Língua Portuguesa
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A N O
José Luís Landeira Alice Vieira
Ensino Médio 2a edição
José Luís Marques López Landeira
Licenciado em Língua Portuguesa pela Universidade de Coimbra (Portugal). Mestre em Filologia e Língua Portuguesa pela FFLCH-USP. Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da USP. Professor de ensino fundamental, médio e universitário.
Alice Vieira
Graduada em Português e Francês pela FFLCH-USP. Mestre em Literatura Portuguesa pela FFLCH-USP. Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da USP. Professora do programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da USP.
Língua Portuguesa Ensino Médio
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2º ANO
Queridos alunos e queridas alunas Vocês têm o privilégio de estudar numa escola salesiana, que faz da felicidade de seus alunos e alunas a razão da própria existência. O seu Colégio faz parte da Rede Salesiana de Escolas. Por isso mesmo, usa livros didáticos exclusivos, cuja qualidade os coloca entre os melhores do Brasil. Eles foram produzidos por autores e técnicos altamente qualificados e seguem os princípios educativos sugeridos pela Unesco, bem como as normas e diretrizes adotadas pelo MEC para a educação exigida nos tempos atuais. Esses livros têm o objetivo de ajudar cada um de vocês a edificar uma base sólida para a própria vida, construindo, com a orientação de seus educadores, os saberes indispensáveis para enfrentar os grandes desafios do século XXI: • Aprender a aprender, construindo e elaborando os conhecimentos de que precisa agora e precisará no futuro. • Aprender a fazer, tornando-se capaz de aplicar nas situações concretas da vida os conhecimentos adquiridos. • Aprender a conviver, participando dos grupos de que faz parte, reconhecendo e aceitando as diferenças, convivendo pacificamente com os outros e exercendo a cidadania, como personagem atuante na História de seu País e do mundo. • Aprender a ser, tornando-se progressivamente uma pessoa humanamente mais completa e mais perfeita. • Aprender a crer, abrindo-se para as realidades que ultrapassam as dimensões materiais da vida. A construção desses saberes desenvolve progressivamente as competências e habilidades que ajudarão você a vencer as provas e concursos que tiver de enfrentar ao longo da vida. A começar pelo ENEM que, a partir de 2009, ganhou mais importância como forma de ingresso em muitas faculdades, particularmente nas federais, substituindo no todo, ou em parte, o vestibular tradicional. Aproveite bem a ajuda oferecida por esse material pioneiro, inovador. Faça de cada livro uma ferramenta valiosa para a construção do futuro de seus sonhos. E lembre-se: Nas olimpíadas da vida, a vitória depende de dedicação, esforço, entusiasmo e perseverança. Busque e você conseguirá a vitória. Pe. Nivaldo Luiz Pessinatti Ir. Ivanette Duncan de Miranda Diretores da RSE
Landeira, José Luís Marques López. Língua Portuguesa: ensino médio, 2ª ano. / José Luís Marques López Landeira e Alice Vieira. 2ª edição. Brasília: Cisbrasil - CIB, 2010. 364 p. (Coleção RSE) ISBN nº 978-85-77441-138-2 I. Vieira, Alice II. Rede Salesiana de Escolas. 1. Língua Portuguesa. Todos os direitos reservados à Editora Cisbrasil – CIB Endereço: SHCS CR – Quadra 506 – Bloco B – Lojas 65 / 66 – Asa Sul • Brasília – DF – CEP 70350-525 Telefone: (0XX61) 3214-2300 • Fax: (0XX61) 3214-4797 • E-mail:
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José Luís Marques López Landeira Alice Vieira Kátia Cristina Stocco Smole, Maria Ignez de Souza Vieira Diniz
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Os autores agradecem a colaboração do professor que contribuiu com sua leitura crítica para a elaboração deste volume: Péricles Macedo Polegatto (CONSA - Ribeirão Preto) Equipe Administrativa Endereço: SHCS CR – Quadra 506 – Bloco B Lojas 65/66 – Asa Sul Brasília – DF – CEP 70350-525 Tel.: (0XX61) 3214-2300 – Fax: (0XX61) 3242-4797 E-mail:
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A palavra, a sociedade e o erotismo
Capítulo 1 – AMOR E DESEJO NA PONTA DA LÍNGUA..........................................................10 A sexualidade, a ausência e a literatura................................................................................................. 12 Erotismo ou pornografia? Ou é tudo a mesma coisa?........................................................................... 16 Os frutos de dois amores: o erótico e o neoplatônico........................................................................... 19 O discurso erótico e a publicidade: sexo vende tudo?.......................................................................... 22 Sujeito e predicado................................................................................................................................. 24 Exercício resolvido.................................................................................................................................. 25 Agora é a sua vez................................................................................................................................... 26 “A missa do galo”: uma leitura erótica do século XIX............................................................................ 27 Entrevistando Conceição........................................................................................................................ 34 Aspectos linguísticos em Missa do galo: metonímia e elipse................................................................ 38 História crítica da Arte e da Literatura: Romantismo – Parte I................................................................ 42 Varal de poesia....................................................................................................................................... 59 Pausa para reflexão................................................................................................................................ 59 Leitura: “Uns braços”.............................................................................................................................. 60 De olho no futuro.................................................................................................................................... 64 Capítulo 2 – A LÍNGUA AFRODISÍACA ................................................................................... 67 A personalidade do enunciador do texto............................................................................................... 67 “Mande ler o vosso destino” – Convencer ou persuadir?...................................................................... 73 As margens da literatura......................................................................................................................... 81 “Você não entende nada”: ideologia, efeitos de sentido e pronomes................................................... 89 O objeto do desejo................................................................................................................................. 99 História crítica da Arte e da Literatura: Romantismo – Parte II............................................................. 115 Luanda no imaginário brasileiro: as raízes negras no Brasil................................................................ 123 O Romantismo no Brasil ...................................................................................................................... 126 Pausa para reflexão.............................................................................................................................. 130 De olho no futuro ................................................................................................................................. 131
O poder em discurso
Capítulo 3 – Pensando o poder da arte........................................................................140 Estratégias e estilo da argumentação.................................................................................................. 142 Modalizando o discurso........................................................................................................................ 146 Estilo: escolhas entre o engenho e a arte............................................................................................ 147 A epopeia, obra de engenho e arte...................................................................................................... 154 História crítica da Arte e da Literatura: Realismo-Naturalismo – Parte I............................................... 177 Pausa para reflexão.............................................................................................................................. 183 Capítulo 4 – A miséria do mundo......................................................................................184 Você vive ou só sobrevive?................................................................................................................... 185 A análise sintática e a expressividade das frases................................................................................ 189 A teoria do romance e a sociedade burguesa.................................................................................... 196 História crítica da Arte e da Literatura: Realismo-Naturalismo – Parte II.............................................. 208 Agora é a sua vez................................................................................................................................. 219 Pausa para reflexão.............................................................................................................................. 219 Capítulo 5 – A linguagem produzindo a ilusão do poder.....................................220 O mundo democrático – É uma ilusão?............................................................................................... 220 As palavras de Severino....................................................................................................................... 224 O poder, a linguagem e a ilusão da honestidade................................................................................ 229 Diferenças e palavras: variedades linguísticas e poder....................................................................... 237 As preposições na notícia de jornal..................................................................................................... 240 A linguagem produzindo a ilusão de poder......................................................................................... 245 História crítica da Arte e da Literatura: passando o século XIX em revista.......................................... 249 Pausa para reflexão.............................................................................................................................. 252 De olho no futuro.................................................................................................................................. 253
Fé, palavras e religiosidade cristã
Capítulo 6 – PALAVRAS PARA USAR “ASSIM NA TERRA COMO NOS CÉUS”..................272 José de Anchieta e a literatura jesuítica............................................................................................... 275 Com que Deus amastes ou com que Deus amaste?.......................................................................... 280 Reflexões sobre o início da literatura no Brasil..................................................................................... 283 A literatura indígena no território brasileiro........................................................................................... 286 A circulação de conceitos de sagrado na sociedade.......................................................................... 297 História crítica da Arte e da Literatura: ainda a Europa do século XIX................................................ 304 Pausa para reflexão.............................................................................................................................. 316 Capítulo 7 – A linguagem construindo a religiosidade popular.................... 317 A construção da frase por tópico......................................................................................................... 320 Ensaiando sobre o bem e o mal........................................................................................................... 322 Exercícios resolvidos............................................................................................................................. 323 Agora é a sua vez................................................................................................................................. 323 “Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar”.................... 332 Ampliações sintáticas do nome............................................................................................................ 336 Exercício resolvido................................................................................................................................ 338 Agora é com você................................................................................................................................. 338 Guimarães Rosa e os processos de formação de palavras................................................................ 339 Entre paralelos: alegorias..................................................................................................................... 339 O adjunto adverbial: expandindo o texto.............................................................................................. 342 História crítica da Arte e da Literatura: Pós-impressionista e Pré-modernista..................................... 346 Pausa para reflexão.............................................................................................................................. 356 De olho no futuro.................................................................................................................................. 356
Capítulo 1 AMOR E DESEJO NA PONTA DA LÍNGUA Conteúdos – Sexualidade. Linguagem e literatura. Os conceitos de desejo e erotismo e as relações com a linguagem e a arte. Discurso erótico e publicidade. Diferenças entre erotismo e pornografia. Ambiguidade. Frase e oração. Sujeito e predicado. Uso dos verbos ter e do haver. A metonímia. A elipse. Dante Milano. Álvares de Azevedo. Machado de Assis. O Neoplatonismo e o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. O Romantismo. Os conhecimentos linguísticos na construção do sentido do texto literário. Reflexões – Ausência e erotismo. Erotismo e pornografia são a mesma coisa? Sexo vende tudo? O desejo e a sedução Gêneros textuais – A entrevista. O erotismo e a publicidade: o anúncio publicitário erótico. O poema erótico. O conto erótico. Capítulo 2 A LÍNGUA AFRODISÍACA Conteúdos – O discurso erótico do amor realizado, a linguagem e as ideologias sociais. A personalidade do enunciador do texto.O imperativo verbal. Convencer e persuadir.Os pronomes pessoais na enunciação e na gramática. O predicado: a transitividade verbal e os objetos direto e indireto. Os conhecimentos linguísticos na construção do sentido do texto literário. Antonio Gedeão. Carlos Drummond de Andrade. Cecília Meireles. João do Rio. Manuel Bandeira. As relações entre ideologia e literatura. Período literário. O aproveitamento literário e ideológico da lenda. Reflexões – A realização do desejo erótico. Relações entre o sagrado, o profano e o erotismo. Gêneros textuais – O folheto publicitário. O provérbio. A receita culinária. A lenda. Fim da unidade 1 A PALAVRA, A SOCIEDADE E O EROTISMO – PENSANDO NO AMANHÃ A dissertação argumentativa e o acesso ao futuro: um estudo da estrutura do texto dissertativo-argumentativo conforme pedido em exames de acesso ao ensino superior. Um exemplo prático: estudo de um texto produzido por aluno para a prova de redação do ENEM. A violência em um editorial jornalístico: estudo da estrutura dissertativo-argumentativa em um texto jornalístico. A argumentação e a resenha crítica: análise comparativa entre os dois gêneros textuais.
Teu corpo claro e perfeito, – Teu corpo de maravilha, Quero possuí-lo no leito Estreito da redondilha... (Manuel Bandeira. Poemeto erótico)
Leia a tira em quadrinhos a seguir e analise a dimensão sexual presente no texto.
Aline. Criação de Adão Iturrusgaraí. Folha de S.Paulo. São Paulo: 19-1-2004
ADÃO ITURRUSGARAÍ (1965-...) Nasceu em Cachoeira do Sul, no RS. Já recebeu diversos prêmios e tem a sua obra publicada em jornais de todo o Brasil e em álbuns distribuídos aqui e em Portugal.
1. A fala e as ações de Aline revelam coerência? Por quê?
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Capítulo 1
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
AMOR E DESEJO NA PONTA DA LÍNGUA
2. Em sua opinião, a tira em quadrinhos é erótica? Por quê?
Observe a seguinte reprodução de um quadro de Matisse e encontre elementos que a relacionem com a tira em quadrinhos que analisamos. HENRY MATISSE (1869-1954) – Pintor, desenhista e escultor, nasceu em Chateau-Cambrésis, em 31 de dezembro de 1869 e faleceu na cidade de Nice, em 3 de novembro de 1954. Em certo momento escreveu: “Não faço distinção entre a construção de um livro e a de uma pintura e parto sempre do simples para o complexo, ainda assim estou sempre disposto a recriar a partir da simplicidade”. Henri Matisse. Comment j’ai fait mes livres, 1946.
MATISSE, Henry. O torso de gesso. (1919). São Paulo: Museu de Arte de São Paulo.
3. Compare a reprodução de Matisse com a tira em quadrinhos. Use suas conclusões para preencher o quadro. T ira em quadrinhos
Quadro de Matisse
Faz referência à nudez? Faz referência direta ao relacionamento entre dois seres?
sim
sim
Manifesta ausência ou distância?
sim
É considerada obra de arte?
Amor e desejo na ponta da língua
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A SEXUALIDADE, A AUSÊNCIA E A LITERATURA
O desejo daquilo que não podemos ter no amor é uma das fontes do discurso erótico. Na literatura, a impossibilidade de o amante concretizar o seu desejo de amor junto à pessoa amada produziu, no decorrer da história, textos carregados de erotismo. O texto torna-se a manifestação concreta do desejo do enunciador. É a forma como ele pode exercitar o seu desejo erótico. É também uma forma de transgredir a realidade, para superar aquilo que parece impossível – o contato com o ser amado. Na estrofe de Manuel Bandeira, lida na epígrafe, o eu-lírico transforma a poesia no objeto da posse da mulher que ama. O corpo de maravilha da mulher amada converte-se em redondilha... No volume 1 desta coleção, pode-se recapitular o que é redondilha. Por vezes, a necessidade desse contato pode ser tanta que o outro é coisificado. Pense nisso, ao ler o poema abaixo.
Imagem Uma coisa branca, Eis o meu desejo. Uma coisa branca De carne, de luz, Talvez uma pedra, Talvez uma testa, Uma coisa branca. Doce e profunda, Nesta noite funda, Fria e sem Deus. Uma coisa branca, Eis o meu desejo, Que eu quero beijar, Que eu quero abraçar, Uma coisa branca Para me encostar E afundar o rosto. Talvez um seio, Talvez um ventre, Talvez um braço,
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Capítulo 1
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
A sexualidade é um componente fundamental de todo ser humano. Diante de nós mesmos e dos outros, descobrimos que os desejos sexuais fazem parte do todo de nossa identidade. Desejamos a intimidade, a afetividade, a ternura permitidas pelas relações corporais, psíquicas e sentimentais. Nem sempre, contudo, tal desejo se realiza.
Onde repousar. Eis o meu desejo, Uma coisa branca Bem junto de mim, Para me sumir, Para me esquecer, Nesta noite funda, Fria e sem Deus. MILANO, Dante. Os cem melhores poemas brasileiros do século XX. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
DANTE MILANO (1899-1991) – Nasceu no Rio de Janeiro, em 1899 e faleceu em Petrópolis, em 1991. Publicou seu primeiro poema, “Lágrima Negra”, em 1920, na revista carioca Selecta. Seu primeiro livro, Poesias, foi publicado em 1948 e recebeu o Prêmio Felipe d’Oliveira de melhor livro de poesia do ano. Em 1979 foi publicado seu livro Poesia e Prosa. Recebeu, em 1988, o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras. Dante Milano é um dos poetas representativos da terceira geração do Modernismo. Reflete muito sobre a temática da morte, unindo pensamento e uma forma poética enxuta, sem muitos artifícios, com riqueza de ritmo e sentido.
4. O que representa a expressão “coisa branca” no contexto do poema?
5. O poema estrutura-se na oposição entre a “coisa branca” desejada pelo eu-lirico e a “noite funda” em que vive. Aparentemente, a “coisa branca” é tudo aquilo que a “noite funda” não é e vice-versa. A seguir vamos caracterizá-las, recorrendo ao poema. Coisa branca
Noite funda
Humana e luminosa (como se verifica no verso ) “Doce e profunda”
Amarga e superficial
Cálida e divina
“Fria e sem Deus”
Desejável para beijar e abraçar (como se verifica nos versos )
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Coisa branca
Noite funda
Aconchegante e suave, permitindo o descanso (como se verifica nos versos e no verso )
Alienante (como se verifica nos versos )
6. Utilize-se do quadro anterior, para descrever o estado emocional do eu-lírico.
Para o crítico literário Davi Arriguicci Júnior, Dante Milano apresenta as características próprias de um grande poeta. Verifique na leitura a seguir. A opinião da crítica sobre Dante Milano “[...] como o amigo (o poeta Manuel) Bandeira, refletiu muito sobre a morte, casando o pensamento à forma enxuta de seus versos – lírica seca e meditativa, avessa ao fácil artifício, onde o ritmo interior persegue em poemas curtos, com justeza e sem alarde, o sentido. Uma forma de calada música, que imita, roçando o silêncio, o pensamento. Sua frase límpida e por vezes de sabor clássico, imune a cacoetes modernistas, se presta, porém, a um verso moderno, desinflado, apto para armar equações estranhas com a visão irônica de quem repensa o mundo ou os mundos (a vigília e o sonho; o passado e o presente; o inconsciente e a consciência), partindo da condição do exílio e de um senso lúcido e desencantado da desarmonia de tudo. Visão que o leva a imagens recorrentes de perplexidade de um ser desmemoriado, perdido de si mesmo, errante nas distâncias desproporcionadas de uma terra de ninguém.” ARRIGUCCI Jr., Davi. (1991). “Dante Milano: a extinta música”. In: Folha de S.Paulo. São Paulo: 20-4-1991.
7. Discuta em classe a opinião do crítico literário Davi Arrigucci Jr. Comprove a opinião do crítico na poesia de Dante Milano. Para isso, além de Imagem, leia mais alguns poemas deste poeta.
Ao tempo Tempo, vais para trás ou para diante? O passado carrega a minha vida Para trás e eu de mim fiquei distante, Ou existir é uma contínua ida E eu me persigo nunca me alcançando? A hora da despedida é a da partida 14
Capítulo 1
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
Feminina (como se verifica nos versos )
A um tempo aproximando e distanciando... Sem saber de onde vens e aonde irás, Andando andando andando andando andando Tempo, vais para diante ou para trás? MILANO, Dante. Poesias. Petrópolis: Firmo, 1994.
VII [Na noite cor de sono, cor de sonho,] Na noite cor de sono, cor de sonho, Fulgurando na treva, um raio estronda, Final do céu, divino mas medonho. E uma mulher sem ter onde se esconda, Os cabelos desfeitos, aparece E em meus braços se atira. Então, absorto, Vi que o corpo, quando ama, desfalece, Vi que o rosto, ao beijar, parece morto. Como se o beijo os lábios lhe torcesse, A boca toma a forma de um sorriso Que se contrai, como se o beijo doesse. Visões do amor, possuídas mas incertas. O corpo se entregou, mas indeciso, E deixou-se cair de mãos abertas. MILANO, Dante. Poesias. Petrópolis: Firmo, 1994.
Anote as suas conclusões no espaço a seguir.
8. A seguir você encontra a transcrição da definição encontrada no dicionário Aurélio do verbete “imagem”. Observe que essa palavra é muito rica em significados. Relacione o poema ao seu título “Imagem”, utilizando-se das entradas 1, 5, 7, 8 e 10 do dicionário. imagem. [Do lat. imagine.] S. f. 1. Representação gráfica, plástica ou fotográfica de pessoa ou de objeto. 2. Restr. Representação plástica da Divindade, de um santo, etc.: “Trouxeram uma pequena mesa que puseram ao lado do leito com uma grande imagem de Cristo” (L. Lavenère, O Padre Cornélio, p. 95) [Cf., nesta acepç., ídolo (1) e ícone (1).] 3. Restr. Estampa, ger. pequena, que representa um assunto ou motivo religioso. 4. Fig. Pessoa muito formosa. 5. Reprodução invertida, de pessoa ou de objeto, numa superfície refletora ou refletidora: Passou alguns minutos olhando a própria imagem nas águas do lago. 6. Representação dinâmica, cinematográfica ou televisionada, de pessoa, animal, objeto, cena, etc. 7. Representação exata ou analógica de um ser, de uma coisa; cópia: O pequeno é a imagem do pai; A nova cidade era uma imagem exata da outra, destruída pelo terremoto. 8. Aquilo que evoca uma determinada coisa, por ter com ela semelhança ou relação simbólica; símbolo: Para aquele moralista, a transformação dos costumes é a imagem da decadência; Dizem que o azul é a imagem da tranquilidade. 9. Representação mental de um objeto, de uma impressão, etc.; lembrança, recordação: imagens do passado. 10. Produto da imaginação, consciente ou inconsciente; visão: Eram seus sonhos povoados de imagens aterradoras. 11. Manifestação sensível do abstrato ou do invisível: Em O Alienista, Machado de Assis nos dá boa imagem de sua mordacidade. 12. Metáfora: imagem gasta, banal.
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EROTISMO OU PORNOGRAFIA? OU É TUDO A MESMA COISA? Forme dupla com um colega. Leiam o texto a seguir. A sexualidade em Imagem, de Dante Milano, é muito sutil. O discurso erótico manifesta-se apenas de forma a sugerir a necessidade da mulher amada e do carinho, para encontrar um refúgio na “noite funda” em que vive. Mas a abordagem erótica encontrada no poema de Dante Milano não é a única possível, pois, ao falarmos de linguagem e sexo, deparamos com muitas opções que variam de acordo com diversos motivos, como o estilo pessoal, a época em que se vive, os efeitos de sentido pretendidos. O erotismo é uma forma de estimularmos o impulso sexual, que sofre a manifestação dos impulsos sexuais externos, por meio da educação, da ética e da moral. O conceito de sexualidade que desenvolvemos é influenciado pelas nossas relações sociais. O erotismo surge do desejo do que não temos, e esse desejo, muitas vezes, apenas pode realizar-se por meio da fantasia. Assim, o texto literário erótico torna-se a realização da fantasia sexual do enunciador, revestida do trabalho consciente com a palavra. O resultado? A fantasia sexual torna-se arte por meio das palavras. Ou seja, o impulso sexual é dominado pela linguagem. Isso permite que o discurso erótico ganhe uma leveza que não encontramos no discurso pornográfico. Comparem o texto à escultura de Rodin, reproduzida ao lado. É possível perceber nela que se trata de uma abordagem erótica e não pornográfica do amor? Como chegaram a essas conclusões? Elaborem, em seus cadernos, RODIN, Auguste. A eterna primavera. (c.1897). São Paulo: Museu um pequeno texto que explique o ponto de vista da de Arte de São Paulo. dupla e como essa opinião foi desenvolvida. 16
Capítulo 1
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
13. Álg. Mod. Ponto de um conjunto que corresponde a um ponto de outro numa aplicação deste sobre aquele. 14. Inform. Cópia exata do conteúdo de um segmento contínuo de memória (principal ou secundária) ou de arquivo: gravar a imagem de um disquete em outro. 15. Ópt. Conjunto de pontos no espaço, para onde convergem, ou de onde divergem, os raios luminosos que, originados de um objeto luminoso ou iluminado, passam através de um sistema óptico. 16. Rel. Públ. Conceito genérico resultante de todas as experiências, impressões, posições e sentimentos que as pessoas apresentam em relação a uma empresa, produto, personalidade, etc. Imagem matricial. Inform. 1. Aquela que é representada, processada e armazenada na forma de uma série ordenada de unidades individuais (v. pixel), dispostas contiguamente em linhas e colunas, cada uma com cor, brilho, etc., definidos. [Cf. imagem vetorial.] Imagem real. Ópt. 1. A que é formada pelos raios luminosos que convergem depois de atravessarem um sistema óptico. Imagem vetorial. Inform. 1. Aquela que é representada e armazenada na forma de instruções para a sua produção por um dipositivo de saída (p. ex., tela do computador, impressora), que a reproduz à medida que essas instruções são processadas. [Cf. imagem matricial.] Imagem virtual. Ópt. 1. A que é formada pelos raios luminosos que divergem depois de atravessarem um sistema óptico.
O discurso erótico tem como objetivo a expressão estética do impulso sexual, transformando-o em arte; enquanto o discurso pornográfico visa somente à satisfação desse mesmo impulso.
Auguste RODIN (1840-1917) – Nasceu em Paris. Um dos artistas mais influentes do século XX. Morreu em 17 de novembro de 1917, em Meudon. Deixou inúmeras esculturas inacabadas propositadamente, dando a impressão de que a figura estava saindo da pedra. Seus estudos sobre a escultura antiga permitiram-lhe modelar formas, contrastando com o reflexo da luz, produzindo efeitos nunca antes conseguidos.
Traga para a próxima aula um exemplar do livro de poemas Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo. Você poderá retirá-lo na biblioteca de sua escola ou encontrá-lo pela Internet, por meio de sites de busca, como o
Selecione algumas poesias eróticas que considerar interessantes. Erótico ou pornográfico? Leia com atenção o poema seguinte e identifique como se construiu o discurso erótico no poema e como ele se diferencia da pornografia.
Meu desejo Meu desejo? era ser a luva branca Que essa tua gentil mãozinha aperta: A camélia que murcha no teu seio, O anjo que por te ver do céu deserta... Meu desejo? era ser o sapatinho Que teu mimoso pé no baile encerra... A esperança que sonhas no futuro, As saudades que tens aqui na terra... Meu desejo? era ser o cortinado Que não conta os mistérios do teu leito; Era de teu colar de negra seda Ser a cruz com que dormes sobre o peito. Meu desejo? era ser o teu espelho Que mais bela te vê quando deslaças Do baile as roupas de escumilhas e flores E mira-te amoroso as nuas graças! Meu desejo? era ser desse teu leito De cambraia o lençol, o travesseiro Com que velas o seio, onde repousas, Solto o cabelo, o rosto feiticeiro...
Manuel Antônio ÁLVARES DE AZEVEDO (São Paulo, 1831 – Rio de Janeiro, 1852) – Sua poesia revela forte tendência para a fuga da realidade e para o sonho. Como se pode perceber, Álvares de Azevedo morreu ainda jovem, com apenas vinte anos. Toda a sua obra – sete livros e diversos discursos e cartas – foi escrita em quatro anos, no período em que era estudante de Direito. Cultivou os gêneros lírico, narrativo e dramático. Seus textos revelam um jovem que deseja fugir da rotina, mas sente-se esmagado pelo peso da realidade. Há, portanto, na poesia desse jovem paulistano, uma triste forma de ver a existência, em que até o erotismo parece conduzir à decepção.
Meu desejo? era ser a voz da terra Que da estrela do céu ouvisse amor! Ser o amante que sonhas, que desejas Nas cismas encantadas de langor! AZEVEDO, Álvares de. Lira dos vinte anos. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
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9. Discuta, em classe, as suas impressões sobre o poema.
11. O poema constrói-se a partir do desejo de o eu-lírico ser aquilo que está ao redor da amada. Essa construção desenvolve-se em três campos lexicais (de palavras): imagens físicas, espirituais e sensitivas. a) Identifique esses campos lexicais, completando o quadro a seguir (uma palavra pode aparecer em mais de uma seção). Imagens físicas
Imagens espirituais
Imagens sensitivas
Luva branca
b) O que predomina no poema: as imagens físicas, as espirituais ou as sensitivas? O que isso pode nos revelar sobre o desejo do eu-lírico?
A associação de imagens ao erotismo tem funcionado bem na produção de obras de arte. Rodin associou a primavera ao amor erótico. Álvares de Azevedo construiu imagens físicas, espirituais e sensoriais. Algo simples, como uma estação do ano ou uma luva branca, pode ser associado ao amor e ao desejo sexual. A primavera ou a luva branca, em si mesmas, não são eróticas. É o enunciador quem constrói a relação apropriada entre a imagem e o discurso erótico, por meio do trabalho que realiza com a linguagem. A luva se torna uma imagem erótica quando passa a ser o ideal do eu-lírico. No poema Meu desejo, é a imagem do eu-lírico transformado em luva, sendo delicadamente apertado pelas mãos da amada, que sustenta o discurso erótico. Lembre-se de que o uso de luvas era frequente no meio em que vivia o poeta Álvares de Azevedo. Jovem do século XIX. Repare nas luvas.
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Capítulo 1
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
10. Identifique o número de estrofes e de versos do poema, além do esquema de rimas. Procure também encontrar o efeito de sentido que esse tipo de rima provoca no leitor.
12. Elabore uma lista, no caderno, com quatro ou cinco imagens eróticas que podem ser construídas a partir de elementos facilmente encontrados em sua comunidade. Estabeleça a relação entre essas imagens e o discurso erótico. 13. Selecione as imagens que considerar mais interessantes e escreva um poema erótico. Utilize um dos poemas encontrados em Lira dos vinte anos (à exceção daquele que já foi trabalhado neste capítulo) como referência intertextual. Anote qual poema de Álvares de Azevedo está servindo de base para a construção de seu poema.
OS FRUTOS DE DOIS AMORES: O ERÓTICO E O NEOPLATÔNICO Álvares de Azevedo é um homem do século XIX. Sua poesia revela o pensamento da época em que viveu, das leituras que fez, dos desejos que alimentou. Uma das características de sua poesia é a presença daquilo que foi definido como “mal do século” XIX, um sentimento de inadaptação à finalidade da vida. Há, em muitos poemas desse poeta, a sensação de infelicidade, que resulta da incapacidade de o eu-lírico atingir o objetivo da vida. 14. Recorrendo a Lira dos vinte anos, transcreva do poema Lembrança de morrer versos que exemplifiquem esse sentimento de inadaptação.
A poesia de Álvares de Azevedo revela um desejo de superar a vida – seja por meio de um amor perfeito ou por meio da morte que libera para uma forma superior de vida. Ao falar do amor, o enunciador deseja uma mulher ideal, com perfil aristocrático e ar de princesa de conto de fadas. 15. A que mito dos contos de fadas faz referência o poema “Cantiga” em Lira dos vinte anos?
A Bela Adormecida Os contos de fadas nos apresentam amores platônicos: perfeitos, mas que, quando finalmente se tornam realidade, lá no fim do enredo, se transformam em um simples “foram felizes para sempre”. Como se a vida fosse apenas superar os obstáculos para encontrar a pessoa ideal. No volume 1 desta coleção, abordamos o amor de origem platônica. Agora, estamos tratando do amor erótico. Que relações existem entre essas duas formas de amar? Até o século XIX, principalmente para aqueles que pertenciam a certos setores sociais de elite, amor e casamento eram duas realidades bem diferentes. O casamento era principalmente uma instituição quase que apenas social e familiar, visando a satisfazer interesses políticos e econômicos das famílias que se uniam. Além disso era aceito pela maioria como uma instituição religiosa e, portanto, sagrada e superior à vontade humana. O pensamento socialmente dominante era que nenhum homem deveria separar o que Deus unira. Como o casamento não era, necessariamente, associado ao amor, o escritor podia sentir-se à vontade para inspirar-se em relações fora do arranjo matrimonial. No entanto, pelo poder que a religião exercia na sociedade, qualquer relação amorosa fora do casamento não podia ser consumada. Era uma relação adúltera. Esse conflito foi muito explorado literariamente. Sobre o amor neoplatônico, no volume 1 desta coleção, lemos: Amor e desejo na ponta da língua
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O amor erótico sobre o qual muitos autores escreveram, no entanto, não se satisfaz apenas com a idealização. Trata-se de uma forma de amar que cultiva o desejo do contato e do prazer físicos. Isso gera um novo conflito: entre o desejo de contemplar o ser amado e o de tocá-lo com intimidade. Ao ler o poema a seguir, pense em como ele concretiza o conceito neoplatônico de amor e como o eu-lírico se relaciona com o seu desejo sexual.
Cantiga, partindo-se Senhora, partem tão tristes meus olhos por vós, meu bem, que nunca tão tristes vistes outros nenhuns por ninguém. Tão tristes, tão saudosos, tão doentes da partida, tão cansados, tão chorosos, da morte mais desejosos cem mil vezes que da vida. Partem tão tristes, os tristes, tão fora de esperar bem que nunca tão tristes vistes outros nenhuns por ninguém. CASTELO-BRANCO, João Roiz de.
João Roiz de Castelo-Branco – É um dos principais poetas presentes no que ficou conhecido como Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Garcia de Resende, secretário particular dos reis D. João II e D. Manuel I, colecionou cerca de mil poemas e publicou-os em 1516. Essa poesia, por se desenvolver no ambiente dos palácios, onde circulavam os nobres, é conhecida por poesia palaciana. A principal contribuição dessa época para a literatura em língua portuguesa foi a separação entre música e texto poético, algo que não acontecia na época das cantigas, estudadas no volume 1 desta coleção. Os versos mais comuns no Cancioneiro Geral são as redondilhas, que podem ser maior (versos de sete sílabas) ou menor (versos de cinco sílabas). A redondilha é uma métrica própria da tradição medieval, mas é utilizada até os dias de hoje. Quando os escritores passaram a usar também versos decassílabos, em sonetos, por exemplo, a redondilha passou a ser chamada de medida velha, em oposição à medida nova do verso decassílabo. No Cancioneiro Geral, encontram-se os mais variados temas. Dentre eles, o tema do amor neoplatônico, com o cavalheiro declarando o seu amor a uma dama idealizada e inatingível.
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Capítulo 1
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“O amor neoplatônico valoriza mais o amor enquanto ideia e pensamento do que como forma de prazer deste mundo de sombras em que supostamente vivemos. Consequentemente, aspectos práticos que atrapalhariam a perfeição do amor, como os defeitos do ser amado, a rotina e o sexo, eram deixados de lado. Os escritores que se pautam pelas diversas formas de neoplatonismo defendem um amor idealizado que descarta os prazeres físicos e concretos. O ser amado é divinizado, cultuado pelo pensamento, como o sonho mais alto da alma. Esse ser amado que existe nos pensamentos torna-se mais importante do que o ser real, imperfeito.”
16. Discuta, em classe, a sua compreensão do texto. 17. Faça a escansão da primeira estrofe. Qual é a métrica dominante? Qual a importância dessa métrica na literatura em língua portuguesa?
18. Encontre, no poema, um exemplo de hipérbole.
Observe que o eu-lírico realiza a expressão do seu amor através do olhar. É a impossibilidade de ver a amada que motiva a produção do texto. Trata-se de um amor idealizado que descarta os prazeres físicos, a não ser o de ver a pessoa amada. Domina, portanto, o pensamento platônico.
Recapitulando Hipérbole: exagero intencional.
19. Uma característica da poesia neoplatônica é a divinização do ser amado. Algo que também verificamos na “Cantiga, partindo-se”. Qual termo, no poema, deixa claro que o ser amado é considerado superior ao eu-lírico?
20. Compare o poema Cantiga, partindo-se, de João Roiz de Castelo-Branco, com Meu desejo, de Álvares de Azevedo. Preencha o quadro a seguir. “Cantiga, partindo-se”
Em relação ao eu-lírico
Divinizada
Traços físicos
Nada sabemos sobre a sua aparência física
“Meu desejo”
A mulher
O amor
Desejo sexual
Eu-lírico
Sentimento em relação à amada
Manifesto
Sofre pela ausência
21. A mulher amada, mais deusa do que humana, praticamente não é descrita na poesia neoplatônica. As características físicas do ser amado são praticamente desconsideradas. Podemos falar o mesmo do poema Meu desejo, de Álvares de Azevedo? Justifique.
Amor e desejo na ponta da língua
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O DISCURSO ERÓTICO E A PUBLICIDADE: SEXO VENDE TUDO? Encontramos, por todo lado, referências ao discurso erótico, associado aos mais variados gêneros de textos. Isso muitas vezes reforça uma certa banalização do sexo, algo cada vez mais frequente em nossa sociedade. Vejamos como o discurso erótico do desejo se manifesta em um texto publicitário de uma empresa bem conhecida. Ao observar a figura, leve em conta alguns detalhes que podem passar despercebidos a um leitor menos atento. Discuta em classe: • Que relação podemos estabelecer entre essa imagem e o slogan “Não coloque o olho assim que é capaz de derreter”? • Que relação podemos estabelecer entre o slogan e o produto anunciado?
Veja. São Paulo: Abril, 28-1-2004.
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Capítulo 1
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• Que imagem ocupa maior espaço na publicidade?
Analisemos melhor o slogan. 22. “Não coloque o olho assim que é capaz de derreter” é uma frase formada por três orações:
“Não coloque o olho assim” e “é capaz e de derreter”.
(1)
(2)
(3)
As orações 1 e 2 são interligadas pelo conectivo “que”, estabelecendo entre elas uma relação de a) explicação: (2) é explicação de (1). b) modo: (2) é o modo como ocorre (1). c) causa: (2) é causa de (1). d) finalidade: (2) é a finalidade de (1). e) condição: (2) é a condição para que ocorra (1). Frase é a unidade de texto que, no registro escrito, termina com um ponto, para indicar que foi transmitido um pensamento completo. Pode ser verbal – com a presença de um verbo (ex.: Chegou Kibon Carte d´Or) – ou nominal – não apresentando verbo (ex.: uma novidade irresistível em 7 deliciosos sabores). Oração é o enunciado que se organiza a partir de um verbo. Quando a frase é organizada em uma ou mais orações, recebe o nome de período. Um período pode ser simples, quando formado por uma única oração (ex.: Chegou Kibon Carte d´Or), ou composto (ex.: Não coloque o olho assim, que é capaz de derreter).
Repare que “é capaz de derreter” é, dentro do anúncio, um enunciado ambíguo.
23. Observe atentamente a quem se dirige o olhar da modelo, bem como o produto anunciado e identifique as possíveis interpretações presentes.
Por que “é capaz de derreter” é uma construção ambígua? Porque não fica claro a que sujeito se refere. Que ou quem derrete? Teoricamente, o sujeito do verbo derreter, no slogan, é fornecido pelo contexto. Deveria ser o sorvete. Algo como “Não coloque o olho assim, que é capaz de o sorvete derreter” ou “Não coloque o olho assim, que o sorvete é capaz de derreter”. Na prática, no entanto, o contexto torna a referência pouco clara e estabelece-se a ambiguidade.
Ambiguidade ou duplo sentido: duplicidade de sentidos que pode existir em um enunciado.
Tal ambiguidade reforça o caráter erótico do texto, pois permite que se unam, em um mesmo foco de desejo, a mulher e o produto anunciado, neste caso, o sorvete. Trata-se, portanto, de um trabalho proposital com a linguagem, procurando um efeito de sentido específico.
Amor e desejo na ponta da língua
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O sujeito apresenta um núcleo, que pode ser:
Traga para a próxima aula um exemplo de texto publicitário em que também se fundam, em um mesmo foco de desejo, o apelo sexual e o produto anunciado. Encontre elementos próprios da ideologia erótica do desejo que deve ser satisfeito de imediato e da ideologia neoplatônica. Discuta em grupo o que tais anúncios revelam sobre as ideologias dominantes na sociedade atual.
• um substantivo: O pequeno João fez toda a lição de casa.
Resumindo
• um pronome substantivo: Quem conta um conto, aumenta um ponto.
Em geral, o sujeito é o termo da oração de que ou de quem se diz alguma coisa (ou seja, é o assunto central da oração), e com o qual o verbo deve concordar em número e pessoa.
Sujeito e predicado Observe o verbo destes versos já conhecidos:
“Senhora, partem tão tristes meus olhos por vós, meu bem,” Partem está na terceira pessoa do plural. Por quê? Porque concorda com o sujeito “meus olhos”. Podemos trocar essa expressão de lugar dentro da frase, antecedendo-a ao verbo. Assim, lemos: “Senhora, meus olhos partem tão tristes por vós, meu bem”. O sujeito constitui o assunto principal do qual dizemos alguma coisa (neste caso, “meus olhos”), e o predicado é aquilo que informamos a respeito do sujeito (“partem tão tristes por vós, meu bem”).
• um numeral substantivo: Dois não brigam, quando um não quer. • uma palavra substantivada: O amar é um desejo de todos nós. • uma oração substantiva subjetiva: Valeria a pena discutir o problema? Esse núcleo é a parte mais significativa dentro do sujeito. Em “meus olhos”, o núcleo é, naturalmente, “olhos”. 25. Encontre, em jornais e revistas, frases cujos núcleos do sujeito atendam o que se pede e complete adequadamente o quadro a seguir. Observe que se pedem as fontes consultadas.
Da mesma forma, o predicado é o termo da oração que apresenta um verbo e contém uma informação sobre o sujeito.
As orações apresentam como núcleo do sujeito: Exemplo de frase
Núcleo do sujeito
Fontes consultadas
Um substantivo
Um pronome substantivo
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24. Ainda que dominado pelo discurso erótico do desejo que se deve realizar, o anúncio publicitário apresenta referências claras a elementos típicos da ideologia neoplatônica. Para identificá-lo, compare a publicidade ao poema Cantiga, partindo-se e aponte a semelhança.
As orações apresentam como núcleo do sujeito: Exemplo de frase
Núcleo do sujeito
Fontes consultadas
Um numeral substantivo
Uma palavra substantivada
Uma outra oração
• Há orações sem sujeito? A língua portuguesa permite a construção de orações sem sujeito nos seguintes casos: a) verbos que se referem a fenômenos da natureza: Faz tanto frio. Chove lá fora. b) com o verbo haver no sentido de existir: Na sala, havia uma pequena multidão. c) Com os verbos haver, fazer e ir indicando tempo decorrido: Há muito tempo que não o vejo. Faz oito anos que saí dessa cidade. Vai para dois meses que ela não me escreve. d) Com o verbo ser, indicando tempo em geral: Era Natal e fazia muito calor. No registro coloquial, é comum usarmos o verbo ter como impessoal, com a mesma função do verbo haver, construindo também frases sem sujeito. Veja: Na sala, tinha uma pequena multidão.
Exercício resolvido Leia, com atenção, a primeira estrofe do poema Meu desejo, de Álvares de Azevedo: Meu desejo? era ser a luva branca Que essa tua gentil mãozinha aperta: A camélia que murcha no teu seio, O anjo que por te ver do céu deserta.... Identifique, verso a verso, os sujeitos que aparecem nele, assim como o valor expressivo desses sujeitos no poema. RESPOSTA: 1º verso – “Meu desejo? Era ser a luva branca” – quantos verbos aparecem? Dois: “era” e “ser”. Portanto, temos duas orações: O que “era ser a luva branca”? Meu desejo, a expressão não
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2º verso – “Que essa tua gentil mãozinha aperta”. Aqui temos um verbo (aperta), portanto apenas uma oração ligada ao verso anterior pelo conectivo “que”. Esse “que” é um pronome relativo e substitui o termo “a luva branca”, de que se falou no verso anterior. No entanto, o assunto principal a que o verbo faz referência, ou seja, quem aperta a luva branca é, na oração, o termo “essa tua gentil mãozinha”, cujo núcleo é, naturalmente, “mãozinha”. 3º verso – “A camélia que murcha no teu seio”. Observe: o conectivo “que” está ligando o termo “a camélia”, aquilo que eu (o eu-lírico) desejaria ser, com “murcha no teu peito”. Esse “que” também funciona como pronome, ou seja, está no lugar do nome. De qual nome? De “camélia”. É essa camélia que “murcha no teu peito”, portanto o sujeito dessa oração é o pronome relativo “que”. 4º verso – “O anjo que por te ver do céu deserta”. Há dois verbos, portanto duas orações. O anjo deserta a fim de ver a amada. Ou seja, o sujeito do verbo “deserta” é pronome relativo “que”; o qual está no lugar do nome “anjo”. O sujeito do verbo “ver” está oculto; seria “ele”, retomando a palavra “anjo”. Os sujeitos na estrofe são “Meu desejo”, “eu” (ambos implícitos), “ele” (anjo) e o pronome relativo “que”, o qual retoma as expressões “ a mão” (da amada), bem como “a camélia” que o eu-lírico gostaria de ser. O sujeito é “o assunto central da oração”. No poema, os sujeitos não são expostos claramente. O assunto central da oração está levemente escondido e, para ser identificado, exige certo exercício mental do leitor. De outro modo, a leitura do poema se perde. Isso reforça o fato de o poema apresentar um caráter confessional, como se o eu-lírico pedisse cumplicidade ao leitor, confessando-lhe um sonho escondido em sua alma e que não pode ser revelado diretamente.
Agora é a sua vez 26. Identifique os sujeitos dos períodos abaixo. a) Chegou Kibon Carte d´Or. b) João e Carla são alunos aplicados. c) Ser feliz é o mais importante. d) Chovia muito naquela tarde de outono. e) Amarelava com o tempo, em um canto da sala, o retrato empoeirado daquele rosto doce. f) Carlinha, eu preciso de ajuda! 27. Retome o poema que escreveu a partir da intertextualidade com a obra de Álvares de Azevedo. Identifique os sujeitos presentes e verifique se há ambiguidades indesejadas na construção de seu texto. Encontre o valor expressivo que o uso do sujeito proporciona ao texto. Faça as alterações devidas. 28. Construa um novo slogan para o produto Kibon Carte d´Or, no qual se perceba uma relação intertextual com o poema Meu desejo, de Álvares de Azevedo. Identifique os sujeitos presentes em seu texto. Apenas inclua ambiguidades se elas colaborarem para o propósito a que se destina o seu texto. 26
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aparece, pois ela é facilmente retomada pela pergunta com que o eu-lírico abre cada estrofe (Meu desejo?), bem como pelo próprio título do poema. E se eu perguntar qual o assunto principal a que o verbo “ser” faz referência, que resposta vou encontrar? Dentro do poema, a resposta é “eu”, termo que também pode ser recuperado pelo contexto. Em outras palavras, o verso ficaria assim: “Meu desejo? Meu desejo era eu ser a luva branca”.
“MISSA DO GALO”: UMA LEITURA ERÓTICA DO SÉCULO XIX
Rio de Janeiro no século XIX
No primeiro volume desta coleção, estudamos o gênero conto. Trata-se de um gênero textual que representa um momento especial, com uma estrutura sucinta: uma intriga com poucas personagens e poucas mudanças de espaço e tempo. A seguir, você lerá missa do galo, um conto escrito por Machado de Assis. Antes da leitura, pesquise o significado do termo missa do galo e permita que o título do texto gere expectativas de leitura: o que pode acontecer nesse conto? A obra de Machado de Assis é carregada de emoção e suspense, mas a prioridade é a análise psicológica do ser humano e a averiguação filosófica que procura responder à pergunta: “Quem é o ser humano?”. Quando terminar de ler, verifique se suas ideias estavam certas.
Missa do galo Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite. O narrador inicia o conto afirmando “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora”. O que isso antecipa para o leitor? O que nos será apresentado? Na sequência, o narrador explica “há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta”. Como sabemos, a passagem do tempo, pode ajudar a esclarecer um assunto ou a torná-lo ainda mais difuso. A memória apagando certas lembranças e tornando outras mais intensas. Pense nisso, enquanto continua a sua leitura.
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Observe a crítica de Machado de Assis à sociedade burguesa do século XIX. O nome da personagem, “Conceição”, faz referência a Nossa Senhora da Conceição, mas também significa “o ato de conceber”, que pode nos remeter tanto para o parto como para o momento em que a mulher engravida ou passa a conceber uma nova vida. Nesse caso, o nome Conceição manteria uma certa relação com o ato sexual. Pense nisso no desenrolar da leitura.
Boa Conceição! Chamavam-lhe “a santa”, e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar. Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias, mas fiquei até o Natal para ver “a missa do galo na Corte”. A família recolheu-se à hora do costume, eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa. – Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? Perguntou-me a mãe de Conceição. – Leio, D. Inácia. Tinha comigo um romance, Os três mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Comércio. Senteime à mesa que havia no centro da sala, e, à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro, veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de D. Conceição. Note que a chegada de Conceição à sala dá-se pouco depois de o narrador-personagem ter iniciado a leitura de Os três mosqueteiros. Em uma boa obra literária, nada está ali ao acaso.
– Ainda não foi? Perguntou ela. – Não fui; parece que ainda não é meia-noite. – Que paciência! Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza: 28
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A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranquilo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.
– Não! qual! Acordei por acordar. Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma cousa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa. – Mas a hora já há de estar próxima, disse eu. – Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu. – Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo. – Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos mosqueteiros. – Justamente: é muito bonito. – Gosta de romances? – Gosto. – Já leu A Moreninha? – Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba. – Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido? Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, via-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.
Observe bem a descrição feita de Conceição neste momento do conto. O que ela revela sobre a personagem?
“Talvez esteja aborrecida”, pensei eu. E logo alto: – D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu... – Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia? – Já tenho feito isso. – Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha. – Que velha o que, D. Conceição? Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranquilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou consertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas ideias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não queria perdê-la. – É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem. – Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. S. João não digo, nem Santo Antônio... Pouco a pouco, tinha-se reclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderia supor. A vista não era nova para mim, posto também não Amor e desejo na ponta da língua
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Capítulo 1
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fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis que, apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras cousas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por que, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me: – Mais baixo! Mamãe pode acordar. E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas. Mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordome que eram pretas. Conceição disse baixinho: – Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono. – Eu também sou assim. – O quê? perguntou ela inclinando o corpo, para ouvir melhor. Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti-lhe a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves. – Há ocasiões em que sou como mamãe; acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada. – Foi o que lhe aconteceu hoje. – Não, não, atalhou ela. Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me: – Mais baixo, mais baixo... Havia, também, umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me parecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma cousa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede. – Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros. Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava “Cleópatra”; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios. – São bonitos, disse eu. – Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro. – De barbeiro? A senhora nunca foi à casa de barbeiro. – Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que
eu penso; mas eu penso muita cousa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório. A ideia do oratório trouxe-me a da missa, lembroume que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava de suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos. Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes. – Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo. Concordei, para dizer alguma cousa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a ideia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo. Chegamos a ficar por algum tempo – não posso dizer BRITO, Francisco Xavier (Atribuído a). Nossa Senhora da quanto, – inteiramente calados. O rumor único e escasso, Conceição, (c.1751). Ouro Preto: Igreja de S. Francisco era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou de Assis. daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: “Missa do galo! Missa do galo”! – Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus. – Já serão horas?, perguntei. – Naturalmente. – Missa do galo! – repetiram de fora, batendo. – Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus, até amanhã. E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se, mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido. ASSIS, Machado de. In: As 100 melhores histórias eróticas da literatura universal. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
Amor e desejo na ponta da língua
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Volte a examinar as hipóteses que pensou sobre o conto, antes de iniciar sua leitura. Surpreendeu-se? Por quê? 29. Complete o quadro a seguir. Elementos da narrativa Cronológico Tempo Da narrativa
Entre as 20 horas e a meia-noite
Espaço
Enredo
Protagonistas ou principais Personagens Deuteragonistas ou secundárias
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Vizinho, Meneses, a mãe de Conceição, duas escravas e a amante de Meneses
Capítulo 1
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JOAQUIM MARIA MACHADO DE ASSIS (Rio de Janeiro, 1839-1908) – Aquele que é considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos nasceu no Morro do Livramento, filho de um pintor mulato e de uma lavadeira portuguesa. Era gago e epilético e, por isso mesmo, retraído e tímido. Em 1872, publicou o seu primeiro romance, Ressurreição, tendo o seu talento reconhecido pelos leitores. A partir daí, publicou contos, romances, poesias e peças de teatro. O grande divisor de sua produção foi o romance Memórias póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881, que inaugurou a fase madura e melhor de sua obra. Em 1896, Machado de Assis fundou, com outros escritores e jornalistas, a Academia Brasileira de Letras (ABL), a qual presidiu até a morte. No melhor de sua obra, encontramos personagens em que se registram sensações e características psicológicas conflitantes, mostrando o contínuo da alma humana que, muitas vezes, é contraditória. Isso torna seus textos finamente irônicos, brincando de forma saudável e inteligente com a capacidade interpretativa dos leitores. Embora vivesse numa época em que o raciocínio científico era considerado o único possível, Machado questionava tal pensamento por revelar a constituição humana como complexa e polêmica, superando a lógica da razão.
O conto inicia-se com as reminiscências e reflexões de Nogueira sobre a conversa ocorrida há anos, ao mesmo tempo em que o narrador, em primeira pessoa, recria o espaço, descreve e situa as personagens. A ação propriamente dita começa no quarto parágrafo: “Naquela noite de Natal...”. O erotismo desenvolve-se no conto gradativamente, conforme o desenrolar do enredo. Vejamos, primeiro, como Conceição é apresentada ao leitor. No segundo parágrafo, sabe-se que Meneses, seu marido, tem uma amante, “comborça” no texto, e Conceição “padecera, a princípio, mas afinal resignarase, e acabou achando que era muito direito” . 30. Como essa atitude é avaliada pelo narrador?
31. Transcreva, do texto, outras expressões que intensificam a descrição de Conceição como uma pessoa passiva.
Aos poucos, o narrador cria um clima de sedução e mostra-nos uma Conceição diferente. Esperando chegar a hora de sair, Nogueira lê Os três mosqueteiros, um romance romântico, de aventuras, quando vê “assomar à porta da sala o vulto de Conceição”. Esse vulto vai tomando forma. 32. Como o narrador descreve, neste momento, esse vulto que se torna real?
Aos poucos, a “santa” mulher vai-se transformando, na mente do narrador, em uma mulher sedutora. No entanto, observe que os detalhes do corpo de Conceição são mostrados sempre de forma sutil: “passava a língua pelos beiços, para umedecê-los”, “ fincara os cotovelos no mármore da mesa e o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas caíram naturalmente, e eu vi-lhes metade dos braços, muito claros”, “pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas”. 33. Procure, no texto, outros elementos que indiquem a mudança que vai ocorrendo na descrição da personagem “Conceição”, durante a conversa.
Um dos principais elementos que nos sugere o aumento da intensidade no clima de sedução e erotismo são as reações de Nogueira. Amor e desejo na ponta da língua
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O clima de sedução foi interrompido pelo rumor de um roer de camundongo, que “me acordou (Nogueira) daquela espécie de sonolência”, e pela “pancada na janela, do lado de fora”. O vizinho que deveria ter sido acordado, ao invés disso, veio despertar Nogueira. No dia seguinte, ao almoço, tudo voltou ao normal. Sobre as personagens machadianas, principalmente aquelas de suas melhores obras, o crítico Alfredo Bosi afirma que “só aparecem variantes de uma só e mesma lei: não há mais missões a cumprir e heróis a afirmar a própria vontade; há apenas destinos, destinos sem grandeza” História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. Você consegue confirmar as palavras do crítico no conto Missa do galo? O clima é de sonho. O que é verdade e o que é fantasia de adolescente nessa narrativa? Seria Conceição uma sedutora de menores, que se aproveita de uma escapada do marido para atacar o pobre rapaz? Ou seria esse rapaz do interior vítima de um delírio sexual de adolescência, interpretando de forma equivocada a simpatia da dona da casa? Pode haver outros modos de se ver a cena? Difícil saber, principalmente porque não dispomos da versão de Conceição sobre o que ocorreu naquela noite. De fato, lembre-se de que o próprio narrador afirmara: “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta”.
ENTREVISTANDO CONCEIÇÃO A entrevista é um gênero textual que nos permite conhecer o pensamento, as opiniões e as ideias de uma pessoa que tem algo relevante a dizer. Normalmente, as entrevistas escritas circulam em jornais e revistas. Ao publicar uma entrevista, podem-se adotar dois estilos: o direto, na forma de pergunta e resposta (também chamado de pingue-pongue), e o indireto, como a entrevista que vamos ler em seguida, concedida pelo astro de rock inglês Mick Jagger à revista Isto É publicada em 06 de dezembro de 2001.
“Aos 58 anos, Mick Jagger não enfrenta a crise da meia-idade. É ele mesmo quem afirma nesta entrevista exclusiva a Isto É. Com inabalável bom humor, ele calcula que não alcançará uma idade muito alta. Mas os percalços e excessos lendários do vocalista dos Rolling Stones – a maior e mais duradoura banda de rock do planeta – não parecem ter diminuído sua energia. Depois de exaustiva turnê do álbum Bridges to Babylon, dos Stones, Jagger não foi colocar os pés de molho no conforto da vida doméstica. Aproveitou o tempo livre para gravar no seu fantástico estúdio caseiro o CD Goddess in the Doorway,
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Capítulo 1
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34. Transcreva expressões do conto que confirmem as reações de Nogueira, cada vez mais envolvido pelo clima de erotismo na sala.
seu quarto voo solo depois de Wandering spirit, lançado em 1993. E deixou de lado a segurança de seus companheiros de banda para juntarse a uma constelação de amigos famosos – entre eles Lenny Kravitz, Pete Townshend e Bono, vocalista do grupo irlandês U2 –, num trabalho que mescla guitarras vigorosas com letras reflexivas e biográficas de alguém que há muito tempo ancorou no porto da maturidade. Tudo empacotado em ritmos capazes de colocar para dançar seus fãs, jovens e cinquentenários. Também usou o cenário do lar, tendo a própria prole como coadjuvante no documentário Being Mick para a televisão americana. Álbum e vídeo são complementares e guardam inesperado ineditismo. Pela primeira vez exibem o Mick Jagger pai. Uma intrusão consentida em sua privacidade. “Não tenho problema em mostrar minha família, desde que eu possa controlar o que vai ser mostrado”, justifica. Assim, colocou para trabalhar as filhas Elizabeth e Georgia May – cuja mãe é a ex-mulher Jerry Hall –, criando a pedido delas uma participação especial nos backing vocals da canção Brand new set of rules. São as mesmas crianças para quem papai Jagger diz não impor nenhum conjunto de regras fixas de conduta. O cantor e compositor acha difícil falar com elas sobre sexo e drogas. Ou seja, do tripé que definiu sua geração sobra apenas o rock’n’roll a ser compartilhado. Determinações de um senhor roqueiro. (...) A pequena abertura para revelação de sua intimidade, porém, obedece a limites individuais bem estabelecidos. Primeiro, sua assessoria avisou que a vida privada do astro estava fora de questão. Mas, diante das circunstâncias de um disco e documentário tão reveladores, quem poderia deixar de lado os detalhes íntimos? Nas duas vezes em que Mick Jagger foi entrevistado por Isto É sua gentileza discordou da figura de mito. Desta vez foi igual. Jagger só entronizou a estrela numa última pergunta: a inevitável sobre seu polêmico filho caçula, o brasileiro Lucas, que ele teve com a modelo e apresentadora Luciana Gimenez. A resposta não só veio curta, como encerrou de vez a conversa.” Isto É. São Paulo: Três, 06-12-2001.
Recorrendo constantemente ao enredo apresentado no conto Missa do galo, construa uma entrevista fictícia com a personagem Conceição. Para isso, propomos seguir os passos sugeridos pelo Manual de redação da Folha de S.Paulo: “O segredo de uma boa entrevista está na elaboração de um bom roteiro. Levante sempre o máximo de informações sobre o entrevistado e o tema de que ele vai falar. Com esse material em mãos, reflita sobre o objetivo a que pretende chegar. O melhor caminho é redigir perguntas tão específicas quanto possível. Perguntas muito genéricas resultam em entrevistas tediosas.” Manual de redação da Folha de S.Paulo. São Paulo: Publifolha, 2001.
Portanto, o primeiro passo é elaborar o roteiro da entrevista.
35. Encontre, em livros e na Internet, o máximo de informações sobre a personagem Conceição e sobre o autor do conto, Machado de Assis. Recapitule as informações apresentadas neste capítulo sobre o discurso erótico e sobre o erotismo de uma forma geral. Anote essas informações no caderno. Amor e desejo na ponta da língua
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As 100 melhores histórias eróticas da literatura universal. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
Procure, em jornais e revistas, entrevistas pingue-pongue (em forma de pergunta e resposta). Traga a que considerar mais bem redigida para a próxima aula.
36. De posse dessas informações, complete o quadro. Objetivo que pretendo atingir com a entrevista
Perguntas que gostaria de fazer à pessoa entrevistada
37. A seguir, construa em classe, a partir dos diferentes quadros produzidos, um que seja comum a todo o grupo. Objetivo que a classe pretende atingir com a entrevista
Perguntas que a classe gostaria de fazer à pessoa entrevistada
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Capítulo 1
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Observe como Machado de Assis é descrito no livro As 100 melhores histórias eróticas da literatura universal, do qual retiramos o conto Missa do galo: “O maior dos nossos escritores, como romancista e como contista, Machado de Assis não poderia ficar de fora de uma antologia como esta por duas grandes razões. Essas razões atendem pelos nomes de Uns braços e Missa do Galo. Por coincidência, dois de seus melhores contos, segundo qualquer estudioso bem informado, e também dois belos e primorosos exemplares de erotismo fino e sutil que a palavra sensualidade encobre.”
Em seguida, redija, no caderno, a fictícia entrevista com a personagem Conceição de Missa do galo. Elabore uma entrevista pingue-pongue que responda às perguntas feitas pela classe. Siga o modelo da entrevista que trouxe e recorra, também, ao texto a seguir, extraído do Manual de redação da Folha de S.Paulo:
“A ficção machadiana constitui, pelo equilíbrio formal que atingiu, um dos caminhos permanentes da prosa brasileira na direção da profundidade e da universalidade.”
“Entrevista pingue-pongue – Publicada na forma de perguntas e respostas. Exige texto introdutório contendo a informação de mais impacto, breve perfil do entrevistado e outras informações, como local, data e duração da entrevista e resumo do tema abordado. Eventualmente, algumas dessas informações podem ser editadas em texto à parte. O trecho com perguntas e respostas deve ser uma transcrição fiel, embora nem sempre completa, da entrevista. Selecione os melhores trechos. Corrija sempre erros de português; corrija problemas da linguagem coloquial, quando for imprescindível para a perfeita compreensão do que foi dito. Mas não troque palavras nem modifique o estilo da linguagem do entrevistado. Se relevantes, eventuais erros ou atos falhos do entrevistado podem ser destacados com a expressão sic entre parênteses. Restrinja o uso desse recurso. Ao introduzir informações que completem resposta do entrevistado, use colchetes para deixar claro que se trata de inclusão da redação: “Nunca concordei muito com os julgamentos de Tal [Fulano de Tal, crítico de arte que viveu no início do século 19]”. Recomenda-se ainda preservar a ordem original em que as perguntas foram feitas. Para editar uma entrevista pingue-pongue observe a seguinte padronização: 1) texto introdutório em redondo; 2) estrela separando o texto introdutório da entrevista propriamente dita; 3) cada pergunta é precedida do nome do jornal; 4) a primeira resposta é precedida do nome completo do entrevistado. As demais, apenas do nome pelo qual ele seja mais conhecido; 5) use hífen entre o nome do jornal e a pergunta e entre o nome do entrevistado e a resposta.
História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
Manual de redação da Folha de S.Paulo. São Paulo: Publifolha, 2001.
Para fazer o texto introdutório “em redondo”, recorra como modelo à entrevista de Mick Jagger transcrita neste capítulo. Ao terminar, troque o seu texto com o de um colega e verifique se, no texto que recebeu, foram seguidas as orientações dadas pelo Manual de redação da Folha de S.Paulo, que tomamos como orientação para a escrita de entrevistas. Verifique, também, se a concordância entre os sujeitos e os verbos das orações está adequada e se usa apropriadamente o verbo “ter”. Por se tratar de um texto formal, prefira usar o verbo “haver” sempre que possível. Discuta em classe as diferenças existentes entre os textos produzidos e a que conclusões chegam sobre a atitude de Conceição no devaneio erótico de Nogueira. Lembre-se, no entanto, de que tudo o que efetivamente sabemos de Conceição é pela fala de Nogueira. O perfil psicológico de Conceição forma-se em nossas mentes, a partir do filtro das palavras do narrador-personagem. Essa estratégia aparece também numa das mais importantes obras de Machado de Assis, o romance Dom Casmurro. Amor e desejo na ponta da língua
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ASPECTOS LINGUÍSTICOS EM MISSA DO GALO: METONÍMIA E ELIPSE A metonímia Uma das passagens mais enigmáticas do conto Missa do galo é aquela em que Nogueira sai da realidade lendo Os três mosqueteiros:
“Tinha comigo um romance, Os três mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e, à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de D. Conceição.” Por que essa passagem é enigmática? Observe que Nogueira se envolve tanto com a leitura que afirma ficar “ébrio de Dumas”. Alexandre Dumas é o autor de Os três mosqueteiros. Naturalmente, Nogueira não bebeu o Dumas para ficar ébrio dele. O sentido é metafórico: era como se Nogueira estivesse ébrio de Dumas. Ainda assim surge uma dúvida – de Dumas ou de sua obra? É claro que é de sua obra. Ficar “ébrio de Dumas” seria então ficar “como ébrio ao ler a obra de Dumas”. Ocorre metonímia quando relacionamos, por exemplo, a parte pelo todo:
Metonímia: trata-se de empregar uma palavra no lugar de outra, em virtude de uma relação de interdependência entre elas.
“Senhora, partem tão tristes meus olhos por vós, meu bem,” Parte o eu-lírico triste para longe de sua amada, mas o poeta, ao escrever o poema, troca “eu” (o todo) por “meus olhos” (parte desse todo). Ou quando usamos o singular pelo plural. Como nesta música de Chico César:
“Quando ouvi Prince, dancei Quando o olho brilhou, entendi” 38
Capítulo 1
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Dom Casmurro, publicado em 1889, tematiza o adultério, a partir da perspectiva do narradorpersonagem, Bentinho, o Dom Casmurro, que acredita haver sido traído por sua esposa, Capitu. Vizinhos quando adolescentes, desde cedo se apaixonam. Bentinho, porém é destinado ao seminário, para cumprir uma promessa de sua mãe. Quando finalmente conseguem desfazer o compromisso, Bentinho casa-se com a sua amada Capitu. Algum tempo depois, o casal tem um filho, Ezequiel. Durante a época do seminário, Bentinho tornara-se amigo de Escobar. Agora casado, mantém relações de afetividade com seu amigo e a esposa desse, Sancha. A reação de Capitu diante da morte de Escobar faz com que Bentinho suspeite de que ela o tivesse amado. Além disso, Bentinho começa a notar semelhanças entre Ezequiel e Escobar. A desconfiança cresce tanto que o casamento é desfeito. O tempo passa, e Bentinho torna-se o solitário Dom Casmurro, que narra a sua história passada e, assim como Nogueira, tampouco ele consegue compreendê-la por completo.
38. Identifique, nas partes em itálico dos enunciados a seguir, a presença de antítese, metáfora ou metonímia. a)
Recapitulando Antítese: trata-se da aproximação de antônimos.
“O meu amor é teu O meu desejo é meu O teu silêncio é um véu O meu inferno é um céu”
Metáfora: trata-se de estabelecer uma relação comparativa entre um termo e alguma coisa com a qual esse termo não mantém nenhuma relação objetiva, construindo, assim, um novo sentido sem, no entanto, expressar o elemento comparativo: como, tal qual, que nem, etc.
Fernanda Abreu e Herbert Viana. Um amor, um lugar.
b) “Os poemas são pássaros que chegam não se sabe de onde e pousam no livro que lês.”
Mário Quintana. Os poemas.
c) Tudo o que consegui na vida foi com o meu suor. d) “O bonde passa cheio de pernas Pernas brancas pretas amarelas.”
Carlos Drummond de Andrade. Poema das sete faces.
e) “O meu nome é Severino Não tenho outro de pia.”
f)
João Cabral de Melo Neto. Morte e vida severina.
“Não fui eu nem Deus Não foi você nem foi ninguém Tudo o que se ganha nessa vida É pra perder.” Sérgio Sampaio. Tem que acontecer.
Voltemos ao conto Missa do galo. Pensar na possibilidade de que Nogueira, ébrio com o enredo de Os três mosqueteiros, esteja sonhando acordado está de acordo com o restante do texto, no qual se afirma: “Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura”. Isso permite pensarmos que Nogueira estava pré-disposto a fantasias quando Conceição entrou na sala. Ou seja, Nogueira desejava sonhar acordado com aventuras, como aquelas que lia nos romances. Sonhar acordado com a mulher amada é algo que também encontramos em Álvares de Azevedo. O devaneio erótico transforma o pensamento em sonhos. A metonímia permite aumentar a expressividade do texto e destacar o aspecto do enunciado que se deseja priorizar.
A elipse Detenhamo-nos, agora, no primeiro parágrafo do conto:
“Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.” Compare com esta outra possibilidade de escrevê-lo:
Eu nunca pude entender a conversação que eu tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela contava trinta. Era noite de Natal. Havendo eu ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, eu preferi não dormir; eu combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite. Amor e desejo na ponta da língua
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No segundo capítulo, do volume 1, já pudemos compreender o que ocorre entre os dois enunciados anteriores. Trata-se da elipse. Agora poderemos aprofundar-nos nesse assunto.
Elipse: uma ausência dentro do enunciado que é recuperada pelo leitor e que funciona como recurso de coesão, permitindo que os textos não apresentem uma extensão exagerada.
Em “Nunca pude entender”, o sujeito não aparece de forma explícita, mas o verbo “pude” já deixa claro tratar-se da primeira pessoa, ou seja, “eu”. O mesmo acontece com “tive”, em “que eu tive com uma senhora”. O leitor recupera o termo “eu” da forma verbal empregada na oração. Assim, os lugares do sujeito podem permanecer vazios ou subentendidos no enunciado. A esse processo denominamos elipse.
Trata-se de elipse o que ocorre em “contava eu dezessete, ela [contava] trinta”. elipse A elipse do sujeito, como vimos, é favorecida pela estrutura da língua portuguesa em sua variedade padrão. Muitas formas verbais indicam seu sujeito sem qualquer ambiguidade. Contudo, outros termos podem oferecer dúvidas. Veja um caso no próprio trecho que estamos examinando: (...) combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite. A forma verbal “combinei” deixa claro tratar-se da primeira pessoa do singular, “eu”. Contudo, a forma “iria” obriga a que se explicite o sujeito, pois pode ser interpretada de vários modos. Por exemplo: (...) combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite. (...) combinei que você iria acordá-lo à meia-noite. (...) combinei que ela iria acordá-lo à meia-noite. (...) combinei que Meneses iria acordá-lo à meia-noite. Assim, para evitar a ambiguidade, o locutor explicita o sujeito de “iria” ao seu leitor. Observe a seguinte manchete do jornal Le Monde:
Disponível em . Acessado em 15-4-2004.
Observe que se usou a elipse para não repetir o termo “consumo de”. Em qualquer gênero textual, literário ou não, o uso da elipse pode facilitar a coesão entre as palavras, permitindo que o texto ganhe clareza e objetividade. 40
Capítulo 1
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39. Em sua opinião, as alterações introduzidas melhoram ou pioram a redação do parágrafo?
40. A seguir, há uma série de frases nas quais ocorre ambiguidade devida ao uso inadequado da elipse de alguns termos do enunciado. Encontre os termos que sofreram elipse e explique quais os sentidos que eles admitem. a) Maria me pediu para ler o livro.
b) Vi o advogado correndo no parque.
c) (Fuvest) Peguei o ônibus correndo.
d) (Fepar) João ama mais Mariana do que Antônio.
41. Leia, com atenção, o excerto abaixo, extraído de Missa do galo.
“Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias, mas fiquei até o Natal para ver “a missa do galo na Corte”. A família recolheu-se à hora do costume, eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa.” a) Explique a presença explícita do sujeito “eu” em “Eu já devia estar em Mangaratiba”.
b) Explique a elipse do sujeito “eu” em “mas fiquei até o Natal para ver ‘a missa do galo na Corte’”.
42. Reescreva o seu poema erótico mais uma vez. Desta vez, procure incluir, no corpo do texto, uma metonímia que aumente o sentido expressivo do poema. Verifique também se o texto não apresenta ambiguidades desnecessárias.
Agora, ao final de toda essa reflexão sobre o estilo machadiano de escrever e pensar o ser humano, responda:
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História crítica da arte e da literatura: Romantismo — parte I O que lhe sugere a palavra “romântico”? Para muitos, o termo relaciona-se a alguém extremamente sensível, um pouco teatral e cheio de idea lismos emocionais. No entanto, essa palavra, originalmente, transmitia uma ideia bem diferente. O Romantismo é o movimento literário que inicia uma nova época na História da Arte e da Literatura, a Época Romântico-Realista. O que houve de tão importante que podemos considerar a ruptura de uma época e o início de outra? Primeiro, recapitulemos o que definiu a Época Clássica (inclui a Renascença, o Barroco e o Arcadismo). 44. Recorrendo aos capítulos anteriores deste volume, elabore uma síntese das principais características dessa época. Procure as características comuns aos três movimentos artísticos, bem como aquelas que mais os distanciam entre si.
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Capítulo 1
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
43. Em sua opinião, as personagens de Machado de Assis refletem uma forma otimista ou pessimista de ver a existência humana? Por quê?
Observemos, com atenção, a reprodução de um quadro romântico: Caspar DAVID FRIEDRICH (17741840) – Para esse pintor alemão, tudo ao nosso redor simboliza a presença invisível do Criador. Suas paisagens e marinhas são produto da observação atenta à natureza e representam alegoricamente a relação humana com o divino.
Peregrino, de acordo com o dicionário, é tanto aquele viajante aventureiro que simplesmente anda por terras distantes, como aquele que o faz motivado pelo desejo de conhecer lugares santos. Pensando nisso, torne a olhar a reprodução e responda ao que se pede. FRIEDRICH, David. O peregrino sobre o mar de brumas. (1818). Hamburgo: Kunsthalle.
45. O que lhe chama a atenção na obra de Friedrich?
46. Comente, em classe, as possíveis leituras da pintura. Anote a seguir comentários que considerar importantes sobre a forma como os seus colegas leram a obra de arte, e que não estão presentes na sua resposta à questão anterior.
47. Compare a reprodução do quadro do pintor alemão David Friedrich com a síntese sobre a Época Clássica que você elaborou. Que diferenças há entre ambas?
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A ideologia do romantismo O que pode ser objeto e resultado da arte? Podem a melancolia, a dor, a solidão tornar-se arte? Nessa gravura de Goya, El sueño de la razón produce monstruos, o pintor aparece derrotado diante de uma série de animais que são seus próprios monstros. A palavra “sueño”, em espanhol, tanto pode significar “sono” como “sonho”. Essa duplicidade é interessante ao analisarmos a figura. O artista dorme, e a razão aproveita o sono do artista para liberar todos os seus fantasmas e perturbações. Por outro lado, há o sonho do artista em desejar desmascarar todos os monstros da sociedade. Para esse fim, Goya está disposto a usar a sua melhor arma: a arte. O Romantismo é uma revolução de tamanha importância na história humana, que ainda hoje vivemos muitos de seus princípios, tais como o desejo de liberdade, o individualismo, a democracia, o nacionalismo, etc. Sua origem se dá pouco depois do surgimento do Neoclassicismo, ainda no século XVIII. Entre os primeiros românticos e os neoclássicos ocorreram longos e rancorosos debates. No século XIX, no entanto, o Romantismo já era o movimento artístico dominante.
GOYA, Francisco. O sonho da razão produz monstros. (c. 1793-99). Saragoça: Museu de gravuras de Goya.
“Mais que uma arte, o Romantismo poderia ser considerado uma atitude perante a vida, profundamente emotiva, por sinal, em contraposição ao intelectualismo, às vezes abstrato, ainda reinante. O romântico acha que a arte e a vida estão estritamente ligadas, mesmo se isso previr um engajamento nas lutas nacionais. No entanto, se por um lado assistimos a uma justa reação ao academismo dominante, por outro, presenciamos uma contestação emotiva que aceita todas as experiências como válidas”. COLANGELO, Adriano. Mil anos de arte. São Paulo: Cultrix, 1989.
Vários fatores históricos pavimentaram o caminho para que se processasse a transformação de uma mentalidade clássica para uma romântica (ou românticorealista). Alguns deles estão também na base do surgimento do Neoclassicismo: Primeiro a Revolução Industrial inglesa (1760-1840), a qual permitiu o desenvolvimento da classe burguesa e assentou as bases do liberalismo. Temos também a Revolução Francesa (1789), que divulgou os princípios de liberdade,
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Capítulo 1
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Pense nisso, ao observar a reprodução de arte a seguir.
igualdade e fraternidade. A Independência dos Estados Unidos (1776) foi responsável pela Declaração de Independência, texto centrado nos direitos do homem como indivíduo participante em uma sociedade democrática. Ao lado dessa visão racionalista que, como vimos, já estava presente no Neoclassicismo, surgiram também, na produção cultural, tendências místicas e emocionais, valorizando uma ideologia sentimental que relegava a razão para um segundo plano. No convívio desses dois caminhos, aparentemente antagônicos surgia o pensamento romântico. Retornemos à gravura feita por Goya. 48. Você a considera bela? Por quê?
A ideologia própria da Época Clássica associava a beleza às qualidades materiais dos objetos: unidade, variedade, regularidade, ordem, proporção, etc. A sensação do observador ficava em segundo plano. Se um objeto tivesse o tamanho certo, a proporção apropriada, etc., ele era belo, mesmo que o interlocutor não gostasse. A beleza era, principalmente, técnica (arte, diria Camões, lembra?) e deveria proporcionar um estado de prazer sereno e equilibrado. O modelo seguido era o da arte grega. Uma mudança radical na forma de ver a arte surgiu no decorrer do século XVIII, e ela estava associada à filosofia iluminista, movimento fundamental para compreendermos tanto o Neoclassicismo como o Romantismo. Essa mudança passou a questionar a maneira como podemos conhecer o mundo. 49. Participe, comentando oralmente a seguinte questão: todo o conhecimento que existe no mundo só pode ser alcançado pelos sentidos, via raciocínio? Ou existem outras forças que escapam à lógica da razão? A filosofia do século XVIII devolve ao homem o status de ser o primeiro objeto do conhecimento, sujeito capaz de dominar a natureza apenas com base nas informações que lhe transmitiam as suas sensações. Essa revalorização dos sentidos, fazendo depender deles para alcançar o conhecimento, era algo que se aproximava do conceito de subjetividade defendido pelos românticos. O Romantismo defendia um sujeito autônomo; no entanto, recusava as limitações que representava conhecer a realidade guiada unicamente pela razão. Procurava fazer com que a arte produzisse não apenas a impressão do belo no interlocutor, mas também a impressão do sublime e um estado de deslumbramento. A obra de arte pode deslumbrar ao interlocutor. O conceito do deslumbramento estava associado ao envolver-se com a vida, olhando-a com profundidade e paixão, e refletir isso na obra de arte. Claro que muitas coisas podem deslumbrar, mas o deslumbramento é, em grande medida, um evento individual, apoiado em certas regras e valores sociais. Dessa forma, o deslumbramento de um não é necessariamente o deslumbramento do outro. 50. Procure, no dicionário, a palavra “deslumbrar”. Transcreva a acepção em que a palavra está sendo aqui empregada.
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Aquilo que deslumbra pertence, pelo menos em parte, à categoria do sublime. Podemos compreender o sublime como um prazer que se procura alcançar, mas que ainda não se tem. Já o belo é também uma manifestação de prazer, mas que já se alcançou.
Emanuel Kant, no livro Observações sobre o belo e o sublime, publicado em 1764, afirma:
Este delicado sentimento que agora vamos considerar é principalmente de duas classes: o sentimento do sublime e o do belo. A emoção em ambos é agradável, mas de diferentes modos. A visão de uma montanha, cujos picos nevados se elevam sobre as nuvens; a descrição de uma tempestade furiosa ou a pintura do inferno de Milton agradam, porém, são acompanhadas de um sentimento de terror; em troca, a contemplação de campinas floridas, vales com córregos serpenteantes, com rebanhos pastando; a descrição do Eliseu ou pintura do cinturão de Vênus em Homero proporcionam igualmente uma sensação agradável, alegre e sorridente. Para que aquela primeira impressão ocorra conosco com a intensidade apropriada devemos ter um sentimento do sublime; para bem desfrutar a segunda é preciso o sentimento do belo. Altas colinas e sombrias solidões no bosque são sublimes; platibandas floridas, arvoredos e árvores recortadas em forma de figuras são belos. A noite é sublime, o dia é belo. Na calma da noite estival, quando a luz cintilante das estrelas atravessa as sombras escuras e a lua solitária desponta no horizonte, as almas que possuem um sentimento do sublime serão lentamente envolvidas por sensações amigáveis, de desprezo do mundano e de eternidade. O dia brilhante infunde uma ativa diligência e um sentimento de alegria. O sublime comove, o belo encanta. A expressão do homem dominado pelo sentimento do sublime é séria, por vezes acompanhada de uma certa sensação de terror ou também melancolia; em alguns casos, é meramente um assombro tranquilo, e em outros, um sentimento de beleza sobreposto a uma disposição geral sublime. Denominei o primeiro de sublime “terroríf ico”; ao segundo o “nobre”, e ao último, “magnífico”. Uma solidão profunda é sublime, mas de natureza terrificante”. KANT, Emanuel. Lo Bello y lo Sublime. Madrid: Espasa; Calpe, 1937. (Traduzido especialmente para esta obra).
52. Com base nas afirmações de Kant, monte o quadro a seguir. Sublime
Belo
A noite Comove Exemplificado na atividade diurna Campos floridos com o murmúrio de rios Assim, podemos entender o sublime como uma espécie de harmonia intelectual, sugerida, mas dificilmente explicitada. Os fatores que compõem o sublime fazem-no tender para as experiências insólitas, como o silêncio, a solidão e o terrível. 46
Capítulo 1
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51. Você já andou de montanha russa ou praticou algum esporte radical? Por que as pessoas fazem tais coisas? Que emoções elas estão procurando alcançar?
Mas a sensibilidade se altera com o passar do tempo, de modo que o considerado sublime no século XVIII não o é mais no século XXI (ou, pelo menos, não sabemos como fazê-lo ser, pois vivemos em outra realidade cultural). Os filósofos do século XVIII entendiam assim a arte: a beleza produz prazer e os objetos que a produzem não têm força e poder de produzir terror ou emoções fortes porque são delicados. No entanto, aquilo que associamos ao instinto de conservação, como a morte, a energia, etc., é o sublime, que produz terror, mas também prazer, pois não nos ameaça. A morte em uma peça de teatro ou em um poema é sublime, pois não é morte em si, mas elemento que produz arte. Podemos nos perguntar sobre que características repelentes e perturbadoras de um acontecimento produzem deslumbramento no século XXI. Certamente, a tendência para a solidão, que fascinava o homem dos séculos XVIII e XIX, não é mais uma característica do sublime atual. Mas, um padrão se mantém: o sentimento do sublime assenta no instinto de conservação e medo, ou seja, na dor que permite limparmonos de sentimentos perigosos ou pesados, causando-nos um tremor satisfatório, uma certa paz originada no terror, como aquela que sentimos depois que andamos de montanha russa. 53. Com base na sua experiência de cidadão do século XXI, bem como no pensamento de Kant, complete o quadro a seguir: Sublime
Belo
Pular de paraquedas
Assistir a uma comédia romântica no cinema
Uma decepção amorosa
O sublime e o belo estão na procura artística do homem romântico. Cada forma de arte produz o seu efeito: tristeza, alegria, euforia, alívio, preocupação, revolta. Um modo de arte pode fazer-nos sentir uma revelação, outro é capaz de tranquilizar os sentidos. Um nos choca, o outro nos surpreende. Claro que a arte não está no choque causado, mas na maneira como ele foi provocado no interlocutor. Amor e desejo na ponta da língua
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54. A seguir, você encontra algumas produções da arte romântica. Que efeito elas lhe causam: o do sublime ou o do belo? Justifique os motivos.
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a)
GOYA, Francisco de. O três de maio de 1808. (1814). Madri: Museu do Prado.
b)
DELACROIX, Eugène. Árabes em escaramuça nas montanhas. (1863). Washington: Chester Dale Fund., National Gallery of Art.
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c)
Palácio Nacional da Pena, Sintra, Portugal
d)
AMÉRICO, Pedro. O grito do Ipiranga ou Proclamação da Independência. (1888). São Paulo: Museu Paulista da USP.
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TURNER, J. M. W. Mortlake Terrace. (c. 1826). Washington: National Gallery of Art.
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e)
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Ludwig Van Beethoven – Provavelmente você já ouviu algum trecho ou obra deste gênio da música. As suas terceira, quinta e nona sinfonias estão entre as composições mais tocadas na história da humanidade.
