G ilí FOUROUIN
HISTORIA ECONOMICA DO OCIDENTE MEDIEVAL
LUGAR DA
HISTÓRIA
T ítulo original: H istoire économ ique de l ’O ccident m édiéval
© Librairie Armand Colin Tradujáo de Fernanda Barao Capa do Departamento Gráfico de Edigoes 70 Depósito legal n.“ 110857/97 ISBN 972-44-0364-5
Direitos reservados para todos os países de língua portuguesa por Edifoes 70, Lda. ED I?Ó ES 70, Lda. Rúa Luciano Cordeiro, 123 - 2.° Esq. - 1050 Lisboa/Portugal Telefs. (01) 3158752 - 3158753 Fax: (01) 3158429 Esta obra está protegida pela lei. Nao pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocópia e xerocopia, sem prévia a utorizado do Editor. Qualquer transgressao a Lei dos Direitos de Autor será passível de procedimento judicial.
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HISTORIA ECONOMICA DO OCIDENTE MEDIEVAL
Fabricador de instrumentos de trabalho, de habitagoes, de culturas e sociedades, o homem é também agente transformador da história. Mas qual será o lugar do homem na história e o da história na vida do homem?
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LUGAR DA HISTÓRIA 1 — A NOVA HISTÓRIA, lacques Le Goff, Le Roy Ladurie, Georges Duby e outros 2 — PARA UMA HISTORIA ANTROPOLÓGICA, W. G. L, Randles, Nathan Wachtel e outros 3 — A CONCEP^ÁO MARXISTA DA HISTÓRIA, Helmut Fleischer 4 — SENHORIO E FEUDALIDADE NA IDADE MÉDIA, Guy Fourquin 5 — EXPLICAR O FASCISMO, Renzo de Felice 6 — A SOCIEDADE FEUDAL, Marc Bloch 7 — 0 FIM DO MUNDO ANTIGO E O PRINCÍPIO DA IDADE MÉDIA, Ferdinand Lot 8 — O ANO MIL, Georges Duby 9 — ZAPATA E A R EV O LU fÁ O MEXICANA, Jonh Womarck Jr. 10 — HISTÓRIA DO CRISTIANISMO, Ambrogio Donini 11 — A IGREJA E A EXPANSÁO IBÉRICA, C. R. Boxer 12 — HISTÓRIA ECONÓMICA DO OCIDENTE MEDIEVAL, Guy Fourquin 13 — GUIA DE HISTÓRIA UNIVERSAL, Jacques Hermán 15 _ INTRODUCÁ O Á ARQUEOLOGIA, Carl-Axel Moberg 16 — A DECADENCIA DO IMPÉRIO DA PIMENTA, A. R. Disney 17 — 0 FEUDALISMO, UM HORIZONTE TEÓRICO, Alain Guerreau 18 — A ÍNDIA PORTUGUESA EM MEADOS DO SÉC. XVII, C. R. Boxer 19 — REFLEXÓES SOBRE A HISTORIA, Jacques Le Goff 20 — COMO SE ESCREVE A HISTÓRIA, Paul Veyne 21 — HISTORIA ECONÓMICA DA EUROPA PRÉ-INDUSTRIAL, Cario Cipolla 22 — MONTAILLOU, Cataros e Católicos numa Aldeia Francesa (1294-1324), E. Le Roy Ladurie 23 — OS GREGOS ANTIGOS, M. I. Finley 24 — 0 MARAVILHOSO E O QUOTIDIANO NO OCIDENTE MEDIEVAL, Jacques Le Goff 25 — IN S T IT U Y E S GREGAS, Claude Mossé 26 — A REFORMA NA IDADE MÉDIA, Brenda Bolton 27 — ECONOMIA E SOCIEDADE NA GRECIA ANTIGA, Michel Austin e Pierre Vidal Naquet 28 — 0 TEATRO ANTIGO, PietTe Grimal 29 — A R E V O L U T O INDUSTRIAL NA EUROPA DO SÉCULO XIX, Tom Kemp 30 — 0 MUNDO HELENÍSTICO, Pierre Lévéque 31 _ ACREDITARAM OS GREGOS NOS SEUS MITOS?, Paul Veyne 32 — ECONOMIA RURAL E VIDA NO CAMPO NO OCIDENTE MEDIEVAL (Vol. I), Georges Duby 33 _ OUTONO DA IDADE MÉDIA, OU PRIMAVERA DOS NOVOS TEMPOS?, Philippe Wolff 34 — A (1V II I/.ACAO ROMANA, Pierre Grimal 35 — ECONOMIA RURALE VIDA NO CAMPO NO OCIDENTE MEDIEVAL (Vol. 11), Georges Duby 36 — PENSAR A R EV O LU fÁ O FRANCESA, Franijois Furet 37 — A GRECIA ARCAICA DE HOMERO A ESQUILO (Séculos VIII-VI a.C.), Claude Mossé 38 — ENSAIOS DE EGO-HISTÓRIA, Pierre Nora, Maurice Agulhon, Pierre Chaunu, George Duby, Raoul Girardet, Jacques Le Goff, Michel Perrot, René Remond 39 — ASPECTOS DA ANTIGUIDADE, Moses I. Finley 40 — A CRISTANDADE NO OCIDENTE 1400-1700, John Bossy 41 _ AS PRIMEIRAS C IV IL IZ A L E S - 1 OS IMPERIOS DO BRONZE, Pierre Lévéque 42 — AS PRIMEIRAS CIVILIZACÓES - IIA MESOPOTÁMIA/OS HITITAS, Pierre Lévéque 43 _ AS PRIMEIRAS CIVILIZAQÓES - III OS INDO-EUROPEUS E OS SEMITAS, Pierre Lévéque 44 — O FRUTO PROIBIDO, Marcel Bemos, Charles de la Ronclére, Jean Guyon, Philipe Lécrivain 45 — AS MÁQUINAS DO TEMPO, Cario M. Cipolla 46 — HISTÓRIA DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL 1914-1918, Marc Ferro 47 — A GRÉCIA ANTIGA, José Ribeiro Ferreira 48 — A SOCIEDADE ROMANA, Paul Veyne 49 — 0 TEMPO DAS REFORMAS (1250-1550) - Vol. I, Pierre Chaunu 50 — O TEMPO DAS REFORMAS (1250-1550) - VOL. II, Pierre Chaunu 51 — INTRODUCÁO AO ESTUDO DA HISTÓRIA ECONÓMICA, Cario M. Cipolla 52 — POLÍTICA NO MUNDO ANTIGO, M. I. Finley,
GUY FOURQUIIV
HISTORIA ECONOMICA DO OCIDENTE MEDIEVAL
PREFACIO Á TERCEIRA EDIQÁO FRANCESA
Seria necessário ter o talento de um Pirenne para escrever em duzentas páginas uma história económica e social da Idade Média. Em consequéncia dos grandes progressos realizados desde há vários decénios pela história económica do Ocidente medieval, nao pudemos ser táo concisos, apesar dos cortes, e ainda que muitos pro blemas apenas tenham sido aflorados (Ocidente e mundos exteriores; relagoes entre o económico, o social, o político, etc.}, ou mesmo forgosamente escamoteados (economia e mentalidades, economia e vida cultural, etc.). Este livro foi publicado em 1969. Distinguido pela Academia Francesa, beneficiou de uma segunda edigao a partir de 1971. Esta é a terceira que a Librairie Armand Colin, apesar das dificuldades económicas do momento, tem a coragem e a gentileza de publicar. Por motivos de edigao, as correcgoes e adigóes foram limitadas e suprimidos os documentos anteriormente publicados. Em todo o caso, esta supressao permitirá, assim o esperamos, uma mais cómoda leitura seguida deste trabalho, o qual constituí um todo. É possível que a obra náo tenha alcangado o seu objectivo, que era o de aplicar — pela primeira vez — pelo menos uma parte dos métodos da actual ciencia económica á história económica medieval, «para que esta nao se encerre num gueto», e que nos apercebamos melhor da «nítida continuidade» entre a vida económica medieval e a das eras posteriores, tal como a descrevemos no ano de 1969. Um livro tem sempre a marca do seu tempo. O mundo de 1969 vivía numa atmosfera económica em que o crescimento parecía normal, destinado a prolongar-se quase indefinidamente na mesma cadéncia. Talvez tenha sido este ambiente que levou esta História Económica a acentuar esta ideia de crescimento (outrora ligada á ideia de arranque), aplicando-a sem hesitagoes, e pela primeira vez, aos últimos cinco séculos medievais. Porém, a utilizagáo desta nogáo, 9
relativamente á Idade Média, assim como de outros conceitos prezados pelos economistas actuais, náo parece ter passado desapercebida aos olhos de medievalistas que, com a melhor das intengóes, tendem por vezes a esquecer que tipo de obra pretendía o autor. Ver que um dos seus trabalhos se tornou, de certa forma, do domi nio público, é algo bastante agradável para um autor. Junho 1979
Primeira Parte
A ECONOMIA DOS TEMPOS OBSCUROS (DO SÉCULO V AO SÉCULO X)
Capitulo 1
VISÁO DE CONJUNTO A ELABORACÁO DE UM NOVO ESPADO ECONÓMICO NO OCIDENTE
Fim do m undo antigo
Todas as civilizares do mundo antigo nasceram á volta do Mediterráneo, que estabelecia a relagáo entre urnas e outras. Este mar interior «fora o veículo das suas ideias e do seu comércio», depois inteiramente englobado pelo Império Romano: era para ele que «convergía a actividade de todas as suas provincias, da Bretanha ao Eufrates» (H. Pirenne). Mais do que qualquer outro Estado da Antiguidade, o Império foi um «dom do Mediterráneo» (R.-S. Ló pez). O clima bastante uniforme e as comunicagóes relativamente fáceis entre as regióes mais próximas das suas margens e mais cedo romanizadas deviam-se ao Mediterráneo. Rios e estradas — por eles construidas — permitiam que, partindo dele, os Romanos avangassem para o interior das térras, chegando a atingir as costas do Atlántico, da Mancha, do mar do Norte. Mas, longe do Mediter ráneo, os Romanos deram frequentemente provas de uma audácia e de uma capacidade organizativa inferiores e as suas vitórias nestes pontos foram menos brilhantes. Fora portanto o Mediter ráneo que, em grande parte, permitirá que povos táo numerosos e táo diversos se mantivessem reunidos sob a direcgáo de Roma. No entanto, a despeito dos imensos sucessos da romanizagáo, as diversidades das ragas, das línguas, das religides, dos sistemas económicos e sociais mantinham-se subjacentes e iriam ressurgir, com maior ou menor nitidez, quando o Império se aproximava do fim; algumas provincias, como a Bretanha, menos romanizada do que a Espanha ou mesmo a Gália, chegariam a abandonar toda a sua roupagem romana. Por outro lado, a romanizagáo náo obtivera no Leste o mesmo sucesso que no Oeste, visto que no Oriente a língua e o modo de vida gregos quase tinham vencido os seus vencedores romanos. Apesar de as pessoas cultas e muitos administradores das provincias 13
se terem de bom grado tornado bilingües, fora o grego e náo o latim que, a um nivel inferior, fizera recuar ou desaparecer dia lectos e línguas indígenas. Na verdade, havia desde o inicio dois impérios romanos: o latino, no Mediterráneo Ocidental, e o grego no Mediterráneo Oriental. E, muito antes das grandes invasoes dos anos 400 d. C., estas duas metades haviam comegado, insensível mas inexoravelmente, a afastar-se uma da outra, acentuando as suas diferengas. Estas diferengas, novas ou ressuscitadas das brumas de um passado distante, fizeram portanto da partilha oficial do Império em dois muito mais do que uma medida de circunstáncia, destinada a governar melhor e mais de perto os individuos (286). Esta «partilha» verificava-se depois da grave crise de 235 a 268: as lutas entre os generáis romanos, a anarquía, tinham levado os Bárbaros a introduzir-se no Império, numa espécie de ensaio geral das grandes migragóes. Os Baleas tinham sido pilhadas pelos Godos, enquanto os Francos e os Alamanos haviam avanzado até á Espanha e á Itália, depois de terem varrido a Gália. A salvagáo— provisória — deveu-se a alguns grandes homens de guerra ilírios e, pelo menos aparentemente, o Império vencerá estas provas. Na realidade, as duas metades do Império tornaram-se entáo mais diferentes do que nunca, principalmente no dominio econó mico. Enquanto, no Oriente, a vida urbana, artesanal e comercial conserva uma grande parte das suas forjas, no Ocidente, tudo se passa de maneira diferente. Aqui, a economia náo recuperara da anarquía, das incursoes bárbaras, das devastares, e o medo do amanhá iría persistir. Diversas cidades, e muitas vezes as maiores, grandemente enfraquecidas, fecham-se no interior de muralhas construidas á pressa. Isto acontece tanto em Itália como na Gália e em Espanha. Se — a justo título — se considerar a civilizado romana como uma civilizado sobretudo urbana (foi o caso de todas as civiliza goes mediterránicas), poder-se-á dizer que a sua época já passou. Mesmo na longínqua Bretanha, a indústria, táo florescente no comego do século III na maior parte das regides, declina cada vez mais: á parte alguns centros que se mantém activos, o artesanato já só fabrica produtos mediocres, destinados ao consumo local ou, quando muito, regional. Isto justifica a anemia profunda em que cai o comércio, outrora táo florescente. A consequéncia é clara: já antes do fim do século III será exacto dizer que, no Ocidente, «a térra é tudo» (G. Duby), ou, pelo menos, quase tudo. A fonte quase única de riqueza é já a agricultura, situ ad o que se manterá durante muito tempo, pois esta característica do Ocidente náo se atenuará antes do século XI. A partir dos anos 400, verificam-se as «grandes invasSes» que váo alargar ainda mais os lagos com o Oriente, enquanto o Ocidente «romano» vé os seus contornos modificarem-se. A partir de agora, 14
