruto do amor e já foi crucificado com Cristo (5.16,18,22-24). Em contraste, os que vivem debaixo da Lei vivem na carne, que produz suas obras pecaminosas e traz condenação ao final (5.19-21). São dois sistemas opostos, duas maneiras de viver contrárias entre si. A vida no Espírito trará a vida eterna, e a vida debaixo da Lei, a condenação eterna. Paulo deseja que os gálatas entendam bem o que está em jogo: o legalismo judaizante não era simplesmente outra maneira de interpretar o evangelho de Cristo, mas, sim, uma contradição, uma negação completa dele. Tentar se justificar perante Deus pelas obras da lei faz parte dos “princípios elementares” deste mundo (4.3,9), o qual está caído e destinado à condenação. É viver sob o domínio da carne. Em contraste, ser justificado pela fé em Jesus Cristo é o caminho de Deus, que nos livra do jugo da Lei e pelo Espírito Santo nos livra também do poder da carne sobre nós. Andar no Espírito
Examinemos mais de perto o que Paulo ensina sobre isso. Ele promete aos gálatas que, se andarem no Espírito, nunca satisfarão a concupiscência da carne (5.16). Essa negativa radical está ancorada no poder do Espírito Santo, o qual os gálatas já tinham recebido quando creram em Jesus (3.2). O Espírito foi enviado, pela graça, ao coração deles, como resultado de terem sido aceitos por Deus como seus filhos (4.6). Se os gálatas andassem debaixo do poder e da orientação do Espírito, teriam força suficiente para resistir aos desejos carnais de sua natureza pecaminosa. Isso era necessário, pois havia neles — assim como há em nós — um conflito constante entre a carne e o Espírito: “Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne, porque são opostos entre si; para que não façais o que, porventura, seja do vosso querer” (5.17, ARA). Paulo já havia contrastado a carne e o Espírito. Ao se colocarem outra vez debaixo da Lei, os gálatas estavam tentando aperfeiçoar na carne aquilo que haviam começado pelo Espírito (3.3). Ismael havia nascido segundo a carne (escravidão debaixo da Lei) e perseguia Isaque, que era nascido segundo o Espírito (filho da promessa) (4.29). Em ambos os casos, podemos entender carne e Espírito como estes dois sistemas de salvação: salvação pelas obras (carne) versus salvação pela fé (Espírito). Assim, não estaríamos errados em atribuir primeiramente esse sentido ao contraste nessa passagem (5.17). Carne e Espírito são dois sistemas de salvação — a carne é a salvação pelas obras; o Espírito é a salvação pela fé em Cristo somente. Eles são opostos, e a relação que têm entre si é de guerra constante. Não há possibilidade de paz ou acordo. O verbo
que Paulo usa para descrever esse antagonismo é militar , que significa combater, fazer guerra. Isso também aponta para o fato de que não nos resta uma terceira via ou meio-termo: “para que não façais o que, porventura, seja do vosso querer” (5.17b, ARA). Contudo, o contexto sugere que, mesmo não tendo abandonado a ideia de que carne e Espírito representam dois sistemas opostos de salvação, Paulo usa os dois termos no sentido ético e pessoal, isto é, indicando um constante conflito interno entre os desejos pecaminosos (carne) e os desejos de santidade (Espírito). Nossa carne constantemente se inclina ao pecado, mas o Espírito que habita em nós resiste a ela, configurando-se assim um conflito interminável em que nenhum dos dois antagonistas, neste mundo, terá completo controle sobre nós. Jamais seremos tão guiados pelo Espírito a ponto de nunca mais cometermos pecado. E a carne jamais nos dominará tão intensamente a ponto de sufocar definitivamente o Espírito Santo em nossa vida. E estamos presos neste conflito, de forma que não fazemos o que queremos, quer seja cometer pecados, quer seja viver de maneira santa. Contudo, se há alguma vitória, ela é do Espírito: “Se sois guiados pelo Espírito, já não estais debaixo da lei” (5.18). Ser guiado pelo Espírito é a mesma coisa que andar no Espírito (5.16). Como já dissemos, os gálatas já haviam recebido o Espírito pela fé em Cristo (3.2; 4.6). Portanto, como filhos de Deus, eles não eram mais escravos. Não estavam mais debaixo da Lei e da condenação que ela traz sobre as obras da carne. Note que, no versículo anterior, o contraste era entre a carne e o Espírito; mas, agora, o contraste é entre a Lei e o Espírito, o que demonstra que, na mente de Paulo, estar debaixo da Lei e viver na carne são a mesma coisa. A vida no Espírito é a única alternativa vitoriosa contra o legalismo e a vida na carne. As obras da carne
Havendo mencionado a “carne”, Paulo passa a descrever como ela se manifesta na vida daqueles que andam debaixo da Lei, segundo os princípios elementares deste mundo (5.19-21). As “obras da carne” constituem a maneira de viver dos que não herdarão o reino de Deus. É aquilo que as pessoas praticam de acordo com sua natureza pecaminosa. O apóstolo diz que tais obras “são evidentes” (5.19). Os gálatas certamente estavam familiarizados com elas. Eles haviam praticado essas obras antes de serem alcançados pelo evangelho da fé em Jesus Cristo. Assim mesmo, Paulo faz uma relação delas, para que não reste nenhuma dúvida. Paulo parece agrupar as “obras da carne” em quatro categorias: 1) pecados sexuais; 2) manifestações religiosas erradas; 3) pecados referentes ao relacionamento com o próximo; 4) atitudes coletivas pecaminosas. Os pecados sexuais são a imoralidade, a impureza e a indecência (5.19), pecados bastante comuns entre os gentios e tolerados na cultura grega da época. A impureza e a indecência estão mais relacionadas com a mente e o coração, e a imoralidade é a prática desses desejos. Essas atitudes e práticas eram bem conhecidas dos gálatas, que nelas haviam vivido antes de serem alcançados pelo poder transformador do evangelho de Cristo. A idolatria e a feitiçaria (5.20a) eram manifestações religiosas que caracterizavam a cultura helênica. As mais diversas religiões do mundo daquela época giravam em torno da adoração e do culto de imagens de escultura, bem como da prática de artes mágicas, encantamentos, bruxaria e contato com os mortos. Essas eram as religiões de que os gálatas foram adeptos antes de conhecer o evangelho da graça. Paulo as considera “obras da carne”. Elas são uma expressão pecaminosa da religiosidade humana sem Deus (veja Rm 1.18-32). Não há nada de inocente e puro nas religiões pagãs que adoram animais, árvores, rios e montanhas e que invocam os deuses através de práticas ocultistas. Os gálatas estariam perdidos e condenados se o evangelho não tivesse chegado até eles. O grupo de pecados referentes ao relacionamento com o próximo é o maior: inimizades, rivalidades, ciúmes, ira, ambição egoísta, discórdias, partidarismo, inveja (5.20-21a). Essas obras da carne descrevem os pecados que caracterizam as relações humanas e que, igualmente, eram bem conhecidas dos gálatas. Pelo que o apóstolo havia escrito pouco antes, “se mordeis e devorais uns aos outros, cuidado para não vos destruirdes mutuamente” (5.15), essas manifestações carnais expressavam bem o clima de conflito interno que as igrejas estavam experimentando por causa das dissensões causadas pelos agitadores judaizantes. Notemos que Paulo as coloca no meio da lista, ao lado de pecados como prostituição, idolatria e feitiçaria. Embora para muitos a ira seja um pecado menor, ela figura ao lado de impureza sexual. Infelizmente, as igrejas evangélicas têm a tendência de encarar os pecados sexuais como mais graves que os de relacionamento. Contudo, Paulo os coloca lado a lado e declara que quem os pratica não herdará o reino de Deus. A inveja condena ao inferno tanto quanto a lascívia. Por fim, na categoria de atitudes coletivas pecaminosas, temos bebedeiras e orgias (5.21), que descrevem a maneira pela qual a maioria dos pagãos se divertia. As famosas orgias não caracterizavam somente a vida pública dos romanos, mas era uma prática disseminada entre todos os povos influenciados pela cultura helênica. Noites regadas a bebida, comida e sexo, na verdade, sempre estiveram presentes nas culturas em que a degradação moral era crescente. Essas “obras da carne” expressam falta de controle e moderação e a busca insaciável de satisfazer os desejos mais básicos da natureza humana decaída. Escrevendo aos efésios, e referindo-se aos gentios em geral, Paulo diz: “Havendo se tornado insensíveis, entregaram-se à devassidão, para cometer com avidez todo tipo de impureza” (Ef 4.19). As bebedeiras e as orgias expressavam bem essa maneira de viver.
A lista poderia ser maior, mas Paulo a encerra dizendo apenas “e coisas semelhantes a essas” (5.21a). Ela pode ser completada, porém, com obras da carne mencionadas pelo apóstolo em outras listas (cf. 1Co 6.9,10; Rm 1.28-32). Por fim, ele faz uma forte advertência aos gálatas quanto a essas obras: “Os que as praticam não herdarão o reino de Deus” (Gl 5.21c). Talvez uma das razões pelas quais o apóstolo listou as obras da carne nessa passagem foi facilitar a identificação delas por parte dos seus leitores. Quando Paulo esteve pessoalmente entre eles, por ocasião da fundação da igreja, já havia prevenido os gálatas sobre elas em sua pregação (5.21b). Note a ênfase contida no verbo “praticar”. Paulo está consciente de que é possível que um crente verdadeiro venha a tropeçar e cair em um desses pecados. Todavia, aqueles que vivem na prática deles não podem ser considerados verdadeiros cristãos. Não podemos deixar de perceber novamente nessa passagem a relação entre as obras da carne e as obras da lei. Embora pareçam ser duas coisas radicalmente opostas, elas têm em comum o fato de que ambas são “obras”. As obras da carne são a expressão pecaminosa da natureza humana. As obras da lei são a expressão religiosa da natureza humana. Ambas pertencem ao que Paulo chama de “princípios elementares do mundo” aqui mesmo nesta carta (Gl 4.3,9). E, para ambas, a solução é a doutrina da justificação pela fé em Jesus Cristo.
O fruto do Espírito Várias tentativas têm sido feitas pelos estudiosos para classificar as nove qualidades aqui mencionadas pelo apóstolo Paulo. Talvez ele não tenha tido a intenção de oferecer uma lista por ordem ou categorizada. Nunca saberemos isso com exatidão. Nesse aspecto, qualquer tentativa de catalogação sempre parecerá superficial. O que chama a atenção do leitor, logo de saída, é o fato de que Paulo se refere ao fruto do Espírito no singular. Quando ele tratou da carne, nos versículos anteriores, ele utilizou o plural: “obras da carne”. Qual teria sido a razão? Talvez Paulo tenha desejado mostrar o caráter caótico e multiforme das manifestações da nossa natureza carnal, referindo-se a elas como “obras”. Contudo, debaixo do poder do Espírito Santo, o cristão produz o fruto, único, coeso, apontando para uma vida consistente, caracterizada por nove virtudes bastante similares (5.22,23). A primeira delas é o amor , que parece ser o fruto principal do qual os demais derivam. Em seguida vem a alegria, que certamente é de natureza espiritual, decorrente da salvação pela fé e das bênçãos derramadas pelo Espírito Santo. A paz é o resultado da reconciliação com Deus mediante a fé em Jesus Cristo. A paciência, ou longanimidade, é a capacidade de suportar o sofrimento, na esperança da recompensa de Deus. A benignidade se caracteriza pela simpatia e gentileza para com os outros; e a bondade, pela busca e o empenho pelo bem do próximo. A fidelidade leva o crente a fazer o que promete de maneira consistente, e a amabilidade, ou mansidão, reflete o caráter manso do Cordeiro de Deus, sobre quem repousou a pomba do Espírito Santo. Por fim, o domínio próprio reflete o poder do Espírito Santo contra as manifestações das obras da carne mencionadas no parágrafo anterior. Notemos que esse fruto é do Espírito. Isso significa que é graças à atuação dele em nós que essas qualidades podem ser experimentadas. É evidente o contraste que Paulo está fazendo entre uma vida no Espírito, debaixo da graça, fundada e enraizada na justificação pela fé, e a vida debaixo da Lei, no poder da carne, debaixo dos princípios elementares deste mundo. Os resultados práticos são claramente diferentes. E Paulo enfatiza essa diferença dizendo que “não existe lei” contra o fruto do Espírito, contra essas atitudes espirituais, uma vez que elas são, em última análise, o cumprimento da santa lei de Deus (5.23). A base para a ação do Espírito em nós é o fato de que nossa natureza carnal já foi crucificada com Cristo Jesus, bem como as paixões e os desejos malignos que caracterizam essa natureza (5.24). O Espírito Santo aplica em nós os benefícios da crucificação, dando-nos o poder necessário para mortificar as obras da carne. O Espírito age com base na cruz. Ela é o fundamento não somente da justificação pela fé, mas também da nossa santificação diária. Paulo termina essa seção com um apelo aos gálatas para que sejam coerentes. Se eles dizem que vivem no Espírito, que andem também “sob a direção do Espírito” (5.25), isto é, exibindo o seu fruto e mortificando as obras carnais. Além disso, eles deveriam evitar a vanglória, que sempre é o resultado da tentativa de se justificar por obras da lei, o que leva também a comparações e provocações mútuas, trazendo por fim inveja uns dos outros (5.26). Tal é o resultado dos que tentam viver para Deus através do seu esforço carnal de obedecer às obras da lei.