“Nasceu na Alemanha em 1770 e faleceu em 1827. Viveu na Europa sacudida pela Revolução Francesa e pelas guerras napoleônicas, colocando-se, desde jovem, no meio daquelas novas fermentações, que representavam, sem dúvida, tempos novos. As ideias sobre a liberdade humana, alimentadas pela filosofia kantiana, atingiram misteriosamente sua inspiração musical, fertilizada também pelos ideais românticos”. COLANGELO, Adriano. Mil anos de arte. São Paulo: Cultrix, 1989.
55. Elabore uma análise, no caderno, do seguinte poema, com base nos aspectos românticos que observa.
Se eu morresse amanhã Se eu morresse amanhã, viria ao menos Fechar meus olhos minha triste irmã; Minha mãe de saudades morreria Se eu morresse amanhã! Quanta glória pressinto em meu futuro! Que aurora de porvir e que manhã! Eu perdera chorando essas coroas Se eu morresse amanhã! Que sol! que céu azul! que doce n’alva Acorda a natureza mais louçã! Não me batera tanto amor no peito Se eu morresse amanhã! Mas essa dor da vida que devora A ânsia de glória, o dolorido afã... A dor no peito emudecera ao menos Se eu morresse amanhã! AZEVEDO, Álvares de. “Poesias dispersas”. In: Poesias completas. São Paulo: Saraiva, 1962.
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O Romantismo: características fundamentais 56. Depois desse percurso pela visão de mundo romântica e pelo modo como ela se desenvolveu, é fácil completar este quadro comparativo. Estética da Época Clássica
Estética romântica
Estética da escola fundada pela sua turma
Subjetivismo: Importa a realidade interior. O conhecimento do mundo ocorre por meio do conhecimento de si mesmo. Valorização da expressão emocional e confessionalista. O grotesco também pode
Representação da realidade
ser arte. A importância do sujeito apreciador da obra de arte para a construção dos conceitos de belo e sublime.
Liberdade: Do plano político (valorização do nacionalismo) ao literário (tentativas de superação das formas estéticas)
Valores
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Capítulo 1
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Manuel Antônio ÁLVARES DE AZEVEDO (1831-1852) – Nasceu em São Paulo. Morreu tuberculoso aos vinte anos, na cidade do Rio de Janeiro. Sua poesia apresenta uma clara tendência ao sonho e à evasão. Sua poesia revela o desejo do eu em perscrutar a sua própria intimidade. Nesse mergulho, esse ser extremamente sensível leva a luz da palavra aos domínios obscuros do inconsciente.
Estética da Época Clássica
O herói
Estética romântica
Estética da escola fundada pela sua turma
Desajuste: Moralidade: o herói representa valores sociais.
Contemporaneidade: Historicismo: valorização da época do autor, com tendência à O tempo idealização da realidade. O passado serve para sugerir modelos e formas para as realizações artísticas. Otimismo: domina um conceito de vida eufórico e otimista. A arte deve buscar o lado Concepção de vida bom das coisas. A crítica, na obra de arte, procura corrigir os defeitos humanos e sociais.
Leitor a quem se dirige a obra literária
Nobreza:
Época em que escreve
Século XXI
O eu romântico: o tempo e o espaço “O eu romântico, objetivamente incapaz de resolver os conflitos com a sociedade, lança-se à evasão. No tempo, recriando uma Idade Média gótica e embruxada. No espaço, fugindo para ermas paragens ou para o Oriente exótico. A natureza romântica é expressiva. Ao contrário da natureza árcade, decorativa. Ela significa e revela. Prefere-se a noite ao dia, pois à luz crua do sol o real impõe-se o indivíduo, mas é na treva que latejam as forças inconscientes da alma: o sonho, a imaginação.” BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. Amor e desejo na ponta da língua
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Iniciou oficialmente em Portugal em 1825, com o poema “Camões”, de Almeida Garrett. Além desse nome, destacam-se ainda Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco e Júlio Diniz. A chamada primeira geração romântica tem nos nomes de Alexandre Herculano e Almeida Garrett seus principaiis representantes. Alexandre Herculano, além de trazer o romance histórico para a literatura portuguesa, introduziu o discurso da História como ciência, revisitando os principais acontecimentos da História de Portugal e procurando examiná-los sob uma explicação científica. Via na religião uma força unificadora da identidade portuguesa, mas não a explicação para todas as passagens mais obscuras da história de seu país. Garrett trouxe a renovação do teatro português, cujo último grande nome havia sido Gil Vicente. A tragédia histórica Frei Luís de Sousa é considerada a obra-prima do teatro romântico português. 1. O site disponibiliza, na seção “Obras de literatura”, textos literários na íntegra dos principais autores da literatura em língua portuguesa. Formem pequenos grupos. Localizem o livro Folhas Caídas, de Almeida Garrett. Escolham um poema da obra e encontrem nele as principais características, do Romantismo aqui estudadas. Elaborem, no Word, uma lista dessas características transcrevendo excertos do poema que as comprovem. Depois, procurem também uma letra de música atual que estabeleça uma relação com o poema escolhido. Expliquem, no mesmo texto em que aparece a lista das características românticas do poema de Garrett, qual a relação existente entre ambos. Ao final da atividade, gravem o documento do Word com o título “Romantismo.doc” e façam uma discussão sob o tema “A herança do Romantismo na sociedade do século XXI”. Esses escritores constituem o que podemos chamar de uma primeira geração do Romantismo português, com uma visão de literatura muito comprometida politicamente. Na visão desses escritores, a literatura romântica deveria formar o leitor, instruindo-o a respeito de valores e engajando-o politicamente e socialmente. O trecho a seguir é parte do capítulo IV, do romance Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano. A narrativa se passa na Península Ibérica, no século VIII. Ainda não existia Portugal. Eurico lutou junto com Vitiza, imperador da Espanha, contra invasores vindos de terras vizinhas. Após a vitória, Eurico pediu ao Duque de Fávila a mão de sua filha, Hermengarda, em casamento. No entanto, Fávila ao saber da intenção de Eurico, recusou o seu pedido, pois sabia que ele era um homem de origem humilde. Certo de que sua amada também o rejeitava, tornouse sacerdote, sendo ordenado presbítero de Carteia. A vida de Eurico então se resumiu às suas funções religiosas e à composição de poemas e hinos religiosos. Ser sacerdote e poeta ocupava a sua mente e o afastava das lembranças de Hermengarda. Essa rotina só foi quebrada quando ele descobriu que os árabes, liderados por Tárique, invadiram a Península Ibérica. Durante a leitura, observe a descrição do poeta romântico ideal defendida por Herculano: FRIEDRICH, David. Monge à beira-mar. (1810). Berlim: Museu Estatal da Cidade de Berlim.
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Capítulo 1
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O Romantismo em Portugal
Era por uma destas noites vagarosas do inverno em que o brilho do céu sem lua é vivo e trêmulo; em que o gemer das selvas é profundo e longo; em que a soledade das praias e ribas fragosas do oceano é absoluta e tétrica. Era a hora em que o homem está recolhido nas suas mesquinhas moradas; em que pelos cemitérios o orvalho se pendura do topo das cruzes e, sozinho, goteja das bordas das campas, em que só ele chora os mortos. As larvas da imaginação e o gear noturno afastam do campo santo a saudade da viúva e do órfão, a desesperação da amante, o coração despedaçado do amigo. Para se consolarem, as infelizes dormiam tranquilas nos seus leitos macios!... enquanto os vermes iam roendo esses cadáveres amarrados pelos grilhões da morte. Hipócritas dos afetos humanos, o sono enxugou-lhes as lágrimas! (...) Era, pois, numa destas noites como a que desceu do céu depois do desbarato dos hunos; era numa destas noites em que a terra, envolta no seu manto de escuridade, se povoa de terrores incertos; em que o sussurro do pinhal é como um coro de finados, o despenho da torrente como um ameaçar AMÉRICO, Pedro. A noite e os gênios do estudo e amor. (1886). Rio de Janeiro: Museu Nacional de de assassino, o grito da ave noturna como uma blasfêmia do do Belas Artes. que não crê em Deus. Nessa noite fria e úmida, arrastado por agonia íntima, vagava eu às horas mortas pelos alcantis escalvados das ribas do mar, e enxergava ao longe o vulto negro das águas balouçando-se no abismo que o Senhor lhes deu para perpétua morada. Por cima da minha cabeça passava o norte agudo. Eu amo o sopro do vento, como o rugido do mar: Porque o vento e o oceano são as duas únicas expressões sublimes do verbo de Deus, escritas na face da Terra quando ainda ela se chamava caos. Depois é que surgiu o homem e a podridão, a árvore e o verme, a bonina e o emurchecer. (...) O mundo atual nunca poderá entender plenamente o afeto que, vibrando-me dolorosamente as fibras do coração, me arrastava para as solidões marinhas do promontório, quando os outros homens nos povoados se apinhavam à roda do lar aceso e falavam das suas mágoas infantis e dos seus contentamentos de um instante. E que me importa a mim isso? Virão um dia a esta nobre terra de Espanha gerações que compreendam as palavras do presbítero. Arrastava-me para o ermo um sentimento íntimo, o sentimento de haver acordado, vivo ainda, deste sonho febril chamado vida, e de que hoje ninguém acorda, senão depois de morrer. Sabeis o que é esse despertar de poeta? É o ter entrado na existência com um coração que transborda de amor sincero e puro por tudo quanto o rodeia, e ajuntaram-se os homens e lançarem-lhe dentro do seu vaso de inocência lodo, fel e peçonha e, depois, rirem-se dele: É o ter dado às palavras – virtude, amor pátrio e glória – uma significação profunda e, depois de haver buscado por anos a realidade delas neste mundo, só encontrar aí hipocrisia, egoísmo e infâmia: É o perceber à custa de amarguras que o existir é padecer, o pensar descrer, o experimentar desenganarse, e a esperança nas coisas da terra uma cruel mentira de nossos desejos, um fumo tênue que ondeia em horizonte aquém do qual está assentada a sepultura. Este é o acordar do poeta. Depois disso, nos abismos da sua alma só há para mandar aos lábios um sorriso de desprezo em resposta às palavras mentidas dos que o cercam, ou uma voz de maldição desabridamente sincera para julgar as ações dos homens. Amor e desejo na ponta da língua
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É então que para ele há unicamente uma vida real – a íntima; unicamente uma linguagem inteligível – a do bramido do mar e do rugido dos ventos; unicamente uma convivência não travada de perfídia – a da solidão. (...) Tal era eu quando me assentei sobre as fragas; e a minha alma via passar diante de si esta geração vaidosa e má, que se crê grande e forte, porque sem horror derrama em lutas civis o sangue de seus irmãos. E o meu espírito atirava-se para as trevas do passado. E o sopro rijo do norte afagava-me a fronte requeimada pela amargura, e a memória consolava-me das dissoluções presentes com a aspiração suave do formoso e enérgico viver de outrora. E o meu meditar era profundo, como o céu, que se arqueia imóvel sobre nossas cabeças; como o oceano, que, firmando-se em pé no seu leito insondável, braceja pelas baías e enseadas, tentando esboroar e desfazer os continentes. E eu pude, enfim, chorar.” HERCULANO, Alexandre. Eurico, o Presbítero. Disponível em . Acessado em 8-12-2004.
57. De que forma esse texto defende o conceito kantiano de “sublime”?
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FRIEDRICH, David. Mar do Norte sob o luar (1823). Praga: Národní Galerie.
58. Transcreva passagens que comprovem as seguintes características do Romantismo: a) desajuste social:
b) preferência pelo passado:
c) valorização do sagrado:
d) valorização da sensibilidade e da emoção:
59. Em dado momento no texto, o narrador-personagem, que vive no século VIII, como que profetiza a vinda do Romantismo. Transcreva essa passagem.
A segunda geração romântica perdeu muito do ideal pedagógico da primeira geração. Voltou-se mais para o gosto do leitor do que para os ideais do autor. O leitor da época deliciava-se com as narrativas leves, envolvendo amores impossíveis e situações misteriosas, e até macabras. Seu maior nome, Camilo Castelo Branco, foi o primeiro escritor em língua portuguesa a viver apenas como escritor. Autor de uma variada obra que fez muito sucesso na época, apresentava, em algumas de suas obras, retratos sociais pitorescos marcados por um profundo olhar crítico. A terceira geração romântica que, por motivos didáticos, os estudiosos assinalam seu início em 1860, diluiu os ideais românticos, antecipando preocupações próprias da nova escola literária que se avizinhava: o Realismo-Naturalismo. Um nome importante desse período é Júlio Dinis, autor de diversas obras, entre elas As pupilas do senhor reitor, A morgadinha dos canaviais e Uma família inglesa. 60. Procure, no dicionário, o significado dos termos “pupilas” e “reitor” e explique o que se pode esperar de uma obra intitulada As pupilas do senhor reitor.
Leia agora um trecho do primeiro capítulo de As pupilas do senhor reitor: Durante a leitura, procure identificar os conceitos defendidos sobre trabalho, estudo e desigualdade social.
“Era este reitor um padre velho e dado, que há muito conseguira na paróquia transformar em amigos todos os fregueses. Tinha o Evangelho no coração – o que vale muito mais ainda do que tê-lo na cabeça. A qualidade de egresso não tolhia os ser liberal de convicção. Era-o como poucos. – Ó homem de Deus – disse pois o reitor um dia, resolvido deveras a sondar as profundezas
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DINIS, Júlio. As pupilas do senhor reitor. Disponível em . Acessado em 12-2-2009.
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Capítulo 1
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daquele mistério – que tens tu há tempos a esta parte? Que empresa é essa em que me andas a cismar há tantos dias? – Que quer, Sr. Padre Antônio? Um homem de família tem sempre em que cuidar; tem a sua vida e tem a dos filhos. Foi a resposta que obteve. – Ora essa! – insistiu o padre – Bem alegre te via eu, em tempos mais azados para tristezas, e bem alegres vejo muitos com bem outras razões para o contrário. Mas tu! Que mais queres? (...) – É assim, Sr. Reitor, eu sei que os há por aí mais infelizes do que eu, mas... – Mas então, quem tem saúde e a quem Deus não falta com o pão nosso cotidiano, só deve erguer as mãos ao céu para lhe tecer louvores. Mareia a tua vida, que teus filhos não são nenhuns aleijados para precisarem pedir esmolas. – Graças a Deus que não são, Sr. Reitor. O Pedro, sobretudo, não me dá cuidados. O Senhor fê-lo robusto e fero; é um homem para o trabalho; e quem pode trabalhar não precisa de outra herança. Pelo trabalho, e com a ajuda de Deus, fiz eu esta minha casa, que não é das piores, vamos; ele, com menos custo, a pode agora aumentar, se quiser. Mas o Daniel já não é assim. Aquilo é outra mãe – o Senhor a chame lá. Um dia de ceifa é bastante para mo matar. É a sorte dele que me dá cuidado. – Então é só isso? Ora valha-te Deus! É verdade. O pequeno é fraquito e decerto não pode com o trabalho do campo, mas... para que queres tu o dinheiro, José? Acaso não terás alguns centos de mil-réis ao canto da caixa para pôr o rapaz nos estudos? Não podes fazer dele um lavrador? Fá-lo padre, letrado ou médico, que não ficarás pobre com a despesa. José das Dornas ao ouvir assim formulado o conselho do reitor sorriu com a visível satisfação que sempre experimentamos, vendo que um dos nossos pensamentos favoritos merece a aprovação de alguém, antes de lho revelarmos. – Nisso mesmo penava eu. Já me lembrou mandá-lo estudar, mas tinha cá certos escrúpulos. – Escrúpulos! Valha-te não sei que diga! Pois ainda és desses tempos? Que escrúpulos podes ter em mandar ensinar teus filhos? Fazes-me lembrar um tio meu que nunca permitiu que as filhas aprendessem a ler; como se pela leitura se perdesse mais gente do que pela ignorância. – Não é isso, Sr. Padre Antônio, não é isso o que eu quero dizer; mas custa-me dar a meus filhos uma educação desigual. Vê Vossa Senhoria. São irmãos e, mais tarde, o que tomar melhor carreira e se elevar pelo estudo, há de desprezar o que seguir a vida do pai, a ponto de que os filhos dum e doutro quase não se conhecerão: é o que mais vezes se vê. Não é uma injustiça que faço a Pedro a educação que der a Daniel? – Homem de Deus, não há desigualdade verdadeira, senão a que separa o homem honrado do criminoso e mau. Essa sim, que é estabelecida por Deus, que, na hora solene, extremará os eleitos dos réprobos. Educa bem os teus filhos em qualquer carreira em que os encaminhes; educa-os segundo os princípios da virtude e da honra, e não os distanciará, acredita; porque, cumprindo cada um com o seu dever, serão ambos dignos um do outro e prontos apertarão as mãos onde quer que se encontrem. E no sentido mundano, julgas tu que fazes mais feliz Daniel, por o elevares a uma classe social acima da tua! Aí, homem, como viver enganado! O quinhão de dores e provações foi indistintamente repartido por todas as classes, sem privilégio de nenhuma. Há infortúnio e misérias que causam o tormento dos grandes e poderosos, e que os pobres e humildes nem experimentam, nem imaginam sequer. Grande nau grande tormenta: hás de ter ouvido dizer. Sabes que mais José? - concluiu o reitor - manda-me o rapaz lá por casa, que eu lhe irei ensinado o pouco que sei do latim, e deixa-te de malucar! Com estas e idênticas razões foi o bom do padre convencendo José das Dornas, que nada mais veementemente desejava do que ser convencido - e, decorridos oito dias, via-se já Daniel passar, com os livros debaixo do braço, a caminho da casa do reitor.”
61. Identifique, no texto lido, um trecho que defenda o valor do trabalho.
62. Que perigo José das Dornas vê em uma “educação desigual”?
63. O reitor defende que “não há desigualdade verdadeira, senão a que separa o homem honrado do criminoso e mau”. Você concorda com esse pensamento? Por quê?
64. Com base na leitura do texto, retirado do primeiro capítulo, o que pensa encontrar no romance? Por quê?
65. Que características desse texto o aproximam dos ideais do Romantismo?
VARAL DE POESIA Ao longo deste capítulo, você pôde elaborar um poema erótico, que estabeleceu um diálogo intertextual com o poema Meu desejo, de Álvares de Azevedo. Agora, reúnam, você e seus colegas, todos os textos produzidos e elaborem, no corredor da escola, um varal de poesias. Não se esqueçam de acrescentar o poema de Álvares de Azevedo, bem como uma breve biografia do poeta, para orientar as leituras dos outros alunos. Sejam criativos na apresentação do trabalho de vocês.
PAUSA PARA REFLEXÃO Em seu caderno, responda às questões a seguir. I. Que conteúdos deste capítulo conseguiria explicar sem consultar o livro? II. Consultando o livro, identifique os conteúdos que, na sua opinião, não foram bem compreendidos e merecem novas explicações ou atividades de reforço. III. Que atividade(s) considerou mais importantes para seu aprendizado? Por quê? IV. Em que aspectos poderá melhorar sua participação nas próximas aulas?
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LEITURA: “UNS BRAÇOS”
I
“ nácio estremeceu, ou vindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco. – Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! maluco! – Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se para D. Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, há anos. Confunde-me os papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a outro, troca os advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De manhã é o que se vê; primeiro para que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos... Deixe; amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura! D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges espeitorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens. Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça, ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges, com esperança 60
de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870. Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruído da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava logo calado. Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo. Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o
pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos. Acabaram de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos da algibeira, comparouos, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os restantes. Aceso o charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D. Severina de trinta mil cousas que não interessavam nada ao nosso Inácio; mas enquanto falava, não o descompunha e ele podia devanear à larga. Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dois, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa. Vá que disfarçasse com S. João, cuja cabeça moça alegra as imaginações católicas, mas com o austero S. Pedro era demais. A única defesa do moço Inácio é que ele não via nem um nem outro; passava os olhos por ali como por nada. Via só os braços de D. Severina, – ou porque sorrateiramente olhasse para eles, ou porque andasse com eles impressos na memória. – Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador. Não havia remédio; Inácio bebeu a última gota, já fria, e retirou-se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto de zanga e
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Uns braços
desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma cousa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar. Havia cinco semanas que ali morava, e a vida era sempre a mesma, sair de manhã com o Borges, andar por audiências e cartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde, jantava e recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe dava intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs; cinco semanas de silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada. ‘Deixe estar, – pensou ele um dia – fujo daqui e não volto mais.’ Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso. Aguentava toda a trabalheira de fora, toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços. Amor e desejo na ponta da língua
Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma cousa rejeitou a ideia logo, uma criança! Mas há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra ideia não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim. – Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa. – Não tenho nada. – Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos ... E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente incapaz de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau. D. Severina interrompia-o que não, que era engano, não estava dormindo, estava pensando na comadre Fortunata. Não a visitavam desde o Natal; por que não iriam lá uma daquelas noites? Borges redarguia que andava cansado, trabalhava como um negro, não estava para visitas de parola, e descompôs a comadre, descompôs o compadre, descompôs o afilhado, que não ia ao colégio, com dez anos! Ele, Borges, com dez anos, já sabia ler, escrever e contar, não muito bem, é certo, mas sabia. Dez anos! Havia de ter um bonito
fim: – vadio, e o covado e meio nas costas. A tarimba é que viria ensiná-lo. D. Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, o caiporismo do compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais. A noite caíra de todo; ela ouviu o tlic do lampião do gás da rua, que acabavam de acender, e viu o clarão dele nas janelas da casa fronteira. Borges, cansado do dia, pois era realmente um trabalhador de primeira ordem, foi fechando os olhos e pegando no sono, e deixou-a só na sala, às escuras, consigo e com a descoberta que acabara de fazer. Tudo parecia dizer à dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita a impressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação moral que ela só conheceu pelos efeitos, não achando meio de discernir o que era. Não podia entender-se nem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e ele que mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estacou: realmente, não havia mais que suposição, coincidência e possivelmente ilusão. Não, não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o acanhamento, as distrações, para rejeitar a ideia de estar enganada. Daí a pouco, (capciosa natureza!) refletindo que seria mau acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das cousas. Já nessa noite, D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de Inácio; não chegou a achar nada, porque o tempo do chá era curto e o rapazinho não tirou os olhos da xícara. No dia seguinte pôde observar melhor, e nos outros otimamente. Percebeu que sim, que era amada e temida, 61
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porque era ele que contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria. A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem entender-se. Não estava bem em parte nenhuma. Acordava de noite, pensando em D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que lha não trouxesse à memória. Ao entrar no corredor da casa, voltando do trabalho, sentia sempre algum alvoroço, às vezes grande, quando dava com ela no topo da escada, olhando através das grades de pau da cancela, como tendo acudido a ver quem era. Um domingo, – nunca ele esqueceu esse domingo, – estava só no quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d’água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal. Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao
cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. Era ela mesma, eram os seus mesmos braços. É certo, porém, que D. Severina, tanto não podia sair da parede, dado que não houvesse ali porta ou rasgão, que estava justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as escadas. Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca; levantando-se, foi pegar na jarra que estava em cima do aparador e deixou-a no mesmo lugar; depois caminhou até à porta, deteve-se e voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se outra vez cinco ou dez minutos. De repente, lembrou-se que Inácio comera pouco ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser até que estivesse muito mal. Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou, deu com ele na rede, dormindo, com o braço para fora e o folheto caído no chão. A cabeça inclinava-se um pouco do lado da porta, deixando ver os olhos fechados, os cabelos revoltos e um grande ar de riso e de beatitude. D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou. Sonhara de noite com ele; pode ser que ele estivesse sonhando com ela. Desde madrugada que a figura do mocinho andava-lhe Capítulo 1
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amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo. D. Severina compreendeu que não havia recear nenhum desacato, e concluiu que o melhor era não dizer nada ao solicitador; poupava-lhe um desgosto, e outro à pobre criança. Já se persuadia bem que ele era criança, e assentou de o tratar tão secamente como até ali, ou ainda mais. E assim fez; Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto. – Vou-me embora, repetia ele na rua como nos primeiros dias. Chegava a casa e não se ia embora. Os braços de D. Severina fechavam-lhe um parêntesis no meio do longo e fastidioso período da vida que levava, e essa oração intercalada trazia uma ideia original e profunda, inventada pelo céu unicamente para ele. Deixava-se estar e ia andando. Afinal, porém, teve de sair, e para nunca mais; eis aqui como e por quê. D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, cousa que jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez,
diante dos olhos como uma tentação diabólica. Recuou ainda, depois voltou, olhou dois, três, cinco minutos, ou mais. Parece que o sono dava à adolescência de Inácio uma expressão mais acentuada, quase feminina, quase pueril. “Uma criança!” disse ela a si mesma, naquela língua sem palavras que todos trazemos conosco. E esta ideia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos. “Uma criança!” E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço caído; mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito mais bonito que acordado, e uma dessas ideias corrigia ou corrompia a outra. De repente estremeceu e recuou assustada: ouvira um ruído ao pé, na saleta do engomado; foi ver, era um gato que deitara uma tigela ao chão. Voltando devagarinho a espiá-lo, viu que dormia profundamente. Tinha o sono duro a criança! O rumor que a abalara tanto, não o fez sequer mudar de posição. E ela continuou a vê-lo dormir, – dormir e talvez sonhar. Que não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-seia visto diante da rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as palav ras dela, que eram lindas, cálidas, principalmente novas, – ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse. Duas, três e quatro
Amor e desejo na ponta da língua
vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca. Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dali passou à sala da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se escutava algum rumor que lhe dissesse que ele acordara, e só depois de muito tempo é que o medo foi passando. Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crer que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus desejos na ideia de que era uma criança namorada que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia amiga, inclinara-se e beijara-o. Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo que dormia apontou-lhe na alma e deu-lhe um calafrio. Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e só acordou para jantar. Sentou-se à mesa lépido. Conquanto achasse D. Severina calada e severa e o solicitador
tão ríspido como nos outros dias, nem a rispidez de um, nem a severidade da outra podiam dissipar-lhe a visão graciosa que ainda trazia consigo, ou amortecer-lhe a sensação do beijo. Não reparou que D. Severina tinha um xale que lhe cobria os braços; reparou depois, na segunda-feira, e na terça-feira, também, e até sábado, que foi o dia em que Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar com ele; e não o fez zangado, porque o tratou relativamente bem e ainda lhe disse à saída: – Quando precisar de mim para alguma cousa, procure-me. – Sim, senhor. A Sra. D. Severina... – Está lá para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã ou depois despedir-se dela. Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão bem! falava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente... Tanto pensou que acabou supondo de sua parte algum olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera, não era outra cousa; e daqui a cara fechada e o xale que cobria os braços tão bonitos... Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana: E foi um sonho! um simples sonho!” ASSIS, Machado de. Obra completa. v. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
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Disponível em . Acessado em 15-4-2004.
DE OLHO NO FUTURO No volume 1 desta coleção, já consideramos algumas estratégias para resolver questões de testes. Por exemplo, ler, em primeiro lugar, o enunciado da questão para saber o que é pedido e, em seguida, o fragmento apresentado. Veja, na prática, como isso pode ser feito: (Consultec/ UCDB) Leia com atenção o texto a seguir.
“Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver a missa do galo na Corte. A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa. – Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? Perguntou-me a mãe de Conceição. – Leio, D. Inácia.
Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte a mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza: – Não! Qual! Acordei por acordar.” ASSIS, Machado de. “Missa do galo.” Apud COUTINHO, Afrânio. In: Antologia brasileira de literatura. 2a ed. Rio de Janeiro: Distribuidora de livros escolares, 1967. v. I, p. 199-205.
O fragmento em destaque pertence a Missa do galo, de Machado de Assis. Pelas suas características, dentro do gênero, esse conto pode ser classificado como narrativa: a) alegórica, de temática religiosa e preocupação moralizante. b) de realismo mágico, pelo caráter ambíguo e absurdo da sua trama. c) de ação interior, psicológica, pois as personagens vivem uma tensão diante de si mesmas. d) de costumes ou conto picaresco, por retratar hábitos e costumes da segunda metade do século XIX. 64
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“Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839 e era filho legítimo do operário Francisco José de Assis e de D. Maria Leopoldina Machado de Assis. Os seus estudos foram irregulares. Ao deixar a escola de primeiras letras, sabendo apenas ler e escrever, tratou de instruir-se a si mesmo, sem professores nem conselheiros e, assim, adquiriu todos os conhecimentos indispensáveis à carreira com que devia ilustrar o seu nome. [...] Em 1858, Machado de Assis abraçou a arte tipográfica, mas no ano seguinte abandonou-a, para ser revisor de provas da famosa casa de Paula Brito e do Correio Mercantil. Em 25 de março de 1860, encetou a sua vida jornalística, ao lado de Saldanha Marinho, Quintino Bocayuva e Cesar Muzio, no Diário do Rio de Janeiro. [...] Em 1867, o governo imperial agraciou-o com o grau de cavalheiro da Ordem da Rosa, por serviços prestados às letras brasileiras; em 1888, a princesa D. Isabel elevou-o a oficial da mesma ordem; mas a honra maior, que ele recebeu em vida, foi a presidência da Academia Brasileira, que os seus confrades lhe deram por aclamação. Em 1869, casou-se Machado de Assis com D. Carolina Augusta Xavier de Novaes, irmã de Faustino Xavier de Novaes, a qual faleceu três anos após. A viuvês foi para o grande escritor um golpe terrível, que o aniquilou, agravando os seus antigos padecimentos. Pode-se dizer que, depois da morte da querida esposa, Machado de Assis não viveu mais: morria aos poucos. Sozinho no mundo, sem filhos, sem parentes, não resistiu à perda da extremosa companheira de tantos anos. [...]” – O Paiz, 30 de setembro de 1908.
e) sociodocumental, por enfocar as relações do homem com a terra, exercendo a função de denúncia social. Neste teste, pede-se a classificação da narrativa do conto Missa do galo de Machado de Assis. Agora leia as alternativas, para ver as que podem ser desconsideradas.
Alternativa A: “alegórica, de temática religiosa e preocupação moralizante”. Narrativa alegórica é a exposição de uma ideia de forma figurada ou representação de uma coisa para dar ideia de outra. O conto Missa do galo não foi escrito de maneira figurada, ele recria uma situação de maneira bem real, logo a primeira alternativa está errada.
Alternativa B: narrativa “de realismo mágico, pelo caráter ambíguo e absurdo da sua trama” também pode ser descartada pelo mesmo motivo exposto para a alternativa A.
Alternativa C: narrativa “de ação interior, psicológica, pois as personagens vivem uma tensão diante de si mesmas”. Esta alternativa pode ser considerada correta, uma vez que a ação exterior das personagens é restrita, não há quase ação e há o predomínio da ação interior.
Alternativa D: narrativa “de costumes ou conto picaresco, por retratar hábitos e costumes da segunda metade do século XIX”. Nos contos picarescos, as personagens vivem de expedientes, são ardilosas, velhacas, astutas. Nesse conto de Machado, as personagens não são descritas dessa forma.
Alternativa E: narrativa “sociodocumental, por enfocar as relações do homem com a terra, exercendo a função de denúncia social”. Esta alternativa pode ser desconsiderada, pois a trama é urbana, desenvolve-se na cidade e não há alusões a conflitos sociais, do homem com a terra.
1. (Fuvest - 2ª fase)
Dinheiro encontrado no lixo “Organizados numa cooperativa em Curitiba, catadores de lixo livraram-se dos intermediários e conseguem ganhar por mês, em média R$ 600,00 – o salário inicial de uma professora de escola pública de São Paulo.
O negócio prosperou porque está em Curitiba, cidade conhecida dentro e fora do país pelo sucesso na reciclagem do lixo”. (Folha de S.Paulo, 22-9-2000).
Quando se lê esta notícia, nota-se que o título tem duplo sentido.
Quais são os dois sentidos do título?
Crie para a notícia um título que lhe seja adequado e não apresente duplo sentido.
Amor e desejo na ponta da língua
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2. (Fuvest)
“Teu romantismo bebo, ó minha lua, A teus raios divinos me abandono, Torno-me vaporoso ... e só de ver-te Eu sinto os lábios meus se abrir de sono”.
Neste excerto, o eu-lírico parece aderir com intensidade aos temas de que fala, mas revela, de imediato, desinteresse e tédio. Essa atitude do eu-lírico manifesta a: a) ironia romântica. b) tendência romântica ao misticismo. c) melancolia romântica. d) aversão dos românticos à natureza. e) fuga romântica para o sonho.
3. (Mackenzie) Assinale a alternativa CORRETA sobre Machado de Assis: a) Embora tenha sido um dos maiores escritores brasileiros do século XIX, não conseguiu em vida o reconhecimento de sua obra. b) Uma de suas linhas temáticas está presente na valorização do comportamento do homem burguês. c) Introduziu o Realismo no Brasil em 1881, mas enveredou para o estilo naturalista ao tematizar aspectos patológicos do comportamento. d) Uma das marcas de seu estilo é a linguagem crítica, que se apresenta de maneira direta e seca. e) Vivendo num período de culto ao cientificismo, questionou lucidamente o valor absoluto das verdades científicas.
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Capítulo 1
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
(Álvares de Azevedo, “Luar de verão”. Lira dos vinte anos).
A LÍNGUA AFRODISÍACA Minhas mãos abrem a cortina do seu ser cobrindo-o com uma nudez maior descobrindo os corpos do seu corpo Minhas mãos inventam outro corpo Para o seu corpo. Octavio Paz
A PERSONALIDADE DO ENUNCIADOR DO TEXTO Podem os astros ajudar você a encontrar um grande amor? É comum, ao andarmos pela rua, sermos abordados com folhetos como este:
LANDEIRA, José Luís; VIEIRA, Alice. (Especialmente para este livro).
A língua afrodisíaca
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Poema do homem só Sós, irremediavelmente sós, como um astro perdido que arrefece. Todos passam por nós e ninguém nos conhece. Os que passam e os que ficam. Todos se desconhecem. Os astros nada explicam: Arrefecem. Nesta envolvente solidão compacta, quer se grite ou não se grite, nenhum dar-se de outro se refracta, nenhum ser nós se transmite. Quem sente o meu sentimento sou eu só, e mais ninguém. Quem sofre o meu sofrimento sou eu só, e mais ninguém. Quem estremece este meu estremecimento sou eu só, e mais ninguém. Dão-se os lábios, dão-se os braços dão-se os olhos, dão-se os dedos, bocetas de mil segredos dão-se em pasmados compassos; dão-se as noites, e dão-se os dias, dão-se aflitivas esmolas, abrem-se e dão-se as corolas breves das carnes macias; dão-se os nervos, dá-se a vida, dá-se o sangue gota a gota, como uma braçada rota dá-se tudo e nada fica. Mas este íntimo secreto que no silêncio concreto, este oferecer-se de dentro num esgotamento completo, este ser-se sem disfarce, virgem de mal e de bem, este dar-se, este entregar-se, descobrir-se, e desflorar-se, é nosso de mais ninguém.
Rómulo Vasco da Gama de Carvalho, mais conhecido como ANTÓNIO GEDEÃO (1906-1997) – Poeta português, nascido em Lisboa. A poesia de António Gedeão mostra-nos a difícil relação entre o homem e a sociedade que o rodeia. Descreve-nos um homem sofrido, isolado, desiludido com ele próprio e com os outros. O egoísmo humano produz um ambiente caracterizado pela falta de solidariedade e de respeito. Poemas como este que acabamos de ler retratam a imagem viva do desespero presente no íntimo de cada indivíduo. Mas, apesar do aparente pessimismo, notamos que há, para o poeta, uma solução: o sonho. Continuar a ter esperança, viver com os olhos postos no horizonte, desejar sempre algo melhor permitirá aos homens a fuga ansiada e a libertação de todas as correntes. A poesia, a única forma de tentar restabelecer uma ligação com o outro.
Parece palavrão, mas não é “O termo [boceta] designa pequena caixa redonda, oval ou elíptica e aparecia frequentemente nas obras de vários escritores, principalmente de Machado de Assis, como, por exemplo, em Memórias póstumas de Brás Cubas, de 1881. ‘Vinha com ela uma boceta contendo um bonito relógio com as minhas iniciais gravadas, e esta frase: Lembrança do velho Quincas.’ Em Dom Casmurro, publicado em 1899, o escritor usa o termo três vezes. Uma delas: ‘Estava em pé, dava alguns passos, sorria ou tamborilava na tampa da boceta’. Quando (no Brasil), passou a ser usado popular e amplamente para designar a genitália feminina, possivelmente entre as décadas de 1910 e 1920, o termo desaparece totalmente da linguagem culta. (...) Em Portugal, apesar de ter incorporado esse novo sentido, o vocábulo (...) é sobretudo usado, e com naturalidade, no sentido de caixa.” BUENO, Márcio. A origem curiosa das palavras. Rio de Janeiro: José Olympio.
António Gedeão.
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Capítulo 2
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
Por que muitas pessoas procuram o oculto e o esoterismo para ter uma vida melhor? O que levaria alguém a procurar a casa de “Dona Juracy”? Curiosamente, uma possível resposta está em um texto que defende um ponto de vista bem diferente do folheto que lemos: Vejamos:
No oitavo capítulo do volume 1 desta coleção, definimos ideologia como um modo de representar a sociedade, compartilhado por membros de um determinado grupo, permitindo às pessoas organizarem suas crenças e valores sociais a partir de conceitos de bom ou mau, correto ou incorreto e passarem a agir conforme suas convicções. A crença no oculto e no esoterismo é muito comum em nossa sociedade. Pense nisso ao responder às questões a seguir. 1. Compare as ideologias presentes no folheto publicitário da vidente Dona Juracy com o poema de António Gedeão. a) Que grupo de pessoas compartilha da ideologia presente no folheto publicitário? Justifique a sua resposta.
b) Que grupo de pessoas compartilha da ideologia presente no poema de António Gedeão, em especial nas duas primeiras estrofes? Justifique a sua resposta.
c) Podemos afirmar que as ideologias presentes no folheto publicitário e no poema de António Gedeão são opostas entre si? Por quê?
Quando o eu-lírico, no Poema do homem só afirma que “os astros nada explicam” nega, o que dizem outros discursos, a presença de outros discursos igualmente comuns na sociedade, como o do folheto publicitário de Dona Juracy. Apenas porque há muitas pessoas que acreditam nas explicações dos astros para compreenderem a sua própria vida é que faz sentido afirmar que “os astros nada explicam”. Desse modo, António Gedeão incorpora em seu poema fragmentos de discursos comuns na sociedade, mesmo não acreditando neles. Como já vimos no terceiro capítulo do volume 1 desta coleção, “podemos afirmar que um texto é, geralmente, polifônico (de poli = vários e fono = voz, som), ou seja, formado de várias vozes, pois nele sempre ressoam outros discursos. O discurso assemelha-se a uma rede em que vários fios das vozes se entrecruzam”. A língua afrodisíaca
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Revista Vogue, set. 2003.
2. Compare o anúncio com o poema de António Gedeão. a) Transcreva um pequeno trecho do poema que poderia representar o anúncio acima. Justifique a sua escolha.
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Capítulo 2
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Observe agora esta publicidade de um famoso perfume de grife.
b) A posição do eu-lírico é favorável ou contrária à ideologia presente no discurso do anúncio publicitário? Explique.
Quando o eu-lírico do Poema do homem só traz para o poema outros discursos comuns na sociedade, como o esotérico ou o erótico, deseja o reconhecimento de seus méritos pelo leitor. Trata-se de uma maneira de o eu-lírico valorizar a sua própria imagem. O poeta apresenta-se, dessa forma, como alguém que conhece bem o mundo onde vive. Sabe das necessidades humanas de procurar por fontes de iluminação e de amor. Contudo, revela-se angustiado por ter a certeza de que não há fontes que permitam, de fato, compartilhar com os outros a intimidade da alma humana, “este ser-se sem disfarce”. Depois de lermos, construímos uma impressão, não apenas sobre o texto, mas sobre quem o escreveu. Ficamos impressionados com a inteligência de quem escreveu o texto ou ficamos pensando em o que nos fez perder tempo lendo “aquela bobagem”. Todo texto desenha, na mente do leitor, uma imagem do enunciador. Por meio do uso da palavra é que o enunciador demonstra possuir as qualidades necessárias para abordar o assunto de que está tratando em seu texto. Em outras palavras, por meio da enunciação do texto, revela-se a personalidade do enunciador. 3. O que o Poema do homem só revela sobre a personalidade de seu enunciador? Justifique. Use as informações que aparecem no quadro biográfico.
Traga para a próxima aula textos que estabeleçam um diálogo com a última estrofe do poema de António Gedeão, confirmando ou negando os discursos ali presentes. Comente em sala de aula as ideologias e as imagens do enunciador, presentes nos textos que trouxeram para comparação com “Poema de um homem só”.
A língua afrodisíaca
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Os discursos que circulam na sociedade em que vivemos são, muitas vezes, opostos entre si. Por exemplo, existe o discurso esotérico e ocultista que surge da necessidade humana de orientação superior, embora, muitas vezes, o ser humano não recorra a tais fontes de orientação. Assim, um discurso ocultista se manifesta nos mais diferentes textos, desde os folhetos de publicidade de videntes até os horóscopos nos jornais. Além disso, existe um discurso descrente, quase ateu, que retira o caráter místico de toda a natureza. Existe o discurso daquele que crê em Deus, mas não no esoterismo e assim por diante. Esses discursos, em alguns momentos, chocam-se e opõem-se. Isso apenas revela que, na sociedade, convivem pessoas que pensam de formas diferentes e divulgam seus pensamentos por meio de textos. Da mesma forma, encontramos o discurso erótico do desejo e esse, como vimos, transforma em texto aquilo que não pode realizar. Esse discurso circula na sociedade na forma dos mais variados gêneros textuais. A esse tipo de discurso, podemos contrapor um discurso erótico da realização, cujos textos revelam a realização plena do desejo erótico sem, contudo, esse desejo terminar. Os textos eróticos nos quais o enunciador realiza o seu desejo apresentam o encontro dos amantes como algo sublime, que merece ser repetido. Leia, por exemplo, o seguinte poema do moçambicano Eduardo White:
“Teu corpo é o país dos sabores, Da súplica e do gozo, é essa taça onde bebo toda a loucura a que me converto, teu corpo, meu Deus, teu corpo, é a vida, os estames altos, os gestos lentos, as carnes e as águas, teu corpo é essa casa feliz onde se celebra a loucura e o frio dentro das falésias, teu corpo é um amor de suplícios, amor que não sobra, não resta e que nem mesmo da fadiga cessa.”
Falésias
WHITE, Eduardo. In: APA, Lívia. et al. (Org.). Poesia africana de língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lacerda, 2003.
EDUARDO WHITE (1963-...) – Nasceu em Quelimane, Moçambique. Poeta, é autor de diversos livros que o fazem ser uma figura cada vez mais respeitada no cenário literário moçambicano e dentro do quadro das literaturas de expressão portuguesa.
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Estame
s
Capítulo 2
4. Transcreva o verso que comprova que o enunciador escreve um poema erótico de um amor concreto, que se realiza.
5. O poema de Eduardo White nos remete aos mais diferentes aspectos da natureza humana, como a alegria, a dor, o paladar, a visão e o sagrado. Identifique os termos que, no poema, apontam para cada uma dessas remissões. (Obs.: um termo pode aparecer em mais de uma classificação). Alegria
Dor
Paladar
Visão
Sagrado 6. O que o poema revela sobre a personalidade do eu-lírico? Justifique, comprovando suas afirmações com versos do poema.
“MANDE LER O VOSSO DESTINO” — CONVENCER OU PERSUADIR? O folheto publicitário da abertura deste capítulo faz largo uso do modo verbal imperativo. No nono capítulo do livro 1 desta coleção, pudemos estudar que os verbos variam de acordo com o número, a pessoa, o modo, o tempo e a voz. Definimos o modo imperativo como aquele que expressa um pedido, uma ordem, um conselho ou um convite. É o que se pode verificar em frases como “Leia com atenção” e “Mande ler o vosso destino” que iniciam o folheto anunciando as consultas com Dona Juracy. O modo imperativo apenas apresenta um tempo verbal, o presente, que pode ser afirmativo ou negativo. MODO IMPERATIVO
A língua afrodisíaca
presente
{
afirmativo negativo 73
Formação do imperativo A base de formação do imperativo é o presente do subjuntivo. Apenas a segunda pessoa do singular e a segunda pessoa do plural são retiradas do presente do indicativo, suprimindo-se o –s final. Não se conjuga a primeira pessoa do singular no modo imperativo.
Presente do indicativo
Imperativo afirmativo
Imperativo negativo
Presente do subjuntivo
mando
–
–
mande
mandas
manda
não mandes
mandes
manda
mande
não mande
mande
mandamos
mandemos
não mandemos
mandemos
mandais
mandai
não mandeis
mandeis
mandam
mandem
não mandem
mandem
Observe que: I. para os verbos da segunda e terceira conjugações, as desinências do presente do subjuntivo são -a, -as, -a, -amos, -ais, -am. II. há diferenças entre as segundas pessoas do imperativo afirmativo e as segundas pessoas do imperativo negativo. A passagem de uma frase do imperativo afirmativo para o negativo, ou vice-versa, exige mais do que simplesmente acrescentar ou retirar um “não”. III. nos registros coloquiais da linguagem, frequentemente, empregam-se as formas verbais de segunda pessoa do singular do imperativo afirmativo com o pronome você. Como em “Ei, você, vem aqui!”. No registro formal da linguagem, podemos uniformizar o tratamento na segunda pessoa (“Ei, tu, vem aqui!), o que é raro no registro brasileiro, sendo mais comum em Portugal e na África, ou na terceira pessoa (“Ei, você, venha aqui!”). 7. Passe para a forma negativa: a) b) c) d) e) f)
Lê-me – Leia-me – Dá-me – Dê-me – Conta o que sabes – Conte o que sabe –
8. Sublinhe as formas verbais no imperativo presentes no folheto publicitário de Dona Juracy, que inicia o capítulo. 9. Que efeito causa sobre o texto o uso frequente do imperativo?
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Capítulo 2
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Assim temos:
Entre os efeitos obtidos pelo uso da linguagem, encontramos os de convencer e de persuadir. Convencer se dirige unicamente à razão, por meio do raciocínio lógico e de provas objetivas daquilo de que se está tentando convencer. Por sua vez, persuadir é tentar atingir a vontade dos interlocutores, principalmente os seus sentimentos. O importante, ao persuadir, é o interlocutor agir de acordo com os desejos do enunciador. O folheto publicitário de Dona Juracy é um exemplo claro de persuasão: a imagem que fazemos do locutor, ao ler o texto, é a de alguém que possui poderes superiores aos dos outros humanos e que está disposto a ajudar-nos. Além disso, outras pessoas importantes estão fazendo o mesmo, por que não o faríamos também? É como se, por consultar Dona Juracy, nos tornássemos tão importantes como os “artistas das rádios e da televisão”. Mas são tais pessoas as mais indicadas para servirem de modelo para solucionar problemas da vida e do coração? Repare também que não há provas de nada do que se afirma sobre a suposta paranormalidade da Dona Juracy. Nesse caso, o imperativo verbal funciona como ordens dadas por esse locutor com poderes espe ciais e que deseja nos socorrer. As ordens são, em quase sua totalidade, afirmativas, reforçando assim, de maneira positiva o processo de persuasão. 10. De seu ponto de vista, a linguagem publicitária, de uma forma geral, procura convencer ou persuadir os interlocutores?
A linguagem imperativa categórica é característica do discurso publicitário, desvendando-nos a sua principal intenção: incentivar o consumo, criando necessidades no interlocutor. Em outras ocasiões, a forma imperativa não está claramente presente, visto que outras formas verbais têm a força do imperativo, sendo, contudo, mais suaves. São formas alternativas do imperativo: • O presente do indicativo: “Você compra mais barato e faz economia!” (em vez de “Compre mais barato e faça economia!”). • O infinitivo impessoal: “Passar bem!” (ao invés de “Passe bem!”) ou “Proibido fumar!” (em vez de “Não fume!”). • O futuro do presente do indicativo: “Não matarás” (em vez de “Não mates”). O processo de persuasão da publicidade procura, em um primeiro momento, atrair a atenção dos interlocutores. Para isso, recorre-se ao efeito surpresa, apelando-se ao humor, à curiosidade, à necessidade de um conselho, etc. Procura-se despertar o interesse, a fim de estimular o desejo. O importante, nesse caso, é estimular a imaginação e apelar para a emoção do consumidor. O objetivo final é a ação. Procurando induzir o consumidor à ação, utilizam-se formas imperativas (o imperativo ou as alternativas que já apresentamos). Os provérbios também procuram induzir o interlocutor a uma ação. De uma maneira diferente da publicidade, os provérbios procuram não vender um produto específico, mas um conselho ou um ponto de vista sobre a vida. Lembre-se de que uma das funções do imperativo é a de aconselhar. Assim, não é de espantar que encontremos o modo verbal do imperativo em vários provérbios, como “Não deixe para amanhã o que pode fazer hoje”. A língua afrodisíaca
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Não deixe para amanhã o que pode fazer hoje.
Em outros momentos, no entanto, o imperativo aparece implícito, transformado em uma imagem ou comparação. Vejamos.
Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura.
Os provérbios apresentam um caráter intertextual, pois, ao usarmos um provérbio, estamos incorporando o discurso do outro. Seu sentido é metafórico, e é utilizado em situações que exigem persistência. Há, no provérbio, uma comparação implícita que revela a intenção persuasiva. Água mole – a ação do interlocutor; Pedra dura – obstáculos a vencer; Bater – insistir em superar os obstáculos. 76
Capítulo 2
los.
Assim como, a água mole em pedra dura tanto bate até que fura, insista em superar seus obstácu-
Observe o uso da expressão “insista”. Trata-se de um imperativo, de uma ordem que aparece escondida, implícita no provérbio. 11. Explique a ordem implícita nos provérbios a seguir. a) A esperança é a última que morre.
b) A união faz a força.
c) Cão que late não morde.
12. A seguir, encontram-se parte de provérbios comuns no Brasil. Complete-os, modificando o seu conteúdo original. Para isso, torne o interlocutor sujeito das orações, utilizando formas alternativas de imperativo. O seu objetivo é causar o efeito surpresa ou de humor em seu interlocutor. Ex.: Faça o que eu digo, seja um bom amigo! a)
, bonito lhe parece.
b) De grão em grão, c) Se correr, o bicho pega, d)
, do que nunca.
13. Pesquise, junto a seus familiares, em livros ou em páginas da Internet, provérbios que contenham as seguintes ordens implícitas: a) Se você teve uma experiência negativa, tenha medo de repeti-la.
b) Aceite, sem contestar, os presentes que lhe dão.
c) Empenhe-se por algo e desfrute dos resultados de seus esforços.
O provérbio na canção: um bom conselho A palavra portuguesa canção indica toda poesia que se relaciona com a música e o canto. A canção apenas se torna objeto da arte literária quando a letra do poema ganha valor próprio, desvinculandose da pauta musical. Nesse caso, a poesia ganha valor estético não por ser cantada, mas por ser lida. A canção-poema a seguir é uma composição de Chico Buarque e estabelece um produtivo diálogo com conhecidos provérbios. A língua afrodisíaca
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Foto: Chico Buarque/Ao Vivo Le Zenith Paris
Bom conselho
Venha, meu amigo Deixe esse regaço Brinque com meu fogo Venha se queimar Faça como eu digo Faça como eu faço Aja duas vezes, antes de pensar Corro atrás do tempo Vim de não sei onde Devagar é que não se vai longe Eu semeio o vento Na minha cidade Vou pra rua e bebo a tempestade” Chico Buarque
Francisco (CHICO) BUARQUE de Holanda (1944- ...) – Nasceu no Rio de Janeiro (RJ). De família de intelectuais, o cantor e compositor Chico Buarque passou da fama de “menino bonzinho” a um dos maiores nomes da MPB, com letras cada vez mais contestatórias da ditadura dominante no Brasil, nas décadas de 1960, 1970 e 1980. No dia 3 de janeiro de 1969, ele e Marieta Severo, sua esposa, pressionados pelo governo ditatorial, viajaram para a Itália. Antes mesmo dessa sua viagem, no dia 27 de dezembro de 68, Caetano Veloso e Gilberto Gil haviam sido detidos. Com o fim da ditadura, Chico Buarque continua compondo e cantando o amor e a sociedade. Além disso, escreveu romances como Estorvo, Benjamim e Budapeste e Leite derramado, e peças de teatro, por exemplo, Ópera do malandro, obras encontradas facilmente em qualquer livraria.
14. No oitavo capítulo do volume 1 desta coleção, estudamos como fazer a análise de um poema. Seguindo as orientações dadas nesse capítulo, analise a canção-poema de Chico Buarque. a) Que sensações e impressões o texto lhe desperta?
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“Ouça um bom conselho Que eu lhe dou de graça Inútil dormir que a dor não passa Espere sentado Ou você se cansa Está provado, quem espera nunca alcança
b) Identifique e escreva a forma original dos provérbios modificados por Chico Buarque.
c) Faça uma paráfrase do sentido do texto, sem preocupações com a métrica ou com a rima.
d) Numere as linhas do texto, de cinco em cinco, para facilitar a localização de informações. e) Examine a canção-poema de Chico Buarque, composta em 1972, verso por verso, procurando comprovar o motivo das sensações identificadas e como o poeta conseguiu transmitir eficazmente o tema proposto. Sempre que possível, procure relacionar essas conclusões com aspectos da época em que a canção foi escrita. É importante que você releia os dados biográficos de Chico Buarque. Preste atenção ao uso dos imperativos e dos provérbios. Escreva as conclusões em seu caderno, com o título Análise de Bom Conselho de Chico Buarque. As receitas culinárias também fazem uso do verbo no imperativo. Do livro da escritora chilena Isabel Allende, Afrodite: contos, receitas e outros afrodisíacos, separamos esta receita afrodisíaca para você...
Talharins com alcachofra “Este prato pode ser preparado em 10 minutos, é recomendo para recuperar as forças do corpo dos amantes cansados e famintos, porque está repleto de ingredientes afrodisíacos. Também pode ser comido como salada no dia seguinte.
Ingredientes ¼ kg de talharins 1 xícara de alcachofras no azeite (picadas) 1 frasco pequeno de pimentão vermelho 1 queijo de cabra suave (60 g) 6 azeitonas grandes (pretas ou verdes) ¼ xícara de pinhões (opcional) 2 tomates grandes maduros 1/3 xícara de azeite de oliva 2 colheres de manjericão fresco picado fino Sal e pimenta-do-reino Alcachofras
A língua afrodisíaca
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Preparo Esquente o azeite, o caldo das alcachofras e dos pimentões em uma frigideira pequena. Também esquente os pinhões, caso for usá-los. Cozinhe os talharins al dente, enquanto pica o tomate e as azeitonas. Misture com as alcachofras picadas. Deixe escorrer a água da massa e, na mesma panela quente, misture todos os ingredientes, inclusive o queijo de cabra esmigalhado e o manjericão. Tempere com sal e pimenta.”
ISABEL ALLENDE (1942- ...) – Nasceu em Lima, capital do Peru, e viveu no Chile até o golpe militar do general Pinochet. Com o atentado político, que matou seu tio, presidente eleito do Chile, sua família buscou asilo na Venezuela. Esse incidente fez com que deixasse a carreira de jornalismo e se dedicasse a escrever romances, tornando-se uma das mais importantes romancistas latinoamericanas, mesmo após o término da ditadura chilena.
15. Identifique os verbos no imperativo na receita culinária. 16. A seguinte pergunta foi respondida pela aluna Carla, em um exercício feito em sala de aula.
Qual a função do imperativo na receita culinária?
A função do imperativo na receita culinária de Isabel Allende é dar ordens ao leitor do que ele deve fazer.
Na correção em sala de aula, a professora disse a Carla que a resposta estava muito vaga, faltando-lhe maior clareza. Melhore a resposta.
17. Os imperativos nas receitas culinárias podem ser substituídos por outra forma verbal. Qual? Como ficariam as frases: “Esquente o azeite, o caldo das alcachofras e dos pimentões em uma frigideira pequena. Também esquente os pinhões, caso for usá-los”?
18. Em duplas, lembrem-se de outros textos em que o imperativo é usado. Escrevam dois exemplos.
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Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
ALLENDE, Isabel. Afrodite: contos, receitas e outros afrodisíacos. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2002.
AS MARGENS DA LITERATURA Aquilo que ocorre ao nosso redor é rotulado de bom ou ruim, correto ou incorreto, conforme as ideologias presentes no conjunto de valores de um determinado grupo social. Uma sociedade é composta por diferentes grupos sociais, como as mulheres, os adolescentes, os executivos, os rappers, etc. Uma pessoa pode pertencer a diferentes grupos sociais ao mesmo tempo. Por exemplo, ser, ao mesmo tempo, mulher, executiva, cristã, mãe, aluna, etc. Além disso, as ideologias que circulam nesses grupos sociais muitas vezes se opõem entre si. Enquanto os valores cristãos defendem a vida, condenando o aborto, a ideologia presente no mundo capitalista das grandes empresas defende que um bom emprego deve ser mantido a qualquer custo, o que pode incluir até mesmo o aborto, se for necessário para a carreira profissional de uma executiva. Uma mulher cristã executiva de uma empresa que defenda a carreira a qualquer preço terá de fazer escolhas em diversos momentos de sua vida. Além disso, tal como a sociedade está organizada, há ideologias que dominam outras. Muitas vezes, as ideologias dominantes são o resultado da evolução do pensamento humano social e representam um esclarecimento do homem diante do mundo. Por exemplo, há uns 200 anos, no Brasil, o negro não era considerado nem sequer brasileiro, e a escravidão era vista como algo normal e correto. Hoje, ainda que algumas pessoas defendam visões ideologicamente racistas, a maioria da sociedade, pelo menos em seus discursos, defende a igualdade racial. No entanto, às vezes, as ideologias dominantes são opressoras. Numa sociedade consumista como esta em que vivemos, a ideologia que valoriza mais o ter do que o ser, transforma as pessoas em seres superficiais e gananciosos. O resultado não é dos melhores. Todos nós, no decurso de nossa vida, vamos, pelas nossas ações e palavras, posicionando-nos frente às ideologias dominantes na sociedade. Assim como nós, a literatura também se posiciona ideologicamente. Leia com atenção o texto a seguir.
Balada de Santa Maria Egipcíaca Santa Maria Egipcíaca seguia Em peregrinação à terra do Senhor. Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir. Santa Maria Egipcíaca chegou À beira de um grande rio. Era tão longe a outra margem! E estava junto à ribanceira, Num barco, Um homem de olhar duro. Santa Maria Egipcíaca rogou: – Leva-me ao outro lado. Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe. O homem duro fitou-a sem dó. Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir. – Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe. Leva-me ao outro lado. A língua afrodisíaca
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O homem duro escarneceu: – Não tens dinheiro, Mulher, mas tens o teu corpo. Dá-me o teu corpo, e vou levar-te. E fez um gesto. E a santa sorriu, Na graça divina, ao gesto que ele fez.
BANDEIRA, Manuel. In: Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1990.
MANUEL Carneiro de Sousa BANDEIRA Filho (1886-1968) – Nasceu no Recife. Fez seus estudos secundários no Colégio Pedro II, Rio de Janeiro, de 1897 a 1902, bacharelando-se em Letras. Em 1903, Bandeira matriculou-se na Escola Politécnica de São Paulo, pretendendo tornar-se engenheiro-arquiteto. A tuberculose diagnosticada no ano seguinte fez com que abandonasse os estudos, passando a viver debaixo de um rígido programa de cuidados com a saúde. Em 1912, partiu para a Suíça, em busca de tratamento. Regressou no ano seguinte, pois estava começando a Primeira Guerra Mundial. Em 1917, publicou seu primeiro livro: A cinza das horas. Leitor incansável, principalmente de poesia, integrou-se ao movimento modernista de 1922. Além de poeta, cronista e ensaísta, foi também professor de literatura e tradutor.
Manuel Bandeira
19. Narre, com suas palavras, o enredo da balada.
Lendas medievais narram que, por volta do século IV d.C., uma mulher, prostituta em Alexandria, no Egito, foi por capricho parar em Jerusalém. Pagou a viagem vendendo seu corpo aos marinheiros. Na frente de uma igreja, já em Jerusalém, viu a imagem da Virgem Maria e começou a chorar, arrependida de seus pecados. Entrou no templo, onde sentiu a inspiração de ir ao deserto em que Cristo estivera, no outro lado do rio Jordão. Algumas versões da lenda afirmam que a santa, para chegar à outra margem do rio e conhecer mais de perto a vida de Cristo, teria pago com o seu próprio corpo ao barqueiro. Depois de confessada, retirou-se para um lugar isolado no deserto, onde viveu em penitência o resto de seus dias. Perto de sua morte, 47 anos depois de chegar ao deserto, foi visitada por São Zózimo que andava casualmente por ali à procura de algum religioso em retiro espiritual. Quando encontrou Maria, Zózimo ouviu sua história e combinaram outra visita na qual ele lhe deu o sacramento da Eucaristia. Na terceira visita, encontrou-a morta. Zózimo, devido à idade, não conseguia enterrá-la. Foi quando apareceu um leão, que começou logo a cavar a sepultura em que a santa seria enterrada. 82
Capítulo 2
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
Santa Maria Egipcíaca despiu O manto, e entregou ao barqueiro A santidade da sua nudez.
Mas o que é uma lenda? A professora Nelly Novaes Coelho explica:
“Lenda (do latim legenda, legere = ler): narrativa anônima de matéria supostamente heroica ou verdadeira, guardada pela tradição (oral ou escrita). Nela, o real e o imaginário mesclam-se de tal maneira que é impossível discernir onde acaba o verdadeiro e começa a fantasia. Todos os folclores estão repletos de lendas, que tentam ‘explicar’ de maneira mágica os mistérios da vida e do Universo.” COELHO, Nelly N. O conto de fadas. São Paulo: Ática, 1987.
20. Que “mistério da vida e do Universo” tenta explicar de maneira mágica a lenda de Santa Maria Egipcíaca?
Observe, no entanto, que Bandeira altera a lenda de Santa Maria Egipcíaca, transformando a passagem em um episódio insólito. Ela ia em peregrinação à “terra do Senhor”. O dia termina. Entre as margens do dia e da noite, está a santa diante de um rio que corta o seu caminho. Seu desejo está além do rio, mas para isso ela deve enfrentar um barqueiro. Por duas vezes, suplica ao barqueiro que a leve à outra margem, tentando compensá-lo com a bênção divina. Ele tem um “olhar duro”. Vê, nela, não a caridade, mas a outra margem de seu desejo sexual. A travessia da santa somente se dará se ele primeiro atravessar o seu corpo no corpo dela.
São Zózimo encontra-se com Santa Maria Egipcíaca.
21. Que reação da Santa deveríamos esperar quanto à proposta indecente do barqueiro?
A língua afrodisíaca
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Por que o poema se intitula Balada?
o lírico, pois expressa a profundidade dos sentimentos de um eu;
o narrativo, pois desenvolve um enredo;
o dramático, pela constante presença dos diálogos que revelam a narrativa.
O texto de Bandeira é corretamente chamado de balada porque, além de seu caráter lírico, apresenta um enredo, contando um episódio da lenda de Santa Maria Egipcíaca, bem como a constante recorrência aos diálogos, que nos permitem conhecer o conteúdo do episódio.
22. De acordo com o poema, qual a reação da Santa?
Há textos literários que questionam as ideologias dominantes na sociedade, alguns chegam até mesmo a questionar os valores éticos que são o alicerce da vida social de uma determinada comunidade. É o caso do poema de Bandeira, que questiona certa moralidade cristã, tal como defendida pela ideologia católica. Nesse poema,
“[a] santa sorri e, envolta numa graça divina, desarma o gesto duro do barqueiro. Começa a despir-se. E assim se despindo entrega ao barqueiro a ‘santidade de sua nudez’.” SANT’ANNA, Affonso Romano de. O canibalismo amoroso. São Paulo: Rocco, 1993.
23. Em relação à visão católica, como se posiciona Manuel Bandeira em sua balada?
A expressão “a santidade de sua nudez”, utilizada por Affonso Romano de Sant´Anna, aparece como último verso do poema. O último verso de um poema é, usualmente, uma posição estratégica de destaque dentro do texto. 24. Discuta oralmente, em classe, o que significa a expressão utilizada por Bandeira “a santidade de sua nudez”, posta pelo poeta nessa posição de destaque. 84
Capítulo 2
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Na Idade Média, a balada era uma forma poemática para ser cantada com danças, na época das colheitas. Chamada de “bailada” em Portugal, era executada por um grupo de bailarinos: uns entoavam as estrofes e outros, o refrão. No final da Idade Média, a balada começou a ser cultivada pelos poetas e ganhou o estatuto literário. O que caracteriza a balada literária é a presença, em um único texto, de algumas características dos três gêneros literários:
Esse verso, no poema de Bandeira, é intrigante. O professor de literatura Salvatore D’Onofrio o explica assim:
“O verso final, ‘a santidade de sua nudez’, contém o sentido colocado no poema todo: nudez e santidade não são elementos opostos, antagônicos. Se a nudez é natural e a natureza é criação de Deus, logo a nudez é divina, santa. O pecado não está no corpo, mas na mente; não no ato, mas na intenção. A protagonista do poema, ao entregar-se sexualmente ao barqueiro, não está cometendo um pecado, mas uma obra de caridade, satisfazendo o desejo de um homem triste e abrutalhado pela solidão em que vivia.” D´ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto 2: teoria da lírica e do drama. São Paulo: Ática, 2003.
25. Compare a sua interpretação da Balada de Santa Maria Egipcíaca com a explicação do professor
Salvatore D’Onofrio. Discuta em classe as semelhanças e diferenças encontradas. 26. A Balada de Santa Maria Egipcíaca encontra-se no livro Ritmo dissoluto. Recorra ao dicionário para pesquisar o sentido dos termos “ritmo” e “dissoluto”. A seguir relacione com o poema estudado os significados encontrados.
27. A atitude de Manuel Bandeira, questionando a moral, mas não o Cristianismo reside na história da
santa ou na forma como o escritor a vê? Explique. Leia agora uma outra composição que também toma a história de Santa Maria Egipcíaca como base: (...)
VOZ DESCRITIVA Fala E Maria prostrou-se com o rosto na poeira, e cheia de lágrimas respondia desta maneira: MARIA EGIPCÍACA Fala Senhor, Senhor, Senhor, eu sou Maria, aquela do porto de Alexandria, que desde menina vivo dedicada a amar quem passa pela cidade. Como posso cantar para a Eternidade, se a minha vida é só para breves instantes? Senhor, eu não sou romeira nem peregrina, eu sou a que fugiu de casa, quando era menina, a que era tão leve, tão bela, tão graciosa que nem a palmeira, que nem a brisa, que nem a rosa. A língua afrodisíaca
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Não posso mais levantar meu rosto para o rosto daqueles que deixei desesperados de desgosto, como o levantarei para a Tua Face, que é divina? Senhor, eu não posso dar um passo para a frente! Sinto nos pés a força de uma severa corrente e não consigo acompanhar toda essa gente que canta seus hinos diante de Ti ajoelhada... Mas eu amei quanto pude, amei por amar mais nada. Deixe-me ir para trás, ao menos, para o deserto, aprender o que está errado e o que está certo, e voltarei, talvez, se conseguir um dia chegar perto de Ti, Senhor, e iluminada!
VOZ MÍSTICA Canta Vai para o deserto que escolheste, penitente, e abre teu coração à luz Onipotente que desce em silêncio dos quatro horizontes. Banha-te nessas douradas fontes, e aquele grande fogo que consumia tua vida em Alexandria, verás cair de teu corpo como um vestido encarnado, e estarás para sempre perfeita e livre do vil pecado! MEIRELES, Cecília. Oratório de Santa Maria Egipcíaca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
CECÍLIA MEIRELES (1901-1964) – Nasceu no Rio de Janeiro, três meses depois da morte do pai, e perdeu a mãe antes dos três anos. Essas experiências com a morte provocaram-lhe profundas impressões, como afirmou numa entrevista para a revista Manchete: “Essa e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a morte que docemente aprendi essas relações entre o efêmero e o eterno que, para outros, constituem aprendizagem dolorosa e, por vezes, cheia de violência. Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou o sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade”.
Esse poema coral ou oratório foi composto por Cecília Meireles em dezembro de 1957 e musicado por Ernst Widmer, em 1959. O livro, no entanto, somente foi publicado em 1996. A poeta narra, com grande lirismo, toda a vida de Santa Maria Egipcíaca. Cecília Meireles conhecia, como afirma no prefácio da obra, pelo menos duas versões das lendas envolvendo a santa. Pela primeira versão, a santa pagou “a passagem com o seu corpo, movida pelo ardente desejo de ir a Jerusalém”, para conhecer a cidade santa. Pela segunda, a viagem tinha “o fim de tentar com a sua sedução os peregrinos que a Jerusalém se dirigiam para as festas da Santa Cruz”, ou seja, tratava-se apenas de uma estratégia para ganhar dinheiro com a prostituição. Essa segunda versão é a escolhida por Cecília para a sua obra: Maria Egipcíaca vai a Jerusalém e lá se converte ao cristianismo. 86
Capítulo 2
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Todo escritor, mesmo ao contar uma ideia que não é dele, faz escolhas e recortes que revelam seus valores e modos de ver o mundo. O que impressiona a escritora é o problema da santidade de Maria Egipcíaca: “Seu problema é ‘interior’, seu ‘martírio’, seu ‘milagre’ como sua glória decorrem nesse templo oculto da alma, esse lugar oculto”. Assim, o narrador salta da conversão da pecadora para o fim de sua vida, já no deserto do Jordão. 28. De acordo com a lenda de Santa Maria Egipcíaca, o trecho selecionado do Oratório ocorre em que espaço geográfico? a) No interior do Egito. b) Na cidade de Alexandria. c) Em alto mar. d) Em Jerusalém. e) No deserto do Jordão. 29. Justifique a sua escolha na questão anterior.
30. Sobre a obra, Cecília Meireles ainda afirma no prefácio: “Foi dentro dessa perspectiva, pois, que o poema se formou. Se ele por si não o deixa claro, a autora gostaria de acentuar aqui a sua intenção: o processo de transformação da pecadora. A clareza da consciência no Mal e no Bem”. a) Você consegue verificar essa intenção no trecho selecionado do Oratório? Explique.
b) Compare o poema com as palavras de Cecília Meireles transcritas no quadro biográfico. Que semelhanças encontrou?
c) Existiria essa mesma intenção de despertar no leitor a consciência do processo de transformação da pecadora na balada de Manuel Bandeira? Explique.
O texto de Cecília Meireles defende as ideologias dominantes presentes na Igreja Católica. Nesse sentido, a versão da lenda de Cecília afasta-se daquela de Manuel Bandeira. A língua afrodisíaca
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O poeta no seu tempo Não é apenas no que respeita à moral e às ideologias sexuais que a literatura toma uma posição favorável ou contrária. Observe o poema.
Nosso tempo (VIII) O poeta Declina de toda responsabilidade Na marcha do mundo capitalista E com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas Promete ajudar A destruí-lo Como uma pedreira, uma floresta, Um verme. ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 1996.
CARLOS DRUMMOND de Andrade (1902-1987) – A rosa do povo, livro no qual encontramos o poema que lemos, foi publicado em 1945, no final da Segunda Guerra Mundial e nos momentos finais da ditadura Vargas. Muitos consideram-no a melhor obra de Carlos Drummond de Andrade. Trata-se de um livro muito vigoroso que, em certos momentos, revela um eu-lírico idealista e lutador mas, em outros, manifesta uma certa desilusão com a sociedade humana. A rosa do povo põe em debate uma questão preocupante: a situação do artista no mundo e diante dos problemas políticos e sociais do seu tempo. Todo texto literário revela muito sobre as ideologias dominantes na época de sua escrita. A favor ou contra, o enunciador se posiciona em relação ao mundo onde vive. 31. O que o poema de Drummond revela sobre o mundo em que vive o eu-lírico?
32. Que relação podemos estabelecer entre o poema, o título do livro em que se encontra e o momento histórico em que a obra foi lançada?
Conforme as relações do homem com o mundo mudam, instauram-se novas ideologias e crenças. Assim, as transformações históricas do homem na sociedade significam também transformações na literatura. Muitas vezes, um texto que apresentava, em determinado momento, uma postura ideológica questionadora passa com o tempo a representar o modo de pensar dominante na sociedade. Isso também se aplica às formas, normas e estilos próprios dominantes em determinada época da história. 88
Capítulo 2
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Chamamos de escolas ou períodos literários as divisões feitas na história da literatura. Essas divisões reúnem conjuntos de obras, delimitados no tempo e no espaço, em que se defendem um sistema de regras do que é considerado arte e um complexo de ideias quanto à maneira de se ver o mundo. Os períodos literários surgem, normalmente, a partir de questionamentos ideológicos feitos por alguns escritores em relação à época em que vivem. Aos poucos essas vozes de oposição ganham força dentro da sociedade, e o que era exceção passa a ser regra. É comum, nesse momento, que apareçam outros escritores com novos questionamentos e por aí vai, em um contínuo movimento. Esse movimento, no entanto, é lento e gradativo. Inicialmente há um questionamento da realidade estabelecida. Depois esse novo modo de sentir o mundo expresso por um sistema de regras literárias sobre o que é considerado arte literária amadurece. Tal sistema de regras muitas vezes opõe-se ao código literário e ideológico anterior. Já no final, essas novas formas literárias chegam ao seu auge e repetem-se, em muitos casos, perdendo a sua beleza original. É o fim de um período literário e o início de outro. As datas, muitas vezes usadas quando se estuda a história desses períodos literários, servem apenas para sinalizar uma mudança que se processa aos poucos. Os principais períodos literários da literatura ocidental, também chamados de estilos de época ou estéticas, desenvolvidos a partir da herança greco-latina, são: Idade Média; Renascimento; Barroco; Arcadismo; Romantismo; Realismo e Naturalismo; Simbolismo; Modernismo. 33. Afirmamos que “Os períodos literários surgem, normalmente, a partir de questionamentos ideológicos feitos por alguns escritores em relação à época em que vivem”. Lembre-se das últimas obras literárias que leu. Qual a ideologia e o modo de ver o mundo presentes nelas? Explique.
“VOCÊ NÃO ENTENDE NADA”: IDEOLOGIA, EFEITOS DE SENTIDO E PRONOMES Não apenas a literatura, mas todas as expressões da arte, como a música, desenvolvem posturas ideológicas diante da realidade de seu tempo. Ouça, com atenção, a letra de música de Caetano Veloso e procure compreender a posição ideológica do enunciador frente à sociedade. A língua afrodisíaca
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Você não entende nada Quando eu chego em casa nada me consola Você está sempre aflita Lágrimas nos olhos, de cortar cebola Você é tão bonita Você traz a Coca-Cola eu tomo Você bota a mesa, eu como, eu como Eu como, eu como, eu como Você não está entendendo Quase nada do que eu digo Eu quero ir-me embora Eu quero é dar o fora E quero que você venha comigo E quero que você venha comigo Eu me sento, eu fumo, eu como, eu não aguento Você está tão curtida Eu quero tocar fogo nesse apartamento Você não acredita Traz meu café com suíta eu tomo Bota a sobremesa, eu como, eu como Eu como, eu como, eu como Você Tem que saber que eu quero correr mundo Correr perigo Eu quero ir-me embora Eu quero dar o fora E quero que você venha comigo. Caetano Veloso
CAETANO Emanuel Viana Telles VELOSO (1942-...) – Nasceu em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano. Em 1960, sua família mudou-se para Salvador. Ingressou na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia, em 1963. Tornou-se amigo de Gal Costa, Gilberto Gil e Tom Zé. Em 1964, realizou o show Nós por exemplo, com Gil, Gal Costa,Tom Zé e sua irmã Maria Bethânia. Foi ao Rio de Janeiro, em outubro de 1965, acompanhando sua irmã. Na década de 1960, participou de vários festivais de MPB (música popular brasileira). Liderou o Movimento Tropicalismo, junto com Gil, Gal Costa, Tom Zé e outros baianos. Por motivos políticos, foi exilado em 1969, indo viver em Londres. Voltou ao Brasil, no começo de 1972. Além de compositor e cantor, Caetano Veloso dirigiu o longa-metragem O cinema falado e publicou o livro Verdade tropical.
34. Qual o modo de ver o mundo do enunciador da letra da música no que se refere ao cotidiano e ao casamento? Ele se conforma com as ideologias dominantes na sociedade? Como deixa clara a sua posição?
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O enunciador de Você não entende nada dirige-se à sua mulher, usando o pronome de tratamento “você”. A norma culta da língua portuguesa, no entanto, prescreve que, ao conjugarmos um tempo verbal, devemos usar os pronomes pessoais. Exemplo: Eu entendo Tu entendes Ele entende Nós entendemos Vós entendeis Eles entendem Tradicionalmente, associam-se essas variações da seguinte maneira:
Singular
Plural
1ª pessoa
eu
entendo
2ª pessoa
tu
entendes
3ª pessoa
ele
entende
1ª pessoa
nós
entendemos
2ª pessoa
vós
entendeis
3ª pessoa
eles
entendem
35. Como ficaria o título da letra de música se substituíssemos você por tu?
Em Você não entende nada, a forma “entende” é considerada pela gramática tradicional, como terceira pessoa do singular, embora se refira ao interlocutor. As expressões “você”, “o senhor”, “a senhora” e outras semelhantes são chamadas de pronomes de tratamento. Embora designem o interlocutor, como o faz o tu, não levam o verbo para a segunda pessoa, mas para a terceira. No século XIII, os reis de Portugal passaram a exigir um tratamento exclusivo, de acordo com a sua autoridade. Assim surgiu a expressão Vossa Mercê para referir-se aos reis. A expressão, no entanto, popularizou-se e passou por diversas transformações: Vossamecê, Vosmecê, Vassuncê, voncê, vancê e finalmente o nosso você. Essas transformações não foram apenas fônicas, mas também semânticas. O excessivo formalismo deu vez, no Brasil, a um tratamento informal que substituiu o uso do tu. Dessa maneira, embora o pronome de tratamento você leve o verbo para a terceira pessoa, ele apresenta as funções de segunda pessoa. O uso constante faz com que, informalmente, o você ainda continue evoluindo para o cê ou para o “vc” da Internet. Em Portugal, ainda se conserva na expressão você uma certa carga formal, ainda que não tão grande quanto na Idade Média. Para o tratamento informal, o português europeu prefere ainda usar o tu.
A língua afrodisíaca
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36. No trecho a seguir, o enunciador dirige-se a uma mulher, usando a segunda pessoa do singular.
Eu não sou o homem que tu procuras, mas desejava ver-te ou, quando menos, possuir o teu retrato. Machado de Assis
Se o pronome tu fosse substituído por você, a transcrição correta da oração seria:
b) Eu não sou o homem que você procura, mas desejava ver-vos ou, quando menos, possuir o vosso retrato. c) Eu não sou o homem que você procura, mas desejava ver-la ou, quando menos, possuir o seu retrato. d) Eu não sou o homem que você procura, mas desejava vê-la ou, quando menos, possuir o seu retrato. e) Eu não sou o homem que você procura, mas desejava ver-vos ou, quando menos, possuir o seu retrato. Observe: Quando eu chego em casa nada me consola Você está sempre aflita. O modo da organização enunciativa do texto estabelece o tipo de relação que o enunciador manterá com o seu coenunciador, com aquilo de que trata em seu texto, com a realidade exterior ao texto e com as ideologias dominantes na sociedade. O modo como se organiza enunciativamente um texto provoca efeitos de sentido diferentes sobre o leitor. Assim, a escolha da primeira pessoa, principalmente do singular (eu), tende a dar ao texto uma impressão de intimidade, de subjetividade, pois o leitor associa o eu à visão pessoal do enunciador. O enunciador da letra de música ao afirmar “Quando eu chego em casa...” revela estar disposto a apresentar suas emoções no texto, principalmente porque poderia ter ocultado o termo eu: “Quando chego em casa”. O uso da primeira pessoa, reforçado pela presença do pronome eu, permite ao enunciador revelar suas impressões afetivas, seus sentimentos. Alguns textos oficiais, como a procuração, também exigem o uso da primeira pessoa, pois o enunciador assume a decisão tomada de delegar a alguém poderes de representação pessoal: “Eu, Carla Augusta Martins de Andrade, nomeio meu procurador...” O texto enunciado em segunda pessoa (tu, você) chama o leitor à interação, pois essa segunda pessoa será assumida pelo leitor. Desde o título, “Você não entende nada”, o enunciador revela a intenção de envolver o seu interlocutor na discussão, mais ainda, nas ações que resultam das impressões pessoais do enunciador: “E quero que você venha comigo”. 37. Leia com atenção o seguinte excerto.
“O primeiro passo a dar é tornar-se consciente de que o amor é uma arte, assim como viver é uma arte; se quisermos aprender como se ama, devemos proceder do mesmo modo por que agiríamos se quiséssemos aprender qualquer outra arte, seja a música, a pintura, a carpintaria, ou a arte da medicina ou da engenharia.” FROMM, Erich. A arte de amar. Belo Horizonte: Itatiaia, 1964.
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a) Eu não sou o homem que você procura, mas desejava vê-la ou, quando menos, possuir o teu retrato.
a) Ao utilizar-se da primeira pessoa do plural (nós) em “se quisermos aprender como se ama”, o que revela o enunciador sobre a sua relação com o leitor?
b) Transcreva o excerto acima, usando a segunda pessoa do singular (você ou tu).
c) Que diferenças de sentido consegue encontrar?
A enunciação na primeira pessoa do plural pode revelar alguns aspectos interessantes da estratégia de elaboração do texto. O uso do nós (primeira pessoa do plural) faz-nos pensar ao mesmo tempo no eu que enuncia e no você que ocupa o papel de leitor. Dessa forma, seu uso por parte do enunciador, ao mesmo tempo que chama o leitor à interação, constrói um vínculo de intimidade com o mesmo, de certa forma, unindo os efeitos de sentido obtidos pela primeira e pela segunda pessoas, mas de forma menos intensa. Por isso, muitas vezes ouvem-se alguns professores dizerem frases do tipo: “Zezinho, nós temos de estudar mais...”, quando, na verdade, o professor quer dizer algo como: “Zezinho, você deve estudar mais...”. O uso da primeira pessoa do plural também permite que o enunciador do texto apareça como uma voz mais modesta, menos centrado em si mesmo, mas mais preocupado com a interação com o seu leitor, mesmo que, evidentemente, o texto seja uma manifestação pessoal, nem sempre compartilhada pelo interlocutor. O exemplo a seguir foi extraído do prefácio de um manual de produção textual:
“Optamos também pela utilização de uma linguagem clara e objetiva a fim de otimizar nossa intenção didática.” EMEDIATO, Wander. A fórmula do texto. São Paulo: Geração Editorial, 2004. (Negrito nosso).
“Intenção didática” é a intenção de ensinar, ou seja, refere-se à intenção do enunciador em atingir o seu objetivo de instruir os seus leitores. O uso de “nossa intenção didática” exclui o leitor do livro, pois não há uma intenção didática do autor e do leitor. O uso da primeira pessoa do plural confere ao texto uma impressão de modéstia que o torna mais agradável à leitura. A língua afrodisíaca
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38. Observe:
“Muitas vezes, quando queremos realizar um estudo estatístico, não é possível analisar toda a população envolvida com o fato que pretendemos investigar. Quando isso ocorre, utilizamos uma amostra da população para conseguir os dados que desejamos.” SMOLE, Kátia C. S.; DINIZ, Maria Ignez S. Matemática: ensino médio. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 2.
b) Transcreva o excerto acima, utilizando a terceira pessoa do singular.
c) Que diferenças de sentido encontrou?
39. Leia com atenção o excerto abaixo.
“A literatura tem sido, ao longo da história, uma das formas mais importantes de que dispõe o homem, não só para o conhecimento do mundo, mas também para a expressão, criação e recriação desse conhecimento. Lidando com o imaginário, trabalhando a emoção, a literatura satisfaz sua necessidade de ficção, de busca de prazer.” VIEIRA, Alice. O prazer do texto: perspectivas para o ensino de literatura. São Paulo: EPU, 1990.
a) De acordo com Alice Vieira, qual a função da literatura?
b) Ao utilizar a terceira pessoa do singular, a autora apaga a sua voz do texto. Dessa forma, constrói que impressão para o leitor?
