LENIO LUIZ STRECK >ANDRE KARAM TRINDADE ORGANIZADORES
DIREITO E LITERATURA DA REALIDADE REALIDADE DA D A FICÇÃO A FICÇÃO DA REALIDAD REALIDADE E Alexandre Alexa ndre Morais da Rosa Rosa • And A ndré ré Karam Trindade • Arnaldo Arn aldo Sampaio Sampaio de Morae Moraess Godoy • Carlos Marta Cãrcova • Gustavo Oliveira Vieira • Hector Cury Soares Henriete Karam • Jaim e Coaguil Coag uila a Valdivi Va ldivia a • Jân Jâ n ia M aria aria Lopes Saldanha • José Jos é Calvo Gonzâlez • Jose Luis Bolzan de Morais Morais • Lenio Luiz Streck • Marcelo Marcelo And A ndrade rade Cattoni de O liveira • M Maurí auríci cio o Ramir Ram ires es • M Mír íriam iam Coutinho Coutinho de Faria Alves A lves • R afael afa el Tom Tomaz az de O liveira liveira • Sandra Sandra Regina Marti M artini ni Vial • Limberger
DIREITO E LITERATURA DA REALIDADE REALIDADE DA FICÇÃO À FICÇÃO DA REALID REALIDADE ADE
"Eu preciso de grande eloqüência diante de um juiz tão altamente colocado, tão familiarizado com toda forma e conteúdo, e que, por sua posição, estará sempre no topo da humanidade.” Esta é a legenda que Honoré Daumier (1808-1879) escreve ao pé da litografia reproduzida na capa deste volume - a terceira de quatro gravuras intituladas La comédie humaine (1843 ), publicadas em em 1843 1843 no periódico periódico parisiense parisiense Le Balzac - que precede precede uma de suas m ais famosas séries Charivari, em alusão à obra de Balzac de caricaturas: les Gens de Justice Just ice (1845). Quanta realidade se encontra nas ficções? ficções? E qua nta ficção ficção conforma n ossa realidade? realidade? Este é o argumento que atravessa a proposta aqui apresentada para a continuação dos estudos relativos ao Direito e Literatura no Brasil.
APLICAÇÃO Obra de referência nos estudos interdisciplinares de Direito e Literatura , nos ní veis da graduação e da pós-graduação, realizados nas áreas das ciências humanas e sociais aplicadas.
atlas.com.br
LENIO LUIZ STRECK ’ ANDRÉ KARAM TRINDADE Or g a n iz a d o r e s
D IR E IT O E LITERATURA LITERATURA DA R E A L I D A D E D A F I C Ç Ã O À F I C Ç Ã O D A R E A L I D A D E Alexandre Alexan dre Morais Morais da da Rosa And A ndré ré Karam Trindade Trindade Arnaldo Sampaio Sampaio de Mor Moraes aes Godoy Carlos Maria Cárcova Gustavo Oliveira Vieira Hector Cury Soares Henriete Karam Jaim Ja imee Coaguila Coagu ila Valdivia Jân Jâ n ia M aria Lopes Saldanha José Jo sé Calvo González Jose Jos e Luis Bolzan de Morais Morais Lenio Luiz Streck Marcel Marceloo Andrad An dradee Cattoni de O liveira Maurício Maurício Ramires Míriam Coutinho Coutinho de Faria Faria Alves Alv es Rafael Ra fael Tomaz Tomaz de O liveira Sandra Regina Martini Vial Têmis Limberger •
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
L I V R O D I G I T A L
SÃO PAULO EDITOR A ATLAS ATLAS S.A. S.A. — 2013
© 2012 by Editora Atlas SA . Projeto Gráfico e Capa: Leonardo Hermano Composição: Angela Mendes Litografia da capa de Honoré Daumier, Planche nu 3, Série La Comédie Humaine
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Direito e literatura / Lenio Luiz Streck, André Karam Trindade, organizadores. — Sáo Paulo: Adas, 2013. Vários autores Bibliografia. ISBN 978-85-224-7545-2 eISBN 978-85-224-7853-8 1. Direito e literatura 2. Direito na literatura I. Streck, Lenio Luiz. II. Trindade, André Karam. 12-13731 CDU-340
índices para catálogo sistemático: 1. Direito e literatura 340 2. Direito na literatura 340 TO D O S OS DIR EIT OS RESERVA DOS - É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. A violação dos direitos de autor (Lei n“ 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.
V-
Su
m á r io
NO TA SOBRE OS AUTOR ES
VII
INTRODUÇÃO O direito e suas ficções
3
A REALIDADE DA FICÇÃO Kafka no processo e na colônia penal. Ainda. Alexandre M orais da Rosa As desventuras de Pinóquio: o processo de humanização, a submissão à lei e a adesão ao pacto social André K aram Trindade e Henriete Karam O direito e(m) Balzac: especulações interdisciplinares Gustavo O liveira Vieira e Jose Lu is Bolzan de M orais RobinsonCrusoe: um mito despedaçado quando o sujeito torna-se mercadoria? Jân ia M aria Lopes Saldanha O imaginário jurídico no romance “Grandes Miradas”, de Alonso Cueto Jaim e C oagu ila Valdivia
9
14
43
62
72
A FICÇÃO DA REALIDADE (BRASILEIRA) Direito e literatura. As críticas de Rui Barbosa à redação do Código Civil de 1916: proposta de inventário de uma querela barroca Arnaldo Sam paio de M oraes Godoy
83
Creonte, este incompreendido - aspectos do personalismo no trato dos assuntos de estado no Brasil atual M aurício R am ires
93
Direito, gênero e literatura - a subjetividade feminina na perspectiva clariceana: os horizontes de G.H. e Macabéa Míriam Coutinho de Faria Alves
104
O triste fim do princípio da legalidade: do Règne de la Loi ao Reino dos Bruzundangas Têmis Limberger e Hector Cury Soares
113
PARTE III: DIREITO C O M LITERATURA As inquietações do Dr. Domitilo Carlos M aria C árcova Quevedo en tela de juicio, ou seja, “El tribvnal de la Ivsta vengança”, de Luis Pacheco de Narváez José C alvo G onzález A “secura”, a “ira” e as condições para que os fenômenos possam vir à fala: aportes literários para pensar o estado, a economia e a autonomia do direito em tempos de crise Lenio Luiz Streck e Rafael Tomaz de Oliveira
135
143
162
Os marinheiros, Ulisses e (o silêncio d’) as sereias M arcelo An drade C attoni de O liveira
186
Os sete sapatos sujos e o direito... Sandra Regina Martini Vial
211
POST SCR1PTUM Faltam grandes narrativas no e ao direito Lenio Luiz Streck
227
NOTA SOBRE OS AUTORES
Alex an dre Morais da Rosa (SC)
Pós-Doutorado em Direito (Coimbra/UNISINOS); Doutor em Direito (UFPR); Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNIVALI; Juiz de Di reito (SC) André Kar am Tri nd ade (RS) - ORGA NIZA DOR
Do uto r em Teoria e Filosofia do Dire ito (Roma Tre/ltália); Me stre em Dire ito Público (UNISINOS); Professor de Direito Constitucional da Faculdade Meridional (IMED); Me mb ro Fundad or e Pesquisador do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ); Pro dutor Executivo do Programa Direito & Literatura (TV JUSTIÇA) Arnaldo Samp aio d e Mo raes Go doy (DF)
Pós-doutorado em Direito (Boston/EUA); Doutor e Mestre em Direito (PUC/SP); Professor do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Bra sília; Procurador da Fazenda Nacional (DF) Carlos Maria Cárcova (ARGENTINA)
Do utor em Direito (Buenos Aires/Argentina). Professor Titular de Filosofia do Di reito da Faculdade de Filosofia e Letras e Professor Titular de Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires (Argentina); Diretor do Instituto de Investigaciones Jurídicas Am brosio L. Gioja. Ad vog ado Gustavo Oliveira Vieira (RS)
Doutorando em Direito (UNISINOS); Mestre em Direito (UNISC); Professor de Di reito Internacional da UNIFRA; Professor de Direito Constitucional da UNISINOS Hector Cury Soares (RS)
Doutorando em Direito (UFRGS); Mestre em Direito (UNISINOS); Professor Assistente do Curso de Tecnologia em Gestão Pública da UNIPAMPA; Advo gado (RS) VII
DIREITO E LITERATURA
Hen ri ete Karam (RS)
Doutora em Letras (UFRGS). Mestre em Letras (PUCRS); Professora dos Cursos de Letras e de Direito da UCS; Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS; Psicanalista Jaime Coaguila Valdivia (PERU)
Doutor em Direito (Universidad Católica de Santa Maria de Arequipa/Peru); Mes tre em D ireito Civil (Universidad San Agu stín de A requipa /Peru); Juiz Especializa do em Direito Penal (Arequipa/Peru) Jânia Maria Lopes Saldanha (RS)
Doutora em Direito (UNISINOS); Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS; Professora do Curso de Direito da UFSM; Advogada (RS) José Calvo González (ESPANHA)
Doutor em Direito (Málaga/Espanha); Investigador e Professor Catedrático de Teoria do Direito e Filosofia do Direito da Universidade de Málaga (Espanha); Ma gistrado S uplente do Tribunal Su perior de Andalucía Jose Luis Bolzan de Morais (RS)
Pós-doutorado em Direito (Coimbra/Portugal); Doutor em Direito do Estado (UFSC); Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS; Procurador do Estado (RS) Lenio Luiz Strec k (RS) - ORGA NIZA DOR
Pós-d outorado em Direito Constitucional (Lisboa/Portugal). D outor e Mestre em Direito do Estado (UFSC); Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Dire ito da UNISINOS; Proc urador d e Justiça (RS) Marcelo An drade Cattoni de Oliveira (MG)
Pó s-do utora do em Teoria do D ireito (Roma Tre/ltália); Do uto r em Direito (UFMG); Professor da Graduação e da Pós-Graduação em Direito da UFMG Maurício Ramires (RS)
Doutorando em Direito (Lisboa/Portugal); Mestre em Direito Público (UNISINOS); Juiz de Dir eito (RS)
VIII
NOTA SOBRE OS AUTORES
Míriam Coutinho de Faria Alves (SE)
Doutoranda em Direito Público (Barcelona/Espanha); Mestre em Sociologia (UFS); Professora do Curso de Direito da Faculdade de Sergipe (FaSe) Rafael Tomaz de Oliveira (SP)
Doutorando em Direito Público (UNISINOS); Mestre em Direito (UNISINOS); Bol sista do CNPq Sandra Regina Martini Vial (RS)
Pós-doutorada em Direito (Roma Tre/ltália); Doutora em Direito (Lecce/ltália); Professora Titular do Programa da Pós-Graduação em Direito da UNISINOS; Ex-Diretora da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul Temis Limberger (RS)
Doutora e Mestre em Direito (Barcelona/Espanha); Mestre em Direito (UFRGS); Professora Titu lar do Programa de P ós-Graduação em D ireito da UNISINOS; Pro motora de Justiça (RS)
IX
INTRODUÇÃO
O DIREITO E SUAS FICÇÕES
“Eu preciso de grande eloqüência diante de um juiz táo altamente coloca do, tão familiarizado com toda forma e conteúdo, e que, por sua posição, estará sempre no topo da humanidade.” Esta é a legenda que Honoré Daumier (18081879) escreve ao pé da litografia reproduzida na capa deste volume - a terceira de quatro gravuras intituladas La comédie humaine, publicadas em 1843 no perió dico parisiense Le Charivari, em alusão à obra de Balzac - que precede uma de suas mais famosas séries de caricaturas: les Gens deJustice (1845). Quanta realidade se encontra nas ficçóes? E quanta ficção conforma nossa realidade? Este é o argumento que atravessa a proposta aqui apresentada para a continuação dos estudos relativos ao Direito e Literatura no Brasil. Afinal, segundo os célebres irmãos Grimm, mais especificamente Jacob Grimm (1785-1863) - que estudou direito em Marburgo antes de se tornar um dos mais importantes linguistas germânicos e ser considerado o fundador da gra mática alemã -, “o direito e a poesia se levantaram juntos de um mesmo leito”, conforme afirma em 1816, na obra Von der Poesie im Recht {Dapoesia no direito). Na primeira parte, intitulada A realidade da ficção, os textos foram reunidos tendo em vista o predomínio de abordagens em que, tomando como objeto clás sicas narrativas da literatura ocidental, se evidencia o quanto, nas obras literárias, o caráter ficcional não só não se contrapõe como é o que possibilita a representa ção da realidade. Alexandre Morais da Rosa discute a (irresponsabilidade dos “assistentes” do processo penal a partir das mais conhecidas obras de Kafka - O processo e A colônia penal -, denunciando a ignorância das regras do jogo, da estrutura que sustenta o sistema jurídico e, sobretudo, de sua ideologia cínica. Um dos clássicos da literatura infantojuvenil - As Aventuras de Pinóquio - é utilizado por André Karam Trindade e Henriete Karam para refletir acerca do
DIREITO E LITERATURA
processo de humanização, através da assimilação dos valores sociais. Para tanto, examinam como se dão a submissão à Lei e a adesão ao pacto social na história do famoso boneco de madeira, o que significa, simbolicamente, o nascimento do sujeito e o seu ingresso na cultura. Compartilhando a ideia de que as relações entre Direito e Literatura podem auxiliar a enfrentar o grande “exorcismo da realidade” provocado pelo positivis mo jurídico, Gustavo Oliveira Vieira e Jose Luis Bolzan de Morais propõem uma leitura do direito a partir da obra de Honoré de Balzac - A comédia humana - , desenvolvendo uma série de especulações interdisciplinares acerca de sua contri buição para a formação do universo jurídico. Jaime Coaguila Valdivia retrata o imaginário jurídico descrito no romance Grandes miradas, do escritor peruano Alonso Cueto, denunciando o cenário de corrupção que marcou o regime fujimorista e o surgimento de um novo modelo - simbolizado pela figura do juiz Guido Pazos - de Estado e de Direito, cujos ideais remetem à defesa de uma justiça democrática e igualitária. O romance Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, vem trabalhado por Jânia Maria Lopes Saldanha como uma grande metáfora do século XVII, destacando o surgimento de um novo sujeito (solipsista), o princípio da autonomia da von tade, as raízes do individualismo e do liberalismo, enfim, o nascedouro daquilo que chamamos modernidade, cujos reflexos são determinantes na formação do próprio direito. Os textos da segunda parte - intitulada A ficção da realidade - enfocam as pectos políticos, sociais e jurídicos, evidenciando que alguns dos elementos que conformam a realidade brasileira encontram, muitas vezes, extrema proximidade com os componentes diegéticos do universo ficcional. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy reconstrói as críticas formuladas por Rui Barbosa, no início do século XX, ao autor e ao revisor do projeto do Código Civil de 1916, apresentando um inventário de algumas particularidades da querela barroca que à época se desdobrou. Resistindo às leituras de Antígona que privilegiam a posição encampada pela heroína de Sófocles, Maurício Ramires concentra-se na figura de Creonte. Se guindo a deixa de Sérgio Buarque de Holanda, sugere que o imaginário relativo ao exercício das funções públicas e ao trato das questões de Estado, no Brasil, vem marcado por um excesso de Antigonas e um déficit de Creontes. O problema da subjetividade feminina na perspectiva de Clarice Lispector é abordado no estudo de Míriam Coutinho de Faria Alves, com base nas per
O DIREITO E SUAS FICÇÔES
sonagens G.H. e Macabéa, através do qual analisa a relação entre as narrativas literárias e os direitos subjetivos. Temis Limberger e Hector Cury Soares resgatam a atualidade de Lima Bar reto para a compreensão da sociedade e do direito brasileiro, ao analisarem as obras O tristefim de Policarpo Quaresma e Os Bruzundangas, trazendo à tona uma importante reflexão crítica sobre os aspectos políticos e sociais que conformam a tradição brasileira do princípio da legalidade, importado do direito francês do século XIX. Na terceira parte, por fim, os textos buscam oferecer reflexões a partir daquilo que chamamos Direito com Literatura, eis que assumem as mais di versas e livres formas de articulação dos argumentos propostos: carta, ensaio, discurso etc. Carlos Maria Cárcova nos brinda com As inquietações do Dr. Domitilo, que consistem nas perplexidades e vicissitudes deste singelo servidor da justiça acerca de um marcante caso concreto: o atropelamento de Macabéa. As disputas literárias e jurídicas travadas durante o Século de Ouro na Es panha vêm retratadas por José Calvo González, que recorda os inúmeros ataques dirigidos a D. Francisco de Quevedo - célebre escritor do século de ouro espa nhol -, especialmente a partir da publicação de “El tribvnal de la ivsta vengança”, de Luis Pacheco de Narváez. A necessidade de uma espécie de “realismo literário no direito” para que os fenômenos jurídicos possam vir à fala é defendida no ensaio de Lenio Luiz Streck e Rafael Tomaz de Oliveira. Entre inúmeros aportes literários - especialmente de Graciliano Ramos e John Steinbeck -, os autores aproveitam as narrativas como instância para se pensar o estado, a economia e o direito em tempos de crise. Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira publica uma carta (inédita) na qual res gata um importante texto de Kafka: O silêncio das sereias. A partir deste conto cujas personagens principais são Ulisses e as sereias - e de uma série de “imagens dialéticas”, reabre a discussão das interpretações dos livros de Jon Elster acerca da metáfora dos compromissos assumidos por um povo perante si mesmo com deter minadas autolimitações constitucionais à sua própria atuação política futura. Com o ensaio intitulado “o direito através de Mia Couto”, Sandra Regina Martini Vial destaca a formação transdisciplinar do renomado autor moçambicano e a atualidade dos problemas retratados em seus textos, especialmente “Os sete sapatos sujos”, no qual se identificam diversas interfaces com o mundo sociojurídico.
DIREITO E LITERATURA
Em suma, o conjunto de textos que, aqui, trazemos a público - consideran do a diversidade de obras literárias examinadas e de abordagens oferecidas - faz lembrar as palavras de Simon Blackburn, um dos grandes filósofos da contemporaneidade, quando ele afirma que aprendeu filosofia lendo livros de literatura. O direito também pode ser contado a partir da literatura. Assim, estaríamos náo só humanizando o direito como também mostrando que ele náo precisa desempe nhar sempre o papel de viláo da história. Porto Alegre, setembro de 2012. L e n i o L u i z St r e c k A n d r é K a r a m T r i n d a d e
PARTE I
A REALIDADE DA FICÇÃO
KAFKA NO PROCESSO E NA COLÔNIA PENAL. AINDA. A lexandre M orais da Rosa
1. Giorgio Agamben, em Profanaciones1, assinala que nas novelas de Kafka surgem assistentes que, quase sempre, parecem incapazes de ajudar, mas estão sempre atentos, eloqüentes, com seus olhos brilhantes e modos pueris. Encarnam o tipo de eterno estudante ou de embusteiro, que envelhece mal e que, ao final, devemos abandonar, ainda que contra nossa vontade, justamente porque existe neles uma graça inconclusa, uma graça imprevista, certa petulância, enfim, uma ambivalência de serem úteis, sem sabermos, de regra, como, inutilmente, bem assim apontam para posturas éticas. 2. No processo penal, claro, os ajudantes estão lá, no seu lugar, com suas fimçóes, na eterna expectativa de se tornarem os salvadores ou algozes do acu sado, da vítima, de K, mas que são esquecidos quando, depois do trânsito em julgado, todos vivem felizes para sempre, ou não. Aparecem e desaparecem, sem deixar rastro, no seu lugar. O que fica é o rastro/resto! São os tradutores imaginários do que o Outro quer transmitir, ou insistimos em acreditar que aparecerá, de rompante, no ato. Os assistentes são, na maioria dos casos, os responsáveis pelo “trabalho sujo”, ou seja, realizam as tarefas que nos são mo ralmente inviáveis, e que retiram, imaginariamente, a responsabilidade. Neles heróis ou algozes -, alienadamente, se coloca a responsabilidade pelas decisões, prisões, execuções, laudos periciais, com os quais o processo sempre segue, até 0 fim... Os ajudantes, diz Agamben, ocupam esta função de fazer esquecer, de esquecer o que se faz..., porque na lógica da burocracia, a enunciação se perde *
1
Pós-d outorad o em Direito (Unisinos/Coimbra). Douto r em Direito (UFPR). Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNIVAU. Juiz de Direito (SQ. Membro do Núceo de Direito e Psicanálise da UFPR. Texto que vai ded:cado para André Karam Trindade, amigo de todas as horas. A GA MB EN , G ior gio . Profanaciones. Barcelona: Anagrama, 2005, p. 37-46.
DIREITO E LITERATURA
no emaranhado de enunciados imperativos. Cumpra, é seu dever. Sem pensar. O carrasco cumpre a decisão do Juiz sem responsabilidade, bem demonstrou Kafka na Colônia Penal2, sendo que, por sua vez, o Juiz ao náo sujar as máos na execuçáo, sente-se irresponsável, mesmo que atulhando gente onde náo só a terceira lei de José Newton - talvez revogada - nega, a saber, onde cabem 3, acotovelam-se 23. Nesta ambivalência, o processo segue seu caminho. Depois de executada uma sentença, remete-se ao arquivista, outro assistente. Cada qual ciente de seu papel, excelentes funcionários públicos, com eficiência, claro! Narra Kafka: “Estes senhores que vê aqui, e eu, desempenhamos um papel completamente acessório em seu assunto, do qual, para dizer a verdade, não sabemos quase nada [ ...] O certo é que está detido. Isto étudo quanto sei’.”3Disto, todavia, resulta um gozo que é preciso investigar, marcar. Mas antes vamos ao processo penal (com) Kafka-na-mente. 3. O Processo Penal é - para os atores jurídicos diretamente vinculados (juiz, promotor de justiça, advogados, técnicos) e principalmente para os acusados e vítimas -, uma grande interrogação! Desde a teoria do injusto até as regras pro cessuais, tudo está envolvido por uma grande névoa enigmática. “ Alguém devia ter caluniado a Jo se fK , pois sem que ele tivesse feito qualquer m alfoi detido certa manhã.”4 Assim Kafka começa a narrar a história de um cidadáo comum apanha do pelas teias da enigmática Justiça descrita pela obra. Uma Justiça fugidia, opaca, opressora, claustrofóbica, contraditória, burocrática, da qual passa a ser um objeto de investigação, sem que saiba do que é acusado,5 quem o acusou e como se dá seu processo. Desde sua prisão, efetuada por funcionários que não sabem os motivos de seus atos,6 e durante a instrução de seu processo, pouco lhe é explicado.7
2 3 4 5 6
7
KAFKA, Franz. A colônia penal. Trad. de Modesto Carone. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. KAFKA, Franz. O processo. Trad. de Modesto Carone. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 47. ld „ ibid., p. 37. ld., ibid., p. 46: "Infiro-o de fato de ver-me acusado sem que seja possível encontrar que eu tenha com etid o o meno r delito pe lo qua se justifique a acusação." ld., ibid., p. 42: "N ós somos apenas em pregad os inferiores que pou co sabemos de docum entos já que nossa missão neste assunto consiste somente em montar guarda junto a você durante dez horas diárias e cobrar o nosso soldo por isso. A? está tudo que somos; contudo, compreendemos bem que as altas autoridades a cujo serviço estamos, antes de ordenar uma detenção, examinam m uito cuidadosamente os m otivos da prisão e investigam a conduta do detido. Não pode existir nenhum erro. A autoridade a cujo serviço estamos, e da qual unicamente conheço os graus inferiores, não indaga os delitos dos habitantes, senão que, como o determina a lei, é atraída pelo delito e então somos enviados, os guardas. Assim é a lei, como p ode ria haver algum erro? - Descon heço essa lei - Disse K. - Tanto pior para você - replicou o guarda". ld., ibid., p. 40: "K. vivia em um estad o constitucional no qual reinava a paz, no qual todas as eis estavam em vigor, de modo que quem eram aqueles que se atreviam a invadir sua casa?”
10
K A F K A N O P R O C E S S O E N A C O L Ô N I A P E NA L . A I N D A
4. O absurdo processual narrado por Kafka transcorre mediante a inter venção de assistentes inferiores sempre cientes de suas obrigações e alienados da dimensão do processo, da estrutura, mas cumpridores das ordens expedidas pelo Outro, também desconhecido, Ausente, daí seu efeito cativante (Legendre). Apesar de estar detido, pôde manter suas obrigações perante o banco que trabalhava e a detenção lhe faz adentrar num universo de medo, desconfianças e compulsão para descobrir o que estava acontecendo e também como provar a sua inocência: “Não se alvoroce tanto com protestos de inocência porque isso causa má impressão. ”s Passa por interrogatórios que lhe fogem à compreensão, dizendo no primeiro: “0 que eu pretendo é simplesmente tomar pública uma evidente situação de injustiça.”9Mas suas tentativas são vãs. Descobre os mean dros dos rituais secretos,10das indumentárias,11 das influências de advogados,12 intervenientes, e até estranhos - principalmente do poder das mulheres sobre os juizes13- , das pequenas corrupções, da vontade dos subalternos de agradar os superiores com o fim de ascensão na carreira, convencendo-se, ao final, de que não vale a pena lutar: a condenação é inexorável. Presume-se condenado, acede ao comando do Outro> mesmo sem saber os motivos, e aceita a execução da decisão: “M as as mãos de um dos senhores seguraram a garganta de K enquanto o outro lhe enterrava profundamente no coração a faca e depois a revolvia ali duas vezes. Com os olhos vidrados conseguiu K. ainda ver como os senhores, mantendose muito próximos diante de seu rosto e apoiandose face a face\ observaram o desenla ce. Disse: —Como um cachorro! —era como se a vergonha fosse sobrevivêlo” N 5. Esse processo kafkiano não está longe do que aconteceu em passado re cente e do que se dá no mundo da vida, sem meias palavras, daquilo que acontece 8 ld., ibid., p. 47. 9 ld.. ibid., p. 75. 10 ld., ibid., p. 145: "O inqu érito não era público ; ainda que a justiça alguma vez julgasse necessário fazê-lo público, a lei não prescrevia tal publicidade. De modo que os expedientes da justiça e, especialmente, o escrito de acusação, eram inacessíveis para o acusado e seu defensor, o que fazia com qu e não se soubesse em geral ou ao m enos com precisão a quem se devia dirigir a primeira demanda (...) porque no fundo a lei não admitia nenhuma defesa, mas tão som ente a tolerava." 11 ld., ibid., p. 100: “O utro mé rito possui em sua elegan te indumentária. Nós, quer dizer, todos os empregad os, pen samos certa vez que era preciso que o encarregado de d ar informações, que continuamente está em co ntato com as partes, e que além disso o primeiro ao qual estas acorrem, precisava vestir-se elegantemente para produzir no público uma primeira impressão de dignidade ." 12 ld., ibid., p. 146: “ O realmente imp ortante , apesar de tudo, estava nas relações pessoais do advogado. Nelas estava todo o valor da defesa”. 13 ld., ibid., p. 238: "Se eu conseguisse fazer com qu e algumas mulheres que eu con heço se unissem para trabalhar pe a minha causa, teria de conseguir êxito, especialmente tratando-se desta justiça que está constituída quase ex clusivamente p or mulhe rengos. Mostre-se á distância a um juiz de instrução uma m ulher e saltará por cima da mesa e do acusado com a intenção de alcançá-la." 14 ld.. ibid., p. 254.
11
DIREITO E LITERATURA
nos Foros em geral, principalmente no júri,15dado que há um inescondível des conhecimento das regras do jogo, conquanto se mantenha a pose. Por força da (de)formação acadêmica, pouco se sabe da estrutura, mas os assistentes executam as regras com vontade, vontade de cumprir a missão que lhe fora confiada pelo Outro, deixou evidenciado Legendre.16Sustenta Zizek que “no cerne da máquina burocrática., existe apenas um vazio, o Nada: a 'burocracia*seria uma máquina louca quefunciona sozinha. ”17A ideologia para funcionar precisa ser cínica, não levando a si mesma muito a sério. Os que levam a ideologia muito a sério acabam repre sentando uma ameaça. São, no fundo, estigmatizados como dissidentes de um projeto que precisa sobreviver com um discurso subliminar, aberto a poucos, em nome de outra coisa, mantida aos demais, na superfície. Para sobreviver, portan to, no espaço da política é preciso uma certa dose de manipulação, de segredos de Estado. Ademais, no centro há um vazio que não pode ser dito, nem tolerado sob pena de desfazer o fascínio que “a coisa” representa. O poder acaba se mani festando por rituais, contra os quais é preciso resistir, ambivalentemente. 6. É que não se pode manejar o Processo Penal sem se estabelecer, antece dentemente, sobre o que se irá debruçar e, apesar de tal movimento absoluta mente inarredável, normalmente, passa a latere. Diz Zizek: “O Tribunalé lawless, sem lei, no sentido lógicoformab é como se a cadeia da conexão 'normal* das causas e efeitosfosse posta entre parênteses. Qualquer tentativa de estabelecer o modo de fu ncionamento do Tribunal por raciocínio lógico estáfadada ao fracasso.”1* Não se dá conta, por exemplo, de que os paradigmas penais do tipo de injusto são diversos19 e, como tal, não podem ser utilizados sem um esclarecimento prévio, sob pena de se correr o risco - como, de fato ocorre - de se tomar um pelo outro com a finalidade última de condenar, de se impor uma sanção.20 Dito de outra forma, as decisões no âmbito jurídico, para serem sérias, precisam explicitar os fúndamen15 LINS E SILVA, Evandro. Discursos. In: SHECAIRA, Sérgio Salom ão (Org.). Estud os criminais em homenagem a Evandro Uns e Silva. São Paulo: M étodo , 2001, p. 14: "O ritual, a solenidade , as becas e togas, até mes mo c abeleiras empoladas, a tribuna, os jurados, o réu, a defesa e a acusação, a assistência, um crime, uma decisão. N ão há dados, mas há sorteio. D e um lado o lúdico , a álea. Do outro , o suspense, o suor, o talento, a dedicaçã o, a arte, a pertinácia, a ciência, a estética cumprem o papei. A lógica e a adrenalina, o inesperado, o fatídico e o invisível. Cenas que se sucedem neste fantástico espetáculo onde não falta 'frisson' e se tem direito a 'gran finale'. Este é o mundo mágico do júri - forte, flutuante, fluido 'kafkaniano'". 16 LEGENDRE, Pierre. O amor d o censor. Trad. de Aluísio Menezes. Rio de Janeiro: Forense, 1983. 17 2l2EK. Slavoj. E/es não sabe m o que fazem. Rio de Jane iro: Jorg e Zahar, 1992, p. 187. 18 ld., ibid., p. 190. 19 CIRINO DOS SANTOS. Juarez. A mod erna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Fre tas Bastos. 2002. 20 2l2EK, op. cit., p. 190-191: "O erro fatal de K.. portan to, foi dirigir-se ao Ou tro da Lei com o uma entidade h om ogê nea, receptiva a uma argumentação coerente, enquanto que a Lei só lhe pode retribuir e opor a sua atitude metódi ca um sorriso obsceno, mesclado de sinais de balbúrdia. em suma, K. espera atos do Tribunal (no sentido de peças legais), e o Tribunal lhe respon de com o ato (a cópula pú blica)."
12
K A F K A N O P R O C E S S O E N A C O L Ô N I A P E NA L . A I N D A
tos: de onde se olham as condutas imputadas, afinal, as decisões deve(ria)m ser fundamentadas. O problema é que, como diz Cárcova,21há patente opaádade do Direito. Náo se discute, em regra, a teoria de onde se olha. Coexistem paradigmas penais absolutamente incompatíveis, mas que são manejados retoricamente como se fossem. E o pior: a maioria não discute! E quem não o faz não é sério,22 definitivamente. 7. Mas para efeito desta pequena reflexão, talvez, basta dizer que ajudantes ou não há um sujeito com responsabilidade por detrás. Saiba ou não. Queira ou não saber! E, de qualquer forma, em relação aos assistentes é melhor que esqueça mos que eles existem ou que os representamos, porque olhar na direção deles, ou no espelho, cobra um preço, e neste momento é melhor não ver nada, ou pagar o preço da decisão, enunciando desde um lugar, e com a responsabilidade daí advinda, sem Redenção, nem garantias transcendentes.
21 CÁRCOVA, Carlos Maria. La opacidad d ei derecho. Madrid: Trotta, 1998. 22 CORDERO, Franco. Cuida alia procedura penale. Torino: UTET, 1986, p. 43-44.
13
AS DESVENTURAS DE PINÓQUIO: O PROCESSO DE HUMANIZAÇÃO, A SUBMISSÃO À LEI E A ADESÃO AO PACTO SOCIAL André Karam Trindade Henriete Karam"
A leitura aqui proposta de As aventuras de Pinóquio requer que se explicitem dois pressupostos. O primeiro deles diz respeito ao fato de que a literatura infantil constitui-se como gênero no séc. XVII, quando, em decorrência da ascensão dos valores e instituições burguesas, a criança passa a ser vista como um ser diferente do adulto, com características, indagações e necessidades próprias, devendo, por tanto, receber uma educação especial, que lhe possibilite decodificar os valores ético-morais do mundo que a circunda. Em outras palavras, a literatura infan til apresenta, em suas origens, caráter estritamente pedagógico-moralista e surge como veículo disseminador dos valores ideológicos burgueses.1 Deve-se considerar, portanto, que, se muitas das obras que hoje compõem o quadro da literatura infanto-juvenil - como As viagens de Gulliver, de J. Swift, Robinson Crusoé, de D. Defoe, e diversas narrativas de J. Verne - eram destina das, na época em que foram produzidas, ao público adulto, tal não é o caso de As aventuras de Pinóquio. A história do boneco de madeira, escrita por Cario *
Do utor em Teoria e Filosofia do Direito (Università deg li Studi Roma Tre/itália). Mestre em Direito Público (UNISINOS). Coorde nado r de Pesquisa e Professor de Direito Cons titucional da Escoía de D ireito da Faculdade Meridional (IMED/RS). Co orde nado r do KATHÁRSIS - Centro de Estudos em Direito e Literatura da IMED. Mem bro F undador e Pesquisador do Instituto de Herme nêutica Jurídica (IHJ/RS). Me mb ro da Italian Society of Law ande Literature (ISLL). Produtor Executivo do Programa "Direito e Literatura: do fato ã ficção" (TV JUSTIÇA).
**
Do utora em Es tudos de Literatura (UFRGS). Mes tre em Teoria Literária (PUCRS). Professora dos Cursos de Letras e de Direito da UCS. Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS. Psicanalista.
1
Contexto que não é de se estranhar se evado em conta que o romance, como afirma G. Lukács ((s. d.)), em sua revi são histórica da formação do gênero romanesco, constitui-se numa forma narrativa predominantemente burguesa.
14
AS DESVENTURAS DE PINÓQUIO
Collodi2 no final do séc. XIX, é originalmente publicada num jornal infantil italiano* e, mais de meio século depois, transforma-se num sucesso cinemato gráfico com a versáo fílmica de Walt Disney.4 Assim, na leitura e interpretação da obra As aventuras de Pinóquio, mostra-se indispensável reconhecer a presença de elementos que remetem tanto à adoção quanto à transgressão dos moldes e padrões da literatura produzida especifica mente para crianças, no final do séc. XIX. Enquanto o primeiro pressuposto diz respeito ao gênero da obra, o segun do é relativo ao seu tema central - um boneco de madeira que se transforma em menino - e envolve o fascínio que os autômatos (seres que se movem por si mesmos) sempre exerceram sobre o ser humano. Além dos autômatos que povoam o universo mítico - como as serviçais de ouro fabricadas por Hefesto e as estátuas animadas de Dédalo -, historicamente, já no séc. XVI, as cor tes europeias se maravilhavam com a visão de figuras mecânicas reais, que se movimentavam, tocavam instrumentos musicais e chegavam a produzir sons semelhantes a palavras.3 O aprimoramento dessas criaturas artificiais, em que o inorgânico imita o orgânico, deve-se ao domínio da mecânica, que além de haver marcado a socieda de seiscentista, deu origem ao pensamento mecanicista - o Zeitgeist que dominou o Ocidente até o séc. XIX e, em seus primórdios, relacionava-se à concepção do 2 3
4
5
Pse udôn imo de Cario Lorenzini (Florença, 1826-1890), jorn a ista e esc ritor ita iano. Os primeiros quinze capítu os foram veiculados no semanário II Gionarle per i Bambini, de Ferdinando Martini, entre julho de 1881 e janeiro d e 1883, sob o título de Storia di un b urattino [História de um boneco). Com algumas mudanças, nova divisão dos capítulos e acréscimos, o texto d efinitivo, qu e contém os trinta e seis episód ios originais da obra, recebe o título Le aw enture di Pinocchio (As aventuras de Pinóquio) e é publicad o pela Felice Paggi-Libraio Editore, com ilustrações de Enrico Mazzanti, em 1883. Traduz:da para diversos idiomas. As aventuras de Pinóquio rapida me nte ultrapassaram as fronteiras da Itália, chega ndo ao Reino Unido em 1891; aos Estados Unidos, em 1901; à França, em 1902; ã Alemanha, em 1905; e, a partir de 1911, surgem traduções e adaptações em diversos países da África, da Ásia e da Oceania. No Brasil, a primeira tradução de Le awenture di Pinocchio é feita por Monteiro Lobato, em 1933. Das nove diferentes tradu ções brasileiras publicadas e ntre 2002 e 2008, cabe ressa tar: a edição crítica com tradução de Aurea Marin Burocchi, publicada pela editora Pauiinas em 2005 e lançada por ocasião das comemorações do centenário de Pinóquio; a 15* reedição da tradução de Monteiro Lobato, em 2004; a bela edição que, publicada em 2002, pela Iluminuras, traz tradução e ilustrações de Gabriella Rinaldi; e a tradução de Marina Colasanti, também de 2002, pela Cia. das Letrinhas, que, a ém de integrar neste mesmo ano a coleção de títulos entregues às escolas pelo PNE (Programa Nacional da Escola, do Ministério da Educação, que visa à formação de eitores. mediante a criação e manutenção de bibliotecas nas escolas públicas brasileiras do ensino fundamental), recebeu, em 2003, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, o Prêmio Monteiro Lobato, categoria "A melhor tradução/crianças - hors concours", sen do reed itada em 2C08. Embo ra a primeira adaptaç ão para o cinema seja de 1911, um flm e mu do, colo rido à mão e com cerca de 30 minutos de duração, é o longa-metragem de Walt Disney, de 1940, que entrou para a história, apesar da imensa diferença em relação ao texto original. Mais recentemente, em 2002, Roberto Benigni produz uma versão fílmica muito próxima da história escrita por Co lodi; em 2005, o filme Hinokio, de Takahiko Akiyama. uma adaptação futu rista do clássico escrito por Collodi, recebeu o prêmio de melhor filme infantojuvenil no Festival do Rio; e, em 2008, é lançado o filme Pinocchio, dirigid o po r Alberto Sironi. Esses bonec os automá ticos pode m se vistos, ainda hoje, nas torres de prefeituras e catedrais de muitas cidades da Europa.
15
DIREITO E LITERATURA
universo como uma grande máquina e às ideias de que todos os processos na turais, sendo mecanicamente determinados, podiam ser explicados pelas leis da física e de que, uma vez conhecidas as leis de funcionamento do universo, seria possível determinar como ele se comportaria no futuro. Os filósofos, por sua vez, não se esquivaram de adotar os bonecos automáti cos, pelo menos até certo ponto, como modelos para os seres humanos. Ao apre sentar aos seus leitores o mecanismo de um relógio como metáfora para o corpo humano, R. Descartes6 afirma que tal ideia não iria parecer estranha a quem sabendo quão diversos autômatos, ou máquinas móveis, a indústria dos homens pode construir [...] considerará o próprio corpo como uma máquina que, tendo sido construída pelas mãos de Deus, é incomparavelmente mais ordenada e con tém movimentos mais admiráveis do que qualquer das [máquinas] que possam ser inventadas pelos homens (1989 [1637], p. 74-73). A experiência humana proporcionada pelos bonecos mecânicos é transposta da vida real para a literatura dos séculos XVIII e XIX, na qual os autômatos ou seres criados pelo homem tornam-se personagens recorrentes, especialmente das histórias de horror7- como é o caso, respectivamente, da boneca Olympia,8 do conto Der Sandemann (1993 [1817]), de E. T. A. Hoffmann, e de Frankenstein, personagem do romance homônimo de M. Shelley (2003 [1818]). Na literatura infantil, além de Pinóquio, do soldadinho de chumbo, prota gonista do conto de H. C. Andersen (2004 [1838]), e das conhecidas personagens de O maravilhoso mágico de Oz, de L. F. Baum (2009 [1901]), encontramos, bem mais próxima de nós, a revolucionária Emília, do Sítio do picapau amarelo, de M. Lobato (1977), boneca de pano que, ao contrário do burattino, é firme e categórica em seu desejo de não tornar-se gente. As crianças - talvez menos sensíveis ao Dopplegànger, termo que O. Rank (1939 [1914]) cunhou para designar o duplo, e ao Unheimlich, a inquietante estranheza investigada por S. Freud (1981 [1919]), de um lado, e, de outro, 6
7
8
Conta-se que, em 1640, o filósofo e ma temá tico francês teria construído uma mu her autõmata a quem chamava "M a filie Francine"’, para subs tituir sua filha i egítima que havia mo rrido. Numa das viagens de R. Descartes, o capi tão do barc o teria se assustado ao encon trar a boneca e ord enad o que ela fosse atirada ao mar (PEDRAZA, 1998). O horror, com o eleme nto literário e artístico, remonta è Idade Média e é revitalizado, a partir do séc. XVII, pelo ressurgimento d o romanc e gótic o - seja sob a forma d o sobrena tural, seja de uma natureza descontrolada e que nenhuma força humana consegue dominar. A macabra história de E. T. A. Hoffmann é adaptada para o palco, dando origem ao balé Coppélia . que estreou na Ópera de Paris, em 1870, com coreog rafia origina de Arth ur Saint-Léon, libre to de Saint-Léon e Charles Nuitter, e música de Léo Deíibes.
16
AS DESVENTURAS DE PINÓQUIO
mais propensas ao exercício do imaginário - não parecem responder com a mesma angústia que os adultos, quando diante de seres autômatos. Significativo é que os seres autômatos, quando habitam os universos nar rativos da literatura infantil, inscrevem-se no mundo da fantasia e, na literatura adulta, pertencem à dimensão do fantástico - concebido porT. Todorov como “a hesitação experimentada por um ser que conhece apenas as leis naturais diante de um acontecimento aparentemente sobrenatural” (2005, p. 28) -, remetendo, do ponto de vista formal e conceituai, às relações entre real e imaginário e, do ponto de vista temático, às características essenciais do homem, com base na diferencia ção entre o humano e o não humano - seja esta pautada por uma visão dualista de superioridade do humano, seja por uma visão monística de equivalência exis tencial entre sujeito e objeto. São justamente os percursos do não humano ao humano e deste ao advento do sujeito - figurativizados, na narrativa de C. Collodi, através das aventuras vividas por Pinóquio - que nos interessam, aqui, examinar. §§§ Antes, porém, impõe-se apresentar uma breve recensão dos principais estu dos, em língua italiana, dedicados à obra de C. Collodi, bem como ressaltar as di ferentes leimras que ela tem proporcionado ao longo de praticamente 130 anos. As leituras de matiz historicista põem em evidência o contexto da época em que a obra foi escrita, enfocando seu caráter de sátira política, de denúncia das mazelas sociais e de problematização do sistema educacional italiano. Superando, em muito, as interpretações de autores como A. Baldini (1947 [1876]), P. Pancrazi (1948), M. Boni (1977) e R. Bertacchini (1983) - com as quais dialoga e às quais se opõe - , V. Frosini (1990) levou a cabo a proposta de reler As aventuras de Pinóquio sob as perspectivas política e social,9com uma consciência histórica mais refinada, e considera que Pinó quio não é uma fábula, mas constitui-se num mito em que é possível observar o desaparecimento de uma época e, mais precisamente, um ressurgimento de 9
V. Frosini (1990) justifica a necessidade de uma nova leitura de Pinocchio com base na publicação, em 1971, de um artigo intitulado "A noi Tamaro non ci piace" (La stampa, Torino, 6 de março de 1971), de Arturo Cario Jemolo, no qua o autor sustenta que a obra-prima de Col odi é um livro-chave em razão das inúmeras alegorias que nele podem ser observadas: Pinóquio é o povo italiano; a Fada simboliza o liberalismo progressista; a Raposa e o Gato representam os defensores da monarquia e os clérigos; e o Grilo-falante, marcado pela sua falta de sorte, seria Mazzini.
17
DIREITO E LITERATURA
caráter republicano e mazziniano,10pois escrito no período em que se circuns crevem anos cruciais na história da nação italiana, já que eles marcam a passagem da idade do Ressurgimento àquela do pós-Ressurgimento, com o desaparecimento das figuras dominantes da geração ressurgimental, com a profunda transformação social de vida à ampliação do sufrágio eleitoral, com o apogeu do chamado transformismo parlamentar e com as primeiras agitações socialistas (FROSINI, 1990, p. 31). Ressalta ainda V. Frosini que a história de Pinóquio - “o companheiro das máscaras da comédia de arte, concebido e modelado para divertir a gente, que através do trabalho, do estudo e das experiências assimila a seriedade da vida e se torna homem” (1990, p. 32) - só poderia ter sido imaginada por um homem do Ressurgimento e que, para o espírito do Ressurgimento, tal história consistiria num eficaz mito educativo, visto que é escrita no início dos anos 1980 do séc. XIX, época em que se verifica uma diferença muito grande entre a Itália como ela é e a Itália como ela deveria ser e na qual o sistema político parecia enfrentar uma crise de decomposição, que era denunciada com veemência nos jornais e nos livros, inclusive em Pinóquio, onde se faz ouvir um “eco da crítica ao costume parlamentar e ao ceticismo político” (1990, p. 32). Outro dos pilares desta perspectiva historicista é a vinculação da obra às posições político-ideológicas do autor, em especial no que se refere às críticas de C. Collodi às políticas públicas de escolarização.11 Críticas que são explicitadas tanto na conhecida carta aberta intitulada “Pane e libri”, dirigida ao ministro D. Berti,12 quanto na carta aberta que, atribuída a um florentino e endereçada ao ministro M. Coppino,13 encontra-se no artigo “Come studiavano i fiorentini”,
10 Trata-se de Giusepp e Mazzini, po ítico e revolucion ário do Risorgimento. cujos ideais de probidade e de dignidade civil, inspiraram o jovem Cario Lorenzini. Também o filósofo F. Nietzsche lhe tributa sua admiração. Em A ga ia ciên cia. aponta G. Mazzini como m ode o, além de ter afirmado a respeito de e que "Um grande homem, na linguagem corrente, não precisa ser bom nem nobre - eu não tenho mem ória senão de um só hom em neste século a que tenham sido atribuídos esses três qualificativos, mesmo pelos seus inimigos: Mazzini." 11 Também A. Gramsci (1982 (19171) se manifesta con trário á polític a escolar implemen tada neste período, su blinhando que, embora a Lei Casati. de 1859, houvesse instituído e ampliado a obrigatoriedade escolar e, com a chegada da esquerda ao poder, novos programas, de cariz positivista, tenham s ido prom ulgado s pela Lei Coppino . de 1887, isso não significava que a legislação escolar obrigasse as pessoas a aprender. 12 Dom enico Berti foi Ministro da Instrução Pública entre 1865-1867. 13 Miche le Copp ino fo i Ministro da Instrução Púbiica entre 1876-1879 e 188^-1888.
18
AS DESVENTURAS DE PINÓQUIO
publicado em Occhi e nasi,]4 e na qual o autor de Pinóquio manifesta sua frontal oposição à Lei Coppino.16 Em “Pane e libri”, C. Collodi afirma que o sentimento de dignidade humana “entra melhor no sangue à força do pão do que entra no cérebro à força da ins trução obrigatória e de livros” e acrescenta: O homem antes de qualquer outra coisa precisa que coma e que beba, que se proteja das intempéries e que tenha um leito onde possa repousar, depois das fàtigosas jornadas de trabalho pacientemente suportadas. Então, só então, pode encontrar-se em tal estado de ânimo para dar ouvido à própria consciência e para sentir a ambição de melhorar a si mesmo [...] menos papo furado e mais pão! O proletário maltrapilho e faminto, que não tem para levar à sua família outro ali mento além de poucos caules de couve catados no lixo, o que querem vocês que se faça da vossa instrução e dos vossos livros? (1948, p. 780-781). O cerne destes polêmicos escritos de C. Collodi, que recaem sobre a instru ção obrigatória, parece consistir numa forma de resistência à disciplina social e teria como fim problematizar, conforme sugere G. Itzcovich, “uma clara questão biopolítica : uma questão sobre o nexo entre saberes e poderes sociais na cons trução da subjetividade moderna [...] transformar a lenha deformada da huma nidade em uma população ordenada, os pinóquios indisciplinados em crianças educadas” (2007, p. 240). O fato é que, na obra de C. Collodi aqui em análise, mostram-se recorrentes tanto a ideia de imposição da escola como atividade obrigatória - na medida em que freqüentá-la pareceria constituir uma das condições para a humanização do boneco - quanto às situações em que Pinóquio não tem o que comer.17 As questões relativas à educação, que remetem implícita ou explicitamente ao processo de escolarização como objetivo político e tarefa do governo, são, 14 As duas cartas alcançaram maio r divulgação ao serem republicadas. A primeira delas, que consta na coletânea de Pietro Pancrazi (COLLODI, Cario. Tutto C ollodi: per i piccoli e per i grandi. Firenze: Le Monnier, 1948), encontra-se, também, em COLLODI, Cario. Gli ultimi fiorentini. Frenze: Nerbini, 2002; a segunda foi editada na co etânea orga nizada por Danieie Marcheschi (COLLODI, Cario. Opere. Milano: Mondadori, 1995). 15 Neste e em outros casos, utiliza-se a forma abreviada Pinóquio, grafada em itálico, para indicar a obra. 16 Lei que. seg undo G. Itzcovich (2007), é considerada uma das mais impo rtante s reformas da esquerda histórica e cujo objetivo não seria, hoje, tema de controvérsias. Registre-se, por oportuno, que tanto a educação quanto a alimen tação foram guindada s à con dição de d ireitos (sociais) fundame ntais na Co nstituição brasileira de 1988 (arts. 6°. 7a, 205, 208 e 227). Da mesma forma, cabe assinalar que é possíve perceber, na critica de C. Collod i, a antecipação dos limites do Estado Social, na medida em que prenuncia a crise de inefetividade das meras declarações de direitos. 17 M. Ripo f (2000), no artigo intitulad o Pinocchio e 1'obbligo scoíastico. investiga em que m edida os juízos formu lados por C. Collodi em "Pane e libri" podem ser identificados em Pinóquio e, para isto, toma como base três temas centrais do romance; a fom e e a pobreza; os livros e a escola; e a mentira.
19
DIREITO E LITERATURA
também e em parte, a base das leituras pedagógicas e moralistas de As aventuras de Pinóquio, nas quais sobressai, invariavelmente, a discussão sobre as posições política e religiosa do autor. Em seu estudo histórico sobre a escola elementar italiana, Ester de Fort (1996) refere que, nos anos da Restauração e do Ressurgimento, o desenvolvi mento da educação pública estatal era um programa iluminista, liberal, laico; depois da unificação da Itália, a instrução pública foi promovida pela esquerda histórica e fortemente desejada pelos extremistas - democratas-republicanos, ra dicais e socialistas -, embora sofresse forte oposição, feita sobretudo por parte dos católicos e de alguns integrantes do liberalismo. A este respeito, mostra-se oportuno evocar as considerações de G. Itzcovich, quando sugere que C. Collodi seria um dos representantes da veia realistaplebeia que se mantém, na Itália, em pleno séc. XIX e que se caracterizava, entre outras coisas, por não compartilhar a fé - primeiro iluminista e depois positivista - dos magníficos avanços e progressos da educação pública estatal. Segundo ele, o lugar comum popular que encontramos na obra “é o grito e o lamento de Pinóquio: primeiro, o pão, a estrada, a vida; depois, embora também se precise, os abecedários, os professores, os pedagogos” (2007, p. 239). Tal contexto justificaria a tese defendida por R. Mazzucco - no seu sugestivo artigo intitulado II burattino conservatore de que Pinóquio é um boneco con servador, para não dizer reacionário e conformista, de tal modo que, a seu ver, o texto de C. Collodi “resulta numa involuntária divulgação de preceitos e costu mes impregnados do passado, na obra de um escritor que revela sua verdadeira inclinação de católico conservador” (1966, p. 67). Nessa mesma linha de uma leitura pedagógica de caráter religioso, tam bém merece destaque a posição assumida por P. Bargellini - na conferência Paternità di Cario Collodi, proferida no Palazzo Vecchio, na cidade de Firenze, em outubro de 1941, e posteriormente incluída no livro intitulado La verità di Pinocchio -, quando sustenta a ideia, embora de modo mais elaborado e sofis ticado do que R. Mazzucco, de que o “Pinóquio, assim como todas as obras-primas italianas, apresenta um fundamento baseado na verdade da doutrina católica” (BARGELLINI, 1942, p. 125) e justifica sua leitura alegando que a história do burattino tem como pano de fundo as relações entre pai e filho e que as aventuras por este vividas se estruturam em dois ciclos - de um lado, a perda, ou fuga, do pai; de outro, a redenção, ou o retorno, ao pai -, de tal modo que, a seu ver, a fábula se transforma em um mito religioso, no qual se torna 20
AS DESVENTURAS DE PINÓQUIO
possível encontrar alguns índices bastante pontuais: (a) Pinóquio é filho de um lenhador; (b) sua mãe, a fada, é uma virgem; (c) esta fada, que é uma menina com cabelos azuis, tem um adorno cuja cor é a do manto de Nossa Senhora; (d) depois de inúmeros erros e penitências, Pinóquio alcança a sua regeneração através da Graça. No que se refere às interpretações que tendem a ver em Pinóquio um texto de ensinamento confessional,18é preciso considerar, como muito bem assinala V. Fronsini, que a popularidade alcançada por Pinóquio em países como EUA e a antiga Rússia soviética desmentem as tentativas de impor ao texto uma leitura que seja permeada pela apologia dos dogmas católicos - a qual, para o autor citado, contrasta com “a mentalidade histórica e a humanidade de Collodi, cujas concep ções políticas, inspiradas em um rigoroso laicismo, estão muito bem documen tadas de modo que não deixam margem para quaisquer dúvidas” (1990, p. 39). Além disso, impõe-se levar em conta o caráter mítico de Pinóquio, que, se gundo defende V. Frosini na esteira do teórico russo V. Propp,19o vincularia por tal peculiaridade ao divino, sendo natural que incorpore os traços de um contexto histórico e geográfico marcado pela tradição do cristianismo e apresente “certos símbolos cristãos tornados tão familiares na cultura e no imaginário social, através de um influxo e uma atração constantes e, talvez, inconscientes” (1990, p. 41). Também em contraste com as interpretações pedagógico-religiosas que pro curam imprimir na obra um caráter confessional, pode-se citar a posição adotada pelo pedagogo italiano L. Volpicelli, cujo objetivo principal é enfocar o mito educativo20 em Pinóquio. Nas proposições deste autor, observa-se a pertinente tentativa de desvincular a inspiração de C. Collodi de pressupostos espirituais e religiosos,21da qual resulta a ideia de que a moral que exsurge em Pinóquio retra ta uma sabedoria comum e terrestre, ao contrário das concepções que apregoam uma ética da religião. Tratar-se-ia, para ele, de uma sabedoria que vigorava entre a classe média pós-ressurgimental - portanto, de um momento histórico em que, uma vez feita a Itália, impunha-se fazer seus cidadãos - e que seria capaz de criar 18 Ta vez a leitura m ais significativa, nes te sentido , seja a inte rpre taç ão teo óg :ca de G. Biffi (1998). cardeal de Bo ogna, segundo o qual Pinóquio exprimiria completamente os ditames da doutrina católica. Não faltam, por outro lado, aqueies estudiosos, como N. Coco e A. Zambrano (1984), que trabalham o carater iniciático da obra de C. Collodi, investigando os símbolos esotérico-maçônicos que nela estariam representados. 19 A referência de V. Frosini - com o não poderia deixa r de ser - é a obra Morfologia do conto, que resulta das análises que V. Propp realiza de con tos folclóric os russos e na qual ele apresenta as conclusões d e seus estudos. 20 Frontalmente contrário a qu aq ue r visão pedagógica. F. Tempesti, considerado um dos maiores estudiosos de Pi nóquio, afirma que sua vitalidade e uniddade consistem em "ser um livro para crianças conduzido conforme uma estrutura perfeitamen te privada de intenções pedagógicas" (1972, p. 80). 21 Ta inten ção é explicitad a já no pró prio título do texto, La verità su Pínoccfiío, em que a partícula su (sobre) vem assinalar a polê mic a con trap osiç ão às ideias expressas por P. Bargel ini (1942) no livr o La verità d i Pinoccbio.
21
DIREITO E LITERATURA
um costume que ele define como “um evangelho de proibição modema que fecha em si os deveres da razão e da religião” (1954, p. 162), que se fundaria na verdade experimental da vida. De todos os modos, as perspectivas pedagógicas e moralistas encontram am paro nas observações de B. Croce num artigo que, tendo sido veiculado na revista La Critica do dia 20 de novembro de 1937, foi, posteriormente, incluído na obra Litteratura delia nuova Italia e no qual o renomado crítico italiano ressalta que a história de Pinóquio constitui a própria “fábula da vida humana do bem e do mal”, uma vez que se trata de “um livro humano, [que] encontra os caminhos do coração... a madeira, com a qual Pinóquio foi feito, é a humanidade” (1939, p. 172). Cabe, entretanto, a ressalva formulada por V. Frosini, em La filosofia politica di Pinocchio, de que, se a obra-prima de C. Collodi assume uma forma exemplar de vida moral, o faz em contraposição implícita ao culto da violência política. Assim, conforme V. Frosini, “A moral de Pinóquio não é uma moral da interioridade, mas uma moral do tipo social e produtivo, uma moral do trabalho” (1990, p. 42); e a Fada constituiria, na narrativa, a porta-voz de uma concepção de mundo social, que ela propõe a Pinóquio e que - sob a forma de um discurso indireto - C. Collodi dirige aos seus leitores. Para fundamentar tais assertivas, V. Frosini refere o fato de que, na narrativa, é veemente e ameaçador o alerta que a Fada dirige a Pinóquio sobre os riscos do ócio.22 Podemos acrescentar que também o Grilo-falante - no qual muitos veem a representação de G. Mazzini23- lhe faz uma advertência cujo teor é bastante semelhante.24 22 Opto u-se por transcrever as citações de Pinóquio em português e em italiano, tendo como fonte as edições que constam nas Referências e indicand o cap ítulo e página apenas na primeira delas. No presente caso, a passagem é a seguinte: Meu rapaz - disse a Fada aqueles que falam assim acabam quase semp re na prisão, ou no hospital. Saiba que o homem, nascido rico ou pobre, é obrigado neste mundo a fazer alguma coisa, a ter uma ocupação, a trabalhar. Ai de quem se de:xa tomar pelo ócio! O ócio é uma doença horrível, e é preciso sarar logo, desde criança, senão, quando a gente cresce, não sara mais" (Cap. 25, p. 97). No original: Ragazzo mio, - disse Ia Fata - q uelii che dicono cosi, finiscono quasi sempre o in cárcere o alio spedale. L’uomo, p er tua regola, nasca ricco o pov ero, è ob bliga to in questo m ond o a far qualcosa. a occuparsi, a lavorare. Guai a lasciarsi prendere da ll'ozio! Liozio è una bruttissima m alattia e bisogna guarirla su bito, fin da bam bini: se no, quando siamo g randi, non si guarisce plú". 23 Ver nota 10, supra. 24 Você quer saber? - rebateu Pinóquio. que começava a perder a paciência. - Dentre os ofícios do mundo, só tem um que me agrada de verdade. - E este ofício seria? - Aque le de comer, beber, dormir, divertir-me e de levar de manhã á noite a vida de vagabundo. - Só para você saber - disse o Grilo-falante com a sua calma habitual -, todo s aqueles que praticam esse ofício acabam quase sempre no hospital ou na prisão" (Cap. 4, p. 23). No original:
22
AS DESVENTURAS DE PINÓQUIO
Entre as leituras filosóficas, merecem destaque as formulações de V. Fazio-Allmayer, que procura oferecer suas considerações sem incorrer no erro de impor a sua leitura ao texto ou de buscar, na intenção do autor, o sentido que se deveria atribuir à obra. Ressaltando que não pretende desvendar o que C. Collodi pensou ao escrever Pinóquio e que se propõe, tão somente, a compartilhar as ideias em si despertadas pela obra, V. Fazio-Allmayer declara: “O valor de Pinóquio está, para mim, no aventuroso processo pelo qual o boneco se fàz homem; e, visto que o ser boneco é um modo de ser escravo, a aventura de Pinóquio é aquela de um ser que conquista a própria liberdade” (1958, p. 32). Desse modo, este autor, ao contrário de outros estudiosos menos cautelosos, evita, acertadamente, restringir as inúmeras possibilidades de interpretação que a narrativa de C. Collodi pode suscitar. Já no que se refere às leituras psicanalíticas, poucas são, lamentavelmente, as que não se concentram em aspectos relativos à sexualidade de Pinóquio.25 Entre os estudos que não se restringem a tal temática, cabe referir alguns. Para E. Garroni (1975), que considera crucial o fato de que C. Collodi tenha escrito a obra em dois tempos, importa investigar, mediante o exame do processo de escrita, em que medida o trágico e cruento final da primeira versão do texto (Pinóquio l)j na qual o boneco morre, é transvalorado - sendo, ao mesmo tempo, negado e conservado - no final da segunda versão (Pinóquio II), em que o boneco renasce como ser humano,26 ao passo que E. Grillandi (1976) explora este mesmo tema, analisando na obra o conflito entre a pulsão de vida e a pulsão de morte. Segundo G. Servadio (1976), a história de Pinóquio é, também, uma história sobre as rela ções familiares - entre o boneco e seu pai; entre o boneco e a fada que lhe acolhe como uma mãe e/ou irmã - e trata de um tempo psicológico bastante preciso: o da puberdade; enquanto G. Jervis (2002) propõe que a relação do boneco de madeira e o mundo deva ser interpretada com base na ideia de que a compulsão à repetição, verificada em Pinóquio, nasce da relação entre norma e transgressão.
Vuoi che te Io dica? - replico Pinocchio. che cominciava a perdere Ia pazienza. - Fra i mestieri d ei m ond o non ce n’è che uno solo che veramente mi vada a genio. - E questo mestiere sarebbe? - Que l.o di mangiare, bere, dormire , divertirm i e fare dalla mattina alia sera Ia vita dei vagabo ndo. - Per tua regola - disse il Grillo-parlante con Ia sua solita calma - tutti q uelli che íanno codesto m estiere, finiscono quasi sempre alio spedale o in prigion e". 25 Em tais estudos a ênfase recai, via de regra, no nariz fálico. que, como todos sabem, cresce quando ele mente, embo ra no texto - diferente do que ocorre na adaptação fílmica de Walt Disney - tal situação só se apresente duas vezes. 26 O denom inado Pinóquio I corresponde ao texto de Storia d i un burattino (História de um boneco), já o Pinóquio II remete ã versão definitiva, ou seja, à Le awenture di Pinocchio (As aventuras de Pinóquio). A este respeito, rever o início da nota 3, supra.
23
DIREITO E LITERATURA
§§§ Abdicando das diversas abordagens possíveis - sejam as que investigam ele mentos míticos, teológicos ou esotéricos, sejam as que relacionam a concepção da obra com as práticas popular, pequeno-burguesa ou libertária, sejam, ainda, as que defendem seu caráter católico-confessional, conservador e reacionário, de um lado, liberal, anarquista ou socialista, de outro - o que nos interessa é, to mando como ponto de partida as metáforas da criação que, inscritas na cultura ocidental, o texto incorpora, analisar de que modo a submissão à lei e a adesão ao pacto social se relacionam com o ingresso no simbólico e, por conseqüência, com o nascimento do sujeito. Em As aventuras de Pinóquio, são pelo menos duas as comparações possíveis com narrativas da criação. A primeira delas, referente ao ato da criação do mundo que encontramos no Gênesis,27 decorre das imbricações entre o criar e o nomear. Nesse sentido, é possível observar que a escolha do nome do boneco precede sua criação e se configura em um ato marcado pela ambivalência, pois o singular significado de que o nome eleito se reveste, para Gepeto,28 contrasta com sua expressa intenção de bom augúrio: “Assim que entrou em casa, Gepeto logo pegou as ferramentas e começou a enta lhar e a fabricar seu boneco. - Que nome vou dar-lhe? - disse consigo. - Quero chamá-lo de Pinóquio. Esse nome vai trazer-lhe sorte. Conheci uma família de Pinóquios: Pinóquio o pai, Pinóquia a mãe e Pinóquios os meninos. O mais rico delespedia esmola’29(Cap. 3, p. 17, grifos nossos).30
27 Consta no texto b ib ico: "N o princ ípio, Deus criou os céus e a terra. A terra estava inform e e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. Deus disse: "Faça-se a luz!" E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa, e separou a uz das trevas. Deus cham ou ã luz dia, e ás trevas noit e. S obrev eio a tard e e dep ois a manhã: foi o primeiro dia. Deus disse: "Faça-se um firmamento entre as águas, e separe ele umas das outras". Deus fez o firmamento e separou as águas que estavam debaixo do firmamento daquelas que estavam por cima. E assim se fez. Deus chamou ao firmam ento céus. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o segu ndo dia. Deus disse: "Q ue as águas que estão deba ixo dos céus se ajuntem num mesm o lugar, e apareça o elem ento á rido." E assim se fez. Deus chamou ao e lem ento á rido terra, e ao ajuntam ento das águas mar. E Deus viu que Isso era bo m ” (Gênesis, 1,1-10). 28 A ressalva faz-se necessária, especia mente, tend o em vista as considerações de L. Comp agno ne sobre o nome do boneco, quando sugere que seu significado poderia ser extraido da junção de parte do vocábulo grego Pundax (fundo de vaso) com o vocábulo latino Oculus (olhos), de mo do a formar a palavra latina Punóculus, que em italiano ter-se-ia transfomado em Pinóquio, vindo a significar Fundo de Olho, para referir a atitude daquele que "olha o mundo do fundo dos olhos, ou seja, com um olhar penetrante, meditativo, profundo" (2C04, p. 15). 29 Na edição italiana: "App ena e ntrat o in casa. G ep pet to prese subito gl i arnesi e si pose a intagliare e a fabbricare II suo burattino. "Che nome gli metterò? - disse fra sé e sé. - Lo voglío chiamar Pinocchio. Questo nome gli porterà fortuna. Ho c onosc iuto uma fam iglia intera di P inocchi: Pinocchio il padre, Pinocchia la madre e Pinocchi i ragazzi, e tu tti se la passavano bene. II piú ricco d i loro chiedeva 1'elemosina 30 Ver nota 22, supra, no que se refere à apresentação das citações extraídas de Pinóquio.
24
AS DESVENTURAS DE PINÓQUIO
A parte isto, importa destacar o modo como o narrador relata o nascimento de Pinóquio, ou seja, enunciando as partes do corpo do boneco, na medida em que cada uma delas vai sendo esculpida: começou a trabalhar com afinco, e logo lhe fez os cabelos, depois a testa, depois os olhos [...] depois dos olhos, fez-lhe o nariz [...] Depois do nariz, fez-lhe a boca [...] Depois da boca, fez-lhe o queixo, depois o pescoço, depois os ombros, o estômago, os braços e as mãos31 (Cap. 3, p. 17-19). Entretanto, ao contrário do que ocorre no mito judaico-cristão apresentado no Gênesis - em que Deus se compraz com o que estava criando -, a experiên cia de Gepeto náo é de satisfação, visto que o boneco, com plena autonomia de sentimento e de ação, demonstra irreverência e age malcriadamente já no ato de sua criação: os olhos de Pinóquio fitam obstinadamente Gepeto, a ponto de incomodá-lo; sua boca, nem fora terminada, começa a rir, a caçoar e a mostrar a língua; as mãos arrancam a peruca do velho; os pés lhe acertam um chute na ponta do nariz... Observe-se, portanto que, no contexto da obra de C. Collodi, não se trata apenas da autonomia do objeto criado - a qual atinge seu clímax com a fuga de Pinóquio -, mas de “modos insolentes e zombadores”32 que deixam Gepeto “triste e melancólico, como nunca estivera antes na vida”,33 levando-o a advertir o boneco34e a se autocensurar.33 Assim, se a decepção que Pinóquio provoca em seu criador decorre do exercício do livre arbítrio, este só poderia encontrar paralelo, no texto bíblico, com a ação de insubordinação que, praticada por Adão e Eva, teria resultado na expulsão do paraíso. Neste caso, deve-se considerar: (1) que a casa de Gepeto está longe de ser um paraíso;36 (2) que não ocorre a expulsão, mas a fuga do 31 No origina l: "Allor a com inciò a lavorare a buo no e gli fece subito il capelli, poi Ia fronte, po i gli occhi (...) Allora, do po gli occhi gli fece il naso (...) Doppo il naso gli fece Ia bocca. (...) Doppo Ia boca gli fece il mento, poi il collo, poi le spalle, Io stomaco, le braccia e le mani." 32 No original: "garbo insolente e derisorio." 33 No origina l: "tristo e melanconico, com e non era stato mai In vita sua". 34 Menino mar oto! Você nem sequer está term inado e já começa a faltar ao respe ito para com o seu pail Mal, meu fí/ho, muito mai!" (Cap. 3, p. 19, grifos nossos). No original: Birba d'un figliu olo! N on sei ancora finito di fare, e già com inci a mancar di rispe tto a tuo padre! Male, ragazzo mio, m ale!". 35 Eu mere ço! - disse consigo. Devia ter pensado nisso antes! Agora é tar de !" (Cap. 3. p. 19). No original: Me Io me rito! - disse allora fra sé. - Dovevo pensarei prima! Oramal è tard i!". 36 "A casa de Gep eto era um quartinho no térreo, cuja janela ficava embaixo de uma escada. O m obiliár io não podia ser mais simples: uma cadeira ruim, uma cama não muito boa e uma mesa toda estragada. Na parede dos funcos, via-se uma lareira acesa; mas o fogo era pintado e, perto do fogo, também, pintada, havia uma panela que fervia alegrem ente e soltava uma nuvem de fumaça, qu e parecia fumaça de verd ade " (Cap. 3, p. 17).
25
DIREITO E LITERATURA
boneco; e (3) que a efetiva ação repressora de Gepeto só se dá em razão da fuga de Pinóquio. A segunda possível comparação com narrativas da criação remete à origem do humano que encontramos expressa tanto no Gênesis37 quanto na fábula de Esopo - com base na qual M. Heidegger constrói sua alegoria do cuidado>.38 Se, em ambos, a condição existencial humana mostra-se ligada, originalmente, à ideia da matéria - a terra - que é modelada e adquire vida com a intervenção divina, hão de se considerar três peculiaridades do texto de C. Collodi. A primeira remete ao fato de que Gepeto não cria um ser humano, mas fabrica um boneco; e a segunda consiste em que não é Gepeto quem dá vida ou espírito à matéria, pois o pedaço de madeira já os possui antes mesmo de ser esculpido. O que conduz à terceira peculiaridade: enquanto nas narrativas da criação do homem, a matéria se trans forma após ganhar forma e espírito, pois a terra ou barro modelado e investido de vida torna-se um ser do mundo animal, dotado de inteligência e vontade; no caso de Pinóquio, o pedaço de madeira - que já tem vida, é sensível e fala - recebe a forma humana, mas isto não altera a matéria de que ele é constituído, visto que se trata, explicitamente, de um boneco de madeira. Assim, a forma, humana, e a essência, o espírito, não implicam a condição humana, que só virá a ser alcançada pelo boneco quando ele se transformar em menino. De tal modo que a alegoria da criação de Pinóquio nos leva a pensar que a humanidade não é algo concedido, mas uma conquista do próprio indivíduo. Para examinar tal questão, impõe-se analisar as características desse indiví duo, e, no caso de Pinóquio; verifica-se tratar-se de um indivíduo que apresenta ria natureza mista - embora de origem vegetal, tem a mobilidade dos animais39 No o riginal: "La casa di Ge pp etto era una stanzina terrena, che pigliava luce da un sottoscala. La mobilia non poteva essere piú semplice: una seggiola cattiva, un letto po co b uono e un tavolino tutto rovinato. N e la parete di fon do si vedeva un caminetto col fuoco acceso; ma il fuoco era dipinto, e accanto al fuoco c'era dipinta una pentola che b o i iva allegramente e mandava fuori una nuvola di fumo, che pareva fumo daw ero." 37 “ Então o Senhor Deus formo u o home m do pó da terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida e se torno u vivo" (Gênesis, II. 7). 38 "C erto dia, ao atravessar um rio, o Cuid ado viu terra em forma de barro e, med itando, pego u um pouc o dela. Enquanto lhe dava forma. Júpiter se aproxima, e o Cuidado lhe pede que dê espírito à figura esculpida, o que Júpiter lhe concede com prazer. Entretanto, quando o Cuidado quis dar seu nome ã sua figura, Júpiter o proíbe e reivindica que lhe seja dado o seu. Enquanto ambos discutem, levanta-se a Terra e exige que ã figura seja dado o seu nome, eis que a ela pertencia a matéria com que o Cuidado formara seu corpo. Saturno, chamado para mediar o conflito, pro nunciou a seguinte sentença, aparen temen te justa: ” A ti, Júpiter, que deste o espírito, caberá, na sua morte, o espírito; a ti, Terra, porque presenteaste o corpo, receberás o corpo; mas como foi o Cuidado que primeiro formou esta figura, é o Cuidado que a irá possuir enquanto ela viver. Porém, como há discordância sobre o nome, irá chamar-se homo, já que é feita de humus"" (HEIDEGGER, 2006, § 42). 39 É imp ortan te ressaltar, aqui, o modo c om o a agilidad e de Pinóqu io é descrita na narrativa: em sua primeira fuga e retorno para casa. ele é comparado a diferentes animais, respectivamente: "andava aos pulos como uma lebre", "corria como um corcel", "um potro que tinha se desvencilhado do dono" (Cap. 3, p. 19); “um cabrito ou uma lebrezinha perseguida pelos ca çadores" (Cap. 4, p. 22). Há, ainda, outras situações, nas quais as comparações com animais são as seguintes: "o fega nte e com a língua de fora, como um cachorro perdig ueiro " (Cap. 6, p. 27); "m olha
26
AS DESVENTURAS DE PINÓQUIO
e suas ações sáo regidas pela própria vontade - e que deverá realizar um sinuoso percurso até o seu ingresso na cultura. Investido de vontade própria - livre arbítrio predisposto à desobediên cia40 e com comportamentos agressivos e impertinentes, a trajetória de Pinó quio é marcada por constantes movimentos de fuga e de retorno, bem como por uma série de encontros e desencontros, por vezes insólitos: seja com os seres que procuram refrear sua busca pelo prazer e socializá-lo (Gepeto, o Grilo-falante, a Fada), seja com os que se aproveitam de sua ingenuidade (a Raposa e o Gato41), ou, ainda, com aqueles que o escravizam (como o camponês que faz dele seu cão de guarda,42 o homenzinho que o leva para o “País das Brincadeiras”43 e o dono do circo em que ele trabalha como burro amestrado44). Além da rebelião e da fuga, também são traços de Pinóquio a voracidade45 e a curiosidade.46 Tais características remetem à ação exploratória do mundo e fazem com que o boneco seja igualmente suscetível às tentações e ao arrependimento, pois levado a vivenciar aventuras que resultam, na grande maioria das vezes, de promessas que ele faz, mas não cumpre, e de advertências que lhe são dirigidas, mas ele não ouve.47 Pinóquio sabe o que as pessoas que o amam e que ele ama esperam dele, as sim como sabe quais são os deveres de um bom menino. Entretanto, sua singular trajetória pareceria proceder tanto da não concretização do seu destino natural quanto da constante negativa de Pinóquio a submeter-se ao destino que lhe é externamente imposto.
40
41 42 43 44 45
46
47
do como um pintinho" (Cap. 6. p. 27); "revo tan do-se com o uma víbora" (Cap. 7, p. 31). No original, respectivamente: "andava a saíti come una íepre"; "correva come un barbero”; "un puledro che avesse levata Ia mano a pad roo e"; "un capretto o un leprottino inseguito dai cacciatori"; "colla ingua fuori e col fiato grosso, come un carie da cacda**; "bagnato come un puldno"; "rivoltandosi com e una vipera". Com relação à deso bediênc ia, G. Mangane lli afirma: "tod a vez que Pinóqu io fica obed/e nte, estuda e é bem -com portado, nada acontece (...) Portanto, a obediência e o bom comportamento de Pinóquio são incompatíveis com a sua história, com as suas aventuras. Em termos literários, a história é sempre história de uma desobediência; pressu põe um erro, uma deserção da norma, uma condição patológica" (2002, p. 146-147). Ca pítu os 12 a 15,18 e 19. Cap ítu os 21 e 22. Cap ítulos 31 e 32. Cap ítu o 33. A fome e a falta de alimen tos são situações recorrentes na narrativa, caben do citar, em espec al, a exclamação de Pi nóq uio, que consta em dois trechos da obra: " -O h ! Qu e doença mais feia é a fome! ” (Cap. 5, p. 24 e 26); no original: Oh! che brutta malattia che è Ia fame!". Entretanto, ã parte as possíveis interpretações oferecidas pelas leituras que têm como base a problemática social, interessa-nos chamar a atenção para o fato de que Pinóquio. mesmo antes de haver experimentado os alimentos, já os identifica e tem suas preferências. Neste contexto, é sugestiva a ideia de uma representação da busca pela obtenção de um prazer oral que ultrapassa a necessidade orgânica alimentar. Observe-se, a este respeito, que, em P inóquio, o instinto episte mo fílico - c once ito elaborado por S. Freud (1981 (1905)) - pareceria estar assoc ado ao des ejo de d escob rir o mu ndo e de extrair prazer de suas experiências “ quase humanas". Ate nte- se para o fato de que, na pressa de fabricar o boneco , Gep eto se esquece de fazer-lhe as ore has (Cap. 3, p. 19).