deve falar-se de fractura entre o Ocidente e o Oriente. O basileus (*) tinha conseguido afastar para oeste os Bárbaros que tinham atravessado o baixo Danúbio. Portanto, o Império do Ocidente é submerso. Cedo ou tarde, godos, burgúndios, francos, vándalos, anglos, saxóes... ocuparam náo apenas toda a parte continental da Europa Ocidental, mas também, a norte, quase toda a Bretanha, e, a sul, a África Setentrional. «O Ocidente barbariza-se» (H. Pirenne). Esta amálgama de povos — ainda que possa náo ter sido táo brutal como se imagina ñas regióes setentrionais, onde os Bárbaros se estabeleceram em maior número — provocou de imediato um novo recuo em todos os dominios. Embora particularmente notorio nos dominios político, administrativo, social ou cultural, este recuo é também claro no dominio económico: a vida agrícola foi pertur bada pelas espoliagóes e pelas partilhas de térras, a vida artesanal, ou o que déla restava, pela degradado do gosto e das necessidades refinadas. No século VI, Justiniano procura reconquistar o Ocidente para voltar a fazer do Mediterráneo um «lago romano». Para Procópio, historiador das vitórias do basileus, a visáo do mundo ordena-se ainda á volta deste mar: era preciso remediar a divisáo do mundo em dois, divisáo de que os Bárbaros se tinham tomado culpados Tratava-se no entanto de pura visáo e náo de compreensáo da realidade. Os sucessos de Justiniano foram apenas parciais (nem a Gália, nem a maior parte da Espanha foram reconquistadas) e pouco duradoiros, excepto em Itália, onde Bizáncio manteria durante muito tempo pontos de apoio. E uma das razóes da fragilidade da obra do basileus foi precisamente o facto de Oriente e Ocidente já náo se compreenderem, nem no plano da lingua ou da cultura, nem no da religiáo (o Ocidente bárbaro do século VI é quase inteiramente cristáo mas reconhece Roma e ignora o patriarca de Constantinopla), nem no da vida económica (o Ocidente é «grosseiro» e camponés, o Oriente continua a ser uma regiáo de cidades de gostos delicados). A separado das duas metades do mundo antigo já náo é como anteriormente um fenómeno apenas cultural. Terá havido no século V uma ruptura norte-sul, acompanhando a fractura leste-oeste? Por outras palavras, estariam as costas da África do Norte, separadas, desde esta época, das costas da Europa Ocidental, e a parte ocidental do Mediterráneo seria já uma barreira? Apesar de, durante algum tempo, a ocupado do Magrebe pelos Vándalos ter constituido uma amea?a para a navegagáo — navegado aliás em dech'nio ainda antes das invasóes—, esse perigo fora bastante Tapidamente conjurado, e Cassiodoro, ñas (*) Basileus: titulo oficial do rei da Pérsia até á conquista árabe, depois da qual ficou a pertencer ao imperador bizantino. (N. do E.)
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cartas que dirigiu a Teodorico, rei dos Ostrogodos, conquistadores da Itália, testemunha que a península continuava a receber, sobre tudo através de Ostia, cereais da África do Norte, como no tempo dos Romanos. No entanto, estas exportagSes para Itália, princi palmente para Roma, eram já demoradas e continuariam a sé-lo após a reconquista provisória da África do Norte aos Vándalos por Justiniano. Isto náo impede que, no fim do século VI e mesmo mais tarde, as margens norte e sul do Mediterráneo Ocidental continuassem a estar ligadas por navios de comércio, e que, tanto urnas como outras, contmuassem a pertencer ao Ocidente. A ruptura, particularmente trágica, ocorreu mais tarde, quando da conquista árabe. Partindo ao assalto do mundo cristáo, depois de terem submetido a maior parte do Médio Oriente grego, os Árabes náo se contentaram com todas as possessdes africanas de Bizáncio. Em 698, caira a cidade crista de Cartago. Mas, treze anos mais tarde, depois de uma única batalha, era ocupada a maior parte da Península Ibérica. Depois, foi atingida a Gália: foi aqui que, entre 720 e 737, o duque de Aquitánia e depois Carlos Martel detiveram a invasáo musulmana que, na generalidade, recuou para o outro lado dos Pirenéus. Apesar de a Gália ter sido salva, o mesmo náo aconteceu com a Itália: a partir de 827, a Sicilia iria cair ñas máos dos Sarracenos; depois, em 870, foi a vez de Malta e das outras ilhas, ficando o próprio continente ameagado. A partir daqui, a Europa Ocidental ficava cortada das costas africanas, perdía as ilhas anteriormente dependentes da Itália ou da Espanha, e, durante séculos, «os cristáos» — se acreditarmos num escritor árabe dos anos 700 — náo puderam «fazer flutuar uma simples prancha» no Mediterráneo. Aiém disso, durante séculos, náo bastou que o Mediterráneo Ocidental tivesse deixado de ser seguro, tornando-se mesmo interdito, mas aconteceu ainda que, devido ás razias dos Sarracenos, as costas da Catalunha (recuperada pelos primeiros Carolíngios), da Septimánia, da Pro venga e da Itália junto ao mar Tirreno passaram a viver na inseguranga, que iria marcar profundamente estas regiSes, até no seu próprio habitat. A fractura norte-sul do espago do antigo Imperio Romano do Ocidente teve consequéncias profundas. Menos profundas, no entanto, do que pensa Henri Pirenne. Para ele, o corte principal na história do Ocidente náo teria sido a invasáo dos Bárbaros do comego do século V, mas a dos Sarracenos, e a Idade Média teria nascido da morte do Mediterráneo Ocidental cristáo. Para Pirenne, o comércio ocidental ter-se-ia mantido bas tante activo até aos anos 700, o mesmo acontecendo com as relagSes económicas entre Oriente e Ocidente. Em suma, até á irrupgáo dos Árabes, o Ocidente teria conservado, como nos belos tempos do Império, um carácter fundamentalmente mediterránico, no sentido 16
em que as regióes meridionais teriam mantido, tanto na economía como, por exemplo, na culiura, a sua preponderancia de outrora sobre as regióes setentrionais. Henri Pirenne foi seguido — até ao exagero — por muitos histo riadores. Presentemente, é de bom tom rejeitar essa tese em bloco. No entanto, ela fizera ressaltar um fenómeno de primeira grandeza: a passagem da supremacía, tanto económica como cultural ou polí tica, das provincias meridionais para as do Norte. Na verdade, esta deslocagáo do centro de gravidade do Ocidente nao decorreu da conquista musulmana: os seus germes existiam desde os séculos ante riores ás grandes migra(óes. Devido ao facto de muitas vezes ser reduzido o número de bárbaros que se instalavam no Sul, no século V, o artesanato e comércio tinham ainda centros activos nesta regiáo. O mesmo acontecía com a vida religiosa, mais viva no Sul do que no Norte. Foi no século VI que a corrente se inverteu de forma evidente no dominio político: isto é visível principalmente na Gália, onde todas as «capitais» merovíngias se situavam entre o Loire e o Reno. Depois, no século VII, o Norte da Gália comega a tornar-se económicamente mais activo do que o Sul. Por volta de 700, antes portanto de o fluxo sarraceno ter vindo bater contra as costas da Europa Ocidental, as regióes entre o Loire e o Reno sáo já, e durante muito tempo, o centro de gravidade do Ocidente. A perda do Mediterráneo e de uma parte do seu circuito ocidental apenas veio reforjar esse centro, ao mesmo tempo que as regióes do Sul ficavam votadas a uma semiparalisia devida á pirataria musulmana e, pouco depois, normanda. P rim e ira reconstrug&o
Terá o Ocidente assumido contornos duradoiros depois da batalha de Poitiers? No Mediterráneo, o Ocidente continua a recuar e só em fins do século IX os límites fluidos que separam cristáos e mugulmanos se estabilizam por mais de um século. No Leste, os Balcás quase náo tém relagóes com o Ocidente, que termina no Adriático. Poder-se-á dizer que toda a Itália pertence ao Ocidente? Nao há dúvida de que a Itália da Alta Idade Média teve uma sorte particularmente funesta. A partir de 568, ou seja, somente cinco anos depois da capitulado dos últimos ostrogodos, os Lombardos comegaram a transpor os Alpes e a ocupar uma Itália do Norte esgotada. Depois, tentaram espalhar-se pelo resto do país. Por altu ras de 600, Bizáncio ainda controlava a Liguria, a Venécia e a Istria, o exarcado de Ravena, que abrangia a Itália Central, alguns enclaves a sul (Nápoles, a Calábria, a Apúlia) e as tres grandes ilhas. A despeito de algumas contra-ofensivas, estas possessóes cederam perante o invasor. Mas a Venécia, a Istria e uma parte da 17
