REFERÊNCIA
LEFF, Enrique E nrique.. Epistemologia ambiental ambiental . São Paulo: Cortez, 2001. P.61-108
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) ( C â m a r a B r a s i l e i r a d o L i v r o , SP SP, B r a s i l )
LetT, Enrique Epistemologia ambiental / Enrique LetT : tradução de Sandra Valenzu ela ; revisão técnica de Paulo Freire Vieira Vieira.. - 5. ed. São Paulo : Conez, 2010. Bibliografia. ISBN 978-85-249-0768-5 1. D esenvolvimento econômico - Aspectos ambientais ambientais 2. Desenv olvimen to sustentável. 3. Gestão ambiental I. Título.
01-0231
CDD-304.2 í n d i c e s p a r a c a tá t á lo lo g o s i s t e m á t i c o :
1. Meio ambiente am biente : Ecolo gia hum ana 304.2
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) ( C â m a r a B r a s i l e i r a d o L i v r o , SP SP, B r a s i l )
LetT, Enrique Epistemologia ambiental / Enrique LetT : tradução de Sandra Valenzu ela ; revisão técnica de Paulo Freire Vieira Vieira.. - 5. ed. São Paulo : Conez, 2010. Bibliografia. ISBN 978-85-249-0768-5 1. D esenvolvimento econômico - Aspectos ambientais ambientais 2. Desenv olvimen to sustentável. 3. Gestão ambiental I. Título.
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CDD-304.2 í n d i c e s p a r a c a tá t á lo lo g o s i s t e m á t i c o :
1. Meio ambiente am biente : Ecolo gia hum ana 304.2
Enrique Left
Epistemologia Ambiental
5a edição
Tradução de Sandra Valenzuela
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I N T E R D I S C IPI P L INI N A R IDI D A D E , A M B IEI E N T E E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 1. A questão ambiental e o desenvolvimento do conhecimento
A p r o b le m á tic ti c a am b ien ie n tal ta l — a p o lu iç ã o e d e g ra d a ç ã o do m e io , a c ris ri s e de recursos recursos naturai naturais, s, energéticos energéticos c de alimentos alimentos — surgiu surgiu nas nas últimas décadas do século XX como uma crise de civilização, questionando a racionalidade econômica e tecnológica dominantes. Esta crise tem sido explicada a partir de uma diversidade de perspectivas ideológicas. Por um lado, é percebida como resultado da pressão exercida pelo crescimento da população sobre os limitados recursos do planeta. Por outro, é interpretada como o efeito da acumulação de capital e da maximização da taxa de lucro a curto prazo, que induzem padrões tecnológicos de uso e ritmos de exploração da natureza, bem como formas de consumo, que vêm esgotando as reservas de recursos naturais, degradando a fertilidade dos solos e afetando as condições de regeneração dos ecossistemas naturais. A p ro b le m á tica ti ca am b ien ie n tal ta l ge ro u m u d an ç as g lo b a is e m sist si stee m a s so cio ci o a m bie b ie n ta is c o m p le x o s q u e a fe ta m as c o n d iç õ e s d e su st e n ta b ilid il id a d e d o plan pl anet eta, a, propondo a necessidade de internalizar as bases ecológicas e os princípios jurídicos e sociais para a gestão democrática dos recursos naturais. Estes processos estão intimamente vinculados ao conhecimento das relações sociedadenature
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za: não só estão associados a novos valores, mas a princípios epistemológicos e estratégias conceituais que orientam a construção de uma racionalidade produtiva tiva sobre bases de sustentabil sustentabilidade idade eco lóg ica e de eqüidade social. D esta forma a crise ambiental problematiza os paradigmas estabelecidos do conhecimento e demanda novas metodologias capazes de orientar um processo de reconstrução do saber que permita realizar uma análise integrada da realidade. Uma das principais causas da problemática ambiental foi atribuída ao processo histórico histórico do qual em erge a ciência moderna e a Re voluç ão Industri Industrial. al. Este Este processo deu lugar à distinção das ciências, ao fracionamento do conhecimento e à compartamentalização da realidade em campos disciplinares confinados, com o propósito de incrementar a eficácia do saber científico e a eficiência da cade ia tecn ológica de pr odu ção1. ção1. A parti partirr dessa premissa, premissa, iniciouse a busca por um método capaz de reintegrar esses conhecimentos dispersos num campo unificado do saber. Desta forma a análise da questão ambiental exigiu uma visão sistêmica e um pensamento holístico para a reconstituição de uma realidade “ total” total” . D aí propôs um projeto para para pensar as condições teóricas teóricas e para estabelecer métodos que orientem as práticas da interdisciplinaridade2. A p r o b le m á tic ti c a a m b ien ie n ta l na q u a l c o n f lu e m p r o c e s so s natu na tura rais is e s o c ia is de diferentes ordens de materialidade não pode ser compreendida em sua complexidade nem resolvida com eficácia sem o concurso e integração de campos muito diversos do saber. Embora esta afirmação fosse dificilmente questionável em sua formulação geral, menos claro foi o caminho teórico e prático seguido para poder discernir discernir e conc retizar os níveis e as formas de integração do con hecimento com o propósito de: a) explicar as causas históricas da degradação ambiental, b) diagnosticar a especificidade de sistemas socioambientais complexos, e c ) construir uma racionalidade produtiva fundada no planejamento integrado dos recursos. A d isti is tin n ç ã o d este es te s n ív e is d e trat tr atam am ento en to é n e ce ss á ria ri a p ara ar a im p lem le m e n tar ta r um a estratégia de desenvolvimento com uma concepção integrada dos processos históricos, econômicos, sociais e políticos que geraram a problemática ambiental, be b e m c o m o d o s p r o ce ss o s e c o ló g ic o s , te c n o ló g ic o s e cu ltu lt u rais ra is q u e pe rm itir it iria iam m um aproveitamento produtivo e sustentável dos recursos. Neste sentido, é preciso diagnosticar os efeitos do processo de acumulação e as condições atuais de reprodução e expansão do capital, os impactos ambientais das práticas atuais de produção e consumo e os processos históricos nos quais articularamse a produção para o mercado com a produção para o autoconsumo das economias locais e as formações sociais dos países “em desenvolvimento” para a valorização e exploração de seus recursos. Estes procès
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sos históricos transformaram as práticas produtivas e degradaram a produtividade de seus ecossistemas, afetando as capacidades produtivas da população, sua dependência tecnológica e cultural, suas formas de sujeição ideológica e suas motivações para a inovação produtiva. A s possív eis fo rm as de ap ro ve itam ento su st entá vel dos re cursos que podem ser adotadas no momento atual estão, sem dúvida, determinadas pelas condições de expansão da economia de mercado. Mas estas dependem, por sua vez, do grau de rigidez que apresentam as estruturas tecnológicas e institucionais, bem com o os princíp io s te órico s e os ava nços cie ntíf ic os nos quais se apóia esta racionalidade econômica para internalizar as bases e condições de um desenvol vim ento su sten táve l. A ssim , as es tratégias políticas orien ta das à so lu ção da pro ble m ática am bien tal e à geração de um desenvolv im ento su st entá vel, fund ad o num aproveitamento integrado de recursos requerem uma análise teórica das causas profundas das crises do capital e de suas próprias estratégias de sobrevi vência (por exem plo , as atua is políticas neolibera is, a expansã o dos m er ca dos regionais, a liberalização do comércio mundial e os avanços recentes da ciência e da tecnologia). Contudo, a construção de uma racionalidade produtiva alternativa não só depende da transformação das condições econômicas, tecnológicas e políticas que determinam as formas dominantes de produção. As estratégias do ecode senvolvimento' estão sujeitas também a certas ideologias teóricas e delimitadas por paradigmas científicos que obstaculizam as possibilidades de reorientar as práticas produtivas para um desenvolvimento sustentável. Assim , colo car em prá tica prin cípio s e estra té gia s do ecodesenvolv im ento provou ser mais complexo e difícil que a simples internalização de uma “dimensão” ambiental dentro dos paradigmas econômicos, os instrumentos do planejamento e das estruturas institucionais que sustentam a racionalidade produtiva prevalecente. Estas considerações defendem a necessidade de fundar a concep ção da problemática ambiental assim como novas práticas de uso integrado dos recursos numa correta teoria sobre as relações sociedadenatureza. Isso abriu uma reflexão sobre as bases epistemológicas para pensar a articulação das ciências e da produção de conhecimentos requerida por esta teoria para a construção de uma racionalidade ambiental1. Embora a possibilidade de transformar a racionalidade produtiva que degrada o ambiente dependa de um conjunto de condições econômicas e políticas, colocar em prática os princípios do ecodesenvolvimento requer também um trabalho teórico e uma elaboração de estratégias conceituais que apóiem práticas sociais orientadas a construir esta racionalidade ambiental para alcançar os propósitos do desenvolvimento sustentável e igualitário.
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A s estra tégias co nce ituais para ge rar os instrumentos teóricos e pr áticos para a gestão ambiental do desenvolvimento s o b c o n d i ç õ e s de sustcntabilidade e eqüidade, não podem surgir dos paradigmas econômicos dominantes e das práticas tradicionais do planejamento. A problemática ambiental generalizouse, induzindo a uma série de efeitos no avanço e orientação de um conjunto de disciplinas para solucionála. D aí a importância de analisar os cfe ilos da emergên cia da questão ambiental sobre a produção de conliecimentos e o processo de interna lização do sa ber a mbiental emergente dentro de diferentes paradigmas científicos, bem com o de elaborar bases conc eituais que permitam pensai' a articulação de processos socioambientais para construir outra racionalidade produtiva. Do que já dissemos, depreendese a necessidade de estabelecer princípios cpistemológicos e metodológicos para poder diferenciar e articular os conhecimentos cien tíficos e técnicos em três níveis de integração — diacrônico, sincrônico c p rospectivo — . referentes a suas funções de exp licação histórica das relações entre natureza e sociedade, de diagnóstico das condições presentes das formas de exploraçao dos recursos e de planejamento do aproveitamento integrado e sustentável a longo prazo. Esta reflexã o deve passar por uma análise crítica dos próprios conce itos de meio e de ambiente e das formações ideológicas que dificultam o avanço dos conhecimentos aberto pela perspectiva ambiental do desenvolvimento.
2. Estratégia epistemológica para a construção de uma racionalidade ambiental
A proble m ática am bien tal não é id eolo gic am ente neutra nem é alheia a interesses econômicos e sociais. Sua gênese dáse num processo histórico dominado pela expansão do modo de produção capitalista, pelos padrões tecnológicos gerados por uma racionalidade econô m ica guiada pelo propósito de maximizar os lucros e os excedentes econômicos a curto prazo, numa ordem econômica mundial marcada pela desigualdade entre nações e classes sociais. Este processo gerou assim efeitos econômicos, ecológicos e culturais desiguais so bre diferente s regiõ es, popula ções, cla sses e gru pos socia is , bem com o perspectivas diferenciadas de análises. A s vis ões ecolo gis ta s e as solu ções co nservacio nista s dos países do Norte resultam inadequadas e insuficientes para com preender e resolver a problem ática ambiental dos países do Sul. A diversidade cultural e ecológica das nações “subdesenvolvidas” abrem perspectivas mais complexas de análises das relações sociedadenatureza para pensar a articulação de processos ecológicos, tec-
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nológicos e culturais que determinam o manejo integrado c sustentável de seus recursos. Toda eslralégia leórica para apreender e agir sobre os processos am bientais está vincula da a um a est ra té gia prática (s ocia l, ecoló gic a e te cnoló gica) de desenvolvimento e não se erige em princípio de uma epistemologia geral, em condição de possibilidade de desenvolvimento das ciências, ou numa regulamentação das possíveis fertilizações intercienlíficas ou interdisciplinares para gerar avanços no conhecimento. Se toda verdade científica no terreno do saber está inscrita em formações ideológicas e em processos discursivos determinados, os princípios epistemológicos para o estudo dos processos materiais que integram um sistema sócioambiental se desprendem de uma estratégia conceituai que apresenta efeitos concretos nas práticas sociais de ambienlalismo. Esta estratégia epistemológica cobra sentido como uma luta no campo do conhecimento contra as ideologias teóricas geradas por uma ecologia generali zada e um pr agm at ism o fu n cio n a li sta, que não apenas desconhecem o processo histórico de distinção, constituição e especificidade das ciências e dos saberes, mas também as estratégias de poder no conhecimento que cobrem o terreno ambiental .4 A ssim , esta estra tégia conceituai em torno da co nstitu ição do sa be r ambiental combate os principais efeitos ideológicos do reducionismo ecologista e do funcionalismo sistêmico, a saber: a) Pensar o homem com o indivíduo e as forma ções sociais com o populações biológicas inseridas no processo evolutivo dos ecossistemas, o que leva a explicar a conduta humana e a práxis social através de suas determinações genéticas ou de sua adaptação funcional ao meio5. Estas teorias sociobiológicas desconhecem a especificidade das relações sociais de produção, das regras de organização cultural e das formas de poder político e ideológico nas quais se inscrevem as mudanças sociais e as formas de uso dos recursos produtivos. b) M elo d olo giz ar a ecologia com o disciplina po r excelê ncia da s interre lações, para transformála numa “teoria geral de sistemas”, numa “ciência das ciências” cap az de integrar as diferentes ordens do real, os d iferentes processos materiais como subsistemas de um ecossistema glo bal. A ssim , a ecologia generalizada 6 promete a reconstrução da realidade como um todo pela integração dos diversos ramos do saber num processo interdisciplinar, obstaculizando a reconstrução do real histórico a partir da especificidade e da articulação de processos de ordem natural e social: econômicos, ecológicos, tecnológicos e culturais. c) Un iformizar os níveis onto lógicos do real por meio de uma Teoria G eral de Sistemas que estabeleça os isomorfismos e as analogias estrutu
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rais através da análise formal de processos de diferentes ordens de materialidade7, deixando de fora o valor da diferença e o potencial do heterogêneo8. d) Legitimar e orientar a produção de conhecime ntos por meio do critério de eficácia e eficiência na integração de um sistema científicotecnoló gico a um sistema social dado, como um instrumento de otimização, controle e adaptação funcional da ciência, sujeitando a esse propósito o potencial crítico, criativo e propositivo do conhecimento. Buscase assim o acoplamento de um saber holíslico e sistêmico sem fissuras para um todo social sem divisões. e) Con fundir o níveis e as con dições teóricas para a produção de conh ecimentos interdisciplinares sobre os processos materiais que confluem em sistemas socioambientais, com a aplicação e integração de saberes técnicos e práticos no processo de planejamento e gestão ambientais. f) Red uzir o estudo das determinaçõ es estruturais e dos sistemas de organização de diferentes ordens de materialidade do real, a uma energética social, a um cálculo de fluxos de matéria e energia, que embora seja útil tanto num esquema integrador transdisciplinar, como também na avaliação do potencial produtivo dos ecossistemas e de certas práticas culturais, não se constitui no princípio último de conhecimento sobre a organização dos processos ecológicos e processos econômicos, das relações entre a natureza, a técnica e a cultura. Contra estes efeitos reducionistas e empiristas, erguemse os princípios epistemológicos que atribuem sua especificidade às ciências e às formas de articulação da ordem histórica, simbólica e biológica. Os efeitos combinados destes processos convergem sobre uma problemática ambiental, mas sua “materialidade” não é visível na realidade empírica dos fluxos de energia do ecossistema, nem na utilidade de seus recursos com o ob jetos de trabalho. A materialidade destes processos definese pela especificidade do real do qual dão conta os conceitos teóricos de diferentes ciências, de um real presente e atuante, embora não visível na realidade perceptível pelo sujeito psicológico. Esta asseveração carrega implicitamente uma definição do conhecimento científico dentro do campo do saber ambiental que estamos considerando. As ciências são corpos teóricos, integração de conceitos, métodos de experimentação e campos de validação do conhecimento, que permitem apreender cognos citivamente a estruturação e organização de certos processos materiais, para
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entender as leis e regularidades de seus fenômenos, para estabelecer os parâmetros e o campo dos possíveis eventos nos processos de reprodução e transformação do real que constituem seus objetos científicos específicos: processos de produção, de reprodução e de transformação social; processos de adapta çãotransforinaçãomutação biológica; processos de simbolização cultural e de significação ideológica. Todos estes são processos gerais, mas irredutíveis, que determinam no nível de seus efeitos práticos a articulação dos processos produtivos com os processos de conservação, desestruturação, regeneração dos ecossistemas, valorização cultural dos recursos, com os processos ideológicos e discursivos nos quais se inscrevem as inovações do conhecimento científico e dos meios tecnológicos, e com os processos políticos que abrem as possibilidades do acesso e apropriação social dos recursos naturais. São os efeitos destes processos materiais os que se articulam e se tornam visíveis nos padrões tecnológicos e nas formas particulares de organização produtiva; nos circuitos da produção, distri buição e co nsu m o; na org anização institucional do poder; na efic ácia dos m étodos de produção, difusão e aplicação do conhecimento; nas atitudes quanto à inovação tecnológica e mudança social, e na retórica das práticas discursivas sobre o desenvolvimento sustentável e conservação da natureza. A m aterialid ad e dess es pro cesso s fo rja s e entre o real do obje to de conhecimento de suas ciências e a realidade onde seus efeitos são perceptíveis. Os conceitos teóricos apreendem as causas determinantes e os princípios atuantes dessa organização do real, a partir de onde é p oss ível exp licar a dinâmica destes processos, sua potencialidade e seus efeitos concretos sobre a realidade empírica. Esta produção dc conhecimentos não se constitui a partir da simples indução da realidade sensível, da form alização dos dados “ puros” da realidade, dos enunciados e proposições sobre os fenômenos observáveis, ou pela sistematicidade das possíveis relações lógicas e matematizáveis. Neste sentido, esta estratégia episternológica para caracterizar as ciências e suas possíveis articulações no cam po am biental resulta oposta ao positivismo lóg ico e a todo idealismo em pirista e subjetivista. Claramente, os princípios anteriores não conformam um referencial teórico nem constituem uma metodologia geral das ciências; estes se apresentam com o postos de v igilância episternológica frente às tendências idealistas quanto à dissolução das ciências num campo unitário do conhecimento e contra a redução da organização específica dos diferentes níveis de materialidade do real em princípios gerais ou supostamente fundamentais de seu funcionamento estrutural — e não só de sua gênese histórica ou evolutiva.