A enunciação em terceira pessoa (ele) dá ao texto uma impressão de objetividade, como se houvesse um distanciamento do enunciador em relação ao que afirma, pois a voz do locutor se confunde com a 94
Capítulo 2
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a) O uso da primeira pessoa do plural (nós) nesse trecho do livro de Matemática deve-se ao fato de serem duas as autoras do livro? Explique.
voz da maioria da população. Outro efeito de sentido possível é o de atribuir a um outro (ele) a responsabilidade, em seu lugar, daquilo que afirma no texto. É como se o que se dissesse fosse uma vedade que sempre existiu, independentemente de quem a pensou. Observe: Eu penso que a literatura tem sido, ao longo da história, uma das formas mais importantes de que dispõe o homem.
Pensa-se que a literatura tem sido, ao longo da história, uma das formas mais importantes de que dispõe o homem.
A literatura tem sido, ao longo da história, uma das formas mais importantes de que dispõe o homem.
40. Em qual dos casos se verifica um maior grau de objetividade? Por quê?
Nas narrativas literárias, o uso da terceira pessoa permite ao narrador contar a história na posição de um observador, até mesmo um observador que tudo sabe de suas personagens, entrando-lhes no mais íntimo dos pensamentos. O narrador pode também manter distância do episódio narrado, sugerindo uma posição objetiva de neutralidade, ou posicionar-se afetivamente com as personagens, tornando polêmico e, até mesmo irônico, o efeito de objetividade sugerido pelo uso da terceira pessoa.
Formas enunciativas
Efeitos de sentido
Exemplos de gêneros textuais preferenciais
1ª pessoa do singular (eu)
Intimidade, subjetividade
Cartas íntimas, poemas, procurações, bilhetes, diários, narrativas literárias...
1ª pessoa do singular (eu)
Assumir a decisão tomada
Declarações e procurações...
1ª pessoa do plural (nós)
Interlocução, intimidade, engajamento, modéstia
Textos científicos, acadêmicos, escolares...
2ª pessoa (tu, você)
Interlocução
Publicidade, propaganda, convocação, pedidos, ordens...
3ª pessoa (ele)
Objetividade
Textos científicos, acadêmicos, técnicos, informativos, narrativas literárias...
41. Observe:
“A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos – e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo – essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! ‘Qualquer coisinha’: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: ‘Como é ruim, a sinhá!’...” LOBATO, Monteiro. Negrinha. São Paulo: Brasiliense, 1968.
A língua afrodisíaca
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a) Apesar de no trecho anterior predominar a terceira pessoa, não podemos afirmar que o narrador seja neutro. Por quê?
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b) O uso da terceira pessoa provoca que efeito de sentido?
42. Retorne à letra da música de Caetano Veloso, Você não entende nada: a) Que pessoa(s) domina(m) na letra de música de Caetano Veloso?
b) Que efeito de sentido isso permite que o leitor construa dentro do texto?
c) Observe: Quando eu chego em casa nada me consola Você está sempre aflita.
A quem se refere o pronome “me”?
Tradicionalmente os gramáticos dividem os pronomes pessoais em dois tipos básicos:
1. Pronomes pessoais do caso reto: exercem a função de sujeitos das orações. 2. Pronomes pessoais do caso oblíquo: exercem as funções de complementos ou objetos.
Os pronomes do caso oblíquo ainda admitem uma subclassificação: átonos e tônicos.
2.a. Átonos: funcionam como objetos do verbo (tanto objeto direto como indireto). Chamam-se átonos por questões fonéticas, visto não se constituírem como uma sílaba tônica.
2.b. Tônicos: exercem diversas funções sintáticas. Aparecem preposicionados dentro das orações. Chamam-se tônicos também por questões fonéticas, por apresentarem sílaba tônica. 96
Capítulo 2
PRONOMES PESSOAIS
Pessoas gramaticais
Caso reto (funcionam como sujeito)
Caso oblíquo (não funcionam como sujeito) Átonos Objeto direto
Objeto indireto
Tônicos
Singular
1ª 2ª 3ª
eu tu ele (a)
me te o, a, se
me te lhe, se
mim, comigo ti, contigo ele(a), si, consigo
Plural
1ª 2ª 3ª
nós vós eles (as)
nos vos os, as, se
nos vos lhes, se
nós, conosco vós, convosco eles(as), si, consigo
Observações: 1. Como se nota no quadro, algumas formas aparecem repetidas (“me”, por exemplo, é um pronome átono que tanto pode funcionar como objeto direto ou como objeto indireto). As formas “nós”, “vós”, “ele/a, eles/as” funcionam como pronomes pessoais do caso reto, mas também como pronomes pessoais do caso oblíquo, desde que preposicionados. 2. No caso oblíquo tônico, as formas “comigo”, “contigo”, “consigo”, “conosco” e “convosco” já vêm compostos com a preposição (comigo = com + mim). 3. Os pronomes oblíquos átonos de terceira pessoa alteram suas formas de acordo com a terminação do verbo que os antecede: a) Se a forma verbal terminar em -r, -s ou -z, essa letra desaparece e acrescenta-se um “l“ aos pronomes o, a, os, as, passando a ser lo, la, los, las.
Ex.: (1) Vou cantar a velha música.
(2) Compramos o livro no supermercado.
Vou cantá-la. Compramo-lo no supermercado.
(3) Você traz a Coca-Cola, eu tomo.
Você trá-la, eu tomo.
b) Se a forma verbal terminar em -m, -ão, ou -õe, acrescenta-se um “n” antes dos pronomes o, a, os, as, passando a ser no, na, nos, nas. A forma verbal permanece inalterada.
Ex.: (1) Tratam aquela senhora muito mal.
(2) Põe o nariz onde não é chamado.
Tratam-na muito mal. Põe-no onde não é chamado.
(3) Dão a vida pelo próximo.
Dão-na pelo próximo.
c) Com os pronomes oblíquos átonos de primeira e segunda pessoas do plural, se a forma verbal terminar em “s”, essa letra desaparece. O pronome permanece inalterado. A língua afrodisíaca
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Ex.: (1) Nós nos lembramos do ocorrido.
Lembramo-nos do ocorrido.
43. Leia, atentamente, o enunciado das questões a seguir.
– Recordamos, ainda, os momentos felizes da viagem.
– Todos os professores querem bem ao diretor.
– Aos professores compete a decisão sobre a nota.
– Os professores devolveram os cadernos aos alunos.
– O gerente visou as folhas de pagamento. a) b) c) d) e)
los, lhe, lhes, nos, lhes; los, no, lhe, nos, lhes; lhes, lhe, lhes, los, as; nos, no, lhe, los, as; los, lhe, lhes, nos, as.
b) Selecione as alternativas que podem ser imediatamente eliminadas, justificando o motivo da exclusão.
c) Verifique a alternativa correta e veja se você escolheu bem as alternativas que poderiam ser excluídas imediatamente. 44. (PUC-PR) Considerando o registro culto da linguagem, apenas um dos enunciados a seguir pode ter o pontilhado preenchido corretamente por lhe. Qual é ele? a) Jamais ….. vi levar seus filhos à escola. b) Saiba que ainda ….. quero muito bem. c) Certamente, a mãe é a pessoa que mais ….. estima. d) Espero que a partir de agora todos ….. deixem em paz. e) Não ….. convido nunca mais para a festa do meu aniversário. 45. (FGV) Caetano Veloso gravou uma canção para o filme Lisbela e o prisioneiro. Trata-se de “Você não me ensinou a te esquecer”. A propósito do título da canção, pode-se dizer que: a) A regra da uniformidade do tratamento é respeitada, e o estilo da frase revela a linguagem regional do autor. b) O desrespeito à norma sempre revela falta de conhecimento do idioma; nesse caso não é diferente. c) O correto seria dizer Você não me ensinou a lhe esquecer. d) Não deveria ocorrer a preposição nessa frase, já que o verbo ensinar é transitivo direto. e) Desrespeita-se a regra da uniformidade de tratamento. Com isso, o estilo da frase acaba por aproximar-se do da fala. 98
Capítulo 2
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a) (PUC-PR) Marque a sequência que substitui convenientemente os elementos em negrito:
46. (FGV) Observe: “O diretor perguntou: – Onde estão os estagiários? Mandaram-nos sair? Estão no andar de cima?”. O pronome em destaque pertence: a) À terceira pessoa do plural. b) À segunda pessoa do singular. c) À terceira pessoa do singular. d) À primeira pessoa do plural. e) À segunda pessoa do plural. 47. Retorne à letra da música Você não sabe nada, de Caetano Veloso.
No primeiro volume desta coleção, estudamos que há, basicamente, cinco formas de caracterizarmos uma personagem em um texto narrativo literário: pela descrição física; pelo nome da personagem; por pormenores da roupa; por gestos e atitudes; pelo vocabulário.
Levando em conta essas formas, explique como o enunciador na letra da música de Caetano Veloso descreve o interlocutor ou coenunciador (o “você”) a quem se dirige e que imagem dessa personagem pode-se delinear na mente do leitor.
O OBJETO DO DESEJO Escrito no início do século XX, o conto Penélope, de João do Rio, narra o encontro entre uma mulher mais velha, a generala Alda Guimarães, viúva e honesta, com um rapaz de 18 anos, Manuel Ferreira, vendedor em uma loja. O título do conto, Penélope, é o mesmo de uma das personagens da Odisseia. Durante a leitura anote, em seu caderno, as semelhanças e as diferenças entre as duas personagens. Rio de Janeiro, início do século XX
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WATERHOUSE, John William. (1912). Penélope e os pretendentes. Aberdeen: City of Aberdeen Art Gallery and Museuns Collection.
O filme Cold Mountain (EUA, 2003), dirigido por Anthony Minghella, estabelece uma curiosa relação com o mito de Penélope. Veja a sinopse: Após o término da Guerra Civil Americana, o soldado Inman Balis (Jude Law) inicia um longo e acidentado percurso para retornar à sua casa, na vila de Cold Mountain. Lá o espera a fiel Ada (Nicole Kidman), sua namorada, que luta para administrar uma grande fazenda após a morte de seu pai. Para ajudá-la na tarefa, chega Ruby (Renée Zellweger). Desenvolve-se uma grande amizade entre ambas. Ao chegar a Cold Mountain, mais dificuldades aguardam Inman. Assim como Ulisses, da Odisseia, enfrenta diversos obstáculos em seu caminho para retornar a Ítaca, sua cidade natal, onde o espera a fiel Penélope, Inman também passa por várias peripécias para voltar para Cold Mountain e para sua amada, Ada.
Penélope Ora, precisamente naquela tarde, tendo deixado o seu automóvel no canto da avenida, a generala Alda Guimarães subia a Rua do Ouvidor a pé, para a prova dos vestidos de meio luto no grande costureiro da moda. Ia, como sempre, impenetrável. Alda Guimarães, que extraordinária mulher! Quando o marido morrera seis meses antes, ela já tinha uma legenda de honestidade heroica. O general, seu padrinho de batismo e seu esposo, casara aos sessenta anos quando ela tinha vinte. Em vez de ciumento era paternal; em vez de fechála, passeava-a por todos os salões, dava recepções, queria mostrá-la como o facho da sua glória. E, apesar dos maldizentes dizeres Alda quase virgem, nunca ninguém ousou lhe atribuir sequer um flerte. Alda não amava o marido como a Romeu, mas respeitava-o. Assim, morto o marido e ela rica, bela, esplêndida, séria – o entusiasmo em torno da sua carne e da sua fortuna foi grande. Rapazes das melhores famílias, aos quais nunca dera atenção, propunham-se para amantes e para maridos; maridos das suas amigas faziam questão de consolá-la. Se não se fechasse, teria a impressão de que a punham num leilão. 100
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Penélope é casada com Ulisses, rei de Ítaca. Durante os vinte anos que durou a viagem de seu marido, apesar de não receber quaisquer notícias dele, recusava-se a casar novamente. No entanto, Penélope não parava de ser assediada por inúmeros pretendentes. Muitas das pessoas ao seu redor, julgando Ulisses morto, desejavam vê-la casada. Constrangida pelos candidatos à sua mão, prometeu que escolheria um quando houvesse terminado um bordado. Para adiar o momento da escolha, desfazia, à noite, o trabalho que executava durante o dia. É considerada como símbolo de fidelidade.
Alda Guimarães fechara-se no seu palacete da São Clemente. A sociedade causava-lhe mais horror sem a companhia do seu velho esposo. Certo não agia de tal modo por hipocrisia, e sim porque nunca amara, porque lhe parecia impossível o desejo e ainda mais o prazer. À sua camarada, a senhora Lúcia de Villaflor, cujos amantes eram inumeráveis, ela confessava: – Que hei de fazer, se não sinto simpatia por ninguém? – Mas, minha querida, uma senhora bonita e rica, sem um homem! – Irei viajar com a Leônia, ao acabar o luto. Estava convencida da própria invulnerabilidade. E ria, ao pensar naqueles homens todos da sua roda que tanto a irritavam com propostas indecorosamente idiotas. Ainda o melhor da coleção fora o general, bom, sem pretensões... Era esse o estado d’alma e de corpo de Alda Guimarães, ao subir a Rua do Ouvidor, caminho do costureiro, quando viu num mostrador de modista uma curiosa e linda série de véus. Parou; deu-lhe vontade de comprar alguns; entrou. Como as vendedoras estivessem ocupadas, notou que vinha do fundo, servi-la, um rapaz, quase menino. Era moreno, forte, com dois grandes olhos molhados e um cabelo tão lindo que só o São Sebastião de Guido Reni teria igual. A sua ousadia era misturada de timidez. Ela sentiu o coração bater, um grande calor subir-lhe ao rosto. Reparou-lhe nas mãos. Eram grandes, másculas. Deviam ser quentes... Essa opinião atravessou-lhe a mente cristalizando a ideia de que seria bom tocá-las. Foi instantâneo. Encostouse no balcão para não cometer a tolice. Mas se retinha o ímpeto, olhava mais o rosto do adolescente, e via uma boca rasgada, vermelha, primaveral. Ele não se apercebia do efeito produzido. O seu esforço era para vender bem. – Veja vossência estas voilettes... Tinha uma voz quente, igual, envolvente, jovem. – Não. Decididamente não escolho hoje. Voltarei. Saiu. Quase a correr. Pareceu-lhe que se operara nos objetos, nas coisas, nas pessoas, uma transformação. Tudo esplendia, tudo ria, tudo era suave e alegre. No costureiro, escolheu mais três vestidos, depois das provas. Depois na rua lembrou-se de tomar chá e resolveu logo o contrário. Passou pela casa dos véus, olhou sem querer e não viu senão as vendedoras. Tomou o automóvel. Os seus pulsos batiam e as extremidades estavam geladas, as extremidades dos seus lindos dedos. Em casa, foi-lhe impossível jantar. Quis ler. Suspirou, incapaz de atenção. Dentro dos seus olhos, enchendo-lhe os sentidos estava a figura morena e forte, com os cabelos em cachos e as mãos que deviam ser quentes. Deitou-se. Revolveu o leito. Que solidão! Que imensa solidão! Nem a si mesma ousava confessar a impressão instantânea... No dia seguinte, porém, como acordasse fatigada da agitação insone, as palavras que dormiam no seu lábio ansiosas soaram a contragosto. – É uma loucura! Seria uma simples incidência do desejo esparso na cidade, aproveitando o momento de abandono da sua alma, o momento em que estava menos preparada para resistir? Mas resistir a quê? O rapaz era um simples empregado de casa de modas, que não lhe dera nenhuma atenção especial. Nem podia. Nem devia. Nem ela consentiria. O desagradável é que ele não existia socialmente, não tinha um nome, um título, uma família ao menos. Nunca por consequência poderia pensar em fazer-lhe a corte. Loucura! Ela, generala, ela que se recusara às tentações dos leões dos salões, ela que afastara propostas de homens admirados, ela invulnerável, tendo no cérebro a hipótese não de um flerte, mas de qualquer coisa de mais positivo com um pobre pequeno. E ao lembrá-lo assim com pena, via-o de novo, modesto, ingênuo, jovem, tão jovem! Não era possível que outras mulheres ainda não tivessem reparado naquela juventude. Com certeza, pobre, já teria tido amantes ordinárias, dessas mulheres que estragam os rapazes e que são livres, inteiramente livres... Talvez mesmo, num estabelecimento onde entram tantas mulheres elegantes, alguma grande cocote. Mas não! Ele não parecia contaminado. Ele era novo em folha. Coitado. Uma languidez, entremeada de agitações, reteve-a nos aposentos até a hora do almoço. Desceu. Almoçou como quem tem medo de perder o comboio. Sentou-se ao piano. A música pareceu-lhe o muro imponderável do isolamento em que vivia. Não pôde mais. Subiu. Vestiu-se com requintes e imensas bondades para Leônia, mandou preparar o automóvel, seguiu para a cidade achando urgente escolher os
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modelos dos novos vestidos. Quando o automóvel parou, foi como se de repente tivesse de decidir a vida. Tinha um enorme peso nos ombros, arfava, tremia, e as vozes chegavam-lhe aos ouvidos como aumentadas por um tubo acústico. Sentia a vertigem e não sabia bem por quê. Andou assim pela rua. Parou diante da montra, ergueu os olhos para ver através dos vidros o interior do estabelecimento. As vendedoras moviam-se servindo as freguesas. Lá ao fundo o rapaz estava a despachar um cliente. Tinha outro fato. Estava de claro. O esplendor da sua mocidade era maior. Entrou; sem hesitar foi direto a ele. – Pode mostrar-me os véus de ontem? Ele fez um rápido esforço para recordar-se. – Ah! Perfeitamente. Um momento, minha senhora... E ela ficou, humilhada, com o temor de que alguém na loja fosse desconfiar. Passara uma tarde inteira, uma noite inteira, a manhã toda a pensar naquele ente – ela que bastaria acenar para ter vários secretários de legação, e ele não se lembrava dela – vulgar, vulgaríssimo, talvez nos braços de outra criatura. Mas ele vinha solícito, comercial, querendo mostrar-se negociante, com o orgulho infantil de vender bem. – Nem lembrei que vossência esteve cá ontem. São tantos os fregueses! Essa ingenuidade deu-lhe a ela um pouco de ousadia: – Que memória! – Mas logo lembrei. Até estive a mostrar-lhe umas voilettes. E sorria. Ela então pôs-se a ver os véus, de que não tinha aliás necessidade. Ele abria caixas e caixas. Sobre o vidro do balcão jaziam rendas, gazes, tecidos aéreos de todas as cores. Ela, inconscientemente, estabelecera a confusão fatigosa como uma estrategista, para tocar uma daquelas mãos que deviam ser quentes e macias. No momento propício, vinha-lhe um frio e não ousava. Para não o desagradar, apartava mais um véu, e continuava. Sofregamente as suas lindas mãos contraíam-se de jaspe sobre o multicor das gazes. O seu colo arfava. Sentia a boca seca, não podia quase falar. Que iria acontecer se conseguisse? Ele compreenderia? Ele falaria cheio de vaidade com a aventura enorme? Ele não recusaria? E depois? E depois? –Veja a senhora este que é o mais fino. Ele curvara-se, segurando o véu com as duas mãos. Ela pendeu o busto para a frente de modo a sentirlhe a respiração. Cheirava a flor murcha. O seu respirar era um arfar de olores. Alda, com um indizível prazer que a percorria toda, estendeu ambas as mãos. Os seus dedos como que por acaso roçaram pelas mãos do rapaz. Não se enganara! Elas tinham um morno calor suave ao gelo dos seus dedos. – Perdão! – disse ele largando o véu. Ela olhou-o com toda a súbita paixão do instinto, sem forças. Ele ainda não compreendia, tão longe da possibilidade que a sua juventude não tremia. Mas o olhar continuou, continuou carregado de desejo e de súplica, pesado de coisas loucas e deliciosas. Ele sorriu meio indeciso. Ela suspirava forte, olhando-o. Um risco de malícia ingênua clareou-lhe a boca vermelha. Ela estendeu o véu, sem dele despregar o olhar que sorria. Os olhos dele como que quiseram adivinhar. Uma onda de sangue encheu-lhe o rosto. – Minha senhora... – Como se chama? – Ferreira, Manuel Ferreira. Onde devo mandar os véus? No cérebro de Alda Guimarães uma luta entre o receio e o desejo retinha a sua resposta com violência, e em seu desvario, dizia-lhe todos os pavores do preconceito. Com maior força os sentidos inebriados arrastavam-na. Manuel! Um nome bom, macio. E aquelas mãos, aquele hálito, aquela saúde esplendorosa, aquele cabelo... Que fazer? Que fazer? Dar a direção da sua casa? Nunca se comprometeria até aquele ponto. Ia dizer alguma coisa e disse: – Por que não mos leva o senhor mesmo? Depois da pergunta, o sentimento de pudor foi tanto, que não percebeu o rapaz, tão atônito quanto ela, baixando a voz, murmurando: – Só quando fechar a loja! É longe? Foi preciso que ele repetisse a pergunta. Como despedaçada ela indicou o palacete, e saiu sem olhar, trêmula, palpitante, com a face afogueada e os lábios secos. Chegou assim até o automóvel, teve de
cumprimentar o secretário da Bélgica, solteiro; recebeu já instalada a saudação longa do velho Lloyde Balfour da embaixada americana, e quando mandou tocar, sucedera-lhe à atordoação um nervosismo de se explicar a si mesma, de se desculpar, de salvar-se do instante alucinado. Ela que jamais tivera uma aventura, ela que não pecara por não sentir necessidade alguma, ela honesta que compreendia o outro sexo pelas profissões: um diplomata é um diplomata, um general é um general, um jardineiro é um jardineiro – vendo de súbito num pequeno caixeiro de modas um homem! Como podia se ter dado esse horror delicioso? Era preciso afastar as suspeitas dos criados. Lamentáveis, aliás. Porque, livre não era livre, e temia preconceitos quando todas deviam fazer coisas idênticas. Para se desculpar encontrava na memória as intrigas e as calúnias do seu mundo contra várias senhoras bem recebidas: o escândalo de Sofia Marques com o motorista, o divórcio de Adalgisa Gomensoro por causa de um rapaz que ninguém conhecia, mil histórias outras. Depois, ninguém saberia se ela realmente realizasse. A essa hipótese, um tremor a sacudia. Podia ser um mariola que a difamasse e até a explorasse. Mas tratava-se de um quase menino. Ele não podia ter mais de dezoito anos. E tinha a face ingênua no envolvente e rápido vigor, acrescido de manhãs passadas ao ar livre – porque necessariamente com aqueles ombros, aquela cintura estreita, aquelas mãos, Manuel havia de remar. E as palavras objetivaram-lhe na mente a criatura inteira. Que vergonha! Como seria bom acariciá-lo, beijar-lhe a cabeleira negra, os olhos molhados de luxúria ingênua, apertar-lhe os braços e adormecê-lo de encontro ao peito... Desse confuso pensar surgiu-lhe a ideia de estabelecer um plano capaz de evitar todas as suspeitas, apesar de não ter nenhum projeto, nem mesmo o de mandar entrar o rapaz. Saltou assim, no palacete, pálida, resoluta como um estrategista, espiando nos olhos dos criados a possível desconfiança, subiu aos aposentos acompanhada de Leônia, Leônia a sua defesa! Mas acabava de enfiar um roupão, quando Leônia indagou: – A senhora não sai mais hoje? – Por quê? – Porque se não sair e não receber nenhuma das suas amigas, eu pediria para sair esta noite. É o meu dia de passeio e iria ao teatro. Alda Guimarães estarreceu. Era, a fatalidade. Iria ficar só com o seu desejo? Jamais! Jamais! Não poderia resistir. Voltou-se para dizer a Leônia que adiasse o teatro. Mas ouviu-se dizer: – Não! podes ir... E imediatamente achou que deveria responder aquilo mesmo, e imediatamente admirou a calma, a naturalidade com que respondera. Leônia não acreditaria no que poderia estar para acontecer. Assim, desde a resposta, dividiu-se em mente: a Alda picada pela tarântula representava um estado de subconsciência, e Alda calma assistia à representação como no cinematógrafo. Que inteligência! Que lucidez! – Vou passar a noite lá embaixo, ao piano... Podes sair já. Preparou-se com cuidado, vestiu um vestido absolutamente de interior no seu mole e flutuante modelado que a exteriorizava. Desceu para o jantar. A vida solitária, a tristeza dessa vida como a sentia agora no seu interminável bocejo sem preocupações. Era possível existir assim? Não jantou quase. O copeiro grave passava os pratos, sem que ela os tocasse. Antes da sobremesa ergueu-se. Voltara-lhe a ansiedade como um acesso de febre. Todos os ruídos da rua chegavam-lhe aos ouvidos como chamadas de campainha – as chamadas que anunciariam a presença do pobre pequeno. Afinal não se tratava de nenhum personagem! Era pueril o seu medo. – Antônio, se vier hoje um menino com uma encomenda de véus, mande-o entrar. Quero vê-los à noite antes de os comprar. – Sim, minha senhora. – Ah! Não estou para ninguém. Foi para a pequena saleta íntima, onde havia dois enormes divãs. A saleta, mobiliada com muito gosto, era como certos salões de França, depois das relações com o Grão-Turco – meio francesa, meio otomana. E dava para a galeria de entrada. Recostou-se, fechou os olhos. Todo o seu ser enchia da imagem e do desejo da imagem que a desnorteara. O coração batia-lhe de modo que sentia nas artérias do pescoço o seu desordenado bater. Agora, posto que não tivesse definido o futuro, só a assaltava um receio: viria ele? No imenso silêncio, o receio era quase angústia. Era capaz de não vir! Timidez decerto. Talvez, porém, não tivesse agradado. Podia ser... O ridículo de desejar e ser repelida... Pela primeira vez reparou de fato numa pêndula de Boule que o falecido general
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comprara em Paris num leilão do hotel Drout. A pêndula tinha um mostrador tranquilo e desanimado. Dizem que o tempo é breve. Não viram o tempo que leva um ponteiro a andar cinco minutos! Quanto pensamos e realizamos e queremos e arfamos na terra para o desconhecido enquanto um relógio pesponta, à toa, cinco longos, intermináveis minutos! Se ele chegasse, se ele não chegasse! O ruído do relógio parecia compor essa alternativa, falar à gangorra do seu pensamento, enquanto a sua carne era como que aos poucos aquecida por um aflitivo desejo de consolo. De repente, houve um breve retinir de campainha. Alda Guimarães teve um sobressalto como se a tivessem tocado na nuca com uma ponta de gelo. Tomou de um livro, abriu-o. Como os criados são lentos em abrir as portas! Era a eternidade positivamente. A campainha fez-se ouvir de novo, ainda mais breve e tímida. Um enternecimento pelo que aquela rápida vibração exprimia fê-la sorrir. O criado passou enfim, devagar, como compete a um criado de casa importante. Ela ouviu um rumor indistinto. O criado tornou a aparecer: – É o rapaz com os véus. Mando entrar? – Dê mais luz. Mande. Fechou os olhos, de pé. Um turbilhão parecia arrastá-la. Quando os abriu, à porta da saleta, respeitoso, com um grande embrulho, estava o adolescente. Ela via-o inteiro, dos pés à cabeça, e era como se visse, vestido, um dos muitos São Sebastião em que os sensualistas do Renascimento derramaram o seu amor pela pulcra forma dos efebos entontecedores. O criado, ao lado, estava firme. Alda Guimarães fez um esforço: – Trouxe a encomenda? – Sim, minha senhora. – Quero vê-los antes, à luz. Pode ir, Antônio. – Vossência permite? – gaguejou o rapaz. – Entre. Pode desfazer o embrulho nesse divã. Com um motivo profissional para mascarar o seu enleio, o rapaz andou até o divã num passo que era leve e forte, curvou-se numa curva de estatuária, sem esforço, macio e vigoroso. Talvez tivesse ainda dúvidas, juventude enrodilhada na inexperiência e assustada com aquele luxo que tornava inacessível a mulher ao lado. Alda Guimarães sentou-se no divã, admirando-o. Como era diverso dos indivíduos que conhecera, rapazes e homens na sua sociedade – que vinca tanto as criaturas na mesma dobra. –Vossência desculpe eu ter demorado um pouco. Ela reparava agora no pêssego maduro que era o seu pescoço. Uma desorientada vontade de mordê-lo obrigou-a a indagar: – Por que não mandou outro? – Vossência disse que eu mesmo trouxesse. O que eu não pensei é que desejasse ver de novo os véus. Essa ingenuidade trouxe a Alda uma súbita confiança. – Não tem levado encomendas a outras casas? – Não, minha senhora. Isso é para empregados de outra categoria, os principiantes... – Ah! Já tem uma categoria? – Oh! bem modesta. – E que idade tem? – Fiz dezoito. – Era o que eu pensava. Houve um enorme silêncio. Ele abria as caixinhas. – Diga-me, senhor Manuel, faz esporte? – Um pouco de remo, no domingo, para divertir. – Era o que eu pensava. Mas para divertir? Na sua idade há outros divertimentos. – É uma questão de gosto. Graças ao hábito de sociedade, ela não só falava com desembaraço como falava com o tom de quem trata um inferior. Graças ao seu ofício ele respondia com desembaraço, conservando o tom de respeito para com alguém socialmente superior. O instinto aproximava-os para a maior das igualdades. Ele indagava sem
o saber com a desconfiança maliciosa: “Onde vai ela chegar?” Ela pensava, com Vocabulário o desejo palpitante: “De que modo resolver tudo isso?” Se ela estivesse diante de Vossência: forma respeitoum cavalheiro da mesma roda a ânsia do imprevisto não existiria, já teria passado sa de tratamento, contraà declaração, caso consentisse. Se ele estivesse diante de qualquer mulher não ção de Vossa Excelência. indagaria nada. Fatais estados d’alma que se dão sempre quando incide o desejo Voilette: palavra francesa; em seres de diferente situação social. E tão terríveis que o mais desvairado amor pequeno véu transparente que as mulheres colocanão faz esquecer nem a um a superioridade nem a outro o grau abaixo. Assim, vam nos chapéus e que ele poderia arruiná-la, difamá-la, espancá-la até. Nunca esqueceria a preferência podia cobrir todo ou parte e se não fosse muito bom, estaria perdido, cheio de ambições. Assim ela poderia do rosto. sofrer, amar, perder-se. Mas seria sempre a criatura que dava a preferência... Mariola: tratante, patife. Nenhum dos dois pensou exatamente nisso. Ficaram na pergunta que é a Fato: roupa, vestes. resolução do problema imediato nesse gênero de choques, ele não ousando, ela não Nigromática: variação de querendo ousar para não parecer mal. Mas as mulheres, mesmo as mais honestas necromática, adivinhação pela invocação dos como Alda Guimarães, são fortes quando desejam. espíritos. Alda Guimarães ergueu-se, tomou um dos véus na ponta dos dedos, Pulcro: gentil, belo, foragitou-o. moso. – Como é lindo, à luz! Simum: do árabe, vento Ele sorriu. abrasador que sopra do – Vossência acha? centro da África para o norte. – E você? Veja! Em pequenos grupos, Agora tomava dos véus – um, dois, cinco – verdes, brancos, cor de morango, procurem no dicionário negros. Eram como amputações de asas de uma ornitologia nigromática em torno os sentidos para outras dela. As suas mãos cada vez passavam mais perto do rosto de Manuel, cujo sorriso palavras desconhecidas. ia-se estereotipando numa fixidez angustiosa. De repente ela voltou-se. As mãos Depois, selecionem o sentido que melhor se encaixe dele caídas sentiram o roçar breve do corpo dela. Ela escorregou no divã bem ao texto. junto, a cabeça erguida para ele. Manuel ficou sem coragem de avançar nem de recuar. – Mas, minha senhora... Os olhos dela, a boca que ela tinha formosa não podiam mais, revelavam demais – porque de súbito ela viu o semblante do adolescente convulsionar-se, os seus olhos luzirem, um vinco brusco tornar-lhe severo o semblante, todo ele tremer como queimado por um simum de desejo, que lhe fazia bater os dentes, e a sua voz rouca indagar, enquanto passava as vistas pelas portas: – Não vem gente? Alda não soube que gesto fez. Ele curvou-se, a sua boca magnífica sorveu-lhe a dela como se sedenta chupasse um fruto cheio de sumo. Ela tremeu na mesma febre passando-lhe os braços no pescoço. Então ele despejou-a no divã em súbita fúria. Um imenso, delicioso, doloroso acorde de prazer – o prazer que nenhum dos dois sonhara, sacudiu as almofadas do divã. Sem pensamentos, sem outro fim, alheios ao orbe inteiro, no frenesi de atingir ao bem supremo, atingiram o sumo gozo brevíssimo que é a felicidade única da terra. E foi com infinita amargura que os pretendentes souberam da partida da incorruptível e formosa Alda Guimarães, oito dias depois de a verem na avenida, em meio luto da viuvez. Ia num péssimo vapor francês, só com Leônia e radiante. Ninguém, porém, poderia desconfiar que entre os outros passageiros, havia o amor... João do Rio. As 100 melhores histórias eróticas da literatura universal. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto, conhecido literariamente como JOÃO DO RIO (1881-1921) – Cronista, teatrólogo e contista. Usou diversos pseudônimos para escrever, e, atualmente, é mais conhecido por João do Rio, cidade onde nasceu e morreu. Sua obra reflete um profundo senso social da época em que vivia, particularmente da cidade do Rio de Janeiro. Foi membro da Academia de Ciências de Lisboa e da Academia Brasileira de Letras.
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Como já vimos, a presença do narrador em terceira pessoa permite que o leitor conheça as ações, os pensamentos e os sentimentos das personagens, a partir do ponto de vista do enunciador. O narrador pode também manter distância do episódio narrado, sugerindo uma posição objetiva de neutralidade, que nem sempre consegue ou deseja alcançar. Neste conto, embora em alguns momentos haja a descrição dos sentimentos e pensamentos de Manuel Ferreira, o enunciador desenvolve a narrativa das ações a partir da personagem feminina. O conto se inicia com a personagem principal, Alda Guimarães, andando na Rua do Ouvidor, para fazer compras e provar vestidos de meio luto. Viúva há seis meses, quando se casou tinha vinte anos e o general, seu padrinho de batismo, sessenta. Ao entrar em uma loja para comprar alguns véus, encontra Manuel. A ação transcorre na cidade do Rio de Janeiro, em três espaços: a Rua do Ouvidor, na loja em que trabalha Manuel e no palacete de São Clemente, residência de Alda. Já o tempo do conto se passa em oito dias, ainda que a ação principal se concentre em uma tarde, uma noite e um dia. 48. Transcreva excertos do conto que atendam ao que se solicita. a) Descrição da personagem Alda feita pelo narrador no início do conto.
b) As emoções que Alda sente quando o rapaz se aproxima.
c) O desejo de Alda.
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No volume 1 desta coleção, estudamos que, numa narrativa literária, encontramos, principalmente, dois tipos de narrador: Narrador em primeira pessoa: o narrador-personagem. Enunciação em primeira pessoa – eu. Narrador em terceira pessoa: enunciação em terceira pessoa – ele.
d) Tensão que se estabelece pela desigualdade social.
Observe atentamente a reprodução a seguir.
Ela via-o inteiro, dos pés à cabeça, e era como se visse, vestido, um dos muitos São Sebastião em que os sensualistas do Renascimento derramaram o seu amor pela pulcra forma dos efebos entontecedores.
GUIDO RENI (1575-1642). São Sebastião. Madri: Museo Nacional Del Prado.
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50. Pesquise, na biblioteca de sua escola, bem como em sites de busca na Internet, a biografia de São Sebastião. Compare as informações obtidas com a imagem do santo e a descrição que o narrador faz da personagem Manuel Ferreira e anote as suas conclusões.
51. A linguagem empregada no conto, com termos em francês, como voilette, vocabulário rebuscado, alusões a diplomatas e outros, representa: a) a sociedade burguesa da época, em que a valorização do nome de família e da profissão desempenhada era colocada em primeiro lugar. b) o desejo de ascensão social da personagem Alda, que sofre uma profunda transformação com a inesperada paixão por Manuel Ferreira. c) o leitor em qualquer época e espaço que valoriza a erudição do autor, bem como a defesa dos valores morais. 52. Pode-se afirmar que, talvez inconscientemente, Alda organiza um plano para se aproximar do rapaz. Isso estaria bem de acordo com o título “generala”. “Transcreva o trecho do conto em que o narrador sugere ao leitor que esse título era merecido não apenas por haver-se casado com um “general”.
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Capítulo 2
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
49. O narrador compara Manuel Ferreira à imagem de São Sebastião, pintada por Guido Reni (1575-1642), célebre pintor italiano, que brilhou pela graça, expressão, cor e elegância, como pela correção de seu desenho. Observando atentamente a reprodução, transcreva passagens do texto que validem a comparação entre a personagem e o quadro.
53. Das alternativas seguintes, quais fizeram parte das estratégias da generala para conquistar o rapaz? (
) Vai à loja duas vezes.
(
) Pede que ele leve ao palacete os véus.
(
) Convida-o para um passeio.
(
) Prepara-se para recebê-lo em casa.
(
) Afasta os criados para poderem ficar sozinhos.
(
) Suborna-o com dinheiro.
(
) Propõe-lhe casamento.
(
) Aproxima-se fisicamente do rapaz, provocando-o.
Aspectos linguísticos Leia o excerto a seguir.
“Os olhos dela, a boca que tinha formosa não podiam mais, revelavam demais – porque de súbito ela viu o semblante do adolescente convulsionar-se, os seus olhos luzirem, um vinco brusco tornar-lhe severo o semblante, todo ele tremer como queimado por um simum de desejo...”
O conto termina com a ida de Alda, com Leônia, sua criada, num vapor francês. No mesmo navio embarca, entre os demais passageiros, o amor. Compare a personagem Alda com o seguinte texto.
As mulheres, objetos privilegiados do desejo “Em princípio, um homem pode muito bem ser o objeto de desejo de uma mulher tanto como uma mulher é o objeto de desejo de um homem. Contudo, a iniciativa da vida sexual costuma ser a procura de uma mulher por um homem. Se os homens têm a iniciativa, as mulheres têm o poder de provocar o desejo dos homens. Seria injustificado dizer que as mulheres são mais bonitas ou mesmo mais desejáveis que os homens. Mas, em sua atitude passiva, elas tentam obter, suscitando o desejo, a união que os homens alcançam perseguindo-as. Elas não são mais desejáveis, mas elas se propõem ao desejo. Elas se propõem como objetos ao desejo agressivo dos homens.” BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: ARX, 2004.
A partir da leitura do conto e do texto As mulheres, objetos privilegiados do desejo, discuta em classe o papel de objeto de desejo em Penélope. A seguir, redija no caderno, um pequeno texto em que se estabeleça a relação entre o texto de Bataille e o conto que estamos analisando. Com os colegas, em duplas, troquem os textos e façam comentários a respeito dos aspectos que ficaram claros e daqueles que estão confusos. Na gramática normativa, também encontramos definições de objetos que não estão mais ligados ao desejo sexual, mas à necessidade de complementar o sentido de um verbo. Observe: 54. Identifique os sujeitos das orações. a) Alda seduziu o jovem Manuel Ferreira.
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b) Alda parecia apaixonada.
55. Em qual das orações do exercício anterior, o predicado indica o estado do sujeito naquele momento?
Predicação é o tipo de relação mantida entre o sujeito da oração e o verbo. Essa relação, permite-nos identificar dois grupos de verbos: •
Verbos de estado ou de ligação: ligam o sujeito às suas características, ao seu estado ou às suas qualidades;
•
Verbos significativos ou nocionais: indicam ações ou fenômenos meteorológicos.
Verbos transitivos e intransitivos Observe o verbo destes versos já conhecidos:
“Senhora, partem tão tristes meus olhos por vós, meu bem,”. Partem está na terceira pessoa do plural, pois concorda com o sujeito, “meus olhos”. Ao inverter a posição do sujeito, lemos: “Senhora, meus olhos partem tão tristes por vós, meu bem”. Observe que a ação a que “partir” faz referência abrange somente o sujeito (os olhos). O sentido do verbo não necessita de nenhum complemento. Os olhos do eu-lírico vão embora, tristes e solitários. O verbo partir, no contexto da frase do poema, é um verbo intransitivo. Observe, no entanto, o mesmo verbo partir em outro contexto: Joana partiu o bolo antes de sair. O verbo “partiu” também expressa a ação praticada pelo sujeito (Joana), mas a ação expressa pelo verbo partir recai sobre um outro objeto – o bolo. “Joana partiu” e “Joana partiu o bolo” não significam a mesma coisa. Joana (quem? – pergunta que fazemos para identificar o sujeito) partiu o quê? – o bolo. Essa informação torna precisa a frase. Quando isso ocorre, isto é, quando o verbo necessita de um complemento, dizemos que ele é um verbo transitivo. Transitividade verbal ocorre quando alguns verbos apresentam a necessidade de ter outras palavras como complemento. A esses verbos que exigem complemento chamamos de transitivos, e aos que não exigem complemento chamamos intransitivos. Agora compare:
Joana partiu o vaso de cristal. VT
A ideia partiu de Joana. VT 110
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56. Em qual das orações do exercício anterior, o predicado informa a ação do sujeito?
Na primeira oração, o complemento “o vaso de cristal” se liga diretamente ao verbo, sem a obrigatoriedade de uma preposição. Nesse caso, dizemos que o verbo é transitivo direto. Já na segunda oração, o complemento “de Joana” se liga ao verbo por meio de uma preposição (“de”). Afirmar que “A ideia partiu de Joana” ou que “A ideia partiu Joana” não é a mesma coisa. A preposição “de” é obrigatória para a construção do sentido do texto. Nesse caso, dizemos que o verbo é transitivo indireto. A predicação de um verbo somente pode ser determinada no contexto da frase em que ele aparece, nunca isoladamente. É por isso que o verbo “partir”, como vimos, pode ter diferentes predicações, de acordo com a frase em que aparece e com o sentido que assume. Além dos verbos transitivos diretos e dos verbos transitivos indiretos, há também os verbos transitivos diretos e indiretos. Esses verbos são assim chamados por exigirem os dois complementos – um sem preposição obrigatória (objeto direto) e outro com preposição obrigatória (objeto indireto). Observe:
Antes de morrer, Marcondes, repartiu os seus bens, entre seus filhos. Objeto direto Objeto indireto
57. Leia como Carla resolveu o seguinte exercício de gramática normativa.
Classifique, quanto à predicação, os verbos destacados nas orações abaixo. As possibilidades são: verbos de ligação, verbos intransitivos, verbos transitivos diretos, verbos transitivos indiretos e verbos transitivos diretos e indiretos. a) Ele vive distraído.
Verbo transitivo direto. b) Viveu uma vida singela no interior de Goiás.
Verbo transitivo direto e indireto. c) Deus é maravilhoso.
Verbo de ligação. d) Ela sonha sonhos cor-de-rosa.
Verbo intransitivo. e) Ela sonha com um mundo melhor.
Verbo intransitivo. f)
João assistiu ao último filme de Almodóvar.
Verbo transitivo direto. g) Maria deu uma flor à sua professora.
Verbo de ligação. h) O poeta deu um grito.
Verbo intransitivo. a) O professor lamentou o desempenho de Carla, dizendo-lhe que ela somente acertara um item. Identifique-o.
b) Corrija as respostas de Carla. A língua afrodisíaca
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c) Justifique a escolha de Carla na letra b.
A transitividade verbal no conto Penélope O objeto direto, assim como o sujeito, pode apresentar um núcleo, representado por: a) um substantivo: “No costureiro, escolheu mais três vestidos...” b) uma palavra substantivada: “As mãos dele caídas sentiram o roçar breve do corpo dela.” Além disso, outras classes gramaticais podem aparecer como objeto direto de uma frase: – pronome pessoal oblíquo: “E ao lembrá-lo assim com pena, via-o de novo, modesto, ingênuo, jovem... tão jovem!”. – pronome indefinido substantivo: “Se ele estivesse diante de qualquer mulher não indagaria nada”. – oração substantiva objetiva direta: “Disse que sairia esta noite”. Mas voltemos a nossa atenção para o conto Penélope:
“Em vez de ciumento, era paternal; em vez de fechá-la, passeava-a por todos os salões, dava recepções, queria mostrá-la como o facho de sua glória”. 58. Identifique os objetos diretos do período anterior. 59. Leia com atenção o seguinte período:
“Em vez de ciumento, era paternal; em vez de ficarem fechados, passeavam por todos os salões, davam recepções, queria mostrá-la como o facho de sua glória”.
Que diferenças de sentido há entre os dois trechos? Ao optar pelo uso do pronome oblíquo (a, referindo-se a Alda), como objeto direto dos verbos “fechar”, “passear” e “mostrar”, o narrador do conto permite construir que imagem sobre a mulher no início do século XX?
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d) Em sua opinião, o que dificultou o aprendizado de Carla?
Pesquisando na gramática 60. Em duplas com os colegas, pesquisem, em uma gramática normativa da língua portuguesa, que classes de palavras podem representar o núcleo do objeto indireto e escrevam-as no espaço a seguir. Ao lado de cada uma, coloquem um exemplo retirado do conto Penélope.
61. Observe:
“Essa ingenuidade deu-lhe a ela um pouco de ousadia.” O emprego de dois objetos indiretos numa mesma frase: pronome pessoal átono lhe e pronome pessoal do caso reto ela regido por preposição a, apresenta que valor quanto à construção do sentido no texto? I.
Realça e reforça o sentido da frase, valorizando a pessoa que se sente mais ousada a partir da ingenuidade do outro.
II. Distancia-se do leitor que se vê obrigado a ler a mesma informação duas vezes. III. Revela o preconceito social do narrador que deprecia a capacidade da mulher ao seduzir um homem. Estão corretas: a) Somente I; b) Somente I e III; c) Somente III; d) Somente II; e) Somente I e II. A língua afrodisíaca
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Voltemos a Caetano Ouça novamente a música Você não sabe nada. Um dos trechos mais polêmicos da música é o seguinte:
62. Nesse trecho, encontramos uma ambiguidade causada pela ausência de pontuação. Sem sabermos se o termo “você” ocupa a posição de objeto direto ou sujeito, podemos construir diferentes interpretações. Dessas diversas possibilidades, uma é considerada de baixo calão. Identifique o trecho de que estamos tratando e explique a ambiguidade.
No sexto capítulo do volume 1 desta coleção, estudamos como resenhar criticamente um texto. Uma resenha crítica compõe-se basicamente de quatro partes: •
referências sobre a obra que se pretende resenhar, tais como autor, título, local e data de edição, número de páginas e formato;
•
resumo da obra;
•
conhecimentos culturais sobre o assunto tratado e sobre o autor da obra;
•
opinião crítica sobre a obra.
Tais partes não precisam aparecer seguindo uma ordem específica. O autor deve encontrar a melhor maneira para atingir a opinião do leitor. 63. Releia todas as anotações que você fez a respeito do conto. Agora, elabore uma resenha crítica do conto Penélope do escritor João do Rio. Antes de entregá-la a seu professor, permita que um colega seu a leia e troquem ideias para deixá-la melhor, preocupando-se em especial com o sentido de suas afirmações.
Atenção! Ao escrever evite frases, como: “De um ângulo sociopolítico e contemporâneo à rotação erótica, a atitude neófita foi risível.” Como afirmamos até aqui, os outros devem entender o que você escreve. A clareza em seu texto é algo muito importante! Evite palavras que você considera bonitas mas não entende o que significam. A frase do exemplo não é apenas complicada, apesar de usar palavras que existem, ela é desprovida de qualquer sentido. Procure colocar-se no lugar do leitor e pergunte-se: ele entende o que escrevo?
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“Traz meu café com suíta eu tomo Bota a sobremesa, eu como, eu como Eu como, eu como, eu como Você Tem que saber que eu quero correr mundo.”
HISTÓRIA CRÍTICA DA ARTE DA LITERATURA: ROMANTISMO — PARTE II O Romantismo no Brasil O século XIX inicia-se com o Brasil colônia de Portugal, mantendo uma estrutura econômica voltada para a exportação, latifundiária e sustentada pela escravidão. O cenário político era ocupado por uma monarquia conservadora, que continuou no poder mesmo depois da independência do Brasil (1822). Como vê, as condições socioculturais brasileiras foram muito diferentes das encontradas nos países europeus onde se originou o Romantismo. No entanto, ocorreram avanços na sociedade brasileira que facilitaram a divulgação da ideologia romântica.
DEBRET, Jean Baptiste. Aclamação de D. Pedro [s.d.]. Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes.
A partir de 1808, a vinda da Família Real Portuguesa, acompanhada por parte da corte transformou cultural e economicamente o Brasil – implantou-se a imprensa e fundou-se o ensino universitário. A cidade do Rio de Janeiro ganha grande importância no cenário cultural do Brasil. Ao mesmo tempo, o país adquiriu a possibilidade de comunicar-se com outros centros culturais além de Portugal, recebendo deles contribuições. O processo de independência ativou, ainda, mais a efervescência intelectual e nacionalista já instalada. Com o início da imprensa brasileira, inicia-se também o folhetim. Tratava-se de uma publicação diária, em jornais, de capítulos de uma obra literária. Era uma forma de vender o jornal e ampliar o público leitor. Principalmente as mulheres se encantavam com os folhetins, mas os seus leitores abrangiam também homens, de todos os segmentos e classes sociais.
ALMEIDA JÚNIOR. Cozinha caipira. (1895). São Paulo: Pinacoteca do Estado.
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ALMEIDA JÚNIOR. Caipira picando fumo. (1893). São Paulo: Pinacoteca do Estado.
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O maior nome de nossa ficção romântica é, sem dúvida, José de Alencar. Sua vida e obra demonstram um elevado grau de nacionalismo. Soube, como poucos, adaptar as novidades estéticas e ideológicas à realidade brasileira. Autor de uma produção vasta, descreveu, dentro do espírito romântico da época, as sociedades indígenas, sertanejas e urbanas do Brasil. Sua preocupação nacionalista levou-o a defender que a língua falada no Brasil era brasileiro, não português. Esforçou-se para mostrar que essa língua brasileira tinha uma base no português, mas sofrera inúmeras influências indígenas, além daquelas que ocorreram por aqui, depois da chegada dos portugueses. O seu pensamento levou-o também a defender uma civilização brasileira, herdeira das culturas europeia e indígena. É principalmente nos seus romances indianistas Iracema e O Guarani que deixa transparecer essa visão nacionalista.
“À maneira do Arcadismo, o Romantismo surge como momento de negação; negação, neste caso, e na literatura luso-brasileira, mas profunda e revolucionária, porque visava redefinir não só a atitude poética, mas o próprio lugar do homem no mundo e na sociedade”. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. São Paulo: Martins, 1969.
Uma de suas obras mais importantes é Iracema. Alencar cria uma lenda para explicar a origem de seu estado natal, o Ceará e da civilização brasileira. Depois do encontro inesperado, como você poderá ler em seguida, Iracema se apaixona por Martim. Contudo, devido à condição religiosa de Iracema ela deveria manter-se virgem e fiel a Tupã. Martim, por sua vez, vê-se dividido entre o amor de Iracema e a saudade que sente de uma jovem que deixara em Portugal.
“Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápido que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil e nu, mal roçando alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas. Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto. 116
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É com o Romantismo que a prosa de ficção da literatura brasileira começa a dar seus passos decisivos. O Romantismo europeu ganha no Brasil cor local. Ou seja, substituíram-se os modelos românticos da Europa por correspondentes brasileiros. Com isso, dominou na literatura romântica brasileira uma forte tendência sertaneja e indianista. Além, é claro, da narrativa urbana, em que uma série de dificuldades na vida de dois amantes são vencidas e terminam com um final feliz: o par romântico se casa. Pertence a esse subgênero, o primeiro sucesso junto ao público de uma narrativa brasileira – o romance A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo.
Para incentivar o leitor a não deixar de ler o próximo capítulo do folhetim, os autores utilizavam-se de certas técnicas. Uma delas era a de cortar a narrativa justamente em um momento de grande emoção. Essa estratégia também pode ser vista hoje em algumas formas de diversão. Quais?
Iracema saiu do banho; o aljôfar d’água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste. A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru de palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá, as agulhas da juçara com que tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão. Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se. Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo. Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido. De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada, mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d’alma que da ferida. O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém, a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que causara. A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada. O guerreiro falou: – Quebras comigo a flecha da paz? – Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu? – Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus. – Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldeias, e à cabana de Araquém, pai de Iracema.”
MEDEIROS, José Maria. Iracema. (1881). Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes.
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65. A conduta de Martim também é idealizada e associada a valores morais. De que forma podemos aproximar a personagem Martim, de Alencar, de Eurico, da obra de Alexandre Herculano?
66. A palavra Iracema não é realmente um termo tupi-guarani que significa “lábios de mel”, como nos faz crer Alencar. Contudo, IRACEMA revela-se um interessante anagrama que nos ajuda a compreender o texto sob um outro olhar. Descubra que palavra da língua portuguesa é possível obter usando as mesmas letras da palavra IRACEMA.
67. O que representaria Martim dentro da narrativa de Iracema?
68. O que representaria, dentro do valor metafórico do texto, um filho de Martim e Iracema? Como isso está de acordo com a proposta nacionalista de Alencar?
O índio representou na literatura brasileira aquilo que o cavaleiro medieval representou na literatura europeia: um modelo ideal a ser seguido. O filósofo Jean-Jacques Rousseau considerava o selvagem um modelo naturalmente bom de ser humano que apenas se corrompe ao entrar em contato com a civilização do homem branco. Uma das páginas mais bonitas da literatura brasileira é o poema I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias. Um valente guerreiro tupi é preso pelos aimorés, que se preparam para matá-lo. Antes de morrer, no entanto, o índio faz o seguinte lamento:
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64. A descrição de Iracema apresenta-a como alguém superior aos humanos, quase uma deusa. De que estratégias se vale Alencar para construir esse efeito na personagem Iracema?
IV
Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi: Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; Guerreiros, descendo Da tribo tupi. Da tribo pujante, Que agora anda errante Por fado inconstante, Guerreiros, nasci; Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi. Já vi cruas brigas, De tribos inimigas, E as duras fadigas Da guerra provei; Nas ondas mendaces Senti pelas faces Os silvos fugaces Dos ventos que amei. Andei longes terras Lidei cruas guerras, Vaguei pelas serras Dos vis Aimorés; Vi lutas de bravos, Vi fortes – escravos! De estranhos ignavos Calcados aos pés. E os campos talados, E os arcos quebrados, E os piagas coitados Já sem maracás; E os meigos cantores, Servindo a senhores, Que vinham traidores, Com mostras de paz. Aos golpes do inimigo, Meu último amigo, Sem lar, sem abrigo Caiu junto a mi! Com plácido rosto, Sereno e composto, O acerbo desgosto Comigo sofri. A língua afrodisíaca
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Meu pai a meu lado Já cego e quebrado, De penas ralado, Firmava-se em mi: Nós ambos, mesquinhos, Por ínvios caminhos, Cobertos d’espinhos Chegamos aqui!
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O velho no entanto Sofrendo já tanto De fome e quebranto, Só qu’ria morrer! Não mais me contenho, Nas matas me embrenho, Das frechas que tenho Me quero valer. Então, forasteiro, Caí prisioneiro De um troço guerreiro Com que me encontrei: O cru dessossego Do pai fraco e cego, Enquanto não chego Qual seja, – dizei! Eu era o seu guia Na noite sombria, A só alegria Que Deus lhe deixou: Em mim se apoiava, Em mim se firmava, Em mim descansava, Que filho lhe sou. Ao velho coitado De penas ralado, Já cego e quebrado, Que resta? – Morrer. Enquanto descreve O giro tão breve Da vida que teve, Deixai-me viver! Não vil, não ignavo, Mas forte, mas bravo, Serei vosso escravo: Aqui virei ter. Guerreiros, não coro Do pranto que choro: Se a vida deploro, Também sei morrer. DIAS, Gonçalves. Antologia poética. Rio de Janeiro: Agir, 1969.
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Capítulo 2
Antônio GONÇALVES DIAS (1823–1864) – Nasceu nos arredores de Caxias (MA). Foi advogado, professor de Latim e História, jornalista e escritor. Autor de uma obra vasta e diversificada, é considerado uma das mais altas vozes da lírica brasileira. Sua poesia apresenta características próprias de um nacionalismo exagerado, com fortes raízes católicas e familiares como, aliás, foi típico da poesia da primeira geração do Romantismo brasileiro. Faleceu ao regressar de uma viagem à Europa, em um naufrágio, já próximo do Maranhão. 69. Que pedido faz o guerreiro capturado e por quê?
70. O guerreiro se considera covarde pelo pedido que faz? Explique.
71. Qual a reação dos aimorés diante do pedido desse índio? Como o pai desse jovem capturado irá reagir? Discutam em classe os possíveis finais para a narrativa. Anotem no caderno as conclusões a que chegaram. Depois, encontrem na biblioteca da escola ou de sua casa ou na Internet o poema “I-Juca Pirama”. Observe que o poema todo é composto de dez partes e, neste livro, transcrevemos apenas a parte IV. Torne a anotar no caderno as respostas que o próprio autor dá para essas duas perguntas. Leia o poema e contraste o final produzido por Gonçalves Dias com aquele pressuposto pela classe. Quais as diferenças e semelhanças encontradas?
72. Que semelhanças você encontra entre Iracema, personagem do romance de José de Alencar e I-Juca Pirama, do poema de Gonçalves Dias?
De acordo com o próprio autor, o nome “I-Juca Pirama” significa “aquele que deve morrer”. Por que o título do texto é coerente com a narrativa?
73. Durante este livro, estudaremos expressões artísticas e culturais indígenas. Compare a descrição de Iracema com as informações veiculadas em jornais e revistas sobre o tema. Discuta, em duplas, que relações se podem estabelecer entre a abordagem do índio feita pelo Romantismo (por nomes como Alencar e Gonçalves Dias), aquela a que usualmente temos acesso. Elabore, no caderno, uma conclusão sobre o assunto. A língua afrodisíaca
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Victor Meirelles, Pedro Américo e Almeida Júnior (1850-1899), por sua vez, são os grandes nomes de nossa pintura do século XIX. Apesar do Romantismo, o Império incentiva o gosto acadêmico e neoclássico.
TAUNAY, Nicola. Vista do Morro de Santo António. (1816). Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes.
Em 1816, D. João VI convidou um grupo de artistas franceses para visitar o Brasil. A “Missão Francesa”, como ficou conhecida, tinha como objetivo promover as artes no país e formar o núcleo original da Escola Imperial de Belas Artes, que se torna o grande centro das artes no Brasil. O gosto neoclássico dessa Missão, pode ser observado na reprodução de um quadro de Taunay, um de seus integrantes.
Não obstante a influência neoclássica, os nossos pintores assumem também características românticas, fundindo ambos os movimentos, como se pode verificar na abordagem do tema indianista Moema, baseado na obra literária árcade Caramuru, de Santa Rita Durão.
MEIRELLES, Victor. Moema. (1866). São Paulo: MASP.
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FERRARIO, Carlo. Cenário da ópera O Guarani, no teatro Scala de Milão. (1816). Petrópolis: Museu Imperial.
Além da literatura, a música e a pintura brasileiras expressaram as principais características do movimento romântico mundial. Valorizaramse principalmente o nacionalismo e a afirmação da identidade cultural. A maior parte dos músicos da época procurou valorizar os elementos nacionalistas, ainda que a formação do compositor erudito dependesse quase que completamente das escolas europeias. O resultado foram temas folclóricos nativos numa linguagem musical francesa ou alemã. Destaca-se o nome de Carlos Gomes, como o maior compositor romântico brasileiro.
Luanda no imaginário brasileiro: as raízes negras do Brasil Luanda, capital de Angola, surge no imaginário popular brasileiro em temas associados à escravidão e à musicalidade, como na letra desta música, própria para o exercício da capoeira.
Navio negreiro CORO Angola, êh Angola São Paulo de Luanda Toda Aruanda E os negros Bantos de lá O navio negreiro partiu de Luanda Tristeza maior nunca se viu O navio navega e o mundo dá voltas Fica na lembrança o que o negro viveu... em Angola CORO Na linha do horizonte o destino não via... O negro na embarcação Trouxe orgulho na alma e o sangue na veia Deixando seu coração... em Angola CORO O batuque do negro de Angola Trouxe axé pro Brasil No balanço parece que o corpo tem mola Do gingado do negro nasceu Capoeira... de Angola CORO Disponível em . Acessado em 2-10-2005.
Capoeira A língua afrodisíaca
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1. Na segunda metade do século XIX, Castro Alves escreveu um dos poemas mais importantes da história da Literatura Brasileira, Navio negreiro. A seguir, transcrevemos uma de suas partes mais célebres. Encontre as semelhanças entre o poema da terceira geração do Romantismo brasileiro e a letra de música que leu.
V “Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade Tanto horror perante os céus?! Ó mar, por que não apagas Co’a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão?... Astros! noites! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão!
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
Quem são estes desgraçados Que não encontram em vós Mais que o rir calmo da turba Que excita a fúria do algoz? Quem são? Se a estrela se cala, Se a vaga à pressa resvala Como um cúmplice fugaz, Perante a noite confusa... Dize-o tu, severa Musa, Musa libérrima, audaz!... São os filhos do deserto, Onde a terra esposa a luz. Onde vive em campo aberto A tribo dos homens nus... São os guerreiros ousados Que com os tigres mosqueados Combatem na solidão. Ontem simples, fortes, bravos. Hoje míseros escravos, Sem luz, sem ar, sem razão... São mulheres desgraçadas, Como Agar o foi também. Que sedentas, alquebradas, De longe... bem longe vêm... Trazendo com tíbios passos, Filhos e algemas nos braços, N’alma – lágrimas e fel... Como Agar sofrendo tanto, Que nem o leite de pranto Têm que dar para Ismael. Lá nas areias infindas, Das palmeiras no país, Nasceram crianças lindas, 124
Capítulo 2
Viveram moças gentis... Passa um dia a caravana, Quando a virgem na cabana Cisma da noite nos véus... ... Adeus, ó choça do monte, ... Adeus, palmeiras da fonte!... ... Adeus, amores... adeus!... Depois, o areal extenso... Depois, o oceano de pó. Depois no horizonte imenso Desertos... desertos só... E a fome, o cansaço, a sede... Ai! quanto infeliz que cede, E cai p’ra não mais s’erguer!... Vaga um lugar na cadeia, Mas o chacal sobre a areia Acha um corpo que roer.
CASTRO ALVES Pesquise as informações fundamentais da vida e da obra deste escritor brasileiro.
Ontem a Serra Leoa, A guerra, a caça ao leão, O sono dormido à toa Sob as tendas d’amplidão! Hoje... o porão negro, fundo, Infecto, apertado, imundo, Tendo a peste por jaguar... E o sono sempre cortado Pelo arranco de um finado, E o baque de um corpo ao mar... Ontem plena liberdade, A vontade por poder... Hoje... cúmulo de maldade, Nem são livres p’ra morrer. Prende-os a mesma corrente – Férrea, lúgubre serpente – Nas roscas da escravidão. E assim zombando da morte, Dança a lúgubre coorte Ao som do açoute... Irrisão!... Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus, Se eu deliro... ou se é verdade Tanto horror perante os céus?!... Ó mar, por que não apagas Co’a esponja de tuas vagas Do teu manto este borrão? Astros! noites! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão!...” ALVES CASTRO. O navio negreiro. In: Os escravos. 1969.
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74. Anote, no caderno, as semelhanças e diferenças encontradas no que respeita ao estilo e à abordagem do tema. Em classe, discuta as conclusões a que chegaram. A partir dessa discussão, reformule o que considerar necessário em seu texto.
76. Castro Alves, por sua vez, recorre a uma passagem da Bíblia para escrever o seu texto. A passagem em questão se encontra no livro bíblico do Gênesis, capítulo 21, versículos 8 a 21. Que relação intertextual produtiva Castro Alves estabelece em seu texto?
O Romantismo no Brasil No capítulo 8, do volume 1 desta coleção, você organizou uma antologia da língua portuguesa centrada no tema do amor. Neste momento, propomos que, em trios, organizem uma outra antologia, mas com critérios de seleção bem diferentes: uma Antologia Escolar do Romantismo Brasileiro – poesia e prosa. Em primeiro lugar, talvez seja interessante recapitular, no volume 1, o que se espera de uma antologia. Depois, o termo “escolar”. Isso significa que se deseja que ela possa servir para que outros alunos possam ter uma ideia clara do Romantismo no Brasil. Assim, a seleção dos autores e dos textos escolhidos deve ser muito criteriosa, não pelo tema, mas pela sua importância, para a compreensão deste importante movimento estético. Também, para facilitar o estudo do Romantismo, propomos que escolham alguns dos textos e encontrem letras de música e poemas contemporâneos (ou, pelo menos, do século XX) que se abram para um diálogo com o tema abordado. Um pequeno comentário mostrando a relação entre o texto romântico e o contemporâneo poderá servir de grande ajuda para o leitor. Em classe, poderão discutir outros critérios de seleção, bem como o número total de nomes e obras que deverão aparecer. Claro que, para os textos em prosa de maior volume, como romances e peças de teatro, recomendamos que escolham um trecho significativo, em vez de transcrever todo o texto. Para facilitar a organização do seu trabalho, apresentamos um quadro-síntese que, quando completo, poderá servir-lhes de guia. Observe que, apesar de Gonçalves de Magalhães, com Suspiros poéticos e saudades ser, oficialmente, o introdutor do Romantismo no Brasil, a importância literária de sua obra é hoje considerada pequena. Assim, no que diz respeito à primeira geração, é melhor preferir o nome de Gonçalves Dias.
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Capítulo 2
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75. A que escola literária pertence Castro Alves? Que características dessa escola você encontra no texto lido?
Poesia Romântica: três gerações Geração 1ª – Nacionalista
Principais características Nacionalista Religiosa
Principais poetas Gonçalves de Magalhães Gonçalves Dias
Principais obras Suspiros poéticos e Saudades (1936)
Egocentrismo
“Pensamento gentil da paz eterna,/ Amiga morte, vem. Tu és o termo / De dous fantasmas que a existência formam, / – Dessa alma vã e desse corpo enfermo.“ (Junqueira Freire).
3ª – Condoreira
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Trecho exemplificador
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Prosa: O romance romântico Características
Principais obras
Romance urbano:
Trecho exemplicador “Tudo isto quer dizer que, chegando ao Rocio, não vi mais ônibus algum; o empregado a quem me dirigi respondeu: - Partiu há cinco minutos. Resignei-me e esperei pelo ônibus de sete horas. Anoiteceu. Fazia uma noite de inverno fresca e úmida; o céu estava calmo, mas sem estrelas.” (Cinco Minutos).
Romance regionalista:
José de Alencar
Romance indianista: O índio como bom selvagem (na tradição do Iluminismo francês) e equivalente ao modelo medieval de virtudes idealizado na Europa.
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Iracema O Guarani Ubirajara
“Peri tomou a canoa nos seus braços, como se fora um berço mimoso, e deitoua sobre a relva que cobria a margem do rio; depois sentou-se ao lado, e com os olhos fitos em Cecília, esperou que ela saísse desse sono prolongado que começava a inquietá-lo.” (O Guarani).
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Autor
Prosa: O romance romântico Autor
Características
Principais obras
Trecho exemplicador
M. A. Almeida
Inocência
Visconde de Taunnay
Outros autores
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Prosa: O teatro no Romantismo Autor
Características
Principais obras
Trecho exemplicador
FLORÊNCIA – Sei disso, vidinha.
Martins Pena
AMBRÓSIO – E não foi o interesse que obrigoume a casar contigo.” (O Noviço).
“BRÁS – Infeliz! Que fazes aqui? SATANÁS – Sou Satanás, rei dos infernos, encarregado pelos demônios para destruirmos os maus!”
Qorpo Santo
(Certa identidade em busca de outra).
Você poderá encontrar material para a sua antologia na biblioteca da escola. Em geral, todas as bibliotecas escolares têm muito material sobre o Romantismo. Mesmo assim, poderá procurar também no referido site . Na Internet, com a ajuda de um buscador, poderá encontrar outros sites de e-books (ou e-livros), de livros gratuitos e bibliotecas virtuais.
PAUSA PARA REFLEXÃO No caderno, responda às questões a seguir. 1. Que conteúdos deste capítulo conseguiria explicar sem consultar o livro? 2. Consultando o livro, identifique os conteúdos que, na sua opinião, não foram bem compreendidos e merecem novas explicações ou atividades de reforço. 3. Que atividade(s) considerou mais importante(s) para o seu aprendizado? Por quê? 4. Em que aspectos você poderá melhorar sua participação nas próximas aulas?
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Capítulo 2
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“AMBRÓSIO – Quando eu te vi pela primeira vez não sabia que era viúva rica. (à parte:) Se o sabia! (Alto:) Amei-te por simpatia.
DE OLHO NO FUTURO Nesta parte final da primeira unidade, procuraremos compreender melhor o que muitos exames, como aqueles de acesso ao ensino superior, consideram redigir bem. Vamos falar especificamente do texto dissertativo-argumentativo. Mas o que isso significa na prática? O que o aluno deve dizer para ir bem em um exame de acesso ao ensino superior ou a um emprego? Na dissertação, o enunciador deve apresentar uma opinião. Mas isso não significa simplesmente expor um “eu acho”. A elaboração de um texto dissertativo-argumentativo exige estratégias. Primeiro, deve-se pensar no tipo de texto que se deseja escrever, assim como no destinatário desse texto. A preocupação em projetar o texto exige que se pense também no objetivo dessa escrita, bem como no assunto a ser tratado no texto e, finalmente, no conhecimento prévio que se tem desse mesmo assunto. Isso permitirá que a opinião formulada não seja um “achismo”, mas o resultado de uma reflexão sobre o tema proposto. Somente assim essa opinião poderá ser apresentada de forma explícita, utilizando-se para isso de argumentos de apoio que comprovem suas hipóteses e tese e permitam o desenvolvimento de seu projeto de texto. A estrutura de um texto dissertativo-argumentativo exige: a) Uma afirmação, que podemos chamar de proposição ou tese que seja importante para um determinado grupo na sociedade e que possa ser contestada. Em outras palavras, a afirmação que “os seres humanos necessitam de ar para viver” dificilmente poderia ser a tese de uma argumentação, pois, embora seja importante para todos, não pode ser contestada, a não ser no domínio da ficção. b) A análise da afirmação, feita a partir de seus termos essenciais, o que significa que se leva em conta, de forma explícita ou não, outras concepções sobre o que se defende. Ao posicionar-se a respeito de um tema, como a violência, o aborto ou a homossexualidade, seu texto deve analisar os motivos que o levam a defender a sua afirmação mas, ao mesmo tempo, considerar que não existe apenas a sua maneira de pensar. Analisar a afirmação exige do enunciador um posicionamento. O enunciador demonstra em seu texto concordância total ou parcial em relação a uma tese já existente ou discordância em relação à mesma. c) Um quadro de problematização que orienta a perspectiva do texto dentro de um ponto de vista social, religioso, moral, matemático, econômico, político, ideológico, etc. Argumentar sobre a origem da violência no Brasil do ponto de vista econômico (a violência significa a perda de dinheiro dos cofres públicos e privados, exigindo gastos equivalentes ao patrimônio líquido de todos os bancos do Brasil) é diferente do que fazê-lo do ponto de vista social (a violência resulta de problemas sociais históricos, tais como o preconceito racial, a má administração do dinheiro público, a falta de educação formal) ou ainda sob o ponto de vista religioso (a violência resulta do afastamento do amor de Deus e conduz os homens à escuridão espiritual). d) Argumentos que sejam aceitáveis pelos interlocutores. Os argumentos revelam a lógica do raciocínio do enunciador. e) A conclusão que permite constatar o ponto de chegada a partir dos argumentos apresentados e que demonstra a pertinência da afirmação defendida, dentro do quadro de problematização apresentado. Para redigir um bom texto dissertativo-argumentativo você deve, antes de tudo, compreender a proposta de redação. Isso exige capacidade de leitura. Depois, deve aplicar conceitos de diversas áreas do conhecimento para desenvolver o tema proposto, mantendo-se, contudo, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo. Mostrar-se competente em fazer uma boa redação em um exame envolve dois grandes momentos:
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1º – o da leitura e interpretação da proposta de redação. 2º – o da compreensão transposta para o projeto de texto, levando em conta os limites formais da estrutura dissertativo-argumentativa.
Um exemplo prático Erick, irmão de Carla, aluna do segundo ano do ensino médio, inscreveu-se, no ano de 2003, no Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM). A proposta de redação que teve de enfrentar aparece em seguida.
Época, 2-6-2003.
“Entender a violência, entre outras coisas, como fruto de nossa horrenda desigualdade social, não nos leva a desculpar os criminosos, mas poderia ajudar a decidir que tipo de investimentos o Estado deve fazer para enfrentar o problema: incrementar violência por meio da repressão ou tomar medidas para sanear alguns problemas sociais gravíssimos.” (Maria Rita Kehl. Folha de S.Paulo.)
“Ao expor as pessoas a constantes ataques à sua integridade física e moral, a violência começa a gerar expectativas, a fornecer padrões de respostas. Episódios truculentos e situações-limite passam a ser imaginados e repetidos com o fim de legitimar a ideia de que só a força resolve conflitos. A violência torna-se um item obrigatório na visão de mundo que nos é transmitida. O problema, então, é entender como chegamos a esse ponto. Penso que a questão crucial, no momento, não é a de saber o que deu origem ao jogo da violência, mas a de saber como parar um jogo que a maioria, coagida ou não, começa a querer continuar jogando. (Adaptado de: Jurandir Costa. O medo social).”
Considerando a leitura do quadro e dos textos, redija um texto dissertativo-argumentativo sobre o tema: A violência na sociedade brasileira: como mudar as regras desse jogo? Analisemos inicialmente a proposta de redação.
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Para desenvolver o tema da redação, observe o quadro e leia os textos apresentados a seguir.
1. Qual a tese defendida no texto de Maria Rita Kehl?
2. Que tese é defendida no texto adaptado de Jurandir Costa?
3. Qual a(s) perspectiva(s) que orienta(m) a tabela apresentada?
4. Que quadro de problematização orienta a perspectiva do texto de Maria Rita Kehl?
5. Qual seria o leitor ideal para o texto adaptado de Jurandir Costa?
A redação de Erick A redação que o irmão de Carla produziu aparece em seguida. Pense no que tratamos anteriormente sobre dissertação e verifique se os resultados de Erick foram satisfatórios.
Violência é consequência da polarização do mundo A violência é a consequência da polarização do mundo em duas grandes classes sociais: ricos e pobres. As diferenças também se manifestam na política, na religião e, claro, na economia. Grandes conflitos estão associados à insatisfação das camadas sociais pobres diante da hipocrisia e falta de atenção dos políticos. Todo político é corrupto e só pensa em si mesmo quando está no poder, por isso o pobre sofre. O resultado é o aumento da fome, do desemprego e dos problemas de saúde e de educação. Sem terem as suas necessidades básicas, as camadas populares são levadas a roubar, assassinar e a outros conflitos. O ladrão, mesmo pobre, possui as mesmas necessidades de qualquer pessoa. Muita gente está roubando porque passa fome. De acordo com Maria Rita Kehl seria mais fácil atingir a base do problema do que combatê-lo apenas com repressão. Os investimentos do governo deveriam ser não apenas para a modernização da polícia, mas para medidas preventivas nas áreas sociais. Com uma melhor distribuição da renda, o país melhora. Além disso, os políticos deveriam parar de ser corruptos e ajudar os pobres a conseguir um bom emprego, para não precisar roubar. Finalmente, cada um de nós temos grande responsabilidade social. Como cidadãos nossas ações devem ser coerentes com a paz que desejamos para nós e para os nossos filhos. Por isso, devemos banir toda a violência de nossa prática diária e cultivar um mundo melhor. LANDEIRA, José Luís. (Especialmente para esta obra).
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Analisemos a estrutura da dissertação de Erick. Ao responder às perguntas a seguir saiba que talvez não haja respostas satisfatórias para algumas delas, o que irá prejudicar a avaliação final de Erick.
2. Essa tese é defendida do princípio ao final da dissertação? Explique.
3. Trata-se de uma tese importante para um determinado grupo na sociedade e que possa ser, de alguma forma, contestada?
4. Que quadro de problematização orienta a perspectiva do texto?
5. Que argumentos o enunciador usa para defender a sua tese?
6. Toda argumentação permite uma contra-argumentação. Qual seria a tese oposta (antítese) à tese defendida pelo enunciador?
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1. Qual a tese defendida pelo enunciador?
7. Utilizando-se dos conceitos Insuficiente, Fraco, Regular, Bom e Ótimo, que avaliação você faria da redação de Erick e por quê?
A violência em um editorial jornalístico Leia, agora, com atenção, um editorial extraído da Folha de S.Paulo de 14 de junho de 2004.
Custo-violência “Quanto custa a violência? Um novo estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgado na semana passada procura responder a essa e a outras perguntas relacionadas à violência interpessoal. Os dados foram apresentados durante a 7ª Conferência Mundial para a Prevenção de Traumas e a Promoção da Segurança, que ocorreu em Viena, na Áustria. De acordo com a OMS, cerca de 1,6 milhão de pessoas morrem por ano no planeta, devido a causas não relacionadas a doenças. Milhões de outras carregam pelo resto de suas vidas as sequelas físicas e emocionais dos episódios de que foram vítimas. A violência é uma das principais causas de morte para pessoas entre 15 e 44 anos e responde por 14% dos óbitos masculinos e por 7% dos femininos. Enquanto a maioria das vítimas masculinas é morta por desconhecidos, cerca de metade das mulheres é assassinada por seus companheiros ou ex-companheiros. O estudo sugere ainda, a partir de números de alguns países, que cerca de 20% das mulheres e entre 5% e 10% dos homens foram vítimas de abuso sexual na infância. No plano econômico, a OMS calcula que países da América Latina possam gastar mais de 4% de seu PIB (Produto Interno Bruto) com despesas de saúde relacionadas à violência. É o caso da Colômbia e de El Salvador, que perdem 4,3% de seu PIB nessa rubrica. Para o Brasil, os dispêndios foram estimados em 1,9% do PIB; para o Peru, 1,5%; para o México, 1,3%; e para a Venezuela, 0,3%. Vale notar que as despesas em tratamento médico estão longe de representar o total das perdas econômicas geradas pela violência. Outros itens a considerar seriam os custos de policiamento e de encarceramento e, indiretamente, a perda de produtividade das vítimas. Vê-se, portanto, que reduzir os níveis de violência não é apenas um imperativo humanitário e social, mas também um fator relevante para o desenvolvimento econômico.” Folha de S.Paulo, 14-6-2004.
Responda: 1. Qual a tese defendida no editorial?
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2. Qual o objetivo de escrita desse texto?
4. Que relação podemos estabelecer entre o quadro de problematização e o título do editorial?
5. Qual seria o leitor ideal para esse editorial? Por quê?
A argumentação e a resenha crítica Toda resenha manifesta uma opinião crítica sobre uma determinada obra, o que não deixa de ser uma afirmação polêmica sobre algo que pode, inclusive, ser contra-argumentada. Dessa forma, a resenha crítica pode ser considerada um texto argumentativo-dissertativo. Distribuam as resenhas entre os alunos da sala. De posse da resenha crítica sobre o conto “Penélope” de João do Rio, escrita por seu colega, responda às questões a seguir. 1. Qual a tese defendida na resenha?
2. Essa tese é defendida do princípio ao final da resenha?
3. De que argumentos o enunciador se utiliza para defender a sua tese?
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3. Em que quadro de problematização podemos inserir o editorial Custo-violência?
4. Para finalizarmos, escreva a sua dissertação a partir do tema proposto pelo ENEM. Inicialmente, certifique-se de que aquilo que se constituirá como a afirmação central de seu texto seja importante para um determinado segmento social e que possa ser contestado. Analise a sua afirmação, refletindo sobre o posicionamento do enunciador frente a outras teses existentes sobre o mesmo assunto (no nosso caso, violência). Depois, elabore dois ou três argumentos, verificando em qual quadro de problematização eles podem se inserir. Agora escreva sua dissertação, fazendo pleno proveito desse trabalho preliminar. Seu professor irá ler o texto e fazer os comentários necessários.
Importante! Evite expressões como: “Esse tipo de pessoas merece ser exterminado”. Ainda que você tenha direito a ter suas opiniões, uma posição extremista como matar pessoas ou cortar-lhe as mãos soa grosseiro e radical. Evite os riscos desnecessários de posições extremistas. Procure desenvolver um texto equilibrado, sem partidarismos extremos.
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Capítulo 3 PENSANDO O PODER DA ARTE Conteúdos – A arte: a estabilidade e o transitório. Estratégias de argumentação. A oratória de Fernando Pessoa. Modalização do discurso argumentativo. O estilo e as relações com o “engenho” e a “arte”. Literatura e visão de mundo. A escola literária (conceito e função social). Oswald de Andrade. A epopeia. O clássico na arte e na literatura. A época clássica. Os Lusíadas. Luís de Camões. Intertextualidade com as obras clássicas. O Realismo/Naturalismo – Parte I. Reflexões – A arte como forma de iluminação interior. O direito de mudar de opinião. A obra de arte e a visão de mundo. Quando se faz necessário escolher entre o amor e a responsabilidade. Gêneros textuais – O discurso. A epopeia. O manifesto. Capítulo 4 A MISÉRIA DO MUNDO Conteúdos – A literatura e a arte como instrumentos de denúncia do abuso do poder. O rap e a cultura hip hop. Eça de Queirós e O primo Basílio. A análise sintática e a expressividade das frases. O discurso político na vida social. A teoria do romance. Como ler romances. O Realismo/Naturalismo – Parte II. Reflexões – A necessidade da expressão artística. Posicionamento crítico diante da obra literária: o direito de gostar ou não e a defesa do ponto de vista. O discurso político no texto literário. Gêneros textuais – O romance. Capítulo 5 A LINGUAGEM PRODUZINDO A ILUSÃO DO PODER Conteúdos – O uso de conectivos para construir a coesão textual. João Cabral de Melo Neto. Uso adequado da palavra. Pe. Antônio Vieira. O paralelismo como estratégia de construção do texto. A conjunção. A preposição (conceito e uso). Variedade linguística e expressividade. A preposição e a expressividade textual. Predicado verbo-nominal. Relações entre linguagem, poder e marketing. Antônio Cardoso. O século XIX. Reflexões – Visão crítica da democracia. O olhar literário sobre a realidade política. A associação entre o poder público e o comercial. Gêneros textuais – O romance. O sermão. O texto jornalístico. A dissertação. Fim da unidade 2 O PODER EM DISCURSO – PENSANDO NO AMANHÃ Questões de exames de acesso ao ensino superior: diversas questões dos principais vestibulares do Brasil para recapitular conteúdos e treinar habilidades. A dissertação no vestibular: estudo do processo de correção de uma prova de redação do vestibular de uma grande instituição. Desenvolvimento de critérios para avaliar a redação. Agora é a sua vez – Aplicação prática dos conteúdos estudados.
PICASSO. Guernica. (1937). Madri: Museo Nacional Reina Sofia.
Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar engenho e arte. (Luís de Camões)
MICHELANGELO, Buonarroti. Sibila Eritreia. (15081512). Roma: Capela Sistina (Vaticano).
MICHELANGELO Buonarroti (1475-1564) – Considerado um dos maiores artistas de todos os tempos. Nascido em Florença (Itália), de família nobre, era conhecido por ser temperamental e teimoso, embora fosse também considerado um artista genial. Para ele, a arte era uma forma espiritual de perceber a beleza. A arte era, para o artista, uma dádiva divina, a maneira pela qual Deus se comunicava com a humanidade. Entre outras obras, pintou o forro da capela Sistina, no Vaticano, e nele narrou, de forma toda pessoal, a história da criação do homem. É desse trabalho que retiramos a Sibila Eritreia, que estamos examinando. Ali também encontramos A criação do homem, que é uma de suas obras mais conhecidas pelo grande público.
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Capítulo 3
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PENSANDO O PODER DA ARTE
MICHELANGELO, Buonarroti. A criação do homem. (1508-1512). Vaticano: Capela Sistina.