27
DIREITO E LITERATURA
O primeiro destino é evitado quando “um simples pedaço de lenha, daqueles que no inverno colocam-se nas estufas e nas lareiras para acender o fogo e para aquecer os aposentos”48 (Cap. I, p. 11) vai parar na oficina de mestre Cereja, que decide usá-lo para fazer um pé de mesa. Tampouco isso se realiza: angustiado e amedrontado pelo fato de um pedaço de madeira - “como todos os outros e [que], se for jogado no fogo, deve dar para ferver uma panela de feijão”49 (Cap. 1, p. 13, grifo nosso) - lastimar-se e chorar, mestre Cereja o cede, alegremente, para Gepeto, cujas pretenções são assim explicitadas: “—Pensei em fazer eu mesmo um belo boneco de madeira; mas um boneco maravilhoso, que saiba dançar, esgrimir e dar saltos mortais. Com esse boneco quero correr o mundo para ganhar um pedaço de pão e um copo de vinho”50 (Cap. 2, p. 14). Entretanto, as pretensões iniciais de Gepeto também restam irrealizadas - pelo menos em parte -, visto que, uma vez feito o boneco, os seus planos se alteram. Após a primeira fuga de Pinóquio, quando Gepeto retorna à casa e o encontra com os pés queimados, o velho marceneiro se compadece do boneco e passa a tratá-lo como fi lho: dispondo-se a mandá-lo para a escola, Gepeto vende sua velha jaqueta de fustão para comprar-lhe uma cartilha. Pinóquio, por sua vez, que parece ter antecipado as novas intenções de Gepeto - pois na noite anterior já havia dito ao Grilo-falante que iria partir na manhã seguinte, porque não queria ir à escola51-, promete ao pai ser o mais bonzinho de todos os meninos e ir à escola, a fim de convencê-lo a refàzer-lhe os pés, mas irá correr o mundo sozinho, embora ao sair de casa seu destino, bem como sua própria e momentânea determinação, fosse ir para a escola. É importante assinalar, aqui, a ambivalência e inconstância verificadas nos comportamentos de Pinóquio, especialmente no que se refere ao querer ou não ser como todos os outros meninos, pois a questão da identidade é central na nar rativa e está intimamente relacionada aos múltiplos destinos - naturais, possíveis e realizáveis - de Pinóquio. ^8 No original: "u n semplice pezzo da catasta, di quelli che d'inve rno si me tton o nelle stufe e nei caminetti per accendere il fuoco e per riscaldare le stanze". 49 No original: " com e tutt i gli altri, e (che) a bu ttarlo su! fuoco, c'è da far bollire una pentola di fagio li" 50 No original: "Ho pensato di fabbricarmi da me un bel burattino di egno: ma un burattino maraviglioso, che sappia ballare, tirare di scherma e fare i salti mortali. Con questo burattino voglio girare il mondo, per buscarmi un tozzo di pane e un bicchier di vino". 51 " - Meu querid o Grilo, você pode dizer o que bem entende r, mas eu só sei que amanhã, ao alvorecer, quero ir em bo ra daqui, porque, se eu ficar aqui, acontecerá comigo o que acontece com todos os outros meninos; vale dizer que me mandarão para a escola e que, por bem ou por mal, terei que estudar; e eu. para ser sincero, não tenho nem um pouco de vontade de estudar e me divirto mais correndo atrás das borboletas e subindo nas árvores para pegar os f lhotes de passarinhos” (Cap. 4, p. 22-23). No original: Canta pure, Grillo mio, come ti pare e piace: ma io so che domani, all'alba, vog lio andarmene di qui, perché se rimango qui, avverrà a me quel che awiene a tutti gli altri ragazzi, vale a dire mi manderanno a scuola, e per amore o per forza mi toccherà a studiare; e io, a dirtela in confidenza, di studiare non ne ho punto voglia, e mi diverto piú a correre dietro alie farfalle e a salire su per gli alberi a prendere gli uccellini di nido."
28
AS DESVENTURAS DE PINÓQUIO
Além disso, se estabelece, nesta altura da história, o conflito entre o destino que Gepeto planeja para seu filho e os projetos que Pinóquio traça para si mesmo. Mas, afinal, o que se poderia esperar de um boneco feito para divertir as gentes, senáo que ele também queira se divertir... Neste sentido, leve-se em conta que é como igual, e náo como menino, que as marionetes de Comefogo o reconhecem - diferentemente das outras perso nagens que ora o designam e se referem a ele como menino, ora como boneco -, dizendo-se seus “irmãos de madeira”52 (Cap. 10, p. 37) e acolhendo-o com “verdadeira e sincera fraternidade”53 (Cap. 10, p. 37). Não é à toa, portanto, que o primeiro ato de bravura de Pinóquio se dê em defesa de Arlequim. A tal ato, outros se seguirão, podendo todos ser vistos como etapas de seu processo de humanização. Mas também sua identidade de boneco se vê constantemente ameaçada, na medida em que, ao longo da narrativa, ele irá incorporar as funções de cão de guarda,54será confundido com um peixe55e se transformará em burro,56 antes de tornar-se um menino de verdade.57 As experiências vividas por Pinóquio obedecem à dinâmica do romance de aventuras e de folhetim,58 de modo que as aventuras se sucedem umas às outras, segundo um esquema básico que pode ser descrito nos seguintes termos: promessa>tentação, transgressão e arrependimento. As promessas de Pinóquio, que são dirigidas a Gepeto, à Fada e a si próprio, consistem em agir como um bom menino, mas, mesmo quando genuínas e verda deiras, interpõe-se à sua realização alguma situação que desperta a curiosidade do boneco ou que lhe apresenta algum benefício. No primeiro destes casos, serve como exemplo, a música de pífaros e as bati das de bumbo do teatro de bonecos, que o desviam, tanto do caminho que levava à escola, quanto do aparentemente determinado rumo de seus pensamentos: 52 53 54 55 56 57
No original: "firatelli di legno". No original: "vera e sincera fratellanza". Ca pítu os 21 e 22. Cap ítu o 28 e 29. Ca pítu lo 32. Cabe referir que a transformação de Pinóq uio em burro tem sua fonte na tradição literária latina, visto que o mesmo ocorre com a protagonista de O asno de ouro, do comed:ógrafo latino Apuleio. 58 Trata-se de subgên eros da narrativa literária. O primeiro é muito u tilizado na ficção destinada ao público infantil e juve nil e tem co mo p rotag onista, geralme nte , um jov em qu e se conf ron ta com pe rig os e eventos extraord inários em ambien tes hostis, demon stra bravura e. ao final, é recompens ado com valores espirituais ou materiais, regressando são e salvo para casa. Já o segundo consiste no romance que - tal qual ocorre originalmen te com o texto de Pinó quio - é publicado em série, nos jornais ou periódicos, de tal m odo que o cap ítulo apresentado em cada número da publicaç ão deve constituir um epis ódio que, produ zind o efeito de suspense. interesse e estimule o leitor à eitura do número seguinte.
29
DIREITO E LITERATURA
- Hoje, na escola, quero logo aprender a ler; amanhá, então, aprenderei a escre ver; e depois de amanhã aprenderei a fazer contas. Depois, com a minha habili dade, vou ganhar muito dinheiro e, com o primeiro dinheiro que eu embolsar, quero logo fazer para meu pai uma bela jaqueta de tecido. Mas por que estou dizendo tecido? Quero fàzê-la toda de ouro e prata e com botões de brilhantes. É isso mesmo que aquele pobre homem merece, porque, afinal, para comprar meus livros e para poder educar-me, ficou de camisa... com este frio! Somente os pais são capazes de fazer certos sacrifícios!...59 (Cap. 9, p. 35) Antes de responder ao apelo dos sons vindos do circo, Pinóquio hesita, mas não demora muito para abdicar de sua anterior resolução, reformulando seus pla nos: Hoje vou ouvir os pífaros e amanhã irei à escola; para ir à escola sempre tem tempo”60(Cap. 9, p. 35). Já o segundo caso - quando Pinóquio deixa de cumprir sua promessa porque acredita que poderá obter algum benefício maior e imediato - pode ser ilustrado com as duas situações em que ele decide acompanhar o Gato e a Raposa.61 Quando lhe é oferecida a oportunidade de multiplicar as quatro moedas de ouro que lhe haviam sido dadas por Comefogo, Pinóquio lembra-se de Gepeto e novamente hesita,62 mas, ato contínuo, deixa-se facilmente enganar 59 No original: Og gi. alia scuola. vo glio subito imparare a leggere: dom ani po i imparer ò a scrivere, e dom ani l'altro imparerò a fare i numeri. Poi. colla mia abilità, guadagnerò molti quattrini e coi primi quattrini che mi verranno in tasca, voglio subito fare al mio babbo una bella casacca di panno. Ma che dico di panno? Gliela voglio fare tutta d'argento e d'oro. e coi bottoni di brillanti. E quel pover'uomo se Ia merita dawero: perché. insomma, per comprarmi i libri e per farmi istruire, è rimas to in maniche di camicia... a questi fred di! Non ci sono che i babb i che sieno capaci di certi sacrifizi!." 60 No original: " - O ggi anderò a sentire i pifferi, e dom ani a scuola: per andare a scuola c'è semp re tempo - disse finalmente quel m onello facendo uma spallucciata." 61 O mesmo ocorre qua ndo ele recebe o conv ite para desfrutar da liberdad e de que os meninos usufruem no País da Brincadeira e deixa de cumprir a promessa que fizera para a Fada. Primeiro, Pinóquio declara para o amigo que o convidara: Não adianta você me provoca r! Já prom eti para a minha bondo sa Fada que me tornaria um men ino ajuizado, e não quero faltar com a palavra" (Cap. 30, p. 118); no original: È inutile che tu mi tenti! Orama i ho promesso alia mia buona Fata di d:ventare un ragazzo di giudizio, e non voglio mancare alia parola." Qua ndo o homem que dirigia a carroça o interpela, ele ratifica: Eu fico (...) Eu quero volta r para a minha casa, quero estudar e tirar boas notas na escola, com o fazem todos os meninos de bem " (Cap. 31, p. 122); no original: Io rimang o (...) Io vog io tornarmene a casa mia: voglio studiare e voglio farmi onore alia scuola, come fanno tutti i ragazzi perbene." Diante da insistência do convite e das promessas que o amigo lhe faz do quanto iriam se divertir, Pinóquio hesita: E se eu for com vocês, o que a minha b ondosa Fada vai me dizer? - disse o bonec o que com eçava a amolecer e a vac ilar" (Cap. 31, p. 122); no orig inal: E se ven go con voi, che cosa dirá Ia mia buona Fata? - disse i bu rat tino che cominciava a intenerirsi e a ciurlar nel m anico ." A seguir, vendo a carroça se afastar, cheia de meninos em algazarra, e sendo novamente convidado, ele muda sua decisão: "Pinóquio não respondeu, mas deu um suspiro; depors, deu outro suspiro; depois um terceiro suspiro; finalmente disse: - A rrumem um lugarzinho, quero ir tamb ém !...” (Cap. 31, p. 122); no original: "Pinocchio non rispose, ma fece un sospiro: poi fece un altro sospiro: poi un terzo sospiro: finalmente disse: - Fatemi un po ' di posto: vog lio venire anch’io!..." 62 Não. não quero ir. Ag ora já estou perto de casa e quero ir para casa, ond e meu pai está esperand o-me. Quem sabe, pobre velho, como ficou ans:oso ontem quando não me viu voltar. Infelizmente fui um mau menino, e o Grilo-falante tinha razão quando dizia "os meninos desobedientes não conseguem nada de bom neste mundo". E eu aprendi isso às minhas custas, porque muitas desgraças aconteceram, e ontem à noite, na casa de Comefogo, corri perigo... Brr! M e dá arrepio só de pen sar !" (Cap. 12, p. 45-46).
30
AS DESVENTURAS DE PINÓQUIO
e torna-se vítima de promessas muito mais falsas63 do que as que ele mesmo enuncia.64 N a segunda vez vez em que é interpela interpelado do pela Raposa e pelo Gato Ga to - depois da tentativa de assalto, durante o qual ele náo é capaz de reconhecê-los como os seus agressores, agressores, e quando quand o deixa a casa da Fada para ir ao encontro de Gepeto Gepe to - , 63 Pinóquio é novamente novamente convencido. Já náo é a ideia de comprar uma u ma nova jaqueta jaque ta para seu pai, “toda de ouro e prata prat a e com botões de brilhante”6 brilhante”666(Cap. (Cap . 12, p. 43), 4 3), que o seduz, ele nutre exageradas fantasias de riqueza: - E se, em lugar de mil moedas, eu encontrasse duas mil nos galhos da árvore?... árvore?... E se, em lugar de duas mil, eu encontrasse cinco mil? mil? E se, em lugar de cinco mil, eu encontrasse cem mil? Ó! Que belo senhor, entáo, eu ia tornar-me!... Gostaria de ter um belo palácio, um monte de cavalinhos de madeira e um monte de cocheiras para poder brincar, uma adega de licores e vinhos e uma estante toda cheia de confeitos, de tortas, de panetones, de doces de amêndoas e de panquecas com creme67(Cap. 19, p. 71). As situações acima descritas sáo suficientes para explicitar também o modo como se configuram a tentação, a transgress transgressão ão e o arrependimento arrependimento, cabendo referir que a capacidade efabulatória de Pinóquio, aliada à sua ingenuidade e excesso de autoconfiança, parecem estar entre entre os principais fatores que o induzem ao erro de avaliação avaliação das situações que se lhe apresentam e o predispõem predisp õem a ceder às tentações. tentações.
63
64
65 66 67
No original: No, non ci vog lio venire. venire. Oram ai sono vicino a casa, casa, e vo glio andarm ene a casa, casa, dove c'è il mio ba bbo che m’aspetta. Chi Io sa, povero vecchio. quanto ha sospirato ierl, a non vedermi tornare. Pur troppo io sono stato un figliolo cattivo, e il Grilío-pa rlante aveva ragione qu ando diceva: “ i ragazzi ragazzi disob bed :enti non possono aver bene in questo m on do ". E io l'ho prov ato a mie spese, spese, perché mi sono ca pitate dim olte disgrazie, e anche ieri sera sera in casa casa di Manglafoco, ho corso pericolo... Brrr! mi viene i bordoni soltanto a pensarei!". Aliás, não são são apenas o Gato e a Raposa Raposa que m entem para Pinóquio. Mes mo a Fada, Fada, em algumas situações, situações, fa.t fa.ta-lhe a-lhe com a verdade e tenta ludibriá-lo: a Menina dos cabelos azuis se diz morta, quando fala com ele a primeira vez, e reaparece, lo go depois, chaman do animais para salvá-lo da mo rte (caps. 15 15 e 16) 16);; após ter chorad o sobre seu túm u lo, Pinó quio a reencontra adulta, e ela ten ta se fazer passar passar por uma desconhec ida (Caps. 23 e 24). 24). Mas é somente o nariz nariz de Pinóquio q ue cresce qua ndo ele diz uma m entira (Cap. 17, p. 64-65; 64-65; Cap. 29, p. 110). 110). Qu e pessoas de bem! - pensou Pinóquio consigo . E. E. esquecen do-se na mesma hora de seu seu pai, da jaqueta nova, nova, da Cartilha e suas boas intenções, disse para a Raposa Raposa e para o Gato: - Vamos logo. Eu vou c om voc ês" Cartilha e de to das as suas (Cap. 12. p. 46). No original: Che brave brave persone! persone! - pensò dentro di sé sé Pinocchi Pinocchio: o: e dimenticandosi lí sul tamburo, dei suo suo babbo, delia casacc casaccaa nuova nuova,, delTA bbecedano e d i tutti i buoni p roponim enti fatti, disse ali alia a Voípe e aall Gatto: - Andiamo subito, io vengo con vo i." Cap ítulo 18. No original: "tutta d'oro e d'arge nto e coi botto ni di brillanti". brillanti". No o riginal: * - E se se invece di mille mone te, ne trovassi trovassi su su i rami de lta ibero duemila?... duemila?... E se invece di duemila. ne trovassi cinquemiia? e se invece di clnquemila, ne trovassi centomila? Oh che bel signore, allora, che diventerei!... Vorre: avere avere un bel palazzo, palazzo, m ille cavallini cavallini di legno e mille scuderie. pe r po term i ba occare, una cantina di roso li e di a chermes. e una libreria tutta piena di canditi, di torte, di panattoni, di mandorlati e di ciaidoni cola panna."’
31
DIREITO E LITERATURA
Ao constatar seus equívocos, entretanto, ele se arrepende de suas ações68 e, nas situações de perigo ou na iminência da morte, é a Gepeto que, embora ausente, ele dirige seus apelos.69 Faz-se importante, entretanto, explicitar que é através das aventuras vividas que Pinóquio, pouco a pouco, vai se humanizando, e, no seu processo de humanizaçáo, adquirem relevância os atos de bravura que ele pratica. O primeiro deles deles é, como já apontado, quando ele salva salva a vida de Arlequim Arlequim - marionete marionete que Comefogo ameaçava utilizar como lenha para assar o carneiro que iria jantar -, oferecendo-se para ser queimado no lugar do irmão de madeira. Tal gesto rendeu ao boneco as quatro moedas de ouro presenteadas pelo dono do circo, sendo a primeira situação em que Pinóquio é recompensado por haver praticado o que se poderia denominar uma boa ação. De fato, é como se cada uma de suas ações heróicas o fossem revestindo de uma camada de humanidade, humanidade, pois - resulte resulte ou não no ganho de um a recompensa recompensa concreta - o comportamento do boneco, nestes casos, comprova a assimilação de um valor. Assim, à fraternidade fraternidade, demonstrada quando Pinóquio oferece sua própria próp ria vida em troca da de Arlequim, vêm se somar, entre entre outros: (1) a hones tidade, comprovada quando ele se mostra incorruptível e denuncia o ataque das fuinhas ao galinheiro;70 (2) a responsabilidade, quando ele socorre o colega que 68 Apó s haver fug ido d o pai e retornado para casa, casa, Pinóquio se lastima lastima da ausência ausência de Ge peto , ao sentir fom e (Cap. (Cap. 5, 5, p. 24-26 24-26); ); qua ndo sai sai ileso do circo dos bonecos , seu dese jo inicial é de voltar para casa casa e rever seu seu pai, que o estaria estaria esperando preocupado (Cap. 12, p. 44-46); no momento em que é libertado da prisão, seu primeiro propósito é rever a Fada Fada e seu pai (Cap. (Cap. 20, 20, p. 74); 74); ao ser aprisiona do co mo cão de gu arda ele se autorrecrimina por suas con dutas (Cap. 21, p. 79); 79); sente-s e responsáve pela m orte da Fada (Cap. 23, 23, p. 84-86); 84-86); dia nte da po ss ibilid ade da Fada tê-lo visto sendo p erse guido pelos policiais, ele pre fere morrer (Cap. 27, p. p. 104); 104); ao retornar à casa da Fada. Fada. ele se recrimina por ter sido mal-comportado e teme não ser perdoado (Cap. 29. p. 112); e, quando começa a transforma-se em burro, ele admite seus erros e ingratidão (Cap. 32, p. 127). 69 O apelo ao pai pede ser ilustrado mediante dois trechos trechos.. O primeiro é na ocasião em que Co me fogo ameaça llança ançarr Pinóqu io no fogo: Meu pai, venha me salvar! salvar! Não quero morrer, não quero m orre r!..." (Cap. 10 10,, p. 39) 39);; no original: Babbo mio, salvatemi! Non voglio morire, no, non voglio morire!...". O segundo trecho é quando o burratfnoé pendurado na árvore pe os assaltantes, cuja expectativa é de que o enforcamento o faça abrir a boca e entregar-Ihes -Ihes as moed as que ne a havia havia escond:do: "Pouco a pouc o seus olhos embaçaram; e, em bora sentisse a morte se aproximando, assim mesmo ainda tinha esperança que, de uma hora para outra, chegasse alguma alma caridosa para ajudá-lo. Mas quando, espera, espera, viu que não aparecia ninguém, ninguém mesmo, então se lembrou do seu pobre pai.. pai.... e ba buciou: - Oh m eu pai! Se você estivesse aqui!... aqui!...*' *' (Cap. 15, 15, p. 55); 55); no original: ” A po co a poco gli occhi gli si appannarono; e sebbene sentisse awicinarsi Ia morte, pure sperava sempre che da un momento all'altro sarebbe capitata qualche anima pietosa a dargli aiuto. Ma quando, aspetta aspetta. vide che non compariva nessuno ness uno.. propr io nessuno. nessuno. allor allora a gli torno in mente il suo povero babbo... e ba lbettò quasi moribondo : - Oh babbo mio! se tu fossi qui!...". 70 Ao ser interpelad o pelo camponês . Pinóquio conta o quê acontecera e, referindo-se è oferta que as fuinhas lhe lhe haviam feito, declara: "Você entende, não é? Ter o atrevimento de me propor uma coisa dessas! Porque é preciso saberr que eu sou um boneco, qu e posso ter todos os defeitos deste mundo, mas nunca terei o de acobertar as men sabe tiras e de fazer o jogo das pessoas pessoas deson estas!" (Cap. 22. p. p. 82-83); 82-83); no original: "Ca pite, eh? Avere Ia sfacciataggine di fare a me una simile proposta! Perché bisogna sapere che Io sono un burattino. che avrò tutti i difetti di questo mondo: ma non avrò mai quello di star di baila baila e di reggere il sacco sacco alia alia gente disone sta!". O utro aspecto impor tante, neste mesmo trecho da narrativa, além da liberdade conquistada, é o respeito que Pinóquio manifesta pelos mortos, uma vez que ele avalia não fazer sentido denunciar a participação do falecido cão do camponês nos furtos das fuinh fuinhas as ao galinheiro galinheiro e om ite-lhe a informação informação de que o cão o traia: traia: " O boneco, então, podia ter contado o que
32
AS DESVENTURAS DE PINÓQUIO
é atingido atingid o numa num a briga, sendo o único dos meninos envolvidos que náo foge;71 foge;71 a caridade, ao salvar do afogamento o cão mastim, que minutos antes o perseguia a mando mand o dos d os policiais;7 policia is;722 o amor filial, quando quan do na n a fuga do d o tubarão, tubar ão, carrega seu pai nas costas até o completo exaurimento de suas forças;73 e, por fim, o trabalho, o estudo e a gratidão, últimos dos valores assimilados, que renderão a Pinóquio a transformação em ser humano.7 hum ano.744 Note-se, aliás, que - quando Pinóquio sente pela primeira vez o desejo de tornarse homem homem - a Fada já havia vaticinado que tal transformação só seria possível se ele perseverasse perseverasse na obediência, na sinceridade e na dedicação ao estu e studo do e ao trabalho: -
71
72
73
74
Oh! Estou Esto u fàrto de ser boneco! boneco! - gritou Pinóquio, dando dan do um tapinha na testa testa.. Já é tempo de eu também também me tornar tornar um homem... E você será se souber merecê merecê-lo... -lo... Verda Verdade? de? E o que posso fazer para merecê merecê-lo? -lo? Uma coisa facílima: você tem que se acostumar a ser um rapazinho rapazinho de bem.
sabia, isto é, poderia contar os acordos v ergonhoso s que se passavam passavam entre o cão e as fuinhas, mas. mas. íem brando-se de que o cachorro estava morto, logo pensou consigo: "Para que acusar os mortos?... Os mortos estão mortos, e a melho r coisa a fazer fazer é deixá-los em pa z!.. ."" (Cap. 22, 22, p. 82); 82); no origina l: *1 *11 burattin o, allora, avre bbe p otu to raccontare quel che sapeva; avrebbe potuto, cioè, raccontare i patti vergognosi che passavano fra ii cane e le faine: ma ricordato si che il cane era morto, pensò sub ito den tro di sé: - A che serve accusare accusare i morti?... I morti son morti, e la miglior cosa che si possa fare è quella di lascarli in pace!...". Eis Eis a passagem: *Ao v er aquele peq uen o morto, os meninos, assusta assustados, dos, fugiram correndo e, em um instante, desa pareceram. Mas Pinóquio ficou lá e. e. emb ora ele tam bém estivesse mais para lá do que para cá po r causa da tristeza e do susto, foi correndo ensopar o seu lenço na água do mar e começou a molhar a têmpora do seu pobre colega de escola* (Cap. 27, p.103). No original: "Alia vista di quel morticino, i ragazzi spaventati si dettero a scappare a gambe. e in pochi minuti non si videro piú. Ma Pinocchio rimase lí; lí; e sebbene per il dolore e per o spavento, anche lui fosse fosse piú mo rto che vivo, nondimeno corse a inzuppare il suo fazzoletto nell'acqua dei mare e si pose a bagnare la tempia dei suo povero compagno di scuola." Em sua sua fuga, Pinóquio é perseg uido p elo cão mastim e se joga no mar. mar. O cão cai na na água e, e, sem saber nad nadar, ar, grita por socorro, pedindo ao boneco que o salve: "Ao ouvir aqueles gritos angustiantes, o boneco (...) ficou com pena (...) hesitou um pouco, mas depois, lembrando que o seu pobre pai tantas vezes lhe dissera que quem faz uma boa ação nunca sai sai perdendo , foi nad ando alcançar Alidoro (o cão] cão] e, pegand o-o pe io rabo com ambas as mãos. !evou-o são e salvo até a areia seca da praia" (Cap. 28. p. 109). No or iginal: " A quelle g rida strazianti ilil bura ttino (...) (...) si mosse a compas sione (...) (...) esitò un poco: ma poi ricordandosi che il suo babbo gli aveva detto tante volte che a fare una buona azione non ci si scapita mai, andò nuotando a raggiu ngere A lidoro, e, pres olo per la coda con tutte e du e le mani, IIo o port ò sano e salvo salvo sulla sulla rena asciutta asciutta dei lido *. "Enq uanto Pinóqu io nadava nadava depressa para alcançar a praia, praia, percebeu q ue o pai, que estava a cavalo cavalo nos seus seus om bros e tinha m etade das pernas na água, tremia sem parar, parar, como se o pobre h ome m tivesse tivesse peg o a febre terça (...] (...] O pob re Pinóquio fazia de conta q ue estava de bom humor, humor, mas, na verdade... verdade... Na verdade, começa a desanimar: suas suas forças diminuíam, sua respiração estava ficando pesada e ofegante..., enfim, não aguentava mais, e a praia ainda estava longe" (Cap. 36, p. 146). No original: "Mentre Pinocchio nuotava alia svelta per raggiungere la spiaggia, si accòrse che il suo babbo. il quale g i stava stava a cavalluccio sulle sulle spa le e aveva aveva le gambe mezze nel 'acqua, tremava fitto fitto. c ome se al pov er'uom o gli battesse la febbre terzana (... (...)) II pove ro Pinocchio faceva finta di esser di buon umore: ma invece... invece cominciava a scoraggirsi: le forze gli scemavano, il suo respiro diventava grosso e affannoso... affannoso... insomma non ne poteva piú, e la spiaggia era sempre lontana.” No final da narrativa, narrativa, Pinóquio - que vinha se dedic ando , com afinco e por mais de cinco meses, meses, ao trabalho e ao ao estudo e que tinha cons eguido juntar algumas economias para para comp rar uma roupinha nova para si si - fica sabend sabendo o que a Fada está muito doente e não tem o que comer. Ele abdica de seus planos e envia-lhe o dinheiro que havia economizado. Na manhã seguinte, Pinóquio acorda transformado em menino.
33
DIREITO E LITERATURA
- Mas, e eu não sou por aca acaso? so? - Muito pelo contrário! Os meninos de bem são obedientes, obedientes, e você... - Eu não obedeço obedeço nunca nunca.. - Os meninos de bem têm amor aos estudos e ao trabalho, trabalho, e você... você... - E eu, em vez disso, banco o preguiçoso e o vagabundo o ano inteiro. inteiro. - Os meninos de bem sempre sempre dizem a verdade... verdade... - E eu sempre mentiras. mentiras. - Os meninos meninos de bem gostam de ir à escol escola... a... - E a escola me dá dores no corpo. corpo. Mas, de hoje em diante, diante, quero mudar de vida”75(Cap. 25, p. 95-97). A partir de tal contexto, impóe-se assinalar que a paulativa assimilação dos valores valores humanos e sociais está relacionada à normatização da conduta condu ta e à submis são à Lei, cujo efeito será o ingresso de Pinóquio na cultura, ou seja, a sua adesão ao pacto social. Mas há, neste processo de humanização, humanização, uma questão de fundo que ainda mere ce ser abordada: constam, na narrativa, referências explícitas tanto ao bom bom coração76 75 No original: "- O h ! s ono stufo di far sempre ilil burattino! - gridò Pinocchio, dandosi uno scappel scappel otto. - Sarebbe Sarebbe oora ra che dive divenntassi anch'io un uomo... - E Io Io diventerai, se saprai meritarlo... - Dawero? E che posso fare fare per meritarmelo? - Una cosa facilissima: facilissima: awezzarti a essere essere un ragazzino perbene. - O che forse non non sono? -T utt'a ltro ! I rraga agazzi zzi perbene sono ubbidienti, e tu invece.. invece.... - E io non ubbidisco mai. - 1raga 1ragazzi zzi perbene prendo no amore alio studio e al lavoro lavoro,, e tu... tu... - E io, io, inve invece. ce. faccio ilil bighellone e il vagabond o tutto l'anno. l'anno. - 1raga 1ragazzi zzi perbene dicono sempre Ia verità. verità... .. - E io io sempre le bugie. - 1raga 1ragazzi zzi perbene vanno v olentieri alia alia scuo scuola. la... .. - E a me Ia scuola scuola mi fa venire venire i dolori di corpo. Ma da og gi in poi vog lio mutar vita." 76 Quatro são as as situações em que encontramos no tex to menção ao bom coração de Pinóquio. A primeira delas é quand o o narrador - após con tar que Gep eto vendera sua única jaqueta para com prar uma cartilha cartilha para Pinóquio e dissera-lhe dissera-lhe que a ha havia via vend ido po rque sentia calor, calor, embora nevasse - relata relata que: "Pinóq uio na mesma hora com preendeu, (...) (...) e sem pod er conter o ímp eto do seu bo m coração, enlaçou o pescoço de Gep eto e começ ou a beijá-lo beijá-lo por to do o ro sto" (Cap. 8, p. 34. 34. grifo noss nosso); o); no original: "P inocchio capí capí,, (...) (...) e non p oten do frenare 1’Imp eto dei suo buon cuore, saltò al collo di Geppetto e cominciò a baciarlo per tutto il viso." A segunda é pronunciada pela Fada que, lembrando o desespero de Pinóquio por acreditá-la morta, lhe diz: "A sinceridade da sua dor fez-me perceber que você tinha bom coração; e, mesmo sendo um pouco travesso e mal-acostumado, sempre há de se esperar algu ma co:sa co:sa dos meninos de b om coração, ou seja, seja, sempre se espera espera que voltem ao bom cam inho" (Cap. (Cap. 25. p. p. 97. 97. grifo nosso); nosso); no original: "La sincerità dei tu o do lore mi fece conoscere che tu avevi il cuore buono: e dai ragazzi ragazzi buoni di cuore, anche se sono un po' monelli e awezzati male, c'è sempre da sperar quaícosa: oss:a. c'è sempre da sperare che rientrino sulla vera vera strada." A terceira menção é quan do P inóquio salva salva o cão mastim, ato qu e o narrador justifica declarando declarando que Pinóquio "n o fundo tinha um coração excelente, excelente, ficou com pena" (Cap. 28, p. 105, grifo nosso); no original: " in fon do aveva un cuore eccellente. si mosse a compassione” . A últim a encontra-se nas palavr palavras as que a Fada dirige a Pinóquio no sonho que antecede a transformação do boneco em menino: "Graças ao seu bom coração, eu lhe perdo o toda s as travessur travessuras as que fez até hoje. Os meninos qu e cuidam amorosam ente dos seus pais pais na pobreza e na doença merecem merecem sempre grandes elogios e grande afeto, afeto, mesmo que não possam ser ser dtados como modelos de
34
AS DESVENTURAS DE PINÓQUIO
quanto à falta de coração77 de Pinóquio. De igual modo, seus comportamentos im pertinentes e irresponsáveis se mesclam à angústia que ele manifesta quando amea çam matar seu pai,78 ao desespero que experimenta ao ver Gepeto sendo engolido pelas ondas,ybem como à dor e à culpa que demonstra ao se deparar com o túmulo da Menina dos cabelos azuis, cuja morte teria sido causada pelo estado de abandono em que ele a havia deixado.80 Tal mescla de sentimentos e de comportamentos nos remete a pensar que o estado de natureza, em Pinóquio, não está em simetria com a concepção roussoniana. Assim como nos leva a refletir sobre as situações em que o boneco encontra-se exposto a uma sociedade que está pronta para corrompê-lo e que, portanto, mostra-se bastante próxima das visões de N. Machiavelli (1972 [1513])81 e de T. Hobbes (2006 [1640]; 2003 [1651]),82 seja no que se refere à dominação do outro, seja no que diz respeito ao individualismo exacerbado. Neste sentido, mostra-se importante examinar as particularidades das cinco comunidades que figuram na narrativa e pelas quais Pinóquio se move ao longo de suas aventuras,83visto que cada uma delas apresenta uma tipificação diferente
77
78 79 80 81
82
83
obediê ncia e de b oa c onduta. Tenha juízo no futuro e será feliz" (Cap. 36, p. 152, grifo nosso); no original: "In grazia dei tuo buon cuore, io ti perdono tutte le monellerie che ha! fatto fino a oggi. I ragazzi che assistono amorosamente i propri genitori nelle loro miserie e nelle loro infermità, meritano sempre gran Iode e grande affetto, anche se non possono esser citati come model i d'ubbidienza e di buona condotta. Metti giudizio per 1'awenire, e sarai felice." Qua nto è falta de coração de Pinóquio, três são as referências no texto. A primeira é quand o Pinóquio. ao retornar para a casa da fada. se autorrecrimina: Quantas desgraças me aconteceram... E eu as mereç o! Porque sou um bon eco teim oso e presunçoso... e quero sem pre fazer tudo ã minha maneira, sem dar ouvido àqueles que gostam de mim e têm mil vezes mais juízo do que eu! (...) Mas pod e haver um men ino mais ingrato e sem coração do que eu?...” (Cap. 20. p. 74. grifo nosso); no original: ""Q ua nte d sg razie m i sono accadute... E me ie me rito! perché Io sono un bu rattino testardo e piccoso... e vogíio far sempre tutte le cose a mod o mio, senza dar retta a quelli che mi voglion bene e che hanno mi le volte piú g iudizio d i me!... (...) Ma si può da re un ragazzo piú ingrato e piú senza cuore di me?...” . Já a segunda se dá quando Pinóquio. tend o sido abo rdado pela Raposa e o Gato, dec ide segui-los, e o narrador afirma que o bone co "acabou fazendo o que fazem todos os meninos sem um ping o de juízo e sem coração" (Cap. 18. p. 68-70, grifo nosso); no original: "finí col fare come fanno tutti i ragazzi senza un fil di giudizio e senza cuore” . A terceira consiste, também, numa autorrecriminação de Pinóquio. ao perceber que está se transformando em burro: ”eu sou um b onec o sem juízo... e sem coração. Oh! Se eu tivesse um pingo de coração, nunca teria deixado aquela bondosa Fada. que gostava de m im co mo uma m ãe e que tanto fez por m im!. ..” (Cap. 32, p. 127, grifos nossos); no original: "io sono un bura ttino senza giudizio... e senza cuore. Oh ! se avessi avuto un zinzino di cuore. non avrei ma: abbandonata queila buona Fata, che mi voleva bene co me una mamm a e che aveva fatto tanto per me!...". Cap ítulo 15. Ca pítu lo 23. Cap ítulo 23. Cabe evocar, aqui, o modo com o N. M achiavelli descreve a natureza humana, ao justificar sua posição de q ue o Príncipe deveria preferir ser temid o a ser amado: "Porq ue dos hom ens pode-s e dizer, geralmen te: que são ingratos, volúveis, simuladores e dissimuladores. temen tes ao perigo , ambiciosos de ga nho; e. enquan to lhes fzere s bem , são tod os teus, oferec em-te o pró prio sangue, os bens, a vida, os filhos, (...) desde que a necessidade esteja long e de ti; porém, quando esta se avizinha, revo tam-se” (1972 (1513), Cap. XVII, p. 27). Vale lembr ar as fórmula s hobessianas: homo homini íupus (o homem é o ob o do homem) e bellum omnium contra omr>es (a guerra de todos contra todos). Quanto à primeira, T. Hobbes a extrai da obra Asinaria (v. 495) do com ediógrafo latino Piauto e a utiliza, em Do cidadão (2006 (1640)), para ilustrar sua concepção de que o ser humano é egoísta, peri goso e ávido de poder. Já a segunda, é empregada no Leviatã (2003 (1651)) para caracterizar que a autopreservação é a primeira lei natura do homem e para exp licitar a natural tendência humana de impor-se sobre os demais. Também se ocupa de tal tem a V Frosini (1990), que analisa, em seu estudo e sob o enfo que po lítico, apenas três delas.
35
DIREITO E LITERATURA
das relações políticas, jurídicas e sociais e que, no seu conjunto de representações, evidenciam a inspiração satírica de C. Collodi: (I) a aldeia, não nomeada e que fica próxima à casa de Gepeto, é povoada por seres humanos e obedece a padrões tradicionais e arcaicos: seus habitantes formam uma comunidade fechada e atuam como aparentes justiceiros - pron tos a intervir na vida do vizinho e a julgá-lo preconceituosa e apressadamente - e seu representante da lei e da ordem mostra-se receptivo e suscetível a tais julgamentos, usando-os como parâmetro para a sua compreensão dos fatos e deliberação;84 (II) o Grande Teatro de Comefogo, comunidade que, formada pelas mario netes e por seu dono, circunscreve-se num espaço saturado de direito na medida em que seu soberano - ou o magnus homo de que nos fala T. Hobbes (2003 [1651]) - exercita uma justiça absoluta, marcada pela causalidade e pela arbitra riedade, como se observa, por exemplo, no modo como ele decide pela execução de Pinóquio e Arlequim, bem como na maneira como lhes concede o perdão, suspendendo a lei - calcada sobre um princípio formal de validade - mediante um ato de vontade ligado à noção soberana da exceção;85 (III) a cidade de Pega-trouxas é habitada por animais falantes e racionais prováveis descendentes e herdeiros da tradição fabulária esopiana (séc. VI a. C.) -, que se dividem, de um lado, na multidão de pedintes envergonhados, formada por trouxas, ingênuos explorados e silentes; e, de outro, em alguns poucos in divíduos espertos, oportunistas e poderosos, que ostetam um patrimônio que evidencia a prática exploratória mediante a qual levam a vida;86 8^ Capítulos 3 e 6. 85 Cap ítulos 10 e 11. 86 A descrição que o narrador oferece da cidade de Pega-trouxas é a seguinte: "Ass im que entrou na cidade, Pinóqu:o viu todas as ruas povoadas de cachorros pelados, que bocejavam de fome, de ovelhas tosadas que tremiam de frio. de galinhas que tinham ficado sem crista e sem barbilhos, que esmolavam um grão de miiho, de grandes borboletas que não podiam mais voar porque tinham vendido suas belíssimas asas coloridas, de pavões sem cauda que tinham vergonha de se mostrar e de faisões que ciscavam em silêncio, com saudades das suas cintilantes penas de ouro e prata, perdidas para sempre. No meio dessa multidão de pedintes e de pobres sujeitos envergonhados, passavam de vez em quando algumas carruagens elegantes de alguma raposa, alguma pega ou alguma horrível ave de rapi na" (Cap. 18, p. 70). No original: "Appen a entrato in città, Pinocchio vide tu tte le strade popolate di cani spelacchiati, che sbadigliavano dall'a ppe tito, di pec ore tosate, che tremava no da freddo, d i galline rimaste senza cresta e senza bargigíi. che chiedevano 1'eiemosina d'un chicco di granturco, di grosse farfal e, che non potevano piú volare. perché avevano ven duto e loro bellissime ali colorite , di pavon i tutti sco dati, che si vergognavano a farsi vedere, e di fagiani che zampettavano cheti cheti, rimpiangendo le loro scintillanti penne d'oro e d'argento, oramai perdute per sempre. In mezzo a questa folia di accattoni e di poveri vergognosi, passavano di tanto in tanto alcune carrozze signorili con den tro o qualche Volpe, o qualche Gazza ladra, o qualche ucce llaccio di rapina." Já G. Manganelli, ao analisar a cidade, salienta que se tratava de um lugar de: "Histórias de amores mercadejados, de incautas ambições, de fidelid ades não corres pondidas, humi dades vilipendiadas, esperanças escarnecidas, afrontadas por brutais vitórias, pelo luxo velhaco e desonesto das pegas ladras, aves de rapina, raposas astutas" (2002, p. 107-108).
36
AS DESVENTURAS DE PINÓQUIO
(IV) a ilha das Abelhas Industriosas, por sua vez, é fundada sobre o valor do trabalho e formada por uma sociedade organizada de forma produtiva e social mente equilibrada, isto é, uma espécie de comunidade utópica em que triunfa a razão humana: todos trabalhavam, as crianças freqüentavam a escola e as relações humanas marcadas pela equidade e pela integração social;87 (V) o Pais das Brincadeiras, por fim, é habitado somente por meninos, dos 8 aos 14 anos de idade, e configuraria uma espécie de paraíso terrestre do imagi nário infantil - marcado pela anomia e regido pelo princípio do prazer, visto que a única regra é a de que tudo é permitido e que não há autoridades e tampouco qualquer interdição -, não fosse o fato de que, com o passar do tempo, sua popu lação se transformava em burros e como tal era comercializada.88 É neste ponto que podemos colocar em discussão alguns aspectos da obra de C. Collodi que são particularmente pertinentes ao Direito. Isto porque, muito embora As aventuras de Pinóquio não explore uma “história jurídica” - como ocorre, por exemplo, em Antígona (Sófocles), O mercador Veneza (W. Shakespeare), Crime e castigo (F. Dostoievski), O processo (F. Kafka), O dossiê pelicano (J. 87 Ao retratar a Ilha das Abelh as Indus triosas. o narrad or afirma: "Na s ruas formigava m pessoas que corriam para cá e para lá cuidand o d e seus afazeres.; todo s trabalhavam, tod os tinham alguma coisa para fazer. Não se encontrava um vadio ou um vagabundo, nem se procurando com uma lupa. - Já entendi - disse logo aquele preguiçoso d o P inóquio - este vilarejo não serve para mim! Eu não nasci para trab alha r!" (Cap. 24, p. 91). No orig inal: "Le strade formico lavano di persone che correvano di qua e di à per le loro faccende: tutti lavoravano, tutti avevano qualche cosa da fare. Non si trovava un ozioso o un vagabondo, nemmeno a cercarlo coi lumicino. - Ho capito; - disse subito quello svogliato di Pinocchio - questo paese non è fatto per me! Io non son nato per lavorare!" 88 Eis a descrição que o narra dor oferece do País das Brincadeiras: "Esse pais não se assemelhava a nenhum outro país do mundo (...) Nas ruas, uma alegria, uma algazarra, uma gritaria de estourar os mio os! Turmas de mo eques em todo o lugar: havia os que brincavam com as nozes, outros com pedrinhas, quem jogava boia, quem andava de bicicleta, quem montava um cavalinho de made:ra; estes brincavam de cabra-cega, aqueles outros de pega-pega; outros, vestidos de palhaços, engo iam estopa acesa; quem declamava, quem cantava, quem dava saltos mortais, que m se divertia and ando co m as mãos no chão e as pernas para cima, quem rolava o arco. quem passeava vestido de general com o capacete de papel e a espada de papelão, quem ria, quem gritava, quem chamava, quem batia palmas, quem assobiava, quem imitava o cacarejo da galinha quando bota ovo; enfim, tamanha balbúrdia, tamanho vozerio, tamanha barulheira endiabrada, de ter que colocar algodão nos ouvidos para não ficar surdo. Em todas as praças, viam-se teatrinhos de lona. apinhados de meninos da manhã até à noite, em todos os muros das casas liam-se, escritas a carvão, belíssimas coisas como estas: "viva os brinq do s!" (em vez de "brinq ued os" ); “ Não querem os mais iscolas" (em vez de "Não queremos mais esco as"); "Aba:xo a ritmótica" (em vez de aritmética) e outras pérolas parecidas" (Cap. 31, p. 123-124). No or iginal: "Q ues to paese non som igliava a nessun altro paese de mo nd o (...) Nel e strade, un'allegr!a. un chiasso, uno strillío da levar di cerve Io! Branchi di mo nell! da per tutt o: c hi giocava al e noci, chi al e piastre le, chi alia pa Ia, chi andava in velocípede, chi sopra un cavallino di legno: questi facevano a mosca-cieca. quegli altri si rincorrevano: altri, vestiti da pagliacci, mangiavano Ia stoppa accesa: chi recitava, chi cantava, chi faceva i salti mortali, chi si divertiva a camminare colle mani in terra e colle gambe in aria: chi mandava il cerchio, chi passeggiava vestito da generaie coll'elmo di foglio e Io squadrone di cartapesta: chi rideva, chi urlava, chi chiamava, chi batteva le mani, chi fischiava, chi rifaceva il verso alia gallina quando ha fatto í'ovo: insomma un tal pandemonio, un tal passeraio, un ta! baccano indiavolato. da doversi mettere il cotone negli orecchi per non rimanere assorditi. Su tutte le piazze si vedevano teatrini di tela, affollati di ragazzi dalla mattina alia sera, e su tutti i muri delle case si leggevano scritte col carbone delle bellissime cose come queste: "viva i baiocci!" (invece di "balocchi"); "non v ogliamo piú s chole" (invece di "non v ogliamo piú scuole"); "abbasso Larin M etica" (invece di T aritm etica ") e altri fiori consimili."
37
DIREITO E LITERATURA
Grisham) ou, ainda, O leitor (B. Schlink), nos quais o direito ocupa posição de destaque no interior da narrativa89 -, pode-se identificar com facilidade, na obra de C. Collodi, inúmeras cenas a partir das quais é possível pensar o direito. Neste contexto, a leitura ora proposta de As aventuras de Pinóquio pode ser enquadrada nos estudos daquilo que se denominou Direito na Literatura (Law in Literature), tendo em vista que a narrativa é marcada: por um constante acerto de contas entre Pinóquio e a lei; e por uma interessante representação da admi nistração da justiça. Abdica-se, aqui, de enfocar questões de teor jurídico-filosófico, embora se reconheça a pertinência de abordagens que se concentrassem nas possíveis vinculações entre a retórica, a mentira e o discurso jurídico, com base, por exemplo, em formulações de J. Derrida (1996) e de M. Foucault (2002; 2005). §§§ Com efeito, é de se considerar que são inúmeras as situações em que o direito aparece explicitado em Pinóquio'* seja associado a outros aparelhos disciplinares empregados na Idade Moderna, como hospitais e prisões; seja transfigurado, satiricamente, na lógica interna do seu discurso -, podendo ser identificado enquan to tal, por seu caráter positivo e eficaz, isto é, como sistema normativo, prática e discurso jurídico atravessados por Pinóquio. Neste sentido é que se pode propor a análise do direito “em” Pinóquio, no sentido da(s) imagem(ns) da lei que figuram na narrativa de C. Collodi. Para tanto, cabe examinar quatro passagens do texto em que se verifica o confronto de Pinóquio com a lei e nas quais é possível, ainda, observar as representações que são oferecidas da administração da justiça.91 O primeiro trecho localiza-se no início da obra: quando Pinóquio, logo após ter aprendido a caminhar, foge de casa e começa a correr pela rua até es barrar num policial, que o pega pelo nariz e o entrega a Gepeto. Alertado pelo velho marceneiro de que, ao chegarem em casa, irão acertar as contas, Pinó quio reage, atira-se no chão, negando-se a acompanhá-lo. Alguns transeuntes curiosos interferem, aventando que Gepeto daria uma surra no boneco e o faria em pedaços. Ao ouvir tais acusações, o policial deixa Pinóquio em liberdade e, 89 Tais relações encontram-se explicitadas no te xto de A. Trindade e R. Guber t (2008). 90 O ente ndim ento de G. Itzcovich (2007), em sua análise jurídica de Pinóquio. é também neste sentido. 91 Estes qua tro trecho s são tam bém indica dos e analisados po r V. Frosini (1990).
38
AS DESVENTURAS DE PINÓQUIO
paradoxalmente, prende o pobre e inocente Gepeto, que - sem palavras para se defender e chorando como uma criança - é mandado para a prisão.92 O que de início chama a atenção é a postura magistral, levemente megalômana, bem como a coragem exibicionista, assumida pelo policial,93 que no caso é o representante da lei. Trata-se, entretanto, de uma figura da autoridade que, embora capaz de exercer sua função de proteção social, mostra-se vulnerável à opinião da população e instigado pela (vontade da) maioria é induzido a cometer uma injustiça, visto que prende Gepeto sem quaisquer provas das alegações de crueldade a ele imputadas pelos transeuntes,94 sem investigar os fatos e sem lhe dar, nem mesmo, a oportunidade de se defender. Em tal contexto, é interessante observar, ainda, a capacidade de Pinóquio para se beneficiar da comoção social, a força da perniciosa e infundada revolta dos aldeões contra Gepeto e o fato de que sua prisão é apenas mais uma das injustiças que compõem um destino repleto de desventuras sociais. No segundo trecho, por sua vez, o que ocorre é a prisão do próprio Pinóquio, que, assim como Gepeto, também é inocente. Logo depois de terem lhe roubado as moedas de ouro, o boneco é tomado pelo desespero e, dirigindo-se à cidade de Pega-trouxas, apresenta-se diante do tribunal, onde denuncia os dois malfeitores que o furtaram. O juiz, após ouvi-lo atentamente, condena-o à prisão. Ao escutar a sentença, Pinóquio fica assombrado e quer reclamar, mas os policiais que o conduzem à cela o previnem de que seria uma perda de tempo.95 Na situação narrativa acima descrita, há duas questões a serem analisadas: a imagem do juiz e a lei por ele aplicada. O juiz é um velho macaco da raça dos gorilas, cuja respeitabilidade é indicada, na narrativa, pela referência à sua 92 Ca pítu lo 3, p. 19-21. 93 Observe-se a descrição, que consta na narrativa, do comp ortam ento e gestos do policial ao capturar Pinóquio: "fi cou corajosamente plantado d e pernas abertas no meio da rua, com a firme intenção de segurá-lo e d e im pedir que acontecessem desgraças maiores (...) tomava a rua toda (...) sem nem ao menos se mexer, agarrou-o tranqu ilamen te pelo nariz"; no original: "si piantò coraggiosamente a gambe larghe in mezzo alia strada, coll'animo risoíuto di fer m arlo e d'im ped ire il caso di m aggiori disgrazie (...) barricava tu tta Ia strada (...) senza punto smuoversi. Io acciuffò pulitamen te per il naso". 94 Pobre boneco, diziam alguns -, tem razão de não querer voltar para casa! Sabe-se lá que surra ele levaria daqu ele malvado do G epeto!... E outros acrescentavam maliciosamente: - A que e Gepeto pa rece um cavalheiro! Mas ó um verda deiro tirano com as crianças! Se deixarem aquele pobre boneco em suas mãos, é bem capaz de fazê-lo em pedaços!" (Cap. 3, p. 21). No original: Povero burattino! - dicevano alcuni - ha ragione a non voler tornare a casa! Chi Io sa come Io picchierebbe quell'omaccio di Geppetto!.. E gli altri sogg:ungevano malignamente: - Quel Ge ppe tto pare un galantuomo! ma è un vero tiranno coi ragazzi! Se gli asciano quel povero burattino fra e mani, è capacíssimo di farlo a pezzi!” 95 Ca pitulo 19.
39
DIREITO E LITERATURA
idade avançada, à sua barba branca e, especialmente, ao uso de óculos de ouro que náo tem lentes. A ele é que Pinóquio denuncia a fraude perversa de que fora vítima e, fornecendo o nome, sobrenome e descrição dos assaltantes, pede que seja feita justiça. O comportamento do juiz parece contraditório: de um lado, ele ouve o rela to do boneco com muita benevolência e, até mesmo, enternecimento; de outro, táo logo este o conclui, decide, sumariamente, enviá-lo para a cadeia.96 Neste contexto, é possível pensar que o enternecimento do juiz não fora sincero ou, ainda, que não passava de uma falsa percepção, visto que, segundo o narrador, ele sofria de um lacrimejamento dos olhos que o atormentava há mui tos anos - sendo esta, talvez a razão de sua aparente comoção. Em qualquer dos casos, resta evidente que tudo não passa de mera encena ção - protagonizada pelo juiz - , na qual cada um desempenha o seu papel e, ao fim e ao cabo, a justiça resultaria do cumprimento de um simples ritual jurídico. Colabora, para isso, o fato de que nos é apresentada uma imagem da lei vinculada à desconfiança, desde a natureza símia do juiz - no reino animal, a mais próxima do ser humano - e da hipocrisia que é assinalada pela ausência das lentes em seus óculos, colocados sobre o nariz apenas para lhe conferir uma dignidade fictícia, até o modo como ele exercita as suas fiinçóes. Todavia, deve-se levar em consideração que a lei aplicada é a da cidade de Pega-trouxas, na qual o costume e legislação vigentes são baseados na trapaça, na fraude e no logro, de tal modo que o teor da sentença prolatada pelo juiz é coerente - “Foram roubadas quatro moedas de ouro deste pobre diabo; pois, então, agarrem-no e ponham-no logo na cadeia’97 (Cap. 19, p. 72, grifo nosso) - , uma vez que o verdadeiro associai ou antissocial é Pinóquio e, por isso, ele deve ser condenado. Referindo-se à decisão proferida pelo juiz, G. Manganelli destaca, com ironia, que “Pinóquio é culpado de furto sofrido, delito grave, mas se apresentou espon taneamente à justiça, parece arrependido e, afinal, é réu primário. Agora ele é da mesma raça das ovelhas tosquiadas e das borboletas mutiladas. A condenação não é propriamente uma punição, é uma colocação, uma classificação” (2002, p. 104). No terceiro trecho, passados quatro longos meses, Pinóquio ainda se encon tra na prisão da cidade de Pega-trouxas. O Imperador concede, então, uma ampla anistia a todos os “patifes” de seu reino. Ocorre que, quando o boneco exige ser 96 "qu and o o bone co não teve mais nada a dizer, esticou a mão e tocou a sineta” (Cap. 19, p. 72); no original: "qua ndo il burattino non eb be piú nulla da dire. allungò la mano e sonò il campanello". 97 No original: Quel pove ro diavolo è stato derubato di qu attro monete d'oro: pigliatelo dunque, e mettete o subito in prigione."
40
AS DESVENTURAS DE PINÓQUIO
libertado, o carcereiro lhe responde que ele não faz parte da turma dos felizardos, de tal modo que Pinóquio é levado a se declarar um patife para que as portas da cadeia lhe sejam abertas.78 Note-se que, novamente, estamos diante do direito “às avessas”, que vigora na ci dade de Pegatrouxas. Pinóquio sai da prisão em virtude de uma anistia que liberta os patifes do reino e precisa se declarar um deles para ser incluído entre os beneficiados. De tal modo que Pinóquio obtém sua liberdade - como assinala V. Frosini (1990) - não porque a justiça triunfe, mas porque ele aprendeu a jogar as regras do jogo de uma sociedade que beneficia e protege os astutos e os ladrões. Assim, se a mentira era antes mero produto da imaginação do boneco, fruto de uma tendência infantil a inventar, agora ela assume contornos de astúcia, pois pela primeira vez Pinóquio mente de modo deliberado e funcional. O quarto trecho, por fim, é marcado novamente pelo confronto com a po lícia, que lhe atribui injustamente a culpa de haver agredido um colega durante uma briga, quando Pinóquio fora o único a permanecer no local para socorrer o menino desmaiado. Embora alegue sua inocência, o boneco é preso e, ao ser conduzido pelos policiais, lembra de sua experiência anterior perante o juiz, pre ferindo empreender fuga a protestar no tribunal. Assim, aproveitando-se de um subterfúgio, Pinóquio engana os policiais e foge em disparada.79 Observa-se, desse modo, que Pinóquio é, mais uma vez, vítima de uma in justiça, sendo preso por duas razões: era seu o livro que havia atingido o colega, embora não tivesse sido ele a jogá-lo, e, ao invés de fugir como os outros, ele fora o único que decidira prestar socorro ao ferido. Aliás, dupla injustiça, tendo em vista não só que esta é uma das raras vezes em que Pinóquio fala a verdade, como, também, em que ele não foge - pelo menos de início. A fuga, quando ocorre, resulta, diretamente, da descrença que Pinóquio for mara em relação à justiça, tornando-se possível graças à esperteza do boneco, que não tem mais medo de policiais, que os engana, adula-os, se faz de bobo e se beneficia da ingenuidade deles. A lógica aqui assimilada por Pinóquio - e facilmente compreendida pelo leitor - é no sentido de que a justiça prende apenas os inocentes, os que falam a verdade e que não são espertos o suficiente para se evadir. O paradoxo é que, desde o início da história, diversas personagens - Gepeto, o Grilo-falante e a Fada - tentam ensinar o boneco a não mentir e lhe exigem tal comportamento. 98 Cap ítulo 19. 99 Cap ítulo 27.
41
DIREITO E LITERATURA
Contudo, a experiência de Pinóquio no mundo comprova-lhe justamente o con trário: é o dizer a verdade que o coloca a caminho da prisão. Ao analisar três dos episódios em que Pinóquio se depara com a lei, E. Garroni (1975) constata a presença dos seguintes movimentos: (a) no primeiro, o policial é apenas um símbolo da justiça, porque exercita uma autoridade casual - privada de princípios -, que não se caracteriza pela força da lei, mas pela lei da força, uma vez que não existe uma norma, mas apenas uma decisão particular e concreta, adhoc; (b) no segundo, ao contrário do policial, o juiz aplica princípios rígidos, que se apresentam, todavia, de forma inversa - o inocente na prisão -, demonstrando que a justiça não é casual, mas necessária, geral e abstrata; (c) já no último, a justiça ainda é considerada necessária e não casual, mas agora os princípios são colocados no seu devido lugar - o culpado na prisão -, embora sua aplicação em concreto pelos policiais resulte incorreta, de maneira que a justiça, mesmo sendo necessária, volta a ser casual.100 Outra questão relevante, no que diz respeito à representação do direito em Pinóquio, resulta do fato de que, embora o direito apareça “às avessas” em diversos trechos da narrativa, ele é apresentado mediante a recorrência a alguns de seus aspectos mais conhecidos: como o poder disciplinar sobre o corpo, a delimitação da culpa e imposição do castigo. No que se refere especificamente ao castigo, G. Itzcovich identifica oito epi sódios que exemplificam as punições injustas ou desproporcionais que recaem sobre Pinóquio ao longo de suas aventuras 01e conclui que “a pena nas aventuras é, ao lado do direito, necessária e eficaz - produz penitência e, em última instância, obediência -, mas é também casual e injusta. É necessária 100 Aqui, merece destaque a observação de G. Itzcovich, para quem "existe uma força de lei, mas também um procedi mento e vale o princípio da res jud lca ta. O u então: as normas, válidas em abstrato, não se aplicam sozinhas; decisiva é a vontade de quem decide (realismo). Em suma, uma justiça necessariamente casual, inexorável e persecutória, diante da qua a culpa é um destino. Em As aventuras de Pinóquio, o direito está invertido, mas ao seu modo é lógico, e os encontros entre Pinóquio e o direito são uma seqüência: não um desenvolvimento, uma progressão na direção d e uma tese, mas um círculo que retorna sob re a própria premissa e a conv alida" (2007, p. 249-250). 101 São elas: (1) um velho, a quem ele pe d:ra um peda ço de pão , desp eja- he na cabeça uma bacia de água (Cap. 6, p. 27); (2) Gepeto deixa Pinóquio chorar e se desesperar durante horas, antes de refazer-lhe os pés (Cap. 8. p. 32); (3) Comefogo o recrimina e ameaça queimá-lo por haver interferido na apresentação das suas marionetes (Cap. 10, p. 39); (4) a Fada tam bém ignora o pra nto e os gritos do bonec o, qu ando he cresce o nariz, e só toma prov idências a este respeito após mais de m eia hora de cho ro (Cap. 18, p. 66); (5) o Camponês, d e quem Pinóquio intentara furtar dois cachos de uva, o prende e faz dele seu cão de guarda (Cap. 21, p. 77-79); (6) a Fada se faz passar por morta e coloca em sua lápide que a razão da morte fora te r sido abando nada p or seu irmão Pinóquio (Cap. 23, p. 84-86); (7) a Fada o deixa esp erando na rua e passando frio dura nte uma n oite inteira, até qu e a Lesma lhe abra a porta ao raiar do dia, e, quando Pinóquio diz estar com fome. a Lesma lhe traz comida feita de gesso, papelão e alabastro (Cap. 29, p. 112-114); (8) o Diretor da Companhia dos Palhaços chicoteia as pernas do boneco, quando ele se queixa da comida, e volta a chicoteá-lo, muitas vezes, para que aprenda as acobracias que deverá fazer no espetáculo (Cap. 33, p. 131).
42
AS DESVENTURAS DE PINÓQUIO
e eficaz porque acompanha e, antes, empurra Pinóquio na direção da plena e bela humanidade se disso se trata - do menino educado. A pena exerce uma fun ção disciplinar, corretiva, transformadora: agride o corpo de Pinóquio (o nariz, as pernas, os pés); precipita Pinóquio no buraco negro do fim. E também é casual e excessiva. É uma pena que provoca pena, uma punição que irrita um sentido de justiça comum e suscita solidariedade: uma pena necessariamente injusta” (2007, p. 254-256). De fato, a punição e a obediência assumem destaque na leitura que G. Itzcovich oferece de Pinóquio, tendo em vista que sua proposta é de evidenciar que a obra configura um testemunho de resistência às disciplinas - resistência na qual podemos ver, cabe acrescentar, que o impulso e a fuga constituiriam o direito fundam ental de Pinóquio. O autor citado sustenta que a imagem da lei em Pinóquio é a de um direito necessariamente casual - separado da vida e da moral 02 -, injusto, cruel, e ana lisa a obra segundo os binômios punição-obediência e promessa-obrigação, de monstrando que “as promessas são normativas (obrigam), mas não são mantidas (fracassam); as penas são necessárias, inexoráveis e eficazes (transformam o corpo de Pinóquio, o vinculam porque o constrangem à obediência), mas são também arbitrárias e injustas” (2007, p. 259). Assim, em sua análise da estrutura circular de Pinóquio, G. Itzcovich (2007) afirma que, na narrativa, a ação não é voltada para uma finalidade e identifica as seguintes séries: culpa, penitência, culpa; promessa, infração, promessa; proposi ção, tentação, queda, proposição; devoção e culpa. Os elementos que utilizados para estabelecer tais séries são, praticamente, os mesmos que havíamos levantado na série que estabelecemos e que, acima, referi mos - promessa, tentação, transgressão e arrependimento -, sendo estes elementos 102 Segundo G. Itzcovich, "se a imagem do direito em Pinóquio é aquela de um direito necessariamente casual, neces sariamente cindido da moral, surge a curios dade de ver o que é neie a obrigação jurídica, quando se observa um direito m enos institucionaEzado e codificado, um direito que não endossa o uniforme de policial ou a toga do juiz e que é menos formal e reconhecível do que direito do Grande Teatro dos Bonecos ou do País das Brincadeiras; quando se constata, portanto, o direito em um sentido de todo genérico, como ordenamento coercitivo e como ordenam ento da cooperação social, não diferenciado e distinguível de outras formas de coerção ou m odalidade de cooperaç ão, c omo a família, a escola, o tra balho e, precisam ente, a moral. Aqu i, interessa, em suma, uma análise da normatividade e da eficácia das regras sociais tout court, focalizando dois fundamentos ou princípios desta juridicidade absolutamente genérica. Proponho, como guia para exploração do d ireito em Pinóquio, ree ncontrar os passos das aventuras em que se articulam e desarticulam a relação horizontal entre promessa e obrigação, be m co mo a relação vertical entre punição e obed:ência. Podemos chamá-las. respectivamente, um fundamento privado e outro público da obrigação jurídica - obrigação jurídica e normativa, repito, genéricas, não distinguíveis daquelas de ou tros ordenamentos coercitivos (que conheçam o nexo entre punição e obediência) ou cooperativos (que conheçam o nexo entre promessa e ob rigação )" (2007, p. 253).
43
DIREITO E LITERATURA
os pressupostos que nos permitem afirmar que as relações entre promessa e obrigação e entre punição e obediência nos levam da análise do “direito em Pinóquio” ao “direito de Pinóquio”; ou seja, à concepção de direito que, neste caso, emerge da estrutura narrativa e normativa da obra de C. Collodi, que se caracteriza por não ser teleológica, mas circular, reproduzindo os movimentos de promessa e transgressão e de tentação e arrependimento.103 Entretanto, um dado importantíssimo que emerge da narrativa, como um todo, é de que o confronto com a lei não constitui o fator determinante - e se quer colabora - seja para o processo de humanização do boneco, seja para a sua adesão ao pacto social. As instituições jurídicas - tais como figuram no livro e acima expusemos - demonstram ser ineficazes neste sentido. O que se mostra decisivo para as mudanças operadas em Pinóquio é a própria trajetória existencial por ele realizada, com suas aventuras e desventuras, aliada ao crescente sentimento de amor e de devoção que ele nutre por Gepeto e pela Fada, pois é disso que resulta sua submissão à Lei - tal como na fórmula freudiana, em que a renúncia às pulsões decorre do medo de perder o amor dos pais.204 A propensão à fuga e a tendência à transgressão parecem se extinguir no final da narrativa. Se, antes de ser educado, o boneco é, por assim dizer, um menino de rua indomável e insolente, que se recusa a abdicar do seu prazer imediato e a submeter-se às regras de convívio familiar e social -, com a sua total adesão à ética do trabalho,205Pinóquio transforma-se em ser humano. Assim, das inúmeras promessas que encontramos em Pinóquio, apenas uma escapa ao destino de fracassar: a promessa da Fada se realiza. Entretanto, é preciso considerar que a transformação final em menino constitui, ao mesmo tempo, a recompensa e a pena de Pinóquio: o seu prêmio é a punição capital, isto é, a morte do boneco. 103 Neste se ntido, P. Hazard, um dos p rimeiros críticos literários a se ocupar de Le awen ture di Pinocchio. chama a atenção-no artigo intitulado "La littérature enfantine em Ita ie”. publicado originalmente na Revue des D e ux Mo n des. de 14 de fevereiro de 1914, e posteriormente reed'tado na obra Uomini ragazzi e lib ri- para o fato de que em Pinóquio “ a penitência segue d e perto a culpa, mas a culpa segue de p erto a penitênc ia" (1967, p. 96). 104 Restringimo-nos a indicar dois textos d e S. Freud: Moisés e a religião monoteista (1981 [1934-38]), onde ele aborda a renúncia às pulsões. e a Conferência XXXI - Dissecção da personalidade psíquica (1981 [1931]). 105 Referimo-nos, aqui, ao seguinte trecho: "E, daque e dia em diante, continuou por mais cinco meses a levantar cada manhã, antes do d ia nascer, para girar a nora e ganhar assim aque e copo de leite, que fazia tão bem à saúde delicada do seu pai (...) no tempo que lhe sobrava, aprendeu também a fabricar cestas e balaios de junco e, com o dinheiro que conseguia, provia, com muitíssimo juízo as despesas diárias (...] À noite, nos serões, exercitava-se na leitura e na escrita" (Cap. 36, p. 151). No original: "E da que giorno in poi, continu ò piú di cinqu e mesi a evarsi ogni mattina, prima dell'alba, per andare a girare il bindolo, e guadagnare cosí quel bicchiere di latte, che faceva tanto bene alia salute cagionosa dei suo babb o. N é si con tentò di questo: perché a tem po avanzato, imp arò a fabbricare anche I canestri e i panieri di giunco: e coi qua ttrini che ne ricavava. prowe dev a con moltiss imo giud izio a tutte e spese giornaliere (...) Nelle veglie poi delia sera, si esercitava a leggere e a scrivere.”
44
O DIREITO E(M) BALZAC: ESPECULAÇÕES INTERDISCIPLINARES Gustavo Oliveira Vieira * Jose L uis Bolzan de M orais'4
INTRODUÇÃO A construção do estatuto científico para o Direito, sobretudo a partir da matriz da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, conduziu-nos a uma especiali zação importante e provavelmente necessária, principalmente se considerarmos o contexto em que são forjadas. Passados mais de 70 anos do lançamento da Teoria Pura, é possível observar um descompasso no desenvolvimento do Direito em relação à contemporaneidade. Percebe-se um fechamento do sistema jurídico, tanto idealizado quanto impossível, em relação à filosofia, às transformações so ciais e científicas, provocadas por um mítico solipsismo do universo jurídico em relação às demais áreas do conhecimento. Nesse sentido, as relações em Direito e Literatura podem ter algum papel para suprir esta defasagem temporal e enfrentar o grande “exorcismo da reali dade” provocado pelo positivismo jurídico - para lembrar a expressão de Lenio Streck,1reconhecendo a tensão entre facticidade e validade, e, necessariamente, a co-originariedade entre direito e moral, a partir de uma percepção do mundo vivido narrado pela Literatura. Como asseverou Leonel Rocha, se “se continuar *
Dou toran do em Direito (UNISINOS) Mestre em Direito (UNISC). Professor de Dire ito Internacional da UNIFRA. Pro fessor de Direito Constitucional da UNISINOS. Advogado (RS). Agradeço ao acadêmico Santiago Artur Berger Sito peia generosa revisão.
**
Pós-d outorado em Direito (Coimb ra/Portugal). Do utor em Direito do Estado (UFSC). Mestre em Ciências Jurídicas (PUC/RJ). Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Membro do CERTEAJniversité de Montpellier I (França). Procurador do Estado (RS).
1
Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 5.
45
DIREITO E LITERATURA
valendo dos mesmos critérios, só se verão as mesmas coisas.”2Com isso em men te, propor-se-á, aqui, a partir da obra de Honoré de Balzac, uma leitura do Di reito na Literatura.3 Os textos e os contextos do Direito e da Literatura constroem uma dialética riquíssima, e (ainda) pouco explorada. Assim como o Direito repercute na Lite ratura, esta contribui para aguçar as percepções sobre as emoções, os sentimentos, as relações e, no caso do interesse deste texto, a compreender um pouco da socie dade e do Direito a partir das contribuições da Literatura. Contudo, há um detalhe biográfico na formação do autor francês que en riquece sobremaneira a relação aqui proposta: sua formação acadêmica e suas primeiras experiências profissionais foram exatamente na área jurídica. Balzac, ao falar do Direito não exprime a visão de um leigo, senão de alguém que observa o sistema jurídico de maneira privilegiada. Além de ter a formação, trabalhou como notário no início da juventude. Portanto, é possível extrair de sua obra uma visão, tanto descritiva quanto reflexiva, sobre a problemática jurídica.4 A obra máxima de Balzac é A Comédia Humana La Comédie Humaine. Trata-se de um conjunto de aproximadamente 90 textos, entre romances, no velas e histórias curtas, nos quais se encontram entorno de 2.500 personagens, dos quais centenas se repetem em diferentes momentos e tramas. Na edição brasileira, pela editora Globo, A Comédia Humana tem mais de dez mil e seiscentas páginas, e será abordada nalguns trechos. A obra(-mundo) é composta por uma série de Estudos (.Estudos de costumes, Estudos analíticos e Estudos filosóficos), divididos em Cenas. A Comédia Hum ana é um verdadeiro monumento literário sobre uma sociedade em transição, no tensionamento entre a aristo cracia e a burguesia. Tratar-se-á, no presente capítulo, de especulações interdisciplinares naquilo que os limites de nossa pré-compreensão (no sentido gadameriano) permitiram concluir. O texto foi desenvolvido a partir do estudo em algumas obras do au tor, de seus estudiosos e de biógrafos. Esta é a empreitada que propomos, intro duzindo, na primeira parte, o autor em seu tempo, em notas biográficas para 2 3 4
Cf. ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia Jurídica e Democracia. 2. ed. São Leopoldo: Unisinos, 2005, p. 200. CHUEIRI, Vera Karam de. Dir eito e Literatura. In: BARRETTO, Vic ente Paulo (Coord.). Dicionário de Filosofia do Direito. Rio de Janeiro/São Leopoldo: Renovar/Unlsinos, 2C06, p. 234. A respeito da relevância de Balzac, interessante lembra r o comentário de Paulo Rónai em 1947: "Em 1930 o estu dioso norte-americano W illiam Hobe rt Royce publicou, em dois volumes com pactos, uma bibliografia baizaquiana que contém 4.000 títulos. Hoje este número deve ter chegado aos 5.000. Ba zac é atualmente um dos escritores universais mais comentados, ao lado de Dante. Shakespeare e Goethe. Os estudos que lhe dizem respeito formam uma bib ioteca inteira" (RÓNAI, Paulo. Balzace a Com édia Humana. Rio de Janeiro: Globo, 1947, p. 13).
46
O DIREITO E(M) BALZAC
contextualizar sua produção, passando à identificação do sentido de unidade de sua obra, A Comédia Humana, para, ao fim, colher as percepções de Balzac sobre o Direito, e suas eventuais contribuições.
1. HONORÉ, DO DIREITO À LITERATURA; EM BUSCA DA DESCRIÇÃO DAS ESPÉCIES SOCIAIS “a história não nos pertence, senão nós é que pertencemos a ela” ( H L a n s - G e o rg G a d a m e r , V e r d a d e e M é t o d o ) .
Há uma intertextualidade contínua entre a vida e a obra de Honoré de Bal zac - a ponto de se poder extrair da obra a sua própria biografia.5Ao entender mos melhor seu contexto, o roteiro de sua narrativa fica mais profundamente apreensível. A hermenêutica filosófica gadameriana evidenciou os efeitos do am biente histórico no ser, e sobre como o ser é condicionado pelo seu tempo.6 Eis a pertinência de desvendarmos o espaço, físico e temporal, onde viveu e onde ele desenvolveu suas ideias. Honoré viveu de 1799 até 1850, período em que a França se tornou um dos importantes berços da civilização ocidental, na medida em que aspirava dissemi nar suas experiências político-sociais para o mundo. O que acontecia na França se tornava referência para toda a Europa. Nesse sentido, Honoré, que nasceu dez anos após a Revolução, e no ano em que Napoleão ascendeu ao poder, é um narrador de um período que se constituiu como um divisor de águas, não apenas da história francesa, mas de um trecho fundamental da própria história da civi lização ocidental. A sociedade francesa vivenciava a transição do domínio aristocrático para a ascensão burguesa, sendo Honoré vindo de uma família de burgueses da região do Tours, à margem do rio Loire - por isso o retomo em vários romances à região 5
6
7
Seg undo Gaétan Picon, autor da obra Balzac, par luim êm e - Balzac. p or ele mesmo: "Pourtant, II a lui-même reconnu l'incidence de ses souvenirs dans telle ou telle création imaginaire. Dé aiva nt !es éléments de son inspiration, II n'oublie pas 'évoc ation du passe: /es souven/rs arrivent au pas de charge" (PICON, Gaèton. Balzac par lui-même. Paris: Du Seuii, 1956, p. 29). Ainda que o autor tenha se utilizado muito das cartas escritas por Balzac para organizar o livro. Gadamer compreend e este fenômeno a partir de Martin Heidegger, que redigiu Ser e Tempo, para quem a têm pora idade é um existencial do ser. Ver, para tanto, HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1988; e, ainda. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. Não é po r acaso que, ao estudar o Direito Cons titucional, nos deparam os com a obra de Peter Hãberle: Libertad, Igualdad, Fraternidad. 1789 como historia, actualidad y futuro dei Estado Constitucional. Madrid: Trotta, 1998.
47
DIREITO E LITERATURA
de Toraine. Era filho de um funcionário público diligente e bem-sucedido, que se chamava Bernard-François Balssa. Bemard-François mudou o nome para Balzac por considerar mais nobre. E Honoré incluiu a partícula “de” com a intenção de denotar origem mais elegante.8Na alteração dos nomes já se nota a pretensão deles, e da própria burguesia, como ficará claro na obra balzaquiana, em alcançar o status da nobreza. Bernard-François, pai de Honoré, casou-se em 1797, aos 52 anos, com uma jovem de 19 anos, Anne-Charlotte Laure Salambier. Nem Bernard nem Anne se dedicaram muito aos filhos. Da ama de leite Honoré e Laure, irmã um ano mais nova, foram conduzidos ao internato.9Foi com a irmã Laure que Honoré compartilhou a infância e a ama-de-leite, e é ela que lhe oferecerá o esteio afetivo - a pessoa no mundo que o ama e compreende. Com o efeito, Honoré condenou sucessivas vezes a falta de afeto e atenção da mãe em suas cartas, emitidas na idade adulta.10 Honoré desenvolveu parte da infância num internato do colégio de Vendôme, onde escreve o “Tratado da Vontade”, que será lido pelo protagonista de sua novela Louis Lambert, no mesmo colégio, indicando uma série de elementos autobiográficos nesta parte dos Estudos Filosóficos da Comédia Humana - aliás, elementos biográficos não faltarão no realismo dos romances de Balzac.11 Na adolescência, no ano de 1813, ele foi com a família a Paris onde seu pai foi ocupar função pública no Ministério da defesa. Em 1816 o futuro romancista começou a estudar Direito, e trabalhou com um tabelião,12 descobrindo as questões do casamento, das heranças, os conflitos comerciais, suas comédias e seus desastres, que serão utilizados posteriormente em vários escritos. 8 9
ZWEIG, Stefan. Ba zac. In: ZWEIG. Stefan. Obras Com pleta s de Stefan Zweig. Rio de Janeiro: De ta, 1956, p. 7-8, v. 19. A biografia consu tada que me!hor aprofunda sobre o contexto familiar de Ba zac é de autoria de Stefan Zweig. Onde se encontra um trecho da carta que Honoré escrevera sobre sua mãe à Sra. Hanska: "Se a Senhora soubesse que mulher ó minha mãe: um monstro e, ao mesmo tempo, uma monstruosidade (...) Já me odiava antes de eu ter nasddo. Já estive na iminência de romper com ela (...) Julgamos que era louca e consultamos um médico que há trinta anos mantém re ações de amizade com ela. Mas ele nos disse: 'Oh ! não, não é iouca. Apenas é má..."(BALZAC apud ZWEIG, op. cit., p. 14). No texto de Honoré de Balzac, cons:derado mais autobiográfico, Louis Lambert, ele apresenta o protagonista no C olégio de Vendôme, como se ndo órfão de pai e mãe - nos mais de seis anos em que ficou no co ég io não foi em casa uma única vez, e viu sua mãe em duas oportunidades, entre os 7 e 13 anos (id.. ibid., p. 15). 10 Em carta a mãe, escreveu: "Deus e você sabem bem que você não me sufocou de carícias nem de afeto desd e que vim ao mundo. E você fez bem, pois se tivesse me amado como amou a Henri, eu estaria, sem dúvida, onde ele está..." (TAILLANDIER, François. Balzac. Porto Alegre: L&PM, 2C06, p. 22). Henri era um irmão bastardo de sua mãe com um "amigo" da família, a quem ela devotou amor e afeto, e, na aduitidade, aventurou-se a infortúnios sem projeção socia ou profissional a gum. Em carta à sra. Hanska disse que "N unc a tive m ãe" (id. ibid., p. 23). 11 Apesar de ser praticamente consensual que Louis Lambert ser o texto de maior acento aubobíog ráfico, a biogr a fia escrita por Stefan Zweig é a que melhor explora o paralelo entre a obra e a infância de Honoré (ZWEIG, op. cit., p. 7-26). 12 Tudo indica que o tab elião D ervil e que aparece várias vezes na Comédia Humana foi nspirado no seu primeiro patrão.