Itália do Sul manter-se-iam bizantinas até ao século XI. «Fractura decisiva do Ocidente»: o curso inferior do Pó e a Itália meridional tinham-se «voltado para Oriente». Ñas regides setentrionais da Europa (Noroeste, Norte, Nor deste), pelo contrário, desde a primeira Idade Média, o Ocidente nao parou de se «dilatar», agravando durante algum tempo o dese quilibrio entre Norte e Sul. Clóvis prepara o protectorado franco sobre o Oeste da Ger mánia, mas esse protectorado só se tomou efectivo no tempo dos seus filhos e netos, atingindo o seu apogeu em 560. A maior parte da Germánia, outrora ¡ndependente, até uma linha aproximativa Halle — Duisburgo — montes da Boémia — médio Danúbio, por tanto principalmente a Turíngia, a Alemánia, a Baviera e a Panónia (aquetas parcialmente romanizadas) era «franca». Mais a norte, os Merovíngios tinham sido derrotados em Saxe. Todavía, o facto de os sucessos merovíngios terem sido apenas parciais e bastante frágeis, nao impediu que estes representassem «um dos grandes acontecimentos da história europeia. Pela primeira vez, a Germánia era submetida a uma dom inado cuja sede ficava a oeste do Reno» (L. Musset). O segundo passo em frente deveu-se a Carlos Magno, e talvez tenha sido com ele que nasceu a Europa «romana», ou o Ocidente cristáo. Entre a foz do Reno e o estuário do Weser viviam os Fris5es, pagaos e ciosos da sua independencia. Os primeiros progressos da causa franca e da causa crista reunidas tinham ocorrido no tempo de Carlos Martel e de Pepino o Breve, mas apenas tinham tido consequéncias duradoiras no Sul da regiáo. Depois de ter des trocado, em 784, um levantamento conjunto de frisoes e saxóes, Carlos Magno conseguiu, no ano seguinte, vencer definitivamente os Frisoes do continente e do arquipélago. Sabe-se que teve muito mais dificuldades em vencer a resistencia saxónica. Até á submissáo definitiva (797-804), alternaram-se as expedi?5es, conquistas e levantamentos. Acrescentemos que, na Panónia, Carlos Magno destruiu também os Ávares (796). A partir de entáo, as fronteiras do Império tinham alcanzado o curso inferior do Elba e o Saale, que, ainda por alturas do ano 1000, marcavam o limite oriental do Ocidente. Esta nova configurado do Ocidente náo iría ser modificada de forma sensível pelos últimos assaltos de invasores, os Húngaros, na Europa Central, e os «Normandos» (Noruegueses ou principal mente Dinamarqueses), na Europa do Norte e do Noroeste (e mesmo no Mediterráneo). «A ¡mensa maioria dos países invadidos manteve — com efeito — a sua autonomía» (L. Musset). Mas as consequéncias económicas destas últimas invasóes foram bastante consideráveis. Os Vikings merecem um lugar á parte. É necessário colocar no seü activo a unidade económica futura do espado do Norte da Eu 18
ropa: apesar de esta só ser bem visível a partir de meados do século X, a verdade é que desde meados do século anterior os dirhems de prata do Iráo e do Turquestáo afluíam á Escandinávia, ao mesmo tempo que as moedas do Ocidente eram redistribuidas pela estrada do Norte até á Rússia, onde traficavam os Vikings. Apesar de náo ter havido um mercado único que se estendesse do Atlántico ao Turquestáo, houve, pelo menos, «uma série de mer cados que se anastomosavam uns aos outros sem solugáo de continuidade» (L. Musset). Enquanto os Dinamarqueses pilhavam e de pois colonizavam diversas regióes da Inglaterra e da «Francia», os Suecos ou Varegues abriam o caminho do Norte e do Leste, embrenhando-se através das estepes russas até ás margens do mar Negro, desembocando ás portas de Bizáncio e de Bagdade. Esta estrada, assinalada por emporia, como Novgorod, e reforjada por uma verdadeira colonizagáo, declinará e desaparecerá quando as cruzadas restabelecerem o papel do Mediterráneo como principal intermediário entre o Oriente e o Ocidente. Por seu tum o, os Noruegueses, ultrapassando as suas zonas de acgáo situadas principal mente na Escócia e na Irlanda, tinham-se dirigido, no século IX, a partir das Shetland, para as Faroé e depois para a Islándia, antes de, no século X, chegarem á Groenlándia e talvez á América (cf. mapa p. 123. Os Carolingios e a m oral económ ica
Escreveu-se muitas vezes, com algum exagero, que o reinado do primeiro imperador carolíngio assinala a data do nascimento da Europa. Se este termo vago for entendido como sinónimo de Oci dente cristáo, esta tese é defensável: o império carolíngio foi o que esteve mais perto de coincidir com os limites da cristandade ro mana. Ao sul dos Pirenéus, a Marca de Espanha (que vai apenas até ao Ebro) é carolíngia e o pequeño reino das Astúrias, que escapou á avangada árabe, reconhece a superioridade do imperador. A nordeste, o Elba e o Saale separam os Saxóes, em vias de cristianizagáo, dos Eslavos pagáos. Existe uma única excepgáo importante: enquanto os pequeños reis anglo-saxónicos sofreram a influéncia franca, o poderoso rei de Mércia trata de igual para igual com Aix-la-Chapelle. Neste vasto império, a ideia, ressuscitada dos tempos romanos, de uma unidade político-religiosa, e portanto de uma Respublica christiana, constituiu uma forga de consolidagáo mais poderosa do que a forga conquistadora. O imperador é o guardiáo da paz uni versal, tem de garantir a ordem terrestre, que deve reflectir a ordem divina. Deve conduzir a cidade terrestre para a cidade de Deus. Em teoria e por vezes na' prática, o Ocidente conheceu a 19
unidade político-religiosa. Mas terá essa unidade correspondido a características económicas comuns? Há uma característica da vida económica comum a todo o Ocidente que chama a atengáo por se ter prolongado através dos séculos, subsistindo ainda, embora bas tante enfraquecida, nos fins da Idade Média. Por vontade de Carlos Magno, ou daqueles que pensavam por ele, a economia ocidental passou a apresentar, a partir de entáo, aspectos de «economia subor dinada a normas religiosas e moráis» (A. Piettre). Existia na Igreja uma tradigáo hostil á usura, ou seja, ao empréstimo a juros, declarado nocivo no seu principio e fosse qual fosse a taxa. Esta «doutrina da usura» baseava-se em diversos textos, dos quais apresentamos os mais importantes: «Se emprestares dinheiro a alguém do meu povo... nao' lhe exigirás juros» (Éxodo). «Náo exigirás do teu irmáo qualquer juro, nem por dinheiro, nem por víveres, nem por qualquer coisa que se empreste a juros» (Deuteronómio). «Emprestai sem nada esperar em troca e a vossa recompensa será grande» (S. Lucas> Concilios e papas da Antiguidade haviam dito o mesmo: — por volta de 300, o c&none 20 do Concilio de Elvire proíbe aos clérigos de Espanha o empréstimo a juros; — em 325, o cánone 17 do Concilio Ecuménico de Niceia expulsa do clero quem quer que empreste a ju ros; — no que diz respeito aos laicos, os principáis textos que formulam a proibigáo sáo do papa S. Leáo; por exem plo: «fenus pecuniae, funus est animae» (o proveito da usura é a morte da alma). Todas estas citagoes teriam grande sucesso até ao fim da Idade Média. Mas, no tempo dos Merovíngios, estas proibigóes parecem ter se mantido como letra-morta. Gregorio de Tours conta que o bispo de Verdun, ao solicitar ao duque de Austrásia um empréstimo de 7000 soldos de ouro a favor da sua cidade, lhe prometeu devolver-lhe esse capital «cum usuris legitimis» (com os juros jurídica mente devidos). Foram os Carolíngios, e sobretudo Carlos Magno, que, em virtude da concepgáo «sacerdotal» do seu poder e sob a influéncia dos seus conselheiros eclesiásticos, alargaram aos laicos, sem concessdes, a proibigáo que em principio atingia sobretudo os membros da Igreja, e que atribuíram a essa proibigáo generalizada «a sangáo da legislagáo civil»: Em 789, a capitular qualificada de Admonitio generalis, referente aos textos citados supra, proíbe a usura a todos. Em 806, a capitular de Nimégue, promulgada num período 20
de grande fome, declara que usura e avareza sáo um mesmo mal, semelhante á especulado desonesta (sáo assim visados os empréstimos agrícolas em géneros, portanto, os emprés timos de consumo). Em 809, ano de privagóes, uma nova capitular vem proibir todos os adiantamentos em géneros ou em dinheiro antes das colheitas, seguidos, no dia do reem bolso, de uma exigencia de pagamento do dobro ou do tri plo do valor emprestado. Para além das penas previstas pela Igreja, Carlos Magno, numa capitular náo datada, impós ao transgressor a multa devida por viola?ao de vassalagem, sendo a mais pesada no valor de 60 soldos. E os sucessores de Carlos Magno iriam agravar ainda mais as proibigóes e sangóes. Numa época em que a vida económica se baseava sobretudo na agricultura, eram portanto visados os empréstimos de consumo agrí cola— aparentemente os únicos a serem praticados em grande esca la. De facto, as suas consequéncias podiam ser graves: náo pretendeu a capitular de Thionville (805) proteger os homens livres pobres, obrigados a vender os seus bens para pagar as dividas? Foi á Igreja e á trad id o carolíngia que se deveu o facto de o mundo medieval, ao contrário do mundo antigo, náo ter sido minado pelo problema das dividas, apesar de as proibigóes terem sido muitas vezes tornea das ou violadas. Mas a Igreja influiu, de uma forma mais vasta ainda, sobre a vida económica do Ocidente e, desse ponto de vista, mesmo ñas regióes náo submetidas aos Carolíngios. Depois das grandes inva sóes, «a Igreja agiu antes de influenciar» (A. Piettre): perante as carencias daquilo que restava dos poderes públicos, a Igreja assumiu importantes servigos materiais e sociais. Transformada numa grande potencia temporal pelas suas imensas possessóes rurais, a Igreja inculcou em todo o Ocidente o principio do primado do consumo. Com um sucesso afinal mitigado, os concilios do Ocidente tentaram «ordenar essa riqueza ao servigo da sociedade, essencialmente dos pobres». Tratava-se de um esbogo bastante imperfeito de «redistribuigáo das riquezas». Em principio, pelo menos, a economia dos mosteiros «era ordenada de modo a produzir náo para ganhar, mas para dar... e a produzir com vista a prover ao consumo» (J. Leclercq). Longe de ser nociva á produgáo, esta relativa «subordinagáo» da economia serviu-a e representou um exemplo da «rendibilidade do gratuito». A partir da Alta Idade Média, a abadia é um centro de reabastecimento, de produgáo, de comércio, de crédito, de povoamento, de arroteamento, e tanto os mosteiros como as catedrais actuam igualmente sobre a vida material através das peregrinagóes e das grandes obras. Tratava-se de uma política do impre visto que acabou por ser produtiva. Porque, como dizia Keynes, todas as despesas com as grandes obras eram, no futuro, «multipli cadores de lucros». 21
O principio do primado da proibigáo ajuda a compreender o motivo por que a Igreja foi, desde os tempos carolíngios, táo intran sigente no plano da proibigáo do juro. Aliás, ela obtivera o apoio dos Carolíngios num outro dominio, onde o sucesso foi menos ní tido: referimo-nos ao comércio de escravos. A Igreja nao o interditara, mas, depois de Gregório Magno, proibia, pelo menos, a venda de escravos cristáos a compradores pagáos. Foi ainda Carlos Magno quem deu uma forma mais clara e mais imperativa ás prescrigóes da Igreja, proibindo, além disso, qualquer venda fora dos limites do seu império (*). Deste modo, apesar de o poder civil nem sempre ter apoiado a Igreja de uma maneira eficaz ou regular, é indiscutível que o seu muito frequente apoio permitiu dar uma coloragáo moral e religiosa á vida económica do Ocidente. Se o primado da agricultura é a primeira característica comum a toda a economia ocidental, a se gunda característica é de facto o esforgo de moralizagáo das relagdes económicas. Estas duas características enfraqueceráo pouco a pouco ao longo dos tempos, mas persistirao mais ou menos até ao limiar dos tempos modernos.