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0 propósito de unificação dos discursos científicos, de homogeneização d c suas estruturas conceituais, conformou uma prática inlcrdisciplinar f u n d a d a numa Teo ria Gera l de Sistemas. Seu ob jetivo unificador e reducionista, compartilhado com o positivismo lógico, reaparece em certas explicações fisicalislas e bio lo gis ta s dos process os histó ricos, su rg id os do dese jo de en co ntrar um m es mo e único princípio organizador da matéria9, “como se (...) se experimentasse uma singular repugnância a pensar a diferença, a descrever as separações e suas dispersõ es, a dissoc iar a forma reafirmante do id êntico” 10. Estes sistemas de sco nhecem a integridade conceituai de cada ciência, a partir de onde é possível pensar sua integração com outros campos do saber, sua articulação com outros processos materiais. A s ciê ncia s não viv em num vazio id eoló gic o. Tan to por sua constitu ição a partir das ideologias teóricas c as cosmovisões do mundo que plasmam o terreno conflitivo das práticas sociais dos homens, como pelas transformações tecnológicas que se abrem a partir das condições econômicas de aplicação do conhecimento, as ciências estão inseridas dentro de processos ideológicos e discursivos onde se debatem num processo contraditório de conhecimento/desconhecimento, do qual derivam sua capacidade cognoscitiva e seu potencial transformado r da realidade. A articulação destes processos de conhecimento com os processos institucionais, econômicos e políticos que condicionam o potencial tecnológico e a legitimidade ideológica de suas aplicações, está regida pelo confronto de interesses opostos de classes, grupos sociais, culturas e nações. Por estas formas de inserção das ciências no campo do saber ambiental, os princípios materialistas para a produção e aplicação dos conhecimentos constituem uma estratégia conceituai, mais do que critérios de validação ou falsificação dos conhecimentos. As ciências emergem c avançam por um campo contraditório de formações ideológicas que regem a tomada de consciência e que mobilizam as ações dos agentes sociais, bem como as práticas produtivas de técnicos e cientistas, para a construção de uma racionalidade ambiental. A produção cie ntífica está su je ita a estas condiç ões id eoló gic as, não só porque o cientista, com o sujeito do conhecimento é sempre um sujeito ideológ ico, mas porque suas práticas de produção de conhecimento estão estritamente vin cula das co m as id eolo gia s teór icas c plas mada s no tecido do sa be r do qual emergem as ciências, debatendose permanentemente, num processo interminá vel de em ancip ação, de pr oduçã o e especif ic ação de seus co nhecim ento s. Neste sentido, as ideologias sobre a igualdade dos homens, fundamento jurídico das sociedades democráticas, vinculase com as ideologias teóricas que dissolvem a especificidade das ciências com o propósito de gerar um campo unitário do conhecimento. Sua função ideológica e a de ocultar os interesses em conflito na
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le g a l id a d e d o s d ir e ito s i n d iv id u a i s , n a u n i d a d e d o s a b e r s o b r e u m a r e a lid a d e u n i fo r m e . Estas form ações id eoló gicas aparecem no terreno da problemática ambiental como processos de significação que tendem a “naturalizar” os processos políticos de dominação e a ocultar os processos econômicos de exploração provenientes das relações sociais de produção e das formas de poder que regem o processo de expan são do capital. Desta maneira, pretendese exp licar e resolver a problemática ambiental através de uma análise funcional da sociedade, inserida como um subsistema dentro do ecossistema global do planeta. A s fo rm ações id eoló gic as qu e co bre m o terreno am bien tal gera m práticas discursivas que têm por função neutralizaina consciência dos sujeitos o conflito dos diversos interesses que ali entram em jog o . Desta forma, a cons ciência ideológica sobre os limites do crescimento, ao propor a responsabilidade compartilhada de “todos os homens que viajam na nave Terra”, encobre, sob o véu unitário do sujeito do enunciado, as relações de poder e de exploração, fonte de desigualdades entre os companheiros de viagem. Diante destas ideologias dominantes, os valores, princípios e propósitos das formações ideológicas do ambientalismo aparecem como utopias no sentido de Mannheim", isto é, como crenças que mobilizam uma ação política contra os interesses estabelecidos e para a construção de uma racionalidade social alternativa. Assim, o discurso ambientalista inserese numa estratégia de mudanças tecnológicas e sociais, que estimula uma produção de conhecimentos capazes de ser aplicados a formas alternativas de organização social e produtiva. Neste sentido, embora não haja ciências “de classe”, a produção e aplicação de conhecimentos é sempre um processo inserido no âmbito das lutas por certa autonomia cultural, pela autogestão tecnológica dos recursos das comunidades, pela propriedade das terras e por uma po pulação; pela produ ção e ap licação de certos conhecimentos que permitam uma apropriação igualitária dos recursos naturais, uma produção sustentável e uma distribuição mais equitativa da riqueza, para satisfazer as necessidades básicas dos homens e elevar sua qualidade de vida. A pro ble m ática am bien tal in duz assim um process o co ntraditório de ava nço/retrocesso do saber para apreender os processos materiais que plasmam o campo das relações sociedadenatureza; daí surgem obstáculos e estímulos para a produção de conhecimentos pelo efeito de interesses sociais opostos, abrindo possibilidade s alternativas para a reorga nização produtiva da sociedad e e o apro ve itam ento dos recu rsos. A s difere nte s perc epções da pro blem ática am biental — sobre as causas da crise de recursos, sobre as desigualdades do desen volvi
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mento econ ôm ico, sobre a distribuição social dos custos ecológ icos — , geram demandas diferenciadas de conhecimentos teóricos e práticos. Desta forma, a “crise ecológica” mobilizou um amplo processo ideológico e político de produção, apropriação e utilização de conceitos “ambientais”, que se reflete nas estratégias para o aproveitamento e exploração dos recursos12. A ssim , diante das explicações neomalth us ianas desta crise a partir da pressão exercida pela explosão dem ográfica — sobretudo das populações pobres — sobre os recursos limitados do planeta13, outros estudos demonstraram que a escassez e esgotamento dos recursos devese sobretudo às formas de produção e aos padrões de consumo dos países industrializados e grupos privilegiados da sociedade14. Commoner mostrou assim como as inovações tecnológicas do sistema capitalista para alcançar incrementos marginais na taxa de lucros induzem uma exploração crescente dos recursos naturais e do consumo de energia15. Ao mesmo tempo, as estratégias das empresas multinacionais transferem a poluição para os países “ subde senvo lvidos” 16. Entretanto, o discurso ambiental e suas aproximações metodológicas não expressam consistentemente os interesses dos grupos sociais em conflito. Desta maneira, o discurso do desenvolvimento sustentável busca gerar um consenso e uma solidariedade internacional sobre os problemas ambientais globais, apagando interesses opostos de nações e grupos sociais em relação ao usufruto e manejo dos recursos naturais para o benefício das populações majoritárias e grupos marginalizados da sociedade17. Para poder implementar políticas ambientais eficazes é necessário reconhecer os efeitos dos processos econômicos atuais sobre a dinâmica dos ecossistemas. É preciso avaliar as condições ideológicas, políticas, institucionais e tecnológicas que determinam a conservação e regeneração dos recursos de uma região; os modos de ocupação do território, as formas de apropriação e usufruto dos recursos naturais e de divisão de suas riquezas; bem como o grau e as maneiras de participação comunitária na gestão social de suas atividades produtivas. Do que dissemos, depreendese a necessidade de estabelecer critérios e princípios para analisar a articulação destes processos. Também é preciso estudar os efeitos da problemática ambiental sobre as transformações metodológicas, as transferências conceituais e a circulação terminológica entre as diferentes disciplinas que participam na explicação e diagnóstico das transformações socioambientais, assim como a forma como estes paradigmas produzem e assimilam um conceito de meio ou de ambiente. Do estudo destas mudanças epistêmicas surge a possibilidade de produzir conceitos práticos para orientar uma transformação produtiva fundada nos princípios da gestão ambiental do desenvolvimento e do manejo sustentável dos recursos.
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3. O ambiente é um objeto científico interdisciplinar?
O propósito de integrar diferentes ramos do con hecim ento científico e técnico em torno a um objetivo comum c anterior à demanda de produção de um saber interdisciplinar que propõe a problemática ambiental do desenvolvimento. Na verdade, a partir do momento em que a acumulação do capital exige a articulação tuncional das ciências aos processos produtivos para elevar sua eficiência, os conhecimentos científicos não apenas surgem numa relação de verdade ou de conhecimento do real, mas também como força produtiva do processo econômico. A tecnologia constituise no meio eficaz para a aplicação dos conhecimentos científicos à produção de mercadorias. Enquanto os processos produtivos se desagregaram cm suas diferentes funções, o conhecimento científico foise ramificando em diferentes disciplinas, de maneira que suas aplicações se tornassem eficazes e operativas na elevação da produtividade do capital. Assim, a cientifização da produção transformou os processos tecnológicos em objetos de uma integração multidisciplinar do saber científico e técnico, antes que a problemática ambiental exigisse participação de diversas disciplinas para compreender e agir sobre um objeto prático complexo: o ambiente. A s tran sform aç ões produtiva s a partir da R evolu ção Industrial até a atual cientifização da produção desencadearam um vaslo potencial de aplicações práticas das ciências, gerando um processo de planejamento das atividades de pesquisa dentro das empresas, bem como dentro dos macroprojelos das grandes potências: de seus programas bélicos, de seus projetos espaciais. A orientação das ciências para a produção levou a desenvolver técnicas e modelos de programação das atividades de pesquisa aplicada e desenvo lvimen to tecn ológico, abrindo um campo de estudos de prospecção científica e tecnológica orientada pel:> demanda de conhecimentos do processo econômico e à resolução dos problemas que este gera. Desta demanda social dc conhecimentos surgiram novos desafios teóricos e novas necessidades de conhecimentos que resultaram num impulso de grande importância para a produção científica. Contudo, estes campos de integração de conhecimentos, estas problemáticas nas quais confluem diversos saberes, não constituem objetos científicos in terdisciplinares. Na maior parte dos casos, tampouco deram lugar a um trabalho teórico interdisciplinar entendido como o intercâmbio de conhecimentos que resulta numa transformação dos paradigmas teóricos das disciplinas envolvidas, ou seja, numa “revolução dentro de seu objeto” de conhecimento ou inclusive numa “ mudança de escala do objeto de estudo por uma n ova form a de interrogálo” 18.