48
O DIREITO E(M) BALZAC
Ao concluir os estudos jurídicos em 1819, Honoré manifestar-se-á deter minado a alçar seu caminho direto, do Direito à Literatura - o que náo aconte ceria num salto. Após frustrar os planos paternos, ao anunciar que abandonaria a carreira jurídica assim que atingiu o bacharelato, ao apresentar, convicto, seu projeto de tornar-se um escritor literário, o pai concordou em oferecer dois anos de modesto sustento em Paris, prazo que Honoré teria para começar a apresentar resultados. No primeiro texto oferecido aos familiares, a sentença foi uma só: deveria dedicar-se a qualquer coisa, menos à Literatura. Ainda levaria aproxima damente dez anos para que Honoré de Balzac ocupasse um espaço respeitável entre os autores de seu tempo. Em seus primeiros vinte e poucos anos de vida, Balzac viveu numa França em que se estima mais de um milhão de franceses tenham sido mortos em cam pos de batalha. A França, entre os anos 1799 e 1850, presenciou a ascensão e a queda de Napoleão.13 Um período de grandes turbulências que servirá de pano de fundo para a maioria de seus títulos. Aos trinta anos, ainda sem alcançar o almejado sucesso, Balzac lançou duas obras - inspiradas no poeta e romancista escocês Walter Scott (1771-1832), para seguir as tendências da moda de sua época - que o guiaram aos louros que cerca ram seu nome na literatura mundial. Os dois textos são: Fisiologia do casamento e A Bretanha de 1799. Este, o primeiro dos romances de A Comédia Humana. Entre os outros importantes escritores de seu tempo, com quem eventual mente travou interlocuções, estão, Alexandre Dumas (1802-1870), autor d’O Conde de Monte Cristo, Os Três Mosqueteiros, entre outros que se tornaram famo sos; Vitor Hugo (1802-1885), que escreveu a célebre obra Os Miseráveis —e foi ele também o autor do discurso de despedida de Balzac na cerimônia fúnebre; e Walter Scott (1771-1832), a quem é acreditada a criação do verdadeiro romance histórico, que Balzac chega a citar diretamente.14 De origem provinciana e modesta, a vida de Honoré é marcada pelo sonho de alcançar a glória e as amarras impostas pelo turbilhão de dívidas, por força das quais vende antecipadamente romances que o fazem trabalhar de maneira extenuante e produzir com prazos exíguos e determinados. A forma de lidar com o dinheiro aparentemente o “aprisiona” por toda a vida, pois os grilhões gerados por contas a 13 As empreitada s de Napo leão ã Rússia que po r sua vez vão ser o pano de fun do de outra importantíssima obra da iteratura universal: Guerra e Paz de Leon To stói (1828-1910). 14 Um exemplo é em A Vendeta, na descrição do andar de uma das moças, Mademo;'se//e Amólie T hirion, ao subir as escadas com cuidado para não fazer barulho: "É verdade que, para usar a expressão de Sir Walter Scott, Amélie parecia estar pisando em ov os :..." (BALZAC, Honoré de. A Comédia Humana. Estudo de Costumes. Cenas da Vida Privada. A Vendeta seguido d e A Paz Conjugal. Porto Alegre: L&PM, 2006, p. 45).
49
DIREITO E LITERATURA
pagar conduziram muitos de seus passos. Desde a juventude teve iniciativas para enriquecer, com boas ideias (tipografia, jornais, granja), mas sua megalomania o afimda sistematicamente em mais e mais contas a pagar. Ao prematuro fim, com a “energia do desespero”, produz incessantemente, sob o efeito de litros de café. Suas convicções sáo aparentemente confusas. Apesar de considerar a religião importantíssima para a manutenção da paz social, é um crítico da mesma, prefe rindo particularmente o espiritismo e o ocultismo.15De origem pequeno-burguesa, na adolescência louva o imperador, na idade adulta é a favor da monarquia, e durante a república candidata-se à Assembleia,6sem êxito. Não era aristocrata, mas pretendia viver como tal. E escreveu sobre o casamento na juventude, mas efetivamente casa-se com a estrangeira, viúva do milionário Venceslau de Hanski, a Sra. Hanska, após muitos relacionamentos conturbados e adulterinos, cinco meses antes de falecer, aos 51 anos.17 Como afirmou um de seus biógrafos, se “o homem leva uma vida aberrante, desequilibrada, o escritor impressiona pela energia e pela inventividade”.18Não há repetições de fórmulas na obra,19sempre com novas combinações de lugares, ritmos, com complexidades múltiplas. Sua genialidade se expressa na forma com que começa a repetir os mesmos personagens em diferentes histórias, mantendo a integridade que caracteriza cada um deles. Segundo Taillandier, “ele é o primeiro visível em toda a Europa, lido por todos e por toda parte. Para o público imenso, de todas as idades e de todas as condições, Balzac é o romance”.20Reconhecendo que “o texto é mais importante que seu autor”,21 passaremos ao desvendamento de alguns aspectos da obra de Honoré de Balzac.
15 No prefácio d 'A Com édia Humana. Balzac afirmou: "Escrevi em louv or de duas Verdades eternas: a Religião e a M o narquia, duas necessidades que os fatos contemporâneos proclamam e rum o às quais todo escritor de bom senso deve tentar levar nosso país" (BALZAC, Honoré de. A Comédia Humana. Estudos de Mulher. Porto Alegre: L&PM, 2C06, p. 30). 16 Honoré conco rreu a dep utad o po r Com brai, Fourgères e Tours nas ele:ções de julho de 1831 e. pos teriorme nte, fracassa nas eleiçõ es de 1848. 17 Honoré faleceu mu ito antes do que sua genética o propiciara, pois seu pai morreu aos 83 anos de idade, e por um aciden te - Bernard-François aspirava chega r aos 100 anos (ZWEIG, op. cit., p. 8-12). 18 Cf. TAILLANDIER. op. cit., p. 104. 19 No pre fácio aos Estudos de Costumes do Século XIX lê-se: "Releiam esta obra caleidoscópic a e não se encontrarão dois vestidos parecidos, nem duas cabeças semelhantes" (DAVIN, Félix. Estudos dos Costumes do Século XIX. Bra sília: UnB, 2007, p. 36). 20 Cf. TAILLANDIER. op. cit., p. 11. 21 Ver SCHWARTZ, Germ ano. A Co nstituiç ão, a Literatu ra, e o Dir eito . P orto Alegre: Livraria do Adv ogad o, 2006, p. 22.
50
O DIREITO E(M) BALZAC
2. A NARRATIVA DAS ESPÉCIES HUMANAS: ESBOÇOS SOCIOLÓGICOS EM BALZAC O espaço que Balzac ocupou na literatura de sua época tem a ver, em gran de parte, com o revigoramento do romance como gênero literário de relevo.22 Até então o romance era considerado periférico à grande literatura. Além disso, ele promoveu o interesse sobre o romance literário da sociedade em que vivia, numa sociedade em que os seus contemporâneos estavam mais atentos às rea lidades estrangeiras. Foi Balzac “um dos primeiros a franquear ao público o grande laboratório experimental do romance moderno”.23Em seu tempo o romance não era um tipo literário de prestígio. Com o escocês Walter Scott a literatura romanesca passa a exercer fascínio, e Balzac contribui definitivamente para fazer do romance uma literatura favorecedora de uma visão realista de seu tempo,24 um vasto espelho à própria sociedade. Atribui-se a ele a criação do gênero “mais importante da lite ratura moderna, o romance dos costumes”.25 Além disso, ele ficou conhecido por descrever de forma sofisticada a socie dade de sua época, a partir de narrativas detalhadas e altamente críticas. Trata-se de um autor que incomodou seus contemporâneos por tentar compreender e esclarecer os mecanismos sociais,26erguendo um panorama social, pela literatura, que certamente contribui para pensar os princípios e regras que regulam uma sociedade. Por força disso, ele é considerado um dos maiores nomes do realismo na literatura. Para Taillandier, “o romance como pintura de uma sociedade é, para muitos, uma invenção de Balzac”.27 A obra máxima de Balzac, A Comédia Humana, é um contraponto socioló
22 Segund o Carvalho: "A literatura francesa, nesse período , sendo assim, prom ove um verda deiro redimensiona mento do romance enquanto provocador de uma importante etapa de compreensão do homem ocidental dentro de um torvelinho de valores que se colidia decisivamente em suas contradições"’ (CARVALHO, João Carlos de. A Mulher e a Morte no Romance do Século XIX Revista Querubim (Revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras), Universidade Federal Fluminense, v. 2, p. 1-7, 2006, p. 1). 23 Cf. RÓNA I, Pau o. A vida de Balzac: uma biogra fia ilustrada. 2. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999, p. 36. 24 "Lem brem os que hoje em dia, o romance não constitui para nós apenas uma diversão. É um im porta nte instrume nto indireto, abre-nos ambientes e perspectivas que nunca teríamos opo rtunidade de conhecer, fornece uma visão prá tica e rea do m undo. Sentados numa poltron a pode mos adqu irir sem risco e sem cansaço, e até com diver timen to, a experiência humana dos observadores mais darividentes, entrar em contato com os indivíduos, as classes e os povos. Este notável engrandecimento do campo visual do nosso espírito, devemo-lo principalmente a Balzac, que foi um dos primeiros a franquear ao público o grande labo ratório experimental do romance m odern o" (id., ibid., p. 36). 25 ld., ibid., p. 33. 26 Cf. TAILLANDIER, op. cit., p. 101. 27 ld., ibid. , p. 11.
51
DIREITO E LITERATURA
gico à teológica Divina Comédia de Dante Alighieri (1265-1321).28 É um con junto de quase 90 textos, entre romances, novelas e histórias curtas, nos quais se encontram mais de 2.000 personagens, entre os quais centenas se repetem em diferentes momentos e tramas. Segundo Paulo Rónai, A Comédia Humama, “contém uma imagem fiel e pormenorizada de toda essa fermentação, de seus resultados visíveis e de suas conseqüências conjeturáveis; embora concluída em 1850, é um espelho de todo o século XJX ”.29 Para Terezinha Viana, A Comédia Humana é “um dos empreendimentos mais audaciosos e abrangentes na história da literatura e uma das mais significativas expressões literárias de uma realidade social”.30Por isso é considerado no estatuto de “cientista social”, “historiador dos costumes” ou doutor em “medicina social”. Entre os importantes títulos de Balzac na estrutura da Obra-Mundo d'A Comédia Humana , estão: os (I) Estudos de costumes do século XIX que são com postos por (1) Cenas da vida privada (O B aile de Sceaux; Estudos de Mulher; Outros Estudos sobre Mulher; O Elixir da Longa Viela; Sarrasine; A Bolsa; A Vendeta; A Paz Conjugal; Beatrix; Memórias de Duas Jovens Esposas; Uma Estreia na Vida; Modesta Mignon, entre outros,); (2) Cenas da vida de província (Eugénie Grandet; Ilusões Perdidas); (3) Cenas da vida parisiense (História dos Treze; Esplendores e Misérias Das Cortesâs; A Duquesa de Langeais; O P ai Goriot; A Menina dos Olhos); (4) Cenas da vida política (Um Episódio Tenebroso; O Deputado de Arás); (5) Cenas da vida militar (A Bretanha em 1799; Uma Paixão no Deserto); (6) Cenas da vida rural (O Lírio do Vale, e. g.); (II) Estudos analíticos (Tratado dos Exátantes Modernos; Fisiologia do Casamento; Pequenas Misérias da Vida Conjugal); (III) Estudos filosóficos (Os Poscritos; Massimila Doni; Serâjita; Jesus Cristo em Flandres; A Pele de Onagro; A ObraPrima Ignorada; Louis Lambert etc.).31 Como se esclarece no prefácio à'A Comédia Humana, Balzac, ao expor o conjunto de sua obra como uma unidade, disse ter a pretensão de apresentar
28 "Tem sido recorrente enfatizar ser A Co média Humana (obra composta por mais de 90 romances e noveias) um dos empreendimentos mais abrangentes da história da literatura e uma das mais significativas expressões literárias de uma realidade (sociedade francesa na primeira m etad e do séc ulo XIX). Se entre literatos - dentre os quais podem os citar autores do po rte de Baudelaire. Vito r Hugo. G eorge Sand, Flaubert, Dostoievski, Hoffmanns thal, Proust, Gide ta reco nhecim ento é inquestionável, é surpreen dente que intelectuais de orientações teóricas tão diversas - como, por exe mplo, Marx, Engels, Taine, Barthes, Robb e-Grillet, Benjamin, Se nnett - ressaltem o seu caráter documental e enciclopédico e, por esse aspecto, cheguem mesmo a conferir a Balzac o estatuto de cientista social" (VIANA, Terezinha de Camargo. A Comédia Humana, Cultura e Feminilidade. Brasília: UnB, 1999, p. 82). 29 Cf. RÓNAI, A vida de Balzac. op. cit., p. 19. 30 Cf. VIANA , A Comédia Humana..., op. cit., p. 9. 31 Há algumas divergências entre seus estudiosos na classificação d os texto s entre os Estudos. A título de exemplo, no plano gerai da primeira ediçào de A Comédia Humana,Louis Lambert e Serafita estavam nos Estudos Analíticos. Ver. DAVIN, op. cit., p. 60-63.
52
O DIREITO E(M) BALZAC
todas as espécies sociais?1 ao fazer um paralelo entre animalidade e humanidade.53 Mas, para ele, a humanidade transborda a animalidade pela complexidade de combinações possíveis. É a partir dessa combinação de espécies sociais que Balzac pretendeu apresentar sua crítica social - um estudo sobre a sociedade francesa da Revolução à Restauração. Balzac concebeu que: “A sociedade francesa iria ser o historiador e eu apenas seu secretário. Fazendo um inventário dos vícios e das virtudes, reunindo os principais fatos das paixões, descrevendo os caracteres ho mogêneos, talvez eu conseguisse escrever a história dos costumes”.34 O horizonte descrito por Balzac tem limites bastante claros, dirigindo sua atenção às classes superiores, numa sociedade claramente marcada por profundas divisões.35Segundo Paulo Rónai, Balzac tinha “todos os dotes para ser pintor de toda a sociedade de sua época, mas a ambição restringiulhe o horizonte às classes superiores, da burguesia para cima e impediu-o quase totalmente de viver o drama dos mais pobres” .36Ao mesmo tempo, deu voz à burguesia ascendente. O cenário é principalmente Paris, e sempre a França. E não se preocupa Balzac com a vida dos franceses em geral,37apesar de haver controvérsias sobre o caráter democrá tico da obra.38 Os ambientes estudados por Balzac são muito próximos àquele descrito em A Vendeta [Estudos de Costumes, Cenas da vida privada), “em que o abuso das
32 "A descrição das Espécies Socias seria então peio menos o dobro das Espécies Animais: "a Anima lidade transborde na Human idade" (BALZAC, A Com édia Humana. Estudos de Mulher, op. cit., p. 22). 33 Segundo Johannes Willms, a gênese da Com édia Humana se deve mais a um planejamento comercia!. Afirma o bióg rafo qu e se trata " m uito m ais de uma ideia que nasceu da pura necess:dade material de fazer render todas as obras publicadas sob o nome Balzac" (WILLMS, Johannes. Balzac. São Paulo: Planeta do Brasil, 2009, p. 228). 34 Cf. BALZAC, A Coméd ia Humana. Estudos de M ulher, op. cit., p. 26. 35 Mu ito diferente, por exemplo, de Victor Hugo, que preferiu dar voz em Os Miseráveis. 36 Cf. RONÁI, A vida de Balzac, op. cit., p. 50. 37 Há críticas mais severas: "Assim ele [Balzac) chega ao seu credo po lítico verda deiram ente reacionário: 'Escrevo à luz de duas verdades eternas: a religião e a monarquia, as duas necessidades que os acontecimentos contemporâneos proclam am (...) Mais uma vez ele anuncia sua convicção de que o princ ipal in imigo de eis razoáveis e de um bom governo é o direito ao voto, que este passa a valer 'como único meio social' de poder e organização. Ou seja: a dem ocracia leva á tirania das massas no lugar do senhorio responsável, coloca ndo o indiv íduo - em vez da família como elemento central da sociedade" (WILLMS, op. cit., p. 232). Não que sua crítica estivesse desprovida de lógica, mas ele não percebeu que no jogo entre o direito e a política haveria mecanismos possíveis de conter a tirania das massas. 38 Ferdinand Brunetière questiona a relação aristocrática ou dem ocrática da obra de Balzac: "Est-ce lá ce que lon quelquefois voulu dire en parlant du caractére 'démo cratique' de loeuv re d e Ba zac? A quo i je sais bien que !'on a répondu que 1'art était touiours 'aristocratique’; mais ce ne st lá qu'une équivoque, à mo insq ue ce ne soit une sottisse (...) Mais les romans de Balzac sont 'dém ocra tique', par Ia recontre e t le mélange qu 'on y voit de tou tes es conditionssociales, y com prisc ellesq uav ant Balzac on ne mettait en scène que po ure n faire un objet de risée. Ils sont 'dém ocratique ', par et pour les moyens qu on y emp loie de parvenir, et qui n’ont rien ou presque rien de commun avec ceux do nt on us e ,... (...) Ils sont 'dém ocr atiqu e', par a nature des sentiments qu 'y éprou vent lês personnages, et aux mei leurs desquels il est rare qu’un peu de cette envie ne se mêle point qui, bien plus encore que Ia 'vertu', quoi qu'en ait dit Montesquieu, est le princ pe des démocraties. II sont 'démo cratiques', par a défiance qu'on y témo igne de 1'individualisme, qui est, au contraire, lui, le principe des aristocraties” (BRUNETIÈRE, Ferdinand. Honoré de Balzac. Paris: Calmann-Lévy/Nelson, 1906, p. 210-211).
53
DIREITO E LITERATURA
conveniências sociais mata os sentimentos e desenvolve o egoísmo”. 39 Mata os sentimentos, pois os rostos das belas e elegantes meninas desta classe não relevam franqueza, nem ingenuidade, apesar de parecerem “um grupo de anjos sentado sobre as nuvens dos céus”. Ou ainda na manifestação de Lupeauxl40—“E hoje quem é que tem opinião? Existem apenas interesses”, em Esplendores e Misérias das Cortesâs. il No realismo das relações sociais captado pela pena de Balzac, um dos temas que emerge com muita força é a questão feminina. Ele mesmo, em carta à Sra. Hanska, reconhece ter descrito “todos” os infortúnios das mulheres. De fato, se tornam evidentes as injustiças impostas pela civilização às mulheres, mais vítimas,42segundo ele, das leis sociais do que da natureza. A Mulher de Trinta Anos, e. g., narrativa romanceada, início em 1813, da vida de Julia, dos sonhos da juventude ao casamento com um militar sob o comando de Napoleão, su portando o fardo próprio das mulheres honradas de sua época, tendo no casa mento, com Vítor (Marquês D ’Aiglemont) um longo sofrimento.43 Fardo que a fazia desejar a morte.44 É possível afirmar-se que os elementos primordiais da obra de Balzac são calcados no universo feminino. Os personagens femininos ocupam espaços mais importantes, como, e. g., Eugenie Grandet do romance homônimo; a Julia cujo marido sentia sua superioridade, da Mulher de Trinta Anos, Genevra di Piombo, que depois de se casar - por amor, apesar dos sacrifícios - com Luigi muda de nome por Genevra Porta, de A Vendeta, e assim por diante. São mulheres que impressionam por sua força interior e, de certa forma, abafam nas narrativas os personagens masculinos. O casamento também aparece sistematicamente, mas muito rara sua com binação com sentimento. Aliás, as uniões por amor chegam a ser mencionadas 39 40 41 42
Cf. BALZAC, A Comédia Humana. Estudo de Costumes, op. cit., p. 31. Conde C ément Chardin des Lupeauxl, personagem que reaparece em Eugénie Grandet e César Birotteau. Cf. BALZAC, Hon oré de. A Coméd ia Humana. Esplendores e Misérias das Cortesãs. Porto Alegre: L&PM, 2007, p. 22. Ao descrever, em Estudo de Mulher, a Marquesa de Listomère, "quando ela tiver 36 anos. época em que a maior parte das mulheres se apercebe de que são vítimas das leis sociais" (BALZAC, A Comédia Humana. Estudos de Mulher, o p. cit., p. 48). 43 "Casada, ela não mais se pertence, é a rainha e a escrava do lar" (id „ ibid., p. 96). 44 Em diálogo com o irmão de uma amante, o marquês, declaradamen te infiel, descreve sua relação com Júlia: "Se me censuravas por ser infiel? Pois havias de achar a minha sorte be m pouc o desejável se ficasses como eu, durante um ou dois anos. junto a uma linda mulher sem ousar beijar-lhe a mão, com medo de magoá-la. Não te impressiones nunca com essas florezinhas delicadas, boas unicamente para serem postas numa redoma, e que, por sua fragilida de, por seu preço, somos obrigados a respeitar. Soltas muito frequentemente teu lindo cavalo, para o qual receias, segundo me disseram, a chuva e a neve? Está aí a minha história. É verdade que te nho c erteza da virtude de minha mulher, mas meu casame nto ó um ob jeto de luxo; e, se me julgas casado, te eng anas" (BALZAC, Hono ré de. Mulher de Trinta Anos. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 56).
54
O DIREITO E(M) BALZAC
como exceções.45O casamento, como aquele do Contrato de Casamento é, antes, um negócio, onde o poder do dinheiro é decisivo - pelo qual Nathalie pretende casar-se para ascender socialmente.46Noutros vários textos o casamento aparece como centro: A Fisiologia do Casamento, Pequenas Misérias da Vida Conjugal, Memórias de Duas Jovens Casadas etc. E n g e l s s it u a a o b r a d e B a l z a c n o i m a g i n á r i o s o c i a l e p o l í ti c o d o s é c u l o XIX, a o e sc re v er a M a r x q u e a p r e n d e u m a i s s o b re a s o c ie d a d e f r a n c es a d a p r i m e i ra m e t a d e d o s é c u lo
XIX n a
o b r a d e B a l z ac , “ i n c lu s iv e n o s s e u s p o r m e n o r e s e c o n ô
m i c o s ( p o r e x e m p l o , a r e d i s tr i b u i ç á o d a p r o p r i e d a d e r ea l e p e s so a l d e p o i s d a R e v o l u ç ã o ) , d o q u e e m t o d o s o s l iv r o s d o s h i s to r i a d o r e s , e c o n o m i s ta s e e s ta t ís t ic o s
2006, p. 10). Segundo Hippolyte Taine, Balzac é o maior depositário de documentos que possuímos sobre a natureza humana.48Balzac pretendia efetivamente estudar a sociedade de seu tempo, ou, em outras palavras, “sua tarefa é desenvolver tanto o diagnóstico quanto a terapia para os defeitos sociais”.49Nos termos de seu bió grafo, François Taillandier, ele “se via como um pensador, um moralista, um his toriador. Se o termo já existisse, ele se denominaria sociólogo”.50Como estudioso que foi da sociedade, denominou as partes de sua grande obra como Estudos. To davia, os Estudos que comporiam A Comédia Humana não foram concluídos.51 Mas até que ponto ele poderia ser tido como um cientista social? Entre os séculos XIX e início do século XX as ciências do espírito, classificação dada às ciências humanas e sociais aplicadas, eram consideradas literatice. A pretensão de estudar a sociedade não era considerada digna do status científico das ciências naturais - área em que reinava o método cartesiano em prol da neutralidade científica. Aliando a pretensão de estudar a sociedade, a formação jurídica e a experiência com o procurador e no tabelionato, Balzac insere-se num ambiente propício para perceber os conflitos sociais e jurídicos de sua época. O contexto d a é p o c a , to d o s j u n t o s ” 47 ( M a c h a d o ,
45 Ao falar do casamento de um dos artistas mais destacados da época, Servin, personagem fictíc io da Vendeta, ele afirma que “ havia casado por amor com a filha de um general sem fortun a" (BALZAC, A Com édia Humana. Estudo de Costumes..., op. cit., p. 25). 46 Ver COSTA, Heloisa B. A. O Casam ento na Com édia Humana. In: BOJADSEN, Angel; HOU DIN. Patrick. Balzac, a obra-mundo: o colóquio de São Pauio (Balzac, 1'oeuvre-monde: le colloque de São Paulo). São Paulo: Estação Liber dade, 1999, p. 90. 47 Cf. MAC HAD O, Ivan Pinheiro. Apresentação . In: BALZAC, Honoré de. A Comédia Humana. Estudos de Mulher. Porto Alegre: LP&M, 2006, p. 10. 48 ld., ibid. , p. 11. 49 Cf. WILLMS, op. cit., p. 231. 50 Cf. TAILLANDIER, op. cit., p. 13. 51 A ideia da Com édia Humana era que a obra no tota! chegasse a 137 títulos, mas beirou os 90. Alguns falam em 88, outros 89, 90 até 92 títulos são referidos. O certo é que faltou uma quarta parte não concluída desta "enciclopédia das espécies sociais".
55
DIREITO E LITERATURA
sob prisma científico é outro, contudo, Balzac escreve mais ao público em geral que aos cientistas. Ainda assim, vale, aqui, retomarmos a liçáo de Pontes de Miranda, para quem o jurista é um sociólogo especializado. Eis a perspectiva que sintetiza as potencialidades do estudo do Direito pela obra do romancista francês.
3. AS (POSSÍVEIS) CONTRIBUIÇÕES DE BALZAC AO DIREITO Balzac, nos anos em que estudou Direito, trabalhou com um notário, ainda que não tenha continuado na carreira da forma com que seus pais esperavam.52 Ele percebeu nos códigos, cadastros e registros trechos relevantes da vida de seus contemporâneos, cada vez mais amarrada por leis, formalidades e regulamentos. E foi contemporâneo à codificação do direito francês. Nas palavras do professor Paulo Rónai, principal tradutor d’A Comédia Humana para o Brasil, ele penetrou “no labirinto do processo, conheceu as manhas dos advogados e a obstinação das partes à procura de escapatórias, de recursos lícitos e ilícitos. Viu, principalmente, o que havia atrás de tudo aquilo: o dinhei ro, mola de tantas ações humanas, em que pouco se falava nos salões e que nunca aparecia nos romances do seu tempo”.53 Como reconheceu a estudiosa brasileira da obra de Balzac: “A riqueza de sua análise reside na busca de dar conta das diferentes conotações que associam dimensões subjetivas com o estruturar de um novo processo civilizatório”.54Uma transição marcada pela consolidação da moderna sociedade burguesa sobre o Antigo Regime, a partir de um projeto civilizatório que transformava o regime político e o direito posto. O autor &A Comédia Humana chegou a ser adepto à monarquia constitu cional. Em Estudos de Mulher Balzac descreve Napoleão como “o poder mais belo que se conhece”, pois “tinha na cabeça o código e a espada, a palavra e a ação”.55 Simpatizante mais da monarquia que da república, não acreditava nas virtudes da democracia e no poder do voto como emancipador de uma sociedade. 52 Aliás, em o Pai Go riot, de Ba zac, há um diá logo em que Vautrin convence Rastignac a abando nar o D ireito, para que fizesse o que realmen te o interessava. 53 Cf. RÓNAI, A vida d e Balzac, op. cit., p. 35-36. 5^ Cf. VIANA , Terezinha de Camargo. Processos de Criaçáo e Subjetivaçào em Estudos de Costumes no Século XIX: prefiguraçôes. In: DAVIN, Félix. Estudos dos Costumes d o S éculo XIX. Brasília: UnB, 2007, p. 15. 55 Cf. BALZAC. Mu íher de Trinta Anos, op. cit., p. 106.
56
O DIREITO E(M) BALZAC
Em A Mulher de Trinta Anos,% Balzac apresenta alguma percepção sobre o papel das leis na sociedade: “Todas as faltas, e talvez os crimes, têm por princípio um raciocínio errado ou algum excesso de egoísmo. A sociedade só pode existir pelos sacrifícios individuais que as leis exigem. Aceitar-lhe as vantagens não será assumir o compromisso de manter as condições que a fazem subsistir? Os miserá veis sem pão, obrigados a respeitar a propriedade, não são menos dignos de lásti ma do que as mulheres feridas nos seus sonhos e na delicadeza de sua natureza’.57 Nesta rápida passagem Balzac demonstra compreender o papel transindividual do Direito, identificado como lei, a condição dos hipossuficientes, que tem voz em raras oportunidades no seu texto, assim como a opressão jurídico-social sobre a mulher. No opúsculo O Outro Estudo de Mulher, Balzac exprime uma visão sobre as leis, como ffagmentadoras da sociedade, a partir da aristocracia: “O in dividualismo é a doença de nossa época, e a religião é o único remédio para isso, ela une as famílias que as leis desunem”.58 Pode-se apontar amparo do autor nalguns institutos jurídicos. Apesar de ser praticamente impossível concluirmos que sua obra foi definitiva para tais avan ços, é inegável aceitarmos que sua crítica repercutiu, pelo mínimo, na França e em boa parte da Europa. Já se reconheceu sua contribuição para três áreas do Direito: no reconhecimento dos direitos autorais, na reforma da Lei de Falências na França e pela promoção dos direitos às mulheres. O S DIREITOS AUTORAIS
Como empreendedor e autor que vive de sua produção literária, Honoré de Balzac se incomodou ao perceber que o sucesso de sua obra no exterior fazia com que a mesma fosse reproduzida noutros países sem que ele obtivesse lucro. Por força disso, ele lutará, juntamente com alguns de seus contemporâneos, pelo reconhecimento dos direitos autorais. Segundo Terezinha Viana, “é consabido que Balzac é um dos primeiros escritores a orientar movimentos pelos direitos autorais e a assumir inequivocamente o fazer literário como uma profissão”.59 Por muito tempo Balzac considerou que os escritores deveriam se organizar 56 O casamento com o obje to de luxo. e a mulher-esposa com o florzinha delicada para ser posta numa redoma. A denotação dos trinta anos se torna claro ao final do livro, ao afirmar o au tor que ” a fisionomia das mulheres só começa a ter significação aos trinta a ntes" (BALZAC, A Co média Humana. Estudo s de Mulher..., op. c it., p. 162). Qu e até essa idade só se encontra em seus rostos pensamentos uniformes e sem profundeza. 57 Cf. BALZAC, Mulher de Trinta Anos, op. cit., p. 58. 58 Cf. BALZAC, A Com édia Humana. Estudos d e Mulher..., op. cit. p. 103. 59 Cf. VIAN A, Processos d e Criação..., op. cit., p. 16.
57
DIREITO E LITERATURA
para defenderem seus direitos a uma remuneração justa. Em março de 1830, ele publicou estudo intitulado “Do estado atual da livraria”. Quatro anos mais tarde, redigiu a “Carta aos escritores franceses do século XIX”, na qual propõe a criação de uma sociedade análoga à sociedade que imaginou Beaumarchais para os auto res de teatro. Foi um jornalista, Louis Desnoyer, quem se ocupou da organização da Sociedade dos Homens de Letras, Balzac a presidira apenas um ano antes de ceder o lugar a Victor Hugo. Em analogia à regulamentação dada pelo Código Civil à propriedade ma terial privada, Balzac reivindica uma regulamentação sobre uma propriedade de criação intelectual, uma propriedade sobre o trabalho intelectual, chegando a propor um projeto de código a sua regulamentação.60 À época, era freqüente a publicação de edições piratas em francês na Bél gica. No ano de 1839, Balzac foi eleito o presidente da Sociedade dos Homens das Letras; que havia sido fundada um ano antes. Existia uma preocupação com a remuneração dos autores pelos romances-folhetins, tema de conflitos com os diretores de jornais. A luta pelo reconhecimento dos direitos autorais estava ape nas começando. Mas as reivindicações que Balzac definiu, as disposições que ele propôs, segundo Taillandier, influiriam profundamente na “definição do direito autoral e na elaboração de leis que lhe dizem respeito”.61 R e f o r m a d a L e i d e Fa l ê n c i a s
Reputa-se também a Balzac os motivos que levaram a uma revisão a Lei de Falências da França de 1807. Com a publicação do romance Ascensão e Queda de César Birotteau, pela qual o personagem principal encarna um típico pequeno burguês dos anos de 1830 em busca da escalada social. De ambição desmedida, Birotteau vai a Paris em busca de fortuna e, após obter sucesso, investe todas suas economias num projeto de dinheiro fácil.62 60 Segund o Balzac: "Le droít est píein de précautions po ur l’or et pour Ia terre, pour les meu bles acquis par le travail matériel ou commercial; il y a onze cents artides dans le Code pour ces propriétés, et il n'en existe pás un seul pour saisir, dans les caprices de ses transmissions et de ses stipulations, Ia proprié té créée pa r le travai intellectue " (POLLAUD-DUUAN, Frédéric. Balzac et Ia propriété littéraire. UAnnée Baízacienne, Presses Universitalres de France, n M , p. 197-223,2003). 61 Cf. TAILLANDIER . 2006, p. 105. 62 César Birotteau investe tudo o qu e tem e ainda muito mais na compra de terrenos que prometem extraordinário lucro, pois pagariam um quarto d o valor pelos terrenos, mesmo com os alertas da esposa - "Agora , você lança toda a sua fortuna em um jogo de cartas, e não é o único a jogar, tem sócios, que podem revelar-se mais espertos que você. Dá seu baile, renova sua casa, despend e dez mi francos, tudo é inútil, mas não leva è ruína. Qu anto a seu negócio com Made eine, oponh o-me frontalmente. Você é perfumista. seja perfumista, e não revendedor de terras" (BALZAC, Honoré de. A Comédia Humana. Estudos dos Costumes. Cenas da Vida Parisiense. Ascensão e Q ueda d e César Birotteau. Porto Alegre: LP&M, 2009, p. 32).
58
O DIREITO E(M) BALZAC
Cesar Birotteau é um modesto perfumista que sai do Tours aos 14 anos, e, apesar de ter um coração de ouro, é tratado como um cão na dura vida de Paris, mas, com o passar do tempo, enriquece com a descoberta de novas fórmulas. Porém, ante o excesso de ambiçáo, se perde em dívidas, e a ruína o alcança pela vingança de um ex-funcionário, du Tillet, apesar dos alertas de sua esposa Constance. O protagonista sintetiza as ambigüidades de um burguês em ascensão, íntegro e medíocre, probo e eventualmente ridículo. A partir daí, o livro se torna um tratado sobre o processo de falência. Neste título, Balzac faz uma criativa e audaz avaliação da Lei francesa de Falências de 1807. Segundo François Ost, a avaliação da Lei de Falências e suas possíveis destinações poderiam servir “de modelo a muitos trabalhos atuais de sociologia jurídica”.63 Não se pode esquecer que ele conheceria bem tal problemática não apenas pela formação jurídica, senão, por que, também, “faliu” sucessivas vezes no seu curto e intenso meio século de existência. Como conseqüência, a lei foi modificada 10 meses após a publicação da Ascensão e Declínio de César Birotteau. Em
r e l a ç ã o a o s d ir e it o s d a s m u l h e r e s
O interesse de Balzac sobre o universo feminino pode ser entendido pelo número de títulos dedicados a protagonistas mulheres: O contrato de casamento, Memórias de duas jovens esposas, Esplendores e misérias das cortesãs, Mulher de Trinta Anos, Estudos Sobre Mulher, Outro Estudo Sobre Mulher, Eugénie Grandet, A Prima Bete entre outros tantos títulos onde a mulher é o centro do enredo na narrativa do romance (como A Vendeta). Pela “voz” do personagem Marsay, em Estudos sobre Mulher, “Napoleão não adivinhou que os efeitos desse código que o deixou tão orgulhoso. Esse homem, ao criar suas duquesas, engendrava as nossas femmes comme il faut de hoje, resultado indireto da sua legislação.”64Esta femmes comme il fau t, ou melhor, a mulher como ela deve ser, designava a mulher elegante e refinada pro duzida pelos novos tempos de referência social. Ainda pela voz do mesmo per sonagem: “em breve vai fazer cinqüenta anos que assistimos à ruína contínua de todas as distinções sociais; deveríamos ter salvado as mulheres desse naufrágio, mas o Código Civil as nivelou com seus artigos”.65Trata-se da visão da aristo 63 Cf. OST, François. Conta r a Lei. São Leo pold o: Unisinos, 2005, p. 15. 64 Cf. BALZAC, A Com édia Humana. Estudos d e Mulher..., op. cit., p. 88. 65 ld., ibid., p. 87-88.
59
DIREITO E LITERATURA
cracia sobre os efeitos do Código Civil, e da tensão entre modos aristocratas e ambigüidades burguesas. Balzac desvela elementos importantes do universo feminino a partir d’A Mulher de Trinta Anos. A protagonista, Julia, bela, saudável, jovem e com posição social, pelo peso que a sociedade e as leis do mundo a carregam: “O casamento, a instituição sobre a qual se apoia hoje a sociedade, só a nós faz sentir todo o seu peso: para o homem a liberdade; para a mulher os deveres. Devemos consagrar aos homens toda a nossa vida, eles nos consagram apenas raros instantes”,66defi nindo, na seqüência, o casamento como uma prostituição social. No romance A Mulher de Trinta Anos, Balzac denuncia: “Nós, as mulheres, somos mais maltra tadas pela civilização do que pela natureza”.67 Balzac contribui para ressignificar o papel da mulher na sociedade ocidental. Numa abordagem complexa sobre a vivência da experiência feminina, ele desve la o sofrimento que as leis do mundo condenavam a mulher. Júlia é a imagem da mulher de uma época. Uma mulher que, ao ser condenada sobre as leis do mundo, age conforme as expectativas sociais. Apesar de um marido desatencioso, infiel, rude e tolo, mantém sua alma sensível e conduta reta nos ditames das leis do mundo - porém, infeliz, por força das leis do mundo. Em carta à sra. Hanska afirmou: “Descrevi todos os infortúnios das mulheres”.68 O Código Civil brasileiro de 1916 reconhecia à mulher uma condição de subcidadania. Foi preciso quase dois séculos para que o Direito assimilasse razoa velmente aquilo que Balzac denunciava no seu realismo literário. Da Mulher de Trinta Anos exsurge a faticidade fundamentadora do artigo 5Q, I da Constituição Brasileira de 1988, onde se encontra a premissa da isonomia entre homens e mu lheres, ainda em construção.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Em relação ao Jurídico, a Literatura contribui, num tensionamento transdisciplinarizante, para se compreender de forma mais próxima da verdade, a socie dade, seus mecanismos de funcionamento e contingências multifacetadas, além do imaginário social sobre o próprio fenômeno jurídico, sobre a política, a eco 66 Cf. BALZAC. Hono ré de. Mulher de Trinta Anos, op. cit., p. 83. 67 ld., ibid., p. 83. 68 Cf. COSTA, op. cit., p. 93.
60
O DIREITO E(M) BALZAC
nomia e a estrutura social. Caso a investigação jurídico-literária se situe noutro contexto, espaço-temporal, a importância é ampliada por estender a visão sobre o “ambiente”, com a distancia histórica que Gadamer aufere destaque, como é o caso presente com o estudo sobre A Comédia Humana de Honoré de Balzac. A crítica social que Balzac veicula, por meio dos romances realistas, efetua contribuições quiçá mais significativas ao universo jurídico do que os próprios ju ristas de sua época que, atrás das robustas e ornadas escrivaninhas, em sua grande maioria, exegetas, não passavam de burocratas a desserviço da sociedade em seu novo projeto transicional, do Antigo Regime ao Estado Liberal. Entre outros elementos, Honoré de Balzac evidenciou o papel do casamento como negócio, desvelou, sem dourar a pílula, a condição da mulher na dita ci vilização, descreveu para que e para quem serviria o direito posto, sem deixar de perceber o papel das crianças e sua inserção social marginal. Critica a civilização, e, consequentemente, o Direito de seu tempo, de forma sofisticada, pela preten são de descrever as espécies humanas e seus distintos comportamentos. A grande paisagem pintada riA Comédia Hum ana de Honoré de Balzac abre, de maneira instigante, horizontes investigativos não apenas para conhecer a so ciedade francesa do início do século XIX, mas para conhecer as instituições do Direito, os esplendores e as misérias da vida em sociedade e a própria natureza humana. Um caleidoscópio que ainda tem muito a nos mostrar e ensinar, do passado, do presente e para o futuro.
61
ROBINSON CRUSOE: UM MITO DESPEDAÇADO QUANDO O SUJEITO TORNA-SE MERCADORIA? Jân ia M aria Lopes Saldanh a “Todos nosotros somos hijos de la Ilustraáón ( G a d a m e r , A
c o ta c io n e s h e r m e n ê u ti c a s ,
”
p. 41).
Em 1719, Daniel Defoe publica Robinson Crusoe. A obra trata de um aven tureiro nascido em 1632 que por volta dos dezoito anos lança-se em viagens marítimas. Numa delas, o barco em que viajava sofre um naufrágio, depois de uma forte tempestade. Robinson Crusoe é o único sobrevivente. Instala-se em uma ilha deserta, que posteriormente nominou Ilha do Desespero. Tem início um longo processo de sobrevivência, produção de bens, domínio de si próprio, da ilha e do que ah produzia. Afirma-se que o autor, por intermédio da obra, pretendeu superar o dilema puritano e ambivalente da época, demarcado pelo paradoxo entre a prosperidade econômica e a religiosidade virtuosa. O personagem Crusoe seria a demonstração de que uma só pessoa pode perfeitamente reunir as duas “virtudes”: o relato da vida de Crusoe na Ilha do Desespero, no Pacífico, mostrará que a aquisição da propriedade acaba por constituir-se numa predestinação à salvação, numa apro ximação da providência divina, e que enriquecer é um dever. Para que isso aconteça, Crusoe rompe os laços familiares, deixa para trás a sociedade em que vivia, renega o vaticínio do pai e sai pelo mundo. O naufrágio e a ilha deserta são o cenário imaginário que simboliza o nascimento de um novo sujeito. Constitui-se o sujeito solipsista e vitorioso ao mesmo tempo em que a Europa sofria retumbantes transformações econômicas, filosóficas, políticas e sociais. Dou tora em D ireito (UNISINOS). Professora do Programa de Pós-Graduação em D ireito da UNISINOS. Professora do Curso de Direito da UFSM. Advog ada (RS).
62
ROBINSON CRUSOE
Para alguns autores a história de Robinson representaria a conquista paula tina da identidade, da apropriação da ilha e do estabelecimento, após 23 anos de solidão, de relações sociais com base apenas contratual.1 O que Crusoe fez na sua ilha - dominá-la, produzir bens materiais e imateriais - foi o que as grandes potências econômicas depois fizeram com o predomínio do capitalismo, que se fundamenta num modelo jurídico baseado na apropriação de bens e na livre empresa lastreada no princípio da autonomia da vontade.2 Mas, afinal, quem foi o autor de tão fascinante narrativa? Nascido em uma família de dissidentes anglicanos, Daniel Defoe vive seu tempo. Durante sua vida, redige ensaios moralizantes marcados pela ética protestante. Aliás, isso po derá ser sentido ao longo de toda a obra (veja-se quando Crusoe rende-se a Deus depois da sua doença e do terremoto que ocorre na ilha). Embarcou no espírito mercantilista da época, não mais baseado na aquisição da propriedade. Foi um empreendedor fabricou bonés, foi agente de seguros marí timos e corretor no setor de tabaco. Participou da vida política, tendo apoiado Gui lherme III quando esse subiu ao poder em 1688, na Revolução Gloriosa inglesa. Haveria uma relação entre a vida de Defoe, de Robinson Crusoe e dos acon tecimentos econômicos, filosóficos, políticos e sociais do século XVII? Haveria uma convergência entre a realidade e a ficção? François Ost sugere que sim.3 Há uma correspondência com as movimentações político-sociais do século XVII ainda que a obra tivesse sido entregue, pronta, em 1719. A história de Robinson Crusoe se passa no século XVII entre os anos de 1632 - quando ele nasce - e 1686 - quando ele retoma da ilha. Esse período corresponde ao período da res tauração dos Stuart - Carlos II e Jaime II de 1660-1688 - quando o parlamento inglês foi fechado. Qual o seu sentido? O exílio de Robinson Crusoe deveria corresponder ao puritanismo do período prévio à Revolução Gloriosa e termi naria com a subida ao poder de Guilherme III, coincidente com a instalação do parlamentarismo liberal, necessário para reconhecer e assegurar os direitos dos burgueses. Entre a expansão europeia e a mutação da sociedade londrina, o texto foi escrito num contexto social, de insatisfação da burguesia com o predomínio da igreja anglicana e com a própria política; econômico, de incremento das trocas comerciais que fariam dos comerciantes e da classe média os triunfantes do futu 1 2 3
Tal é o entendimento de OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. Trad. de Paulo Neves. São Leopoldo: Unisinos, 2005, p. 235. Sobre o tema, veja-se FOUCAULT, Michel. Nascimen to da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. ld., ibid., p. 245.
63
DIREITO E LITERATURA
ro; político-jurídico, de necessidade de um parlamento que pudesse declarar di reitos e, com isso, garantir o desenvolvimento das trocas e a ascensão da burguesia e espiritual, de questionamento do puritanismo; e filosófico, porque se eleva com vigor o paradigma racionalista de mundo. Daí a necessidade de desafiar-se o dilema puritano. Como conciliar a vocação religiosa e o comércio lucrativo? A esse dilema, que acompanha o desenvolvimento do mundo ocidental, Defoe tenta responder com o seu Crusoe, colocando-o à al tura de um grande mito moderno - o mito do individualismo burguês - fundado na propriedade privada, no livre comércio e abençoado pela providência divina. Curiosamente, é preciso registrar, que esta tensão posta pelo puritanismo está ausente nas colônias europeias, pois a apropriação da terra e dos “selvagens”, somada ao da mão de obra dos escravos africanos, não consistia em fator de tensão para os colonizadores. Veja-se que Crusoe, antes do naufrágio na Ilha do Desespero, havia obtido terras férteis e rentáveis no Brasil e a viagem que culmi nou na sua “tragédia” visava buscar escravos na África, em violação ao sistema dos assientos impostos pelos colonizadores. Assim, o romance de Defoe rapidamente ocupa um lugar no imaginário da modernidade. É um “livro-talismã” segundo ítalo Calvino,4 que põe uma inter rogação ético-religiosa numa sociedade em “desencantamento”,5 mas em pleno desenvolvimento econômico. Atual, não? Não estaríamos necessitando de novos mitos, diante do esgotamento das narrativas ocorridas no “breve Século XX”?6 Mas o que haveria de especial em Defoe? Talvez a capacidade de ligar, de um lado, a literatura e a moral puritana e, de outro, as experiências/relatos das viagens da época. Essas foram as suas duas fontes de inspiração. Conseguiria ele vaticinar que sua história teria uma continuidade e que de senharia a modernidade? Que se prolongaria ao longo de mais 400 anos e que culminaria no indivíduo moderno “esquizoide”, transformado em mercadoria/ produto, cujo corpo e energia são consumidos pela sociedade de consumo?7Ou então, para nos aproximarmos de Hannah Arendt, que desaguaria no indivíduo de um tempo em que a ação política foi substituída pelo labor e onde a ação, que expressa a capacidade humana de pensar, se perdeu?8 4 5 6 7 8
CALVINO, íta o. Por que ler os clássicos? Trad. de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 103. OST, op. cit., p. 249. HOBSBAW M, Eric. Era dos extremos: o brev e século XX: 1914-1991. Trad. de Marcos Santarrita. São Paulo: Co mp a nhia das Letras, 1995. Sobre o sujeito esquizoide, ver DUFOUR, Dany-Robert. A arte de reduz ir as cabeças. Sobre a nova servidão na so ciedade uItraliberal. Rio de Janeiro: Comp anhia d e Freud, 2005. Veja-se ARENDT, Hannah. A condição humana. São Pau o: Universitária, 1987.
64
ROBINSON CRUSOE
Imaginando-se a história de Crusoe numa linha do tempo, é possível iden tificar, nela, múltiplas fases. A primeira acontece quando Crusoe rompe com a família. Renega seu meio social. Náo aceita a sugestão do pai para ser advogado. Prefere as aventuras no mar. Relata que desafiou a maldição do pai dizendo: “que Deus não me abençoaria”.9 Chega ao Brasil, lança-se na produção de açúcar e tabaco, depois de fugir de um cativeiro de dois anos. Lança-se novamente ao mar em direção à África na esperança de lucrar mais com a compra dos escravos, desviando-se do mercado já institucionalizado. Porém, antes de partir, toma to das as medidas necessárias para preservar seus bens. A segunda etapa inicia-se com o seu naufrágio na embocadura do Orenoco. Único sobrevivente, sozinho na ilha, viverá um segundo nascimento pelo que mais tarde, convertido, agradecerá a Deus. Não se desespera. Depois do impac to, portando apenas um cachimbo e uma faca, passa a pensar e agir de forma prática: como sobreviver? Preocupação que anos depois resultará na opulência da colonização. Inicia-se na posse e no domínio da ilha. Faz o inventário e dos recursos disponíveis nos destroços do navio: tal como um comerciante, reúne, registra e contabiliza tudo o que entende ser necessário depois de doze visitas ao navio. Recolhe madeira, ferramentas, ferro, roupas, comidas, sementes e depois de hesitar, trinta e seis libras em moedas, que seriam o fio vermelho a conduzir os fundamentos de toda a história. Prossegue nas atividades de localização da morada e de construção de fortifica ção para guardar todo o material. Entricheira-se e busca a maior segurança possível mesmo ante a ausência de qualquer ameaça concreta. Esse comportamento não es taria impregnado de atualidade? Não é exatamente essa a síndrome do medo fabri cada, anunciada e vendida nas sociedades contemporâneas, onde criminosos e toda sorte de ameaças são avistados por toda parte? Não estaria a sociedade contemporâ nea sempre à espera dos bárbaros10e do medo, a justificar os pan-ópticos de todas as espécies que vigiam as sociedades e invadem a intimidade em tempo integral?11 Aos poucos irá percorrer a ilha (mas não toda), organizando-a e revelando um temperamento empreendedor. Transforma a natureza pela técnica e pelo tra balho. O relato mostra que a tenacidade de Crusoe não derivava apenas da ascese protestante do trabalho, mas também da aplicação dos princípios da razão me 9
DEFOE, Daniel. As aventuras de Robinson Crusoe. Versão integral. Trad. de Alb ino Poli Jr. Porto A egre: L&PM, 2006, p. 11. Há disponível, eletronicam ente, o te xto da prim eira versão editada da obra. Veja-se
. 10 Veja-se a narrativa de COETZEE, John Ma xwe ll. À espera dos bárbaros. Trad. de José Rubens Siqueira. São Paulo: Com panhia das Letras, 2006. 11 BAUMAN, Zygmunt. Me do líquido. Trad. de Carlos A lber to Medeiros. Rio de Janeiro: J orge Zahar, 2C08.
65
DIREITO E LITERATURA
cânica. Utiliza-se muito dos utensílios resgatados do navio. Questionável assim o “nascimento”, a “origem fundadora” que os muitos dos intérpretes de Crusoe insistem em afirmar. Dito de outro modo, poderia o homem estar livre de toda a pré-compreensáo? Haveria um marco zero de sua humanidade, ou o homem carrega sempre um acqtds? E se náo fosse assim, será mesmo que a história de Crusoe náo teria tido um outro desfecho? Enfim, fecha-se numa fortaleza acessível apenas a ele. Domina e caça os animais. Familiariza-se com o clima. Estabelece calendário. Mantém-se diaria mente ocupado com trabalho de organização e produção de alimentos. Redige um diário até o dia em que náo disporá mais de tinta para continuar seu relato. A autonomia para decidir e administrar a própria sobrevivência e o registro de todos esses passos permitem a reapropiação do eu, o encontro consigo mesmo. Concilia-se então com Deus, a quem agradece pela sorte de “ter sobrevivido”. Durante praticamente 24 anos permanece sozinho na ilha. Somente em poucas vezes teve ímpeto de ir embora. Estavam lançadas as bases para a concepção de que seria o símbolo do indi vidualismo possessivo,12produzido pela modernidade. Isto porque Crusoe jamais considerou a ilha como um lugar, seu habitat, como natureza viva etc. Percebeu-a apenas como um lugar em que por meio do trabalho sobreviveria, tirando dela, com seu esforço, o necessário para manter-se. E jamais, nas quase 400 páginas do livro de Defoe, Crusoe lamentou a falta da família, dos amigos. A falta do outro é um dos grandes recalques da obra de Defoe. Sem o outro, qual seria o sentido de sua existência, isolada e sem referências? A terceira etapa pode ser identificada com o encontro entre Crusoe e o pró prio self. O afinco ao trabalho que o transformava no “homem que faz a si pró prio”, foi fundamental. A ordem que pôs às coisas o converteu no dono de sua vontade e onipotência. Mas construir, organizar e administrar os bens materiais não significa nada sem que o sujeito se reaproprie de si mesmo. O diário em que Crusoe registrava todas as suas ações e pensamentos converteu-se no símbolo dessa reapropriação: uma evidente demonstração de seu solipsismo. À falta de outro ser humano com o qual poderia socializar-se, ainda assim foi possível a Crusoe desenvolver algum tipo de relação? Sim. É preciso reco nhecer que a socialização existiu em relação a dois animais de estimação: o cão, que o inspira ao diálogo e o leva a dizer: “o que eu mais queria era que ele falasse 12 Individualismo com o forma de afirmação de uma propried ade. Consulte-se: MACPHERSON, C.B. La théoríe politique de 1'individualisme possessif. De Hob bes à Locke. Paris: Folio/Essais/Gallimard, 2004.
66
ROBINSON CRUSOE
comigo”13 e o papagaio.14 Além disso, a conversão religiosa assume um papel importante nesse processo de reapropriação. A primeira vez em que se ajoelhou e rezou a Deus foi após sua doença.15Essa conversão facilita a realização de um balanço moral sobre a própria vida. Quarto. Somente por volta do vigésimo quarto ano é que Sexta-Feira chega à ilha, e Crusoe volta a socializar-se a partir de uma alteridade criticável. Ora, da leitura da obra percebe-se que não se opera uma verdadeira ressocialização, pois Crusoe não vê o próximo - nem a si mesmo - em Sexta-feira, tanto que jamais se preocupou em saber qual era seu verdadeiro nome. O que fez foi submeter Sexta-Feira - que era negro - a um processo assimilatório em que ele deixou de ser o que era para converter-se em “outro” segundo a vontade do amo. Permanecia o triunfo do “eu próprio” sem alteridade. Essa construção do “eu absoluto”, 6 que modelou o individualismo ocidental ou que, pelo menos toma Crusoe como referência, não seria uma ficção, uma vez que na alteridade tudo se torna mais complexo e menos fácil em atribuir os resultados aos desígnios de Deus como fez Crusoe? É que o outro sempre nos interpela, tomando mais árdua a tarefa de encontrarmos nosso eu, pois ele sem pre dependerá do seu olhar e da sua aprovação. Por outro lado, a construção do sentimento de posse inconteste e de apropriação posterior não seria uma ficção, uma vez que tais direitos somente tornam-se desafiadores na disputa? No fundo, a relação hierárquica que estabelece com Sexta-Feira seria repetida anos mais tarde quando, ao receber o pai do súdito na ilha e as outras pessoas que passaram a fazer parte do grupo, o que Crusoe fará é uma apropriação de corpos, ao ditar o seu poder de vontade aos “súditos”. Relação dessa natureza, como dito, começou com Sexta-feira - para Cmsoe, um servo fiel17 - que aos poucos foi assimilando a língua, os modos e os gostos do seu dono! Nova aproximação com os tempos contemporâneos. Afinal, não é o que ocorre nos dias atuais, com a situação a que foram jo gados os consumidores das sociedades de consumo, a viverem um simulacro de liberdade, uma vez que rendidos ao fetiche das mercadorias? Na verdade a 13 14 15 16
DEFOE, op. cit., p. 72. ld., ibid ., p. 118. ld., ibid., p. 102. Que ao long o da mod ernidade resultou na colonização do espaço público e a queda do hom em púb lico. Espaço social dos "indivíduos por decreto", contadores de histórias compulsivos onde não há nada mais interessante do que a própria história, as próprias emoções e sensações. Essa crítica está em BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada. Vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 17. 17 DEFOE, op. cit., p. 218.
67
DIREITO E LITERATURA
subjetividade nas sociedades contemporâneas de consumo é um fetiche, ou seja, um “produto profundamente humano elevado à categoria de autoridade sobre-humana mediante o esquecimento das origens demasiado humanas” 18e o que se supõe ser uma materialização do selfnào passa da materialização de traços mate riais objetificados das “não” escolhas dos consumidores. A apropriação de Sexta-Feira, sem vínculos, sem passado, sem compromissos anteriores, sem ligações emocionais, não seria a versão contemporânea do em pregado “sem chateação”19que aumenta suas chances de emprego? O indivíduo (consumidor) pronto para assumir qualquer tarefa que lhe apareça e preparado para se reajustar e refocalizar de imediato, com o abandono das adquiridas an teriormente não seria a versão contemporânea de Sexta-feira assimilado? Não teria, ele também, à moda do que se exige na atualidade pelas grandes empresas, “recomodificado”20 à nova situação? Porém, a condição de coisas a serem escolhidas - as mercadorias - pelos que as escolhem - os consumidores - não levaria à conclusão de que escolher é uma falãciài A questão está em que na sociedade de consumidores, antes de se tornar sujeito, é preciso primeiro tornar-se mercadoria! Como referiu Ost, o plano de fundo de Crusoe não seria aquilo que o perso nagem deixou no Brasil? Negócios em franca expansão que o tornaram rico, com a subjugação de corpos - escravos - e exploração da natureza? Não seria Crusoe, já à época, um alienado a serviço dos interesses dos colonizadores? E quando De foe o manda à Ilha do Desespero, o que faz não é dar continuidade a esse processo exploratório e à manutenção da hierarquia societária entre patrões e empregados, que viria a se transformar na sociedade de consumo de que se fala? Quinta fase: instala-se o terror na alma de Crusoe, quando encontra uma pegada humana na areia. Essa marca21o enche de um pavor fulminante. Pavor na verdade da alteridade, conforme antes referido. Ao invés de mostrar-se favorável à possibilidade de deixar de ser solitário, seu espírito expressa o estado de natureza hobbesiano, de possibilidade de guerra de todos contra todos. Após esse fato, Crusoe durante dois anos trata de construir ainda mais fortificações, consumido pela ideia de invasão e de risco de vida. No entanto, a um inglês moderno como Crusoe, da mesma época de René 18 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 23. 19 k l., ibid ., p. 17. 20 ld., ibid. , p. 23. 21 DEFOE. op. c it , p. 164.
68
ROBINSON CRUSOE
Descartes, Defoe descreve que ele, dominado pela “razão raciocinante”, acalma-se e é marcado pela tolerância e pelo pluralismo. Ost22 vai dizer que essa atitude é colocada como superior a dos colonos espanhóis cujo fanatismo extinguiu milhões de índios! Crusoe faz essa afirmação ao observar a cena dos canibais, afirmando que esses, ainda que idólatras e bárbaros, não seriam tão cruéis quanto os espanhóis.23 Dirigindo-se o olhar a outro ângulo, essa tolerância e pluralismo não seriam utilizadas depois nas colônias para “assimilar”? E sob sua capa não estaria todo o jogo moderno entre empregadores e empregados? Não teria sido o oxigênio da sociedade de consumo onde o sujeito perde a autonomia da vontade e onde quem detém os meios de produção - racionalizado, organizado e burocrático que tem em Crusoe seu grande ícone - impõe as vontades e as mercantiliza?24 Ademais, as descrições das cenas dos canibais, tão pouco consideradas por aqueles que “releram” Crusoe, não assumiriam um lugar de destaque na obra porque se constituíram no “outro” que queremos negar, justamente porque é di ferente? Por ser assim, o primeiro sentimento que nos impõe não seria justamente o medo? Se praticam o canibalismo somente quando em guerra, e aí estaria a sua ética, o que dizer dos sujeitos reduzidos a mercadorias, cujos corpos a isso são reduzidos, com o esgotamento das forças vitais e das forças de trabalho? Não teria esse sujeito moderno - o do individualismo possessivo - sido reduzido a uma coisa consumível e a sociedade de consumo contemporânea não seria a versão atual desse canibalismo, que além de reduzir corpos, reduz cabeças e mentes, como diz Dufour?23 Na lógica capitalista, dizia Lacan, “o escravo antigo foi substituído por homens reduzidos ao estado de produtos”:26 produtos consumíveis como quaisquer outros. Ora, a vitória do capitalismo e a celebração aparentemente vitoriosa da “gestão esclarecida” dos recursos humanos e da “boa direção ligada ao desenvolvimento humano”, são apenas promessas não cumpridas. N ão consideram que o capitalismo consome tam bém homem, sendo ele seu grande canibal. Mas seria novidade esse consumo de corpos? Não. Marx já havia teorizado sobre isso. A novidade pós-moderna do capitalismo acontece quando parte da sua 22 OST, op. cit., p. 261. 23 DEFOE, op. cit., p. 181. 24 Com o referiu John Kenneth Galbraith: "A creditar numa economia de mercado em que o consum idor é soberano é uma das formas de fraude mais difundidas. Q ue ningém ten te vender sem administração e controle do consum idor" (GALBRAITH. John Kenneth. A econom/a das fraudes inocentes. Verdades para o nosso tempo. São Paulo: Compa nhia das Letras, 2C04, p. 30). 25 DUFOUR, Dany-Robert. A arte de reduz ir as cabeças. São Pau o: Companhia da Freud, 2005, p. 9. 26 ld.. ibid., p. 9.
69
DIREITO E LITERATURA
inteligência é operada para “reduzir cabeças”.27 E o medo que persegue Crusoe mais assustador quanto mais difuso, disperso, indistinto, desvinculado, flutuante e sem endereço certo, não corromperia a ideia difundida de que a modernidade de Crusoe e da Inglaterra do Século XVII e depois do mundo moderno ocidental dos séculos seguintes seria o grande salto à frente em direção, para longe desse medo, a um mundo livre do destino cego e impenetrável?28 Sobre isso, Vitor Hugo já teria dito que, sob o peso das ciências, chegaria o tempo do fim das surpresas, dos abalos e das catástrofes! Isso seria um tempo liber to de tudo o que causaria medo. Mas o que era para ser um caminho tornou-se, como diz Bauman, “um grande desvio”. Ao contrário disso, em pleno Século XXI, vivemos a era do temor! Só que os canibais e os monstros da natureza são outros. Desse modo, os perigos de onde vem o medo podem ser de três tipos:29 a) ameaça do corpo e propriedade (como em Crusoe); b) a durabilidade da ordem social e a confiabilidade que se deposita nela, de onde vem o sustento (renda e emprego); c) os que ameaçam o lugar da pessoa no mundo - hierarquia social, a identidade (de classe, de gênero, étnica e religiosa). Então, mais uma vez a socie dade da autonomia da vontade, do sujeito soberano e da sociedade de mercado gerou o medo da descivilização30e a ameaça de retomo à sociedade onde prevale ce a guerra de todos contra todos, à moda hobbesiana. A de Crusoe seria uma história de sucesso? Depois de 28 anos na ilha, seria possível dizer que bem reproduziu o êxito manifesto da colonização à inglesa, com o domínio da técnica e da economia e ao mesmo tempo pacificação social? Mostrou Crusoe, com o sucesso de seus empreendimentos da ilha - e no Brasil -, que havia uma saída para o dilema puritano que está à base do mito em que foi transforma do? Seria possível ser, ao mesmo tempo, próspero e virtuoso? Ora, talvez aqui seja preciso novamente invocar a crítica fina de François Ost,31 quando apresenta um rol de tmcagens e de imposturas na obra. Um pouco do que já se denunciou acima. Ost refere cinco imposturas: a) ambivalência, uma vez que naufragar parece expiação dos pecados, mas o sucesso de seu empreendedorismo desmente isso. Não teria Crusoe, aos olhos do leitor, motivos para ter rompido com o pai que o queria numa vida medíocre?; b) tentativa de convencer o leitor de que se tratava de uma história verdadeira; c) o papel desempenhado pelos destroços do navio 27 28 29 30
ld., ibid .. p. 10. BAUM AN, Med o líquido..., op. cit., p. 8. ld., ibid., p. 10. Sim porqu e o "processo c ivilizador" estaria expresso na própr ia individualização crescente. Cf. ELIAS. No rbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de J aneiro : Zahar, 1994, p. 103. 31 OST, op. cit., p. 269.
70
ROBINSON CRUSOE
demonstra que não há um marco zero. Crusoe não prospera a partir do nada como quer se fazer crer! O começo absoluto, então, é uma falácia: o homem é sempre herdeiro; d) domínio apenas aparente da ilha, porque há lugares da ilha que ele nem sequer preocupou-se em conhecer; e) se o problema puritano se resolve é apenas na ascese da ilha, pois é evidente que as coisas se passam diferentemente no mundo real dos negócios. No contexto isolado da ilha o dilema é superado (será?). Mas, no conjunto, nada é resolvido. Tome-se a riqueza de Crusoe no Brasil que só cresceu. E, curiosamente, Crusoe não resolveu o dilema em sua própria vida, uma vez que jamais se permitiu viver a vida do homem médio, então do burguês. O fato é que Crusoe foi um sujeito marcado pelo solipsismo e que viveu in tensamente o racionalismo cartesiano. O naufrágio (e os bens extraídos do navio) permitem a construção do seu “eu próprio”. E a ilha é a metáfora desse “eu soli tário”. Todo o tempo tem medo da alteração do seu eu para entregar-se aos riscos da alteridade. Defoe sugere que o solipsismo de seu personagem é o nosso, como se tivéssemos de conquistar nossa ilha interior para podermos subsistir. Porém, é inegável que essa ilha interior já traz uma herança, que impõe diversos medos, como o de perder os bens e o de perder a identidade que supomos ter. O individualismo que marcou a vida de Crusoe na Ilha do Desespero é com preendido como a base da teoria política liberal, hoje democracia de mercado. In dividualismo esse que busca sempre maximizar suas preferências pessoais,32 retra tando de forma lapidar a teoria da propriedade de John Locke, conforme os termos do seu Segundo Tratado sobre o governo civil, de 1690. Onde estaria essa correspon dência entre a vida de Crusoe e a obra do filósofo? É que a aquisição de proprie dade por Crusoe se justifica, aparentemente, por ser uma medida de trabalho e de necessidade. Mas a obra interpela: a) na superfície, há a apropriação na ilha para a sobrevivência; b) mais profundamente, há o que não estanca, que é o comércio marítimo e o processo de colonização, que fazem a riqueza de Crusoe no Brasil. A história de Crusoe não tem fim. Ela continua no século XXI. Qual sujeito tomará o lugar do sujeito individualista da modernidade e quem recontará a his tória para manter o fio que liga a humanidade ao passado e ao futuro, na emer gência de um presente tanto tumultuado quanto provocador? Com Saramago, ainda há ilhas desconhecidas à espera de nossos naufrágios?33 32 O qu e é sempre fonte de tensões. Ulrich Beck pergunta: "C om o com patibilizar a autodeterminação com a ideia de comunidade? Como é possível ser individualista e ao mesmo tempo assimilar-se ao grupo? Como compatibilizar a diversidade de opiniões, em que cada indivíduo se desmtegra em um intrincado mundo, com a tomada de posição política uma ação que estejam mais além do presente?" (BECK. Ulrich. Hijos de la libertad. Buenos AVes: Fondo de Cultura Econômica, p. 11). 33 Ver SARAMAG O, José. Conto da ilha desconhecida. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
71
O IMAGINÁRIO JURÍDICO NO ROMANCE “GRANDES MIRADAS”, DE ALONSO CUETO Jaime Coaguila Valdivia Trad. de André Karam Trindade*
O INFAME CENÁRIO DA CORRUPÇÃO A corrupção é a ação de provocar dano, perverter, depravar e fazer perder, manipuladoramente, a alguém, com propósitos mal-intencionados, alterando e transformando sua identidade, a fim de alcançar, consciente ou inconsciente mente, a cumplicidade necessária para o êxito de sua finalidade. A corrupção contamina a cultura e deteriora a qualidade da própria vida,1à medida que a destruição da moralidade pública inaugura um panorama sombrio, povoado de personagens lábeis e perversas na sociedade peruana. Durante a época do regime fujimorista, a corrupção adquiriu estas conota ções, de tal forma que, sob um discurso aparentemente democrático, realizou-se 0 desmanche de todas as instituições sociais, provocando uma anomi a generaliza da, o ressurgimento de um discurso canibalizador e uma preocupante decadência da consciência cidadã. O corrupto exigia, para a sua subsistência, cumplicidade; e, para isso, necessitava enfraquecer os valores coletivos, destruindo a imagem de seus opositores, voltando-se contra os defensores da legalidade e apelando para um discurso de nítido caráter autoritário. Todavia, psicanaliticamente, segundo Juan Carlos Ubilluz, por trás do con ceito de corrupção esconde-se a estrutura objetivamente subjetiva da “treta”, que sustenta a ordem social e que subsiste graças ao imaginário do sujeito crioulo, *
Do utor em Dire to (Universidad Cató ica de Santa Maria de Arequipa/Peru). Mestre em Direito Civil (Universidad San Agustín de Arequipa/Peru). Juiz Especializado em Direito Penal (Arequipa/Peru).
**
Do utor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/ltalia). Mestre em Direito Púb ico (UNISINOS). Professor de Direito Constitucional da Faculdade Meridional (IMED). Membro Fundador e Pesquisador do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ). Membro da Italian Soclety for Law and L/'terature(ISLL). E-m ail: andre<0ihj.org.br.
1
Cf. PENA FARTÁN. Saúl. Psicoanálisis de Ia Corrupción. Lima: Pe sa, 2003, p. 187.
72
O I M A G I N Á R I O J U R Í D I C O N O R O M A N C E ' G R A N D E S M I R A D A S'
que náo pode conceber um país capaz de ser governado dentro da legalidade.2 Nesta medida, a corrupção adquire estatuto ontológico, e os honestos desejos de corrigi-la convertem-se em uma canalhice (manobra, ardil), uma ingênua ilusão romântica.3Já que, para a proliferação da corrupção, requer-se uma maior escala de infâmia e traição, nada é confiável, e o sistema, pouco a pouco, converte-se no único mecanismo operativo para reprimir uma sociedade formada por facínoras. No imaginário social dos “treteiros”, todos vivemos em um cenário canalha, que exige um artífice perverso que interaja no alto da pirâmide como o reflexo do que há de mais polido nas elites políticas, econômicas e militares do Peru.4Este demiurgo corruptor era representado, neste momento, por Vladimiro Montesi nos, que se encarregava de classificar as pessoas como variedades exóticas de in setos, estabelecia cumplicidades pagas através de favoritismo econômico-político e apoiava a transgressão da lei através de suporte fantasmático do discurso oficial do regime.5 Este tipo de autoritarismo implicava a elevação da infâmia a níveis insuspeitados e à utilização da extorsão como mecanismo regular de manipulação, por que, para o grande demiurgo, todos os seres humanos eram latrinas dissimuladas, armazéns dos essenciais prazeres soterradosy mendigos com modos, a respeito dos quais somente era necessário escavar um pouco para revelar sua verdadeira aparência e cujo asco original apenas podia ser visto nos refletores de uma tela.6 Mas o que determinou o imaginário social da corrupção da década passada? Em princípio, cabe notar que, para Manuel Antonio Baeza, os imaginários so ciais são múltiplas e variadas construções mentais compartilhadas de significância prática do mundo e destinadas à atribuição de sentido existencial.7No caso con creto peruano, resulta paradoxal que a edificação do referido imaginário tenha se efetuado com a base da desconfiança e da destruição moral do outro, isto é, como se o cenário antes descrito da corrupção houvesse propiciado o nascimento de uma construção mental de uma cidadania canalha e envilecedora. Esta situação distópica estende-se ao contexto jurídico, considerado por Montesinos como uma máquina, um quebra-cabeça armado à medida das 2 3 4 5 6 7
UBILLUZ. Juan Carios. Nuevos Súbditos. Cinismo y perversión en la sociedad contemporânea. Uma: Instituto de Estúdio s Peruanos, 2C06, p. 44. ld., ibid., p. 44. Cf. JOCH AMO W1TZ , Luis. Vladimiro Conversando con el Doctor. E xpedien te I. Lima: Comercio, 2002, p. 325. Cf. UBILLUZ. op. cit., p. 46. Cf. CUETO, Aíonso. Grandes Miradas. Lima: Peisa, 2C03, p. 328. Cf. BAEZA. Manuel An tonio . Jmag/narios Sociales. Apu ntes para la discusiónteórica y metodológica. Concepción: Unlversidad d e Con cepc ión, 2003, p. 20.
73
DIREITO E LITERATURA
circunstâncias,8que deve servir igualmente para satisfazer às necessidades do justiciável “treteiro”, acostumado com a extralegalidade da corrupção. As conexões entre imaginário coletivo e imaginário jurídico se revelaram, então, diretamente proporcionais e, com tal propósito, iniciou-se um processo de reforma no sistema de administração da justiça, dirigido para construir um novo esquema mental, mais propício ao govemo da época. O programa começou por mesclar os problemas de uma urgente moderniza ção administrativa com os da reforma jurisdicional. Criaram-se salas especializadas e cortesprovisionales, cujos quadros eram formados pela Comissão Executiva do Poder Judiciário. Isto permitiu organizar um Poder Judiciário vassalo e mu tável de acordo com os caprichos do poder político. Tanto é assim que, do Ser viço de Inteligência Nacional, era que saiam redigidas as decisões dos casos mais importantes relacionados com o narcotráfico, com o poder econômico, com os meios de comunicação, os militares e os líderes políticos.9 Com estes antecedentes, surge o romance de Alonso Cueto, intitulado “Grandes Miradas” (2003), que pretende ser um manifesto contra a amnésia po lítica, encarregado de ressuscitar, em suas páginas marcadas pela raiva fria e uma indignação contagiosa, os aspectos mais sujos e sanguinários dos anos em que Fujimori e Montesinos foram os amos do Peru.10A história do assassinato do juiz probo Guido Pazos serve de pretexto para desalinhavar o novelo da corrupção no país, em um estilo de prosa rápida e articulada, e no qual sua protagonista, Gabriela, é encarregada de vingar a morte de seu noivo, executado pelos seguidores de Montesinos. A corrupção, como se mencionou no início, transforma as iden tidades e converte as pessoas em canalhas; a morte do juiz de instrução provocará em sua noiva uma espécie de envilecimento moral, a frenética busca do assassino e o descobrimento de sua natureza mais selvagem e descontrolada.
AS GRANDES MIRADAS DE GUIDO PAZOS César Humberto Dias Gutíerrez desempenhava a função de Juiz Titular do 24° Juizado Penal e vivia, austeramente, em uma residência no populoso distrito de San Martin de Porres. Em uma declaração publicada na revista Caretas, no 8 9
Cf. JOC HAM OW ITZ. Luis. Vladimiro Conversando con et Doctor. Expediente II. Um a: Com ercio, 2002, p. 187. Cf. DAMM ERT EGO AGUIRRE, Manue . El Estado Mafioso. El Poder Ima gocrá tico en Ias Sociedades Globalizadas. Uma: El Virrey, 2001. p. 95 e 99. 10 Cf. VARGAS LLOSA. Ma rio. Co ntra Ia Amn ésia. Revista "Caretas’', Uma, n° 1806, 2004, p. 2.
74
O I M A G I N Á R I O J U R Í D I C O N O R O M A N C E ' G R A N D E S M I R A D A S'
ano de 1995, este jovem juiz manifestou sua felicidade em dedicar-se em tempo integral à magistratura, afirmou que não se envergonhava do lugar onde vivia e que, apesar da pressão sob a forma de recomendações sobre como tratar alguns casos, considerava que a “justiça era igual para todos”.11 Passado o tempo, no ano 2000, a mesma revista informava que o referido juiz foi encontrado morto em sua residência com um cabo elétrico em tomo do pescoço, enquanto os diários sensacionalistas controlados pelo regime da época contestaram a notícia anunciando, em letras maiúsculas, que Dias Gutiérrez ha via morrido em uma orgia gay. Ainda que não tenha se descoberto os motivos do homicídio, sabia-se que ele estava trabalhando em casos polêmicos de narcotráfi co e de desfalque de fundos de funcionários públicos do alto escalão, em virtude dos quais havia recebido várias ameaças de morte.12 Esta notícia proporcionou os insumos necessários para que o escritor Alonso Cueto construísse a história do romance “Grandes Miradas”, na qual, casual mente, um juiz exemplar, chamada Guido Pazos, é assassinado cruelmente, ao proferir uma decisão desfavorável em um processo penal movido contra pessoas protegidas pelo Sistema de Inteligência Nacional, dirigido por Vladimiro Mon tesinos. Em uma parte do romance, Guido Pazos é descrito como: “Un maniático dei bien. Un ángel con la espada ardiendo por la justicia. Su trabajo como juez le daba empleo a su idealismo. Estaba decidido a entregarse a una causa. Esa causa era la justicia. Las coimas, las influencias, los arreglos lo enardecían como si fueran blasfêmias pronunciadas frente a un devoto”.13 Para Carlos Ramos, por sua vez, o juiz Pazos era uma espécie de Quixote moderno que trava uma batalha solitária contra o sistema, armado unicamente de resolução moral e apego à justiça, o que não o eximirá de sofrer uma morte violenta por se recursar a receber um subomo de Vladimiro Montesinos e de seu cúmplice Alberto Fujimori.14 A presença de um juiz epônimo na literatura peruana provoca um conjunto de reflexões de grande importância, já que o juiz Guido Pazos constitui, talvez, a primeira referência de probidade no imaginário da magistratura deste país. Nesta 11 12 13 14
Cf. TORRES, Jimmy. Haberes de los mag :strado s. En Tela de Juic io. Revista Caretas, Uma, n“ 1384, 1995. Cf. ESCOBAR LA CRUZ. Ramíro. E M ag str ad o Ases:nad o. Revista Caretas, Lima, n° 1628, 2000. Cf. CUETO, Grandes miradas, op. cit., p. 27. Cf. RAMOS NÚNEZ, Car os. La plum a y la ley. Abo gad os y jueces en la narrativa peruana. Lima: Fondo Editorial de la Universidad de Uma, 2007, p. 221.