Conclusão e aplicações Do que Paulo escreveu nesse trecho, fica evidente que não existe a menor possibilidade de alguém vencer a carne a não ser mediante sua união com Cristo pelo poder do Espírito Santo. Os não regenerados estão debaixo do poder da carne e do pecado e, portanto, debaixo da condenação da Lei. Vemos também que não há como um não regenerado se justificar diante de Deus. As obras da lei não são capazes de mortificar a carne e vencê-la. O legalismo é somente uma capa para cobrir e esconder o domínio do pecado no coração.
Por fim, os cristãos deveriam analisar-se com bastante seriedade à luz das listas de obras da carne e do fruto do Espírito que Paulo nos apresenta. Uma vida na carne pode ser indicadora de que algo está fundamentalmente errado. Será que fomos de fato justificados de nossos pecados?
Capítulo 15
COMO RESTAURAR UM IRMÃO
Gálatas 6.1-5
N
o início do capítulo 6, Paulo trata das questões de como restaurar espiritualmente um irmão e trata também de nossa responsabilidade pessoal na vida cristã. Nos versículos 1 a 5, ele diz:
Irmãos, se alg uém for su rpreendid o em a lgu m pe cado , vó s, qu e sois espiri tua is, d evei s restau rar essa pessoa com espíri to de humil dade . E cuida de ti mesmo, para que não sejas tentado também. Levai os fardos uns dos outros e assim estareis cumprindo a lei de Cristo. Pois, se alguém pensa ser importante, não sendo nada, engana a si mesmo. Mas cada um avalie seu próprio procedimento e, então, terá motivo para orgulho somente em si mesmo e não no s outros; porque cada um carregará o seu próprio fardo.
Nesses cinco versículos, o apóstolo ensina a igreja a como ajudar um irmão que venha a cometer algum pecado. O cuidado de Paulo em tratar especificamente desse assunto em sua carta evidencia que mesmo o crente verdadeiro pode ser surpreendido em alguma falta. De fato, ele não é perfeito e poderá tropeçar e cair. O apóstolo também ensina qual é a melhor atitude que a igreja deve ter em uma situação como essa, instruindo-a sobre o espírito que deve orientar a aproximação desse irmão. Além disso, ele adverte a todos os cristãos que não podemos nos comparar com outras pessoas, mas apenas avaliar aquilo que nós mesmos fazemos diante de Deus. Veremos que, para seguir tudo que Paulo nos recomenda nessa passagem, necessitamos de muita humildade e verdadeira obediência à lei de Cristo, que é o amor.
Todos nós podemos errar Na primeira parte do versículo 1, Paulo escreve à igreja dos gálatas: “Irmãos, se alguém for surpreendido em algum pecado...”. Em primeiro lugar, o apóstolo fala explicitamente sobre a possibilidade de alguém ser surpreendido em alguma falta e, logo de início, fica claro que ele não está se referindo a descrentes ou pessoas alheias à comunidade cristã. O vocativo “irmãos” evidencia que Paulo está se dirigindo à igreja. A orientação que ele dará a seguir, portanto, diz respeito a membros da igreja que eventualmente venham a ser surpreendidos em algum pecado. Essa primeira oração, porém, mesmo no texto em grego, apresenta uma ambiguidade. Paulo pode estar falando sobre o caso de a igreja surpreender um de seus membros fazendo algo errado, ou o que ele escreve pode ser lido de outra maneira: algum irmão, de repente, é tomado de surpresa pelo pecado e, em sua fraqueza, peca sem premeditação. Nesse sentido, ele é surpreendido por seu pecado, não por alguém da igreja que o flagra em algum ato pecaminoso. Esse irmão corre do pecado, mas o pecado corre mais do que ele e o surpreende como um leão que pula de repente sobre a presa. A pessoa é tomada de surpresa por aquela tentação súbita, violenta, e então cai. Creio que o apóstolo se refere aqui ao último sentido, porque, se ele tem em vista os crentes em Jesus, não devemos imaginar que seja próprio do crente planejar pecados. O pecado na vida do cristão tem de ser acidental, algo que o apanhe de surpresa. Não deve ser algo que ele planeja ou arquiteta como o fará e em que sentido pecará, porque, caso faça isso, ou não é crente ou a situação é muito mais grave do que parece. Só peca por premeditação quem tem o coração enredado no pecado, cuja mente já está obscurecida e a consciência já não emite os sinais corretos, enquanto ele faz seus planos. Por isso, creio que é preferível tomar aqui como mais adequado o último sentido, ou seja, o irmão está tranquilo e de repente o pecado, como um leão à espreita, o surpreende. Nesse caso, a tentação é repentina, violenta, e, se o crente não está vestindo a armadura de Deus, é apanhado com a guarda baixa e cai em pecado. A necessidade de vigilância
A possibilidade de o cristão pecar é bastante real. Não foi por acaso que o Senhor Jesus alertou seus discípulos: “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; o espírito está pronto, mas a carne é fraca” (Mt 26.41). O espírito está pronto — nossos pecados foram perdoados, fomos reconciliados com Deus, aceitos como seus filhos e justificados —, mas ainda temos uma natureza pecaminosa. O velho homem permanece em nós e está à espreita aguardando o momento em que possa se assenhorear de nós e nos dominar novamente — e isso às vezes acontece. A vigilância é, portanto, necessária para que o pecado não nos surpreenda. Nesse sentido, não pecar não é o bastante; é preciso evitar tudo que possa nos conduzir ao pecado. Precisamos nos prevenir contra a tentação, porque a carne é fraca. Os cristãos que se aproximam demais do pecado, confiantes de que são fortes o bastante para enfrentá-lo, têm às vezes surpresas terríveis. Sabemos que somos pecadores, que a tentação é grande e que nossos inimigos não são carne e sangue, e sim os
principados e potestades (Ef 6.10-13). Por isso, se temos consciência de que o caminho que estamos trilhando pode se tornar escorregadio, é sábio mudar de trajeto em vez de enfrentá-lo descuidadamente, pois o pecado pode nos surpreender. Sendo assim, o crente deve evitar não só o pecado, mas todas as situações que possam levá-lo a pecar. Eu me recordo da história de um diácono que foi disciplinado na igreja porque sempre chegava bêbado e atrasado à escola dominical. Ele morava numa fazenda e ia para a igreja em seu cavalinho. Quando chegava à frente do prédio, tinha de amarrar o animal em algum lugar. Havia na igreja uma peça de madeira destinada a esse fim, mas que havia quebrado, e ninguém a consertava. O diácono então passou a amarrar o cavalo diante de um bar nos arredores. Mas, como era fraco para a bebida, cada vez que apeava, não resistia à tentação de tomar uns tragos antes de ir para a igreja. Mesmo assim, ele sempre escolhia amarrar sua montaria bem na entrada do bar; então, entrar e tomar algo se tornava a coisa mais fácil do mundo. Semana após semana, aquele cristão brincava com a tentação e quase sempre saía derrotado. Assim como esse homem, se você não evita uma situação que sabe que vai tentá-lo, está pedindo para cair em tentação. O crente não somente deve fugir da tentação; deve fugir de todas as ocasiões em que sabe que será tentado. Pela mesma razão, devemos fugir de determinadas companhias e evitar certos ambientes. Às vezes, alguns cristãos ficam perguntando se é errado ou proibido ir a determinado lugar, ou se devem ou não andar com certas pessoas, mas a questão é mais profunda do que isso. Não é que essas coisas sejam em si mesmas erradas. O problema é que, em certos casos, podemos nos expor demais e acabar surpreendidos pelo pecado. Por isso, a Bíblia adverte: “Aquele que pensa estar em pé, cuidado para que não caia” (1Co 10.12). A tentação vem de maneira súbita, e Satanás sabe o momento exato de nos tentar. Assim, o pecado pode nos tomar de assalto e, por causa da fraqueza de nossa carne, podemos acabar cedendo e fazer algo que não queríamos a princípio. A perfeição é nosso alvo
Embora escrever neste livro que o crente não é perfeito seja “malhar em ferro frio”, essa é uma realidade que precisa ser lembrada sempre. Se, por um lado, há irmãos que pecam por achar que o crente vive mesmo pecando, por outro lado, existem os que vão ao extremo oposto, confiantes de que podem alcançar alguma perfeição neste mundo; mas com o tempo, é óbvio, acabam errando também. Algumas igrejas evangélicas insistem na possibilidade da perfeição, em geral com base nos ensinamentos de John Wesley, um grande homem de Deus e excelente pregador, mas que sustentava essa ideia equivocada. Wesley considerava o batismo do Espírito Santo o “batismo do perfeito amor”. Segundo ele, a certa altura da vida cristã, o crente recebe esse batismo e passa a amar a Deus e ao próximo com amor tal que não pode mais pecar: entra num estágio de perfeição absoluta. No entanto, na tradição reformada, não pensamos assim. Entendemos que a Palavra de Deus estabelece a perfeição como um alvo na vida do crente. É claro que devemos procurar ser perfeitos, pois o próprio Jesus disse: “Sede [...] perfeitos, assim como perfeito é o vosso Pai celestial” (Mt 5.48). Todavia, o fato de nosso alvo ser a perfeição não quer dizer que ela será alcançada neste mundo. Embora devamos procurar com todo o coração agradar a Deus e buscar ser perfeitos em tudo, ainda assim conviveremos até o último dia de vida com nossa natureza pecaminosa, com o pecado que habita em nós e provoca conflitos e lutas constantes. Devemos, sim, buscar a perfeição, porém precisamos, ao mesmo tempo, humildemente reconhecer que só a alcançaremos de fato no mundo vindouro, quando o Senhor Jesus retornar e o nosso corpo for transformado e ressuscitado pelo seu poder. Sendo assim, não devemos nos surpreender quando, infelizmente, um crente cai em alguma falta. Embora não seja o que cada um de nós pretende, sabemos da possibilidade de que isso aconteça. Em uma comunidade de anjos ou de seres perfeitos, seria algo espantoso; contudo, fazemos parte de uma comunidade de pecadores — redimidos, é verdade, mas ainda pecadores. Não estou dizendo com isso que devemos ver o pecado como uma coisa natural e nos acostumar com ele; o que quero ressaltar é que, caso fiquemos sabendo de um irmão surpreendido em alguma falta, não devemos pensar que é o fim do mundo, que a igreja falhou ou que o evangelho é inútil. De fato, há pessoas que culpam o evangelho quando algum crente peca. Se, por exemplo, um pastor é apanhado em adultério ou roubando dinheiro da igreja, elas logo começam a perguntar: “Que igreja é essa?”, ou pior: “Que evangelho é esse?”. Contudo, essas pessoas não compreendem que o próprio evangelho afirma que somos pecadores, passíveis de falhas. Quando erramos, foi porque deixamos de obedecer ao que ele ensina. Não foi, portanto, uma falha do evangelho; nós é que deixamos de ser fiéis, deixamos de andar de acordo com as palavras de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.