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A p esa r disso , a in te rdiscip linaridade é pro cla m ada hoje em dia não só como um méiodo e uma prática para a produção de c o n h e c i m e n t o s e para sua integração operativa na explicação e resolução dos cada vez mais complexos problemas do desenvolvimento; além disso aparece com a pretensão de promo ver in te rc âm bio s te óricos entre as ciê ncia s e de fu nda r nov os objeto s científicos. Entretanto, a interdisciplinaridade teórica — entendida como a construção de um “novo objeto científico” a partir da colaboração de diversas disciplinas, e não apenas com o o tratamento comum de uma temática — é um processo que se consumou cm poucos casos da história das ciências. Estes casos, porém, não são generalizáveis ao ponto de permitirem depreender uma metodologia aplicá vel pa ra produzir efe it os si m ilares em outros cam pos do conhecim ento e da pesquisa científica19. A ssim especif ic ada a pro ble m ática in te rd isciplinar no ca m po das re laçõ es teóricas da produção de conhecimentos — c não de suas práticas — esta não deve ser confundida com o aparecimento de um conjunto de conhecimentos nem com os diferentes saberes, técnicas e instrumentos que são suporte de um campo de análises e que possibilitam uma prática de experimentação. A histó ria das ciê ncia s da vid a ofe rece um a pr ov a exem plar de in te rdisciplinaridade teórica no processo de reconstrução do objeto científico da biologia. Tratase de um caso de interdisciplinaridad e intracientífica, isto é. das rupturas c reformulações do objeto teórico que concerne a um nível de materialidade do real: ao conhecimento sobre a estrutura e as funções da matéria viva. E assim que a partir da construção do modelo de um cristal de DNA toi possível “a conjunção progressiva e coordenada dos resultados de várias disciplinas biológicas com os da genética formal. A citologia, a microbiologia e a bioquímica para começar. Mas esta conjunção foi fecunda apenas na medida em que a justaposição dos resultados comandava a refundição das relações entre as disciplinas que nos haviam proporcionado” . Certamente, esta refundição interdisciplinar não teria sido possível sem a assimilação multidisciplinar da teoria da informação e da cibernéLica ao campo da biologia, bem com o por uma série de avanços da experimentação científica e do instrumental de pesquisa: “ Sem o estudo das estruturas cristalinas por difração dos raios X, sem a microscopia eletrônica, sem o emprego de radioisótopos, teria sido impossível empreender o conjunto de pesquisas que permitiram localizar nas m acrom oléculas do ácido d esoxirribonu cleico a função conservadora e a função inovadora da herança (...). Este novo objeto da biologia situase na interseção das técnicas de macroextração e de m icrodisecção, da álgebra comb inatória, do cálculo estatístico da ótica eletrônica, da química das enzimas. Mas o novo objeto biológico tem por correlato uma nova biologia, uma biologia
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nascida do trabalho que gerou seu objeto (...). A constituição deste novo objeto da biologia (aparece como) um objeto policientífico ou intercientífico (entendido não como) um objeto tratado em comum por diversas disciplinas, mas (como) um objeto construído expressamen te com o efe ito dc sua elaboraçã o” 20. Existem tambcm exemplos de estudos interdisciplinares nos quais concorrem especialidades provenientes de diferentes campos científicos. U m caso ilustrativo é o da etnobotânica. intervém aí a ecologia para explicar as condições naturais de produção e regeneração do meio vegetal; as disciplinas etnológicas (etnotecnologia, etnoecologia e etnolingüística) para explicar o processo cultural de aproveitamento dos recursos do meio; a antropologia ecológica para avaliar o condicionamento ecológico sobre a organização social e produtiva das culturas; a antropologia estrutural para explicar o sistema de representações de uma cultura sobre seu meio e, portanto, a significação de seus vegetais; as disciplinas históricas para explicar os processos de transculturação que afetam as práticas produtivas e a utilização dos recursos dos povos, enfim, a história econômica recente e a análise do sistema econômico dominante, para dar conta das determinações que impõem as condições de valorização e exploração dos recursos sobre as práticas tradicionais de reconhecimento e aproveitamento de seu ambiente21. Embora a etnobotânica delimite uma problemática no espaço das possí veis rela ções entre ecolo gia , cultura , histó ria e econom ia , observas e que ela resulta num processo interdisciplinar menos forte que o exposto anteriormente, vis lo qu e seu obje to constitu ise com o um ca m po de aplicação de difer en tes ciências nas quais não se propõe uma transformação de seus objetos de conhecimento. O mesmo ocorre com outras especialidades como a antropologia da alime ntação, “ onde convergem e freqüentemente se enfrentam os inventários do botânic o e do zo ó lo go , as qu an tif ic açõ es do nutr icio nista , as d escriç õe s do etnógrafo. as teorias do etnólogo e as especulações do simbolista22. Tanto no caso dos estudos eínobotânicos como da antropologia da alimentação, diversas disciplinas conco rrem em torno a certos cam pos delim itados das relações sociedadenatureza. Em nenhum destes casos pretendeuse que as disciplinas que participam na construção desses domínios de estudo se transformem em “ciências etnobotânicas” ou “ciências alimentares”. Apenas no caso da interdiscipiinaridade intracientífica, que levou à descoberta do DNA, é possível pensar numa interrelação de ciências biológicas que participam na formação e transformação do objeto teórico da biologia, da caracterização do fenômeno vital. Percebese o quanto estão distantes estes princípios da interdiscipiinaridade científica do projeto conformado pela colaboração de supostas “ c i ê n c i a s
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ambientais”, encarregado de analisar o campo generalizado das relações socie dadenatureza. A própria história das ciências demonstrou a impossibilidade de generalizar os objetos científicos e os campos de produção de conhecimentos, bem com o aplicar um m éto do to ta lizador e geral (por exem plo , o m aterialism o dialético ou o estruturalismo genético). Por sua vez, a problemática ambiental evidenciou tanto a posição de externalidade e inclusive de exclusão de um con ju nto de dis cip linas fren te à exp licação e re so lu ção dos pr ob lemas am bien tais, como os obstáculos que apresentam os paradigmas científicos para reorientar suas preocupações teóricas, seus instrumentos de análise e seus métodos de pesquisa rumo a um objetivo comum conformado pelo meio ambiente. O ambiental aparece como um campo de problematização do conhecimento, que induz um processo des igua l de “ internalização” de certos princípios, va lore s e sa be res “ am bie nta is ” de ntro dos pa radigm as trad icionais das ciência s. Este processo tende a gerar especialidades ou disciplinas ambientais, métodos de análise e diagnóstico, assim como novos instrumentos práticos para normalizar e planejar o processo de desenvolvimento econômico sobre bases ambientais. Entretanto, esta orientação “interdisciplinar” referente a objetivos ambientais não autoriza a constituição de um novo objeto científico — o ambiente — como domínio generalizado das relações sociedadenatureza. No entanto, não é fácil abandonar a tendência a pensar o ambiente como um campo de atração e convergência do conhecimento, de submissão das ciências ante um propósito integrador. O meio, no linal das contas, é uma rede de relações capaz de capturar todo o saber em busca de seu objeto, é o plasma onde se dissolve ou coagula aquele excedente de saber que ultrapassa o campo do conhecimento científico.
4. O conceito de meio e a articulação das ciências
A generali zação e glo baliz ação da proble m ática sócio a m bie nta l im pô s sobre diversas disciplinas científicas o imperativo de internalizar em seus paradigmas metodológicos e teóricos um conjunto de efeitos críticos e problemas práticos do desenvolvimento econômico. É assim que a antropologia ecológica orientouse para a análise dos fluxos energéticos nas práticas produtivas das comunidades rurais; que a ecologia funcional incorporou o estudo da eficiência energética no manejo dos recursos e na produtividade biótica dos ecossistemas, e que a economia neoclássica busca internalizar as externalidades am bientais do desenvolv im ento . O su rg im en to de novo s fe nôm en os fís ic os e sociais, que ultrapassam a capacidade de conhecimento e os efeitos previsíveis
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pelos paradigmas das disciplinas tradicionais e que escapam de seu controle por meio dos mecanismos do mercado, provocou o surgimento de uma noção de meio ambiente associada à degradação dos ecossistemas produtivos, à poluição pela acumulação de dejetos, ao esgotamento ou superexploração dos recursos naturais, à deterioraçao da qualidade de vida e à desigualdade na distribuição dos custos ecológicos do desenvolvimento. Esta noção de ambiente, gerada pelas externalidades do processo econômico, não é alheia à conceitualização do meio que se produziu com a constituição das ciências e das disciplinas — cuja intervenção se exig e agora para resolver a problemática ambiental. Assim, Etienne Geoffroy SaintHilaire usou a noção de meio ambiente em 1831 para referirse às circunstâncias que afetam uma “formação centrada”23. Desta forma, o conhecimento da vida, da cultura, da produção, surge no campo das ciências modernas pela constituição de objetos de conhecimento que operam como centros organizadores de processos materiais que são afetados por um meio que limita e condiciona a realização destes processos. É nesse sentido que, embora as variações das formações vitais se produzam pelas mutações dos organismos dos seres vivos, o meio seleciona as espécies, indivíduos e populações, condicionando a evolução biológica. Mesmo que a língua e as relações de parentesco apareçam como estruturantes de uma formação cultural, de suas produções práticas e ideológicas e do processo de significação dos seus recursos e de simbolização de seu ambiente, a conformação de seu meio geográfico condiciona a divisão do trabalho, os desenvolvimentos técnicos e as práticas produtivas que constituem a base material de toda formação social. No materialismo histórico, se a íormação de valor surge como o centro organizador dos processos produtivos do capital, seu meio está conformado pelos processos ecossistêmicos de produção e de regeneração de um sistema de recursos que, ao não incorporar trabalho vivo, são carentes de valor. F.ntretanlo, a dotação de recursos, sua capacidade de regen eração e sua produ tividade eco lógica, os limites para as taxas e os ritmos de exploração dos recursos lixados pela resiliência e a capacidade de carga do meio, condicionam o processo de valorização, de acumulação de reprodução do capital24. O conceito de meio está implícito desta forma no objeto da biologia evolutiva, da antropologia estrutural e da economia política. Este conceito surgiu explicitamente dentro do campo da organização biológica que caracteriza o fenômeno vital ao ser importado por Lamarck da mccânica newtoniana. A noção de m eio que aparece ali com o o éter ou o fluido imerm ediário entre dois corpos, transformouse mais tarde no entorno ou no ambiente conformado como um sistema de conexões que circundam e englobam os centros organizadores de
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certos processos materiais (biológicos, econômicos, culturais). É este sentido mecanicista do meio o que foi assimilado pelos enfoques holistas do pensamento ecologista atual25. É a partir deste sentido originário do conceito de meio que Auguste Comte pensou a relação do organismo com seu meio, como uma função sujeita a um conjunto de variáveis suscetíveis de serem estudadas experimentalmente e quantificadas. Georges Canguilhem adverte que: “A partir daí podemos compreender o prestígio da noção de meio para o pensamento científico moderno. O meio translormase num instrumento universal de dissolução das sínteses orgânicas individualizadas no anonimato dos elementos c dos movimentos universais (...). O meio é na verdade um puro sistema de relações sem suportes” 21’. Esta concepção do meio como um sistema dc relações entre organismos e entres estes e seu entorno, precedeu o conceito de ecossistema, objeto da ecologia. Por sua vez, a noção de meio tem estado associada com as análises sistêmicas aplicadas ao estudo das interrelações de um conjunto de objetos, variáveis, fatores'c processos. Contudo, o meio não constitui propriamente o objeto de nenhuma ciência, nem c o campo de articulação das ciências centradas em seus objetos de conhecimento, organizadores de processos materiais específicos. Por isso as pretendidas ciências ambientais são inexistentes27. O que dissemos não implica que o processo de internalização teórica do meio não lenha enriquecido as ciências com o conhecimento dos fatores que afetam e condicionam os processos materiais que surgem de seus centros organizadores (formação de valor, evolução da vida, reprodução da cultura). Daí a importância para a biologia evolutiva dos estudos ecológicos sobre os processos de adaptação e equilíbrio das espécies e populações biológicas a partir das condições impostas pelas transformações do meio. Ainda, abriuse a possibilidade de enriquecer os conceitos do materialismo histórico (produtividade das forças sociais de produção, formaçã o de valor e as relações sociais e técnicas de produção) a partir da incorporação do potencial ecológico, as condições ambientais e os va lores culturais na orga niza ção do s proces sos prod utivos28. Porém, esta visão do meio não redefine os objetos de conhecimento das ciências como o materialismo histórico, a biologia evolutiva ou a antropologia estrutural. Não é o enfoque holístico da ecologia o que renova as bases teóricas da biologia evolutiva, mas as pesquisas interdisciplinares que levaram à desco be rta do D N A no cam po da genéti ca29. N ão é a natu ralização do valo r pe la submissão da lógica do valor de troca a um metabolismo de intercâmbios orgâ-
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nicos o que viria a completar o materialismo histórico com uma concepção eco ssistêm ica da relação socied ade natu reza30. A produçã o conce ituai 110 terreno da s id eolo gia s com ple m enta o conhecimento do processo de valorização do capital com uma teoria da significação e codificação do meio, onde d lógica do valorsigno inserese na racionalidade do valo r de troca 31. A na tu reza , que resiste a su bm eterse à lei do valo r e aos m ecanismos do mercado (e se degrada como externalidade do processo econômico), é recuperada pelo processo de significação do entorno. Desta forma, o ambiente pode inserirse na lógica do valor de troca ou mobilizar mudanças sociais para transformar as relações de produção e desenvolvimento das forças produtivas sobre bases de sustentabilidade ecológica, eqüidade social e diversidade cultural. A valorização e a significação da natureza como objetos de trabalho e recursos produtivos entram assim num espaço de complementaridade com os processos produtivos, transformando o paradigma da produção e construindo um novo objeto da economia política32. O o bjetivo da eco logia não é caracterizar os fenôm enos vitais nem explicar a emergência de formações orgânicas. Não compreende o processo de formação de valor ou de produção de significação. Seu campo problemático tem raízes mais práticas, relacionadas com a dinâmica, estabilidade e produtividade dos ecossistemas, a ordenação da paisagem, o cultivo de espécies biológicas, a fisiologia do crescimento e o comportamento dos organismos vivos33. A pa rtir de seus as pectos fu ncionais, as análise s ecossis tê m ic as confo rmam um campo de estudo suscetível de ser internalizado pela problemática de diferentes disciplinas científicas. Desta forma o saber ecológico pode complementar as análises tanto da economia, como da biologia e da antropologia. Assim, as condições de equilíbrio dinâmico do ecossistema e seus processos de sucessão explicam as condições de adaptação e de seleção dos organismos no meio e, portanto, de sua dinâmica evolutiva, enquanto tais processos estão associados com a regulação, coexistência e/ou concorrência das populações biológicas pelos “recursos” do meio. Por sua vez, a capacidade de carga e a resiliência de um ecossistema, associadas com o potencial biótico e a taxa de crescimento natural do ecossistema, determinam a capacidade de exploração econômica dos recursos naturais dentro de diferentes racionalidades produtivas, estabelecendo as condições do m eio para a form ação de valor, para a produção de lucros e para a regeneração dos recursos a longo prazo. De forma similar, a estrutura funcional dos ecossistemas condiciona a racionalidade das práticas produtivas de uma organização cultural. Embora os objetos de conhecimento da biologia e do materialismo histórico sejam inarticuláveis — visto que a evolu ção das espécies não determina o
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processo de valorização do capital nem a dinâmica econômica explica os processos de organização vital 34 — a questão ambiental impulsionou a eme rgência de novos campos do saber onde se articulam certas disciplinas teóricoprâlicas, bem com o a co nstruçã o de obje to s inte rd isciplinar es dc co nhecim ento . A partir desta perspectiva, os estudos da ecologia são integráveis aos objetivos de um planejamento econômico para incorporar as condições ecológicas aos processos produtivos, definindo limites e potenciais 110 ordenamento produtivo dos ecossistemas e das taxas de reprodução e exploração sustentável dos recursos naturais. Neste sentido, a ecologia e a termodinâmica oferecem bases para a reformulação dos paradigmas da economia e do materialismo histórico. A ferti lização transd isciplinar e os inte rcâm bios te órico s têm esta do presentes no desenvolvimento das ciências. Assim, a ecologia importou conceitos da cibernética e da termodinâmica para caracterizar os estados de equilíbrio homeostático e dinâmico dos ecossistemas; da teoria da informação para esta bele cer as rela ções entre divers id ade específ ic a e est abilid ade das co m unid ades bió ticas com seu m eio , e conceit os pro ven ient es da econom ia para dar co nta da produtividade biótica e agronómica dos ecossistemas, de sua eficiência ecológica e dos rendimentos de diferentes cultivos. Estes conceitos e métodos permitem modelar o comportamento do ecossistema c simular com finalidades de manejo alternativo seu funcionamento estrutural. Estes processos transdisciplinares não só se caracterizam pela importação e assimilação de conceitos, noções e métodos de estudo entre campos constituídos do saber, mas também pela geração de uma descentralização e deslocamento dos objetos teóricos das ciências para a constituição de objetos teórico p rá ticos de co nhecim ento . É assim que a ecologia e um conjunto de disciplinas
etnológicas articulamse aos processos econômicos de aproveitamento dos recursos produtivos da sociedade e à construção de uma racionalidade ambiental para alcançar um d esenvolvim ento sustentável. O entorno é funcionalizado com o um “cálculo racional de significação” (Baudrillard) no processo de valorização dos recursos, ao m esmo tempo que os recursos naturais e humanos, assim co m o as extemalidades ambientais são internalizadas ao paradigma neoclássico como um capital natural e um capital humano. Desta forma, 0 ambiente impulsiona a construção de um novo objeto da economia e da produção sobre princípios de sustentabilidade ecológica e de eqüidade social. O descentramento produzido pela constituição e desenvolvimento da ecologia no campo da biologia gera também possibilidades e condições para a articulação do conhecimento sobre a dinâmica ecossistêmica com outras ciências. Os estudos e coló gico s progrediram da análise da relação entre organismos e seu meio, para o comportamento das populações poliespecíficas ou comunidades e
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seu meio ambiente. Assim, chegaram a propor como objeto de estudo a estrutura funcional da biosfera, entendida como o conjunto de relações entre as populações biológicas e seu entorno físico. Isto leva a pensar os ecossistemas como “superorganismos” complexos, com suas dinâmicas de estabilidade e de reprodução, dissolvendo nesta aproximação holística e sistêmica a relação dual entre organismo e meio, característica da teoria biológica35. Todavia, esta compreensão inclusiva e totalizante da vida e do meio não pode eludir a necessidade de articular a dinâmica ecossistêmica com o conjunto de fenômenos físicos e processos sociais que afetam seu funcionamento estrutural, cujos efeitos externos estão excluídos do objeto da ecologia (salvo para as tendências globalizantes e totalizadoras do pensamento ecologista), demandando seu conhecimento uma articulação desta com outras ciências36. Desta forma, a dinâmica dos processos ecossistêmicos implica a análise dos efeitos de certos fenômenos geofísicos e atmosféricos (catástrofes naturais, mudanças climáticas, inundações) e de certos processos sóciohistóricos (modos de produção, racionalidade econômica, organizações culturais, sistemas políticos), que afetam seu com portamento. Isto demand a a articulação da eco logia com a geologia, geofísica, antropologia, economia e história. O paradoxo e a “armadilha” que a noção de meio propõe surge da tendência do desenvolvim ento teórico e experimental da eco log ia a suplantar seu papel no espaço de complementaridade dos objetos das ciências, para constituirse com o um objeto generalizado de análise. A pretensão totalizante do pensamento ecologista está associada com a emergência dos enfoques sistêmicos e interdis ciplinares onde as variáveis e funções circulam livremente dentro de um sistema conformado intencionalmente, recortado sobre uma realidade homogênea e um campo unitário do conhecimento. O meio pode ser reabsorvido no sistema e o sistema pode transformarse num campo interdisciplinar das “ciências ambientais” , onde as externai idades ecoló gica s e so ciais seriam internalizadas no terreno das práticas do planejamento17. Daí surge o sentido ideológico da noção de meio ambiente. O ambiente se esfumara junto com a especificidade das ciências e dos conflitos so ciais na transparência das práticas interdisciplinares e do planejamento ambiental do desen vo lvim ento . Porém , a noçã o de m eio ressurge de se u esp aço de exclu são com o um conceito relativo e contextuai ao processo de complementaridade e articulação das ciências, cobrando um sentido estratégico no processo político de supressão das “externalidades do desenvolvimen to”— a exploração econôm ica da natureza, a degradação ambiental, a desigualdade na distribuição social dos custos eco lógico s, a ma rginalização social etc. — , que persistem a pesar da possível
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ecologização dos processos produtivos, da capitalização da natureza e da sistematicidade interdisciplinar do saber. () ambiente não é um objeto perdido no processo de diferenciação e especificação das ciências, nem um espaço reintegrávcl pelo intercâmbio interdisciplinar dos conhecimentos existentes. O ambiente é a falta insuperável do conhecimento, esse vazio onde se aninha o desejo de saber gerando uma tendência interminável para a completude das ciências, o equilíbrio ecológico e a justiça social.