75
DIREITO E LITERATURA
medida, resultam sintomáticas as palavras pronunciadas pela personagem sobre o papel da magistratura, quando afirma com firmeza que: “Un juzgado no es una oficina, un juez no es un trabajador así no más, es un dios de los hechos, les da su valor, los hace significar algo, un juez es una brújula, alguien a quien los justos dei mundo observan con esperanza, así la gente puede creer que todo lo bueno, el trabajo, el amor, la honestidad, son posibles, que la vida en comunidad, que la sociedad tiene sentido”.15 Esta afirmação do juiz como deus dos fatos e do juiz como bússola remete àquela classificação estabelecida por François Ost, quando define o juiz Hércules como aquele engenheiro social consagrado à busca da unidade do Direito, forta lecendo a coerência narrativa que melhor se adapta ao presente e ao passado e a hierarquia mais satisfatória dos princípios da moral pública compartilhados pela comunidade.16Sob esta perspectiva, o juiz Hércules é o paladino do Direito, do mesmo modo que Guido Pazos é o paladino da justiça. Neste sentido, cabe indagar o que significa a aparição de uma referência judi cial no meio do império da corrupção e qual relação existente entre o juiz Guido Pazos e as demais personagens que inclinaram suas cabeças em sinal de perfeita submissão. O certo é que, a partir do enfoque do pensamento complexo, pode-se advertir que o incremento exponencial da corrupção no panorama peruano, com sua conseqüente rede articulada de contatos em todas as instituições, trouxe consigo, simultaneamente, o desenvolvimento de sofisticadas formas de resistên cia, sendo uma delas precisamente a existência inédita de um cavaleiro no Palácio da Justiça, um sacerdote sem cálice nem auréola, mas que representava a maior exaltação de respeito à justiça. Assim, pode-se dizer que da corrupção moral surgiu um personagem im poluto, disposto a se sacrificar pelos demais em cumprimento ao seu dever, e que agora descansa em uma tum ba desconhecida que ninguém visita.17 Estes são os heróis anônimos que o autor pretende reivindicar, personagens que não cederam ao império da corrupção e que preferiram acusar os criminosos e re sistir às ameaças apesar das conseqüências letais. É por isso que, mesmo após a morte de Guido Pazos, seu olhar permanece inalterável e nos vigia com o equi 15 Cf. CUETO , Grandes miradas, op. cit., p. 27. 16 Ver OST François. Júpiter, Hércu es, Hermes. Tres Mod e os de Juez. Doxa - Cuadernos de Filosofia dei Derecho, Alicante, n° 14, Universidad de Alicante, 1993, p. 180-181. 17 Cf. CUETO , Alon so. Ley Muer ta. Entrevista. Revista Caretas, Lima, n° 1.789, 2003, p. 1.
76
O I M A G I N Á R I O J U R Í D I C O N O R O M A N C E ' G R A N D E S M I R A D A S'
líbrio de quem perdeu tudo, mas ao mesmo tempo exige uma justiça hercúlea igual de todos nós.
GABRIELA, AS BORBOLETAS EXIGEM VINGANÇA Na adaptação do romance para o cinema - cujo título é “Mariposa Negra” e foi realizado pelo cineasta peruano Francisco Lombardi logo após a morte de Guido, há uma cena na qual Gabriela encontra mortas todas as borboletas que ambos haviam criado para soltarem no dia do seu casamento. Esta imagem esmagadora, de certa forma, permite que Gabriela compreenda que seu mundo de cristal tinha desmoronado, que Guido, na realidade, fora um homem desam parado em um mundo governado pela corrupção e que sua missão consistia em salvá-lo da guerra moral que ele havia iniciado.18 Para o autor, o romance conta a viagem de uma mulher tranqüila para o mal que floresce até convertê-la em uma pessoa violenta, destrutiva e sedutora, isto em um processo de erotização e tanatização.19Gabriela é essa mulher-menina no início da obra e, depois, aquela mulher-assassina que planeja a morte de Vladi miro Montesinos, por meio de um plano onírico e, contraditoriamente, efetivo. Para isso, ingressa em uma agência de secretárias que se encarrega de proporcionar meninas para os funcionários do regime e, nesta situação, espera a oportunidade de vingar seu noivo Guido. É interessante, porém, que na cabeça de Gabriela a justiça e o castigo são ideias vagas.20Apesar disso, ela empreende um caminho de degeneração moral sem retorno, como se, para atuar de acordo com seu novo papel de assassina, devesse se imbuir de todas as artimanhas de seus inimigos e revestir-se de uma pele mais curtida, de um perfil mais profissional e de armas mais letais que a simples invocação da lei. Nesta dimensão, Gabriela autoproclama-se uma borboleta da vingança, um anjo destruidor da corrupção, da reivindicaçãopost mortem de Guido Pazos, e vaticina o cenário de um mundo renovado, porém ao preço da própria vida. Aparente mente, a recorrência à vingança por parte de Gabriela torna-se uma nítida renúncia à justiça divina, à justiça terrena e, também, à justiça midiática, que difamou a ima gem de seu noivo ao escrever que sua morte se deu em face de um problema entre 18 ld., Grandes m iradas, op. cit., p. 79. 19 Cf. CUETO, Alonso. Las Grandes Miradas de AJonso Cueto. Entrevista de M*. Anton ieta Flores Astorga. Gaceta Universitária, 17 de outubro de 2005, p. 23. 20 ld.. Grandes m iradas, op. cit., p. 166.
77
DIREITO E LITERATURA
homossexuais. Lamentavelmente, o caminho escolhido por Gabriela demonstraria, de forma definitiva, a concepção defendida por Montesinos de que todo ser huma no é essencialmente corruptível e comprável, porque inclusive ela deverá recorrer à mercantilização do sexo para ascender à cúpula da corrupção. No entanto, a única diferença que Gabriela percebe em relação ao próprio comportamento é que seu propósito está sustentado no exemplo de Guido, de tal maneira que a vida de uma pessoa justa poderia salvar as gerações futuras e, consequentemente, servir de consciência para o surgimento de um ordenamento mais transparente e democrático, conforme revela quando aponta que: “Yo creo que Guido con lo que hizo, con lo que resistió, o sea con ese poquito que aguantó [...] yo creo que ayudó a cambiar las cosas, o sea yo creo que quien sea, quien sea que resiste un poco, en cualquier sitio, o sea el que se niega a aceptar la mugre que alguien le impone, ese tipo es el que ha cambiado o está cambiando algo, o sea es el que nos salva un poco”.21 A borboleta negra olhou de frente a violência e se confrontou com o olhar perverso do poder.
OS NOVOS IMAGINÁRIOS DA JUSTIÇA Para Cornelius Castoriadis, as instituições somente podem existir em grau simbólico e, por isso, constituem uma rede. No caso concreto do Poder Judiciário do regime fiijimorista, como explicitado através de todo o romance, estimulavam-se corruptelas e tramas inverossímeis que tornavam impossível a subsistência de um juiz probo no meio de uma corrupção de larga tradição no Estado. Toda via, paralelamente a esta posição, nascia uma atitude oposta, que buscava desen volver uma prática de governo honesta e eficiente;22 uma amostra que, no nível da magistratura, estava simbolizada no juiz Guido Pazos e, em seu referente real, César Diaz Gutiérrez, que são os prolegômenos de um novo imaginário jurídico, amparado no Estado Democrático de Direito. Este renovado imaginário deve terminar de aniquilar os resquícios da disto21 ld., ibid ., p. 326. 22 Cf. ZAPATA, An ton io. La Co rrup ció n en e! Fujimorism o. In: PORTOCARRERO MAJSCH, Felipe (Ed.). El Pacto Infame. Estúdios sobre la corrupc ión en el Perú. Uma: Red para e Desarro lo de las Ce nc ias Soc iales en el Perú, 2C05, p. 268.
78
O I M A G I N Á R I O J U R Í D I C O N O R O M A N C E ' G R A N D E S M I R A D A S'
pia da ilegalidade e os referenciais da crioulada da corrupção. Os novos juizes, conscientes dos perigos implicados no cargo, devem contribuir para a construção social deste futuro cenário. Somente assim se poderá ressarcir a dívida moral com pessoas como Guido Pazos, que lutaram incansavelmente por uma sociedade lim pa, para as pessoas que acreditam no bem, de maneira que a vida em comunidade recupere o sentido. A guerra simbólica começou sua tarefa, e é missão de todos reforçar o paradigma da democracia, salvaguardar a justiça da canalhice e livrar o mundo do canibalismo jurídico, do reino da infâmia e dos anos de tortura da década passada. O desmonte ideológico do imaginário da corrupção resulta, por sua vez, no desenvolvimento da utopia da democracia real, já que é somente a partir da invenção deste espaço que, na sociedade, se dá a representação de ela ter sido fundada por si mesma, por sua vontade livremente expressa e auspiciadora de sua ordem, sendo, consequentemente, a democracia um espaço social a ser reinven tado.23O novo imaginário jurídico também compreende a utopia de uma justiça democrática e igualitária. A construção desta ideia foi iniciada por personagens como Guido Pazos e compete a seus sucessores continuar pela abertura imaginá ria deixada por aquelas pessoas que fizeram com que nós estejamos vivos e que possamos sonhar agora, com um mundo melhor, mais justo e, talvez, por algum instante, simplesmente em plena harmonia com o próximo. Somente assim se poderá dizer que a imaginação, por fim, conseguiu dobrar o poder da corrupção.
23 Cf. BRACKO, Bronislaw. Los Imaginários Sociales. Mem órias y esperanzas colectivas. Trad. de P ablo Betesh. Buenos Aires: Nueva Visión, 1984, p. 118.
79
PARTE II
A FICÇÃO DA REALIDADE (BRASILEIRA)
DIREITO E LITERATURA. AS CRÍTICAS DE RUI BARBOSA À REDAÇÃO DO CÓ DIGO CIVIL DE 1916: PROPOSTA DE INVENTÁRIO DE UM A QUE RE LA BARROCA Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy" "As datas são para o esquecimento, m asfixam os homens no tempo e trazem multiplicadas conotações.
1. INTRODUÇÃO Em dezembro de 1903, Rui Barbosa, citando Joáo de Barros, em excerto prenhe de duvidosa modéstia,2 dirigiu-se aos Senadores da Comissão do Código Civil, a propósito de remendos, observações, senões e impugnações que opunha ao proje to de Clóvis Beviláqua, que então se discutia. Invocando que não desejara de início a tarefa, mas que uma vez imposta tornava-se sacerdócio, Rui insistia que a posição para a qual fora designado, naquele contexto, matizava pendência inevitável em terreno escabroso e esmarrido.3As expressões são do jurista baiano, no original. Obcecado com os erros de forma, e enfrentando o revisor do projeto, Dr. Carneiro Ribeiro, de quem fora aluno, e também baiano, Rui ofereceu discurso erudito e implacável, à guisa de uma réplica a correções primeiras que apontara (e que foram pelo Dr. Carneiro Ribeiro rechaçadas), refutando seus contraditores. O presente artigo tem por objetivo, num contexto de estudo das relações en tre direito e literatura, propor inventário de algumas particularidades da querela Pós-doutorado em Direito (Boston/EUA). Doutor e Mestre em Filosofia do Direito e do Estado (PUC/SP). Consultor da União na Advoc acia-Gera da União. Professor do Programa de M estrad o em Dire ito da Universidade Católica de Brasííia (UCB). 1 2
3
BORGES. Jorge Luís. Prólogos, com um prólogo de prólogos. São Paulo: Cia. das Letras, 2010, p. 108. Venha alguém menos ocupado e mais douto do que eu sou, para que emende meus defeitos, os quais bem se podem compensar com o zelo e amor que tenho à Pátria (BARBOSA Rui. Réplica. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e da Saúde, 1953, p. 9). ld.. ibid. , p. 11.
83
DIREITO E LITERATURA
barroca que entáo se desdobrou. Notadamente, ao que consta, e sem que se faça juízo historiográfico de maior profundidade, a preocupação era menos de fundo, e mais de forma, embora, bem entendido, Rui Barbosa possa, naquele contexto, ter avançado com estratégias políticas, que desconhecemos, fazendo-o em nome da pureza gramatical. É a tese de San Tiago Dantas, que o presente trabalho não pretende problematizar. Tem-se pano de fimdo inegavelmente jurídico (a redação de um Código Civil) integrado por elementos de crítica literária (e a posição de Rui não deixa de sê-lo), mediando-se sociedade e literatura.4 Há também ampla gama de refe renciais de retórica,5marcadamente liberal,6 num debate que se arrasta a partir do problema (ou falso problema) do direito na literatura e da literatura no direito.7 No caso presente, tomando-se posição no debate, tem-se avaliação literária do direito, ou da produção normativa, de modo mais preciso. Transita-se em época que coroava espírito burocrático que se fixava desde os tempos coloniais,8num mundo dominado por patriarcas e bacharéis? no qual monarquismo e republicanismo tinham graus superlativos máximos e mínimos, mas que nada diziam, objetivamente.10Admite-se, assim, que não se possa julgar as pessoas fora das épocas em que viveram. Em favor de Rui Barbosa, o benefício do julgamento retrospectivo.
2. AS IMPUGNAÇÕES DE RUI BARBOSA Rui Barbosa iniciou suas imprecações e implicações com uma recolha de generalidades, historiando a situação e as circunstâncias que ensejavam a discussão, atingindo, diretamente, e de modo ríspido, seu contendor, antigo mestre, e que fora responsável pela primeira revisão do texto de Clóvis Beviláqua: Estas explicações acusam e defendem, ao mesmo passo, o meu respeitável mestre. Defendem-lhe a competência das imperfeições da obra. Acusam-lhe a fraqueza 4 5
Cf. WELLECK, René; WARREN, Aus tin. Theory o f Literature. New York: Harcourt Brace, 1970. p. 94 ss. Cf. GERWITZ, Paul, Narr ative and Rheto ric In the Law. In BROOKS, Peter; GERWITZ Brooks. Law s Stor/es. New Haven: Ya e University Press, 1996, p. 2. 6 Cf. BINDER, Guyo ra; WEISBERT, Robert. Literary Crilicisms of Law. New Jersey: Princeton University Press. 2C00, p. 292 ss. 7 Cf. WARD. lan. Law and Literature - Possibilities and Perspectives. Cam bridge: C am bridge University Press, 2004, p . 4. 8 Cf. SCHWARTZ, Stua rt B. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1979. 9 Ver MARTINS, Luís. Patriarcas e Bacharéis. São Paulo: Alam eda, 2C08. 10 Para um contrapo nto, ver NABU CO, Joaqu im. Minha Formação. Be o Horizonte: Itatiaia, 2004.
84
DIREITO E LITERATURA. AS CRÍTICA S DE RUI BARBOSA À REDAÇÀO DO CÓ DIG O CIVIL DE 1916
do mal de sua condescendência. Vê-se que para a revisão cabal lhe não deram vagar. Mas igualmente se chega a saber que o professor Carneiro aceitou as res ponsabilidades do encargo, o que lhe cumpria, era, custasse o que custasse aos seus sentimentos particulares, rejeitá-lo desenganadamente. Dessarte, magoando, talvez, a amizade, serviria, sem dúvida, ao país. Delicadíssima era a situação do mestre, na estreitura em que o seu ilustre discípulo o entalava. Nunca, até então, se cometera a um professor de línguas, profano em coisas jurídicas, a redação de um código civil. Antes que déssemos a futuros codificadores este exemplo, em cuja imitabilidade não creio, sempre se encarregava exclusivamente essa tarefa a sabedores insignes na ciência das leis. Ora, tão alheio delas é o provecto filólogo baiano, que nem sequer lera jamais o Código Filipino. Aliás não se daria o fato de não citar uma só vez as Ordenações, com serem de autoridade clássica entre os clássicos, de cujos excertos lhe transbordam os escritos gramaticais. Apenas de uma feita, agora, na réplica, invoca as Ordenações Afonsinas, mas isso de segunda mão, por confessado empréstimo do vocabulista Morais. Era, logo, por terreno desconhecido que o convidavam a entrar. Faleciam-lhe os conhecimentos peculiares do fraseado jurídico, para dar ao do projeto a devida propriedade. Escasseavam-lhe, com o saber jurídico, as luzes indispensáveis, para entender a linguagem empregada, retificá-la, alterá-la, melhorá-la, substituí-la. Já desse lado, pois, era quase impossibilidade’ o que se lhe requeria.11 A irritação de Rui, num primeiro momento, decorreria do fato de que o Dr. Carneiro Ribeiro era especialista em filologia, e não em cânones; conhecia a língua, a gramática, a sintaxe, mas não o direito civil. O professor baiano não teria nenhuma intimidade com as ordenações do reino. A argumentação de Rui surpreende. É que nada obstante ter criticado o filólogo baiano por desconheci mento do direito, é justamente nas questões de língua que Rui se mostrará mais intransigente. O argumento dá peso a um ponto, mas ataca justamente no ponto que não compõe a premissa. Rui ainda lembrou que ao Dr. Carneiro Ribeiro a comissão não oferecera muito tempo, pelo que a missão não deveria ter sido aceita pelo professor baiano. Não havia tempo para tamanha empreitada. O Dr. Carneiro Ribeiro teria acei tado a incumbência, no entanto, embora reduzido a irrisória ração de tempo, 12
11 BARBOSA, op. cit., p. 21 -22. 12 ld.. ibid.. p. 23.
85
DIREITO E LITERATURA
invocando o amor da pátria e o dever de ser útil;13com o que Rui veementemente discordou: Por amor desse dever, porém, é que, ao contrário, havia de persistir em oferecê-la. À pátria náo se logra servir utilmente senão com a consciência; e esta, ainda su pondo juntos no indivíduo o mais hábil dos escritores e o mais sábio dos juristas, não lhe toleraria o compromisso de rever um código civil à celeridade elétrica de minuto e meio por artigo. Eu não ignorava que, se o douto filólogo baiano se não achasse constrangido a essa improvisação absurda, condescendendo em se meter a repentista, como os poetas de outeiro, em matéria de imenso tomo, outros se riam os frutos de seu concurso.14 Com muita paciência, Rui apresentou simplesmente todas as emendas que o Dr. Carneiro Ribeiro havia anotado ao texto original do código civil que então se discutia. Rui apontou, entre outros, que o filólogo baiano substituíra expressões como em que ela estabelece por em que estabelece ela, ou pelo preamar por pela prea mar, ou certificará as partes por certificará às partes, ou presidir o ato por presidir ao ato, ou ouvido os interessados por ouvidos os interessados, ou lhe é garantido por lhes é garantido, ou tapamento por tapeamento, ou quepagála por que a pagar, ou terá lugar o disposto por observarseá o disposto, ou quando abrirse concurso por quando se abrir concurso, ou os hoteleiros por os hospedeiros, entre tantos outros, inexistentes, ou imperceptíveis, para o leitor comum, isto é, para o destinatário do texto normativo que então se debatia. Também incansável crítico do trabalho da comissão do código, Rui afirmou ter impugnado e criticado quinhentos e vinte e quatro tópicos do texto que então analisava 5. O jurista baiano criticava ao Dr. Ribeiro porquanto o filólogo se dizia defensor da linguagem do texto, porém, no entender de Rui, o professor era tenaz defensor do texto tal como revisado pela comissão parlamentar. É o que se infere da sanguínea passagem que segue: Não foi, portanto, em defesa própria que acudiu o filólogo baiano. Seu pro pósito, seu programa, seu trabalho foram outros: defender a comissão, no que era tão somente de sua lavra, e acusar-me, no que eu escrevera fora do 13 kJ., ibid.. loc. cit. 14 ld., ibid., loc. cit. 15 ld., ibid., p. 46.
86
DIREITO E LITERATURA. AS CRÍTICA S DE RUI BARBOSA À REDAÇÀO DO CÓ DIG O CIVIL DE 1916
substitutivo. Paladino gratuito e espontâneo da comissão na primeira dessas atitudes, espontânea, escusada e gratuitamente se constituía meu adversário pessoal na segunda [...] Nada mais curioso do que a incoerência fundamental do professor Carneiro em seu trabalho. Definindo, no prelúdio, a sua res ponsabilidade, circunscreve-a formalmente às correções de linguagem, que o tempo lhe permitisse’. Mas, em seguida, escrevendo o seu comento, assume a solidariedade mais dedicada com o trabalho da comissão parlamentar. Óbvio é que esta não pedira dispêndio tamanho de abnegação; pois, enquanto ele se consumia devotamente, ao longe, em tecer a apologia filológica da obra dos vinte e um, estes, aqui, pregoavam, de sua parte, uma justificação gloriosa e uma retaliação arrasadora.16 Rui lembrou Eça de Queiroz que no Fradique Mendes afirmara que ninguém sabe escrever, observando que a crítica do escritor português encerrava paradoxo: para Rui o erro do escritor era consenso universal; de fato, escrevia o advogado baiano, não há escritor sem erros?7 Rui observou que os próprios mestres têm extravagâncias, e apoiou a tese com a objurgação de que muitos erros há, em Camões, Sousa, Bernardes, Herculano, Vieira, ou Castilho?* E aproveitava para observar que na gramática do Dr. Carneiro Ribeiro não poucos erros havia.19 Rui não perdoava nenhum deslize, do Dr. Carneiro Ribeiro ou da comissão, com paciência e minudência. Sigo com um exemplo: No art. 577, por exemplo, do seu primeiro projeto, a comissão errara o comple mento do verbo proceder, escrevendo: O proprietário pode obrigar o confinante a proceder com ele a demarcação. O Dr. Carneiro não deu tento do erro, que o projeto por ele revisto mantém no art. 575. Também não deu tino da crase desca bida, no art. 849, § 2o, daquele projeto, às expressões ‘imóvel sujeito à anticrese, que ficou, tal qual no art. 812, § 2Ü, do outro. No art. 671 do primeiro projeto, se dizia sob pretexto de anotá-la, comentá-la ou melhorá-la. O art. 699 do projeto revisto pelo Dr. Carneiro estropia essa frase, dizendo: ‘sob pretexto de anotá-lo, comentar ou melhorar.20
16 17 18 19 20
ld., ld., ld., ld., ld.,
ibid., p. 48. ibid., p. 49. ibid. , loc.cit. ibid ., loc.cit. ibid., p. 52.
87
DIREITO E LITERATURA
Num segundo momento do texto, que Rui denominou de o parlamentar^ fez-se defesa própria, e em causa própria também, da açáo do advogado baiano, em favor da pureza do texto do código, na qualidade de tribuno. Em seguida, no excerto denominado de ojurista , Rui iniciou com um elogio a Clóvis Bevi láqua, fazendo-o em nota de rodapé, e aproveitando para se queixar do fato de que a língua portuguesa era mal tratada nos textos legislativos de entáo: Estas palavras, que aqui transcrevo sem o menor intuito de alusão pessoal ao ilustre professor do Recife, cujo valor sei honrar, levam apenas em pro pósito dar a ver há quanto tempo se sente, entre nós, nas mais altas esferas de nossa educação pátria, esse desprezo do nosso idioma, transparente nas ideias do eminente jurisperito quanto à relevância da forma e da gramática no legislar.21 No entanto, logo algumas páginas à frente, Rui moteja de Clóvis Beviláqua, a quem imputou descaso para com questões de forma, que o advogado baiano provavelmente reputava tão importantes quanto problemas de fundo: As grandes edificações, a que presidem a austeridade e a força, não recebem de seus autores os esmeros da arte. Pelasgos e Ciclopes construíram em tosco, amon toando o granito e o cimento. Assim neste caso. Arquitetando às pressas e em grande, com a preocupação exclusiva das ideias a esse desprezo pela forma, que a meio confessa o Dr. Clóvis no seu quase horror às disputas de gramática’, não admira que o braço rápido e vigoroso do ilustre codificador nos deixasse insossa a alvenaria. O que eu não concebera, é que ele descesse da sua superioridade, para me altercar miudezas, que a glória dos grandes criadores costuma deixar à obscu ridade dos pequenos artistas.22 A propósito de um h> que Clóvis Beviláqua teria observado que Rui deixa ra passar incólume, o advogado baiano defendeu-se, recusando-se a dar a essa bagatela ortográfica as honras de emenda solene, [o] que só explicaria a superstição absoluta da língua, a idolatria da correção no escreverP Num próximo passo, que Rui denominou de o crítico, atacou todos os pon 21 ld., ibid ., p. 82. 22 ld., ibid., p. 85. 23 ld., ibid., p. 87.
88
DIREITO E LITERATURA. AS CRÍTICA S DE RUI BARBOSA À REDAÇÀO DO CÓ DIG O CIVIL DE 1916
tos que julgava inadequados no texto que se discutia. Defendia-se da acusação de que era purista e de que tinha tendência ao gosto arcaico: Náo sou dos que precisem de ser catequizados à verdade científica da evolução dos idiomas. Meu trato dos antigos escritores portugueses não me levou ao fetichismo da antiguidade vernácula, não me converteu em amouco dos vícios do classicismo, não me divorciou dos estudos hodiernos sobre as leis da vida orgânica das línguas.24 Rui se voltou contra cacofonias, assonâncias, ecos; entendia que um Código Civil [havia] de ser obra excepcional, monumento da cultura de sua épocaP Rui emendou, e expôs os motivos das emendas; justificava, assim, o número de no tas.26 No excerto que denominou de o agressor, finalmente, por volta da centésima página do texto, enunciou o plano da obra: (a) observações sobre as observações do Dr. Carneiro; (b) resposta a membro da comissão parlamentar; (c) observa ções sobre a defesa de Clóvis Beviláqua; (d) resposta sobre a lição deportuguês, de José Veríssimo.27 Discutiu, em primeiro lugar, se o caso seria de se referir ao texto do código civil como este código, ou simplesmente, como o código civil. Buscou socorro nas soluções da dogmática alemã, porquanto, logo noprimeiro artigo a expressão alemã éD as Burgerliche Gesetzbuch, o código civil, e não dieses Gesetzbuch, este código.2* Em seguida, entregou-se a acalorada discussão, a propósito da melhor for ma na frase “não está, portanto, ligada ao código a lei preliminar, senão como o proêmio, o preâmbulo, a introdução à obra, que preceden. Não se deveria utilizar, no fecho, a que precede? Em outras palavras, qual o melhor complemento, que precede, ou a que precede? E verberou o jurista baiano, a propósito do imenso problema que lançava: Ambas as formas são gramaticais? São-no ambas as duas. Não mo puderam negar. O verbo preceder tem uma e outra forma: a transitiva e a intransitiva. É pegar de qualquer léxicon, e vê-lo. Tanto me seria lícito dizer: A introdução precede ao livro, como A introdução precede o livro. Logo, não me punha eu com a sintaxe, 24 25 26 27 28
ld., ld., ld., ld., ld.,
ibid., ibid., ibid., ibid. , ibid.,
p. 91-92. p. 92. p. 93. p. 100. p. 103.
89
DIREITO E LITERATURA
escrevendo, A introdução está ligada à obra, a que precede, quanto A introdu ção está ligada à obra, que precede. Não é, por conseguinte, a sintaxe que, neste balanço, me exigia a preposição. De onde vem, logo, a tê-la o meu censor por necessária ? Parece-lhe que, redigindo como eu o fiz, o substantivo obra fará do sujeito à oração do verbo precede, cujo complemento, pelo contrário, deve ser, na intenção do escritor. Bem se diz que, morrendo, e aprendendo. Certamente, para o fàzer complemento indireto, preferida a forma intransitiva do verbo prece der, me era mister a preposição. Mas, se o verbo preceder goza também de outra forma [e isto é inquestionável], que é o que me inibia de adotá-la, forrando-me à escusada preposição? Pois o relativo que, em construções como essa, não exerce notoriamente a função gramatical de indicar, no vocábulo a que sucede, confor me o sentido da oração, ora o agente, ora o objeto da ação verbal?.29 Rui apontou pleonasmo na redação originária do art. 8Qdo projeto que dis punha que a lei nacional da pessoa rege o regime dos bens de casamento. Rui criticou a defesa que o Dr. Carneiro Ribeiro fizera do uso do pleonasmo, porque o filólo go baiano citara Fernão Lopes, no passo guerra guerreada.™ Para Rui, não me foi, pois, novidade a sua guerra guerreada. O trecho alegado pelo meu erudito censor sem indicação do lugar é na Crônica de el-rei D. João I, 2a parte, cap. 30, que se nos oferece. Bem vê que lhe sei os recantos. A este exemplo seria facil aditar muitos outros. Mas já o aduzido pelo meu contraditor não bastava, para lhe evidenciar o engano (...) Bem se está a ver, pois, que em guerra guerreada não havia então pleonasmo. A guerra guerreada contrapunha-se à peleja, à bata lha. Os a quem faleciam meios de pôr o campo, como então se dizia, buscavam na guerra guerreada o desforço ou a defesa.31 Em seguida Rui exemplificou o argumento, relativo a redundâncias inten cionais, com Gil Vicente ( dor dolorosa, remo meu remo, sei muito certo sabido, tão enganados enganos, sou fidalgo afidalgado, gozar o gozo, todo inteiro, prazer alegre, sorretício engano), e com o Padre Antonio Vieira [legitimo direito, universalpara todos, segurança segura, ignorante ignorância, subir para cima, novidade nova, sempre hâ perpétua noite, sair o demôniofora, se repete duas vezes)?1 E rematou: 29 30 31 32
ld. ,ibid ., ld., ibid. , ld., ibid ., ld., ibid..
p. p. p. p.
109-110. 125. 125-126. 131-132.
90
DIREITO E LITERATURA. AS CRÍTICA S DE RUI BARBOSA À REDAÇÀO DO CÓ DIG O CIVIL DE 1916
Já vê o meu respeitável mestre que me náo assustam, nem me repugnam de todos os pleonasmos. Mas porque os bons autores os perpetraram à larga, obedecendo ao tino do seu gênio, à inspiração do seu gosto, ao conselho da sua experiência, concluiremos que à sombra desses se legitimem todos os pleonasmos? que não os haja ridículos, enxacocos, desazados, indefensáveis?33 A irritação com o pleonasmo não foi menos sanguínea do que o aborreci mento com tautologias, a exemplo da passagem do art. 105 da redação originária do código de 16, que disponha que haverá simulação nos atos, quando as partes os tiverem simulado. Rui escrevia que a musa da gramática não conhece entranhas,34 e insistia que o caso decorria de lapso de atenção, de resvalo de pena, e que todo o ju iz de mediana consciência reconheceria para logo no fato um descuido, tanto mais natural quanto esse imenso trabalho de fundir o projeto.35 Rui criticava miríade de problemas: colocação de pronomes, ecos em ão (Rui abominava a construção ê valida a disposição para a criação de uma fundação), ecos em mente (Rui contestava a frase o instrumento do consentimento do casamento integralmente), cacofonias (intrínseca validade), o uso do mas não (contra o que Rui opôs o que denominou de uma bugiganga crítica), o uso do a não, o uso de po r cada, de por tal, de de dote, o uso da expressão pessoa privada, o uso de preferência por, as diferenças entre carecer e necessitar, o uso de datar em, os significados transitivos e intransitivos de retrotrair, o uso de querer a, o uso de afetar, o uso de honorabilidade, o neologismo desvirginamento, entre outros. A propósito do uso da expressão desvirginamento, escreveu Rui, contra o Dr. Carneiro Ribeiro: Por este neologismo quebra lanças o douto filólogo, endossando com ardor a invenção jurídica dos comissários parlamentares. Vai até a tribuna sagrada na Grã-Bretanha o esforçado paladino das aventuras literárias do projeto, à cata de consagrações profanas e religiosas para o uso legislativo do verbo desvirginar. Ousaria eu perguntar reverentemente ao mestre se admite à redação do código civil o verbo parir, abonado no púlpito português com todos os esplendores de eloqüência sacra pelo grande Vieira?36
33 34 35 36
ld.. ibid.. ld.. ibid., ld., ibid., ld.. ibid.,
p. 132-133. p. 134. loc. cit. p. 262.
91
DIREITO E LITERATURA
Alguns exemplos, aqui randomicamente tomados, comprovam um super lativo interesse com a forma, isto é, naquele debate, e naquele contexto. E os exemplos também comprovam que o modo como Rui defendia suas posições qualificavam-no como a mais alta expressão de nossa cultura bacharelesca do início do século passado. Mas esta última observação, no entanto, chega a ser tautológica. Quid?
3. CONCLUSÕES Do ponto de vista de uma abordagem integrada entre direito e literatura, o estudo da réplica que Rui lançou contra o professor Carneiro Ribeiro pode se re velar como campo minado e intrigante para que revelemos dois pontos: um deles ainda pouco problematizado, e outro já banalizado. Quanto a este último, é lugar comum a percepção de que o domínio das técnicas aqui identificadas seja importante instrumento de perfil argumentativo. O problema é de retórica. No que se refere a integração entre direito e literatura no contexto da história das ideias, pode-se tentar apontar na estratégia de Rui uma ética do ornamento barroco, da qual ainda não nos livramos totalmente. Assim, na enigmática passagem de Borges, de fato, as datas são para o es quecimento, mas fixam os homens no tempo e trazem multiplicadas conotações. Os problemas de 1903 já não são os mesmos que hoje enfrentamos. Por isso, as conotações de ontem de nada mais valem. A mera apologia a Rui, de resto triunfante, é conotação que apenas fixa o jurista baiano num tempo em que a forma era o núcleo duro do pensamento, e o fundo, mero mote para o ornamento inútil. E a conclusão, se válida, explica um pouco nossas opções por formulações institucionais bizarras, pouco intuitivas e escravas da superstição institucional.
92
CREONTE, ESTE INCOMPREENDIDO ASPECTOS DO PERSONALISMO NO TRATO DOS ASSUNTOS DE ESTADO NO BRASIL ATUAL Maurício Ramires E todo aquele que acim a d a pátria Coloca seu amigo, eu o terei por nulo. (SÓFOCLES, 4 9 6 A .C . - 4 0 6 A . C . , AnTÍGONA , PALAVRAS DE CREONTE).
INTRODUÇÃO A narrativa de Antígona, cristalizada pelo texto clássico de Sófocles, é bastan te conhecida. Dois irmãos da jovem Antígona, Etéocles e Polinices, morreram. 0 rei de Tebas e tio de Antígona, Creonte, decidiu que Etéocles teria um funeral digno, enquanto o corpo de Polinices seria largado a esmo. Isso porque Polinices era tido por traidor do governo da pólis. Antígona desafiou Creonte, e enterrou ambos os irmãos; por isso, foi condenada à morte.: Muitas foram as interpretações dadas a esse episódio ao longo dos séculos. Aristóteles, na Retórica, apresenta a posição de Antígona como baseada em uma lei natural e comumy da qual todos os homens têm intuição, contrapondo-se à lei particular, que é a lei dos povos, sustentada por Creonte.2François Ost, por sua vez, cita Antígona como símbolo imaginário do direito à resistência contra a tirania da autoridade,3e chega a compará-la às mães da Plaza de Mayo.4Já o jor nalista Paulo Francis via na heroína tebana a “alma feminina devassada em toda sua possibilidade fraterna’.5 1 2 3 4 5
Doutorando em Direito (Lisboa/Portugal). Mestre em Direito Púbüco (UNISINOS). Especalista em Ciências Criminais (PUC/RS). Graduado em Direito (UPF). Juiz de Direito (RS). SÓFOCLES. An tíg on a. Trad. de Donaldo Schuler. Porto Aiegre: L&PM, 1999. ARISTÓTELES. Retórica. 1375a-1373b. OST, François. Con tar a Lei - as fontes do imaginário jurídico. Trad. Paulo Neves. Sáo Leopoldo: Unisinos, 2005, p. 183 ss. ld., ibid ., p. 188. O Estado de S. Paulo, de 30 de maio d e 1991.
93
DIREITO E LITERATURA
É fácil ver que as impressões sobre a obra de Sófocles têm em co mum, nor malmente, a franca preferência pela posição encampada por Antígona. E não é sem razão: a jovem protagonista é o lado mais fraco, mas com a coragem para enfrentar a força da autoridade do tio. Creonte é retratado como um tirano, ávido pelo poder, enquanto sua opositora se entrega à morte e nada pede para si mesma. Sérgio Buarque de Holanda, contudo, sugere - ainda que muito brevemente - um ponto de vista diverso. Para ele, “Creonte encarna a noção abstrata, impes soal da cidade em luta contra essa realidade concreta e tangível da família”.6O au tor brasileiro, que notoriamente simpatiza com a ordem impessoal em oposição àquela do círculo familiar, ainda vislumbra no rei um sentido de auto-sacrifício, geralmente só atribuído à sobrinha: “[Creonte] não age em nome de sua vontade pessoal, mas da suposta vontade geral dos cidadãos, da pátria”.7 O texto que aqui se introduz não pretende ser outra interpretação da tragé dia, e muito menos uma reabilitação do rei tirano. Apenas se quer mostrar, atra vés da pista deixada por Sérgio Buarque, como o imaginário que envolve o exer cício das funções públicas e o trato das questões de Estado, no Brasil, ressente-se do excesso de Antígonas e do déficit de Creontes. Diz-se isso no sentido em que os vínculos pessoais - não apenas de sangue, como também de amizade e clientelismo - tendem a se sobrepor aos interesses comuns, abstratos e intangíveis. O resultado disso é que a ordem privada invade a esfera pública sem maiores cons trangimentos, sendo que a corrupção é apenas um dos subprodutos evidentes e perniciosos dessa relação.
1. O PERSONALISMO TEM HISTÓRIA O QUE DIZEM OS “INTÉRPRETES DO BRASIL” Sérgio Buarque de Holanda começa a obra Raízes do Brasil discorrendo sobre como “a tentativa de implantação da cultura europeia” neste extenso território é o “fato dominante e mais rico em conseqüências” nas origens da sociedade brasileira, e lembrando que é significativo que o Brasil tenha recebido a sua herança de uma nação ibérica.8A seguir, afirma que a solida 6 7 8
HOLAN DA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 141. ld., ibid ., p. 141 ld., ibid., p. 31.
94
CREONTE. ESTE INCOMPREENDIDO
riedade entre os iberos que por aqui aportaram só existia quando havia uma vinculaçáo de sentimentos entre eles, mais do que as relações de interesses.9 Outro “intérprete do Brasil”, Gilberto Freyre, aponta que a origem do poder político no Brasil é a família colonial: “A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador do Brasil, a unida de produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América”.10 E, adiante: “Vivo e absorvente órgão da formação social brasileira, a família colonial reuniu sobre a base econômica da riqueza agrícola e do trabalho escravo uma variedade de funções sociais e econômicas. Inclusive, como já insinuamos, a do mando político: o oligarquismo ou nepotismo que aqui madrugou”.11 É mais uma vez Sérgio Buarque quem conta como as famílias, no período colonial, formavam “repúblicas” praticamente independentes dentro de cada en genho: eram autossuficientes em gêneros alimentícios e serviços de toda ordem. Os lavoureiros orgulhavam-se de só precisar comprar, fora de seus domínios, ferro, sal, pólvora e chumbo.12O poder do paterfamilias nesse ambiente era ilimitado, a ponto de o quadro familiar perseguir os indivíduos até fora do ambiente doméstico, e desenhar, à sua semelhança, o imaginário sobre o exercício da autoridade civil: “Representando, como já se notou acima, o único setor onde o princípio da autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a ideia mais normal do po der, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família”.13 9 10 11 12 13
ld., ibid., p. 39. FREYRE, Gi berto. Ca sa-Gran de e Senzala. 51. ed. São Paulo: Global, 2003, p. 81. ld.. ibid., p. 85. HOL AND A, op. cit., p. 81. ld.. ibid., p. 82.
95
DIREITO E LITERATURA
Realmente, é difícil superestimar o papel simbólico que as relações domésti cas representam nas questões de Estado, no Brasil. É notável, por exemplo, o caso de Getúlio Vargas, que ficou conhecido como p ai dospobres. Já o atual presidente da República é tido como filho do Brasil - ao menos esse é o título de um filme que está em produçáo enquanto este texto é escrito, e que terá a atriz de novelas Glória Pires no papel de Dona Lindu, a mãe de Lula, aquela que, segundo o próprio, “nasceu analfabeta”. Na mesma linha, a máquina publicitária do gover no federal apresenta a ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, como mãe de um programa federal que supostamente deve acelerar o crescimento econômico do país. É digno de estudo o fato de que, quando se quer realçar o protagonismo de algum agente público em alguma obra ou projeto, costumeiramente se recorra a figuras de cunho paternal ou maternal. É a maneira mais evidente de comunicar que alguém teve papel destacado na elaboração disso ou daquilo: ele é o pai de tal coisa, ela é a mãe de tal outra. E isso é tanto assim que frequentemente se perde até o senso do ridículo.14 Também tributária da “invasão do Estado pela família” é a naturalidade com que os indivíduos, por aqui, costumam adquirir vantagens pessoais por inter médio de relações de sangue, afeto ou camaradagem com pessoas vinculadas ao Estado, a ponto de “não compreenderem que uma pessoa, por exercer uma deter minada função pública, deixe de prestar a amigos e parentes favores dependentes de tal função”. 15Para Oliveira Viana, a característica da “psicologia política” do brasileiro é justamente “a incapacidade moral de cada um de nós para resistir às sugestões da amizade e da gratidão, para sobrepor às contingências do personalis mo os grandes interesses sociais”.16 Assim, os laços diretos, pessoa a pessoa, elevam-se por sobre os vínculos so ciais impessoais, como os decorrentes da ordem jurídica, e as regras de convívio pessoal ganham preferência em relação às regras legais. As conseqüências disso são evidentes.
14 Como se já não bastasse o burlesco que é simples men te fazer passar alguém po r mãe de um program a público , o Correio do Povo noticiou, em 8/5/2008, que um senador da base aliada do governo federal, em meio a uma sessão oficial do Congresso Nacional, presenteou a ministra em questão com um colar, em referência ao dia das mães que se comemorava no domingo seguinte. Não era uma homenagem à maternidade reai da ministra (e ela tem uma filha): o parlamentar deixou claro que dava o mimo por ela ser a mãe do PAC. 15 HO LAN DA, op. cit., p. 134. 16 OLIVEIRA VIANA, Francisco José de. Pequenos estudo s de Ps ychotogia social. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, p. 120.
96
CREONTE. ESTE INCOMPREENDIDO
2. NÁO É SÓ A CORRUPÇÃOO ESTADO ATUAL DAS COISAS DE ESTADO Como já foi dito acima, há uma estreita ligação entre o personalismo e a corrupção que por aí campeia. Marcos Otávio Bezerra mostrou, de forma quase cômica, como as relações pessoais são usadas como se fossem justificativas válidas para todo o tipo de malversação de verbas públicas, pois nem sempre os favorecimentos pessoais, de parentes ou de amigos são vistos negativamente por aqueles que os realizam.17 Porém, a corrupção - entendida como a apropriação direta de verbas ou bens públicos com interesse de locupletamento - é apenas a mais vistosa conseqüência do personalismo. É tão visível e tão evidentemente ruinosa que não se vai, aqui, dedicar muito espaço a ela. A intenção é mais a de revelar outros aspectos da in vasão do público pelo privado que são tomados com maior naturalidade, mas que dizem até mais sobre o verdadeiro caráter do exercício do poder no país. De fato, a triste realidade é que os governantes (em geral) não resistem a usar a estrutura da administração para os compadrios e trocas de favores. Não apenas para o objetivo mais imediato e óbvio do enriquecimento puro e simples, mas também, por exemplo, para a consecução de seu “projeto de poder”. Parte da naturalidade com que se recebe esse tipo de coisa advém do fato de que muitos se deixam levar pela ilusão de que o “governante bom” possa usar o poder sobre a administração para a garantia da “governabilidade” de seu “bom projeto”. É uma espécie de crença no “bom governante”, uma profissão de fé no “povo no poder”. Quanto a isso, é bom lembrar a postura cética de Karl Popper a respeito de um “governo pelo povo”: “Os marxistas ensinaram-nos a pensar não em termos de instituições mas em termos de classes. As classes, contudo, nunca governam, tal como as nações. Os governantes são sempre pessoas determinadas. E, seja qual for a classe a que te nham outrora pertencido, uma vez que sejam governantes, pertencerão à classe governante. Hoje em dia os marxistas não pensam em termos de instituições; depositam as suas esperanças em determinadas personalidades, ou talvez no fato de certas pessoas terem sido outrora proletários - conseqüência da sua crença na exagerada importância das classes e da lealdade de classe”.18 17 BEZERRA. Marcos Otávio. Corrupção - Um estudo sobre pod er pú blico e relações pessoais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995. Dentre tantos exemplos e trechos referentes a isso, pode-se exemplificar com os de p. 23 e 40. 18 POPPER, Karl. Previsão e Profecia nas Ciências Sociais. In: GARDINER, Patrick. Teorias da História. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 19&4, p. 345-346.
97
DIREITO E LITERATURA
A ideia de “bom governo”, cujos fins justificam os meios, náo é mais do que uma confiança na figura do político, oriunda de suas qualificações pessoais. No Brasil recente, Fernando Henrique Cardoso tinha a seu favor a formação acadê mica, que fazia supor que “soubesse o que estava fazendo, em nome do povo”. Já Luís Inácio Lula da Silva conta com a origem pobre, representando a própria clas se operária na posição de comando. Trata-se de nada mais que o crédito ou capital político que, segundo Pierre Bourdieu, é conferido ao governante na forma de crença e de reconhecimento. Ele “deve sua força à confiança que o grupo deposita nele, na fé que tem o grupo de que ele agirá de acordo com seus interesses”.19 Com isso em mente, a administração pública não raro é usada para a reali zação de objetivos pessoais ou de projetos independentes delas próprias e, prin cipalmente, da população. Para ilustrar, vale invocar um dos aspectos, dentre tantos, do uso da máquina pública para a consecução de interesses pessoais: o uso de empresas estatais com interesses partidários e/ou eleitoreiros. É de se recordar, por exemplo, a frase atribuída a Orestes Quércia, à época governador do Estado de São Paulo, quando da eleição de seu então correli gionário Luiz Antônio Fleury Filho, para o mesmo cargo: “Quebrei o Banespa, mas fiz meu sucessor”. A autoria da frase foi negada pelo ex-governador, mas, como disse Luís Roberto Barroso, “o fato real estava acima da retórica”.20 Muito mais recentemente, o escândalo do “mensalão” no governo Lula envolveu pesa das acusações de desvio de dinheiro de estatais como Furnas, Instituto de Res seguros do Brasil (IRB) e Petrobras21 para a compra dos votos necessários para a aprovação, no Congresso Nacional, de projetos de lei considerados importantes pelo Poder Executivo.22 Por sua vez, o esquema instaurado quando da candida tura de Eduardo Azeredo (PSDB) ao governo de Minas Gerais em 1998, um (quase) equivalente ao “mensalão” federal nas hostes oposicionistas, também incluiu (segundo a denúncia oferecida pelo procurador-geral da República) um desvio de R$ 3,5 milhões das estatais COPASA, COMIG e do extinto banco público BEMGE , sem falar na suspeita de irregularidade no repasse de R$ 1,67 19 BOURDIEU apud BEZERRA, op. cit., p. 16. 20 BARROSO, Luís Roberto. O Estado que Nunca Foi e Aspe ctos Constitucionais - Constituição , Ordem Econômica e Agências Reguladoras. Prefácio e Introdução. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito Regulatório - A alternativa participativa e flexível para a administração pública de relações setoriais complexas no estado democrá tico. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 8. 21 O então secretário-geral do PT, Sílvio Pereira, dem itiu-se após a desc oberta de que teria rec ebido um veícuio Land Rover da empresa GDK. vencedora de uma licitação de 90 milhões de dólares junto à estatal do petróleo. 22 Detalhes do caso pod em ser conferidos na decisão do STF que recebeu a denúncia oferecida pelo P rocurador-Geral da República, An tôn io Fernando Souza, publicada no D JU de 09/11/2007 e disponível on line no endereço: chttps:// wvA v.stf.gov.br//arquivo/djEietron!co/DJE_20071108_139 .pdf>, en tre as páginas 70 e 81.
98
CREONTE. ESTE INCOMPREENDIDO
milhão em verbas de publicidade da CEMIG (estatal de energia) para a agência SMPB, do empresário Marcos Valério, durante aquela campanha eleitoral.23 Ainda na série de “variações sobre o mesmo tema”, o vice-governador do Rio Grande do Sul Paulo Feijó revelou uma conversa gravada com o então chefe da Casa-Civil Cezar Busatto na qual este afirmava que empresas estatais e órgãos da administração indireta - como o banco público Banrisul, a companhia de energia CE EE e o departamento de estradas DAER - vêm sendo usados há muitos anos para o financiamento dos partidos que fizeram parte de sucessivas administrações do executivo estadual. Em uma linha de atuação mais ‘ a luz do dia”, o governo Lula nomeou políti cos do PMDB para cargos na Petrobras, como contrapartida explícita pelo apoio (inútil) à proposta de Emenda Constitucional que tentava prorrogar a cobrança da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF). A provi dência fez cair a cotação da empresa na bolsa de valores, ao passo que a privati zada Companhia Vale do Rio Doce ultrapassou, pela primeira vez e por algum tempo, a estatal petrolífera como a maior empresa do país em valor de mercado (posição só recuperada pela Petrobras após o anúncio de descoberta de novos poços de petróleo na tal “camada pré-sal” da costa brasileira). São casos infelizmente comuns de uso da respublica como bem privado,24 e “somente por desaviso homens sérios e comprometidos com o bem público po deriam defender a manutenção desse status quo \ 25
3. UMA SUPERAÇÃO POSSÍVEL - SE O BRASIL NUNCA SERÁ NÓRDICO, TAMBÉM NÃO ESTÁ CONDENADO À BANANICE É preciso, antes de concluir este ensaio, dizer que não se pode propor que os brasileiros abandonem repentinamente o seu personalismo e se tornem frios e impessoais como os europeus do norte. Ninguém pode imaginar que, de uma hora para outra, todos por aqui começassem a se comportar como suecos ou 23 Cf. Folha de S.Paulo, de 25 nov. 2007. 24 É flagrante, em am bos os casos, o desrespeito ao princip io da impessoal dade da administração, e também é notável com o esse desassombro frente às violações da ordem c onstitucional se dá sob o benep lácito da do utrina administrativista tradicional, com seu conceito de discricionariedade. seu apego è "oportunidade" e à “conveniência" de atos com o os de preenchim ento de cargos públicos. Não é desarrazoado pensar na sindicabilidade judicia desse tipo de ato administrativo, a part:r das novas noções a respeito do tema. Este, porém, é assunto para tod o um outro trabalho. 25 BARROSO, op. cit., p. 8.
99
DIREITO E LITERATURA
noruegueses. Tampouco se vai incorporar a concepção de civilização que se tem na Áustria, lugar onde o “cada um é dono de seu nariz” é levado tão a sério que se torna possível que um homem mantenha uma filha presa no porão de casa por décadas, tenha filhos-netos com ela, e nenhum vizinho, parente ou amigo sequer desconfie de algo ou faça perguntas.26 Sérgio Buarque vê a condição de “cordialidade” do brasileiro (relacionada, em sua teoria, com o personalismo das relações sociais e de poder) como um dado “essencial”, de modo que não é possível afastá-la mediante a importação de sistemas alheios e diversos. Em suma, compara a introdução do que chama de “princípios do liberalismo” no Brasil com uma espécie de maquiagem ou disfarce, incapaz de realmente alterar a verdadeira “ordem natural” das coisas: “Poderemos ensaiar a organização de nossa desordem segundo esquemas sábios e de virtude provada, mas há de restar um mundo de essências mais íntimas que, esse, permanecerá sempre intato, irredutível e desdenhoso das invenções humanas. Querer ignorar esse mundo será renunciar ao nosso próprio ritmo espontâneo, à lei do fluxo e do refluxo, por um compasso mecânico e uma har monia falsa”.27 Porém, é o mesmo autor quem aponta para a desnecessidade de se ver essa essência como uma condenação. No fundo, a tese é a de que as formas da socieda de não vão emergir de uma escolha caprichosa de uma elite intelectual que quer implantar nos trópicos um modelo civilizacional setentrional idealizado, mas, a partir das necessidades e características específicas do local, pode-se construir um quadro mais virtuoso: “Já vimos que o Estado, criatura espiritual, opõe-se à ordem natural e a trans cende. Mas também é verdade que essa oposição deve resolver-se em um contra ponto para que o quadro social seja coerente consigo. Há uma única economia possível e superior aos nossos cálculos para compor um todo perfeito de panes tão antagônicas. O espírito não é força normativa, salvo onde pode servir à vida social e onde lhe corresponde”.28
26 A referência, claro, é ao caso Josef Fritzl, sobre o qual se pode ler em qu alquer jornal do m undo datado do mês de maio de 2008. 27 HOL AND A, op. cit., p. 188. 28 ld., ibid ., p. 188.
100
CREONTE. ESTE INCOMPREENDIDO
Há uma possibilidade de síntese, em que as posições contrapostas convivam em coerência. O confronto entre Antígona e Creonte, aqui simbolizado, deve se resolver em dialética. Não por acaso, a interpretação mais famosa da tragédia grega é a feita por Hegel, na Estética. Também para o filósofo alemão, a princesa encarna a lei do sangue e o rei a lei do Estado. Porém, Hegel nota que Antígona é sobrinha de Creonte e noiva de seu filho, Hêmon: ela está ligada à pessoa mesma a quem se opõe. Assim, sendo Creonte - além de rei - também sogro e tio, não pode ser totalmente alheio ao respeito às leis do sangue. Por isso (e aqui está a tese do filósofo), os princípios em conflito são necessariamente insuficientes por si mesmos, pois aquilo contra o qual cada um se rebela lhe é imanente. A solução trágica, pois, só pode se dar com a supressão do que há de unilateral nas posições conflituosas, conciliando-se as insuficiências individuais.29 Então, a ideia é a de que o Estado brasileiro, em que pese o não alheamento natural da população às condições de sua formação, possa sobrepor-se às regras do personalismo. Não se precisa mudar a personalidade do brasileiro. Ainda há quem, por uma leitura enviesada de Max Weber, atribua as mazelas da América Latina ao catolicismo, por exemplo. Esses sugerem que nada há a se fazer por aqui antes que se reproduza uma reforma luterana. Contudo, as próprias na ções ibéricas que nos legaram a religião e o imaginário sociopolítico contornaram quaisquer que fossem os problemas deles decorrentes e construíram sociedades avançadas do ponto de vista das liberdades e prestações públicas. Uma superação é possível, sim, e sem que se precise recomeçar tudo do zero. O direito, nesse contexto, assume papel decisivo, decorrente da necessidade de efetivação dos princípios constitucionais, em especial o da impessoalidade-30O que se quer dizer é que a positivação dos princípios e a nova visão do direito de corrente do neoconstitucionalismo pode ser a oportunidade de realizar a síntese entre a “essência” personalista do brasileiro e os princípios de civilização que a superam. Com isso, não se importa nenhuma outra “carapaça” ou “maquiagem” de sociedade avançada, mas também não se aceita a condição de “república de bananas”. Existem exemplos de fatos virtuosos31que sinalizam que o Brasil pode 29 HEGEL, Geo rg Wilhe lm Friedrich. Cursos de Estética. Trad. de O iver Tolle e Marco Auré io Werle. São Paulo: EDUSP, 2001. v. 2, 2.1. 30 Por princípio da impessoa idade, toma-se aqui o que Maria Sylvia Zanella Di Pietro chama de primeiro sentido do princípio, relacionado com a finalidade pública que deve nortear a atividade administrativa. "Significa", diz a autora, "que a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento" (Dl PIETRO, Maria Zanella. Direito adminis trativo. 19. ed. São Pau o: Atlas. 2C06, p. 85). 31 Para ficar no cam po do d ireito, pode- se citar a crescente intervenção do Judiciá rio nas questões da administração, aumentando o nível de impessoalidade de algumas tomadas de decisão. O Supremo Tribunal Federal, principal-
101
DIREITO E LITERATURA
estar, finalmente, criando o próprio modelo de “civilização tropical” com o qual tantos sonharam e do qual tantos ainda desconfiam.
CONCLUSÃO Não é bom ser exageradamente otimista. Quase todos os problemas do Brasil continuam de pé e muitos problemas novos têm surgido. Contudo, há que se reconhecer que a experiência de redemocratização pós-1988 pode surgir como um tardio mas verdadeiro desbravamento do próprio caminho do país. A cons tituição, se tem problemas, tem igualmente virtudes inegáveis. A começar, ela é caudatária de um movimento que é bastante próprio da realidade nacional, e, ao mesmo tempo em que encerra os princípios demoliberais herdados do norte, concilia-os com aspectos e exigências da terra, positivando um modelo próprio de controle de constitucionalidade e programando uma série de açóes com vistas à resolução de problemas locais. É nesse contexto que deve ser vista a impessoalidade como princípio da nova ordem democrática brasileira. Uma impessoalidade que, como todos os demais princípios da carta, não é a mesma da América do Norte ou da Europa, e sim é parte de uma tentativa própria de civilização e reforço das instituições. A nar rativa teatral aqui invocada, claro, é uma alegoria da proposta que se faz da ne cessidade de compreender mais profundamente que uma das tarefas dessa nova ordem é a de romper com o personalismo, mas de forma diversa das tentativas anteriores, que importavam “fórmulas” estrangeiras, como que vestindo o cabo clo com fantasia de tirolês. Ao contrário, o remate é justamente o de que não há “fórmula” para o desenvolvimento social, e que este será (ou deverá ser) construí do democraticamente. Procurou-se demonstrar como o modelo de Estado brasileiro vem desde sempre viciado pelo personalismo, e que as práticas desse quilate independem dos rostos dos que estão momentaneamente no poder. A adequada gestão do Estado não vai surgir espontaneamente da figura do “bom governante” e, assim, é preciso deixar de lado a crença em um poder centralizado e ilimitado, à espera mente, tem agido onde antes lavava as mãos, e ó inegável sintoma de avanço a postura de ministros nomeados pelo atual governo que decidem contra o Executivo em questões de alta relevância. Além disso, o Ministério Público revolucionou-se de sde 1988, e tem tid o ações destacadas des de as pequen as cidades até os altos escalões da Re pública. Já se mencionou, aqui, a denúncia oferecida pelo procurador-geral contra autoridades outrora figurantes do "núcleo d uro " do governo; vale lembrar, agora, que o agente em questão, Antônio Fernando Souza, também foi nomeado pelo presidente Lula para o cargo que ocupa.
102
CREONTE. ESTE INCOMPREENDIDO
da “bondade dos bons”. A Carta de 1988 aponta sem titubeios, isso sim, para um Estado impessoal, corolário do princípio republicano. É claro que os governantes ad hoc tendem a relutar em ceder poder. Centenas de cargos em uma estatal de primeira linha, por exemplo, representam um ativo de barganha política de que poucos estão dispostos a abrir mão. Porém, é preciso repensar o perfil do Estado brasileiro também a partir desta questão: até que pon to esses cargos, essas estruturas e esse poder estão de fato empregados pelo bem comum? O u estariam mais afetados a um projeto de poder - pessoal ou de um grupo - como vem acontecendo há séculos? É por isso que Creonte, embora seja quem é, é também, de alguma forma, um exemplo de respeito à ordem impessoal e abstrata que faz falta por aqui. Um incompreendido, pois.
103
DIREITO, GÊNERO E LITERATURA - A SUBJETIVIDADE FEM ININA NA PERSPECTIVA CLARICE AN A: OS HORIZONTES DE G.H. E MACABÉA Míriam Coutinho de Faria Alves'
I. NARRATIVA LITERÁRIA E DIREITOS SUBJETIVOS A relação direito e literatura se evidencia na medida da construção ou desconstrução do simbólico, que incide em possibilidades de releituras acerca de um imaginário de direitos presentes no texto literário. A literatura escrita por mu lheres representa uma fonte de análise para o aspecto interdisciplinar de estudos vinculados a essa perspectiva. Na escrita de Clarice Lispector, contextualizamos imaginários sociais que re-configuram identidades femininas advindas de suas narrativas literárias. Indo muito além de encontrar dimensões de direitos ocasionadas em aspec tos descritivos (o direito ou a falta dele na narrativa de histórias e personagens), 0 direito na literatura, enquanto perspectiva teórica, aponta para a construção de um imaginário de direitos nos textos literários, intensificando a compreensão da sociedade e de seus discursos de poder. Considerando o romance de Clarice Lispector, especificamente PSGH,1 como um imaginário literário de direitos subjetivos em que o personagem G.H. consagra visões femininas de direitos transfiguradas na narrativa literária em construções identitárias da subjetividade feminina. Em “A hora da Estrela”, o imaginário clariceano dialoga com a cultura brasileira e com as representações sociais do discurso sobre a mulher nordestina que vive na grande cidade. Dou toranda em Direito Público (Barcelona/Espanha). Mestre em S ociologia (UFS). Especa lista em D ireito Processual (UFSC). Professora do Curso de Direito da Faculdade de Sergipe (FaSe), onde desenvolve pesquisas na área de direito, gênero e literatura. E-mail: miriamfar [email protected] . 1
Utilizaremos a sigla PSGH referente à obra "Paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector.
104
DIREITO. GÊNERO E LITERATURA
“Nascera inteiramente raquítica, herança do sertão - os maus antecedentes de que falei. Com dois anos de idade lhe haviam morrido os pais de febres ruins no sertão de Alagoas, lá onde o diabo perdera as botas. Muito depois fora a Maceió com a tia beata, única parenta sua no mundo. Uma outra vez se lembrava de coisa esquecida...”2 De fato, a narrativa clariceana estabelece formas de interação na qual a possi bilidade de reflexão sobre direitos subjetivos surge a partir de elementos do texto literário. Em primeiro momento, o romance “A hora da estrela” viabiliza a apreensão do processo de criação em torno das representações do nordeste no discurso lite rário, ressaltando aspectos da relação-ficcional entre Rodrigo S. M. com a perso nagem nordestina Macabéa. “Quanto a moça, ela vive num lombo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando. Na verdade - para que mais isso? o seu viver é ralo. Sim. Mas porque estou me sen tindo culpado? E procurando alivar-me do peso de nada ter feito de concreto em benefício da moça”3. A problematização da noção de mulher como sujeito de direitos constrói ou reconstrói visões da mulher nordestina e evidencia as possíveis relações entre o imaginário social e as questões de gênero. A narrativa aponta para paradigmas de representações sociais sobre o nordeste onde se interrelacionam as relações entre ficção e condições sociais de existência. Macabéa, personagem de “A hora da estrela”, alagoana morando no Rio de Janeiro, trabalha como datilografa, é franzina e sonhadora, vive a desorientação de não ser ninguém em meio à urbanidade e ao mundo; vai a uma cartomante que lhe profetiza a felicidade, mas é atropelada por Hans, que dirigia um Mercedes-Benz. A partir da escrita claricena, é possível delinear imaginários sociais sobre a nordestina, uma condição feminina estigmatizada ao tempo em que se pensa nos direitos sociais e subjetivos. Em PSGH, encontramos uma mulher de classe média alta, carioca, que decide arrumar a casa após a saída da empregada Janair e se depara com uma barata saindo 2 3
LISPECTOR, Claric e. A h ora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2006, p. 33. ld.. ibid., p. 25.
105
DIREITO E LITERATURA
do armário do quarto da empregada, o que lhe ocasiona náusea como sintoma que lhe permite avaliar toda sua existência, experimentando o neutro da vida: a sua pró pria alma e angústia existencial, que lhe possibilita a experiência com a linguagem. A análise da estrutura literária tratada por diversos autores da crítica literária, tais como: Therry Eagleton,4 Harold Bloom,5Alfredo Bosi,6 Antonio Cândido,7 entre outros, evoca-nos a noção de mediação de tradição hegeliana abordada tam bém por Lukács8e Goldmann.9Dessa forma, contextualizam-se visões de mundo presentes na relação entre autor, leitor e a estrutura da obra, sendo o texto literá rio um discurso social com todas as suas conotações e peculiaridades simbólicas e hermenêuticas. A lógica relacionai, no dizer de Bourdieu,10também assume caráter funda mental no viés metodológico que nos permite evidenciar construções estéticas e ideológicas socialmente configuradas no texto literário. O pensamento social contemporâneo se mantém presente de forma crucial na relação direito, sociedade e literatura tanto no marco teórico, possibilitando evidenciar as influências e repercussões que a literatura como fenômeno social produz, quanto na apreensão do texto através dos imaginários. Como afirma Goldmann, “a obra literária não é um simples reflexo de uma consciência coletiva real e dada, mas a concretização, num nível de coerência muito elevado, das tendências pró prias de tal ou tal grupo, consciência que se deve conceber como uma realidade dinâmica orientada para certo estado de equilíbrio. No fundo, o que separa neste domínio como em todos os outros, as sociologias marxistas das tendências socio lógicas positivistas, relativistas ou ecléticas, é o feto de ela ver o conceito funda mental não na consciência coletiva real, mas no conceito construído (zugerechnet) de consciência possível, o único que permite a compreensão do primeiro” .11 O fato de o personagem feminino G.H. se separar do mundo (o masculino) e introduzir na trama narrativa toda a sua fragilidade, força e complexidade, leva-nos a refletir sobre um imaginário de direitos intersubjetivos relativos à condi 4 5 6 7 8 9 10 11
EAGLE TON, Terry. A id eo log ia da estétic a. Trad. Ma uro Sá R. Costa. Rio de Jan eiro: Zahar, 1993. BLOOM, Harold. A angústia da influência, crítica. Trad. de Arth ur Nestrovski. Rio de Janeiro: Imago. 1991. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 40. ed. São Paulo: Cultrix, 2002. CÂNDIDO , Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Nacional, 1980. LUKÁCS, Ge org. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: Civi ização Brasileira. 1965. GOLDM AN, Lucien. A sociologia do romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. BOURDIEU, Pierre. Les règles de l’art: génèse et structure du champ littéraire. Paris: Seuil, 1992. GOLDM AN, op. c it, p.18. 106
DIREITO. GÊNERO E LITERATURA
ção feminina que vem à tona num processo de metalinguagem. Isso exige que o leitor seja capaz de sentir esse pathos ao tempo em que os estereótipos de gênero se configuram em busca de uma individualidade, que almeja se constituir nos horizontes de Macabéa e G.H.
II. G.H. E MACABÉA: A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE DIREITOS A relação entre direito e literatura como prática interpretativa permite inci dir desde o particular (o texto literário) até o geral (abordagem nas relações de gênero, direito e literatura). A identidade fragmentada de G.H. e sua inquietude surgem muito próximas da desordem pessoal e da dificuldade da mulher em se concretizar como persona. “Portanto, se enquanto personagem da visão G.H. caminha rumo ao oposto de si mesma, na medida em que seu percurso parte do não ser (o ser que é cópia, citação, paródia, simulacro) para dirigir-se ao reino por excelência do Ser, o qual arrebenta o seu gesso interno, transformando em carne a pedra em que se havia convertido, enquanto narradora, o percurso de G.H. é o mesmo, pois essa reali dade indizível, que, no entanto, passional e apaixonadamente ela não abre mão de dizer, só pode ser expressa de modo negativo, ou seja, por meio daquilo que ela não é: os sentimentos, os atributos, os valores humanos e sobretudo a linguagem e a forma. Assim, o processo narrativo faz-se ao avesso, configurando uma espécie de anti romance, que por sua vez, parece pedir um antileitor: como é constituído, ao longo da obra, o leitor segundo G.H.?”12 “É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo. Até agora achar-me era já ter ideia de pessoa e nela engastar: nessa pessoa organizada eu me encarnava, e nem mesmo sentia o grande esforço de construção que era viver. A ideia de que eu fazia de pessoa vinha de minha terceira perna, daquela que me plantava no chão. Mas e agora? Estarei mais livre?”13 12 A MA RAL , Emilla. O leitor segundo C .H.: uma análise do romance " A paixão se gundo G .H." de Clarice Lispector. Cotia: Ate iê, 2005, p. 46. 13 LISPECTOR. A pa ixã o segund o G.H., op. cit., p. 12.
107
DIREITO E LITERATURA
“Como se explica que o meu maior medo seja em relação: a ser? E no entanto não há outro caminho. Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo? Como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra-como se antes eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal desorganização?”14 Esses questionamentos clariceanos se involucram com a condição feminina na sociedade brasileira se pensarmos nos direitos das mulheres desde um ponto de vista sociológico, cultural e psicanalítico. Essa reflexão se produz numa racio nalidade do pathosy na sua dimensão com os direitos da personalidade, uma vez que a linguagem literária dos personagens femininos revela de maneira herme nêutica a tensão entre a dignidade do sujeito e sua esfera identitária. “Num procedimento que já conhecemos, o tema da dificuldade de perder-se em seu oposto - a busca de um modo de se achar - o que ao mesmo tempo é reitera do e relativizado, por meio da definição: “Achar-se = ter uma ideia de pessoa orga nizada e nela se engastar, sem sentir o grande esforço de construção que é viver”15 Como disse Ricoeur,16 “comprender el texto es comprender, ante todoy a sí mismo en el texto”. Portanto, a imaginação literária de direitos serve para com preender as formas da subjetividade feminina e a relação da mulher com sua vida e valores individuais e coletivos. Assim, a categoria de que “toda identidade é relacionai”17aponta para a exis tência do “outro” no discurso do sujeito, fazendo-nos identificar, por exemplo, a voz da mulher brasileira na classe média-alta, solteira, baixa, carioca, nordestina, enfim, a presença feminina na sociedade brasileira dos anos 1960/1970. Da narrativa clariceana em “A hora da estrela”, pode-se inferir a questão da pobreza, da migração, condição que ocasiona estranheza em relação ao mundo que cerca Macabéa, expondo a infelicidade e a fragilidade de uma nordestina que migrando para o Rio de Janeiro se identifica como coisa ne nhuma. Sucede que “o outro” também está nas representações do discurso do narrador e da própria Macabéa como coisa insignificante. 14 15 16 17
ld., ibid ., p. 13. AMARAL, op. cit., p. 55. RICOEUR, Paui. Teoria da interpre tação. Lisboa: Edições 70, 1987. DIAZ-DIOCA RETZ, Myriam; ZAVALA. Iris. Breve História Feminista de la Literatura Espanola. Barcelona: Anthropos. 1993.
108
DIREITO. GÊNERO E LITERATURA
“Como mediação de análise, tentamos explicar a necessidade de utilização, por parte de Clarice Lispector, de recursos estéticos associados à fragmentação e à suspensão do realismo. Essa necessidade se deveria a uma mudança fundamen tal. Enquanto na perspectiva realista, o pensamento deve ser ordenado por uma razão lógica, na acepção cartesiana, encontramos em Clarice, o que Adorno cha ma de razão antagônica. Trata-se de uma concepção de pensamento centrada na experiência do conflito e do impasse. Para a razão lógica, a experiência pode ser observada e compreendida linearmente. Para a razão antagônica, por sua vez, a experiência não se sustenta como unidade dotada de sentido. O sujeito se frag menta em face do grau de desumanização a que está exposto”.18 Ao descrever a experiência cotidiana feminina, o batom vermelho de Ma cabéa, o sonho de ser Marylin, a literatura contemporânea exerce novas refle xões e indagações constantes sobre o cotidiano. A pluralidade de vozes, como sucede nos seus textos, a legitimação do status feminino se baseia na própria compreensão da condição feminina que se manifesta por meio de práticas tex tuais sobre o cotidiano. “Outro retrato: nunca recebera presentes. Aliás, não precisava de muita coisa. Mas um dia viu algo que por um leve instante cobiçou: um livro que Seu Rai mundo, dado a literatura, deixara sobre a mesa. O título era Humilhados e Ofen didos. Ficou pensativa. Talvez tivesse pela primeira vez se definido numa classe social. Pensou, pensou e pensou! Chegou a conclusão que na verdade ninguém jamais a ofendera, tudo que acontecia era porque as coisas são assim mesmo e não havia luta possível, para que lutar?”19 O direito de pertencer ao mundo, de encontrar a forma e o destino em ca madas de vida e morte. Esse pathos, enfim, significa uma forma de escritura. Vida que se encontra no dizer da própria vida. Uma reestruturação da fala como forma específica de atuação. A relação com o direito se interpõe como forma de reflexão à luz das cate gorias de gênero na formação identitária das personagens que nos leva a pensar sobre os sujeitos sociais femininos. 18 SCHMIDT, Rita. A ficção de Clarice: nas fronte iras do (im)possível. In: GINZBURG. Jaime. Clarice Lispec tor e a razão An tag ôn ica . Porto Ae gre : Sagra Luzzatto, 2003, p. 87. 19 LISPECTOR. A hora da estrela, op. cit., p. 47.
109
DIREITO E LITERATURA
Por certo, as visões dos personagens e seus direitos podem apresentar-se di luídos e “vagos”, porém, ao modo que váo assumindo sua condição trágica na narrativa apontam na linguagem necessidades identitárias e se tornam visíveis pela sua concretude na busca de autonomia, liberdade e formas expressivas do ser. Nesse sentido, a relação entre direito e literatura nos romances contemplados revelam a construção do sujeito feminino como sujeito de direitos, na medida em que os personagens são afirmados no texto e tomam consciência da própria vida ou dos estereótipos que carregam, estabelecendo uma conexão entre as categorias da identidade (a nordestina, a pobre, a solitária etc.) e as estruturas jurídicas na contemporaneidade. A imaginação feminina como identidade de direitos compartilha de imagens e metáforas com seus leitores, apresentando distintas formas de cidadania. Momentos de entrelinhas, estéticas do vazio, fronteiras muito intimamente tecidas nos âmbitos da ética e dos graus e gradações da subjetividade na produção da racionalidade dos personagens femininos como sujeitos sociais. O direito à subjetividade, de encontrar a forma e o destino, permanece como luta constante, um projeto inacabado. A discursividade é um processo, como dizemos, histórico, de memória, de identificação, que se faz a partir dessa integração com os discur sos alheios. O processo de criação literária permite construções variáveis da identidade, contradizem ou reafirmam a tradição, resgatam da “invisibilidade” a mulher e suas práticas subjetivas. Evidentemente, a crítica literária feminista percorre temas de análise da lin guagem a partir das narrativas literárias que apontam experiências subjetivas, ques tionam o funcionamento da linguagem, os aspectos sociais no processo da criação (como e de que modo escrevem as mulheres), buscam desnudar questões do imagi nário, sociedade e literatura, ou tratam de exclusão de direitos presentes no processo de criação ou do texto literário. Investiga, outrossim, o controle social exercido so bre as escritoras. Não se pode desconsiderar o contexto histórico da ditadura militar brasileira e de repressão política e social em que os livros foram escritos; a “Paixão segundo G.H.”, publicada em 1964, e “A hora da estrela”, em 1977. Dessa forma, a escrita literária clariceana apresenta uma formulação ética na compreensão da subjetividade feminina e seus relatos transbordam além do texto para agregar ao leitor as suas formas de expressão na relação ético-estética. Essa breve discussão, em especial no romance “Paixão segundo G.H.” e em “A hora da estrela”, põe em evidência a natureza coercitiva da estrutura social. 11 0
DIREITO. GÊNERO E LITERATURA
O romance PSGHyescrito em primeira pessoa, afirma em seu momento par ticular a construção da sua própria estética. Formula uma crítica ao estabelecido e a intuição de que é necessário partir em busca de si mesma para se exercer como pessoa, alcançando numa relação com a linguagem o que poderíamos chamar: direito subjetivo das mulheres, que está inserido na própria fala. Em Macabéa, narrador e protagonista se misturam problematizando sobre a mulher de quem se fala. A angústia existencial é configurada numa relação social marcada pelas dinâmicas da classe social, urbanidade e capitalismo. No momento em que descrevemos e recontamos a história dos sujeitos so ciais na prática jurídica em face à argumentação hermenêutica do direito, recria mos em forma narrativa a problemática social numa dinâmica constante entre fa tos sociais e jurídicos, muitas vezes reduzindo a complexidade social a esse saber/ poder pertencente à esfera normativa do poder e, assim, a unidade do sujeito se fragmenta assumindo significados para o sistema jurídico. Essa prática discursiva social impregnada de ideologias positivistas codifica, por assim dizer, a realidade social e reconstrói identidades sociais permitidas nas quais o sujeito feminino muitas vezes permanece à margem da sua própria voz. Os acontecimentos cotidianos são motivacionais na escrita e põem em re levância aspectos da vida feminina outrora despercebidos ou ocultados e que compõem a trama de significações que fazem do sujeito feminino um sujeito em busca de direitos. Esses atos cotidianos funcionam como enigmas que procuram desvendar um processo de tornar significante a vida em feminino. “Enfim, os paradoxos que atravessam o livro colocam em jogo uma autoanálise dialética, em que os sentidos se invertem para serem mais verdadeiramente o que são, para significarem mais verdadeiramente o que significam, pois representam a dualidade dos pontos de vista que a travessia de G.H. implica: o sentido humano versus o não sentido de um mundo anterior, maior e melhor que o humano”.20 A literatura clariceana nos faz perceber esse deslocamento a respeito dos mo dos em que o feminino é vivenciado e manifesto os artefatos argumentativos da condição social. A qualificação pela qual um sujeito feminino é identificado no âmbito jurídico muitas vezes desconstrói e torna amorfa a personalidade femini 20 AMAR AL, op. cit., p. 43.
111
DIREITO E LITERATURA
na ou de outra maneira, aprisiona o sujeito numa ordem jurídica e a sua leitura é externa, desprezando o princípio da individuaçáo que deve ser lido a partir de uma abordagem de gênero. A(s) identidade(s) do homem/mulher no Estado se afasta da identidade sub jetiva, reduzindo a identidade a uma forma jurídica neutra. É nesse sentido que a literatura nos chama atenção para a existência de sujeitos que atuam no sentir e no pensar como fato da existência, aguçando nosso olhar ao feminino e denun ciando o alter ego de uma construção patriarcal. Lispector nos fala profundamen te como ser real e existente, tornando o sentido do feminino uma questão criativa e existencial.
11 2
O TRISTE FIM DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE: DO RÈGNE DE LA LOI AO REINO DOS BRUZUNDANGAS Têmis Limberger Hector Cury SoaresK<
1. INTRODUÇÃO Quais as aproximações possíveis entre o autor do “Triste fim de Policarpo Quaresma” e o princípio da legalidade, no caso dos cargos em comissão? Atribuir-se a Lima Barreto a condição de artista é simplificar, mais que isso se necessita adjetivá-lo, pois foi um artista militante. Para além de produzir obras estetica mente válidas, queria, sobremaneira, produzir material literário que contivesse um tom revolucionário do ponto de vista social. Sua obra atua como veículo de conscientização e de esclarecimento ao pú blico, expondo as mazelas da organização social brasileira. Tem como marcas: o interesse pela realidade brasileira, o interior brasileiro e seu atraso, e a busca de uma linguagem simples e coloquial. Tais marcas são típicas do pré-modernismo, movimento ainda com as características do séc. XIX, de outro, começa a ser preparada a renovação modernista, que se inicia com a semana de arte moderna (1922). Esse período não chega a se constituir um movimento literário. Em suas obras, Lima Barreto registra o preconceito racial e a discriminação social do negro e do mulato. Registra a insurreição anti-Floriano Peixoto e do go verno Mal. Hermes da Fonseca. Retrata a paixão por sua cidade, o Rio de Janeiro, sua gente humilde, as figuras da classe média que lutam desesperadamente por *
Dou tora e Mestre em Direito (Barcelona/Espanha). Mestre em Direito (UFRGS). Professora Titula r do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Promotora de Justiça (RS).
**
Do utora ndo em D ireito (UFRGS). Mestre em D ireito (UNISINOS) Professor Ass:stente da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Advogado (RS).