Na cultura greco-romana, encontramos as figuras das sibilas ou oráculos, videntes que profetizavam mensagens dos deuses. Suas visões eram manifestadas apenas quando consultadas, e sempre por meio de enigmas ou perguntas retóricas, que muitas vezes mais confundiam que ajudavam. As sibilas eram vistas como símbolos do poder da comunicação, e muitas delas tiveram suas palavras registradas em livros. Na capela Sistina, no Vaticano, Michelangelo pintou sibilas junto a profetas do Antigo Testamento. Pintadas em pleno século XVI, quando já não passavam de um mito, seu papel nas paredes do Vaticano é metafórico. O que elas representam? A sibila Eritreia, que vemos representada, de acordo com a tradição, vivia na cidade de Éritras, na Jônia (sudoeste da atual Turquia). Observe o seu rosto pensativo, ela não olha para o interlocutor da pintura. Antes mantém-se compenetrada, como se apenas ela existisse. Seu rosto volta-se com toda a calma para as páginas do livro. Dona de uma forte luz interior, simbolizada pela tocha na mão do querubim, ela não se abala com o que lê, mesmo ao ler profecias sobre o futuro da humanidade. Majestosa, precisa apenas de um único braço musculoso para virar as páginas e conhecer o destino dos homens. 1. Em sua opinião, o que representa a sibila Eritreia de Michelangelo?
As sibilas originam-se de um mito que estava morto na época de Michelangelo. No entanto, o objetivo do pintor não era que venerássemos a figura da sibila. Em todas as culturas, sempre se constatou e desejou a existência de seres iluminados, os quais, longe da desordem desconcertante do mundo em que vivemos, têm o poder de transmitir-nos luz e esperança. Observe a iluminação representada pela tocha na mão do querubim. 2. Pelo que vemos da sibila, tal como representada por Michelangelo, o que poderíamos dizer de seu caráter?
Pensando o poder da arte
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A iluminação que a palavra permite faz-nos ver a vida com um outro olhar. O ser humano sempre se deu conta do poder de argumentação da palavra e da capacidade de fazer o outro pensar por meio daquilo que afirma. Leia, com atenção, o seguinte discurso de Fernando Pessoa. Nesse discurso, o poeta português convida-nos a refletir sobre crenças comuns na sociedade em que vivemos. Cuidado! A palavra “discurso” é polissêmica. Ao falarmos do “discurso de Fernando Pessoa” estamos nos referindo a um gênero textual específico, definido pelo dicionário Aurélio como “peça oratória proferida em público ou escrita como se tivesse de o ser”. O discurso é um gênero de texto argumentativo, uma exposição de ideias, escrito para ser proferido em voz alta diante de um público. Esse tipo de discurso também é chamado de oração (outra palavra polissêmica), e o enunciador do discurso é também chamado de orador.
ESTRATÉGIAS E ESTILO DA ARGUMENTAÇÃO
Do contraditório como terapêutica da libertação “Recentemente, entre a poeira de algumas campanhas políticas, tomou de novo relevo aquele grosseiro hábito polemista que consiste em levar a mal uma criatura que mude de partido, uma ou mais vezes, ou que se contradiga frequentemente. A gente inferior que usa opiniões continua a empregar esse argumento como se ele fosse depreciativo. Talvez não seja tarde para estabelecer, sobre tão delicado assunto do trato intelectual, a verdadeira atitude científica. Se há fato estranho e inexplicável é que uma criatura de inteligência e sensibilidade se mantenha sempre sentada sobre a mesma opinião, sempre coerente consigo própria. A contínua transformação de tudo dá-se também no nosso corpo, e dá-se no nosso cérebro consequentemente. Como, então, senão por doença, cair e reincidir na anormalidade de querer pensar hoje a mesma coisa que se pensou ontem, quando não só o cérebro de hoje não é o de ontem, mas nem sequer o dia é o de ontem? Ser coerente é uma doença, um atavismo, talvez; data de antepassados animais em cujo estádio de evolução tal desgraça seria natural. A coerência, a convicção, a certeza são, além disso, demonstrações evidentes – quantas vezes escusadas – de falta de educação. É uma falta de cortesia com os outros ser sempre o mesmo à vista deles; é maçá-los, apoquentá-los com a nossa falta de variedade. Uma criatura de nervos modernos, de inteligência sem cortinas, de sensibilidade acordada tem a obrigação cerebral de mudar de opinião e de certeza várias vezes no mesmo dia. Deve ter não crenças religiosas, opiniões políticas, predileções literárias, mas sensações religiosas, impressões políticas, impulsos de admiração literária. Certos estados de alma da luz, certas atitudes de paisagem têm, sobretudo quando excessivos, o direito de exigir a quem está diante deles determinadas opiniões políticas, religiosas e artísticas, aqueles que eles insinuem, e que variarão, como é de entender, consoante esse exterior varie. O homem disciplinado e culto faz da sua sensibilidade e da sua inteligência espelhos do ambiente transitório: é republicano de manhã e 142
Capítulo 3
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3. Para Michelangelo, a beleza estética da obra de arte era algo divino, meio de comunicação entre Deus e os homens. Observe a serenidade da sibila. O que Deus estaria desejando comunicar à humanidade por meio dessa obra?
monárquico ao crepúsculo; ateu sob um sol descoberto, e católico ultramontano a certas horas de sombra e silêncio; e não podendo admitir senão Mallarmé àqueles momentos do anoitecer citadino em que desabrocham as luzes, ele deve sentir todo o simbolismo uma invenção de louco quando, ante uma solidão de mar, ele não souber mais do que da Odisseia. Convicções profundas, só as têm as criaturas superficiais. Os que não reparam para as coisas quase que as veem apenas para não esbarrar com elas, esses são sempre da mesma opinião, são os íntegros e os coerentes. A política e a religião gastam dessa lenha, e é por isso que ardem tão mal ante a Verdade e a Vida. Quando é que despertaremos para a justa noção de que política, religião e vida social são apenas graus inferiores e plebeus da estética – a estética dos que ainda não a podem ser? Só quando a humanidade livre dos preconceitos de sinceridade e coerência tiver acostumado suas sensações a viverem independentemente se poderá conseguir qualquer coisa de beleza, elegância e serenidade na vida.” PESSOA, Fernando. In: FIGUEIREDO, Carlos. Cem discursos históricos. Belo Horizonte: Leitura, 2002.
4. Comente em classe a sua compreensão do texto. FERNANDO António Nogueira PESSOA (1888-1935) – Pessoa encerra o expediente no escritório de importações e vai para casa. Debaixo do braço, a sua costumeira pasta de couro. Antes de chegar ao seu apartamento, em Lisboa, na rua Coelho da Rocha, passa pelo bar do Trindade, logo na esquina. O amigo vende-lhe fiado um maço de cigarros, uma caixa de fósforos e um copo de aguardente. O emprego é de meio-período. Agora em casa pode-se dedicar a sua paixão: a literatura. Lê Camões, António Vieira e Cesário Verde, entre outros. Começa a escrever versos em português. No Porto, o grupo Renascença Portuguesa, fundado por Teixeira de Pascoaes, publica a revista Águia. Pessoa colabora. Publica diversos artigos, entre os quais A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada. Também faz crítica no semanário Teatro. Torna-se amigo de Mário de Sá-Carneiro e do pintor Almada Negreiros. Com seus amigos reúne-se sempre nos cafés de Lisboa para uma saudável bagunça, também com esse grupo funda o Orpheu, que não chega ao terceiro número. Porém bastaram dois para afrontar os conservadores das Letras e divulgar radicais mudanças na maneira de pensar a arte literária portuguesa.
O discurso não é o único texto argumentativo-dissertativo. Temos estudado até agora outros textos argumentativos, como a resenha crítica e a dissertação escolar. O objetivo de toda argumentação é provocar a adesão dos pensamentos dos interlocutores à(s) tese(s) apresentada(s) no texto: uma argumentação eficaz aumenta a intensidade da adesão, de forma que se crie nos interlocutores uma disposição para agir de acordo com o texto argumentativo. Um aspecto importante a considerar é que esse ouvinte ou leitor do texto argumentativo não é um ser passivo que apenas recebe informações. Enquanto ouve ou lê a argumentação, o interlocutor ficará inclinado a também argumentar acerca do discurso, a fim de tomar uma atitude a respeito. O interlocutor formula novos argumentos espontâneos, muitas vezes, não os expressando verbalmente, mas que intervirão para modificar o resultado final. Isso significa que, ao escrevermos, devemos levar em conta as possíveis reações de nossos leitores, antecipando as respostas. Além disso, o interlocutor compreende os Pensando o poder da arte
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argumentos do texto à sua maneira, o que exige que o enunciador seja o mais claro possível para reduzir ao máximo as diferentes maneiras de interpretação. Observe o primeiro parágrafo do discurso de Fernando Pessoa. Nessa introdução, o orador deixa clara a proposta de seu texto:
“ (...) Talvez não seja tarde para estabelecer, sobre tão delicado assunto do trato intelectual, a verdadeira atitude científica”.
6. Qual a proposta do texto de Fernando Pessoa?
Ao construirmos uma argumentação, vemo-nos diante de diversas possibilidades. Tudo o que utilizarmos em um texto argumentativo deve ser selecionado, a fim de que possa atingir o público visado. O sucesso de toda argumentação depende de adequar o que se diz ao público a que se dirige. Cada informação apresentada deve ter alguma utilidade para que o interlocutor possa confirmar, no texto, a tese que o locutor deseja defender. A esse respeito, examinemos o texto de Fernando Pessoa: a) estabelecer (...) a verdadeira atitude científica. b) estabelecer (...) a verdadeira atitude. O fato de selecionar o adjetivo “científica”, quando poderia não tê-lo feito, e de apresentá-lo a seus interlocutores já demonstra a importância que esse termo tem dentro do texto. A escolha desse adjetivo confere ao texto a presença da dimensão científica. Ao ler a palavra “científica”, o leitor irá valorizar não qualquer atitude, mas a atitude que considerar científica. O interlocutor tende a valorizar aquilo que está presente na sua consciência e o enunciador do discurso colocou na consciência do leitor a palavra “científica”. 7. Levando em conta a escolha feita pelo adjetivo “científica”, a que público se destina o discurso de Fernando Pessoa?
O ponto de partida de uma argumentação é a seleção do que se vai e como se vai dizer. Veja a opinião dos professores Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, estudiosos das técnicas de argumentação: “Destarte, uma das preocupações do orador será tornar presente, apenas pela magia de seu verbo, o que está efetivamente ausente e que ele considera importante para a sua argumentação, ou valorizar, tornando-os mais presentes, certos elementos efetivamente oferecidos à consciência.” PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado de argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
Vejamos agora o segundo parágrafo do discurso de Fernando Pessoa: “Se há fato estranho e inexplicável é que uma criatura de inteligência e sensibilidade se mantenha sempre sentada sobre a mesma opinião, sempre coerente consigo própria. A contínua transformação de 144
Capítulo 3
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5. A que “tão delicado assunto do trato intelectual” se refere o enunciador do texto?
tudo dá-se também no nosso corpo, e dá-se no nosso cérebro consequentemente. Como, então, senão por doença, cair e reincidir na anormalidade de querer pensar hoje a mesma coisa que se pensou ontem, quando não só o cérebro de hoje não é o de ontem, mas nem sequer o dia é o de ontem? Ser coerente é uma doença, um atavismo, talvez; data de antepassados animais em cujo estádio de evolução tal desgraça seria natural.” • De que forma o conteúdo do segundo parágrafo é coerente com a afirmação anterior de “estabelecer (...) a verdadeira atitude científica”?
8. Liste as palavras que podemos imediatamente associar ao discurso científico.
Novamente cuidado! O “discurso científico” a que se refere a questão 5 é o discurso tal como o temos estudado nos outros capítulos, como uma expressão dominante da linguagem no texto, que orienta a nossa construção do sentido. O texto, neste caso, é a realização do discurso. O segundo parágrafo do texto de Fernando Pessoa está organizado como um pequeno texto – com introdução, desenvolvimento e conclusão –, o qual, no entanto, mantém-se coeso ao parágrafo anterior e aos seguintes. 9. Complete as lacunas: Introdução
“Se há fato estranho e inexplicável (...) sempre coerente consigo própria.”
Desenvolvimento
Conclusão
Algumas pessoas confundem parágrafo com período e elaboram seus textos com parágrafos de apenas um período. Essa escolha empobrece qualquer argumentação, pois não desenvolve devidamente as ideias apresentadas, além de transmitir uma má imagem do enunciador. Todo parágrafo seleciona uma informação ou tópico central e o desenvolve. Fernando Pessoa, desenvolveu o tópico “a incoerência é sinal de saúde mental e emocional”, por meio de uma argumentação demonstrativa. A argumentação demonstrativa é aquela que visa a provar a verdade de uma tese, partindo da verdade dos argumentos. O orador do discurso procura provar o seu tópico central por causalidade, ou seja, desenvolvendo as causas da conclusão a que deseja chegar. A linha de raciocínio que desenvolve é a seguinte: I. “A contínua transformação de tudo dá-se também no nosso corpo, e dá-se (consequentemente) no nosso cérebro”. II. “O cérebro (lugar onde se originam nossas ideias) de hoje não é o de ontem”. 10. A conclusão a que chega é:
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No entanto, há outras formas de organizar um parágrafo, como o discurso de Fernando Pessoa nos ilustra no terceiro parágrafo:
“A coerência, a convicção, a certeza são, além disso, demonstrações evidentes – quantas vezes escusadas – de falta de educação. É uma falta de cortesia com os outros ser sempre o mesmo à vista deles; é maçá-los, apoquentá-los com a nossa falta de variedade.” Aqui, o enunciador afasta-se do discurso científico que vinha desenvolvendo e traz para o seu texto uma outra perspectiva: a ética e as boas maneiras.
É o uso desse termo que “amarra” esse terceiro parágrafo ao anterior, como se fosse uma continuação. No primeiro período, apresenta o tópico que justifica no período seguinte. Trata-se também de uma organização por causalidade. A coerência seria, de acordo com o enunciador do texto, uma “falta de educação” porque (ou seja, a causa:) “é uma falta de cortesia com os outros ser sempre o mesmo a vista deles”. Em outras palavras, o parágrafo apresenta um tópico e responde à pergunta: Por quê? Quais as consequências? 12. Redija um parágrafo argumentativo seguindo estas instruções:
Fórmula: introdução, desenvolvimento e conclusão.
Assunto: a importância (ou não) da coerência na sociedade atual.
Objetivo: apontar os resultados (positivos ou negativos) de manter as opiniões.
Organização: causalidade.
MODALIZANDO O DISCURSO Ao escrevermos necessitamos de expressões que permitam diminuir ou reforçar o valor do que afirmamos. Essas expressões são chamadas de modalizadores e indicam a atitude do enunciador em relação ao seu texto. Manifestam graus de certeza, dúvida, concordância, probabilidade, etc. do sujeito que argumenta a favor de uma determinada afirmação. 13. A seguir podemos ler o quarto parágrafo do discurso de Fernando Pessoa, que estamos estudando. Localize nele os modalizadores que conferem certeza ao texto.
“Uma criatura de nervos modernos, de inteligência sem cortinas, de sensibilidade acordada tem a obrigação cerebral de mudar de opinião e de certeza várias vezes no mesmo dia. Deve ter não crenças religiosas, opiniões políticas, predileções literárias, mas sensações religiosas, impressões políticas, impulsos de admiração literária.” 146
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11. Há um termo, no entanto, que faz a coesão entre os dois parágrafos. Identifique-o.
14. O quadro a seguir apresenta modalizadores que poderão ajudá-lo a construir melhor os seus textos. A lista não é exaustiva, ou seja, após uma discussão em sala de aula, você poderá acrescentar-lhe outras expressões.
Certeza
com (toda) certeza; deve ter; é evidente que; é claro que; necessariamente; parece importante ressaltar que; sabe-se que; sem (qualquer) dúvida.
Probabilidade
é possível que; é provável que; parece que; é tido como certo que.
Dúvida
não há certezas de que; eu acho que; não parece possível que; talvez se possa afirmar que.
Concordância
concordamos com (fulano) quando afirma que; é fácil concordar que; não há como negar que.
Alternativa
de um lado... de (por) outro lado; entretanto, podemos pensar também que; é pertinente examinar as relações entre (...) e (...) sob outra perspectiva; poderíamos destacar que.
ESTILO: ESCOLHAS ENTRE O ENGENHO E A ARTE No último parágrafo de seu texto, Fernando Pessoa afirma:
“Só quando a humanidade livre dos preconceitos de sinceridade e coerência tiver acostumado suas sensações a viverem independentemente se poderá conseguir qualquer coisa de beleza, elegância e serenidade na vida.” Releia o início deste capítulo sobre a serenidade encontrada na sibila Eritreia, de Michelangelo, artista segundo o qual a beleza estética era um meio de comunicação entre Deus e os homens. Compare com o final do texto de Fernando Pessoa.
Para a próxima aula, tra ga um editorial jornalístico ou um outro texto argumentativo de um jornal ou revista. Em duplas, encontrem os modalizadores presentes no texto e qual a função que eles exercem.
15. Que diferenças você observa?
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No entanto, como vimos, quando surge um novo movimento literário, ele fornece um modelo que deu certo e muitos artistas o imitam. É essa imitação excessiva de uma técnica consagrada, cujos resultados foram satisfatórios, que faz com que essa mesma escola literária termine, esgotada em sua capacidade criativa. Assim, além de técnicas ou arte, como diriam os antigos, o artista necessita de algo mais. Vejamos o que pensa sobre isso Luís Vaz de Camões. Vamos ler um trecho daquela que é considerada a sua maior obra de arte, a epopeia Os Lusíadas:
“Cantando espalharei por toda parte, Se a tanto me ajudar engenho e arte”. Para Camões, ser um bom artista, capaz de espalhar seu canto por toda parte, dependia de duas coisas: engenho e arte. Observe como o dicionário Aurélio define “engenho” e escolha a entrada que melhor explica a ideia camoniana. “engenho S. m. [Do lat. ingeniu.] 1. Faculdade inventiva; talento; 2. Habilidade, destreza; 3. Sutileza, argúcia; 4. P. ext. Pessoa engenhosa, que tem talento e saber; 5. Qualquer máquina ou aparelho: um engenho de café; engenho bélico; 6. Encad. V. costurador (2); 7. Bras. Moenda (1) de cana-de-açúcar; 8. Bras. Estabelecimento agrícola destinado à cultura da cana e à fabricação do açúcar; 9. Bras. PE Aparelho que consiste numa manivela fixada a uma tábua, e destinado ao fabrico da corda de caroá; 10. Bras. PE Área cultivada com cana-de-açúcar; 11. Bras. PR Estabelecimento dotado de máquinas e aparelhos próprios para moer a congonha com que se fabrica o mate.” Dicionário Aurélio.
16. O que podemos entender com os versos: “Cantando espalharei por toda parte, / Se a tanto me ajudar engenho e arte”?
Leia, com atenção, o pensamento do professor Alfredo Bosi. “Estamos diante de uma tela móvel de operações: a intencionalidade do artista vai plasmando, graças ao domínio das técnicas aprendidas, o seu próprio modo de formar que, a certa altura, pode alcançar o nível de estilo pessoal. As variantes de um verso, as sucessivas redações de um conto, ou os múltiplos esboços de uma figura ilustram eficazmente esse processo ao mesmo tempo expressivo e artesanal. A escolha de uma palavra, e não de outra, de um traço, e não de outro, responde ora a determinações do estilo de época (a face cultural do gosto), da ideologia e da moda, ora a necessidades profundas de raiz afetiva ou a uma percepção original de realidade.” BOSI, Alfredo. Reflexões sobre arte. São Paulo: Ática, 1986.
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A arte é uma construção, uma atividade pela qual se transforma a matéria presente na natureza e na cultura. Tintas, telas, pincéis, boa formação cultural e a perícia do pintor são capazes de formar um belíssimo quadro. Assim sendo, a arte supõe trabalho, dando forma ao que ainda não existe. A palavra “arte” origina-se do latim, artem. Da mesma palavra latina, origina-se o verbo “articular”, que significa, basicamente, unir diferentes partes para formar um todo. Arte é, então, a junção de diferentes partes naturais e culturais que formam um todo: a obra de arte. Isso exige técnica. Aliás, houve tempos em que arte era sinônimo de técnica. Uma obra de arte, tal como um texto literário, por exemplo, seria o produto de se conhecerem as técnicas necessárias para sua produção.
Observe, com atenção, a reprodução a seguir.
LEONARDO DA VINCI. Ginevra de’ Benci. (1474). Washington: Ailsa Mellon Bruce Fund., National Gallery of Art.
LEONARDO DA VINCI (1452-1519) – Nasceu em Vinci, vilarejo próximo a Florença (Itália). Com doze anos de idade, mudou-se para Florença, onde começou a estudar pintura. Artista versátil, além de pintor, foi também escultor, arquiteto, engenheiro, físico, escritor, biólogo, músico e inventor. Máquinas voadoras, catapulta gigante e inúmeros aparelhos mecânicos são algumas de suas invenções. Entre suas pinturas, destacamse: A última ceia, Virgem e o menino com Sant’Ana e São João, Batismo de Cristo, Ginevra de’ Benci. Seu quadro mais famoso, a Mona Lisa, com seu sorriso enigmático, encontra-se no Museu do Louvre, em Paris.
De acordo com Bosi, a “escolha de (...) um traço, e não de outro, responde ora a determinações do estilo de época (a face cultural do gosto), da ideologia e da moda, ora a necessidades profundas de raiz afetiva ou a uma percepção original de realidade”. Encontramos tudo isso em Leonardo da Vinci. Suas obras, como a Ginevra de’ Benci são repletas de poesia. Essas obras magníficas são resultado do momento histórico e geográfico em que Leonardo viveu, no auge da Renascença italiana, em pleno século XV. A obra de Leonardo é, nesse sentido, produto do estilo da época em que o pintor viveu. Mas além disso, há a maneira única e criativa por meio da qual o pintor percebeu a realidade: a modelo apresenta a cabeça arrogante, com seus cabelos delicados caindo da fronte, entesando-se sobre o pescoço rígido. Os lábios demonstram estar irritados e os olhos levemente estrábicos e semicerrados, como se Ginevra estivesse muito aborrecida, contendo-se para esconder seu profundo descontentamento. Parece que ela não olha para nós, mas sobre os nossos ombros, evitando nos encarar. Esse jogo de esconder e revelar aparece também na forma como Leonardo pintou o véu do vestido. 17. Que relação podemos estabelecer entre o véu, o rosto e o caráter reservado da modelo? a) Ginevra procura esconder o que sente, assim como o véu esconde o corpo, mas Leonardo pinta esse véu de tal forma delicado que, se não fosse o alfinete dourado, não o perceberíamos. b) Ginevra revela claramente a alegria de ser pintada pelo gênio Leonardo da Vinci, da mesma forma como o véu expõe a nudez dessa dama da Renascença. Pensando o poder da arte
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c) A beleza de Ginevra é completamente artificial, produto da mente inventiva de Leonardo da Vinci. Podemos ver a pele através do véu delicado do vestido, e o alfinete é o símbolo máximo da responsabilidade do artista diante de sua obra de arte. d) Leonardo da Vinci apresenta-nos o fino véu no alto do vestido, bem como a perfeição do rosto irritado da modelo, mas não se podem estabelecer comparações entre ambos. e) Cada um pode fazer a relação que desejar, porque a obra de arte permite que o público faça a interpretação que quiser. Qualquer interpretação será válida, desde que seja criativa.
Assim, Leonardo da Vinci oferece-nos um jogo de ocultações, a modelo que se volta completamente para si mesma e, com isso, não oferece para o exterior nenhuma verdade, a não ser aquela que se consegue ver nas entrelinhas. É como se Ginevra fosse a máscara de uma outra pessoa que se esconde nervosamente sob a aparência da calma e do desprezo. 19. O que podemos falar sobre a realidade de hoje em dia: as pessoas revelam facilmente o que são ou recorrem a máscaras? Justifique sua resposta.
A obra de Leonardo da Vinci apresenta marcas próprias do estilo desse pintor. Uma delas é o tratamento dado aos cabelos, que são de uma fineza angelical. Outra marca do estilo de Leonardo da Vinci é a ausência de contornos nítidos entre as diferentes áreas de cor das figuras. Essa técnica ficou conhecida como “esfumado”, cujo nome deriva da palavra “fumaça”. E como se uma delicada névoa ou fumaça quase imperceptível cobrisse os quadros do pintor. A escolha dessa técnica que Leonardo da Vinci desenvolveu constitui uma das principais características de seu estilo. 20. Seguindo o raciocínio do professor Alfredo Bosi, que motivos daríamos para Fernando Pessoa ter escolhido uma palavra e não outra, ao redigir o seu discurso?
Podemos afirmar que uma obra de arte, como um texto literário, resulta da técnica (ou arte, no conceito camoniano) que o artista desenvolveu por meio do estudo que a época e o lugar em que vive lhe oferecem e a sua criatividade individual, seu engenho. Mas a criatividade também pode ser desenvolvida, à medida que o artista exercita a sua sensibilidade ao olhar o mundo que o cerca. Assim, o autor vai fazendo escolhas entre as possibilidades de que dispõe e, dessa maneira, constrói o seu estilo pessoal. 150
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18. Comente o que o levou a descartar as outras alternativas.
No capítulo anterior, estudamos que, em determinados momentos do tempo e do espaço, surgem conjuntos de obras que defendem um mesmo sistema de regras do que é considerado arte. Tais obras apresentam-se como um conjunto complexo de pensamentos sobre o mundo. Chamamos a esses períodos de escolas. Nelas, os escritores questionam ideologias em relação à época em que vivem. Muitas escolas literárias aparecem associadas a discursos ou manifestos sobre o que é arte para um escritor ou um determinado conjunto de escritores. Manifesto é também um termo polissêmico. Aqui é empregado com o sentido de uma declaração pública ou solene que apresenta um programa estético, bem como as razões que justificam e em que se fundamentam determinados princípios. É também um texto argumentativo e pode ser considerado uma espécie de discurso. Um dos manifestos mais importantes da cultura literária brasileira foi escrito, em 1924, pelo poeta paulistano Oswald de Andrade. Chama-se Manifesto Pau-Brasil. Leia alguns trechos selecionados, em que ele mais diretamente fala sobre poesia. Durante a leitura, procure compreender a visão de mundo presente no texto.
Manifesto da poesia Pau–Brasil
Publicado em 18-3-1924, no Correio da Manhã, o Manifesto Pau-Brasil foi novamente publicado, no ano seguinte, no livro Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, com ilustrações de Tarsila do Amaral.
“A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos. O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança. (...) A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária. (...) A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem. Pensando o poder da arte
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ANDRADE, Oswald de. “O manifesto antropófago”. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e Modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976.
José OSWALD DE Sousa ANDRADE (1890-1954) – Nasceu em São Paulo, de uma família bastante rica. Principalmente a partir de 1922, a arte brasileira passa por uma profunda transformação. Na literatura, Oswald de Andrade é quem melhor representou a ponta de lança desse espírito de 22, principalmente se considerarmos a sua obra entre 1923 e 1930. A obra de Oswald é muito variada em gêneros, quantidade e qualidade literária. De uma forma geral, no entanto, nas palavras do professor Alfredo Bosi, “permanece estruturalmente o que é: um leque de promessas realizadas pelo meio ou simplesmente irrealizadas”.
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(...) A poesia Pau-Brasil, ágil e cândida. Como uma criança. (...) A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos. (...) Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação. Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadro de carneiros que não fosse lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho... Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado – o artista fotográfico. (...) O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa. (...) A Poesia Pau-Brasil é uma sala de jantar das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal anda todo o presente. Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres. (...) A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna. Apenas brasileiros de nossa época. (...) Oswald de Andrade Correio da Manhã, 18 de março de 1924.
21. Qual a visão de mundo defendida por Oswald de Andrade?
22. Como essa visão de mundo se revela no estilo da escrita do manifesto?
23. Sugira um motivo para o título do texto: Manifesto da poesia Pau-Brasil.
Atividade: criando uma escola literária 24. Sua classe vai criar uma escola literária. Para que vocês possam ter sucesso, alguns passos devem ser seguidos. 1º Escrevam, no caderno, com suas palavras, o que é uma escola literária. 2º Organizem um painel com as várias definições e, após discutirem, elaborem uma definição que agrade a todos. 3º Em pequenos grupos, discutam quais os temas mais pertinentes para a época em que vivemos e quais desses temas devem ser abordados em uma obra de arte. 4º Escolham o nome dessa escola literária e indiquem quais as suas principais características. 5º Tomem nota das ideias que considerarem mais importantes, conforme forem surgindo na discussão. 6º Seu professor dividirá a classe em três grupos, e cada grupo deverá escolher um dos três temas sugeridos: A – A necessidade da arte no mundo em que vivemos. B – A importância de cada um desenvolver o próprio estilo. C – O valor daqueles que constroem uma nova forma de ver o mundo. Pensando o poder da arte
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8º Depois de pronto, reúna-se com o seu grupo e discutam as características do estilo de escrita presente em cada texto. Troquem ideias para deixar o estilo de cada um mais próximo às intenções do texto que escreveram. Levem em conta também as características da escola literária que estão fundando e como essas características se revelam no texto que escreveram. 9º Reescreva seu texto, seguindo as sugestões feitas pelos colegas de grupo. Lembre-se de que seu texto faz parte da escola literária fundada pela classe, e que você deverá revê-lo para desenvolver outras atividades. Além disso, ele será exposto e deverá ser lido por várias pessoas. 10º Entregue o texto ao professor, para que ele faça uma avaliação.
A EPOPEIA, OBRA DE ENGENHO E ARTE Considerada por muitos como a obra mais importante da literatura de língua portuguesa, vamos estudar um clássico, produto do engenho e da arte de um gênio, Luís de Camões. A obra em questão é a epopeia Os Lusíadas. Comecemos com o termo “epopeia”. O que é uma epopeia? Já falamos de algumas epopeias no volume 1 desta coleção: a Odisseia, a Ilíada e a Eneida. A epopeia é um texto escrito em versos, que pertence ao gênero narrativo, com origens remotas na história da humanidade. O enredo está centrado nas ações de um herói. A narração das ações numa epopeia recorre a um passado nacional, um passado que somente existe na memória cultural de uma nação. Ou seja, não se trata de narrar o que de fato ocorreu, mas de construir a narrativa a partir da tradição nacional, ou seja, de como a nação vê a si mesma. A epopeia desenrola grandes atos heroicos, envolvendo humanos e deuses em forte competição, com o destino do herói associado ao destino de toda uma nação. O herói das epopeias é uma personagem elevada ao nível de semideus, com poderes físicos, intelectuais e morais acima daqueles dos simples mortais. A consciência do herói é uma representação, em miniatura, do universo da sociedade que o cria. Normalmente, o herói épico pertence, de alguma maneira, à nobreza e representa alguma personagem que já teve, na vida real, uma importância histórica. Uma das maiores heranças das epopeias pode ser vista, hoje em dia, na figura dos super-heróis encontrados nas histórias em quadrinhos, em filmes e seriados de teleUtilizando-se de site de busca, procure na Intervisão. O Super-Homem é herdeiro da tradição das epopeias.
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net a biografia do superhomem.
Capítulo 3
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
7º Cada aluno deverá elaborar um discurso a partir do tema escolhido. Todos os temas propostos fazem referência a assuntos abordados neste capítulo. Por isso, faça uso das informações estudadas, incorporando-as ao seu texto. Pense, por exemplo, na modalização de seu texto ou no estilo de escrita do discurso de Fernando Pessoa. Preste atenção ao escolher as palavras que irão compor o seu texto, pois elas caracterizarão o seu estilo de escrita. Em seu discurso, defenda a nova escola literária que a classe fundou.
25. Comparando a biografia do super-homem com o que estudamos sobre o herói das epopeias, que semelhanças você encontra?
Mas o que há de tão especial em Luís de Camões escrever uma epopeia? Para compreendermos isso, temos de entender a importância da obra de Camões na Era Moderna. O fim da Idade Média colocou o homem na Era Moderna, na qual ele vive até hoje. A passagem entre esses dois momentos históricos e culturais ocorreu a partir do que se chamou de “Renascença” italiana, que se deu ao longo dos séculos XV e XVI. Assim, compreender o homem do século XXI exige que conheçamos melhor o homem da Renascença, pois os dois são parte de uma mesma época, a Era Moderna, o que significa que partilham, de certa forma, de uma mesma maneira de ver o mundo e a arte. Podemos dividir a Era Moderna em três fases: a) Época Clássica (do século XV à metade do século XVIII): inclui a Renascença, o Maneirismo, o Barroco e o Arcadismo. b) Época Romântico-Realista (da segunda metade do século XVIII ao final do século XIX): inclui o Romantismo e o Realismo. c) Época Moderna (do século XX aos nossos dias): inclui o Simbolismo e o Modernismo.
Revendo conceitos Ao longo desta coleção, você leu inúmeras vezes: obras clássicas, período clássico, clássico da literatura, arte clássica. 26. A partir do conhecimento que possui da língua portuguesa, escreva o que entende quando ouve falar a palavra “clássico”.
Muitos estudiosos criaram definições para a palavra clássico. Leia alguns exemplos. “Um clássico é um clássico não porque esteja conforme a certas regras ou se ajuste a certas definições (das quais o autor jamais teve conhecimento). Ele é um clássico devido a uma juventude eterna e irreprimível.” POND, Ezra. ABC da literatura. São Paulo: Cultrix, [s.d.].
“A experiência de reler um texto ao longo de quarenta anos me mostrou como são bobas as pessoas que dizem que dissecar um texto e dedicar-se a uma leitura meticulosa equivale a matar sua magia.” ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
O assunto é tão complexo e polêmico que o escritor italiano Ítalo Calvino escreveu um livro intitulado Por que ler os clássicos. Leia algumas de suas afirmações sobre a importância da leitura de livros considerados clássicos. “Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los.” Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.” CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
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A palavra “clássico” é de uso comum. Trata-se de uma palavra que, como a maioria dos termos da língua portuguesa, vai ganhando sentidos novos conforme o tempo passa e ela é usada em novos contextos. A partir do século XV, o substantivo “Classicismo” e o adjetivo “Clássico” passam a designar uma doutrina artística que ensina que a criação poética deve imitar os modelos artísticos da cultura greco-latina. A Época Clássica é a época da história da literatura em que domina tal conceito de arte na cultura ocidental. Mas essa época não é um período de simples imitação ou cópia do antigo. Nessa época, acontecimentos decisivos marcaram a história da humanidade, e os artistas souberam ser sensíveis ao que lhes ocorria.
Os princípios da Época Clássica Com exceção do Barroco, encontramos a seguir algumas das características de toda a época clássica, que vai da Renascença ao Arcadismo. Conceito de imitação: o bom artista é aquele que imita as obras dos grandes mestres da Arte, principalmente, os autores greco-latinos. Verossimilhança: a obra de arte deve passar ao público uma impressão de verdade, respeitando as regras do bom senso e da opinião comum. O texto deve, também, ser coerente e escrito de forma coesa. Valorização da técnica: o artista é um trabalhador que deve guiar-se pela razão e pelo equilíbrio, seguindo as regras de composição. Valorização do bucolismo: a imitação da natureza leva à valorização da vida do campo, a partir de uma leitura idealizada da vida pastoril greco-latina. A realidade do campo é considerada mais genuína e apta para representar a sociedade em que vive o artista. Ao examinar a reprodução ao lado, procure encontrar nela as características do Classicismo que especificamos.
RAFAEL. Madona do Pintassilgo. (1507). Florença: Galeria degli Uffizi.
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Capítulo 3
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
27. Em duplas, releiam as afirmações e o que vocês escreveram sobre a palavra clássico, no exercício anterior. Vocês já leram algum livro que consideram clássico? Qual? Discutam suas ideias e escrevam o que entendem por clássico em arte e literatura.
Raffaello Sanzio, mais conhecido como RAFAEL (1483-1520) – Italiano de Urbino, conheceu Leonardo Da Vinci e Michelangelo. Pintou a Virgem com o Menino Jesus diversas vezes. Uma característica do estilo de Rafael, ao pintar tais “Madonas”, é a suavidade e intimidade com que apresenta a Virgem Maria.
28. Que características típicas do Classicismo podem ser encontradas em Rafael?
Ninguém expressa melhor a ideologia da Época Clássica na língua portuguesa do que Luís Vaz de Camões (veja também o quadro). Por isso, a importância de sua obra, principalmente de sua epopeia, Os Lusíadas.
LUÍS Vaz DE CAMÕES (1524 ou 1525-1580) – Além de ter sido um grande poeta, foi também um entusiasta patriota e um grande soldado. Lutou em guerras na África e na Ásia. Em 1547 partiu para Ceuta, depois de ter estado na corte de Lisboa de 1542 a 1545. São famosas as suas aventuras amorosas na corte lisboeta. Em Ceuta, perdeu um olho numa batalha. Três anos mais tarde, voltou a Portugal e teve vários duelos, num dos quais feriu Gonçalo Borges, moço de arreios de D. João III, o que lhe custou um ano de prisão. Foi nesse período que Camões iniciou sua obra Os Lusíadas. Obteve a liberdade com a condição de ir para a Índia como simples homem de guerra e embarcou para Goa em 1553. Da Índia passou a Macau, na China, onde os portugueses tinham fundado uma colônia. Foi chamado novamente a Goa mas, no caminho, sofreu um naufrágio na foz do rio Mekong. Diz uma curiosa lenda que levava consigo a sua amada Dinamene, a qual não sabia nadar. Camões, no entanto, escolheu salvar os manuscritos de Os Lusíadas, deixando morrer a amante, a quem dedicou os versos Alma minha gentil que te partistes. Você poderá encontrar um volume de Os Lusíadas na biblioteca da escola. A lenda não traduz a realidade histórica, mas ilustra a importância dessa epopeia.
“Os Lusíadas fixam por muito tempo os traços básicos da noção que os portugueses com cultura literária terão de Portugal. Em nenhum outro livro essa noção se exprime em termos tão lapidares e fascinantes.” SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. Mem Martins: Europa-América, 1999.
Seguindo as regras da Antiguidade greco-latina, Camões compôs Os Lusíadas como uma epopeia em versos decassílabos. Cada conjunto de oito versos forma uma estrofe (com rima ABABABCC) e as estrofes (que são 1 102, ao todo) reúnem-se em dez cantos. Pensando o poder da arte
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Vamos fazer um breve percurso por essa obra-prima da literatura em língua portuguesa.
Resumo comentado de Os Lusíadas Contém a introdução, a invocação, a dedicatória e o início da narração, que começa com os portugueses já em plena viagem, em alto-mar, no Oceano Índico. Enquanto isso, os deuses se reúnem no Olimpo (no que veio a se chamar de concílio dos deuses) para decidir a sorte dos navegadores: permitir ou não que eles cheguem às Índias. O concílio dos deuses no Olimpo é uma forma de interligar os deuses à viagem.
Proposição, invocação e dedicatória Proposição (estrofes 1 a 3): trata-se da explicação sobre qual é a intenção do poema. Os Lusíadas apresentam, como proposição, celebrar os feitos lusitanos, a história heroica do povo português (ou lusíada) e, em especial, a viagem de Vasco da Gama de Lisboa à Índia. Invocação (estrofes 4 e 5): para expressar em versos tão importante objetivo, o poeta pede proteção divina. Recorre às ninfas do Tejo (a quem denomina Tágides), solicitando-lhes inspiração. Dedicatória (estrofes 6 a 18): Camões dedica a sua obra ao rei D. Sebastião, rei de Portugal na época da publicação do livro (1572). Na dedicatória, Camões exalta as qualidades políticas, militares e religiosas do rei.
Júpiter profere o seu discurso, anunciando o seu desejo de que a viagem dos lusitanos prossiga e que eles sejam recebidos como bons amigos na costa africana. Após este discurso, são consideradas outras posições em que se destaca a oposição de Baco, pois receia vir a perder toda a fama que havia adquirido no Oriente, caso os portugueses atinjam os seus objetivos.
“Estas palavras Júpiter dizia, Quando os deuses por ordem respondendo, Na sentença um do outro diferia, Razões diversas dando e recebendo. O padre Baco ali não consentia No que Júpiter disse, conhecendo Que esquecerão seus feitos no Oriente, Se lá passar a Lusitana gente.” Canto I, estrofe 30.
Vênus defende os portugueses não só por se tratar de um povo muito semelhante ao seu amado povo latino, até mesmo com uma língua derivada do latim, como também por haverem demonstrado grande valentia no norte da África. Marte – deus da guerra – é também um defensor dessa gente lusitana, pelo amor antigo que o ligava a Vênus e porque reconhece a bravura ímpar desse povo. No seu discurso, Marte pretende que Júpiter não volte atrás com a sua palavra e pede a Mercúrio – o deus mensageiro – que colha informações sobre a Índia, pois começa a desconfiar da posição tomada por Baco. 158
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Canto I
Este concílio termina com a decisão favorável aos portugueses. Em Moçambique, no entanto, os navegadores enfrentam uma cilada preparada pelo hostil Baco. O governante do lugar, ao perceber que os navegantes são cristãos, e inspirado por Baco, ataca-os traiçoeiramente. Os lusíadas, no entanto, conseguem vencer os africanos, retornam ao mar e dirigem-se para perto de Mombaça.
ÁSIA
ATLÂNTICO NORTE
EUROPA
Açores Lisboa, Portugal (Começou a viagem em julho de 1497) (Retornou em setembro de 1499)
Arábia Arquipélago de Cabo Verde
Índia Retorno para Portugal (agosto de 1498)
Goa
ÁFRICA Calicute (maio de 1498)
Equador
Melinde Mombaça
Viagem para a Índia
Moçambique
OCEANO ÍNDICO Baía de Santa Helena ATLÂNTICO SUL
Natal N
Cabo da Boa Esperança (novembro de 1497)
O
0
900 km
L S
A viagem de Vasco da Gama às Índias de acordo com Os Lusíadas.
Canto II Em Moçambique, outra cilada: Baco, disfarçado de cristão, tenta convencer os portugueses a desembarcarem. O plano é fazer com que os navegadores sejam sacrificados pelos mouros. Vênus e as Nereidas intervêm, impedindo que os portugueses sejam derrotados.
Nereidas: ninfas dos mares. O mito afirma que eram cinquenta.
A frota chega a Melinde, onde é recebida com grandes festas. Ali, o próprio rei pede ao capitão da frota, Vasco da Gama, que lhe narre a história de Portugal.
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“Os crespos fios d’ouro se esparziam Pelo colo que a neve escurecia; Andando, as lácteas tetas lhe tremiam, Com quem Amor brincava e não se via; Da alva petrina flamas lhe saíam, Onde o Minino as almas acendia. Pelas lisas colunas lhe trepavam Desejos, que como hera se enrolavam.” Compare a estrofe d´Os Lusíadas com uma das mais importantes obras da Renascença, o famoso quadro de Botticelli O nascimento de Vênus, reproduzido a seguir.
BOTTICELLI, Sandro. O nascimento de Vênus (1485-86). Florença: Galeria degli Uffizi
Alessandro di Mariano Filipepi, mais conhecido como SANDRO BOTICELLI (1444/5-1510) – Provavelmente nasceu em Florença, na Itália. A sua principal característica é a presença de formas esguias e sinuosas de contornos nítidos. A beleza física é tratada de forma séria e poética em suas obras, sem descurar de uma sofisticada interpretação da anatomia humana e da perspectiva espacial. Defensor da filosofia neoplatônica, via na arte a possibilidade de aproximar-se mais dos ideais divinos.
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Particularmente interessante neste canto é a descrição do retrato de Vênus que se faz na estrofe 36:
29. Preencha o quadro, apontando as semelhanças e diferenças encontradas na comparação entre a estrofe e a pintura. Quando não houver nada a apontar, escreva “não há”. Semelhanças
Diferenças
Loiro Cabelo
Pele
Sensualidade
Beleza
Canto III Neste canto, primeiro o poeta invoca a musa Calíope, considerada protetora da poesia épica, na Antiguidade greco-latina. Depois, atendendo ao pedido do rei de Melinde, Vasco da Gama inicia a narrativa da história de Portugal. Neste canto, narra-se desde o deus Luso, filho de Baco e fundador mítico de Portugal, até o reinado de D. Fernando, filho e sucessor de D. Pedro I (atenção: de Portugal, não do Brasil!). Uma das passagens mais importantes é a história de Inês de Castro. O episódio ocorre durante o reinado de D. Afonso Henriques, fundador histórico de Portugal. O rei volta para casa depois de suas lutas pela independência portuguesa contra os castelhanos, de quem Portugal se separava e contra os mouros (ou árabes) que haviam se apossado do sul da península. Episódio da Inês de Castro
“Passada esta tão próspera vitória, Tornando Afonso à lusitana terra, A se lograr da paz com tanta glória, Quanta soube ganhar na dura guerra; O caso triste, e digno de memória, Que do sepulcro os homens desenterra, Aconteceu da mísera e mesquinha, Que depois de ser morta, foi Rainha.” O episódio da Inês de Castro, aquela que “depois de morta, foi Rainha” é um excelente exemplo de como Camões trabalha com o foco narrativo: o poeta muda o tratamento de terceira pessoa na estrofe 118 (a primeira do episódio), situando para o leitor o assunto de que vai tratar, para a segunda pessoa na estrofe seguinte, dirigindo-se ao amor como o grande culpado do triste drama. Pensando o poder da arte
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30. Recordando a) Personificação ou prosopopeia é
b) Podemos ver um exemplo de personificação no episódio da Inês de Castro, quando
Em seguida, o narrador dirige-se a D. Inês, como se ela fosse uma pessoa viva.
“Estavas, linda Inês, posta em sossego, De teus anos colhendo o doce fruto, Naquele engano da alma, ledo e cego, Que a Fortuna não deixa durar muito; Nos saudosos campos do Mondego, De teus fermosos olhos nunca enxuto, Aos montes ensinando e às ervinhas O nome que no peito escrito tinhas.”
Para entender o texto D. Inês Pérez de Castro era uma dama galega filha de D. Pedro Fernández de Castro, primo de D. Pedro I de Portugal. Foi para Portugal em 1340, no séquito de D. Constança, noiva do infante D. Pedro. 31. No texto, a palavra “fortuna” tem o sentido de
Rio Mondego, em Coimbra, capital portuguesa no reinado de Afonso Henriques.
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“Tu, só tu, puro amor, com força crua, Que os corações humanos tanto obriga, Deste causa à molesta morte sua, Como se fora pérfida inimiga. Se dizem, fero Amor, que a sede tua Nem com lágrimas tristes se mitiga, É porque queres, áspero e tirano Tuas aras banhar em sangue humano.”
“De teu príncipe ali te respondiam As lembranças que na alma lhe moravam, Que sempre ante seus olhos te traziam, Quando dos teus fermosos se apartavam; De noite, em doces sonhos que mentiam, De dia, em pensamentos que voavam, E quanto enfim cuidava e quanto via Eram tudo memórias de alegria.” Para entender o texto A “linda Inês” chamou a atenção de D. Pedro, ao que parece, desde os primeiros momentos, e assim nasceu o romance entre os dois. Afirma Fernão Lopes na sua Crônica do Rei D. Pedro I, “que semelhante amor, qual el Rei Dom Pedro ouve a Dona Enes, raramente he achado em alguma pessoa”. 32. Responda: a) A que(m) se refere o pronome “lhe” no verso “As lembranças que na alma lhe moravam”?
b) A que(m) se refere o pronome “te” no verso “Que sempre ante seus olhos te traziam”?
c) Que personagem ocupa a posição de sujeito do verbo “cuidar” no verso “E quanto enfim cuidava e quanto via”?
d) Qual o sentido do verbo “cuidar” no verso destacado na pergunta anterior?
“... Aos montes ensinando e às ervinhas. O nome que no peito escrito tinhas.”
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“De outras belas senhoras e princesas Os desejados tálamos enjeita,” Novamente o narrador se dirige ao “amor” como interlocutor:
“Que tudo enfim, tu, puro amor, desprezas, Quando um gesto suave te sujeita.”
“Vendo estas namoradas estranhezas, O velho pai sisudo, que respeita O murmurar do povo e a fantasia Do filho que casar-se não queria,”
Para entender o texto Observe que, mais uma vez, o narrador se dirige ao amor, nos versos:
“Que tudo enfim, tu, puro amor, desprezas, Quando um gesto suave te sujeita.” Para ajudar o leitor a acompanhar essas mudanças de foco narrativo, Camões evidencia o locutor a quem se dirige com a expressão “puro amor”. Vocativo é o termo da oração usado para chamarmos ou invocarmos o nosso interlocutor, uma pessoa real ou algo personificado. O vocativo não está subordinado a nenhum outro termo da frase. 33. Identifique os vocativos das frases a seguir. a) Pai Nosso, que estais nos céus, santificado seja o vosso nome. b) Carla, preste atenção na explicação, por favor! c) Como és linda e desejada, ó bela Inês!
O vocativo, na escrita, aparece isolado por vírgulas ou seguido de ponto de exclamação. Observe: I. Que tudo enfim, tu, puro amor, desprezas, II. Que tudo enfim, tu, ó puro amor!, desprezas,
34. Qual a função da interjeição “ó” no item II? (
) Muitas vezes, para dar mais ênfase na frase, precede-se o vocativo da interjeição “ó”.
(
) Muitas vezes, para permitir uma conexão entre o vocativo e o resto da frase, precede-se o vocativo da interjeição “ó”.
(
) Todas as vezes que precedemos o vocativo da interjeição “ó” ele muda de classe gramatical, tornando-se sujeito do verbo a que precede.
No texto literário, o vocativo nos permite acompanhar as mudanças na enunciação, como Camões que “troca” de coenunciador, passando de Inês para o amor personificado. Além disso, o vocativo permite deixar claro para a pessoa a quem nos dirigimos que desejamos atenção ao que dizemos.
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Para, em seguida, retornar ao foco narrativo em terceira pessoa:
Ainda para entender o texto Encontramos razões de ordem moral e política que explicam o “murmurar do povo” contra o romance entre Inês de Castro e D. Pedro I. No plano moral, o parentesco entre eles (lembre-se de que D. Inês era prima em segundo grau de D. Pedro), mas sobretudo o fato de o romance constituir adultério, pois o príncipe era casado. No plano político, o receio de que, devido à ambição e influência da família castelhana Castro, os filhos da ligação, legitimados por D. Pedro I, pudessem vir a subir ao trono de Portugal, em vez de D. Fernando, filho de D. Constança e de D. Pedro I.
“Tirar Inês ao mundo determina, Por lhe tirar o filho que tem preso, Crendo co’o sangue só da morte indigna Matar do firme amor o fogo aceso. Que furor consentiu que a espada fina, Que pôde sustentar o grande peso Do furor mauro, fosse alevantada Contra ua dama delicada?” “Traziam-na os horríficos algozes Ante o rei, já movido a piedade; Mas o povo, com falsas e ferozes Razões, à morte crua o persuade. Ela, com tristes e piedosas vozes, Saídas só da mágoa e saudade Do seu príncipe e filhos que deixava, Que mais que a própria morte a magoava,”
“Tirar Inês ao mundo determina.”
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Para entender o texto
D. Afonso IV e a alta nobreza cortesã temiam a interferência dos poderosos Castros no jogo de influências da política portuguesa. É bom lembrar que o conflito entre Portugal e Castela, ou seja, a Espanha, remonta à fundação de Portugal, país que nasceu de um desmembramento do território castelhano. Castela desejava reintegrar Portugal a seu território. Alguns estudiosos afirmam que, de fato, D. Pedro era um joguete nas mãos de Inês de Castro e dos seus parentes castelhanos. De qualquer maneira, o aspecto político do caso levou à morte de D. Inês, em 7 de janeiro de 1355, ordenada por D. Afonso IV, a conselho de Diogo Lopes Pacheco, Pedro Coelho e Álvaro Gonçalves.
“Para o céu cristalino alevantando Com lágrimas os olhos piedosos (Os olhos, porque as mãos lhe estava atando Um dos duros ministros rigorosos), E depois nos meninos atentando, Que tão queridos tinha e tão mimosos, Cuja orfandade como mãe temia, Para o avô cruel assi dizia:” Agora o narrador transcreve, em discurso direto, a fala de Inês de Castro:
“– Se já nas brutas feras, cuja mente Natura fez cruel de nascimento, E nas aves agrestes, que somente Nas rapinas aéreas tem o intento, Com pequenas crianças viu a gente Terem tão piedoso sentimento, Como co’a mãe de Nino já mostraram E co’os irmãos que Roma edificaram, Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito (Se de humano é matar ua donzela Fraca e sem força, só por ter sujeito O coração a quem soube vencê-la), A estas criancinhas tem respeito, Pois o não tens à morte escura dela; Mova-te a piedade sua e minha, Pois não te move a culpa que não tinha.”
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Enquanto D. Constança era viva, D. Afonso IV obrigou Inês a retirar-se para Castela. Mas, assim que a princesa Constança faleceu em 1349, D. Pedro fez regressar Inês de Castro, passando a viver com ela maritalmente e tendo dela quatro filhos, nascidos entre 1349 e 1354.
Para entender o texto 35. Que argumento Inês de Castro utiliza para defender a tese de que deve ser perdoada?
36. Em que quadro de problematização Inês insere o seu argumento?
“E se, vencendo a moura resistência, A morte sabes dar com fogo e ferro, Sabe também dar vida com clemência A quem para perdê-la não fez erro; Mas, se to assi merece esta inocência, Põe-me em perpétuo e mísero desterro, Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente, Onde em lágrimas viva eternamente.” “Põe-me onde se use toda a feridade,” Entre leões e tigres, e verei Se neles achar posso a piedade Que entre peitos humanos não achei. Ali, co’o amor intrínseco e vontade Naquele por quem morro, criarei Estas relíquias suas, que aqui viste, Que refrigério sejam de mãe triste.”
Para entender o texto 37. “E se, vencendo a moura resistência,”
O conectivo “E” introduz um novo argumento de Inês de Castro. De que argumento se trata?
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“Mas, se to assi merece esta inocência,”
O foco narrativo retorna à narração em terceira pessoa, para isso utiliza-se de um narrador que tudo sabe, até das intenções do rei. Tal tipo de narrador é chamado de onisciente:
“Queria perdoar-lhe o rei benigno, Movido das palavras que o magoam, Mas o pertinaz povo e seu destino (Que desta sorte o quis) lhe não perdoam. Arrancam das espadas de aço fino Os que por bom tal feito ali apregoam. Contra ua dama, ó peitos carniceiros, Feros vos amostrais e cavaleiros?!”
Recapitulando Narrador onisciente: é o narrador que tudo sabe de suas personagens, até o que lhe passa no seu mais íntimo.
Para entender o texto 39. Aqui Camões utiliza-se de uma estratégia para retirar a culpa da morte de Inês de sobre as costas do rei, “quase” sogro e avô dos filhos da ré. Transfere a culpa para dois elementos, são eles: a) o povo. b) as espadas de aço fino. c) o destino. d) os peitos carniceiros. e) a própria Inês de Castro.
“Qual contra a linda moça Policena, Consolação extrema de mãe velha, Porque a sombra de Aquiles a condena, Co’ o ferro o duro Pirro se aparelha; Mas ela, os olhos com que o ar serena (Bem como paciente e mansa ovelha) Na mísera mãe postos, que endoidece, Ao duro sacrifício se oferece: Tais contra Inês os brutos matadores, No colo de alabastro, que sustinha As obras com que Amor matou de amores Aquele que depois a fez rainha, As espadas banhando e as brancas flores Que ela dos olhos seus regadas tinha, Se encarniçavam, férvidos e irosos, No futuro castigo não cuidosos.” 168
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38. O conectivo “mas” introduz um pensamento oposto ao do perdão. Em vez de ser perdoada ou morta, Inês propõe uma alternativa intermediária. Qual?
Agora Camões, após fazer diversas referências à cultura greco-latina e afirmar que os algozes sofreriam um “futuro castigo”, muda novamente seu foco narrativo, dirigindo-se ao Sol como interlocutor.
“Bem puderas, ó Sol, da vista destes, Teus raios apartar naquele dia, Como da seva mesa de Tiestes, Quando os filhos por mão de Atreu comia! Vós, ó côncavos vales, que pudestes A voz extrema ouvir da boca fria, O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes, Por muito grande espaço repetistes!” Para entender o texto Quando subiu ao trono, em 1357, D. Pedro, que, durante todo o episódio com sua amada, estivera numa viagem a Castela, concluiu o capítulo da chacina de D. Inês com o castigo exemplar de dois dos ex-conselheiros do seu pai. Em 1360 anunciou formalmente que chegara a casar-se, em segredo, com Inês de Castro, ainda que se desconfiasse muito da veracidade dessa declaração. No mesmo ano, mandou construir o túmulo a Inês de Castro em Alcobaça. Túmulo de Inês de Castro, em Alcobaça, Portugal.
“Assi como a bonina, que cortada, Antes do tempo foi, cândida e bela, Sendo das mãos lascivas maltratada Da menina que a trouxe na capela, O cheiro traz perdido e a cor murchada: Tal está morta, a pálida donzela, Secas do rosto as rosas, e perdida A branca e viva cor co’a doce vida.” “Tirar Inês ao mundo determina As filhas do Mondego a morte escura Longo tempo chorando memoraram, E, por memória eterna, em fonte pura As lágrimas choradas transformaram; O nome lhe puseram, que inda dura, “Dos Amores de Inês”, que ali passaram. Vede que fresca fonte rega as flores, Que lágrimas são a água , e o nome Amores!” Canto III, estrofes 118 - 135. Bonina, delicada flor do campo.
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O episódio histórico da Inês de Castro, que aqui lemos na versão de Camões, serviu de inspiração a muitos escritores. Na maior parte dos casos, a união entre Inês e Pedro representa o amor inocente e feliz. A primeira aparição dos amores de D. Inês na literatura são as Trovas à morte de Inês de Castro, de Garcia de Resende, no Cancioneiro Geral de 1516. Nelas, aparece Inês, no inferno, lamentando a tristeza da sua sorte e advertindo as mulheres para os perigos do amor. Além de Camões e Garcia de Resende, encontramos textos influenciados pelo episódio da Inês de Castro em António Ferreira, Bocage, Almeida Garrett, António Patrício, Ruy Belo, Miguel Torga, Natália Correia e José Saramago, mas também em autores de outras literaturas, como Shakespeare, na Inglaterra, e Henri de Montherland, na França. O ser humano precisa sonhar. A tragédia de Pedro e Inês, a versão portuguesa de Romeu e Julieta, permite-nos alimentar o imaginário. Na impossibilidade de atingir a verdade histórica, deixemo-nos emocionar pela verdade da lenda desse amor proibido, pela sua beleza mágica e pela força simbólica do amor que o destino traiu para sempre.
Atividade 40. Seguindo as normas da escola literária fundada em sua classe e defendida no manifesto que escreveu, redija a sua versão deste famoso episódio. Após a atividade concluída, comentem em classe a relação entre a narrativa, o episódio camoniano e as características da escola literária que fundaram. Para auxiliá-lo em seus trabalhos, procure na biblioteca da sua escola ou em sites de busca da Internet mais informações sobre o romance entre Inês e Pedro. A seguir, transcrevemos a parte final da “Cantata à morte de Inês de Castro”, escrita no século XVIII, pelo poeta português Bocage. Compare-a com a narração de Os Lusíadas, que lhe serviu de base, para desenvolver ainda mais a sua sensibilidade ao episódio.
Cantata à morte de Inês de Castro As filhas do Mondego a morte escura Longo tempo chorando, memoraram Camões. Os Lusíadas: canto III, est. 135 (...) Toldam-se os ares Murcham-se as flores; Morrei, Amores, Que Inês morreu. Mísero esposo, Desata o pranto, Que o teu encanto Já não é seu. Sua alma pura Nos Céus encerra; Triste da Terra, Porque a perdeu.
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Para finalizar o episódio, Camões recorre a um mito segundo o qual a “fonte dos amores de Inês”, em Coimbra, seria o resultado das “lágrimas choradas” pelas “filhas do mondego” por causa da morte da “linda Inês”.
Contra a cruenta Raiva ferina, Taça divina Não lhe valeu. Tem roto o seio, Tesouro oculto; Bárbaro insulto Se lhe atreveu. Da dor e espanto No carro de ouro O númen louro Desfaleceu. Aves sinistras Aqui piaram, Lobos uivaram, O chão tremeu. Toldam-se os ares Murcham-se as flores; Morrei, Amores, Que Inês morreu.”
Manuel Maria Barbosa du BOCAGE (1765-1805) – Com um espírito rebelde e irrequieto, é um dos maiores nomes do Arcadismo português. Sonetista (ou seja, poeta que escreve sonetos) notável, deixou-se propositalmente influenciar pelo estilo de Camões. Não obstante a estrutura árcade de sua obra poética, encontramos nela características que anteciparam o período romântico: seu intenso tom pessoal, a frequente violência na expressão e a obsessão face ao destino e à morte. Grande parte de sua poesia foi muito censurada. Nela encontramos o dedo acusador do poeta nas chagas sociais de um país de aristocracia decadente, aliada a um clero corrupto, ambos sobrevivendo à custa da miséria do povo. Também está presente ali a exaltação do amor erótico, contrapondo-se a uma sociedade que via pecado e imoralidade em tudo o que não fosse convenientemente escondido.
Canto IV Vasco da Gama continua a narrativa da história de Portugal, até chegar à época da própria viagem, narrada desde o seu início. Quando os portugueses vão sair do porto de Restelo, surge um velho que critica severamente as grandes navegações, acusando os portugueses de excessiva vaidade e ganância. É o episódio conhecido como “O velho do Restelo”.
O velho do Restelo (canto IV, estrofes 94 – 104) “Mas um velho d’aspeito venerando, Que ficava nas praias, entre a gente, Postos em nós os olhos, meneando Três vezes a cabeça, descontente, A voz pesada um pouco alevantando, Que nós no mar ouvimos claramente, C’um saber só de experiências feito, Tais palavras tirou do experto peito: ‘– Ó glória de mandar! Ó vã cobiça Desta vaidade, a quem chamamos Fama! Ó fraudulento gosto, que se atiça C’uma aura popular, que honra se chama! Que castigo tamanho e que justiça Fazes no peito vão que muito te ama! Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles experimentas!’
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‘– Dura inquietação d’alma e da vida, Fonte de desamparos e adultérios, Sagaz consumidora conhecida De fazendas, de reinos e de impérios: Chamam-te ilustre, chamam-te subida, Sendo dina de infames vitupérios; Chamam-te Fama e Glória soberana, Nomes com quem se o povo néscio engana!’
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‘– A que novos desastres determinas De levar estes reinos e esta gente? Que perigos, que mortes lhe destinas Debaixo d’algum nome preminente? Que promessas de reinos, e de minas D’ouro, que lhe farás tão facilmente? Que famas lhe prometerás? que histórias? Que triunfos, que palmas, que vitórias?’ ‘– Mas ó tu, geração daquele insano, Cujo pecado e desobediência, Não somente do reino soberano Te pôs neste desterro e triste ausência, Mas inda doutro estado mais que humano Da quieta e da simples inocência, Idade d’ouro, tanto te privou, Que na de ferro e d’armas te deitou:’ ‘– Já que nesta gostosa vaidade Tanto enlevas a leve fantasia, Já que à bruta crueza e feridade Puseste nome esforço e valentia, Já que prezas em tanta quantidade O desprezo da vida, que devia De ser sempre estimada, pois que já Temeu tanto perdê-la quem a dá:’ ‘– Não tens junto contigo o Ismaelita, Com quem sempre terás guerras sobejas? Não segue ele do Arábio a lei maldita, Se tu pela de Cristo só pelejas? Não tem cidades mil, terra infinita, Se terras e riqueza mais desejas? Não é ele por armas esforçado, Se queres por vitórias ser louvado?’ ‘– Deixas criar às portas o inimigo, Por ires buscar outro de tão longe, Por quem se despovoe o Reino antigo, Se enfraqueça e se vá deitando a longe? Buscas o incerto e incógnito perigo Por que a fama te exalte e te lisonge, Chamando-te senhor, com larga cópia, Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?’ 172
Capítulo 3
‘– Ó maldito o primeiro que no mundo Nas ondas velas pôs em seco lenho, Dino da eterna pena do profundo, Se é justa a justa lei, que sigo e tenho! Nunca juízo algum alto e profundo, Nem cítara sonora, ou vivo engenho, Te dê por isso fama nem memória, Mas contigo se acabe o nome e glória.’ ‘– Trouxe o filho de Jápeto do Céu O fogo que ajuntou ao peito humano, Fogo que o mundo em armas acendeu Em mortes, em desonras (grande engano). Quanto melhor nos fora, Prometeu, E quanto para o mundo menos dano, Que a tua estátua ilustre não tivera Fogo de altos desejos, que a movera!’ ‘– Não cometera o moço miserando O carro alto do pai, nem o ar vazio O grande Arquiteto co’o filho, dando Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio. Nenhum cometimento alto e nefando, Por fogo, ferro, água, calma e frio, Deixa intentado a humana geração. Mísera sorte, estranha condição!’ –” Naturalmente, a personagem “Velho do Restelo” não é histórica, mas uma criação de Camões e apresenta um profundo significado simbólico. 41. Em um primeiro momento, pensemos no contexto histórico em que se situa Camões. A seguir são apresentadas três possibilidades do caráter simbólico do “Velho do Restelo”. Escolha a que lhe parecer mais apropriada. I.
( ) Levando em conta o contexto histórico, o velho do Restelo representa aqueles que desejavam uma maior participação portuguesa nas grandes navegações, considerando que Portugal estava perdendo terreno para outros países, como a Espanha.
II. ( ) Levando em conta o contexto histórico, o velho do Restelo representa aqueles que viam com desagrado o envolvimento de Portugal na expansão pelo mar, considerando que a tentativa de criação de um império colonial no Oriente era muito cara e apresentava resultados duvidosos. III. ( ) Levando em conta o contexto histórico, o velho do Restelo representa os interesses italianos e de todos aqueles que se opunham ao progresso de Portugal, com receio de que as novas descobertas pudessem acabar com os seus rentáveis negócios. Os nobres, os quais preferiam que a expansão do país se fizesse por terra, por meio das conquistas militares no norte da África, encontravam assim uma possibilidade para mostrarem o seu valor nas guerras aos povos que viviam no norte da África e, ao mesmo tempo, encontravam nelas a justificativa para os benefícios que recebiam do rei. A burguesia, por seu lado, inclinava-se mais para a expansão marítima, vendo aí maiores oportunidades de comércio. Por outro lado, ignorando o contexto histórico, a figura do Velho pode representar para todos aqueles que, em nome do bom senso, recusam as aventuras incertas, preferindo uma vida tranquila a promessas de enriquecimento que, muitas vezes, significam desgraças. E decepções. Pensando o poder da arte
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42. Observe o trecho da estrofe 95 do Canto IV.
“Que castigo tamanho e que justiça Fazes no peito vão que muito te ama!” A que se refere o pronome pessoal do caso oblíquo “te”?
Encontramos aqui eco de uma ideia particularmente importante para o homem do Renascimento: a nostalgia de uma idade de ouro, tempo de paz e tranquilidade, que o homem viveu em um passado remoto e de que se viu afastado. A grande aspiração defendida pela “áurea mediocritas” (expressão latina que representa essa nostalgia) é poder voltar para essa idade de ouro. O caminho necessário para tal fim é reduzir as ambições, já que foi a ambição exagerada que lançou o ser humano na idade de ferro, em que vive agora. 44. Que estrofe melhor traduz esse pensamento?
Neste sentido o episódio pode ser entendido como a manifestação do espírito humanista, contrário ao espírito guerreiro da Idade Média e defensor da paz. Assim, o episódio do “Velho do Restelo”, de certo modo, está em contradição com a ideologia defendida n’Os Lusíadas, no seu conjunto – a valorização do esforço conquistador e expansionista dos portugueses. Essa contradição revela as contradições ideológicas vividas dentro da própria sociedade portuguesa da época. Cantando os feitos heroicos dos portugueses, Camões dá voz ao orgulho nacional, contudo, na fala do “Velho do Restelo” e em outros momentos da obra, exprime seus ideais humanistas. Canto V Prossegue a narrativa de Vasco da Gama. Agora, narra-se a viagem pela costa africana e, particularmente, o momento mais difícil da viagem: a travessia do Cabo das Tormentas, que aparece personificado na figura do gigante Adamastor. Trata-se de mais uma personagem da mitologia greco-latina. Um gigante que se apaixonou pela ninfa Tétis, mas sabendo que, por ser feio e disforme, não a conquistaria, ameaçou a mãe dela, a deusa Dóris, para que lhe entregasse a filha, senão ele a tomaria à força. Quando a ninfa lhe apareceu, nua e bela, ele começou a beijá-la e somente aos poucos percebeu que, na verdade, beijava um rochedo e que ele mesmo também se transformara em um outro penedo. A bela Tétis que vira era uma ilusão dos deuses para puni-lo por tamanha ousadia. Camões trouxe o gigante à sua fantástica aventura d’Os Lusíadas. Durante uma tempestade, apareceu o monstruoso gigante Adamastor a Vasco da Gama, aterrorizando toda a sua esquadra, profetizando naufrágios e grandes sofrimentos. Por fim, vencido o Gigante, transformou-se no temido penhasco no extremo sul da África, que marca o cabo das Tormentas. 174
Capítulo 3
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
43. O que o Velho do Restelo está condenando nesta estrofe (95) e por quê?
Atividade 45. Procure em sites da Internet, como o , o episódio do gigante Adamastor. Lendo o relato, procure descobrir: a) qual o valor simbólico do gigante mitológico? b) o que significaria vencer o gigante Adamastor?
Canto VI A armada deixa Melinde. Baco desce ao fundo do mar e pede aos deuses que liberem os ventos contra os portugueses. O resultado é uma terrível tempestade, abrandada com a intervenção de Vênus e das Ninfas. Finalmente, os lusíadas chegam às Índias. Canto VII Narra-se o desembarque em Calicute e os primeiros contatos com os mouros. Descrevem-se as Índias. Canto VIII Os portugueses enfrentam novos problemas com os mouros. Alguns adivinhos dizem que os lusitanos vinham para escravizar os indianos. Baco aparece em sonho a um sacerdote muçulmano, inspirando-lhe sentimentos anticristãos. Vasco da Gama explica ao Catual o significado dos símbolos das bandeiras portuguesas, contandolhe episódios da história de Portugal nelas representados. Baco intervém de novo contra os portugueses, aparecendo em sonhos a um sacerdote brâmane e instigando-o por meio da informação de que vêm com o intuito da roubar-lhes as riquezas. O Samorim interroga Vasco da Gama, que acaba por regressar às naus, mas é retido no caminho pelo Catual subornado, que apenas deixa partir os portugueses depois de estes lhes entregarem os valores que traziam. O poeta tece considerações sobre o vil poder do ouro. Canto IX Conseguindo livrar-se das dificuldades, Vasco da Gama apressa a partida. Inicia-se a viagem de volta a Portugal. Segue-se o episódio da Ilha dos Amores: Vênus e Cupido preparam uma recepção aos portugueses para compensar-lhes os sofrimentos. O local, a Ilha dos Amores é uma criação fantasiosa de Camões, repleta de prazeres. Na praia da ilha, a deusa Tétis recebe os marinheiros e enamorase de Vasco da Gama.
Pensando o poder da arte
BRONZINO, Agnolo. Alegoria com Vênus e Cupido. (1545). Londres: The Board of Trustees of the National Gallery.
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Canto X
Em seguida, Tétis leva Vasco da Gama pela mão para o interior da ilha, escalando com ele um monte bem elevado. Do alto dele, num chão de pedras preciosas, Tétis ergue os olhos para o alto e mostra-lhe um fantástico globo. A deusa disse-lhe que só estava ali para apresentar-lhe àquele maravilhoso engenho em “deleitosos versos”. Camões faz aqui uma reflexão sobre o uso da mitologia pagã na mentalidade cristã da Renascença. O mundo pagão já tinha saído de cena diante da força do Cristianismo. Os deuses do Olimpo só serviam como cicerones ou emprestando-se à fantasia inspiradora de poetas. Não mais se intrometiam na vida dos mortais como em épocas passadas. Bem acima deles uma imensa esfera pairava no ar como se estivesse presa no nada: é a Máquina do Mundo. Era como uma imagem virtual do Cosmo e da Terra:
“Vês aqui a grande máquina do Mundo, Etérea elemental, que fabricada Assim foi do Saber, alto e profundo, Quem é sem princípio e meta limitada. Quem cerca em derredor este rotundo Globo e superfície tão limada, É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende, Que a tanto o engenho humano não se estende.” (Canto X, 80) Após essa experiência única, os navegantes partem da ilha e retornam a Lisboa. Particularmente importante é a estrofe 145 deste canto:
“Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho Destemperada e a voz enrouquecida, E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho Não no dá a pátria, não, que está metida No gosto da cobiça e na rudeza Duma austera, apagada e vil tristeza.” (Canto X, 145)
PICASSO, Pablo. O poeta. (1911). Veneza: Fundação Peggy Guggenheim.
46. Qual o foco narrativo empregado pelo enunciador?
45. Que visão de mundo a estrofe revela?
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Tétis oferece um banquete aos navegantes. Ao lado de cada marinheiro, uma bela ninfa, enquanto, na mesa, pratos de ouro contêm os manjares mais deliciosos. Tudo regado com o melhor vinho. Após o banquete, satisfeitos pelo comida e pelo sexo, Tétis leva-os para o alto de um monte e, assumindo-se como vidente, põe-se a cantar os acontecimentos futuros.
48. Qual a sua opinião pessoal sobre Os Lusíadas? Por quê?
HISTÓRIA CRÍTICA DA ARTE E DA LITERATURA: REALISMO — NATURALISMO — parte I Ao ler o poema, pense em como ele questiona a ideologia romântica
Manias! “O mundo é velha cena ensanguentada, Coberta de remendos, picaresca; A vida é chula farsa assobiada, Ou selvagem tragédia romanesca. Eu sei um bom rapaz, – hoje uma ossada, – Que amava certa dama pedantesca, Perversíssima, esquálida e chagada, Mas cheia de jactância quixotesca. Aos domingos a deia já rugosa, Concedia-lhe o braço, com preguiça, E o dengue, em atitude receosa, Na sujeição canina mais submissa, Levava na tremente mão nervosa, O livro com que a amante ia ouvir missa! VERDE, Cesário. O livro de Cesário Verde. Lisboa: Ulisseia de Autores Portugueses, 1995.
José Joaquim CESÁRIO VERDE (1855-1886) – Nasceu em Lisboa. Filho de comerciantes, estudou por algum tempo Letras na Universidade de Coimbra, mas teve de largar os estudos para ajudar nos negócios do pai. Seus poemas publicados em diversos jornais somente se tornaram livro depois da morte do poeta, por tuberculose. Seu estilo altamente plástico consegue, por meio de palavras, “fotografar” a realidade ao redor, sempre com um toque irônico e crítico.
Pensando o poder da arte
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49. Nesse soneto, encontramos uma interessante reflexão sobre o mundo, que será ilustrada nas estrofes seguintes. Como o mundo e a vida são descritos?
50. As últimas três estrofes narram a triste história de amor. Descreva os principais traços do casal. Dama Pedantesca
51. Que semelhanças e diferenças você encontra entre a visão de mundo do poeta português e aquela própria do Romantismo?
O projeto romântico para a burguesia não se cumpriu: surge uma nova escola Depois de a burguesia ocupar o lugar de poder que antes havia sido da nobreza, muitos intelectuais acreditavam no início de uma nova era, mais justa, marcada pela liberdade e pela igualdade. No entanto, o passar do tempo revelou uma outra realidade. Uma nova Revolução Industrial na Europa, caracterizada pelo avanço tecnológico e progresso científico, modificava não apenas os processos de produção, mas a própria estrutura econômica. Os negócios familiares eram, aos poucos, substituídos por grandes empresas, muitas vezes agrupadas em cartéis. A população, que deixara o campo, concentrava-se em vastos aglomerados urbanos, impelida pela industrialização. Surgiam favelas e cortiços em cidades como Paris e Londres. As cidades cresciam sem planejamento e não ofereciam as mínimas condições de conforto e higiene. A classe do proletariado, como era de se esperar, era a que mais sofria.
“O capital atropela não apenas os limites máximos morais, mas também os puramente físicos na jornada de trabalho. Usurpa o tempo para o crescimento, o desenvolvimento e a manutenção sadia do corpo. Rouba o tempo necessário para o consumo de ar puro e luz solar.” MARX, Karl. O capital,1867.
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Capítulo 3
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Rapaz
Apesar dessa triste situação social, cujos reflexos perduram até hoje, uma considerável parcela de escritores românticos escrevia apenas para satisfazer os gostos da burguesia: histórias fáceis de entender, com final feliz ou dramático. Perdidos no exotismo e alienados da realidade que não compreendiam, a grande maioria dos artistas românticos perdia o seu papel de participante político ativo nos destinos sociais, que havia caracterizado o movimento no seu início. Surgiam, então, artistas preocupados em fazer da arte um instrumento mais apropriado para a transformação social. Os primeiros nomes que se arriscam por esses novos caminhos foram Honoré de Balzac, com As ilusões perdidas, e Stendhal, com O vermelho e o negro. Apareciam, aos poucos, manifestações realistas de arte que tinham como objetivo reproduzir de uma forma mais sincera, o ambiente social em que vivia o artista. Em 1855, Courbet apresentava seu quadro O ateliê: uma alegoria real de sete anos de minha vida artística e moral. Veja a reprodução.
COURBET, Gustave. O ateliê: uma alegoria real de sete anos de minha vida artística e moral. Paris: Musée D’Orsay.
GUSTAVE COURBET(1819-1873) – Nasceu em Ornans, na França. Deixou o curso de Direito para dedicar-se às artes. Em 1855, viu seus quadros serem recusados pela Exposição Universal em Paris. Courbet não desistiu e organizou, em barracas, uma exposição paralela de suas obras “realistas”, entre elas, o quadro O ateliê.
Observe que o título do quadro inclui o termo “alegoria”. Isso significa que podemos procurar no quadro, por significações metafóricas no que aparece ilustrado. Representa seu estúdio em Paris, com as figuras dispostas em três grupos: no centro, o próprio pintor; à direita, seus amigos, como Baudelaire, Champfleury e Proudhon; e, à esquerda, um grupo enigmático, identificado por alguns como aqueles de quem o pintor afirmou “crescerem com a morte”: seus inimigos Pensando o poder da arte
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e aquilo que combateu, mas também os pobres, os explorados e os perdedores. Ali vemos um chinês, um judeu, um veterano da Revolução Francesa, um pedreiro e uma irlandesa que aparentemente representam as pessoas exploradas pelo sistema. A figura que aparece como caçador parece ser Napoleão III, golpista e ditador do Segundo Império francês. Criou um regime opressivo, a que Courbet se opôs ativamente, e terminou em revoltas populares sangrentas. Entre as sombras, atrás do cavalete, observamos a figura de um crucificado.
Em O ateliê, Courbet questiona a hierarquia dos gêneros. Ali ele dá o estatuto de representação histórica ao seu quadro que manifesta seu universo pessoal. Realismo é um termo bastante amplo que serve para designar as mais variadas tendências artísticas. Contudo, talvez possamos afirmar que a primeira manifestação literária genuinamente realista surge na França, em 1857. É o livro Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Ema Bovary é casada, pertence à classe média e é leitora dos textos românticos. Sonha com um mundo de fantasias que não se concretiza na realidade. Na procura pelo príncipe encantado, comete adultério duas vezes. Nessas traições, experimenta sempre uma “grande paixão”, seguida pela dor resultante do abandono do amante. Desiludida, compreende afinal a impotência e a alienação romântica de seus desejos, mas não tem forças para suportar a existência pequeno-burguesa e prefere o suicídio à lenta asfixia de um cotidiano vazio.
53. Nesse romance, mais do que por uma mulher específica, as preocupações do escritor recaem sobre um grupo social. Qual?
54. A crítica de Flaubert ainda é válida hoje? Por quê?
O romance causou grande impacto na Europa e foi oficialmente censurado. Flaubert foi acusado publicamente de incentivar a imoralidade. Ainda que absolvido, seu nome ficou associado ao escândalo moral e à denúncia da hipocrisia burguesa. Por outro lado, muitos jovens escritores, em todo o mundo, tomaram Flaubert como modelo e inspiraram-se em Madame Bovary para fundar ou desenvolver os princípios realistas em seus países. A esta altura, é possível que você já tenha visto semelhanças entre o tema 180
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Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
52. Após examinar atentamente a reprodução e ler a descrição apresentada, como você interpreta a alegoria do quadro? (Pense, em especial, no papel do artista.)
de Madame Bovary e o de um dos clássicos da língua portuguesa que estudamos neste livro. Consegue identificá-la? O Realismo aparenta ser a resposta da arte a uma sociedade na qual se havia produzido um certo efeito de nivelamento e em que um crescente número de pessoas adquirira protagonismo. Não havia mais a necessidade do herói para despertar a atenção do leitor. Novos grupos sociais, que ainda não eram massas, impunham novos gostos e hábitos. Nesse sentido, o Realismo continuava sendo a arte da burguesia que tanto criticava, como antes o havia sido o Romantismo. A grande diferença era que essa burguesia então vivia em um outro momento histórico e social. De fato, grandes mudanças haviam ocorrido no cenário intelectual do mundo ocidental. O Naturalismo é uma espécie de prolongamento do Realismo. Os dois movimentos são quase paralelos, e muitos historiadores veem no primeiro uma manifestação do segundo. A grande diferença é que o Naturalismo acrescenta às características realistas uma visão cientificista da existência. Como consideramos que essa diferença não chega a ser significativa no quadro geral do movimento estético, preferimos usar, na maior parte dos casos, a denominação “Realismo-Naturalismo”. 55. Observe o seguinte comentário próprio do pensamento realista-naturalista:
”Meu desejo é pintar a vida, e para este fim devo pedir à Ciência que me explique o que é a vida, para que eu a fique conhecendo.”
(Émile Zola é considerado o maior nome do Naturalismo francês.)
Compare-o com este outro comentário de 1528, que segue o pensamento renascentista:
“Afirmo que a beleza e a forma perfeita estão contidas na soma de todos os homens.”
(Albrecht Dürer, artista e matemático alemão.)
Que semelhanças e diferenças encontra?
Estabelecendo o pensamento realista-naturalista Quando se fala em “luta pela sobrevivência” e “seleção natural”, o nome de quem lhe vem à mente? Em 1859, o cientista inglês Charles Darwin, filho de um pastor anglicano, após longas viagens, observando e refletindo sobre o universo dos seres vivos, deu início a uma profunda revolução na história da ciência, ao publicar Sobre a origem das espécies.
Sobre a origem das espécies, de Charles Darwin, questionou algo que era considerado uma verdade absoluta: a criação da vida.
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As ideias de Darwin abalaram fortemente as concepções religiosas e filosóficas da época e abriram caminho para novas maneiras de se pensar o homem e a sociedade. 57. Pesquise, na biblioteca da escola e na Internet, qual a posição atual da Igreja Católica sobre o evolucionismo. Redija um resumo dessa posição em seu caderno. Cite as fontes consultadas. Se for apropriado em sua escola, peça a ajuda do professor de Ensino Religioso. Augusto Comte procurava uma correspondência entre a evolução das espécies e a evolução da sociedade. Augusto Comte acreditava que a vida social poderia ser analisada por meio de um modelo científico. Interpretava a história da humanidade como um processo permanente de evolução, passando por estágios inferiores (fases teológica e metafísica) até alcançar um patamar superior (fase positiva). Por isso, sua doutrina, elaborada entre 1830 e 1854, foi denominada Positivismo. O ponto-chave nessa doutrina é que o conhecimento deve ser unicamente propiciado pela observação científica da realidade. Apenas aquilo que se consegue provar é, de fato, científico e interessante. Esse conhecimento tornaria possível leis universais que promoveriam o progresso da sociedade e dos indivíduos. Para Comte, “a ordem era a base do progresso social”. 58. Essas ideias de Comte são claramente visíveis nos símbolos nacionais brasileiros, particularmente na bandeira nacional. Explique.