1 5. Articulação de ciências e gestão ambiental do desenvolvimento
() planejamento de políticas ambientais para um desenvolvimento sustentável, baseado no manejo integrado dos recursos naturais, tecnológicos e culturais de uma sociedade, conduz à necessidade de compreender as interrelações que se estabelecem entre processos históricos, econômicos, ecológicos e culturais no desenvolvimento das forças produtivas da sociedade. Isto obriga a pensar nas relações de interdependência e multicausalidade entre os processos sociais e ecológicos que condicionam o potencial produtivo dos recursos de uma formação social, seus níveis de produtividade e as condições de preservação e regeneração dos recursos naturais. O potencial ambiental de uma região não está determinado tãosomente por sua estrutura ecossistêmica, mas pelos processos produtivos que nela desen volv em difer ente s fo rm ações socio econôm ic as. A s prá tica s de uso dos recu rsos dependem do sistema de valores das comunidades, da significação cultural de seus recursos, da lógica social e ecológica de suas práticas produtivas e de sua capacidade para assimilar a estas conhecimentos científicos e técnicos modernos38. A ss im , o vín culo so ciedad enatur eza deve ser entendido com o uma relação dinâmica, que depende da articulação histórica dos processos tecnológicos e culturais que especificam as relações sociais de produção de uma formação socioeconômica, bem como a forma particular de desenvolvimento integrado ou de degradação destrutiva de suas forças produtivas. Neste sentido, a caracterização da relação sociedadenatureza, referida à problemática da gestão ambiental do desenvolvimen to, obriga a pensar nas condições de articulação dos processos materiais que definem uma racionalidade ambiental do processo de desenvolvimento c uma estratégia de manejo integrado dos recursos e, conseqüentemente, na articulação das ciências que os explicam, que dão conta de suas especificidades c de suas interdeterminações. Na c oncep ção de um socioecossistem a produtivo convergem diversos processos, gerando um conjunto de relações complexas. Surge assim a necessidade
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de produzir e articular t e o r ia s e c o n c e i t o s s o b r e n o v o s objetos teóricopráticos de conhecimento onde confluam processos de diferentes ordens de materialidade, com diferentes formas e níveis de articulação e que não podem ser explicados pelo estado atual de conhecimentos das ciências. Esse é o caso das doutrinas econômicas que excluíram as contribuições da ecologia e da cultura da produção. A reconceitualização da produção implica a reconstrução do objeto da economia política para analisar a produção e distribuição de riqueza como um processo constituído sobre b ases de produtividade, equilíbrio e sustentabilidade ecológica. A relação dos processos ecológicos, econômicos, tecnológicos e culturais não pode ser pensada como uma conexão dos objetos teóricos das ciências num campo comum do conhecimento, nem através da assimilação da ciência mais fraca dentro da mais poderosa (por exemplo, a ecologização da economia ou a capitalização da natureza). A relação de conhecimento desta articulação de processos dáse com o uma interdeterminação ou uma superdeterminação dos processos materiais inscritos nas estruturas teóricas de cada ciência e pelos efeitos de conhecimento produzidos pela articulação de seus conceitos na reconstrução de seu objeto de conhecimento19. Isto ocorre quando emerge u ma região do real onde confluem os efeitos de dois ou mais níveis de materialidade, objeto das ciências constituídas. A articula ção dos objeto s de uma ou m ais ciê ncia s im plica que os processos materiais do campo do conhecimento cien tífico de um deles — o funcionamento estrutural e a dinâmica dos fenôm enos que este estuda — são afetados, condicionados ou superdeterminados pelos processos e efeitos materiais de outro(s). Neste sentido, a evolução e transformação dos ecossistemas naturais — objeto da ecologia — estão determinados pelas necessidades de exploração de suas matériasprimas, o que gera o processo de acumulação de capital, bem com o p elos efeitos das relações so ciais de prod ução e das práticas produtivas de uma formação econômica sobre os modos e técnicas de aproveitamento dos recursos naturais do ecossistema. Isto obriga a pensar nas condições de intema lização destas condições históricas e econômicas no objeto de estudo da ecologia a partir da especificidade das disciplinas sociais e não por meio de uma “ecologização” dos processos sociais. Por sua vez, a estrutura funcional de um ecossistema, a distribuição territorial de solos, climas e espécies, bem como a dinâmica de seus ciclos naturais condicionam as práticas sociais e os processos produtivos das comunidades. A conformação do meio incide na constituição e evolução das culturas e nos desenvo lvimen tos té cnicos40, assim corno na caracte rizaçã o de uma form açã o eco nômicosocial, de suas formas de subsistência, autodeterminação e desenvolvimento. Assim, o modo étnico de aproveitamento do ambiente por uma cultura
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está superdelerminado por seu estado de dependência e dominação, pelas formas de exploração de seus recursos e de sua força de trabalho, pelos processos econômicos e as estruturas de poder nacionais e internacionais, que condicionam seus processos de reprodução social. Por sua vez, os valores culturais que regem as práticas produtivas de uma formação social estão condicionados por certos efeitos da língua sobre suas relações de parentesco e sua organização social, e por certos efeitos do inconsciente sobre seus processos de simbolização e significação, que afetam sua percepção sobre seus recursos, o acesso socialmente sancionado a seu uso e usufruto e suas formas de consum o. Desprend emse da í os processos ideológicos que condicionam as mudanças nas formas de organização produtiva das formações sociais c que delimitam a eficácia de toda estratégia de gestão ambiental e aproveitamento sustentável dos recursos naturais. Como se vê, a gestão ambiental do desenvolvimento, fundada no potencial ecológico e na conservação da diversidade de modos culturais de aproveitamento de seus recursos, requer uma caracterização da organização específica de uma formação social. Esta estabelecese através da articulação entre diversos processos ecológicos, culturais e históricos, o que obriga a pensar nas complexas relações entre cultura e inconsciente41; entre ecologia, economia e cultura42; entre diferentes disciplinas antropo lógicas, c om o antropologia estrutural, antropologia cultural, antropologia ecológica. Em muitos casos, o reconhecimento e a avaliação das práticas tradicionais das culturas sobre o manejo de seus recursos torna necessário recorrer a um conjunto de disciplinas etnológicas (etnobotânica, etnoecologia, etnolingüística, etnotécnica) para descobrir o traçado de seu processo de constituição e desaparecimento. Por sua vez, estas disciplinas articulamse com outros ramos do conhecimento etnológico para entender as formas de controle e aplicação das técnicas tradicionais, sujeitas às normas dos valores culturais e o estilo étnico de uma formação social43. Por outro lado, as determinações da língua sobre as relações sociais de uma comunidade e as formaçoes simbólicas de uma organização cultural produz efeitos sobre a percepção e valorização de seus recursos, sobre seu comportamento produtivo e sobre as motivações e ações da população para a reapropriação de seu patrimônio de recursos naturais e culturais e a reo rientação de suas práticas para um desenvolvimento sustentável. A caracte ri zação dest es pro cessos cultura is não é poss ív el a partir da obser vação da s práticas vis ív eis , nem é re cuperá vel através de um a an álise superficial de suas manifestações discursivas. Por isso é necessário pensar nas formas teóricas de articulação entre diferentes ciências e disciplinas no campo dos processos históricos, econômicos, etnológicos e ecológicos para apreender suas complexas relações de determinação e de causalidade, bem como as condicionantes
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que delimitam e caracterizam as relações entre uma população, sua tecnologia e o uso de seus recursos. A demanda de conhecim entos gera da pela proble m áti ca am bie nta l e o manejo integrado e sustentável dos recursos vai além da necessidade de amalgamar as disciplinas científicas existentes. Na realidade, o ambiente, desde seu espaço de externalidade à racionalidade científica e social dominantes, induziu um processo de transformações teóricas e metodológicas num conjunto de ciências, a partir do imperativo de internalizar em suas estruturas conceituais e seus instrumentos de análises, os efeitos socioambientais negativos que esta racionalidade gera e que estão diretamente associados ao conhecimento limitado e lracionado de seus paradigmas teóricos. Este processo de transformações científicas não desemboca na produção de “ciências ambientais” nem na constituição do ambiente como um objeto teórico intercientífico. No entanto, a conformação do ambiental como um campo problemático do saber gera um conjunto de efeitos sobre as orientações e aplicações das ciências. Abrese ali uma nova perspectiva de análise sociológica de desenvolvimento do conhecimento, com o uma problematização dos paradigmas teóricos e metodológicos estabelecidos a partir de um complexo processo transdisciplinar que induziu a emergência do saber ambiental, como uma demanda generalizada de conhecimentos para a construção de uma racionalidade produtiva alternativa. Neste sentido, as estratégias epistemológicas para a articulação das ciências no campo ambiental e os processos de fertilização inter e transdisciplinar de conhecimentos oferecem lima explicação mais concreta (síntese de múltiplas determinações) da crise ambiental gerada pela racionalida de econô m ica. A s c on tribuições positivas deste processo transcientífico sobre a articulação dos processos materiais que confluem em diversos processos socioambientais, abrem ao mesmo tempo possíveis transformações históricas para a construção de uma nova racionalidade produtiva orientada a um desenvolvimento sustentável e um manejo integrado de recursos.
6. Transdisciplinaridade, articulação de processos e emergência do saber ambiental
A com ple xid ade dos pro ble m as am bie nta is gerados pela racio nalidade econômica dominante e a necessidade de analisálos como sistemas socioam bientais com ple xos criaram a nece ss id ade de integrar a seu es tu do um co nju nto de conhecimentos derivados de diversos campos do saber. A convergência de
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conhecimentos de um conjunto de disciplinas envolvidas na problemática an 1 bienlal numu análise integrada da rea lidade ge ro u um pro cesso de intercâmbio teórico, metodológico, conceituai e terminológico. Desta forma, a transferência mimélica e a generalização de metodologias, o uso metafórico de noções, a importação analógica e a ressignillcação estratégica de conceitos entre diferentes teorias, sempre manifestada na história das ciências44, é agora reforçada e condicionada pelo potencial aplicativo do conhecimento. A pa rtir do que afirm am os an teriorm ente, o es tu do destes in te rc âm bio s teóricos transformouse num trabalho necessário para avaliar os efeitos de conhecimento e desconhecimento que esse processo transdisciplinar teve sobre a capacidade dc diferentes disciplinas para apreender e resolver problemas am bientais concreto s. In teressam em especia l os ava nços te órico s, m eto doló gic os e técnicos que incorporaram a economia, a ecologia, a antropologia, a sociologia, a geografia, o urbanismo, o direito, a arquitetura, o planejamento etc. e suas contribuições na instrumentalização de políticas alternativas de organização social e produtiva. Embora a problemática ambiental exija uma integração de conhecimentos e uma retotalização do saber, as aproximações sistêmicas, holísticas e interdis ciplinares, limitadas à reorganização do saber disponível, são insuficientes para satisfazer esta demanda de conhecimentos. Mesmo que a estratégia epistemoló gica de uma articulação de ciências permita analisar os problemas teóricos que resultam das relações de interdependência entre diferentes processos materiais, a questão ambiental requer novos conhecimentos teóricos e práticos para sua compreensão e resolução. Desta forma, a questão ambiental induziu transformações teóricas e um desenvolvimento do conhecimento em diversas disciplinas científicas. A tr ansdis ciplinaridadc pode ser definid a com o um process o de in tercâm bio s en tre div ersos cam pos e ra mos do conhecim ento cie ntífic o, nos quais uns transferem métodos, conceitos, termos e inclusive corpos teóricos inteiros para outros, que são incorporados e assimilados pela disciplina importadora, induzindo um processo contraditório de avanço/retrocesso do conhecimento, característico do desenvolvimento das ciências. Os efeitos mais negativos deste processo transdisciplinar surgem do desconhecimentos dos objetos específicos das ciências e dos campos de aplicação de seus conhecimentos, da transgressão dos significados teóricos e práticos de seus conceitos, por um desejo de unificação dos níveis de materialidade do real, ou pelos objetivos de uma eficiência funcional guiados pela racionalização tecnológica crescente da sociedade. Esta visão reducionista conduziu a uma busca
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de princípios ontológicos ou leis gerais da matéria, de certas bases fundamentais de sua gênese e evolução, de uma linguagem comum e unívoca. Isto levou à transposição analógica de conceitos e métodos fora do campo teórico onde produzem seus efeitos de conhecimento c sua eficácia prática, gerando um uso retórico ou ideológico do discurso científico. Num sentido positivo, o processo transdisciplinar contribui para o avanço do conhecimento enquanto que os conceitos e metodologias importadas de outras ciências, bem como certas categorias filosóficas e termos técnicos, são retrabalhados pela ciência importadora até adquirir um sentido próprio no tecido teórico que serve para esp ecificar seu ob jeto de conhecimento e para exp licar os processos materiais de seu campo de experiência. Desta forma, os efeitos positivos dos intercâmbios conceituais entre disciplinas científicas e a intemali zação do saber ambiental dentro de seus paradigmas teóricos podem contribuir para compreender melhor a articulação dos processos ecossistêmicos, geográficos, econômicos, culturais e sociais que caracterizam uma problemática am biental concreta. Esta perspectiva de análise das relações transdisciplinares abre um amplo campo de estudo sobre os intercâmbios realizados entre diferentes áreas do conhecimento. Aqui apenas indicaremos, a título de exemplo, alguns casos significativos. Entre eles, cabe assinalar a influência positiva que têm apresentado o desenvolvimento da ecologia nas disciplinas antropológicas, bem como o estudo das organizações culturais em função dos fluxos de matéria e energia, e da racionalidade ecológica de suas práticas produtivas45. No terreno da economia, a internalização do ambiente implicou também esforços teóricos e metodológicos. Assim, dentro da escola neoclássica, gerou métodos de análise e avaliação de impactos ambientais com o propósito de incorporar “funções de dano” às funções de produção, bem como para valorizar os recursos naturais, atualizar as preferências dos futuros consumidores e em geral para internalizar as externalidades ambientais do sistema econômico46. Além desta resposta à demanda de conhecimentos gerada pelos problemas ambientais, surgiram contribuições críticas da teoria econômica que questionam suas bases m eca nicista s, pr opondo vias alter nativa s para avaliar os proce ss os pro dutivos em função dos princípios da termodinâmica e das leis da entropia que regem a conservação e transformação da matéria e da energia47. A avaliação dos efe itos de conhecim ento ge ra dos por estes pro cesso s transdisciplinares apenas podem ser feitos a partir de critérios de cientificidade de cada teoria e dentro da especificidade de sua prática científica. Desta forma, cada disciplina impõe suas condições de aceitação ou rejeição, assim como suas