A correta atitude da igreja Prosseguindo, no versículo 1, Paulo instrui os gálatas: “... vós, que sois espirituais, deveis restaurar essa pessoa...”. Se alguém for surpreendido em alguma falta, o que a igreja deve fazer? O apóstolo afirma de modo claro que ela deve corrigir esse irmão e põe essa responsabilidade sobre determinado tipo de cristão: “...vós, que sois espirituais...”. O que Paulo quer dizer com isso? Quem são esses crentes “espirituais”? Há duas possibilidades de interpretação. Paulo pode estar se referindo nesse trecho aos membros mais maduros e experientes, que levam uma vida equilibrada e não são apanhados em falta alguma. Seriam
então irmãos com autoridade espiritual para chegar ao irmão que está em pecado e corrigi-lo. Essa interpretação, todavia, apresenta uma dificuldade, porque introduz uma divisão dentro da igreja entre “carnais” e “espirituais”. Os carnais seriam aqueles que andam segundo a carne e, por isso, são surpreendidos pelo pecado, e os espirituais seriam aqueles que nunca são surpreendidos em alguma falta. Há, porém, uma segunda interpretação possível, que talvez seja melhor. Paulo estaria se referindo especificamente à liderança da igreja e, quando qualifica os que a compõem como “espirituais”, não está presumindo que os demais membros não sejam, mas que os líderes, pelo requisito de terem uma vida consistente e madura, podem ser apropriadamente assim chamados. Esses irmãos espirituais seriam então os presbíteros, os pastores e outros ministros da igreja, que são assim identificados não só porque vivem no Espírito e servem de exemplo para os demais, mas também por terem sido agraciados pelo Espírito Santo com o dom e o ofício necessários para governar e pastorear a igreja. Contudo, quer seja a primeira a interpretação mais correta, quer seja a segunda, o que exatamente esses irmãos espirituais devem fazer? Essa é a questão que mais importa aqui. O texto expressa numa única palavra o que a igreja deve fazer: “restaurar” (“corrigir”, na ARA). A igreja deve ajudar o irmão surpreendido em algum pecado, seja por intermédio de membros mais maduros, seja por meio de sua liderança. Enfim, o que mais importa é que essa medida seja tomada. Restaurar ou corrigir significa recolocar no caminho certo aquilo que está errado. E existem várias maneiras de fazer isso, como veremos a seguir. Diferentes maneiras de corrigir um irmão
Em determinadas situações, cabe um alerta, porque nem sempre todas as dimensões do erro estão claras. Faz parte do processo de correção chamar o membro que está cometendo a falta e instruí-lo na Palavra de Deus, a fim de lhe mostrar em que consiste sua falta. Às vezes, porém, só isso não basta. É necessário confrontar o faltoso e mostrar que ele tem de assumir as consequências de seus erros. Algumas faltas têm consequências apenas entre a pessoa e Deus, mas há ocasiões em que a falta envolve outras pessoas, que saem machucadas. Nesses casos, corrigir o irmão faltoso significa levá-lo a reparar o erro, a pedir perdão, a se reconciliar, a devolver o que tirou, por exemplo. Enfim, ele precisa desfazer de alguma forma o mal que causou. Há ainda casos em que uma medida mais séria se faz necessária. Pode começar com uma advertência: se o membro não consertar seus caminhos, não poderá continuar a ser membro da igreja de Deus. É esperado e previsível que alguns de nós eventualmente caiamos em pecado. No entanto, se alguém insiste em continuar no pecado, endurece o coração, não se arrepende nem se dispõe humildemente a resolver os problemas que causou, já está dando mostras de que algo mais grave está ocorrendo, que o erro é mais profundo. Pode ser o caso de que a pessoa nem seja de fato crente, por isso não pode continuar como membro da comunidade. Desse modo, a correção em casos como esse pode significar até a exclusão da igreja. Se depois de todas essas tentativas de correção por parte dos “espirituais” da igreja um membro não se arrepender e não mudar de atitude, ele mesmo se sujeitou a ser excluído da comunidade, porque não tem espírito de arrependimento nem de quebrantamento. Deus não espera de nós a perfeição, mas espera quebrantamento, arrependimento, humildade, reconhecimento de nossos pecados e disposição para mudar de atitude.
Quatro atitudes que devem caracterizar a correção Independentemente da real situação em que se encontra o irmão que está em pecado, Paulo recomenda quatro atitudes que devem caracterizar a correção que ele receberá. Essas atitudes podem ser depreendidas desde o final do versículo 1 até o versículo 5: “... com espírito de humildade. E cuida de ti mesmo, para que não sejas tentado também. Levai os fardos uns dos outros e assim estareis cumprindo a lei de Cristo. Pois, se alguém pensa ser importante, não sendo nada, engana a si mesmo”. Primeira atitude: brandura
Todos os estágios do processo de correção do membro que for surpreendido em uma falta devem ser caracterizados pelo espírito de brandura, não por palavras ásperas, censuras violentas e descabidas ou qualquer atitude rude. A razão é que sempre partimos do pressuposto de que se trata de um irmão na fé. Se formos afáveis ao restaurá-lo, haverá boas chances de ele corrigir seus caminhos. Mas, ao contrário disso, se nos aproximarmos dele com uma atitude de crítica e condenação, não estaremos contribuindo para que seja restaurado. Portanto, em vez de emitir censuras e condenações, tratemos o faltoso com amabilidade, porque “a resposta branda desvia o furor, mas a palavra dura provoca a ira” (Pv 15.1). Se o irmão em pecado perceber que está sendo corrigido com amor por pessoas que têm interesse real em sua recuperação, ele será convencido de seu erro mais facilmente. Às vezes, irmãos bem-intencionados se dispõem a corrigir um irmão em pecado, mas, por falta de sabedoria e de experiência, despejam sobre ele uma torrente de impropérios, críticas e condenações. A questão não é que aquilo que estão dizendo esteja errado, mas eles estão falando a verdade sem amor — palavras certas com a atitude errada. A falta de sabedoria ao corrigir uma
pessoa que já está com a consciência pesada, num grande conflito interior, só faz afastá-la ainda mais e provoca revolta e endurecimento de coração. Por isso, se você não tiver certeza de que tratará o irmão faltoso com a brandura que a situação exige, deixe a tarefa para os “espirituais”. Comunique à liderança da igreja, e assim irmãos mais experimentados e maduros poderão restaurá-lo, e você não carregará a culpa de contribuir para o afastamento de alguém que poderia ter sido restaurado. A atitude branda também é recomendável quando corrigimos os filhos, quando a mulher critica o marido ou quando o marido “lembra” a esposa de que ela está fazendo alguma coisa errada. Quantos conflitos no casamento e brigas em família ocorrem justamente por não haver a atitude correta nesses momentos! Em muitas ocasiões, a mulher está absolutamente certa, mas o tom da voz lhe tira a razão. Em tantas outras, o marido tem razão, mas o modo com que fala está errado. Em geral, os pais estão certos ao corrigir os filhos em diversos casos, mas o tom da voz pode causar neles só irritação e revolta. Certamente, muitos conflitos, divórcios e atos de rebeldia seriam evitados se atentássemos para essa simples recomendação de Paulo. Segunda atitude: cuidar de nós mesmos
Outra recomendação de Paulo na hora da correção é que temos de nos guardar para que também não sejamos tentados. Quando corrigimos uma pessoa, devemos ter em mente que poderíamos estar no lugar dela. O fato de que também podemos errar deve tirar o orgulho de nosso coração e afastar a arrogância. Quem corrige não deve pensar que é melhor do que o irmão faltoso, daí o alerta de Paulo: “Cuida de ti mesmo, para que não sejas tentado também”. A verdade é que a tentação atinge a todos, inclusive os “espirituais”. Não há distinção, e todos somos tentados de muitas maneiras. Por que então o apóstolo nos dá, em um contexto tão específico, esse alerta de que devemos cuidar para não sermos também tentados? Porque a pior coisa do mundo é cairmos no mesmo erro que ajudamos alguém a corrigir. Chegamos para corrigir uma pessoa naquilo em que ela foi apanhada e, de repente, nós mesmos passamos a fazer aquilo que estamos tentando corrigir. Então, isso tira nossa autoridade e a eficiência da correção. Assim, até mesmo os cristãos mais maduros e experientes precisam ter cuidado para que não sejam tentados e surpreendidos pelo mesmo pecado, porque aquele que está corrigindo não é melhor do que o que está sendo corrigido. Todos somos pecadores e passíveis de ser tentados da mesma forma e cometer os mesmos erros. Terceira atitude: assumir o fardo do outro
Paulo recomenda ainda: “Levai os fardos uns dos outros e assim estareis cumprindo a lei de Cristo” (v. 2). Alguns intérpretes entendem que Paulo passa a tratar aqui de um novo assunto, enquanto outros acreditam que ele continua a instruir a igreja sobre o irmão surpreendido em falta. Nessa segunda perspectiva, os fardos seriam as tristezas causadas pela culpa, a angústia e o sofrimento que o pecado faz recair sobre quem o cometeu, como verdadeiras cargas sobre suas costas. Contudo, ainda que Paulo não esteja mais se referindo ao mesmo assunto, é sempre bom que a igreja ajude os irmãos surpreendidos em alguma falta a carregar o fardo que está sobre ele. Muitos irmãos genuínos que foram feridos pelo pecado passam a carregar um fardo muito grande. Como já foi dito, o pecado tem consequências graves, e o cristão que peca sente o peso dessas consequências. Por si só, já não é fácil suportar a consciência do próprio erro. Por isso, Paulo recomenda que levemos as cargas uns dos outros. Lembre-se de que o apóstolo está escrevendo a um público que pensava que o cumprimento da Lei de Moisés lhe garantiria a salvação. Em contraste, o apóstolo está estabelecendo aqui como padrão válido a lei de Cristo, que é o amor, pois só o amor fará que levemos as cargas uns dos outros. Em vez de colocar mais carga sobre o irmão que caiu e está ferido, devemos posicionar nossos ombros sob o fardo dele, a fim de que o peso da culpa se torne suportável. O crente verdadeiro que é surpreendido em pecado, mesmo depois de confessá-lo e se arrepender, pode ficar extremamente deprimido. Seu sofrimento poderá ser muito intenso, por isso ele precisará de apoio, de encorajamento e da certeza do perdão de Deus. Há pessoas que demoram muito tempo para se perdoar. Elas se arrependem, pedem perdão a Deus e até acreditam que ele as perdoou, mas a consciência de seu pecado é tão intensa que não conseguem se perdoar. Pessoas assim precisarão se sentir aceitas outra vez na comunidade e também perdoadas pelos irmãos. Daí serem imprescindíveis palavras de encorajamento, de apoio e de amor. É isso que significa, nesse contexto, levar as cargas uns dos outros e assim cumprir a lei de Cristo. Quarta atitude: humildade
Outra atitude que se exige daqueles que vão corrigir um irmão que caiu é a humildade (v. 3-5). É muito fácil nos colocarmos numa posição de superioridade ao corrigir uma pessoa nessa situação, porque ela é quem está caída e nós somos os que estão “por cima” lhe estendendo a mão. Se a estamos ajudando, ensinando e corrigindo, não é difícil pensar que somos alguma coisa. Em ocasiões assim, podemos cair na tentação de nos comparar com aquele que foi surpreendido em pecado, pois em geral tendemos a nos considerar melhores do que alguém que adulterou ou foi apanhado fazendo o que não devia no trabalho, ou do que uma pessoa que perdeu a paciência e disse o que não devia, e assim por diante.