Seu modelo positivista de regime é o republicano, mas estruturado como uma espécie de ditadura da Ciência. Homens esclarecidos e de comprovada honestidade aconselhariam os governantes, comandando as ações do Estado, para integrar os mais pobres à sociedade. Promoveriam diversas ações, como a separação entre Igreja e Estado, a universalização do ensino primário e a proteção à classe trabalhadora. 59. As ideias de Comte tiveram enorme repercussão em todo o mundo. Discuta, em classe, a influência do positivismo no Brasil. Além dessas, podemos falar também da importância de outras correntes de pensamento e da ciência, tais como: • o liberalismo; • o marxismo; • o determinismo de Hippolyte Taine; • os estudos de Lamarck; • as descobertas de Pasteur; • o anarquismo de Bakunin;
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Capítulo 3
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56. Pesquise, no seu material de Biologia, sobre o darwinismo. Resuma os principais pontos dessa teoria.
60. A classe será dividida em grupos. Cada um deles pesquisará uma das correntes de pensamento, que ajudam a explicar o pensamento do homem da segunda metade do século XIX. Depois, de posse das anotações correspondentes, discutirão de que forma tal maneira de ver o mundo ainda é sentida hoje em dia, na produção cultural, intelectual e histórica da sociedade. 61. Pesquise, na biblioteca da escola e na Internet, informações que permitam completar o quadro. Autor
País de origem
Obras significativas Crime e castigo
Ano das edições
Principais características literárias do autor
1866
Tolstoi
Émile Zola
Brasil
PAUSA PARA REFLEXÃO Em seu caderno, responda às questões a seguir. 1. Que conteúdos deste capítulo você conseguiria explicar sem consultar o livro? 2. Consultando o livro, identifique os conteúdos que, na sua opinião, não foram bem compreendidos e merecem novas explicações ou atividades de reforço. 3. Que atividade(s) considerou mais importante(s) para o seu aprendizado? Por quê? 4. Em que aspectos você poderá melhorar sua participação nas próximas aulas?
Pensando o poder da arte
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Tudo isto eu tenho visto, e houve um empenho do meu coração em todo o trabalho debaixo do sol, durante o tempo em que homem tem dominado homem para seu prejuízo. (Eclesiastes 8:9)
Debruadas: rodeadas, pintadas.
“Devia ter quarenta anos, era muitíssimo magra. As feições, miúdas, espremidas, tinham a amarelidão de tons baços das doenças do coração. Os olhos grandes, encovados, rolavam numa inquietação, numa curiosidade, raiados de sangue, entre pálpebras sempre debruadas de vermelho. Usava uma cuia de retrós imitando tranças, que lhe fazia a cabeça enorme. Tinha um tique nas asas do nariz. E o vestido chato sobre o peito, curto da roda, tufado pela goma das saias – mostrava um pé pequeno, bonito, muito apertado em botinas de duraque com ponteiras de verniz.”
Cuia de retrós: pequena almofada feita de fios de seda, usada para dar enchimento ao penteado. Duraque: tipo de tecido usado na confecção de sapatos.
QUEIRÓS, Eça de. O primo Basílio: episódio doméstico. Edição comentada e anotada por Paulo Franchetti. São Paulo: Ateliê, 2001.
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A MISÉRIA DO MUNDO
1. Partindo da leitura atenta da descrição feita dessa importante personagem da obra de Eça de Queirós, levante hipóteses que permitam completar o quadro a seguir. Local e época em que vive
Lisboa (Portugal), final do século XIX
Características psicológicas
Posição social e trabalho em que se ocupa
VOCÊ VIVE OU SÓ SOBREVIVE?
Keystone
Qual a sua reação diante das injustiças na sociedade? Nesta sociedade tão violenta em que “homem tem dominado homem para seu prejuízo”, você vive ou só sobrevive? Pense nisso enquanto acompanha a letra de música.
A miséria do mundo
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Poesia de concreto “Você é livre? Você vive ou só sobrevive?
De cada calçada de concreto da cidade, cada vida que se ergue, cada vida que se segue, cada cidadão persegue a sua cota, lutando pra se manter, marcando a mesma rota, lutando pra nunca se perder, pra não perder, não ver a cara da derrota estampada na lorota que faz ponto a cada esquina, encostada em algum poste, pronta pra te desviar da sorte. Talvez um corte brusco na sua sina. Existem uns que seguem na rotina e não enxergam ao redor. Reclama e não se posta pra tornar melhor. Acha melhor sobreviver só, mantendo distância de cada sonho que crescia na infância e cada esperança de criança se mistura ao ar impuro inspirado e expirado, por cada cidadão comum que deixa escorrer a liberdade na sarjeta da calçada de concreto da cidade. Dedicada a cada poeta da cidade, dedicada a cada atleta da cidade, dedicada a cada ser humano da cidade que cultiva a liberdade no concreto da cidade. Entre as paredes de concreto da cidade, se esconde o mundo de quem faz qualquer negócio só pra não ser taxado de vagabundo. Sonhos de adultos se decepam por segundo a cada insulto do patrão. É o culto do faz de conta que eu sou feliz assim. Salário no fim do mês é o que conta: paga as contas e faz bem pra mim! Não é o caso em que eu me encaixo: sonho alto demais pra viver por baixo igual capacho e acho que existem outros por aí que olham pras paredes só pensando em demolir pra ser livre, mas na real nem sabe como. Perdeu toda noção acostumado a viver com dono. Não condeno, mas não concordo e não me adapto. Fora das paredes, mais inspiração eu capto: me sinto apto pra cantar a liberdade que se esconde entre as paredes de concreto da cidade. Dedicada a cada poeta da cidade, dedicada a cada atleta da cidade, dedicada a cada ser humano da cidade que cultiva a liberdade no concreto da cidade.
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Algum teto de concreto da cidade abriga o restante da liberdade semelhante a que escorreu pela sarjeta da calçada, se escondeu entre as paredes ou partiu pra outra. Morreu de fome, de frio, de sede, pois sem abrigo não há pra onde voltar pra poder descansar e pensar na estratégia pra continuar lutando pra manter a liberdade que se tem. As adversidades não se sabe de onde elas vêm, que cara elas têm, pelas mãos de quem vêm, com ordem de quem. Alguém me diz: Porque eu não posso ser feliz completamente sem que alguém ou algo tente tumultuar minha mente? – Mas eu sigo em frente, sempre! Vou nadando, mesmo que seja contra a corrente, pra que eu possa construir meu verso, meu abrigo, meu teto pra fazer minha versão da poesia de concreto
a or
ow w
Dedicada a cada poeta da cidade, dedicada a cada atleta da cidade, dedicada a cada ser humano da cidade que cultiva a liberdade no concreto da cidade.” Kamau. et al. Poesia de concreto. In: Selo instituto na coleta seletiva. Rio de Janeiro: L e C Editora, 2005.
2. Comente, em classe, o que entendeu da música. Nas periferias das grandes cidades surgiu uma expressão cultural própria que se manifesta por meio das letras de músicas dos MCs, da dança dos b.boys e b.girls e dos traços coloridos dos grafiteiros. Essa é a cultura hip hop que, a seu jeito, traduz seu incômodo com algo que já inquietava o escritor do livro de Eclesiastes, na Bíblia: o mau uso do poder, a violência, a injustiça.
“A cultura hip hop é formad a pelos segui Rap – rhythm ntes elemento and poetry, o s: o rap, o gra u seja, ritmo e ffiti e o break. da cultura. poesia, que é a expressão m usico-verbal Graffiti – que representa a ar te plástica, expre graffiteiros, na ssa por desen s ruas das cid hos coloridos ad es espalhadas feitos por Break dance pelo mundo. – que represe nta a dança. Os três elemen tos juntos co mpõem a cultu ra hip hop.” Disponível em
titucional/histor
ia.htm>. Acess
ado em 08-8-2
004.
3. Discuta, junto com seus colegas de classe, as diversas maneiras como a cultura hip hop se manifesta na sua comunidade. A miséria do mundo
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“Servia, havia vinte anos. Como ela dizia, mudava de amos, mas não mudava de sorte. Vinte anos a dormir em cacifos; a levantar-se de madrugada, a comer os restos, a vestir trapos velhos, a sofrer os repelões das crianças e as más palavras das senhoras, a fazer despejos, a ir para o hospital quando vinha a doença, a esfalfar-se quando voltava a saúde!... Era demais! Tinha agora dias em que só de ver o balde das águas sujas e o ferro de engomar se lhe embrulhava o estômago. Nunca se acostumara a servir.” QUEIRÓS, Eça de. O primo Basílio: episódio doméstico. Edição comentada e anotada por Paulo Franchetti. São Paulo: Ateliê, 2001.
a) Seguindo a linha de raciocínio do rap “Poesia de concreto”, você diria que Juliana “vive ou só sobrevive”? Por quê?
b) Que semelhanças consegue encontrar entre o rap “Poesia de concreto” e essa passagem do romance O primo Basílio?
c) Se levarmos em conta que a primeira edição de O primo Basílio data de 1878 e o rap “Poesia de concreto” foi gravado nos dias de hoje, a que conclusões podemos chegar?
d) De acordo com as palavras do rap: “– Mas eu sigo em frente sempre,/ vou nadando mesmo que seja contra a corrente/ pra que eu possa construir meu verso, meu abrigo, meu teto/ pra fazer minha versão da poesia de concreto”, qual a finalidade da arte e da poesia?
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Capítulo 4
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4. Leia agora, com atenção, o seguinte trecho de uma das mais valorizadas obras literárias da língua portuguesa: O primo Basílio. A obra retrata a vida na casa de Jorge e Luísa, casal da burguesia lisboeta do século XIX e tem no adultério o seu tema nuclear. A passagem que vamos ler encontra-se, mais ou menos, no meio do capítulo III e trata da vida de Juliana Couceiro Tavira, empregada da casa. Você já a conhece, pois é a personagem descrita na abertura deste capítulo, da qual levantou algumas hipóteses sobre o seu perfil psicológico e social.
A ANÁLISE SINTÁTICA E A EXPRESSIVIDADE DAS FRASES Nos capítulos anteriores, temos abordado algumas questões importantes de análise sintática. Agora, vamos ampliar os nossos conhecimentos. As orações de predicado nominal apresentam verbos de ligação. Observe: • A Terra é um planeta do Sistema Solar. • A Terra é redonda e azulada. • A Terra é bela. 5. Qual das frases acima revela maior subjetividade?
6. Qual das frases analisadas exprime uma classificação da Terra?
7. Qual das frases descreve a Terra?
Ao analisar a frase a seguir, pense na personagem Juliana, de O primo Basílio: Juliana não era uma empregada doméstica, ela estava uma empregada doméstica. 8. Levando em conta o que sabe até agora de Juliana, que diferenças de sentido consegue encontrar entre “era” e “estava”?
9. Leia, com atenção, as frases e depois estabeleça a relação adequada, levando em conta o valor expressivo dos verbos de ligação: a) Deolice permaneceu quieta por horas. b) Sandro anda feliz ultimamente.
O verbo ser indica o aspecto de duração indeterminada e constante. Já o verbo estar indica duração limitada.
c) Depois da viagem, Pepe parece outra pessoa. d) Até que o exercício parece fácil. e) Reinaldo tornou-se uma estrela da culinária. f)
Deus é amor.
( ) Mudança de estado. ( ) Continuidade de estado. ( ) Impressão pessoal de semelhança. ( ) Estado permanente. ( ) Aparência de estado. ( ) Estado transitório. As orações de predicado verbal apresentam verbos intransitivos ou transitivos. A miséria do mundo
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Os verbos intransitivos tratam de um sujeito isolado, cuja ação raramente se estende a outros seres ou ao seu ambiente. 10. Com a ajuda de uma gramática, complete o quadro que classifica os verbos intransitivos. Os verbos intransitivos exprimem
Exemplos
Chorar, rir, suspirar, gemer.
Processos mentais.
Gritar, falar, cantar, rosnar, latir, miar.
Verbos de movimento, indicando ou não o lugar em que se dá a deslocação do sujeito.
Tanto o predicado nominal, como o predicado com verbo intransitivo põem em primeiro plano o sujeito. Predicados nominais que exprimem estado ou mudança de estado podem alternar com predicados verbais. 11. Complete adequadamente o quadro a seguir. Predicado nominal As safras estavam maduras.
Predicado com verbo intransitivo As safras amadureceram.
A menina ficou parada.
Carlinha emagreceu.
Eu cansei!
O pai dela morreu.
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Capítulo 4
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Fenômenos existenciais.
Há diferenças entre usar uma construção com predicado nominal ou usar uma construção com predicado com verbo intransitivo. 12. Carla e João Henrique estavam namorando já por uns três meses. No entanto, as coisas não andavam bem entre eles. No domingo passado, foram ao cinema e, na saída, brigaram. Em dado momento, Carla diz: – Eu estou cansada, João! Ao que João Henrique responde: – É, eu também cansei! Qual dos dois revela uma maior força expressiva em sua fala? Por quê?
Observe a frase, baseada na personagem “Juliana” de O primo Basílio:
Juliana vestia trapos velhos já por vinte anos. O sujeito da frase (Juliana) relaciona-se com o objeto (trapos velhos). A projeção do sujeito sobre o objeto, neste caso, direto, ajuda a expressar a vida difícil sofrida pela personagem. Vestir-se é uma necessidade física e social. O verbo “vestir” completa-se com o objeto direto “trapos velhos”, o qual ajuda a construir a imagem de alguém que não consegue satisfazer suas necessidades básicas na sociedade injusta em que vive. Nas orações de verbo transitivo, o sujeito aparece relacionado a outro ser – o objeto. As frases com verbo transitivo exprimem o dinamismo da vida e dos relacionamentos em um mundo em que os seres humanos atuam uns sobre os outros. 13. Retornemos à letra de rap e a O primo Basílio. Identifique os verbos das orações transcritas a seguir e classifique-os em verbos de ligação (VL), verbos transitivos (VT) ou verbos intransitivos (VI). Depois explique os efeitos de sentido que o uso de tais verbos permitem no texto. a) (...) “Você é livre? / Você vive ou só sobrevive?” (...)
b) (...) “cada cidadão persegue a sua cota, lutando pra se manter” (...)
A miséria do mundo
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A ordem inversa A colocação dos termos da oração, considerada normal ou predominante na língua portuguesa, é: sujeito – verbo – objeto direto – objeto indireto; ou sujeito – verbo de ligação – predicativo. É também chamada de ordem direta. Determinados usos, enumerados pela gramática, como orações interrogativas ou de verbo unipessoal, quase exigem que se altere a ordem direta. A inversão coloca em evidência um termo que se deseja privilegiar, rompendo com a monotonia da ordem usual. A ordem inversa, na língua portuguesa, chama a atenção do leitor para aquilo que inicia a frase, dandolhe uma orientação para a leitura. Assim, numa sentença como “Para longe, desejava fugir eu” (quando na ordem tradicional seria “Eu desejava fugir para longe”) destaca-se a distância, o desejo de fugir para longe de tudo, talvez para longe de si próprio, pois o sujeito (eu) aparece não após o termo “Para longe”, mas no final da frase, bem distante de sua posição habitual. Claro que este exame requer o contexto que permitirá que nossas hipóteses de leitura encontrem apoio ou não. A inversão também pode favorecer um ritmo mais adequado ou ajudar a expressar um tom mais elegante. Na poesia, a ordem inversa pode favorecer a rima ou a métrica. 14. As orações estão em ordem inversa. Reescreva-as na ordem tradicional de sujeito – verbo – complementos e objetos. Depois, compare a frase original com aquela que escreveu, encontrando as possíveis diferenças de sentido. a) “Entre as paredes de concreto da cidade, se esconde o mundo”.
b) “Fora das paredes, mais inspiração eu capto:”
c) “As adversidades, não se sabe / de onde elas vêm”.
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c) (...) “pra que eu possa construir meu verso, meu abrigo” (...)
d) (...) “só de ver o balde das águas sujas e o ferro de engomar se lhe embrulhava o estômago”.
15. Classifique os termos sublinhados em objeto direto (OD) ou objeto indireto (OI): a) “cada cidadão persegue a sua cota (
), lutando pra se manter”.
b) “Entre as paredes de concreto da cidade, se ( c) “Mudava de amos (
) esconde o mundo”.
), mas não mudava de sorte.”
16. Repare que as estruturas sintáticas, tais como verbos transitivos, intransitivos ou de ligação, objetos direto e indireto, são possíveis de serem identificadas tanto no rap como no romance O primo Basílio. Podemos, então, concluir que as estruturas sintáticas (
) estão presentes em quaisquer textos, tanto populares como eruditos.
(
) são percebidas apenas nos textos literários.
(
) embora apareçam em textos de caráter popular, apenas são importantes nos textos literários.
O discurso político na vida social Leia, com atenção, o trecho.
“Em essência todo discurso é político porque todo discurso, de uma forma ou de outra, tem em vista o bem comum, o interesse social. (...) O justo e o injusto são valores políticos. Mais especificamente, o discurso político é o que delibera sobre um fato futuro, possível, aconselha ou desaconselha, do ponto de vista do útil e do nocivo.” TRINGALI, Dante. Introdução à retórica; a retórica como crítica literária. São Paulo: Duas Cidades, 1988.
17. Em vista do que nos fala Dante Tringali, é possível considerar a letra de rap Poesia de concreto como parte dos discursos políticos que circulam na sociedade? Por quê?
O sujeito Em outros momentos de nosso estudo, já pudemos falar do sujeito. Aprofundemo-nos agora ainda mais no assunto. O sujeito das orações da língua portuguesa pode ser determinado ou indeterminado. Há também orações formadas sem sujeito. I. Sujeito determinado é aquele que podemos identificar a partir da concordância verbal. A miséria do mundo
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18. Identifique os sujeitos das orações. a)
“(...) cada cidadão persegue a sua cota, (...)”
b) “Entre as paredes de concreto da cidade, se esconde o mundo (...)”
19. Observe: I. Eu sei toda a verdade a seu respeito! II. Sei toda a verdade a seu respeito! a) Nos dois casos é possível identificar o sujeito, no entanto qual das duas frases é mais enfática?
b) O que podemos concluir sobre o uso do sujeito quando ele é identificável pela pessoa verbal?
Porém, na construção de um texto, nem sempre é apropriado explicitar o sujeito. Repetir o sujeito desnecessariamente pode deixar o texto cansativo para a leitura e revelar dificuldades de construir a coesão textual. 20. O texto apresenta um excesso de sujeitos explicitados. Retire aqueles que, em sua opinião, dificultam a coesão textual.
“Eu sei que ela sabia de toda a verdade, por isso eu achei melhor repetir-lhe mais uma vez: ‘Você não fique assim tão triste que o mundo é mesmo muito injusto’. Ela olhou-me e ela nada falou. Eu acho que ela nem sequer gostou de minhas palavras. Eu queria apenas dizer algo simpático. Não é fácil terminar com o namorado na saída do cinema. O que eu queria ter-lhe dito é que eu gostava muito dela e se ela quisesse mesmo esquecê-lo, eu poderia ajudá-la. Eu já sabia há um bom tempo que João tinha outra. Ela talvez também o soubesse, mas ela fingia que nada sabia. Eu sei que ela sabia toda a verdade, por isso eu achei melhor repetir-lhe mais uma vez aquelas palavras. O que eu não tive coragem de dizer é que eu estava apaixonado por ela.” José Luís Landeira. (Especialmente para esta obra).
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c) “Algum teto de concreto da cidade abriga o restante / da liberdade (...)”
II. Sujeito indeterminado é aquele que não conseguimos identificar na oração. Isso ocorre por três motivos: 1o) por se desconhecer quem executa a ação; 2o) por não haver interesse em seu conhecimento; 3o) por se desejar generalizar a ação. O processo de indeterminação do sujeito se dá de duas maneiras: 1a) O verbo (ou o seu auxiliar, se for o caso) é colocado na terceira pessoa do plural, sem fazer qualquer referência a seres determinados. Exemplo: – Telefonaram para você. – Quem? – Não sei. Não quiseram deixar recado. 21. No exemplo acima, o que levou o locutor a indeterminar o sujeito?
2a) O verbo, na terceira pessoa do singular, é acompanhado da partícula “se”, que tem a função de índice de indeterminação do sujeito. Essa construção ocorre com verbos que não têm objeto direto, ou seja, verbos: • Intransitivos – Vive-se a cada dia uma nova aventura. • Transitivos indiretos – Trata-se de uma situação inesperada. • De ligação – É-se feliz na infância. Como pode notar, na frase “É-se feliz na infância”, o sujeito indeterminado expressa um sentido de generalidade. A frase transmite a ideia de que “todos são felizes na infância”. 22. Os verbos em negrito das frases a seguir apresentam sujeitos indeterminados. Identifique se elas revelam desconhecimento de quem realiza a ação, falta de interesse em revelá-lo ou desejo de generalizar. a) Contaram-me umas coisas terríveis a seu respeito. Espero que não me leve a mal, mas eu preciso muito saber se é verdade.
b) Espalharam umas calúnias a respeito dele na empresa. Por causa disso, mudou de emprego. É uma pena, pois era um excelente funcionário.
c) Diante de problemas, precisa-se de muita calma.
Nem sempre é fácil identificar o que levou o interlocutor a indeterminar o sujeito. Em diversos casos, os motivos se misturam ou não são claros. 23. Identifique e classifique os sujeitos nas orações em negrito a seguir. a) “Vou nadando, mesmo que seja contra a corrente.” b) Estão chamando você lá fora. c) “pra que eu possa construir meu verso, meu abrigo, meu teto / pra fazer minha versão da poesia de concreto” A miséria do mundo
195
d) Precisa-se de empregados naquela fábrica. e) “Sonhos de adultos se decepam por segundo a cada insulto do patrão.”
A TEORIA DO ROMANCE E A SOCIEDADE BURGUESA
Voltemos a nossa atenção novamente à letra do rap que analisamos no início do capítulo. 25. A que se refere a palavra “lorota” no trecho do rap transcrito a seguir? Por que o uso do termo “lorota”?
“(...) lutando pra nunca se perder pra não perder não ver a cara da derrota estampada na lorota que faz ponto a cada esquina encostada em algum poste pronta pra te desviar da sorte”
26. Em que sentido essa “lorota” está “pronta para te desviar da sorte”?
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24. Em época de eleições, uma prefeitura decide criar uma nova taxa para administrar o problema do lixo na cidade. Ponha-se na posição do prefeito e escreva um breve texto aos cidadãos dessa cidade, anunciando a decisão de maneira a não prejudicar os resultados do partido na eleição.
O rap critica a sociedade atual, denunciando-a como algo alicerçado em bases inconsistentes, alimentada por uma ideologia das aparências, mantidas a qualquer preço. Essa triste realidade já era percebida por escritores do século XIX, como Eça de Queirós, que escreveu o romance O primo Basílio, um retrato da burguesia lisboeta do século XIX. Já falamos de uma das principais personagens da obra, Juliana, empregada na casa de Jorge e Luísa. Veja como Juliana descreve o aposento onde dorme e a reação de sua patroa, Luísa, diante das reclamações da doméstica. “– Eu desejava falar à senhora uma coisa... E começou a dizer – que seu quarto em cima do sótão era pior que uma enxovia; que não podia lá continuar; o calor, o mau cheiro, os percevejos, a falta de ar, e no inverno a umidade, matavam-na! Enfim, desejava mudar pra baixo, pro quarto dos baús. O quarto dos baús tinha uma janela nas traseiras: era alto e espaçoso; guardavam-se ali os oleados de Jorge, as suas malas, os paletós velhos, e veneráveis baús do tempo da avó, de couro vermelho com pregos amarelos. – Ficava ali como no céu, minha senhora! – E... aonde se haviam de pôr os baús?”
“enxovia: (substantivo feminino) 1 parte térrea ou subterrânea das prisões, úmida e escura, que, outrora, abrigava os presos por crimes graves ou de alta periculosidade. 2 Derivação: por extensão de sentido: qualquer masmorra; calabouço, ergástulo, ságena; enxova. 3 Derivação: por extensão de sentido: quarto, recinto insalubre, mal arejado, escuro e sujo.” HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro Sales. Dicionário Houais da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
27. Pela leitura, do trecho podemos concluir que (
) Juliana reclama exageradamente, o que deixa Luísa sem saber como poderá ajudá-la.
(
) Luísa dá mais importância aos bens materiais do que aos seus empregados.
(
) Luísa demonstra genuína preocupação com o bem-estar de Juliana.
28. Observe: I.
“seu quarto em cima do sótão era pior que uma enxovia;”
II. “O quarto dos baús (...) era alto e espaçoso;”
O verbo “ser”, nas frases acima, é um verbo de ligação, servindo de ponte entre os sujeitos e os atributos ou os seus predicativos. Qual das duas frases apresenta um predicativo do sujeito com maior valor subjetivo? Por quê?
A miséria do mundo
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Dizemos que O primo Basílio é um romance não por ter um enredo romântico. Na verdade, o romance é um gênero narrativo, como o conto, a lenda ou a epopeia, e pode tratar de qualquer tema, inclusive do amor. Tornou-se, a partir do século XVIII, o mais importante dos gêneros literários.
Diegese: conjunto formado pelo enredo e pelo universo espaço-temporal em que ele se desenrola.
O que caracteriza o romance é, principalmente, a presença de uma narrativa relativamente extensa, de grande complexidade, eventualmente entrelaçada com ramificações secundárias e com o estudo psicológico das personagens. No romance, os componentes que dão origem à ação podem ser de ordem social, cultural ou psicológica. O romance pode ser aberto ou fechado. No romance aberto, o leitor não conhece o destino definitivo das personagens ou o epílogo da narrativa. No romance fechado, o leitor conhece o destino final de todas as personagens e as consequências da narrativa romanesca. Isto é, a diegese é claramente delimitada com um princípio, meio e fim.
Como ler romances: a tomada de decisões Ao ler o depoimento a seguir, pense em sua situação pessoal como leitor de romances.
“Leitora apaixonada, fã de carteirinha, me envolvo com os romances de que gosto: curto, torço, roo as unhas, leio de novo um pedaço que tenha me agradado de forma particular. Se não gosto, largo no meio ou até no começo. O autor tem vinte/trinta páginas para me convencer de que um livro faz a diferença. Se não faz, adeus! O livro volta pra estante e vou cuidar de outra coisa...” LAJOLO, Marisa. Como e por que ler o romance brasileiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.
30. Você acredita que a leitura faz diferença? Por quê?
31. Qual a sua opinião sobre a leitura de romances?
Agora, leia a primeira experiência da professora Marisa Lajolo, como leitora de um romance. Durante a leitura, procure encontrar pontos de semelhança com a sua própria primeira experiência com um romance. 198
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29. Encontre um trecho do rap de Kamau e Instituto que demonstre as dificuldades existentes hoje entre empregados e patrões.
“Não sei se aquilo de que me lembro hoje foi mesmo o começo verdadeiro. Em Santos, onde morávamos, minha mãe lia histórias, meu pai gostava de declamar poesias. Foi em algum momento do ginásio – por volta do que hoje seria a sexta ou sétima série – que li de começo a fim um romance: Inocência, de Taunay, é minha mais remota lembrança de leitura de romance brasileiro. Livro aberto nos joelhos, afundada de atravessado numa poltrona velha e gorda, num quartinho com máquina de costura, estante com quinquilharias e uma gata branca chamada Minie. (...) Dona Célia, nossa professora de português, mandou a gente ler um livro chamado Inocência. Disse que era um romance. Na classe tinha uma menina chamada Maria Inocência. Loira desbotada, rica e chata. Muito chata. Alguma coisa em minha cabeça dizia que um livro com nome de colega chata não podia ser coisa boa. Foi, por isso, com a maior má vontade que comecei a leitura do romance do Visconde de Taunay, de quem nunca tinha ouvido falar: visconde, para mim, era o de Sabugosa. Fui lendo a frio, sem entusiasmo nenhum. O presságio de chatice confirmava-se, até que apareceu o episódio das borboletas. Aí me interessei pelo livro: um alemão corria mundo caçando borboletas e depois dava a uma delas o nome da heroína do livro... Gostei. Não muito, mas gostei. E passei a olhar os nomes e as borboletas com olhos diferentes: Alguma delas seria a Papilo innocentia da história? (...) Não incluí Inocência entre os melhores livros que li, mas foi ele que me ensinou a ler romances e a gostar deles: desconfiando primeiro, abrindo trilhas depois e, finalmente, me entregando à história.” (Op. cit.)
32. Seguindo o texto da professora Marisa Lajolo como modelo, narre a sua primeira experiência com um romance. Diga o que pensou ao iniciar a leitura, durante a leitura e ao seu término.
A miséria do mundo
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Em outros momentos, no correr desta obra, tanto neste segundo volume, como no primeiro, pudemos abordar a personagem nas narrativas literárias. Ser de ficção que habita o mundo do texto narrativo ou dramático e que, com seus sentimentos, maneira de ser, ideologia, palavras e ações, dá forma à diegese. A personagem é muitas vezes identificada por um retrato físico e por um psicológico-moral. É sobretudo por meio da personagem (de suas falas, reproduzidas pelo narrador em discurso direto ou indireto ou indireto livre, de seus comportamentos e de suas ações) que se manifestam no romance valores éticos e posições ideológicas. Uma personagem pode ser estática, se não se transforma ao longo da ação narrativa, mas mantém-se do mesmo jeito que era ao início, e dinâmica, no caso contrário. A personagem pode ser plana, se é construída com base num número reduzido de características, normalmente físicas, sem profundidade nem complexidade; pode ser redonda, no caso contrário. A personagem plana representa com frequência um tipo humano, no plano psicológico-moral e sociológico. Temos, então, o vilão, o herói bonzinho, a donzela em perigo, o ganancioso, o medroso, etc. Pode ser uma entidade completamente ficcional, ou ter a sua origem no mundo histórico e ter viajado para o universo da ficção pelas mãos do escritor.
O romance, normalmente, expressa em registro ficcional os conflitos e tensões do homem na época em que se insere. Veja o que fala sobre esse gênero literário o professor de Literatura Donaldo Schüler:
“A atividade artística reúne qualidades do trabalho e da ação, produz obras duráveis e eleva o homem acima da necessidade e da utilidade. O romance, quando bem sucedido, age livremente sobre o mundo para transformá-lo e apresentá-lo durável ao leitor. O autor de romances sustenta o mundo romanesco sobre a palavra persuasiva do narrador que, ao narrar, congrega livre e criativamente os homens.” SCHÜLER, Donaldo. Teoria do romance. São Paulo: Ática, 1989.
“O romance é uma resposta dada pelo sujeito à sua situação na sociedade burguesa ou estruturada em termos burgueses.” KRYSINSKI. In: REIS, Carlos. Dicionário de narratologia. Coimbra: Almedina, 2000.
33. Pesquise, em dicionários de literatura e outros manuais literários, informações para completar o quadro que, ao final, será socializado em sala de aula.
SUBGÊNEROS DO ROMANCE Definição Propõe-se a defender uma afirmação nuclear (tese) dentro de um sistema de valores. Trata-se de um romance de forte orientação ideológica.
Romance de tese
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Exemplos na Literatura de Língua Portuguesa O primo Basílio de Eça de Queirós (Portugal) O cortiço de Aluísio Azevedo (Brasil)
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A personagem no romance
SUBGÊNEROS DO ROMANCE Definição
Romance folhetim
Exemplos na Literatura de Língua Portuguesa
Mistérios de Lisboa de Camilo Castelo Branco (Portugal) Meu destino é pecar de Nelson Rodrigues (Brasil)
Romance policial
Romance histórico
Romance psicológico
Muitas manifestações literárias e culturais nascem a partir da experiência do homem com a injustiça. Às vezes, a obra literária procura afastar o homem dessa realidade de sofrimento, apresentando-o a um mundo transformado pela imaginação do autor. O relacionamento do autor com o mundo, em romances desse tipo, não procura criar tensões entre as personagens e o meio em que vivem. 34. No trecho do romance a seguir, encontramos o jovem estudante Augusto julgando-se vacinado contra o amor. Leia o texto com atenção e elabore hipóteses sobre o desfecho da obra.
“– Por quem são!... deixem minha avó e tratemos da patuscada. Então tu vais, Augusto? – Não. – É uma bonita ilha. – Não duvido. – Reuniremos uma sociedade pouco numerosa, mas bem escolhida. – Melhor para vocês. – No domingo, à noite, teremos um baile. – Estimo que se divirtam. – Minhas primas vão. – Não as conheço. – São bonitas. A miséria do mundo
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MACEDO, Joaquim Manuel de. A moreninha. São Paulo: Moderna, 1984.
35. Pela leitura atenta que fez do texto, como lhe parece que esse romance termina?
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– Que me importa?... Deixem-me. Vocês sabem o meu fraco e caem-me logo com ele: moças!... moças!... Confesso que dou o cavaco por elas, mas as moças me têm posto velho. – É porque ele não conhece tuas primas – disse Fabrício. (...) – Mas, Filipe, tu já me disseste que tinhas uma irmã. – Sim: é uma moreninha de quinze anos. – Moreninha! diabo!... – exclamou outra vez Augusto, dando novo pulo. (...) – A alma que Deus me deu – continuou Augusto – é sensível demais para reter por muito tempo uma mesma impressão. Sou inconstante, mas sou feliz na minha inconstância, porque apaixonando-me tantas vezes, não chego nunca a amar uma vez... – Oh!... Oh!... que horror! ... que horror!.... – Sim! esse sentimento que voto às vezes a dez jovens num só dia, às vezes numa mesma hora, não é amor, certamente. Por minha vida, interessantes senhores, meus pensamentos nunca têm damas, porque sempre têm damas; eu nunca amei... não amo ainda... eu não amarei jamais... – Ah!... ah!... ah!... e como ele diz aquilo! – Ou, se querem, precisarei melhor o meu programa sentimental; lá vai: afirmo, meus senhores, que meu pensamento nunca se ocupou, não se ocupa, nem se há de ocupar de uma mesma moça durante quinze dias. – E eu afirmo que segunda-feira voltarás da Ilha de... loucamente apaixonado de alguma de minhas primas.”
36. Augusto, personagem protagonista de A moreninha, de acordo com o desfecho que você sugeriu na questão anterior, é uma personagem estática ou dinâmica. Por quê?
Contudo se, de vez em quando, é bom afastar-se da dura realidade da vida e pensar apenas em coisas boas, com final feliz, essa arte que pode exercer sobre nós uma função evasiva, permitindo-nos sonhar com lugares melhores, pode também ser alienante. Em tais casos, tais obras literárias impediriam os leitores menos experientes de ver com clareza o mundo ao seu redor. Quase podemos dizer que é o caso de A moreninha. Sobre ele afirma o professor Alfredo Bosi: “a veracidade dos costumes fluminenses aparece distorcida pela cumplicidade tácita com a leitora que quer ora rir, ora chorar, de onde resulta um realismo de segunda mão, não raro rasteiro e lamuriento”. Em outros momentos, a obra de arte lança suas raízes na realidade, penetrando mais profundamente na existência humana e denunciando seus diversos problemas. Dessa forma, a arte procura impedir o maior problema de todos: o acomodamento da sociedade aos seus problemas. Romances desse tipo nos mostram personagens que não conseguem se adequar às estruturas, muitas vezes degradadas, do mundo em que vivem. Esse tipo de arte literária pode seguir dois caminhos. O narrador pode voltar-se para o mundo em que vive e denunciar suas contradições, empenhando-se em ser coerente com a obra de arte que está produzindo. Como exemplo do que afirmamos, encontramos o romance O primo Basílio, que estamos analisando neste capítulo. Por outro lado, o narrador pode voltar-se para dentro dele mesmo, procurando a sua essência, na busca de compreender a profundidade da existência. Nesse caso, as personagens de romances com essa característica fecham-se em sua memória ou na análise dos sentimentos de sua alma. É o que encontramos em autores como Clarice Lispector, Lygia Fagundes Teles ou Guimarães Rosa. Essas atitudes sempre existiram na história da arte e da literatura, e entre elas movem-se os autores, ao produzirem as suas obras.
“E não se trata de conceder prioridade aos temas ostensivamente sociais. O realismo afirma-se como político no momento em que o artista vive, com todo o empenho intelectual e ético, a ideia de que arte é conhecimento.” BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 1986.
37. No capítulo anterior, a classe criou uma escola literária. Seguindo o raciocínio de Alfredo Bosi, apresentado no quadro lateral, o que é necessário para que essa escola literária não seja alienadora? Como conseguir isso?
A miséria do mundo
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A cultura hip hop, com o rap, a dança e os grafites tem permitido que muitos jovens encontrem uma identidade e autoestima apesar das duras dificuldades do cotidiano. Observe a foto de um grafite de rua.
Grafite do Beco Escola da Rua, na Vila Madalena, em São Paulo, SP.
39. Você consideraria o grafite uma forma de arte evasiva ou realista? Por quê?
Uma boa parte da obra de Eça de Queirós aprofunda-se na realidade e nos problemas de sua época: Portugal do século XIX. Nomeado cônsul de Portugal, residiu por muitos anos longe de seu país, o que lhe permitiu uma posição de observador incomum. Além disso, manteve contato com as grandes correntes de ideias de seu tempo, que influenciaram muitos escritores das línguas portuguesa e espanhola. Sua obra pode ser dividida, por questões didáticas em três momentos. Inicialmente, escreve para o jornal Gazeta de Portugal. Além disso, junto a Ramalho Ortigão, publica um romance policial – O mistério de Sintra – que se pode encontrar facilmente em livrarias e bibliotecas. Juntos, ainda, publicam o jornal mensal As farpas, dedicado à crítica social e literária. Sua primeira obra importante é O crime do padre Amaro (1875), romance de tese em que defende a tese de que é negativa a influência excessiva do clero sobre a sociedade. Seguem-se O primo Basílio (1878) e Os Maias (1888). Essa fase, bem como a anterior, caracterizam-se por um escritor muito voltado para o pensamento da Escola Literária Realista. 204
Capítulo 4
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38. Das três possibilidades de escrever literatura que apresentamos (literatura como forma de sonhar um mundo melhor, como denúncia do mundo em que se vive ou como mergulho na própria alma) qual melhor se encaixa com a escola literária que a classe criou? Por quê?
Os romances que vieram a seguir (A ilustre casa de Ramires, A capital, A relíquia, O conde d´Abranhos, A cidade e as serras) mostram um escritor ainda comprometido com a realidade, mas menos preocupado em seguir as características dessa ou daquela corrente de pensamento. A Escola Literária Realista, na qual encontramos parte da obra de Eça de Queirós, apregoava que o escritor deveria ser objetivo e neutro ao denunciar a hipocrisia da sociedade de sua época. Em O primo Basílio, no entanto, essa apregoada neutralidade é muitas vezes deixada de lado. Uma das formas de subjetividade surge no texto pela presença do discurso indireto livre. Veja a seguinte passagem: “Pelas três horas da tarde, Juliana entrou na cozinha e atirou-se para uma cadeira, derreada. Não se tinha nas pernas de debilidade! Desde as duas horas que andava a arrumar a sala! Estava um chiqueiro. O peralta na véspera até deixara cinza de tabaco por cima das mesas! A negra é que as pagava. E que calor! Era de derreter! Uf!”
No sétimo capítulo do volume 1 desta coleção, explicamos que o discurso indireto livre “é a forma de apresentar as falas e pensamentos das personagens mescladas à voz do narrador, de forma que não fica claro o que pertence a um ou ao outro”. Muitas vezes, porque a voz do narrador e da personagem, que se fundem no texto, são discordantes, realça-se a impressão de conflito e ironia dentro do texto.
40. Identifique o exemplo de discurso indireto livre que aparece no trecho. A seguir, explique qual o efeito de sentido que o discurso indireto livre produz no trecho.
Realmente a vida de Juliana não era fácil.
“Nunca se acostumara a servir. Desde rapariga a sua ambição fora ter um negociozito, uma tabacaria, uma loja de capelista ou de quinquilharias, dispor, governar, ser patroa; mas, apesar de economias mesquinhas e de cálculos sôfregos, o mais que conseguira juntar foram sete moedas ao fim de anos; tinha então adoecido; com horror do hospital fora tratar-se para a casa de uma parenta; e o dinheiro, ai! derretera-se! No dia em que se trocou a última libra, chorou horas com a cabeça debaixo da roupa.”
41. Juliana deseja mudar a sociedade em que vive para uma outra melhor ou deseja mudar sua situação para viver melhor na sociedade? Justifique.
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“As antipatias que a cercavam faziam-na assanhada, como um círculo de espingardas enraivece um lobo. Fez-se má; beliscava crianças até lhes enodoar a pele; e se lhe ralhavam, a sua cólera rompia em rajadas. Começou a ser despedida. Num só ano esteve em três casas. Saía com escândalo, aos gritos, atirando as portas, deixando as amas todas pálidas, todas nervosas... A inculcadeira, a sua velha amiga, a tia Vitória, disse-lhe: – Tu acabas por não ter onde te arrumar, e falta-te o bocado do pão! O pão! Aquela palavra que é o terror, o sonho, a dificuldade do pobre assustou-a. Era fina, e dominou-se. Começou a fazer-se “uma pobre mulher”, com afetações de zelo, um ar de sofrer tudo, os olhos no chão. Mas roía-se por dentro; veio-lhe a inquietação nervosa dos músculos da face, o tique de franzir o nariz; a pele esverdeou-se-lhe de bílis. A necessidade de se constranger trouxe-lhe o hábito de odiar: odiou sobretudo as patroas, com um ódio irracional e pueril. Tivera-as ricas, com palacetes, e pobre, mulheres de empregados, velhas e raparigas, coléricas e pacientes; – odiava-as a todas, sem diferença. É patroa e basta! Pelas mais simples palavras, pelo ato mais trivial! Se as via sentadas: – Anda, refestela-te, que a moura trabalha! Se as via sair: – Vai-te, a negra cá fica no buraco! Cada riso delas era uma ofensa à sua tristeza doentia; cada vestido novo uma afronta a seu velho vestido de merino tingido. Detestava-as na alegria dos filhos e nas prosperidades da casa. Rogava-lhes pragas. Se os amos tinham um dia de contrariedade, ou via as caras tristes, cantarolava todo o dia em voz de falsete a Carta Adorada! Com que gosto trazia a conta retardada dum credor impaciente, quando pressentia embaraços na casa! “Este papel! – gritava com voz estridente – diz que não se vai embora sem uma resposta!” Todos os lutos a deleitavam, – e sob o xale preto, que lhe tinham comprado, tinha palpitações de regozijo. Tinha visto morrer criancinhas, e nem a aflição das mães a comovera; encolhia de ombros: “Vai dali, vai fazer outro. Cabras!” (...) E muito curiosa: era fácil encontrá-la, de repente, cosida por detrás de uma porta com a vassoura a prumo, o olhar aguçado. Qualquer carta que vinha era revirada, cheirada... Remexia sutilmente em todas as gavetas abertas, vasculhava em todos os papéis atirados. Tinha um modo de andar ligeiro e surpreendedor. Examinava as visitas. Andava à busca dum segredo, de um bom segredo! Se lhe caía um nas mãos!” (Op. cit.)
José Maria EÇA DE QUEIRÓS (1845-1900) – Nasceu numa pequena cidade da região norte de Portugal: Póvoa do Varzim. Formado em Direito e cônsul de Portugal, Eça de Queirós é considerado, junto com Luís de Camões e Fernando Pessoa, um dos principais nomes da literatura portuguesa. Dono de um estilo irônico e expressivo, com uma linguagem que incorporava o falar corrente da Lisboa de seu tempo, Eça de Queirós foi um dos principais autores lidos em sua época, tanto em Portugal quanto no Brasil.
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A seguir temos uma detalhada descrição psicossocial de Juliana. Leia-a com atenção e compare-a às hipóteses que anotou sobre Juliana logo no início do capítulo. Encontre as semelhanças e diferenças entre as suas respostas e o texto de Eça de Queirós.
42. Complete o quadro a seguir, com passagens dos textos estudados, estabelecendo relações entre a personagem Juliana, de O primo Basílio e o rap “Poesia de concreto”. Para isso recorra aos diversos trechos aqui transcritos ou a um exemplar do livro. Juliana em O primo Basílio
Desejo de valores burgueses
“Desde rapariga sua ambição fora ter um negociozito (...), dispor, governar, ser patroa.”
Importância do salário para a felicidade
“O pão! Aquela palavra que é o terror, o sonho, a dificuldade do pobre assustou-a.”
Rap ‘’Poesia de concreto”
Consciência da perda das esperanças
“acha melhor sobreviver só mantendo distância / de cada sonho que crescia na infância.”
Importância de representar, de vestir uma máscara para conseguir sobreviver.
“Entre as paredes de concreto da cidade, se esconde o mundo / de quem faz qualquer negócio só pra não ser taxado de vagabundo.”
Profunda mudança de personalidade devido ao meio em que vive
“A necessidade de se constranger trouxe-lhe o hábito de odiar.”
Visão maniqueísta de mundo: a sociedade é dividida em explorados e exploradores. Todos os explorados são bons, todos os exploradores são maus.
Como vimos, O primo Basílio afirma que Juliana “andava à busca dum segredo, de um bom segredo! Se lhe caía um nas mãos!”. Finalmente esse esperado segredo cai-lhe nas mãos. A vida de Juliana parece que vai levar uma reviravolta de 180o. Todo o seu ódio às patroas poderá ser posto em prática. Os seus planos saem-lhe tão bem que Jorge, o marido de Luísa, a certa altura se pergunta irritado: “Quem é aqui a empregada e quem é aqui a senhora?”
Quem está por detrás dessa revolução na vida de Juliana? O primo Basílio. Boa leitura! A miséria do mundo
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Atividade 43. Ao final da leitura de O primo Basílio, você poderá escrever uma resenha crítica sobre a obra. Para isso, preste atenção aos seguintes passos:
b) Após ter a sua opinião formada, procure a base na obra de Eça de Queirós que defende o seu ponto de vista. É importante lembrar novamente que não deve apenas ficar numa opinião do tipo “gostei” ou “não gostei”; vá além, verificando, a partir das informações do capítulo, de que forma o romance de Eça de Queirós é construído no que diz respeito ao enredo, às personagens, ao tempo, ao espaço. Consulte o volume 1 desta coleção para informações adicionais sobre os gêneros narrativos. Verifique como os elementos que compõem o romance são usados para defender o ponto de vista político existente na obra literária. c) Finalmente, consulte outras fontes de referência, na biblioteca de sua escola e na Internet, que comprovem o seu ponto de vista ou, até mesmo, discordem dele. Não tenha receio de usar frases do tipo “concordo com (Fulano) quando assegura que” ou “de forma diferente pensa (Fulano) quando afirma que”. O importante é que não se limite a recortar e colar informações de outros como se fossem suas. Afinal, plágio é crime! d) Acrescente a bibliografia das fontes consultadas para a elaboração de sua resenha crítica.
HISTÓRIA CRÍTICA DA ARTE E DA LITERATURA: realismo — naturalismo — parte II O realismo-naturalismo: características fundamentais A seguir, leremos o capítulo 3 de uma das principais obras do Naturalismo brasileiro: O cortiço de Aluísio Azevedo. Durante a leitura, procure encontrar as características fundamentais da visão de mundo do homem esclarecido do século XIX. O cortiço se passa na área suburbana do Rio de Janeiro do século XIX. João Romão, um comerciante português, compra um pequeno estabelecimento comercial e une-se a uma negra escrava fugida, Bertoleza, proprietária de uma pequena quitanda. Para agradá-la, falsifica uma carta de alforria que asseguraria a liberdade que Bertoleza tanto deseja. O pequeno estabelecimento, entre a esperteza de João Romão e o trabalho de Bertoleza, cresce. Aos poucos o português começa a construir e alugar pequenas casas, surge então um grande cortiço: a “Estalagem São Romão”.
Capítulo III “Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada, sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia. A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostrava uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas. 208
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a) Leia a obra e forme a sua opinião pessoal sobre a leitura e sobre o seu valor literário. Leve em consideração as informações sobre o gênero literário “romance” que estudamos neste capítulo, bem como sobre a natureza política da obra.
Entretanto, das portas sur giam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saíram mulheres que vinham dependurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejandose à luz nova do dia. Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o pelo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças e as saias; as crianças não se davam o trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas. O rumor crescia, condensando-se: o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulhavam os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra.” AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Ática, 1995.
ALUÍSIO Tancredo Belo Gonçalves AZEVEDO (1857-1913) – Nasceu em São Luís (MA) e faleceu em Buenos Aires, na Argentina. Introdutor do Naturalismo no Brasil, Aluísio Azevedo, inspirado por Zola (1840-1902) e Eça de Queirós (1845-1900), escreveu romances para o cenário brasileiro nos quais expôs os preconceitos e hábitos de conjuntos humanos da nossa sociedade.
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44. Discuta, em classe, a sua compreensão do texto. Os realistas e naturalistas fogem às exibições subjetivas que caracterizaram os românticos. O ideal realista-naturalista está na neutralidade, jamais confundindo sua visão particular com o mundo da personagem.
46. Usando de sua experiência, acredita que a proposta realista-naturalista da neutralidade seja possível? Por quê?
Procurando a neutralidade diante daquilo que está narrando, nota-se ser mais produtivo escrever as narrativas em terceira pessoa, como em O cortiço. 47. Por que a narrativa em terceira pessoa favorece a objetividade?
A tipificação social surgiu a partir do desejo de objetividade. As personagens são vistas não como personalidades únicas, portadoras de uma realidade subjetiva, mas como tipos, exemplos de um grupo a que pertencem. Suas ações, falas e conflitos são as representações particularizadas, não da individualidade, mas do grupo.
“O autor, em sua obra, deve ser como um Deus no universo: onipresente e invisível.” (Gustave Flaubert).
48. Aluísio Azevedo utilizou-se da tipificação social na construção de O cortiço? Explique.
A ideia dominante, como vimos, é que o escritor deve reproduzir fielmente a realidade. A procura da verossimilhança (semelhança com aquilo que considera a verdade) leva o escritor a renunciar a tudo que pareça improvável ou artificial. Para fazer o leitor acreditar na veracidade do texto, muitas vezes, recorre a uma descrição detalhada e, às vezes, até de aspectos grosseiros da realidade. 210
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45. Identifique e explique essa característica no trecho que acabamos de ler.
DAUMIER, Honoré (18081879). Vagão de terceira classe. (1863-65). Nova Iorque: Metropolitan Museum of Art.
49. Explique de que forma Aluísio Azevedo segue o princípio da verossimilhança em O cortiço.
Procurando trazer a realidade para os seus leitores, o escritor realista aprimora a observação como procedimento de composição literária: a entrevista, a pesquisa, a experiência são mais valorizadas que a criatividade e a imaginação. Ainda assim, esses elementos, embora sejam considerados em segundo plano, naturalmente são indispensáveis para o aproveitamento dos dados recolhidos da realidade.
COURBET, Gustave. Les casseurs de pierre. (1851). Dresde: Gemälde Galerie.
Sobre esse quadro, que foi destruído durante a Segunda Guerra Mundial, afirmou Courbet: Não inventei nada. Todos os dias, ao fazer minhas caminhadas, via as pessoas miseráveis desse quadro.
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50. Hyppolite Tayne, muito lido na época, afirmava: “Três fontes diversas contribuem para produzir o estado moral elementar do homem: a raça, o meio e o momento”. Levando em conta essa afirmação de Tayne, o que se pode esperar do “estado moral elementar” das personagens descritas por Aluísio Azevedo? Explique.
51. A teoria evolucionista aproximava homens e animais de uma forma que até então não havia sido pensada. Como essa aproximação entre homens e animais se evidencia na descrição de O cortiço.
Memórias póstumas de Brás Cubas O maior nome do Realismo em língua portuguesa é o do brasileiro Machado de Assis. Em seguida, vamos ler o primeiro capítulo de uma de suas mais importantes obras, o romance Memórias póstumas de Brás Cubas.
Capítulo I — Óbito do autor “Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo: a diferença radical entre este livro e o Pentateuco. Dito isto, expirei às 2 horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns 64 anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de 300 contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia – peneirava – uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu à beira de minha cova: ‘Vós que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado. 212
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Hyppolite Tayne.
COURBET, Gustave. Enterro em Ornans. Paris: Musee d’Orsay.
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha irmã Sabina, casada com Cotrim, a filha – um lírio do vale – e... Tenham paciência! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática... Um solteirão que expira aos 64 anos não parece que reúna em si todos os elementos de uma tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era apresentá-lo. De pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extinção.
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E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o voo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos – a imaginação dessa senhora também voou sobre os destroços pressentes até às ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranquilamente, metodicamente, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma.
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‘Morto! morto!’, dizia consigo.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.” ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Abril Cultural, 1971.
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Machado de Assis, ainda que apresentasse diversas características realistas, fogia dos rótulos dos modelos europeus. 52. Discuta, em classe, a sua compreensão do texto. 53. Que diferenças você encontra entre as características do projeto Realista-Naturalista estudadas até agora e o capítulo 1 de Memórias póstumas de Brás Cubas?
Uma característica marcante na obra de Machado de Assis e presente em certas correntes realistas é a análise psicológica. A análise psicológica é o estudo das características, motivações e tendências da vida psíquica. Como um grande analista de almas, o narrador não diz tudo a respeito da personagem, de forma que ela se revela sempre como um abismo inexplorado que, repentinamente, mas de forma coerente, surge aos olhos do leitor com alguma faceta nova. 54. É visível a análise psicológica no texto lido de Machado? Explique.
“Tenho alguma culpa se desejo isso, se quero a glória, se quero que todos os homens me conheçam, que me estimem, se vivo apenas para isto? Sim, apenas para isso! (...) A morte, os ferimentos, a perda da família, nada me assusta. Por mais caros que me sejam meu pai, minha irmã, minha mulher e todos a quem mais estimo, e por mais terrível e antinatural que isso possa parecer, daria tudo isso por um momento de glória, de triunfo, pela estima dos homens que não conheço, que não conhecerei nunca – pensou André, ouvindo vozes no pátio.” TOLSTOI, Leon. Guerra e Paz.
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JOAQUIM MARIA MACHADO DE ASSIS (1839-1908) – A complexidade da obra de Machado se reflete na caracterização psicológica de suas personagens e no retrato criado para a sociedade da época. A expressão das sutilezas humanas é a chave da originalidade do trabalho. Constantemente, o leitor é chamado a participar da história. Dessa forma, a obra volta-se para si mesma, na tentativa de se examinar. Sua obra pode ser dividida em duas fases: a primeira apresenta características do Romantismo sob a influência de José de Alencar. Na segunda fase, demonstra a independência do autor brasileiro, inaugurando, em 1881, o Realismo no Brasil com a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas. A narrativa machadiana dessa segunda fase é repleta de ironia e ceticismo, revelando as hipocrisias mais íntimas dos seres humanos, os quais não são nem bons, nem maus, são humanos, portando máscaras com as quais muitas vezes se confundem e se identificam.
A linguagem, para o realista, é produto do trabalho e do pensamento. Adequar pensamento, assunto e linguagem é o grande desafio do Realismo-Naturalismo e aparece presente também em Machado de Assis. 55. De que forma o texto lido revela a preocupação machadiana com a linguagem?
56. Em sua opinião, o que significa não ser “um autor defunto, mas um defunto autor”?
57. Uma das características da obra machadiana é que o leitor é constantemente convocado no curso da narrativa. Transcreva uma passagem do texto lido que comprove isso. Explique a relação com o restante do texto.
58. É fácil encontrar em livros de literatura, informações que completem o quadro sobre as duas fases da obra machadiana. MACHADO DE ASSIS Fase romântica Romances publicados:
Fase realista Romances publicados: Memórias póstumas de Brás Cubas (1881)
Neste período, escreve também grande parte de sua obra teatral.
Contos:
Poesia:
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O primo Basílio foi um dos maiores sucessos de público de Eça de Queirós. Como vimos, Machado de Assis não morreu de amores pela obra. Em um texto publicado em duas partes n’O Cruzeiro, em abril de 1878 e assinado por um certo “Eleazar”, Machado teceu fortes críticas ao realismo de Eça. O pseudônimo bíblico é sugestivo, pois Eleazar foi o mártir judeu que preferiu a morte à ingestão de alimentos impuros. Machado, no entanto, ainda era apenas o autor de alguns bons contos e de um romance romântico intitulado Iaiá Garcia. Machado atribuiu o grande sucesso do livro a dois fatores. Por um lado, afirmou que era uma questão de moda: O primo Basílio adaptava, para o português, as fórmulas realistas de Zola (ou do Naturalismo), que faziam sucesso na França. Por outro lado, aproveitava-se do gosto da época, cada vez mais baixo e que seria atendido pela literatura grosseira do Naturalismo. Machado incomodava-se também com a falta de motivação psicológica para o adultério de Luísa. Sem encontrar motivos para o adultério, pareceu-lhe que o adultério apareceu no romance apenas pela carga erótica. 59. Você, que conheceu o texto de Eça de Queirós, concorda com as observações de Machado? Por quê?
O Ateneu de Raul Pompeia Raul D’Ávila Pompeia (1863-1895) ingressou, aos 10 anos como interno do Colégio Abílio, dirigido pelo Barão de Macaúbas, Abílio César Borges. Esse estabelecimento de ensino, famoso na época, bem como seu diretor, serviram de inspiração ao escritor que os retratou em O Ateneu. A linguagem de Raul Pompeia em O Ateneu (1888), sua principal obra, é trabalhada de maneira intensa pelo autor. Com grande força plástica e sonora, passa longe da noção realista de simplicidade e despojamento, encontrando a sua expressividade em comparações, metáforas e na sofisticação vocabular. O tom requintado, por vezes artificial, afastado do tom coloquial que predomina no romance a partir da revolução modernista, pode representar certa dificuldade para os alunos se divertirem e emocionarem com a leitura d´O Ateneu. Um bom dicionário e um pouco de esforço de concentração resolvem o problema e permitem que qualquer um tenha acesso a essa obra-prima da literatura brasileira do século XIX.
Raul Pompeia.
A obra não permite classificações a partir dos moldes europeus. A corrupção moral e os princípios científicos realista-naturalistas estão ali. No entanto, domina o subjetivismo e uma linguagem, como vimos, intensamente impressionista.
“Raul Pompeia partilhava com Machado o dom do memorialista e a finura da observação moral, mas no uso desses dotes deixava atuar uma tal carga de passionalidade que o estilo de seu único romance realizado, O Ateneu, mal se pode definir em sentido estrito, realista; e se já houve quem o dissesse impressionista, afetado pela plasticidade nervosa de alguns retratos e ambientações, por outras razões se poderiam nele ver traços expressionistas, como o gosto do mórbido e do grotesco com que deforma sem piedade o mundo do adolescente.” BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1972.
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Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
Machado de Assis e Eça de Queirós
O Realismo em Portugal O que ficou conhecido como Geração Literária Portuguesa de 70 criaria uma nova estética dentro da era romântico-realista. Sua ideologia seria limitada, principalmente, pelos problemas e obsessões nacionais, a partir do mesmo ideário estrangeiro que também chegava ao Brasil. O resultado foi uma verdadeira revolução cultural que repensou e questionou toda a cultura portuguesa desde as origens, fixandose no ponto alto das descobertas. Portugal sentia necessidade de uma Universidade de Coimbra profunda transformação na ideologia política e estrutural da sociedade, que culminaria com a Revolução Republicana de 1910. Um dos nomes importantes nessa mudança foi o de Antero de Quental (1842-1891). Em 1864, publicou Odes modernas, obra que, junto com Visão dos tempos e tempestades sonoras de Teófilo Braga, foi responsável por provocar a chamada Questão Coimbrã. O escritor Feliciano de Castilho escreveu, no posfácio ao Poema da mocidade, de Pinheiro Chagas, uma referência pouco elegante aos jovens escritores estudantes de Coimbra e à “ideia nova” do Realismo. Acusou os novos escritores de exibicionismo, obscurantismo e falta de bom senso e bom gosto”. Antero, que fora aluno de Castilho, sentiu-se muito ofendido. Publicou o opúsculo Bom senso e bom gosto” e divulgou-o o máximo que pôde. A polêmica aumentou de escalada e envolveu outras figuras culturais da época, marcando o grande movimento de regeneração da cultura e da literatura portuguesas. A questão Coimbrã, embora não tenha estabelecido o Realismo em Portugal, criou as condições para sua instauração, pois acentuou o papel que cabe à literatura como fenômeno de intervenção crítica na vida social. O Realismo português, no entanto, somente iria firmar-se com as Conferências democráticas do cassino lisbonense, promovidas pelos mesmos escritores da geração de 70. As Conferências do cassino (1871) visavam ligar Portugal com o movimento moderno. Nessas conferências, Eça de Queirós proferiu a palestra O Realismo como nova expressão de arte. Nela defendeu a necessidade de a arte retratar e revolucionar a sociedade burguesa. A poesia de Antero de Quental pode ser dividida em três partes: a primeira, de influência romântica; a segunda, uma poesia revolucionária em que defende os valores socialistas; finalmente, uma fase pessimista, com questionamentos religiosos e metafísicos.
Exemplifica bem a segunda fase do escritor, o poema a seguir.
Antero de Quental
Hino à Razão “Razão, irmã do Amor e da Justiça, Mais uma vez escuta a minha prece. É a voz dum coração que te apetece, Duma alma livre, só a ti submissa. Por ti é que a poeira movediça A miséria do mundo
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O Realismo no Brasil: aspectos históricos O fim da Guerra do Paraguai (1865-1870) representou também o fim da legitimidade da monarquia brasileira diante de boa parte da população, principalmente as elites. Nem a vitória militar revigorou o regime. Os oficiais do Exército, apesar da vitória, começaram a ser atraídos por ideias positivistas e republicanas. Na sociedade civil, particularmente nas cidades, desenvolveu-se um forte sentimento oposicionista. No Nordeste, arruinado economicamente, e, em especial no Recife, surgiu uma geração contestadora nos anos de 1870, que incluía nomes como Sílvio Romero e Tobias Barreto. As novas visões ideológicas europeias eram estudadas, e o Romantismo foi acusado de “lirismo retumbante e indianismo decrépito”. Castro Alves morreu em 1871 e José de Alencar, em 1877. Tais mortes representaram o fim do Romantismo no Brasil, ainda que os dois escritores já desenvolvessem, no fim de suas vidas, uma expressão literária mais realista. O Romantismo e o II Império, que tinham estado tão próximos, estavam ambos à espera do fim. Em São Paulo, surgia uma nova elite cafeicultora que se distinguia dos velhos barões do café, do Vale do Paraíba, por seu ideário modernizador: preferem imigrantes a escravos Imigrantes europeus no Brasil do século XIX e já não eram tão hostis à nascente atividade industrial. Chegariam imigrantes europeus tanto para o trabalho assalariado nas fazendas como para a ocupação de pequenas propriedades no sul do país. Muito econômicos e, na maior parte, alfabetizados e com alguma cultura erudita e técnica, muitos deles migrariam para as cidades, constituindo pequenas indústrias semiartesanais. O Romantismo terminou antes do Império. Em 1881, Machado de Assis lançou Memórias póstumas de Brás Cubas e, no mesmo ano, Aluísio Azevedo publicou O mulato, inaugurando, respectivamente, o Realismo e o Naturalismo entre nós. O único campo em que a influência romântica iria perdurar no Brasil seria na música. No entanto, como vimos tanto neste capítulo como na unidade 1 deste livro, o realismo machadiano tem pouco a ver com os princípios europeus do movimento, podendo ser considerado um realismo à parte. Também O mulato apresenta um estilo mesclado, com insistentes desvios românticos. Apesar disso, as duas narrativas representam o avanço do novo e inauguram um período de excepcional brilho em nossa literatura, particularmente na produção de romances. A poesia realista no Brasil não se fez sentir, foi ofuscada por um outro movimento europeu do qual falaremos no próximo volume. 218
Capítulo 4
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De astros e sóis e mundos permanece; E é por ti que a virtude prevalece, E a flor do heroísmo medra e viça. Por ti, na arena trágica, as nações Buscam a liberdade, entre os clarões; E os que olham o futuro e cismam, mudos. Por ti, podem sofrer e não se abatem, Mãe de filhos robustos, que combatem Tendo o teu nome escrito em seus escudos!”
Agora é a sua vez 60. Você sabe o que perguntar à Literatura? Os estudos literários exigem não apenas respostas, mas perguntas. Que perguntas você faria ao poema Hino à razão, de Antero de Quental? Por quê? 61. Que respostas você encontra para as perguntas que formulou? 1. Durante seus estudos de Língua Portuguesa, temos deparado com diversos quadros esquemáticos comparativos. Consulte-os para elaborar um quadro-resumo comparativo entre o Realismo-Naturalismo brasileiro e o português. Seja o mais completo que conseguir, mas pense também em aspectos criativos que contribuam para compreender melhor a profundidade do movimento.
PAUSA PARA REFLEXÃO No caderno, responda às questões a seguir. 1. Que conteúdos deste capítulo conseguiria explicar sem consultar o livro? 2. Consultando o livro, identifique os conteúdos que, na sua opinião, não foram bem compreendidos e merecem novas explicações ou atividades de reforço. 3. Que atividade(s) considerou mais importante(s) para o seu aprendizado? Por quê? 4. Em que aspectos você poderá melhorar sua participação nas próximas aulas?
A miséria do mundo
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Mas se todos fazem. (Francisco Alvim)
O MUNDO DEMOCRÁTICO — É UMA ILUSÃO? Muitos escritores tomaram o discurso político como eixo orientador de seus textos. Além de Eça de Queirós, um outro grande nome da literatura portuguesa também escreveu um de seus mais importantes romances a partir do discurso político. A leitura da entrevista a seguir poderá dar-lhe uma noção das ideias polêmicas do autor José Saramago. Durante a leitura, procure encontrar a resposta para as seguintes questões: O escritor preocupa-se com quais relações entre o poder econômico e o democrático? Como essas relações ameaçam a democracia?
José Saramago
Saramago questiona a ilusão do mundo democrático “Em entrevista exclusiva, o escritor português José Saramago questiona a democracia fundada só nas eleições, e afirma que ‘os governos que elegemos, no fundo, são correias de transmissão das decisões e das necessidades do poder econômico.”
Paris – O escritor português José Saramago deve desembarcar no Brasil apenas em novembro para o lançamento de seu último livro, Ensaio sobre a lucidez (Companhia da Letras, 2004). A obra, que gera 220
Capítulo 5
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A LINGUAGEM PRODUZINDO A ILUSÃO DO PODER
polêmica na Europa, traz a história de um país imaginário onde os votos das últimas eleições não se dividiram entre partidos da direita e da esquerda, como de costume. Naquela ocasião, para espanto de todos, venceu o voto em branco. O questionamento de Saramago sobre o processo democrático evolui para a análise das reações do governo, da polícia e da mídia depois do pleito. Após um suspiro autoritário, fica mais clara a alegoria que o autor apresenta sobre a fragilidade dos rituais democráticos, do sistema político e de suas instituições. ‘Ainda estou sofrendo as consequências deste Ensaio sobre a lucidez’, brincou Saramago, em entrevista concedida na capital francesa. ‘Em Portugal foi um escândalo. Nas duas semanas seguintes à publicação, saíram mais de 40 artigos, publicados pelos conservadores de direita, atacando o livro, sem mesmo o ter lido. Atacavam o autor dizendo que eu queria destruir a democracia. Um articulista disse que não era de se surpreender, pois eu era stalinista’, afirmou o português, rindo. ‘Na verdade, todos entraram em pânico’.” Erika Campelo, especial para a agência Carta Maior, 23-8-2004.
1. No parágrafo a seguir, substitua os elementos em negrito por termos sinônimos, sem alterar o sentido básico do que está escrito.
Segundo comentário divulgado pelos editores da Companhia das Letras, o que Saramago propõe não é a substituição da democracia por um sistema alternativo, mas o seu permanente questionamento. É através da ficção que Saramago “entrevê uma saída para esse impasse – pois é a potência simbólica da literatura que se revela capaz de vencer a mediocridade, a ignorância e o medo”. A seguir, os principais trechos da entrevista:
“Pergunta – Qual é sua crítica quanto à democracia atual?” 2. No primeiro parágrafo da resposta de José Saramago, omitimos alguns termos responsáveis pela conexão do pensamento do escritor. Eles aparecem entre parênteses logo a seguir. Empregue-os nos lugares apropriados. Lembre-se de que a precisão no uso dos conectivos é muito importante para que consigamos transmitir adequadamente as nossas ideias.
José Saramago – Problemas a globalização e a guerra têm de ser vistos, do meu ponto de vista, a partir de uma questão política fundamental, que é a democracia. no fundo o que se passa é que todos estamos de acordo vivemos em um sistema democrático, somos cidadãos, somos eleitores, há eleições, votamos, forma-se um parlamento, e a partir desse parlamento, forma-se uma maioria parlamentar. Temos os juízes, tribunais, temos todo o esquema montado. Este esquema é formal. até que ponto se permite que esse sistema seja substancial? Vivemos dentro de uma bolha, que eu chamo de bolha democrática, tudo funciona perfeitamente. (portanto, mas, como, porque, onde, que)
“Estamos aqui hoje em Paris, mas podíamos estar em Lisboa, ou São Paulo, ou Rio, e sabemos que a sociedade funciona de uma certa maneira. O que é o funcionamento das instituições democráticas, isso chega até onde? Chega até a capacidade do cidadão de eleger um governo. Se não está satisfeito com este governo, nas eleições seguintes pode tirar este governo e pôr outro, que isso traz mudanças, sim. Mas mudar de governo não significa mudar o poder, e este é o drama da democracia. Para dar um exemplo muito simples, nós sabemos que vivemos hoje voltados para o mercado de trabalho. Mas vivemos hoje em uma situação de emprego precário, miticamente designada de mobilidade social.” A linguagem produzindo a ilusão do poder
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“Minha pergunta é esta: dá para acreditar, para usar uma expressão brasileira, que algum governo no mundo se sentou para deliberar, e algum ministro teve a ideia de acabar com a ideia do pleno emprego, e passar para o emprego precário? É completamente impossível. Eu não acredito que nenhum governo tomou esta decisão. No entanto, o emprego precário existe no mundo inteiro, ninguém tem segurança no emprego, pode acontecer que hoje uma pessoa tenha o seu, e amanhã já não o tenha. Esta é hoje a realidade do mercado de trabalho. Portanto, de onde veio esta necessidade de transformar a ideia do pleno emprego naquilo que é hoje o emprego precário?” 3. Neste parágrafo, omitimos alguns termos responsáveis pela adequada coesão do texto de Saramago. Tais termos aparecem entre parênteses logo a seguir. Identifique os seus lugares apropriados. Retire do texto, também, os termos que se tornam excessivos com a inclusão dos novos.
Evidentemente, veio de cima, quero dizer, veio do poder econômico, a quem não convém existir segurança no trabalho, a quem não convém continuar com suas fábricas instaladas em países com exigências quanto ao horário de trabalho e a salários altos. Vão colocar fábricas do poder econômico nas Filipinas ou na Indonésia, onde as exigências da segurança do trabalho não existem, onde não há sindicatos, e as pessoas trabalham 10 ou 12 horas por dia. Portanto, se é assim, chegamos a uma situação preocupante. Os governos que elegemos, no fundo, são correias de transmissão das decisões e das necessidades do poder econômico, e os governos não só funcionam como correias de transmissão, mas também como os agentes que preparam as leis, como leis que levam ao emprego precário.
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Capítulo 5
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Estamos aqui hoje em Paris, mas podíamos estar em Lisboa, São Paulo, ou Rio.
“O drama está aí. O poder econômico sempre existiu, o poder político sempre esteve ligado a ele, sempre existiu um concubinato entre esses dois poderes. Mas os cidadãos estão aqui embaixo. E como eles poderiam expressar suas angústias, dúvidas e necessidades junto a este poder econômico? Em princípio, seria através do mesmo governo que serve de correia de transmissão. Mas não podemos ter qualquer esperança de que esses governos digam ao poder econômico, representado hoje pelo FMI, que as condições que vocês nos impõem são terríveis. Há um problema que, na minha opinião, é fundamental da democracia: ou ela transcende o poder da tal bolha que falei, tendo uma ação fora dela, ou vamos continuar a viver na ilusão do mundo democrático. Nós vivemos numa plutocracia, um governo dos ricos, e são eles que governam. Aristóteles dizia que em um governo democrático, os pobres deveriam ser maioria, porque são em maior quantidade que os ricos. Dizia ele, inocentemente, que era só uma questão de respeitar a proporção. Mas isso já aconteceu alguma vez? Claro que não. Se criarmos um partido pobre, ele não duraria muito tempo, porque um partido pobre não tem muita coisa para prometer. Pergunta – A solução pode vir dos movimentos sociais?”
4. Nesta resposta de José Saramago, omitimos as aparições do termo “que”, o qual deve aparecer cinco vezes. Restitua-o ao texto nos lugares apropriados.
José Saramago – Não, os movimentos sociais não avançam todos na mesma direção, ao mesmo tempo, para reinvidicar a mesma coisa. Sabemos não é assim. Mas temos levar em conta o poder econômico está organizado. Os movimento sociais não aparecem juntos. Claro propõem alternativas, isto é o mais fácil, mas enquanto elas não forem colocadas à prova, não sabemos o elas valem. 5. Discuta em classe a sua compreensão do texto. 6. Qual a tese defendida por José Saramago na entrevista?
7. Seguindo o raciocínio apresentado na entrevista de José Saramago, complete as sequências a seguir. Além da entrevista, considere também o elemento de transição presente. É importante relembrar que o conectivo, mesmo quando inicia uma frase, está reunindo dois pensamentos, relacionando-os entre si. a) Todos desejamos viver em um regime democrático. No entanto,
b) A proposta de José Saramago não é apregoar um regime totalitário. Ao contrário de
c) Os cidadãos são afetados pelas decisões governamentais. Contudo
d) O entrevistado afirma que vivemos numa plutocracia. Com efeito,
e) Abordar assuntos polêmicos não é uma tarefa fácil. Às vezes,
A linguagem produzindo a ilusão do poder
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AS PALAVRAS DE SEVERINO “O meu nome é Severino, não tenho outro de pia.” Poucos escritores influenciaram tanto a literatura brasileira no século XX como o pernambucano João Cabral de Melo Neto. Nasceu em Recife, em 1920, passando a sua infância nos engenhos de açúcar de sua família. Desde cedo mostrou interesse pela arte literária. Em 1945 foi aprovado em concurso para a carreira diplomática. Viajou, então, por diversas cidades do mundo, trabalhando no Consulado do Brasil. Mas, por que nos interessa, neste momento, falar de João Cabral? Pelo seu olhar sobre a realidade política brasileira que nos faz pensar na natureza social dos homens no mundo todo. Sua obra mais conhecida é Morte e vida severina, cujos versos iniciais você pôde ler no início deste tópico. A narrativa em versos retrata a fuga de Severino, retirante nordestino, igual a tantos que fogem da morte certa na miséria do lugar onde vivem. Severino foge para Recife, percorrendo o leito seco do rio Capibaribe. No caminho, procura pela vida, mas apenas encontra a morte de outros severinos, como ele.
Recife por volta de 1930
Logo quando sai de sua terra, encontra com dois homens, carregando um defunto numa rede. A conversa entre eles revela-nos muito sobre a natureza humana. Acompanhe: 224
Capítulo 5
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
8. Baseado nas ideias presentes na entrevista de José Saramago, utilize-se de um conectivo de consequência e escreva uma frase em que fique claro o problema vivido pela democracia moderna.
Devemos sempre escrever frases com sentido completo, ajustando devidamente os segmentos que a compõem. Como já examinamos no volume 1 desta coleção, são os conectivos que permitem o fluir de nosso pensamento no texto.
“– E foi morrida essa morte, irmão das almas, essa foi morte morrida ou foi morte matada? – Até que não foi morte morrida, irmão das almas, esta foi morte matada, numa emboscada. – E o que guardava a emboscada, irmãos das almas, e com que foi que o mataram, com faca ou bala? – Este foi morto de bala, irmão das almas, mais garantido é de bala, mais longe vara. – E quem foi que o emboscou, irmão das almas, quem contra ele soltou essa ave-bala? (...) – Mas então por que o mataram, irmão das almas, mas então por que o mataram com espingarda? – Queria mais espalhar-se, irmão das almas, queria voar mais livre essa ave-bala.” MELO NETO, João Cabral de. “Morte e vida severina”. In: Morte e vida severina e outros poemas para vozes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
JOÃO CABRAL DE MELO NETO (1920-1999) – Foi embaixador e diplomata em países como Espanha, França, Senegal e Colômbia entre outros. Seu primeiro livro foi Pedra do sono, lançado em 1942. João Cabral de Me
lo Neto
O texto revela, de forma poética, a ganância humana e o abuso do poder. 9. O poema se caracteriza pela constante repetição. Exemplifique.
10. No volume 1 desta coleção, consideramos que “podemos repetir uma palavra quando não for possível substituí-la por outra ou para alcançar determinados efeitos expressivos”. Que efeito expressivo é alcançado no poema pelas repetições?
A linguagem produzindo a ilusão do poder
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12. Que diferença faria no poema se o eu-lírico utilizasse apenas o termo “bala”, ao invés de “ave-bala”?
João Cabral de Melo Neto, certa vez, afirmou que a poesia é uma forma de linguagem como qualquer outra e que por meio dela se poderia falar de qualquer coisa, contanto que se preservasse a sua qualidade de linguagem poética. 13. De seu ponto de vista, existe qualidade na linguagem poética usada no trecho que lemos de João Cabral? Explique.
14. Qual o motivo apontado pelo poema para a morte desse Severino?
Uma das principais características da obra de João Cabral de Melo Neto é a crítica da realidade social e histórica que buscou em seus poemas. Esse espírito crítico torna-se particularmente interessante quando o Severino retirante pergunta o que iria ocorrer com os assassinos desse outro Severino morto. Observe a resposta:
“– E agora o que passará, irmão das almas, o que acontecerá contra essa espingarda? – Mais campo tem para soltar, irmão das almas, tem mais onde fazer voar as filhas-bala.”
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Capítulo 5
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11. A construção de uma metáfora aproxima dois signos diferentes, unindo-os por meio de um traço comum. Ao aproximar “ave” de “bala”, o poema permite que pensemos em que traço comum entre esses dois elementos?
15. De que forma podemos coerentemente entender o verso “tem mais onde fazer voar as filhas-bala”?
16. Transcreva uma passagem da entrevista de José Saramago que esteja de acordo com o texto de João Cabral, que acabamos de estudar.
17. Assim, ainda que Morte e vida severina trate de um problema tipicamente brasileiro (a migração nordestina), podemos afirmar que apresenta interesse universal?
A poesia de João Cabral revela uma certeza incomum para muitos: de que o poeta não é fruto de inspiração ou de estados emocionais como o amor ou a dor, mas ser poeta é ser um engenheiro da palavra, alguém disposto a um trabalho árduo e racional sobre a linguagem. 18. Complete o quadro a seguir, que compara os conceitos da arte poética de João Cabral com aqueles que se encontram na escola literária que você fundou, discutindo os conceitos em sala de aula. João Cabral de Melo Neto
Escola literária criada pela classe
O que é a Uma forma de linguagem linguagem poética? como qualquer outra, por meio da qual se pode falar de qualquer coisa, contanto que se preserve a sua qualidade de linguagem poética.
Uma das principais características de sua obra
Criticar a realidade social e histórica.
A linguagem produzindo a ilusão do poder
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João Cabral de Melo Neto
A realidade encontrada por Severino no Recife: favelas nos mangues.
Finalmente Severino chega ao Recife, apenas para ficar sabendo que ali também são grandes a morte e a miséria. Tamanha é a tristeza de Severino que ele resolve se suicidar. O que acontece depois vale a pena ser conhecido, por isso não perca tempo e comece a ler ainda hoje Morte e vida severina. Leia com atenção o texto do cartunista Henfil.
HENFIL. Graúna ataca outra vez. São Paulo: Geração Editorial, 2002.
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Capítulo 5
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
Ser um engenheiro da palavra, disposto a um trabalho árduo e racional sobre a linguagem.
John Erbuer
O que é ser poeta?
Escola literária criada pela classe
Como temos estudado até aqui, as palavras constroem os seus significados dentro do texto. Assim, se recorrermos ao dicionário, encontramos as seguintes definições para a palavra “corrupto”: “corrupto. [do lat. corruptu.] Adj. 1. Que sofreu corrupção: podre, estragado, infectado. 2. Devasso, depravado. 3. corruptível (2): governo corrupto. 4. Errado, viciado (tratando-se de linguagem). [Var.: corrupto; sin. ger.: corrompido.]” Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa.
19. No entanto, de acordo com o texto, qual a diferença entre “ladrão” e “corrupto”?
O PODER, A LINGUAGEM E A ILUSÃO DA HONESTIDADE Provavelmente, o principal nome do Barroco em língua portuguesa seja o padre Antônio Vieira. Seus sermões são considerados obras-primas da literatura mundial. Vamos ler um trecho do Sermão do Bom Ladrão. Nele, Vieira denuncia os governantes que exploram o povo, procurando apenas o enriquecimento próprio. Para desenvolver esse assunto polêmico, Vieira parte de uma passagem do evangelho, a crucificação de Cristo entre dois ladrões. Ao ler essa interessante passagem, verifique qual o conceito de ladrão defendido por Vieira.
Sermão do Bom Ladrão (Pregado na Igreja da Misericórdia, de Lisboa, ano de 1655).
(...)
A igreja da Misericórdia, de Lisboa foi destruída pelo terremoto de 1755. Em seu lugar, foi edificada uma nova igreja, conhecida hoje como Igreja da Conceição Velha.
A linguagem produzindo a ilusão do poder
uponho, finalmente, que os ladrões de que fala não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza e a vileza de sua fortuna condenou a este gênero de vida, porque a mesma sua miséria ou escusa ou alivia o seu pecado, como diz Salomão: Non grandis est culpa, cum quis furatus fuerit: furtur enim ut esurentem impleat animam. O ladrão que furta para comer não vai nem leva ao Inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são os ladrões de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e do mesmo predicamento distingue muito bem S. Basílio Magno: (...) Não são só ladrões, diz o Santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título, são aqueles a quem os Reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, nem 229
VIEIRA, Antônio. Sermões, tomo I. (Org.). Almir Pécora. São Paulo: Hedra, 2001.
Non grandis est culpa, cum quis furatus fuerit: furtur enim ut esurentem impleat animam – tratase de uma passagem bíblica, encontrada em Provérbios 6: 30: Não é grande culpa, quando alguém furta, se furta para matar a fome. Hodie mecum eris in Paradiso – trata-se de uma passagem bíblica, encontrada em Lucas 23: 43 e traduzida como Hoje estarás comigo no paraíso.
ANTÔNIO VIEIRA (1608-1697) – Nasceu em Lisboa e veio criança para o Brasil. Estudou no Colégio dos jesuítas na Bahia, onde se destacou por sua capacidade de oratória. Depois de ordenado padre, tornou-se conhecido por seus sermões. Grande orador, em seus sermões e cartas destacam-se questões políticas e sociais: a servidão dos índios, a miséria, os judeus convertidos. Voltou para Portugal, onde foi recebido no Paço e na intimidade do rei. Desiludido com a política da Corte, retornou ao Brasil, prosseguindo em sua ação missionária, política, social e moral.
20. Que ladrões preocupam ao orador?
Padre Antônio Vieira
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Capítulo 5
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perigo: os outros, se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e Ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: Lá vão os ladrões grandes enforcar os pequenos. Ditosa Grécia, que tinha tal Pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas. (...) Rei dos reis e Senhor dos senhores, que morrestes entre ladrões para pagar o furto do primeiro ladrão, e o primeiro a quem prometestes o Paraíso foi outro ladrão, para que os ladrões e os reis se salvem, ensinai com vosso exemplo, e inspirai com vossa graça a todos os reis, que, não elegendo, nem dissimulando, nem consentindo, nem aumentando ladrões, de tal maneira impeçam os furtos futuros, e façam restituir os passados, que em lugar de os ladrões os levarem consigo, como levam, ao inferno, levem eles consigo os ladrões ao Paraíso, como vós fizestes hoje: Hodie mecum eris in Paradiso.
21. O Padre Antônio Vieira apoia-se nas opiniões de São Basílio Magno para estabelecer um paralelo entre dois tipos de ladrões. Com base no texto lido, complete o quadro que reconstrói a linha de pensamento paralelística presente no texto.
Ladrões que furtam para comer
se furtam, são enforcados
roubam um homem
Ladrões de maior calibre e de mais alta esfera
“os Reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das Províncias, ou a administração das Cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam povos.”
sem temor, nem perigo
22. Que relações podemos estabelecer entre o texto do Henfil que termina a seção anterior e este discurso do Padre Antônio Vieira?