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formas possíveis de incorporação e assimilação de teorias e métodos externos. Em alguns casos, como é o da antropologia cultural, ocorreram formas favorá veis para um a “ eco lo g ização” das teorias cultura is4“. Outros parad igmas , com o os da economia, são mais resistentes e apresentam obstáculos epistemológicos mais fortes para internalizar os princípios de uma racionalidade ambiental49. A s consid era ções am bienta is pro pic ia m tam bé m o en riquecim en to do pensamento e das categorias de análise do marxismo sobre as causas da “crise ecológica” e sobre as perspectivas ambientais para orientar as mudanças históricas para a construção de uma nova racionalidade produtiva. A problemática am biental não só abre nova s pers pectivas pa ra o es tu do dos m ovim ento s socia is , como também questiona e leva a reelaborar os conceitos fundamentais do materialismo histórico. Desta forma, a consideração dos processos ecológicos dentro da dinâmica do capital obriga a repensar o conceito de força produtiva para incorporar o potencial produtivo dos ecossistemas. Por sua vez, enriquece o conceito de formação social ao conceber as formações ideológicas e as práticas produtivas das comunidades como uma nova rede de relações socioambientais. Mais ainda, a construção de um paradigma ambiental de produção requer um complexo processo de reelaborações teóricas e o desenvolvimento de conhecimentos científicos e tecnológicos que dêem suporte a uma racionalidade social alternativa. A fa lta de bas es ep is tem oló gic as sólidas para pen sa r as condiç ões de articulação das ciências e dos processos transdisciplinares, nos quais se difundem e se retrabalham as noções, conceitos e métodos das ciências, gerou uma demanda de unificação terminológica na temática ambiental. Esta exigência manifestase com o uma necessidade de e stabelecer uma “com unicação interdisciplinar” através de conc eitos un ívocos. Esta demanda — que vem sendo divulgada e vulg ariz ada no dis curs o am bie nta l — desconhece a m aterialid ade do s pro cessos discursivos (científicos e ideológicos) que determinaram a multiplicação e inclusive a ambigüidade dos conceitos em suas funções teóricas e práticas (por exem plo, a noção de desen volvim ento sustentável ou sustentado, ou a polivalência dos conceitos de valor, recurso e produtividade). Por outro lado, a análise histórica dos intercâmbios transdisciplinares realizados entre diferentes ciências e que incidem sobre uma problemática teórica e uma prática do ambiental permitiria “ressaltar os pontos onde se pôde efetuar a projeção de um conceito sobre outro, de fixar o isomorfismo que permitiu uma transferência de métodos ou de técnicas, de mostrar as proximidades, as simetrias ou as analogias que permitiram as generalizações; em resumo, de descrever o campo de vetores e de receptividade
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diferencial que, para o jogo de intercâmbios, foi uma condição dc possibilidade histórica Ain da, permitiria “descrever (...) o papel que desempenha o discurso estudado em relação a aqueles que lhe são contemporâneos e vizinhos. É preciso estudar então a economia da constelação discursiva a que pertence. Com efeito, pode desempenhar o papel dc um sistema formal do qual os outros discursos seriam as aplicações a diversos campos semânticos (...). O discurso estudado pode estar também em relação de analogia, de oposição ou de complementaridade com certos outros discursos (...). Enfim, podem ser descritas entre diversos discursos relações de delimitação recíproca onde cada um se atribui as marcas distintivas de sua singularidade pela diferenciação de seu domínio, de seus métodos, de seus instrumentos, de seu domínio de aplicação” (...). A ssim , “podemos determinar as vias que de um domínio ao outro asseguram a circulação, a transferência, as modificações dos conceitos, a alteração de sua forma ou a mudança de seu terreno de aplicação”50. O processo cie “assentamento”, de especificação e assimilação de cada conceito no terreno próprio dc cada disciplina resulta do trabalho teórico de cada ciência, independentemente de suas possíveis homologias estruturais ou dos esforços por reduzir sua polivalência com o fim de gerar termos unívocos para facilitar o processo de comunicação e incrementar a eficácia prática do planejamento ambiental. A análise dos processos de assim ilação e e sp ecific a ção dos conceit os no s intercâmbios transdisciplinares permitiria assim precisar o sentido de certos conceitos que, tendo transitado por diferentes teorias científicas, surgem agora como conceitos para uma prática de planejamento ambiental (isto é, os conceitos de valor, recurso, produtividade, meio). Embora no sentido prático destes conceitos e suas regras de utilização estejam inscritos na racionalidade ideológica e prática do discurso da gestão ambiental, não pod e d esconectarse de suas origens teóricas, visto que as ações de planejamento e de gestão ambientais apóiamse em teorias econômicas, ecológicas ou tecnológicas, enquanto que as transformações ecossistêmicas e produtivas do desenvolvimento afetam os processos que são matéria dc análise teórica dessas ciências. O conceito de racionalidade ambiental sustentase então nas transformações do conhecimento que induz a problemática ambiental sobre um conjunto
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de paradigmas científicos, mobilizando, articulando e intercambiando um con j u n t o d e s a b e r e s t é c n i c o s e p r á t i c o s , a s s o c i a d o s a o r c c o i i h c c i m c n l o , v a l o r i z a ç ã o e formas de uso dos recursos naturais. Assim, os intercâmbios iransdisciplina res permitem dar conta da articulação de processos que confluem na dinâmica de sistemas socioambientais complexos. Ao mesmo tempo, sentam as bases teóricas para a produção de conceitos práticos intcrdisciplinares e de indicadores interprocessuais, capazes de servir à construção e avaliação de um paradigma ambiental de desenvolvimento.
7. Articulação de processos ecológicos, tecnológicos e culturais: o conceito de produtividade ecotecnológica51
A racio nalidade econ ôm ic a caracte ri zase pelo des aju ste entre as fo rm as e ritmos de extração, exploração e transformação dos recursos naturais e das condições ecológicas para sua conservação, regeneração e aproveitamento sustentá vel. A acele ração em ritm os de rota çã o do ca pital e na capit alização da renda do solo para maximizar os lucros ou os excedentes econômicos no curto prazo gerou uma crescente pressão sobre o meio ambiente. Esta racionalidade econômica está associada com padrões tecnológicos que tendem a uniformizar os cultivos e a reduzir a biodiversidade. Desta forma, a transformação de ecossistemas complexos em pastagens ou em campos de monocultura conduziu a uma superexploração do solo, baseada em insumos industriais e energéticos crescente c cuja produtividade (sobretudo nos ecossistemas tropicais) declina rapidamente. Estes padrões produtivos geram, por sua vez, níveis de poluição de rios, lagos c mares que afeiam a produtividade sustentada de recursos naturais nos ecossistemas terrestres e aquáticos. Os processos de desmatamento e erosão dos solos acarretaram o esgotamento progressivo dos recursos bióticos do planeta, a destruição das estruturas edafológicas e a desestabilização dos mecanismos ccossistêmicos que dão suporte à produção e regeneração sustentável dos recursos naturais. A te cn olo gia dese m penhou um a im po rtan te fu nção instrumen tal den tro da racionalidade econ ôm ica, estabelecendo a relação de eficácia entre conhecimento e produção. Assim, a tecnologia, entendida como a organização do conhecimento para a produção , inseriuse nos “fatores da produção” , determinando a produtividade dos meios de produção e da força de trabalho e excluindo deste processo o homem e a natureza.
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A produção e aplicação de conhecimentos c o m o f i m de satisfazer as necessidades sociais das comunidades rurais, respeitando seus valores culturais e desenvolvendo o potencial produtivo de seus ecossistemas e de seus saberes práticos, implica a necessidade de construir novos princípios de produtividade sustentável, integrando ao conceito de produção os processos ecológicos e culturais que lhe servem de suporte. Uma racionalidade ambiental, fundada nas condições ecológicas para aproveitar a produtividade primária dos ecossistemas e de dar bases de sustenlabilidade aos processos de industrialização, deve integrar os processos ecológicos que geram os valores de uso natural, com os processos tecnológicos que os transformam em valores de uso socialmente necessários através da produção e apropriação dos conhecimentos, saberes e valores culturais das comunidades para a autogestão de seus recursos produtivos. Daí é possível construir um paradigma produtivo alternativo, fundado na pro dutivid ade eco tecn oló g ic a que emerge da articulação dos níveis de produti vid ade eco ló gic a, te cn oló gic a e cu ltura l no m anejo in te gra do dos re cu rs os pro dutivos. Esta produtividade ecotecnológica difere necessariamente da produti vid ade econôm ic a tradicional e de sua avaliação en i te rm os de pre ços do m erca do. As racionalidades produtivas que sustentam estes conceitos de produtividade também induzem percepções e formas diferentes de aproveitamento dos recursos naturais. Assim, a racionalidade econômica delimita o reconhecimento e valo riz ação 'd e certos re cu rs os, enquanto que outros sã o supercxplo rados, tran sformados ou destruídos como resultado das demandas do mercado. Outros recursos, reconhecidos ou não, são devastados como efeito da exploração comercial de recursos nãorenováveis e de cultivos, e outros recursos potenciais fo ram ignorados por seu baixo valor de troca ou porque as tecnologias disponíveis tornam impossível seu aproveitamento com fins lucrativos. Um processo produtivo construído sobre o conceito de produtividade ecotecnológica conduz necessariamente à análise das condições ecológicas, tecnológicas, econômicas e culturais que tornem factível um aproveitamento e transformação dos recursos naturais, preservando e maximizando o potencial produtivo dos ecossistem as — que depende d e sua produtividade primária, sua cap acidade de carga e suas condições de resiliência, bem como dos arranjos produtivos que determinam suas taxas ecológicas de exploração 52 — minimizando a superexploração e esgotamento dos recursos naturais, assim como a descarga e acumulação no ambiente de subprodutos, resíduos e dejetos dos processos de produção e de consumo. Por sua vez, os conceitos de produtividade ecotecnológica e de racionalidade ambiental, assim como as estratégias de manejo integrado de recursos,
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induzem processos de pesquisas sobre propriedades e usos de recursos potenciais, mediante a inovação de processos mais eficientes de transformação fotossintática, fitoquímica e biotecnológica, de novas tecnologias de materiais e novas fontes de energia. Ainda, esta perspectiva de desenvolvimento leva a revalorizar, resgatar e melhorai' um conjunto de técnicas tradicionais e a desen volv er novos sab ere s prático s e conhecim ento s cie ntí fi cos. Certamente as aplicações práticas da ciência e do progresso tecnológico têm sido orientadas pelas demandas da racionalidade econômica dominante. Não obstante, o desenvolvimento do conhecimento cientíticotecnológico gerou um potencial inovador, fundado no conhecimento da natureza, que pode orientarse ao desenvolvimento de novos recursos naturais e tecnológicos, ao aproveitamento de fontes alternativas de energia e ao desenho de novos produtos, dando suporte a um projeto de civilização e a uma estratégia de desenvolvimento que incorporam as condições de conservação e o potencial ecológico e cultural de diferentes formações sociais. Abrese assim a possibilidade de organizar um processo econômico a partir do desenvolvimento das forças ecológicas, tecnológicas e sociais de produção, que não está sujeito à lógica de economias concentradoras, de poderes centralizados e da maximização de lucros de curto prazo, abrindo a via pa ra um desenvolv im ento ig ualitá rio, su sten táve l e su stentado. Um processo produtivo fundado na geração de uma tecnoestrutura mais complexa, dinâmica e flexível, articulada ao processo ecológico global de produção e reprodução de recursos naturais, oferece opções mais versáteis para um desenvolvimento sustentável, que o que surge da valorização dos recursos atra vés dos sig nos do m er ca do e d e um planejam ento econôm ic o se to rializa do. A lé m disso, permite uma melhor distribuição espacial dos recursos produtivos e um acesso social mais igualitário à riqueza social. A ra cio nalidade am biental e a pro dutividade ecote cn oló gica em erg em assim do potencial produtivo que gera a organização ecossistêmica dos recursos e a inovação de novos sistemas de tecnologia ecológica. Esta racionalidade gera e irradia novas forças produtivas através do ordenamento ecológico, da distribuição territorial e da reorganização social das atividades produtivas. Este processo necessariamente afeta a quantidade, qualidade e distribuição da riqueza através da socialização da natureza, da descentralização das atividades econômicas, da gestão social da produtividade ecológica e dos meios tecnológicos, do respeito pela diversidade cultural dos povos e do estímulo a projetos alternativos de desenvolvimento sustentável. A s com ple xas in te r re la ções que se esta bele cem entre es ses nív eis de produtividade social requerem uma conceitualização mais ampla da articulação
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sincrônica e diacrònica dos processos culturais, ecológicos e tecnológicos que a constituem como suporte do aproveitamento integrado dos recursos naturais e sociais para um desenvolvimento econômico sustentável. Do ponto de vista meramente sincrônico, ocorre a articulação destes três processos: definição do sistema de recursos de uma formação social a partir de sua oferta ecológica, de sua percepção e valorização cultural e da factibilidade tecnoeconômica de seu aproveitamento. A lé m da análise sin crô nica que delim ita o sist em a de re cu rsos naturais, processos tecnológicos e valores culturais, a articulação destes três níveis de produtividade social produz um efeito sistêmico de geração de novos potenciais pro dutivos. A articulação de processos culturais, ecológicos e tecnológicos aparece a partir de uma perspectiva diacrònica como a integração da evolução ecológica, a inovação tecnológica e as mudanças sociais, num processo de transformações do conhecimento e de suas aplicações à produção. Neste sentido, a articulação destes processos de ordem natural e social constituise numa fo n te ger adora de recursos potenciais para um desenvolvimento sustentável e sustentado.
A partir desta persp ec tiva, o m anejo in tegra do dos re cu rsos não só se su stenta na articulação dos níveis de produtividade cultural, ecológica e tecnológica. Ou, melhor, estes processos produtivos se constituem, se sustentam e funcionam como um sistema articulado de recursos culturais, naturais, tecnológicos e econôm icos. É este efeito de articulação de processo s o que dá seu suporte material ao conceito de produtividade ecotecnológica. O conhecimento dos diferentes níveis de articulação destes processos materiais inscrevese assim dentro de uma estratégia conceituai gerada com o pro p ósit o de guia r um co nju nto de a ções socia is par a u const rução de uma racio nalidade ambiental, entendida como uma racionalidade social alternativa, ca-
paz de ser contrastada com a racionalidade capitalista e de ir objetivando suas condições institucionais e seus instrumentos operativos através de um processo histórico de transformações produtivas e sociais.