A arrogância espiritual é um pecado que persegue os cristãos. Temos o hábito de nos medir uns aos outros e, quando fazemos isso, em geral nos julgamos superiores aos demais irmãos, especialmente quando se trata daqueles que caem em pecado. Paulo nos adverte sobre essa atitude de arrogância e de superioridade espiritual: “Se alguém pensa ser importante, não sendo nada, engana a si mesmo” (v. 3). Não custa lembrar: o irmão caído poderia ser você. E, se hoje você está de pé, amanhã poderá cair. O pecado da comparação pode nos surpreender de maneira que nem podemos imaginar. Certa vez, ao regressar de uma viagem aos Estados Unidos, sentei-me no avião perto de um casal. Percebi que a mulher precisava de ajuda com a criança que estava com ela e fiquei criticando o homem em meu íntimo, porque ele em nenhum momento se dispôs a ajudar. Fiquei me comparando com ele e pensei: “Eu nunca fiz isso. Tenho quatro filhos e sempre ajudei minha mulher nas viagens de avião”. Em suma, eu o estava julgando e me sentindo superior a ele. Mas quando desembarcamos descobri que o homem não era o marido daquela mulher. E eu praticamente o lançara no inferno! Com que facilidade caímos no pecado de julgamentos precipitados, nós que conhecemos tão pouco a realidade do que os outros estão vivendo! Por isso, Paulo aponta o caminho para a atitude correta: “Cada um avalie seu próprio procedimento e, então, terá motivo para orgulho somente em si mesmo e não nos outros” (v. 4). Segundo o que o apóstolo ensina, devemos, isto sim, submeter nossa própria vida a um julgamento rigoroso. Verifiquemos com base na lei de Cristo se de fato estamos andando de maneira adequada diante de Deus, porque é esta a nossa referência, não os outros membros da igreja ou as pessoas com que deparamos no dia a dia. Não é nos comparando com os outros que saberemos se estamos bem; temos de avaliar nosso procedimento pelo referencial do evangelho. Homem nenhum é medida para nós. Devemos provar nossa vida e nossa experiência à luz da lei de Cristo, que é o amor, e à luz do próprio Cristo, que é a medida da perfeição, nosso modelo em todas as coisas. Paulo, por fim, acrescenta ao trecho que estamos estudando neste capítulo a sentença: “Cada um carregará o seu próprio fardo” (v. 5). No entanto, nesse ponto, parece haver uma contradição com o que foi dito anteriormente. No versículo 2, ele ensinou: “Levai os fardos uns dos outros”. Mas agora declara: “Cada um carregará o seu próprio fardo”. É que, na conclusão desse trecho, provavelmente o apóstolo está se referindo ao dia do juízo, quando Deus vai nos responsabilizar individualmente por aquilo que nos concedeu. Assim, Paulo primeiro nos instrui sobre a ajuda que devemos dar aos irmãos quanto aos fardos desta vida e, por fim, nos ensina sobre o dia do juízo, quando Deus não julgará o crente em comparação com os outros, mas recompensará cada um de acordo com suas obras. Nesse dia, cada cristão será responsável pelos próprios atos e prestará contas a Deus de tudo que fez na terra. Ele não dará conta do que o outro irmão fez. Aqui na terra, portanto, ajudamos a carregar o fardo dos irmãos que estão conosco na mesma jornada, mas, quando chegar o grande dia, seremos julgados apenas pelo nosso próprio fardo.
Conclusões e aplicações Costuma-se dizer que a igreja é o único exército que deixa seus feridos para trás, e essa crítica às vezes procede. Em todos os outros exércitos, sempre quando um soldado é ferido, seus companheiros de combate o socorrem. Contudo, Deus também faz provisões para que cada filho seja restaurado caso seja atingido pelo pecado, e como membros da igreja precisamos estar cientes da responsabilidade que nos foi delegada por ele de cuidarmos uns dos outros. Isso nos mostra a importância de estarmos alertas, quanto ao que acontece na igreja. Infelizmente, a prática da restauração ou correção recomendada por Paulo é rara entre nós. Em geral, quando ficamos sabendo de algum membro que pecou, a tendência é falarmos sobre o ocorrido com outras pessoas, sob o pretexto de pedir oração pelo irmão caído, em vez de conversar com ele em primeiro lugar. Não costumamos tomar o caminho estreito da correção. E assim, em pouco tempo, toda a igreja fica sabendo que aquele irmão está em pecado, mas ninguém se habilita a corrigi-lo ou a levar o caso a quem possa fazê-lo. Em vez de ajuda, surge a fofoca e a maledicência, embora a recomendação bíblica seja cuidarmos uns dos outros. Além disso, às vezes olhamos para alguém que caiu e, no nosso coração, o desprezamos e condenamos, enquanto a Bíblia diz que ele pode ser restaurado, se houver uma atitude de amor. O fato de o irmão ter caído em pecado não significa que esteja perdido, mas, sim, que é passível de correção. Que tenhamos esperança e confiança, oferecendo a ele todo crédito e todo amor. Ele foi surpreendido e caiu por fraqueza, contudo é um irmão em Cristo, que precisa apenas de correção para novamente endireitar seus caminhos. Vimos neste capítulo que a origem de boa parte de nossa ineficiência em restaurar um irmão que caiu em pecado é justamente o orgulho, que costuma acompanhar a atitude de comparação. Mas, assim como Paulo orientou claramente os gálatas sobre as atitudes que deveriam caracterizar o processo de restauração de irmãos naquelas igrejas, hoje nós também podemos adotar essas atitudes e obter êxito nessa incumbência tão importante. Que adotemos essas atitudes não só diante de alguém em pecado, mas em tudo o que fazemos para Deus em nossa vida cristã, principalmente no convívio da igreja. O cristão que se julga superior aos demais caminha para a atitude do fariseu que orava assim: “Ó Deus, graças te dou porque não sou como os outros homens, ladrões, injustos, adúlteros, nem mesmo como este publicano. Jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho” (Lc 18.11,12). É fácil, se vivemos numa religião legalista, que nos enchamos de arrogância e nos tornemos exatamente como os fariseus. Mas, como Paulo nos adverte, se alguém pensa que é alguma coisa, está se
enganando, porque não somos nada: é tudo pela graça, como pudemos ver até aqui afirmado com clareza ao longo da Carta de Paulo aos Gálatas.
Capítulo 16
SEMEADURA E COLHEITA
Gálatas 6.6-10 o capítulo anterior, vimos as orientações de Paulo aos cristãos da Galácia quanto ao trato de algum irmão que tivesse caído em pecado (6.1-5). Continuando suas instruções finais, o apóstolo aborda a necessidade do sustento financeiro aos verdadeiros mestres da Palavra: os gálatas deveriam recompensar aqueles que os instruíam (6.6), deveriam estar atentos para não caírem no autoengano de que colheriam para a eternidade algo diferente do que plantaram nesta vida (6.7,8) e deveriam, sem cansar, fazer o bem a todos (6.9,10). Vejamos o registro completo:
N
O que está sendo instruído na palavra deve repartir todas as boas coisas com aquele que o instrui. Não vos enganeis: Deus não se deixa zombar. Porta nto , tud o o que o h omem semear, isso também colh erá. Po is q uem semei a pa ra a sua carne , da carne colh erá ru ína ; mas que m semeia p ara o Espíri to, do Espíri to c olh erá a vida etern a. E nã o no s can semos de faze r o be m, pois, se n ão d esisti rmos, colh eremos no te mpo certo. Assim, enquant o temos oportunid ade, façamos o bem a todos, principalmente a os da família da fé.
Essas instruções compõem a parte prática da carta que Paulo escreveu aos gálatas. O apóstolo às vezes escrevia suas cartas em duas seções. A primeira tratava das questões doutrinárias relacionadas com as razões que o levaram a escrever; a segunda, das implicações para a vida diária daqueles argumentos expostos na seção anterior. Este é o layout que ele parece seguir aqui.
Devemos recompensar nossos mestres Existe alguma relação entre a exortação de Paulo para que recompensemos nossos mestres na Palavra e o tema geral de sua carta? “Mas aquele que está sendo instruído na palavra faça participante de todas as coisas boas aquele que o instrui” (6.6, ARA). Alguns estudiosos entendem que Paulo está, nesse ponto, dando uma orientação geral, sem vínculo direto com a situação específica dos gálatas tratada anteriormente; tanto é que algumas traduções preferiram eliminar o conectivo “mas” do início do versículo 6 (A21; NVI; NTLH). Contudo, é possível de fato perceber uma conexão com o versículo anterior. A conjunção “mas” geralmente introduz um pensamento adverso ao que foi expresso antes. No versículo 5, Paulo havia afirmado que cada um de nós carregará o próprio fardo, uma declaração que sugere que nossa responsabilidade diante de Deus é estritamente pessoal — eu responderei somente por meus atos. Mas isso não significa que aqui, neste mundo, devemos deixar de nos preocupar com os outros e de ajudá-los. É verdade que cada um de nós levará seu próprio fardo, porém devemos ajudar os outros a levar o deles, especialmente aqueles que nos ensinam e instruem sobre as coisas de Deus. Podemos imaginar que Paulo deseja garantir o suporte financeiro para os bons mestres das igrejas da Galácia que instruíam regularmente os crentes na verdade apostólica. O próprio Paulo não tinha por hábito pedir sustento financeiro às igrejas que havia fundado, embora aceitasse com alegria as ofertas que lhe chegavam (Fp 4.14-18). Embora a Bíblia registre períodos em que o apóstolo se dedicou “inteiramente à palavra” (At 18.5), em geral ele se sustentava com seu trabalho de fazedor de tendas (At 18.2,3). Sempre que necessário, porém, ele exortava essas igrejas a sustentarem seus pastores e mestres com ofertas regulares, generosas e voluntárias (veja 1Tm 5.17,18; 1Co 9.1-15). A razão pela qual ele faz isso também na Carta aos Gálatas não nos é dita, mas podemos imaginar: com a agitação causada pela campanha dos judaizantes contra Paulo e todos que ensinavam a doutrina da justificação pela fé sem as obras da lei, os pastores e mestres que seguiam fielmente a doutrina apostólica estavam em risco de perder o seu sustento provido por intermédio das igrejas. O apóstolo então reafirma que era dever dos que estavam sendo instruídos na Palavra de Deus fazer que esses trabalhadores fiéis participassem “de todas as coisas boas”, ou seja, os cristãos deviam repartir com eles as bênçãos materiais recebidas. Como a Carta aos Gálatas foi um dos primeiros livros do Novo Testamento a serem escritos, temos aqui uma das primeiras referências ao fato de que as igrejas sustentavam materialmente seus pastores e mestres. Nesse versículo, porém, parece que Paulo está se dirigindo aos novos convertidos em particular, tendo em vista o sentido do verbo “instruir”. É dele que vem a nossa palavra “catecúmeno”, aquele que está sendo iniciado e instruído na Palavra de Deus. A maneira correta de demonstrar gratidão a esses instrutores seria compartilhar com eles as bênçãos materiais. Todavia, o princípio deve ser estendido a todos que são abençoados pelo ministério fiel de pastores e mestres. Infelizmente, esse princípio bíblico tem sido usado de maneira distorcida por mercenários e falsos pastores, os quais se apresentam como mestres da Palavra, mas exigem recompensas materiais de seus discípulos. Aquele que é verdadeiramente um mestre da parte de Deus não exigirá salário, dízimos ou ofertas dos seus discípulos, muito menos dará a impressão de que exerce a
maestria apenas como um meio para ganhar sua vida. Os abusos cometidos pelos defensores da teologia da prosperidade têm levado cada vez mais os crentes a olhar com suspeita mesmo os verdadeiros mestres, e não são poucos os que generalizam e consideram todos os pastores mercenários que ganham a vida às custas da credulidade dos “idiotas”. O que as igrejas deveriam fazer era sustentar aqueles que de fato ensinam a Palavra de Deus com fidelidade e que não buscam lucro ou riquezas.