Os paralelismos são também um importante recurso de coesão textual. Eles permitem introduzir informações novas a partir de uma determinada estrutura sintática que se repete, permitindo que o texto progrida de forma fluente. Observe, com mais atenção, a frase do texto “Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos”: Os outros ladrões
um homem, roubam
estes
cidades e reinos
Vieira, neste caso, coloca lado a lado, ou justapõe, duas orações sem um conectivo, a não ser a vírgula. A estrutura sintática é similar nas duas orações: sujeito + verbo + objeto direto. O termo “roubam” aproxima as frases entre si. O orador recorre à mesma estrutura, acrescentando informações novas ao verbo roubar. A linguagem produzindo a ilusão do poder
231
23. Utilizando-se das informações do discurso de Vieira, elabore uma frase que mantenha o mesmo paralelismo de orações justapostas, em que as informações são acrescentadas a um verbo que se repete.
Observe: “os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, nem perigo”.
O paralelismo nem sempre ocorre pela justaposição de orações. Observe este exemplo extraído também do discurso de Vieira: “porque a mesma sua miséria ou escusa ou alivia o seu pecado”.
escusa
porque a mesma sua miséria ou
o seu pecado. alivia
Os dois verbos da oração, conectados pela conjunção “ou”, formam uma construção paralela. O paralelismo torna o texto mais coeso. É importante, também, observar a coerência da frase que se constrói. No exemplo de Vieira, escusar tem o sentido de “perdoar” e aliviar, de “diminuir”. A ideia central é que a miséria do ladrão pobre torna o seu pecado perdoado ou, pelo menos, diminui a sua gravidade. Assim, o paralelismo não é apenas uma construção sintática, de como ordenamos as palavras, mas semântica, dos significados que essas palavras constroem dentro do texto. 25. Observe o seguinte trecho da entrevista de José Saramago.
“Estamos aqui hoje em Paris, mas podíamos estar em Lisboa, ou São Paulo, ou Rio”. Complete o esquema de paralelismos proposto para o trecho:
conectivo:
___________________________________________________________________________
ou
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
____________________
As conjunções são elementos que, frequentemente, nos auxiliam a estabelecer os paralelismos nos textos. Conjunções são vocábulos gramaticais que possuem valor relacional, ou seja, relacionam dois termos dentro de uma frase ou de um texto. Podem ser classificadas em coordenativas e subordinativas. As conjunções coordenativas ligam segmentos de um mesmo valor ou função sintática. Ex.: João e Maria foram à feira. Ambos os termos, “João” / “Maria”, são sujeitos da oração, ligados entre si pela conjunção coordenativa “e”. As conjunções subordinativas constroem uma relação de dependência sintática entre os elementos que elas relacionam. Ex.: Disse-me que esse assunto o incomodava. A segunda oração “esse assunto o incomodava” funciona como objeto direto da primeira “Disse-me”. Elas são conectadas pela conjunção subordinativa “que”.
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24. Para evitar a repetição do termo “furtam”, de que estratégia se vale Vieira?
26. Complete o quadro, usando exemplos que veiculem ideias próprias do discurso político que estamos abordando neste capítulo. Conjunções
Exemplos de paralelismo
E, nem
Não apenas os pobres, mas também os demais elementos da sociedade sofrem com o abuso do poder de maus governantes.”
Mas, porém, contudo
Ou (... ou), seja... seja...
Não só... mas (ou como) também...
Tanto... quanto (ou como)
José Saramago afirma que vivemos em uma plutocracia, ou seja, um governo dos ricos.”
27. Que características do Barroco se encontram no texto de Vieira?
A linguagem produzindo a ilusão do poder
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Outro elemento que permita a construção de paralelismos no texto é a preposição.
A preposição veiculando ideias no texto As preposições são partículas que ligam termos no texto (palavras e frases), estabelecendo entre eles uma relação de subordinação e garantindo a coesão textual. Isso significa que entre os elementos ligados por uma preposição não há sentido dissociado, individualizado (como se nota na conjunção “e” em “João e Maria”). Quanto à forma, as preposições podem ser divididas em dois grupos: • Simples: expressas por um só vocábulo. • Compostas (ou locuções prepositivas): quando constituídas de dois ou mais vocábulos, sendo o último deles uma preposição simples. As preposições simples, por sua vez, também podem ser divididas em dois grupos: I. Essenciais (ou seja, palavras que são primitivamente preposições): a – ante – após – até – com – contra – de – desde – em – entre –para – perante – por – sem – sob – sobre – trás. II. Acidentais (são palavras que, normalmente, pertencem a outras classes gramaticais e que funcionam, às vezes, como preposições): conforme – consoante – durante – exceto – mediante – salvo – segundo – tirante, etc.
O sentido de uma expressão conectada por uma preposição reside na união de todos os elementos que a ela se vinculam. Tomemos o seguinte exemplo do texto de Vieira: “O ladrão que furta para comer”, furta e comer: elementos ligados por preposição, para: preposição. As preposições são palavras invariáveis, pois não sofrem flexão de gênero, número ou variação em grau, como os nomes, nem de pessoa, número, tempo, modo, aspecto e voz como os verbos. A preposição é um conectivo que liga palavras entre si, num processo de subordinação denominada regência. Chama-se regência porque, na relação estabelecida pelas preposições, o primeiro elemento (antecedente) é o termo que rege, que impõe um regime ou regra a seguir; o segundo elemento (consequente) é 234
Capítulo 5
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28. De que forma os paralelismos presentes no texto de Vieira colaboram para o estilo barroco de seu texto?
o termo regido, aquele que cumpre o regime estabelecido pelo antecedente. Vejamos de novo o exemplo dado: “O ladrão que furta para comer”, furta: termo antecedente, rege a construção de “para comer”, comer: termo consequente, é regido pela construção “furta para”, para: preposição, estabelece a relação de finalidade entre o antecedente e o consequente. Em algumas situações, as preposições combinam-se com outras palavras em um fenômeno chamado de contração e, assim, estabelecem uma relação de concordância em gênero e número com essas palavras às quais se ligam. Não se trata, naturalmente, de uma variação própria da preposição, mas sim da palavra com a qual ela se funde. Vejamos um exemplo do texto de Vieira: Rei dos reis e Senhor dos senhores, Rei: termo antecedente, reis: termo consequente, dos: de (preposição, estabelece a relação de posse e domínio entre o antecedente e o consequente) + os (artigo definido masculino plural). As locuções (conjunto de palavras que formam uma unidade expressiva) prepositivas são expressões fixas da língua portuguesa, ou seja, são elementos que não variam em gênero e número. No decorrer da história da língua portuguesa, certas locuções prepositivas se consagraram. Gramáticos defendem a adequação de uma forma e não outra para a variante culta da língua escrita. Algumas locuções prepositivas são: Abaixo de – acerca de – acima de – a fim de – além de – antes de – ao lado de – ao redor de – a par de – apesar de – a respeito de – atrás de – através de – de acordo com – debaixo de – de cima de – dentro de – em baixo de – em frente de – em nível de – em torno de – em vez de – graças a – junto a – junto de – para baixo de – para cima de – para com – perto de – por baixo de – por causa de – por cima de – por detrás de – por diante de – por entre – por trás de. Vejamos um exemplo comum do uso inadequado de locuções prepositivas: A nível de experiência, a viagem foi um ganho inestimável. (Forma inadequada). Em nível de experiência, a viagem foi um ganho inestimável. (Forma adequada). 29. João Henrique resolveu o seguinte exercício, mas sentiu-se muito inseguro durante a resolução. Ajudeo a corrigir os erros que, por acaso, tenha cometido. Identifique os elementos antecedente e consequente das expressões conectadas por preposições no trecho a seguir, extraído do sermão de Vieira. Identifique que relação é estabelecida pela preposição. “que morrestes entre ladrões para pagar o furto do primeiro ladrão, e o primeiro a quem prometestes o Paraíso foi outro ladrão” a) morrestes: termo antecedente, ladrões: termo consequente, entre: preposição que indica localização. b) morrestes: termo antecedente, pagar: termo consequente, para: preposição que indica destino de um movimento.
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c) furto: termo antecedente, primeiro ladrão: termo consequente, do: contração de “de” (que indica responsabilidade da ação) e o pronome “o”. d) primeiro: termo antecedente, prometestes: termo consequente, a: preposição que indica destino de uma ação. 235
31. Elida escreveu o seguinte e-mail para a sua amiga Janete.
>”Super-Janete, Estou em vias de explodir. Apesar que eu não goste mais do Lucas, não consigo esquecê-lo. Sabe, o carinha super-mexe ainda comigo! Acontece que a nível de romance, ele foi o grande amor de minha vida. Ao ponto de eu achar que nunca mais vou gostar de outro cara. Ao mesmo tempo que sinto uma super-raiva dele, porque você sabe, ele foi super-cachorro comigo, não paro de pensar no seu jeitinho... Ai! Aquela boquinha linda!!! >Quem sabe a longo prazo eu conheça a alguém que me faça feliz... Ai, amiga, estou super-down hoje. Passa aqui em casa... Please! >Beijo, >Eli...” Utilizando-se do quadro a seguir, faça as devidas correções às locuções usadas no e-mail da Elida, para deixá-lo adequado à norma culta.
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30. Da lista de preposições apresentada na explicação, quais são de pouco uso nos dias de hoje? Quando queremos transmitir a ideia que elas trazem, de que expressões nos valemos?
A seguir, alguns exemplos de locuções (conjunto de palavras que formam uma única unidade expressiva) em uso padrão: Uso inadequado
Uso adequado
a nível de
em nível de (1)
à medida em que
na medida em que (2)
ao mesmo tempo que
ao mesmo tempo em que
apesar que
apesar de que
a longo prazo
em longo prazo
em vias de
em via de
ao ponto de
a ponto de
Observações: (1) Com referência à locução “em nível de”, ainda que seja a forma adequada, é usada indiscriminadamente, tornando-se, em certos casos, expressão de mau gosto. Na maioria dos contextos, “em nível de” pode ser substituído por outra preposição. Ex.: Em nível de experiência, a viagem foi um ganho inestimável. (Forma adequada).
Como experiência, a viagem foi um ganho inestimável. (Forma ainda mais adequada).
(2) Não confunda a locução prepositiva “na medida que” (que tem o sentido aproximado de “uma vez que”, “pelo motivo de que”, “já que”) com a locução conjuntiva proporcional “à medida que” (que tem o sentido de “à proporção que”). Ex.: O padre Antônio Vieira, na medida em que responsabilizou os poderosos pelos seus erros, tornou o seu discurso político. (Forma adequada =). O padre Antônio Vieira, uma vez que responsabilizou os poderosos pelos seus erros, tornou o seu discurso político. Dava-se conta de que estava perdido à medida que avançava. (Forma adequada =). Dava-se conta de que estava perdido à proporção que avançava.
DIFERENÇAS E PALAVRAS: VARIEDADES LINGUÍSTICAS E PODER Como já tivemos oportunidade de estudar, a língua portuguesa falada no Brasil apresenta variações geográficas (de uma região para a outra) e sociais (de um para outro segmento da sociedade). Essas variedades acontecem tanto no vocabulário quanto na pronúncia. Algumas das variedades linguísticas acabam sendo identificadas com o modo de falar de uma classe social. Os modos de falar das classes sociais mais simples e pobres da população, muitas vezes são discriminados e, até mesmo, ridicularizados. A linguagem produzindo a ilusão do poder
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Ao ouvir a letra de música a seguir, preste atenção às diferenças apresentadas pelo autor para diferenciar a fala do enunciador daquela associada às classes dominantes.
Saudosa Maloca “Se o senhor não tá lembrado Dá licença de contá Ali onde agora está esse edifício arto Era uma casa veia Um palacete assobradado Foi ali, seu moço Que eu, Mato Grosso e o Joca Construímo nossa maloca Mas um dia, nós nem pode se alembrá Veio os home c’as ferramenta O dono mandô derrubá Peguemo todas nossas coisa E fumo pro meio da rua Apreciá a demolição Ainda há mui tos “palacet Que tristeza que nóis sentia es assobrad ados” invadi dos em São Cada tábua que caía, doía no coração Paulo. Mato Grosso quis gritá, mas em cima eu falei Os home tá com a razão, nóis arranja outro lugá Só se conformemo quando o Joca falô Deus dá o frio conforme o cobertô E hoje nóis pega as paia Nas grama dos jardim E pra esquecê nóis cantemo assim: Saudosa maloca, maloca querida Dim dim donde nóis passemo Dias feliz de nossas vida. Cas, cas, cas, cas, cas...” BARBOSA, Adoniram. In: Beth Carvalho canta o samba de São Paulo.
João Rubinato, mais conhecido como ADONIRAM BARBOSA (1910-1982) – Nasceu em Valinhos (SP). Filho de imigrantes italianos, começou cedo a trabalhar, ao lado do pai. Na década de 1930, o seu talento artístico começou a ser conhecido do grande público. Seu maior mérito foi ter deixado para a posteridade canções em que o bom humor se alia a um retrato de uma cidade de São Paulo plural, cheia de diferenças e nuances.
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32. Reescreva em seu caderno, o texto da música “Saudosa maloca”, passando-o para o registro formal da língua portuguesa. Agora, compare a sua versão com aquela feita por Adoniram Barbosa. 33. Qual delas apresenta maior valor estético? Justifique sua resposta.
O desvio gramatical, como já estudamos no volume 1 desta coleção, pode ser usado estilisticamente, para dar ao texto uma maior carga expressiva. 34. O narrador conta sua história e a de seus companheiros para alguém. Como marca as relações sociais na interlocução?
35. A língua portuguesa, no registro formal, marca o plural em diversos momentos da frase. Assim, ao dizermos “Vieram os homens com as ferramentas”, marcaríamos o plural tanto no verbo, como nos artigos e nos substantivos. Certos registros informais, ao contrário, economizam e marcam o plural em apenas um lugar da frase. No verso: “Veio os home cas ferramenta”, a marca de plural está presente em que classe gramatical?
A seguir, vamos ampliar o nosso estudo sobre as preposições. Observe: I. Vieram os homens com as ferramentas – Veio os home cas ferramenta. II. E fomos para o meio da rua – E fumo pro meio da rua. As palavras ligadas pela preposição podem estabelecer entre si uma ideia de movimento ou de situação. Dos exemplos acima, identifique qual apresenta a ideia de movimento e qual a de situação. Tanto o movimento como a situação podem ser relacionadas ao espaço, ao tempo e à noção. Exemplos: Relações de movimento a) espacial: Joca, Matogrosso e eu saímos da (= de + a) maloca. b) temporal: Daqui a uma semana tudo estará resolvido. c) nocional: Joca, Matogrosso e eu entramos em profunda tristeza. Relações de situação a) espacial: “E hoje nóis pega as paia / Nas (= em + as) grama dos jardim”. b) temporal: De tarde, a maloca já estava no chão. c) nocional: Tiveram a sua maloca derrubada por não serem donos do terreno. A linguagem produzindo a ilusão do poder
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36. Com o auxílio de uma gramática, estabeleça corretamente a associação.
( ( ( ( (
) situação nocional com ideia de adição, companhia ou instrumento. ) movimento nocional com tendência a uma finalidade. ) movimento espacial com tendência a um limite. ) situação espacial indicando posição no interior de. ) situação espacial indicando posição em cima de.
AS PREPOSIÇÕES NA NOTÍCIA DE JORNAL Na sequência, vamos fazer um estudo da preposição numa notícia de jornal. Vejamos:
Pernambuco mostra a força do seu design Designers exibem em salão seus projetos e procuram uma maior inserção na economia pernambucana CAROL ALMEIDA
“Em novembro, queremos que tudo na cidade lembre design”, diz Ricardo Notari Peixinho, presidente da Associação de Profissionais Designers de Pernambuco (APD), em coletiva para a imprensa realizada no começo de outubro. Na mesma mesa estavam Kléber Dantas, presidente da Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco (AD/Diper), e Matheus Antunes, superintendente do Sebrae Pernambuco. Ao lado da Prefeitura do Recife e de outras empresas privadas que deram apoio ao evento, as instituições servirão de suporte para o maior evento já realizado em design no Estado e, segundo o mesmo Peixinho, quiçá no Brasil: o Pernambuco Design, que tem início amanhã. 240
Da reunião acima citada até a abertura das exposições e atividades do Pernambuco Design, algumas coisas mudaram na programação. A grande modificação (e perda) mesmo se deve ao cancelamento da ExpoDesign, a feira de negócios que tentaria criar um ambiente condizente com o slogan do projeto: ‘design + negócios = resultados’. ‘De qualquer forma’, explica Peixinho, ‘não muda o perfil do evento. Afinal, o Salão de Design servirá também para trocar experiência e informações entre os profissionais da área e os empresários’. O foco em negócios se deve à posição que Pernambuco ocupa hoje no mercado de design do País. No Nordeste, o Estado tem os principais centros de referência na área, seja em escritórios e
empresas, seja na universidade. Atualmente, segundo dados da APD/PE, existem cerca de 60 empresas, quase 200 associados e cinco grandes escritórios que trabalham para clientes dentro e fora de Pernambuco. Comparando com números do Rio de Janeiro e de São Paulo, os dados são quase microscópicos, mas numa proporção com o resto do Nordeste, o Estado figura numa posição privilegiada. ‘Em uma escala regional, Recife é o maior polo de design do Nordeste’, afirma Peixinho. A liderança no raio regional é resultado tanto da demanda natural do mercado, quanto de iniciativas como a do Sebrae, responsável pelo Via Design, programa que serviu de incentivo maior para a criação da Rede Pernambucana de Design.
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a) “Veio os home cas ferramenta” b) “E fumo pro meio da rua” c) “Cada tábua que caía, doía no coração” d) “E hoje nóis pega as paia / Nas grama dos jardim” e) “pra isquecê nóis cantemo assim”
Em quatro anos de atividades junto aos empresários e designers pernambucanos, o Sebrae motivou o surgimento de uma rede que hoje comporta cinco núcleos de design separados por algumas segmentações do mercado local: núcleo de moda, artesanato, produto, embalagens e gráfico. Em Caruaru, por exemplo, onde está localizado o núcleo de moda, um empresário pode entrar em contato com os designers que fazem parte do escritório para, tanto obter serviços e informações a respeito de sua área, como também na área de produto, embalagens e outros. ‘Acredito que nesses quatro anos de Via Design conseguimos diminuir um pouco a quantidade
de empresários que não tinham mconhecimento algum sobre o assunto’, diz Eduardo Maciel, designer e responsável pelo Via Design. Apesar de haver um consenso quanto à importância de instituições como o Sebrae e do próprio Estado, alguns designers pernambucanos chamam a atenção para o estreitamento do mercado com medidas governamentais. ‘Tanto a iniciativa pública quanto a iniciativa privada podem andar paralelas, é importante ter uma política pública. O que não pode haver é uma dependência do governo’, afirma o designer Gilson Miranda, sócio de um escritório que funciona no Recife há mais de 10 anos.
Charles Bezerra, designer pernambucano que já conduziu equipes internacionais de design e tem doutorado pelo Instituto de Design no Instituto de Tecnologia de Illinois, EUA, é ainda mais reticente: ‘O problema que estamos enfrentando é mais grave do que simplesmente utilizar políticas públicas. Nosso design ainda é muito associado à arte, é um design de aparência. Esse é um modelo que não está casado com o modelo econômico, e em algum momento isso dará um choque. O designer no Brasil ainda não sabe falar com o dono da empresa’.” Jornal do Commercio. Pernambuco. Publicado em 4-11-2004.
37. Faça um resumo da notícia com 20 a 40 palavras, não contando preposições, artigos e conjunções.
38. Identifique o paralelismo presente na oração. Tanto a iniciativa pública quanto a iniciativa privada podem andar paralelas (...)
39. Indique se as preposições em negrito indicam situação ou movimento. a) “Na [em + a] mesma mesa estavam Kléber Dantas (...) e Matheus Antunes (...)”
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b) “Acredito que nesses [em + esses] quatro anos de Via Design conseguimos (...)”
c) “O foco em negócios se deve à posição que Pernambuco ocupa hoje no mercado de design do País.”
“Pernambuco mostra a força do [ + ] seu design” “Designers exibem em salão seus projetos”
nocional
situação
“procuram maior inserção na [em+a] economia pernambucana”
posição no interior de
nocional
“Da reunião acima citada”
movimento
Nosso design ainda é muito associado à [ + ] arte
movimento
procedência, origem ( a força que se origina em seu design)
Alcance de uma situação dentro de
afastamento de um ponto
nocional
Observe: I. Viajei com Fernando. II. Comparando com números do Rio de Janeiro e de São Paulo, os dados são quase microscópicos. Na frase I, o verbo viajar é verbo intransitivo. O termo “com Fernando” exerce a função de adjunto adverbial de companhia. Já na frase II, o verbo comparar é verbo transitivo direto e indireto. O objeto indireto é “com números do Rio de Janeiro e de São Paulo”. A preposição com exprime fundamentalmente a função de ‘associação’, ‘companhia’. 41. Em qual das duas frases essa ideia básica é mais perceptível?
Quando a regência verbal obriga o uso de preposição, ocorre um enfraquecimento do conteúdo significativo da mesma. No entanto, o significado básico permanece. Na frase II, o verbo “comparar” escolhe a preposição “com” por causa de afinidades de sentido que existem tanto no verbo como na preposição. Como a preposição é portadora de conteúdo significativo, o objeto direto preposicionado ganha sempre um vigor novo. Esse vigor se origina justamente do valor expressivo da preposição. Observe: I. Eu amo Deus. II. Eu amo a Deus.
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40. Complete o quadro. Recorra constantemente ao texto para orientar-se.
O verbo amar é um verbo transitivo direto, portanto não exige o uso de preposição. Ao acrescentarmos a preposição “a” , o verbo ganha intensidade. 42. Pesquise em uma gramática, para estabelecer as relações apropriadas entre as preposições em negrito, das frases extraídas do texto, e as explicações de significado: a) “Em novembro, queremos que tudo na cidade lembre design (...)” b) “...em coletiva para a imprensa realizada no começo de outubro (...)” c) “Matheus Antunes, superintendente do [de+o] Sebrae Pernambuco (...)” d) “Ao lado da Prefeitura do Recife e de outras empresas privadas que deram apoio ao evento, as instituições servirão de suporte para o maior evento já realizado em design no Estado (...)” e) “Da reunião acima citada até a abertura das exposições e atividades do Pernambuco Design (...)” f) “Em Caruaru, por exemplo, onde está localizado o núcleo de moda (...)” g) “Eduardo Maciel, designer e responsável pelo [por + o] Via Design (...)” ( ) Situação nocional com o sentido de “resultado da aproximação a um limite”. ( ) Situação espacial com o sentido de “dentro dos limites de”. ( ) Movimento temporal com o sentido de “aproximação de um limite com insistência nele”. ( ) Situação nocional de associação, simultaneidade, comunidade. ( ) Movimento nocional com o sentido de “direção, finalidade, perspectiva”. ( ) Situação espacial com o sentido de “posse”. ( ) Situação temporal com o sentido de “dentro dos limites de”. 43. As frases abaixo necessitam ser revistas. Nelas, o emprego de algumas preposições não está apropriado. Identifique e explique os equívocos. Utilize uma gramática e um dicionário. a) Eu conheço a meu vizinho muito mal, pois ele mudou-se para este bairro há apenas um mês.
b) Embora seja um bom poeta, não podemos comparar Bocage com Camões.
c) Embora não seja igual em valor a Camões, sobre certos aspectos, Bocage foi insuperável como poeta.
d) Veio a criada e pôs o jantar sob a mesa. Todos então comeram satisfeitos.
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O predicado verbo-nominal 44. Preste atenção nas frases: I.
As crianças brincavam.
II. As crianças estavam felizes. III. As crianças brincavam felizes.
b) Qual a função sintática do termo “felizes” na oração III?
c) Classifique sintaticamente o verbo “brincavam” na oração III.
Não são apenas os verbos de ligação que se constroem com predicativo do sujeito. Também verbos nocionais podem ser empregados com ele. Observe: I.
Carolina saiu da igreja.
II. Carolina estava muito cansada. III. Carolina saiu da igreja muito cansada. O verbo “sair” é nocional. Na frase III, “muito cansada” é predicativo de Carolina, que funciona como sujeito da oração. A esse predicado que mistura dois núcleos significativos (um verbo e um predicativo) dá-se o nome de predicado verbo-nominal. Observação: no predicado verbo-nominal, o predicativo anexo ao sujeito pode vir antecedido de preposição (que lhe permite ganhar maior ênfase) ou do conectivo como. 45. Identifique que orações apresentam predicados verbo-nominais: a) A chuva caía lentamente. b) A chuva caía lenta. c) Encontrei Maria doente. d) Clarice riu despreocupada. e) Os alunos atentos ouviam a explicação do professor. f)
Os alunos ouviam a explicação do professor, atentos.
g) A greve foi acusada de ilegal. 244
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a) Que diferenças de sentido você encontra comparando I e II com III?
46. Que diferenças de sentido, encontra entre os pares de frases: a) I. A chuva caía lentamente.
II. A chuva caía lenta.
b) I. Os alunos atentos ouviam a explicação da professora.
II. Os alunos ouviam a explicação da professora, atentos.
A LINGUAGEM PRODUZINDO A ILUSÃO DE PODER Todos desejamos ter as nossas necessidades atendidas. Para isso, precisamos de alguma parcela de poder na sociedade em que vivemos. A visão capitalista de consumo, no entanto, alterou os conceitos de poder. Observe, por exemplo, o comentário de Charles Bezerra, no artigo do Jornal do Commercio que examinamos: “O designer no Brasil ainda não sabe falar com o dono da empresa”. Observe que o ponto central não é se o designer pernambucano sabe fazer o seu serviço. A questão é de comunicação, não de habilidade de produzir o seu trabalho. A palavra é essencial para a manutenção do poder. O marketing sabe disso, e iniciativas como o “Pernambuco Design” servem para dar visibilidade comercial e, consequentemente, conseguir uma fatia do poder comercial. O comércio e a indústria, muitas vezes, associam-se com o poder público para atingir os seus objetivos. Isso pode ser muito positivo, gerando empregos e trazendo progresso e desenvolvimento para a comunidade. Como afirma o designer Gilson Miranda, no artigo citado do Jornal do Commercio: “Tanto a iniciativa pública quanto a iniciativa privada podem andar paralelas, é importante ter uma política pública. O que não pode haver é uma dependência do governo”. Porém, muitas vezes cometem-se excessos. Na busca pelo poder econômico, algumas empresas não medem esforços e não se importam em derrubar formações culturais e sociais. Associado ao poder público, o poder comercial às vezes torna-se responsável por profundas, e nem sempre positivas, alterações na sociedade. Vamos examinar o caso da África lusófona. Esses países obtiveram a sua independência de Portugal por volta de 1975. Se compararmos com o Brasil, por exemplo, que obteve a sua independência em 1822, notamos que são nações relativamente novas. Muitos de seus escritores foram presos nos anos que antecederam à independência de seus países. Curiosamente, um deles, Antônio Cardoso, de Angola, embora preso pelos seus ideais de liberdade, tem consciência de que a independência política não é tudo. Há um outro tipo de dependência a ser superada, a econômica e cultural.
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Carambola publicitária Não há nada como a ‘civilização’ (deles para nos escovar a seco) (...) Mesmo aqui na prisão sinto-me ilhado, apontado a dedo, Espreitado, espevitado, empurrado pelos slogans gritados Por todos os rótulos na memória ou que povoam o meu degredo:
LUXO – Macio e absorvente! SUPER VIM com Desinfectina! SUPER PEPSODENTE com PL3 – brancura natural dos dentes! EXTRA – ideal para roupa delicada! Pastilhas de Corifina
Vitamina C para fumadores!
De todos os gostos e diferentes Mas todos iguais no resultado seguro: na mesma aparecer Hemorroidas, riscos, nicotinas, nódoas, sub-reptícios cancros, Na CIRANDA VIDA-E-MORTE. (...)” Antônio Cardoso. In: DÁSKALOS, M. A.; APA, L.; BARBEITOS, A. Poesia africana de língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lacerda, 2003.
ANTÔNIO CARDOSO (1933-) – Nasceu em Luanda. Foi preso pela PIDE, a polícia política portuguesa, em 1959 e novamente em 1961, sendo liberto apenas em 1974. Nesse período, passou por prisões em Luanda e por um campo de concentração em Tarrafal, no Cabo Verde. Poeta e ficcionista é autor de várias obras, entre elas: Poemas de circunstância (1961), Economia política, Poética (1979), Chão de exílio (1980) e A fortuna (1981).
A independência de Angola A partir de 1954, encontramos, em Angola, um movimento nacionalista que lutou pela independência. Os portugueses recusaram a princípio, mas, após um prolongado período de guerrilha, a independência foi concedida em 1975. O resultado, no entanto, não foi dos mais positivos: o colapso da economia foi quase total. Lutas internas continuaram entre facções rivais que haviam lutado pela independência. O Movimento Popular para Libertação de Angola (MPLA), marxista, era o partido governante, apoiado por Cuba e pela extinta Alemanha Oriental, e seu oponente, a União Nacional pela Independência Total de Angola (Unita), era apoiado pela África do Sul e pelos Estados Unidos. Somente em 1995 assinou-se um tratado de paz.
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47. Comente em classe a sua compreensão do poema. 48. No poema, aparecem duas formas de prisão. Identifique-as.
49. Qual a força, na comunidade em que vive, da linguagem própria da propaganda e do marketing? Explique e exemplifique.
50. O artigo do Jornal do Commercio afirma que, independentemente da qualidade de seu produto, o designer tem de saber se comunicar com o mercado. Antônio Cardoso afirma que, como numa “ciranda de vida-e-morte”, muitas vezes o produto anunciado revela-se uma fraude. Exponha a sua opinião sobre o assunto: qual o poder da palavra no mundo capitalista em que vivemos?
51. Encontre, em jornais e revistas, ações recentes em sua comunidade nas quais o poder público se alia ao poder comercial. Junto com seus colegas, discutam em classe os aspectos positivos e negativos dessa interferência. A mentalidade capitalista que domina a sociedade atual e interfere na construção do discurso político teve a sua origem associada à ascensão da burguesia ao poder. Encontramos essa mentalidade marcando sua presença firme na sociedade principalmente a partir do Neoclassicismo, movimento artístico que estudaremos no fim deste capítulo.
Atividade 52. Com a orientação do professor, reúnam-se em grupos. Pesquisem em jornais, revistas e na Internet e encontrem artigos e notícias que estabeleçam um diálogo com o ”Sermão do Bom Ladrão” do padre Antônio Vieira. Depois, os grupos apresentarão para a classe os textos encontrados, e todos discutirão quais são os mais indicados para elaborar um tema de redação que siga o modelo daquele apresentado no final da unidade 1 deste volume. Montado o conjunto de textos, escolham o tema mais apropriado para essa redação. Todos os alunos disporão do mesmo conjunto de textos e do mesmo tema, escolhido e elaborado pela classe como um todo.
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53. Individualmente, escreva a redação. Antes de entregá-la ao professor, leia-a e preencha os quadros correspondentes na ficha de avaliação.
1
Aborda-se um único tema?
2
É legível?
3
Apresenta tese identificável pelo leitor?
4
Analisa a afirmação levando em conta (explicitamente ou não) outras posições sobre o assunto?
5
O quadro de problematização é identificável pelo leitor?
6
Os argumentos são lógicos e aceitáveis?
7
Apresenta conclusão?
8
Usa paralelismos?
9
Usa adequadamente as preposições e locuções prepositivas?
10
Apresenta outros problemas sérios de coesão?
Autoavaliação
Avaliação do professor
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Tópicos de análise
Bom trabalho!
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Capítulo 5
HISTÓRIA CRÍTICA DA ARTE E DA LITERATURA: PASSANDO O SÉCULO XIX EM REVISTA Para concluirmos nossos estudos sobre o Romantismo e sobre o Realismo-Naturalismo, propomos uma interessante atividade criativa. Trata-se da elaboração de uma revista sobre arte, dedicada aos principais movimentos do século XIX em língua portuguesa: o Romantismo e o Realismo-Naturalismo. Essa revista será dedicada a ensaios e resenhas Em grupos, selecionem os temas que cobrirão. Cada grupo cuidará de produzir um ou mais ensaios informativos, explicando o assunto e, aproveitando a maior liberdade que o gênero permite, para estabelecer diálogos com a realidade da comunidade em que vivem. Também escolham as obras que resenharão. É claro que todos os temas envolvidos devem estar relacionados ao século XIX em língua portuguesa. Antes de iniciar os trabalhos, cada grupo realizará o projeto de seu trabalho, orientando-se pelo roteiro a seguir. Revejam o modelo de projeto explicado na unidade 1 do volume 1 desta coleção. Título do texto: sejam criativos e inventem um título sugestivo. Nesse momento, contudo, é muito provável que o título seja provisório. No desenrolar das atividades é quase certo que novas idéias surgirão. Objetivo: identifiquem o objetivo do texto que vocês produzirão. Lembrem-se de que esse texto faz parte de algo maior, a revista da sala. Desse modo, levem em conta o que vocês decidiram sobre quais os objetivos da revista e a quem se destina. Essas respostas orientarão agora os objetivos do texto a ser escrito. É importante que o objetivo responda à pergunta: em que o texto que o seu grupo desenvolverá contribuirá para os temas tratados na revista? Justificativa: por que vocês estão fazendo esse texto? A justificativa visa a defender a importância do texto produzido. Vocês devem apresentar argumentos que convençam as pessoas de que o texto é digno de interesse. Por que alguém gastaria o seu tempo lendo algo que vocês escreveram, ainda mais sobre um tema já tão abordado? Metodologia: ou seja, o modo de obter os dados da pesquisa. Nesse caso, é fácil. Vocês vão consultar a bibliografia sobre o assunto, na biblioteca ou sala de leitura da escola e na Internet. Tomem cuidado de que as fontes consultadas sejam confiáveis. Circulam muitas informações enganosas em revistas e sites da Internet. Além disso, conforme o lugar onde vocês moram, talvez seja interessante visitar lugares relacionados aos temas tratados. Esse também é o momento de decidir quem vai fazer o que no trabalho. Não queremos que alguns acabem ficando sem ter o que fazer, apenas marcando presença ou fazendo a digitação final. Fontes: o que vocês consultarão para realizar as pesquisas? Investiguem no livro didático, na biblioteca, Internet, revistas, livros, jornais e conversem com pessoas sobre o assunto. Investiguem cautelosamente o tema que pretendem desenvolver. Ao final do artigo, citem as fontes consultadas, seguindo o padrão científico de bibliografia. Padrão de referência de livro: AUTOR [sobrenome em caixa-alta; seguido de vírgula e do nome em alta e baixa, seguido de ponto]; título do livro [em itálico, seguido de ponto (se houver subtítulo, em vez de ponto, usam-se dois-pontos e o subtítulo fica em normal)]; nome da cidade onde o livro foi publicado [seguido de dois-pontos, sem a sigla da unidade da Federação; nome da Editora [(sem a palavra “Editora” ou equivalente), seguido de vírgula]; ano de publicação [seguido de ponto].
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Padrão de referência de artigo de jornal, revista, publicação periódica: AUTOR [sobrenome em caixa-alta; seguido de vírgula e do nome em alta e baixa, seguido de ponto]; título do artigo [normal, entre aspas, seguido de ponto]; nome do periódico [em itálico, seguido de ponto]; nome da cidade onde o periódico foi publicado [seguido de dois-pontos, sem a sigla da unidade da Federação]. Número de volume [seguido de vírgula], número do fascículo [seguido de vírgula], páginas inicial e final do artigo [separadas por traço (seguidas de vírgula), mês e ano da publicação [terminando com ponto]. 54. Alice se atrapalhou na hora de escrever a bibliografia do livro consultado. Ajude-a a corrigir o trabalho dela: Maria do Carmo BENEDITA. “Alegria de estudar para a vida”. Editora Salesiana. São Paulo/SP, 2007.
Reescreva a indicação bibliográfica seguindo as orientações fornecidas. 55. Reinaldo consultou, nas páginas 48 a 52 da revista Olha, o artigo “Como ser um bom aluno nos dias de hoje” foi escrito por José Luís da Silva. A revista foi impressa em Brasília, no mês de setembro de 2008. Já estava no volume 14 e no número 9. Elabore a indicação bibliográfica.
Quando este projeto estiver pronto, é hora de mostrá-lo ao professor. Lembre-se, de que o título pode ser provisório. O professor fornecerá sugestões e analisará as possibilidades de execução do projeto. Juntos, decidam aspectos práticos, como o título da revista, a elaboração da capa, do índice e da publicação. Uma possibilidade para os trabalhos desenvolvidos é comparar o pensamento romântico com o realista. Há importantes semelhanças, bem como significativas diferenças entre os dois, como nos mostra o texto teórico a seguir:
“Na realidade, as escolas ‘realistas’ e ‘naturalistas’ sucedem às escolas ‘românticas’ no sentido restrito, mas pode dizer-se que o Romantismo, em sentido lato, as abrange a todas e só chega ao seu termo no final do século XIX. Os escritores realistas e naturalistas não trazem alterações substanciais quanto ao estilo; e suas relações com o público, a natureza mesmo do público, são as que caracterizam os escritores que os precedem.” SARAIVA, A.; LOPES, O. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto, p. 638- 639.
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Capítulo 5
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No caso de publicação periódica, após o nome da cidade, acrescenta-se:
56. Recapitule seus estudos realizados até agora desses dois movimentos literários, encontre exemplos que confirmem esse pensamento teórico.
(Unesp) As questões a seguir se referem a uma passagem do romance Eurico, o Presbítero, do romântico português Alexandre Herculano (1810-1877) e uma passagem do romance O Missionário, do escritor naturalista brasileiro Inglês de Sousa (1853-1918). Eurico, o Presbítero
Os raios derradeiros do sol desapareceram: o clarão avermelhado da tarde vai quase vencido pelo grande vulto da noite, que se alevanta do lado de Septum. Nesse chão tenebroso do oriente a tua imagem serena e luminosa surge a meus olhos, ó Hermengarda, semelhante à aparição do anjo da esperança nas trevas do condenado. E essa imagem é pura e sorri; orna-lhe a fronte a coroa das virgens; sobe-lhe ao rosto a vermelhidão do pudor; o amículo alvíssimo da inocência, flutuando-lhe em volta dos membros, esconde-lhe as formas divinas, fazendo-as, porventura, suspeitar menos belas que a realidade. É assim que eu te vejo em meus sonhos de noites de atroz saudade: mas, em sonhos ou desenhada no vapor do crepúsculo, tu não és para mim mais do que uma imagem celestial; uma recordação indecifrável; um consolo e ao mesmo tempo um martírio. Não eras tu emanação e reflexo do céu? Por que não ousaste, pois, volver os olhos para o fundo abismo do meu amor? Verias que esse amor do poeta é maior que o de nenhum homem; porque é imenso, como o ideal, que ele compreende; eterno, como o seu nome, que nunca perece. Hermengarda, Hermengarda, eu amava-te muito! Adorava-te só no santuário do meu coração, enquanto precisava de ajoelhar ante os altares para orar ao Senhor. Qual era o melhor dos dois templos? Foi depois que o teu desabou, que eu me acolhi ao outro para sempre. Por que vens, pois, pedir-me adorações quando entre mim e ti está a Cruz ensanguentada do Calvário; quando a mão inexorável do sacerdócio soldou a cadeia da minha vida às lájeas frias da igreja; quando o primeiro passo além do limiar desta será a perdição eterna? Mas, ai de mim! Essa imagem que parece sorrir-me nas solidões do espaço está estampada unicamente na minha alma e reflete-se no céu do oriente através destes olhos perturbados pela febre da loucura, que lhes queimou às lágrimas. HERCULANO, Alexandre. Eurico, o Presbítero. Edição crítica, dirigida e prefaciada por Vitorino Nemésio. Lisboa: Bertrand, [s.d.], p. 42-43.
O Missionário
Entregara-se, corpo e alma, à sedução da linda rapariga que lhe ocupara o coração. A sua natureza ardente e apaixonada, extremamente sensual, mal contida até então pelo ascetismo que lhe dera a crença na sua predestinação, quisera saciar-se do gozo por muito tempo desejado, e sempre impedido. Não seria filho de Pedro Ribeiro de Morais, o devasso fazendeiro do Igarapé-mirim, se o seu cérebro não fosse dominado por instintos egoísticos, que a privação de prazeres açulava e que uma educação A linguagem produzindo a ilusão do poder
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SOUSA, Inglês de. O Missionário. São Paulo: Ática, 1987, p. 198.
57. (Unesp) A visão que o amante tem de sua amada constitui um dos temas eternos da Literatura. Uma leitura comparativa dos dois fragmentos apresentados, que exploram tal tema, nos revela dois perfis bastante distintos de mulher. Considerando esta informação,
a) aponte a diferença que há entre Hermengarda e Clarinha, no que diz respeito ao predomínio dos traços físicos sobre os espirituais, ou vice-versa, segundo as visões de seus respectivos amantes; b) justifique as diferenças, com base nos fundamentos do estilo da época em que se enquadra cada romance. 58. Em cada fragmento apresentado, encontramos o protagonista envolvido por fortes sentimentos de amor e de fé religiosa. Com base nessa observação, a) descreva o que há de comum nas reações dos dois religiosos ao viverem tais sentimentos; b) explique as razões pelas quais, no quinto parágrafo do texto de Herculano, a personagem se refere a dois templos.
PAUSA PARA REFLEXÃO Em seu caderno, responda às questões a seguir: 1. Que conteúdos deste capítulo consiguiria explicar sem consultar o livro? 2. Consultando o livro, identifique os conteúdos que, na sua opinião, não foram bem compreendidos e merecem novas explicações ou atividades de reforço. 3. Que atividade(s) considerou mais importante(s) para o seu aprendizado? Por quê? 4. Em que aspectos poderá melhorar sua participação nas próximas aulas?
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superficial não soubera subjugar. E como os senhores padres do Seminário haviam pretendido destruir ou, ao menos regular e conter a ação determinante de hereditariedade psicofisiológica sobre o cérebro do seminarista? Dando-lhe uma grande cultura de espírito, mas sob um ponto de vista acanhado e restrito, que lhe excitara o instinto da própria conservação, o interesse individual, pondo-lhe diante dos olhos, como supremo bem, a salvação da alma, e como meio único, o cuidado dessa mesma salvação. Que acontecera? No momento dado, impotente o freio moral para conter a rebelião dos apetites, o instinto mais forte, o menos nobre assenhoreara-se daquele temperamento de matuto, disfarçado em padre de S. Suplício. Em outras circunstâncias, colocado em meio diverso, talvez que Padre Antonio de Morais viesse a ser um santo, no sentido puramente católico da palavra, talvez que viesse a realizar a aspiração da sua mocidade, deslumbrando o mundo com o fulgor das suas virtudes ascéticas e dos seus sacrifícios inauditos. Mas nos sertões do Amazonas, numa sociedade quase rudimentar, sem moral, sem educação... vivendo no meio da mais completa liberdade de costumes, sem a coação da opinião pública, sem a disciplina duma autoridade espiritual fortemente constituída... sem estímulos e sem apoio... devia cair na regra geral dos seus colegas de sacerdócio, sob a influência enervante e corruptora do isolamento, e entregara-se ao vício e à depravação, perdendo o senso moral e rebaixando-se ao nível dos indivíduos que fora chamado a dirigir. Esquecera o seu caráter sacerdotal, a sua missão e a reputação do seu nome, para mergulhar-se nas ardentes sensualidades dum amor físico, porque a formosa Clarinha não podia oferecer-lhe outros atrativos além dos seus frescos lábios vermelhos, tentação demoníaca, das suas formas esculturais, assombro dos sertões de Guaranatuba.
DE OLHO NO FUTURO 1. (ITA) Os trechos abaixo foram baseados em Retratos do entardecer, de Marcos Pivetta, publicado na revista Pesquisa Fapesp, maio/2003. Neles, foram feitas alterações para a formação de períodos distintos. Leia-os com atenção, buscando observar se o último período de cada trecho estabelece uma relação de conclusão ou consequência com os anteriores do mesmo trecho. I. Os preocupantes índices de deterioração cognitiva em idosos (...) são um indício de que uma série de problemas devem aparecer num futuro próximo, em especial demências como o mal de Alzheimer, e perda de autonomia para a realização das tarefas cotidianas. Esses idosos, se a deterioração mental avançar, terão de ser assistidos por alguém diuturnamente. (p. 37-8) II. (...) o nível de escolaridade dos idosos parece se comportar como um marcador de sua condição geral de saúde, sobretudo de seus aspectos cognitivos. Aparentemente, quanto maior o grau de educação formal do entrevistado, menor seu desconforto físico e mental. (p. 36) III. Embora a relação entre escolaridade e distúrbios cognitivos realmente exista, ela deve ser um pouco relativizada. Os idosos sem estudo têm mais dificuldades de responder ao questionário dos pesquisadores. Muita gente com pouca ou nenhuma escolaridade acaba sendo rotulada, erroneamente, de demente ou portadora de problemas mentais. (p. 38) Pode-se afirmar que o último período do mesmo trecho constitui uma conclusão ou consequência em: a) I e II.
b) I e III.
c) apenas a II.
d) II e III.
e) todas.
2. (ITA) “O Nordeste se rende ao hábito de tomar café expresso. A região é a nova aposta das redes de cafeterias para expandir sua atuação no mercado nacional. Só este ano, a expectativa é que pelo menos mais 11 franquias sejam inauguradas nas principais capitais nordestinas. (...) O mito de que o café é um hábito dos paulistas começa a ser quebrado no Nordeste. Um bom indicador é o consumo per capita, que em âmbito nacional chega a 3,4 quilos por habitante/ano, contra um índice de 3,2 quilos na região.” (GUARDA, Adriana. Gazeta Mercantil. 12-3-2003). Sobre o texto, é possível afirmar que: a) a inauguração de 11 franquias em capitais nordestinas é algo certo. b) a região Nordeste é ainda inexplorada como consumidora de café. c) não há mais o mito de que tomar café seja um hábito apenas dos paulistas. d) no texto, a palavra aposta envolve a ideia de desafio. e) as expressões se rende e começa a ser quebrado se equivalem em significado. 3. (ITA) Assinale a opção em que a ambiguidade ou o efeito cômico NÃO decorre da ordem dos termos. a) “O estudo analisou, por 16 anos, hábitos como caminhar e subir escadas de homens com idade média de 58 anos”. (Equilíbrio. Folha de S.Paulo. 19-10-2000). b) “Andando pela zona rural do litoral norte, facilmente se encontram casas de veraneio e moradores de alto padrão”. (Folha de S.Paulo. 26-1-2003). c) “Atendimento preferencial para: idosos, gestantes, deficientes, crianças de colo”. (Placa sobre um dos caixas de um banco). d) “Temos vaga para rapaz com refeição” (Placa em frente a uma casa em Campinas, SP.) e) “Detido acusado de furtos de processos” (Folha de S.Paulo. 8-7-2000).
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4. (ITA) Assinale a opção em que o uso do pronome relativo NÃO está de acordo com a norma padrão escrita. (Excertos extraídos e adaptados de Folha de S.Paulo. 1-11-1993). a) (O cineasta sofreu) um derrame, do qual não iria se recuperar mais. b) (O rosto e a voz do cineasta) são aqueles aos quais estamos acostumados, talvez um pouco mais cansados. c) (Estar doente era) uma realidade sobre a qual (o cineasta) não sabia nada, sobre a qual jamais havia pensado. e) Depois das três cirurgias às quais se submetera, teve um ataque cardíaco. 5. (ITA) Leia o texto abaixo e responda à questão seguinte.
Nesse pequeno poema, a escritora Adélia Prado consegue não só registrar um traço singular do cotidiano da própria mãe, como também constrói dessa mulher um retrato, que apresenta duas facetas: uma, relativa à posição social e outra, ao temperamento. Particularize essas duas facetas e aponte como a estruturação sintática as instaura.
Solar Minha mãe cozinhava exatamente: arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas. Mas cantava. PRADO, Adélia. O coração disparado. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
6. (UFC) Leia o excerto seguinte.
“Rosa Maria fechou o diário. Estava com sono. E, estranhamente, sentia um mal-estar que raras vezes a incomodava. Um pouco de medo, não sabia de quê e, com absoluta certeza, descobria um pouco de nojo em si mesma, nojo por ela – mais nojo que pena, mais medo que nojo. Não sabia definir, mas eram nojo, pena e medo, numa ordem e proporção que não podia – nem queria – estabelecer. Começara a escrever o diário talvez para isso: contar ali tudo o que acontecia, o medo, o nojo e a pena. Mas começara a mentir para ela própria. Medo de quê? O nojo vinha às vezes – mas ela achava que todo mundo era capaz de, um dia, por algum motivo, sentir nojo de tudo. Pena – bem, ela já não perdia tempo em lamentar o que podia ter sido e o que não era. Sobrava o medo – medo de que Lobianco, por exemplo, pegasse o diário e soubesse que ela saíra com Luís, que não esquecia André... e, por isso mesmo, nem mesmo para o diário contava ou admitia o que realmente era: uma moça que se deixara levar, e agora, que já avançara demais, não adiantava recuar.” CONY, Carlos Heitor. Rosa vegetal de sangue. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.], p. 97.
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d) (Com ele, o cinema) não é mais um meio; torna-se um fim, no qual o autor é a principal referência.
Analise as assertivas sobre os termos destacados no trecho “Começara a escrever o diário talvez para isso: contar ali tudo o que acontecia, o medo, o nojo e a pena. Mas começara a mentir para ela própria.”. Em seguida, assinale a alternativa que contém a resposta correta. I. Isso remete para “escrever o diário” . II. Ali faz referência ao diário. III. Própria reforça a identidade da personagem. a) b) c) d) e)
Apenas I é verdadeira. Apenas II é verdadeira. Apenas I e II são verdadeiras. Apenas II e III são verdadeiras. I, II e III são verdadeiras.
7. (Fuvest) Em os Lusíadas, as falas de Inês de Castro e do Velho do Restelo têm em comum a) b) c) d) e)
a ausência de elementos de mitologia da Antiguidade Clássica. a presença de recursos expressivos de natureza oratória. a manifestação do apego a Portugal, cujo território essas personagens se recusavam a abandonar. a condenação enfática do heroísmo guerreiro e conquistador. o emprego de uma linguagem simples e direta, que se contrapõe à solenidade do poema épico.
8. (Fuvest)
“Decerto a gente daqui jamais envelhece aos trinta nem sabe de morte em vida, vida em morte, severina;” João Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina.
Neste excerto, a personagem do “retirante” exprime uma concepção da “Morte e vida severina”, ideia central da obra, que aparece em seu próprio título. Tal como foi expressa no excerto, essa concepção só NÃO encontra correspondência em: a) b) c) d) e)
“morre gente que nem vivia”. “meu próprio enterro eu seguia”. “o enterro espera na porta: / o morto ainda com vida”. “em é seguindo seu próprio enterro”. “essa foi morte morrida / ou foi matada?”.
9. (Fuvest) Como se sabe, Eça de Queirós concebeu o livro O primo Basílio como um romance de crítica da sociedade portuguesa, cujas “falsas bases” ele considerava um “dever atacar”. A crítica que ele aí dirige a essa sociedade incide mais diretamente sobre: a) o plano da economia, cuja estagnação estava na base da desordem social. b) os problemas de ordem cultural, como os que se verificavam na educação e na literatura. c) a excessiva dependência de Portugal em relação às colônias, responsável pelo parasitismo da burguesia metropolitana. d) a extrema sofisticação da burguesia de Lisboa, cujo luxo e requinte conduziam à decadência dos costumes. e) os grupos aristocráticos, remanescentes da monarquia, que continuavam a exercer suas influências corruptoras em pleno regime republicano.
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(UENF) O poema seguinte é a base para as questões 10 a 13.
Mulher ao espelho “Hoje, que seja esta ou aquela, pouco me importa. Quero apenas parecer bela, pois, seja qual for, estou morta. Já fui loura, já fui morena, já fui Margarida e Beatriz, Já fui Maria e Madalena. Só não pude ser como quis. Que mal fez, essa cor fingida do meu cabelo, e do meu rosto, se é tudo tinta: o mundo, a vida, o contentamento, o desgosto? Por fora, serei como queira, a moda, que vai me matando. Que me levem pele e caveira ao nada, não me importa quando. Mas quem viu, tão dilacerados, olhos, braços e sonhos seus, e morreu pelos seus pecados, falará com Deus. Falará, coberta de luzes, do alto penteado ao rubro artelho. Porque uns expiram sobre cruzes, outros, buscando-se no espelho.” Cecília Meireles
A temática e alguns procedimentos característicos do Barroco do século XVII foram retomados no poema de Cecília Meireles. 10. O questionamento das concepções do senso comum quanto à vaidade foram retomadas no poema de Cecília Meireles. Identifique, no poema, um aspecto da vaidade apresentado negativamente, e outro apresentado positivamente.
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11. O jogo de oposições entre conceitos era um dos recursos característicos da literatura barroca. Indique um contraste próprio do Barroco que predomina no texto.
12. Uma expressão utilizada no poema possui um sentido correspondente ao da expressão “da cabeça aos pés”. Retire-a do texto.
13. Na terceira estrofe, o substantivo “tinta” se refere a uma expressão que o antecede. Transcreva essa expressão e indique a conotação que o adjetivo tinta adquire no texto.
14. (Fuvest) Ao ligar dois termos de uma oração, a preposição pode expressar, entre outros aspectos, uma relação temporal, espacial ou nocional. Nos versos
“Amor total e falho... Puro e impuro... Amor de velho adolescente...”.
A preposição “de” estabelece uma relação nocional. Essa mesma relação ocorre em: a) “Este fundo de hotel é um fim de mundo.” b) “A quem sonha de dia e sonha de noite, sabendo todo sonho vão.” c) “Depois fui pirata mouro, flagelo da Tripolitânia.” d) “Chegarei de madrugada, quando cantar a seriema.” e) “Só os roçados da morte compensam aqui cultivar.”
15. (Unicamp)
Os computadores facilitam a reelaboração de textos, pois permitem, entre outras coisas, incluir e apagar trechos. A introdução dessa tecnologia na composição de jornais começou a produzir um tipo especial de erro, devido provavelmente ao fato de que o autor se esquece de eliminar partes de versões anteriores, após introduzir modificações. No trecho abaixo, por exemplo, há duas expressões de sentido equivalente, uma das quais deveria ter sido eliminada.
“Isso porque não é necessário que nesse estágio o Planalto não precisa ainda apresentar sua defesa.” Folha de S.Paulo, 5-9-1992.
I.
Identifique as expressões de sentido equivalente que não podem, nesse trecho, serem usadas simultaneamente.
II. Reescreva o trecho de duas maneiras, utilizando a cada vez, apenas uma das expressões que você identificou. A linguagem produzindo a ilusão do poder
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(UEAM) – As questões 16 a 22 baseiam-se no texto a seguir.
Pela revalorização da poesia A realidade é infinita, é inesgotável. Nós, que fazemos parte dela, nos esforçamos para compreendê-la, dentro das nossas possibilidades. No entanto, algo nela sempre nos escapa. Nunca conseguiremos “enquadrála” em nenhum dos nossos esquemas explicativos. E é nesse ponto que nós devíamos ser muito gratos à poesia, porque ela é uma arte que contribui para o nosso conhecimento de nós mesmos sem ser jamais – ou sem pretender ser – um “esquema explicativo”. Apesar dessa abertura espiritual, porém, ainda são fortes os sinais de má vontade em relação à “aventura estética” dos poetas. “Não gosto de quem se preocupa em escrever bonito”, – dizia alguém. Convém relembrarmos, então, que na sua origem a palavra “estética” não tem nada a ver com beleza: esthesia significava “sensação” (daí “anestesia”, a anulação da sensação). É interessante ver o que as pessoas respondem quando lhes perguntam por que não leem poesia. “Não gosto de rimas”, declara um. Argumento que a rima não é obrigatória, que existem poemas escritos em versos livres. Meu interlocutor se cala. Outra pessoa reclama da dificuldade da linguagem poética. Admito que a linguagem da poesia, como toda linguagem, pode apresentar dificuldades. Não é, contudo, inacessível. Sabemos que ela é anterior à prosa. Os seres humanos recorreram à mímica e a um conjunto de sinais sonoros ritmados para, ao agirem em grupo – caçando, guerreando –, coordenarem seus movimentos. A linguagem poética, então, nasceu ligada à música e à dança. Só quando as ações se tornaram mais complicadas e os indivíduos tiveram coisas mais complicadas para se dizerem uns aos outros é que surgiu a prosa, com suas conexões, articulações, conjunções etc. Indago: com um passado tão rico, não seria razoável a gente dedicar maior atenção à poesia? A reação mostra que ainda não consegui ser convincente. Uma moça alega que lhe parece estranho o “artificialismo” da poesia. Desencadeio um contra-ataque, perguntando o que é mais “artificial”: a dicção do poeta ou os discursos oficiais pronunciados pelas autoridades ao longo dos últimos 50 anos? Uma senhora de meia idade explica: desde que li um livro de poemas que achei muito ruins nunca mais li poesia. Questiono sua explicação: se a senhora fosse ao cinema e visse um filme péssimo desistiria definitivamente de ver filmes? Uma arte só pode ser avaliada com base nas suas melhores realizações. A má vontade em relação à poesia tem causas múltiplas e acaba produzindo efeitos culturalmente lamentáveis. Premidos contemporâneos se desinteressam das leituras que exigem um maior investimento de tempo. Querem resultados rápidos. A paciência não é, entre nós, uma qualidade muito difundida. A assimilação fica prejudicada. Há experiências subjetivas, que envolvem sentimentos, medos, esperanças, imagens, fantasias e intuições que só a poesia pode expressar. Nos poemas, posso comparar meu modo de sentir com o dos outros. Posso perceber o que nos assemelha e o que nos distingue: o que é universal, e o que é mais singular em mim. Para desempenhar esse papel, a poesia precisa se empenhar em um rigoroso exercício como linguagem: precisa se depurar, mobilizar todo o arsenal de metáforas, todo o seu poder de alusões e conotações, toda a sua capacidade de viabilizar invenções e inovações. Se compararmos a autodisciplina da linguagem poética com a banalização do idioma, com o empobrecimento da comunicação cotidiana, com a deterioração da forma na maioria das falas que a gente ouve nas conversas, ou com os cacoetes dos modismos na TV, perceberemos imediatamente como são graves as perdas decorrentes da má vontade contra a linguagem poética. Seria maravilhoso se nós conseguíssemos fazer algo pela revalorização da poesia. Konder, Leandro. Caderno B do JB, 7-6-2003.
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Capítulo 5
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16. A caracterização da poesia NÃO manifestada no texto é: a) a elaboração da linguagem. b) a manifestação do nosso subjetivismo. c) a incorporação de dicções atuais. d) a compreensão do outro. e) o constituir uma atividade artística.
17. Assinale a alternativa que NÃO explicita uma causa em relação ao desinteresse atual pela poesia. a) imediatismo do mundo moderno. b) o estranhamento de sua linguagem. c) uma experiência pessoal de leitura mal sucedida. d) o seu compromisso com o passado. e) a leitura pouco compreensiva de seus textos.
18. Assinale a alternativa que NÃO traduz uma oposição na construção de sentido do texto: a) autodisciplina da linguagem poética x modismos na TV. b) arsenal de metáforas x banalização do idioma. c) poder de alusão x empobrecimento da comunicação cotidiana. d) dicção do poeta x deterioração da forma das falas nas conversas. e) aventura estética x abertura espiritual.
19. No parágrafo “A assimilação fica prejudicada.” se articula com o conteúdo do anterior através de uma relação de: a) consequência
b) modo
c) explicação
d) concessão
e) ratificação
20. Assinale o enunciado que NÃO constitui um argumento utilizado pelo autor em defesa da revalorização da poesia: a) “(...) ela é uma arte que contribui para o nosso conhecimento de nós mesmos (...)” b) “Não é, contudo, inacessível.” c) “Há experiências subjetivas (...) que só a poesia pode expressar.” d) “Posso perceber o que nos assemelha e o que nos distingue (...)” e) “Seria maravilhoso se nós conseguíssemos fazer algo pela revalorização da poesia.”
21. A oração “ao agirem em grupo” traduz a noção de: a) tempo
b) modo
A linguagem produzindo a ilusão do poder
c) condição
d) causa
e) explicação
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22. Assinale a alternativa em que a expressão grifada NÃO funciona como sujeito: a) “... porém, ainda são fortes os sinais de má vontade em relação à ‘aventura estética’ dos poetas.” b) “Argumento que (...) existem poemas escritos em versos livres.” c) “Uma moça alega que lhe parece estranho o ‘artificialismo’ da poesia.” d) “Para desempenhar esse papel, a poesia precisa se empenhar (...)”
23 (UFS)
O todo sem a parte não é todo, A parte sem o todo não é parte, Mas se a parte o faz todo, sendo parte, Não se diga, que é parte, sendo todo. Em todo o Sacramento está Deus todo E todo assiste inteiro em qualquer parte, E feito em partes todo em toda a parte, Em qualquer parte sempre fica o todo. O braço de Jesus não seja parte, Pois que feito Jesus em partes todo, Assiste cada parte em sua parte. Não se sabendo parte deste todo, Um braço, que lhe acharam, sendo parte, Nos disse as partes todas deste todo.
Cultismo: tendência típica da literatura barroca para usar e abusar de metáforas requintadas, de hipérboles e de jogos de palavras. Conceptismo: tendência característica da literatura barroca para os jogos de conceitos e de raciocínios intrincados, prova de engenho sutil. Cultismo e conceptismo estão intimamente ligados no gosto pela sofisticação e pelo desejo de surpreender o leitor. Em diversos momentos são impossíveis de serem separados. A maioria dos estudiosos em Educação e Literatura acredita ser desnecessário submeter o aluno ao sofrimento inútil de saber distinguir um do outro. Pelo visto, não é a opinião da Universidade Federal de Sergipe. Lamentavelmente!
Gregório de Matos.
Com base no poema, assinale como VERDADEIRAS, as frases que fazem uma afirmação correta e como FALSAS aquelas em que isso não ocorre.
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) O poema é exemplo de conceptismo, pois usa de argumentação para levar à conclusão visada, tal como faz o Padre Antônio Vieira em seus sermões.
(
) Os versos se distribuem de forma equilibrada entre decassílabos e dodecassílabos.
(
) Quanto à sua distribuição, as rimas são alternadas em todo o soneto.
(
) Toda a construção do soneto baseia-se na antítese estabelecida entre as palavras-chave.
(
) A preocupação com a lógica e a atitude racional do homem perante a realidade permitem afirmar que esse soneto antecipa aspectos da estética seguinte, o Arcadismo.
A dissertação no vestibular O que a banca que vai corrigir uma redação no vestibular espera do candidato? Responder a essa pergunta não é tão simples como parece, pois cada vestibular apresenta determinadas características regionais que, em um país com as dimensões do Brasil, nem sempre são fáceis de elencar. No entanto, a redação do Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM) tornou-se um modelo respeitado por quase a totalidade dos vestibulares brasileiros.
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Capítulo 5
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
e) “(...) como são graves as perdas decorrentes da má vontade contra a linguagem poética.”
Por exemplo, veja o que a banca elaboradora da Redação do Vestibular de Verão de 2004 da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul afirmou ao divulgar o “gabarito” da redação: “A Prova de Redação do Vestibular pretende avaliar a competência textual do candidato, ou seja, sua capacidade de produção/recepção de textos, sobretudo, os do tipo dissertativo-argumentativo. Nesse caso, parte-se da problematização de um tema da realidade circundante para a busca de soluções, o que demanda reflexão e capacidade de análise. O texto produzido, de acordo com os critérios do ENEM, deve ser coeso, coerente e bem fundamentado, utilizando adequadamente a norma culta da língua escrita e apontando soluções exequíveis para o problema levantado, sem desrespeitar os direitos humanos.” Disponível em . Acessado em 18-10-2004.
Essa conceituada Universidade ainda afirma sobre os objetivos da prova de redação no vestibular:
“Desde o ano de 2000, a COPEVE/UFMS adota, como critérios de avaliação da Prova de Redação, as cinco competências da matriz do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM”. (LARA, Gláucia M. P.; DANIEL, M.ª Emília B. (Org.). As redações nota 10 do vestibular UFMS / 2004 – Verão. Campo Grande: UFMS) E quais são os critérios de correção da prova de redação do ENEM, que são valorizados também pela UFMS? Vejamos o que nos diz o manual do candidato desse vestibular.
“Objetivos – A proposta única de redação dissertativa/argumentativa será elaborada a partir de um tema de ordem social, científica, cultural ou política, para avaliar as seguintes competências, próprias do aluno na fase de desenvolvimento cognitivo correspondente ao término da escolaridade básica: a) demonstrar domínio da norma culta da língua escrita;
b) compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo; c) selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista; d) demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação; e) elaborar proposta de solução para o problema abordado, mostrando respeito aos valores humanos e considerando a diversidade sociocultural.” Disponivel em . Acessado em 19-10-2004.
Ou seja, confirma-se mais uma vez aquilo que a esta altura já sabemos: sair-se bem na prova de redação de um vestibular não é apenas escrever sem erros ortográficos. Há muito mais envolvido. O manual do candidato do vestibular da UFMS nos chama a atenção para cinco competências que o candidato deve demonstrar ao escrever a sua redação. Essas competências são, como vimos, tiradas da prova de redação do ENEM. Examinemos, a seguir, cada uma delas mais detalhadamente: a) Demonstrar domínio da norma culta da língua escrita: Nesta competência, espera-se que o candidato utilize o grau de formalidade, bem como a variedade linguística, adequados ao gênero textual que está produzindo. Também que se utilize apropriadamente da norma gramatical (concordância, regência e flexão) e das convenções da escrita (ortografia, acentuação, uso de maiúsculas e minúsculas). Em outras palavras, é nessa competência que vai ser avaliada a nossa capacidade de usar adequadamente as regras gramaticais. Evite clichês e expressões próprias da informalidade, tais como:
A linguagem produzindo a ilusão do poder
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“agradar a gregos e a troianos”; “arrebentar a boca do balão”;
•
“botar pra quebrar”;
•
“chover no molhado”;
•
“chato pra cacete”;
•
“chocante”;
•
“curtir”;
•
“dar com os burros n’água”;
•
“deitar e rolar”;
•
“de queixo caído”;
•
“dizer cobras e lagartos”;
•
“estar com a bola toda”;
•
“estar de bem com a vida”;
•
“estar na crista da onda”;
•
“ficar literalmente arrasado”;
•
“imexível”;
•
“ir de vento em popa”;
•
“passar em brancas nuvens”;
•
“passar desta para melhor”;
•
“segurar com unhas e dentes”;
•
“ter um lugar ao sol”.
Talvez você consiga aumentar ainda mais essa lista! Se prestar atenção à fala das pessoas, notará tanto uma série de expressões comuns usadas indiscriminadamente, como muitos neologismos que apenas repetem ideias que podem ser expressas com mais clareza de outro modo. Por outro lado, entre duas palavras, escolha a mais simples. Alguns candidatos, impressionados por uma palavra que leram ou escutaram de última hora, escrevem coisas como “neófito” e “auscultar”, em vez de “novato” e “escutar”. Outros utilizam-se de uma série de palavras, quando poderiam usar apenas uma ou duas. Assim, por que dizer “no ano de 2006” se podemos dizer apenas “em 2006”? b) Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo: O que se deseja nesta competência é avaliar a capacidade do candidato em compreender o tema e em desenvolvê-lo, a partir de um projeto de texto. Espera-se que ele faça o tema progredir de forma encadeada e lógica, mostrando marcas pessoais de autoria no desenvolvimento temático e na organização textual. Isso significa conhecer bem as diversas partes que constituem o texto dissertativo-argumentativo que nós apresentamos ao final da unidade 1. Espera-se que o candidato consiga explanar as suas ideias relacionadas entre si, como parte de um todo que apresenta unidade de sentido. Também aqui é bom fugir dos lugares comuns e dos modismos. Alcançar bom êxito nessa empreitada exige ampliar os horizontes. As diferentes maneiras como satisfazemos as nossas necessidades de informação, arte e cultura irão produzir muito daquilo que somos e que, nessa hora, se revelará naquilo que escrevemos. c) Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista: Muito ligada à competência anterior, esta visa a verificar se o candidato está “antenado” com o mundo em que vive. Para defender o seu tema, o que ele escolhe como argumentos? Como os relaciona entre si? 262
Capítulo 5
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• •
Para que um texto resulte coerente, é imprescindível que as diversas partes que o compõem apresentem um elo conceitual. Uma ideia, por melhor que seja, não pode surgir do nada, dentro de um texto. Ela deve relacionar-se com as ideias anteriores. No texto dissertativo-argumentativo, as ideias são construídas por meio de palavras. Quando as palavras aparecem de repente, de forma gratuita dentro do texto, ele resulta incoerente. A coerência exige que haja um encadeamento entre as diversas frases que formam um texto. Não se pode afirmar, em um momento, que “numa sociedade capitalista, o desemprego contribui para a perda da identidade pessoal do indivíduo” e, logo depois, escrever que “por isso, a violência contra a mulher ainda é um problema sério no início do século XXI”. A coerência preocupa-se com aquilo que se deduz do texto como um todo. d) Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação: Basicamente, o que interessa nesta competência é saber construir a coesão textual, dentro do gênero dissertativo-argumentativo. Cada frase escrita em um texto, como vimos, deve estar amarrada à anterior. A maneira visível como amarramos essas diferentes frases é que produzirá a coesão. Além de um constante olhar para trás no texto, a coesão exige também um olhar para frente. Se eu disse algo como “Cláudia tinha apenas um único objetivo:”, o olhar do meu leitor se projetará para adiante: “alcançar a presidência da empresa”. Observe que, neste caso, são os dois pontos (:) entre “objetivo” e “alcançar” que permitiriam a construção coesa do enunciado. Uma dificuldade costumeiramente encontrada em redações em que falta esse constante olhar para trás e para frente no texto é o uso de repetições desnecessárias: Um problema para que o estudante se concentre devidamente no aprendizado ainda é o vestibular, pois ao se conscientizar de que terá de enfrentar o vestibular, o estudante dá mais atenção a dicas e fórmulas do que à própria construção do conhecimento. A frase acima ficaria melhor assim:
Um problema para que o estudante se concentre devidamente no aprendizado ainda é o vestibular, pois ao se conscientizar de que terá de enfrentá-lo, esse estudante dá mais atenção a dicas e fórmulas do que à própria construção do conhecimento. e) Elaborar proposta de solução para o problema abordado, mostrando respeito aos valores humanos e considerando a diversidade sociocultural: Nem todos os vestibulares solicitam ao aluno tal posicionamento crítico que desemboque na elaboração de uma proposta de solução para o problema abordado. Vale a pena ficar atento. De qualquer maneira, o que se espera do aluno hábil nesta competência é que ele elabore uma proposta bem relacionada ao tema, bem articulada à discussão desenvolvida no texto e que respeite os direitos humanos. Simplificar a solução do problema é sempre um risco que deve ser evitado. Nesse respeito, deve-se tomar muito cuidado ao sugerir a “conscientização”:
Os ricos deveriam se conscientizar do problema e ajudar aos pobres. As pessoas deveriam se conscientizar da importância do meio-ambiente e... Apenas se nos conscientizarmos da gravidade do problema... Sugestões impossíveis de solução, ainda que carregadas de um idealismo saudável, devem ser evitadas:
Os ricos deveriam distribuir o seu dinheiro entre os pobres... O governo deveria fornecer casas gratuitas para todos os pobres... Os ladrões deveriam parar de roubar... A linguagem produzindo a ilusão do poder
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Tais “soluções” refletem mal o senso comum e revelam falta de propriedade sobre a discussão travada. É como se o problema escolhido para ser tema da prova de redação não fosse importante para o candidato ou esse não tivesse nada a dizer de significativo sobre tal assunto.
Proposta de redação
Os textos do Painel de Leitura mostram que os caminhos percorridos por homens e mulheres vêm sofrendo profundas modificações, sobretudo nos últimos tempos. Se, por um lado, surgem novos conceitos, atitudes e comportamentos que determinam relações mais compatíveis com as necessidades e as expectativas da sociedade contemporânea, por outro, aparecem também situações não previstas, obstáculos e dificuldades que, caso não sejam superados ou pelo menos minimizados, podem abalar instituições importantes como a família e o casamento. Tomando por base essas questões, redija um texto dissertativo-argumentativo sobre o tema: O relacionamento homem/mulher no século XXI: vencendo desafios para buscar o equilíbrio. Ao desenvolver o tema, procure utilizar os conhecimentos adquiridos e as reflexões feitas ao longo de sua formação. Selecione, organize e relacione argumentos (dados, fatos, opiniões) para fundamentar seu ponto de vista, elaborando propostas para a solução do(s) problema(s) abordado(s). Suas propostas devem ser exequíveis e demonstrar respeito aos direitos humanos. Observações: lembre-se de que: • a situação de produção requer o uso da modalidade escrita culta da língua; • o texto não poderá ser escrito em forma de poema (versos), descrição ou narração, e deverá ter no mínimo 15 (quinze) linhas; • o material disposto no Painel de Leitura procura explicar a complexidade e a diversidade de perspectivas de abordagem do tema escolhido; portanto, não é preciso retomar todos os textos-base e/ou todos os aspectos mencionados, mas apenas aqueles (textos e/ou aspectos), que se mostrem relevantes para a sua discussão. LARA, Gláucia M. P.; DANIEL, Ma Emília B. (Org.). As redações nota 10 do vestibular UFMS / 2004: verão. Campo Grande: UFMS.
Observe atentamente o Painel de Leitura que era fornecido no verso da folha de prova:
dos a na cabeça ri c r e lh u m os que a aioria das ganhar men acometia a m u e o u q o g à re te p n a m elh esquisas Perder o e endência sem ue eles reclamam, em p p e d e d o ã ç rela Veja do q homens uma écadas atrás. d s a m u lg a assunto. mulheres, dos: itas sobre o fe s te n e desemprega c o re ã s st a e v u ti o ta s li o qua ganham men Quando eles s. o d a z mprego. inferiori nha do dese o rg e v • Sentem-se r o p s dos amigo o vago. de casa. • Isolam-se com o temp r e z as despesas fa e m u o q c o ir u m e ib b tr a rotina. con • Não sa speito de su r não poder re o a p l s a o m ig e m a -s • Sentem dinhas de lidar com pia mulher. m e b sa o ã •N pela controlados • Sentem-se
S
ERTIDO PAPÉIS INV
t. 2003.
l Homem, ou
Veja. Especia
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O tema a seguir foi pedido pelo vestibular da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul do Sul (UFMS).
fazer nta exigência/Nem Nunca vi fazer ta e é cê nã o sa be o qu Vo z/ fa e m cê vo o qu e e rapaz// que eu sou um pobr consciência/Nem vê qu o e você xo e riqueza/Tudo Você só pensa em lu udade da meu Deus, que sa i, /A er qu cê vo , vê s vezes, que era mulher// À é m si ilo qu !/A ia Amél nito não ter eu lado/E achava bo passava fome ao m do/Dizia: do me via contraria o que comer/E quan não tinha de fazer?// Amélia há se e qu , ho fil eu r de m ia é que era mulhe él m A e/ ad id va or a men verdade. se sica de Ataulfo Alve
Por mais que os co na TV in sistam em merciais de marga rina mo tempo do estereótip strar, já vai longe o da fam trabalhad or, ília feliz: o pa casa, cria mãe esmeradíssim a ao cuida i nça r da Com a cre s saltitantes e so rridentes. sc (...) mercado d ente participação da mulhe e trabalho r e n equilibrad a divisão cada vez m o a das tare fa ais vem send s domésti o in cas efetiva, m stado a ter uma part , o homem icipação m uit ais filhos enq as vezes chegando uanto a m ulher trab a cuidar dos alha fora. Época Ho m em. Edição
Especial,
set. 2003.
dade da Amélia, mú
Ai, que sau Mário Lago.
r no Brasil
mulhe O avanço da
ham. heres que trabal ul m de em ag • Porcent %. %. Em 2000, 41 Em 1970: 35,7 ch ef ia d as p o r s ia e fa m íl d em g ta en rc • P o he . mul res. . Em 2000: 25% Em 1970: 13% de. da ri la édio de esco • Tempo m 1 anos. 6, : 00 . Em 20 os an 3 2, : 70 Em 19 memorativa Veja. Edição co
de aniversário,
n. 26, ano 36.
séculos e séculos, Na sociedade, por os à atus foram associad dinheiro, poder e st dos da os s especialistas e figura masculina. O ico ôm e o poder econ indicam, porém, qu are a aumentar. Adapt das mulheres só tend igir emergente vai ex se a essa situação de to en co m po rt am um a m ud an ça de I, X X re s. “N o sé cu lo ho m en s e m ul he er a s vão ter de aprend homens e mulhere isso nova realidade, e conviver com essa des itu at s os sexos outra vai exigir de ambos te en m lo re s pr of un da qu e co nt ra ri am va z di o stintos primários”, enraizados e até in Joel Birman. psicanalista carioca m, out. 2003.
Veja. Especial Home
LIVRO IV – DO DIR EITO DE TÍTULO FAMÍLIA I – DO D IREITO PESSOA SUBTÍTU L LO I – D O CASAM CAPÍTU ENTO LO I – DA S DISPOS IÇÕES G Art. 1511 ERAIS . O casam plena de e n to estabele vida, com ce co base na ig deveres d ualdade d munhão os cônjug es. e direitos e Novo Cód
igo Civil,
A linguagem produzindo a ilusão do poder
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NÓS, MULHERES, SABEMOS FICAR SOZINHAS NUMA BOA, MESMO SEM SEXO.
É, MAS OS HOMENS NÃO.
on er t r a d i c i s. oderna o m t i a e t s c e n N o lpe o ” , o c rido duros go m ã ç a t r e nar se m sof e “lib ento te e funcio e uma d m a s m a ê t c s do rd ília pai, que o s de fam Milhõe ia quer de um asar tem sido c c n e ê s o t t s l i su u em a ex juntos s muitos. Mas re er e r e v i V mãe. o por a mulh e adotad gurança para s filhos? m u t s o c e o maior s e para isso em veu estabilidad res levado a um lo ro mãe? P a ruptura de va amiliar? f ss E tem e eito no arranjo p s e r maior
POIS É...
É...
AINDA BEM QUE OS HOMENS NÃO.
, n. 10.
0 la, v. 11
e A Sentin
Nova. out. 2003.
O sistema de correção consistiu em atribuir valores de 1 a 4 a cada uma das cinco competências, na seguinte associação: 1 – insuficiente;
2 – regular;
3 – bom;
4 – excelente.
A nota final obtida é dividida por 2 (dois) e assim obtem-se a nota final do candidato na redação. O candidato pode tirar zero na redação. Isso ocorre quando:
1) o texto apresenta um número insuficiente de linhas, ou seja, até 14 linhas escritas (a proposta solicitava 15 linhas, no mínimo); nesse caso, a nota é zero, porque o texto é considerado em branco; 2) o candidato, em vez de desenvolver a Proposta de Redação, apresenta desenhos, poemas, mensagens para a Banca Corretora e outros expedientes que demonstram a intenção de anular a redação; nesse caso, a nota é zero, porque o texto é anulado; 3) o candidato desenvolve outro tema e/ou elabora outra estrutura de texto; ou fere explicitamente os direitos humanos; a nota é zero, porque o texto é desconsiderado (...). LARA, Gláucia M. P.; DANIEL, Ma Emília B. (Org.). As redações nota 10 do vestibular UFMS / 2004: verão. Campo Grande: UFMS.
• Mas, o que se exige para conseguir nota 4 nas cinco competências? Procuremos a resposta a essa pergunta em uma redação nota 10, ou seja, que foi considerada excelente nas cinco competências exigidas do candidato:
Em busca do equilíbrio A corriqueira cena de família feliz utilizada por anúncios publicitários, exibe a mãe preparando o café, ou o jantar, para o marido e as crianças, esses, no caso, se for pela manhã, prontos para encarar o trabalho e a escola respectivamente. Tal episódio nos remete à “sociedade patriarcal”, o homem, no centro dos 266
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Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
TO RESPEI E R O E AM A MOSTR cia ESPOS O M O ependên l C a a de ind
acontecimentos e decisões, é quem trabalha, paga as contas, garante a sobrevivência da família; entretanto, com o passar dos séculos nos mostra um novo perfil de “felicidade familiar”. Argumentar sobre a relação homem/mulher, sobre a equivalência de ambos socialmente, requer mostrar as grande conquistas femininas em todos os setores: cultural, político e econômico. O sexo frágil, até então, aos poucos possui direito ao voto, possibilidades de fazer parte do corpo político, de engrossar o número de operários nas fábricas. O tempo médio de escolaridade da mulher, no Brasil, em 1970, era de 2,3 anos, já em 2000, 6,1 anos, um aumento muito significativo no quadro educacional; no setor econômico, em 1970, apenas 35,7 trabalhavam, enquanto em 2000, 41%. Participando ativamente dos ganhos familiares, a esposa-mãe-trabalhadora amedronta a figura masculina; em casa, divide os custos, opina, decide; socialmente, disputa cargos antes destinados apenas aos homens; integram a polícia, participam da construção civil, etc. Quanto aos direitos e deveres de homens e mulheres, enquanto cidadãos, o século XXI nos mostra uma sociedade mais homogênea; vale ressaltar que todo processo envolve estágios; a expressividade feminina causa um certo desconforto masculino; seja pelo fato da esposa ganhar mais, seja por estar desempregado, podendo ocasionar certa rivalidade. Cabe aos homens e às mulheres aprenderem a conviver com essa nova realidade. Participar ativamente da vida política-econômica-social, não interfere na vida pessoal, desde que haja equilíbrio. Homens e Mulheres, antes da diferença sexual são indivíduos, cidadãos que devem ser respeitados como tal – que eliminem as diferenças, que o respeito seja recíproco – atingindo, portanto o equilíbrio. Aline Abdala Frangie.
A redação da Aline obteve valor 4 em todas as competências. Sobre ela, a banca teceu algumas considerações que nos auxiliam a entender o que se espera de uma redação nota 10:
O texto é bem estruturado, encaixando-se no esquema introdução, desenvolvimento e conclusão. Na introdução, a autora faz um comentário sobre a família feliz apresentada nos anúncios publicitários, contrastando-a com a família da sociedade patriarcal de séculos anteriores. Na sequência, desenvolve o tema proposto, argumentando sobre a equivalência homem/mulher em vários setores, inclusive utilizando, com elegância, alguns conectores (até então, aos poucos, enquanto). Demonstra bom domínio da norma culta da língua escrita, com poucos desvios, justificados pela tensão própria de uma situação de vexame. Fica evidente, na proposta de intervenção, que homens e mulheres devem eliminar as diferenças, ter respeito recíproco, atingindo assim o equilíbrio. LARA, Gláucia M. P.; DANIEL, Ma Emília B. (Org.). As redações nota 10 do vestibular UFMS / 2004: verão. Campo Grande: UFMS.
Como vê, não se espera a perfeição, o impossível. Assim, com empenho e seguindo de perto as orientações dadas de como produzir textos eficientes, certamente alcançará resultados satisfatórios no vestibular. 1. E você, concorda que a redação da Aline tenha recebido nota 10? Por quê?