8. A produção de conceitos práticos interdisciplinares
A im plem enta çã o de um a es traté gia am bienta l de desenvolvim ento im plica a necessidade de transformar e enriquecer uma série de conceitos teóricos provenientes de diferentes cam pos científicos, assim co m o de prod uzir os c o n c e i tos práticos interdisciplinares e indicadores processuais, necessários para conduzir, normalizar e avaliar um processo de planejamento e gestão ambiental
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orientado pelo conceito de produtividade ecotecnológica, para um manejo integrado dos recursos naturais. A nature za não só apare ce com o obje to das ciê ncia s naturais; para conhecer a dinâmica de transformação dos sistemas ecológicos é preciso considerar a superdeterminação que sobre eles exercem as práticas produtivas geradas pela racionalidade econômica. Mais ainda, os processos ecológicos e os fenôm enos naturais emergem com o força s produtivas, o que implica a necessidade de articular suas condições de produtividade e regeneração — e todo um conjunto de legalidades dos processos naturais — ao desenvolvimen to das forças produti vas, be m com o sua in te gra çã o nos in strumentos de planejam ento am bien tal c do desenvolvimento sustentável. Isto apresenta uma série de conseqüências para a reelaboração de conceitos teóricos e práticos associados à construção de uma racionalidade alternativa de produção. Den tro da racion alidade capitalista, as forças produtivas fundam se 110 predomínio dos processos tecnológicos que alimentaram um processo de acumulação do capital marcado por uma extrema divisão do trabalho, bem como por uma centralização econômica e uma concentração do poder, desconhecendo os potenciais ecológicos e erodindo as bases de sustentabilidade do processo econômico. Dentro dos objetivos de uma racionalidade ambiental, o desenvolvimento das forças produtivas incorpora as condições ecológicas de produção e regeneração de recursos assim co m o os valores culturais e as motivações sociais no reconhecimento, valorização, defesa e 0 “colocar em produção” recursos sociais potenciais. Estes processos especificam e delimitam as forças produti vas de um a fo rm ação socia l. N o processo de construçã o das condiç ões da produtividade ecotecnológica, a ecologização e culturização dos processos produti vos tran sform am as rela ções socia is de pro dução (fundadas na separa ção do trabalhador assalariado dos meios de produção capitalistas e condicionadas pelas relações técnicas geradas pelos processos de acumulação), tecendoas com diferentes organizações culturais e com as interrelações ecológicas que sustentam suas práticas produtivas. Neste sentido, a avaliação do processo de construção das forças produtivas fundadas na produtividade ecote cno lógica, requer a elaboração de novos indicadores sobre os pro cessos am bientais que ali intervêm — incluindo o patrimônio de recursos naturais e culturais — cujos parâmetros tornamse incom ensuráveis com as medições de uma produtividade do capital ou do trabalho51. Este processo implica a necessidade reconceitualizar as condições de formação dos valores de uso, já que, longe de estabelecerse simplesmente pela inversão de um tempo de trabalho através das condiçõ es técnicas da produção num proce sso acum ulativo de capital, está condicionado pela articulação de um conjunto de temporalida
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des — o tempo de f o r m a ç ã o , d e maturação e de regeneração ecossistêmica dos recursos; o tempo de inovação, de assimilação e nova mudança de conhecimentos para a imp leme ntação de práticas culturais de produção etc. — que estaria associado com o período de transição para uma racionalidade ambiental e o colocar em prática os princípios da produtividade ecotecnológica. Esta nova racionalidade produtiva não só implica o enriquecimento do conceito econômico de valor pela incorporação dos processos naturais e das dinâmicas ecológicas na produção de mercadorias, mas também, que o campo conceituai do valor articula um conjunto de conceitos diferenciados com diferentes significados teóricos, práticos e ideológicos. Aí funcionam conceitos tais como o de valor com seu significado motivacional, bem como o de valor como princípio ético e moral. A distinção dos conceitos de valor integramse na definição de um sistema de recursos fundado na valorização cultural dos mesmos e na valorização econômica de sua exploração, ao mesmo tempo, representa a contradição entre uma tendência à autodeterminação, autosuficiência e independência de uma formação social a partir da “colocação de valor” de seus recursos, frente a uma tendência a sua exploração, ao subordinar seu valor de uso à valorização do mercado. Como se vê, os problemas teóricos propostos pela questão ambiental refe remse à construção, esp ecificaçã o e articulação de conceitos e não à elaboração de termos unívocos, que, apesar do propósito de fazêlos funcionacdentro de perspectivas alternativas de desenvolvimento, resultam ineficazes pelo desconhecimento dos processos m ateriais e simbó licos que determinam uma situação concreta e motivam as ações que conduzem a sua transformação. Neste sentido, não se trata de eliminar o “caos conceituai” mediante uma definição “objetiva” dos valores entendidos como “coisas ou fenômenos identificados dc acordo com sua habilidade para satisfazer as necessid ade s es pe cíficas de um sistema d ado ” 54. O manejo integrado dos recursos de uma formaçã o social entendese e é abordada pela correta articulação entre os valores culturais (determinação cultural), os va lo re s m otivacionais (d et erm in aç ão id eoló gic a, política, in consc iente ) e a valorização econômica sobre os processos produtivos (determinação econômica). Neste sentido, o planejamento do uso sustentável dos recursos implica a necessidade de uma política do conhecimento, que promove a articulação de ciências e a integração de saberes das diferentes disciplinas que intervêm nestes processos (a integração das partes de um todo fracionado e disperso pela prática de uma manejo “desintegrada”) e que induz um processo de produção interdis ciplinar de conceitos práticos. Isto implica reconhecer este processo interdisci plinar inserido num processo histórico, onde se geram as condições para a emer-
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gência ou para o desuso de certas práticas produtivas, bem como das teorias, conceitos e termos que as sustentam55. Este processo de produção de conceitos práticos interdisciplinares pode ser exem plificado por meio de uma reflexão sobre a elaboraçã o dos conceitos de produtividade ecotecnológica e de racionalidade ambiental; estes surgiram da articulação de conceitos diferenciados de produtividade provenientes de diversos campos de conhecimento (ecologia, economia, tecnologia) importados para o campo do planejamento ambiental. No entanto, a síntese prática dos mesmos implicou um processo de transformação e reformulação conceituai. O con ceito de pro duti vid ade ecoló g ic a é mais complexo que o conceito de produtividade primária dos ecossistemas naturais, medido como uma taxa de formação de biomassa56. Desta forma, a produtividade ecológica inclui as transform ações secundárias das cadeias tróficas e processos biotecn ológicos de transformação, bem como as tecnologias ecológicas que intervêm no manejo integrado de recursos e as relações agroindustriais que definem para o sistema recursos naturais num momento dado. Além disso, há diferenças quanto à avaliação da produtividade primária e da produtividade ec ológ ica: enquanto a primeira é medida como um incremento anual ou uma taxa de formação dc biomassa, a produtividade eco lóg ica dev e ser avaliada com o um nível determinado — mas dinâm ico e mutante — de produção de valores de uso “naturais” . Certamente, esta produtividade ecológica pode ser medida e quantificada sobre uma base temporal e espacial como uma produtividade agronômica. Poderiam ainda produzirse indicadores sobre a contribuição do capital investido e a força de trabalho aplicada na geração de uma “co lheita ecossistêmica” . Mas esta não pode ser avaliada em termos de seu preço de mercado. A produtividade ecológica de um sistema de recursos naturais pode estar sujeita a uma análise de diversos processos de otimização, mas esta não está guiada pelo objeto de alcançar um clímax ecológico, um equilíbrio estável ou um aproveitamento otimizado dos fluxos de energia do ecossistema; está menos ainda orientada à maximização de excedentes econômicos ou à construção de um modelo de produção acumulativa. O paradigma ecotecnológico de produção conduz a um processo histórico de transformações ecossistêmicas, fundado em padrões variáveis de aproveitamento sustentável de recursos, através de inovações científicotecnológicas e reorganizações produtivas. Neste processo poderão ser melhoradas a quantidade e qualidade dos valores de uso produzidos, conservando certas condições fundamentais para uma oferta ecológica sustentada de recursos. Mas o sistema de recursos naturais não pode orientarse a um estado homeostático de máxima
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produtividade ecológica; menos ainda pode conceberse ou avaliarse esta oferta dentro de um processo de reprodução expansiva. Tal sistema está fundado sobre uma taxa básica de produção ecossistêmica que depende dos ritmos de extração e das condições de regeneração de seus recursos em padrões alternati vos de apr oveitamento. O comportamento de tal ecossistema produtivo pode ser monitorado e estimado através de seus intercâmbios e balanços de matéria e energia em diferentes estratégias de ordenamento ecológico dos recursos. Entretanto, estas análises não seriam suficientes para avaliar os aspectos qualitativos apresentados por um sistema de recursos naturais assim construído sobre a satisfação das necessidades básicas de um a comu nidade sobre sua qua lidade de vida e sobre a distri buição so cial dos custos e benefício s das difere nte s prática s prod utiva s. A pro dutividade tecnoló gic a — em se ntido estrito e indepen den temente do capital que incorpora — é avaliada em termos de sua eficiência m ecânica e sobretudo termodinâmica dos processos produtivos. Contudo, a produtividade está associada com a eficácia do processo social de construção, funcionamento de um sistema tecnológico apropriado, cujo custo deve ser avaliado em função de sua contribuição à preservação dos serviços ambientais e à elevação da produtividade sustenrável de recursos bióticos. A ava liação socioambiental da produtividade social de esta tecnoestrutura é mais complexa que a medição do bala nço de m atér ia e energia rela cio nado com o cá lc u lo econ ôm ic o so bre o custo no mercado das tecnologias e dos meios de produção importados do sistema produtivo. Dentro da racionalidade capitalista, a produtividade tecno lógica está asso ciada a um processo de revalorização do capital, através do progresso técnico gerado por uma constante “destruição criativa” dos meios de produção orientado à maximização dos lucros, no qual se omitem os efeitos destrutivos sobre os recursos naturais e a qualidade ambiental. A racionalidade ecotecnológica implica a avaliação e construção de uma tecnoestrutura mais estável e m ultifuncional para o manejo integrado dos recursos, orientada a um desenvolvimento sustentado e não acumulalivo. Neste sentido, a produtividade tecnológica eslá associada com os custos sociais implícitos no tempo e recursos necessários para a inovação, assimilação e implementação de tal sistema tecnológico. No entanto, a pro dutivid ade cultural51, gerada a partir da reconstrução das práticas produtivas e dos processos de trabalho a partir dos valores culturais que regulam a organização produtiva de uma formação social, não pode ser avaliada em termos da produtividade do capital, do trabalho e da tecnologia investidas no processo produtivo. O desenvolvimento das forças produtivas de uma formação social a partir da criatividade, as habilidades e motivações da comunidade, bem
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como dos valores culturais inscritos nas práticas de cooperação no trabalho, de reciprocidade e de intercâmbio simbólico (que incluem a t iv i d a d e s “ n ã o - p r o d u t i vas” de c a r á t e r ritual, lúdico e recreativo), são impossíveis de serem medidas como taxas anuais de produção e dc serem avaliadas em termos de racionalidade e de eficiência econômica; tãosomente podese dar conta desta dimensão cultural da produção através de seus efeitos sobre um processo sustentado de desenvolvimento e de melhoria da qualidade de vida das comunidades avaliada em termos de seus próprios valores5*. A com ple xid ade das rela çõ es esta bele cid as po r es ses m últiplos obje tivos do desenvolvimento com a conexão dos processos de construção c funcionamento de seus instrumentos operativos, requer a elaboração de conceitos interdisciplinares e de indicadores intcrprocessuais capazes de traduzir a análise conceituai do aproveitamento integrado de recursos a formas práticas de implementação. Isso abre o campo para a elaboração de indicadores sobre o patrimônio de recursos naturais e culturais, bem co m o sobre a qualidade de vida e de desen vol vim ento su stentá vel.
9. Processos interdisciplinares e unificação terminológica
A div ersid ade e co m ple xid ade do s pr oce ss os qu e intervêm na prob lemática ambiental do desenvolvimento propõem a necessidade de integrar diversos campos do conhecimento científico e técnico para seu diagnóstico e para construir uma racionalidade ecotecnológica de produção. Isto introduziu o problema da formação de equipes multi ou interdisciplinar de especialistas, abrindo um campo de discussão sobre os métodos e técnicas mais eficazes para seu funcionamento. Estas práticas “ interdisciplinares” , entendidas com o a seleção de va riáveis e dimensões significativas para apreender uma problemática a partir dos enfoques de diferentes disciplinas, são necessárias para o diagnóstico da articulação dos efeitos gerados pela convergência de fenômenos naturais, de fatores tecnológicos, de mecanismos econômicos e de condições políticas e institucionais sobre uma problemática ambiental. Desta maneira, cada especialista pode captar, a partir de sua especialidade, os aspectos mais significativos que incidem nesta e trazer os conhecimentos úteis para seu controle ou para a implementação de programas alternativos de gestão ambiental. A análise destes fatores dentro de um enfoque sistêmico gera uma visão mais compreensiva sobre a gênese e as opções de transformação desta problemática, oferecendo diagnósticos e soluções mais integrado que as surgidas de um tratamento unidimensional ou setorializado.
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0 camp o problemático d o m e i o a m b i e n t e transformouse assim no objeti vo de diversos estu dos multi c inte rd isciplinare s. Estes enfo ques sistêm icos são importantes, já que é necessária a análise integrada de certas políticas do Estado, do funcionamento de certos mecanismos econômicos, normas jurídicas e formas de poder, para caracterizar um conjunto de processos institucionais que geram uma problemática ambiental e para instrumentalizar ações práticas para sua resolução. São estes fatores os que num momento dado dão conta dos instrumentos práticos de sujeição ideológica de uma população, dos mecanismos de controle político de uma comunidade, dos padrões de transformação tecnológica de seus recursos, dos circuitos de distribuição de recursos financeiros c captação de excedentes econômicos, das condições de divisão ou afetação de terras, do processo de expansão da fronteira agrícola ou de concessão dc direitos de exploração de recursos naturais e dos m eios de intervenção e exp loração e das empresas multinacionais. A articula çã o destes fa to re s da re alidade atuante pode chegar a cond ic io nar uma situação de forma tal que diminua o grau de “intervenção explicativa” dos processos mais gerais, provenientes das ordens ontológicas do real, tais como a racionalidade econômica, a dinâmica dos ecossistemas e os processos culturais na gênese e solução de uma problemática ambiental determinada; por sua vez, a estruturação destes efeitos numa formação social, estabelece suas formas particulares de integração aos processos econômicos e institucionais ao nível nacional, bem como às condições gerais da produção e reprodução do capital e aos mecanismos do mercado em nível global. Porém, a hierarquização e o estabelecime nto das determinações causais de um conjunto de fatores sobre uma problemática estruturada torna necessária a vin cula ção des te nível de análise com o es tu do te órico dos pro cesso s histó rico s, ecológicos ou econômicos mais gerais, apreendidos num nível mais abstrato pelas condições de articulação de suas ciências. O intercâmbio de idéias que gera um proce sso inlerdisciplinar faz com que surjam perguntas a partir de uma especialidade para outras; estes questionamentos não só apresentam inquietações sobre o potencial aplicativo dos conhecimentos destas disciplinas, mas também pode levar a reformular problemas teóricos e práticos que não surgem do desenvolvimento interno dos paradigmas das ciências e do saber disciplinar normal, induzindo assim um desenvo lvimento do conhecimento ambiental. Entretanto, as ciências não progridem apenas a partir das demandas de aplicação de seus conhecimentos, mas dependem do trabalho teórico que se produz dentro dos complexos processos históricos, ideológicos e discursivos de onde emergem e se desenvolvem as ciências.
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A efi cácia da prática in te rdiscip linar no dia gnóstic o e resolu ção de problemas concretos desprendese dos processos que ocorrem em form a simultânea: a comunicação intersubjetiva dos especialistas reunidos por um projeto e a organização dos conhecimentos científicos e técnicos trazidos pelas disciplinas presentes. O primeiro processo extrapola o terreno estritamente disciplinar dos especialistas congregados. Certos efeitos de eficácia são gerados mais por traços de personalidade e por uma especial disposição para o trabalho em grupo, outros pelas capacidades inquiridoras e organizativas de alguns indivíduos. Neste sentido, a dinâmica grupai produz estímulos para o avanço do conhecimento inclusive dentro de cada disciplina. D aí o interesse de congregar massas críticas de pesquisadores para maximizar a eficácia do trabalho intrailisciplinar em diferentes campos da ciência. No segundo caso assinalado, a eficácia do processo interdisciplinar é produto da integração organizada dos saberes, habilidades, métodos e técnicas particulares das diferentes especialidades, orientadas ao estudo de certos problemas teóricoprálicos específicos e a partir de seus campos de aplicação definidos. Daí deriva o valor do trabalho especializado. Neste sentido, o edafólogo possui instrumentos de análise específicos e uma percepção da natureza diferentes daquela do e cólogo , assim c om o a “ sensibilidade” para os problemas sociais é diferente no campo da economia, sociologia ou da antropologia. A esp ecif ic id ad e de cad a dis cip lina é im portante para o dia gnósti co de uma problemática concreta, mas adquire maior relevância quando sua resolução torna necessária sua “tradução” num programa multidisciplinar de pesquisas, capaz de gerar os conhecimentos necessários para implementar formas alternativas de aproveitamento sustentável dos recursos naturais. Neste momento, cada especialista remetese a conhecimentos, métodos e instrumentos de suas disciplinas, a suas técnicas de laboratório e a seus campos de experimentação, para produzir explicações científicas e inovações tecnológicas concretas. A s experiê ncia s in te rdis cip linares mos traram os b enefí cio s, mas també m as dificuldades do diálogo e da comunicação intersubjetiva entre especialistas. Neste terreno, dcfendeu se o projeto de gerar um discurso ho m ogêneo interdisciplinar e se manifestaram os obstáculos para produzir uma visão holística dos processos ambientais a partir dos pontos de observação de cada especialista e de seus interesses disciplinares, de sua vontade de domínio sobre outras teorias e enfoques metodológicos e do medo de perder sua identidade profissional na entropia do intercâmbio interdisciplinar de saberes.