113
DIREITO E LITERATURA
ascensão social e políticos com sua mania de ostentação, por seu vazio e ganân cia. É crítico da República Velha, da estruturação patrimonialista e centralizada do Estado brasileiro, que influencia diretamente na formação da Administração Pública do Brasil. Tomou seu célebre personagem Policarpo Quaresma no Dom Quixote tropical, defensor da cultura brasileira e contrário a importação de mo delos culturais e políticos. Em que pese a simples transposição da arte ao meio jurídico, não se pode perder de vista que, justamente, toda a arte tende a socializar-se, a epocalizar-se e também a institucionalizar-se, representando, neste caso, uma fotografia dos vícios de um período histórico, o qual tem sua continuidade (ainda) hoje. Lima Barreto é atual ao criticar uma sociedade recortada e importada. Talvez, essa seja a maior proximidade entre a arte e o direito, conforme aproximação de Cabral de Moncada, “O direito faz aí a sua aparição, tal como em outras manifestações do espírito colectivo, como elemento condicionante de disciplina, garantia e directrizes estéticas conquistadas pelos homens”.: Desta forma, o direito incorpora a arte. Esta é uma das missões próprias do artista militante ao perseguir o que Aristóteles denomina reconhecimento, isto é, “fazer passar da ignorância ao co nhecimento, mudando a amizade em ódio ou inversamente nas pessoas voltadas à infelicidade ou ao infortúnio”.2 Numa história que tem seu início em 1893, Policarpo preocupa-se em valori zar as coisas do Brasil: história, geografia, literatura, folclore, música culminando com sua proposta de adotar o tupi-guarani como língua oficial. Por outro lado, expõe toda a insuficiência da importação de modelos à Administração Pública brasileira, ainda reflexo do neocolonialismo que reverbera no Brasil. Visionário, como D om Quixote, Policarpo vê no Brasil o melhor país do mundo, a condição de possibilidade para o crescimento e desenvolvimento. Não bastasse esta obra de Lima Barreto, em “Os Bruzundangas”, denuncia, no prefácio de 1917, a estrutura patrimonial da Bruzundanga, que contamina a Administração Pública por redes de pessoalidade (flagrantemente contrária à estrutura burocrática estatal do reino da lei. Diz assim: “Conheci na Bruzundanga um rapaz (creio que está nas « N o ta s » ), de rabona de sarja e ares de familiar do Santo Officio, mas tresandando a Comte, senão a 1 2
MONCADA, Luís Cabral de. Filosofia do Direito e D o Estado. Coimbra: Coim bra Editora, 2C06, p. 147.0 autor ainda discorre acerca da pr oxim idade entre a escrita dos rom ancistas e a escrita dos juristas (p. 148-149). ARISTÓTELES. A rte Retórica e Arte Poética. São Paulo: Difel, 1964, p. 182.
114
O TR I S T E F I M D O P R I N C Í P I O D A L EG A L I D A DE
anticlericalismo, que, de uma hora para outra, se fez reitor do Asylo de Engeitados, apandilhado com padres e frades, depois de ter arranjado um rico casamento ecclesiástico, afim de vêr se, com apoio da sotaina e do solidéo, se fazia ministro ou mesmo Manda-Chuva da República. Que mayor, náo acham?”3 E, assim, é que se pretende aproximar tão ricas obras ao Direito Adminis trativo. Afinal, é preciso traçar uma crítica ao colonialismo que toma conta do Direito Administrativo brasileiro e que ignora todo o contexto político, social e cultural da Administração Pública brasileira, ambiente distinto do europeu e do norte-americano. Para tal reflexão, toma-se por base o princípio da legalidade as severado pela doutrina brasileira, um produto francês e sua aplicação à realidade histórico-social brasileira, no caso dos cargos em comissão. Será possível perceber que é preciso repensar a legalidade em terrae brasilis. Ora, é necessário adequar esse modelo para se formular uma teorização apro ximada da realidade político-social. O mister é romper com os diuturnos neocolonialismos e, nada melhor, que o apoderamento da obra de Lima Barreto para demonstrar isto. A capacidade humana de produzir obras de arte “transcende e transfere para o mundo algo muito intenso e veemente que estava aprisionado no ser”, no dizer de Hannah Arendt.1Esta ligação entre a obra literária e um tema vinculado ao Direito Administrativo intenta desaprisionar do ser, por meio da capacidade e da criatividade do autor expressar em linguagem simples e acessível, aquilo que dezenas de artigos jurídicos seriam incapazes. Destarte, resgatando a memória e as pequenas revoluções de Lima Barreto em “Triste fim de Policarpo Quaresma” e em “Os Bruzundangas” pretende-se emergir a reflexão e a aproximação de aspectos políticos e sociais brasileiros (es trutura estatal brasileira) do princípio da legalidade (do Direito Administrativo) importado do Direito Francês (século XIX).
2. O SURGIMENTO DA NOVA LÍNGUA DO DIREITO... O RÈGNE D E LA LO I FRANCÊS (OU JE NE REGRETTE RIEN) A Revolução Francesa, na análise de Garcia de Enterría, marca profunda mente o direito público na medida em que estabelece uma nova língua dos di 3 4
BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. Rio de Janeiro: Jacintho R:beiro dos Santos, 1922, p. 4-5. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Univers:tária, 2008, p. 182.
115
DIREITO E LITERATURA
reitos. A velha estrutura social foi rompida em um golpe só. Em seu lugar, surge uma sociedade com uma imagem fluida, livre e aberta.5Até entáo a ordem pú blica, marcadamente sustentada numa superioridade - que era divina - era por séculos e séculos a única conhecida, intentava mudar para um, no qual imperasse a igualdade e a liberdade. Uma estrutura sustentada em leis e em atos. Por isso, desde o seu surgimento, a Revolução Francesa representou uma guerra de pala vras, um novo desenvolvimento do léxico. Desenvolve-se uma nova língua do poder que desaguará numa nova língua do Direito. Desde o primeiro momento da Revolução Francesa, a Assembleia Consti tuinte proclama-se dona do poder constituinte, o que a permite ditar uma nova Constituição; e do poder legislativo, o que a habilita a criar leis. Isso permite uma reconfiguração das relaçóes sociais, a partir das mudanças com a Lei. A declaração dos Direitos do homem e do Cidadão é cardeal na proclamação de um novo direi to, extraindo do mundo das ideias para instalá-lo como existência na ordem social.6 No momento em que se diz que os homens são livres e iguais, pretende-se dizer que deste momento em diante os homens serão livres... Desta forma, estabelece-se uma nova língua (do Direito ao povo). A presença de direitos como liberdade e igualda de, rompe com o passado feudal e de prebendas. Na seara jurídica, resulta evidente o surgimento de uma nova língua dos direitos subjetivos individuais. Na fase anterior, o direito era formado por privilégios, era um Direito consuetudinário, no qual imperavam as relações de pessoalidade. O responsável por ditar - dizer o Direito - era o Rei, que justificava seu poder numa predestinação divina. Para se ter ideia, o grande limite da organização pública era o Direito Natural. Estrutura de emolumentos e prebendas eram comuns nesse período. Ao Direito Público só restava tratar da autoridade e do poder do rei (veneração, obediência e fidelidade dos súditos). A fidelidade que se aproxima da chamada fides (confiança), isto é, mais que um regime legal (inexistente) as relações numa “possível” organização administrativa, no período pré-revolucionário, davam-se por meio da confiança. Dito de outro modo, o fundo das decisões de poder não era afetado por limites jurídicos. Fica remido tão somente, pela prudência do príncipe. Por sua vez, a Revolução destrói inteiramente com essa constituição, em seu lugar, coloca que o poder político é uma autodisposição da sociedade sobre si 5
6 7
ENTERRÍA. Edua rdo Garc ia de. La Lengua de los Derechos. M adr id: A ianza, 1995, p. 26. ld., ibid., p. 30. ld., ibid., p. 100-101.
116
O TR I S T E F I M D O P R I N C Í P I O D A L EG A L I D A DE
mesma, por meio de um pacto social corporificado na Lei. Uma lei geral e igua litária, formulada por um poder legislativo. No lugar dos homens (confiança), passam a mandar as leis. Essa ideia esteve presente nos artigos centrais da Decla ração de 1789 e encontra seu pleno desenvolvimento na Constituição de 1791.8 Desta forma, há uma explícita consagração ao reino da lei.9 Isto significa dizer que todo o órgão público exerce o poder que a Lei definira previamente, na medida fixada pela lei, mediante o procedimento e as condições que a própria lei estabelece. Só a lei manda, aos agentes administrativos cabe o simples cumpri mento da mesma. Pela primeira vez na história humana, todo o aparato de poder objetiva-se de uma maneira abstrata e mecânica. Por óbvio, posteriormente, hou ve a abertura à discricionariedade administrativa, pelos próprios limites da lei. Entretanto, nunca se perdeu a lei como medida. Todavia, na França cria-se um regime administrativo que tem como caracte res centrais um poder administrativo (oriundo do poder executivo), a realização da função administrativa e a empresa da gestão administrativa. 0Ao legislativo cabe fixar princípios gerais e ao executivo regulamentar com base nesses prin cípios gerais. Com o passar do tempo, na França, o sentido da legalidade, com base nas tensões entre soberania popular e separação dos poderes, adquire novos traços. Muito se devendo, inclusive, ao surgimento do Conselho de Estado e a abertura a um direito administrativo baseado no precedente.11 Waline12assevera que a Lei nQ16, de 24 de agosto de 1790, dispunha sobre a organização judiciária e proclamava a separação das funções administrativas e judiciárias, que foi reafirmada com o curso da Revolução Francesa. Houve proi bição legal expressa aos juizes, do conhecimento da matéria administrativa. As reclamações referentes à matéria administrativa não poderiam ser, em nenhum dos casos, encaminhadas aos tribunais. Deveriam ser submetidas ao rei, chefe da administração geral, conforme André de Laubadère.13O contencioso administra 8
9 10 11
12 13
SIEYÈS, Emm anuel Jos eph. A Co ns titu int e Burguesa. Que é o Terceiro Estado? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, p. 58. Para compreender a ideia de nação e a importância da participação do Terceiro Estado na elaboração da Constituição. Por um Decreto da Assembleia de 9-15 de Abri! de 1791, no dorso das moedas devia figurar a legenda Règne de la Loi. No seu anverso, a figura do Rei (id., ibid., p. 127-128). HAURIOU, Mauric e. Précis de d roit ad ministratif et de d roit public. Paris: Daloz, 2002, p. 7-8. O m ode lo francês de legalidade co rrespo nde a um Estado de Dire ito de tipo judicialista, no qua se restringe o papel reservado à lei formal (e portanto ao Parlamento) e se colocam os tribunais na função de eixo principal de defesa dos cidadãos contra o arbítrio administrativo. Cf. CORREIA, José Manuel Sérvulo. Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos. Lisboa: Almedina, 1987, p. 55 e 60. WALIN E, Marce . Traitó Élémentaire de Droit Administratif. 6 . ed. Paris: Recueil Sirey, 1952, p. 45. A referência à Lei ns 7. de 14 de ou tubr o de 1790, com a transcrição do te xto é feita po r LAUBADÈRE, And rè de; VENEZIA, Jean-Claude; GAUDEMET, Yves. Manuel de D roit Administratif. 15. ed. Paris: L.G.D.J., 1995, p. 107. Apesar da diferença de numeração das leis (confrontando-se com a nota anterior), assim está disposto na obra dos autores.
117
DIREITO E LITERATURA
tivo surge, a princípio, para limitar a própria administração internamente. Isso porque a própria Administração era responsável pelo seu controle (conseqüência da separação da Justiça e da Administração). Por outro lado, o contencioso visa va, também, uma redução da legalidade formal em todo o aparato da atuação da Administração Pública.14 Por contencioso administrativo, segundo a definição de Hauriou,15entende-se o conjunto de regras relativas aos litígios organizados que questionam a ativi dade dos administradores públicos. O progresso do direito administrativo francês deveu-se à existência de um contencioso. Essa instituição garantiu o desenvolvi mento do direito propriamente dito, através das garantias de legalidade criadas, pela importância do aspecto moral da conduta dos administradores, dando res paldo às teorias subjetivas. O recurso por excesso de poder é uma criação jurisprudencial devido ao pró prio Conselho de Estado, constituindo-se o principal instrumento de controle da legalidade administrativa, consoante André de Laubadère.16Devido à criação jurisprudencial do recurso por excesso de poder, pode-se organizar a teoria da le galidade, que significa obrigar o poder público à observância da lei e da moralida de administrativa. Opinião diferente tem Bonnard, para quem existe semelhança entre os contenciosos de plena jurisdição e excesso de poder, pois ambos abrigam a violação de um direito subjetivo posto em causa. Existe o direito subjetivo à legalidade dos atos administrativos, e assim a ofensa a esta legalidade constitui não somente uma afronta ao direito objetivo, mas também uma infração a um direito subjetivo. A posição de Bonnard17nunca chegou a fazer escola no direito francês, constituindo-se em doutrina praticamente isolada. Faz-se a crítica dizendo que a di ferença entre um e outro é de fundo, já que no recurso por excesso de poder há a pretensão à restauração da legalidade, enquanto no recurso de plena jurisdição foi violado o próprio direito subjetivo do recorrente, através de um ato do administra dor, conforme posições acima descritas de Waline, Berthèlemy e Hauriou. Constitui-se em requisito para a interposição do primeiro recurso o simples interesse, enquanto ao segundo é a existência de um direito subjetivo do recorrente que 14 ENTERRlA. Edua rdo Garcia de. La lucha contra las inmunidades dei Poder en el derech o administrativos fPoderes discrecionales, poderes de go bierno, p oderes normativos). Madrid: Civitas. 1974, p. 19. 15 HAURIOU. Mauric e. Précis de Droit Ad min istratif et de Droit Public Gónéral. C inquièm e éd ition. Paris: Librairie de La Societédu Recueil, 1903, p. 791 ss. 16 LAUBADÈRE, op. cit., p. 105-107. A resp eito da evolução d o recurso por excesso de poder, os autores fazem uma análise de sua evolução até 1 5 de outubro de 1995. 17 WA LINE, Marcel. Manuel Élémentaire de D roit Administratif. Paris: Recueil Sirey, 1936, p.109 ss.
118
O TR I S T E F I M D O P R I N C Í P I O D A L EG A L I D A DE
se supõe atingido. Os efeitos que advém da decisão do contencioso também são diversos. Assim, somente no caso do último poderá haver condenação pecuniária, em favor do recorrente, já que houve ofensa ao seu direito, por ato administrativo, ao passo que ao simples interessado a decisão não adquire esta extensão. Mesmo o princípio da legalidade no direito francês tem suas características próprias. Num primeiro momento, adotou-se uma prevalência da soberania po pular, a despeito da separação dos poderes, deixando o Administrador Público adstrito às leis e aos princípios gerais do legislador. Já em outro momento a Admi nistração Pública passa a ganhar em autonomia elaborando suas próprias normatizações com base, principalmente, nos arrestos do Conselho de Estado francês. O que se pode observar é que o surgimento do Reino da Lei está vinculado diretamente à superação de uma fase pré-revolucionária na qual impera a vontade do Rei e o Direito consuetudinário. Logo, não havia a garantia de direitos míni mos aos administrados, pois as relações eram essencialmente de fundo pessoal, patriarcal e patrimonial. É tão somente com a Revolução Francesa e o apareci mento do Reino da Lei que garantias como igualdade e liberdade são averbadas numa declaração. A soberania passa a ser exercida por uma gama maior de sujei tos e o Parlamento passa a dizer os regramentos ao Rei. Assim, o passado de predestinação divina e de jusnaturalismo (sentido am plo) desmedido é substituído por leis humanas advindas do exercício da sobera nia popular. Da existência da legalidade é corolário a especialização das funções, portanto, é preciso separar as diferentes funções dos poderes (separação dos po deres). Com isso posto, tem-se a necessidade da organização da Administração Pública, o que possibilita o surgimento - como dito anteriormente - do regime administrativo e, posteriormente, do Conselho de Estado. Desta forma, há um contexto histórico-sociológico que dá um sentido às transformações que ocorreram no Direito francês e que dão novos caracteres ao Direito Público no ocidente. Não obstante, com o passar do tempo - puderam-se observar novos sentidos à legalidade estrita à lei - sempre se adequando a um ambiente histórico-social. Porém, quase que em período correspondente temporalmente, no Brasil, importa-se todo esse aparato do Direito francês, mas não se importa a Revolução francesa. Não se importa a República francesa. Ou seja, colocam-se caracteres do Direito Público francês pós-revolução em uma estrutura feudal, sem o rompimento com esta estrutura. Gera-se uma importação totalmente inadequada e inadaptável, dentro das circunstancias históricas, ao contexto brasileiro. Com efeito, formulam-se pro 119
DIREITO E LITERATURA
blemas relativos à legalidade que estão presentes até os dias de hoje e que foram muito bem criticados por Lima Barreto - ainda no período da República Velha. Um destes casos são os cargos em comissão, os quais ocupam boa parcela da Ad ministração Pública, solapando a legalidade em prol de uma relação calcada na confiança. A despeito de sua previsão constitucional representa firme oposição ao sentido anteriormente tratado da legalidade. Contudo, será visto que estão adequados à realidade histórico-social brasileira e da constituição do Estado bra sileiro, devendo aos juristas um trabalho de adaptação dos discursos importados, aproveitando-se o seu melhor, dentro daquilo que será chamado adiante de tra balho de tradução.
3. A GÊNESE DO BRUZUNDANGA STATE E SUA CONTUMAZ IMPORTAÇÃO (OU NÁO EXISTE PECADO DEBAIXO DO EQUADOR) Não há evolução da França ao Brasil, eis o erro comum nos levantamentos doutrinários acerca da legalidade. Em geral, propõe-se um levantamento histó rico sobre o princípio da legalidade como se, realmente, houvesse uma evolução do instituto do seu surgimento até o Brasil. Não há! Na realidade, existe a impor tação de determinados institutos jurídicos e políticos sem preocupação com sua adequação à realidade histórico-social. São os “restos” de um colonialismo ainda atual no Brasil. Em relação ao Norte (Europa) somos o selvagem, na expressão de Boaventura de Sousa Santos, pois somos o lugar da inferioridade. É impossível uma relação de alteridade em relação ao Sul (países em desenvolvimento, perifé ricos), ele não é plenamente humano.18 O valor é apenas de utilidade. Aos periféricos cabe apenas, como irracionais que são importar e reproduzir, a fim de dar concreção ao aludido valor. Discor rendo mais acerca da importação, é plausível aduzir que basta trasladar algo que, supostamente, é sucesso em um país de primeiro mundo que funcionará aqui e dará uma guinada em na história rumo ao desenvolvimento, à redução da desi gualdade, enfim, à realização de todas as promessas contidas na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Entretanto, é preciso salientar que não se trata de algo novo, na perspectiva das ciências sociais e jurídicas. Em primeiro lugar, importa-se a Corte portuguesa 18 SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura da política. São Paulo: Cortez, 2C06. p. 185-186.
120
O TR I S T E F I M D O P R I N C Í P I O D A L EG A L I D A DE
para o Brasil (entáo colônia portuguesa). A Corte de Portugal foge para o Brasil acossada pela ameaça napoleônica, o que vai influenciar diretamente na formação do Estado brasileiro. Então, surge o primeiro problema, importamos um Estado19 com predomínio da burocracia cuja aristocracia dependia cada vez do emprego público à sua sobrevivência. Dessa forma, a estrutura do Estado brasileiro (em formação) adota caracteres tradicionais do Estado português. Isto evidencia que não se oportuniza um rompimento com a estrutura patrimonial, pelo contrário, a estrutura estatal permite a manutenção do patrimonialismo. O desembarque da família Real portuguesa no Brasil representa, simbolica mente, essa importação de um Estado centralizado e extremamente burocrático.20 Ademais, a herança da Universidade de Coimbra, que formou por muitos anos a elite brasileira porque, diferente das colônias espanholas, inexistiam no Brasil universidades. Com a independência, vai-se a Corte, mas fica o legado português (além, é lógico, da assunção da dívida extema portuguesa junto à Inglaterra). Em outras palavras, o Estado brasileiro é importado, sem nenhuma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida. Ao tratar do tema, José Murilo de Carvalho demonstra a franca influência desta importação na formação das instituições jurídicas brasileiras, principalmen te do Poder Judiciário que era o responsável pela manutenção do poder do rei na Europa e, continua a ser um Poder responsável por manter uma elite colonial. Segundo o referido autor, os magistrados foram completos construtores do Esta do no Império, principalmente, os da geração Coimbrã.21Os magistrados (época em que todos os juizes eram nomeados pelo Ministro da Justiça) circulavam entre os diferentes “cargos públicos”, tendo como ápice de sua carreira (aposentadoria) tornar-se Senador. Para se ter uma ideia, no período do Império, existia no Brasil o Conselho de Estado (homônimo francês que designa o órgão responsável pela jurisdição administrativa), que representava apenas parte de um clube, como designa José
19 No âm bito do Direito Administrativo, o Professor Celso Anto nio Bandeira de Mello critica abertamente a tendência brasileira à importação de mode os eficazes em países centrais, sem o mínimo de adequação às condições do Es tado brasileiro, em inentemente um Estado periférico. A pauta brasileira dependeria do olhar abonatório dos países cêntricos. Ide as políticas, econômicas e jurídicas são importadas de países desenvo vidos, tudo para se atingir a modernização. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Neocolonialismo e Direito Administrativo Brasileiro. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nK17, 2009. Disponível em: < http://www.direitodoestado.com.br/revistas.asp >. Acesso em: 23 maio 2009. 20 Diz Faoro: "O pens amen to poíít co brasileiro, na sua origem , é o pensame nto político por tug uês " (FAORO, Raymundo. A República Inacabada. São Paulo: G obo, 2C07, p. 46). 21 CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem & Teatro de Sombras. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, Relume-Dumará, 1996, p. 87.
121
DIREITO E LITERATURA
Murilo.22 Começava-se como magistrado (diploma de ensino superior), o pró ximo passo era tornar-se deputado provincial, depois - com ajuda da família e da imprensa deputado geral. Da deputação geral, ingressava-se efetivamente no clube e o caminho era o ministério, a Presidência da Província ou o Conselho de Estado. Por fim, a aposentadoria, ou seja, a Senatoria. Nota-se toda a permeabili dade da estrutura Estatal, a qual deveria ser racionalizada, ao patrimonialismo e à pessoalidade. Náo se rompe com a estrutura anterior, perpetua-se. Essa era a principal característica da elite política imperial, qual seja seu es treito relacionamento com a burocracia estatal. Evento típico de países de capi talismo retardatário ou frustrado. Tal relação impediu a superação do paradigma dominante, ou seja, diferente da França que refuta seu passado na pós-revolução, em terrae brasilis é repisado o passado o que permite a estruturação e unificação da elite política. Destarte, dão-se os primeiros delineamentos ao Estado brasi leiro, o que influencia diretamente no modo de fazer da Administração Pública brasileira, que é, na maioria das vezes, dissonante ao apresentado pela doutrina do Direito Administrativo. Como visto, a estruturação do Direito Administrativo na França tendo como carro chefe o princípio da legalidade representa uma linguagem totalmente nova do Direito. A organização estatal a partir da legalidade é prenuncio do fim de um passado patrimonialista e paternalista. Mesmo o surgimento no Direito francês deve ser analisado com uma série de ressalvas, a buscar a contextualização histó rica, sob pena de se incorrer no mito da origem milagrosa.23 A proposta do Lima Barreto transformador aproxima-se perfeitamente da reflexão acerca da formação da Administração Pública brasileira. Nos “Bruzundangas”, há a “nobreza da bruzundangá’ (Capítulo II) representada pelos porta dores de diploma superior com direitos além dos direitos dos outros cidadãos. Relata que o nobre doutor tem prisão especial, mesmo em se tratando dos crimes mais repugnantes, não podendo ser preso como qualquer do povo, a despeito das previsões constitucionais.24A estrutura de privilégios é denunciada, fazendo a relação entre o número de doutores da Buzundanga e os cargos que são criados 22 ld., ibid., p. 113. 23 BINEM BOJM , Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 9. Utiliza a expressão baseado em Prosper W e i. Além disso, elabora uma construção crítica aduzindo que a cada ano se ensina que a origem do Direito Administrativo a partir da L oi de 20 do pluviose do ano VIII, fazendo uma estrita separação entre legislativo e executivo. Como se a administração só ficasse adstrita às leis elaboradas pelo legislativo quando, em verdade, o Direito Administrativo ó uma construção pretoriana (Conseil d'etat). Assim, o executivo tem seus regramentos ditados por construção jurisprudencial do Conselho de Estado. 2^ BARRETO, Os Bruzundangas. op. cit., p. 43.
122
O TR I S T E F I M D O P R I N C Í P I O D A L EG A L I D A DE
para que esses tenham ocupação: “Tendo crescido immensamente o número de doutores, elles, seus Paes, sogros, etc., trataram de reservar o maior número de logares do Estado para elles. Capciosamente, os regulamentos da Bruzundanga vão conseguindo esse cLesideratum*.25 A transformação da Administração Pública em espaço para avanço das rela ções patrimoniais e manutenção ao longo do tempo, demonstra a forma como o avanço da burocratização do Bruzundanga State que é o Estado imaginário de Lima Barreto. Contudo, conforme o autor o Bruzundanga não fica atrás do Bra sil. Aquilo que se denomina a Brunzundanga é o Estado imaginário com os vícios da organização Estatal brasileira. Em função da colonização ibérica (Portugal e Espanha), não é decisivo e intenso o rompimento com a estrutura feudal, logo, com os privilégios hereditários. De outra forma, a formação de Estados coloniza dos por estes países, o princípio liberal das competições individuais é implemen tado sem a abolição da estrutura de privilégios.26 Além disso, a preponderância do prestígio de caracteres pessoais manteve-se nas nações ibéricas. No caso de Portugal, os elementos aristocráticos não são alijados e as formas de vida - e o modo de fazer Estado - têm seu prestígio an tigo conservado. Típico das nações ibéricas se estende às suas colônias, a falta da racionalização da vida, como em algumas nações protestantes; sua estrutura é mantida por alguma espécie de força externa o que, modernamente, é chamado de ditadura militar. Também, a colonização portuguesa permitiu o aprofundamento das estru turas do Estado português, em vista da porosidade da colonização portuguesa. Diferentemente da colonização anglo-saxônica, a qual existia uma distinção entre colonizador e colonizado, a colonização lusitana por sua condição semiperiférica27tem como caractere a identificação com o colonizado (pois é um colonizado na Europa). O colonizador permite a existência de um “outro”, que não há na colonização anglo-saxônica. Isto permite com que os caracteres do Estado portu guês sejam incorporados ao incipiente Estado brasileiro. A estrutura estatal deve conduzir à individualidade. Nessa linha de raciocí nio, a Administração Pública deve inspirar-se na burocracia como o fio condutor dessa abertura à individualidade, na qual cada cidadão é apenas um número e não uma pessoa e sua rede de relações fraternais. O indivíduo deve passar pelo 25 ld.. ibid., p. 43. 26 HOL AND A, Sérgio Buarque de. Raizes do Brasil. São Pau.o: Companhia das Letras, 1995, p. 33. 27 SANTOS. A gramática do tempo..., op. cit., p. 245.
12 3
DIREITO E LITERATURA
processo de adequação das relações familiares (casa) às relações individualistas (rua). Entáo, o administrador público náo pode encontrar num cidadáo um ami go, o cidadáo é um indivíduo portador de direitos em face da Administração, em decorrência de uma lei geral. Em uma relaçáo pessoal, subverte-se a cidadania às relações de pessoalidade, criando-se uma lei particular que dá direitos “especiais” ao Fulano de Tal ou ao Senhor X. Em decorrência, em parte, da herança ibérica, no Brasil, desde tempos re motos impera a forma familiar patriarcal. Não há uma passagem da casa para a rua, em sentido contrário, a rua torna-se casa e as relações pessoais tornam-se regra no mundo. Ou seja, as relações de família, de compadrio, da amizade e do parentesco sobrepõem-se à estrutura burocrática do Estado.28 Por conseqüência destas relações, a estruturação estatal deve ser fundada em privilégios, criando-se uma nobreza que tende a dominar. Aquilo que Lima Barreto referenciou como “nobreza doutorai”, diz ele: “A nobreza doutorai, lá [Bruzundanga], está se fazendo aos poucos irritante e até sendo hereditária. Querem ver? Quando por lá andei, ouvi entre rapazes este cur to diálogo: - Mas foiT reprovado? - Foi. - Como? Pois se é filho do doutor F?”2‘; O Bruzundanga State é responsável, então, pela estruturação desigual e verti cal do Brasil. Encontra-se mais próximo ao ideário de identidade ética e lealdade vertical característicos das corporações de ofício e irmandades religiosas, do que das éticas horizontais que chegaram com o advento do capitalismo ao mundo ocidental e da organização estatal racional.30As relações entre Administração Pú blica e cidadãos são chamadas ao nível das relações pessoais quando, deveriam estar estruturadas com base no domínio das relações impessoais dadas pelas leis e regulamentações gerais. A pessoalidade não obstante possa ser exercida por todos em uma sociedade, hierarquiza a sociedade, pois sempre haverá um nível inferior e nível superior de relações. Expressão que resume isso, cunhada por Ribeiro Couto e aperfeiçoada por Sérgio Buarque de Holanda, é o homem cordial. Isto é, a afamada lhaneza, hospi 28 MATTA, Robe rto da. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma s ociolog ia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 193-194. Sobre a legitimidade do famoso "Sabe com quem está falando?", há o interessante estudo de Alb erto Carlos Alm eida busc ando desvendar o perfi do brasileiro. Utiliza-se de dados para tanto. Indo um pouco além, dir-se-ia que comprov a a tese de R oberto da Matta. Ver ALMEIDA . Alb erto Carlos. A Cabeça d o Brasileiro. São Paulo: Record , 2007. 29 BARRETO, Os Bruzundangas, op. cit., p. 69. 30 ld., ibid., p. 195.
124
O TR I S T E F I M D O P R I N C Í P I O D A L EG A L I D A DE
talidade, generosidade traço definidor do caráter do brasileiro. Náo implicam em civilidade, porém em expressões legítimas de um fundo emotivo ainda preso aos padrões humanos de convívio advindos do meio rural e patriarcal.31Para se “con quistar” algo da Administração Pública no Brasil, não é suficiente uma regulamen tação, é preciso um fundo emotivo e conquistar a amizade do servidor público, algo inimaginável nos padrões europeus.32Na pena de Darcy Ribeiro poder-se falar da expressão “cunhadismo”, o qual considera essencial à formação do povo brasileiro. Trata-se de expressão indígena que consiste no costume de incorporar estranhos à sua comunidade.33Essa incorporação não deixa de asseverar a pessoalidade dentro das relações na sociedade civil, o que reflete na formação do Estado. Como o Major Quaresma, deve-se fazer um levante pela valorização da brasilidade. Policarpo Quaresma preocupa-se em valorizar as coisas do Brasil: história, geografia, literatura, folclore, música culminando com sua proposta de adotar o tupi-guarani como língua oficial. Contudo, isso não o impede de voltar-se contra a estrutura de privilégios da República Velha (estrutura atual, ainda). No Sítio do Sossego, a tentativa de encontrar uma solução para o problema agrário. Acredita que o Brasil é o país da agricultura. Depara-se com a dura realidade de falta de apoio ao pequeno produtor e as intempéries climáticas e naturais (falta de chuva e ataque das saúvas). Além da realidade política local, sustentada nas relações de pessoalidade, em outras palavras, nas relações de troca de favores, de privatização do público. A personagem de Lima Barreto condenou a importação de modelos políticos, institucionais e culturais europeus, apregoando a constituição de sen tido à brasilidade. O princípio da legalidade do direito francês é uma dessas importações, ina dequadas, ao modelo de Administração Pública brasileira. E, como conseqüência da série de laços pessoais, a figura do “cargo em comissão” aumenta em progres são geométrica, sendo uma exceção à legalidade à francesa. Cabe, buscar-se a so lução para a adequação entre o previsto na constituição, com base em um sentido ao princípio da legalidade vinculado à Constituição, mas sem perder de vista os caracteres da Administração Pública brasileira. 31 HO LAN DA , op. cit., p. 147. 32 Ver BEZERRA. Marcos Otávio . Corrupção: um estudo sobre poder público e re/ações pessoais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. 1995. Basta a leitura da apresentação do livro para compreender o périplo do autor para conseguir acesso aos documentos para a feitura de sua dissertação. Documentos que, em principio, deveria ter acesso pelo simples pedido. Para além disso, relata que após conseguir se aproximar dos servidores púbücos con seguiu uma identidade com eles (ingressou no clube) permitindo ter franquia a documentos os quais não deveria sem acompanhamento. 33 RIBEIRO, Darcy. O po vo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2006, p. 72.
12 5
DIREITO E LITERATURA
4. O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE MITIGADA: CONTRA OS DISCURSOS DISSOCIADOS DA REALIDADE (OU QUEM FOI ? QUEM FOI? QUE FALOU NO BOI VOADOR, MANDA PRENDER ESSE BOI, SEJA ESSE BOI O QUE FOR) Nas seções anteriores abordou-se, em primeiro lugar, a formação e contexto histórico do princípio da legalidade em terras francesas, para a compreensão do seu significado. Num segundo momento, apresentou-se o tratamento do princí pio da legalidade - quando importado da França - em terras brasileiras. Neste momento, interessa o estudo das possibilidades de constituição de sentido ao princípio da legalidade no Direito Administrativo brasileiro, diante dos discursos dissociados da realidade. A partir disso, bucar-se-á definir os limites aos cargos em comissão (confiança), para uma maior aproximação da comunidade pohtica - enaltecendo a participação popular - e evitando a preponderância de critérios de pessoalidade no exercício da Administração Pública brasileira. Os dois livros de Lima Barreto citados ao decorrer do texto e aproximados da realidade por meio de uma metáfora, permitem melhor explicitar a temática; tratam da questão dos cargos na Administração Pública. N a Bruzundanga “Não há homem influente que não tenha, pelo menos, trinta parentes occupando car gos do Estado; não há lá político influente que não se julgue com direito a deixar para os seus filhos, netos, sobrinhos, primos, gordas pensões pagas pelo Thezouro da Republica”.34 A atualidade da Bruzundanga é tão grande que basta recorrer às folhas dos periódicos brasileiros para se notar a proximidade entre o Brunzundanga State e o Estado brasileiro.35 Segundo levantamento da Folha de S.Paulo, Estados, Municípios e União promoveram em cinco anos um crescimento dos cargos de confiança (em comissão). O número saltou de 470 mil, no início de 2004, para 621 mil pessoas agora, um aumento de 32%. Ainda na mesma matéria o jornal constatou que a fatia ocupada pelos cargos em comissão no total de servidores na ativa também aumentou nos últimos cinco anos. Isto porque, a velocidade de criação desse tipo de cargo foi maior que o aumento do total de funcionários das administrações diretas, que não incluem estatais e bancos públicos. Nos Estados, a fatia ocupada aumentou de 3% para 6%. Para se ter ideia, eram 115 mil cargos 3L BARRETO, Os Bruzundangas, op. cit., p. 57. 35 FOL HA DE S.PAULO. Sameynega que neto tenha sido contratado po r ato secreto do Senado. Notícia veiculada em 10/06/09. D isponível em: < http://vAvvv1.folha.uol.com.br/fo:ha/brasil/ult96u579311.shtml >. Acesso em: 10/07/09.
126
O TR I S T E F I M D O P R I N C Í P I O D A L EG A L I D A DE
em comissão em 2004 contra 158,8 mil agora (crescimento de 37,4%). O salto de todos os funcionários na ativa foi de 16% (de 2,3 milhões para 2,66 milhões).36 Para contornar essa situação é preciso ser um otimista incurável como o Ma jor Policarpo Quaresma, é preciso identificar os caracteres da identidade cultural brasileira e a partir do modelo consagrado do princípio da legalidade realizar um trabalho de tradução que nos permita a formação de um novo saber do princí pio da legalidade, para repensar a atuação da Administração Pública no Brasil e, principalmente, quais as possibilidades para lidar com as questões vinculadas aos cargos em comissão. O trabalho de tradução aqui tratado é fruto da leitura de Boaventura de Sou sa Santos. Ao abordar a sociologia das ausências e a sociologia das emergências, o sociólogo português, introduz uma reflexão epistemológica que o conduziu ao projeto de pesquisa “a reinvenção da emancipação social”,37 a buscar alternativas à globalização neoliberal. Nesse aspecto, confronta-se com a razão indolente - co nhecimento produzido à consolidação do pensamento liberal - sob duas formas: a razão metonímica e a razão proléptica. Interessa aqui, a crítica à razão metonímica. A razão metonímica tem como obsessão a ideia de totalidade sob a forma da ordem; forja-se uma homogeneidade entre o todo e as partes e estas não têm existência fora da relação com a totalidade.38De outro modo, as possíveis varia ções do movimento não afetam o todo e são vistas como particularidades. Essa razão tem como forma mais acabada a dicotomia, tendo em vista que combina simetria com hierarquia. A primeira relação entre as partes oculta uma relação hierárquica. Daí, não raro dicotomias como conhecimento científico/conheci mento tradicional. Em função disso, não há nada fora da totalidade que mereça ser inteligível e nenhuma das partes pode ser pensada fora da relação com a totalidade. Nessa perspectiva, a razão metonímica é exaustiva (pretensão), em primeiro lugar, e a existência das partes somente se dá dentro da totalidade, ou seja, no exemplo, só há conhecimento tradicional dentro do conhecimento científico.39 O Direito é tomado por essa razão; no caso, o princípio da legalidade não se abre ao conhe cimento tradicional (sociológico) ficando adstrito ao preconizado pela doutrina administrativista que importa o modelo francês aos trópicos. 36 FOLHA DE S.PAULO. Cargos de confiança crescem 32% no pais em cinco anos. Notícia veiculada em 15/02/09. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2009. 37 SANTOS. A gramática do tempo.... op. cit., p. 93. 38 ld.. ibid. , p. 97. 39 ld.. ibid., p. 98.
127
DIREITO E LITERATURA
Há, tradicionalmente, uma prioridade à abordagem ocidental-cêntrica do Direito, a despeito da construção jurídica do espaço doméstico.40 Por conseguin te, não há uma abertura dos espaços tradicionais da legalidade administrativa ao aporte sociológico. Com base nesses pressupostos, realiza-se um trabalho de tra dução que consiste em dois desafios: encontrar os resíduos eurocêntricos do co lonialismo no direito administrativo e revitalizar as possibilidades histórico-culturais constituídas a partir da herança da organização social brasileira. Em outras palavras, conjuga-se a relação hegemônica (paradigma dominante) ao que está além destas relações, relações, esse duplo movimento com co m base na sociologia das ausências (domínio das experiências sociais disponíveis) e na sociologia das emergências (expansão das experiênc experiências ias sociais possíveis).4 Assim, é preciso preciso um novo sentido à prática judicial, que compreenda a existência jurídico-comunitária. Uma prática a implicar em um fundamento axiológico crítico, transcendendo o homem a um sentido materialmente vinculante em que assuma o projeto responsabilizante de sua própria humanidade.4 huma nidade.422 A tradução é feita por meio de uma hermenêutica diatópica. No caso, ocorre a conjugação entre o princípio da legalidade do direito administrativo francês à concepção de legalidade do direito administrativo brasileiro, para buscar so lução ao caso dos cargos em comissão. Um trabalho de tradução que Policarpo Quaresma tentou fazer ao estabelecer concepções culturais contra-hegemônicas. Pretende-se manter vivo o princípio da legalidade no direito brasileiro sem igno rar os aspectos inerentes à organização social brasileira. Nesse Ness e caso, é necessário necessário estabelecer estabelecer uma zona de contato entre o modelo eurocêntrico da legalidade com o modelo m odelo brasileiro brasileiro.. Isto é, é preciso existir existir uma normatização para regular regular a Administração Pública, sob pena pen a de ficarmos à mercê do arbí trio do administrador. Contudo, a prática cultural brasileira demonstra que há uma série de aspectos sociológicos que se opõem frontalmente à legalidade, mormente, à contratação de funcionários por concurso público, gerando um alto número de cargos em comissão (confiança). Não há como romper em favor de um legalismo estrito, seria importar uma concepção inadequada ao contexto brasileiro. A previsão do cargo em comissão está na Constituição da República, no seu artigo 37, 37 , inciso II; não se estabelece estabelece um limite para essas essas nomeações, permitindo permit indo ao Administrador Público a nomeação para, via de regra, conformar a política 40 SANTOS, Boaventura de Sousa Sousa.. A critica crit ica da razão indolente. São Paulo: Cortez, 2005, p. 294. 41 ld., A g ram ática op. cit., p. 120-122. áti ca do tem po..., po ..., 42 NEVES, NEVES, An tôn io Castanheira. O Direito hoje com Que Sentido? Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p. 49-50.
128
O TR T R I S T E F I M D O P R I N C Í P I O D A L EG EG A L I D A DE DE
partidária de alianças ou mesmo para empregar familiares (sentido amplo). Isso demonstra o distanciamen distanciamento to do modelo importado - legalidade legalidade estrita estrita - e sua descontextualização histórica, em função dos caracteres próprios da administra ção no Brasil. Abordando os caracteres do constitucionalismo brasileiro, o Prof. Diogo Fi gueiredo Moreira Neto, reconhece os vícios da sociedade brasileira, apontando perspectivas à modernização do País, com base no direito constitucional (ordem constitucional). constitucional). Afirma Afirma que a Constituição, por po r ser um documento que legitima legitima o poder, deve estar estar necessariamente necessariamente sintonizada com o povo pov o e, portanto, portan to, em per manente construção.43Disso resulta a importância da democracia substancial, a qual amplie o leque de participação. A Constituição do Brasil possibilita a participação popular nas mais diversas esferas decisórias, devendo o Administrador Público confrontar suas escolhas. Não há fundamento para seguir sustentando a supremacia supremacia da administração administração pú p ú blica ou a supremacia dos seus atos no Estado E stado Democrático de Direito, que tem como fim a realização dos direitos das pessoas. Nessa perspectiva, sustenta-se em dois pilares (macroprincípios): direitos do homem e democracia substantiva. Dessa forma, os tradicionais vínculos de legalidade cederam espaço aos novos vínculos de legitimidade legitimidade para a realiza realização ção do Estado Estad o Democrático de Direito. Os Os tradicionais e necessários vínculos de legalidade cederam espaço para a inclusão de novos vínculos de legitimidade - sem os quais não se viabilizaria a sua carac terização como Estado democrático de Direito.44 No raciocínio de Moreira Neto, o direito administrativo enfrenta um câmbio paradigmático da modernidade à pós-mo dernidade. Desta forma, aquilo que trata trata va de simples exercício de um poder constituído requer hoje outros parâmetros, ou seja, antes bastaria ao Administrador Adminis trador Público a investidura legítima; nos no s parâmetros atuais, além da investidura legítima, requer-se o exercício legítimo e o resultado legítimo. Permite-se ao administrado a participação em todo o processo decisório rompendo com a simples dicotomia poder constituinte e poder constituído. constituído. Originariamente, a participação democrática ficava reduzida à escolha dos agentes políticos. Na contemporaneidade, na presença do Estado democrático de Direito e da necessidade do trabalho de tradução parece fora de dúvida que os 43 NETO, Diog o Figueiredo Moreira. Aspectos Jurídicos do Brasi Brasi C ontem porân eo. O Pós-Positivismo Pós-Positivismo Chega ao Bras Brasil. il. Inaugura-se um Co nstituciona lismo de Transição. Transição. Revista Revista Eletrônica sobre a Reforma a Reforma d o Estado, Sa vador, n° 6,2006 , p. 7. Disponível em: < http://vAvw.direitodoestado.com.br http://vAvw.direitodoestado.com.br >. >. Acesso em: 14 jul. 2009. 44 NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Quatro paradigmas do Direito Administrativo pós-moderno: legitimidade, finalidade, eficiência, 2008. eficiência, resultado. Belo H orizonte: Fórum, 2008.
12 9
DIREITO E LITERATURA
problemas políticos atuais demandam novas formas de participação, voltadas ao controle e fiscalização fiscalização da Administração Pública.45Com 5C om efeito, proporciona-se uma maior eficiência da Administração, gerando um u m maior maio r grau de efetividade social. social. A participação deve ser elemento determinante na formação da vontade ad ministrativa, utilizando-se do plebiscito, do referendo, da audiência pública na cogestão. A vontade manifesta, conjugada com a Constituição e protegendo as minorias, deve prevale prevalecer.4 cer.46 N o caso dos Cargos em Comissã Com issão, o, esse é o trabalho trabalho de tradução possível. Nesse sentido, ao dar abertura à participação popular aumenta-se o controle sobre os cunhadismos, sobre a cordialidade, sobre o patriarcalismo, sobre o patrimonialismo da Administração Pública brasileira. Os atos de contratação dos Cargos em Comissão Comiss ão passam a ter controle controle popular, popular, impedindo essa porosidade cega e desmedida que afronta à legalidade. Por certo não há Administração sem os Cargos em Comissão, mas, por certo também, deve haver limites. Por isso, a constatação dos aspectos sociológicos é fundamental para buscar uma zona con tato entre o modelo europeu e o que ocorre no Brasil, para se fazer um trabalho de tradução t radução.. Nessa perspectiva, sob a ótica da Administração Pública, há institutos va riados de participação. Poder-se-ia, de forma exemplificativa, falar na coleta de opinião, no debate público, na audiência pública... Destes, a audiência pública tem lugar de destaque, pois permite a oitiva de diferentes grupos sociais, de dife rentes comunidades, além de garantir o direito dos indivíduos manifestarem-se também. Por Por meio dela, aperfeiçoa-se aperfeiçoa-se a legitimidade das decisões da Administra ção Pública, representando a afirmação do Estado democrático de Direito. Para a melhor concreção do princípio da legalidade, em terras brasileiras, brasileiras, é preciso ter como salvaguar salvaguarda da o comprometimento com a legitimidade.4 legitimidade.4 Contribui ao rompimento com uma razão meramente instrumental da le galidade, em prol de uma substancialização da legitimidade dos atos da Admi nistração Pública. Nessa perspectiva, seria possível dar início a movimentos que aproximassem aproximassem a Sociedade Sociedade Civil do Estado rompendo com a lógica - advinda do do período períod o imperial brasileiro brasileiro - pois a organização da Administração Pública é um clube fechado. Para além além disso, deve-se deve-se abrir e acabar com o clube, aproximandoaproximando 45 NETO. DÍ 09 0 de Figueiredo Moreira. Novas tendências da democracia: Consenso e Direito Público na virada do século - o Caso brasileiro. brasileiro. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador. Instituto Brasileiro de Direito Público, na 13. 2008, p. 10. Disponível em: < http://vAvw.direitodoestado.com.br http://vAvw.direitodoestado.com.br >. >. Acesso em: 14 jul. 2C09. 46 ld., ibid., p. 13. 13. 47 NETO. Diogo de FgueVedo Moreira. Moreira. Mutações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 205.
130
O TR T R I S T E F I M D O P R I N C Í P I O D A L EG EG A L I D A DE DE
-se da pesquisa, a legalidade pode ser mitigada com cargos em comissão, por exemplo, mas, em compensação, o espaço de participação deverá ser maior. No momento em que o indivíduo identificar-se com sua Administração não se terá mais um indivíduo, contudo um cidadão responsável pelo resultado de sua Ad ministração e corresponsável pela legitimidade dos atos dela. Todavia implique em rompimento com o paradigma tradicional de legalida de importando do direito francês, apresenta-se a medida adequada aos quadros da vida no Brasil. Como Policarpo Quaresma é preciso ser um visionário para pensar em solução à Administração Pública no Brasil, como dito pelo Marechal Floriano Peixoto, mas como Quaresma é preciso morrer por um ideal de vida boa, mesmo que à elite unificada, a qual ocupa os quadros da Administração Pública, represente ser visionário.
5. CONSIDER CON SIDERAÇÕ AÇÕES ES FINAIS FINAIS O entrelaçamento do direito com a arte permite adentrar-se a um mundo que é mais bem dito e explicitado pela pena rigorosa do artista. A linguagem do jurista juri sta é, muitas vezes, vezes, técnica e distante daquilo daquil o que possibilitaria possibil itaria uma comu com u nicação adequada com os destinatários. Não é incomum ouvir-se falar sobre que aqueles escrevem acerca do direito, como se fossem membros de uma seita secre ta, em que apenas os iniciados podem compreender. Quando se encontra obras do fôlego de Lima Barreto desvela-se de uma forma crua cru a e direta todo um leque de relações que envolvem envolvem política e direito. O artista militante quer mais, quer que o leitor identifique-se com aquele mundo “fantasioso” das letras e torne a sua obra a condição de possibilidade para trans formação. Longe L onge de fazer uma revolução, revolução, na sua acepção mais íntima, ín tima, quer-se de monstrar a capacidade que qu e uma metáfora m etáfora a partir de uma um a obra de arte enseja uma criação no direito. Distantes dos grandes movimentos de Direito com literatura,48 propôs-se, de uma maneira simples, a criação de um plano de um artigo sobre o direito administrativo,49 administrativo,49 a partir de duas obras de Lima Lim a Barreto (O triste triste fim de Policarpo Quaresma e Bruzundangas) . 48 Consultar CUN HA, Paulo Ferreira Ferreira da. Comunicação e Direito [Coieção Direito & Arte. v. 1], 1], Porto Alegre: Livraria do Advo gado. 2009 2009.. 49 Lição retirada das aula aulass do Ate Pesquisa, realizado, no segu ndo semestre de 2008, ministrad o pela ProfJ ProfJ. Deisy Deisy A te liê da Pesquisa, Ventura, então professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vaie do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS). Hoje a Prof*. Deisy é professora do Instituto de Relações Internacionais da USP, mas continua sua batalha por meio do Blog Direito e Arte - Música e C aricatura (direitoearte.blog.iemonde.fr). emonde.fr). aricatura (direitoearte.blog.i
13 1
DIREITO E LITERATURA
Expôs-se o exercício do princípio da legalidade sem nenhum fetichismo, sempre intercalando textos das obras de Lima Barreto. Num primeiro momento, apresentou-se o modelo importado e sua importância no contexto francês; num segundo momento, veio a vez do contexto histórico brasileiro e a tentativa de adequação do modelo francês. Por fim, com base em conhecimentos de sociolo gia, tentou-se combinar os dois modelos para a formação de um modelo de lega lidade adequado ao contexto brasileiro e adequado para um Estado democrático de Direito. Como visto, o carguismo está presente na prática cotidianizada dos adminis tradores públicos. Contudo, isso implica em flagrante violação ao princípio da legalidade (dentro das coordenadas francesas). Tanto em Policarpo, quanto em Bruzundangas já havia a denúncia desta estrutura social brasileira que influen ciava diretamente na formação dos quadros da burocracia. Entretanto, o modelo importado continuou distante da realidade histórico-social. Denúncia após de núncia, do Império à República Federativa do Brasil, o problema dos Cargos em Comissão (confiança) persistiram, inclusive com previsão constitucional - toda via sem estabelecer uma limitação. A abertura do texto constitucional permitiu ao administrador público refor çar a estrutura originária da formação do Estado brasileiro. Em outras palavras, os cargos continuaram (continuam) sendo uma moeda de troca política e familiar no Brasil. Para combater sugere-se um trabalho de tradução entre o conhecimen to do princípio da legalidade nos moldes francês aos aspectos notados pela socio logia da brasilidade, para a formação de um sentido de princípio da legalidade no direito administrativo adequado ao Estado democrático de Direito forjado pela Constituição Federal de 1988. Desta forma, a solução encontrada foi um maior controle da Administração Pública por meio da participação popular. Isso permitiria a limitação e o controle dos cargos em comissão adotados pelo administrador público. Embora não seja uma solução estanque, dá efetividade social ao princípio da legalidade do direito administrativo. Portanto, ao exibir a estrutura estatal brasileira fora do manto mágico das importações da Europa, permite fazer-se uma pequena revolução - como queria o artista militante Lima Barreto - atacando as estruturas do princípio importado da legalidade e fazendo refletir acerca das possibilidades de se constituir um sen tido ao citado princípio no Brasil.
132
PARTE III
DIREITO COM LITERATURA
AS INQUIETAÇÕES DO DR. DOMITILO’ Carlos Maria Cárcova' Trad. de André Karam Trindade***
Tenho o prazer de apresentar a vocês o Dr. Domitilo Brandão. Estou con vencido de que suas reflexões acerca do tema que nos ocupa serão do maior in teresse de todos e, especialmente, úteis para os fins deste simpósio acadêmico. Deixo-os, então, em sua muito agradável companhia. §§§ Quero agradecer por me permitirem participar desta interlocução. Aprendi muito escutando-os e sinto um pouco de aflição porque minhas considerações, definitivamente, não alcançarão o nível das vossas. Eu não sou um intelectual e nem mesmo um jurista. Sou apenas um juiz, Dr. Domitilo Brandão, servidor da justiça. Pode ser que os breves comentários que me disponho a lhes oferecer con voquem, todavia, a vossa atenção, porque se referem às minhas perplexidades e vicissitudes de funcionário judicial em um caso concreto. Um caso pouco rele vante, diria, se não envolvesse uma vida. Trata-se da morte de Macabéa, atrope *
Este trabalho foi apresentado, em maio de 2009, no Congresso de Direito e Psicanálise, que ocorre todo s os anos na cidade de Curitiba (Brasil), promovido pela Faculdade de Direito da Universidade Federa! do Paraná. Em todos os encontros, desde seu início, o cruzamento discursivo de natureza interdisciplinar, toma como eixo uma obra lite rária. Foram objeto de reflexão obras de Shakespeare, Kafka, Orwell, entre muitos outros autores relevantes. Nesta oportunidad e, o eixo foi constituído por um pequeno romance da consagrada Clarice Lispector, chamado "A hora da estrela", que narra a infeliz e obscura existência de uma jovem nordestina, órfã, que sobrevive precariamente no emprego de auxiíiar de escritório, e seu triste final. O texto procura, a partir desta história, imaginar de que modo um juiz envolvido nas rotinas de sua cotidianidade lidaria com o caso.
**
Do utor em Direito (Buenos A :res/Argentina). Professor Titular de Filosofia do D ireito da Faculdade de Filosofia e Letras e Professor Titular de Teoria Geral do Direito da Facu dade de Direito da Universidade de Buenos Aires (Argentina) Professor visitante de inúmeros Programas de Pós-Graduação em Direito em Univers:dades brasileiras e espanholas. Diretor do Instituto de Investigaciones Jurídicas Ambrosio L. Gioja. Advogado.
** * Do utor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/ltalia). Mestre em D ireito Público (UNISINOS). Professor de D ireito Constitucional da Facu dade Meridional (IMED). Membro Fundador e Pesqu sador do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ). Membro da /ta/ían Soc ietyfor Law and Literature (ISLL). E-mail: [email protected] .
13 5
DIREITO E LITERATURA
lada por um automóvel. Uma pobre jovem nordestina que, talvez (isto é o mais provável), tenha sido vítima de um acidente. De qualquer modo, mesmo que acidental, o fato terá uma qualificação jurí dica: tratar-se-á, provavelmente, de um homicídio culposo. Mas, se as circunstâncias da situação fossem esclarecidas em termos mais preci sos, poderia ocorrer que tal qualificação fosse atenuada (se houvesse ocorrido culpa grave da vítima) ou, eventualmente, agravada caso se considerasse que o responsável atuou com dolo eventual. Isto o faria merecedor de uma pena similar àquela confe rida ao homicídio simples, que pode ser punido com até 20 anos de prisão. Enfim, cabe a mim investigar os fatos e tratar de estabelecer a verdade. Devo confessar que utilizo esta expressão “estabelecer a verdade” porque se trata de um lugar comum, ainda que não me inspire muita confiança. Tenho um colega, também ele funcionário judicial, porém acima de tudo filósofo, que vive e ensina em Málaga, na Espanha. Ele me explicou que o conceito de verdade da ciência contemporânea já não tem a majestosa hierarquia de antigamente, porque hoje é empregado em muitos sentidos, havendo tantas definições diferentes quanto contextos de uso, fundamentações frágeis, que dependem, às vezes, de um arbí trio e, em outras, de uma mera conjectura. Meu amigo acredita que é melhor falar de verossimilhança no processo do que, simplesmente, de verdade. Me parece que ele tem razão, porém esta não é hoje a minha questão. Não quero abusar da vossa paciência. Me atrevi a falar perante vocês porque, com certa surpresa, tive conhecimento de que este impor tante evento acadêmico se ocupa, não sei bem de que modo, da triste e simples história de Macabéa, que é, em virtude dos procedimentos judiciais, a mesma his tória da qual devo me ocupar, ou melhor, da qual comecei a me ocupar desde que recebi a denúncia do fato e me declarei competente para examinar seu mérito. Pouco, muito pouco, é o que pude conhecer até agora: circunstâncias pes soais da vítima, tais como nome, domicílio, estado civil, profissão ou atividade. Soube, também, pela declaração de algumas testemunhas, que ela se encontrava no local porque, poucos minutos antes de ser atropelada por um automóvel, ha via saído de uma residência próxima, à qual se dirigiu com o propósito de consul tar uma suposta adivinha que se chama Madame Carlota. Mais adiante voltarei a essa personagem. Pude estabelecer, pelos comentários dos vizinhos que presen ciaram o acontecimento e, pouco depois, a morte de Macabéa, que o carro que a atropelou a era um Mercedez Benz, de cor amarela. Expedi ofício ao Registro de Automóveis do Rio de Janeiro, para que me informem se existem automóveis 136
AS INQUIETAÇÕES DO DR. DOMITILO
matriculados com essas características e, em caso positivo, me forneçam uma lista dos mesmos. É como um tiro no escuro, porém... talvez possa acertar o alvo. Pouco... como se vê. Quase nada. Todavia, o Promotor me entregou um texto que, segundo informou, alguém escreveu sobre Macabéa e o intitulou, poe ticamente, “A hora da estrela”. Já li este texto três vezes e hesito em incorporá-lo, ou náo, como peça do processo. Finalmente, suspeito, náo terei outra saída. Es tou discutindo este último recurso com o Promotor. Enquanto isso, reconheço que muitas das dúvidas e complicações que afli gem o narrador (devo lhes dizer que ainda não está muito claro se existe identida de entre ele e o autor) afetam também a mim. De maneira quase surpreendente, tomei consciência de que, na medida do possível, também a mim compete “nar rar” Macabéa. Tenho que saber como ela morreu e por que morreu, o que, de alguma forma, me obriga a saber quem ela era e o que fazia ali. Assim, a certa altura, constatei que deverei começar pelo início. Mas... Por qual início? Aonde está o início? Tratando-se de dar uma resposta a esta ques tão, me detive no narrador do texto, ao qual aludirei desde agora, simplesmente, como “o narrador”. Ele diz: “antes da pré-história existia a pré-história da pré-história [...] não sei qual, mas sei que o universo jamais teve começo”. E se pergunta: “Como co meço pelo início se as coisas ocorrem antes de ocorrer [...]?” Eu me coloco questões idênticas. E estas, para mim, não são fáceis de abor dar. É preciso saber mais coisas e coisas diferentes do que aquelas que me foram ensinadas e exigidas durante minha formação como homem das leis, como ba charel em direito. Tive de colocar dentro da cabeça, na memória, milhares de artigos do Código Civil, centenas do Código Penal e milhares de outras matérias dogmáticas, mas quem me ensinou por onde começar? Qual era o início? E, ago ra, resulta que devo decidir esse problema e não sei o que fazer. Vocês dirão que sou meio ignorante? Não acredito. Estas coisas não se ensinam, e isto não ocorre porque não haja quem as conheça, mas porque quem as conhece sabe que são como que chaves mestras, que abrem as portas da percepção (alguém, creio, es creveu um livro com este título), e, então, as guardam para si. Porque aquele que sabe pode e, quanto menos sejam os que saibam, mais poderão os que podem. Enfim, de todo modo, entre tantas carências, me sobram amigos inteligentes. Então, escrevi uma carta a um amigo que tenho em Porto Alegre, que é também jurista e filósofo, especialista em questões de hermenêutica e de fenomenologia. Ele me deu uma resposta que quero lhes transmitir e que me facilitou 137
DIREITO E LITERATURA
algumas coisas, embora tenha me obrigado a pensar em outras. Meu amigo disse, mais ou menos literalmente, que náo existe grau zero do discurso, seu tempo é o tempo do narrador, um tempo que é sendo, como parece ter dito Heidegger. Por isso, ele afirma que o narrador e o juiz narrante (voltarei a isto) se inserem, abruptamente, na narração. Pareceria, inclusive, que ambos começam a narração, mas ela já havia come çado antes. Claro que - segundo meu amigo - o conhecimento exige um ponto de partida e, então, simplesmente, é preciso estabelecê-lo: trata-se da pré-compreensão do mundo, para alguns; da observação do observador, para outros; de instáveis conjecturas... Enfim, um ponto de partida que, quando bem observado, resulta tão arbitrário como um axioma e não menos necessário. Consequentemente, terei de enfrentar meu primeiro problema, que é o do “início”, seguindo estes conselhos e um especial e explícito do próprio narrador, que afirma: “a questão é começar [a história] repentinamente, assim como se nos jogássemos na água gelada do mar. Depois de refletir, um tanto quanto surpreso pelas coincidências de meus problemas com os do narrador, percebi que, atualmente, muitos juristas se envol vem em um movimento denominado “Law and Literature” e que, entre outras novidades muito importantes trazidas por suas investigações lingüísticas, com impacto no campo do direito e de outras áreas das ciências sociais e humanas, trabalha a ideia do direito judicial como relato. Devo lhes dizer que, no início, a ideia me incomodou sobremaneira. O que seria, então, da subsunção? O que fiz durante longos anos de exercício da jurisdição senão subsumir? Quais circunstân cias seriam estas? Mas superei minha raiva inicial quando continuei lendo e comecei a enten der o que estes autores diziam. Entre outras coisas, sustentavam que a ideia de subsunção era trivialmente fictícia e que, portanto, carecia de força explicativa porque não se sabe em que consistiria. Afirmam, também, que a tarefa dos juizes se realizava através de uma atividade silogística, isto é, através de procedimentos lógicos nos quais as normas deviam ser consideradas como a premissa maior e o caso como a premissa menor. Tratava-se de incluir a menor na maior e, assim, obter uma conclusão, de tal maneira que a sentença não devia ser considerada outra coisa senão esta conclusão. Todavia, esta corrente inovadora se pergunta: como incluir um factum , o caso, em um textum, a norma? E, ademais, na verdade: de qual caso se fala? Eu não tenho nenhum caso. Para dizer de um modo trivial, o caso já aconteceu, e eu não estava lá. Devo, portanto, tratar de reconstruí-lo (ou 138
AS INQUIETAÇÕES DO DR. DOMITILO
deveria dizer, simplesmente, construí-lo?). Para estes fins, tenho ao meu alcance elementos probatórios: peritos, testemunhas, fotografias, cartografias, documen tos. Mas, às vezes, eles sáo insuficientes, de tal modo que devo fazer um esforço heurístico para completá-los (esta palavra me emprestou o filósofo de Porto Ale gre). Outras vezes, eles sáo táo vastos que devo, necessariamente, selecioná-los, recortá-los. E, além disso, ordená-los, dar-lhes sequencialidade (está também). Agora, devo confessar-lhes que náo aprendi na faculdade como se levam adiante estas tarefas e que os dicionários jurídicos e os tratados de direito penal náo me ajudaram sequer o mínimo. Afinal, vocês acreditam que estas atividades têm algo a ver com procedimentos lógicos? Tudo me indica que, ao contrário, é das intuições que dependem o sentido comum e a experiência de cada magistra do. E, certamente, de seus valores, perspectivas, pontos de vista etc. Os autores que menciono pensam a tarefa judicial em termos de narratividade. O juiz, dizem, é um relator que deve ordenar e tomar consistente a mul tiplicidade de relatos que produzem as partes, testemunhas, peritos, documen tos, e deve construir, com todos eles, um metarrelato que dará fundamentação à decisão final. Da polifonia de vozes do processo o juiz deverá extrair e criar sua própria melodia. Será, assim, a questão? Ainda tenho minhas dúvidas. Imaginem vocês o que significa para qualquer mortal concluir que, durante longos anos, acreditou de sempenhar uma tarefa e, certo dia, se dá conta de que, talvez, o que efetivamente fez é bastante diferente daquilo no que acreditava estar fazendo. Na verdade, se os semiólogos tinham razão, a atividade dos juizes seria seme lhante à de um carpinteiro, como se refere um importante magistrado do Tribu nal Supremo da Espanha. Por certo, o carpinteiro não prescinde da geometria, assim como o juiz não prescinde da lógica. Todavia, seu trabalho está orientado pelas proporções, pela estética, pelo equilíbrio, pela finalidade, todas questões que se consolidam nos materiais e ferramentas de que dispõe e, certamente, em suas condições, inteligência, percepção, sentido comum, equilíbrio, intuição. Ocorre que pouco destas questões tem a ver com os silogismos. Com o tempo, vou me dando conta disso. Falei de ferramentas e advirto que as nossas são as palavras, os textos, o senti do. Quantas realidades podem ser, não somente referidas ou pensadas através da linguagem, mas também construídas! O narrador também pensa deste modo e, em certo sentido, me coloca em uma posição desconfortável, mas também me alerta. Sabem o que ele diz? Diz: “a 13 9
DIREITO E LITERATURA
palavra é um instrumento meu [...] Sou um escritor [...] ou melhor, sou um ator, porque com apenas uma forma de pontuar consigo malabarismos de entonação, faço com que a respiração alheia me acompanhe no texto”. E, ainda, diz: “Para escrever, não importa que o material básico seja a pala vra. Esta se agrupa em frases e delas emana um sentido secreto, que vai muito além das palavras e das frases.” Um sentido secreto! Não haverá nesta simples e elementar história de Macabéa muitas outras coisas além das que nos aparecem à primeira vista? Tenho, efetivamente, suspeitas nesse sentido. Devo intimar para testemunhar algumas personagens que conheciam mais acerca do mundo de Ma cabéa: o Sr. Raimundo Silveira, por exemplo, seu chefe, uma espécie de gerente da empresa em que ambos trabalhavam. Este homem, conta o narrador, desejava fervorosamente, todos os dias encontrar uma forma de despedi-la, de substituí-la, de tirá-la da sua frente. Apesar disso, por alguma razão ainda não esclarecida, não conseguia fazê-lo. Má consciência, piedade, conveniência? Teria na pobre jovem, escassa em todos os tipos de atributos, um bode expiatório para fazer recair sobre ela, frente à Direção, qualquer erro ou imperícia que a ele viesse a ser imputado? Quais razóes o faziam ser desta maneira? Quais razões conscientes ou inconscien tes explicavam sua atitude? Quando me formulo estas perguntas, me reencontro com o narrador, porque, tanto a mim como a ele, Macabéa perturba: “a história - diz ele - me desespera pela sua enorme simplicidade [...] tenho que dar nitidez ao que está quase apagado e que mal vejo”. O mesmo se passa comigo. E também diz: “Esta história exterior e explícita está cheia de segredo”. Vol temos a partir desta convicção ao mundo da morta. Ela tinha uma amiga, uma companheira de trabalho, uma espécie de precária confidente, apesar de Macabéa se mostrar reservada e tímida no estreito âmbito de suas relações. Me refiro à Glória, que não hesitou em lhe ser desleal e, quase que por capricho, terminou seduzindo o seu noivo, para depois, aparentemente arrependida de ser a causa de seu novo fracasso e da perda de suas ilusões, recomendar-lhe que consultasse Madame Carlota. Marcado o encontro, a única pessoa que sabia quando a menina assistiria à sessão era Glória. Me pergunto: Macabéa tropeçou e caiu do cordão, caminhava distraída e deixou a calçada de forma imprudente ou foi empurrada? Vocês diriam que este Juiz pensa demasiado no assunto e está começando a alucinar porque ninguém iria querer eliminar uma pessoa que não fazia mal a ninguém e que não conse guiria fazê-lo mesmo que quisesse, por sua elementariedade, por suas limitações, por sua ingenuidade e imperícia. Todavia, lhes pergunto: a etérea existência de 140
AS INQUIETAÇÕES DO DR. DOMITILO
Macabéa náo era já, de algum modo, desconfortável, quase insuportável, para a má consciência daqueles que deveriam ajudá-la, educá-la, prepará-la, transformá-la, mas que não são somente não o fizeram como também a humilharam e des prezaram, prevaleceram-se de sua ignorância e ingenuidade ou a traíram de forma desleal. Não era a mera presença de Macabéa, silenciosa e tímida, como um uivo que ressonava permanente em seus ouvidos? O bode expiatório, o cordeiro pas cal, não se transforma finalmente em uma presença intolerável. Quantas vezes na história é o inocente, o fraco, o manso, objeto de sacrifício para que o resto possa viver sua vida sem autorreprovação cotidiana e persistente? Diz o narrador: “Sou obrigado a buscar uma verdade que me supere.” Co migo se passa o mesmo e, assim como eu, ele pensa: “a jovem é uma verdade da qual não se queria saber. Não sei a quem acusar, mas tem de haver algum réu...”. Me pergunto se não terá vivido também sua culpa Olímpico de Jesus, este personagem um pouco perverso que a tratava como se fosse uma idiota e que a abandonou quase com desprezo quando conheceu Glória? E o condutor do carro, esse que não parou para socorrê-la após atropelá-la e fugiu covardemente: quem é ele? Assim como o narrador, estou imerso em uma situação que me agonia: Igual a ele: “estou passando por um pequeno inferno com este relato. Queiram os deuses que nunca descreva um lazarento, porque senão me cobriria de lepra”. À semelhança do narrador, penso frequentemente: “se deveria avançar adian te no tempo e esboçar em seguida um final, mas eu mesmo não sei, todavia, como terminarei isto”. Tenho esta história em minha vida, no Juizado e em minhas ho ras de descanso, porque, como diz o narrador, “[tenho-a] como pano de fundo, a penumbra atormentada que sempre está nos meus sonhos, quando de noite atormentado durmo”. Se não fosse eu uma pessoa pouco importante - como de fato sou -, ao lado da importância que seguramente possui o narrador, me atreveria a pensar que somos como alter e ego. Enfim, intimarei para depor todas as pessoas que mencionei, não na quali dade de suspeitos, mas como simples testemunhas, porém haverei de esquadri nhar nos rincões de suas almas e de suas consciências. Preciso de respostas. Devo narrar a história de Macabéa, e eles sabem muito a respeito dela. Concordo com o narrador quando afirma que: “todos somos um, e quem vive sabe, ainda sem saber que sabe”. E Madame Carlota? É pura trapaça ou tem habilidades para vislumbrar o futuro? Claro, não estou pensando na bola de cristal, apesar de não descartar 14 1
DIREITO E LITERATURA
- embora o risco de prejuízo cientificista - o poder da intuição nem a capaci dade de se prefigurar o futuro que algumas poucas pessoas possuem. Se Madame Cariota era um puro embuste, ela encheu a cabeça da jovem de loucas fantasias, de exageradas ilusões, de inaudita felicidade e conseguiu transportá-la mediante enganos, no espaço e no tempo, fazendo-a ingressar em um estado virtualmen te hipnótico, tão profundo capaz de excluir de seu psiquismo todo reflexo de autoproteção e de cuidado de si mesma. Assim considerada, a ação de Madame Cario ta pode ser caracterizada como imputável penalmente, com a configuração da preterintencionalidade homicida. Diz o narrador: “A vida de Macabéa havia mudado pelas palavras; desde os tempos de Moisés se sabe que a palavra é divina.” Em suma, outra vez a palavra. Contudo, distintas damas e gentis cavalheiros, os convido para, somente por um momento muito breve, considerarem a possibilidade de que Madame Carlota não seja uma enganadora, nem uma caloteira e tampouco uma trapaceira. Mas que ela possui habilidades de vidente e que conseguiu prever, prefigurar, ler nas cartas de seu baralho, o trágico e imediato final de Macabéa. Se conseguíssemos acreditar nesta versão dos fatos, não duvidaria em defendê-la com todas as armas. Finalmente, ela teria sido a única pessoa no mundo que presenteou a desgraçada jovem, generosamente, com um momento de infinita e definitiva felicidade. Haverei de interrogar, também, a adivinha. E seguirei me debatendo entre dúvidas e perplexidades que, por serem narrativas, tanto se assemelham àquelas do narrador. Continuarei tratando de cumprir com minha tarefa. Foi dela e de suas dimensões problemáticas que me pareceu útil lhes fazer esta espécie de con fissão pública e laica. Amanhã, antes de chegar ao meu gabinete, deixarei uma flor no lugar onde Macabéa faleceu e, provavelmente, derramarei uma lágrima furtiva. Estou muito agradecido pela educada atenção de vocês. Muito obrigado. §§§ Assim, Domitilo concluiu, e eu também, unindo-me a seus agradecimentos.
142
QUEVEDO EN TELA DE JUICIO, OU SEJA, “EL TR1BVNAL DE LA IVSTA VENGANÇA DE LUIS PACHECO DE NARVÁEZ (De
d i sp u t a s li te r á r i a s e d i r e i t o n a E s p a n h a d o s é c u l o
XVII)*
José Calvo González" Trad. de Valéria Ribas do Nascimento**’ “y con esto se acabò esta Avdiencia, a honra y gloria dei altíssimo Senor, que viuey reyna, por todos los siglos de los siglos. E l Tribvnal de la ivsta vengança, erigido contra los Escritos de D. Francisco de Queuedo, M aestro e Errores, Doctor en Desverguenzas, Licenciado en Bufonerías, Bachiller en Suciedades, Cathedratico de Vizios, y ProtoDiablo entre los Hombres Arnaldo FrancoFurt” (Luis Pacheco de Narváez, Valencia, 1635).
1. ANTECEDENTES DOS FATOS Convém remontar ao Memorial denunciando al Tribunal de la Inquisición ciertas obras políticas y satíricomorales de don Francisco de Quevedo. O manuscrito original e autógrafo, redigido em 1630, foi adquirido por Aureliano Fernández-Guerra y Orbe em 1859, que gentilmente autorizou Marcelino Menéndez y Pelayo a publicá-lo no tomo I das Obras de Quevedo, em ediçáo realizada pela Sociedad de Bibliófilos Andaluces e, mais tarde, também por Luis Astrana Marín.2 *
Nota da Tradutora: optou-se por não traduzir do espanhol para o português - no corpo do texto - as expressões destacadas (em itálico) por José Calvo González, em virtude do fato de o autor ressaltar a grafia e o sentido das palavras de escritores espanhóis do século XVII. No entanto, sugere-se o seguinte título em português: "Quevedo coloca do em discussão, ou seja, O tribunal da justa vingança", de Luis Pacheco de Narváez.
** Do utor em Dire ito (Máiaga/Espanha). Investigador e Professor Cate drático de Teoria do D ireito e Filosofia do Direito da Un'versidade de M álaga (Espanha). Mag istrado Sup lente do Tribunal Superior de Andalucía. Audiê ncia Provincial de Málaga (1996/2010). ** * Dou tora em D ireito Público pela Unisinos. Professora de Direito Co nstitucional da UFSM, da Unisinos e da Esmafe. Advogada (RS). 1 Cf. SOCIEDAD DE BIBLIÓFILOS ANDALUCES. Obras de Quevedo. Sevilla: Imp. Rasco, 1897-1907. 3 v. 2 Cf. ASTRANA MARÍN, Luis. Obras completas de Don Francisco de Quevedo Villegas. Madrid: Aguilar, 1932, v. II, Verso. p. 1099-1163.
143
DIREITO E LITERATURA
Aquele Memorial constituía um aviso melhor do que delação, como explicitado no texto - acerca do conteúdo de quatro livros de Quevedo: Política de Dios (Zaragoza, 1626), Historia de la vida dei Buscón (Barcelona, 1626), Suenosy discursos de verdades (Zaragoza, 1627) - mais concretamente, o Suerio deljuicio fin al e El alguacil endemoniado - e Discurso de todos los diablos o infiemo enmendado (Gerona, 1628). Se é verdade que a maioria dos críticos refere-se a D. Luis Pacheco de Narváez (Baeza, 1570-Madrid, 1640) como seu autor, houve quem, como Fermín Vegara Penas,3atribuísse sua autoria a dois dos declarados inimigos de Que vedo (1580-1645): o antigongorino Frei Diego Niseno (Madrid, 1656) - prega dor da Sagrada Religião do Monastério de Sáo Basílio Mártir de Madrid - e Juan Pérez de Montalbán (Madrid, 1602-1638) - dramaturgo, discípulo predileto de Lope de Vega e seu biógrafo, doutor em teologia por Alcalá e clérigo presbítero da congregação de São Pedro, além de notário apostólico da Santa Inquisição a par tir de 1633 - já que ambos, pregador e notário, foram duramente criticados em La PerinolaS Todavia, à margem da hipótese defendida por Vegara, tudo parece apontar para Pacheco, que por causa de seus Peregrinos discursosy tardes bien em pleadas5foi objeto de afiada sátira quevedesca na Política de Dios.6 De acordo com Fernández-Guerra, o Memorial careceu da repercussão esperada para as medidas adotadas pelo Santo Ofício a respeito das obras de Quevedo,7 ainda que a opinião de Vergara, igualmente, o contradiga. Vergara está mais inclinado a acreditar que 3 4
5
6
7
Cf. VERGARA PENAS, Fermín. Don Luis Pacheco de Narváez (Notas para su biogr afia). Don Lope de Sosa. Crônica Mensual De La Província De Jaén, na 197,1929, p. 141-142. Cf. GON ZÁLEZ DE AMEZÚA, Agustín. Las polêmicas literarias sobre el Para todos dei Dr. Juan Pérez de M ontalbán. In: BALBÍN, Rafael de (Dir.). Estúdios dedicados a Menéndez Pidal. M adr id: CSIC, Madrid , 1951. v. 2. p. 409-443; G lA SER, Edgard. Que vedo versus Pérez de Montalbán : the A uto dei Polifemo and the Odyssean Tradition in the Golden Age Spain. Hispanic Review, University of Pennsylvanla, Philadelphia, nB28, p. 103-120,1960; e, ainda. DtXON, Victor. Juan Pérez de Montalbán's "Para todos". Hispanic Review, University of Pennsylvania Philadelphia, n°32, p. 36-59, 1964. Nesta polêmica. Diego Niseno contrataca com Censura dei libro que compuso Juan Pérez de Montalbán, intitulado "Para todos ", y respuesta a la "Perinola" que contra él escribió con este titulo don Francisco de Quevedo Villegas e, também, o próprio Pérez de Montalbán com um panfleto intitulado Trompa dei do cto r Juan Pérez de Mon talbán contra la "Perinola " de don Francisco de Quevedo, d iablo cojuelo, jorob ado y con cuatro ojos (incluído em PÉREZ DE MONTALBÁN, Juan. Obra no dramática. Ed. de José Enrique Laplana Gii. Madrid: Fundación José An ton io de Castro, 1999). A res peito, ver, ainda, DEL PIERO, Raúl A. La respuesta de Pérez de M ontalbá n a "La Pe rinola de Q uev edo". Pub/icat/ons o f the M odem Language Association o f America. New York, n° 76. p. 40-47,1961; e, também , VIVAR, Francisco. E pod er y la com petênc ia en la disputa literaria: "La P erinola" frente al "Para todo s". Hispanic Review. Un iversity of Pennsylvania Press, nB 68 , v. 3, p. 279-293, 2000. Cf. PACHECO DE NARVÁEZ, Luis. Peregrinos discursos y tardes bie n empleadas. Ed. de Au rélio Valladares Reguero. Pamplona: Eunsa. 1999 (Anejos de La Perinola). Cf. VALVERDE, Antonio. Un lance entre Qu eve do y Pacheco de Narváez. ABC, M adrid, 02 de m arzo de 1958, p. 18-23; e REGUERO, Aurélio Va ladares. La sátira quevedesca contra Luis Pacheco de Narváez. Epos: Revista de Filo lo gia. Madrid, n° 17, p. 165-194, 2001. Ver, também, REGUERO, Aurélio Vai adares. "Peregrinos discursos y tardes bien empleadas": una obra desconocida de Pacheco de Narváez contra la "Política de Dios" de Quevedo. La Perinola: Revista de investigadón quevediana. Universidad de Santiago de Compostela, n° 1, p. 237-258,1997. Cf. QUEVEDO, Francisco de. Historia de la vida de! buscón Mamado don Pablos, ejem plo de vagamun dos y espejo de tacafios. In: FERNÁNDEZ-GUERRA, Aureüano (Ed.). Obras de do n Francisco de Quevedo. Madrid: B:blioteca de Autores Espafioles, 1852 (reimp., 1946).