2. A seguir, uma outra redação do vestibular da UFMS. Leia-a com atenção e depois atenda ao que se pede.
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A quebra de paradigmas “Foi-se o tempo em que o casamento era visto como uma obrigação ou como meio de se adquirir estabilidade financeira. O paradigma de uma família, na qual o pai trabalha e a mãe se ocupa apenas dos afazeres domésticos e dos filhos foi quebrado. Com a inserção da mulher no mercado de trabalho, novos conceitos comportamentais foram se infiltrando na sociedade contemporânea. Os relacionamentos entre homens e mulheres tomaram novos rumos, nos quais as aspirações pessoais se sobrepõem aos velhos estereótipos das funções de cada um dentro da família. É errado afirmar que só agora as mulheres despertaram para lutarem por seus direitos, pois desde a antiguidade e passando por todos os períodos históricos, irrefutavelmente sempre existiram mulheres engajadas, lutando por preceitos como liberdade e igualdade. Porém, a sociedade patriarcal, machista, sempre abafou o movimento feminista, sendo o preconceito presente em todos os setores da sociedade. O próprio filósofo grego Aristóteles, criador de um complexo sistema de lógica, inferiorizava as mulheres, considerando-as meras procriadoras. O que se percebe atualmente é uma abertura da mentalidade da sociedade em geral, tendo como consequência, uma maior aceitação da expansão do universo feminino. A lógica capitalista necessitou do chamado “sexo frágil” no mercado de trabalho, visando a salários mais baixos para a obtenção de maiores lucros. Agora, cabe às mulheres continuar lutando pela igualdade de salários. A mulher, inserida no mercado de trabalho, conquistou a independência financeira. Consequentemente, a dependência em relação ao homem foi quebrada. Esse fato é confirmado com o aumento do número de divórcios e a queda da taxa de natalidade, ficando claro a liberdade sentimental e de escolha adquirida pelas mulheres. O homem teve que abrir mão da exclusividade e dividir seu papel no mercado com a parcela feminina. Muitos ainda se opõem, prevalecendo o velho paradigma patriarcal; porém um grande segmento aparenta maior aceitação e respeito, pois enxergam a necessidade de igualdade, inserindo-se no pensamento pós-moderno. A preservação de instituições como a família e o casamento é ferrenhamente preconizada por algumas parcelas da sociedade, como a Igreja. Desde que, sejam mantidos os preceitos de igualdade entre os sexos, e as responsabilidades com a educação dos filhos e financeiras sejam divididas entre o casal, estas instituições podem continuar existindo em perfeita harmonia, cabendo aos seus integrantes respeitar uns aos outros.” Melina Mie Moreira Sugai. LARA, Gláucia M. P.; DANIEL, Ma Emília B. (Org.). As redações nota 10 do vestibular UFMS / 2004: verão. Campo Grande: UFMS.
Sobre o texto fazem-se algumas afirmações a seguir. Assinale V, se as considerar verdadeiras ou F se as considerar falsas: 1. (
) O texto de Melina é bom e objetivo, com evolução clara e coerente ao tratar de questões reais do relacionamento homem/mulher.
2. (
) Há um desvio da norma culta, no segundo parágrafo, em “(...) as mulheres despertaram para lutarem”, o certo seria “(...) as mulheres despertaram para lutar”.
3. (
) O vocabulário elevado, constatado pelo uso de termos como “paradigma” e “inserção” não é empregado adequadamente, por isso não contribui para o sucesso do texto.
4. (
) Citar Aristóteles não foi uma estratégia apropriada, visto que esse autor não aparecia no Painel de Leitura.
5. (
) Uma das mais importantes qualidades do texto é que a sua elaboração partiu de um repertório de ideias próprias da autora, a qual interferiu nas informações obtidas via proposta de redação.
6. (
) O texto apresenta poucos desvios da norma culta.
268
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Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
3. Agora é a sua vez de redigir um texto nota 10, servindo-se do tema proposto na prova de redação do vestibular da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Depois de pronto, troque-o com um colega e use o texto dele para preencher a ficha de leitura a seguir. Complete-a com as informações do colega e do professor sobre seu texto.
Avaliação (usar valores de 1 a 4) Competências Do texto recebido
1
Demonstrar domínio da norma culta da língua escrita:
2
Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo:
3
Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista:
4
Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação:
5
Elaborar proposta de solução para o problema abordado, mostrando respeito aos valores humanos e considerando a diversidade sociocultural:
A redação terá nota zero se o texto for em branco considerado:
De meu texto pelo meu colega
nulo
De meu texto pelo professor
desconsiderado
4. Pesquisem na Internet e nas universidades, centros universitários e faculdades da região, temas de redação. Em classe, escolham um tema que considerem apropriado. Elaborem um quadro de competências que atenda ao que a classe espera de uma redação nota 10. Uma boa fonte para fazer a pesquisa é consultar os sites das principais instituições de ensino superior da região ou os manuais do candidato ao vestibular que elas fornecem. Discutam o que as instituições pesquisadas consideram importante para o vestibular, e comparem com o pedido pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e pelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Há diferenças significativas? Quais? Depois de pronto o quadro de competências, escreva a sua redação. Ao final, repita o procedimento solicitado no exercício anterior.
A linguagem produzindo a ilusão do poder
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Capítulo 6 PALAVRAS PARA USAR “ASSIM NA TERRA COMO NOS CÉUS” Conteúdos – Recursos semióticos de construção da superioridade: o plano divino na arte e na literatura. José de Anchieta e a literatura jesuítica. O conceito de mito. A formação do diminutivo. Contexto e construção do sentido. O uso da segunda pessoa do plural. O início da literatura no Brasil: O índio e a carta de Pero Vaz de Caminha. A literatura indígena brasileira. A circulação social de conceitos de sagrado. A coordenação, a subordinação e a construção do texto. Europa do século XX. Reflexões – A apropriação social do sagrado. A colonização brasileira: pluralidade de perspectivas. Religiosidade e cultura indígenas. Gêneros textuais – O poema religioso. O depoimento. O texto mítico. Capítulo 7 A LINGUAGEM CONSTRUINDO A RELIGIOSIDADE POPULAR Conteúdos – Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. A construção da frase por tópico. A construção do ensaio: introdução – desenvolvimento – conclusão. Tema e recorte do tema. A religiosidade romântica. A criatividade no ensaio e no texto literário. Formação de palavras (derivação) na língua portuguesa. Ampliações sintáticas do nome. O neologismo em Guimarães Rosa. A alegoria: parábolas, fábulas e apólogos. O adjunto adverbial. Pós-impresionismo. Pré-modernismo. Reflexões – A religiosidade popular. A reflexão científica sobre o senso comum. O discurso religioso no texto literário. Gêneros textuais – O ensaio. A parábola. Fim da unidade 3 FÉ, PALAVRAS E RELIGIOSIDADE CRISTÃ Questões de exames de acesso ao ensino superior: questões de diferentes vestibulares do Brasil para recapitular conteúdos e treinar habilidades.
Seja feita a Vossa vontade, assim na terra como nos céus... (Oração do Pai Nosso – Mateus, 6:10)
Observe com muita atenção esta imagem religiosa: Sobre esse quadro afirmou São João Bosco, sacerdote e educador, que o tinha encomendado e que tinha intenções bem claras: “Aquilo que tem maior valor no quadro é a ideia religiosa, que gera uma devota impressão em quem o olha.” Disponível em . Acessado em 2-12-2004.
Como essa ideia religiosa é construída? Como gerar em alguém uma impressão devota? Para gerar uma impressão de devoção no interlocutor, centrada na Virgem Maria, como “Mãe da Igreja e Auxiliadora dos cristãos”, o pintor recorreu a uma série de estratégias. Destaquemos as que se referem ao jogo espacial presente no quadro:
Mãe da Igreja e Auxiliadora dos Cristãos. Quadro do pintor italiano Tommaso Lorenzone (1824-1902), no altar-mor da Basílica de Nossa Senhora Auxiliadora, construída por Dom Bosco, em Turim, Itália.
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Maria é representada no alto, no centro da figura e é diretamente iluminada por Deus Pai, simbolizado pela figura do triângulo com um olho no centro, do qual emana luz divina. Sobre ela pousa a pomba, símbolo do Espírito Santo. A “Rainha do Céu” segura com a mão direita o cetro, símbolo de poder, e com a esquerda segura, ao colo, o Menino Jesus. Na cabeça, uma coroa de doze estrelas simboliza que Maria é coroada por Deus como Rainha ao trazer ao mundo Aquele que Deus tinha prometido às doze tribos de Israel, além disso, significa também que ela é a Rainha dos doze apóstolos. Os anjos, localizados abaixo da representação de Deus, Capítulo 6
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
PALAVRAS PARA USAR “ASSIM NA TERRA COMO NOS CÉUS”
envolvem-na pelo lado superior, formando um círculo que limita a luz divina, e olham-na atentamente. Os apóstolos e evangelistas localizam-se no plano inferior, ao redor de Maria. Eles estão como que subindo uma escada celestial que conduz à Virgem e na qual ela ocupa o degrau mais alto. O olho divino, dentro do triângulo, a pomba, Maria, o Menino Jesus e o apóstolo S.Paulo (aquele que tem a espada na mão) dirigem o seu olhar diretamente para aquele que contempla o quadro. Estão todos desejosos do contato visual com o fiel. Com que objetivo? Para que siga o exemplo dos demais: olhar com devoção para a “Mãe Auxiliadora”. Por último, as nuvens celestiais permitem que, já no plano terrestre, vislumbremos, ao longe, a Basílica de Maria Auxiliadora e, no horizonte, a colina de Superga, em Turim, na Itália. O desafio que o pintor Tommaso Lorenzone tinha diante de si ao representar Maria como criatura excelsa, elevada por Deus a uma dignidade muito especial, permitindo que o interlocutor construa uma “devota impressão” foi resolvido, em parte, por recorrer a um jogo de localizações espaciais. Maria aparece radiante no plano superior e central do quadro como “Rainha do Céu”. Embora numa posição elevada, ela não surge distante dos humanos. Ao contrário, olha de forma atenta e carinhosa a todos aqueles que a ela se dirigem. Recursos semelhantes aos usados na linguagem propriamente religiosa para destacar os feitos e as virtudes dos santos são usados em outras narrativas para realçar os feitos e as virtudes dos heróis históricos ou imaginários. Compare as estratégias usadas pelo pintor para gerar “a devota impressão” em quem olha o quadro com aquelas presentes nos quadrinhos a seguir, para construir o mito fictício do Super-Homem. Note que não estamos afirmando que Maria, como personagem histórico e religioso, seja igual ao Super-Homem, personagem de ficção, mas que as estratégias empregadas para apresentá-los como superiores aos humanos são coincidentes em alguns pontos. “ANTES DISSO, EU NÃO ACREDITO QUE, NINGUÉM MORREU”
ACABOU. COF, COF... ESSA FOI POR POUCO.
UNF... FOI MESMO, MIKE FICA TRANQUILO. A GENTE TE CONSERTA LOGO!
ESTIVE... E USEI A SUPERVELOCIDADE.
ME DEIXA PRA TRÁS, AMOR.
VOCÊ DEVIA ESTAR EM OUTROS LUGARES...
SEJAM ESPERTOS ENTREGUEM-SE.
dEDUZI QUE VOCÊ ERA A CULPADA QUANDO EU SOUBE DA FUGA DE GUNN.
NÃO FOI DIFÍCIL SEGUIR OS DOIS.
CALABOCA!
A GENTE CHAMA ATENÇÃO, NÉ?
ME DEIXA LEVAR O MIKE PRO DOUTOR.
FICAMOS JUNTOS ATÉ O FIM.
SAI DA FRENTE, ALIEN!
GUNN! NÃO! NADA VAI NOS DETER...?
O DOUTOR ESTÁ PERTO DAQUI!
CALMA! NÃO FAZ ISSO MIKE!
Ughhhh
Liga da justiça da América: os melhores do mundo, nº 26. São Paulo: Abril.
Palavras para usar “assim na terra como nos céus”
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1. Que semelhanças você encontra entre a forma como se representa a Virgem Maria e o Super-Homem?
Para caracterizar a superioridade em relação aos demais humanos, muitas vezes associa-se um objeto mágico ou um superpoder ao ser que se deseja destacar. Pode ser uma lâmpada mágica, como em Aladim ou um tapete voador ou ainda uma visão raio-X. O instrumento mágico permite a construção do herói e que ele se destaque sobre os demais. Normalmente, esse instrumento de poder representa também uma responsabilidade para o herói, que tem de fazer por merecê-lo. O poder sobre-humano do Super-Homem explica acontecimentos que estão além da lógica humana. 3. A que poder específico se refere o trecho que estamos examinando e como o Super-Homem age a fim de ser digno de tal poder?
A localização espacial como maneira de enaltecimento é também visível em outros sistemas de comunicação, como no mundo da moda. A esse respeito, veja as palavras do produtor de moda Fernando Costa:
“A modelo de passarela, divinizada pela peça que desfila, deve dar a impressão de estar acima de todos os demais. Por isso é que elas, as modelos, precisam ser altas: no mínimo, 1,80m. Além disso, a passarela deve estar acima do nível do público, para que o olhar seja dirigido para o alto. O alto representa um lugar melhor, um ideal.” Fernando Costa, produtor de moda. (Fala concedida especialmente para esta obra).
Claro que sempre encontraremos, no desejo de ser original e vanguardista, exceções, novos caminhos para enxergar a realidade. No entanto, há uma tendência social de considerar o que está acima de nós, no alto, como superior e aquilo que está num plano abaixo, como inferior. Sobre o cinema, observa Reynaldo Luti: 274
Capítulo 6
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2. Que diferenças encontra entre a função social do quadro de Lorenzone e a dos quadrinhos?
“No cinema, o uso da câmera faz milagres. Por exemplo, para destacar a importância de uma personagem, ela será filmada de baixo para cima, criando uma visão bem maior do que ela realmente é. No entanto, caso se queira ressaltar a fragilidade ou a insignificância da personagem, ela será filmada de cima.” Reynaldo Luti, cineasta (Fala concedida especialmente para esta obra).
4. Em jornais, revistas e outros meios de comunicação, encontre exemplos em que a localização espacial funcione como estratégia para a construção de um plano superior, divino ou mítico. Discuta em classe as semelhanças e diferenças encontradas e elaborem um texto coletivo com as conclusões a que chegaram. Escreva esse texto em seu caderno. No entanto, como fazer isso apenas com palavras? Como a Literatura tem conseguido construir planos divinos ou míticos?
JOSÉ DE ANCHIETA E A LITERATURA JESUÍTICA Quando os portugueses chegaram ao que hoje é o Brasil, trouxeram consigo a fé católica. Foram principalmente os jesuítas aqueles que iniciaram a catequese dos nativos, incutindo-lhes uma educação europeia. As primeiras produções literárias escritas produzidas nestas terras tinham intenções pedagógicas e moralizantes. O caráter artístico ficava em segundo plano. Um nome, no entanto, merece ser lembrado: o do padre jesuíta José de Anchieta. Pense nisso ao ler o poema a seguir.
Santa Inês Cordeirinha linda, como folga o povo porque vossa vinda lhe dá lume novo! Cordeirinha santa, De Iesu querida, Vossa santa vida O Diabo espanta. Por isso vos canta, com prazer, o povo, porque vossa vinda lhe dá lume novo. Nossa culpa escura fugirá depressa, Pois vossa cabeça vem com luz tão pura. Vossa formosura Honra é do povo, Porque vossa vinda Lhe dá lume novo. Virginal cabeça pola fé cortada, com vossa chegada, já ninguém pereça. Vinde mui depressa ajudar o povo, pois, com vossa vinda, lhe dais lume novo. Palavras para usar “assim na terra como nos céus”
ZURBARÁN, Francisco. Santa Inês. (1635-1642). São Paulo: MASP.
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Não é de Alentejo Este vosso trigo, Mas Iesu amigo É vosso desejo. Morro porque vejo Que este nosso povo Não anda faminto Deste trigo novo. Santa Padeirinha, Morta com cutelo, Sem nenhum farelo É vossa farinha. Ela é mezinha Com que sara o povo Que com vossa vinda Terá trigo novo. O pão, que amassastes Dentro em vosso peito, É o amor perfeito Com que Deus amastes. Deste vos fartastes, Deste dais ao povo, Por que deixe o velho Pelo trigo novo. Não se vende em praça Este pão da vida, Porque é comida Que se dá de graça. Oh preciosa massa! Oh que pão tão novo, Que com vossa vinda Quer Deus dar ao povo! Oh que doce bolo Que se chama graça! Quem sem ela passa É mui grande tolo, Homem sem miolo Qualquer deste povo Que não é faminto Deste pão tão novo.
em Roma, do ano de 290, lta vo r o p eu força e a ártir: nasc tabelecida. A es Santa Inês M em b e re nob ais conhecidas família cristã, a das santas m filha de uma um a el d am er ina-se do latim m Inês fiz ra “Inês” orig av pureza da jove al p A s. o a vez, originatires cristã termo, por su e ss dentre os már E ”. ro ei O nome significa “cord fica “pureza”. ni g si l ua q “agnus”, que a 13 ga, tinha somente ra palavra gre sa jovem que se de uma out es fé a a o d ar rv ria p prese em apro rmentos para to is Inês parece b , ué cr ão s iç ai ad m a tr sofreu os m De acordo co a. d anos quando ita . ap to ec ris d mC sendo afinal -se casada co ia nt se o e a castidade, çã ra . co homenageá-la , mas em seu e janeiro para d morreu virgem 21 ia d o a lica guard A Igreja Cató Iesu: Jesus.
ANCHIETA, José de. ln: Sérgio Buarque de Holanda. Antologia dos poetas brasileiros da fase colonial. São Paulo: Perspectiva, 1979.
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Capítulo 6
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Vós sois cordeirinha De Iesu Fermoso; Mas o vosso Esposo Já vos fez Rainha. Também padeirinha Sois do vosso povo, Pois com vossa vinda, Lhe dais trigo novo.
Pe. JOSÉ DE ANCHIETA (1534-1597) – O “grande piahy (= ’pajé branco’)”, como era chamado pelos índios, nasceu em La Laguna de Tenerife, arquipélago das Canárias e faleceu em Reritiba (atual Anchieta) no que hoje é o Estado do Espírito Santo. Realizou os seus estudos na Universidade de Coimbra, ingressando na Companhia de Jesus com 17 anos. Veio para o Brasil por volta de 1553, ainda noviço, acompanhando a missão jesuítica com o segundo governador geral, Duarte da Costa. Anchieta dedicou-se, então, à alfabetização dos filhos dos colonos e dos índios. Fundou, com o Pe. Manuel da Nóbrega, um colégio no planalto de Piratininga, embrião da cidade de São Paulo. Escreveu a primeira gramática do tupi-guarani, usada como cartilha para ensino da língua aos nativos: Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil (1595). Anchieta escreveu poesias, peças teatrais, cartas e sermões. É muito perceptível a influência medieval portuguesa e espanhola na obra de Anchieta, principalmente na poesia, ao escolher o uso de redondilhas (as redondilhas menor e maior eram, também, as formas mais populares de métrica) ou no teatro, seguindo o modelo do teatro de Gil Vicente e misturando a moral religiosa católica à cultura indígena, sempre preocupado em caracterizar os extremos, como a Virtude e o Vício, o Anjo e o Diabo, o Bem e o Mal. Homem de profundo zelo religioso, apesar das difíceis condições em que viveu, tinha ao mesmo tempo grande cultura erudita, como notamos em suas obras, escritas em português, castelhano, tupi e latim.
O objetivo do poema composto por Anchieta é celebrar a chegada ao Brasil de uma imagem, feita em Portugal, de Santa Inês. Os habitantes do Brasil daquela época eram, na sua maioria, além dos indígenas, prostitutas, soldados, marinheiros, comerciantes e colonos. O clima geral era de promiscuidade. Muitos dos recém-chegados europeus envolviam-se com prostituição ou estupravam índias, em alguns casos, constituindo novas famílias. A ideia da Igreja é que o exemplo de Santa Inês pudesse melhorar a situação vigente. 5. Transcreva versos em que Anchieta deixa clara a sua esperança de uma melhora na situação moral do povo após a chegada da imagem.
6. De que forma o poema opõe a superioridade de Inês à conduta geral do povo?
Ao repetir insistentemente a respeito da necessidade que o povo tem da presença da imagem de Santa Inês, o poeta dá um destaque especial à figura da mártir. Como se ela ocupasse um plano mais elevado que os outros humanos, da mesma forma que Tommaso Lorenzone fez com o quadro de Nossa Senhora Auxiliadora. Palavras para usar “assim na terra como nos céus”
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Além disso, enquanto ela, a virgem mártir, é portadora de luz, de “lume novo”, o povo, ao contrário é representado como tendo uma “culpa escura”. Essa antítese também reforça a superioridade da Santa em relação ao povo.
Em dada altura do poema, o eu-lírico afirma: Ela é mezinha Com que sara o povo Será que Anchieta compara Santa Inês a uma “mesa pequena”, será que no português quinhentista, mesa se escrevia com “z”? Nesse caso, como uma mesa pequena poderia “sarar o povo”?
O “s” e a formação de diminutivos Quando a forma primitiva termina com uma sílaba que contém “s”, como “mesa”, essa letra permanece quando se faz a flexão do diminutivo. Assim, o diminutivo de “mesa” é “mesinha”, como o de “casa” é “casinha” e assim por diante. O mesmo ocorre também quando a forma primitiva singular termina em “s”: o diminutivo de “francês” é “francesinho” e o de “lápis” é “lapisinho”. Uma última palavra de cautela: o diminutivo de “país” é “paisinho”, já o de “pai” é “paizinho”. Nesse caso, observe também que “paisinho” apresenta um hiato, sendo, portanto, polissílaba (pai-si-nho); já “paizinho”, tem um ditongo, sendo trissílaba (pai-zi-nho).
8. Procure no dicionário o sentido de “mezinha” que melhor se adapta ao texto de Anchieta.
O contexto da palavra é o melhor caminho para determinar o seu sentido. Observe que ‘mezinha’ pertence, no poema de Anchieta, ao mesmo campo semântico do verbo ‘sarar’: “Ela é mezinha Com que sara o povo” Estar atento ao contexto facilita a compreensão do sentido da palavra que o leitor des conhece. 9. Keiko é conhecida por fazer um uso exagerado dos diminutivos. Agora que ganhou, de sua tia que mora no Japão, uma viagem para esse país, então... nem se fala! No e-mail que ela enviou para a sua amiga Léia isso é bem visível. Corrija, de acordo com a norma padrão da língua portuguesa, o uso que Keiko fez do diminutivo, indicando as soluções. 278
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7. Leia a biografia de Santa Inês Mártir. Que aspectos da vida da mártir e de seu nome estão presentes no poema?
>Leiazinha:
>Tudo bem? Eu estou muito felisinha com a viagem para o Japão no final do ano. Esse paisinho deve ser muito legal. Quem sabe eu não descolo um japonezinho e fico por lá mesmo. Xi! Já tou falando bobagens de novo! É por isso que a minha mãesinha diz que meu paisinho reclama tanto de mim. Mas, você, querida Leiazinha, não seja mazinha só porque eu estou pondo a azinha de fora... Depois eu ligo para você e conto como foi com meu pai. Ele não queria que eu viajasse sozinha... Foi a maior bagunçazinha. Você sabe como o meu paisinho é preocupado. >Beijinhos >Keiko
10. Sobre o poema Santa Inês, o professor Alfredo Bosi afirma:
“Como ocorre na melhor tradição popular anterior à Renascença, são os símiles mais correntes, tomados às necessidades materiais, como a nutrição, o calor e o medicamento, que o poeta prefere para concretizar a emoção religiosa”. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1999.
A símile ou comparação, como já pudemos examinar anteriormente, é a figura de linguagem em que se aproximam dois elementos de universos diferentes realçando um traço comum a ambos. Encontre passagens do poema que sirvam de exemplo de: a) Símile com nutrição
b) Símile com calor
c) Símile com medicamento
Palavras para usar “assim na terra como nos céus”
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11. Uma das mais importantes preocupações da obra de Anchieta é a função didática daquilo que escreve. Do ponto de vista educacional, que função cumprem tais comparações para os interlocutores?
Dessa forma, se Anchieta torna a figura de Santa Inês uma realidade bem diferente daquela existente na sua localidade, ele também a apresenta como uma necessidade parecida às outras necessidades dos interlocutores a que se dirige. A ideia central é: necessitamos do sagrado como necessitamos da comida, do calor e dos medicamentos. O sagrado é assim visto como uma necessidade básica de todos os humanos. Esse sagrado, no entanto, não pertence ao plano humano, não se deixou corromper pelos erros e, por isso mesmo, pode servir de modelo para a correção daqueles que erram.
COM QUE DEUS AMASTES OU COM QUE DEUS AMASTE? O uso da segunda pessoa do singular não é muito comum no Brasil. Mesmo em lugares onde ela é empregada, normalmente, a forma popular cria construções híbridas, entre o “tu” e o “você”, do tipo: “tu vai” ou “tu veio”. Mais raro ainda é o uso da segunda pessoa do plural. Quando foi a última vez que você usou a forma “vós”? Consegue lembrar? Assim, não é incomum que ao ter de usar a segunda pessoa dentro dos padrões da norma culta, muitos brasileiros titubeiem. O caso mais complexo é o uso da segunda pessoa no pretérito perfeito do indicativo:
Na localidade em que vive, qual a forma mais comum de se dirigir ao interlocutor: tu ou você? Construções híbridas como “tu ama” são comuns? Sabe explicar por que ocorrem?
Tu amastes a Deus? Ou tu amaste a Deus?
São oito os tempos simples em que a segunda do singular conjuga o verbo terminando-o em “s”: cinco dos seis tempos simples do modo indicativo e três do modo subjuntivo (“tu amas, amavas, amaras, amarás, amarias, que tu ames, se tu amasses, se tu amares”). Para o falante de cultura mediana da língua portuguesa, a segunda pessoa do singular é uma flexão que parece ter sempre um “s” final. Mas não é esse o caso no pretérito perfeito. Na língua culta, “amastes” é a forma da segunda pessoa do plural (“vós”). A segunda pessoa do singular é amaste (“tu amaste”).
Em seu poema a Santa Inês, Anchieta escreve: “O pão, que amassastes Dentro em vosso peito, É o amor perfeito Com que Deus amastes. Deste vos fartastes, Deste dais ao povo, Por que deixe o velho Pelo trigo novo.” 280
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12. Fazendo a escansão do poema de Anchieta, que tipo de verso encontra? Como tal tipo de verso se relaciona à finalidade didática do poema? (Observe as informações contidas na biografia de Anchieta).
13. Como explicar as formas no pretérito perfeito terminadas em “s”, como “amassastes” e “amastes”?
14. Em 1972, Chico Buarque escreveu Atrás da porta. Parte da letra diz:
“Quando olhaste bem nos olhos meus E o teu olhar era de adeus Juro que não acreditei Eu te estranhei Me debrucei Sobre teu corpo e duvidei E me arrastei e te arranhei E me agarrei nos teus cabelos Nos teus pelos Teu pijama Nos teus pés Ao pé da cama” O Brasil estava sob poder militar e a censura vigente obrigou Chico Buarque a mudar o verso “nos teus pelos” por “no teu peito”. O motivo talvez fosse o de tentar diminuir o caráter erótico da música. Imaginemos que o autor fosse obrigado também a passar a segunda pessoa do singular (“tu”), para a do plural (“vós”). Como ficaria a letra? Leve em conta que fazer tais alterações significa mudar não apenas os tempos verbais, mas também os pronomes.
Cuidado: a maioria das versões do programa Word, no computador, assinala erros de sintaxe. Ao digitar “tu amastes a Deus” aparece uma indicação (normalmente, uma linha verde) que indica um erro. No entanto, muitas vezes, a leitura que o computador faz não leva em conta o todo do texto e está equivocada. O verso “Com que Deus amastes”, de Anchieta, também aparece indicado como erro, apesar de ser a forma usada poeticamente por Anchieta e estar dentro da norma culta. Apesar de tais acessórios no computador servirem de grande ajuda, a melhor solução ainda é conhecer as regras.
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16. Com certeza, você conhece algumas orações comuns ao universo católico. Recapitule como iniciam cada uma delas, como o Pai-nosso, a Ave-Maria, o Salve Rainha, etc. Examinando o poema de Anchieta e as orações católicas, de uma forma geral, o que podemos afirmar sobre o uso da segunda pessoa do plural (vós) e a formação do texto sagrado na língua portuguesa?
17. Complete o quadro a seguir. Recursos linguísticos empregados por Anchieta para tornar sagrada a figura de Santa Inês Superior aos outros humanos.
Uma necessidade do povo.
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Uso de símiles tomados às necessidades materiais;
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15. Em sua opinião, o uso do “vós” em vez do “tu”, em “Santa Inês”, torna o texto mais sério ou mais informal? Por quê?
REFLEXÕES SOBRE O INÍCIO DA LITERATURA NO BRASIL Observe a reprodução a seguir.
MEIRELLES, Victor. A primeira missa no Brasil. (1861). Rio de Janeiro: Museu Nacional de Belas Artes.
VICTOR MEIRELLES de Lima (1832-1903) – Nasceu na cidade de Desterro, atual Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina. No Rio de Janeiro, matriculou-se na Academia Imperial de Belas-Artes. Viajou para a Europa, onde continuou seu estudo de pintura. Bem ao gosto da época, pintou eventos marcantes da história oficial do Brasil, como a primeira missa. A primeira missa no Brasil, pintado em 1861, retrata a versão oficial do fato ocorrido em 26 de abril de 1500: a celebração da missa por Frei Henrique de Coimbra nas terras de Vera Cruz (atualmente, Brasil). Para compor o cenário, o pintor necessitou recorrer a um documento da época. Apoiou-se no primeiro registro europeu da existência da terra brasileira: a Carta do achamento do Brasil, de Pêro Vaz de Caminha ao rei de Portugal (1500). Observe:
“E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles (os índios) se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado: e então tornaram-se a assentar como nós... e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção. (...) E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã do que nos entenderem, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos; por onde parecer a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar; porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram.
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PÊRO VAZ DE CAMINHA (c. 1450-1500) – Pêro Vaz de Caminha nasceu no Porto, em data desconhecida. Desempenhou cargos que o tornaram um homem muito respeitado e culto. De sua obra, destaca-se, a preocupação em dar a conhecer ao rei D. Manuel, com pormenores, os detalhes de um contato com o povo de Vera Cruz, bem como com a sua cultura. Em sua carta são visíveis também a constante alusão às riquezas que aquelas terras produziam, bem como a necessidade de converter aqueles selvagens pacíficos ao catolicismo.
A pintura mostra também o olhar romântico de Meirelles, apresentando o improviso português para montar um altar e fazer uma cruz com as árvores derrubadas na costa logo após o “Achamento”. 18. Tanto a carta de Caminha como a pintura de Meirelles defendem a visão oficial do Descobrimento do Brasil. Comparando atentamente os dois textos, complete o quadro a seguir. Tópicos de análise
Carta do achamento do Brasil
Quais as características físicas, morais e inte lectuais do índio?
A religião justifica que os índios sejam dominados? Por quê?
Como os textos se apre sentam permeados dos discursos religioso e político?
A primeira missa no Brasil
Nus, encurvados ou nas árvores, como selvagens animalizados.
Sim, pois somente com a ordem do Rei para que clérigos batizem esses índios é que eles poderão alcançar a salvação.
No plano principal do quadro aparece a dimensão religiosa (a Cruz e Frei Henrique de Coimbra), mas logo abaixo e ao redor do altar, a esquadra. Nela se destaca a figura do poder, representada pelo capitão Pedro Álvares Cabral.
Que ideologia está pre sente nos textos?
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Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher, moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano para que se cobrisse; e o puseram em volta dela. Todavia, ao sentarse, não se lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior, com respeito ao pudor. Ora veja, Vossa Alteza, quem em tal inocência vive, se se converterá, ou não, se lhe ensinarem o que pertence à sua salvação.”
Agora, examinemos outra reprodução artística que retrata o mesmo evento – a primeira missa no Brasil. Verifique as semelhanças e diferenças entre as obras
PORTINARI, Cândido. A primeira missa no Brasil. (1948). Rio de Janeiro: Banco Boavista.
Cândido PORTINARI (1903-1962) – Nasceu em Brodowski, pequena cidade do Estado de São Paulo. Filho de imigrantes italianos de origem humilde, recebeu apenas a instrução primária. Aos quinze anos de idade foi para o Rio de Janeiro para estudar. Em 1928 conquistou o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro da Exposição Geral de Belas-Artes, de tradição acadêmica. Foi para Paris, onde permaneceu durante todo o ano de 1930. Longe do Brasil, Portinari decidiu, ao retornar em 1931, retratar o povo brasileiro nas suas telas. Aos poucos, superou sua formação acadêmica, fundindo os conhecimentos e técnicas da pintura a uma personalidade experimentalista e criativa. Seu talento foi reconhecido no Brasil e no exterior. 19. Compare os dois textos; a seguir, preencha o quadro comparativo. A primeira missa no Brasil Victor Meirelles
A primeira missa no Brasil Cândido Portinari
Índio
Branco
Ocupa o plano central do texto
Interesses econômicos
Representados por um cofre cheio de ouro próximo ao altar
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De 1500 a 1822, o Brasil foi uma colônia portuguesa. Durante esse tempo, desenvolveram-se neste território três momentos literários bem definidos: 1. Quinhentismo ou Período de Formação – (1500 a 1601). 2. Barroco ou Seiscentismo – (1601 a 1768). As datas são, principalmente, marcos teóricos. Na prática, durante o século XVI, com exceção da literatura jesuítica, produziram-se textos principalmente de caráter histórico-informativo. Tanto é assim, que a obra que, teoricamente, inicia a literatura brasileira foi a Carta do achamento do Brasil, de Pêro Vaz de Caminha. Claro que não se pode dizer que essa carta seja literatura brasileira. O autor nem sequer teve em qualquer momento essa pretensão. Ele desejava fazer um relato para o rei de Portugal que agradasse ao seu leitor e apresentasse a viagem como um empreendimento. Na realidade, nem Brasil existia realmente. Antes que os portugueses chamassem a este território de Terra de Vera Cruz, havia um continente habitado por diversas nações indígenas.
A literatura indígena no território brasileiro Quando falamos em índios brasileiros, muitos pensam em um povo único, falando uma única língua, o tupi-guarani. Na verdade, tal ideia está muito longe da realidade. Os indígenas brasileiros, hoje, no Brasil, compõem um mosaico de 206 povos, falando cerca de 185 línguas e dialetos diferentes. Apesar da enorme diversidade, é importante destacar que 152 desses povos são grupos com menos de mil pessoas cada um. De forma muito diferente dos europeus, os índios que viviam no território brasileiro quando os portugueses aqui chegaram em 1500, formavam estruturas sociais sem qualquer necessidade da escrita. Isso, não significa que eles não possuíssem uma expressão cultural e literária própria. Veja o que afirma a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha. Chefe camaiurá, grupo indígena do Mato Grosso.
A diversidade das sociedades indígenas – cada uma sendo uma síntese original de sociabilidade e de uso dos recursos naturais – é um patrimônio essencial do Brasil. O que talvez mais chame a atenção seja o contraste entre a simplicidade das tecnologias e a riqueza dos universos culturais. As sociedades indígenas elaboraram cosmologias e sistemas sociais complexos, nos quais o patrimônio imaterial parece ter um privilégio sobre o patrimônio material. Enquanto a propriedade privada da terra, por exemplo, é inexistente, direitos sobre bens imateriais, tais como nomes próprios, cantos, ornamentos rituais, são objeto de detalhada regulamentação. A arte indígena, por sua vez, parece preferir suportes perecíveis: em muitas dessas sociedades, o corpo humano, a palha e as plumas são objeto de um trabalho artístico intenso – pintura corporal, cestaria, arte plumária – sobre objetos essencialmente efêmeros. Índio xavante pintando tronco da madeira usado na cerimônia do Quarup.
CUNHA, Manuela Carneiro da. In: “Povos Indígenas”. Disponível em . Acessado em 20-11-2004.
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Capítulo 6
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
3. Arcadismo ou Neoclassicismo – (1768 a 1836).
Naturalmente, existem diferenças substanciais entre aquilo que poderíamos chamar de obra literária indígena e a europeia. Lendas, cantos, jogos e tradições fazem parte de um conjunto de cultura que é muito anterior à chegada dos portugueses e permeada pelo sentido do sagrado. Os índios maxakali, por exemplo, até hoje, acreditam que a alma é formada ao longo da vida, por meio da palavra. Essa alma – Koxuk – dá origem ao Yãmiy (espírito), que pode ser bom ou mau, conforme aquilo que sair da boca ou entrar pelos ouvidos. Por isso a importância mágica da palavra, no canto, na dança e na religião. Corpo e alma devem procurar a perfeita harmonia, mas essa somente é conseguida se a alegria for um sentimento dominante.
Índio maxakali
20. Que importância podemos dar à palavra? Que diferenças e semelhanças você encontra entre a forma como a nossa sociedade valoriza a comunicação e os maxakali?
Semelhanças
Diferenças
De uma forma geral, a cultura indígena construiu a sua identidade levando em conta o feminino. Por exemplo, é comum a crença da “Terra grávida”, ou seja, de que a humanidade surgiu do fundo da terra. Outras tribos acreditam que as mulheres teriam vindo dos céus. Veja: Essa relação com o feminino é comentada pela estudiosa Eliane Potiguara:
uara
Eliana Potig
Com relação à cultura indígena, a mulher é uma fonte de energias, é intuição, é a mulher selvagem não no sentido primitivo da palavra, mas selvagem como desprovida de vícios impostos pela sociedade, uma mulher sutil, uma mulher primeira, um espírito em harmonia, uma mulher intuitiva em evolução para sua sociedade e o bem-estar do planeta Terra. Essa mulher não está condicionada psicológica e historicamente a transmitir o espírito de competição e dominação segundo os moldes da sociedade contemporânea. O poder dela é outro. Seu poder é o conhecimento passado através dos séculos, e que está reprimido pela história. A mulher intuitivamente protege os seios e o ventre contra seu dominador, e busca forças nos antepassados e nos espíritos da natureza para a sobrevivência da família. Assim é a educação indígena. Todos esses aspectos foram mais preservados na mulher do que no homem.
POTIGUARA, Eliane. “Identidade e voz indígenas” In: OURIQUES, Evandro Vieira (Org.). Diálogo entre as civilizações: a experiência brasileira. Rio de Janeiro: ONU no Brasil.
21. De que forma a mulher é vista como sagrada na cultura indígena primitiva, de acordo com a estudiosa Eliane Potiguara?
Palavras para usar “assim na terra como nos céus”
287
23. A Carta do achamento do Brasil, de Pêro Vaz de Caminha, fala sobre a religiosidade indígena. Comparea com o que temos estudado até agora e com o testemunho a seguir da antropóloga Betty Mindlin:
As noções dos Ikolen sobre alma, pensamento e matéria são estimulantes. Cada pessoa tem três almas, uma das quais é viajante; outra é o que vibra e pulsa em cada ser; a terceira pode ser maléfica, o que resta de um morto quando o corpo se desfaz. São em especial as duas primeiras almas do pajé que viajam ao país dos espíritos para curar os doentes. MINDLIN, Betty. et al. Couro dos espíritos: namoro, pajés e cura entre os índios Gavião-Ikolen de Rondônia. São Paulo: Senac; Terceiro Nome, 2001.
Índios gavião-ikolen fotografados por Cândido Mariano da Silva Rondon.
A que conclusões consegue chegar? Liste-as e comente-as em classe.
Um povo, ao construir a sua religiosidade, muitas vezes, procura responder à pergunta: de onde viemos? Veja duas explicações religiosas diferentes, que procuram responder a essa pergunta. Nelas, observe respostas a outras questões que se relacionam com a da origem do homem e que ajudam a explicar a comunidade daqueles que se orientam por tais textos. 288
Capítulo 6
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
22. Ao afirmar “Seu poder é o conhecimento passado através dos séculos, e que está reprimido pela história”, a que realidade faz referência o texto?
Examinemos primeiro o que nos diz a Bíblia.
“Quando Javé Deus fez a terra e o céu, ainda não havia na terra nenhuma planta na terra do campo, pois no campo, ainda não havia brotado nenhuma erva: Javé Deus não tinha feito chover sobre a terra e não havia homem que cultivasse o solo e fizesse subir da terra a água para regar a superfície do solo. Então Javé Deus modelou o homem com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivente. Javé Deus plantou um jardim em Éden, no Oriente, e aí colocou o homem que havia modelado. Javé Deus fez brotar do solo todas as espécies de árvores formosas de ver e boas de comer. Além disso, colocou a árvore do conhecimento do bem e do mal. Um rio saía de LIMBOURG, Paul et Jean. O jardim do Éden, Les très riches heures du duc de Éden para regar o jardim, e de lá Berry. (1413-1416). Chantilly: Museu Condé. se dividia em quatro braços. (...) Javé Deus tomou o homem e o colocou no jardim de Éden, para que o cultivasse e guardasse. E Javé Deus ordenou ao homem: “Você pode comer de todas as árvores do jardim. Mas não pode comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, com certeza você morrerá”. Javé Deus disse: “Não é bom que o homem esteja sozinho. Vou fazer para ele uma auxiliar que lhe seja semelhante”. Então Javé Deus formou do solo todas as feras e todas as aves do céu. E as apresentou ao homem para ver com que nome ele as chamaria: cada ser vivo levaria o nome que o homem lhe desse. O homem deu então nome a todos os animais, às aves do céu e todas as feras. Mas o homem não encontrou uma auxiliar que lhe fosse semelhante. Então Javé Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou então uma costela do homem e no lugar fez crescer carne. Depois da costela que tinha tirado do homem, Javé Deus modelou uma mulher, e apresentou-a para o homem. Então o homem exclamou: “Esta sim é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porque foi tirada do homem!” Gênesis, capítulo 2, versículos 4b-23. Bíblia.
Palavras para usar “assim na terra como nos céus”
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LÍV
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Tribo Gavião Ikolen
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0
99 km
L S
Os gavião-ikolen vivem em Rondônia, na área indígena Lurdes, demarcada em 1977. A superfície de seu território é de 185.533 ha. Na área vivem também os Araras.
O seguinte mito da criação foi contado à antropóloga Betty Mindlin pelos índios gavião-ikolen:
Gorá e o começo da humanidade
Gorá: O Criador, não tem pai, apenas mãe e um irmão, Betagap, que ele mesmo fez a partir de uma árvore.
290
Gorá deixou gente dentro da rocha. Não tinha como deixar sair essa gente. Juntaram-se muitos pássaros que tinham bico duro para poder abrir o buraco para as pessoas saírem. Assim é que começou o povo da rocha. Saiu muito índio – Zoró, Suruí, Cinta Larga...
Capítulo 6
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BO
Muitos bichos vieram ajudar. Vieram (...) periquitos, araras. Veio o mutum. Esses não tiveram coragem suficiente para furar a rocha. Quem furou foi o periquito, que tinha o bico mais duro. As pessoas iam saindo, sentavam-se em banquinhos para se apresentar. Tinha muito banquinho, pois era muita gente saindo da rocha. Iam dizendo quem era: – Somos o povo Arara! – Somos o povo Gavião! – Somos o povo Zoró! Faziam banquinho de madeira, igual a esses banquinhos para pajés, sentavam-se. Saíram os Iadurei, outros índios. Saiu um “branco”, Djara. Disse: – Eu sou o “branco”, dono da riqueza. Hoje, por isso, os “brancos” são ricos. Os índios são pobres. Eram matadores de gente. Assim é que aconteceu primeiro. O casal de índios Gavião-Ikolen saiu, encalhou no buraco de saída. A mulher é que ficou presa, atravancou a saída. O marido saiu na frente, e a mulher, que estava grávida, veio depois, mas ficou entalada e obstruiu a passagem. Por isso ficou gente embaixo da terra, gente que não conseguiu sair. Dizem que a rocha, com essa gente, está entre o Rio Roosevelt e a cabeceira do Rio Branco. MINDLIN, Betty. et al. Couro dos espíritos: namoro, pajés e cura entre os índios gavião-ikolen de Rondônia. São Paulo: Senac; Terceiro Nome, 2001.
24. Comparando atentamente um texto com o outro, complete o quadro a seguir: A origem do homem segundo: a Bíblia
Gênero de Deus
masculino
Presença do elemento mãe-terra
Sim, Deus forma o homem da argila do solo.
Relação com os animais
Palavras para usar “assim na terra como nos céus”
os índios gavião-ikolen
Pacífica, as aves ajudam a libertar os homens da terra.
291
A origem do homem segundo: a Bíblia
Explica a origem da mulher e os diferentes nomes dos animais.
O divino como força moral orientando a vida.
Não está presente. Gorá aparece como apenas deixando “gente dentro da rocha”.
25. Além das listadas no quadro, que outras diferenças encontra entre as versões da Bíblia e dos índios Gavião-Ikolen para o surgimento do homem?
Com certeza, você já ouviu a palavra mito. Trata-se de um termo de uso comum e, por isso mesmo, extremamente polissêmico. Além disso, apresenta um uso próprio do senso comum, da linguagem cotidiana, e outro que se prende à linguagem científica, como a usada pela Antropologia ou pelos estudos literários. 26. Recorrendo a um bom dicionário, encontre o sentido da palavra “mito” para cada uma das frases a seguir: a) Madonna é um mito da música pop norte-americana.
b) É um mito acreditar que apenas o dinheiro traz felicidade.
c) Os gregos explicavam a complexidade do amor por meio do mito de Eros e Psiquê.
d) Che Guevara tornou-se um mito no imaginário da América Latina.
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Capítulo 6
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Questões auxiliares pertinentes à comunidade em que se escreveu o texto.
os índios gavião-ikolen
O antropólogo francês Levi-Strauss foi um dos primeiros cientistas a estudar o mito. Aplicando parte de sua pesquisa para os nossos estudos literários, podemos definir o mito a partir de quatro características: (1) é uma narrativa; (2) tem um sentido, dado pelo modo como os seus diferentes elementos isolados o compõem; (3) manifesta as preocupações de uma cultura, bem como a sua visão de mundo; O antropólogo francês Levi-Strauss
(4) é parte da linguagem, com propriedades específicas que se originam do valor metafórico presente no mito.
27. Examinando os textos que explicam a origem do homem, podemos dizer que se trata de “mitos”? Por quê?
A existência do mito é, ao que tudo indica, tão antiga quanto a humanidade. Preocupações mitológicas moldaram as artes e o mundo do homo sapiens desde o seu aparecimento na terra. Observe o comentário do estudioso de mitos, Joseph Campbell:
“os temas fundamentais do pensamento mitológico permaneceram constantes e universais, não somente ao longo de toda a história, mas também ao longo da ocupação da Terra pela humanidade”. CAMPBELL, Joseph. Para viver os mitos. São Paulo: Pensamento; Cultrix, 1997.
Há mitos próprios de certas localidades. Existem, até mesmo, mitos urbanos, que se desenvolveram muito mais recentemente no imaginário de uma comunidade. Por exemplo, entre os alunos da rede pública de São Paulo desenvolveu-se o mito da “loira do banheiro”, por exemplo. Conta a narrativa que uma garota muito bonita, de cabelos loiros sempre planejava maneiras de não assistir às aulas. Uma delas era ficar no banheiro da escola, esperando o tempo passar. Um dia, porém, a menina loira escorregou no piso molhado do banheiro e bateu a cabeça no chão, vindo a falecer. Como a menina não se conformou com seu fim trágico e prematuro, sua alma não quis descansar em paz e passou a assombrar os banheiros das escolas. Muitos alunos juram ter visto a famosa loira do banheiro, pálida e com algodão no nariz para evitar que o sangue escorra. 28. O sentido desse mito é claro: procura prescrever uma conduta moral. Qual?
Palavras para usar “assim na terra como nos céus”
293
Retornemos, no entanto, à cultura indígena e à sua rica mitologia e literatura oral. Já abordamos o tema da origem do homem entre os índios gavião-ikolen. No entanto, há vários mitos para explicar esse fenômeno. Os ianomâmis, por exemplo, são um povo com uma mitologia muito complexa. Para eles, o mundo está dividido em três terras. 1. A terra de cima: muito velha e cheia de rachaduras, por onde as águas de lagos e rios se infiltram e produzem as chuvas na terra do meio; 2. A terra do meio: de idade mediana, onde vivem os humanos; 3. A terra de baixo: mais recente, está sob nossos pés. Os ianomâmis – que no Brasil se espalham entre Roraima e Amazonas – consideram que seus pajés mantêm equilibradas as colunas que sustentam a terra de cima, impedindo-a de cair sobre nós. Além disso, tratamos da valorização do elemento Os ianomâmis sagrado feminino entre muitas das etnias indígenas. É o que podemos confirmar entre os índios tikunas, do Alto Solimões:
Na festa da “Moça Nova” entre os tikunas do Alto Solimões, festa que encerra o ritual de iniciação feminina, a comunidade local tem um cuidado todo especial e gratuito com cada indivíduo. Após a primeira menstruação, a moça é recolhida num canto da casa. Durante o período de reclusão, a moça tikuna recebe de sua mãe e das avós ensinamentos específicos para a sua vida de esposa e de adulta na aldeia. Depois de meses de preparação, a moça é retirada do cubículo e cercada pelos parentes, no centro da casa, onde recebe mais uma vez conselhos e ensinamentos. Após vários rituais, anciãs arrancam demoradamente os cabelos da moça para, simbolicamente, mostrar (...) a morte da personalidade imatura e o nascimento de uma pessoa nova, com plena maturidade social (...). Disponível em . Acessado em 27-11-2004. Os tikunas
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29. Converse com pessoas mais velhas e descubra se há mitos que são característicos de onde você vive. Em sala de aula, discuta a presença ou ausência de mitos específicos e o que isso revela sobre a cultura de sua comunidade.
30. Entre os tikunas, que ritual deixa claro para a comunidade a maturidade social de uma jovem?
31. Na sua comunidade, que práticas são comuns para simbolizar a maturidade social de um (a) jovem?
Pesquisa: o índio na literatura brasileira 32. Reunidos em grupos, discutam as diferenças encontradas entre a organização cultural indígena e aquela presente na restante sociedade brasileira. Examinem particularmente, a localidade em que vivem. Acrescentem ao material de pesquisa aqui fornecido, outras fontes encontradas em bibliotecas e na Internet. Durante a pesquisa, verifiquem se existe um povo indígena em sua comunidade. Informem-se como vivem esses índios. Elaborem um texto que exponha e comente tais diferenças. A seguir, discutam em classe as conclusões a que chegaram. Organizem um texto coletivo contendo as conclusões com o tema: Comentário sobre a cultura indígena. Tenha uma cópia desse texto em seu caderno. Alguns sites poderão ajudá-lo em sua pesquisa: . . . . . A figura do índio sempre foi muito rica na literatura brasileira. Ele é o personagem principal do primeiro documento escrito sobre o Brasil, a Carta do achamento do Brasil, de Pêro Vaz de Caminha e sobre ele escreveram habitantes do Brasil de todas as épocas. Nem sempre, contudo, existiu uma preocupação de falar no índio real, naquele que, de fato, vive nestas terras. Muitas vezes, lançou-se um olhar platônico sobre o índio, como se fosse uma figura irreal, um mito. Pesquise na biblioteca de sua escola e na Internet um poema literário que tenha no índio o seu tema principal. Certifique-se de identificar o autor e a época em que o texto foi originalmente produzido. Traga-o para a próxima aula. Em grupos de até quatro elementos, escolham um dos poemas e analisem-no seguindo o roteiro de análise de poemas apresentado no capítulo 8 do volume 1 desta coleção. Justifiquem, por escrito, como a imagem do índio é construída dentro do texto. Comparem a Palavras para usar “assim na terra como nos céus”
295
presença do índio no poema com a cultura real indígena. Recorram ao texto anteriormente produzido, “Comentário sobre a cultura indígena”. Se sentirem necessidade, completem a pesquisa feita, recorrendo a livros de crítica literária. Depois de terminado o texto, façam uma avaliação dele, usando a ficha de leitura a seguir, a qual convém conhecer desde já: 33. Ficha de leitura
1
Analisa e explica a construção da imagem do índio de acordo com o poema selecionado?
2
Procura conhecer e estabelecer as causas e as relações entre a imagem do índio no poema e outros textos comuns na sociedade?
3
Demonstra coerência na exposição das ideias?
4
O texto é legível?
5
Evita desvios da norma padrão da língua portuguesa?
6
Evita o uso de gírias?
7
Os parágrafos são de tamanho apropriado?
8
Evita as repetições desnecessárias, usando palavras de substituição?
9
Os conectivos estão apropriadamente empregados?
10
As ideias pessoais estão devidamente explicadas e justificadas?
296
Avaliação do grupo
Avaliação do professor Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
Critérios de avaliação
Capítulo 6
A CIRCULAÇÃO DE CONCEITOS DE SAGRADO NA SOCIEDADE Como vimos, há vários conceitos de Deus e do sagrado na sociedade. A própria existência de mitos exemplifica a necessidade que o humano tem do elemento divino em sua vida desde o início das sociedades. Hoje, a presença do sagrado é visível nos mais variados textos: de letras de música e textos literários, nas publicidades e filmes. Muitos textos usam do discurso religioso para fins não sagrados, como na publicidade, séries de televisão ou quadrinhos. É o que se verifica na tira em quadrinhos a seguir.
LAERTE. Deus. Folha de S.Paulo, 05-12-2004.
LAERTE COUTINHO (1951-... ) – Natural de São Paulo, SP. Já trabalhou em jornais, cinema, televisão, teatro, além de haver publicado diversos livros. Seu estilo apresenta uma curiosa mistura entre realidade e fantasia, que revela os absurdos da nossa sociedade.
34. A tira em quadrinhos não é um gênero comumente associado ao discurso religioso. Laerte opta por uma estratégia que permite ao leitor identificar rapidamente uma das principais manifestações religiosas do mundo, a cristandade. Compare a tira com a reprodução religiosa que abre este capítulo e identifique os elementos nos quadrinhos que facilitam essa identidade.
35. Neste caso, o objetivo do texto não é a vivência do sagrado, mas a crítica social. De que forma o discurso religioso presente no texto manifesta a crítica social?
36. A oração “para cada um cuidar da sua” apresenta em relação à oração anterior uma noção de: a) finalidade;
b) consequência;
c) tempo;
d) causa.
e) modo; Palavras para usar “assim na terra como nos céus”
297
37. Reescreva o período substituindo o conectivo por outro que transmita a mesma noção identificada na questão anterior. Faça as adaptações ao texto que julgar necessárias.
39. De acordo com as regras gramaticais da norma padrão da língua portuguesa, qual a forma apropriada: “Perdoai-os, Pai... Eles não sabem o que dizem” ou “Perdoai-lhes, Pai... Eles não sabem o que dizem”? Por quê?
Deus, o homem e a linguagem Ao misturar-se com outros discursos, o discurso religioso perde muito de seu caráter sagrado, de aproximação do homem com o elemento divino. Ao mesmo tempo, como vimos, em certos casos, permite que o homem discuta importantes questões sociais. Acompanhe a letra de música a seguir.
Fátima Vocês esperam uma intervenção divina Mas não sabem que o tempo Agora está contra vocês. Vocês se perdem no meio de tanto medo De não conseguir dinheiro Pra comprar sem se vender. E vocês armam seus esquemas ilusórios, Continuam só fingindo Que o mundo ninguém fez, Mas acontece que tudo tem começo E se começa um dia acaba. Eu tenho pena de vocês! E as ameaças de ataque nuclear, Bombas de nêutrons, Não foi Deus quem fez. Alguém, alguém um dia, vai se vingar. Vocês são vermes, pensam que são reis. Não quero ser como vocês. Eu não preciso mais. Eu já sei o que eu tenho que saber E agora tanto faz. 298
Capítulo 6
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38. Utilizando-se das informações deste capítulo, você consegue encontrar um motivo que tenha levado o cartunista a escrever “Perdoai-os, Pai”, ao invés de usar a forma “você”?
Três crianças sem dinheiro e sem moral, Não ouviram a voz suave Que era uma lágrima E se esqueceram De avisar pra todo mundo. Ela talvez tivesse nome, era Fátima. E de repente o vinho virou água E a ferida não cicatrizou E o limpo se sujou E no terceiro dia ninguém ressuscitou. LEMOS, Flávio; RUSSO, Renato. Fátima. In: Capital Inicial acústico MTV. São Paulo: Abril Music, 2000.
40. Essa letra de música não é, exatamente, um texto de culto ao sagrado. Contudo, além de palavra “Deus”, há várias referências bíblicas e religiosas. Identifique duas delas.
41. Um dos versos da música afirma: “Eu tenho pena de vocês”. Em sua opinião, a quem se refere esse “vocês”? Justifique.
42. De acordo com o texto, o que motiva ao enunciador “sentir pena” e de que tipo de pena o texto permite que pensemos se tratar? Por quê?
43. Como vimos, dois ou mais discursos podem se misturar em um mesmo texto. Neste caso, qual a função do discurso religioso na letra da música? Por quê?
Fátima abre com os versos: Vocês esperam uma intervenção divina Mas não sabem que o tempo Agora está contra vocês. Palavras para usar “assim na terra como nos céus”
299
(1) Vocês esperam uma intervenção divina (2) Não sabem (3) O tempo agora está contra vocês Observe que a relação entre as duas primeiras orações é “(1), mas (2)”. 44. Qual a função que a conjunção “mas” estabelece entre as orações ao construir a coesão?
Já a relação entre as orações (2) e (3) é mais complexa. Isso porque a oração (3) exerce uma função sintática na (2).
Recapitulando Já vimos que: período é a frase orga nizada em uma ou várias orações, ou seja, com a presença de um ou mais verbos; cada verbo ou locução verbal corresponde a uma oração; os períodos podem ser simples (formado de uma oração) ou compostos (formados por duas ou mais orações).
45. Complete: A oração (3) funciona como
da oração (2).
A função principal da conjunção “que” não é tanto de estabelecer um sentido entre as orações, mas de subordiná-las. A oração (3) depende sintaticamente da oração (2). Isso não ocorreu entre as orações (1) e (2), cuja relação se prende apenas ao significado, sendo coordenadas pela conjunção “mas”. Portanto, há dois processos de formar períodos compostos: a) por coordenação; b) por subordinação. Na coordenação, as orações se apresentam com independência de construção. Na subordinação, há uma relação de regência. A oração subordinada é um termo da oração subordinante, com função de substantivo, adjetivo ou advérbio. 46. Qual deles lhe parece exigir mais habilidade por parte do locutor? Por quê?
47. Identifique se os períodos a seguir são compostos por coordenação (C) ou por subordinação (S): (
) “de repente o vinho virou água / e a ferida não cicatrizou”
( ) “acontece que tudo tem começo” ( ) Eu já havia saído, quando você telefonou. ( ) Embora esperem uma intervenção divina, não sabem o futuro. ( ) “Penso, logo existo” (Descartes – filósofo francês) (
) Convenceram-se de que o problema era simples.
( ) Estudei tanto hoje que estou exausto. 300
Capítulo 6
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Trata-se de um período formado por três orações:
Esses dois processos permitem formar três tipos diferentes de períodos compostos: a) período composto por coordenação; b) período composto por subordinação; c) período composto por coordenação e subordinação. 48. A conexão dos períodos a seguir foi construída recorrendo-se a conjunções. Identifique os conectivos e classifique-os como conjunções coordenativas ou subordinativas. Se tiver dúvidas, consulte uma gramática. a) Fizemos a pesquisa conforme o professor nos orientou.
b) Ela não fez o trabalho nem estudou para a prova.
c) Carla gosta de Roberto, porém não é correspondida.
d) A minha admiração pelos povos indígenas crescia à medida que estudava mais a seu respeito.
e) Façamos um esforço a fim de que todos tenham um bom resultado.
49. Tainá acabou de fazer o seguinte exercício sobre classificação dos períodos. Ajude-a, corrigindo os equívocos.
Identifique se os períodos a seguir são: ( a ) simples; ( b ) composto por subordinação; ( c ) composto por coordenação; ( d ) composto por coordenação e subordinação.
( b ) Helena estava certa de que Paulo era o seu grande amor. ( a ) Sabe-se que a cultura e a mitologia indígena são riquíssimas. ( d ) Sabemos que a fé é uma força benéfica para o ser humano, embora possa ser distorcida em sua função por outros interesses. (c)
Naquele momento, ou dizia o que pensava ou não conseguiria continuar.
( d ) Vocês esperam uma intervenção divina / Mas não sabem que o tempo / Agora está contra vocês. (b)
Aos poucos, fui-lhe contando toda a minha vida.
Que diferença faz a coordenação ou a subordinação na construção de um texto? Muitas vezes, podemos expressar uma mesma ideia construindo os períodos por coordenação ou por subordinação. Compare: Palavras para usar “assim na terra como nos céus”
301
I. Período composto por coordenação: Alguns alunos apresentaram dificuldades de interpretação de textos por isso
Oração 1
esses alunos farão exercícios de revisão.
Oração 2
Os alunos, que apresentaram dificuldades de interpretação de textos, farão exercícios de revisão. Oração 1
Oração 2
Oração 1
50. Ainda que a ideia expressa seja a mesma, consegue encontrar diferenças de sentido entre o período composto por coordenação e o composto por subordinação nesse exemplo?
A professora Nilce Sant’Anna Martins afirma:
(...) a construção de um período mais longo, em que predomine a subordinação, em que as ideias apareçam adequadamente relacionadas, requer maior domínio da língua, maior trabalho de raciocínio. E também a leitura de um longo período, com riqueza de orações subordinadas, exige do leitor uma capacidade de compreensão mais desenvolvida. Os estudantes que penaram para aprender a análise sintática, com todos os casos de coordenação e subordinação (que algumas vezes não se distinguem nitidamente), com os seus variados conectivos ou formas verbais próprias, têm bem uma ideia da rede de opções que a língua oferece para a tradução do pensamento”. MARTINS, Nilce Sant’ Anna. Introdução à estilística. São Paulo: T. A. Queiroz, 1997.
A tendência da língua oral é para a coordenação. O seu uso carrega o texto de maior espontaneidade. Por ser mais ágil na compreensão do que a subordinação, sugere rapidez ou simultaneidade. A coordenada assindética é construída sem um vocábulo como conectivo. Como no verso da Música “Fátima”: “Vocês são vermes, pensam que são reis”
(1)
(2)
(3)
As orações (1) e (2) estão coordenadas entre si, mas a coesão não exigiu um conectivo; usou-se a vírgula. O fato de que o sujeito de (1) e (2) é o mesmo (= “vocês”) já estabelece a coesão. A coordenação assindética é a que melhor exemplifica a força expressiva da coordenação. Já algumas orações coordenadas entre si desenvolvem uma relação tão forte, que chegam a confundirnos. Observe: O rapaz bebeu muito, por isso é possível que passe mal.
(1)
(2) 302
(3) Capítulo 6
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II. Período composto por subordinação:
A oração (2) funciona como conclusão da oração (1). A relação entre elas é de coordenação, mas falta muito pouco para que a oração (2) exerça o papel de um advérbio: O rapaz bebeu tanto que passará mal. (1) (2) A oração (2), neste caso, funciona não como simples conclusão da oração (1), mas como conse quência. A relação entre elas é de subordinação. No entanto, conseguir distinguir uma situação da outra é algo difícil e os gramáticos nem sempre conseguem explicar com clareza. Além das conjunções que as diferenciam, convém analisar caso a caso, dentro do contexto em que surgem. 51. Retorne à letra da música “Fátima”. Como é fácil perceber, predominam períodos simples e compostos coordenados, próprios da língua oral. Por que é adequada ao texto tal estratégia de construção?
52. Além desse procedimento, de que outros recursos se vale o texto para construir esse efeito de oralidade?
53. No texto literário, deve-se preferir a subordinação ou a coordenação? Por quê?
54. Liste três gêneros textuais nos quais seria mais apropriado usar a subordinação, tomando grande cuidado na forma como se relacionam as orações.
55. O seguinte texto é a transcrição de um depoimento. Nele, o caráter oral é evidente, principalmente pelo excesso de períodos simples e coordenados. Reúna-se com os colegas em duplas e, juntos, reescrevam-no, retirando-lhe, o caráter oral. Façam as modificações que julgarem apropriadas, mas mantenham a essência do testemunho apresentado. Subordinem as orações quando considerarem conveniente.
“Paitxo, ou paitxo-tere, alma de verdade, é o que fica de nós quando o corpo apodrece. É gente comum que morre e perambula, ameaçando os vivos. (...) O olhar de paitxo sobre nós faz adoecer. Paitxoei, as sombras dos mortos, nos veem, mas para nós são invisíveis. O pajé Txiposegov sempre nos contava sobre a morte: paitxoei, os espíritos, ficam soltos andando no tempo, sem lugar para morar, causando doenças. Só o wãwã, o pajé, pode curar do mal que provocam. Pega paitxo e joga numa vala, num buraco chamado Garpiáb-ti, nos céus. Paitxo desaparece para sempre. O terçado do pajé também tem poder de rasgar paitxo, de quebrar a alma maléfica para sempre.” MINDLIN, Betty. et al. Couro dos espíritos: namoro, pajés e cura entre os índios gavião-ikolen de Rondônia. São Paulo: Senac; Terceiro Nome, 2001.
Palavras para usar “assim na terra como nos céus”
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HISTÓRIA CRÍTICA DA ARTE E DA LITERATURA: AINDA A EUROPA DO SÉCULO XIX
MANET, Édouard. (1863). Le déjeneur sur l´herbe (O almoço no gramado). Paris: Museus dos impressionistas.
ÉDOUARD MANET (1832-1883) – Nasceu e morreu em Paris, na França. Filho de um importante funcionário do Ministério da Justiça. Seu interesse pelo desenho manifestou-se desde cedo. Em 1863, a sua obra Almoço no gramado foi duramente criticada, tanto pelo desenvolvimento do tema como pelo uso da luz forte empregado. Curiosamente, esse quadro tornar-se-ia fundamental para a posterior evolução da pintura, o Impressionismo.
Nos capítulos anteriores, vimos que o Realismo e o Naturalismo surgiram na França como manifestações de oposição à alienação dos ultrarromânticos. Propunham uma visão de arte que considerava a descrição objetiva da realidade como base para a construção de suas obras. O Realismo trouxera para as artes inovações nos temas e significados, mas divulgara também um conceito conservador de arte, limitado pela obsessão de imitar a realidade. Com isso em mente, não é difícil de entender por que Manet escandalizou a sociedade ao pintar o seu Almoço no gramado: inserir uma moça nua entre dois homens que conversam e que estão em trajes contemporâneos foge da realidade, mas torna o irreal provável, como se o impossível pudesse acontecer a qualquer um que passasse pelo bosque. Provavelmente o escândalo tivesse sido menor se todos estivessem nus, pois a cena se revelaria completamente improvável. 304
Capítulo 6
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
Observe a reprodução artística a seguir.
Também as cores fortes e luminosas não se harmonizam com a obsessão realista de imitar a realidade. Esse uso da cor, superando a importância do traço e fugindo da realidade observada é uma das principais características do Impressionismo. Observe.
DEGAS. (c. 1899). Quatro bailarinas. Washington: National Gallery of Art.
Hilaire-Germain-Edgar de Gas, mais conhecido como DEGAS (1843-1917) – Nasceu em Paris e, após o término de seus estudos do 2º grau, frequentou assiduamente o Museu do Louvre. Entrou na École des Beaux-Arts, mas logo se cansou do ensino acadêmico. Viajou várias vezes à Itália, onde entrou em contato com a pintura italiana. Degas é universalmente reconhecido como o grande Mestre das figuras em movimento, um hábil desenhista e um grande inovador na arte do retrato. Ao contrário dos demais impressionistas, ele nunca quis desligar-se totalmente do passado, e o seu empenho artístico foi sempre voltado para conciliar o “velho” e o “novo”. A esse respeito é famosa a frase: “Ah! Giotto! Deixe-me ver Paris, e tu, Paris, deixe-me ver Giotto”. 56. De que forma Quatro bailarinas choca-se com os princípios defendidos pelos realistas? Explique.
Lembramos que a Europa daquela época, principalmente a França, fervilhava de novidades científicas e filosóficas, como o positivismo, o evolucionismo, o determinismo, etc. Na França também surgiu o Parnasianismo, movimento que se interessava apenas pelos textos em versos, buscando o ideal clássico da beleza como a harmonia das formas, com descrições nítidas e conceitos rígidos e tradicionalistas sobre Palavras para usar “assim na terra como nos céus”
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metro, ritmo e rima. Apareceram também, na poesia parnasiana, algumas referências a personagens da mitologia.
O que era o Parnaso? Que associação podemos estabelecer entre ele e os interesses dos parnasianos?
Além da França, o único país que cultivou o Parnasianismo foi o Brasil. Já desde os anos de 1870 do século XIX, encontramos ideias parnasianas por aqui, mas é a obra Fanfarras, de Teófilo Dias, a primeira publicação brasileira que pode ser considerada propriamente parnasiana. São importantes os nomes de Alberto de Oliveira (1859-937), Raimundo Correia (1859-1911) e Olavo Bilac (1965-1918), Vicente de Carvalho e Francisca Júlia (1871-1920). Observe:
Perfeição Nunca entrarei jamais o teu recinto: Na sedução e no fulgor que exalas, Ficas vedada, num radiante cinto De riquezas, de gozos e de galas. Amo-te, cobiçando-te... E faminto, Adivinho o esplendor das tuas salas, E todo o aroma dos teus parques sinto, E ouço a música e o sonho em que te embalas. Eternamente ao meu olhar pompeias, E olho-te em vão, maravilhosa e bela, Adarvada de altíssimas ameias. E à noite à luz dos astros, a horas mortas, Rondo-te, e arquejo, e choro, ó cidadela! Como um bárbaro uivando às tuas portas! Olavo Bilac
OLAVO Brás Martins dos Guimarães BILAC (1865-1918) – Nasceu e faleceu no Rio de Janeiro. Cursou Medicina e Direito, mas entregou-se completamente à Literatura. Colaborou em vários jornais e revistas. Exerceu os cargos de secretário do Congresso Pan-americano em Buenos Aires, inspetor da Instrução Pública e membro do Conselho Superior do Departamento Federal. Tomou parte na Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira de número 15, cujo patrono é Gonçalves Dias. De 1915 a 1917, fez campanha cívica nacional pelo serviço militar obrigatório e pela instrução primária. Seus versos comoventes e sentimentais o tornaram um dos nossos poetas mais preferidos da burguesia da época.
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Capítulo 6
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A técnica, na procura pelos versos perfeitos na estrutura métrica e sonora, é, para os parnasianos, mais importante do que a inspiração. Também foi importante, mais como teoria do que prática, o ideal da impessoalidade, como se o poeta, ao escrever, pudesse livrar-se de todas as emoções. Esses pontos de vista revelavam uma forte posição contrária àquela adotada pelos ultrarromânticos.
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57. O primeiro verso do poema (“Nunca entrarei jamais o teu recinto”) estabelece um diálogo entre o eu lírico e um interlocutor, o que se nota pela presença do pronome possessivo “teu”. Quem é o interlocutor a que se dirige o poema? Explique.
58. Tudo aquilo que for inferior, duvidoso, de mau gosto dificilmente se encontrará nos versos de Bilac. O poeta não é o mais criativo, profundo ou sensível que a língua portuguesa já produziu. No entanto, como nos mostra o poema, qual a proposta literária de Olavo Bilac?
59. Em outro poema (“profissão de fé”), Bilac escreve:
“Quero que a estrofe cristalina, Dobrada ao jeito Do ourives, saia da oficina Sem um defeito. E que o lavor do verso, acaso, Por tão sutil, Possa o lavor lembrar de um vaso De Becerril. E horas sem conta passo, mudo, O olhar atento, A trabalhar, longe de tudo O pensamento.”
“Talvez seja o domínio da língua, com correção, ritmo e harmonia, elegância e ao mesmo tempo sobriedade, um dos maiores segredos da maleabilidade e perfeição formal do poeta.” (CASTELLO, J. A. A literatura brasileira: origens e unidade. São Paulo: Edusp. 1999. v.1.)
Que relação consegue estabelecer entre os dois poemas de Olavo Bilac?
60. Já afirmamos que “a técnica, na procura pelos versos perfeitos na estrutura métrica e sonora, é, para os parnasianos, mais importante do que a inspiração”. Como isso se comprova no soneto de Bilac?
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61. Bilac, considerado por muitos como o mais equilibrado e polido dos nossos poetas, tempera as emoções pessoais com a disciplina, a inspiração com a aprendizagem e afirma ao final do soneto: E à noite à luz dos astros, a horas mortas, Rondo-te, e arquejo, e choro, ó cidadela! Como um bárbaro uivando às tuas portas!
Enquanto nas duas últimas décadas do século XIX, o Realismo, o Naturalismo (o marco inicial de ambos, no Brasil, é o ano de 1881) e o Parnasianismo estão apenas começando por aqui, na Europa, entram em crise. Aos poucos, a objetividade desaparece da linguagem artística, seja a poética, a plástica ou a musical. A imprecisão das imagens, da linguagem e dos contornos, características que primeiro identificamos na pintura impressionista, inicia o caminho que vai conduzir a uma revolução artística no século XX.
Para recapitular Em que consiste o Positivismo? De que maneira ele se opõe à visão romântica de mundo?
O positivismo, sem conseguir resolver todos os problemas sociais, vai medir forças com o espiritualismo, tão comum no Romantismo, que ressurge sob as faces mais diversas. A mecanização presente nas fábricas conduziu à concentração dos meios de produção nas mãos de poucos, ao domínio dos ramos industriais mais imporEm que consiste o detantes pelo capitalismo financeiro e sua monopolização, à constante luta pelas terminismo? De que mamatérias-primas baratas. Em outras palavras, acentuou-se a desvalorização do neira ele se opõe à visão homem. A partir do Impressionismo (iniciado na pintura, na França, por volta romântica de mundo? dos anos de 1860), surgiram as mais variadas reações contra essa visão de mundo que deixou de lado a dimensão psicológica profunda do ser humano. Para alguns artistas, não havia lugar para o determinismo naturalista. Na poesia, o movimento de mais ampla repercussão foi o Simbolismo. Para recapitular
O Simbolismo surge como manifestação de descrença na realidade objetiva e na razão científica. Como escola literária, teve curta duração, como atitude estética, foi das mais importantes no panorama da literatura ocidental, incentivando outros movimentos renovadores da literatura e da arte do século XX: o Surrealismo francês, o Expressionismo alemão, o Imagism inglês, etc. O que há de comum entre as várias manifestações simbolistas é a crença de que a realidade somente pode ser compreendida com base nas ideias pessoais de cada um. Em outras palavras, isso equivale a dizer que realidade é tudo aquilo que a intuição de cada um consegue captar e apenas pode ser traduzida, ou transformada em literatura, por meio de símbolos estritamente pessoais. Voltam à cena artística o sentimento de decadência e consequente gosto da evasão que foram tão comuns no Ultrarromantismo. Embora, em muitos fatores, estejam posicionados em campos opostos, simbolistas e realistas também apresentam pontos em comum. O mais importante deles é a insatisfação com a realidade social, cada vez mais voltada para uma visão capitalista de mundo. O que mudou radicalmente foi a forma de manifestar essa insatisfação. 308
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Como você explica que o poeta se julgue ainda um bárbaro uivando, deslumbrado e ferido, pela visão estonteante da perfeição?
Observe este poema extremamente conhecido de Alphonsus de Guimaraens. Ele ilustra bem a visão mística e musical do Simbolismo:
Ismália Quando Ismália enlouqueceu, Pôs-se na torre a sonhar... Viu uma lua no céu, Viu outra lua no mar. No sonho em que se perdeu Banhou-se toda em luar... Queria subir ao céu, Queria descer ao mar... E, no desvario seu Na torre pôs-se a cantar... Estava perto do céu, Estava longe do mar... E como um anjo pendeu As asas para voar... Queria a lua do céu, Queria a lua do mar... As asas que Deus lhe deu Ruflaram de par em par... Sua alma subiu ao céu, Seu corpo desceu ao mar...
ALPHONSUS DE GUIMARAENS (1870-1921) – Nasceu em Ouro Preto (MG), filho de comerciantes. Cursou Direito em São Paulo. Foi profundamente marcado pela morte de Constança, sua prima distante, por quem nutria uma paixão platônica, tomando-a como tema de muitos de seus poemas. Exerceu a função de juiz em Conceição do Serro (MG) e, mais tarde, em Mariana (MG). Casou-se com uma jovem, Zenaide, com quem teve 14 filhos. Voltou-se completamente para a vida privada, a ponto de morrer praticamente desconhecido.
62. Todo o poema se constrói em torno da antítese céu-mar, a partir do desejo de Ismália de ter a lua. Levando em conta o conceito de antítese, o que o desejo de Ismália revela?
63. Observe:
“A lua é também o primeiro morto. Durante três noites em cada vez lunar ela está como morta, desapareceu. Depois reaparece e cresce em brilho. Da mesma forma, considera-se que os mortos adquirem Palavras para usar “assim na terra como nos céus”
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uma nova modalidade de existência. A lua é para o homem símbolo dessa passagem da vida à morte e da morte à vida; ela é até considerada por muitos povos como lugar dessa passagem a exemplo dos lugares subterrâneos. (...) A viagem à lua ou até mesmo a vida imortal na lua depois da morte terrestre são reservadas, segundo certas crenças, aos privilegiados: soberanos, heróis, iniciados, mágicos. (...) A lua é também o símbolo do sonho e do inconsciente, bem como dos valores noturnos.” CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alan. Dicionário dos símbolos. Lisboa: Teorema, 1982.
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Levando em conta o que a lua representa na simbologia de certas crenças, como explica o desejo de Ismália?
64. “Pôs-se na torre a sonhar...”
O que pode simbolizar a torre dentro do poema? Por quê?
SEURAT, Georges (1886). O farol de Honfleur. Washington: National Gallery of Art.
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65. Cecília Meireles, escritora brasileira do século XX, escreveu no poema “Motivo”: Eu canto, porque o instante existe E a minha vida está completa Não sou alegre nem sou triste, sou poeta Transcreva o verso do poema “Ismália” que permite que pensemos em Ismália como simbolizando o próprio poeta simbolista.
66. Nesse caso, o que é ser poeta, de acordo com o poema?
67. Que características próprias do Simbolismo se encontram no poema? Explique.
O Impressionismo transcendeu fronteiras e tornou-se internacional. Nos Estados Unidos, nomes como James Whistler (1834) e Thomas Eakins (1844-1916) souberam usar as influências europeias para construírem um estilo próprio. Na reprodução ao lado, Whistler aprofunda o tema do branco, envolvendo o olhar triste e enigmático da modelo, sua amante, Jô Heffernan. 68. Que semelhanças você encontra entre a obra de Whistler e o poema “Ismália”?
WHISTLER, James. (1862). The White Girl. Paris: Louvre.
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Atividades 69. Elaboramos um quadro-resumo das principais características dos dois movimentos poéticos mais importantes no Brasil durante a transição do século XIX para o XX. Assinale a que movimento se aplicam as características apresentadas:
Parnasianismo
Simbolismo
Linguagem rebuscada
X
X
Racionalismo, contenção das emoções
X
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Características
Desejo de transcendência, de integração cósmica
Valorização da presença da mitologia
Apego à tradição clássica
Misticismo e religiosidade
Cultivo da perfeição e gosto pela métrica e pelo soneto
Interesse pela exploração das zonas desconhecidas da mente humana
Preferência pela sugestão e pela musicalidade
Valorização do pessimismo e da dor de existir como meios de alcançar elevação espiritual A procura pelos versos perfeitos na estrutura métrica e sonora é mais importante do que a inspiração
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Características
Parnasianismo
Simbolismo
Interesse pelo noturno (trevas da vida material), pelo mistério e pela morte Exigência do leitor de um esforço de decifração, de tradução da realidade sugerida para a realidade concreta
70. Já estudamos, em outros momentos desta obra, que os textos dialogam entre si. Entre as várias possibilidades de diálogo, existe aquela que se realiza no próprio leitor, quando procura relacionar o que está lendo com outras informações e outros textos que ele conhece. Propomos, a seguir, que a classe seja organizada em grupos. Cada grupo escolhe um ou dois dos poemas que apresentamos. Com base nele, deve localizar: • Autor do texto • Biografia desse autor, incluindo suas principais características de estilo • Escola literária a que pertence • Características do texto que comprovem que pertence a essa escola • Um outro texto que dialogue com o tema do poema estudado • A relação que existe entre ambos os textos Depois de prontas, as pesquisas devem ser partilhadas em classe.
Texto 1: Vaso grego Esta de áureos* relevos, trabalhada De divas* mãos, brilhante copa, um dia, Já de aos deuses servir como cansada, Vinda do Olimpo, a um novo deus servia.
Glossário
Era o poeta de Teos que a suspendia Então, e, ora repleta ora esvazada, A taça amiga aos dedos seus tinia, Toda de roxas pétalas colmada*.
* Colmada: coberta, repleta
* Áureos: de ouro * Diva: deusa, mulher divinamente bela e que inspira o poeta
* Ignota: desconhecida * Anacreonte: poeta grego
Depois... Mas o lavor da taça admira, Toca-a, e do ouvido aproximando-a, às bordas Finas hás de lhe ouvir, canora e doce, Ignota* voz, qual se da antiga lira Fosse a encantada música das cordas Qual se essa voz de Anacreonte* fosse.
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Texto 2: Via láctea (Soneto XIII)
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“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto... E conversamos toda noite, enquanto A via láctea, como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir o sol, saudoso em pranto, Inda as procuro pelo céu deserto. Direis agora: “Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizes, quando não estão contigo?” E eu vos direi: “Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas “.
Texto 3: As pombas Vai-se a primeira pomba despertada... Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas De pombas vão-se dos pombais, apenas Raia sanguínea e fresca a madrugada... E à tarde, quando a rígida nortada Sopra, aos pombais de novo elas, serenas, Ruflando as asas, sacudindo as penas, Voltam todas em bando e em revoada... Também dos corações onde abotoam, Os sonhos, um por um, céleres voam, Como voam as pombas dos pombais; No azul da adolescência as asas soltam, Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam, E eles aos corações não voltam mais...
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Texto 4: Eu cantarei de amor tão fortemente Com tal celeuma e com tamanhos brados Que afinal teus ouvidos, dominados, Hão de à força escutar quanto eu sustente. Quero que meu amor se te apresente – Não andrajoso e mendigando agrados, Mas tal como é: risonho e sem cuidados, Muito de altivo, um tanto de insolente. Nem ele mais a desejar se atreve Do que merece: eu te amo, o meu desejo Apenas cobra um bem que se me deve. Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo; E vou de olhos enxutos e alma leve À galharda conquista do teu beijo.
Texto 5: Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro, ó ser humilde entre os humildes seres. Embriagado, tonto dos prazeres, o mundo para ti foi negro e duro. Atravessaste no silêncio escuro a vida presa a trágicos deveres e chegaste ao saber de altos saberes, tornando-te mais simples e mais puro. Ninguém te viu o sentimento inquieto, magoado, oculto e aterrador, secreto, que o coração te apunhalou no mundo. Mas eu que sempre te segui os passos sei que cruz infernal prendeu-te os braços e o teu suspiro como foi profundo!
Texto 6: Hão de chorar por ela os cinamomos Murchando as flores ao tombar do dia Dos laranjais hão de cair os pomos Lembrando-se daquela que os colhia. As estrelas dirão: – “Ai, nada somos,
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Pois ela se morreu silente* e fria...” E pondo os olhos nela como pomos, Hão de chorar a irmã que lhes sorria.
Glossário * Silente: silenciosa
71. A seguir, encontramos citações de importantes críticos literários da língua portuguesa descrevendo alguns dos movimentos literários do século XIX. Em duplas, procure identificar a que movimentos se referem. Justifiquem as respostas. I. “A uma certa altura, mudando o polo da nossa inteligência de Coimbra para Paris ou Londres, não era mais possível pensar e escrever dentro do universo estanque de uma linguagem ainda setecentista, ainda colonial. (...) Caiu primeiro a mitologia grega (...). Com as ficções clássicas foi-se também o paisagismo árcade que cedeu lugar ao pitoresco e à cor local.” BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1978.
II. “Pretendeu de fato restaurar ‘a simplicidade e a correção’, combatendo as ‘extravagâncias da imaginação e o desalinho da forma’ românticas em proveito da sobriedade, clareza e justeza, ‘virtudes máximas do gênio greco-latino’. (...) Acima de tudo pretenderam a ‘disciplina do bom gosto’.” CASTELLO, J. A. A literatura brasileira origens e unidade. v. 1. São Paulo: Edusp, 1999..
III. “Aluísio Azevedo (1857-1913), (...) alguns dos seus muitos romances são apreciáveis, inclusive um dos primeiros, apesar dos traços melodramáticos, O Mulato (1881), estudo do preconceito de cor, tão odioso quanto irracional num país mestiço como o Brasil. Mais seco e melhor construído é Casa de Pensão (1884), violenta descrição dos descaminhos e da morte de um estudante. Mas ele só alcançou a maestria n’O cortiço (1890), que denota influência direta de Émile Zola, sendo o único de seus livros que se sustenta plenamente.” CANDIDO, Antonio. Iniciação à Literatura Brasileira: resumo para principiantes. São Paulo: Humanitas,1998.