S u r g iu d a í u m a d e m a n d a d e h o m o g e n e i z a ç ã o c o n c e it u a i e d e u n i f i c a ç ã o t e r m in o l ó g i c a p a r a g e r a r u m a l in g u a g e m c o m u m e t o r n a r c la r o o d i á l o g o e n tr e
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especialistas. Isto, sem dúvida, é efeito de certas tendências à unidade do real e do conhecimento no terreno epistemológico, mas também exp licase pela aceleração com a qual certos conceitos e termos viajam de uma disciplina para outra, dos níveis teóricos ao discurso ideológico, gerando mais caos que ordem nas discussões interdisciplinares. Assim, nem os ramos das ciências chegam a entrelaçarse nem se conectam os vasos comunicantes do saber. Os conceitos perdem sua significação teórica, adquirindo um sentido retórico dentro de um discurso ideológico.
0 projeto de unificação terminológica, os esforços por regular o significado e o uso dos termos empregados no planejamento ambiental, justificase pela multiplicidade dc sentidos com os quais estes são empregados nos diferentes discursos teóricos e práticos. Contudo, isto não autoriza a empreender um pro je to de hom ogeneiz ação conceituai das ciê ncia s e de un if ic ação te rm in oló gic a das diferentes formações discursivas do ambientalismo, que só um extremo em pirism o poderia sustentar39. A alm ejada clar ez a de uma com un icação interdiscursiva apenas pode provir do sentido teórico dos conceitos e das categ o r i a s f u nd a m e nt a i s d e c a d a c i ê n c i a , b e m c o m o d e s e u us o n o c i o n a l e terminológico em seus diversos campos de aplicação prática; de uma avaliação dos processos de resignificação teórica tal como se geram depois de uma ruptura episternológica de seus objetos científicos ou em suas articulações teóricas com outros conceitos em diferentes campos do saber, de onde derivam seu potencial cogn osc itivo e ex p lic at ivo <,(); dos d iferentes sen tidos q ue abrem o esp aço para aplicações técnicas das ciências e dos discursos práticos utilizados com fins ideológicos de conscientização ou de gestão ambiental. Isso conduz a uma especificação conceituai e terminológica em cada disciplina e em cada nível discursivo a partir não de sua unidade, mas de sua significância diferenciada. O sentido dos conceitos e termos surge assim de sua função semântica dentro de diferentes paradigmas teóricos e estratégias discursivas através das relações de inclusão ou exclusão que se estabelecem entre estes bem como de suas relações com todo uin conjunto de práticas nãodiscursivas (organização produtiva, processos econômicos, mudanças institucionais). A s re gra s internas de funcionam ento de cada um a das esfera s in stitu cio nais onde circulam os conceitos determinam também suas formas de articulação em suas práticas discursivas, gerando um rigor teórico, uma estratégia semântica e uni estilo retórico que dão sua significação aos termos utilizados. Neste sentido, ganha importância a análise das significações diferenciadas dos conceitos e termos tal e como estes se inscrevem nas estratégias discursivas do texto científico, do ensaio literário, do documento de trabalho, do artigo de jo rnal e do dis curso polític o. D aí su rge to do um sistern a de dis pers ão, ju staposi
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ção, complementaridade e oposição nos discursos que atravessam as formações teóricas e ideológicas do ambientalismo e da sustentabilidade. Desta forma, a especificidade dos conceitos no discurso ambiental das diferentes disciplinas associamse com as estratégias c ações políticas em tomo do conflito ambiental. Assim, podemos identificar, ao menos, as seguintes formas contraditórias de integração do saber ambiental: a) a coincidência ou dissidência de percepções disciplinares diferenciadas; as dispersões, homologias e complementaridades de diferentes paradigmas ideo lógicos, teóricos e metodo lógicos na explicação e resolução de uma problemática ambiental determinada; b) as oposições, diferenças e alianças possív eis das estra té gias conceituais e discursivas de grupos e classes sociais em relação às estratégias alternativas de apropriação, uso e manejo dos recursos e frente ao propósito globalizador e unificador do “desenvolvimento sustentável'’; c) a contradição ou complemen taridade entre os enunciados explicativos, descritivos e prescrilivos de diferentes discursos ambientalistas. Assim, o valor do conhecimento destes discursos pode não legitimar o valor de ju stiça das açõ es que se induze m atrav és dos en unciados prc scr itiv os que daí se desprendam; os princípios explicativos da ciência podem não coincidir com os princípios morais nos quais se fundamentam. A b re se entã o um cam po de estu do sobre as dife rente s perspecti vas de análise da problemática ambienta] a partir das relações de poder (do poder real e do pode r do saber), enquanto que estas geram uma razão teórica, uma racionalidade produtiva e uma racionalização ideológica. Deriva daí, por sua vez, um processo “interdisciplinar” no qual se produz um “interdiscurso” através do concurso de diferentes ramos do saber, que por um lado afeta o discurso das ciências e, por outro, o recurso de suas aplicações práticas.
10. A função do sujeito na articulação de conhecimentos
A s te oria s m ate ria lista s do conh ecim en to debate ram s e sem pre contr a a tenacidade das diversas formas que as concepções idealistas adotaram no curso da história. Embora o surgimento do conhecimento científico moderno tenha implicado o deslocamento das correntes espiritualistas predominantes, ao mesmo tempo fundou A C iê n c ia na consciência do sujeito que, como sujeito da ciência, constituise no princípio produtor do processo de conhecimento.
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A desc entr alização da Terra no U nivers o e de um Deus TodoP odero so no Mundo conduziram a um antropocentrismo e a um humanismo fundados nas formas de ser do sujeito. Este processo histórico do saber transita pelo racio nalismo da lógica transcendental para a fenomenologia, mas también alimenta al positivismo lógico, onde o sujeito da ciência reaparece nas proposições lógicomatemálicas e no formalismo lingüístico sobre o universo dos objetos empíricos. A esla histó ria do conhecim ento m odern o so breviv era m as fó rm ula s em pi ristas mais vulgares do sáber, aquelas fundadas na reconstituição cognoscitiva da realidade a partir da aproximação sistêmica do sujeito psicológico com relação aos d ados do m undo que o circunda, das observa ções diretas dos objetos de seu entorno. Este idealismo subjetivista é questionado pela constituição das ciências mais distantes dos campos de aplicação da formalização matemática e cujo objeto de conhecimento está mais afastado da realidade empírica; ali onde a organização do real está constituída por processos materiais e não por objetos empíricos: ciência da vida, mas sobretudo da história e do inconsciente. Estas ciências geram os conceitos teóricos para explicar a subjetividade do homem como um efeito do desejo inconsciente e da luta ideológica de classes, manifestada através de suas formações discursivas. É neste sentido que a partir do materialismo histórico aparece o processo de conhecimento como um “processo sem sujeito” (Althusser), isto é, onde o sujeito psicológico está ausente como princípio produtor do conhecimento, tese que é complementada com a proposição lacaniana que questiona a ciência com o “a ideologia da supressão do sujeito”, e que introduz no processo do conhecimento não o sujeito autoconsciente, mas o sujeito do inconsciente, aquele mo vid o p elo d esejo de s a b e r 61. É esta fun ção do suje ito, su a puls ão ep is tem o fílic a, a que interessa destacar em seus efeitos sobre a integração dos conhecimentos produzidos sobre a articulação possível das ciências, sobre os processos trans disciplinares e interdisciplinares. Todo conhecimento que não seja palavra morta e documento sepultado requer um pro cesso de assim ilação subjetiva que, m ais do que a leitura repetitiva e o discurso dogmático que levam a uma aprendizagem mimética, implicam a necessidade de uma interpretação dos textos para pronunciálos em função de certos interesses, para utilizálos numa prática profissional, para aplicálos a uma prática política. Ap arecem assim certas posiçõe s subjetivas, formas de identificação e contraidentificação com um terreno teórico a partir do qual se produzem tendências à especificação, generalização, transferência e assimilação de
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co n ce ito s62, que resultam férteis para o desenvolvim ento de novos conh ecime ntos e que permitem a realização de um cogito científico. N o processo de articulação das ciências — ainda nos casos onde reconhecemos a impossível articulação de seus objetos de conhecimento 63 — é claro que a articulação de certos efeitos de seus processos materiais sobre uma pro ble m ática concre ta não estão desenvolv id os nem se encontram explícit os em seus discursos teóricos. Tanto na problemática teórica sobre as condições de produção de sentido na consciência dos homens como na problemática ambiental, a articulação de conceitos provenientes de diferentes ciências para compreender a integração de efeitos destes processos materiais está motivada por estratégias conceituais que põem em funcionamento suas articulações possíveis a partir das regularidades discursivas previamente enunciadas, das estruturas conceituais elaboradas e onde o desejo de saber de um sujeito ideológico se insere no campo da produção de conhecimentos e de sua aplicação em uma estratégia de mudanças históricas. É este sujeito ideológico que, condicionado pela potencialidade do que é possível pensar e dizer no terreno de uma teoria e no campo da luta de classes pelo conhecimento, entrelaça saberes, transplanta conceitos, combate doutrinas. Isto evita que as ciências estejam constituídas como monumentos para a contemplação mítica ou religiosa, para o ritual dogmático das teorias elaboradas. O sujeito pode assim profanar o templo do saber, ressuscitar mediante a exegese o documento arquivado paia tornálo ciência viva, ciência política inscrita nas estratégias conceituais e discursivas que surgem das interpretações pos síveis do conh ecimen to a partir da oposição de interesses, de visõe s do m undo, de hierarquias e funções sociais. Assim se produz uma contraidentiílcação com os saberes legitimados e se geram as condições de “dessujeitamento” ideológico dos homens, para induzir novos conhecimentos capazes de promover um projeto diferente de civiliz aç ão , para gerar uma estratégia discursiva que produza novas formas de identificação, novas possibilidades de significação, novos estilos de vida, novos projetos de desenvolvimento. Não são os conceitos e métodos de uma ciência os que são desterrados de seu campo de conhecimento e forçados a implantarse em outras regiões do saber. São os sujeitos teóricos quem, imersos em processos ideológicos e movidos por seus interesses disciplinares e políticos, assimilam subjetivamente um saber, o colocam em circulação em diferentes estratégias discursivas e ensaiam novos inxertos conceituais. Alguns deles são rejeitados pelo corpo de conhecimentos de uma ciência; outros são assimilados e contribuem ao seu desenvolvi
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mento. Neste sentido, o sujeito não apenas aparece como suporte das estruturas teóricas as ciências constituídas, mas como um agente que, projetado pelo desejo de saber, mobiliza os processos discursivos e transporta conceitos, métodos e teorias fora do objeto de conhecimento de sua ciência e a outras regiões do sab er6,1. Neste sentido, a função dos sujeitos é análoga à função ecológica dos insetos que, ao coadjuvar no processo de polinização, fertilizam os códigos genéticos inscritos nas populações botânicas e mobilizam a evolução do ecossistema produtivo. Assim, os sujeitos servem à realização do potencial produtivo de conhecimento inscrito nas estruturas conceituais das teorias científicas. Na medida em que o processo de conhecimento está orientado a suas aplicações práticas, o desejo de saber que move os sujeitos vêse reforçado por um desejo de poder através do saber, do potencial produtivo da ciência através de suas ap licações tecnológicas, do controle social a partir do potencial de predizer da teoria, da capacidade para planejar e concertar ações orientadas a certos fins. O que este processo põe também em funcionamento é a constituição do ser do homem através de seu saber, de sua identidade na mestria de certas habilidades, de seu reconhecimento a partir do suporte oferecido por uma disciplina, de sua produção de conhecimentos dentro e contra os paradigmas estabelecidos. E este processo que gera um sujeito técnico através de uma disciplina de aprendizagem que o incorpora a uma especialidade, que o constitui pela assimilação de um conjunto de valores associados a sua identificação com um saber. É a partir da apropriação subjetiva desses saberes que pode se propor uma prática interdisciplinar como o de colocar em jogo um espectro de visões e interesses a partir de diferentes perspectivas disciplinares e que a problemática ambiental pode gerar um processo intersubjetivo de integração dos discursos que podem pronunciar a partir de suas posições disciplinares diversos especialistas para compreender e resolver um problema comum. Assim , enq ua nto a es tratégia episte rn oló gic a de uma articula çã o de ciê n cias estabelece o campo de possibilidade da articulação de suas teorias, conceitos e temáticas para a construção de uma racionalidade ambiental, o processo interdisciplinar gera o cam po de integração dos sujeitos — das subjetividades produzidas por certas práticas técnicas, científicas e políticas — num processo contraditório de identificações e confrontos ante objetivos comuns e diferenciados; de subjetividades que a partir de um mesm o de sejo de sab er dividem se em suas demandas de conh ecimento conform e os diferentes interesses disciplinares e políticos que atravessam o movimento teórico e as práticas do ambientalismo e do desenvolvimento sustentável.