0 ) N ao se tratava já, a partir desta altura, de comércio de escravos cristáos, ainda que os Judeus, no tempo de Luís o Pió. tivessem abastecido de cristáos os mercados sarracenos de Espanha e do Orlente. Tratava-se agora de escravos pagSos (cada vez mais eslavos, donde a palavra escravo).
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Capítulo 2
FRAQUEZA E DISPERSÁO DOS RECURSOS ECONÓMICOS
Quando se fala dos tempos obscuros, devemos recordar-nos de que eles o sáo devido á raridade ou á dispersáo dos documentos de todo o tipo. Entretanto, se as teorias sao táo numerosas como contraditórias, a razáo é a mesma: «quando faltam os documentos, florescem as teorias» (Ph. Wolff). Durante muito tempo, tudo se limitou praticamente ao estudo dos escritos. Ora, estes sáo pouco numerosos, particularmente em relagáo aos séculos que antecedem e se seguem ao renascimento carolíngio que foi, sobretudo, um renascimento passageiro do uso da escrita. Além disso, no que se refere á actividade de negócio, os textos, mais raros e mais duvidosos do que os que respeitam á vida rural, adaptam-se mal á análise. Trata-se de textos sobretudo narrativos, «cujos dados incompletos e frequentemente inexactos é preciso interpretar»; nenhum «serviu directamente (para as) trocas» (Y. Renouard). É certo que, desde há bastante tempo, se adquirira o hábito de usar outras categorías de fontes, de estudar as moe'das, os cemitérios ou a toponimia. Mas foi depois da última guerra mundial que a utilizagáo das fontes náo escritas fez grandes progressos.
As fontes escritas
Estas correspondem principalmente á vida agrícola, embora quase únicamente á dos países francos. A provável minimizagáo da importáncia do artesanato e do negócio pode explicar-se em parte por esta orientagáo dos escritos para o campo. 23
Os escritos e a vida rural No que se refere á época merovíngia, dispomos de pouca coisa: alguns capítulos de leis bárbaras (as dos Bávaros e as dos Alamanos que se inspiraram em éditos promulgados por reis e anteriores a 639), os éditos de historiadores da época (Gregório de Tours e Fredegário relativamente á Gália franca, Cassiodoro relativamente á Itália, etc.) e as vidas dos santos que fornecem incidentalmente indi c a r e s preciosas. Para a época carolíngia, o caso é diferente. Dispomos de do cumentos que serviram directamente para a actividade rural. E, em particular, da capitular De villis, náo datada, mas estabelecida sem dúvida entre 770 e 800 ou entre 794 e 813. De alcance geral, visto que se refere a todas as villae exploradas em proveito directo do rei, nada tem de original ou de inovador. Faz alusáo a um sistema preexistente, limitando-se a chamar os agentes reais (judices) ao cumprimento das regras antigas e náo precisando quais os melhoramentos técnicos a introduzir nos dominios reais. Trata-se apenas de uma «instrugáo que... se contenta em estimular o zelo dos agen tes dos dominios reais e em tom ar precaugóes contra as u su rp ares desses mesmos agentes. No entanto, apesar de náo ter sido o ponto de partida para transformagóes económicas profundas, tanto na Ale manha como em Franga, a capitular náo deixa por isso de ser um acto de importáncia capital, visto que, gragas aos seus 70 parágra fos, nos faz penetrar no pormenor da administragáo dos dominios reais no comego do século IX» (Ch.-E. Perrin). O texto desta capitular e tres modelos de inventários encontram-se contidos num manuscrito de Wolfenbüttel (primeiro tergo do século IX). Estes inventários eram outrora formulários dirigidos á chancelaria a fim de ajudar as igrejas a estabelecer o inventário dos seus bens que Carlos Magno reclamaría: sáo os Brevium Exempla ad describendas res ecclesiasticas et fiscales. Trata-se na realidade de uma compilagáo privada, mas que conservou inventários efectivos de bens reais situados no Norte da Gália, nomeadamente em Annapes, e talvez, no caso de um dos cinco fiscos assim inventariados, na re giáo de Paris; estes constituem o Breve n.° 3. Simplesmente, o compilador, monge da abadia de Reichenau, substituiu os nomes dos locáis e das quantidades por «ille», «tantas», etc., do que resultou um enorme trabalho de identificagáo em que os historiadores se empenharam com sucesso. O Breve n.s 2, muito menos importante, é apenas o extracto do catálogo das precárias e beneficios concedidos pela aba dia de Wissembourg. O Breve n.a 1, mutilado, é apenas o extracto de um políptico do bispado de Augsbourg. Os polípticos representam uma fonte bastante mais rica, tanto do ponto de vista quantitativo como do ponto de vista qualitativo. 24
Trata-se de uma categoría de inventários que as igrejas carolíngias podiam ser obrigadas a fazer. Esta prática remonta, no entanto, a muito mais atrás no passado: no século VII, vemos dois clérigos fazerem, por conta do bispo de Nevers, a descriptio de um dominio do Quercy que pertencia a este último. E o termo encontra-se já no Baixo Império: era assim que se chamava o registo que o próprio proprietário estabelecia do seu fundus com vista ao langamento dos impostos. É interessante verificar que o plano seguido para o registo romano é o mesmo que o dos polípticos mais antigos. Independentemente destes antecedentes longínquos, os polyptyca da época carolíngia sao listas de todas as villae que pertencem ao proprietário, e apresentam para cada villa a enum erado das partes que constituem a reserva, as diversas tenures (com a lista de rendas e servigos devidos por cada uma). Deste modo, pode conhecer-se, na melhor das hipóteses, a riqueza fundiária total (com excepgáo das precárias e dos beneficios) do dominus e os seus rendimentos fixos (faltam apenas os rendimentos variáveis, portanto, os da reserva), bem como os seus rendimentos extradomínio, como as dízimas. Apesar de o mais antigo políptico conhecido ser aquele de que o Breve n.9 1 transmitiu algumas passagens, o mais célebre pela sua antiguidade e pela sua amplitude é o que foi redigido por ordem de Irminon, abade de Saint-Germain-des-Prés, entre 806 e 829. A despeito de, neste políptico, faltarem os inventários de quatro ou cinco villae, o essencial náo deixou de chegar até nós, sob a sua forma original, ou seja, o inventário de vinte e cinco dominios. Em suma, o políptico de Irminon inaugura a lista bastante longa dos polípticos cujo texto nos foi legado de uma maneira ou de outra. A sua relativa abundancia, no que se refere ao século IX, deriva provavelmente e ao mesmo tempo de diversas causas: possíveis exigéncias dos Carolíngios junto das igrejas, ás quais pediam que inventariassem os seus bens; reforma monástica de 817 (qualquer reforma deste género é acompanhada de medidas que tém em vista a conservado do temporal); invasóes normandas, um pouco mais tarde (depois de uma incursáo importante, devia proceder-se a um balango e salvaguardar os antigos direitos). Na Francia occidentalis, os mais célebres sáo os das abadias de Montiérender (pouco antes de 845), de Saint-Bertin (entre 844 e 858) e de Saint-Remi de Reims (por volta de 861). Na Francia media ou Lotaríngia, dispo mos sobretudo dos mosteiros de Lobbes (por volta de 868) e de Prüm, no Eifel (893, um ano depois de uma grande invasáo nor manda). A Francia orientalis é pobre em polípticos do século IX e, na maior parte dos casos, apenas foram conservados fragmentos como o que figura no Breve n.® 1, ou como o referente á abadia de Werden. 25
No entanto, como o uso de tais inventários se prolongou até ao século XII inclusive, uma análise bastante concisa de um políptico dos séculos XI ou X II permite descobrir — nele intercalada— uma parte de um inventário mais antigo. A procura dos polípticos alemáes dos séculos IX e X continua, portanto, aberta. Mas, apesar de nao ser favore cida no que diz respeito aos poÚpticos, a Alemanha dispde de outras fontes escritas, tais como os livros de tradigSo, que conservam o registo de doafóes feitas ás igrejas, cujo desenvolvimento no sentido do temporal a partir dos séculos IX e X, principalmente na Baviera, se pode seguir. É importante notar que, tanto em re la d o á «Franja» como á Germánia, os documentos dizem principalmente respeito ás fortunas dos clérigos. No que se refere aos grandes laicos, náo existe quase nada, excepto o registo das doa?oes por eles feitas em proveito das igrejas. Quanto aos soberanos, dispomos de mais docum entado do que para os laicos, mas menos do que para os temporais eclesiásti cos: existem poucos polípticos, além do capitular De villis e de um dos Breves-, citamos apenas dois no caso da Germánia, um datando de 830-850 e referente a cinco dominios da regiáo de Worms, e outro redigido pouco antes de 831 e referente aos bens reais nos Grisons. Esta vantagem documental, apresentada pelos bens das igrejas sobre todas as outras categorías, iría prolongar-se por lon gos séculos, de tal modo que os campos do Ocidente sáo, em dema siados casos e por for?a das circunstáncias, vistos através da Igreja. Outra característica da docum entado escrita, que também passará a fronteira do ano 1000: esta é mais restrita em Itália, onde, sobretudo, foi menos explorada. Os escritos referentes á Itália do Sul, á Sicilia e á Sardenha sáo raríssimos. Deste ponto de vista, a Itália do Norte tem apenas alguns distritos favorecidos, nomeadamente o de Luca: aqui, sáo muito menos raros os fragmentos de polípticos e, mais tarde, de forais. Ora, só na Lombardia, as diferengas regionais sáo tao grandes que vém agravar a desigualdade geográfica das fontes: é impossível fazer extrapolagóes, mesmo den tro dos limites do razoável. Para além da insuficiencia do quadriculado geográfico qu« eles permitem, mesmo na Gália, todos os documentos de que temos falado tém ainda o inconveniente de fornecer um esclarecimento demasiado administrativo e, no fundo, referente apenas «aos dominios melhor administrados das regides mais ricas» (Ph. Wolff): encontramos neles poucos elementos sobre as técnicas e nenhuns sobre as culturas. Mas estas caréncias náo podem ser preenchidas por textos de outro tipo, pouco numerosos e muito pouco explícitos. Estes documentos «de apoio» (diplomas, cartulários, etc.) referem-se geralmente apenas á constituido dos dominios temporais eclesiásticos e náo á vida que neles se leva. E, embora abundem os textos hagiográficos, estes nem sempre sao muito seguros para o estudo da vida nos campos. 26