144
QUEVEDO EM TELA DE JUICIO
sua contribuição, em 1631, conduziu à proibição de todas as obras de Quevedo impressas até então, enquanto este não as reformasse. É certo que, em Buscón, nu merosos dos pontos “avisados” se mantiveram em redações posteriores; da mesma forma, também existiram retoques para reduzir determinadas expressões julgadas irreverentes ou blasfemas, como igualmente ocorreram amplificações do retrato satírico de diversas personagens secundárias.8Todavia, a verdade é que a referida obra nunca foi impressa em Castilla durante a vida do autor.9 Em todo caso, não foi aquela a única investida que se lançou contra Queve do: também Pacheco de Narváez - erudito e fino esgrimista como Mestre Maior, examinador de armas e mestre em matemáticas na corte de Felipe IV10-, nes ta ocasião sob o pseudônimo do Licenciado Arnaldo Granco-Furt e auxiliado pelo poeta sevilhano antigongorino Juan Martínez de Jáuregui y Aguilar (Sevilla, 1583-Madrid, 1641) 1- da ordem de Calatrava, que em sua comédia E l retraído
8
Ver JAURALDE POU, Pabio. ^Redactó Qu eve do dos veces El Buscón? Revista de Filologia Românica, Universidad Complutense de Madrid, na 5. p. 101-111, 1987-1988; JAURALDE POU, Pabio. Enmiendas ideológicas al "Buscón"’. La Perinola: Revista de investigación quevediana, Universidad de Santiago de Compostela, n° 2, p. 87-103, 1998; e. ainda, JAURALDE POU, Pabio. Errores de copia en la transmisión manuscrita de "El Buscón”. In: DAVIS, Charles Davis; DEYERMOND, Alan. Golden Age Spanish Literature. Studies in Honour of John Varey. London: Westfeld College, 1992. p. 119-126. Na mesma linha. REY, Alfonso. Rev sión dei "Buscón". insula. Revista de Letras y Ciências Humanas. Madrid, n° 531, p. 5-6, 1991; REY, Alfonso. Las variantes de autor en "El Buscón": las descripciones de personaies. In: GARCÍA MARTIN, Manuel (Ed.). Estado actua) de los estúdios sobre el Siglo de Oro. Actas dei II Congreso Internacional de Hispanistas dei Siglo de Oro. Salamanca: Universidad de Salamanca. 1993, p. 811-817; e REY, A fonso. Las variantes de auto r en la obra de Quev edo. La Perinola: Revista de investigación quevediana, Universidad de Santiago de Compostela, nB4, p. 309-344, 20CO. Todavia, nem sempre os escrutínios praticados tinham como causa as denúncias. Cf. CROSBY, James; SCHWARTZ, Lia. La silva "El suePío" de Quevedo: gênesis y revisiones. Bulletin o f Hispanic Studies, University of Liverpool, n° 63, p. 111-126, 1986. James Crosby- Lía Schwartz, "La silva El suefio de Quevedo: gênesis y revisiones", en Bulletin o f Hispanic Studies LXIII (1986), 111-126; e, tam bém, LÔPEZ SUTILO. Rosário. Las variantes de la edición de Zaragoza 1628. In: REY, Alfonso (Ed.) Estúdios sobre el Buscón. Pamplona: Eunsa, 2003. p. 65-78. 9 Cf. FERNÁNDEZ, Enrique Gac to. Sobre la censura literaria en el s. XVII. Cervantes , Qu ev ed o y la Inquis ición. Revista de la Inquisición, Universida d Com plutens e de Mad rid, n® 1, p. 11-61, 1991; e, ainda, MOLL, Jaime. Q ueve do y la imprenta. In: MO LL Jaime. De la impre nta al lector. Estúdios sobre el libr o es panol de los siglos XVI al XVII. Madrid: Arco Libros, 1994, p. 7-20. 10 Luis Pacheco de Narváez foi o autor de: Libro de las grandezas de la espada en que se dedaran muchos segredos dei que compuso el comendador Geronimo de Carrança. En el que cada uno se pod rá liciortar, y ap rende r a solos, sin tener necesidad de m aestro que le ensene. Mad rid: H erederos d e loan Ifiiguez de Lequerica, 16C0 (ed. facs. Va lencia: Universidad de Valencia, 1994]; Co m pên dio de la Filosofia y destreza de las armas de G eronim o de Carranza. Mad rid: Luis Sanchez. 1612; Mod o facil y nuevo para examinarse los Maes tros en destreza de armas y entend er sus cien conclusiones ó formas de saber. Madrid: Luis Sanchez, 1625 (com outra edição em Zaragoza: Pedro Lanaja, 1658); Modo facil y nuevo para examinarse los Maestros en destreza de armas y entender sus cien conclusiones ó formas de saber. Diez y ocho Contradic ciones à la co mun Destreza, y las Cien Conclusiones, ò formas de saber la Destreza de las Armas, fundada en sciencia. Madrid: Juan de Paredes, 1659; Engano y desengafio de los Errores que han querido introducir en la destreza de las armas. Madrid: Grafica do Reino, 1635; Nueva ciência y filosofia de la destreza de las armas, su teórica y practica/que dexo escrita don Luis Pacheco de Narváez. Madrid: Melchor Sanchez, 1672. 11 Cf. URRÍES Y AZARA, José Jord án de. Don Juan de Jáuregui, biografia y estúdio critico. Madrid, 1899; CROSBY, Ja mes. The Friendship and Enm ity between Quevedo and Juan de Jáuregui. Mo dem Language Notes. Johns Hopkins University, n° 76, p. 35-39, 1961; e, também, CABALLERO, Juan Matas. Juan de Jáuregui. Poesia y poética . Sevi la: Diputación Provincial, 1990.
145
DIREITO E LITERATURA
(1635):2 já satirizava La cunay la sepultura (1634)13—e pelos antes citados Pérez de Montalbán e Niseno, publicou naquele mesmo ano, em 1635, o livro intitu lado E l Tribvnal de la ivsta vengança, erigido contra los Escritos de D. Francisco de Quevedo, Maestro de Errores, Doctor en Desverguenzas, Licenciado en Bufoneríasy Bachiller en Suciedades, Cathedratico de Viziosyy ProtoDiablo entre los Hombresy14 escrito sobretudo para afrontar La Perinola a l Doctor Juan Pérez de Montalbán (1633) - que, por sua vez, era uma crítica a Para todos15- , E l Buscón (1629) e o específico Sueno dei InJiernOy em Suenos y discursos: de verdades descubridoras de abusosy vicios y enganos en todos los officiosyy estados dei Mundo (1627). Todavia, em que medida o Memorial ou esta outra reação puderam influir nas decisões censoras do Santo Ofício é algo que não se sabe com exatidão. Ocorre que, embora Quevedo fosse indiferente à aparição do Tribunal,'6 o mesmo não aconteceu com a delação-ataque do Memorial. A este e a seu veros símil autor, Quevedo contrapôs a vil agudeza dos seguintes fragmentos de obras e composições: E l Sueno dei Juicio fin al;'1E l Buscón.;18La hora de todos;'9El Poema heroico de las necedadesy locuras de Orlando el Enamorado;20Las valentonas y destreza (baile);21 e Enrienles de la destrezai.22Em todo caso, o mais importante 12 Cf. JÁURE GUIY AGUILAR, Don Juan de. El retraído: comédia famosa de Don C láudio - representou-a Villegas - hablan en ella las personas que ha auido en el m undo y las que no ha auido. Barcelona: Sebastian de Cormellas, 1635. Trata-se de comédia que duran te algum te m po se acreditou ser inédita (BARRERA Y LEIRADO, Cayetano Albe rto de la. Catálogo b ibliográfico y biográfico dei teatro an tiguo espafíol: desde sus orígenes hasta mediados dei siglo XVIII. Madrid. 1860. p. 314), ou "parece que impressa" até 1635 (Obras de Quevedo, op. cit., v. 1, p. 4C0). Para J. Jordán de Urríes (op. cit., p. 195), "C láudio " refere etimologica men te " o c oxo ” . 13 Cf. QUEVED O, Francisco de. La cuna y la sepultura para el con odm iento pro pio y desengano de las cosas a ge nas: Valencia: Silvestre Esparsa. 1635. Ver, também, QUEVEDO, Francisco de. La cuna y la sepultura para e) conodmiento propio y desengano de las cosas agenas: Francisco de Quevedo. Ed. de Luisa López Grigera. Madrid: Real Acade mia Espanola, 1969. 14 Cf. PACH ECO DE NARVÁEZ. Luis. El Tribunal de la justa venganza. Ed. de Victoriano Roncero López. Pamplona: Eunsa, 2008. 15 Cf. PÉREZ DE MONT ALB ÁN, Juan. Para todos, ejemplos morales, humanos y divinos en que se tratan diversas ciendas, matérias y facultades: repartidos en los siete dias de la semana y dirigidos a diferentes personas. Madrid: Gráfica dei Reino, 1632 (Re mp. Facs., Madr d, 1645; e, ainda, Hildesheim-New York: O ms Verlag, 1971). Com a total perda da razáo. Pérez de Mon talbán faleceria em Madrid, no dia 25 de junho de 1638. Ver. BACON , G eorge W. The Life and Dra matic Works o f Doc tor Juan Pérez de Mon talbán. Revue Hispanique, n° 26, v. 69. p. 1-320. 1912, p. 1-4. 16 Cf. ETTINGHAU SEN, Henry. Francisco de Quev edo and the Neostoic Movement. Oxford Oxford University Press, 1972, p. 42, cuja opin ião é de que El retraído, de Jáuregui, e o Tribunal de la justa venganza, de Pacheco de Narváez, influíram na decisão de Quevedo de mudar sua imagem literária de mordacidade e tons heréticos pela de moralista, devoto e erudito. 17 Cf. QUE VEDO , Francisco de. Suehos y discursos. Ed. de Fe lipe Ma donad o. M adr id: Castalia, 1972, p. 77-78. 18 Cf. QUE VEDO , Francisco de. El Buscón. Ed. de Domingo Ynduráin. Madrid: Cátedra, 1980, p. 150-157. 19 Ver QUEVEDO, Frandsc o de. La hora de tod os yla Fortuna con seso. Ed. de Jean Bourg- Pierre DuPon t e Pierre Geneste. Mad rid: Cátedra, Mad rid. 1987, p. 297-198. Cuadro XXXV, El Gran Turco. p. 295-306. E. amda, CLAMURRO, William H. Quevedo s World as Political Language: Reading "La hora de todos". In: MARTIN, Gregorio C. Selected Proceedings o f the Pennsylvania Foreign Language Conference. Pittsburgh: Duquense University Press, 1993. p. 102-106. 20 Cf. QUE VEDO , Francisco de. El Poema heroico de las necedades y locuras de Orlando e l Enamorado. In: W.AA . Homenaye a Quevedo en su Centenário (1645-1945), M editerrâne o, Valencia. Me diterrân eo, 1946, p. 25-63. 21 Cf. QUE VEDO , Francisco de. Poesia varia. Ed. de James O. Crosby. Madrid: Cátedra, 1994, p. 332-341. 22 Cf. QUEVEDO, Francisco de. Ob ra poética. Ed. de José Manuel Blecua. Madrid: Casta ia. 1981, v. 4, p. 103-109, w. 11-13, 41 -45, 58-59 e 76-80.
146
QUEVEDO EM TELA DE JUICIO
sáo as concomitâncias e até coincidências textuais existentes entre o Memorial e o Tribunal, assinaladas por Roncero López, como indício relevante de serem produto uma mesma pena, que, a seu ver, não seria outra senão a de Pacheco de Narváez.23Ademais, entre os muitos insultos e calúnias antiquevedianos, além de disputas e discussões decorrentes de ataques ofensivos e contra-ataques ul trajantes, ao Tribunal de la Justa Venganza mostrou-se conveniente - em face da natureza de sua índole, propriamente - constituir uma conseqüência relaciona da mais ao literarialmente orgulhoso e encreiqueiro Parnaso espanhol do século XVII do que pelo grau de seu excesso.24 Isto porque, com efeito, Para todos, Perinola e Tribunal são três obras que, embora distintas, certamente podem ser lidas “como outros tantos atos de um só drama”.25 Contudo, E l Tribunal de la ju sta venganza transcende amplamente toda possível discussão ético-política26 23 Cf. RONCERO LÓPEZ, Victo riano . Introdu cció n. In: PACHECO DE NARVÁEZ. Luis. El Tribunal de la justa venganza. Ed. de Victoriano Roncero López. Pamplona: Eunsa, 2008, p. 20-24. 24 Cf. QUEVEDO Y VILLEGAS, Francisco de. Obras festivas. Introducción, edición y notas de Pabio Jauralde Pou. Ma drid: Castalia, 1981, p. 46. 25 Cf. GON ZÁLEZ DE AMEZÚA, op. cit.. p. 424. 26 Ver COSTA, Joaquín. El pensam iento político de Queve do. In: COSTA, Joaquín. Estúdios jurídicos y políticos. Ma drid: Gráfica da Revista de Legisiación, 1884. p. 102-111 [antes como COSTA, Joaquín. Ideas políticas de Quevedo. Boletín de la Institución Libre de Ensenanza, Madrid. n° 5, p. 106-108, 1881); FERNÁNDEZ GUERRA. Aureliano. Que vedo c omo escritor político. Revista de Madrid, Madrid, n° 5. p. 513-522, 1883; BLANCHET, Emi e. Quevedo moralista. Revista Contemporânea, Madrid. n° 23, v. 103, p. 140-155, 1896; CLOTET, Pedro. La Política de Dios de Quevedo. Su contenido ético jurídico. M adrid: Reus, 1928; GO ICOE CHE A Y COSCULLUELA. Antonio. Q uev edo f iló sofo. moralista político d e acción. In. WA A. III Centenário de Quevedo. Homenaje de i instituto de Espana. Madrid: Magistério Espafiol, 1945, p. 39-63; CERECEDA. Feliciano. Patriotismo y escepticismo espanol de Quevedo. Razón y Fe, Madrid, n° 132, p. 614-631, 1945; LIRA. Osvaldo. La monarquia de Quevedo. Revista de Estúdios Político s, Mad rid, n“ 15, p. 1-46, 1946; ARANGUREN, José Luis. Co men tário a dos textos de Q uevedo . Revista de Educación, Madrid, n° 10, p. 59-67,1955; ARANGUREN, José Luis. Lectura política de Quevedo. Revista de Estúdios Políticos, Madrid, n° 29, p. 157-167,1950; BLEZNICK, Donald William. La Política de D ios de Quevedo y el pensamiento políti co en el Siglo de Oro. Nueva Revista de Filologia Hispânica, M éx co , na9, p. 385-394,1955; BERNÁRDEZ, Francisco Luis. Quevedo, político cristiano. In: BERNÁRDEZ, Francsco Luis. Mundo de las Espafias. Buenos Aires: Losada, 1967, p. 7-18; PÉREZCARNER O, Ceiso. M oralypo lítica en Quevedo. Orense : Tianco, 1971; TALÉNS, Jenaro. La vida dei Buscón, novela política. In: TALÉNS, Jenaro. Nov ela picaresca y práctica d e la transgresión. Madrid: Júcar, 1975, p. 43-106; ÁLVAREZ VÁZQUEZ, José Antonio . Teoria y práctica p olítica de Quev edo. Cuadernos Hispanoamericano s, Mad rid, nc 336, p. 427-451, 1978; CUEVAS, Cristóbal. Que vedo, en tre neoes toicismo y sofistica. In: GALLEGO MO RELL, Antonio; SORIA, Andrés; MARÍN, Nico ás (Eds.). Estúdios sobre literatura y arte dedicad os al profesor Em ilio Orozco Díaz. Granada: Universidad de Granada. 1979. p. 357-375; ABAD, Francsco. Ideário político y mentalidad sefiorial de Quevedo. Cuadernos Hispanoamericanos, Madrid. nG361-362, p. 85-92, 1980; ABAD, Francisco. Que vedo y el pen samiento político en el sig o de oro. Letras de Deusto, Universidad de D eusto. v. 10, nc 20. p. 207-216, 1980; JARAMILLO, Manuel. Personalidad y pensam iento político de Quevedo. Granada: Diputación Provincia1,1981; ABELLÁN, José Luis. El neoestoicismo: Francisco de Quevedo. Historia crítica dei pensamiento espanol. In: ABELLÁN, José Luis. De l barroco a la ilustración. Madrid: Espasa-Calpe, 1981. v. 3. p. 209-233; MARAVALL, José Antonio. Sobre el pensamiento moral y político de Quevedo (una revisíón). In: GARCÍA DE LA CONCHA, Víctor (Ed.). H o menaje a Quevedo. Actas de la f* Ac ad em ia literaria renace ntis ta de la Un ive rsidad de Salamanca. Salamanca: Caja de Ah orros y M onte de Piedad, 1982. v. 2. p. 69-131; BLUHER. Karl. Queve do, y ei neoe stoicism o en el apo geo dei barroco espanol. In: BLUHER, Karl; CONDE, Juan. Séneca en Espana. Investigaciones sobre la recep ción d e Séneca en Espana desde el siglo XIII hasta el sigloXVII. Madrid: Gredos, 1983. p. 427-486; PONS, Esther Barto omé. Un libelo contra los catalanes: "La rebelión de Barcelona". In: CAMINERO, Juventino. Víclima o verdugo : conservadorismo y antisemitismo en el pensam iento político-social de Quevedo. Kassel: Reichenberger, 1984. p. 108-129; RUIZ DE LA CUESTA, Antonio . El legado doctrinal de Quevedo: su dimensión política y Filosófico-jurídica. Madrid: Tecnos-Fundación C ulturai Luno Pena, 1984; CASTRO DÍAZ. An tonio . Pensamientos histórico y po ítico de Q ueved o. Cuade rnos deAldeeu (Asoc iacón de Licen cado s y Doc tores Espanoles en EEUU), Pennsylvania State University, n° 8, v. 2. 1992, p. 211-230; MARTÍNEZ CONDE , Francisco F. Qu evedo y la monarquia (un modelo de rey). Madrid: Endymion, 1996;
147
DIREITO E LITERATURA
ou de valor poético27que pode se atribuir ao gênio ou engenho de Quevedo. O que singularmente distingue o Tribunal de qualquer outra censura e de sagravo da época é seu caráter de interpelação judicial. Nesta dimensão jurídico-processual, o admoestado experimenta uma profunda transformação. Pacheco de Narváez, para articular sua pretensão corretora ou de contentamento repressor, utiliza a formação de um suposto julgamento em que transfere para a imputação criminal suas objeções morais e de valoração estética. E, assim, o artifício escolhido e o formato da judicialização para conduzir essa polêmica e obter a devida reparação à sua mortificação ética e ofensa poética não encontra paralelo em outras obras contemporâneas, mesmo quando estas - às vezes com uma riva lidade muito corrosiva - utilizaram como protagonistas algumas das personagens que também estiveram implicadas na obra quevedesca.28
2. “FULMINARLE PROCESO”. A DISPUTA LITERÁRIA COMO QUERELLA29 A obra desenvolve, em seis audiências, a figurada substancialização jurídico-formal de um julgamento penal contra diversos escritos de Quevedo.30Ao longo de cada uma delas, auxiliado por um pregador, um fiscal formula acusa
27
28
29
30
FERNÁNDEZ ALVÁREZ, Manuel. Quevedo: protagonismo po ítico y testimonio de una época. In: SCHWARTZ, Lía; CARREIRA, Antonio (Coords.). Quevedo a nueva luz: escritura y política. Málaga: Universidad de Málaga, 1997. p. 133-148. RIQUELME JIMÉNEZ, Car os José. Quevedo: el hombre, la época y sus ideas ético-jurídicas y penales. Ciuda d Real: Diputac ión Província de Ciu dad Real, 2COO; e CLAMURRO, William H. Quev edo y a ectura política. La Per/'no/a: Revista de investigación quevediana. Univers idad de Santiago d e C ompo stela, nB5, p. 95-107, 2001. Cf. BORGES. Jorg e Luis. Menosc abo y grandeza de Quev edo. Revista de Occidente. Madrid. Fundación José Ortega y Gasset, n° 6 . p. 249-255, 1924; BORGES, Jorge Luis. Inquisiciones (1925). Barcelona: Seix Barrai, 1994, e, também, NERUDA, Pabio. Quevedo. Cr uz y Raya, Ma drid, nc 33. p. 83-101,1935. Cf. ZARCO CUEVAS, Eusebio Julián. Las co nt endas litera rias en el sig o XVII. La Ciuda d de Dios. Revista Augustiana. Madrid. n 9 14 3 , p. 272-290, 1925, especialmente Cap. III ("Una réplica de Lope de Vega contra Juan de Jáuregui"); e MILLE Y GIMÉNEZ, Juan. Jáuregui y Lope (1926). In: MILLE Y GIMÉNEZ, Juan. Estúdios de literatura espanola. Buenos Ares; Casa Editora Coni, 1928. p. 229-245. Ver, também, JÁUREGUI, Juan de. Ant íd ot o con tra la pest ilente poesia de las Soledades, ap licado a su autor para defenderle d e sí mismo (1615). Ed. José Mar ia Rico Garcia. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2003. Nota da Tradutora: a expressão " Fulminarle proces o " é exp icitada mais adiante no decorrer do texto. No caso, sig nifica transladar a divergência entre as partes na forma d e processo. Trata-se da transformação em processo judicial de uma divergência de opiniões (querella). Ademais, o autor emprega o termo querella no sentido jurídico, pois se trata de uma das fórmulas de exercido da ação penal e da inicial do processo judicial. A obra está estruturada do seguinte modo: Prólogo al Lector (Amantísimo pró jimo m io, a ti que heroicamente militas y sigues e estandarte dei divino general Cristo); El Diligentisimo Correo, p. 1-6 (Novedad que en Metafora assi le llaman algunos, c omo a quien pe netra hasta las mas remotas R egiones: tal vez (aunque pocas) dizien do verdades, y las mas sembrando mentirasj; Primera Avdiencia, p. 7-40 [Contra "Perinola"); Segvnda Audiência, p. 41-106 [Contra el libro "Buscón"); Tercera Audiênc ia, p. 106-149 [Del libro de los "Sue nos"); Qvarta Avdiencia, p. 150-192, e Qvinta Av dien cia. p. 193-225 [Contra "Discurso de tod os los dia blos " (1627)); Sexta Avdiencia, p. 225-294 [Contra "Juguetes de la nifiez" (1631), "Cartas dei Cabal ero de a Tenaza" (1625), "El entreten ido, la duefia y el soplón " e e "Cue nto de cuentos "). Conclui: "y con esto se acabò esta Audiênc ia, a honra y g orla de altisimo Senor, que viue y reyna, por todos los siglos de los siglos".
148
QUEVEDO EM TELA DE JUICIO
ções (cargos) perante seis varones doctos (sábios), escolhidos pelo tribunal que será chamado de Justa venganza. E, assim, estes atuarão tanto exercendo o papel de órgão judicial, semelhante àquele integrado por juizes regulares ou ordinários, quer dizer, na função de instância ordinária ou comum; como igualmente lhes será facultado o conhecimento de causa não puramente secular, quer dizer, com legitimidade para examinar delito contra a fé, que ofenda Deus e seus devotos, competência que, à época, era exclusiva dos tribunais do Santo Ofício. Tais jul gadores se apresentam, portanto, autoinvestidos31 para elucidar e resolver todo gênero de imputações, sobre as quais irão ditando sucessivas resoluções, sempre em forma de auto (auto de vista). No entanto, não parece que tais decisões eram irreformáveis, já que, ao menos em três ocasiões,32isto ocorreu no próprio pro cesso, sem a remessa a um grau superior, id est, no mesmo caderno processual e perante o próprio órgão que o proveu e que, então, pronunciou-se mediante auto de revista. Naturalmente, não é especificado qual seria o gênero e a classe desse remédioprocessual, salvo por sua eventual semelhança com o atual auto de reforma e, também, com seus possíveis efeitos. As expressões utilizadas para se referir à ac ción impugnatoria - do advogado defensor ao suplicar, ou do fiscal e do pregador ao replicar —carecem de suficiente exatidão processual para se relacionar ao que entenderíamos hoje, com base na noção de remédio processual e de meio impugnatório, como recurso de súplica (contra providências ou autos) ou como primera suplicación, na época. Por outro lado, o argumento exposto na fórmula de petição (petitio), aproxima-se menos de uma pretensão propriamente revocatória e, tal vez, mais daquilo que, na atualidade, seria qualificado subsanación. Seja como for, a suplicacción não se colocava, na verdade, como recurso, mas sim - conforme foi dito - à maneira de favorecer, suplicando se desconstitui a decisão de vista, dada em primeira instância, ditando outra de revista, pronunciada em segunda instância, equivalente ao vigente recurso em grau de apelação, porém sem concretizar um ou ambos de seus efeitos (devolutivo e suspensivo). De resto,33 embora para questões relativas à procedência e hierarquia de re 31 Cf. PACHECO DE NARVÁEZ. Eí Tribuna)..., op. cit., p. £4: "preem inencia qu e está encome ndada a los doctos y de .oab.es costumbres sobre los ignorantes y presumidos". 32 ld., ibid., Primeira Audiênc ia, Cargo Primeiro, p. 48; Primeira Audiência, Cargo Q u nto, p. 58; Segunda Audiência, Cargo Terceiro, p. 64. 33 Para além da perspectiva de análise - que entendo complem entária - apresentada pela imagem da Administração de Justiça e do dire ito pe nal que é possível formar através da mesma obra qu evediana. Ver, para tanto, os trabalhos de: MARTÍNEZ NACARINO, Rafael. Don Francisco de Quevedo. Ensayo de biografia jurídica. Madrid: Estanisiao Maestre, 1910; ASTRANA M ARÍN, Luis. Qu eved o jurista. La llustración Espanola y Americana. Madrid, n“ 62. p. 472, 1918; AGUIRRE PRADO, Luis. Quevedo jurista. Revista de la Escuela de Estúdios Penitenciar/os, Madrid, n 5 25, p. 8-15, 1947; RUBIO DÍEZ, Luis Jesús. Estúdios penales sobre "El Buscón": Alonso Ramplón el verdugo. Revista G e neral de Legislación y Jurisprudência, Madrid, n° 34, p. 745-762, 1957; CALVO GONZÁLEZ, José Manuel. El hurto
149
DIREITO E LITERATURA
cursos a indicação seja a Partida VII - que se ocupa do ius puniendi e do pro cedimento (de caráter inquisitivo) para averiguação dos delitos e castigos dos culpáveis,34 - além de outros textos legais como o Ordenamento de Alcalã, de 1348, e a Nueva Recopilãción> publicada em 1369 (Lib. XII), na qual mais preci samente se socorreu a fim de concretizar o relativo à regulação normativa geral e prática judicial na época35- e não sem antes advertir da inexistência de um mo delo uniforme nem sequer em Castilla;36 e, menos ainda, com capacidade para ser sempre transposto ao Reino de Aragão e ao Principado de Cataluna - , nada desse exame se faz necessário uma vez que nenhum cargo (acusação) refere ou aponta qual preceito legal teria sido infringido. Aos autos de vista ou revista sucede o auto definitivo, no qual, às vezes, consigna-se uma declaración defirmeza e se faz o ditado da ejecutoria. Apesar disso, é muito difícil aceitar, desde o ponto de vista técnico-jurídico, alguma imaginável índole processual para a referida firmeza em julgar efazer executar ojulgado, cuja en la obra satírica de Quev edo . W A A . Q ueved o en su centenário. Cáceres: De egación Provincial dei Ministro de Cultura, 1980. p. 25-58; FERNÁNDEZ, Enrique Gac to. La administración de justicia en la obra satírica de Que vedo. In: GARCÍA DE LA CO NCH A, Víc tor (Ed.). Homenaje a Quevedo. Actas de la II Aca dem ia Literaria Renacenlista de la Universidad d e Salamanca. Salamanca: Caja de Ahorros y Monte de Piedad, 1982. p. 133-162; RUIZ DE LACUESTA. Antonio. Q uevedo y la pena de muerte. Arb or : revista de ciênc ia, pe ns am ien to y cultura, Madrid, v. 113, nc 443, p. 31-45,1982; LERNER, Lia Schwartz. Barbas jurisconsultas-iurisjueces: tra sladone s d e un signo cultural. Sur, Homenaje a M. R. Lida y R. L:da, Buenos Aires, n° 350-351, p. 241-253, 1982; LERNER, Lia Schwartz. El letrado en la sátira de Quevedo. Hispan ic review, University of Pennsy vania Press, n° 54, v. 1, p. 27-46,1986; MARANÓN RIPOLL, Migue . Letrados, consejeros y senadores, em un pasaje satírico político de Quevedo. LERNER, Lia Schwartz (Ed.). Studies in Ho nor o f James O. Crosby, Newark: Juan de la Cuesta, 2C04. p. 213-229; e RIQUELME JIMÉNEZ, Carlos José. La Ad minis tra ció n de ju sticia en el S iglo de Oro. La obr a de Francisc o de Qu evedo . Ciudad Real: Instituto de Estúdios Manchegos , 2004. 34 Cf. TOM ÁS Y VALIENTE, Francisco. El derec ho pen al de la Monarqu ia Ab solu ta (siglos XVI-XVII-XVW). Madrid: Tecnos, 1969; ALONSO ROMERO, Maria Paz. El proceso pen al en Castilla (siglos XIII-XVIII). Salamanca: Universidad d e Salamanca, 1982; HERRERO HERRERO, César. La justicia penal espanola en la crisis dei poder absoluto. Madrid: Ministério de Justicia, 1989; HERAS SANTOS. Luis de las. La jus tic ia pe na l de los Au stria s en la C oro na de Castilla. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1991. 35 Para uma extensa reflexã o jusfi osóflca. ver SEGURA ORTEGA, Man uel. La situació n dei derec ho penal y procesal en los siglos XVI y XVII. In: PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio; FERNÁNDEZ GARCÍA. Eusebio (Eds.). Historia de los derechos fundamentales: Trânsito a la m oderníc/ad - Sig/os XVJ y XVII. Madrid: Dykinson, 2003. v. 1. p. 456-502. 36 Destaca-se, entre a vasta bibliogra fia. GIMÉN EZ SOLER, Andrés. El pod er judicial en la corona deArag ón. Memória leida en la Real Academia de Buenas Letras de Barcelona, en ios dias 16 de febrero y 2 de marzo de 1901. Barce lona: Tip. de la Casa Provincial de Caridad, 1901; GILBERT Y SÁNCHEZ DE LA VEGA, Rafae . A nt ig uo Co ns ejo de Castilla. Madrid: R:alp, 1964; GONZÁLEZ ALONSO, Benjamin. El corre gido r ca stellano (1348-1808). Madrid: Escuela Nacional de Adm inistració n Pública, 1970; DE DIOS, Salustiano. Fuentes para el estúd io de i Consejo Real de Castilla. Salamanca: Diputa ción de Salamanca, 1986; GARRIGA, Carlos. Observaciones sob re el estú dio de las Chancillerías y Audiências castellanas (siglos XVI-XVII). CLAVERO, Bartolomé; GROSSI, Paolo; TOMÁS Y VALIENTE, Francisco (Eds.). Hispania. Entre derechos propios y derechos nacionales (Atti delhncontro di studio, FIrenze-Lucca. 25-26-27 maggio 1989): M lano: Giuffrè, 1990. v. 2. p. 757-803; GARRIGA, Carlos. La Au diê ncia y las Chancillerías caste llanas (1371-1525). Historia política, régimen jurídico y práctica institucional. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1994; CZEGUHN, Ignacio. Die kastilische Hõchstgerichtsbarkeit 1250- 1520. Berlin: Duncker & Humblot, 2002; SCHÀFER, Ernesto. El Consejo Real y Supremo de las Indias. Salamanca-Madrid: Junta de Castilla y León/Marcial Pons, 2003. 2 v.; GÓMEZ GONZÁLEZ, Inés. La jus ticia, el go bier no y sus ha ced ores: la Real Chancillería d e Granada en el Antiguo Régimen. Granada: Comares, 2003; e GONZÁ LEZ ALONS O, B enjamin. Jueces, justicia, arb trio judicial (algunas reflexiones sobre !a posición de los jueces an te el D erecho en la Castilla moderna). In: PÉREZ SANCHEZ, Dionisio (Coord.). Vivire l Siglo de Oro: poder, cultura, e historia en la época moderna. Estúdios homenaje alprofes or Áng el Rod ríguez Sánchez. Salamanca: UnVersidad de Salamanca, 2003. p. 223-242.
150
QUEVEDO EM TELA DE JUICIO
admissibilidade deveria sempre contemplar a preclusão de determinados prazos na eventual interposiçáo de outros recursos disponíveis (a segunda suplicación, uma vez esgotada a via processual ordinária, também conhecida como las mily quinientas;37e a chamada injusticia notoriai38),39 produzindo, assim, subsequente efeito de coisajulgada. Finalmente, se seguirmos o curso completo dos ditos autos {de vista, de revista e definitivo), mais parece que cada um deles teria resolvido incidentes ou cuestionesprevias, quer dizer, com natureza semelhante a dos autos interlocutórios simples, formando em seu conjunto uma cadeia que propriamente se encerra na última audiência {Audiência Sexta. Discurso Quinto), com um auto verdadeira mente definitivo, até porque pelo menos declara ou define uma situação jurídica determinada. Assim, explicitando: “que de lo que hasta aqui advertido se le diese cuenta al Supremo Tribunal de la Santa Inquisición y a cada uno de aquellos senores en particular, por lo que toca a la causa de Dios, y lo mismo al Supremo Consejo de Justicia, como a defensa y amparo dei publico bien”.40 Consequentemente, é claro que o Tribunal de la ju sta venganza, à medida que investe no papel de juizes de Quevedo aqueles que eram seus ofendidos e inimigos (imparcialidade judicial subjetiva e objetiva versus nemo iudex in causa suá)> quebra radicalmente o mais elementar lineamento processual identificável. E, não obstante, Pacheco de Narváez persiste em converter sua querella (divergên cia) em form a de processo (‘‘fulm inarle proceso”41)> o que eqüivale a uma obstinada vontade por afastar a polêmica de qualquer alternativa extrajudicial. O cenário para a oportuna representação cênica judicial aproveita-se da di ferente divisão de condutas dos papéis, semioticamente bem estabelecidas e facil mente identificáveis, que se exigem para formar a imaginação institucional de um pleito (juizes) e das figuras nele atuantes (fiscal e letrado ou advogado). Os sinais 37 Sobr e esta suplicación, ver o trabalho de PINO ABAD, Miguel. El recurso de s uplicación en Castilla, expresión de la gracia regia. Prólog o de José Maria Garcia Marín. Sevilla-Madrid: Marcial Pons-Fundación El Monte , 2006; e, ainda, SEMPERE GUARINOS, Juan. Historia dei derecho espaftot. Madrid: Imp. Real, 1823, p. 246, que se refere è segunda suplicación como aquela que origina "p eitos inmortales, y que nunca se acaban". 22. Líb. 11. Ver, ainda, SALA,Juan.Ilustraciónde i D erechoReal de 38 Consu ltar a Novisima Recopilación, L. 20. Tit. Espafta. Corufia: Imp. de Gregorio Lomas, 1837, v. 2, p. 274. 39 E ainda mais, porq ue em outro lugar o mesmo órgão judicial se reconhece "saliento que esta causa deve ir ao tribu nal supre mo ” (PACHECO DE NARVÁEZ. El Tribunal..., op. cit., p. 107). 40 ld., ibid. , p. 1ÓÓ. 41 ld., ibid., p. 44.
15 1
DIREITO E LITERATURA
implicados neste grupo de atores e que possibilitaria o adequado reconhecimento do contexto processual se complicam, todavia, quanto à funçáo de predicador (pregador), mas somente em parte e apenas no início. Com efeito, ao pregador pareceria corresponder um papel processual “de suporte” (actor in a supporting role), isto é, o ator que não faz parte da trama substancial da ação (processual), mas cuja participação é, todavia, necessária para modelar o roteiro (processual), pelo qual de alguma forma acompanha a conduta do papel das principais figuras postulantes, servindo de suporte para o desenvol vimento da história (litis). Nesse sentido, o pregador talvez pudesse ser entendi do, processualmente, à maneira do amicus curiae, isto é, como um terceiro alheio ao litígio, mas que, ao seu modo, contribui através de um impulso (processual) que lhe permite manifestar sua opinião ou parecer sobre algum ponto em que o assunto controvertido se envolve com uma causa de interesse público. Esta figura que, no sentido estrito, constitui um postulante e é estranha às modalidades de papel que compõem a tradição processual espanhola não se mostra tão inusitada no presente caso - por matiz de novo sentido -, tendo em vista sua predisposição subjetiva (pacto de conveniência, ou relação de amicitia) com a parcialidade dos juizes, ou até a do fiscal, pois se observa que nunca objeta ou contraria a imputação. Outra possibilidade para o seu enquadramento processual poderia ser a do perito jud icial ou forense, isto é, do profissional cujo reconhecido saber, prática, experiência e habilidade em uma ciência ou arte fornece aos tribunais de justiça assessoramento sobre conhecimento especializado nos pontos litigiosos que são objeto de julgamento. Contudo, tratando-se de um teólogo, são várias as obser vações que convém trazer à colação. A admissibilidade no processo de um informe pericial ético incita, hoje, sérias e fundadas críticas tanto pela filosofia moral quanto pelos princípios da racionalidade jurídica.42Entretanto, a situação será muito diferente se contem plamos o oficio de la justicia durante o período ora analisado. Somente a partir da metade do século XVIII, ou seja, com a aparição das primeiras propensões (e tensões) da Modernidade, pode se começar a considerar resolvido, em termos de dialética dos contrários, o dilema letrado ou teólogo.** De acordo, pois, com a 42 Cf. MARTÍNEZ ROLDÁN, Lu:s. Racionalidad de os informes periciales éticos. In: AYLLÓN. Jesus; ESCALONA, Gas par; GAYO, Maria Eugenia Gayo (Eds.). Ex libris. Homenaje al profesor Antonio Fernández-Galiano. Madrid: Universidad Nacional de Educación a Distancia, 1995. p. 573-584. 43 Ver PUY MU NOZ, Francisco. Ideas jurídicas en la Espana dei s iglos XVIII (1700-1760). Granada: Universidad de Gra nada, 1962; p. 34-35, 81 e 166; KAGAN, Richard L. Pleitos y pleitea ntes en Castilla, 1500-1700. Sa amanca: Junta de Castil a y León, 1991; Richard L. Kagan, Pleitos y pfeiteantes en Castilla, 1500-1700, Junta de Casti la y León, Salamanca, 1991, p. 224-225 e 228-229; e HERGOZ, Tamar. ^Letra do o teó log o? Sobr e el oficio de la just icia a prin c pios
152
QUEVEDO EM TELA DE JUICIO
época do Tribunal, uma consideração de oportunidade processual a respeito da perícia teológica não seria desatinada. O papel processual do pregador como perito teólogo satisfaria a função (político-eclesiástica, necessariamente complementar ao interesse político-administrativo estatal44) de conscientiam munire que as leis gerais não saberiam nem poderiam alcançar para verificar com suficiente e eficaz controle, porque, efetivamente, no caso de Quevedo, estas não haviam resulta do operativas. Como é sabido, o instrumento de vigilância e intervenção mais conhecido era oferecido pelo capítulo legal dispositivo (aprovações, censuras, li cenças e privilégios) para a impressão de livros, memoriais, gazetas ou qualquer papel avulso, como uma forma de prevenir livros perigosos ou clandestinos. Mas de algumas obras de Quevedo se produziram edições não consentidas pelo autor, sendo que as desejadas e buscadas por ele cumpriam com folga toda aquela classe de prescrições da burocracia do livro. E, com o próprio tempo, tampouco a ela boração de índices para a proibição e o expurgo - assim como o Index dei cardenal Zapata (1632)45- de autores suspeitos ou obras condenadas chegou a lhe afetar, pois Quevedo adiantou-se à possível conseqüência, solicitando motu proprio que fossem recolhidos os livros impressos antes de 1630 que se intitulavam de sua produção ou se diziam seus.46 Duas circunstâncias jurídico-processuais descartam, entretanto, que se possa atribuir um papel de perito judicial à intervenção do religioso pregador. A pri meira seria que o perito judicial deveria ser alheio à parte lesada, ao contrário do modo como, sob todas as luzes, o pregador se mostra e demonstra. A segunda seria que, na condição de não lesado, tampouco ele poderia interpor recursos (com o alcance a eles conferidos, como já destacado), como, ao contrário, faz o pregador. Nesse contexto, em que a lei autoriza determinados sujeitos, geralmen te ofendidos, a atuar processualmente em busca da condenação do acusado, surge aquele que chamamos de querellante adhesivo, pois sua ação segue como adesiva à atividade acusatória do Fiscal e, consequentemente, com plena substantividade e o rigor de uma parte processual. A peculiaridade da cointervenção ou intervenção adesiva do pregador como querellante, e que pode ao princípio levar à confusão, é que adota a forma retórica dei siglo XVIII. In: SCHOLZ. Johannes Michael (Ed.). Fallstudien zur spanischen undportugiesischen Justiz. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994. p. 697-714. 44 Ver QUAG LIONI, Diego. Conscientiam m unire: dottrine delia censura tra Cinque e Seicento. In: STANGO, Cristina (Ed.). Censura ecdesiastica e cultura política in Italia tra Cinque cento e Seicento. Firenze: L S. Olschk i, 2001. p. 37-54. 45 Cf. Novus Index Librorum Prohibitorum et Expurgatorum ; editus autoritate etjussu Eminentissimi ac Reverendissimi B. B. An ton ii Zapata. ExT ypog raphe o Francisci de Lyra, Hispali, 1632. Anto nio Zap ata y Cisneros (1551-1635). 46 Ver JAURALDE POU. Pabio. Francisco de Quevedo (1580-1645). Madrid: Castalia, 1998. p. 621.
153
DIREITO E LITERATURA
convencional de estilo culto própria das polêmicas literárias - o uso de autoridade,s47 e náo o método do mos italicus da glosa e da pós-glosa através da tópica jurídica (argumento analógico ou probabilístico) ou a retórica autoritária mediante a invo cação da communis opinio e a citação da doutrina dos doutores, do ius commune ou, em menor escala, das leis reais.48 Mas reconhecer essa singular circunstância não implica refutar o fato de que, ao incorporá-la a um marco processual, tais objeções morais e de valoração estética produzem novas funções de sentido que são já de va lor “jurídico”. É por isso que Direito e Literatura / Literatura e Direito, mutuamente, se imbricam no julgamento penal desta disputa literária. O êxito da estratégia jurídica de Pacheco de Narváez, ao investir neste papel querellante a figura do pregador, é confirmado pela desistência que ocorre na de fesa. O letrado litigante na defesa de Quevedo, que sob termos jurídicos-formais somente havia conseguido - e ainda sem sorte - desenvolver uma única defesa e uma súplica (Audiência Primera),49 quando tenta valer-se dos mesmos instru mentos que seu adversário,30 acabará subjugado de baixo do altíssimo umbral da autoridade e sapiência que marcam as alegações do pregador e, vencido e oprimi do, emudecerá já na Audiência Segunda, para renunciar (“se exonerou” da defesa, ainda que “não de se fazer presente”), dizendo: “que los derechos que él había estudiado era para defender los delitos que se les acomulaban (sic) a los hombres, hechos a los hombres cuando había dificultosa y no plena probanza; pero no bs cometidos contra Dios y b católica fe que tiene y ensena la Santa Iglesia Romana, que es gobernar por el Espíritu Santo; y más en particular constando, como constan, y están expresados en libros de molde, que es b 47 Ver AZAUSTRE GA UAN A, Antonio . El uso retóric o de as Au torid ad es en las polêmicas literarias sobre el estilo culto. In: MONTESA PEYDRÔ, Sa vador (Ed.). A zaga de tu huella. Homenaje al profesor Cristóbal Cuevas. Málaga: Universidad de Málaga, 2005. v. 1. p. 309-333. 48 Verifica-se este habitual proceder graças aos impressos registrados bibiiotecaria me nte como porcones (alegações e informações em direito), identificados em seu cabeçalho, empregado como título da alegação... por... (parte que 0 apresenta)... con/contra ... (contrária). Nesse sentido, a respeito do estudo de sua significação jurídica, ver CAMALLONGA, Carlos Tormo. El abogado en el proceso y la argumentación en los informes jurídicos dei XVIII. Ivs Fugit Revista de estúdios histórico-juridicos de la Corona de Aragó n, Zaragoza. n° 10-11, p. 887-939, 2001-2003; CAMAL LONG A, Carlos Tormo. El fín dei ius commune: as alegaciones jurídicas en el juic io civil de la primera m itad dei XIX. An uá rio d e Historia de i De recho Espafiol, Madrid. Ministério de la Justicia, n“ 71, p. 473-500, 2C01; CAMALLONGA. Carlos Tormo. El Derecho en las alegadones jurídicas dei siglo XVIII. Saitabi: revista de la Facultat de G eografia 1História, Universitat de Valéncia, n 3 50, p. 277-317, 2000; e. a:nda,CORONAS GONZÁLEZ. Santos M. Alegacones e Informaciones en Derech o (porcones) em la Castilla dei Antig uo Régimen. An uá rio de Historia de i Derec ho Espanol, Madrid, Ministério de la Justicia, n 3 73, p. 165-192, 2C03; CORONAS GONZÁLEZ. Santos M. Aíegacfones jur/dicas (Porcones). Concejo de Allande. O viedo: Junta General dei Principado de Asturias, O viedo, 2C03. v. 1; e. biblioteco nomicam ente, G ARCÍA CUBERO, Luis. Las alegadones en derecho (porcones) de la Biblioteca Nadonal tocantes a mayorazgos vínculos hidalguias genealogias y titulos nobi/iarios. Madrid: B blioteca Nacional, 2C04. 49 Cf. PACHECO DE NARVÁEZ, El Tribunal..., op . cit., p. 45 e 47. 50 ld., ibid., p. 51-52.
154
QUEVEDO EM TELA DE JUICIO
mismo que verbal confesión, que en cualquierjuicio trae ejecución aparejada, y que la poca defensa que había hecho a los cargos de este gênero que se le habían acriminado a don Francisco de Quevedo, se había podido conocer haber sido más de cumplimiento que de voluntad, ni que tuviese razón para ello; y que así, para los que faltaban, lo citasen o llamasen por edictos, y, presente, nombraría el letrado que más le conviniese; pero que teniendo por cosa cierta que no había de parecer a confesar sus culpas, aquello que tiene, ensenay persuade que es verdad, y también porque es cosa difícil juzgar el hombreporyerro en que se deleita, sepronunciasen bs autos en el tribunal, protestando que leparasenperjuicio como si estuviesepresente"
Suas razões expressam, além da própria limitação, uma descrença na inocên cia de seu patrocinado, consistindo a confissão ( Confessio estpienissimaprobatio et regina probationum ; Confessio est probatio probatissima), por via documental, no reconhecimento dos fatos trazidos até então pelo fiscal (e pelo querelante adesi vo); e, no que se refere ao restante, sem arguir coisa alguma, antecipando inclu sive conformidade com a contumâcia processual, isto é, ao declarar o demandado como incurso em rebeldia. Contudo, para Pacheco de Narváez interessava manter a figuração jurídico-formal da substância processual e, portanto, devia seguir criando a ilusão de ins tância judicial até o último momento. As acusações, tão abundantes em número durante as três primeiras audiências,52 diminuem mais adiante, de forma que a Audiência Cuarta e Quinta dedicam-se praticamente em sua totalidade a uma demorada exposição doutrinária em que o discurso do pregador brilha como sol sem adversário. Ocorre que, ao não renunciar a essa reluzente exibição, o autor confronta-se ainda com o risco de se fazer demasiado parecido com um juízo sem oposição, sem combate, sem contradição e, talvez, também sem justificação para continuá-lo. É por isso que Pacheco de Narváez opta por refrescar a acusação. Então, ela é formulada como inobediência (delito de desobediência) ao índice de Zapata, na qual Quevedo teria incorrido com a edição de Juguetes de la nihezy travesuras dei ingenio, que é, entretanto, de 1631.53 Na acusação foram incluídos os Suehos, compostos e ajustados para satisfazer a censura,54 cujos títulos origi nais foram em parte alterados: o Sueno deiJuicio F inal por Sueno de las calaveras\ 51 52 53 54
ld., ibid., p. 106-107 (itálico do tradut or). Seis, na prim eira; vin te e três. na segunda ; catorze, na terceira. Viúva de Alons o Martin, Madrid, 1631. Ver LIDA, Raimundo. Prosas de Quevedo. Barce ona: Critica, 1981, p. 215; e JAURALDE POU. Francisco de Queve do..., op. cit., p. 953-954.
155
DIREITO E LITERATURA
E l alguacil endemoniado por E l alguacil alguacilado\ o Sueno dei infiemo por Las zahúrdas de Plutón\ e o Sueno de la muerte por Visita de los chistes. Esta decisáo edi torial, que não isenta de risco, podendo ser qualificada como valente e até mesmo ousada,55 não constituía, entretanto, uma transgressão da medida inquisitorial, embora seja sustentada pelo fiscal com a adesão do pregador.
“en contravención dei decreto y pocos dias después que se publico, los volvió a dar a la imprenta y anadiendo otros tan peores como los primeros y [...] nuevamente imprimió un libro en que juntó todos los suyos, cuyo título es: Juguetes de la ninezy travesuras deiingenioi”.% Qual significado cabe, consequentemente, atribuir à referida acusação? Pa checo de Narváez consumou várias infrações procedimentais e, naturalmente, sérias rupturas à própria ideia de processo. Mas isto que agora ocorre é uma coisa bem diferente; não explicável na dramatização da causalidade da inventio e tampouco somente como “anacronismo”57 (ou melhor, procronismo). É dolosa (dolo directo) a utilização de expediente ilegítimo e antijurídico (o cometimento do delito pressupõe o descumprimento prévio de uma norma extrapenal, à qual se acrescenta um plus de antijuridicidade definido, por imperativo do princípio de legalidade, na própria redação do tipo), que vai muito além do que podem re presentar irregularidades capazes, em rigor, de produzir desajustes mais ou menos substanciais e, inclusive, uma grande falta de lealdade ou probidade processual, principalmente chegando a uma desarticulação da própria ficção literária, que pretendia fazer verossímil o artificio da substancialização jurídico-formal de um julgamento penal. Isto porque rompe com a estabelecida regra de ficcionalidade que Coleridge denominaria como suspensão da descrença?* ou da verdade da mentira, e introduz uma nova, não pactuada com o leitor, da mentira da verdade, isto é, da não veracidade, que envolve o desprezo tanto à verossimilhança quanto à verdade. A não veracidade implica, assim, o conhecimento da falsidade. É aí, então, que descobrimos que nunca houve simulacro, melhor ou pior 55 Cf. CROSBY, James O. Un grito de protes ta, de desprecio y de independencia: Q uev edo y los "Jug uete s de la ninez". In: DUTTOMN, Brian; ONCERO LÓPEZ, Valeriano (Coords.). Busquemos otros mo ntes y o tros rios: Estúdios de literatura es paüola dei Siglo de O ro dedic ados a Elias L Rivers. Madrid: Castalia. 1992. p. 99-104. 56 Cf. PACHECO DE NARVÁEZ, El Tribunal.... op. cit., p. 139. 57 ld., ibid., p. 27. 58 Cf. COLERIDGE, Samue Taylor. W il ing suspen sión of d sbelief. In: COLERIDGE, Samue Taylor. Biographia Literaria, or Biographical sketches o f my literary life and opinions (1817); ou, então, COLERIDGE, Samuel Taylor. Biographia Literaria. Ed. de, Jackson Bates e James Engell. Princeton: Princeton University Press, 1983, v. 2. p. 8.
156
QUEVEDO EM TELA DE JUICIO
tramado, de julgamento - o teatro processual —do que este que acreditamos estar assistindo: o Tribunal da justa venganza. Introduzir uma acusação falsa responde unicamente à obstinação de um inimigo em busca de vingança e que, juridica mente, carece de qualquer ju sta causa. Isto deve nos levar a questionar sobre para onde aponta e qual a finalidade e objetivo que a litis alcança. Todavia, convém antes sondar, pelo menos brevemen te, a respeito da possível importância jurídica da justa venganza.
3. SOBRE A IUSTA VINDICTA A expressão justa venganza não é - como talvez se pudesse crer - juridica mente tão imprópria. Nem de longe ela é órfã de referências em passagens do antigo e do novo testamento, nos quais se alude à cólera de Deus no exercício de seu divino direito de castigo. Assim, entre outros, no Deuteronômio (Dt. 32, 35) e no evangelho de São João (Jo. 7, 34), vê-se a ameaça aos pecadores que, em busca de clemência na hora da morte, não a encontraram, pois o fim do tempo da misericórdia será o tempo da justa vingança. Com traços imisericordioso e irrenunciável aparecem também a cólera e a raiva nos hexâmetros homéricos ( Iliada , Lib. XVI, p. 60-65), como igualmente será a de Orestes, em Electra, de Sófocles, pelo homicídio de Egisto e Clitemnestra. A pratica da justa vingança adquire sentido ao ser outorgada em face da ofensa (pecado ou desonra) e voltada para o restabelecimento da ordem e do equilíbrio perdidos. Outra referência, com origem no direito divino e marcada pelo seu caráter intangível (Dt. 4, 2; 12, 32) é a que, na lei mosaica, diz respeito à sua exceção. Nas cidades de refugio (direito de asilo a cidades e imunidade), nos casos de homicídio por erro (sem conhecimento) e sem que haja inimizade (isto é, por ação culposa, e não dolosa, sem malícia), o acolhido por elas evitaria a justa vingança dos próximos (parentes consanguíneos) ao morto (Dt. 4, 41-42, e 19,4; Josué, 20, 6).59 Com ambas se relacionam, também, outras várias existentes na literatura. E, entre todas, destacam-se as duas que seguem: 59 Com mais profu nd:dade. ver os artigos de GONZÁL EZ DE SOCUEBA Fernando. Jnstrucción manual para la más breve expedición de los casos prácticos y disputas de imm unidad local: no ticia histórica de su origen, progresos y estado, a la inteligência de las más modernas cons titudones pontifícias / que escribia D .... /en que se explican los casos exceptuados. en que los reos no gozan de inmu nidad por Derecho Canônico, leyes, ó Costumbres dei Reyno: Se apun ta la forma en qu e debe n hacerse las Extracciones de los Reos, yd es crib e el méth odo d e las Instanoas ante losJuezes Eclesiásticos, y los recursos más freqüentes, que pueden ofrecerse. Sevilla: Gerooymo de Castilla, 1766, Cap. I, p. 8 ss.
157
DIREITO E LITERATURA
“Laertez: - Le cortaria la garganta aun dentro de una iglesia. Rey: - Es verdad que ningún lugar debe servir a un asesino como asilo. Y una justa venganza no puede tener arreglos” (William Shakespeare, Hamlet [c. 1599/1601]. Acto IV. Es cena VII). “ passando pela épica do Romancero generaU até a época da qual ora nos ocupamos,61 sempre em virtude da satisfação que o ofendido por alguma violência reivindica, inclusive com vantagem, porque el cielo o tomou vengador. Esta é a concepção de ivsta vengança que, por sua vez, informa o fim purgativo da pena, pois, como foi assinalado, “la cercania entre las ideas de delito y pecado existente en las mentes y las obras de teólogos, juristas y legisladores hacía ver en el delincuente [...] un pecador; la violación de la ley penal justa ofende a Dios en todo caso, según ensenaban los teólogos castellanos dei s. XVI. Dado estos supuestos, la pena era principalmente el castigo merecido por el delincuente, y su imposición tenía muchos visos de una justa venganza; se aplicaba - como decían los documentos procesales de la época - para aplacar la vindictapública'?1 Ademais, tal concepção é também a que se aprecia e se descobre destacada na literatura jurídica do século XIX, de interesse para a educação jurídica e forense. 60 Nota da Tradutora: Cantar de gesta é uma expressão utilizada como epopeia. escrita na Idade Média ou uma manifestação literária pertencente àquele período histórico, que narra as façanhas de um herói, representando as virtudes do povo. 61 Tão conhecidas com o as de Lop e Félix de Vega y Carpio (1562-1635), em Peribáfíez y eí Comendador de Ocana (1614) e El mejor Alcalde, el rey (1620); ou, ainda, vale mencionar, Juan Ruiz de Alarcóny Mendoza (1580-1639), em Eí duen o de las estrellas (ed. 1634), e El más im propio verdugo po r la más justa venganza (ed. 1763), de Francisco d e Rojas Zorrilla (1607-1648). 62 Cf. TO MÁ S Y VALIENTE, Francisco. La tortur a en Espafta. Barcelona: Ariel, 1973, p. 186.
158
QUEVEDO EM TELA DE JUICIO
É o que se verifica, por exemplo, com a recepção, na Espanha, dos Elementos dei Derecho natural, de Jean-Jacques Burlamaqui (1694-1748), e das Recitaciones dei Derecho civil, de Johann Gottlieb Heineccius (1681-1741). O primeiro, tratando da instituição juramento, escreve: “é um ato pelo qual, para dar mais autorida de e crédito a nosso discurso ou a nossos contratos, nos submetemos de uma ma neira formal ajusta venganza de Deus em caso de mentira ou de infidelidade”.63 No segundo, glosando as causas de indigniíiade sucessória, lemos: “pois por justa vingança pode o filho deserdar ao pai que deu veneno à mãe daquele, ou vice-versa, deserdar a mãe que atentar contra a vida de seu pai”.64
4. PARA PONER E N TELA DE JUICIO (COLOCAR EM DISCUSSÃO) A resposta sobre a finalidade e objetivo da litis somente pode ser uma: apro veitar o julm inarle proceso para poner en telã de juicio. Esta hipótese me parece esclarecedora. Vejamos. Poner en tela de juicio (colocar em discussão ou em dúvida) é, antes de tudo, uma locução de antiga tradição jurídico-processual. Concerne à tenta tiva de transferir para via judicial a averiguação pré-processual (preliminar) de algum assunto ao redor do qual existem dúvidas da certeza ou legalidade, a fim de se fazer sobre ele uma posterior resolução. Sendo assim, a atividade do Tribunal da justa venganza seria, com efeito, a de um órgão judicial prima operis fundam enta litis; quer dizer, teríamos que nos imaginar situados diante de um órgão instrutor, perante o qual se ajuizou ação criminal, formulada pela acusação e à qual o pregador se vincula como querelante adesivo, e que, aceita a tramitação (não inadmitida a liminê), passa a instaurar diligências de comprovação (prévias ou preparatórias) sobre delitos ou faltas expressas na noticia criminis. Indícios ou fatos constitutivos de infração penal seriam os imputados a Quevedo: Maestro de Errores, Doctor en Desvergüenzas, Licenciado en Bufonerías, Bachiller en Suciedades, Cathedratico de Vizios e ProtoDiablo entre los Hombres. 63 Cf. BURLAMAQUI, Jean-Jacques. Elementos dei derecho natural. Traducidos dei latín al francês por Barbeyrac: y al castellano por D. M. B. Garcia Suelto. Madrid: Imp. de la Minerva Espafiola, 1820, p. 201. 64 Cf. HEINECCIUS, Johann Got tlieb. Rec/taciones de i derecho civil. Traducción ai casteilano, enriquecida con notas y adiciones considerables por Luis de Collantes y Bustamante; y aumentado con un apêndice de las matérias más notabes dei Derecho real de Espafia por un abogado dei Colégio de esta corte. Madrid: Imp. de Don Pedro Sanz, 1835, v. 2, p. 449 (Lib. II. Tít. XIII, §. DXXXI, Motivos pe os quais podem ser privados os pais de herança].
159
DIREITO E LITERATURA
A interpretação de que se trata da imitação de um órgão judicial do tipo instrutor, e não da classe litis opera, apoia-se no transcurso da Audiência Sexta, organizada mediante cinco Discursos, e mais concretamente do desenvolvimento do Primero Discurso. Com ênfase nas indecências e grosserias65que, já somadas ao acervo de bofetadas, vitupérios e insolências reunido nas audiências precedentes, dizem-se agora contidas na publicação de Juguetes de la ninezy travesuras dei ingenio, um dos juizes revela e antecipa o sentido de uma decisão que não lhe corresponde: “Si esta causa no hubiera de ir a tribunal superior y este nuestro tuviera poder para determinaria, desde luego diera mi voto que lo quemaran, y entendiera que hacia gran servicio a Dios y bien a toda la república. Pero respetemos el fin para que se refiere, que con santo acuerdo determinará lo que convenga”.66 É claro agora, pois, que a função deste Tribunal de la justa venganza não é a de plenário (litis opera). É sua característica, além disso, a ausência de alegações de bien probado e de conclusión para definitiva. Tecnicamente, portanto, a esse tribunal caberia unicamente adotar uma de cisão que remetesse, ou não, ao julgamento oral (logicamente, pautada hoje, por um anterior Auto de conclusión dei Sumario —com encontro das partes para a con formidade com o mesmo ou solicitação de novas diligências -, que deve refletir a opinião da acusação e do querelante conforme a petição destes acerca do que consideram juridicamente conveniente direito com relação à abertura do juízo oral ou do encerramento de qualquer tipo, provisional ou definitivo). Em suma, uma vez alcançado o esclarecimento sumário ( summaria cognitio) do assunto, caberia acordar com relação à procedência ou improcedência da acusação. No caso de se considerarem procedentes as acusações imputadas (hoje me diante Auto de transformación en Procedimiento Abreviado o en Sumario dei Proce dimiento Ordinário), a decisão assim formada incorporará então: um mero juízo de verossimilhança, interino e provisional, instrumentalmente preparatório, nunca confirmatório, sempre alterável à medida que se superar esta fase pré-processual e, sucessivamente, esse juízo se transformar cm juízo deplausibilidade (imputação como convicção, ainda que somente transitória e, todavia, precária de culpabili 65 Contra a tradição estético-linguistica da sátira menipea se dá atenção às insolências, baixezas e feias formas de linguagem quevediana. Sobre o tema, ver GOYTISOLO, Juan. Quevedo: la obsesión excremental. In: GOYTISOLO, Juan. Dis/denrias. Barcelona: Selx Barrai, 1977. p. 117-136; e, ainda. CUEVAS, Cristóbal. Quevedo y el lenguaje plebeyo. In: FERNÁNDEZ-SEVILLA, Julio et al. (Ed.) Philologica Hispaniensia in honorem Manuel Alvar. Madrid: Gredos, 1986. v. 3. p. 87-100. 66 Cf. PACHECO DE NARVÁEZ, El Tribunal.... op. cit., p. 146.
160
QUEVEDO EM TELA DE JUICIO
dade) e, mais tarde, em um juízo de probabilidade (com a virtude de proposição prática e debate da prova em contraditório), para, finalmente, fazer-se um juízo de certeza (declaração de fato provado ou verdade judicial). Atualmente, a incorporação de uma das garantias típicas do processo jurisdicional penal destinadas a preservar os direitos do imputado proíbe, em primeiro lugar, a dilatação no tempo da fase introdutória. Se, na época do Tribunal de la justa venganza não ocorria desse modo, tampouco o era do modo como o texto apresenta. Assim, o anômalo pronunciamento duplo do auto definitivo e final: “y acordaron que, quedãndose este tribunal eregido (sic), para si don Francisco de Quevedo reincidiere en sus delitos proceder contra él en la primera instancia, que de lo hasta aqui advertido se le diese cuenta al Supremo Tribunal de la Santa Inqui sición y a cada uno de aquellos senores en particular, por lo que toca a la causa de Dios, y lo mismo al Supremo Consejo de Justicia, como a defensa y amparo dei público bien; de cuyo cristianísimo ceio se debe y puede confiar quepor una parte, en eterno blasón y glorioso triunfo de nuestra religión sagrada, ypor la otra, el desagravio de los fieles vasallos, determinarán lo que más convenga T Esta forma, mudada e desfigurada, de imitar o ápice do iter procedimental, talvez supusesse o uso de licença tolerável eis que se trata do fingimento literá rio de um tribunal de justiça, ou seja, de uma ficção jurídica. No obstante, toda ficção - e esta também - contém sempre uma promessa de sentido, que aqui se revela em particular e bem diferenciado propósito: o desígnio em não somente poner (colocar), mas também mantener (manter) o imputado en tela de juicio (sob suspeita). O efeito não é outro, certamente, senão o de procurar uma sanção re forçada, com sofrimento em dobro, em razão da mera instauração do trâmite de averiguação, isto é, da pena de banquillo.6* Uma condenação à pena de banquiüo imposta a um imputado, cuja conduta dificilmente poderia ser merecedora de reprovação penal, acrescida à cominação penal já produzida com a acusação falsa e prolongada à medida que leva, em si mesma, o anúncio de ciência relativo à abertura do julgamento oral. Assim, o Tribunal de la justa venganza constrói seu artifício de desafiojudicia l sob uma deformada imagem discursiva e sêmica da satisfação e da tutela jud icial 67 ld.. ibid., p. 166. 68 Nota da Tradutora: no idioma espanhol, costuma-se usar a expressão pena de banquillo para designar o simples prejuízo que a instauração de um processo acarreta, já que este p ode durar m uitos anos, levando è tristeza e à inse gurança das partes.
16 1
A “SECURA”, A “IRA” E AS CONDIÇÕES PARA QUE OS FENÔMENOS POSSAM VIRÀ FALA: APORTES LITERÁRIOS PARA PENSAR O ESTADO, A ECON OM IA E A AU TON OM IA DO DIREITO EM TEMPOS DE CRISE* Lenio Luiz Streck " Rafael Tomaz de Oliveira " “A palavra náofo i fe ita para enfeitar, brilhar como ouro falso ; a p alavra fo ifeita para disser ”
( G r a c i l i a n o R a m o s ).
1. NO TAS INICIAIS: A LITERAT URA C O M O INSTÂNCIA PARA PENSA R O DIRE ITO Em Cem Anos de Solidão , Gabriel Garcia Márquez apresenta Macondo: uma aldeia pequena com vinte casas de barro construídas na beira de um rio. Neste lugar imaginário - que Garcia Márquez constrói como uma metáfora do mundo tudo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e, para mencioná-las, era preciso apontá-las com o dedo.1Esse quadro de coisas descrito por Márquez indica algo que a filosofia só percebeu plenamente no século XX a partir daqui lo que pode ser chamado de giro ontológicolinguístico:1 para significar as coisas, Este texto teve como impulso inicial os debates desenvolvidos no espaço do programa de televisão "Direito & Literatura", transm itido pela TVE/RS e TV JUSTIÇA. Para maiores detalhes e informaç ões sobre a program ação con sultar o site: . Também é imprescindível para um aprimoram ento das questões que envolvem o direito e a literatura a leitura dos livros organizados por André Karam Trindade, Roberta Magalhães Gubert e Alfredo Copetti Neto: Direito & Literatura: reflexões teóricas (Porto Alegre : Livraria do A dvo gado , 2008) e Direito & Literatura: ensaios críticos (Porto Alegre: Livraria do Adv oga do. 2008). Pós-doutorado em Direito Constitucional (Lisboa/Portugal). Professor Titular do PPGDireito da UNISINOS. Professor Visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC). Dou toran do em Direito Público (UNISINOS-RS). Bolsista do CNPq. Professor Universitário. 1 2
MÁRQUEZ. Gabriel Garcia. Cien Aõos de Soledad. Edição comemorativa da Real Academia de Língua Espanhola: Alfaguara, 2009. Qua nto ao g'ro ontológic o-lingu ístico , ver: STRECK, Lenio Luiz. O que é isto - dec ido conforme minha consciência? Porto Aiegre: Livraria do Ad voga do. 2010.
162
A - S E C U R A ' . A - I R A ' E A S C O N D I Ç Õ E S P A RA Q U E O S F E N Ô M E N O S P O S S A M V I R À FA LA
precisamos de palavras e, na medida em que temos palavras, temos cultura, ou melhor, formamos cultura. É desse modo, aliás, que Hans Blumenberg - o criador da metaforologia - poderá afirmar que, no momento em que se pronuncia uma palavra, ali surge uma instituição da cultura. Isto é: o ato de fala que inaugura o sentido de algo é um momento no interior do qual passa a ser possível mostrar um novo fenômeno ou, dizendo de outro modo, levar as coisas à manifestação sem que seja necessário “apontá-las com o dedo”.3 Também na literatura brasileira há autores que exploraram essa dimensão de trazer os fenômenos à manifestação através da linguagem. Certamente, Guima rães Rosa é o primeiro a ser lembrado pela composição/construção fenomenológica de palavras que possam mostrar as gretas inacessíveis da condição huma na. Nunca é dispensável lembrar que Grande Sertão: veredas é um livro sobre a própria condição humana. Aqui, novamente, estamos diante de uma articulação metafórica: o Sertão é o mundo4e dizer as coisas que acontecem no Sertão é o grande desafio de Riobaldo. Outra obra que também tematiza esse dilema de que as coisas precisam ser manifestadas fenomenologicamente pela linguagem é Vidas Secas, de Graciliano Ramos. A “secura” que se indica no texto não diz respeito apenas aos aspectos dramáticos da vida agreste dos confins do sertão nordestino. Nem tampouco se restringe às agruras que os retirantes suportam em sua existência errante. Eviden temente, essa secura toca em todas essas questões, mas diz respeito - principal mente - ao fato de que Fabiano, o protagonista, e os meninos, seus filhos, são jogados constantemente contra os limites de sua linguagem e, em muitas vezes, se sentem impossibilitados de manifestar as coisas por meio de palavras. Há uma passagem que descreve de modo emblemático essa “secura” da fala. Fabiano fora convidado por um “soldado amarelo” para jogar trinta e um no interior da venda de seu vilarejo. Faltavam-lhe palavras inclusive para recusar o convite e, diante disso, entrou no jogo. Poucos minutos depois, Fabiano sai da mesa como um matuto, esbravejando e sem se despedir. Enquanto se preparava 3
4
Veja-se. nesse sen tido. BLUMENBERG, Hans. Paradigmas para una Metaforologia. Madrid: Trotta, 1996. Nessa obra, se ana isam os limites existentes na linguagem conceituai que, quando não consegue levar um fenômeno à repre sentação. recorre a um processo de "transferência", que é o recurso da metáfora como condição para mostrar algo que escapa a um conc eito já conhecido. Há várias metáforas que aparecem nesse mom ento desc rito por Blumen berg. Uma das mais representativas é aquela que procura explorar as condições para a definição da verdade. Na história do pensamento, a verdade é referida sempre tendo com o fator mos trativo a ideia de luminos:dade, de clari dade, de luz, que não é exatamente aquilo que a verdade é, mas permite um acesso a ela por meio da transferência metafórica. No livro citado, o Filósofo mostra como cada paradigma lidou com essa metáfora e como o seu modo de apresentação foi modulado na história da filosofia. Ver, nesse sen tido. STEIN, Ernild o. A Instauração do Sen tido. Porto Alegre: Movimento, 1977. p. 11 ss.
163
DIREITO E LITERATURA
para voltar para casa, ele é surpreendido pelo “soldado amarelo” que lhe dá voz de prisão, sem ter um motivo claro. Afirma, apenas, que ele saiu do jogo sem se des pedir e que isso o teria deixado irritado. Segue-se disso uma pequena discussão, uma troca de insultos e Fabiano é surrado pelos soldados “agentes do governo” e depois levado à prisão. Já na cadeia, tem-se a seguinte passagem: Afinal para que serviam os soldados amarelos? Deu um pontapé na parede, gritou enfurecido. Para que serviam os soldados amarelos? Os outros presos remexeram-se, o carcereiro chegou à grade, e Fabiano acalmou-se: - Bem, bem. Não há nada não. Havia muitas coisas. Ele não podia explicá-las, mas havia. Fossem perguntar a seu Tomás da bolandeira, que lia livros e sabia onde tinha as ventas. Seu Tomás da bolandeira contaria aquela história. Ele, Fabiano, um bruto, não contava nada. Só queria voltar para junto de sinhá Vitória, deitar-se na cama de varas. Por que vinham bulir com um homem que só queria descansar? Deviam bulir com outros. A dificuldade da fala se agrava na medida em que se estende sua situação de prisioneiro: Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe felar direito? [...] se não fosse aquilo... Nem sabia. O fio da ideia cresceu, engrossou - e partiu-se. Difícil pensar .5 A “secura” da linguagem impede que as coisas sejam mostradas na feia, im pede que ele seja ouvido, seja para se defender, seja para reclamar. Essa secura aparece também em um episódio em que toda a família vai para a cidade, parti cipar das festividades natalinas. Os meninos, filhos de Fabiano e sinhá Vitória, se assustam e se encantam com as coisas da cidade: novidades. Uma vez mais, o novo precisa ser nomeado... Mas lhes falta a palavra. [Os meninos] Agora olhavam as lojas, as toldas, a mesa do leilão. E conferenciavam pasmados. Tinham percebido que havia muitas pessoas no mundo. 5
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 111. ed. São Pauio: Record, 2009, p. 33.
164
A - S E C U R A ' . A - I R A ' E A S C O N D I Ç Õ E S P A RA Q U E O S F E N Ô M E N O S P O S S A M V I R À FA LA
Ocupavam-se em descobrir uma enorme quantidade de objetos. Comunicaram baixinho um ao outro as surpresas que os enchiam. Impossível imaginar tantas maravilhas juntas. O menino mais novo teve uma dúvida e apresentou-a timi damente ao irmão. Seria que aquilo tinha sido feito por gente? O menino mais velho hesitou, espiou as lojas, as toldas iluminadas, as moças bem-vestidas. En colheu os ombros. Talvez aquilo tivesse sido feito por gente. Nova dificuldade chegou-lhe ao espírito, soprou-a no ouvido do irmão. Provavelmente aquelas coi sas tinham nomes. Sim, com certeza as preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes. Puseram-se a discutir a questão intrincada. Como podiam os homens guardar tantas palavras? Era impossível, ninguém conservaria tão grande soma de conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas.6 Tudo isso pode nos mostrar como que, o tempo todo, somos destinados a enfrentar o dilema de levar os fenômenos à manifestação. É preciso, de al gum modo, fazer com que as coisas vivenciadas possam ser carregadas pela linguagem e mostradas pela fala. Mas, se somos jogados o tempo todo contra os limites da linguagem, o que fazer quando a voz, depois de se deparar du ramente com as ranhuras da realidade - dos conflitos sociais, das crises eco nômicas, dos embates políticos - e de conseguir “dizer” tudo aquilo que ficou escondido em algum lugar do não dito, é suprimida e simplesmente não pode ser ouvida? Toda a construção do direito moderno e contemporâneo precisa enfrentar duas questões que estão relacionadas com essa primeira: como levar os fenômenos jurídicos à manifestação de forma a não destilar/insular do dis curso a realidade? Como fazer com que aquilo que se emudece por meio da tradicional ficcionalização do discurso jurídico possa irromper na superfície da dogmática jurídica? Pensamos que a literatura oferece uma interessante instância para se re fletir sobre essa instigante questão. Note-se: a literatura deu conta de jogar para dentro do jogo estético das formas literárias as vicissitudes do cotidiano e “exorcizar” a realidade através de diversas formas de realismo literário, desde Flaubert e sua Madame Bovary. Paralelamente, podemos facilmente perceber que não houve, no seio da literatura jurídica, um “choque de realidade” desse tipo. Por isso, nosparece interessante reivindicar—nessa ordem de ideias —algo que, 6
ld.. ibid., p. 82.
165
DIREITO E LITERATURA
ludicamentet poderia ser nomeado de um 'realismo literário no direito n. Um modo de atirar a realidade reprimida para dentro do discurso jurídico. Cuida-se da necessidade de construção de grandes narrativas no direito que possa levar à representação fenômenos complexos que a realidade apresenta, sem excluir as amarguras, os vícios e as frustrações que emanam da faticidade. Veja-se, nesse sentido, que a dogmática jurídica é pródiga para oferecer exemplos sobre o crime de furto. Fala-se das condições de sua realização, qualificadoras, agravantes etc. Mas não se consegue introjetar nessa “narrativa jurídica” quebras de bancos e o colapso do sistema econômico mundial. Afinal, o que foi feito pela literatura jurídica - desde a dogmática mais rasteira, até aquela que se apresenta como “crí tica” -, além de se repetir, quase que liturgicamente, um exegetismo dogmático que se estende na história desde os albores do século XII com os glosadores da Escola de Bolonha? ’ Faz-se necessário, portanto, que a literatura jurídica não seja uma fotografia maquiada da realidade. Para além disso, torna-se imperioso que - no desafio de levar as coisas à fala, explicitando aquilo que foi compreendido - se possa reconhecer o negativo dessa fotografia e que, através dele, seja possível trazer à superfície as mazelas da sociedade. Essa é a tarefa dessa instância oferecida pela literatura para pensar o direito. Esse é o objetivo disso que foi aqui nominado “realismo literário no direito”.
7
Importante referir que, há tempos Lenio Streck vem denunciando a eterna reprodução daqu ilo que Luis Alberto Warat chamou de senso comum teórico dos juristas. De fato, no interior desse senso comum "ocorre uma ficcionalização do mun do jurídico, com o se a realidade social pudesse ser procustianamente aprisionada/moldada/explicada através de verbetes e exemplos com pretensões universalizantes. Alguns exempios beiram o folclórico, como no caso da explicação do "estado de necessidade" constante no art. 24 do Código Penal, não sendo incomum en contrar professores (ainda hoje) usando o exemplo do naufrágio em alto-mar, em que duas pessoas (Caio e Tício, personagens comuns na cultura dos manuais) 'sobem em uma tábua', e na disputa por ela um deles é morto (em estado de necessidade, uma vez que a tábua suportava apenas o peso de um deles...!). Cabe. pois a pergunta: por que o professor (ou o manual), para explicar a excludente do estado de necessidade, não usa um exemplo do tipo 'menino pobre entra no Supermercado Carrefour e subtrai um pacote de bolacha a mand o de sua mãe, que não tem o que comer em casa?' Mas isto seria exigir demais da dogmática tradicional. A final de contas, exemplos deste tipo aproximariam p erigosame nte a ciência jurídica da realidade social...! Na mesma linha: em importante concurso público realizado no Rio Grande do Sul. perguntou-se: Caio quer matar Tício, com veneno; ao mesmo tempo, Mévio também deseja matar Tício (igualmente com veneno!). Um não sabe da intenção assassina do outro. Ambos minis tram apenas a me tade da dose etal (na pergunta, não há qualq uer esclarecimento acerca de como o personag em Tício - com certeza um idiota - beb e as duas porções de veneno). Em conseqüência da ingestão das meias-doses, Mévio vem a perecer... Encerrando, a questão do aludido concurso indagava: Caio e Mévio respondem por qual tipo penal??? Em outro concurso, de âmbito nacional, a pergunta dizia respeito à solução jurídica a ser dada ao caso de um gêm eo xifópag o ferir o outro (com certeza, gêmeo s xifópagos andam armados, em cada esquina encontramos vários de es)". Cf. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. 8 . ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2C08, p. 85.