O princípio da semeadura e da colheita A próxima exortação do apóstolo (6.7,8) é uma advertência contra o autoengano de pensarmos que podemos zombar de Deus e das leis que ele estabeleceu, como a lei da semeadura: nós haveremos de colher aquilo que plantamos durante toda a nossa vida. Não devemos devemos pensar pensar que que podemos podemos dribl driblar ar essa lei lei.. Seria Seria o mesm mesmoo que que zombar zombar de Deus. Deus. Mas a que especificamente Paulo se refere? Alguns estudiosos entendem que essa advertência está relacionada ao que ele havia ensinado anteriormente quanto às obras da carne e o fruto do Espírito (veja o capítulo 14). Essa interpretação é sugerida pela pela semel semelhan hança ça dos termos termos usados usados em ambas as passagens passagens (carne (carne e Espí Espírito). rito). O apóstolo apóstolo hav haviia adv adverti ertido do qu quee aqu aquel eles es qu quee praticassem praticassem as obras da carne não herdari herdariam am o rein reino de Deu Deuss (5.21b), em contraste contraste com aquel aqueles es que seriam seriam herdei herdeiros ros de Deu Deuss mediante a fé em Jesus Cristo (3.29; 4.7; 5.22,23). Para os que defendem essa linha de raciocínio, Paulo estaria, na passagem que estamos analisando, dando seguimento ao assunto, mostrando quais serão as consequências eternas de cada estilo de vida com base no princí princípi pioo da semeadu semeadura ra e da colhei colheita. ta. Todavi Todavia, a, apesar da sim similaridade aridade da lingu guagem agem,, é pouco provável provável que que Paul Paulo tenha tenha retornado ao assunto ao final da carta, sem motivo aparente. Ele pode estar apenas expondo um princípio geral sobre o que acontecerá ao final se praticarmos as obras da carne ou produzi produzirm rmos os o frut frutoo do Espí Espírito. rito. Embora Embora não reste dúvi dúvida de qu quee essa lei tenha tenha apli aplicação geral, geral, tudo tudo indi indica ca que Paulo Paulo esteja se referindo, primariamente, à lei da semeadura e da colheita em conexão ao versículo anterior, em que ele recomenda que compartilhemos as coisas boas com aqueles que nos instruem na Palavra. Assim, semear para a própria carne seria gastar os recursos materiais na busca e satisfação dos prazeres carnais, o que haveria, depois, de produzir uma colheita de ruína; por sua vez, semear para o Espírito seria investir os recursos materiais nas causas espirituais, como sustentar os pastores e mestres, entre outras coisas. Paulo vê a carne e o Espírito como dois terrenos, e nossos bens materiais como a semente a ser semeada neles. Examinemos mais de perto o que ele nos diz aqui. A maneira com que Paulo escreveu em grego a frase “não vos enganeis” (6.7a) sugere que os gálatas já haviam começado a se parem com isso. A razão para tal urgência é que ninguém zomba de autoenganar nesse assunto. Paulo está ordenando que eles parem Deus. “Zombar” significa literalmente “torcer o nariz em desprezo”, uma expressão de profundo desdém e depreciação. Será que Paulo tem em mente o menosprezo e a zombaria que alguns dos crentes da Galácia já estavam manifestando para com seus pastores e mestres, mestres, após após terem sido sido inf infllamados amados pelos pelos agi agitadores jud judai aizan zantes? tes? Se for for o caso, Paul Paulo estaria estaria dizen dizendo do que que zombar zombar dos mestres fiéis é a mesma coisa que zombar de Deus, um conceito bem presente no Antigo Testamento. Zombar dos profetas era torcer o nariz para Deus (veja Ez 8.17). Os gálatas estariam zombando daqueles que eles deveriam, cheios de gratidão, sustentar com seus bens materiais. Paulo lembra-lhes que eles haverão de colher os resultados de suas ações: “Portanto, tudo o que o homem semear, isso também colherá” (6.7b). É nesse sentido que Deus não se deixa zombar. Ele fará que cada um colha exatamente o que plantou. A lei da semeadura e da colheita é simplesmente uma questão de bom senso e observação. Plantamos milho e colhemos milho. Plantamos café e colhemos café. É tolice acreditar que podemos plantar feijão e colher arroz. Essa verdade está presente em todas as culturas. Para nós, cristãos, é Deus que faz que assim seja. Ele ordenou o mundo de acordo com leis físicas e espirituais, as quais com frequência estão relacionadas. Ninguém pode quebrar essas leis e permanecer impune. Deus haverá de fazer que cada um de nós enfrente as consequências de nossas atitudes. Não é sem razão que os autores bíblicos costumam fazer comparações entre o mundo espiritual e o mundo natural, usando este para explicar aquele. Semeando para a própria carne
“[Semear] para a sua carne” (6.8) seria, portanto, investir os recursos financeiros somente na satisfação dos desejos e necessidades relacionados com nossa vida aqui neste mundo. Em outras palavras, seria viver somente para o presente, sem pensar na eternidade, nas coisas de Deus. Isso inclui não somente desejos e necessidades legítimos, como comer, beber, descansar, trabalhar, entre outros, mas também anseios relacionados com as obras da carne mencionadas anteriormente (5.19-21). “Semear para a carne” carne” ilust ilustra ra bem a vida vida de multi ultidões dões de seres humano humanoss que passam a vida vida como como se Deu Deuss não existi existisse sse e se dedicam dedicam apenas a se divertir, ganhar dinheiro, fazer sexo e obter sucesso pessoal. Eles estão plantando as sementes de uma colheita maldita. Colheremos o que plantarmos. De Deus não se zomba. O resultado de uma vida assim será a “ruína” (6.8). A palavra grega traduzida por “ruína” pode também ser traduzida por “corrupção” (ARA), o que sugere a imagem de um corpo humano apodrecido na sepultura. Isso tem levado alguns a pensar que Paulo está simplesmente dizendo que uma vida nas obras da carne trará doenças e morte precoce. Mas o contraste de “corrupção” com “vida eterna” nessa passagem impede essa interpretação. Também não devemos pensar que Paulo está aqui
afirmando que o castigo dos ímpios será a aniquilação ou o deixar de existir. No contexto, essa palavra que pode significar “ruína” ou “corrupção” aponta para o estado de sofrimento eterno, longe de Deus, em que o corpo e a alma experimentarão o castigo merecido de uma vida sem Deus (Ap 21.8). Isso é semelhante ao que Paulo escreveu aos filipenses, quando afirmou que os ímpios sofrerão a “perdição” (Fp 3.19). Sendo o oposto da “vida eterna”,o termo utilizado aqui (6.8) pode apenas apontar para o sofrimento sofrimento eterno. Semeando para o Espírito Espíri to
Já aqueles que semearem para o Espírito colherão dele a vida eterna (6.8b). “Semear para o Espírito” representa, em linhas gerais, viver de acordo com a Palavra de Deus; no contexto imediato, seria investir no reino de Deus e, no caso mais específico dos gálatas, sustentar seus mestres (6.6). Uma vida dedicada às coisas de Deus trará, pelo Espírito, a vida eterna ao final. É evidente que Paulo não está ensinando que a vida eterna é a recompensa que Deus dará aos que contribuírem para as causas da igreja. Isso seria uma contradição enorme com o ensino que o apóstolo apresentou na carta até aqui: a justificação — e, portanto, a vida eterna — vem pela graça, mediante a fé em Jesus Cristo. A vida eterna não é o resultado de obras humanas — nem das obras ordenadas pela Lei, nem das obras realizadas por cristãos, como contribuir financeiramente para o sustento de seus mestres. Ela será dada pelo Espírito Santo não como recompensa meritória, mas como o final apropriado para quem creu em Jesus Cristo, pela graça, e demonstrou essa fé investindo seus bens para o avanço do reino de Cristo. Paulo menciona a vida eterna como o resultado final de uma vida dedicada a Deus. Contudo, como sabemos, ele está pensan pensando do aqui aqui na na vida vida eterna eterna como como a consum consumação ação de todas as coisas, coisas, a vind vindaa de Cristo Cristo e a chegad chegadaa do mun mundo do vi vind ndou ouro, ro, com seu esplendor e glória. Todos os crentes em Jesus Cristo já têm, aqui e agora, a vida eterna, embora ainda não em sua manifestação plena plena (1Jo (1Jo 5.13,20). 5.13,20). Essa pleni plenitu tude de nos nos agu aguarda no no fifinal nal de todas as coisas. coisas. Vemos aqui, portanto, que a maneira com que alguém usa seus recursos financeiros indica o estado real de seu coração. O amor ao dinheiro é a raiz de toda sorte de males (1Tm 6.10). A conversão da carteira e do bolso a Jesus Cristo é um indicador fortíssimo de que o coração do homem já havia se convertido antes. A avareza e o uso egoísta dos recursos monetários pode revelar profunda idolatria. Lembremos que Jesus se referiu ao dinheiro como “Mamom”, um deus rival ao único Deus verdadeiro (Mt 6.24, ARC). Em resumo, existem apenas dois terrenos nos quais lançaremos as sementes dos nossos recursos financeiros: o terreno da carne e o do Espírito. A eternidade é apenas o desdobramento do que iniciamos aqui. Colheremos o que plantarmos. Que ninguém se engane nesse assunto.
Não nos cansemos de fazer o bem É fácil nos cansarmos de fazer o bem, especialmente porque com frequência a colheita parece demorada: “E não nos cansemos de fazer o bem, pois, se não desistirmos, colheremos no tempo certo” (6.9). Mais uma vez, estamos diante de uma exortação de alcance bem geral. O que levou Paulo a mencioná-la pode ter sido ainda a questão do sustento dos mestres pelos cristãos. “Fazer o bem” seria, a princípio, “repartir todas as boas coisas” (6.6) com aqueles que nos instruem na Palavra de Deus. É o mesmo que “semear para o Espírito” (6.8), conforme já vimos. A agitação causada pelos pregadores legalistas, a divisão entre os crentes acerca da justificação pela fé e acerca do ministério de Paulo, tudo isso poderia levar os gálatas a desanimarem de fazer o bem aos bons bons pastores e mestres mestres que ensi ensinav navam am a justi justiça ça pela fé fé em Cristo. Cristo. Um dos efeitos efeitos do desânim desânimo seria seria desisti desistir de apoiálos financeiramente. Nesse aspecto, podemos recordar o exemplo daqueles que sustentaram e investiram no missionário William Carey, que foi para a Índia em 1793 e, durante sete anos, não viu nenhum indiano crer no Senhor Jesus Cristo. Foi somente em 1800 que Carey batizou o primeiro convertido. E, em seguida, veio uma larga colheita. A tentação de desanimar deve ter sido grande para os que sustentavam esse missionário. Graças a Deus, porém, eles perseveraram. E a colheita, a seu tempo, veio. Paulo encoraja os gálatas dizendo que “no tempo certo” haveriam de ceifar os resultados da perseverança. Como uma das princi principai paiss causas do desânim desânimo na vida vida do cristão cristão é a aparente aparente demora demora em ver ver o resul resultado das coisas boas que ele ele faz, faz, é preciso preciso lembrar que Deus tem um tempo para todas as coisas. A palavra grega traduzida nesse versículo por “tempo” é a mesma que o apóstolo usou em Gálatas 4.4 para dizer que Deus mandou seu filho na “plenitude do tempo” (ARA). O termo não se refere ao tempo cronológico, mas à ocasião oportuna e apropriada. Ou seja, no tempo certo Deus haverá de nos dar a colheita bendita. Paulo provavelmente está se referindo à colheita final, no dia da vinda do Senhor Jesus. No tempo tempo certo, a semeadu semeadura ra para o Espíri Espírito to haverá haverá de produzi produzirr bon bonss frutos, rutos, ainda ainda aqu aquii nesta nesta vida vida ou na vinda vinda do Senhor Senhor Jesus. Temos de aguardar o tempo de Deus e permanecer firmes fazendo o bem — o que inclui investir financeiramente nas causas do reino de Deus. Fazendo o bem a todos
A última exortação de Paulo nesse trecho é que “façamos o bem a todos” (6.10). Ela é introduzida com um “assim”, indicando que Paulo passa a fazer a aplicação ou a expor a inferência lógica do que disse anteriormente, que haveremos de colher no tempo oportuno o resultado da semeadura para o Espírito. Diante dessa certeza, que funciona como encorajamento, não devemos desanimar nem nos cansar de fazer o bem. Os frutos virão. “Fazer o bem”, no contexto, pode significar “repartir todas as boas coisas” (6.6), o que inclui a ideia de ajudar os outros financeiramente, em especial aqueles que nos instruem na Palavra de Deus. Contudo, a aplicação dessa exortação pode ser bem mais ampla, segundo a intenção do apóstolo. Ela inclui todas as obrigações e deveres que ele já mencionou na carta. Devemos fazer isso “enquanto temos oportunidade”. É admissível supor que Paulo esteja alertando os gálatas de que a liberdade que eles desfrutavam no momento era transitória. Em breve, as perseguições haveriam de tornar praticamente impossível que os cristãos dedicassem seus recursos aos pobres. Outra possibilidade é que ele esteja dizendo que nem sempre temos boas oportunidades de abençoar os outros com nossos bens, por isso devemos aproveitar todas elas, ajudando financeiramente, por exemplo, aqueles que são instrumentos de Deus para nossa instrução espiritual, enquanto estão conosco. O que parece mais prováv provável el,, contu contudo, do, é que que o apóstolo apóstolo esteja se se referi referind ndoo ao tempo tempo presente presente em qu quee viv vivemos emos como como a oportuni oportunidade dade que que Deus Deus nos nos dá de fazer o bem, enquanto o dia final não chega. Quando o Senhor Jesus voltar, cessará toda oportunidade de fazermos o bem nesta era. Quando a colheita chega, acaba o tempo da semeadura. Agora é o tempo, a oportunidade em que podemos semear no Espírito, ajudar os outros, repartir as coisas boas. Assim, devemos fazer o bem “a todos”, isto é, mesmo aos pagãos e incrédulos. Esse ensino de Paulo retoma o ensino de Cristo, que nos ensinou a amar até nossos inimigos. Na verdade, o amor a todos já era ensinado mesmo no Antigo Testamento: “Quando um estrangeiro viver por um tempo na vossa terra, não o maltratareis. O estrangeiro que viver entre vós será como um natural da terra. Devereis amá-lo como a vós mesmos, pois fostes estrangeiros na terra do Egito. Eu sou o S\ vosso Deus” (Lv 19.33,34). Os gálatas tinham ampla oportunidade de ajudar e abençoar seus compatriotas descrentes. A pobreza, a escravidão, a miséria e a violência eram marcantes entre os pagãos que viviam sob o Império Romano no primeiro século. Contudo, “os da família da fé” devem ser nossa prioridade. Parece evidente pelo contexto que a orientação de fazer o bem se aplica primeiramente aos mestres que foram mencionados no início da passagem em estudo (6.6). São eles, os da família da fé, que deveriam receber os primeiros cuidados dos cristãos. Essa interpretação, porém, não impede de darmos um alcance maior às orientações de Paulo: devemos ajudar a todos que tiverem necessidade, mas devemos dar especial atenção aos irmãos em Cristo que carecem de nossa ajuda. Nosso dever é ajudar a todos, mas especialmente aos nossos irmãos em Cristo.