Os escritos e a actividade de trocas Os documentos escritos referentes ao artesanato e ao comércio sáo muito mais raros e o seu valor é muitas vezes duvidoso. Excepto no caso dos textos sobre a villa, que esclarecem um pouco o que se refere ao artesanato, tendo por quadro náo uma cidade mas o grande dominio. Excepto também no caso das regras monásticas, muitas vezes úteis porque o mosteiro se sitúa sempre no campo e, em principio, deve bastar-se a si próprio, tanto em géneros agrícolas como em produtos artesanais. Existem de facto alguns textos regulamentares: algumas prescrifoes ñas leis bárbaras e, sobretudo, ñas capitulares carolíngias. Mas em que medida eram aplicadas estas decisdes? Náo é frequente encontrar-se ñas vidas dos santos anotagoes bem claras. Como excepfáo, a Vida de Santo Elói, o ourives do tempo de Dagoberto I, é uma fonte verdaderamente segura. Cite mos, mas apenas para recordar, os escritos dos geógrafos árabes aos quais outrora se dava o maior crédito (M. Lombard). As suas in fo rm ales sáo tanto mais fluidas na medida em que os seus autores se copiavam frequentemente uns aos outros. O utros tipos de fontes económ icas
Existem duas categorias destes documentos que sáo utilizados de há longa data, embora beneficiando sempre de novos progressos e de novas descobertas. Trata-se em primeiro lugar da toponimia, que tenta datar o aparecimento dos locáis habitados, principalmente no campo, mas cujos dados devem ser confrontados com os que os textos podem fornecer (tanto no referente ás datas de nascimento das paróquias urbanas como rurais). A segunda é a numismática, em grande progresso e objecto de numerosos trabalhos recentes. Os seus dados sáo infelizmente de interpretado difícil. M. Lombard, por exemplo, estabelecera uma carta das «estradas» terrestres e marítimas entre os séculos VIII e XI, a partir dos achados monetários; a partir do século VIII, as «grandes» correntes teriam contornado, pelos lados ocidental e oriental, a massa continental da Europa. Para o afirmar, o autor baseava-se na ausencia de qualquer achado de dirhems (moedas árabes). Mas esta ausencia pode explicar-se de uma maneira completamente diferente: os reis francos (que os soberanos feudais imitariam) proibiam a circulagáo de moedas estrangeiras nos seus dominios, pelo que essas moedas tinham de ser levadas ás oficinas monetá rias, onde eram refundidas. «Devido ao seu sistema monetário mais evoluído, a Europa Ocidental conservou menos 27
vestigios das suas actividades comerciáis do que as regides mais atrasadas da Rússia e da Escandinávia» (E. Perroy). O historiador da economia dos tempos obscuros é constan temente ameagado por um perigo: preencher a insuficiéncia dos dados textuais e de cada uma das outras categorías de documentos «através de uma acum ulado de todos esses dados, recolhidos para um período várias vezes secular», o que conduz a uma «montagem fotográfica» (E. Perroy). No que respeita a uma outra fonte muito importante, a arqueo logía, a crítica e a filtragem das fontes também náo está ainda acabada. Há já muito tempo que a arqueología urbana veio em socorro da história económica. Mas náo se trata apenas de descobrir o tragado dos antigos recintos urbanos ou de examinar o que resta das grandes construgoes desaparecidas. Com efeito, a arqueologia urbana realiza actualmente grandes progressos, nomeadamente nos países da Europa Central, como a Polonia, onde se chega mesmo a distinguir um centro rural de um pequeño centro urbano, pro curando os mínimos vestigios de oficinas artesanais e de estabelecimentos comerciáis. Na Polónia, como na Flandres (nomeadamente em Gand), tenta-se agora arrancar os seus segredos a todo o solo urbano, de maneira a descobrir a localizagáo das rúas e das pragas, dos edificios privados ou públicos. A estratificagáo das camadas per mite que se tente a datagáo e, nos casos mais favoráveis, que se tenha uma ideia global das condigoes económicas de cada época. A arqueologia rural, particularmente a arqueologia agrária (des tinada á história dos campos), é um dos ramos mais jovens da arqueologia. Comegou a ser praticada em Inglaterra, a partir de 1920, depois nos Países Baixos e na Dinamarca, antes de ser langada na Alemanha e em Itália, a partir de 1945. Deste ponto de vista, a Franga encontra-se atrasada. É de notar que a arqueologia aérea, bastante recente, é apenas um dos ramos da arqueologia rural, embora de importancia capital para o estudo dos habitats rurais desaparecidos e dos campos (cf. por exemplo R. Agache relativa mente á Picardía). Perante a extrema insuficiéncia das fontes escritas quanto á estrutura e morfología dos campos no decorrer da pri meira Idade Média, e mesmo relativamente ao período pos terior, utilizou-se durante muito tempo uma documentagáo (A. Déléage, no que se refere á Borgonha, por exemplo) que remontava apenas aos séculos XVII a XIX (registo dos bens senhoriais, planos cadastrais, etc.) e usava-se o método regressivo. Mas isto náo permitía responder a todas as quest5es e a imagem da organizagáo do solo continuava a ser abstracta. Agora, pode esperar-se que a arqueologia rural venha a fornecer bons elementos de resposta sobre a ocupagáo e a exploragáo do 28
solo, as transform ares dos produtos do solo e, até, pensa-se, sobre a vida quotidiana nos campos. Os muito recentes progressos da arqueología urbana e rural nao estimulam tanto a imaginagao como os realizados, também recentemente, pela arqueología das técnicas (rurais ou urbanas) com a ajuda de objectos descobertos nos cemitérios e praticamente datados (E. Salin). Pode demonstrar-se deste modo que uma das caracterís ticas mais notáveis da época merovíngia foi a renovagáo das técni cas do trabalho dos metáis: as pegas de armamento encontradas nos túmulos provam que os Germanos tinham introduzido no Ocidente — e esta foi durante um primeiro período um das causas dos seus sucessos militares — técnicas muito superiores ás da antiguidade romana. A escola de Nancy (E. Salin) procedeu ao seu estudo, usando os processos físicos, químicos..., mais modernos. Deste modo, reconstituiu-se «uma verdadeira ruptura na história das técnicas europeias» (E. Salin): o recozimento tinha substituido a tempera e alguns dos agos bárbaros eram mesmo comparáveis aos nossos actuais «agos especiáis». No entanto, quais as conclusoes que, para além das que incidem sobre a história das técnicas, se podem tirar, por exemplo, da arqueologia das técnicas? Há quem discuta, com pleno direito, as de E. Salin sobre as trocas e as «gran des correntes de circulagao» na Gália merovíngia.
Capítulo 3
OS FACTORES DA PRODUGÁO NO DECORRER DA PRIMEIRA IDADÉ MÉDIA
O pouco conhecimento que se tem da vida económica dos tem pos obscuros, deve-se, por um lado, ao facto de as fontes que se lhe referem serem parcas e náo adaptadas á investigado económica, e, por outro, ao facto de o seu estudo ter sido durante demasiado tempo obscurecido por diversas teorías que desviaram o espirito dos historiadores. Uma dessas teorías, em especial, faz ainda sentir os seus maus efeitos: os economistas alemáes do século XIX pensavam que o desenvolvimento histórico da economia se processava por eta pas (Stufen) regulares. Esta «teoría das etapas» visava principalmente dois níveis sucessivos da economia. O mais baixo e o mais antigo seria o da economia natural, ou economia de subsisténcia, ou econo mia fechada, quase sem comércio e sem moeda. O segundo estádio seria o da economia monetária ou urbana, que se atingía somente com um certo grau de prosperidade que permitía aos homens produzir mais do que o necessário para a satisfafáo das suas próprias necessidades ('). Posteriormente, fez-se sentir a necessidade de reajus tar e matizar, ao mesmo tempo, esta teoria. Afirmou-se, por exem plo, que estes dois níveis económicos podiam ter coexistido na mesma época, numa mesma regiáo, vivendo o campo em economia fechada e as cidades em economia monetária. Disse-se que náo ti nham sido raros os retrocessos para a primeira etapa. E fez-se notar que pode haver comércio sem utilizado de signos monetários (os tecidos e as caberas de gado na Frísia, noutras provincias as espe ciarías, foram sucedáneos da moeda). Mesmo reajustada, a Stuferttheorie é perigosa. Vale mais encarar a realidade de frente e abandonar de uma vez para sempre todas estas expressSes, que embora sem valor sáo coriáceas. Para se saber O O tercelro estádio seria o da Kreditwirtschaft, no qual o crédito desempenharia um papel primordial.