166
A ' S E C U R A ' . A ' I R A ' E A S C O N D I Ç Õ E S P A R A Q J J E O S F E N Ô M E N O S P O S S A M V I R À FA I A
2. AS “VINHAS DA IRA” DO NEOLIBERALISMO: A PARADOXAL RELAÇÃO ENTRE A DIFICULDADE DE LEVAR OS FENÔMENOS À FALA E A IMPOSIÇÃO DO EMUDECIMENTO DA VOZ Se Vidas Secas nos apresenta de maneira radical o problema da “secura” da linguagem no momento em que falta a palavra, outro livro - que também retrata a epopeia de retirantes em busca de uma Canaã para o estabelecimento de uma vida melhor - traz à tona o “emudecimento” dos excluídos a partir de sua impos sibilidade de conquistar um lugar de fala. Com efeito, As Vinhas da Ira , clássico de John Steinbeck,8além da proximidade temporal que possui com a edição de Vidas Secas, cuida também das dores de uma gente excluída e miserável. No mais, ambos os livros representam uma boa metáfora para auxiliar na compreensão da problemática do papel do Estado nestes tempos de globalização econômica9e de estouro da bolha especulativa. As Vinhas da Ira se passa na depressão americana póscrack de 1929. Na obra, os excluídos, produtos dessa crise, vão à procura da terra prometida, os verdes vales da Califórnia, onde seria possível apanhar o alimento no lugar em que estivesse - o paraíso para aquela gente expulsa pela mecanização e pela ganância do sistema capitalista. O new deal capitaneado por Roosevelt esbarrava no poder judiciário, cuja Supreme Court insistia em declarar inconstitucionais atos que provocavam intervenção na economia. No imaginário dos juizes, o laissezfaire era o único modo de civilização possível. Cada um se vire como puder. O Estado deve servir para outras coisas, e não para gerar empregos e atrapalhar o livre desenvolvimento da economia. A ideia liberal-individualista afastava a possibilidade da regulação e interven ção estatal na economia. Ocorre que, quanto mais se “odiava” o Estado, mais as contradições sociais aumentavam. Nas Vinhas da Ira, esse povo excluído - metáfora da pobreza norte-americana - vai em busca do novo. Mesmo na crise, é possível 8 9
Cf. STEINBECK, John . As Vinhas da Ira. 9. ed. São Paulo: Record, 2009. Neste particular, é importa nte esclarecer, com Pierre Bourdieu, que a globalização econôm ica difere substancial me nte das outras formas de globalizaç ão (cultural, socia etc.). Com efeito, Bourdieu assevera que globalização designa "uma política econômica que visa unificar o campo econôm ico por to do um conjunto de medidas jurídico-politicas destinadas a suprimir tod os os imites a essa unificação, todos os obstáculos, em sua maioria íigados ao Estado-nação, a essa extensão. Isso define, com precisão, a política neoliberal, inseparável da verdadeira propa ganda econôm ica que lhe confere uma parte de sua força simbólica através da amb igüidade da noção. A globalization econômica não é um efeito da mecânica das leis da técnica ou da economia, mas o produto de uma política impleme ntada p or um c onjunto de agentes e de instituições e o resultado da aplicação das regras deliberadamente criadas para fins específicos, a saber, a liberalização do com ércio (trade liberalization), isto ó, a eliminação de todas as regu ações nacionais que freiam as empresas e seus investimentos. Em outras palavras, o 'mercado mundial' é uma criação política (como havia o mercado nacional), produto de uma política mais ou menos conscientemente acordada". Cf. BOURDIEU, Pierre. Contrafogos 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 100-101.
167
DIREITO E LITERATURA
fazer uma redenção; mais do que redenção, preservar o que resta do velho. É o papel matriarcal desempenhado pela personagem mãe do protagonista-mor do enredo de Steinbeck. Ele mesmo, o autor do romance, vinha do movimento operário. Sabia do papel do Estado. Tinha consciência da necessidade da regulação. Sem o Estado, a barbárie. Pensemos na cena: os tratores invadiram as terras, enormes monstros de ferro a se moverem qual insetos, possuidores da ligeireza dos insetos. Os tratores rastejavam pelas terras, imprimindo nelas as marcas de suas correntes. Monstros de nariz chato, a levantar a poeira, enfiando nela o focinho, marchando firmes pelas terras duras, arrasando cercas, não respeitando cabanas, demolindo tudo na sua rota implacável. Como representar isso em palavras? Como manifestar as dores dos viventes perante o direito e o Estado? Por outro lado, depois de todo esforço para levar esses fenômenos a uma dimensão mostrativa, quem ouvirá o sofrimento? Quem denunciará a barbárie? Quem ouvirá os que não têm voz? Pois a crise de 1929 acaba debelada pelo odiado Estado. Passadas tantas dé cadas, o mundo foi desaprendendo. Como no livro do Êxodo, desconfiados da “aliança”, os homens constroem o bezerro de ouro. Para que Estado? As décadas de 1970 e 1980 do século XX foram pródigas no amaldiçoamento dessa Instituição que, entre outras, fundou a modernidade: o Estado enquanto interdição/regulação, distinguindo a civilização da barbárie. Os economistas foram aperfeiçoamento os seus xingamentos contra o Estado, com epítetos quase impublicáveis. Falar em Es tado regulador era voltar à pré-história. Imagine-se falar em Constituição dirigente ou Constituição econômica nestes tempos “pós-modernos”. A economia funciona sozinha. Melhor dizendo, funciona melhor na medida em que há menos Estado. Essa ficcionalização dos economistas - ilusão pós-modema de uma “quase teoria sem Estado” (um Marx às avessas?) - nos legou o “triunfo neoliberal”, o fim da história. O fim das utopias. Ocorre que, sem que os economistas fizessem qualquer prognose, há uma nova crise, tão grave ou pior que a de 1929. Fomos surpreendidos: quebra o primeiro banco e a conseqüência é o efeito dominó. Quem é chamado para salvar o mundo? O velho Estado. Como na crise de 1929, apela-se às burras do tesouro para salvar o sistema financeiro mundial. Oitenta anos depois, tem-se a impressão que Lord Keynes está de volta. Ao invés dos excluídos buscarem as verdes vinhas da Califórnia, os novos “exluídos” são os banqueiros que vão à Canaã pós-moderna: o velho Estado. E os verdadeiros excluídos? Estes se perdem nas periferias do capitalismo, no duplo sentido da pa lavra: na periferia das cidades do centro do capitalismo e na periferia geopolítica do mundo. 168
A - S E C U R A ' . A - I R A ' E A S C O N D I Ç Õ E S P A RA RA Q U E O S F E N Ô M E N O S P O S S A M V I R À FA FA LA LA
As reflexões aqui encaminhadas pretendem se inserir nesta esfera de proble mas, procurando responder às seguintes perguntas: qual o significado do Estado (e do Direito) neste momento de instabilidade econômica? Por que é importante defender a autonomia do direito frente aos discursos predatórios da economia? Qual seu papel na resolução desse complexo jogo de forças? Para responder a tais questionamentos, é preciso (fenomenologicamente) revolver o chão lingüís tico da história, compreendendo em que medida o Estado moderno se apresenta como um mecanismo de intervenção na economia e na sociedade, procurando apontar para o grande problema que se apresenta como um elemento antidemo crático, como um fantasma a assombrar a autonomia do direito: a discricionariedade (política (política ou judicial). A colocação de tais questões se faz importante no momento em que o mun do é arrebatado por uma grande ironia: a empresa que deu início ao modelo eco nômico nômic o que, mais tarde, daria vazão vazão ao neoliberalismo, volta agora para o Estado, com súplicas de salvamento.10Em salvamento.10Em uma um a de suas mais instigantes ironias, Machado de Assis, pela boca de Brás Cubas, dizia que “é melhor cair das nuvens que do terceiro terceiro andar...”. O que o grande gênio da literatura brasileira diria dessa grande ironia criada pela própria próp ria política polít ica econômica econôm ica dos países centrais? centrais? Provavelmen Provavelmente, te, ele a colocaria em seu “trapézio de ideias”. De todo modo, é possível dizer, sem medo de d e erra errar, r, que, com o “fim da d a história”, a política econômica econôm ica neoliberal neoliberal caiu. caiu. E não foi “das nuvens”.
3. OS TRÊS MOM M OMENTO ENTOSS PA PARA A CONSTRUÇ CON STRUÇÃO ÃO DA AUTONOMIA DO DIREITO: DIREITO: O CONSTITUCIONALISMO CONSTITUCIONA LISMO CONT CO NTEM EMPO PORÂ RÂNE NEO1 O11COM 1C OMO O RESPOSTA À BARBÁR BARBÁRIE IE E A APOSTA APOSTA NO CONT CO NTRO ROLE LE DA ECONOM ECON OMIA IA PELO PELO DIREITO DIREITO No fundo, o Estado, em sua conformação moderna, sempre é uma resposta a um problema muito específico. Isso significa que sempre há um coeficiente de 10 Refiro-me ao caso caso da da empresa General Moto rs (GM), que, ainda ainda na década de 19 1970 70.. criou o ideal ideal de " ob so escên escência cia programada", aumentando demasiadamente os níveis de produção em consumo e dando inído à expansão de um comércio gioba! de seus produtos, que teve, recentemente, sua concordata decretada pelo judiciário Norte-Americano . Se gundo noticia a revista revista Carta Capital, a Capital, a GM ch egou ao fim com um a dívida acumulada em 176 bilhões de dóiares. Esse fato levou o governo dos Estados Unidos a comprar 60 por cento das ações da empresa, sendo, agora, o povo americano seu efet'vo "dono" Cf. GM, 1908-2009. Carta Capital. 10.6.2009, Capital. 10.6.2009, p. 50-52. 11 Deixamos de usar usar o termo "n eoc onstitu cion alism o” po r uma questão técnica técnica específica, específica, que está exposta na intro dução da quarta edição da obra Verdade e Consenso, de Lenio Luiz Streck (Saraiva, 2011), para a qual nos permiti mos remeter o leitor.
169
DIREITO E LITERATURA
intervencionismo, em maior ou menor medida, nas formas de Estado desenvol vidas no interior da modernidade. Sua formatação em Hobbes, por exemplo, atende à necessidade de colocar fim às guerras civis religiosas evitando, assim, a bellum omnium contra omnes. As Constituições do primeiro constitucionalismo surgem como instrumentos de limitação dos Poderes de um monarca despóti co (França), para institucionalizar o ideal de monarquia limitada (Inglaterra), e para unificar um grupo de colônias que sofria com as imposições autoritárias da metrópole (Estados Unidos da América). América). No N o segundo pós-guerra, pós-guerra, a necessid necessidade ade de se responder às mazelas da Segunda Guerra Mundial e o reconhecimento do “fracasso do direito” - lembramos que, nesse período, todas as atrocidades foram cometidas sob o pálio da legalidade legalidade - dá origem ao novo constitucionalismo constitucionalismo (que chamamos de Constitucionalismo Contemporâneo), a partir do qual Estado, Constituição, Democracia e Direitos Fundamentais serão pensados de maneira unificada, em torno da construção de uma comunidade política que possibilite a conformação concreta do ideal de vida boa. É exatamente no interior da revolução do Constitucionalismo Contempo râneo que será vivenciada a assim chamada “era de ouro” do capitalismo, en tendida como o período em que o direito agiu, efetivamente, como regulador da atividade econômica. Isso tem uma importância histórica: foi a época em que ocorreu ocorreu - na maioria dos países europeus, europeus, v. g. Alemanha, Itália, Espanha e Portugal Portugal - uma verdadeira verdadeira constitucionalização da economia econom ia que, nos moldes de um Estado Social e Democrático de Direito, regulava não apenas a interven ção direta direta do Estado na economia - enquanto efetiv efetivoo agente agente econômico -, - , mas também oferecia os contornos que a atuação econômica dos particulares deveria obedecer. E isso é paradigmático. Explicamos: todas as principais Constituições - inclusi inclusive ve a bras brasileir ileiraa de 1988 - , formatadas nos moldes do Constitucionalismo Contemporâneo, representam um novo começo para países que passaram por experiências totalitárias ou ditatoriais. Vale lembrar que, em todos esses casos, a máquina estatal foi um instrumento do grande capital, para efetuar as reformas que o próprio própr io capitalismo capit alismo estava a reivindica reivindicar.1 r.12Ou 2O u seja, também tam bém os Estados Esta dos tota t ota litários são conseqüências de uma estratégia do próprio capital para implementar as medidas necessárias necessárias para sua própria preservação. preservação. 12 Segund o o mestre portug uês: "é h oje inequívoco que o estado fascista fascista e os partidários nazifascist nazifascistas as foram foram ins tru mentos do grande capital. O nazismo não foi o resultado da 'loucura' de um homem complexado e fanático, foi a solução friamente construída pe o grande capital para, naquelas condições concretas, resolver os problemas da questão social e do governo da economia" (NUNES, Antônio José Avelãs. O Estado Capitalista. Mudas para perma necer igua a si próp rio. In: Con stituição e Estado Social: os Social: os obstáculos á concretização da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 55).
170
A - S E C U R A ' . A - I R A ' E A S C O N D I Ç Õ E S P A RA RA Q U E O S F E N Ô M E N O S P O S S A M V I R À FA FA LA LA
Sáo, portanto, os três momentos decisivos para a teoria do Estado e para a (re)modelaçáo dos mecanismos mecanismo s de intervenção intervenção economia e social: 1) a construção do Estado Absolutista e a definição de um elemento neutro capaz de deliberar e aplicar a interdição do direito aos súditos; 2) o aparecimento das Constituições escritas como mecanismos de contenção do poder instituído por esse Estado; 3) a nova definição dos contextos intercambiantes int ercambiantes entre entre democracia, direitos funda fun da mentais, mentais, Estado E stado e Constituição com a revoluç revolução ão copernicana copernicana operada pelo pelo Cons Co ns titucionalismo titucionalismo Contemporâneo. O que é importante ressaltar, dentro desse apertado criptograma, é que, com o Constitucionalismo Contemporâneo, se dá a radicalização de uma efetiva auto nomia do direito. Autonomia essa que, como já demonstrei alhures, não se limita a uma delimitação formal do campo de análise da ciência do direito, mas, sim, a uma material determinação da juridicidade. Ou seja, nesse ambiente, o jurídico não pode ser, de forma predatória, indexado à economia ou a qualquer outro componente do poder social. A autonomia do direito representa a construção de um contexto de garantias que deve(ria) regular o econômico e não se subme ter aos seus auspícios. auspícios. Ocorre que o movimento desregulamentador desregul amentador - que ficou conhecido como c omo neoliberalismo13— neoliberalismo13—operou operou um retrocesso retrocesso nesse ponto em espe cífico. Dito de outro modo, o discurso neoliberal foi e continua sendo o grande “predador” da autonomia do direito. 13 Cum pre lembrar que, o movim ento neoliberal. neoliberal. que se apresenta apresenta com ares de ideologia dom inante com maior ênfase a partir da segunda metade da década de 1990. tem raízes históricas na crise do dólar de 1962-1963 e nos choques do petróleo ocorridos na década de 1970. Com efeito, essas duas crises econômicas desferirão um golpe certeiro no capitalismo industrial (organizado): a primeira representada pela insustentabilidade da paridade dólar-ouro com a subsequente erosão do dólar como moeda-reserva internacional estável, levando à flutuação do câm bio, abrindo caminho para a progressiva desorganização do sistema de regulação criado na metade da década 194) peio acordo de Bretton Woods; a segunda consubstanciada no choque do petróleo de 1973/197^ e de 1978/1979. Estes Estes dois fatores impuseram - e foram usados como justificativas para o processo de desestatização da econom ia uma remodelação global do sistema capitalista, para não sucumbir novamente (como ocorreu em 1929). Essa "nova face" do capitalismo passa a polarizar a pesquisa científica buscando novos avanços na área tecnológica, com uma tentativa implícita de diminuir a dependência "toxicológica" do capitalismo de indústria em relação ao petróleo. O aparecimento crescente de novas tecnologias começa a extrapolar os limites geográficos dos países centrais na busca por novos mercados, atracando sua nau evolutiva no cais dos países periféricos. Essa revolução tecnológica, que ganha força principalmente no início dos anos 1980, traz como rótulo a relatividade. É relatividade. É nesta época que toma forma o ideal de "obsolescência programada". Com efeito, os bens consumíveis não são mais feitos para durar anos. mas apenas meses. A informática começa a tornar tudo rápido e fácil. Um novo ramo da engenharia, que combina a mecânica e a eletrônica com a informática (mecatrônica). passa a tornar dispensável o trabalho humano, reduzindo absurdamente os custos da produção m ediante a concepção de aparelhos aparelhos robotizados que imitam a mão de obra braça . O desemprego volta então a ser problema, mesmo nas nações mais ricas. A tendência irracional à mundialização inerente ao capital, potencializada por este fustigante processo de informatização e mundialização das telecomunica ções - a produçã o e o comércio, não mais se conduze m po r uma organização sistêmica local, local, mas po r uma organização de redes interconectas de produ ção, investime nto e comé rcio passa passa a apresentar um novo quadro de ordem para o mundo: minimização do Estado com o conseqüe nte aumento de discricionarledade discricionarledade dos minimização do Estado mercados na realizaçã realização o da "integraç ão m undial” . Par Para a tanto, pregam-se políticas políticas de "flexibilização" "flexibilização" e "desc onstitucionalização" dos direitos sociai sociaiss com o conseqüente enfraquecimento do dirigismo constitucional e de tod a teoria constitucional constitucional e rigida no segun do pós-guerra.
17 1
DIREITO E LITERATURA
No fundo, os problemas que o mundo vivência com a explosão da bolha especulativa podem ser debitados, em grande parte, a esse caráter caráter predatório assu mido pelo neoliberalismo. No campo da teoria do direito, esse problema se torna ainda mais agudo na medida medid a em que posturas teóricas teóricas como a Law andEconomic andEconomicss ganham ganh am cada c ada vez mais terreno.1 terreno. 14
4. O PRINCÍPIO DA AUTONO AUT ONOMIA MIA DO DIREITO DIREIT O E SUAS SUAS IMPLICAÇÕES PAR PARA O DEBATE CONTE CO NTEMP MPORÂ ORÂNEO NEO Nesse contexto, passa a ser importante discutir o sentido e as condições de possibilidade do estabelecimento da autonomia do direito frente àquilo que, de forma figurativa, podemos chamar de discursos predadores. É preciso consignar que esses discursos predadores atingem o direito em vários níveis. Sendo mais claro, os discursos predadores podem atacar o direito em sua esfera externa e ou em sua esfera interna. N a esfera própr ia dogmática dogmá tica jurídica acaba por po r corromper os níveis níveis esfera interna intern a, a própria sensíveis sensíveis da autonomia autono mia do direito ao propor prop or teses - de caráter caráter persuasivo, persuasivo, no mais das vezes com pretensões ad hoc -, como a relativização da coisa julgada (que enfraquece as garantias do Estado Democrático de Direito a partir da fragilização do mecanismo de imunização das decisões judiciais) ou em movimentos com ca racterísticas mais subterrâneas, que não se apresentam com ares de tese, mas que estão presentes no imaginário dos juristas e nas decisões dos tribunais, como é o caso daquilo que venho chamando de panprincipiologismo . 15 Já os predadores externos que interessam de modo mais direto para efeitos destas reflexõ reflexões es - são os discursos provenientes provenientes de outros campos, cam pos, mas m as que adju adju dicam teses jurídicas juríd icas e acabam, por vezes, vezes, por influenciar decisões e relativ relativizar izar os mecanismos de garantias construídos sob o pálio do direito. Tais predadores são, basicamente, de três espécies: (a) morais; (b) políticos; (c) econômicos. Os predadores morais são aqueles que qu e estabelecem um nível de correção correção para as decisões jurídicas, nível este que se encontra situado fora do campo jurídico. Advogam a tese de que, quando o direito falha na resolução de um caso, a moral 14 Para Para uma crítica porm enorizada das teses da Law and Economics, Cf. ROSA, ROSA, Alexandre Morais da; LINHARES, LINHARES, José Manuel Aroso. Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 15 Cf. STRECK, STRECK, Leni Lenioo Luiz. Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas da Possibilidade à necess:dade necess:dade de respostas corretas em Direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. 2009. De se consignar que há c on tribuições importantes para um dep uramento do c onceito de princípio no direito. Nesse sentido, sentido, importan te referir: referir: TOMAZ DE OLIVEIRA, Rafael. Decisão Judicial e o Conceito de Princípio. P orto A egre: Livraria Livraria do Advo gado , 2008. 2008.
172
A - S E C U R A ' . A - I R A ' E A S C O N D I Ç Õ E S P A RA Q U E O S F E N Ô M E N O S P O S S A M V I R À FA LA
deve ser chamada a socorrer as insuficiências do “ordenamento jurídico”. Trata-se de uma posição teórica que desconsidera a co-originariedade entre direito e moral (Habermas) e pode ser notada, sensivelmente, na Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy. Já os predadores políticos se apresentam como aqueles discursos que pregam uma identificação entre política e direito, que pode ser notada na frase que define as posturas do realismo jurídico, em que se diz: “o direito é aquilo que os tribu nais dizem que ele é”. Por fim, os predadores econômicos podem ser notados em posturas sofisti cadas que se situam no âmbito da teoria do direito - como é o caso da já citada Law andEconomics ou, então, no pragmatismo das políticas neoliberais que, sob o argumento da desregulamentação e da desestatização da economia, levaram o mundo à beira do caos econômico. De se ressaltar que foi esse tipo de política econômica que levou à falência o sistema financeiro mundial na atual crise eco nômica. Portanto, uma das tarefas mais importantes da teoria do direito na atualida de é a de oferecer as condições para o resguardo da autonomia do direito. Nessa medida, apresento a autonomia do direito como um princípio. Esse princípio se reveste de uma roupagem nitidamente hermenêutica, pois deve se encontrar na base de toda decisão jurídica tomada na resolução dos casos concretos. Impor tante esclarecermos, ainda que perfunctoriamente, o significado deste princípio.16 Cimeiro, este princípio abarca vários padrões interpretativos trabalhados pelo direito constitucional a partir do segundo pós-guerra, denominados mé todos ou princípios, tais como o da correção funcional (designado por Muller como princípio autônomo que veda que a instância decisória venha a alterar a distribuição constitucionalmente normatizada das funções nem por intermédio do resultado dela), o da rigidez do texto constitucional (que blinda o direito contra as convicções revolucionárias acerca da infalibilidade do legislador), o da força normativa da Constituição e o da máxima efetividade (sentido que dê à Constituição a maior eficácia, como sustentam, por todos, Pérez Luno e Gomes Canotilho). Mais do que sustentáculo do Estado Democrático de Direito, a pre servação do acentuado grau de autonomia conquistado pelo direito é a sua pró pria condição de possibilidade e, por isso, é erigido, aqui, à condição de princípio 16 É possível dizer, em largas linhas, que apresentamos uma teoria da decisão judicial baseada na autonomia do direito (que gera o dever de resposta correta/adequada è Constituição) e de seu sistema de garantias, em detrimento de uma teoria da decisão baseada em argumentos utilitaristas de cunho econômico, p or exemplo. Esta última perspec tiva está na base dos argumentos da Law and Economics. Ver, para tanto ROSA. LINHARES, op. cit.
173
DIREITO E LITERATURA
basilar, unindo, conteudisticamente, a visão interna e a visão externa do direito. Trata-se, também, de uma “garantia contra o poder contramajoritário” (Ricardo Guastini denomina “garantias contra o Poder Judiciário”), abarcando o princípio de legalidade na jurisdição (que, no Estado Democrático de Direito, passa a ser o princípio da constitucionalidade). O direito exsurgido do paradigma do Estado Democrático de Direito (forja do a partir do segundo pós-guerra) deve ser compreendido no contexto de uma crescente autonomização, alcançada diante dos fracassos da falta de controle da e sobre a política. A Constituição, nos moldes construídos no interior daquilo que denominamos constitucionalismo social e compromissório, é, assim, a mani festação desse grau de autonomia do direito, devendo ser entendido como a sua dimensão autônoma face às outras dimensões com ele intercambiáveis, como, por exemplo, a política, a economia e a moral. Essa autonomização dá-se no contexto histórico do século XX, tendo atingido o seu auge com a elaboração das constituições do segundo pós-guerra. Trata-se de uma autonomia entendida como ordem de validade, represen tada pela força normativa de um direito produzido democraticamente e que institucionaliza (ess)as outras dimensões com ele intercambiáveis (portanto, a autonomia do direito não emerge apenas na sua perspectiva jurisprudencial, como acentua, v. g., Castanheira Neves; há algo que se coloca como condição de possibilidade ante essa perspectiva jurisprudencial: a Constituição entendida no seu todo principiológico). Em outras palavras, sustentado no paradigma do Estado Democrático Constitucional, o direito, para não ser solapado pela econo mia, pela política e pela moral (para ficar apenas nessas três dimensões), adquire uma autonomia que, antes de tudo, funciona como uma blindagem contra as próprias dimensões que o engendra(ra)m. Isso significa assumir que os princí pios constitucionais - e a Constituição lato sensu (afinal, qualquer hermenêutica constitucional que se faça, seja a partir de Dworkin, Gadamer ou Habermas - só têm sentido no contexto do paradigma do Estado Democrático de Direito) - , ao contrário do que se possa pensar, não remete para uma limitação do direito (e de seu grau de autonomia), e, sim, para o fortalecimento de sua de autonomia. Por isso, a Constituição não é um documento meramente “político” (declarativo, pessoal, partidarista), que conteria um finalismo político-social, do qual o direito seria um instrumento, mas, sim, é o seu conteúdo jurídico que institucionaliza os campos com ela intercambiáveis, como a política, a economia e a moral. Portan to, a Constituição é o fundamento normativo; não, evidentemente, no sentido de 174
A - S E C U R A ' . A - I R A ' E A S C O N D I Ç Õ E S P A R A Q UE OS F E N Ô M E N O S P O S S A M V I R À FA LA
fundamentum inconcussum absolutum veritatis, e, sim, no sentido hermenêutico, com o que se pode dizer que a autonomia do direito passa a ser a sua própria condição de possibilidade. Mas isso não pode significar que o jurídico seja aquilo que a jurisdição diga o que é. Se assim se admitir, corre-se o risco de suprimir a democracia, substituindo-se a onipresença da vontade geral pelo governo dos juizes. Ou seja, a autonomia do direito é exatamente o elemento que se coloca no entremeio desses dois polos. Trata-se, pois, de uma aposta na Constituição como fio condutor dessa intermediação, cuja interpretação deve ser controlada hermeneuticamente, evitando-se que o sentido a ser atribuído ao seu texto e ao conjunto normativo infraconstitucional vá além ou aquém desse fundamento normativo. Supera-se, desse modo, o problema da dimensão meramente institucional do direito ou do direito como caudatário do poder ou, ainda, do direito “como mera técnica a serviço de concepções absenteístas de Estado” (que, paradoxalmente, necessitam que o direito tenha o mínimo de autonomia possível). Não se pode olvidar, nesse sentido, que a questão da autonomia do direito está relacionada com a compatibilidade “democracia-constitucionalismo” e com o crescente des locamento do polo de tensão da relação entre a legislação e a jurisdição em dire ção desta última. É inegável que a autonomia adquirida pelo direito implicou o crescimento do controle da constitucionalidade das leis, que é fundamentalmen te contramajoritário. Entretanto - e essa questão é fulcral para uma compreensão hermenêutica do fenômeno -, a diminuição da liberdade de conformação do legislador através de textos constitucionais cada vez mais analíticos e com ampla previsão de acesso à jurisdição constitucional (portanto, de amplo controle de constitucionalidade) não pode implicar a diminuição do “espaço” da legislação no contexto da relação entre os Poderes do Estado, vindo isso a representar um apequenamento da democracia, circunstância que descaracteriza(ria) o próprio Estado Democrático de Direito. N o limite - e até para evitar mal-entendidos acerca da relação “democracia-constitucionalismo-contramajoritarismo é pos sível dizer que, antes de uma pretensa (e subjetivista) reserva de juízo ([Urteilsvorbehalt)> há uma reserva de lei ( Gezetzvorbehalt), que é uma reserva constitucional (Verfassungsvorbehali). Dito de outro modo, não teria sentido que, no momento em que alcança mos um grau avançado de democracia, a partir da construção democrática da legislação, entre outras coisas, como a institucionalização da moral no direito (veja-se o papel dos princípios no resgate do mundo prático do direito), passás 175
DIREITO E LITERATURA
semos a incentivar posturas hermenêuticas que deslocassem o locus do sentido da intersubjetividade - conquistada com o linguistic tum - na direção de posturas solipsistas/subjetivistas, que apostam na discricionariedade dos juizes ou, ainda, de posturas pragmatistas, céticas em relação ao direito e que rejeitam a existência de pretensões juridicamente tuteladas, não estratégico-finalísticas. As diversas tentativas de garantir a especificidade do direito frente à política sempre se desenvolveram, no interior do modelo de direito praticado pelos di versos positivismos, a partir de processos lógico-formais que procuravam retirar o conteúdo político do direito no âmbito de uma teoria da legislação. Ora, a lei não é o ato jurídico por excelência, mas ao contrário, é na lei que aparece uma quase identidade entre direito e política (compreendia lato sensu, englobando economia, moral etc.). A autonomia do direito somente pode ser conquistada a partir de uma teoria da decisão judicial que comporta, por sua vez, uma teoria da jurisdição e uma teoria da controvérsia judicial, como bem mostra Dworkin em TakingRights Seriously. Colocando a teoria da decisão judicial como eixo te mático, tem-se por instalada uma reflexão concreta, livre das abstrações semân ticas que sustentam o positivismo e, ao mesmo tempo, colocada no horizonte correto para que se torne possível encontrar os traços especificamente jurídicos da experiência humana concreta. Autonomia não será, assim, uma autonomia formal, tal como se dava - e ainda se dá - nas fórmulas positivistas, mas uma autonomia material, porque ligada ao mundo prático institucionalizado no tex to constitucional. Desse modo, é possível perceber uma radical mudança na intencionalidade com relação ao direito, que, em última análise, trará consigo propostas jusfilosóficas dispostas a repensar o seu sentido e seus vínculos com o comportamento humano concreto. Isso importa em não tratá-lo mais como um sistema cerra do, construído abstratamente a partir de modelos epistemológicos fundados na subjetividade e modelados conforme os padrões matemáticos de conhecimento. Ou seja, trata-se de afirmar, de forma radical, a fragilidade do direito frente à política - e os eventos que envolvem todo o dilema das duas guerras do século XX apontavam para isso -, e nesta fragilidade mesma procurar um sentido para o direito, já de um modo diferente da ingenuidade do positivismo, que acreditava que simples procedimentos lógico-formais poderiam garantir a especificidade do jurídico. Dito de outro modo, como bem lembra Castanheira Neves, o problema deixava de ser apenas o da legitimidade (legitimidade política) da criação-constituição do direito, do direito-lei, para ser o problema do fundamento-validade 176
A - S E C U R A ' . A - I R A ' E A S C O N D I Ç Õ E S P A R A Q UE OS F E N Ô M E N O S P O S S A M V I R À FA LA
constitutiva do direito enquanto direito.17Isso tudo implica a afirmação de um direito (ius) distinto da lei (lex), ou seja, de um direito que se forma a partir de elementos normativos constitutivos diferentes da lei, o que é radicalmente novo desde a formação do direito moderno. O que dá unidade a todos estes elementos é a oposição a qualquer normativismo abstrato, levando em conta, para tanto, à concreta aplicação do direito, desiderato final de qualquer sistema normativo de perfil compromissório e trans formador, com comandos constitucionais de efetivação de direitos e fortíssimos elementos de blindagem contra retrocessos institucionais. Isto é, há que se com preender que os debates teóricos e os problemas jurídicos passam a reivindicar o estatuto da “prática”, e a atividade jurisdicional assume um lugar proeminente neste contexto. Este fenômeno aparece com nitidez nos movimentos que levaram à consolidação da chamada jurisprudência dos valores que surge na Alemanha em virtude da atuação do Tribunal Constitucional Federal Alemão nos anos que sucederam a promulgação da Lei Fundamental (outorgada pelos aliados). Inega velmente, os argumentos axiológicos do Tribunal representavam a estratégia de legitimação da Lei Fundamental perante a sociedade alemã. Ao mesmo tempo, era preciso afirmar, num contexto internacional mais amplo, o total rompimento com o modelo jurídico-político vigente ao tempo do nazismo. Essa experiência do tribunal alemão é significativa para compreender o perfil do direito no con texto do paradigma de que aqui se fala. Mas, ao mesmo tempo, não podem permanecer dúvidas de que as estratégias de fundamentação desenvolvidas pela jurisprudência dos valores propiciaram pe rigosos espaços de discricionariedade judicial e, portanto, uma teoria do direito concretizadora deve se propor a ir além dessa experiência que colocou no protagonismo da Corte Constitucional a busca da legitimidade do direito. Por isso é que a radicalidade do problema interpretativo e o controle dos fundamentos de validade (dever fundamental de justificar as decisões) lançados nas decisões devem se dar a partir da exploração do elemento hermenêutico que está presente em toda experiência jurídica. Por fim - e em necessária crítica à herança da jurisprudência dos valores e de suas variações mais contemporâneas -, a autonomia do direito aqui defendi da também significa superar a tese de que a Constituição é uma ordem concreta de valores. Com efeito, a tese da existência de um “sistema de valores” - que 17 Cf. CASTANHEIRA NEVES. An tonio . A Crise Actual da Filosofia do Direito no C ontexto Globa l da Crise da Filosofia. Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva reabilitação. Coim bra: Co imbra Editora. 2003, p. 104.
177
DIREITO E LITERATURA
estaria subjacente à Constituição - posta-se na contramão da força normativa do direito produzido democraticamente, porque coloca nos tribunais - e nos juizes em geral - a tarefa subjetivista de sua “descoberta”, enfraquecendo, so bremodo, a força normativa do texto constitucional. É preciso compreender, portanto, que entender a Constituição como uma ordem concreta de valores (koncrete Wertordnung) enfraquece a autonomia do direito, isto porque, ao se admitir que exista algo superior à Constituição - como os valores que serão “descobertos” pelo intérprete privilegiado -, está-se a admitir que o direito não consegue se impor aos discursos adjudicadores/corretivos, como da moral, da política e da economia. Nesse sentido, a percuciente indagação de Baur: de onde traz, o juiz, os valores que são a base da sua decisão, se o legislador o deixa só consigo mesmo e a sociedade não possui uma concepção unitária dos valores éticos fundamentais?18 Por isso, a validade do direito perante a política, a eco nomia e a moral, não pode depender de uma jurisprudencialização do direito, isto é, não é a jurisprudência que garante o indispensável grau de autonomia do direito, e, sim, é a autonomia do direito, sustentada em um denso controle hermenêutico, que assegura as possibilidades de a Constituição ter preservada a sua força normativa. Ou seja, não se pode confundir o direito (e suas possibi lidades autônomas) com a instância judiciária e tampouco a política com a lei (vontade geral sem controle). Portanto, é nesse sentido que adquire valor a tradição hermenêutica acerca dos limites das possibilidades de decisão sobre o sentido (possível) a ser dado ao texto. Em outras palavras, sem ser uma abstração e nem um conjunto de enun ciados que reflete a essência das coisas (ou que tenha a pretensão de abarcar/ prever todas as hipóteses de aplicação), o texto, efetivamente, deve ser levado a sério, mormente se compreendermos que o projeto de modernidade política ainda não respondeu satisfatoriamente às três violências chamadas por Canotilho de “triângulo dialéctico”, por intermédio da categoria político-estatal: (a) respon deu à falta de segurança e de liberdade, impondo a ordem e o direito (o Estado de direito contra a violência física e o arbítrio); (b) deu resposta à desigualdade política alicerçando liberdade e democracia (Estado democrático); (c) combateu a terceira violência - a pobreza - mediante esquemas de socialidade. Se a resposta for negativa às três violências (ou, no mínimo, a duas delas), é porque a Consti tuição - nos moldes da brasileira, sem que seja preciso adjetivá-la - continua a ser 18 BAUR, Fritz. II processo e le correnti culturali contem porane e: rilievi attuali sulla conferenza di Frantz Klein dal mede simo titolo. Rrvista di Diritto Processuale, Padova, Cedam, 1972.
178
A - S E C U R A ' . A - I R A ' E A S C O N D I Ç Õ E S P A R A Q UE OS F E N Ô M E N O S P O S S A M V I R À FA LA
o suporte normativo do desenvolvimento deste projeto de modernidade. E isso, inegavelmente, tem uma relação umbilical com a possibilidade de autonomia do direito.
5. A DISCRICIONARIEDADE COMO A GRANDE AMEAÇA PARA A AUTONOMIA DO DIREITO: UM NECESSÁRIO CRIPTOGRAMA No contexto da defesa da autonomia do direito contra seus predadores - ex ternos e internos -, é preciso estar atento para o grande fantasma que a assombra: a discricionariedade. Isso porque, no fundo, o exercício de um ato discricionário sempre estará vinculado a uma resposta econômica, política ou moralpara o caso, mas não será uma respostajurídica. Com efeito, venho defendendo de há muito que o grande mal que o positivismo nos legou foi a discricionariedade dos juizes para decidir aquilo que, a partir de Hart, foram chamados de hard cases. !9 No entanto, é preciso deixar claro e ressaltar que essa discricionariedade que o positivismo des locou para os juizes já existia ao tempo do Estado Liberal em um outro nível. Ou seja, e isso é extremamente importante, mesmo e Estado Liberal se apresentava como um Estado intervencionista, mas esse intervencionismo era ad hoc, efetua do por uma atuação discricionária que era proveniente dos meios majoritários de decisão, isto é, da política. Oferecemos, aqui, um criptograma da discricionariedade, de modo que seja possível estabelecer a teia de acontecimentos que leva à necessidade de respostas corretas/adequadas à Constituição em direito. Nos termos expostos acima, é possível dizer que a discricionariedade estava, durante o nascedouro do Estado Liberal, no nível da política. E essa questão atravessa a teoria do direito e do Estado nos séculos XIX e XX. Havia um nítido enfraquecimento da autonomia do direito, que se apresentava como refém do processo político. Isso explica por que, no âmbito das teorias do direito, não faltavam defensores de diversas formas de realismo jurídico que pudessem, pa radoxalmente, resgatar um grau mínimo de autonomia para o jurídico. Note-se: se a história do direito é uma história de superação do poder arbitrário, então podemos afirmar que o que se procura enfrentar é o locus onde a decisão pri 19 Cf. STRECK, Verdade e Consenso, op . cit.
179
DIREITO E LITERATURA
vilegiada acontece, o lugar onde a “escolha” ocorre. Nessa medida, a história do direito também é uma história de superação ou do enfrentamento do problema da discricionariedade (arbitrariedade). É possível dizer que a ideia de lei que surge com a revolução francesa é uma tentativa de colocar fim ao modelo de estado jurisdicional que existia ao tempo do ancién regime. Estado jurisdicional este que estava centrado na figura do mo narca que concentrava os poderes do gubernaculum e da jurisdictio. O gubema culum representava o poder de declarar a guerra e celebrar a paz, enquanto que a jurisdictio era a manifestação da vontade do governante na resolução dos conflitos de interesses que aconteciam no interior de seu território. A moderna ideia de lei rompe com essa estrutura - que ainda guardava pro fundas semelhanças com a estrutura de governo do medievo - e institui um novo espaço institucional onde as decisões públicas são tomadas em um ambiente par lamentar que expressa o conteúdo da vontade geral. Não mais uma única pessoa representaria a personificação do poder, mas um corpo legislativo de represen tantes de um novo ator político chamado povo (que, no contexto da revolução francesa, serão os burgueses). É evidente que essa primeira ruptura com o modelo político do Estado absolutista representou uma conquista no que tange ao enfrentamento do arbítrio e na afirmação das liberdades. Porém, em um segundo momento, a conquista da revolução decai, com a formulação de um Estado legislativo - na forma de análise proposta por Ferrajoli -, que traz consigo novas conseqüências de cunho autori tário. Ou seja, a ideia que se tornou símbolo da revolução francesa retratada pela pena de Montesquieu - do juiz como “a boca que pronuncia as palavras da lei” (da vontade geral) - estava sedimentada na concepção de que a lei cobriria tudo o que pode se dar no mundo dos fatos. Isto significa que, de alguma forma, seria possível prever - antecipadamente - todas as hipóteses fáticas de aplicação da lei. Daí a herança que todos nós conhecemos: o silogismo interpretativo, a cisão entre fato e direito e a proibição de interpretação dos juizes. Com o movimento codificador do séc. XVIII isso será radicalizado. Com efeito, os ideais jusnaturalistas modernos inspiraram os construtores do Código de Napoleão de modo a conseguirem retratar - de modo sistemático e comple t o - a realidade num único corpo legislativo que receberia o nome de Código. Como a realidade que aparecia em primeiro plano na época era aquela vivenciada particularmente pelo indivíduo enquanto figura central de todo universo, esse Código receberá o adjetivo de civil, que pretenderá regular as relações que aquele 180
A - S E C U R A ' . A - I R A ' E A S C O N D I Ç Õ E S P A R A Q UE OS F E N Ô M E N O S P O S S A M V I R À FA LA
indivíduo - autônomo - irá desenvolver durante toda sua vida. Afinal, o que interessava mesmo para a nova classe era a institucionalização de uma “Consti tuição das relações privadas”. É por isso que, em um primeiro momento, os códigos pretenderão traçar uma espécie de biografia do sujeito de direito, na qual se espelha aquilo que um in divíduo - burguês, evidentemente - desempenha desde seu nascimento, passan do pela vida adulta e chegando até o momento do falecimento e o problema su cessório dos bens que acumulou durante sua existência. Todavia, será no interior deste sistema traçado pela codificação que aparecerá o primeiro inconveniente: a constatação de que a lei não cobre tudo, que a faticidade apresenta problemas que nem sempre foram esboçados pelo legislador racional - termo que ainda faz moda em algumas teorias da interpretação do direito da atualidade. A adaptação criada pelo próprio sistema para resolver esta questão foi co locar, ao lado do legislador racional, um juiz/intérprete racional. Desse modo, o primeiro criará, de forma absolutamente discricionária poderíamos falar em uma discricionariedade política que funciona como condição de possibilidade -, o conteúdo da lei, ao passo que o juiz/intérprete racional terá uma delegação para, de forma limitada, preencher os vácuos deixados pela discricionariedade absoluta (política) do legislador. Cria-se, assim, uma espécie de “discricionariedade de se gundo nível” representada pela atividade interpretativa do ju iz racional Essa dis cricionariedade de segundo nível será justificada pelos chamados princípios gerais do direito que, junto com a analogia e os costumes, representarão as autorizações legislativas para a análise discricionária do juiz no caso concreto. Desse modo, a discricionariedade deferida para o juiz pelo legislador acaba por se consubstanciar em uma política judiciária , que, no limite, dá poderes para que o juiz determine a “lei do caso”, a pretexto do dever de julgamento que a própria ordem requer. Veja-se que não é por acaso que Kelsen, ao desconsiderar o problema da razão prática e construir sua ciência sob uma pura razão teórica, irá chamar de política dos juizes (política jurídica) a atividade dos juizes e tri bunais. E é por isso que Kelsen desdobra a interpretação em dois níveis: o ato de conhecimento, a ser feito pelo cientista do direito, e o ato de vontade (do poder, lembrando sempre o último princípio epocal da modernidade, a Wille zur Macht), pelo qual se institucionalizou o decisionismo judicial. Essa estrutura do Estado legislativo persiste, inclusive, no primeiro momen to do Estado Social que incorpora também a mesma estrutura burocrática dos modelos anteriores. Porém, a ela se acumula um maior espaço de discricionarie18 1
DIREITO E LITERATURA
dade, que apontará com mais incisividade para um outro nível: o dos poderes executivos. A expansão da discricionariedade administrativa (que também é uma espécie de discricionariedade política, portanto, de primeiro nível), provocada pelo surgimento dos modelos de Estado social social na Europa, acabou por eclodir em um modelo espúrio de Estado de Direito, que mostrou sua pior feição na radica radica lização dos Estados totalitários nazifascistas. O mais importante é perceber como que em todos estes casos o problema da discricionariedade é o ponto fulcral de todo enfrentamento da questão da arbitrariedade no direito. E perceba perceba-se -se que a realidade realidade política brasilei brasileira ra pós-1964 pós -1964 - guardada as de vidas proporções proporções - possui semelhan semelhanças ças incontestes incontestes com a estrutura estrutura daquilo que Ferrajoli denomina Estado Social Burocrático, isto é, a forma de Estado Social que se edificou a partir da aposta em uma discricionariedade política, legitimada por uma maioria eventual, no caso, o poder executivo dos Estados totalitários do entreguerras. A resposta dada por Ferrajoli a este problema da burocracia e da discricionar discricionariedad iedadee deste primeiro primeiro modelo de Estado E stado Social Social - e neste neste ponto estamos de acordo com o professor professor italiano italiano - é a construção construção de uma u ma estrutura de de garantias garantias que proteja efetivamen efetivamente te as minorias da vontade - discricioná discricionária ria - das maiorias eventuais. Fala-se, assim, em um Estado Social de Direito que visa a limitar o exercício da discricionariedade política a partir de um sistema de garan tias acostado à Constituição.20 Se tudo isso é importante para o direito na atualidade, então é preciso reco nhecer que, depois de 1988, temos no Brasil um sistema de garantias como este reclamado pelo jusfilósofo. Por isso, no que tange ao contexto amai, a novidade é que não discutimos mais o problema da discricionaried discricionariedade ade política, política, portanto, não apostamos mais em positivismos fáticos (lembremos do realismo jurídico, do direito alternativo em suas variadas formas), porque temos uma Constituição que resolveu o problema dos limites do político. A Constituição aparece como freio da vontade da maioria. maioria. Na N a verdade, verdade, a Constituição - do paradigma do Estado Democrático de Direito - vai além de ser ser um freio à vontade das maiorias, maiorias, uma um a vez que passa a estabelecer um modo da sociedade ser transformada a partir do direito, com a incorporação daquilo que se denomina “promessas incumpridas da modernidade”. Trata-se de fazer, destarte, com que este sistema de garantias incorporado pela Constit C onstituição uição seja devidamente concretizado. concretizado. Para Para isso é fundamental - por 20 FERRAJOLI, FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris. Teoria delia democrazia. Roma: Laterza, 2007, v. 2. p. 84.
182
A - S E C U R A ' . A - I R A ' E A S C O N D I Ç Õ E S P A R A Q UE OS F E N Ô M E N O S P O S S A M V I R À FA LA
tudo tud o que foi dito acima acim a - combater o arbítrio presente presente na discricionariedade dos juizes, até para pa ra honrar hon rar a própria história institucional do direito e seu enfrenta enfrenta-mento constante do arbitrário, vale vale dizer, dizer, do discricionário. Por fim, insisto: póspositivismo, póspositivism o, Constitucionalismo Constitucionalismo Contemporâneo Contem porâneo e democracia pressupõem que o direito possui um elevado grau de autonomia. Isso sig nifica que questões políticas e morais devem ser debatidas à saciedade nos meios políticos de decisão, decisão, e que - no âmbito (autônomo) (autônomo) do d o direito direito - só se pode des considerar as decisões políticas tomadas em contraste com o sistema de garantias construído pela CFRB de 1988. E é exatamente este o plus do Estado Democrá tico de Direito: a diminuição do espaço de discricionariedade da política pela Constituição fortalece materialmente os limites entre direito, política e moral. Daí a importância de Canotilho e de seu trabalho sobre a Constituição dirigente. Ali o professor de Coimbra já chamava a atenção para a necessidade de colocar um freio na (antiga) discricionariedade do legislador. Também Ferrajoli aponta va, com seu garantismo, para a preservação da autonomia do direito, ao elaborar a tese de que tínhamos que fazer democracia a partir do direito. Enfim, o direito será o grande grande ponto de contato contato - pode pode deixava de estar a reboq reboque ue dopolítico. político. Este será ríamos dizer transteorético - que une as propostas proposta s de Canotilho, Canotilho , de Ferrajoli, Ferrajoli, da Hermenêutica - no modo aqui trabalhado trabalhado -, - , de Dworkin e de Habermas: todos apontamos para um elevado grau de autonomia do Direito e reconhecemos a relevância deste plus que constitui o Estado Democrático de Direito.
6. À GUISA DE CONSIDERA CONSID ERAÇÕE ÇÕESS FINAIS FINAIS:: NOVAMENTE O ESTADO? Se tudo isso é/foi importante para a edificação da história institucional do direito e sua constante luta contra o arbítrio, é preciso reconhecer que, dentre as mais importantes conquistas, está a regulamentação da economia. Uma econo mia desregulada pode gerar problemas sérios, tanto do ponto de vista da concen tração de riquezas, como também no âmbito da própria “governabilidade”, para usarmos uma palavra tão cara à cartilha neoliberal. Isso fica evidente no atual contexto de crise, quando o Estado é retomado em sua forma mais criticada pelas posturas neoliberais: como agente econômi co. Ora, é no Estado que os banqueiros falidos vão buscar auxílio, e a resposta imediata que recebem é a estatização. Bancos privados passam a sofrer grandes 18 3
DIREITO E LITERATURA
injeçóes de dinheiro público, sob o fundamento de que, se assim náo for feito, as conseqüências serão muito piores. Novamente uma questão de necessidade não só dos banqueiros, banqueiros, mas de toda to da comunidade política - é utilizada utilizada para sanar sanar problemas em curto prazo. O Estado social falido de outrora é o grande “Midas” do capitalismo cap italismo financeiro neolibera neoliberal.l. A grande questão - que gera perplexidade perplexidade em todos todo s nós - é a seguinte: por que agora o Estado Es tado deve interv intervir? ir? Por que, quan qu an do estavam em jogo as políticas sociais do welfare State, a intervenção estatal era indesejada? São questões duras... du ras... Talvez Talvez seja preciso recorrer recorrer novamente novamente ao realismo cor tante que atravessa a literatura de Graciliano Ramos e de John Steinbeck: do mesmo modo que Fabiano se jogava contra os limites da linguagem e sua “secu ra”, não permitindo que ele trouxesse à fala as injustiças que o “soldado amarelo” lhe infligia, infligia, Tio John, Jo hn, por sua vez, vez, era privado da fala e procurava meios para que as mazelas que eram impingidas para sua gente como um destino pudessem ser escutadas ou “vistas” por alguém... Voltemos, então, às Vinhas da Ira: o bebê nascido morto e prematuro. Tio John leva o caixote em que jaz o pequeno cadáver para longe do acampamento. Mas, ao invés de enterrá enterrá-lo, -lo, deposita-o sobre as águas revoltas revoltas de um riacho que a enchente enchente tomou violento violento.. Ao ver o caixote - usado para o transporte transporte de maçãs sendo levado pelas forças das águas, ele, tão calado e contido, incapaz de se quei xar das agruras do cotidiano, grita ao bebê, como em um “desabafo fundamental e transcendental”: Vai, vai rio abaixo e diz aquilo para eles. Vai descendo e estaca na estrada e apo drece e diz pra eles como é. É o único jeito de tu dizeres as coisas. Nem sei se tu és menino ou menina, mas nem quero saber. Vai descendo e apodrece na estrada. Talvez, então, eles fiquem sabend sab endo.2 o.211 Sim, talvez então “eles” fiquem sabendo... Na metáfora dos caixotes nave gam para o apodrecimento os desvalidos do neoliberalismo; aqueles que sempre ficaram de fora do butim dos que “odeiam o Estado”. Esse “maldito Estado”, esse “Estado inimigo”... Talvez apodrecendo nas margens seja o único modo de dizer “coisas” para eles! No fundo, o personagem Tom alberga os anseios desses desva lidos, quando qu ando diz à sua mãe: 21 STEINBECK. op op.. cit., cit ., p. 484.
18 4
A - S E C U R A ' . A - I R A ' E A S C O N D I Ç Õ E S P A R A Q UE OS F E N Ô M E N O S P O S S A M V I R À FA LA
Aí eu estarei em qualquer lugar, na escuridão, estarei no lugar que a senhora olhar à minha procura. Em toda pane onde um policial ‘teja’ maltratando um camarada, eu estarei presente. Imagine se o Casey soubesse disto! Estarei onde a nossa gente ‘teja’ berrando de raiva... e estarei onde crianças ‘tejam’ rindo por que sentem fome e sabem que vão logo ter comida. E quando a nossa gente for comer o que plantou e for morar nas casas que construiu... aí eu também estarei presente.22 No fundo, era o grito que ecoa(va)... Onde está o Estado? Qual é o papel do Estado? Apostar no Estado intervencionista é algo anacrônico? Mais: apos tar no direito como limitador do papel predatório da economia é um equívoco históri histórico? co? Pode ser ser.. Mas nos consolemos. Joseph Jose ph Schumpeter - um dos maio res economistas da história -, embora defensor do capitalismo, achava que este não sobreviveria. Dizia: “Não, não creio que possa sobreviver”. Certo ou errado, também temos que convir que nenhum economista conseguiu predizer a crise de 2008/2009...! Hegel é que estava certo: a ave de minerva só levanta voo ao anoitecer.
22 ld , ibid.. ibid.. p. 484 484..
185 18 5
OS MARINHEIROS, ULISSES E (O SILÊNCIO D’) AS SEREIAS M arcelo And rade C atton i de O liveira
Sáo Sebastião do Rio de Janeiro, lü de novembro de 2009.
André, meu querido amigo Saravah! Escrevo para você dessa maravilhosa Cidade de São Sebastião do Rio de Ja neiro. Estou num hotel na Avenida Princesa Isabel, a duas da Avenida Adântica, em Copacabana. Mas não se entusiasme: chove um bocado lá fora. E, nesse exato momento, tenho apenas por companhia aquela espécie de cachorro que, para Vinicius de Moraes, com certeza seria o melhor amigo do homem. Estou no Rio há cinco dias, participei de um curso sobre justiça nas tran sições políticas, promovido pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e pelo Centro Internacional de Justiça Transicional, com o apoio do Ministério das Relações Exteriores e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Curso esse que foi sensacional e que espero dê bons frutos, contribua para o es tudo do tema e para a prática no Brasil de uma Justiça Transicional adequada ao patamar atual das discussões constitucionais e internacionalistas. Embora esse não seja diretamente o tema desse email, oportunamente gos taria de retomar com você uma conversa que tivemos em Roma sobre a anistia brasileira. Pois a cada dia penso que não se pode considerar a chamada anistia *
Pós-d outorado em Teoria e Filosofia do Direito (Università Deg i Studi Roma Tre/ltá ia). Doutor e Mestre em Direito Constitucional (UFMG). Coordenador do Curso de Ciências do Estado da UFMG. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. Membro Conselheiro do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ).
18 6
OS MAR INH EIR OS. ULISSES E (O SILÊNCIO D') AS SEREIAS
política como um mero instituto jurídico-criminal de clemência, quando se a interpreta de forma constitucionalmente adequadamente à luz do Ato das Dis posições Constitucionais Transitórias e da Lei Federal nü 10.559. Nos termos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (art. 8o) e da Lei que o regulamenta quanto ao tema, a anistia constitucionalmente prevista significa, pelo menos: a) o reconhecimento pelo Estado de arbitrariedades, de abusos e de crimes - por ele, por seus agentes e por agentes náo estatais com a condescendência ou omissão do Estado -, cometidos no passado; b) o compro misso com reformas institucionais e com garantias de não repetição desses crimes; c) o reconhecimento e a reabilitação dos anistiados políticos; d) o resgate e a re construção da história do período e o dever de memória; e) assim como o dever estatal de reparação moral e/ou material, conforme o caso, a perseguidos políticos e a vítimas de arbitrariedades. Quero te dizer, também, que apesar da questão acerca dos limites e das pos sibilidades de persecução penal dos perpetradores permanecer ainda em aberto para mim, hoje tendo mais a essa possibilidade, com base no Direito Internacio nal dos Direitos Humanos, sobretudo à luz da jurisprudência da Cone Internamericana de Direitos Humanos. Mas duas coisas são certas para mim e representam pontos de não retorno: a) não há como concordar, com base numa interpretação constitucionalmente adequada da Constituição e da legislação vigente sobre anistia, reconhecimen to e reparações posterior à Constituição, que as vítimas e os resistentes à Dita dura tenham cometido crimes políticos que teriam sido, em razão de anistia, jurídico-criminalmente perdoados. Eles não cometerem crimes, mas estavam no exercício do direito de resistência à opressão; b) ou que agentes do Estado ou pessoas e organismos que cometeram crimes com a condescendência do Estado tenham sido alcançados pela anistia constitucional; a Constituição somente trata dos perseguidos políticos e não estende a anistia aos perpetradores. Interpretação diferente me parece absurda no contexto do constitucionalismo democrático e do intemacionalismo constitucionalizado atual. Mas a razão imediata para escrever hoje não é o tema da anistia e da sua in terpretação constitucionalmente adequada. Desde o lançamento dos primeiros dois livros sobre Direito e Literatura e, sobretudo, após termos escrito juntos em Roma o texto sobre o conto de Calvino, tenho pensado não apenas em sobre o que escrever para o novo livro mas, sobretudo, como. Pois tem-me, inclusive, faltado inspiração, em razão do cansaço 187
DIREITO E LITERATURA
e do excesso de trabalho, sem falar daquela “clínica falta de tempo” a que se refere Drummond numa carta memorável a Mário de Andrade. Há, todavia, uma razão mais profunda: para além das minhas antigas críticas ao modo com que alguns autores tratam do tema, especialmente quando escre vem sobre um direito na/da literatura, tenho pensado, e muito, num direito à li teratura, que não destrua, sob a desculpa de fazer Direito e Literatura, a beleza da Literatura ou a normatividade do Direito. Esse é, aliás, o risco de toda tentativa afoita de abordagens transdisciplinares, em que não somente o ensaio sobrepõe-se à dissertação ou nem todo experimentalismo, por si só, seja frutuoso. Bem, André, quero dizer que você me conseguiu convencer que, apesar das velhas criticas, é possível, sim, pensar questões jurídicas a partir da literatura, sobretudo quando não se a reduz ao mero entretenimento ou diletantismo. Pois tenho pensado na linha de Gadamer que é possível aprender com a arte, num duplo sentido, no mínimo: na medida em que a arte expressa a criatividade, na medida que a arte provoca a reflexão. E, como criatividade e reflexão, a arte abre horizontes. Lembro aqui, mais uma vez e sempre, de Vinicius de Moraes, quando ele afirmava que, penso eu, em sua criatividade e reflexividade, a arte é antifascista e não admite canalhas. E, assim, na medida em a que arte abre horizontes, num sentido hermeneuticamente forte, ela pode ter uma dimensão ética e política. Também jurídica. Mas de que modo, como, jurídica? Tomo aqui o direito numa perspectiva hegeliana, tal como Hegel usa o ter mo nas suas Linhasfundamentais da Filosofia do Direito : não apenas como aquilo que ele chamava de direito abstrato, mas também moralidade, eticidade e história do mundo. Enfim, como espírito objetivo. Mas, além de deixar em aberto que significaria dizer que “a história do mundo é o tribunal do mundo”, ainda com Hegel, a arte, enquanto tal, seria uma expressão do absoluto? Uma expressão - no nível da representação, todavia ainda não no nível filosófico, propriamente dito, do conceito - das manifestações maiores da cultura, da Bildung, vistas como ten são constitutiva, construtiva, entre o particular e o universal?... Dworkin afirma, pelo menos desde Law as Interpretation e A M atter ofPrincipie, que a arte e o direito possuem algo em comum. A interpretação jurídica e a artística são modos de expressão criativa, construtiva. Mas algo decisivo os dis tingue, pois enquanto o direito, para Dworkin, é um empreendimento político, a arte, a literatura, é um empreendimento estético. Pois o direito, para ele, diz respeito ao modo com que a uma comunidade jurídica é autorizado, inclusive, o uso da coerção ou, por outro lado, compreendem-se as obrigações de seus mem 188
OS MAR INH EIR OS. ULISSES E (O SILÊNCIO D') AS SEREIAS
bros para com essa comunidade. Ao passo que a arte náo diria respeito ao bom, ao justo ou ao lícito, mas ao belo. Mas aqui fico pensando no modo, além do “genealógico”, mas “desconstrutivo”, de uma famosa passagem de Nietszche, segundo a qual um imenso incêndio numa cidade pode ser espetacular, mas nada ético. Ou mesmo Rita Lee, de forma irreverente, mas bastante ética: “Pegar fogo nunca foi uma atração de circo, mas de qualquer maneira pode ser um caloroso espetáculo...” Não quero entrar aqui na diferença kantiana entre o belo e o sublime. Mas, enfim, um incêndio é belo, é sublime, mesmo quando implica destruição de vidas, de histórias, de mundos? O texto a partir do qual gostaria de propor uma discussão sobre o aprendiza do ético - e nesse sentido também jurídico - com a arte é O silêncio das sereias, de Franz Kafka. Você poderia desabafar: “Bah! Kafka de novo?!” Putz, André, o que pensar de uma discussão sobre Direito e Literatura quando ela quase sempre vem arriscando-se a banalizar um autor como Kafka? Que isso é ironicamente kafkia no?... Em que tudo e todos podemos metamorfosearmo-nos em baratas, se não respeitarmos a autoridade de um texto que, como o de Kafka, para além mesmo do conhecido julgamento estético do próprio autor, que os queria incendiados. Esse conto, O silêncio das sereias, foi publicado pelo testamenteiro de Kafka, por aquele homem que não cumpriu a última vontade do testador de incendiar tudo, inclusive aqueles textos que já estavam publicados pelo escritor, em vida. O silêncio das sereias está publicado em Narrativas do Espólio. Tem por personagens centrais Ulisses e as sereias, assim como por referência a passagem do famoso canto da Odisséia, em que Ulisses ou Odisseus, inspirado pela deusa, dá ordens aos marinheiros. Primeiro, que tapem os ouvidos com cera, a fim de não ouvirem o canto das sereias. Segundo, que acorrentem a ele, Ulisses, ao mastro do navio, para que ele possa ouvir as sereias. Por fim, a advertência de que, mesmo que ele, Ulisses, ordene que o soltem, eles não o façam. Recentemente - e aqui o recente é o contemporâneo impreciso das últimas décadas - Ulisses e as sereias foram metaforicamente retomados por Jon Elster em dois livros. A metáfora é a dos precometimentos, dos compromissos assumidos por um povo perante si mesmo com determinadas autolimitações constitucionais à sua própria atuação política futura. O primeiro texto de Elster lê o canto da Odisséia no sentido de que Ulisses, ao se fazer amarrar pelos marinheiros que, eles mesmos, tem tapados os ouvidos, ouve o canto das sereias, mas não têm como se entregar a esse canto. Como você sabe, André, há quem compare, no Brasil, lendo Elster, Ulisses 189
DIREITO E LITERATURA
amarrado ao Supremo Tribunal ou a uma Corte Constitucional e as sereias ao povo, à opinião pública, à política. Mas ainda que se entenda que a própria insti tuição de um controle de constitucionalidade possa representar, no presente, esse Ulisses acorrentado, não é bem isso o que Elster afirmava em seu texto. Não se trata de uma limitação externa: a imagem do Ulisses amarrado e as sereias repre sentaria, como um todo, a autolimitação constitucional, os compromissos assu midos por um povo, para que, no futuro, ele mesmo, povo, não caia na tentação de abandonar certos princípios. Além disso, o segundo texto de Elster liberta Ulisses e revê a tese anterior. Na política, Ulisses está agora unbounck mas quem disse que os compromissos pré vios, os compromissos constitucionais, são autolimitações? Diferentemente, esses compromissos supostamente prévios (à política democrática ordinária?) consti tuem, desde sempre e ao longo de toda história institucional, o próprio povo, e não são, portanto, limitações externas, mas internas, constitutivas do próprio povo... Interessante, uma tese quase habermasiana quanto ao modo com que uma constituição democrática pode articular memória e projeto, passado e futuro, em razão exatamente da sua abertura. A questão aqui é que se deveria, portanto, pensar toda a cena como uma grande metáfora; ou seja, também o papel dos marinheiros, no canto da Odisséia. Mas quem seriam eles? Gostaria muito, André, de já estar caminhando além da leitura proposta por Elster e mesmo contra a má leitura brasileira da leitura de Elster da Odisséia —mas não apenas em razão, como você sabe, das minhas velhas desconfianças em face daqueles que fazem direito na/da literatura, daqueles que fazem da literatura, sem mediação adequada, um péssimo pseudotratado de direito, ao preço de um radical empobrecimento dos textos literários. Para isso, meus companheiros nesse caminho, André, poderiam ser três gran des e importantes filósofos alemães do século passado, especialmente o último: a famosa dupla Teddy-Max e, sobretudo, o terceiro, Detlef. Os textos desses au tores seriam Dialética do Esclarecimento e Franz Kafka: a propósito dos dez anos de sua morte. O que está em questão, comparando-se esses textos, é uma dupla interpre tação do mito de Ulisses. Theodor Adorno e Max Horkheimer interpretaram Ulisses na perspectiva de uma dialética negativa da racionalização do mito que implicaria, inclusive, uma mitificação da razão (analítico-instrumental); Walter Benjamin, no sentido de que Ulisses representaria um vencimento do mito pela 190
OS MAR INH EIR OS. ULISSES E (O SILÊNCIO D') AS SEREIAS
astúcia da razão. Seriam essas leituras faces de uma mesma moeda? Já que uma crítica do progresso apareceria em ambos autores? Ou a desconfiança de Horkheimer em se pensar um incondicionado sem Deus e um “messianismo sem espera” de Benjamin (para usar a expressão na leitura de Marramao) os afastariam? Cabe considerar que Adorno e Horkheimer não tiveram, como Benjamin, o conto de Kafka como chave de leitura da “imagem dialética” que é o canto da Odisséia - Ulisses amarrado, as sereias e os marinheiros com os ouvidos ta pados com cera, em meio à travessia, à passagem, da ilha das sereias. Adorno e Horkheimer querem recuperar o próprio trecho do canto da Odisséia como parte da odisséia do racionalismo ocidental. Bom, mas Adorno com certeza conhecia o texto de Benjamin sobre Kafka; o contrário, obviamente não seria possível, já que Benjamin não conheceu os textos da Dialética do Esclarecimento. Nem sem pre, cabe dizer, Adorno foi justo com Benjamin. Nem sempre Adorno foi justo. M ínima M oralia e/ou M oralia Mínima? Caetano Veloso compôs uma belíssima canção, Os argonautas, durante os anos de chumbo da Ditadura, que teria sido inspirada em Fernando Pessoa: “O Barco! Meu coração náo aguenta Tanta tormenta, alegria Meu coração não contenta O dia, o marco, meu coração O porto, não!... Navegar é preciso Viver náo é preciso... O Barco! Noite no teu, tão bonito Sorriso solto perdido Horizonte, madrugada O riso, o arco da madrugada O porto, nada!... Navegar é preciso Viver não é preciso O Barco! O automóvel brilhante O trilho solto, o barulho 19 1
DIREITO E LITERATURA
Do meu dente em tua veia O sangue, o charco, barulho lento O porto, silêncio!... Navegar é preciso Viver não é preciso...” Genealogicamente, a referência de Pessoa teria sido Camões. E Camões tem Virgílio e Homero como modelos. Os Lusíadas lembram a Eneida, por um lado, pois também narra as origens dos portugueses. A Eneida narra a fundação de Roma por Eneias que, diferentemente de Ulisses, não retomava ao lar, não está voltando da guerra de Troia a uma ítaca, mas está buscando, fugindo à destrui ção de Troia, a fundação de um novo lar, uma nova Troia, e essa nova Troia será Roma. Roma é a refundação de Troia (não há como não sorrir, lendo isso: acaba sendo, se não engraçado, bastante irônico, se pensarmos o que significa, troia em italiano vulgar, não?). Mas, por outro lado, os lusíadas de Camões não são troianos, mas mari nheiros, argonautas... Os portugueses de Camões são herdeiros dos marinheiros de Ulisses e, por que não?, também dos lendários argonautas e de Jasão. Laertes, antigo rei de ítaca e pai de Ulisses, era um dos principais argonautas. Assim como também fora argonauta o poeta e músico Orfeu, filho de Apoio e de Calíope (musa da literatura!). E Heracles ou Hércules, filho de Zeus. Mitos entrelaçam-se, sobrepõem-se, aqui. E a referência ali, no canto da Odisséia, a Jasão, é explícita. São “imagens dialéticas” (Benjamin). E, como filhos dos marinheiros de Ulisses e dos argonautas de Jasão, como Laertes, Heracles ou Orfeu, os portugueses vivem em busca do velocinho de ouro que, sabe-se lá, se existe em alguma Cólquida per dida; não se encontram em casa nem mesmo em casa, vivem irreconciliáveis com seu velho mundo, não podem viver em terra, nem mesmo em Itaca. Segundo um belíssimo poema de Kavafis, ítaca não seria, ela mesma, nada de mais, mas até uma ilha infértil, inóspita. Ao fim, a ítaca de Ulisses, segundo Kavafis, não é apenas ítaca, mas a ítaca enriquecida dialeticamente pela própria viagem de retomo a ítaca. Uma viagem de retorno que teria sido a todo momento estendida, adiada, alargada, diga-se de passagem, como se a ítaca adiada - assim como o próprio manto de Penélope tecido e desfeito, a cada dia - fosse uma metáfora da duração do tempo, do tempo como duração, do tempo como tensão entre a flecha e o círculo, o eterno retorno e o avanço retardado em que o que me nos parece valer é o progresso da viagem. Veja a tradução do Haroldo de Campos: 192
OS MAR INH EIR OS. ULISSES E (O SILÊNCIO D') AS SEREIAS
“Quando, de volta, viajares para ítaca roga que tua rota seja longa, repleta de peripécias, repleta de conhecimentos. Aos Lestrigões, aos Ciclopes, ao colério Posêidon, não temas: tais prodígios jamais encontrará em teu roteiro, se mantiveres altivo o pensamento e seleta a emoção que tocar teu alento e teu corpo. Nem Lestrigões nem Ciclopes, nem o áspero Posêidon encontrarás, se não os tiveres imbuído em teu espírito, se teu espírito não os sucitar diante de si. Roga que sua rota seja longa, que, múltiplas se sucedam as manhãs de verão. Com que euforia, com que júbilo extremo entrarás, pela primeira vez num porto ignoto! Faze escala nos empórios fenícios para arrematar mercadorias belas; madrepérolas e corais, âmbares e ébanos e voluptuosas essências aromáticas, várias, tantas essências, tantos arômatas, quantos puderes achar. Detém-te nas cidades do Egito - nas muitas cidades para aprenderes coisas e mais coisas com os sapientes zelosos. Todo tempo em teu íntimo ítaca estará presente. Tua sina te assina esse destino, mas não busques apressar sua viagem. É bom que ela tenha uma crônica longa duradoura, que aportes velho, finalmente à ilha, rico do muito que ganhares no decurso do caminho, sem esperares de ítaca riquezas. ítaca te deu essa beleza de viagem. Sem ela não a terias empreendido. Nada mais precisa dar-te. Se te parece pobre, ítaca não te iludiu. Agora tão sábio, tão plenamente vivido, bem compreenderás o sentido das ítacas.” 193
DIREITO E LITERATURA
Mas para Camões, num certo sentido diferente de Kavafis, mas somente num certo sentido, parece-me, estáo os argonautas fadados (!) a sê-lo pela eternidade, a viver no navio, a nunca adaptarem-se a um porto, mesmo que esse porto seja portogalo, Portugal. Afinal, como escreveu Fernando Pessoa, a partir de um velho dito de Pompeu, relatado por Plutarco, “Navegar é preciso/Viver não é preciso” (Navigare necesse; vivere non est necessê). Explicava Pessoa: “Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘Navegar é preciso; viver náo é preciso’. Quero para mim o espírito [d]esta frase, transformada a forma para a casar como eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade. É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.” “Navegar é preciso/Viver não é preciso” - isso me leva a um outro Ulisses. Esse outro Ulisses, de que falo, era um apaixonado por Camões, mas também por Pessoa. Um Ulysses que, talvez por seu amor à força simbólica dessas epopeias, recheou dois de seus grandes discursos político-jurídicos - verdadeiros discursos fundadores -, de referências a esses grandes poemas, a essas grandes narrativas fundadoras, a essas epopeias que contam e cantam a fundação. E, mais, assim como o Ulisses de Homero e de Kafka, esse Ulysses era uma raposa velha, dono de uma grande astúcia. Também sabia construir seus cavalos de madeira e destruir, opondo-se desde dentro, toda uma cidade, todo um regime. Esse Ulysses, que muito tem de Jasão em busca de um “tesouro perdido” (o tesouro das revoluções, o tesouro do político, no sentido de Hannah Arendt?), talvez quisesse assumir conscientemente essa herança paradoxal de argonautas feitos lusitanos, mas tam194
OS MAR INH EIR OS. ULISSES E (O SILÊNCIO D') AS SEREIAS
bém de seu antigo capitão, também filho de argonauta, herança inscrita em seu próprio nome. Ao mesmo tempo, Ulysses e Guimarães; ao mesmo tempo quem amarra e é amarrado ao mastro do navio. Ouvidos tapados ou não de cera? De toda sorte, esse Ulysses, ao empreender o que poderia ser, quem sabe, uma longa viagem de retorno dialético à sua ítaca sempre inalcançada, à democracia que é sempre porvir, como diria Derrida - e, mais, sendo que nenhum retorno dialético, para falar com Hegel, se dá sem o trabalho do negativo, a paciência, e pode ser visto como um mero reestabelecimento do status quo ante - esse Ulysses Guimarães também aprendeu a ser dono de um grande senso de oportunidade, embora, como todos, feliz ou infelizmente, também estivesse sujeito às contin gências da vida. Como um velho filho de argonauta, sem nunca alcançar o porto a que buscava, uma tempestade o abateu, morreu no mar; e seu corpo, como sabemos, nunca foi encontrado. Terá, enfim, chegado à ítaca? E que dois discursos eram esses? O primeiro, o do anticanditado a presidente ao colégio eleitoral, pronunciado a 21 de setembro de 1973: “O paradoxo é o signo da presente sucessão presidencial brasileira. Na Situação, o anunciado como candidato, em verdade, é o Presidente, não aguarda a eleição e sim a posse. Na Oposição, também não há candidato, pois não pode haver candidato a lu gar de antemão provido. A 13 de janeiro próximo, com o apelido de eleição, o Congresso Nacional será palco de cerimônia de diplomação, na qual senadores, deputados federais e estaduais de agremiação majoritária certificarão investidura outorgada com anterioridade. O Movimento Democrático Brasileiro não alimenta ilusões quanto à homologa ção cega e inevitável, imperativo de identificação do voto ostensivo e da fatalida de da perda do mandato parlamentar, obra fàrisaica de pretenso colégio eleitoral, em que a independência foi desalojada pela fidelidade partidária. A inviabilidade da candidatura oposicionista testemunhará perante a Nação e perante o mundo que o sistema não é democrático, de vez que tanto quanto dure este, a atual Situação sempre será governo, perenidade impossível quando o poder consentido pelo escrutínio direto, universal e secreto, em que a alternatividade de partidos é a regra, consoante ocorre nos países civilizados. Não é o candidato que vai percorrer o País. É o anticandidato, para denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição que homizia o AI-5, submete Legislati vo e o Judiciário ao Executivo, possibilita prisões desamparadas pelo habeas corpus 195
DIREITO E LITERATURA
e condenações sem defesa, profana a indevassabilidade dos lares e das empresas pela escuta clandestina, torna inaudíveis as vozes discordantes, porque ensurdece a Naçáo pela censura à imprensa, ao rádio, à televisão, ao teatro e ao cinema. No que concerne ao primeiro cargo da União e dos estados, dura e triste tarefa esta de pregar numa república que não consulta os cidadãos e numa democracia que silenciou a voz das urnas. Eis um tema para o teatro do absurdo de Bertolt Brecht, que, em peça fulgurante, escarnece da insânia do arbítrio prepotente ao aconselhar que, se o povo perde a confiança do governo, o governo deve dissolver o povo e eleger um outro. Não como campanha, pois isto eqüivaleria à tola viagem rumo ao impossível, a peregrinação da Oposição pelo País perseguirá tríplice objetivo: I - Exercer sem temor e sem provocação sua função institucional de crítica e fis calização ao Governo e ao sistema, clamando pela eliminação dos instrumentos e da legislação discricionários, com prioridade urgente e absoluta a revogação do AI-5 e a reforma da Carta Constitucional em vigor. II - Doutrinar com o Programa Partidário, unanimemente aprovado pelo Tri bunal Superior Eleitoral, conscientizando o povo sobre seu conteúdo político, social, econômico, educacional, nacionalista, desenvolvimentista com liberdade e justiça social, o qual será realidade assim que o Movimento Democrático Brasi leiro for governo, pelo sufrágio livre e sem intermediários do povo. III - Conciliar os eleitores, frustrados pela interdição, a 15 de janeiro de 1974, de eleger o Presidente e o Vice-presidente da República, para que a 15 de novem bro do mesmo ano elejam senadores, deputados federais e estaduais da Oposição, etapa fundamental para atuação e decisões parlamentares que conquistarão a nor malidade democrática, inclusive número para propor emendas e reforma da Carta Constitucional de 1969 e a instalação de comissões parlamentares de inquérito, de cuja ação investigatória e moralizadora a presente legislatura se encontra jejuna e a atual administração imune, pela facciosa intolerância da maioria situacionista. Hoje, e aqui, serei breve. Somos todos cruzados da mesma cruzada. Dispensável, assim, pretender conven cer o convicto, converter o cristão, predicar a virtude da liberdade a liberais, que pela fé republicana pagam o preço de riscos e sofrimentos. Serei mais explícito e minudencioso ao longo da jornada, quando falarei também a nossos irmãos postados no outro lado do rio da democracia. Aos que aí se situaram por opção ou conveniência, apostasia política mas rebelde à redenção. 196
OS MAR INH EIR OS. ULISSES E (O SILÊNCIO D') AS SEREIAS
Prioritariamente, aos que foram marginalizados pelo ceticismo e pela indiferença, notadamente os jovens e os trabalhadores, intoxicados por maciça e diuturna propaganda e compelidos a tão prolongada e implacável dieta de informações. Quando a Oposição clama pela reformulação das estruturas político-sociais e pela incolumidade dos direitos dos cidadãos, sua reiteração aflige os corifeus dos poderosos do dia. Faltos de razão e de argumentos, acoimam-na de fastidiosa repetição. Condená vel é repetir o erro e não sua crítica. Saibam que a persistência dos abusos terá como resposta a pertinácia das denúncias. Ressaltarei nesta convenção a liberdade de expressão, que é apanágio da condição humana e socorre as demais liberdades ameaçadas, feridas ou banidas. A Oposição reputa inseparáveis o direito de falar e o direito de ser ouvido. É inócua a prerrogativa que faculta falar em Brasília, não podendo ser escutado no Brasil, porquanto a censura à imprensa, ao rádio e à televisão venda os olhos e tapa os ouvidos do povo. O drama dos censores é que se fazem mais furiosos quanto mais acreditam nas verdades que censuram. E seu engano fetal é presumir que a censura, como a mentira, pode exterminar os fetos, eliminar acontecimen tos, decretar o desaparecimento das ocorrências indesejáveis. A verdade poderá temporariamente ser ocultada, nunca destruída. O futuro e a história são incensuráveis. A informação, que abrange a crítica, é inarredável requisito de acerto para os go vernos verdadeiramente fortes e bem intencionados, que buscam o bem público e não a popularidade. Quem, senão ela, poderá dizer ao Chefe de Estado o que realmente se passa, às vezes de suma gravidade, na intimidade dos ministérios e dos múltiplos e superpovoados órgãos descentralizados? Quem, senão ela, investigará e contestará os conselhos ineptos dos ministros, as falsas prioridades dos técnicos, o planejamento defasado dos assessores? Essa sabedoria e dimensionamento da prática com que o gênio político britânico en riqueceu o direito público: Oposição do Governo de Sua Majestade, ao Governo de Sua Majestade. A burocracia pode ser preguiçosa, descortês, incapaz e até corrupta. Não é exclu sivamente na Dinamarca, em qualquer reino sempre há algo de podre. Rematada insânia tornar impublicáveis lacunas, faltas ou crimes, pois contamina a respon sabilidade dos governantes que ordena ou tolera. Eis por que o poder absoluto, erigido em infalível pela censura, corrompe e fra cassa absolutamente. 197
DIREITO E LITERATURA
É axiomático, para finalizar, que sem liberdade de comunicação não há em sua inteireza oposição, muito menos partido de oposição. Como o desenvolvimento é o desafio da atual geração, pois ou o Brasil se desen volve ou desaparecerá, o Movimento Democrático Brasileiro, em seu programa, define sua filosofia e seu compromisso com a inadiável ruptura da maldita estru tura da miséria, da doença, do analfabetismo, do atraso tecnológico e político. A liberdade e a justiça social não são meras conseqüências do desenvolvimento. Integram a condição insubstituível de sua procura, o pré-requisito de sua formu lação, a humanidade de sua destinação. A liberdade e a justiça social conformam a face mais bela, generosa e providencial do desenvolvimento, aquela que olha para os despossuídos, os subsalariados, os desempregados, os ocupados em ínfimo ganha-pão ocasional e incerto, enfim, para a imensa maioria dos que precisam para sobreviver, em lugar da escassa mi noria dos que têm para esbanjar. Este o desenvolvimento vivificado pelas liberdades roosevelteanas, inspiradoras da Carta das Nações Unidas, as que se propõem a libertar o homem do medo e da necessidade. É o perfilhado na encíclica Populorum Progressio, isto é, prospe ridade do povo, não do Estado, que lhe é consectária, cunhado do seu protótipo na sentença de lapidar: o desenvolvimento é o novo nome da paz. Desenvolvimento sem liberdade e justiça social não tem esse nome. É cresci mento ou inchação, é empilhamento de coisas e valores, é estocagem de serviços, utilidades e divisas, estranha ao homens e seus problemas. Enfàtize-se que o desenvolvimento não é silo monumental e desumano, montado para guardar e exibir a mitologia ou o folclore do Produto Interno Bruto, inaces sível tesouro no fundo do mar, inatingível pelas reivindicações populares. É intolerável mistificar uma nação a pretexto de desenvolvê-la, rebaixá-la em ar mazém de riquezas, tendo como clientela privilegiada, senão exclusiva, o Go verno para custeio de tantas obras faraônicas e o poder econômico, particular ou empresarial, destacadamente o estrangeiro, desnacionalizando a indústria e dragando para o exterior lucros indevidos. É equívoco, fadado à catástrofe, o Estado absorver o homem e a nação. A grandeza do homem é mais importante do que a grandeza do Estado, porque a felicidade do homem é a obra-prima do Estado. O Estado é agente político da nação. Além disso e mais do que isso, a nação é a língua, a tradição, a família, a religião, os costumes, a memória dos que morre ram, a luta dos que vivem, a esperança dos que nascerão. 198
OS MAR INH EIR OS. ULISSES E (O SILÊNCIO D') AS SEREIAS
Liberdade sem ordem e segurança é o caos. Em contraposição, ordem e segurança sem liberdade são a permissividade das penitenciárias. As penitenciárias moder nas são minicidades, com trabalho remunerado, restaurante, biblioteca, escola, futebol, rádio, cinema e televisão. Os infelizes que a povoam têm quase tudo, mas não têm nada, por que não têm a liberdade. Delas fogem expondo a vida ou aguardam aflitos a hora da libertação. Do alto desta convenção, feio ao General Ernesto Geisel, futuro chefe da Nação. As Forças Armadas têm como patrono Caxias e como exemplo Eurico Gaspar Dutra, cidadãos que glorificaram suas espadas na defesa da lei e na proteção à liberdade. O General Ernesto Geisel a elas pertence, dignificou-as com sua hon radez, delas sai para o supremo comando político e militar do Brasil. A História assinalou-lhe talvez a última oportunidade para ser instituído no Bra sil, pela evolução, o governo da ordem com liberdade, do desenvolvimento com justiça social, do povo como origem e finalidade do poder e não seu objeto pas sivo e vítima inerme. Difícil empresa, sem dúvida, carregada de riscos, talvez. Mas o perigo participa do destino dos verdadeiros soldados. A estátua dos estadistas não é forjada pelo varejo da rotina ou pela fisiologia do cotidiano. Não é somente para entrar no céu que a porta é estreita, conforme previne o evangelista São Mateus, no capítulo XXIII, versículo 24. Por igual, é angustiosa a porta do dever e do bem, quando deles depende reden ção de um povo. Esperemos que o presidente Ernesto Geisel a transponha. A Oposição dará à próxima administração a mais alta, leal e eficiente das colabo rações: a crítica e a fiscalização. Sabe, com humildade, que não é dona da verdade. A verdade não tem proprietário exclusivo e infelível. Porém sabe, também, que está mais vizinha dela e em melhores condições para revelá-la aos transitórios detentores do poder, dela tantas vezes desviados ou iludidos pelos tecnocratas presunçosos, que amaldiçoam e exorcizam os opositores, pelos serviçais de todos os governos, pelos que vitaliciamente apoiam e votam para agradar ao príncipe. A Oposição oferece ao Governo o único caminho que conduz à verdade: a con trovérsia, o diálogo, o debate, a independência para dizer sim ao bem e coragem para dizer não ao mal, a democracia em uma palavra. Senhores Convencionais, do fundo do coração, digo-lhes que não agradeço a 199
DIREITO E LITERATURA
indicação que consagra a minha vida pública. Missão não se pede. Aceita-se, para cumprir com sacrifício e não proveito. Como Presidente Nacional do Movimento Democrático Brasileiro, agradeço-lhes, aí sim, o destemor e a determinação com que, ao sol, aos ventos e desafian do ameaças, desfilam pela Pátria o lábaro da liberdade. Minha memória guardará as palavras amigas aqui proferidas, permitindo-me re portar às da lavra dos grandes líderes Senador Nélson Carneiro e Deputado Aldo Fagundes, parlamentares que têm os nomes perpetuados por Anais e na admira ção do Congresso Nacional. Significo o reconhecimento do Partido a Barbosa Lima Sobrinho, por ter acudido a seu empenhado apelo. Temporariamente deixou sua biblioteca e apartou-se da imprensa, trincheiras de seu talento e de seu patriotismo, para exercer perante o povo o magistério das franquias públicas, das garantias individuais e do nacionalismo. Sua vida e sua obra podem ser erigidas em doutrina de nossa pregação. Por fim, a imperiosidade do resgate da enorme injustiça que vitimou, sem defesa, tantos brasileiros paladinos do bem público e da causa democrática. Essa justiça é pacto de honra de nosso partido e seu nome é anistia. Senhores Convencionais, a caravela vai partir. As velas estão pandas de sonho, aladas de esperança. O ideal está no leme e o desconhecido se desata à frente. No cais alvoroçado, nossos opositores, como o Velho do Restelo de todas as epo peias, com sua voz de Cassandra e seu olhar derrotista, sussurram as excelências do imobilismo e invencibilidade do establishment. Conjuram que é hora de fiar e não de se aventurar. Mas no episódio, nossa carta de marear não é de Camões e sim de Fernando Pes soa ao recordar o brado: ‘Navegar é preciso,Viver não é preciso’. Posto hoje no alto da gávea, espero em Deus que em breve possa gritar ao povo Brasileiro: Alvíssaras, meu capitão. Terra à vista! Sem sombra, medo e pesadelo, à vista a terra limpa e abençoada da liberdade.”