Conclusão e aplicações Esse trecho da Carta aos Gálatas é muito relevante para os nossos dias. O sustento dos pastores e mestres por parte das igrejas cristãs foi motivo de constante discussão e debate. Historicamente, as igrejas oriundas da Reforma sempre investiram na preparação e no susten sustento to de seus seus obreiros. obreiros. Algu Algum mas igrejas, grejas, por sua sua vez, vez, preferi preferiram ram não susten sustentá-los tá-los,, como como a den denom omiinação nação chamada Igreja dos Irmãos. Nessas igrejas, os líderes são geralmente voluntários que se sustentam com seu próprio trabalho. Diante do mercenarismo e do comércio religioso que têm acompanhado a igreja cristã desde o seu início, posso entender por que algumas igrejas e alguns cristãos são contra o sustento de pastores. No entanto, é impossível negar que a Bíblia ensina que os pastores devem receber receber sustento sustento das igrejas grejas às qu quai aiss servem servem.. O apóstolo apóstolo Paulo Paulo nu nunca nca pediu pediu ajuda ajuda financeira anceira às igrejas grejas que ele fundou; em geral, ele se sustentava fazendo tendas. Ainda assim, ninguém foi mais assertivo do que ele em dizer que os obreiros fiéis deveriam receber honorários dos que eram instruídos e ensinados por eles (cf. 1Co 9.1-14; 1Tm 5.17,18). E é esse um dos pontos pontos centrai centraiss das suas suas palavras palavras fin finais ais aos gálatas: gálatas: eles eles deveriam deveriam comparti compartillhar todas todas as coisas coisas boas com seus mestres, mestres, pois pois isso seria semear para o Espírito. No tempo oportuno, o resultado haveria de vir. Notemos, Notemos, con contu tudo, do, algu algum mas coisas coisas nessas nessas palav palavras ras do apóstolo apóstolo que servem de adv advertên ertênci ciaa contra contra o ensi ensino no da teolog teologiia da prosperidade, prosperidade, qu quee se refere refere aos dízi dízim mos e ofertas ofertas recolhi recolhidos pela pela igreja greja como como sendo sendo uma uma sement sementee plant plantada, ada, a qu qual al Deus Deus fará prosperar. prosperar. A moti motivvação usada usada pelos pelos falsos alsos profetas profetas da prosperidade prosperidade é que os cristãos cristãos devem contri contribu buiir visan visando do à recompen recompensa sa financeira que Deus lhes dará — algo completamente alheio ao pensamento de Paulo. A motivação apresentada aos cristãos para que contribuam com o sustento dos seus mestres é a gratidão pela dedicação destes em instruí-los na verdade de Deus. A colheita que virá no tempo de Deus, como resultado de semearmos no Espírito, não é constituída de bens materiais, mas trata-se da vida eterna. E essa vida nos é dada mediante a justificação pela fé, sem as obras da lei, e a fé verdadeira, por sua vez, se manifesta pelo amor prático, pela ajuda aos necessitados e pelo investimento nas coisas de Deus
Capítulo 17
AS VERDADEIRAS MARCAS DE CRISTO
Gálatas 6.11-18 Paulo encerra a Carta aos Gálatas desta maneira: Vede com que gran des letras vos escrevo de próprio pun ho. Aqueles que d esejam ostentaçã o exterior vos o brigam a circuncidar-vos, somente para não serem pe rsegui dos por causa da cruz de Cristo . Pois nem mesmo esses que se circunci dam gua rdam a lei , mas querem que vos circuncideis, para se orgulharem de vós em rituais físicos. Mas longe de mim orgulhar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pel a qu al o mundo está cruci ficado para mim, e eu p ara o mundo. Po is ne m a ci rcuncisão nem a i ncircun cisão são c oisa alg uma, mas, sim, o ser no va c riaçã o. Que a paz e miseri córdia estejam sob re todo s qu e an darem conforme essa n orma, e t ambém sob re o Israel de Deu s. Quant o ao restante, que ningu ém me importune, pois t rago no co rpo as marcas do sofrimento de Jesus. Irmãos, a graça de n osso Senhor Jesus Cristo esteja com o vo sso espírito. Amém.
O assunto principal da Carta de Paulo aos Gálatas é o caminho para Deus, a questão mais importante de que tratam as religiões. Como já foi dito num capítulo anterior, embora existam muitas religiões no mundo, essencialmente só há duas. Uma delas ensina que o homem é capaz de salvar a si mesmo, que pode encontrar a bem-aventurança e o favor da divindade por méritos próprios, por seu esforço e pela maneira meticulosa com que cumpre os deveres e rituais impostos por sua religião. Nessa primeira grande categoria, que se baseia no esforço humano, estão praticamente todas as religiões inventadas pelo homem. Elas parecem diferentes porque nasceram em culturas e épocas diversas e tiveram fundadores distintos, mas, na essência, são a mesma coisa. Se você perguntar no hinduísmo, no islamismo, no espiritismo, no budismo e na quase totalidade das seitas cristãs qual é o caminho da salvação, obterá respostas diferentes, em termos de rituais e práticas, de passos a serem seguidos. Contudo, todas essas religiões afirmarão, de uma forma ou de outra, que o homem é capaz de salvar a si próprio, receber o perdão e encontrar-se com a divindade, se ele se esforçar o suficiente, se for bom o bastante, se acumular os méritos necessários. Então, essa é a primeira e grande categoria de religião que existe no mundo, encontrada sob muitos nomes, sob muitas capas, em diversas manifestações. A outra forma de religião é o cristianismo histórico e bíblico, que afirma exatamente o contrário do que prega a outra religião. O cristianismo diz que o homem não pode fazer absolutamente nada para salvar-se, porque está morto em suas ofensas e pecados, e não sabe nem mesmo quem é Deus, o que ele requer dos seres humanos, nem o que tem a oferecer para salvá-los. Como pecador, o homem não tem condições de fazer as escolhas corretas e é incapaz de, por si próprio, voltar-se para Deus e se arrepender. Portanto, não pode nem ao menos se aproximar desse Deus santo, glorioso e maravilhoso com base em esforço próprio, determinação e força de vontade. Deus é que vem salvá-lo. Ele toma a iniciativa de vir ao encontro do ser humano para tirá-lo de seu estado de perdição, miséria e condenação, oferecendo-lhe gratuitamente uma salvação eficaz. Esse é o evangelho, a mensagem da graça, que somente o cristianismo histórico e bíblico ensina. Essas duas religiões existem desde Caim e Abel. Penso que Caim representa a primeira grande religião, porque inventou uma maneira de adorar a Deus. Por sua vez, Abel representa a religião da graça, porque servia a Deus da maneira que lhe fora revelada. E até hoje as duas religiões estão em conflito. Na época de Paulo, esse conflito se manifestava no debate entre o judaísmo e a mensagem da cruz. O apóstolo Paulo percorria o Oriente Médio e a bacia do Mediterrâneo anunciando que a salvação era pela graça, mediante Jesus Cristo, que Deus havia cumprido a antiga promessa de enviar ao mundo um Salvador e que esse era Jesus de Nazaré, o qual os judeus haviam rejeitado. O caminho para ser salvo, mesmo para os judeus que haviam recebido a Lei de Moisés, com todas as suas normas e regulamentos, era pela fé em Cristo somente, não pelas obras exigidas pela Lei. Não é de admirar, portanto, que Paulo tenha sofrido tanta perseguição, porque muitos judeus da época não entenderam que, desde os tempos do Antigo Testamento, a salvação sempre foi pela graça, mediante a fé no Messias. Por isso passaram a perseguir Paulo, como se ele fosse um herege ensinando algo contrário a Deus. O conteúdo da Carta aos Gálatas foi motivado justamente pelo conflito entre as duas religiões, mais exatamente pela interferência de missionários judaizantes — os quais representavam a religião dos méritos — no trabalho de Paulo, que anunciava a religião da graça. Muitos judeus haviam se tornado cristãos, mas alguns deles apenas nominalmente, já que Paulo se refere a eles como se fossem falsos irmãos (Gl 2.4). Embora tivessem aparentemente se convertido ao cristianismo, retiveram a ideia de que a salvação é pelas obras. Então, ensinavam que, sim, Cristo é o Messias, o Salvador, mas só a fé nele não bastava. Era necessário também cumprir todas as obras prescritas pela Lei, bem como guardar a circuncisão, a marca que Abraão teve de colocar em si
mesmo e em todos de sua família, e que depois os judeus passaram a adotar como o principal emblema nacional de identificação, junto com a observância de suas festas cerimoniais e dos preceitos de sua dieta religiosa. Como vimos nos capítulos anteriores, Paulo escreveu essa carta com indignação, tristeza, paixão, zelo e cuidado pastoral, utilizando vários argumentos para mostrar que a salvação vem de fora de nós, não de dentro. Agora, ele a encerra fazendo algumas advertências finais contra os missionários judaizantes e reafirmando a principal motivação de seu ministério.