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se houve ou náo comércio com um raio de acgáo reduzido ou médio, se cada dominio rural vivia verdaderamente fechado sobre si mesmo e tinha ou náo a obrigagáo de suprir as necessidades de todos os seus habitantes, se existiu apenas um comércio distante e incidindo somente sobre os objectos de luxo, vale mais apelar para os processos de raciocinio conjuntos da história e da economia polí tica. No seu conjunto, a vida económica resume-se aos termos com plementares da produgáo e do consumo, do investimento e da poupanga. O mais importante é conhecer a produgáo e é esta que as fontes póem melhor em destaque. Ora, a produgáo sempre foi o resultado de tres factores: a natureza, o capital, o trabalho, ou seja, o homem, que é essencial. O fa c to r n a tu ra l e a conquista do meio
O dominio das condicoes naturais O clima Em todas as épocas, o meio natural apresenta linhas de resisténcia. O que varia de uma época para outra é o nivel das técnicas utilizadas, que corresponde ao número de sucessos ou de derrotas do homem em luta para vencer uma ou outra dessas linhas de resisténcia. A primeira a vencer talvez tenha sido a do clima. Mas poder-se-á transportar para o passado os dados actuais sobre os climas da Europa Ocidental? Trata-se de um processo muito pouco seguro, conforme provam os recentes estudos sobre a história dos climas a partir de 1500. Náo dispomos, contudo, relativamente a toda a Idade Média, de algo que possa atenuar a ausencia de qualquer observagáo séria. As crónicas náo podem ser muito utilizadas, a despeito da atengáo que dedicam aos reveses da natureza (inundagóes, secas, Invernos longos e rudes, etc.). Assim, procurou-se o contributo de outros dados, tais como as fases de contracgáo e expansáo dos gla ciares (Alpes, Escandinávia, Islándia, Groenlandia, Alasca), as variagóes do nivel dos mares e dos lagos, a espessura dos círculos anuais das árvores e das vigas antigas. Os diagramas polínicos podem por vezes revelar-se preciosos. Por isso se investigou, nos jazigos de turfa de Roten Moor, na Alema nha, a variagáo dos poléns das diversas espécies vegetáis ao longo dos séculos. Os diagramas que daqui se deduziram assinalam a alter nancia da seca e da humidade. Mas nao existe acordó sobre a datagáo das alteragóes do clima. É no entanto bastante provável que o período de ± 180 a ± 550 tenha sido húmido e o que vai 32
de — 650 até ao ano 1000 tenha sido quente e seco, comefando uma nova fase chuvosa no século X I ou XII, que se prolongaría até ao fim da Idade Média. Mas estes trés períodos longos devem ter sido cortados por fases curtas (houve provavelmente uma pequena fase húmida no século IX) (SI. Van Bath). As datas aproximativas das inundafóes sobre o litoral «frisáo» seriam também interessantes. Mas também quanto a elas náo existe acordo. A segunda inundado dunquerquiana ter-se-ia verificado quer por volta de 300 quer pró ximo de 400. A terceira ter-se-ia provavelmente produzido entre 800 e o ano 1000, ou ter-se-ia dividido em duas (1014-1042 e 1127-1163). A vegetafáo O trabalho de quem pretende reproduzir as paisagens da primeira Idade Média é logo á partida perturbado pela enorme parte do solo ainda coberta por florestas (cf. mapa p. 33. A seguir ás grandes invasoes, as florestas conquistaram um campo notável em detri mento das térras cultivadas e náo dispomos de garantías de que posteriormente tenham sofrido um novo recuo sério antes do fim do século X. Este retrocesso ofensivo tem causas históricas (declínio do Baixo Império, invasdes bárbaras, devastares mais tardías, tais como as dos Saxdes no Baixo Sena) e também causas climáticas. Trata-se da fase quente, provável no seio da Alta Idade Média. Nesta altura, a floresta oceánica conheceu o máximo de extensáo tanto em latitude como em altitude: a Groenlandia e a Islándia ficaram cobertas de bétulas. E o facto de se ter verificado, nos Alpes e nos Pirenéus, uma degradado das florestas mais elevadas a partir do século XII, deveu-se provavelmente menos á acfáo dos animais e dos homens do que ao retorno a uma nova fase fria perto do ano 1000.
A floresta na Gália e na Germánia Desde o tempo da independencia céltica, as florestas gaulesas tinham passado a ocupar muito menos espado e, depois de César, a regiáo apresentava uma verdadeira diversidade. Na parte Norte, os povos gauleses estavam separados pelos grandes macizos e por numerosas florestas que se prolongavam pelas planicies, e o drui dismo, religiáo das florestas, estabelecera ali os seus principáis alicerces. No Oeste, a floresta ainda náo tinha sido sacrificada a outras formas de paisagem como o bosque. Entretanto, na Gália meridio nal, os arroteamentos, a transumáncia e as queimadas destruíam 33
pouco a pouco florestas mais frágeis do que as do resto da regiáo. Ora, a conquista romana náo teve por efeito eliminar esta diferenga entre o Norte e o Sul. Mais numerosos no Sul, os Romanos explo raran! aqui as florestas para as suas necessidades industriáis. Ñas regióes setentrionais, mesmo durante o Baixo Império, pelo con trário, «a civilizagáo — por exemplo na futura regiáo parisiense — (era) ainda, em grande parte, uma civilizagáo da floresta» e a caga, as colheitas e a criagáo de gado contavam muito mais do que as culturas que, na maior parte dos casos, se mantinham seminómadas. No entanto, as estradas romanas permitiram a abertura dos grandes macigos florestais. Daqui resultou um «espagamento» da floresta em todas as regióes. Deste ponto de vista, no fim da Antiguidade, a Gália apresentava um grande contraste com a Germánia independente: «tinha-se tomado uma presa mais fácil para os invasores, numa época em que o manto florestal representava ainda um obstá culo real para os exércitos» (M. Devéze). Com efeito, a Germánia dos anos 400 continuava a apresentar uma vegetagáo muito mais cerrada do que a da Gália. Por volta de 400, todas as regióes montanhosas e o conjunto do Leste continuavam inteiramente revestidas por um manto florestal. Apenas as térras alagadigas do sul da grande planicie nórdica, os Pré-Alpes e alguns vales (Baixo Reno, Neckar, Main) estavam arroteados. Em que medida a primeira Idade Média foi testemunha de arro teamentos ñas regióes «francas»? A fundagáo de mosteiros no Norte e no Leste foi seguramente causa de arroteamentos, visto que as abadías foram criadas muitas vezes em plena zona arborizada. As numerosas criagóes ñas duas vertentes dos Vosgos (sobretudo Marmoutier de um lado e Luxeuil do outro) abriram evidentemente brechas no manto florestal. Mas terá havido outros agentes de desarborizagáo além dos monges? Analisando as crónicas, os diplomas, os polípticos ou a capitular De villis, onde por vezes se fala de «térras ganhas» ou «a ganhar», podemos pelo menos supor que, a partir do século VII e sobretudo do VIII, as florestas foram atacadas, tanto por laicos como por clérigos. Na Germánia, devemos destacar resumidamente duas fases. Até ao século VI inclusive, por vezes até ao tempo de Carlos Magno, os baldíos continuaram a ganhar terreno, devido ás migragóes de uma parte dos povos germánicos para o oeste do Reno e, depois, em consequéncia das guerras entre francos e alamanos e das conquis tas de Carlos Magno. A segunda fase, ofensiva limitada do homem contra a floresta, deve ter comegado no século VII nalguns locáis, ou apenas no século IX noutros: a Alta Baviera, as pequeñas pla nicies da Alemanha Central, a Turíngia e os vales do macigo xistoso renano foram a pouco e pouco abertos ás culturas. 34
EXTENSAO MÍNIMA DAS FLORESTAS DO OCIDENTE DO SÉC. V AO ANO MIL
EX TEN SA O M ÍN IM A DAS FLORESTAS DO OCIDENTE D O SÉCULO V A O A N O 1000
1. Principáis maricos florestais. — Maricos florestais em relacáo aos quais subsistem dúvidas quanto aos seus limites e densidade. — 3. Maricos florestais correspondentes ás mais antigas referencias conhecidas a foresta. — 4. Limites do inquérito. Este índice apresenta os nomes ou a localizado geográfica dos principáis maricos florestais da Alta Idade Média. sendo referidas, consoante os casos, as esséncias conhecidas.
1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20.
Weald (carvalho. bétula) Hampshire Essex Suffolk Norfolk Bruneswald Forest of Dean Wyre, Morfe, Arden S. Lancashire S. Lincolshire N. Riding Elmet Selwood Somerset Alpes bávaros Vorland bávaro (faia, carvalho) Sylvae maximae et copiosae Hvozd silva Provincia silvana Floresta da Boémia (carvalho, faia) 21. Bayrischer Wald 22. Thüringer Wald 23. Buchonia (faia) 24. Basse-Hesse 25. Harz 26. Waldeck 27. Scharzwald 28. Vosgos 29. Hardt 30. Odenwald 31. Spessart 32. Taunus 33. Westerwald 34. Sauerland 35. Eifel 36. Hochwald 37. Schwaben Alb 38. Franken Alb-Nordgau 39. Ingelheim 40. Dreieich Forst (carvalho. faia. carpa) 41. Floresta de Haguenau 42. Hart 43. Floresta de Nimega 44. Veluwe 45. Silva Boceáis 46. Münsterland 47. Planaltos da Baixa Saxónia 48. Diephoiz (carvalho. bétula) 49. luneburger Heide 50. Sachsenwald Heide 51. lsarnho 52. Mecklemburgo 53. Lusácia (ulmo, carpa) 54. Vorland silesiano 55. Floresta de Charbonniéres 56. Florestas flamengas 57. Ardenas (faia) 58. Thiérache
Arrouaise Woevre Argona Perthois Der Floresta de Othe (carvalho. faia) Brie 66. Nemus Rigetus 67. Maricos de Saint-Gobain-Coucy 68. Florestas de Compiégne et de Laigue 69. Floresta de Retz 70. Florestas de Halatte-Chantilly 71. Yveline 72. Biévre 73. Perche 74. Sylva Longa 75. Floresta dos Loges, Gátinais 76. Florestas de Evrecin (carvalho. faia, bordo) 77. Bray 78. Pays de Caux 79. Florestas do Baixo Sena 80. Florestas do Maine 81. Sologne (carvalho. bétula) 82. Planaltos de Touraine 83. Planalto de Langres (carvalho. carpa, faia) 84. Chátillonais 85. Morvan 86. Florestas da depressáo do Sona 87. Florestas da Serre-Amé-Chaux 88 . Bresse 89. Florestas de Grosne e Sona 90. Jura (pinheiro, abeto, epícea) 91. Marca de Bretanha 92. Brocéliande 93. Floresta de Nantes 94. Vendeia 95. Auvergne 96. Limousin 97. Argencon 98. Santonae sylva 99. Angoumois 100. Périgord 101. Regiáo do bosque de Belvés 102. Souto cantalense 103. Grésigne 104. Agre 105. Floresta do Mas d’Agenais 106. Entre-deux-Mers 107. Floresta dos Graves (carvalho) 108. Floresta do Médoc (carvalho, D i nheiro) 109. Bouconne 110. Soubestre 111 Frente pirenaica 112 . Pré-Alpes da Sabóia e do Delfinado 113. Chambaran
59. 60. 61. 62. 63. 64. 65.
36
114. 115. 116. 117. 118. 119. 120. 121. 122. 123. 124. 125. 126. 127. 128.
Sylva Godesca (pinheiro) Montanha de Séte (pinheiro) Montanha Negra Cevenas Pré-Alpes da Venécia Friul Piemonte Langhe Apeninos da Liguria c da Toscana Abruzos (carvalho, faia) Monte Gargano Istria Cilento (pinheiro) Sila (pinheiro) Macicos provencais
129. Catalunha (carvalho. roble, bétula, pinheiro) 130. Cordilheira Cantábrica 131. Serras Centráis 132. Montes de Toledo 133. Algarve (pinheiro) 134. Serra Nevada 135. Campo de Montiel-Alcaraz 136. Serranía de Cuenca (pinheiro) 137. Maestrazgo 138. Florestas de Tortosa 139. Baleares (pinheiro) 140. Sardenha 141. Córsega 142. Sicilia Oriental
índice dos antigos macicos florestais, correspondentes aos algarismos negros em itálico. A data entre paréntesis é a da referéncia mais antiga. 1. Stavelot-Malmédy (648?) 2- Spire (653) 3. Corbie (657/661)
10. Baviera (748) 11. Yveline (768) 12. Kremsmünsler
5'. 6. 7. 8. 9.
»• ’t 15. 1617.