E o segundo discurso de Ulysses, o da promulgação da Constituição, de 5 de outubro de 1988: “Estatuto do Homem, da Liberdade, da Democracia. Dois de fevereiro de 1987: ‘Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação 20 0
OS MAR INH EIR OS. ULISSES E (O SILÊNCIO D') AS SEREIAS
quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar.’ São palavras constantes do discurso de posse como Presidente da Assembleia Nacional Constituinte. Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos poderes, mu dou restaurando a Federação, mudou quando quer mudar o homem em cidadão, e só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hos pital e remédio, lazer quando descansa. Num país de 30.401.000 analfabetos, afrontosos 23% da população, cabe adver tir: a cidadania começa com o alfabeto. Chegamos! Esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora. Bem-aven turados os que chegam. Não nos desencaminhamos na longa marcha, não nos desmoralizamos capitulando ante pressões aliciadoras e comprometedoras, não desertamos, não caímos no caminho. Alguns a fatalidade derrubou: Virgílio Távora, Alair Ferreira, Fábio Lucena, Antonio Farias e Norberto Schwantes. Pronun ciamos seus nomes queridos com saudade e orgulho: cumpriram com o seu dever. A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. D escumprir, jamais. Afrontá-la, nun ca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia. Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do ho mem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: te mos ódio à ditadura, ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina. Assinalarei algumas marcas da Constituição que passará a comandar esta grande Nação. A primeira é a coragem. A coragem é a matéria-prima da civilização. Sem ela, o dever e as instituições perecem. Sem a coragem, as demais virtudes sucumbem na hora do perigo. Sem ela, não haveria a cruz, nem os evangelhos. A Assembleia Nacional Constituinte rompeu contra o establishment, investiu contra a inércia, desafiou tabus. Não ouviu o refrão saudosista do velho do Restelo, no genial canto de Camões. Suportou a ira e perigosa campanha mercenária 201
DIREITO E LITERATURA
dos que se atreveram na tentativa de aviltar legisladores em guardas de suas burras abarrotadas com o ouro de seus privilégios e especulações. Foi de audácia inovadora a arquitetura da Constituinte, recusando anteprojeto forâneo ou de elaboração interna. O enorme esforço é dimensionado pelas 61.020 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresenta das, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas, no longo trajeto das subcomis sões à redação final. A participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de 10 mil postu lantes franquearam, livremente, as 11 entradas do enorme complexo arquitetôni co do Parlamento, na procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões. Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de fa vela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiros, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar. Como o caramujo, guardará para sempre o bramido das ondas de sofrimento, esperança e reivindicações de onde proveio. A Constituição é caracteristicamente o estatuto do homem. É sua marca de fábri ca. O inimigo mortal do homem é a miséria. O estado de direito, consectário da igualdade, não pode conviver com estado de miséria. Mais miserável do que os miseráveis é a sociedade que não acaba com a miséria. Tipograficamente é hierarquizada a precedência e a preeminência do homem, colocando-o no umbral da Constituição e catalogando-lhe o número não supera do, só no art. 5°, de 77 incisos e 104 dispositivos. Não lhe bastou, porém, defendê-lo contra os abusos originários do Estado e de outras procedências. Introduziu o homem no Estado, fazendo-o credor de direi tos e serviços, cobráveis inclusive com o mandado de injunção. Tem substância popular e cristã o título que a consagra: a Constituição cidadã’. Vivenciados e originários dos Estados e Municípios, os Constituintes haveriam de ser fiéis à Federação. Exemplarmente o foram. No Brasil, desde o Império, o Estado ultraja a geografia. Espantoso despautério: o Estado contra o País, quando o País é a geografia, a base física da Nação, por tanto, do Estado. É elementar: não existe Estado sem país, nem país sem geografia. Esta antinomia é fator de nosso atraso e de muitos de nossos problemas, pois somos um arquipé lago social, econômico, ambiental e de costumes, não uma ilha. 20 2
OS MAR INH EIR OS. ULISSES E (O SILÊNCIO D') AS SEREIAS
A civilização e a grandeza do Brasil percorreram rotas centrífugas e não centrípetas. Os bandeirantes não ficaram arranhando o litoral como caranguejos, na imagem pitoresca mas exata de Frei Vicente do Salvador. Cavalgaram os rios e marcharam para o oeste e para a História, na conquista de um continente. Foi também indômita vocação federativa que inspirou o gênio do Presidente Juscelino Kubitschek, que plantou Brasília longe do mar, no coração do sertão, como a capital da interiorização e da integração. A Federação é a unidade na desigualdade, é a coesão pela autonomia das pro víncias. Comprimidas pelo centralismo, há o perigo de serem empurradas para a secessão. É a irmandade entre as regiões. Para que não se rompa o elo, as mais prósperas de vem colaborar com as menos desenvolvidas. Enquanto houver Norte e Nordeste fracos, não haverá na União Estado forte, pois fraco é o Brasil. As necessidades básicas do homem estão nos Estados e nos Municípios. Neles deve estar o dinheiro para atendê-las. A Federação é a governabilidade. A governabilidade da Nação passa pela gover nabilidade dos Estados e dos Municípios. O desgoverno, filho da penúria de recursos, acende a ira popular, que invade primeiro os paços municipais, arranca as grades dos palácios e acabará chegando à rampa do Palácio do Planalto. A Constituição reabilitou a Federação ao alocar recursos ponderáveis às unidades regionais e locais, bem como ao arbitrar competência tributária para lastrear-lhes a independência financeira. Democracia é a vontade da lei, que é plural e igual para todos, e não a do prínci pe, que é unipessoal e desigual para os fàvorecimentos e os privilégios. Se a democracia é o governo da lei, não só ao elaborá-la, mas também para cumpri-la, são govemo o Executivo e o Legislativo. O Legislativo brasileiro investiu-se das competências dos Parlamentos contem porâneos. É axiomático que muitos têm maior probabilidade de acertar do que um só. O governo associativo e gregário é mais apto do que o solitário. Eis outro imperativo de governabilidade: a co-participação e a co-responsabilidade. Cabe a indagação: instituiu-se no Brasil o tricameralismo ou fortaleceu-se o unicameralismo, com as numerosas e fundamentais atribuições cometidas ao Con gresso Nacional? A resposta virá pela boca do tempo. Faço votos para que essa regência trina prove bem. 203
DIREITO E LITERATURA
Nós, os legisladores, ampliamos nossos deveres. Teremos de honrá-los. A Naçáo repudia a preguiça, a negligência, a inépcia. Soma-se à nossa atividade ordiná ria, bastante dilatada, a ediçáo de 56 leis complementares e 314 ordinárias. Náo esqueçamos que, na ausência de lei complementar, os cidadãos poderão ter o provimento suplementar pelo mandado de injunção. A confiabilidade do Congresso Nacional permite que repita, pois tem pertinên cia, o slogan: ‘Vamos votar, vamos votar’, que integra o folclore de nossa prática constituinte, reproduzido até em horas de diversão e em programas humorísticos. Tem significado de diagnóstico a Constituição ter alargado o exercício da demo cracia, em participativa além de representativa. É o clarim da soberania popular e direta, tocando no umbral da Constituição, para ordenar o avanço no campo das necessidades sociais. O povo passou a ter a iniciativa de leis. Mais do que isso, o povo é o superlegislador, habilitado a rejeitar, pelo referendo, projetos aprovados pelo Parlamento. A vida pública brasileira será também fiscalizada pelos cidadãos. Do Presidente da República ao Prefeito, do Senador ao Vereador. A moral é o cerne da Pátria. A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam. Não roubar, náo deixar roubar, pôr na cadeia quem roube, eis o primeiro man damento da moral pública. Pela Constituição, os cidadãos são poderosos e vigilantes agentes da fiscaliza ção, através do mandado de segurança coletivo; do direito de receber infor mações dos órgãos públicos, da prerrogativa de petição aos poderes públicos, em defesa de direitos contra ilegalidade ou abuso de poder; da obtenção de certidões para defesa de direitos; da ação popular, que pode ser proposta por qualquer cidadão, para anular ato lesivo ao patrimônio público, ao meio am biente e ao patrimônio histórico, isento de custas judiciais; da fiscalização das contas dos Municípios por parte do contribuinte; podem peticionar, reclamar, representar ou apresentar queixas junto às comissões das Casas do Congres so Nacional; qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato são partes legítimas e poderão denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União, do Estado ou do Município. A gratuidade facilita a efetividade dessa fiscalização. A exposição panorâmica da lei fundamental que hoje passa a reger a Nação per mite conceituá-la, sinoticamente, como a Constituição coragem, a Constituição 204
OS MAR INH EIR OS. ULISSES E (O SILÊNCIO D') AS SEREIAS
cidadã, a Constituição federativa, a Constituição representativa e participativa, a Constituição do Governo síntese Executivo-Legislativo, a Constituição fiscalizadora. Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita, seria irreformável. Ela própria, com humildade e realismo, admite ser emendada, até por maioria mais acessível, dentro de 5 anos. Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria. Recorde-se, alvissareiramente, que o Brasil é o quinto país a implantar o instituto moderno da seguridade, com a integração de ações relativas à saúde, à previdên cia e à assistência social, assim como a universalidade dos benefícios para os que contribuam ou não, além de beneficiar 11 milhões de aposentados, espoliados em seus proventos. É consagrador o testemunho da ONU de que nenhuma outra Carta no mundo tenha dedicado mais espaço ao meio ambiente do que a que vamos promulgar. Sr. Presidente José Sarney: V. Exa. cumpriu exemplarmente o compromisso do saudoso, do grande Tancredo Neves, de V. Exa. e da Aliança Democrática ao con vocar a Assembleia Nacional Constituinte. A Emenda Constitucional n° 26 teve origem em mensagem do Governo, de V. Exa., vinculando V. Exa. à efemeridade que hoje a Nação celebra. Nossa homenagem ao Presidente do Senado, Humberto Lucena, atuante na Constituinte pelo seu trabalho, seu talento e pela colaboração fraterna da Casa que representa. Sr. Ministro Rafael Mayer, Presidente do Supremo Tribunal Federal, saúdo o Poder Judiciário na pessoa austera e modelar de V. Exa. O imperativo de ‘Muda Brasil’, desafio de nossa geração, não se processará sem o conseqüente ‘Muda Justiça, que se instrumentalizou na Carta Magna com a valiosa contribuição do poder chefiado por V. Exa. Cumprimento o eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal, Moreira Alves, que, em histórica sessão, instalou em Io de fevereiro de 1987 a Assembleia Nacional Constituinte. Registro a homogeneidade e o desempenho admirável e solidário de seus altos deveres, por parte dos dignos membros da Mesa Diretora, condôminos impres cindíveis de minha Presidência. O Relator Bernardo Cabral foi capaz, flexível para o entendimento, mas irremovível nas posições de defesa dos interesses do País. O louvor da Nação aplaudirá sua vida pública. 205
DIREITO E LITERATURA
Os Relatores Adjuntos, José Fogaça, Konder Reis e Adolfo Oliveira, prestaram colaboração unanimemente enaltecida. Nossa palavra de sincero e profundo lou vor ao mestre da língua portuguesa Prof. Celso Cunha, por sua colaboração para a escorreita redação do texto. O Brasil agradece pela minha voz a honrosa presença dos prestigiosos dignitários do Poder Legislativo do continente americano, de Portugal, da Espanha, de An gola, Moçambique, Guiné Bissau, Príncipe e Cabo Verde. As nossas saudações. Os Srs. Governadores de Estado e Presidentes das Assembléias Legislativas dão realce singular a esta solenidade histórica. Os Líderes foram o vestibular da Constituinte. Suas reuniões pela manhã e pela madrugada, com autores de emendas e interessados, disciplinaram, agilizaram e qualificaram as decisões do Plenário. Os Anais guardarão seus nomes e sua bene mérita faina. Cumprimento as autoridades civis, eclesiásticas e militares, integrados estes com seus chefes, na missão, que cumprem com decisão, de prestigiar a estabilidade democrática. Nossas congratulações à imprensa, ao rádio e à televisão. Viram tudo, ouviram o que quiseram, tiveram acesso desimpedido às dependências e documentos da Constituinte. Nosso reconhecimento, tanto pela divulgação como pelas críticas, que documentam a absoluta liberdade de imprensa neste País. Testemunho a coadjuvação diuturna e esclarecida dos funcionários e assessores, abraçando-os nas pessoas de seus excepcionais chefes, Paulo Affonso Martins de Oliveira e Adelmar Sabino. Agora conversemos pela última vez, companheiras e companheiros constituintes. A atuação das mulheres nesta Casa foi de tal teor, que, pela edificante força do exemplo, aumentará a representação feminina nas futuras eleições. Agradeço a colaboração dos funcionários do Senado - da Gráfica e do Prodasen. Agradeço aos Constituintes a eleição como seu Presidente e agradeço o convívio alegre, civilizado e motivador. Quanto a mim, cumpriu-se o magistério do filóso fo: o segredo da felicidade é fàzer do seu dever o seu prazer. Todos os dias, meus amigos constituintes, quando divisava, na chegada ao Con gresso, a concha côncava da Câmara rogando as bênçãos do céu, e a convexa do Senado ouvindo as súplicas da terra, a alegria inundava meu coração. Ver o Con gresso era como ver a aurora, o mar, o canto do rio, ouvir os passarinhos. Sentei-me ininterruptamente 9 mil horas nesta cadeira, em 320 sessões, gerando até interpretações divertidas pela não saída para lugares biologicamente exigíveis. 206
OS MAR INH EIR OS. ULISSES E (O SILÊNCIO D') AS SEREIAS
Somadas as das sessões, foram 17 horas diárias de labor, também no gabinete e na residência, incluídos sábados, domingos e feriados. Político, sou caçador de nuvens. Já fui caçado por tempestades. Uma delas, benfàzeja, me colocou no topo desta montanha de sonho e de glória. Tive mais do que pedi, cheguei mais longe do que mereço. Que o bem que os Constituintes me fizeram frutifique em paz, êxito e alegria para cada um deles. Adeus, meus irmãos. É despedida definitiva, sem o desejo de retorno. Nosso desejo é o da Nação: que este Plenário não abrigue outra Assembleia Na cional Constituinte. Porque, antes da Constituinte, a ditadura já teria trancado as portas desta Casa. Autoridades, Constituintes, senhoras e senhores, A sociedade sempre acaba ven cendo, mesmo ante a inércia ou antagonismo do Estado. O Estado eraTordesilhas. Rebelada, a sociedade empurrou as fronteiras do Brasil, criando uma das maiores geografias do Universo. O Estado, encarnado na metrópole, resignara-se ante a invasão holandesa no Nordeste. A sociedade restaurou nossa integridade territorial com a insurreição nativa de Tabocas e Guararapes, sob a liderança de André Vidal de Negreiros, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira, que cunhou a frase da preeminência da sociedade sobre o Estado: ‘Desobedecer a El-Rei, para servir a El-Rei’. O Estado capitulou na entrega do Acre, a sociedade retomou-o com as foices, os machados e os punhos de Plácido de Castro e dos seus seringueiros. O Estado autoritário prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilela, pela anistia, libertou e repatriou. A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das Diretas-já, que, pela tran sição e pela mudança, derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala: a Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja nosso grito: - Mudar para vencer! Muda, Brasil!” Interessante perceber que há passagens de Camões citadas em ambos, como é a alusão à figura rabugenta do Velho do Restelo. O Velho do Restelo que amal diçoa e zomba do novo, qual paralelo se poderia fazer com as sereias da Odisséia? 207
DIREITO E LITERATURA
Será que alguém (já) se deu conta de que o Presidente da Assembleia Na cional Constituinte, de 1987-88, chamava-se Ulysses? Qual o peso cultural dos nomes, sobretudo para alguém que talvez o (re)conheça, ou seja, o próprio Ulys ses? Essa é uma questão simbólica que algum dia mereça ser explorada, com mais cuidado. Já tivemos pedros, adoradores de deuses etc. etc. André, você se lembra de Todos os nomes, de José Saramago? Ou da segunda parte de Force de Loi, de Derrida, sobre Zur kritik der Gewak, de Benjamin, Pronome de WalteP. Para além, é claro - se você ainda não leu, leia - Fichu ou O sonho de Benjamin, conferência de Derrida ao receber o Prêmio Adorno da cidade de Frankfurt. E os textos de Benjamin sobre os nomes. E os de Scholem sobre os nomes e o nome de Deus. Enfim, quem é Walter? Quem é Ulisses? Bom, vamos ao texto de Kafka e à leitura proposta por Benjamin. Reproduzo-os aqui. “Prova de que até os meios insuficientes - infantis mesmo - podem servir à sal vação: Para se defender das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro. Naturalmente - e desde sempre - todos os viajantes poderiam ter feito coisa semelhante, exceto aqueles a quem as sereias já atraíam a distância; mas era sabido no mundo inteiro que isso náo podia ajudar em nada. O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos seduzidos teria rebentado mais que cadeias e mas tro. Ulisses porém náo pensou nisso, embora talvez tivesse ouvido coisas a esse respeito. Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus pequenos recursos. As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silên cio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto; mas do silêncio certamente não. Contra o sentimento de ter ven cido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante - que tudo arrasta consigo - não há na terra o que resista. E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja por que julgavam que só o silêncio poderia conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses - que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes - as fez esquecer de todo e qualquer canto. Ulisses no entanto - se é que se pode exprimir assim - não ouviu o seu silên cio, acreditou que elas cantavam e que só ele estava protegido contra o perigo de escutá-las. Por um instante, viu os movimentos dos pescoços, a respiração 208
OS MAR INH EIR OS. ULISSES E (O SILÊNCIO D') AS SEREIAS
funda, os olhos cheios de lágrimas, as bocas semiabertas, mas achou que tudo isso estava relacionado com as árias que soavam inaudíveis em torno dele. Logo, porém, tudo deslizou do seu olhar dirigido para a distância, as sereias literalmente desapareceram diante da sua determinação, e quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as levava em conta. Mas elas - mais belas do que nunca - esticaram o corpo e se contorceram, dei xaram o cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam as garras sobre os rochedos. Já não queriam seduzir, desejavam apenas capturar, o mais longamente possível, o brilho do grande par de olhos de Ulisses. Se as sereias tivessem consciência, teriam sido então aniquiladas. Mas permane ceram assim e só Ulisses escapou delas. De resto, chegou até nós mais um apêndice. Diz-se que Ulisses era tão astucioso, uma raposa tão ladina, que mesmo a deusa do destino não conseguia devassar seu íntimo. Talvez ele tivesse realmente percebido - embora isso não possa ser captado pela razão humana - que as sereias haviam silenciado e se opôs a elas e aos deuses usando como escudo o jogo de aparências acima descrito.” Explica Benjamin: “Impossível fàlar aqui de ordens e hierarquias. O mundo mítico, à primeira vista próximo do universo kafkiano, é incomparavelmente mais jovem que o mundo de Kafka, com relação ao qual o mito já representa uma promessa de libertação. Uma coisa é certa: Kafka não cedeu à sedução do mito. Novo Odisseus, livrou-se dessa sedução graças ao olhar dirigido a um horizonte distante’[...] as sereias desapareceram literalmente diante de tamanha firmeza, e, no momento em que estava mais próximo delas, não as percebia mais’. Entre os ancestrais de Kafka no mundo antigo, os judeus e os chineses, que reencontraremos mais tarde, esse antepassado grego não deve ser esquecido. Pois Odisseus está na fronteira do mito e do conto de fadas. A razão e a astúcia introduziram estratagemas no mito; por isso, os poderes míticos deixaram de ser invencíveis. O conto é a tradição que narra a vitória sobre esses poderes. Kafka escreveu contos para os espíritos dialéticos quando se propôs narrar sagas. Introduziu pequenos truques nesses contos e deles extraiu a prova de que mesmo os meios insuficientes e até infantis podem ser úteis para a salvação’. É com essas palavras que ele inicia sua narrativa sobre O silêncio das sereias. Pois em Kafka as sereias silenciam; elas dispõem de uma arma ainda mais terrível que o seu canto [...] o seu silêncio’. Elas utilizam 209
DIREITO E LITERATURA
essa arma contra Odisseus. Mas ele, informa-nos Kafka, era tão astuto, uma ra posa tão fina, que nem sequer a deusa do destino conseguiu devassar seu interior. Embora isso seja incompreensível para a inteligência humana, talvez ele tenha de fàto percebido que as sereias estavam silenciosas, usando contra elas e contra os deuses o estratagema que nos foi transmitido pela tradição apenas como uma espécie de escudo’. Em Kafka as sereias silenciaram. Talvez porque a música e o canto sáo para ele uma expressão ou pelo menos um símbolo de fuga. Um símbolo da esperança que nos vem daquele pequeno mundo intermediário, ao mesmo tempo tempo inacabado e cotidiano, ao mesmo tempo consolador e absurdo, no qual vivem os ajudantes [os mensageiros]. Kafka é como o rapaz que saiu de casa para aprender a ter medo. Ele chegou ao palácio de Potemkin, mas acabou encontrando em seu porão Josefine, aquela ratinha cantora, que ele descreve assim: ‘existe nela algo de uma infância breve e pobre, algo de uma felicidade perdida e irrecuperável, mas também algo da vida ativa de hoje, com suas pequenas alegrias, incompreensíveis mas reais, e que ninguém pode extinguir’” (Walter Benjamin em Frank Kafka: a propósito do décimo aniversário da sua morte). Caro André, espero que tenha gostado da reunião de textos e que as reflexões que faço aqui possam servir para outras tantas. Assim como Walter Benjamin, você sabe, eu sou, antes de tudo, um colecionador de citações: alguém que pre tende ser também um pescador de pérolas, para falar do modo com que Arendt se referia a Benjamim em seu belíssimo texto de Men in Dark Times. Citações, An dré, são “imagens dialéticas”. Falam do passado, mas de um passado que, como dizia Faulkner, “não está morto, ele nem mesmo é passado”. Afinal, trata-se de “uma herança que nos foi deixada sem testamento”, nas palavras de René Char, citado por Hannah Arendt, em Between Past an d Future. Paro por aqui. Por enquanto. Um grande abraço, Marcelo.
21 0
OS SETE SAPATOS SUJOS E O DIREITO... San dra Regina M artini Vial'
INTRODUÇÃO Relacionar o direito com outras áreas náo deveria apresentar nenhuma di ficuldade; porém, quando buscamos esta relação, náo raras vezes encontramos (des)relações. O Direito tem se apresentado, em muitas circunstâncias, distante de qualquer outra disciplina e, em conseqüência disto, distante de outros ato res sociais. Este distanciamento pode ser contextualizado historicamente, assim como também podemos contextualizar uma ruptura com estas (des) relações. Se nas décadas de 1960, 1970 e 1980, pouco podíamos inovar na área do Direito, podemos também afirmar que no fim da década de 1980, e mais fortemente na década de 1990, significativas mudanças ocorrem, vários Movimentos Sociais passam a se organizar, e este processo se dá também na área do direito. Pensa-se, para exemplificar, na importância dos grandes congressos de direito alternativo. Trabalhar direito e literatura é trabalhar com uma das muitas possibilidades e limitações do próprio direito; é descobrir o quanto o direito é sociedade.1Mais do que isso, é a oportunidade de ver o direito não através dele próprio, mas através das repercussões sociais, dos imaginários, das muitas representações.2Nos *
Pós-dou torada em Direito (Roma Tre/ltália). Doutora em Direito (Lecce/ltália). Mestre em Educação (Pucrs). Gra duada em Ciências Sociais (Unisinos). Professora Titular do Programa da Pós-Graduação em Direito da Unisinos. Professora Visitante da Scuola D ottora le Internaz ionale Tullio Ascarel i e da Università De g i Studi di Salerno (Itália). Professora da Fundação do M inistério Público. Ex-D iretora da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul. Mem bro do C onselho Su perior da FAPERGS. Coorden adora de Projeto da UNESCO (Brasil). 1 Texto esclarecedor de Agostinho Ramalho Marques Neto - A ciência do direito: conceito, objeto, método - ao afirmar que só há direito de ntro do espaço socia , mais do que isso, diz Marques Neto: "O fenôm eno jurídico não existe de modo algum em estado puro. Ele sofre as mais diversas influências das inúmeras dimensões do espaço-tem po social, ond e surge e se mo difica. Por isso, a ciência do D ireito, para compre endê -lo na inteireza relaciona de sua existência concreta, não pode prescindir de um enfoque eminentemente interdisciplinar" Cf. MARQUES NETO, Agos tinho Ramalho. A ciência do direito: conceito, objeto, m étodo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 129. 2 As limitações e poss ibilidades do direito po dem ser observadas nas reflexões de Ferraz Jr.: "com pree nde r o direito não é um em preen dim ento que se reduz facilmente a conceituações ógicas e racionalme nte sistematizadas. O encontro com o direito é diversificado, às vezes conflitivo e incoerente, às vezes linear e conseqüente (...) Por tudo isso, o direito é um mistério, o mistério do princípio e do fim da so idariedade humana" (FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao e studo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 23).
211
DIREITO E LITERATURA
contos de Mia Couto, náo faltam representações, imaginários, dificuldades. Na Ilha Luar-do-Chão, tudo funcionava segundo as tradições; mesmo assim, náo faltou imaginação para que este povo burlasse as leis. Tudo acontecia no mais absoluto segredo (que de secreto nada tinha), especialmente em se tratando de relações afeti vas. Marianinho, figura central no conto, ao retornar para a ilha, fica perplexo com os acontecimentos e com a forma como as pessoas lidam com questões banais, coti dianas. Também sente-se confuso com relação à morte do seu avô, pois, em muitos momentos, o real e místico se confundem. Embora morto, Vô Mariano segue es crevendo cartas, ou melhor, dando ordens. Tudo isso o deixa confuso, assim como nós, muitas vezes, temos que rever o que é direito, para que serve e de onde vem. Muitas vezes, mais que perguntar o que é o direito, precisamos questionar qual o direito que conhecemos ou irreconhecemos, como diz Mia Couto: “Há quanto tempo não visito a Ilha. Vejo que se interrogam: eu, quem sou? Desconhecem-me. Mais do que isso; irreconhecem-me. Pois eu, na circunstân cia, sou um aparente parente. Só o luto nos faz da mesma família. Seja eu quem for esperam de mim tristeza. Mas não este estado de ausência... Em África, os mortos não morrem nunca. Exceto aqueles que morrem mal. A esses chamados abortos. Sim, o mesmo nome que se dá aos desnascidos. Afinal, a morte é um outro nascimento”.3 Talvez pudéssemos perguntar há quanto tempo o direito não sai da sua ilha de superioridade, ou se a sociedade se reconhece nas decisões dadas pelo sistema do direito? Ou se irreconhece? Será que precisaremos continuar com vários lutos para nos encontrarmos com o direito? Ainda, que mortes e vidas o direito produz? Neste volume - Direito e Literatura -, vamos discutir o direito através de Mia Couto, autor de origem africana e com uma formação transdisciplinar. Seus tex tos refletem muito a realidade atual e local. O texto que apresentaremos neste artigo, “Os sete sapatos sujos”, traz várias interfaces com o direito. Apesar de uti lizarmos outros escritos no decorrer desta reflexão, julgamos este pequeno conto o mais próximo do mundo sociojurídico. Mia Couto nasceu em Moçambique, tem diversas publicações em várias lín guas. Em seus textos, traz os problemas da sua realidade distante e ao mesmo tempo próxima, já que fazemos parte da mesma periferia da modernidade. 3
COUTO , Mia. Os sete sapatos su;os. Disponível em: http://vAvvv.macija.org/miacouto/MiaCoutolSCTEM2005.htrin . Acesso em: 20 jun. 2C09, p. 29-30.
21 2
O S S E T E S A P A TO S S U J O S E O D I R E I T O
OS SETE SAPATOS SUJOS Mia Couto escreve sobre a constante possibilidade de mudança da sua reali dade com a força da própria comunidade que, apesar de suas dificuldades, podem evoluir para um local mais digno e mais humano. Isso é o que o autor expressa nas primeiras linhas do conto “Os sete sapatos sujos”: “Todos os dias somos confrontados com o apelo exaltante de combater a pobreza. E todos nós, de modo generoso e patriótico, queremos participar nessa batalha. Existem, no entanto, várias formas de pobreza. E há, entre todas, uma que escapa às estatísticas e aos indicadores numéricos: é a penúria da nossa reflexão sobre nós mesmos. Falo da dificuldade de nos pensarmos como sujeitos históricos, como lugar de partida e como destino de um sonho”.4 O combate a todos os tipos de pobreza, especialmente aquela que nos faz pensarmos como sujeitos históricos, faz parte dos escritos de Mia Couto. Tam bém é com este objetivo que o autor conta a história de construção do seu país através do processo de educação formal dos cidadãos moçambicanos, da força e do apoio do povo para a criação da primeira universidade. Não temos dúvidas sobre a importância que uma universidade pode ter para o desenvolvimento re gional, mas temos preocupações com os rumos que algumas universidades vem tomando. Nos cursos de direito, vemos claramente uma mudança significativa, mas ainda temos muito a discutir, precisamos, como diz Mia Couto, pensar sobre os que pensam de modo diverso: “Toda essa herança não ajuda a que crie uma cultura de discussão frontal e aberta. Muito dos debates e ideias são, assim, substituídos pela agressão pessoal. Basta demonizar quem pensa de modo diverso. Existe uma variedade de demônios à disposição: uma cor política, uma cor de alma, uma cor de pele, uma origem social ou religiosa diversa”5(terceiro sapato). A herança moçambicana, apesar de todos os demônios, conseguiu criar uma constituição bastante ousada em alguns aspectos. No direito à saúde, por exem plo, podemos destacar os artigos 89 e 116: 4 5
ld., ibid. ld., ibid.
213
DIREITO E LITERATURA
“Artigo 89 (Direito à saúde) Todos os cidadãos têm o direito a assistência médica e sanitária, nos termos da lei, bem como o dever de promover e defender a saúde pública”.6 “Artigo 116 (Saúde) 1. A assistência médica e sanitária aos cidadãos é orga nizada através de um sistema nacional de saúde que beneficie todo o povo moçambicano. 2. Para a realização dos objetivos prosseguidos pelo sistema nacional de saúde a lei fixa modalidades de exercício da assistência médica e sanitária. 3. O Estado promove a participação dos cidadãos e instituições na elevação do nível da saúde da comunidade. 4. O Estado promove a extensão da assistência médica e sanitária e a igualdade de acesso de todos os cidadãos ao gozo deste direito”.7 No Brasil, levamos muitos anos para constitucionalizar o direito à saúde. Não temos dúvida da influência das constituições atuais na elaboração da Cons tituição de Moçambique, que é recente - 2004. A questão é como efetivar tais direitos em um país com muitas dificuldades sociais, culturais e políticas. Note-se, através de Mia Couto, todo o empenho dos cidadãos de Moçambique para a construção da primeira universidade, “No dia em que eu fiz 11 anos de idade, a 3 de Julho de 1966, o Presidente Ken neth Kaunda veio aos microfones da Rádio de Lusaka para anunciar que um dos grandes pilares da felicidade do seu povo tinha sido construído. Não falava de nenhuma marca de arroz. Ele agradecia ao povo da Zâmbia pelo seu envolvimen to na criação da primeira universidade no país. Uns meses antes, Kaunda tinha lançado um apelo para que cada zambiano contribuísse para construir a Univer sidade. A resposta foi comovente: dezenas de milhares de pessoas corresponderam ao apelo. Camponeses deram milho, pescadores ofertaram pescado, funcionários deram dinheiro. Um país de gente analfabeta juntou-se para criar aquilo que ima ginavam ser uma página nova na sua história. A mensagem dos camponeses na inauguração da Universidade dizia: nós demos porque acreditamos que, fazendo isto, os nossos netos deixarão de passar fome.”
6 7
CONSTITUIÇÃO DE MOÇAM BIQUE. D'sponível em: http:/Avwv.m ozam bique.mz /pdf/constituicao.pdf. Acesso em: 11 jul. 2009. ld., ibid.
21 4
O S S E T E S A P A TO S S U J O S E O D I R E I T O
Esta passagem faz recordar o que os nossos antepassados fizeram para a construção de escolas e também de faculdades. Basta relembrarmos como foi a construção do que hoje chamamos de universidades comunitárias. Nossas per plexidades são as mesmas de Mia Couto: para que serviu tanto esforço? No que se transformaram os nossos sonhos de uma universidade livre, próxima das reali dades locais, universidades que dariam respostas para problemas atuais?8 No quarto sapato, o autor se refere que é de um tempo em que ser era me dido pelo que fazíamos. Hoje, somos medidos pelo espetáculo que conseguimos produzir através da publicidade ou da festa. Exatamente como descreve Debord em Sociedade do espetáculo, a realidade do tempofo i substituída pela publicidade do tempo. Em uma passagem anterior, Debord escreveu: “A sociedade portadora do espetáculo não domina as regiões subdesenvolvidas apenas pela hegemonia econômica. Domina-as como sociedade do espetdcub. Nos lugares onde a base material ainda está ausente, em cada continente, a sociedade moderna já invadiu espetacularmente a superfície social. Ela define o programa de uma classe dirigente e preside sua formação. Assim como ela apresenta os pseudobens a desejar, também oferece aos revolucionários locais falsos modelos de revolução. O espetáculo específico do poder burocrático, que comanda alguns países industriais, faz parte do espetáculo total, com sua pseudonegação geral, e seu sustentáculo. Visto em suas diversas localizações, o espetáculo mostra com clareza especializações totalitárias do discurso e da administração sociais, mas es tas acabam se fundindo, no nível do funcionamento global do sistema, em uma divisão mundial das tarefas espetaculares\ 9 8
9
No Brasil mu ito temos disc utido sobre o rumo da universidade nos tem pos atuais, a tal pon to que o STF, através das palavras do próprio Presidente Gilmar Mendes, declara a não necessidade dos jornalistas terem curso superior (integra da ementa da decisão: o Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator. Ministro Gilmar Mendes (Presidente), conheceu e deu p rovim ento aos recursos extraordinários, dec larando a não recepção do art. 4o, inc. V, do Decreto- ei nc 972/1969, vencido o Senhor Ministro Marco Aurélio. Ausentes, licenciados, os Senhores Ministros Joaquim Barbosa e Menezes Direito. Falaram, pelo recorrente. Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo - SERTESP, a Dra. Tais Borja Gasp arian; pe o M inisté rio P úblico F ederal, o P rocurador- Geral da R epúb ica, Dr. An tôn io Fernando Barros e Silva de Souza; pelos recorridos. FENAJ - Federação Nacional dos Jornalistas e outro, o Dr. João Roberto Egydio Piza Fontes e. pela Advocac ia-Gera da União, a Dra. Grace Maria Fernandes Mendonça. Secretária-Geral de Contencioso. Plenário, 17/6/2009, Recurso Extraordinário n° 511.961), atendendo, assim, claramente os interesses de grupos de comunicação. A universidade tem um pa pel extremam en te paradoxal; mesmo deven do ser o lugar do universal, não raras vezes destaca-se por ser o local de concen tração de saber e, portanto, de poder. Destaco as observações de Edm undo Uma de Arruda Júnior: "O espaço acadêmico é importante, se não crucial, ao avanço compreensivo da realidade que se pretende conhecer. Problemática é a tendência acadêmica academicista (um contrassenso), a tal que do alto confortável abrigo institucional ou, pretensamente sem partido na arena social, reduz a realidade ao que daí vê contemplativa e isoladamente o artífice do trabalho intelectual universitário" (ARRUDA JR„ Edmundo Lima de. Direito alternativo: história e ciência, manifesto. Florianópolis: Cesusc, 2C07, p. 8). DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. Esteia dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Con trapo nto, 1997, p. 106 e 38-39.
215
DIREITO E LITERATURA
O espetáculo do colonialismo, do consumir, do reproduzir modelos está dado. A sociedade mundial, durante muito tempo, reproduziu o modelo espetacular de divisão de tarefas, mas é neste mundo que podemos encontrar formas menos espeta culares de organização social. A própria história de Moçambique mostra isso: a luta dos habitantes para construir uma universidade levando todos os tipos de arroz, embo ra tenha, em um dado momento, contribuído para a manutenção de determinado padrão, poderá servir para o processo de transformação social. Os desejos de outrora talvez somente agora possam ser concretizados, pois o que se fez até pouco tempo foi reforçar os pseudodesejos, mas é somente na sociedade que temos que conseguimos mudar algo, se efetivamente desejarmos e lutarmos para a transformação social. A mesma universidade que no Brasil serviu para acomodar espetáculos burocratizantes, hoje pode ser vista em muitos lugares como espaços efetivamente universais. Assim, acreditamos que possivelmente a experiência brasileira possa ser útil para a realidade de alguns países africanos. Conhecemos a importância da aber tura democrática para uma discussão frontal e aberta no e com o direito que se deu, em certa medida, no Brasil, a partir dos anos 1980. Os movimentos sociais passaram a exigir, do próprio modo de operar do direito, uma postura mais ade quada ao novo momento social. Foi neste contexto que movimentos como Direito Achado na Rua, Direito Alternativo, Direito e Psicanálise tomaram força no contexto dos anos 1980. Es tes e outros movimentos encontraram terreno fértil em várias universidades pelo Brasil, e essa experiência nos fez aprender a discutir, embora ainda com muitas limitações, as formas de operar dos mais diversos sistemas sociais. Hoje, mais do que nunca, tentamos acabar com os antigos “demônios”; várias políticas sociais foram criadas para dar conta da sua progressiva eliminação. Os caminhos para a construção de um direito direito, tanto no Brasil como em Moçambique, pre cisam ser ainda abertos. Temos que construir um direito que seja realmente um meio de defesa, como observa Stefano Rodotà: “Da strumento di difesa il diritto si trasformava in mezzo d'aggressione. Lecerato il velo protettivo delia astratta soggetività giuridica, tutti, e non solo le vittime, si ritrovano nudi nella loro condizione esistenziale, ed è su questa nuda vita Che va sempre misurato il ricorso al diritto”.10 10 RODOT À, Stefano. La víta e le regole - Tra diritto e non diritto. Milano: Feltrinel i. 2C06, p. 19: "De instrumento de defesa, o direito se transforma em meio de agressão. Tirando o véu protetivo da abstrata subjetividade jurídica, todos , e não som ente as vítimas, se encontram nus na sua condiçã o existencial, e é esta a nua vida q ue esta sempre med:ndo o recurso ao direito" (tradução livre).
216
O S S E T E S A P A TO S S U J O S E O D I R E I T O
A herança que temos é de uma náo discussão da forma como vivemos e, portanto, não discutimos de modo adequado como e quanto os sistemas sociais operam; muitas vezes usamos - sem dificuldades - o quarto sapato: “a ideia que mudar as palavras11 muda a realidade”. O mundo do direito se utiliza constante mente de palavras, ou melhor, da comunicação, mas a questão é saber o quanto a nossa comunicação comunica e o quanto ela reproduz os discursos superficiais, como diz Couto: “Estamos reproduzindo um discurso que privilegia o superficial e que sugere que, mudando a cobertura, o bolo passa a ser comestível. Hoje assistimos, por exem plo, a hesitações sobre se devemos dizer negro’ ou preto’. Como se o problema estivesse nas palavras, em si mesmas. O curioso é que, enquanto nos entretemos com essa escolha, vamos mantendo designações que são realmente pejorativas como as de mulato e de monhé”.12 Isso nos remete ao tema do papel que é atribuído à linguagem, que há muito tempo vem sendo problematizado por diversos autores,13e sua vinculação à cons trução (ou produção) de sentido na sociedade. Sobre isso, Lenio Streck sempre alertou para o equívoco de pensar as palavras como mero transportes de concei tos, conferindo-lhes caráter instrumental e secundário, demonstrando, a partir dos aportes da hermenêutica filosófica, que o sentido é construído intersubjetivamente através da linguagem, pela linguagem. Isso vai em direção ao que diz, pois, se linguagem e construção de sentido estão vinculadas, também a simples troca de uma palavra por outra não faz perder a dimensão simbólica do significa do. Como bem menciona Lenio em um de seus pareceres da Quinta Câmara do TJRS, citando Shakespeare: a rosa perderia seu perfume se lhe trocassem de nome?* O texto de Mia Couto traz outras contribuições e conexões com o direito. Ele mostra que o direito está presente em todas as relações, ainda que, algumas 11 A c ontribu ição de De bord p ode ser oportuna, em bora m uito pessimista, para a reflexão da função das palavras, quando diz: "As ideias melhoram. O sentido das palavras entra em jogo. O plágio é necessário. O progresso supõe o plágio. Ele se achega à frase de um autor, serve-se de suas expressões, apaga uma ideia errônea, a substitui pela ideia correta" (DEBORD, op. cit., p.134). O mundo do direito se serve muito do jogo das palavras e do espetáculo. 12 COUTO . op. cit. 13 Eligio Resta escreve belas páginas sobre o Un mondo di paro/e. Destaco apenas algumas linhas: "Cosa sono allora le parole Del giudice Che in nome di um tu tti Che ricompren de i litiganti, persino ul soccombente e II condanato, applica Le parole delia egge? Dal punto de vista de pro ced ime nto decisionale, II sistema giuridico appare come uma catena infinita di decisioni (strange loops, nel linguaggio dei paradossi) Che hanno a che fare non com rude facts, ma com costruzioni giuridiche, o. meglio, com costruzioni guiridiche delia reaitã Che appaiono al sistema dei diritto come eventi" (RESTA, Eiiglo. Diritto vivente. Bari: Laterza, 2C08, p. 162). 14 STRECK. Lenio Luiz. Herm enêut ica juríd ica e(m) crise. 8. ed. Porto A egre: Livraria do Adv oga do, 2009.
217
DIREITO E LITERATURA
vezes, de modo opaco.15No sexto sapato, há uma profunda reflexão sobre a passividadeperante a injustiça. O autor descreve não apenas as injustiças, mas também a forma como nos relacionamos com a injustiça cometida contra os outros. Em Moçambique, a relação entre efetivação da justiça e direito escrito ainda precisa ser revista, pois, se observarmos a Constituição Moçambicana, veremos - como já descrevemos - vários aspectos inovadores, mas a efetivação deste direito é um problema a ser resolvido. Não basta a mobilização dos cidadãos para a construção de um país democrático, é preciso o estabelecimento de políticas públicas capazes de reduzir o analfabetismo, a violência, a miséria. O sexto sapato fala de crimes que permanecem invisíveis, mas que no cotidiano são visíveis a olho nu. A neces sidade de dar visibilidade para os crimes invisíveis passa pela reversão da relação com o outro: “Estamos dispostos a denunciar injustiça quando são cometidas contra a nossa pessoa, o nosso grupo, a nossa etnia, a nossa religião. Estamos menos dispostos quando a injustiça é praticada contra os outros. Persistem em Moçambique zonas silenciosas de injustiças, áreas onde o crime permanece invisível.” Em várias periferias da modernidade, temos a invisibilidade de crimes visí veis, que não causam escândalos nem nos meios de comunicação nem nos corações daqueles que não sofrem com as injustiças. Ainda temos a ideia de mundos se parados, quando, na verdade, como diz o personagem Juca Sabão do texto Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, de Mia Couto:16Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras. M as só hâ duas nações a dos vivos e dos mortos. Porém, temos ainda que questionar como vivem os vivos e morrem os mortos, este último texto vale a pena ser destacado, pois embora as ligações com o direito não sejam tão diretas, elas aparecem na medida em que o direito está em todos os lugares mesmo que nem sempre seja visto, assim como a morte e o nascimento. A questão do direito a uma morte digna passa a ser tema importante no debate jurídico moderno, mas a questão central do pensamento diz respeito às constantes fronteiras que colocamos, à forma como nos apropriamos de deter minados bens. 15 Sobre opac idade do direito, Carlos Maria Córcova observa: "Existe, pois, uma opacid ade do jurídico. O dir eito que atua como uma lógica da vida social, como um livreto, como uma partitura, paradoxalmente não é conhecido, ou não é compreendido, pe os atores em cena. Estes realizam certos rituais, imitam condutas, reproduzem certos ges tos, com pouca ou nenhuma percepção de seus significados e alcances" (CARCOVA, Carlos Maria. A opacidade do direito. Trad. de Edilson A lkm im Cunha. S ão Paulo: LTr, 1998, p. 14). 16 COU TO, op. cit., p. 15.
218
O S S E T E S A P A TO S S U J O S E O D I R E I T O
As dificuldades de Moçambique náo estáo apenas na demarcação de frontei ras, mas também na ausência de um Estado Social forte, que faça do respeito aos direitos humanos a sua grande bandeira. Boaventura de Sousa Santos tem dedicado seus estudos para os países africanos e, em se tratando de Moçambique, faz a seguinte observação: “A forma como as autoridades governamentais moçambicanas menosprezam os direitos humanos é semelhante aos pais biológicos que abandonam os seus filhos, gastando o seu tempo e dinheiro em boates, bebedices e prostituição, ignorando a alta ética paterna: educar os filhos e investir em sua vida social e estudantil, para cimentar uma posteridade digna e qualitativa... Como tornar que as frutas de direitos humanos façam parte do cardápio social dos moçambicanos, enquanto família nacional?”18 Paralelamente à percepção de Boaventura, temos, no sétimo sapato, a ad vertência de Mia Couto ao reiterar o papel da aparência, a ideia de que para sermos modernosprecisamos im itar os outros. Esta imitação se dá não no respeito aos direitos humanos, mas no que temos de menos recomendável. Em que pese o status constitucional adquirido pelos direitos humanos na década de 1990 com a carta constitucional de Moçambique, o desrespeito e as violações ainda são constantes. Segundo o Relatório do Departamento de Estado dos Estados Unidos da América sobre a situação dos Direitos Humanos em Moçambique, pode-se dizer que o desrespeito aos direitos humanos em Moçambique é recor rente, visto que há excesso no uso da força pela polícia, o que resulta em assas sinatos e ferimentos; condições prisionais extremamente duras e ameaçadoras para a vida, que ocasionam a diversas mortes, prisões e detenções arbitrárias; detenções longas antes dos julgamentos; detenção arbitrária de jornalistas; casos de violência doméstica generalizada e discriminação contra as mulheres; abuso e exploração criminosa de crianças, incluindo prostituição infantil, tráfico de mulheres e crianças, discriminação contra pessoas portadoras de deficiências e 17 Qua ndo falamos em "E stad o", temos que pensar nas formas de como o Estado foi se estruturando nos dias atuais. Poderíamos pensar nas várias crises do Estado, porém aqui a sugestão vem de Pierre Bourdieu: "Tentar pensar o Estado é expor-se a assumir um pens ame nto de Estado, a aplicar ao Estado categorias d e pens amen to produzida s e garantidas pe lo Estado e, porta nto, a não comp reend er a verdad e mais fundam ental do Estado" (BOURDIEU, Pierre. Razões práticas sobre a teoria d a ação. Trad. de Mariza Corrêa. Campinas: Papirus, 1996, p. 91). 18 SANTOS, Boaventura de Sousa. A fragilização do Estado-nação pode acarretar consigo a fragilização dos direitos humanos. Jornal Zambeze. 07 de maio de 2C09, nfi 346, ano VII, p. 14. D:sponível em: . Acesso em: 08 jul. 2009.
219
DIREITO E LITERATURA
de HIV/AIDS; trabalho infantil no setor informal; trabalho infantil forçado, além de uma aplicação bastante deficitária da legislação trabalhista.19 As sociedades periféricas ficam ainda mais vulneráveis a uma dada padro nização de estilo de vida, cultura, de economia etc. Esta reprodução acaba des considerando a história e a cultura local. A percepção de morte está diretamente vinculada com a cultura - ainda existente em Luar-do-Chão: “A morte é como o umbigo: o quanto nela existe é a sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência [...] Abstnêncio é o mais velho dos tios. Daí a incum bência: ele é que tem que anunciar a morte de seu pai, Dito Mariano [...] Suas palavras foram mais magras que ele, a estrita e não necessária notícia: o Avô estava morrendo. Eu que viesse, era o pedido exarado pelo velho Mariano. Abstinêncio me instruiu: rápido, fizesse a mala e embarcássemos no próximo barco para a nossa ilha”.20 Embora na ilha Luar-do-Chão os mais velhos façam grande esforço para preservar a cultura local, esta entra em confronto cotidiano com os mundos fora das fronteiras da ilha: “Chamavam-me para acender o lume. Cumpriam um preceito de antigamente: apenas um homem podia iniciar o fogo. As mulheres tinham a tarefa da água. E se refazia o eterno: na cozinha se afeiçoavam, sob gesto de mulher, o fogo e água. Como nos céus, os deuses moldavam a chuva e o relâmpago”.21 Ainda em relação ao sétimo sapato, o autor traz aspectos relacionados com as observações de Boaventura: “O nosso corpo social tem uma história similar a de um indivíduo. Somos marca dos por rituais de transição: o nascimento, o casamento, o fim da adolescência, o fim da vida. Eu olho a nossa sociedade urbana e pergunto-me: será que queremos realmente ser diferentes? Porque eu vejo que esses rituais de passagem se repro duzem como fotocópia fiel daquilo que eu sempre conheci na sociedade colonial. Estamos dançando valsa, com vestidos compridos, num baile de finalistas que é 19 Dados extraídos do site da Emba:xada dos Estados Unidos NAPUTO - Moçam bique. Disponível em: < http://poctu9uese.maputo.usembassy.9ov/ci_07052007.html >. Acesso em: 10 jul. 2C09. 20 COU TO, op. cit., p. 15-16. 21 ld., ibid.
22 0
O S S E T E S A P A TO S S U J O S E O D I R E I T O
decalcado do meu tempo. Estamos copiando as cerimônias de final de curso a partir de modelos europeus de Inglaterra medieval. Casamo-nos de véus e grinal das e atiramos para longe da Julius Nyerere tudo aquilo que possa sugerir uma cerimônia mais enraizada na terra e na tradição moçambicanas”.22 Marcado por um momento de transição, Moçambique teve de enfrentar uma verdadeira guerra para ficar independente da Colônia Portuguesa de Moçambique. Este processo de luta foi organizado por uma frente, a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), formada em 25 de junho de 1962 pela junção de três grandes movimentos já existentes na época. Essa guerra de libertação das “amarras” da Colônia Portuguesa durou cerca de 10 anos.23Mo çambique tornou-se independente em 25 de junho de 1975. Esse breve relato de monstra a fotocópia fiel daquilo que eu sempre conheci na sociedade colonial, como bem salienta Boaventura, pois do mesmo modo como Moçambique foi domina do por Colônias Portuguesas, inúmeras outras regiões também foram, na própria África, como resultado da partilha desse continente, que resultou numa verda deira administração colonial. O resultado disso foi comum a todos: para livrar-se disso, era necessária uma transição, e essa foi peculiar a muitos - lutas, guerras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS É po r isso que vale a pena aceitarmos descalçar náo só os sete mas todos os sapatos que atrasam a nossa marcha colectiva. Porque a verdade ê um a: antes vale andar descalço do que tropeçar com os sapatos dos outros. ,
(M ia C o u t o )
Podemos relacionar os sete sapatos sujos, por um lado, com vários sapatos su jos do próprio direito; de outra parte, podemos relacioná-los com formas emancipadoras do operar jurídico, que podem ser enumeradas superando o número sete. O Direito atual, estruturado com base em decisões, decide constantemente, sobre vários aspectos da vida cotidiana, sobre vários sapatos limpos e sujos. A grande questão que necessitamos colocar passa pelos fundamentos de quem decide o que 22 SANTOS, op. cit., p. 14. 23 WESTFALL, Wil iam C. Mozam bique-lnsurgency Against Portugal, 1963-1975 11984], Ds po rrv e em: < http://\wvw. g obalsecurity.Org/mi:itary/library/report/1984/WCW .htm >. Acesso em: 9 jul. 2009.
221
DIREITO E LITERATURA
decide, e quais são as limitações destes fundamentos. Assim, tem razão Mia Cou to quando diz que devemos descalçar os sete sapatos, mas não só estes sete que ele aponta no seu conto, mas todos os sapatos inadequados, apertados, enfim, todos os sapatos contrários à democracia e aos direitos humanos. O primeiro sapato que deve ser descalçado é aquele que aponta sempre o outro como culpado.24 Este outro pode ser um governo, uma história. O sapato que devemos calçar, tanto em Moçambique como no Brasil, é aquele no qual nós somos responsáveis pelo que fazemos, pois a história não é algo dado, mas construído. A democracia, que talvez nada tenha de democrática, que vem sendo imposta por alguns países imperialistas é um sapato que não nos serve, fica aper tado, nos machuca, fere qualquer respeito pela cultura... A democracia precisa ser apreendida e assimilada, não como uma possibilidade de salvação, mas como algo possível na construção de uma sociedade mais fraterna, tendo presente a ideia de que nem sempre a democracia é efetivamente democrática. Por isso, a construção deste novo modelo de sociedade passa não por cidadãos vítimas, mas por cida dãos efetivos, detentores de direitos e reconhecidos como tal pelas autoridades locais e internacionais. Assim, chegamos ao segundo sapato, o qual passa a noção de que o sucesso não nasce do trabalho, mas é algo dado por alguma divindade, ou pela sorte. O povo africano tem muitas crenças que, se por um lado fazem parte de sua cultura, por outro podem ser entraves para a sua própria evolução. Mia Couto nos relata que o presidente mandou exorcizar seu palácio, com 300 quartos, pois estava com problemas de insônia advindos dos maus espíritos. Na realidade, sua insônia tem uma causa não sobrenatural, diz respeito a sua própria consciência, diz respeito ao processo de apropriação de determinados bens públicos, diz res peito a não separação entre público e privado. Fazer uma crítica à situação paradoxal de Moçambique implica em ser visto como inimigo. No terceiro sapato, vemos que este preconceito ainda é vigente e, ao relacioná-lo com o mundo jurídico, sabemos que o pensar diferente tem vá rias implicações, mesmo em uma democracia mais estável como a brasileira. Isto pode ser fruto de momentos históricos nos quais o que fazíamos era criticar sem apontar soluções para os problemas vigentes ou entender que quem deve resolver 24 No conto "O último voo do flamingo". Mia Couto traz um provérbio africano interessante, que reforça a ideia de que a mudança de uma dada socedad e, de uma dada Nação não será feita por magia, ou por algum ou tro culpado senão a própria Nação. Traz também a importância dada para o lar como um espaço de construção de uma história. Eis o provérbio: "As ruínas de uma nação começam no lar do cidad ão" (COUTO, Mia. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 118).
22 2
O S S E T E S A P A TO S S U J O S E O D I R E I T O
os nossos problemas sáo sempre os outros, os neoliberais, os imperialistas. Os padróes culturais de submissão das mulheres, dos mais jovens, têm um peso forte na realidade moçambicana. Ainda no terceiro sapato aparece a questão da intolerância. No mundo socio jurídico, conhecemos bem as conseqüências dos vários processos de intolerância. Vivemos em uma sociedade que não tolera os diferentes; estes são sempre ini migos, porque desconhecidos. As demandas judiciais da sociedade global estão plenas de questões deste gênero. Este sapato - o da intolerância - é certamente o primeiro que devemos descalçar se realmente quisermos a construção da demo cracia. Para isto, não basta mudar as palavras, como aparece no quarto sapato, é preciso dar um novo sentido para as palavras, quiçá retomar alguns pressupostos de quando as palavras valiam. Banir termos discriminatórios do nosso vocabulá rio diário não basta para reduzir a discriminação. Muitas vezes, precisamos é mu dar “alguns corações”, já que em muitos casos é aí que se encontra concentrado todo o processo de exclusão de uma sociedade que se diz inclusiva. Assim, ter di reitos assegurados constitucionalmente não basta para que estes sejam efetivados, pois é na luta diária que vamos efetivar o direito a ter direitos. No quinto sapato, Mia Couto traz a situação do reconhecimento como cida dãos pobres e a cultura da aparência, fruto da sociedade do espetáculo que vive mos. Aqui podemos retomar as observações de Guy Debord, numa sociedade em que ninguém consegue ser reconhecido pelos outros, cada indivíduo tomase incapaz de reconhecer sua própria realidade. A ideologia será em casa; a separação construiu seupróprio mundo.25Assim, um isolamento pode ser percebido, e a vida real pode ser substituída por uma válvula de escape como uma fuga do enfrentamento dos problemas reais: é a segunda vida. Somos aquilo que queremos e ou aquilo que construímos ou aquilo que desconstruímos de nossas culturas. Podemos ser ativos e passivos ao mesmo tempo, aquilo que não é possível na vida real (quem sabe na primeira vida), levamos para a segunda vida. Couto tem razão quando afirma que quem tem de ter vergonha da pobreza é quem a cria, porém quem sofre com a pobreza pode buscar formas de combatê-la, através, por exemplo, do sexto sapato, onde aparece a tolerância com as injustiças. Se muitos crimes e discriminações parecem invisíveis, a questão é como tor nar visível o invisível, e mais, ver o quanto este invisível é visível.26As injustiças 25 DEBORD, op. cit., p. 140. 26 Os textos de Mia Couto são repletos de provérbios ocais, os quais fui destacando durante o texto, mas na questão da invisibilidade, me rece destaque no tex to " O ú ltimo v oo do flam ingo"’ (op. cit., p. 55): * Uns sabem e não acredi tam. Esses não chegam nunca a ver. Outros não sabem e acreditam. Esses não veem mais que um ce go"’.
223
DIREITO E LITERATURA
e o desrespeito aos direitos humanos são evidentes na sociedade moçambicana, uma sociedade na qual o acesso aos bens e serviços é limitado, ao passo que o presidente tem um palácio com 300 quartos e, ao achar que nele estão os maus espíritos, investe para acabar com esta injustiça. A passividade perante as injustiças está mais ligada aos fatos que ocorrem com os outros, pois combatemos o que nos afeta diretamente. Entretanto, o grande salto de uma sociedade ocorre quando ela percebe que o outro é um outro eu. Todas as sociedades que usam este sapato devem urgentemente descalçá-lo. Não há efetivação da democracia onde este sapato estiver calçado. No último sapato apresentado, aparece a ideia de que para serem considera dos modernos, globais, os cidadãos moçambicanos devem imitar os outros. Estas cópias de modelos se dão através do processo de globalização dominante. Assim temos que concluir concordando com Mia Couto quando afirma que é melhor tropeçar com os próprios sapatos, ou como descreve - através da personagem Ana Deusqueira - “Não me basta ter um sonho. Eu quero ser um sonho”.27
27 ld., ibid .. p. 173.
224
POST SCRIPTUM
FALTAM GRANDES NARRATIVAS NO E AO DIREITO
Náo tenho dúvida de que a literatura pode ensinar muito ao direito. Faltam grandes narrativas no direito. A literatura pode humanizar o direito. Há vários modos de dizer as coisas. Uma ilha é um pedaço de terra cercado por água, mas também pode ser um pedaço de terra que resiste bravamente ao assédio dos ma res. É comum dizer que o galo canta para saudar a manhã que chega; mas, quem sabe, ele canta melancolicamente a tristeza pela noite que se esvai. Vejam como é bela a descrição do quase afogamento de Júlio César, na homônima peça de Shakespeare: “De uma feita, numa tarde enublada e tempestuosa, em que o Tibre agitado se batia dentro das próprias margens, perguntou-me César: ‘Cássio, ousarias atirar-te, junto comigo, na corrente infensa e nadar até ali?’ Mal acabara de falar-me, vestido como estava, joguei-me na água e a me seguir chamei-o, o que ele fez de fàto. A correnteza roncava; nós lutávamos contra ela com membros indefesos, apartando-a e à sua fúria opondo o ousado peito. Mas antes de alcançarmos nossa meta, César gritou: ‘Socorro, Cássio! Afogo-me!’ Então, tal como Eneias, nosso grande progenitor, que carregam aos ombros o velho Anquises e o salvara às chamas que Troia devastavam: da corrente do Tibre, assim, tirei o exausto César. Num deus, agora, está mudado esse homem, sendo Cássio uma mísera criatura que precisa curvar-se, quando César com enfado lhe faz um gesto vago. Na Espa nha apanhou febre; e, quando o acesso lhe vinha, notei bem como tremia. Sim, esse deus tremia; seus covardes lábios ficaram pálidos, e os mesmos olhos que ao mundo todo inspiram medo o brilho a perder vieram. Muitas vezes o ouvi gemer. Sim, essa mesma língua que os romanos deixava estupefactos, levando-os a guardar os seus discursos, ah! gritava tal qual donzela doente: ‘Água, Titínio! 227
DIREITO E LITERATURA
Dá-me um pouco de água!’ Muito me espanta, ó deuses! ver que um homem de uma constituição assim tão fraca tenha passado à frente neste mundo majestoso e, sozinho, obtido a palma.” Há tantos modos de dizer as coisas...! Olhando a operacionalidade, a realidade não nos toca; as ficções, sim. Com isso, confundimos, de novo, as ficções da realidade com a realidade das ficções. Ficamos endurecidos. A literatura pode ser mais do que isso. Ela pode ser o canal de aprendizado do direito nas salas de aulas. Tenho feito essa experiência. Dias destes, fiz uma aula inaugural em uma faculdade de direito, em Belo Horizonte. Contei toda a história do positivismo jurídico a partir de Shakespeare. Peguei o Medida por medida e mostrei como o personagem Ângelo representa as duas faces de uma mesma moeda. Ele vai do positivismo exegético ao positivismo axiologista-normativista. Em Portugal, tanto em Coimbra como em Lisboa, mos trei a trajetória dos direitos fundamentais fazendo um voo desde Antígona, onde ocorre a primeira objeção de consciência, até o maior romance do século XX, Der Mann ohne Eigenschaften (O homem sem qualidades) > no qual se coloca o dilema do homem que caminha no limiar da mudança de paradigmas ocorrida no início do novecentos. Enfim, a junção do direito com a literatura abre um mundo novo. É existencial. O direito opera com a norma e busca a verdade, seja lá o que essa “verdade” queira significar. Mas, assim como a literatura lida com a ambigüidade da lin guagem, o direito não escapa disso. De há muito, sabemos que as palavras da lei são vagas e ambíguas. Isto pode ser observado a partir da relação entre texto e norma. O mesmo texto possibilita várias normas (ou sentidos). Um interessante retrato disso pode ser visto nos contos de Jorge Luis Borges. O nome da rosa, de Umberto Eco, apresenta uma lição de semiótica. O personagem Guilherme de Baskerville é uma espécie de alterego do filósofo Guilherme de Ockham, o pai do nominalismo. Como se sabe, o nominalismo é a grande manifestação contrária ao essencialismo. Os juristas deveriam ler O nome da rosa... Assim, apreenderiam que o princípio da verdade real é uma “trampa”. E apreenderiam, também, que o positivismo é uma forma de nominalismo. Quando os juizes decidem como que rem, isto é, decidem arbitrariamente, nada mais estão fazendo do que “imitar” a personagem Humpty Dumpty, de Alice através do espelho, que dizia “eu dou às palavras o sentido que eu quero”. De certo modo, isso se repete no decisionismo de Kelsen, quando este sustenta que a “interpretação é um ato de vontade”. Na 228
F A LT AM G R A N D E S N A R R A T I V A S N O E A O D I R E I T O
verdade, trata-se da vontade de poder, que implica uma forma de estabelecer “um grau zero de sentido”. Náo há livro que não seja útil nessa relação “direito-literatura”. Mas vejam: a minha percepção sobre o estudo do Direito e Literatura não segue a mesma li nha de autores como Richard Posner ou François Ost. Eles acabam trabalhando “direito e literatura” a partir de livros que explicitam essa relação nos textos. A minha leitura é diferente. Se quero trabalhar o conceito de princípio, busco Victor Hugo, em Os últimos dias de um Condenado. Ele faz uma ode contra a pena de morte. E a faz por princípio. Também o Coronel Vitorino, de Fogo Morto, de José Lins do Rego, é um exemplo do que é um princípio (jurídico). E o que dizer da relação regra/princípio subjacente à célebre obra de Jonathan Swift, As aventuras de Gulliver, de 1748? A dramaticidade de As vinhas da ira, a relação capital-trabalho, as injustiças... O realismo (ou naturalismo) que marca Germinal, de Emile Zolá, é um contun dente manifesto contra a opressão, mas que guarda, internamente, essa relação dicotômica entre “indivíduo e estrutura”. Um dos meus preferidos é, sem dúvida, Machado de Assis, na inauguração de sua fase realista, com seu Memóriaspóstumas de Brás Cubas. Há(veria) melhor representação do imaginário patrimonialista brasileiro? Qual é a melhor maneira de discutir “direito e linguagem” ou “palavras e coisas”, enfim, essa angústia que assalta o homem desde a aurora da civilização e que atravessa mais de dois milênios, senão através de Grandes sertões: veredas? Na mesma linha, Otelo pode não ter explicitamente uma relação com o direito. Entretanto, se queremos saber a diferença entre o essencialismo, ou o paradigma da metafísica clássica - o que dá no mesmo - , e a modernidade, devemos ler com cuidado e atenção os movimentos de Otelo e lago. Otelo acredita em verdades intrínsecas, em “verdades a p rior? \ Yago, não. Claro que também é possível trabalhar com narrativas literárias que tratam explicitamente do direito. No Programa Direito & Literatura, exibido pela TV JUST IÇA, já discutimos, inclusive, textos poéticos. E o que dizer de peças como A nau dos insensatos ou, então, as peças de Gil Vicente, em especial O auto da barca do inferno? Ou, ainda, as peças de Brecht, como O círculo de giz caucasiano ou A ópera dos três vinténs*. Vejam o comportamento do Juiz Azdak, em O círculo de giz caucasiano... Eis algumas máximas de Azdak: “É bom para a justiça fun cionar ao ar livre. O vento lhe levanta a saia e pode-se ver o que está por baixo”; “Contam a meu respeito que um dia, antes de pronunciar a sentença, eu saí para 229
DIREITO E LITERATURA
respirar o cheiro de uma roseira”; “Me traga aquele livro grosso, que eu sempre faço de almofada para sentar! (Schauva apanha em cima da cadeira de Juiz um grande livro, que Azdak se põe a folhear.) Isto aqui é o Código das Leis, e você é testemunha de que eu sempre fiz uso dele”, sentando-se sobre o livro. Em síntese: Azdak decide como quer. Por vezes, dá ganho de causa aos pobres; por vezes, contradiz-se ao infinito. Náo deve explicações a ninguém. E tampouco explica as suas decisões. O que achamos disso? Portanto, esta imbricação do direito com a literatura é um verdadeiro tesouro jusfilosófico (e, aqui, me recordo de As minas de Salomão). Isto porque os livros sáo conclusivos e inconclusivos. Hermenêuti cos e dialéticos. Alguns livros váo, por assim dizer, direto no “rim” do sistema jurídico. Cito, de pronto, Ilusões perdidas e O coronel Chabert, ambos de Honoré de Balzac. A crítica ao sistema judiciário francês do século XVII atravessa o tempo. É atempo ral, como, aliás, deve ser a literatura. Deixemos Balzac falar, em 1840: “para as galés váo os gatunos que roubam galinhas à noite nos quintais, ao passo que mal ficam uns meses na prisáo aqueles que arruinam famílias com falências fraudulentas; mas esses hipócritas sabem muito bem que, condenando o ladráo de galinhas, mantêm a barreira entre pobres e ricos, barreira que, derrubada, pro vocaria o fim da ordem social; ao passo que quem cometeu falência fraudulenta, o esperto usurpador de heranças e o banqueiro que destrói um negócio em pro veito próprio, só estáo fazendo com que a riqueza mude de máos”. Sáo as palavras do Padre Herrera à personagem Lucien, em Ilusões perdidas. O que mudou de lá para cá? Pouco. Muito pouco. Enfim, como disse, todos os livros podem surpreender. Refiro-me, por exem plo, A novela do curioso impertinente, que é uma pequena parte de Don Quijote de La Mancha, de Cervantes. A literatura é o mundo: “mundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, náo seria uma soluçáo”, segundo Carlos Drummond de Andrade. Só daí já podemos começar uma discussáo sobre a relação entre palavras e coisas. E, de imediato, podemos voltar à Antígona, onde já se podia ver que o direito não cabe na lei. Ela já sabia disso. Entretanto, parcela considerável dos juristas ainda não se deu conta disso. Pensemos em Vidas secasy de Graciliano Ramos. Os filhos de Fabiano, quando chegam à cidade e veem todas aquelas coisas, perguntam-se: será que todas essas coisas têm nome? Isso também está em Gabriel Garcia Márquez, em seu clássico romance Cem anos de 230
F A LT AM G R A N D E S N A R R A T I V A S N O E A O D I R E I T O
solidão. .. Naquela pequena Macondo, metáfora do mundo, as coisas ainda eram tão recentes, tão novas, que, para dirigirmo-nos a elas, tínhamos de apontar com o dedo... Porque elas ainda não tinham nome. Quantas coisas no direito os ju ristas ainda desconhecem? Para quantas coisas eles só apontam com o dedo, mas não sabem o seu sentido? Nesse ritmo, não pararia, porque é possível emendar um livro no outro. Aliás, como diz Eco, em O nome da rosa, um livro sempre fala de outros livros. E Gadamer ensina: não existe a primeira palavra; e nem a última, acrescento eu. Bueno. Quem quiser saber mais, consulte , onde é possível acessar mais de 160 programas Direito & Literatura, que se encontram disponíveis gratuitamente. O projeto e sua pro dução executiva são assinados por André Karam Trindade. Assistam. Discutam. Comentem. Participem. Dialoguem conosco. Outro dia estive no Piauí, para receber o título de cidadão emérito e fiquei emocionado com os jovens estudando Direito e Literatura. Há uma disciplina em uma faculdade local, onde os profes sores e alunos debatem a partir do programa. Que maravilha. Saludo! Aqui foi uma pitada de, digamos, menos do que 5% do butim das palavras. Como venho dizendo em meus textos e livros, palavra é pâquelavra. Mais do que ferramenta, é condição de possibilidade.
Rio de Janeiro, janeiro de 2013. Prof. Dr. Lenio Luiz Streck
231