Advertências contra as motivações dos judaizantes Antes de partir para as considerações finais, Paulo revela no versículo 11: “Vede com que grandes letras vos escrevo de próprio punho”. O apóstolo destaca que é dele a grafia da parte final da carta. Isso quer dizer que, até esse ponto, as palavras foram ditadas a um secretário, mas agora ele mesmo pega a pena e passa a escrever. Assim, é como se chegasse ainda mais perto dos cristãos da Galácia para adverti-los com respeito às intenções dos missionários legalistas. Paulo estabelece então um nítido contraste entre as motivações e intenções daqueles missionários e as motivações e intenções dele próprio. Por que o apóstolo considera isso algo que merece receber um destaque maior do que todas as outras coisas escritas até esse ponto? Porque uma das características do verdadeiro mestre, do arauto da verdadeira religião, é ser motivado pelo desejo de dar glória a Deus, não por interesses humanos. Ele não está tentando agradar as pessoas nem está em busca de prestígio, poder ou dinheiro. Sua única intenção é agradar a Deus. É essa uma das principais características pelas quais podemos reconhecer os que verdadeiramente são enviados de Deus. De fato, a religião tem servido de capa, inclusive no Brasil, para gente que só quer dinheiro e notoriedade. Não há real interesse em dar glória a Deus ou em exaltar o nome de Jesus Cristo. Há muitos mercenários em nosso país, muitos falsos profetas movidos pela ganância e orientados pelo lucro. De vez em quando, a Polícia Federal estoura algum esquema de lavagem de dinheiro em certos ministérios, e assim pessoas que usam o evangelho como pretexto para negócios ilícitos são vergonhosamente expostas na mídia. Claro que é sempre difícil saber quanto há de verdade em casos como esses, mas é fato que muita coisa feita em nome de Cristo tem sido motivada por interesses escusos. A questão das motivações é importante, como destaca Paulo, uma vez que determinados líderes pregam uma nova mensagem, arrebanham seguidores e constituem igrejas, tudo por motivações falsas. É para isso que ele chama a atenção de seus leitores no final da carta, com bastante destaque. Os judaizantes não eram sinceros
Paulo, então, em primeiro lugar adverte os gálatas das verdadeiras intenções e motivações desses missionários judaizantes: “Aqueles que desejam ostentação exterior vos obrigam a circuncidar-vos, somente para não serem perseguidos por causa da cruz de Cristo” (v. 12). O apóstolo deixa claro aos cristãos da Galácia que aqueles homens não tinham amor genuíno por eles, não estavam sendo sinceros nem estavam realmente preocupados com a salvação de ninguém. Sua insistência em dizer que a cruz de Cristo não era suficiente e que era preciso guardar os preceitos da Lei não era motivada pela preocupação com o bem-estar do povo de Deus. Era tão somente uma forma de escapar da perseguição promovida pelos judeus, que não aceitavam a cruz de Cristo como o verdadeiro meio de salvação. Esses missionários se identificavam como cristãos, mas, ao mesmo tempo, defendiam a Lei, afirmando que a cruz de Cristo não era suficiente. Eles diziam guardar todos os preceitos da lei judaica, contudo faziam isso, principalmente, para não serem perseguidos pelos judeus. Paulo, por sua vez, ensinava abertamente que a Lei, como caminho da salvação, era coisa do passado, e que outras instituições judaicas, como o Templo, os sacrifícios e a circuncisão, eram apenas sombras que apontavam para Cristo. Por isso, o apóstolo era alvo constante da fúria dos judeus, que o perseguiam e queriam matá-lo. Os judaizantes, ao contrário disso, não queriam sofrer na pele o que Paulo já havia experimentado e que também lhes sobreviria se pregassem o evangelho puro. Temos percebido que essa tendência continua a caracterizar os falsos mestres de hoje. A mensagem que pregam não consiste apenas em erros: há sempre alguma coisa de verdade misturada com as falsas doutrinas. Há sempre uma espécie de compromisso com a “oposição”, a fim de se evitar o confronto. Essas pessoas não são movidas pelo amor sincero pelas almas daqueles que as escutam. Assim como os missionários judaizantes, esses falsos mestres estão pensando apenas em si mesmos e não estão dispostos a sofrer por causa da cruz. Os judaizantes não guardavam a Lei
Paulo diz aos gálatas, no versículo 13, que “nem mesmo esses que se circuncidam guardam a lei”. Aqueles missionários queriam impor a circuncisão e outras práticas da Lei de Moisés aos cristãos gentios, mas nem mesmo eles cumpriam essas exigências. Isso pela simples razão de que ninguém consegue cumprir a Lei de modo perfeito. Portanto, os judaizantes faziam essas recomendações não porque fossem zelosos e sinceros, mas, sim, porque eram hipócritas e o discurso deles não era honesto.
Os judaizantes queriam glória para si
No final do versículo 13, Paulo diz aos gálatas que os judaizantes “querem que vos circuncideis, para se orgulharem de vós em rituais físicos”. A expressão aqui traduzida por “em rituais físicos” tem no grego o sentido literal de “na carne”, o que se aproxima ainda mais do que ocorria na circuncisão, a qual era aplicada fisicamente. A ideia de orgulhar-se, gloriar-se na carne corresponde mais ou menos ao que Davi teve de fazer certa vez por exigência de Saul. Em lugar do dote habitual, o rei exigiu de seu súdito que trouxesse cem prepúcios de filisteus em troca da mão de sua filha Mical. Então, em uma batalha contra os filisteus, Davi conseguiu duzentos prepúcios e os entregou ao rei Saul como troféus de guerra. É de uma imagem semelhante que Paulo está se utilizando aqui. Ele está convencido de que os judaizantes desejam usar os gálatas como troféus. Com certeza, eles sairiam daquelas igrejas se gabando: “Vejam quantos eu circuncidei, quantos eu ganhei para o judaísmo!”. Não havia compromisso sincero com a verdade, mas, antes de tudo, egoísmo e desejo de glória. E é isso que caracteriza os falsos mestres. Eles querem o show e medem o sucesso pelos números. Faz algum tempo, estive pregando em uma convenção de pastores, da qual uma banda famosa também participava. Durante parte do evento, desejei não estar ali, porque o líder dessa banda ficou um bom tempo se gloriando de como Deus os estava abençoando, pela quantidade de CDs que eles haviam vendido. Ele apresentou um relatório quase completo de suas vendas anuais e ainda comparou esse êxito com os resultados inferiores de outras bandas. Espero que o rapaz apenas tenha sido infeliz em sua comunicação e que aquilo não expresse o que de fato estava no coração dele. Se nossa motivação é sempre a exibição de troféus, não somos melhores que os judaizantes condenados por Paulo, os quais queriam apenas se gloriar com o número de adeptos que ganhavam para sua religião, graças aos seus esforços. Se os gálatas não haviam dado importância aos argumentos que Paulo expôs na carta até esse ponto, que pelo menos refletissem a respeito da seguinte questão: O que de fato motivava aqueles missionários? Após esse questionamento, Paulo faz uma coisa que não era seu hábito: ele passa a falar de si mesmo. Quando lemos as cartas de Paulo, percebemos que ele fala pouco de sua vida. Na Carta aos Romanos, por exemplo, ele quase não faz menção a si. Na Primeira Carta aos Coríntios também. Já na Segunda Carta aos Coríntios, ele se expõe mais, também para falar das motivações de seu ministério. Mas a Carta aos Gálatas é considerada uma das mais pessoais do apóstolo, porque ele faz referências a si mesmo em várias passagens. Contudo, ele faz isso porque deseja apresentar um contraste entre suas ações e seu ensino e os atos e as doutrinas dos missionários judaizantes, não porque quer glória para si mesmo.
As motivações de Paulo Paulo prossegue falando especificamente do que motiva seu ministério. Ele declara: “Longe de mim orgulhar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (v. 14). Paulo tinha muitas razões para se orgulhar. Ele podia falar de seu passado de judeu, um fariseu que fora ensinado aos pés de Gamaliel; que era fluente em várias línguas; que havia convivido com as mais variadas culturas e ganhado muito mais gente para Cristo do que os judaizantes ganharam para a causa deles. Contudo, ele afirmava: “Longe de mim orgulhar-me!”. A única glória que considerava motivo de orgulho em sua vida era a cruz de Cristo. E por que alguém desejaria se gloriar na cruz de Cristo? Naquela época, a cruz era um instrumento de vergonha, um método cruel de tortura e de execução reservado aos criminosos da pior espécie. Mas Paulo está dizendo que a cruz é a única coisa em que ele se gloria. A razão é que, na cruz, onde Cristo se fez maldição por nós, o Filho de Deus foi oferecido em sacrifício pelos nossos pecados para que a religião da graça pudesse ter efeito e ser oferecida aos pecadores como nós, que não podem se salvar pelos próprios méritos. A cruz é o centro do verdadeiro evangelho, está no cerne da mensagem bíblica. A glória de Paulo podia ser algo vergonhoso para algumas pessoas: um Salvador executado como um criminoso vulgar. Sim, de fato foi estranho o caminho que Deus utilizou para salvar a humanidade! Porém, segundo o que vemos nas palavras de Paulo, a vergonha da cruz é a glória do salvo. E, em seguida, ele enumera os motivos que tinha para gloriar-se. Livre do mundo
Paulo afirma que pela cruz de Cristo “o mundo está crucificado para mim, e eu para o mundo” (v. 14). Isso a Lei não podia fazer. A palavra “mundo” aqui remete ao sistema de valores pecaminosos da humanidade sem Deus, à maneira de pensar do mundo decaído, com suas tentações, atrações, pecados e antagonismos a Deus. Morrer para o mundo, no sentido de não ser parte dele, é não ser mais julgado nem condenado com ele. Isso é a essência do cristianismo. Se você olhar para outras religiões, verá que todas elas, embora usem terminologias diferentes, procuram uma forma de fugir do mundo. No antigo gnosticismo, por exemplo, o mundo era tido como matéria inferior e pecaminosa em si, e o corpo era considerado a prisão da alma. Assim, o corpo fazia parte deste mundo, e a salvação consistia em se livrar do mundo, em fugir da materialidade e ascender aos céus espiritualmente através do cultivo das virtudes — a “gnose”, que era um conhecimento secreto. Paulo, porém, está reafirmando ao final de sua carta que só há um caminho para fugir do mundo: a cruz. Não há outra forma de morrer para o mundo senão pelo sacrifício realizado por Cristo. Ninguém obterá qualquer libertação por méritos ou esforço
próprios. O apóstolo se gloria na cruz, porque foi morrendo com Cristo na cruz que ele também morreu de maneira eficaz para o mundo. Assim, ele pode dizer que já não é deste mundo. Ele pertence ao reino celestial, a outro mundo. É peregrino aqui, é verdade, mas já é um cidadão do reino dos céus. Quando Cristo morreu na cruz, os que lhe pertencem morreram com ele. Assim como Cristo morreu para o mundo e para o pecado, para a Lei e para a morte, para o inferno e para a condenação, nós também morremos com ele. Por isso Paulo se gloriava na cruz: ela é eficaz para nos libertar das paixões e tentações do mundo, para que nossa peregrinação aqui continue sem impedimento até chegarmos ao lar celestial. As obras da lei não tinham esse poder. Realizar a circuncisão, guardar o calendário religioso, deixar de comer certas coisas, nada disso jamais conseguiu tirar alguém do mundo. Nenhum ritual religioso nos permite escapar deste mundo, nem mesmo o batismo cristão, a participação na ceia do Senhor ou a frequência regular aos cultos. Essas coisas, em si mesmas, não vão nos fazer morrer para o mundo. Só a cruz de Cristo e nossa união com ele em sua morte podem nos libertar da culpa, da condenação e do poder do pecado. Por esse motivo, Paulo se gloria na cruz, e em nada mais. Ser uma nova criação
O segundo motivo pelo qual Paulo se gloria na cruz é exposto no versículo 15: “Nem a circuncisão nem a incircuncisão são coisa alguma, mas, sim, o ser nova criação”. Além de morrer para o mundo, somos feitos nova criação, passamos a fazer parte da nova ordem que Deus já inaugurou neste mundo, da nova humanidade que Cristo veio constituir. E como nos tornamos parte dessa nova criação? A resposta é a mesma: pela cruz de Cristo. Não importa a resolução que você tome como forma de garantir a salvação — que não vai mais pecar, que vai orar mais, que vai dar esmolas, que não vai mais falar mal de ninguém —, você não conseguirá cumpri-la. As resoluções humanas não mudam o coração. Só uma coisa pode mudar o coração do homem: a obra que Cristo realizou na cruz do Calvário. A salvação é pela fé em Cristo. Pela fé, apropriamo-nos da obra de Cristo, submetemo-nos a ele e o recebemos como único e suficiente Salvador. É assim que morremos para o mundo e que o milagre do novo nascimento e da regeneração acontece em nossa vida. Por isso, Paulo diz que a circuncisão ou a incircuncisão não valem nada. Nem uma nem outra podem fazer o milagre de gerar uma nova criação. Muitas igrejas enfatizam as curas e as libertações como se esses fossem os maiores de todos os milagres, porém não há milagre maior que a transformação operada por Deus no coração do pecador. Nada se compara ao fato de termos sido transportados do reino das trevas para o reino do Filho do seu amor; de nossos olhos espirituais, que estavam cegos, terem sido abertos para enxergarmos a luz da verdade. A “oração dos 318” não faz isso, nem qualquer outra “corrente de fé”. Só Deus, pelo seu poder, mediante a fé em Cristo Jesus, pode nos fazer nova criação. Não há mais nada em que nos gloriarmos como cristãos. A cruz é o centro de todas as coisas.