Corneflles (697/698) Jumiéges Rouvray (717) Prüm (720) Wissembourg (713/742)
Saint Riquier (797/800) Kammerforst (s. IX) Berengeresforst (830) Prendeignes (838)
Segundo Ch. Higounet, «Les Foréts de l’Europe occidentale du V* siécle á l’an mil», XIII Settimana di Studio del Centro Italiano di Studi sull’A lto Medio Evo, 1965, Presso la Sede del Centro, Espoleto, 1966, pp. 398-399.
A floresta ñas Ilhas Británicas A cobertura florestal da Inglaterra anglo-saxónica é melhor conhecida. Com efeito, uma equipa de arqueólogos compilou todas as fontes escritas relativamente ao período que vai de 410 a 871. Neste período, o Sudeste era muito arborizado: florestas espessas cobriam o Weald (carvalhos e bétulas), o Kent, o Sussex e ainda o Essex e o Est-Anglie, de tal modo que a regiáo de Londres, mais ou menos romanizada, estava cercada de perto pelas árvores. Havia outros grandes macizos florestais um pouco por toda a parte, nos Midlands, na cadeia penina... O Domesday Book (fim do século XI) constituí um testemunho do náo recuo das florestas no tempo de Guilherme o Conquistador: as Ilhas Británicas mantiveram-se du rante toda a Idade Média e mesmo para além déla, como «regiáo de agricultura pioneira, de povoamento disperso». A floresta ñas regides mediterránicas Nestas regioes, a floresta é frágil porque se encontra no seu limite climático. A atmosfera seca e a deteriorado dos solos tomam a sua reconstituido bastante aleatória. Por outro lado, as civiliza37
(des antigas tinham sido «grandes destruidoras de bosques» para as necessidades de aquecimento e da marinha e também devido ao nomadismo pastoral. A partir do fim do século VII, a instalagáo dos Mugulmanos ñas costas meridionais do Mediterráneo duplicou as necessidades do Magrebe, ao mesmo tempo que as margens setentrionais ficavam frequentemente entregues a uma exploragáo desordenada e submetidas ás idas e vindas de guerreiros devasta dores. Na Septimánia e na Marca de Espanha, os anos de combates entre francos e sarracenos, no decorrer do século VIII e no comego do século seguinte, transformaran! — em muitos casos defi nitivamente — muitos bosques e até térras de cultivo em baldíos desertos. Entretanto, no limite sudeste da Gália, a urbanizagáo de fensiva que aqui se estabeleceu foi um factor de desarborizagáo, na medida em que as cidades tiveram de explorar a fundo os bosques e as térras das suas vizinhangas ¿mediatas. Mas os recursos florestais da Espanha pareciam ter resistido melhor. O Sudoeste e o Algarve continuavam a ser um imenso pinhal, enquanto a oeste das cadeias andaluzas se encontravam ainda bosques de castanheiros e sobreiros. Em Itália, os diversos senhores do país, mesmo os Lombardos, tinham tentado em váo impedir as populagóes de abusar dos bos ques e das pastagens. No entanto, alguns documentos dos séculos XI e X II mencionam florestas hoje desaparecidas; assim, o Piemonte continuava a ser arborizado, tal como os Alpes, cujas duas vertentes «se estendiam sob um espesso manto florestal», e os Apeninos. Considerada no seu conjunto, a Europa Ocidental da primeira Idade Média «era ainda um mundo da floresta» (Ch. Higounet). O que chama a atengáo é a oposigáo climática e vegetal que em geral correspondía á divisáo das civilizagoes: a Europa da floresta degradada era a mais romanizada. «Sem dúvida que, na queda das forgas vivas do continente, o futuro imediato náo pertencia ao mundo da floresta oceánica, que, através déla, conservava uma das fontes essenciais á sua vida material.» (Ch. Higounet). De qualquer modo, para conhecer ñas suas linhas gerais a economia florestal dos séculos obscuros, devemos voltar-nos preferencialmente para a Germánia e para a parte setentrional da antiga Gália.
A economia florestal Os documentos escritos (leis bárbaras, alguns diplomas, polípti cos) sáo raros, mas náo deixam de demonstrar que, para os inva sores, «a floresta é essencialmente um ramo da economia rural», e um ramo de primeira ordem. As regióes francas distinguem a floresta próxima ( = colonizada) e a floresta distante ( = que se mantém no estado selvagem). Sobre 38
esta última, limitamo-nos a dizer que compreendia os imensos maci zos florestais — numerosos sobretudo na Germánia — e que apenas servia para a caga. Em algumas florestas próximas, em particular ñas montanhas da Germánia, muito tempo depois dos anos 400, ainda subsistía a economia pré-histórica do arroteamento e da cultura na floresta ( Waldfeldbau): as árvores sao cortadas, as folhas e as ervas sáo dadas aos animais; eventualmente, fabrica-se carvao de ma deira, mas o mais frequente é queimar os ramos e misturar as cinzas com a térra. Depois destes preparativos, procede-se á sementeira e ao cultivo durante dois ou trés anos. Era esta a situagáo ñas regióes «colonizadas» das Ardenas, da Floresta Negra, do Bóhmerwald e em diversas planicies alemas. As restantes florestas próximas, na Germánia e sobretudo na Gália, eram objecto de uma exploragáo menos atrasada. A sua prin cipal utilizagáo é demonstrada claramente pelo facto de, por náo se saber «medir» uma extensáo arborizada, ainda que média, se proceder á sua medigáo em fungáo do número de porcos que esta podia engordar. Sabia-se ordenar os cortes de bosques, explorados a curto prazo, em matas de corte simples (concidae) incluidas nos dominios agrícolas, e que constituíam uma fonte de lucro para o proprietário que vendía aquilo que náo queimava aos habitantes das proximidades: a lenha e a madeira tém, nesta civilizagáo da floresta, uma importáncia que só difícilmente podemos imaginar. Mas o facto de se «medir» uma floresta segundo o número de porcos que para ela podem ser enviados prova que, para os contemporá neos, o papel da floresta como terreno de pastagem era primordial. Os direitos de utilizagáo florestal, que iriam desempenhar um papel muito importante na economia rural até aos tempos modernos, desenvolveram-se portanto depois das invasóes bárbaras. Geralmente, os grandes senhores dividiam as suas florestas acessíveis em duas secgóes: a reserva em exploragáo directa e o manse tributário, sendo este último afectado, mediante pagamento de rendas, ao direito de utilizagáo dos foreiros. A lei sálica e a lei dos Burgúndios referem-se claramente a estes direitos, quando a primeira precisa em que condigóes cada um poderá cortar madeira e quando a segunda indica quais sáo as espécies a proteger. Neste último caso, faz-se alusáo a todas as árvores que produzem frutos próprios para ali mentar o gado (carvalhos, faias...) e os homens (árvores frutíferas selvagens que, além disso, serviam para enxertos e povoamento dos pomares).
Culturas e rendimentos A agricultura da Alta Idade Média é uma agricultura de clareiras naturais ou artificiáis. O Ocidente é um «océano de terrenos incul 39
tos» juncado de pequeñas ilhas cultivadas (Ph. Wolff), muitas vezes afastadas uma das outras. Mesmo ñas regiSes de solo rico, os bos ques e as charnecas circundavam as térras cultivadas, estendendo-se por superficies muito maiores do que as exigidas pelas necessidades do senhor e dos habitantes. Mesmo nos dominios densamente povoados — para a época — da abadia de Saint-Germain-des-Prés, nos arredores de Paris, a presenta da árvore era quase oprimente. A utensilagem, geralmente em madeira, mantém-se mediocre mente adaptada á maior parte das regiSes náo mediterráneas. Náo é raro que o homem abra ainda com a enxada buracos onde depSe a semente. No entanto, a prática da lavra é, como na Antiguidade, o processo «normal». «Lavrar» é sempre referido nos textos como arare; o instrumento é portanto um instrumento de tracsáo, desig nado pelos termos aratrum ou carruca (esta última palavra significa apenas que o instrumento é puxado por animais). Trata-se do arado de relha, sem dúvida em madeira (mas os foreiros lombardos deviam ao dominus relhas metálicas). O trabalho deste arado, bem conhecido dos Romanos, é um trabalho simétrico que corta a térra mas náo a vira. Fácil de manejar e exigindo apenas uma atrelagem reduzida, o arado parece ter conhecido, no melhor dos casos, no tempo dos Carolíngios, um aperfeipoamento correspondente ao emprego de um jogo de rodas dianteiro que permitía abrir «regos» menos superficiais. Mas, com aperfeipoamento ou náo, o arado é mediterránico pela sua origem: é adequado para os solos leves e com pequeños saibros que basta arranhar; é muito menos adequado para as planicies muitas ve zes argilosas da Europa do Noroeste, onde é preciso abrir a térra. P5e-se a questáo de saber se, entre o século VIII e o fim do século IX, o nivel técnico náo teria melhorado. A docum entado é particularmente indigente e a arqueologia agrária está ainda pouco avanzada ñas regioes carolingias, as únicas em relasáo ás quais dispomos de textos escritos grabas ao primeiro renascimento cul tural da Idade Média. Mas o desenvolvimento dos campos depois do ano 1000 seria absolutamente incompreensível se náo decorresse de um «sucesso agrícola» (F. Braudel), que por certo se sitúa entre o século VIII e o ano 1000. As regras monásticas demonstram que o páo era o ali mento fundamental dos monges, sendo o uso da carne muito limitado. Mas trata-se de um «meio ritualizado» e os empreendimentos agrícolas da Igreja deviam contrastar com os dos laicos, pois, nos grandes dominios destes últimos, a parte dos recursos que se esperavam da floresta e das pastagens era mais forte: a capitular De villis ordena aos agentes dos fisci que defendam os animais e as madeiras como extensáo das culturas (cometo do século IX), e o 40