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Nolas
1. Cf. Bernal, J. Science in History. Inglaterra, Pelikan Books, 1969. 4 vol. Lcff, E. Ciencia y tecn ol ogi a en el de sa rr ol lo capit ali sta ”, op. cit., 1975. IDEM, Ciencia, técnica y sociedad, op. cit., 1977. 2. Cf. Apostel, L. In lerd iscipl inar ieda d, op. cit . Para uma aproximação crítica, ver: Follari, R. In le rd is ci plinari ed ad. Los ava ta re s de la id eo lo gia . México, Universidad Autónoma Metropolitana-Azcapotzalco, 1982. 3. Ver Cap. 1 supra e Cap. 3 infra. 4. Nesta direção. Foucault refere-se ao “sentido de instabilidade c à supreendente eficá cia do criticismo descontínuo, particular e local” diante do “efeito inibidor das (eorias totali tárias” e dos paradigmas globalizadores. Estaríamos assim testemunhando a “insurreição dos saberes subjugados” dos “conteúdos históricos que foram enterrados c disfarçados numa coe rência funcionalista ou numa sistematização formal”. FOUCAULT, M. Power/knowledge. Nova Iorque, Pantheon Books, 1980. 5. Cf. Wilson, E. O. Sociobiology, the new synthesis, op. cit. 6. Morin, E. La métho de, la vie de la vie. Paris, Editions du Seuil, J980. 7. Von Bertalanffy, L. Teoria general de los sistemas, op. cit. 8. Ganha se ntido a observação de A. Lichnerowicz, apon tando as limitações do isomorfismo na apreensão de objetos ontológicos diferentes: “O matemático trabalha sempre com um di cionário quase perfeito e amiúde identifica sem escrúpulos objetos de natureza diferente quando um (...) isomorfismo assegura-lhe que apenas estaria dizendo a mesma coisa duas vezes cm duas línguas diferentes. O isomorfismo toma o lugar da identidade. O Ser encontra-se coloca do entre parênteses e é precisamente esta característica não-ontológica a que atribui às ciên cias exatas seu poder, sua fidelidade e sua polivalência (...). Podemos tecer uma matcmática de uma textura arbitrariamente fechada, mas a onda ontológica escorre necessariamente ne las”. Lichnerowicz, A. “Matemáticas e intcrdisciplinaridadc”, in: Apostel, A. et al., op. cit., p. 147-8. 9. Morin, E. La métho de, la na tu re de la natur e, op. cit., 1977. 10. Foucault, M. L ’ar ch éo lo gi e du sa vo ir. Paris, Gallimard, 1969. p. 21. 11. Mannheim, K. Id e o lo g y a n d u to p ia . Londres, Routlcdgc & Kegan Paul. 1936. (reimpressão 1972). 12. “O discurso (...) aparece como um bem — acabado, limitado, desejável e útil — que po ssui suas re gra s de su rg im en to, mas també m suas co ndiçõ es de ap ro priação e de co locação em prática; um bem que levanta cm conseqiiência a partir de sua existência (e não só em suas aplicações práticas) a questão do poder. Um bem que é, por natureza, o objeto de uma luta e de uma luta política” (Foucault, M. L ’ar ch éo logi e du savoir, op. cit.. p. 158). 13. Cf. Erlich, P. The population bomb. Nova Iorquc, Ballantine Books, 1968. 14. Herrera, A. 0 . e t al. Catastrophe or new society: a Latin American model. Otawa, IDRC, 1976. 15. Commoner, B. “Dos enfoques de la crisis ambiental”, op. cit. 16. Brailovsky, A. E.; Foguelman, D. “Multinaeionalcs y medio ambiente”, in: Nexos . México, mar. 1980. 17. Cf. WCED. Our common future. Oxford, Comissão Bruntlaiul, 1987. É necessário analisar os efeitos ideológico-políticos do discurso do desenvolvimento sustentável em seu
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prop ósito de unificar os interesses de na çõ es e grup os so ciais frente à qu estão ambienta] e o p ro c esso de aprop ria çã o deste c o n ce it o d e ntr o das estr a té g ia s do n eo li b e ra li sm o e do ecologismo. Sobre esta disjuntiva, ver mi libro Ecolog ia, ca pital e cu ltura , Edifurb, Blumenau, 2000. Ver também: Redclift, M. Sustainable development. Exporting the contradictions. Lon dres/Nova Iorque, Methuen, 1987. 18. Canguilhem, G. Id éo logi e et ra tion alit é da ns l ’histoire des sc ie nce s de la vie. Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1977. p. 119. 19. Nestes casos, como nos de toda “especialidade bem trabalhada, bem praticada (...), po de mos abstra ir regras de produ ção de co nh ec im entos , regras su scetíveis de uma ex trapola ção prudente. Neste sentido, podemos dizer mais propriamente que o método pode ser amplia do ao invés de generalizado. Mas não poderia ser estendido a outros objetos da história das ciências sein uma ascese preparatória para a delimitação de seu novo campo de aplicação” (Canguilhem, G. Op. cit., p. 24). 20. Ibid., p. 110-5. 21. Cf. Barrau, J. “L’ethnobotanique au carrefour des sciences naturelles et des sciences humaines”, in: fin/. Soc. Bot. Fr., il. 118, 1971, p. 242. LEFF, E. “Ethnobotanics and anthropology as tools for a cultural conservation strategy", in: MC NEELY, J. A.; PITT, D. (comp.) Culture and conservation. Grã Bretanha, Billing and Sons/Worcestcr, 1985. Ver tam bém o cap. 3 de meu livro Eco logia , capital e cu ltu ra , Op. cit. 22. “E que esses alimentos não são para serem comidos e não são apenas materiais vege tais ou animais consumidos para satisfazer necessidades fisiológicas; também servem para pe nsa r (...) são pre textos de símbo los, ap ro xim aç ão do im ag in ário e justificativas de práticas sociais. Estamos aqui na interface do biológico e do social, em plena dialética do real c do imaginário” (Barrau, J. “Essai d’écologie des méthamorphoses de l’alimentation et des fantasmes du goût”, in: Social Science Information, v. 18, n. 3, 1979. p. 421-2). 23. Canguilhem, G. La co nnaissa nce de la vie. Op. cit., 1971. 24. Ver cap. 4 de meu livro Ec ol ogi a y Cap ita l, México, Siglo XXI Editores, 1994. 25. “A origein (das noções) comanda o sentido e o sentido comanda o uso” (Canguilhem, G. Op. cit., 1971. p. 132). 26. Ibid., p. 134. 27. Leff, E. “Las disciplinas científicas y la problemática ambiental". Serie Opciones, fascículo 1 sobre ciência y medio ambiente. Madri, CIFCA, 1982. 28. Leff, E. “Marxism and the environmental question: from the critical theory of prod uc tio n to an en vironm ental ra tio na lity fo r su staina ble de ve lo pm en t” , in: Capitalism, nature, socialism, v. 4, n. 1, 1993, p. 44-66. (ver cap. XIII de meu livro Eco logi a y Cap ita l, op. cit.). 29. Canguilhem, G. Op. cit., 1977. 30. Ver LEFF, E., “Alfred Schmidt y el fin dei humanismo naturalista". In: An tropo logi a y ma rxism o, n. 3, Méx ico, 1980. p. 139-15 2, bem c om o o Cap. 3 de Eco logi a y Cap ita l, op. cit. 31. Baidrillard, J, Cr ítica de la ec ono m ia política de l sign o. México, Siglo XXI, 1974. 32. liaudrillard chega inclusive a propor o esgotamento do paradigma da economia política fundado no valor-trabalho — e nos “conceitos ideológicos” de produção, modo de produção, relações de produção, forças produtivas — e sua substituição por uma teoria do intercâmbio simbólico. Cf. Baudrillard, J. The mirr or o f pro du ction . St. Louis, Telos Press, 1973. 33. Gallopín, G. “Ecologia y ambiente”, in: Leff, E. Lo s pro bl em as del co no cimiento..., op. cit.
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34. Nesle sentido, o dictum interdiciplinar, defendendo que as diferentes disciplinas não fazem senão perceber uma mesma realidade a partir de diferentes perspectivas, é falso. 35. Para um estudo da história da ecologia, a partir de sua emergência como uma discipli na das relações entre organismos vivos e o ambiente, até a constituição de uma “ecologia global”, ver : Deléage, J. P. Histo ire cie 1'eco logie. Paris, La Découverte, 1991. 36. Nesle sentido, as mudanças ambientais globais demandam novas metodologias para o estudo integrado dos processos de ordem física, biológica, econômica e cultural que afetam os proc esso s de aq ue cimen to glob al, de pe rda e pres er vaç ão da biod iver sida de e, em ge ral, das relações da ordem econômica mundial com as mudanças ecossistêmicas globais, a transição demográfica e os processos dc degradação sócio-ambiental. 37. “Para os especialistas do enfoque de sistemas, o meio ambiente está constituído por tudo o que não faz parte do sistema intencional estudado e que afeta seu comportamento (Churchman). Na medida em que o sistema dispõe de políticas referentes ao meio ambiente, este último estreita-se; o êxito de tais políticas avaliam-se (...) pelo desaparecimento do con ceito de meio ambiente, que termina por ser assimilado ao sistema (...). Na verdade, a longo praz o, o meio am bien te, assim ila do com o dimen sã o pe rm an en te do ca mpo de visão do plane ja dor, es tá des tina do a de sa pare ce r com o dom ínio co ncreto de ação ” (Sachs, I. Eco dem rr ollo . De sa rr ollo sin destr uction. México, El Colégio de México, 1982. p. 36, 53). 38. Le ff, E. “La dimen sión c ultural dei man ejo integrado, sustenlable y sostenido d e los recursos naturales”, in: Leff, E.; Carabias, J. Cultura y manejo sustenlable de los recursos naturales. México, CIIH-UNAM/M.A./Porrúa, 1993. 39. Ver cap. I, supra. 40. Leroi-Gourhan, A. L'h om m e et la matièr e. Paris, Albin Michel, 1943. Idem. Mili eu et techniques. Paris, Albin Michel, 1945. 41. Safouan, M. “El Edipo es universal?", in: Estúd io s so bre Ed ipo. México, Siglo XXI, 1977. 42. Godclier, M. Econ om ia, fe li ch is m o y religion en las so cied ad es pr im itiva s. Op. cit., 1974. Meillassoux, C. Terrains et théories. Op. cit., 1977. Toledo, V. M. “Intercâmbio ecológico e intercâmbio económico en el proceso productivo primario”, op. cit., 1981. 43. Ver meu livro Ecolog ia, ca pital e cu ltu ra , op. cit. 44. Assim, o que Foucault encontra em suas descobertas arqueológicas do saber “são sobretudo séries de vazios e misturas, jogos diferenciais, separações, substituição, translormações (...) conceitos que diferem pela estrutura e pelas regras de utilização, que se ignoram ou se incluem uns aos outros e que não podem entrar na unidade de uma arquitetura lógica (...) (assim como) possibilidades estratégicas diversas que permitem a ativização de temas incom patíveis ou ainda , a in clusã o de um mesmo tema de ntro de conjunto s difer ente s" (Fou ca ult, M. Op. cit., 1969. p. 52). 45. Vessuri, H. “Antropologia y ambiente”, in: Leff, E. Lo s p ro bl em as de i co no cimi ento..., op. cit., 1986. 46. CEPAL/PNUMA. “Incorporación de la dimensión ambiental en la planificación", in: Rev ista In tera mer icana de pla nific aci ón, v. XV m , n. 69, mar. 1984, p. 9-51. Ver tam bém o cap. V de meu livro Ec olog ia, capital e cu ltu ra, op. cit. 47. Georgescu-Roegen, N. The enthropy law and the economic process. Harvard Univer sity Press, 1971. Martinez Alier, I.; Schlüpmann, K. La ec olo gia y la eco nomia . México, Fondo de Cultura Económica, 1991.
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48. Vessuri, H., op. cit. Sandoval, J. M. “Materialismo cultural y materialismo histórico en los estúdios de la relation sociedad-naluraleza”, in: An tropo logi a y mar xism o, n. 3. Mexico, 1980, p. 11-33. 49. Cl'. Gutman, P. “Economia y ambiente”, in: Leff, E. L os pro bl em as del co no cim ien lo..., op. cit. Naredo, J. M. La ec onom ia en ev ol uc io n: his to ria y persp ecti vas de la s ca tego rias fu ndam en ta le s de la ciên cia ec on óm ica. Madri, Siglo XXI, 1987. 50. Foucault, M. Op. cil., 1969. p. 2 1 1. 89, 82. ‘ 51. Esta seção e a seguinte abordam o conceito de produtividade ecotecnológica para exemplificar a aplicação de nossa estratégia espistemológica na produção de conceitos práti cos imerdisciplinares aplicados no aproveitamento integrado de recursos e na construção de uma racionalidade ambiental. A elaboração destes conceitos foi documentada em trabalhos anteriores (cf. Leff, E. “Hacia un proyecto de ecodesarrollo”, in: Comercio exterior, v. XXV, n. 1, México, 1975. Lelf, E., “Racionalidad ecotecnológica y manejo integrado de recursos”, in: Re vista In iera merican a de pl anijica ción , v. XVIll, n. 69, México, p. 70-85). Ver também o Cap. IV de meu livro Eco logia, ca pita l e cultura, op. cit. 52. Gallopín, G. “Tecnologia y sistemas ecológicos”. CIFCA, Serie Opiniones, fascículo 1 sobre tecnologia e meio ambiente. M adri, 1983. Ver tamb ém o Cap. II de meu livro Eco lo gia, capital e cultura, op. cit. 53. Sobre os avanços na elaboração destes indicadores, ver: CEPAL. In ve nt ár io s y cu enta s deI patrimonio natural en América Latina y el Caribe. Santiago de Chile, 1991. 54. Sicinski, A. ‘T h e concep ts of ‘ne ed’ and ‘value’ in the light of the system s app roach ”, in: Social science information, v. 17, n. 1, 1978, p. 84. 55. Neste sentido, Barrau (1979) assinala como a “atual agronomia (...) esfumaça as noções de ‘'terroir' ("pedaço de terra”) c de "cru" (a colheita do pedaço de terra), bem como se erode a diversidade de formas de nossas plantas cultivadas”. 56. No capítulo II de meu livro Ecolog ia, ca pita l e cu ltu ra , desenvolvem-se as bases da prod utividad e prim ár ia do s ec os sistem as e sua im po rtânc ia numa es tratégia de ecodcsen vo lvimenlo. 57. A construção do “conceito prático" de produtividade cultural pode surgir como uma heresia teórica, ao vincular em forma adjetivada (dominada) o conceito de cultura — geral mente utilizado para designar lormações sociais e atividades humanas pouco caracterizáveis em termos de uma tendência ao incremento da produção — com o de produtividade, próprio de uma racionalidade econômica que, na comercialização e capitalização dos produtos cultu rais das sociedades “piimitivas” e das artes e ofícios modernos veio destruindo a estrutura social que dá suporte a esses valores culturais e suas práticas tradicionais. Entretanto, as práticas da gestão am bien tal ge ram “co nc eitos práticos im erd isciplinar es” através da tra ns fo r mação e integração de conceitos teóricos para apreender processos sócio-ambientais comple xos. Assim, o conceito de produtividade cultural permite dar conta da força produtiva de uma comunidade a partir de sua percepção e das formas de aproveitamento produtivo de seus re cursos, de suas motivações para a produção e da reorganização de suas atividades produtivas e de sua capacidade para gerar e assimilar novos conhecimentos a suas práticas produtivas tra dicionais. De torma análoga, o conceito de produtividade primária, proveniente da ciência ecológica, é transformado num conceito de produtividade ecológica para os fins práticos do manejo integrado de recursos. 58. Neste sentido, a racionalidade cultural que subjaz neste nível de produtividade, não pode rá redu zir-se em term os de força de trab alho ou de po tencial prod utiv o — do es pe cífic o
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ENRIQU E LEFF
conceito de racionalidade do homo cconomicus: de uma racionalidade lécnica. energética ou ecológica — à compreensão e racionalização da organização cultural. A racionalidade produ tiva das sociedades “tradicionais" não poderá ser analisada sob os princípios de racionalidade da economia política e do modo de produção capitalista. 59. Como assinala Lyotard, “O vínculo social é de linguagem, mas não está feilo de uma fibra única. É uma texiura onde se enlrecruzam (...) um número indeterminado de jogos de linguagem que obedecem a regras diferentes (...). Não há na ciência uma mctalinguagem geral dentro da qual todas as outras possam ser transcritas c avaliadas" (cf. l.yotard. .1. F. h i condition po. ilm ode m e. Par is, Les Editions du Minu it, 1979.). Já o racionalisnio crítico m ostrou a incomensurabilidade de conceitos cujos significados teóricos derivam do contexlo teórico no qual estão inseridos, advertindo ainda que cada linguagem teórica determina o sentido dos termos e enunciados de sua linguagem observacional (cf. Lakatos, I.; Musgrave, A. [eds.l Im crítica y ei desarroUo dei conocimienw. Barcelona/Buenos Aires/México, Ediciones Grijalbo, 1975.). 60. “As análises de G. Canguilhem (...) demonstram que a história de um conceito não e (...) o de sua afinação progressiva, de sua racionalidade continuamente crescente, de seu gradi ente de abstração, mas a de seus diversos campos de constituição e validação, a de suas regras succssivaS de uso, dos múltiplos meios teóricos onde continua e se acaba sua elaboração” (Foucault, 1969:11). O próprio Canguilhem (1977: 21.27) assinala que não devem “ser toma das as persistências de termos pelas identidades de conceitos, invocações tie latos de observa ção análogos por parentescos de métodos c de questionamento (...). o progresso científico por ruptura epistemológica impõe a refundação freqüente da história de uma disciplina que não po de dize r qu e seja ex atam en te a mesm a, visto que sob um mesmo nome usual, pe rpetua do po r inércia lin gü ística , trata-se de um ob jeto difer en te” . Assim , “p elo fato do de scob rim en to da estrutura do DNA (...) (introduzem-se) na biologia novos conceitos, seja sob os termos conservados como organização, adaptação, herança, seja sob termos inéditos coino mensa gem, programa, Icleonomia” Estes critérios, válidos no campo da história das ciências, podem se mostrar úteis e necessários para a análise crítica dos termos e conceitos que atravessam a temática ambiental. 61. Cf. Lacan, J. Es critos, op. cit. 62. “Assim, os homens, no interior de uma mesma prática discursiva, falam de objetos diferentes, têm opiniões opostas, fazem escolhas contraditórias” (Foucault, 1969: 261). 63. Ver cap. I, supro. 64. “Assim, o enunciado circula, serve, esquiva-se, permite ou impede a realização de um desejo, e dócil ou rebelde a interesses, entra na ordem das respostas e das lulas, apresenta um tema de apropriação ou de rivalidade” (Foucault, 1969: 138).