O verdadeiro Israel de Deus No versículo 16, Paulo abençoa os leitores de sua carta e, ao mesmo tempo, declara que os que creem no evangelho é que são o verdadeiro Israel de Deus: “Que a paz e misericórdia estejam sobre todos que andarem conforme essa norma, e também sobre o Israel de Deus”. Os missionários judaizantes diziam que Israel era a nação escolhida, o verdadeiro povo de Deus. Mas Paulo contesta a afirmação deles: o povo escolhido de Deus, o verdadeiro Israel, são aqueles que andam em conformidade com a norma do evangelho e se gloriam apenas na cruz de Cristo, não importando se são judeus ou gentios. A verdadeira descendência de Abraão é composta daqueles que creem em Jesus e no que ele realizou na cruz do Calvário. Em muitas igrejas de hoje, porém, há pessoas que querem ressuscitar o antigo judaísmo. Trazem arca, menorá e shofar para os cultos, celebram os Tabernáculos e muitas outras festas judaicas, seguem a dieta alimentar kosher, guardam o sábado, e assim por diante. Mas os que constituem o Israel de Deus, o verdadeiro povo dele, são os que se gloriam somente na cruz de Cristo, na obra completa, perfeita e eficaz do Salvador. Permaneçamos na simplicidade do evangelho. No versículo 17, o apóstolo apresenta evidências de sua sinceridade de uma forma que não admite contestação: “Quanto ao restante, que ninguém me importune, pois trago no corpo as marcas do sofrimento de Jesus”. O que seriam essas marcas? Penso que são as cicatrizes dos muitos açoites e de outros males que Paulo sofreu pelo nome de Cristo. Veja a relação deles em 2Coríntios 11.23-25: São servos de Cristo? Sou ainda mais (falo como se estivesse louco), muito mais em trabalhos; muito mais em prisões; em chicotadas sem medida; em perigo de morte muitas vezes; cinco vezes recebi dos judeus trinta e nove chicotadas. Três vezes fui espancado com varas, uma vez fui apedrejado, três vezes sofri naufrágio, passei um dia e uma noite em mar aberto. Todo esse padecimento certamente afetava a saúde do apóstolo. Ele tinha o corpo coberto por cicatrizes, que Paulo chama de “marcas do sofrimento de Jesus”, em contraste com a marca da circuncisão, o símbolo de identidade que os judaizantes apresentavam como prova de que pertenciam a Deus. Na época, as pessoas costumavam ter tatuagens no corpo para indicar que pertenciam a determinada pessoa, instituição ou divindade. Os escravos eram geralmente tatuados com o nome de seu senhor, os
soldados eram tatuados com o nome de seu batalhão e alguns membros de cultos religiosos tatuavam na pele o nome de seus deuses. Paulo, porém, trazia em seu corpo as verdadeiras marcas de que pertencia a Cristo. Paulo também fora tatuado, mas com a vara dos judeus e o chicote dos romanos, porque ele pregava Cristo Jesus, anunciava o escândalo da cruz, proclamava a vergonha do evangelho e espalhava a verdade de Deus por toda parte. Ele não se importava com poder, prestígio, dinheiro ou popularidade, pois queria apenas ser fiel ao seu Senhor. Ele se gloriava somente na cruz de Cristo. Esse versículo tem como objetivo mostrar a sinceridade de Paulo, que era capaz de sofrer e morrer pela verdade do evangelho, enquanto os judaizantes queriam apenas escapar da perseguição por causa do nome de Cristo. Paulo encerra a carta, no versículo 18, desejando que a graça do Senhor Jesus Cristo esteja com o espírito de seus verdadeiros irmãos!
Conclusão e aplicações A cruz de Cristo é o centro do evangelho. A morte de Cristo na cruz, como caminho da salvação e clímax da revelação de Deus e da obra redentora de Cristo Jesus, deve ser o centro da mensagem e da vida da igreja, e deve ser nossa glória. Quando hoje observamos o mundo que se diz cristão e perguntamos onde está a cruz, descobrimos com tristeza que ela se transformou em mero símbolo, carregado no pescoço ou pendurado na parede de alguma repartição pública. Mas vale também perguntar: Onde está a cruz entre os cristãos de hoje? No meio evangélico, do mesmo modo, pouco se fala da cruz como motivo de glória do cristão. Fala-se da cruz como instrumento de exorcismo e até como objeto místico, à semelhança das relíquias da Idade Média, as “lascas da cruz”. Quem de fato se gloria somente na cruz e entende o que ela significa? Ao contrário, entre igrejas que se dizem evangélicas, há também muita superstição e misticismo, rituais inventados, penduricalhos trazidos ao culto, formas de adorar a Deus que não constam na Palavra, regras que não encontram apoio nas Escrituras, enquanto a simplicidade da cruz, com todo o seu horror e toda a sua vergonha, desaparece dos púlpitos. Que Deus nos lembre que esse evangelho, essa religião que nos é oferecida gratuitamente, custou um alto preço, e o preço é a cruz onde nosso Salvador se entregou por nós! Que Deus permita que não só Paulo, mas nós também tenhamos a coragem necessária de ostentar em nosso corpo as marcas de Cristo, as marcas de Jesus. Se tivermos que sofrer por essa verdade e pela sua propagação, que assim seja, e que nos gloriemos disso, em vez de sentirmos vergonha.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
hegamos ao final de nossos estudos na carta que Paulo escreveu aos crentes da Galácia. Minha expectativa é que estes estudos tenham servido para abrir os seus olhos, querido leitor, a fim de que você possa perceber a grandeza da graça de Deus, bem como a pecaminosidade do pensamento humano de que é possível merecer alguma coisa da parte do Altíssimo. A Carta aos Gálatas é um libelo contra a justiça própria, um manifesto da insondável graça de Deus em Jesus Cristo. Apesar de ter sido escrita há tanto tempo, ela é tão atual como se tivesse sido produzida ontem pela pena do apóstolo. Isso porque o problema fundamental do homem continua sendo o mesmo, desde a sua queda no Paraíso, desde a época de Paulo. O homem deseja ser como Deus, deseja ser independente e viver de acordo com sua própria vontade. Algumas das manifestações mais claras dessa atitude arrogante são as religiões inventadas pelo homem, nas quais ele é o centro, ele é deus e seu próprio salvador. O legalismo é uma manifestação comum nessas religiões. No Brasil, observamos com muita tristeza o crescimento, mesmo entre evangélicos, de doutrinas e conceitos, além de muitas práticas, que de alguma maneira sugerem que podemos comprar nosso caminho para a glória. Mais do que nunca, a Carta aos Gálatas precisa ser anunciada, pregada em cada púlpito, estudada em cada grupo, lida, refletida e meditada por todos os cristãos. O legalismo é uma doença difícil de curar, um vírus complicado de exterminar. Nossa oração é que estes estudos em Gálatas sirvam como instrumento poderoso para esse fim. Os pontos a seguir resumem o ensino do apóstolo Paulo nessa carta e servem de conclusão e aplicação prática para nós. 1. O evangelho de Jesus Cristo já nos foi entregue de forma definitiva e não admite edição, alteração, diminuição ou acréscimo. Paulo deixou isso muito claro aos seus leitores. O “evangelho” que estava sendo pregado pelos falsos mestres era outro evangelho. Os crentes da Galácia deveriam permanecer firmes naquilo que lhes fora ensinado pelo apóstolo. Existe apenas um evangelho, e ele está contido nos escritos apostólicos que nos foram confiados ao longo da História, pela preservação e providência de Deus, nas Escrituras Sagradas. 2. O apóstolo Paulo era a pessoa ideal para falar a respeito da justificação pela fé em Cristo Jesus. Antes de conhecer Cristo, ele havia sido um grande perseguidor da fé evangélica. Como fariseu, acreditava na justificação pelas obras da lei, até aquele dia em que Deus se revelou a ele mediante Jesus Cristo, no caminho de Damasco. Tendo sido um legalista a maior parte de sua vida, Saulo de Tarso podia falar com exatidão de conhecimento acerca das doutrinas que os falsos mestres estavam tentando impor àqueles que haviam sido justificados pela graça. Ele sabia que as obras da lei, o cumprimento de normas religiosas, a prática da circuncisão, a guarda de calendário religioso e a observância de uma dieta especial não justificam o homem diante de Deus. É somente pela fé em Cristo Jesus que isso acontece. 3. Apesar do fato de que os primeiros cristãos eram judeus, inclusive os doze apóstolos, eles sabiam que o homem não é justificado pelas obras da lei de Moisés, mas, sim, pela fé em Jesus Cristo. Foi a respeito disso que Pedro, João e Tiago concordaram com Paulo, no famoso encontro em Jerusalém (At 15). Eles deram a destra de comunhão ao apóstolo Paulo e reconheceram seu ministério entre os não judeus, sem a necessidade das obras da lei. É espantoso observar nos dias de hoje aqueles que desejam impor os ritos judaicos aos cristãos brasileiros, que são gentios, como se a Bíblia deles não trouxesse a Carta aos Gálatas. Devemos resistir a toda e qualquer tentativa de nos escravizar debaixo do regime da Lei mosaica. 4. A doutrina da justificação pela fé não foi uma invenção do apóstolo Paulo. Nessa carta ele demonstra como Abraão, o pai da nação judaica, foi justificado pela fé muito antes de a Lei ter sido entregue por intermédio de Moisés. A Lei, de acordo com o apóstolo, serviu de pedagoga para nos levar a Cristo, para que pela fé fôssemos feitos filhos de Deus, herdeiros dele. Assim, a Lei e os ritos judaicos tinham apenas um valor transitório e não deveriam ser impostos como condição para a salvação. 5. É impressionante a inconstância dos crentes da Galácia! A princípio, eles receberam Paulo como se fosse um anjo de Deus e creram na mensagem que ele pregava, da justificação pela fé em Cristo Jesus. Não muito tempo depois, porém, os gálatas já estavam seguindo os pregadores legalistas, quase abandonando a fé em Cristo Jesus. Quão inconstante é a natureza humana! Quão propensos somos nós às obras da lei! 6. O que estava em jogo na Galácia era a natureza da salvação dos pecados. Paulo havia ensinado que a salvação se dava mediante a fé em Jesus Cristo. Agora, falsos mestres ensinavam que a fé não era suficiente. Era necessário também observar as obras da lei. Paulo contrasta os dois sistemas e mostra que as obras da lei estão ligadas à carne e às obras que ela produz. Por sua vez, a justiça pela fé está ligada ao Espírito Santo e ao fruto que sua ação produz. Estar debaixo da Lei e viver na carne são a mesma coisa. O resultado final é a morte. Em Cristo Jesus somos libertos da condenação da Lei e servirmos a Deus pelo Espírito,
C
em amor, em gratidão a ele, obedecendo aos seus preceitos como expressão de alegria, não como tentativa de conquista de mérito. 7. Assim, os gálatas deveriam cuidar uns dos outros, rejeitar os falsos mestres e permanecer firmes na palavra de Deus, lembrando que todos haveremos de colher o que semeamos nesta vida. A única glória que temos é a cruz de Cristo, diz o apóstolo Paulo. Que este seja também o nosso lema!
O culto segundo Deus Nicodemus, Augustus 9788527505222 160 páginas
Compre agora e leia Em nossos dias, assim como na época de Malaquias, o culto a Deus tem sido desvirtuado das mais diversas maneiras. Embora muitos pensem que nada temos a aprender com o Antigo Testamento em matéria de culto, estão enganados. Ao levantarem sua voz contra o povo de Deus de sua época, por haver desvirtuado o culto ao Senhor, os profetas usaram como argumentos princípios relativos à adoração a Deus que certamente se aplicam ao povo de Deus de todas as épocas.
Compre agora e leia
Um recado para ganhadores de alma Bonar, Horatius A. 9788527506557 64 páginas
Compre agora e leia Um recado para ganhadores de almas é a expressão da dedicação de Horatius Bonar ao ministério da Palavra. Nesta obra, ele não apresenta métodos de evangelização ou coisa parecida; sua preocupação está mais voltada para a vida do ministro de Deus.
Compre agora e leia
Contra a idolatria do Estado Ferreira, Franklin 9788527506649 288 páginas
Compre agora e leia Contra a idolatria do Estado oferece ao leitor uma oportunidade singular de se posicionar de maneira ativa e consciente no atual cenário político nacional e internacional. Por meio da mensagem evangélica, a "religião do Estado" é confrontada e a ação política cristã é legitimada, ao mesmo tempo que qualquer autoridade humana é submetida à autoridade soberana de Deus, o único a quem devemos culto em todas as esferas de nossa vida.
Compre agora e leia
A verdadeira obra do Espírito Edwards, Jonathan 9788527506540 104 páginas
Compre agora e leia Esta obra é uma exposição de 1 João 4 feita com maestria e brilhantismo por Jonathan Edwards, que nos exorta a provar a procedência dos espíritos, de acordo com a recomendação do apóstolo João. Os pensamentos do autor surgiram da necessidade de instruir os cristãos que viveram numa época de grande agitação e confusão, à medida que se faziam todos os tipos de reivindicação espiritual. Não é preciso dizer que a situação no Brasil de hoje apresenta muitas semelhanças.
Compre agora e leia