IV. “Visto à luz da cultura europeia, este movimento literário reage às correntes analíticas dos meados do século, assim como o Romantismo reagira à Ilustração triunfante em 1789. Ambos os movimentos exprimem o desgosto das soluções racionalistas e mecânicas e nestas reconhecem o correlato da burguesia industrial em ascensão.” BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1978.
PAUSA PARA REFLEXÃO Em seu caderno, responda às questões a seguir: 1. Que conteúdos deste capítulo consiguiria explicar sem consultar o livro? 2. Consultando o livro, identifique os conteúdos que, na sua opinião, não foram bem compreendidos e merecem novas explicações ou atividades de reforço. 3. Que atividade(s) considerou mais importantes para o seu aprendizado? Por quê? 4. Em que aspectos poderá melhorar sua participação nas próximas aulas?
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A lua que lhe foi mãe carinhosa Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la Entre lírios e pétalas de rosa. Os meus sonhos de amor serão defuntos... E os arcanjos dirão no azul ao vê-la, Pensando em mim: – “Por que não vieram juntos?”
A LINGUAGEM CONSTRUINDO A RELIGIOSIDADE POPULAR Mire e veja: o mais importante e bonito do mundo, é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. (Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas)
Já pudemos analisar que a sociedade se apodera do discurso religioso e o utiliza em textos não religiosos com as mais diferentes finalidades. É isso que faz, por exemplo, o cartunista argentino Quino, no texto a seguir.
QUINO. Esto no es todo. Barcelona: Lumen.
A linguagem construindo a religiosidade popular
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“O senhor... Mire e veja: o mais importante e bonito do mundo, é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza. A pois: um dia, num curtume, a faquinha minha que eu tinha caiu dentro dum tanque, só caldo de casca de curtir, barbatimão, angico, sei lá. – “Amanhã eu tiro...” – falei, comigo. Porque era de noite, luz nenhuma eu não disputava. Ah, então, saiba: no outro dia, cedo, a faca, o ferro dela, estava sido roído, quase por metade, por aquela aguinha escura, toda quieta. Deixei, para mais ver. Estala, espoleta! Sabe o que foi? Pois, nessa mesma tarde, aí: da faquinha só se achava o cabo... O cabo – por não ser frio metal, mas de chifre de galheiro. Aí está: Deus... Bem, o senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me entende... Somenos, não ache que religião afraca. Senhor ache o contrário. Visível que, aqueles outros tempos, eu pintava – cré que o caroá levanta a flor. Eh, bom meu pasto... Mocidade. Mas mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir.” ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
GUIMARÃES ROSA (1908-1967) – “Minha biografia, sobretudo minha biografia literária, não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras; para mim são minha maior aventura. Escrevendo descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta. (...) em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. O crocodilo vem ao mundo como um ‘magister’ da metafísica, pois para ele cada rio é um oceano, um mar de sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda uma coisa dos nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar a eternidade”. Em entrevista dada por Guimarães Rosa a Günter Lorenz em 1965, encontrada em Guimarães Rosa: seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico e exercícios por Beth Brait. São Paulo: Abril Educação, 1982.
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Observe que o olhar irônico de Quino, no texto, ainda que tenha como objetivo a diversão, esconde um dos mais frequentes questionamentos humanos quando o assunto é Deus. Encontramos esse mesmo questionamento em um dos mais importantes clássicos da literatura brasileira, o romance de Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas. Deste autor, você já conhece, pelo menos, o conto Fita Verde no Cabelo que apresentamos no volume 1 desta coleção.
Sobre Grande sertão veredas – O único romance escrito por Rosa, é considerado uma das obras-primas da literatura brasileira. O romance se constrói como uma narrativa oral: um velho fazendeiro presta um depoimento sobre sua experiência de vida a um interlocutor, cuja fala é apenas sugerida. Neste longo monólogo (pois a fala do turno do interlocutor nunca aparece), conhecemos Riobaldo, um ex-jagunço do norte de Minas que vive como um pacato fazendeiro às margens do rio São Francisco. Apesar de sua história de vida, Riobaldo recebeu educação formal. Assim, o testemunho dos estranhos casos que viveu pelo sertão de Minas, Goiás e sul da Bahia é acompanhado de reflexões filosóficas. Como contador de histórias, o narrador-personagem emenda um caso no outro, sempre com a preocupação de discutir a existência ou não do diabo. Disso depende a salvação de sua alma. Na juventude, parece que Riobaldo fez um pacto com o “demo” a fim de vencer seu grande inimigo, Hermógenes. Além disso o amor de Riobaldo por Diadorim é outra fonte de conflitos, pois Riobaldo pensa que Diadorim é homem – o valente Reinaldo – até que a identidade feminina é revelada quando Diadorim é morta por Hermógenes. A fala sertaneja de Riobaldo é construída por Guimarães Rosa a partir de uma profunda pesquisa linguística erudita. A linguagem é, para o narrador, o poder mágico que lhe permite compreender-se e resgatar as suas culpas, encontrando a absolvição.
Para responder às questões, reúnam-se em duplas. 1. Comparando os textos de Quino e de Guimarães, encontrem o questionamento comum que os sustenta.
2. Em que sentido, de acordo com o texto de Guimarães Rosa, “Deus é traiçoeiro?”
3. Grande sertão é construído a partir de uma linguagem toda especial, elaborada por Guimarães. Que efeito essa linguagem provocou em vocês durante a leitura? Por quê? Discutam as respostas a essas perguntas oralmente, em sala de aula. A linguagem construindo a religiosidade popular
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Para escrever o seu texto, o autor se embasou em diversas marcas da oralidade. Uma delas é a construção frasal por tópico.
A CONSTRUÇÃO DA FRASE POR TÓPICO
(1 ) Os homens creem em Deus. •
O substantivo “homens” funciona como núcleo do sujeito e é ampliado pelo adjunto adnominal “os”.
•
O verbo “creem” funciona como núcleo do predicado e é ampliado pelo complemento verbal “em Deus”.
As regras gramaticais nos dizem que não devemos separar sujeito e predicado com vírgulas. Não seria apropriado dentro das normas do português padrão escrever “Os homens, creem em Deus”, considerando “Os homens” como sujeito da oração. Contudo, é possível anteceder à sentença um sintagma nominal anterior, externo e, normalmente, já ativado no contexto discursivo. A sentença funciona, dessa maneira, como um comentário do tópico. É o caso em: (2 ) Os homens, todos creem em Deus. Observe que o sujeito da frase (2) não é “Os homens”, mas o pronome indefinido “todos”. A expressão ou sintagma nominal “Os homens” funciona como tópico da frase e a sentença “todos creem em Deus” como comentário desse tópico. Na linguagem oral é muito comum nos expressarmos assim. Ao lançarmos o tópico da conversa, seguramos a atenção de nosso interlocutor, mostrando-lhe a parte mais importante do nosso comentário, e temos um tempo maior para elaborarmos a frase. Com certeza, você já ouviu expressões como: (3) A festa, nós vamos na festa do Paulo no sábado! O locutor anuncia o tópico, a festa, sobre o qual vai falar para, depois, fazer um comentário por meio de uma sentença completa, “nós vamos na festa do Paulo no sábado”. O uso da preposição “em” na regência do verbo “ir” em “vai na [em + a]” reforça a ideia de que se trata de linguagem oral. Como na língua portuguesa, podemos ter orações com sujeito oculto, são possíveis frases como: (4) A festa, vamos à festa do Paulo no sábado! Observe que em (4), o sujeito não é “A festa”, mas “nós”, sujeito oculto resgatado pelo verbo “vamos”. 4. Explique a vírgula no período do texto de Guimarães Rosa. “(...) o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro!”
5. No exemplo a seguir, Guimarães também recorre ao processo de topicalização: “(...) a faca, o ferro dela, estava sido roído, quase por metade, (...).”
O texto apresenta dois tópicos na mesma frase. Identifique-os e explique a sua função dentro da sentença. 320
Capítulo 7
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
Como se sabe, de uma forma geral, a frase oracional organiza-se em torno de um nome, que funciona como sujeito, e um verbo, que funciona como predicado Conforme a sua natureza, o nome e o verbo podem ser modificados ou complementados por palavras ou expressões que giram em torno deles. Como na frase a seguir.
6. Que diferenças sintáticas você encontra entre a frase analisada na questão 2 e esta a seguir.
Aposto: é o termo colocado ao lado do nome que o amplia, especifica, enumera ou resume, podendo substituí-lo.
“(...) a faca, o ferro dela, estava sido roída, quase por metade, (...).”
7. Além de diferenças sintáticas, você encontra diferenças de sentido entre as orações analisadas nos exercícios 2 (de Guimarães) e 3? Qual delas lhe parece mais coerente? Por quê?
Já estudamos também que a ordem sintática direta da língua portuguesa é sujeito primeiro, predicado depois. No entanto, a ordem indireta pode contribuir para diferentes efeitos de estilo. É o caso seguinte encontrado em Guimarães. “Porque era de noite, luz nenhuma eu não disputava.”
8. Reescreva o período na ordem direta.
9. Que efeito de sentido nos permite encontrar o uso da ordem inversa? a) Dá maior destaque para a causa de não haver luz, situando a narrativa no eixo temporal, o que vai ser importante na continuação do relato. b) Destaca o fato de não se disputarem luzes, exemplificando o conflito interior da personagem, dividida entre o temor e o medo de Deus. c) Revela a incoerência de Riobaldo que nem sequer consegue se expressar direito e, ainda assim, questiona assuntos complexos e polêmicos que estão além de sua compreensão. d) Apresenta a ausência de luz como motivo principal da dissolução da faca, o que associa o poder natural às forças do ocultismo. e) Exemplifica o desejo da personagem de compreender a Deus e, assim, superar o conflito interior em que vive. 10. Justifique a sua escolha na questão anterior.
A linguagem construindo a religiosidade popular
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As construções frasais de tópico, muitas vezes, repetem o termo-chave na frase. Isso pode ser vantajoso na construção oral do texto, pois direciona o interlocutor para o que é importante na exposição, mas nem sempre funciona bem no texto escrito. Pode tornar o texto desnecessariamente repetitivo. Além disso, pode passar a falsa impressão de que o locutor não domina bem a norma-padrão da língua portuguesa que proíbe o uso da vírgula entre sujeito e predicado. Ao ler uma frase como: (5) Os homens, creem em Deus.
Ensaiando sobre o bem e o mal Chamamos de ensaio ao gênero textual que estuda um determinado assunto de forma mais profunda que a dissertação escolar e menos que outros textos acadêmicos universitários, como a tese ou a dissertação acadêmica. O objetivo é expor de forma consistente ideias e opiniões sem, contudo, preocupar-se com uma pesquisa detalhada sobre o assunto. O importante no ensaio não é tanto provar cientificamente o que se diz, mas desenvolver uma argumentação que seja respeitada por quem a ler. Claro que algumas recorrências científicas são comuns. A seguir, vamos ler um ensaio feito para a revista Ciência Hoje, disponível em . Nele, dois psicanalistas discutem a religiosidade hodierna. Tocam em uma das preocupações de Riobaldo, de Grande sertão: veredas – a existência do mal. Naturalmente, a proposta do texto não é a de substituir os credos religiosos de cada um, mas de explicar uma opinião pessoal a respeito. Você poderá, com certeza, discordar dos raciocínios apresentados mas, sem dúvida, concordará que os raciocínios estão bem desenvolvidos.
OS FUNDAMENTOS DO MAL Junia Vilhena Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Sergio Medeiros Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (doutorando). “O mundo contemporâneo assiste, no campo da religião, a um crescimento sem precedentes das seitas fundamentalistas. O fenômeno ocorre em escala planetária e de forma abrangente. Nenhum sistema religioso ficou imune a ele. São incon-
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táveis os grupos que advogam os fundamentos de sua fé. Dos talibãs sunitas aos xiitas de Kerbala, dos cristãos ortodoxos aos novos cultos evangélicos, as escrituras sagradas não são mais tomadas como metáforas ou em sentido simbólico. No mundo judaico, a ascensão do partido Likud e de outros organismos político-religiosos ainda mais ortodoxos vêm destituindo o caráter laico do Estado de Israel. Os fiéis da atualidade não interpretam a palavra divina: buscam dar substância à existência de seu Deus, atribuindo concretude à sua palavra. Por
que tal fenômeno? Podemos, de saída, argumentar que a falta de referenciais simbólicos culturais (presentes nas sociedades complexas) promove nos indivíduos – sobretudo os dos segmentos menos favorecidos da população – o sentimento de não pertencer ou não estar filiado àquele grupo social. O que o ‘laço social’ vem proporcionando ao sujeito contemporâneo? Nosso olhar, aqui, estará voltado para um segmento do mundo cristão brasileiro: o discurso neopentecostal e sua radicalização da experiência do ‘bem’ e do ‘mal’.”
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É mais provável que seu interlocutor pense se tratar de um erro de construção sintática (virgula entre sujeito e predicado) e não de uma frase construída com tópico.
INTERVALO Vamos fazer uma breve pausa em nossa leitura para compreendermos melhor a estrutura do ensaio. Note que até agora se desenvolveu a introdução do texto. Os três primeiros parágrafos desenvolvem o tema ou assunto que será abordado, mostrando a sua importância na atualidade. O quarto parágrafo faz o recorte ou delimitação desse tema. Isso porque o assunto é amplo e um bom ensaio não pode abordar tudo sobre o assunto que se propõe a tratar. O tema surge ao delimitarmos ou recortarmos o assunto.
Exercícios resolvidos I. Em apenas uma frase, identifique o tema desenvolvido na introdução.
O aumento do fundamentalismo religioso dá substância à existência de Deus atribuindo concretude à sua palavra. II. Que recorte do tema será abordado no ensaio?
Será abordado o discurso neopentecostal e sua radicalização da experiência do ‘bem’ e do ‘mal’.
Agora é a sua vez 11. Que outros recortes seriam possíveis dentro do assunto? Identifique três.
12. Quanto ao grau de formalidade, que tipo de linguagem é empregada no ensaio? Por quê?
Continuemos a nossa leitura...
O desencantamento da fé “Para grande número de estudiosos, parte da explicação para a crescente busca pelas seitas evangélicas pode ser encontrada no desencantamento das religiões, tal como proposto pelas igrejas mais progressistas. (...) A vertente mais intelectualizada e progressista, tanto do catolicismo (Teologia da Libertação) quanto do protestantismo
A linguagem construindo a religiosidade popular
histórico, tende a ver o mal não como algo real, mas como algo socialmente construído. Nessa visão historicista e racionalizada, o mal é um produto dos homens e de suas escolhas – está mais relacionado à falta de amor cristão do que a uma figura personificada. (...) A reaproximação da religião com a magia promove um reencantamento da religião. A razão,
longe de abolir o demônio, faz com que as especulações sobre ele aumentem. Uma vez que a ciência não é capaz de responder à tentativa de dar sentido à vida humana, a tarefa volta a ser desempenhada pela religião, e o diabo se torna um elemento irremovível de um mundo que faça sentido. Sem dúvida, o conhecimento evoluiu na modernidade.
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à ideologia de um universo integralmente racional, destinado ao progresso. As Luzes promoveram o saber fundado na experiência verificável. A visão do homem como sujeito da razão, sem afetividade (ou irracionalidade), permitiu universalizar a ideia de liberdade. No entanto, devido ao seu caráter abstrato, os princípios universais foram construídos sobre a ocultação das diferenças culturais, individuais – sobre as particularidades de cada ser humano. Uma das consequências disso
seria o desprezo pelo diferente, tido como inferior. A categoria ‘diferente’ inclui as populações ‘primitivas’, ‘atrasadas’, ‘subdesenvolvidas’ e certas ‘etnias’, recusadas pelo olhar daquele que acredita possuir razão superior. Lamentavelmente, para confirmar isso não é preciso ir muito longe na geografia ou na história: que o digam os moradores das favelas. Se o discurso da modernidade foi libertário em seus ideais, infelizmente foi intolerante com a diferença.”
INTERVALO O ensaio é um gênero textual dissertativo, ou seja, usa a exposição e a discussão de ideias, entre outros recursos, para que o leitor possa melhor compreender o assunto que aborda. É sempre importante lembrar da necessidade de adequar o conteúdo à estrutura, ou seja, pensar o texto antes de redigi-lo. Isso é visível no ensaio que estamos lendo, já a partir da escolha do título para o subtópico, “O desencanto da fé”.
13. Que relação existe entre o título dado ao subtópico e o que este desenvolve?
Avancemos na compreensão do ensaio...
A exclusão política e a divina providência “Se religião e política constituem espaços sociais diversos, com instituições, finalidades e inserções temporais específicas, cabe perguntar quando, e até que ponto, a dimensão religiosa pode ser adequada para pensar a política e as formações subjetivas que dela advêm. (...)
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Atribui-se ao pobre apenas necessidades, negando-lhe a condição de sujeito desejante. Reduz-se, assim, o sujeito único e singular a um número na multidão dos ‘excluídos’. (...) Sem dúvida, a celebração religiosa e a força da fé residem exatamente em seu aspecto cole-
tivo. Uma distinção, porém, é fundamental. Talvez pela herança individualista do protestantismo, a mobilização ‘coletiva’ das seitas evangélicas diz mais respeito à salvação individual que a um projeto de solução de problemas coletivos – tais como água, esgoto, lixo, associação de moradores, etc.
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Os princípios da ciência clássica serviram de paradigma para a produção de conhecimento em vários campos – da psicanálise, inclusive. Promoveram o progresso, a civilização e a criação de uma ideologia ou visão de mundo. Mas cabe lembrar que o Iluminismo trouxe as luzes, mas não eliminou as sombras do preconceito e da exclusão. O racionalismo das Luzes era humanista: associava o respeito e o culto do homem, concebido como ser livre e racional,
Em O futuro de uma ilusão (1927), o criador da psicanálise, Sigmund Freud (18561939) aponta como uma das bases da crença religiosa a busca de um governo bene-
volente ou de uma ‘providência divina’ que mitigue nosso temor dos perigos da vida. O ser humano buscaria ainda, no estabelecimento de uma ordem moral mundial, a garantia da
realização das exigências de justiça, que frequentemente permaneceram irrealizadas na civilização humana.” [...]
Vejamos então como lidam com o demônio e que atributos emprestam a ele.
INTERVALO Este é o último intervalo até o fim do texto. Uma estratégia argumentantiva que auxilia a conquistar o leitor consiste em apresentar um testemunho de autoridade, ou seja, apresentar ao leitor o pensamento de alguém respeitado na área do conhecimento na qual o texto vai circular. Claro que os pensamentos dessa autoridade no assunto devem estar bem articulados ao que o locutor defende no seu texto.
14. De que argumento de autoridade se vale este ensaio? É apropriado? Por quê?
O demônio e a sedução “São frequentes os testemunhos de fiéis que declaram ter sofrido males diversos de origem demoníaca. (...) Nessa perspectiva, os demônios são seres espirituais personificados, com paixões negativas e força superior à dos humanos. Sua força é inferior apenas à de Deus. (...) Estamos habituados a encarar a violência como um ato enlouquecido, como uma exceção – ou seja, como transgressão de
A linguagem construindo a religiosidade popular
regras, normas e leis já aceitas por uma comunidade. Pode-se, contudo, pensar na própria construção dessas regras como portadora de violência. Em outras palavras, a violência está associada à sujeição e à dominação, à obediência e sua interiorização – ou seja, à construção de doutrinas e saberes que norteiam, além de nossas práticas (ou atitudes), a forma pela qual entendemos nossa inserção na cultura. O poder violento bem-sucedido é aquele que não é percebido como violento: é a situação na
qual a submissão é obtida sem que haja necessidade de um poder visível para exercê-la. Como nos ensina Baruch de Spinoza (1632-1677), a invisibilidade da dominação é a condição de uma violência bem-sucedida. (...) Se o conceito de identidade diz respeito à Sociologia e à Antropologia, o sentimento de identidade diz respeito à Psicanálise. Segundo o psicanalista Jurandyr Freire Costa, são fatores da constituição do sujeito as imagens construídas pelo seu
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caminhos subjetivos em meio ao cotidiano. Quando a identidade é construída sem os referenciais sociais necessários (valorização social do trabalho, identificação com os pares, acesso a lazer e cultura), há uma desqualificação social do
sujeito. Desse indivíduo não se pode esperar muito em termos de transmissão de sua autoridade familiar e compromisso com a sociedade.” VILHENA, Junia e MEDEIROS, Sérgio. In: Ciência Hoje. Rio de Janeiro: Alícia Ivanissevich, out. 2003.
15. Discuta em classe a sua compreensão do texto.
O ensaio, ainda que se revele um espaço para a criatividade do escritor, é também um gênero textual que apresenta uma forma bem fechada, formada de três partes – introdução, desenvolvimento e conclusão. Essas partes devem ser adequadas não apenas ao conteúdo que se pretende desenvolver, mas também à sua função estrutural. Para isso é muito importante evitar lugares comuns e redundâncias (aquilo que, informalmente, chamamos de “encheção de linguiça”).
16. Identifique as três partes que formam esse ensaio. Introdução
De “O mundo contemporâneo assiste, no campo da religião” a “o discurso neopentecostal e sua radicalização da experiência do ‘bem’ e do ‘mal’.”
Desenvolvimento
Conclusão
17. O trecho do ensaio a seguir corresponde à introdução. Encontre o tema e o recorte do tema desenvolvido.
“Nosso trabalho tem por objetivo mostrar as relações entre a poesia e a pintura do final do século XIX, especialmente entre o Impressionismo na pintura e o correlato uso da técnica impressionista na poesia, que oscila entre o Realismo, o Naturalismo, o Decadentismo e o Simbolismo. Para isso, com a finalidade de delimitar o tema, escolhemos alguns aspectos básicos da pintura impressionista do século XIX e um representante da poesia impressionista portuguesa. Na pintura impressionista, escolhemos Edouard Manet (1832-1883), através da litogravura As corridas em Longchamp (Gombrich 1979: 411); Claude Monet (1840-1926), com A Estação des St.-Lazare em Paris (Gombrich 1979: 413); e Camile Pissarro (1830-1903), com O Boulevard des Italiens, manhã de sol (Gombrich 1979: 415). Os três pintores, ao escolherem três temas, nos mostram uma técnica pictórica que nos auxilia na procura de uma estrutura comum entre pintura e poesia impressionistas.
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meio social, nas relações com seus próximos e com a cultura na qual ele se insere (1984). São imagens sobre as quais buscará se identificar como forma de construção de afetos, de contato e troca. São modos de olhar a si mesmo que permitirão construir
Da mesma forma que as obras pictóricas escolhidas mostram paisagens urbanas em diferentes momentos do dia, o poema escolhido apresenta, através de outro meio, as palavras e suas respectivas simbolizações, os vários ângulos de uma cidade em transformação em diferentes momentos do fim da tarde. Na poesia portuguesa, inicialmente procuramos observar o impressionismo na linguagem poética de Joaquim José CESÁRIO VERDE (1855-1886). A escolha desse poeta está vinculada ao nosso centro de interesse para a elaboração de dissertação de mestrado, cujo estudo tem sido observar a realidade multifacetada e a plasticidade na sua linguagem poética.” António, Jorge Luz. Impressões da cidade em palavras-pinceladas de uma poesia-pintura de Cesário Verde. Disponível em . Acessado em 10-12- 2004.
Tema
Recorte do tema
18. O desenvolvimento do tema, devidamente recortado, inicia procurando as causas para o aumento de um fundamentalismo cristão na cultura ocidental. De acordo com o texto, quais as causas apontadas para um “reencantamento da religião”, em que a figura do mal surge de forma tão definida?
Durante a leitura do artigo, o leitor associa as informações novas com aquelas que ele já possui em sua “enciclopédia cultural” na mente. Por exemplo, o ensaio toca na visão científica desenvolvida no Iluminismo. Nós já estudamos a influência da filosofia do século XVIII para o surgimento das mentalidades neoclássica e romântica. O texto relaciona os conceitos construídos pela filosofia do século XVIII com o aumento do preconceito. 19. De acordo com o artigo, por que a mentalidade científica gera preconceito social?
20. Quanto ao posicionamento frente à religião, que semelhanças você encontra entre o Romantismo e os atuais fundamentalistas cristãos ? Por quê?
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SILVA, Vitor M. de Aguiar e. Teoria da literatura. Coimbra: Almedina, 2000.
Se, pela leitura desse ensaio, conseguimos apontar semelhanças entre a escola romântica e o atual fundamentalismo cristão, também encontramos facilmente diferenças, como pode notar lendo esta explicação do professor de literatura, Vitor M. de Aguiar e Silva.
“Visceralmente individualista e egotista, o romântico dificilmente aceita uma ortodoxia baseada num corpo de dogmas e garantida pela autoridade de uma hierarquia. A sua religiosidade é preponderantemente de natureza sentimental e intuitiva; o seu diálogo com a divindade tende a dispensar a mediação de um sacerdócio e o formalismo de ritos, desenrolando-se na intimidade da consciência. (...) Os românticos descobriram e cultuaram Deus nos astros e nas águas do mar, nas montanhas e nos prados, no vento, nas árvores e nos animais, em tudo o que existe nas intérminas plagas do universo. O panteísmo representa, com efeito, a forma de religiosidade mais frequente entre os românticos”. SILVA, Vitor M. de Aguiar e. Teoria da literatura. Coimbra: Almedina, 2000.
21. De acordo com o conceito de fundamentalismo cristão apresentado no ensaio, que diferenças mais significativas você consegue encontrar entre esses dois grupos?
Leia com atenção o seguinte excerto do poema Lembrança de morrer de Álvares de Azevedo.
Lembrança de morrer “No more! O never more! SHELLEY Quando em meu peito rebentar-se a fibra, Que o espírito enlaça à dor vivente, Não derramem por mim nem uma lágrima Em pálpebra demente. E nem desfolhem na matéria impura A flor do vale que adormece ao vento: Não quero que uma nota de alegria Se cale por meu triste passamento. 328
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“A valorização do inconsciente, da intuição e das faculdades místicas constituiu, como temos referido, um aspecto importante do Romantismo. A revivescência do ideal religioso, após o parcial eclipse das crenças religiosas gerado pelo racionalismo iluminista, integra-se nesta vaga de misticismo e de arracionalismo românticos.”
Eu deixo a vida como deixa o tédio Do deserto o poento caminheiro... Como as horas de um longo pesadelo Que se desfaz ao dobre de um sineiro... (...) Se uma lágrima as pálpebras me inunda, Se um suspiro nos seios treme ainda, É pela virgem que sonhei!... que nunca Aos lábios me encostou a face linda! Só tu à mocidade sonhadora Do pálido poeta deste flores... Se vivi... foi por ti! e de esperança De na vida gozar de teus amores. Beijarei a verdade santa e nua, Verei cristalizar-se o sonho amigo... Ó minha virgem dos errantes sonhos, Filha do céu! eu vou amar contigo! Descansem o meu leito solitário Na floresta dos homens esquecida, À sombra de uma cruz! e escrevam nela: – Foi poeta, sonhou e amou na vida. Sombras do vale, noites da montanha, Que minh’alma cantou e amava tanto, Protegei o meu corpo abandonado, E no silêncio derramai-lhe um canto! Mas quando preludia ave d’aurora E quando, à meia-noite, o céu repousa, Arvoredos do bosque, abri as ramas... Deixai a lua pratear-me a lousa! AZEVEDO, Álvares. Lira dos vinte anos. São Paulo: FTD, 1994.
22. O que pensa o eu-lírico sobre a morte?
23. Encontre três exemplos no poema que comprovem a visão da religiosidade romântica, defendida por Vitor M. de Aguiar e Silva e explique-os.
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“Eu deixo a vida como deixa o tédio Do deserto o poento caminheiro...”
25. Comparando o verso de Álvares de Azevedo com a sua reescrita, que diferenças encontra?
Retornemos ao nosso estudo sobre o ensaio. A estrutura fixa de introdução, desenvolvimento e conclusão pode representar um desafio na hora de escrever. Mas isso não significa uma camisa de força para o escritor. Ainda há espaço para a criatividade. Invista naqueles aspectos que podem ser variáveis. Defenda o que pensa e construa o sentido crítico que o texto deve ter. Mesmo os textos apenas informativos, como esquemas, relatórios e cartas, têm no conteúdo um aspecto que pode variar ou ser modificado. Do contrário, bastariam cópias. Claro que se deve evitar o absurdo, apenas para ser engraçado ou supostamente criativo. A criatividade é, na maior parte das vezes, a forma como rearranjamos o que já existe, construindo daí algo novo. Normalmente não resulta em algo de fato criativo realizar algo novo que surge como do nada. O texto literário, por sua vez, permite uma criatividade muito maior no que respeita ao uso da linguagem. Um mesmo assunto pode ser abordado de formas muito distintas em um ensaio e em um texto literário. Isso é visível em Grande sertão veredas. Observe, por exemplo, este trecho em que Riobaldo define quem ou o que é o Diabo:
“Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão é que não tem nenhum. Nenhum! – é o que eu digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco – é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso – por estúrdio que me vejam – é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é ditado: “menino – trem do diabo”? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes...” ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
26. Compare o conceito de Diabo atribuído pelo ensaio aos neopentecostais com o defendido por Riobaldo: que diferenças encontra?
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24. Os versos abaixo formam uma frase com duas orações. A segunda oração está escrita em ordem inversa, reescreva-a na ordem direta.
27. Em Os fundamentos do mal afirma-se: “O poder violento bem-sucedido é aquele que não é percebido como violento”. Essa ideia é também abordada por Guimarães em Grande sertão veredas. Prove.
28. Levando em conta os conhecimentos desenvolvidos até aqui, escreva um ensaio. Para isso, escolha um dos três temas: 1. A existência do bem e do mal. 2. A pobreza e a exploração social. 3. A arte e a religiosidade popular. Lembre-se de que esses temas são muito amplos e necessitam de um recorte claro e original. Utilize-se do modelo apresentado pelo ensaio que estudamos. Veja como se inicia um ensaio sobre o escritor português Antero de Quental: Incidência da obra e da acção de Antero na mutação da mentalidade portuguesa.
“O tema proposto, para quem estiver minimamente informado sobre os problemas que ele implica, é demasiadamente ambicioso, exigindo uma alta dose de coragem. Um tema a que foram concedidos alguns meses para reflexão, quando seria necessária, possivelmente, uma vida inteira. (...) Tudo isto nos obriga, antes de mais, a definir o espaço, quanto possível, da nossa reflexão.” Disponível em . Acessado em 10 -12-2004.
29. Ao terminar o seu texto, peça que um colega examine o que escreveu, observando os seguintes critérios: 1. Utilização da norma padrão da língua portuguesa. 2. Esquema introdução – desenvolvimento – conclusão. 3. Desenvolvimento do raciocínio claro e inteligível. 4. Presença de testemunho de autoridade. 5. Criatividade. Discutam em classe a inclusão de outros critérios complementares: 6. 7. 8.
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“SERTÃO É ONDE O PENSAMENTO DA GENTE SE FORMA MAIS FORTE DO QUE O PODER DO LUGAR”
“Agora, bem: não queria tocar nisso mais – de o Tinhoso; chega. Mas tem um porém: pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa parlanda, de com o demônio se poder tratar pacto? Não, não é não? Sei que não há. Falava das favas. Mas gosto de toda boa confirmação. Vender sua própria alma... Invencionice falsa! E, alma, o que é? Alma tem de ser coisa interna, supremada, muito mais do de dentro, e é só, do que um se pensa: ah, alma absoluta! Decisão de vender alma é afoitez vadia, fantasiado de momento, não tem a obediência legal. Posso vender essas boas terras, daí de entre as Veredas-Quatro – que são dum senhor Almirante, que reside na capital federal? Posso algum!? Então, se um menino menino é, e por isso não se autoriza de negociar... E a gente, isso sei, às vezes é só feito menino. Mal que em minha vida aprontei, foi numa certa meninice em sonhos – tudo corre e chega tão ligeiros – ; será que se há lume de responsabilidades? Se sonha; já se fez... Dei rapadura ao jumento! Ahã. Pois. Se tem alma, e tem, ela é de Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ou não queira. Não é vendível. O senhor não acha? Me declare, franco, peço. Ah, lhe agradeço. Se vê que o senhor sabe muito, em ideia firme, além de ter carta de doutor. Lhe agradeço, portanto. Sua companhia me dá altos prazeres. Em termos, gostava que morasse aqui, ou perto, era uma ajuda. Aqui não se tem convívio que instruir. Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso...” 30. Comente em classe a sua compreensão do texto. 31. “Os fundamentos do mal” afirma:
“(...) a violência está associada à sujeição e à dominação, à obediência e sua interiorização – ou seja, à construção de doutrinas e saberes que norteiam, além de nossas práticas (ou atitudes), a forma pela qual entendemos nossa inserção na cultura.” Levando em conta o que leu até agora de Grande sertão veredas, como Riobaldo entende a sua “inserção na cultura”?
“Sou só um sertanejo, nessas altas ideias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração. Não é que eu seja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre. Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde do começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula régia – que também diziam. Tempo saudoso! Inda hoje, apreceio um bom livro, despaçado.” ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
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O trecho a seguir também pertence a Grande sertão veredas, de Guimarães Rosa. Observe, durante a leitura, as estratégias usadas pelo autor para dar ao texto escrito marcas de oralidade. Note também como aparece no texto a questão do mal, discutida anteriormente no ensaio que examinamos.
32. O mesmo texto científico afirma:
“Segundo o psicanalista Jurandyr Freire Costa, são fatores da constituição do sujeito as imagens construídas pelo seu meio social, nas relações com seus próximos e com a cultura na qual ele se insere (1984). São imagens sobre as quais buscará se identificar como forma de construção de afetos, de contato e troca. São modos de olhar a si mesmo que permitirão construir caminhos subjetivos em meio ao cotidiano”.
Do que você leu até agora de Grande sertão veredas, que imagem Riobaldo constrói de si mesmo? Por quê?
A linguagem oral se caracteriza por ser mais repetitiva que a escrita. No excerto a seguir, há dois casos interessantes de repetição. “Agora, bem: não queria tocar nisso mais – de o Tinhoso; chega. Mas tem um porém: pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa parlanda, de com o demônio se poder tratar pacto?” 33. O pronome “isso” em “não queria tocar nisso mais” aponta para adiante, para o assunto da conversa, “de o Tinhoso”. Ou seja, o pronome “isso” repete-se na expressão “de o Tinhoso”. Reescreva a frase desfazendo essa repetição. Faça os acréscimos que julgar convenientes, mas mantenha-se o mais próximo que conseguir da estrutura original.
34. Na pergunta feita por Riobaldo, há uma importante repetição semântica que serve para introduzir o tópico chave da conversa. Identifique essa repetição.
35. A repetição nesses dois casos: a) estica a conversa, pela falta de assunto do locutor, satisfazendo a necessidade que este tem de estar próximo de quem o escuta, por considerá-lo mais sábio e instruído. b) torna o diálogo mais científico, apresentando ao interlocutor uma maior riqueza de detalhes a respeito do assunto abordado. c) acrescenta ao texto um ar mais popular, caracterizando o narrador-personagem como uma figura folclórica em oposição ao interlocutor instruído. d) atrasa a conversação, permitindo que o interlocutor, a quem considera pessoa instruída e capaz de dar conselhos, se familiarize com a ideia nova e a aceite com mais naturalidade. e) sobrecarrega o interlocutor de informação. 36. Justifique a sua escolha.
A linguagem construindo a religiosidade popular
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37. Caso diferente é o que ocorre com a repetição do termo “menino” no excerto:
“Então, se um menino menino é, e por isso não se autoriza de negociar... E a gente, isso sei, às vezes é só feito menino.”
Um dos processos de formação de palavras na língua portuguesa é por derivação imprópria. Ocorre quando utilizamos uma palavra em sentido e classe gramatical diferentes daqueles em que ela normalmente é usada. 38. Leia atentamente o excerto.
“Mas tem um porém: pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa parlanda, de com o demônio se poder tratar pacto?” a) Que palavra sofreu derivação imprópria?
b) Normalmente essa palavra pertence a que classe gramatical? c) No texto ela está sendo empregada em que função gramatical? d) Como se construiu essa mudança da função gramatical? e) A palavra conserva ainda traços de sentido daqueles que são recorrentes em seu uso mais comum. Identifique-os.
A linguagem é viva e procura captar toda a dinâmica da vida. Na língua portuguesa surgem constantemente palavras novas ou neologismos. Um dos processos pelos quais se formam palavras é, como vimos no exercício 9, a derivação. Mas a derivação não é apenas imprópria. Ela ocorre sempre que a partir de uma palavra-chave, que chamamos primitiva, formamos outras, a que chamamos derivadas. A palavra “menino” é primitiva. Dela derivam outras como “meninice” e “menininho”. Observe: menin – o menin – ice menin – inho O termo “menin-“ é a parte da palavra que transmite o sentido principal, referindo-se ao mundo da realidade extralinguística. É chamado de morfema lexical ou radical. Os termos “-o”, “-ice”, “-a”, “-s” e outros que se associam ao radical, indicando relações e categorias linguísticas, são chamados de morfemas gramaticais ou, simplesmente, morfemas. 39. Que informação apresenta o morfema “-o” em “menino”?
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Capítulo 7
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
A repetição do segundo termo “menino” em “se um menino menino é” aponta para o aspecto físico ou psicológico da infância? Por quê?
40. Que informação apresenta o morfema “-s” em “meninas”?
41. Pesquise o assunto em uma gramática de boa qualidade e complete os quadros a seguir. Afixos: são os morfemas que se juntam ao radical para modificar o sentido desse radical. São divididos em prefixos e sufixos. Prefixos:
Exemplos:
Sufixo:
Exemplos:
42. Os processos de derivação podem ser: Tipo de derivação
Definição
Exemplo
Observações e dicas
Prefixal
Sufixal
Menin – ice Radical sufixo
Parassintética
A ausência de um dos afixos descaracteriza a palavra que deixa de pertencer à língua portuguesa.
Prefixal e sufixal
A ausência de um dos afixos altera a palavra, mas ela continua existindo no repertório da língua portuguesa.
A linguagem construindo a religiosidade popular
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Definição
Regressiva
Imprópria
Exemplo
Observações e dicas
Enroscar > enrosco Cortar > corte Vender > venda
Na língua oral é comum encontrarmos reduções, por exemplo “refri” (por refrigerante). Não se trata de derivação regressiva, pois não se formou uma nova palavra. Outros exemplos de redução:
Mudamos o sentido e a classe gramatical de uma palavra, alterando a forma como ela é normalmente usada.
Ampliações sintáticas do nome De acordo com o processo de formação de palavras, o nome poderá ser modificado ou completado por outras palavras ou expressões que estão em torno dele. São os adjuntos adnominais e os complementos nominais. Observe a seguinte oração:
“Posso vender essas boas terras”
“Essas” e “boas” são adjuntos adnominais do termo “terras”.
O adjunto adnominal pode ser expresso por adjetivo, locução adjetiva, artigo, pronome adjetivo (possessivo, demonstrativo, indefinido, interrogativo e relativo) e numeral.
“Quando o adjunto adnominal se constitui de uma expressão, esta muitas vezes se inicia com a preposição de, mas a significação do adjunto pode variar; se sintaticamente não há diferença entre os complementos “casa de João” e “casa de tijolos” (ambos são adjuntos adnominais), há todavia diferenças de sentido: se em “casa de João” temos um adjunto adnominal que indica posse, em “casa de tijolos” o adjunto adnominal indica qualidade, é uma perfeita locução adjetiva. Outras ideias podem ainda o adjunto adnominal indicar, como finalidade (casa de armazenagem, agulha de marear), medida (casa de 10 metros de frente), disposição (casa com muitos quartos), preço (casa de vários milhões), processo (relógio de sol), argumento (livro de filosofia).” ALMEIDA, Napoleão Mendes. Gramática metódica da língua portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1962.
43. Que ideias são expressas pelos adjuntos adnominais em negrito nas orações: a) “(...) acha fio de verdade nessa parlanda (...)”
b) “(...) além de ter carta de doutor (...)”
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Capítulo 7
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Tipo de derivação
c) “(...) o pensamento da gente se forma mais forte (...)”
Agora observe: (1 ) “Vender sua própria alma... Invencionice falsa!” Podemos reescrever a frase da seguinte maneira: (2) “A venda de sua própria alma... Invencionice falsa!” O verbo “vender”, em (1), é completado sintaticamente pelo objeto direto “sua própria alma”. Da mesma forma, o substantivo derivado do verbo, “venda”, necessita de um complemento, “de sua própria alma” é complemento nominal do nome “venda”. O complemento nominal completa a significação de um substantivo, adjetivo ou advérbio.
“Se por um lado, há substantivos, adjetivos e advérbios que têm significação absoluta, como parede, dedo, vivo, hoje, há, por outro lado, os que necessitam de um termo que lhes integre o sentido: gosto (a alguma coisa), obediência (a alguma coisa), desejo (de alguma coisa), contrariamente (a alguma coisa). O complemento de palavras como estas vem a ser o complemento nominal. Exemplos: ‘Gosto à música’ – ‘Amor à pátria’ – ‘Obediência ao mestre’ – ‘Desejoso de aprender’ – ‘Apaixonado pela ciência’ – ‘Desfavoravelmente a nós’” – ‘Relativamente à sociedade’ – ‘Chegada ao país’ – ‘Vinda do exterior’ – ‘Digno de louvor’.” ALMEIDA, Napoleão Mendes. Gramática metódica da língua portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1962.
Adjunto adnominal ou complemento nominal? Distinguir um adjunto adnominal expresso por uma locução adjetiva e um complemento nominal nem sempre é fácil. Ajuda lembrar que: O complemento nominal acompanha substantivos, adjetivos e advérbios. O adjunto adnominal acompanha apenas substantivos. Assim, se a dúvida residir em um termo ligado a um adjetivo ou a um advérbio, não há o que errar: é complemento nominal. No caso de o termo aparecer ligado a um substantivo, a situação requer análise mais detalhada. O complemento nominal resulta do fato de que alguns substantivos herdam a transitividade dos verbos de que derivam. O complemento nominal está para o nome, assim como o complemento verbal está para o verbo. Além disso, os substantivos que requerem complemento nominal são sempre abstratos. Veja: (3) Minha mãe me ama e isso é muito importante para mim. (4) O amor de minha mãe é muito importante para mim. Observe que em (3) “minha mãe” funciona como sujeito do verbo amar. O substantivo que deriva de “amar” é “amor”. A frase (4) tem o mesmo sentido da anterior e o termo correspondente “de minha mãe” é o adjunto adnominal do termo “amor”. O artigo “o” também é adjunto adnominal, mas isso não levanta dúvidas. No entanto, veja agora: (5) Amo a minha mãe e isso é muito importante para mim. (6) O amor por minha mãe é muito importante para mim. A linguagem construindo a religiosidade popular
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Em (5), “a minha mãe” funciona como complemento verbal de amar, é o objeto direto (quem ama, ama alguém). O termo correspondente na frase (6) é “por minha mãe” e é complemento nominal do substantivo “amor”, núcleo do sujeito da frase. O artigo “o” continua funcionando como adjunto adnominal.
Exercício resolvido
“Decisão de vender alma” corresponde a “decidir vender a alma”, em que “vender a alma” funciona como complemento verbal (objeto direto) do verbo decidir (quem decide, decide alguma coisa). Portanto, podemos afirmar que “de vender a alma” funciona como complemento nominal de decisão.”
Agora é a sua vez 44. Na frase “A crença em Deus alegra os homens”, o termo “em Deus” é complemento nominal ou adjunto adnominal? Justifique a sua resposta.
45. Transforme em substantivos os verbos destacados, fazendo as alterações necessárias no restante da frase. a) Vender a alma é uma impossibilidade. b) Investir em educação traz benefícios. c) A aluna necessita de maior atenção. d) Apenas nos resta confiar em Deus. 46. Em Grande sertão veredas, Riobaldo, como vimos, em certo momento, afirma sobre Deus: “Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto!”. A expressão “de traiçoeiro” é adjunto adnominal ou complemento nominal? Explique.
47. Seguindo o modelo do exercício resolvido deste subtópico, elabore um exercício cuja resposta seja “adjunto adnominal”. A seguir, desenvolva o raciocínio que justifique a resposta.
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Capítulo 7
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No texto de Guimarães Rosa, lemos: “Decisão de vender alma é afoitez”. O termo em negrito funciona como complemento nominal ou adjunto adnominal?
GUIMARÃES ROSA E OS PROCESSOS DE FORMAÇÃO DE PALAVRAS Típico da linguagem de Guimarães Rosa é o uso de neologismos que aparentam ser simplistas e populares, mas escondem erudição e pesquisa histórica da língua portuguesa. Já vimos um exemplo interessante do uso da derivação imprópria em “Mas tem um porém:”. Há, no entanto, o uso estilístico dos processos de derivação na obra de Guimarães. 48. Qual o processo de formação dos neologismos a seguir. a) Supremada: b) Afoitez: c) Vendível: 49. Observe a frase em que surge o neologismo “supremada”.
“Alma tem de ser coisa interna, supremada, muito mais do de dentro”. a) Consulte no dicionário o sentido dos termos a seguir. Tome nota dos elementos que permitem aproximar os termos entre si.
a) Arrancada:
b) Cantada:
c) Esticada:
b) Qual o sentido do sufixo “-ada”? Em qual sentido o sufixo poderia estar contribuindo para a construção do sentido do texto?
50. Observe agora o contexto do termo “afoitez”. “Decisão de vender alma é afoitez vadia, fantasiado de momento, não tem a obediência legal”. a) Repita a operação que fez em 2.1. Leve em conta apenas os aspectos que aproximam os vocábulos entre si:
a) Sensatez:
b) Honradez:
c) Estupidez:
b) Qual o sentido do sufixo “-ez” dentro do texto de Rosa?
Além dessa visita à formação da língua portuguesa, os neologismos da obra de Guimarães Rosa aproximam as falas do narrador-personagem de uma certa imagem de personagem provinciana e popular, como se tais palavras pertencessem ao registro oral.
ENTRE PARALELOS: ALEGORIAS A Bíblia nos conta que o rei Davi desejou a mulher de Urias, Bateseba, e tanto fez que dormiu com ela. Dessa relação, Bateseba ficou grávida. Urias era um dos generais de Davi e estava em campo de batalha. O rei mandou chamá-lo de volta para que ele dormisse com a esposa e assim escondesse o que tinha feito, fazendo Urias crer que havia sido ele quem engravidara Bateseba. Urias se recusou, pois A linguagem construindo a religiosidade popular
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considerou antiético se divertir com sua esposa enquanto os seus soldados estavam em guerra. Davi mandou uma carta a outro chefe, Joabe, pelas mãos do próprio Urias, para que esse fosse colocado à frente da batalha e não tivesse retaguarda. Urias morreu e Davi ficou com a mulher.
“O Senhor enviou o profeta Natã para falar com Davi. Ele entrou e disse: ‘Havia dois homens na mesma cidade, um rico e outro pobre. O rico possuía ovelhas e vacas em grande número. O pobre nada tinha senão uma ovelhinha, só uma pequena ovelha que ele havia comprado. Ele a criara e ela cresceu com ele e seus filhos, comeu do seu pão, bebeu do seu copo, dormia no seu colo; era como sua filha. Um hóspede veio à casa do homem rico, que não quis tirar uma de suas vacas ou de suas ovelhas para servir ao viajante que o visitava. Ele tomou a ovelha do pobre e a preparou para a visita’. Davi se encolerizou contra o homem e disse a Natã: ‘Tão certo como Jeová vive, quem fez isso é digno de morte! Devolverá quatro vezes o valor da ovelha, por ter cometido tal ato e não ter tido piedade’.” II Samuel, 12:3–5.
A parábola é um costume oriental, de longa data. No Velho Testamento, encontramos várias parábolas, como a da ovelhinha, que acabamos de ler. A parábola é um gênero literário, com mecanismos específicos de construção linguística, embora, geralmente seja associada ao universo religioso. A palavra “parábola” vem do grego parabolé e significava: “jogar forragem”; “colocar forragem ao lado dos cavalos para alimentá-los”. Com o tempo passou a indicar o ato de se “colocar ao lado” ou “em paralelo”. O que caracteriza a parábola é a possibilidade de estabelecer um paralelo entre o mundo narrado e o mundo dos interlocutores. 51. Que paralelo podemos estabelecer entre a parábola contada por Natã, o profeta, e a conduta de Davi?
Tais paralelos fazem da parábola um texto alegórico. A alegoria é uma forma de metáfora, que usa de imagens para exprimir ideias. Por meio da alegoria damos a entender uma coisa expressando outra. Definimos, por exemplo, a ideia abstrata de justiça por uma forma concreta como a estátua com balança, espada e olhos vendados. Esses elementos traduzem o equilíbrio (a balança), a firmeza (a espada) e a imparcialidade da justiça (os olhos vendados). Essa tradução visível ocorre por existirem convenções culturais compartilhadas e compreensíveis ao interlocutor. 52. Para que a parábola de Natã alcançasse o efeito desejado, era importante que Davi partilhasse do mesmo conceito cultural de justiça presente na narrativa. Isso ocorre? Prove.
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Parábola da ovelhinha do pobre
53. Ao narrar a sua parábola, Natã nomeia as personagens como “homem rico” e “homem pobre”, em vez de atribuir-lhes um nome próprio. Isso possibilita que efeitos expressivos dentro do texto?
54. O Natal é uma das maiores festas da Cristandade. Ele é repleto de elementos alegóricos cujas origens perdem-se na corrente do tempo e que procuram traduzir os ideais de amor cristão. Alguns desses elementos, no entanto, ganharam mais recentemente uma conotação associada ao discurso capitalista. Identifique dois desses elementos e explique como eles ganharam nova interpretação.
A associação entre o elemento que compõe uma alegoria e o seu significado não é sempre o mesmo, mas pode variar de acordo com o lugar e o momento histórico. A linguagem e o assunto das parábolas aproximam-se do conhecimento comum, mas não se limitam a ele. Os efeitos de linguagem presentes nas parábolas permitem que elas transcendam os textos que circulam no cotidiano. São gêneros textuais que permitem diversas interpretações à medida que novas leituras são realizadas. 55. A parábola narrada por Natã poderia ser interpretada de outras maneiras, em outros contextos. Imagine uma outra possibilidade de interpretação para essa parábola, levando em conta a realidade em que vive.
Além das parábolas, são também alegorias, transmitindo lições éticas e morais: Fábulas: narrativas protagonizadas por animais personificados (que pensam e falam). Sua origem encontra-se na Antiguidade Clássica e no Oriente. São famosas e muito conhecidas fábulas como A cigarra e a formiga ou A raposa e as uvas. De que outras fábulas você se lembra? Apólogos: narrativas protagonizadas por objetos animados. Têm origem muito antiga, provavelmente oriental. Na literatura brasileira, um dos apólogos mais famosos foi escrito por Machado de Assis. Intitula-se Um apólogo, mas é também conhecido por A agulha e a linha.
A linguagem construindo a religiosidade popular
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O adjunto adverbial: expandindo o texto Observe uma frase da parábola de Natã:
“Havia dois homens na mesma cidade, um rico outro pobre”.
56. A expressão “na mesma cidade” transmite uma ideia de: a) tempo;
b) modo;
c) lugar;
d) causa;
e) instrumento.
O adjunto adverbial é um termo que aparece ligado sintaticamente ao verbo. Normalmente, acrescenta-lhe uma circunstância que colabora para a compreensão da frase, mas não é essencial para a sua estrutura sintática. 58. Na frase: “Ele a criara e ela cresceu com ele e seus filhos”, o termo “com ele e seus filhos” transmite a ideia de: a) tempo;
b) consequência;
c) lugar;
d) companhia;
e) instrumento.
59. Assim podemos dizer que a expressão “com ele e seus filhos” se trata de um adjunto adverbial de 60. Com a ajuda de uma gramática, identifique e classifique os adjuntos adverbiais nas frases a seguir. a) “Em O futuro de uma ilusão (1927), o criador da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939) aponta como uma das bases da crença religiosa a busca de um governo benevolente (...)”. b) “O tema proposto, para quem estiver minimamente informado (...)”. c) “Foi poeta, sonhou e amou na vida”. d) “O mundo contemporâneo assiste, no campo da religião, a um crescimento sem precedentes das seitas fundamentalistas”. e) “As pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas”.
O adjunto adverbial pode ser representado basicamente por: a) um advérbio: Comeu depressa e saiu. A. A. de modo b) uma locução adverbial: Comeu de uma forma apressada e saiu. A. A. de modo 61. Em Guimarães Rosa encontramos: “Me declare, franco, peço”. O termo “franco” usualmente é um adjetivo, utilizado em frases como “Sandro tem um caráter franco e aberto”. Sendo assim, “franco” não poderia ser utilizado como adjunto adverbial se nos ativéssemos às normas gramaticais. 342
Capítulo 7
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57. Que diferença faria se estivesse escrito: Havia dois homens, um rico outro pobre?
a) Reescreva a frase, e posicione o adjunto adverbial, no lugar mais adequado, de acordo com as regras gramaticais. Já vimos que a literatura, como expressão artística de linguagem, permite uma maior liberdade de construção, desde que nela se perceba uma finalidade expressiva.
b) Explique do ponto de vista linguístico o que Guimarães realizou, ao trocar o advérbio pelo adjetivo na construção do adjunto adverbial de modo.
c) Ao assim fazer, que efeito de sentido ele conseguiu para a frase?
Há orações que também podem funcionar como adjunto adverbial. Como estava muito atrasado, nem sequer almocei. Equivale a: Devido ao atraso, nem sequer almocei. A oração “Como estava atrasado” é uma oração subordinada adverbial causal, pois equivale ao termo “devido ao atraso”, que é um adjunto adverbial causal, exprimindo a causa de não haver almoçado: o atraso. Parte importante da forma como o povo constrói a sua religiosidade são as orações populares. Esta foi colhida por folcloristas no interior de São Paulo:
(Para ser rezada antes da gente se deitar). “Com Deus eu me deito, Com Deus eu me levanto, Com a graça de Deus E do Divino Espírito Santo. Si eu durmir me guardai-me, Si eu morrer me alumiai-me, Com cinco velas do altar, São Pedro diz uma missa, Nossa Senhora benze minha cama, Que eu quero me deitá”. LIMA, Rossini Tavares de. Comunicação feita à Comissão Nacional de Folclore, 6-10-1950.
62. Essa oração apresenta evidentes traços de oralidade, identifique três.
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63. Nos versos “Com Deus eu me deito / Com Deus eu me levanto”, ocorre a repetição do adjunto adverbial. Identifique-o e classifique-o.
65. O verso “Si eu durmir me guardai-me” apresenta uma oração subordinada adverbial. Que apresenta o valor semântico de: a) tempo; b) modo; c) condição; d) lugar; e) causa. 66. Observe: I. “Si eu morrer me alumiai-me.” II. Quando eu morrer me alumiai-me Que diferenças de sentido você encontra entre as duas orações?
67. Observe: “Com cinco velas do altar, São Pedro diz uma missa.” A expressão “Com cinco velas do altar” corresponde a: a) adjunto adverbial de modo; b) oração subordinada adverbial de condição (ou condicional); c) adjunto adverbial de companhia; d) adjunto adverbial de instrumento; e) oração subordinada de modo. Já afirmamos que, em grande parte dos casos, o adjunto adverbial não é essencial para a estrutura sintática da frase. Veja: 344
Capítulo 7
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64. Qual a contribuição da repetição desse adjunto adverbial para o sentido dos versos?
• Da janela, avisto os homens correndo. A. A. de lugar Podemos retirar o adjunto adverbial e a frase continua sendo sintaticamente uma unidade. • Avisto os homens correndo. O mesmo não se pode dizer da frase: • A imagem de S. Pedro estava na capela. A. A. de lugar Se retirarmos o adjunto adverbial, desaparece a frase. Ela fica incompleta. • A imagem de S. Pedro estava. Observe: a) Cléber jamais fora à missa. b) Ângelo vive em um seminário. c) A imagem de S. Pedro estava na capela. Nesses casos, o adjunto adverbial tem o valor de complemento circunstancial que alguns gramáticos chamam de verbo transitivo circunstancial. Tais expressões, quando associadas ao nome, são complementos nominais. • Ir à missa foi muito importante para Cléber. A. A. de lugar • A ida à missa foi muito importante para Cléber. Complemento nominal
O maior dos males Leia, com atenção, a parábola a seguir.
“Em um estado, o maior dos males é a ratazana no interior da estátua. Hoan-Kong perguntou certa vez a seu ministro Koang-Tschong: ‘o que mais se deve temer de um estado?’ Koang-Tschong respondeu: ‘Sua Alteza, na minha opinião, nada deve temer mais do que a ratazana no interior da estátua’. Hoan-Kong não entendeu essa comparação. Koang-Tschong explicou, então, ao Príncipe. – Vossa Alteza sabe que, em muitos lugares é costume erguerem-se estátuas do ‘Espírito do local’. Tais estátuas feitas de madeira são internamente ocas e pintadas por fora. Uma ratazana penetrou no interior de uma dessas e não se sabia como fazer para expulsá-la de lá. Ninguém ousava usar o fogo com o temor de que danificasse a madeira da estátua. Ninguém ousava também pôr a estátua na água, com o temor de que se lhe pudessem apagar as cores. E, assim, o respeito à estatua cobriu e protegeu a ratazana. – Em um estado, quem são essas ratazanas? – perguntou Hoan- Kong.” HERDER, Joahann Gottfried. Parabeln de Therese Poser. Stuttgart: Philipp Reclam, 1983.
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69. Prove que o texto pertence ao gênero parábola.
Como vê, nem todas as parábolas são religiosas. Há parábolas de fundo político e até existencial. No entanto, muitos concordarão que as mais belas parábolas encontram-se nos Evangelhos. Tais parábolas são elaboradas a partir de usos e costumes sociais da época, falam da agricultura, do comércio, da família e de outras relações humanas. Algumas das mais conhecidas são Os dez talentos, O bom samaritano, filho pródigo, O semeador, entre outras. 70. Reúna-se com os colegas em duplas. Seguindo as características próprias da escola literária que a classe vem construindo no correr deste ano, escrevam uma parábola que estabeleça uma relação intertextual com uma das parábolas dos Evangelhos. A parábola pode abordar temas religiosos, políticos ou existencialistas.
O professor redistribuirá as redações feitas. Ao receberem a parábola de uma outra dupla, identifiquem as características literárias próprias da escola literária criada pela classe, bem como as marcas da intertextualidade com o texto bíblico.
HISTÓRIA CRÍTICA DA ARTE E DA LITERATURA PÓS-IMPRESSIONISTA E PRÉ-MODERNISTA O “Pós-impressionismo” Chamamos de “Pós-impressionismo” ao período entre 1886 e 1910. Depois que a verdade objetiva da natureza havia sido quebrada pelos impressionistas, o que mais pintar? Para quê? Os pintores passaram a valorizar mais o como vemos e quando vemos, em vez de o que vemos e, assim, construíram uma linguagem singular que se afastou muito da escola impressionista. Nessa época da pintura, quatro nomes se destacam: Paul Cézzane, Henri de Toulousse-Lautrec, Paul Gauguin e Vincent Van Gogh. 71. Identifique os autores dos quadros reproduzidos a seguir. Encontre as principais características desses autores, bem como aspectos biográficos que auxiliam a compreender melhor suas obras. De posse desses dados, complete o quadro a seguir. 346
Capítulo 7
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
68. No lugar do ministro, que resposta daria para Hoan-Kong?
II
I
CÉZANNE, Paul. (1900-04). Le château noir. Washington: National Gallery of Art.
III
TOULOUSE- LAUTREC. (1892). La Goulue entra com duas mulheres no “Moulin Rouge”. Nova Iorque: Museum of Modern Art.
IV
VAN GOGH, Vincent. (1888). O escolar. (O filho do carteiro). São Paulo: MASP
GAUGUIN, Paul. (1897). Nevermore. Londres: The Courtauld Gallery.
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348
Capítulo 7
Características do estilo do pintor
Impressões justificadas sobre a obra
Datas de nascimento e morte do pintor
Nome da obra
Pintor
Le château noir (a casa negra)
II
Vicent Van Gogh
III
IV
Reformulador das soluções formais funde o primitivismo com a luminosidade impressionista.
(1848-1903)
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Alterna grandes superfícies de cor com traços simples e eficazes. Inspirou-se na frenética vida noturna de Paris.
I
A “Art Nouveau” 72. Elabore a síntese do texto-parágrafo a seguir.
Art Noveau
Com essa denominação, costuma-se definir um movimento artístico que se manifestou entre o final do século XIX e o início do século XX, com características mais voltadas para a decoração. Seu nome também está ligado a um clima de renovação cultural que, acompanhando paralelamente a industrialização, estendeu-se aos cartazes, revistas, anúncios publicitários e às grandes exposições-feiras mundiais, que difundiam ainda mais esse estilo, especialmente na arquitetura. Suas maiores expressões pictóricas foram os artistas do norte da Europa, Jan Toorop e Gustav Klimt, que procuravam opor-se ao realismo impressionista com uma linguagem na qual a figura era função simbólica ou meramente decorativa. COLANGELO, Adriano. Mil anos de arte. São Paulo: Cultrix, 1978.
MUCHA, Alphonse. (1896). Lorenzaccio. Design do pôster da atriz Sarah Bernhardt que se apresentava em Paris, no Theatre de la Renaissance.
73. Compare as semelhanças entre as duas construções que aparecem nas fotografias da página seguinte.
KLIMT, Gustav. (1907/1908). O beijo. Áustria: Österreichische Galerie.
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349
II.
Casa da Rue de Turin, em Bruxelas de autoria do arquiteto Victor Horta. Neste edifício, a fachada apresenta uma admirável elegância e leveza, facilitando a apreciação.
Casa “Art Noveau” na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, em São Paulo.
Literatura: o pré-modernismo brasileiro A transição entre os séculos XIX e XX deixou o mundo exposto a uma série de influências artísticas. No Brasil, essa transição fez-se principalmente sentir nas duas primeiras décadas do século XX, dividindo-se entre uma mentalidade conservadora e tradicionalista, seguidora das tendências artísticas da segunda metade do século XIX, e o desejo de renovação estética. Esse período de transição não chegou a constituir um movimento literário e denominou-se como Pré-modernismo. Sua principal característica foi problematizar nossa realidade social e cultural, e fortalecer o movimento da arte brasileira em duas direções: • negando ou questionando a tradição artística, principalmente pelo interesse em uma linguagem mais simples e coloquial; • criticando o Brasil arcaico e desenvolvendo, como temas literários, problemas que seriam retomados posteriormente pela literatura dos anos 1930. Os principais nomes desse período são: • Augusto dos Anjos • Euclides da Cunha • Graça Aranha • João Ribeiro • Lima Barreto • Monteiro Lobato 74. Pesquise sobre esses nomes e complete adequadamente o quadro a seguir. 350
Capítulo 7
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I.
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Principais obras
Características do estilo do autor
Data e local de nascimento – Data e local de morte
Augusto dos Anjos
Euclides da Cunha
• Viagem maravilhosa
• Canaã
• Consciência crítica dos problemas brasileiros
• Forte sentimento nacionalista
• Atitude antipassadista
São Luís (MA), 1868 – Rio de Janeiro (RJ), 1931
Graça Aranha
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Capítulo 7
Trecho de um de seus textos
Euclides da Cunha “Aumentavam as sombras. No céu, nuvens colossais e túmidas rolavam para o abismo do horizonte... Na várzea, ao clarão indeciso do crepúsculo, os seres tomavam ares de monstros... As montanhas, subindo ameaçadoras da terra, perfilavam-se tenebrosas... Os caminhos, espreguiçando-se sobre os campos, animavam-se quais serpentes infinitas... As árvores soltas choravam ao vento, como carpideiras fantásticas da natureza morta...”
Graça Aranha
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
Augusto dos Anjos
A linguagem construindo a religiosidade popular
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importantes
Observações
Augusto dos Anjos
Euclides da Cunha
• Participou da Semana de Arte Moderna e tornou-se um entusiasta da implantação dos ideais dela no Brasil.
• Em 1897, tornou-se um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras sem ter, no entanto, até aquela data, publicado um livro.
Graça Aranha
354
Capítulo 7
Principais obras
Características do estilo do autor
Data e local de nascimento – Data e local de morte
Lima Barreto
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
• Cartas devolvidas
• O folclore
• Comédia
• Páginas de estética
• Gramática portuguesa
Homem completo dentro das humanidades, suas atividades vão de poeta parnasiano a critico literário. Seu estilo é irreverente e cético, duvidando até da própria ciência.
Laranjeiras (SE), 1860 – Rio de Janeiro (RJ), 1934
João Ribeiro
Monteiro Lobato
A linguagem construindo a religiosidade popular
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Observações importantes
Trecho de um de seus textos
• Foi considerado o profeta do Modernismo brasileiro.
“O aspecto essencial da Beleza é não ser intelectualmente compreendida e não conter um só elemento de inteligência ou de razão.”
João Ribeiro
Lima Barreto
Monteiro Lobato
PAUSA PARA REFLEXÃO Em seu caderno, responda às questões a seguir. I. Que conteúdos deste capítulo conseguiria explicar sem consultar o livro? II. Consultando o livro, identifique os conteúdos que, na sua opinião, não foram bem compreendidos e merecem novas explicações ou atividades de reforço. III. Que atividade(s) considerou mais importante(s) para o seu aprendizado? Por quê?
DE OLHO NO FUTURO (Unesp) Para responder às questões de números 1 e 2, leia o texto a seguir, de Fernando Pessoa.
Pensar em Deus é desobedecer a Deus, Porque Deus quis que o não conhecêssemos. Por isso se nos não mostrou... Sejamos simples e calmos, Como os regatos e as árvores, E Deus amar-nos-á fazendo de nós Belos como as árvores e os regatos, E dar-nos-á verdor na sua primavera, E um rio aonde ir ter quando acabemos!... As múltiplas faces de Fernando Pessoa. São Paulo: Núcleo, 1995. 1. Nota-se, no poema, uma crítica à investigação de Deus. a) O que se entende com o verso “Pensar em Deus é desobedecer a Deus”?
b) Criticando, o poeta estabelece a reafirmação da objetividade total. Qual é o modelo dessa objetividade?
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Capítulo 7
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
IV. Em que aspectos poderá melhorar sua participação nas próximas aulas?
2. O poema constrói-se em linguagem altamente conotativa. a) Que figura de linguagem está presente nos versos “Como os regatos e as árvores” e “Belos como as árvores e os regatos”?
b) O que significam, no poema, “primavera” e “quando acabemos!...”?
(Unesp) Para responder às questões de números 3 e 4, leia as informações a seguir. Determinada instituição bancária enviou aos seus clientes uma carta, na qual lhes propõe uma linha de crédito pessoal para o Dia das Mães. Considere os seguintes trechos desse documento: “Por ter feito de você esta grande pessoa, o crédito é todo para ela.” “Por tornar este Dia das Mães simplesmente inesquecível, o crédito é todo seu.” 3. A partir da leitura dos dois trechos da carta, responda: a) A quem se referem os pronomes “ela” e “seu”?
b) Quais as interpretações que podem ser feitas da palavra “crédito” nos trechos da carta?
4. O banco quer vender um produto, ou seja, um empréstimo. Para isso, é necessário persuadir o cliente. a) Que argumentos da carta visam a persuadir o cliente?
b) Que ideia expressam as orações adverbiais desses argumentos?
(Unesp) Leia os trechos dos poemas a seguir para responder às questões de números 5 e 6. A linguagem construindo a religiosidade popular
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Texto 1: Gregório de Matos
Texto 2: Basílio da Gama
Ó não aguardes, que a madura idade te converta essa flor, essa beleza, em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.
Guarda para seu tempo os desenganos, Gozemo-nos agora, enquanto dura, Já que dura tão pouco a flor dos anos.
Pois se sabes que a tua formosura Por força há de sofrer da idade os danos, Por que me negas hoje esta ventura?
5. Os poemas de Gregório de Matos e de Basílio da Gama são da Era Clássica da literatura, embora pertençam a diferentes escolas literárias. a) Indique a que movimentos literários se filiaram, respectivamente, os autores.
b) Explique a semelhança entre os textos no que diz respeito à temática abordada.
6. A expressão latina carpe diem, que significa “aproveite o dia (presente)”, foi uma constante nos dois períodos literários representados pelos poemas de Gregório de Matos e Basílio da Gama. a) Transcreva, de cada um dos poemas, um verso em que a ideia do carpe diem esteja explicitamente apresentada.
b) Que metáfora é comum aos dois poemas?
(UFJF) Para resolver as questões 7 a 17, leia atentamente o fragmento do texto abaixo, retirado da obra de Ítalo Calvino, Por que ler os clássicos? (CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos? São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 9-13).
Por que ler os clássicos? “Comecemos com algumas propostas de definição.
(1) Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: “Estou relendo...” e nunca “Estou lendo...”. Isso acontece pelo menos com aquelas pessoas que se consideram “grandes leitores”; não vale para a juventude, idade em que o encontro com o mundo e com os clássicos como parte do mundo vale exatamente enquanto primeiro encontro. O prefixo reiterativo antes do verbo ler pode ser uma pequena hipocrisia por parte dos que se 358
Capítulo 7
Reprodução proibida – Reproduzir livro é crime: Código Penal, art. 184; Lei nº 9.610, de 19-2-1988, Título VII: Sanções às Violações dos Direitos Autorais.
Goza, goza da flor da mocidade, que o tempo trata a toda ligeireza e imprime em toda flor a sua pisada.
envergonham de admitir não ter lido um livro famoso. Para tranquilizá-los, bastará observar que, por maiores que possam ser as leituras “de formação” de um indivíduo, resta sempre um número enorme de obras que ele não leu. Quem leu tudo de Heródoto e de Tucídides levante a mão. E de Saint-Simon? E do cardeal de Retz? E também os grandes ciclos romanescos do Oitocentos são mais citados do que lidos. Na França, se começa a ler Balzac na escola, e pelo número de edições em circulação, se diria que continuam a lê-lo mesmo depois. Mas na Itália, se fosse feita uma pesquisa, temo que Balzac apareceria nos últimos lugares. Os apaixonados por Dickens na Itália constituem uma restrita elite de pessoas que, quando se encontram, logo começam a falar de episódios e personagens como se fossem amigos comuns. Faz alguns anos, Michel Butor, lecionando nos Estados Unidos, cansado de ouvir perguntas sobre Emile Zola, que jamais lera, decidiu ler todo o ciclo dos Rougons-Macquart. Descobriu que era totalmente diverso do que pensava: uma fabulosa genealogia mitológica e cosmogônica, que descreveu num belíssimo ensaio. Isso confirma que ler pela primeira vez um grande livro na idade madura é um prazer extraordinário: diferente (mas não se pode dizer maior ou menor) se comparado a uma leitura de juventude. A juventude comunica ao ato de ler como qualquer outra experiência um sabor e uma importância particulares; ao passo que na maturidade apreciam-se (deveriam ser apreciados) muitos detalhes, níveis e significados a mais. Podemos tentar então esta outra fórmula de definição: (2) Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menos para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições de apreciá-los. De fato, as leituras da juventude podem ser pouco profícuas pela impaciência, distração, inexperiência das instruções para o uso, inexperiência de vida. Podem ser (talvez ao mesmo tempo) formativas no sentido de que dão uma forma às experiências futuras, fornecendo modelos recipientes, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza: todas, coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos pouco ou nada do livro lido na juventude. Relendo o livro na idade madura acontece reencontrar aquelas constantes que já fazem parte de nossos mecanismos interiores e cuja origem havíamos esquecido. Existe uma força particular da obra que consegue fazer-se esquecer enquanto tal, mas que deixa sua semente. A definição que dela podemos dar então será: (3) Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual. Por isso deveria existir um tempo na vida adulta dedicado a revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os livros permaneceram os mesmos (mas também eles mudam, à luz de uma perspectiva histórica diferente), nós com certeza mudamos, e o encontro é um acontecimento totalmente novo. Portanto, usar o verbo ler ou o verbo reler não tem muita importância. De fato, poderíamos dizer: (4) Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira. (5) Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura. A definição 4 pode ser considerada corolário desta: (6) Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Ao passo que a definição 5 remete para uma formulação mais explicativa, como: (7) Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes). Isso vale tanto para os clássicos antigos quanto para os modernos (...)
A leitura de um clássico deve oferecer-nos alguma surpresa em relação à imagem que dele tínhamos. Por isso, nunca será demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possível bibliografia crítica, comentários, interpretações. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário. Existe uma inversão de valores muito difundida, segundo a qual a introdução, o A linguagem construindo a religiosidade popular
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Naturalmente isso ocorre quando um clássico “funciona” como tal, isto é, estabelece uma relação pessoal com quem o lê. Se a centelha não se dá, nada feito: os clássicos não são lidos por dever ou por respeito, mas só por amor. Exceto na escola: a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo número de clássicos dentre os quais (ou em relação aos quais) você poderá depois reconhecer os “seus” clássicos. A escola é obrigada a dar-lhe instrumentos para efetuar uma opção: mas as escolhas que contam são aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola.(...)” 7. O gênero do texto lido é: a) relatório, por descrever, com detalhes, hábitos diferenciados de leitura. b) resenha, por comentar obras de autores clássicos. c) ensaio, por desenvolver uma discussão a respeito da definição de clássicos. d) manual, por apresentar nove regras de abordagem dos livros clássicos. e) resumo, por sintetizar as definições de clássico propostas em diferentes períodos. 8. O autor apresenta diversos fatores que podem influenciar na leitura de uma obra. Qual, dentre os citados a seguir, NÃO interfere no ato da leitura, de acordo com o texto? a) b) c) d) e)
As experiências vividas; Os costumes e hábitos da comunidade; A faixa etária do leitor; A política de leitura das escolas e universidades; A antiguidade da obra.
Leia, com atenção, o fragmento seguinte, para responder à questão 9:
“Isso confirma que ler pela primeira vez um grande livro na idade madura é um prazer extraordinário: diferente (mas não se pode dizer maior ou menor) se comparado a uma leitura de juventude. A juventude comunica ao ato de ler como qualquer outra experiência um sabor e uma importância particulares; ao passo que na maturidade apreciam-se (deveriam ser apreciados) muitos detalhes, níveis e significados a mais.” (Linhas 25 a 30).
9. De acordo com o fragmento, qual dentre as opções seguintes, apresenta a melhor síntese capaz de traduzir a relação entre leitura e etapa cronológica de vida? a) b) c) d) e)
A leitura da juventude é sempre impessoal se comparada à do leitor adulto. A idade é irrelevante quando se trata da leitura de obras clássicas. A leitura dos clássicos na maturidade é um prazer muito maior do que na juventude. Todo leitor adulto compreende o detalhamento do texto como uma regra a ser seguida na leitura. O tipo de experiência que o leitor terá ao ler o clássico vincula-se à etapa cronológica de vida.
10. Sobre os traços definidores de uma obra clássica, propostos por Ítalo Calvino, é INCORRETO afirmar que: 360
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instrumental crítico, a bibliografia são usados como cortina de fumaça para esconder aquilo que o texto tem a dizer e que só pode dizer se o deixarmos falar sem intermediários que pretendam saber mais do que ele. Podemos concluir que: (8) Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe. O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos saber) mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular). E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação, como sempre dá a descoberta de uma origem, de uma relação, de uma pertinência. De tudo isso poderíamos derivar uma definição do tipo: (9) Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.
a) b) c) d) e)
a obra clássica será aproveitada de maneiras diversas, dependendo do momento em que for lida. um clássico é uma obra que atravessa as épocas sem sofrer ou provocar influências. o clássico é uma obra aberta, sempre tendo mais coisas a dizer do que aquilo que já foi dito. leitura e releitura são atividades parecidas, ao se tratar de um clássico. a leitura de um clássico é sempre inédita, mesmo quando já o conhecemos de inúmeras referências.
11. A principal estratégia argumentativa do autor consiste em apresentar: a) b) c) d) e)
um paralelo entre obras clássicas e obras comerciais. os clássicos como apropriados apenas para leitores maduros. definições divergentes sobre obras clássicas. condutas adequadas para leitura dos clássicos nas escolas. definições complementares para uma obra clássica.
12. No texto lido, Ítalo Calvino aponta para a responsabilidade da escola e da universidade no que diz respeito à leitura dos clássicos. Selecione, dentre as opções seguintes, aquela que NÃO é uma sugestão do autor: a) b) c) d) e)
Recomendar a leitura dos clássicos, sem intermediários. Instrumentalizar os alunos para que eles possam escolher os “seus” clássicos. Fazer com que os alunos, durante o tempo escolar, conheçam os clássicos. Valorizar a necessidade da leitura de textos críticos e interpretações sobre os clássicos. Levar os alunos a lerem os clássicos, ainda que não se apaixonem por eles.
Leia novamente:
“(...) Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: “Estou relendo...” e nunca “Estou lendo...”. (...) O prefixo reiterativo antes do verbo ler pode ser uma pequena hipocrisia por parte dos que se envergonham de admitir não ter lido um livro famoso.” (Linhas 3 a 10). 13. No fragmento acima, segundo o autor, a ideia de reiteração está relacionada à: a) c) b) d) e)
repetição de um ato. simulação de um ato. continuidade de um ato. organização de um ato. exclusão de um ato.
Leia, com atenção, os enunciados seguintes, selecionados do texto de Calvino:
“(...) e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual.” (Linhas 47 e 48).
“A definição (4) pode ser considerada corolário desta: (...)” (Linha 58).
14. Os termos destacados acima poderiam ser substituídos nos enunciados, sem prejuízo de sentido, respectivamente por: a) b) c) d) e)
colorindo-se / consequência; adaptando-se / causa; imitando-se / causa; alternando-se / causa; camuflando-se / consequência.
Leia novamente algumas definições de clássicos propostas por Ítalo Calvino: A linguagem construindo a religiosidade popular
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I. “(4) Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira.” II. “(9) Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.” III. “(2) Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menos para quem se reserva...”
a) b) c) d) e)
(I) contraste; (II) oposição; (III) proporção; (I) condição; (II) proporção; (III) explicação; (I) comparação; (II) proporção; (III) contraste; (I) condição; (II) comparação; (III) contraste; (I) comparação; (II) proporção; (III) proporção.
Releia:
“Os apaixonados por Dickens na Itália constituem uma restrita elite de pessoas que, quando se encontram, logo começam a falar de episódios e personagens como se fossem amigos comuns.” (Linhas 18 a 20).
16. A melhor paráfrase semântica para a informação relativa a tempo, no segmento destacado, é: a) sempre que se encontram. b) caso se encontrem. c) depois que se encontram. d) à medida que se encontram. e) antes mesmo de se encontrarem. Leia novamente:
“O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos saber) mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro” (Linhas 80 a 82).
17. As formas destacadas ele e o referem-se, respectivamente, a: a) b) c) d) e)
o clássico; o leitor. o livro; algo que não sabíamos. o clássico; algo que sempre soubéramos. algo; algo que sempre soubéramos. o clássico; algo que ele disse primeiro.
(UFJF) Para resolver as questões 18 a 20, leia, com atenção, o texto abaixo (texto II), resumo de uma dissertação de mestrado do programa de pós-graduação em educação da Ufscar, defendida em 2002. Educação e Literatura: a leitura dos clássicos brasileiros no ensino médio. Emílio Davi SAMPAIO
RESUMO Este trabalho, dedicado a aprofundar a discussão sobre a leitura dos romances clássicos brasileiros por jovens estudantes do terceiro ano do ensino médio, não teve senão o propósito de descrever, interpretar e analisar a situação sobre a realidade atual em que se encontra esta modalidade de leitura num contexto determinado. Resgatamos também um pouco da história da formação do leitor dentro de uma visão ampla de discussão. Selecionamos para efetivar essa investigação, duas escolas de Dourados (MS), uma da rede pública, a “Escola Presidente Vargas” e outra da rede privada, a “Escola Imaculada Conceição”. Partindo 362
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15. Que opção abaixo indica, CORRETAMENTE, as operações argumentativas estabelecidas pelos termos negritados, para cada uma das definições de clássico (I, II e III)?
do pressuposto de que esta leitura é exigência do sistema de vestibular nacional e a disciplina “Literatura” consta da grade curricular do ensino médio, procuramos compreender a relação que se estabelece entre os estudantes pré-vestibulandos e a leitura dos clássicos brasileiros. Constatamos, então, que em vista do sistema engendrado e da sistematização de valores sociais impostos, há, de forma consubstanciada, certa valorização dessa modalidade de leitura. No geral, configura-se que não é uma leitura de prazer mas de valor, e este valor está presente no próprio conteúdo e refinamento literário dos textos dessa natureza. Resumo publicado no .
18. Com base no texto lido, só NÃO é possível afirmar que: a) a pesquisa concentrou-se na investigação sobre a leitura de clássicos nacionais. b) os leitores investigados estavam no período final do ensino médio. c) o autor pesquisou os hábitos de leitura de estudantes de duas redes de ensino. d) o autor tem uma visão normativa sobre os hábitos de leitura dos estudantes. e) a investigação de Sampaio aborda também o processo de formação dos leitores. 19. De acordo com a pesquisa desenvolvida por Sampaio, os principais fatores que determinam a leitura dos clássicos nas escolas de ensino médio são: a) o fato de ser exigência do vestibular e vital para o aprimoramento cultural do leitor brasileiro. b) As configurações do sistema curricular do ensino médio e suas relações com o ingresso no 3º grau. c) A busca da formação da base patriótica do aluno e as imposições da grade curricular. d) A necessidade de se estabelecerem valores sociais na escola e o processo de formação do leitor. e) A valorização dessa modalidade de leitura e a ascensão social do leitor jovem. 20. A principal semelhança entre as conclusões a que Sampaio chegou e as ideias postas por Calvino está expressa na afirmativa: a) b) c) d) e)
Leitores jovens não leem os clássicos. As escolas não se comprometem com a leitura dos clássicos. A leitura dos clássicos não é necessariamente uma leitura de prazer. A seleção de clássicos pela escola não segue nenhum critério. Os alunos preferem outro tipo de leitura à leitura dos clássicos.
(UFRN) O poema de Castro Alves, transcrito a seguir, servirá de base para as questões 21 e 22.
Adormecida Ses longs cheveux épars la couvrent tout entière La croix de son collier repose dans sa main, Comme pour témoigner qu’elle a fait sa prière. Et qu’elle va la faire en s’éveillant demain. ALFRED DE MUSSET UMA NOITE, eu me lembro... Ela dormia Numa rede encostada molemente... Quase aberto o roupão... solto o cabelo E o pé descalço do tapete rente. ‘Stava aberta a janela. Um cheiro agreste Exalavam as silvas da campina... A linguagem construindo a religiosidade popular
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E ao longe, num pedaço do horizonte, Via-se a noite plácida e divina.
Era um quadro celeste!... A cada afago Mesmo em sonhos a moça estremecia... Quando ela serenava... a flor beijava-a... Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia... Dir-se-ia que naquele doce instante Brincavam duas cândidas crianças... A brisa, que agitava as folhas verdes, Fazia-lhe ondear as negras tranças! E o ramo ora chegava ora afastava-se... Mas quando a via despertada a meio, P’ra não zangá-la... sacudia alegre Uma chuva de pétalas no seio... Eu, fitando esta cena, repetia Naquela noite lânguida e sentida: “Ó flor! – tu és a virgem das campinas! “Virgem! – tu és a flor da minha vida!...” São Paulo, nov. de 1868. ALVES, Castro. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1986, p. 124-125.
21. Considerando as fases da poesia romântica brasileira, é correto afirmar que o poema apresenta uma: a) b) c) d)
atmosfera de erotismo, manifestada pelos encantos da mulher. atitude de culpa, devido à violação do ambiente celestial. negação do ato amoroso, devido ao clima de sonho predominante. tematização da natureza, manifestada na imagem da flor.
22. No poema, há uma cena associada à lembrança do eu-lírico. A permanência dessa cena é sugerida, sobretudo, pela: a) b) c) d)
predominância de verbos no pretérito imperfeito. predominância de adjetivos no grau comparativo. presença acentuada de pronomes pessoais. presença acentuada de artigos indefinidos.
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De um jasmineiro os galhos encurvados, Indiscretos entravam pela sala, E de leve oscilando ao tom das auras, Iam na face trêmulos – beijá-la.
ISBN 978-85-7741-138-2
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