fisco carolíngio de Annapes é sobretudo uma exploragáo pastoral (as reservas de carne de porco fumada e de queijos ocupam um lugar maior do que os stocks de cereais). Daqui pode deduzir-se que os grandes laicos comiam mais produtos da criagáo de gado do que produtos cerealíferos. E os cam poneses? Parece que a sua alim entado consistía, por um lado, em legumes, fornecidos pelas suas hortas, e em frutos (frutos selvagens da floresta próxima e frutos das árvores enxertadas, plantadas nos quintáis contiguos ás suas casas) e, por outro lado, em «trigos», ou seja, em diversos cereais. Durante o período bárbaro, os rurais comiam principalmente papas, pois cultivavam sobretudo cereais inferiores, que em alguns casos náo serviam para fazer pao (centeio, espelta ñas regioes do Norte; cardo, sorgo ñas do Sul). Os progres sos técnicos alcanzados entre os séculos VIII e X, nomea damente uma certa difusáo do moinho de água ñas regioes ricas, acompanharam o desenvolvimento das culturas de ce reais superiores e utilizáveis para fazer pao, como o trigo. Náo parece, no entanto, que o uso do páo se tenha difun dido nos meios rurais mais humildes antes do século XI. No que se refere á carne, em geral é impossível saber que parte da alim entado camponesa de entáo ela satisfazia. A arqueologia revela a existencia de contrastes geográficos entre os terrenos de cultivo. Ñas regióes primitivas («Países Baixos» e Alemanha do Noroeste), a alim entado carnívora era importante porque o espago ocupado pela cultura era muito reduzido: vivia-se sobretudo do que se apanhava, da caga e da c ria d o de gado. Nou tros locáis, pelo contrário, o espago cultivado era menos reduzido; mesmo ñas regióes onde, desde o fim do Império Romano, se veri ficara «uma certa re d u d o das culturas» (G. Duby) e onde os cam pos de pequeñas dimensóes se disseminavam por um vasto espago inculto. Na Provenga, por exemplo, onde o habitat rural se tinha aglomerado, porque a actividade pastoral se desenvolvía em detri mento das culturas; por melhores razoes ainda, em algumas regióes privilegiadas (Máconnais, Ile-de-France...), constituidas por vastas clareiras agrícolas, onde a área cultivada era nítidamente superior á das extensóes incultas. De qualquer modo, «em toda a parte a criagáo de gado tinha o seu lugar na exploragáo», «em toda a parte se cultivavam cereais» (G. Duby) e, quase em toda a parte, havia campos permanentes que obrigavam a que se renovasse periódicamente a fertilidade do solo: através da rotagáo das culturas, do recurso ao estrume e da lavoura. A rotando trienal parece progredir, ñas regióes ricas, desde o tempo das Carolíngios. Pelo menos na reserva dos grandes dominios, as sementeiras da Primavera (sobretudo, aveia, cevada, por vezes leguminosas) sucediam-se ás de Invernó (trigo, centeio, espelta, aveia) e precediam o pousio. 41
Mas as superficies só sao apresentadas no inventário dos dominios da abadia de Saint-Amand: a térra indominicata era dividida em trés partes iguais, pelo que é indiscutível aqui a ro ta d o trienal «clássica» (ficando improdutivo em cada ano apenas um ter?o das térras aráveis). Esta parece também certa nos dominios do rico centro da Bacia Pari siense: as corveias exigidas aos foreiros «organizavam-se em fu n d o de duas esta?6es equilibradas, uma de hivernage, a outra de trémois». Mas, noutros locáis, o pousio estendia-se normalmente a mais de um ter?o das térras: no segundo ano, apenas se semeava de «trigo» de Primavera uma parte das térras anteriormente ocupadas com «trigo» de Invernó. E podia mesmo acontecer que o pousio se estendesse a dois tergos dos campos: ñas possessóes da abadia flamenga de Saint-Pierre-au-Mont-Blandain, as térras só eram semeadas uma vez em cada trés anos. Fica, portanto, provado que «a maior parte dos agricultores daquele tempo sentia a necessidade de conceder longos repousos á térra» enquanto «a fome os acossava» (G. Duby). No que diz respeito á jertilizagáo do solo, p5e-se a questáo de saber se, durante os períodos de repouso da térra, os campos ficavam destinados apenas á pastagem do gado, concorrendo este para que o solo recuperasse a fertilidade. A resposta só é afirmativa no que se refere á parte setentrional da Europa carolíngia. De qualquer modo, o gado grosso existia entáo em número reduzido. Os textos deixam entrever que as quantidades de estrume utilizadas nos campos eram irrisorias. Os campos de feno eram reduzidos, a palha era curta, pelo que a estabulado era muito limitada. A maior parte das insuficiencias da agricultura provinham da fraqueza da fertilizado. No que diz respeito á lavra, eram sem dúvida raros os dominios que, como os das grandes abadias da Bacia Parisiense, praticavam «este acto regenerador» trés vezes por ano: duas lavras para pre parar as sementeiras de Invernó depois do pousio, outra antes das sementeiras da Primavera. E, como o arado nao é um instrumento satisfatório para as térras pesadas, era preciso reforjar a lavra recorrendo periódicamente a trabalhadores munidos de ferramentas manuais: os da abadia de Werden cavavam todos os anos uma determinada extensáo dos campos da reserva antes da passagem do arado. Os trabalhos manuais pesados impostos aos foreiros carolíngios eram quase sempre aplicados aos campos. A «lavra muito pouco eficaz» era completada por uma «verdadeira jardinagem». A agricultura dos «séculos obscuros» era, portanto, uma agricul tura muito extensiva, mal equipada, mal associada á c ria d o de gado, também ela numéricamente insuficiente. Exigia, ao mesmo tempo, uma máo-de-obra «superabundante» e vastos espatos livres para o pousio. Finalmente, os seus rendimentos eram incrivelmente baixos. 42
No que respeita á Idade Média, é impossível calcular a colheita por unidade de superficie. Pode conhecer-se o rendimento (yieíd ratió), comparando, num mesmo documento, a colheita e o cálculo das sementes para a próxima, ou, melhor aínda, mas este caso é mais raro, a colheita e a quantidade de graos semeados ante riormente para a obter. É, aliás, este o processo seguido pelos autores clássicos para apresentar as taxas de rendimento: estas variam muito de um autor para outro, no que se refere a cereais panificáveis (4 graos para 1 para Columelle, enquanto outros indicam taxas que váo de 8, 10, 15 a 100 para 1). Os únicos dados que podem esclarecer o problema dos rendimentos no decorrer da Alta Idade Média provém de um documento de 810-820, os Brevium Exempla, que descrevem quatro fiscos reais do Norte: Annapes, Cysoing, Somain e Vitry-en-Artois. Os stocks de cereais (incluindo, por vezes, o remanescente do ano anterior) sáo indicados, bem como o que foi posto de lado para semente e o que pertence ao rei. Os cálculos sáo delicados e náo há perfeito acordo entre os historiadores sobre o seu significado (G. Duby, Slicher Van Bath...). Eis os resultados prováveis para o fisco de An napes: espelta: 1,8 para 1, trigo: 1,7 para 1, cevada: 1,6 (mas, em Somain: 2,2), centeio: 1 (mas, em Cysoing: 1,6), aveia: 1 para 1 (?). Média geral: 1,6 para 1. Este rendimento médio táo baixo provirá de uma colheita particularmente má, de uma inexactidáo do documento (Slicher Van Bath) ou será realmente a expressáo da realidade de entáo (G. Duby)? É certo que as taxas de 1,6 a 1,8 para 1, que se encontram em Annapes, estáo de acordo com alguns outros índices, um quase contemporáneo (em Maisons, dependéncia de Saint-Germain-des-Prés, os monges descontavam em cereais um rendimento líquido próximo de 1,6 para 1), outro posterior (em 905-906, um dominio dependente de Santa-Giulia de Brescia obteve um rendi mento de 1,7 para 1). Esta fraquíssima produtividade da térra explica a obsessao da carestía, característica principal da mentalidade económica da época. A vinha A vinha, que no tempo dos Romanos conquistara vastos sectores do Ocidente náo mediterránico, foi objecto de todos os cuidados possíveis, nomeadamente na regiáo franca. As vinhas da antiga Gália sáo agora admiravelmente conhecidas. R. Dion demonstrou que «a viticultura de prestigio (sobreviveu) á 43
ruina do mundo antigo». O «respeito quase religioso» que a vinha inspirava aos antigos manteve-se. «Nascida da irradiado do comér cio romano, a delicada viticultura das regióes extramediterránicas da Gália náo sogobrou com o Império como outras indústrias de luxo, por exemplo a cerámica fina, sua contemporánea em terri torio gaulés, para a qual era também necessária a proximidade das vias navegáveis e a seguranga dos transportes de grande distáncia... Na época em que os grandes edificios das cidades greco-romanas se transformaram em ruinas que náo voltaram a ser reconstruidas, as vinhas, ñas suas proximidades, continuaram a viver.» Assim aconteceu em Tréves, em Metz, em Reims, em Paris, em Bordéus... Nestes casos, tratava-se de cidades episcopais. O bispo náo se tinha tornado apenas o protector e guia dos habitantes da cidade; perante a demasiado frequente ausencia de poder civil, este tornara-se também «primeiro viticultor»: a vinha continua a ser «um ornamento necessário a qualquer existencia de alta linhagem e, por isso mesmo, uma das expressóes sensíveis de toda a dignidade social». Existem diversos textos, dispersos entre os séculos V e XV, que representam o bispo, em todas as regióes ou quase, «fiel ao costume romano, plantando vinhas, dirigindo ele próprio a sua exploragáo e tirando partido do produto». Havia, portanto, desde os séculos obscuros, uma viticultura episcopal e a acgáo dos bispos «reforgou e fixou durante séculos esta íntima associagáo da cidade e da vinha, que já se manifestava em volta das metrópoles do Baixo Império, e que se tornaría uma das características origináis da paisa gem humanizada da antiga Franga» (R. Dion). Houve, no entanto, outros «conservadores da viticultura de élite», outros elementos do clero e também laicos de grande linha gem, que mantiveram ou criaram mesmo vinhas, cujos produtos lhes eram destinados, assim como aos que os rodeavam e também, ou talvez sobretudo, aos seus visitantes ilustres. Estes «conserva dores» chegaram mesmo a desafiar «as proibigóes do clima», plan tando vides ñas provincias setentrionais. Houve, por exemplo, a viticultura monástica: mais ainda do que no caso dos bispos, era importante que os monges «náo tivessem falta de vinho e que este fosse de boa qualidade». A regra autorizava-os a beber uma certa quantidade de vinho e, sobretudo, impunha-lhes uma fungáo social, a hospitalitas, encargo pesado mas que podia atrair sobre o mosteiro as doagóes dos ricos e os favores dos poderosos. Por isso, desde os tempos carolíngios, as abadias nórdicas, sobretudo flamengas e brabantinas, tinham adquirido possessóes ñas vinhas do Laonnais, do Soissonais ou ainda dos vales do Moselle, do Reno e do Ahr. Apesar disto, e devido ás dificuldades de circulagáo, ou mesmo aos seus perigos sempre possíveis, as abadias setentrionais tentavam, como as das regióes mais favorecidas, cultivar a vinha o mais perto possível dos seus limites, para poderem dispor de um mínimo 44
de vinho, ainda que muito mediocre, verificando-se tal caso na Picardia, na Flandres e até mesmo na Bretanha do Norte e em Inglaterra. A viticultura principesca, cujo papel foi importante desde a Alta Idade Média, seguiu o exemplo dado pela Igreja: até ao século XVII, a vinha manteve-se «ligada ao castelo» e a todas as moradas dos grandes, táo longe quanto possível em direcgáo ao norte (').
O dominio do espago As estradas terrestres É costume afirmar-se que, entre o século V e o século X, as estradas terrestres foram deixadas num estado lamentável, que ficaram fora de uso (em todos os sentidos da expressáo) e até que muitas délas desapareceram. No entanto, isto nao é certo e seria arriscado pintar demasiado negro o quadro destas estradas, que se pode deduzir de alguns testemunhos. Evidentemente que para Cassiodoro, que escrevia em 535, no fim do belo período da Itália ostrogoda, «a via Flaminienne está sulcada pelos riachos que a atravessam; juntai as margens opostas que ficaram separadas pelas quedas abundantes das pontes; libertai os limites das pragas das altas florestas». Alguns textos apresentam um tom análogo no que respeita á Gália. Assim, a Crónica de Lambert de Ardres assinala a descoberta, a norte de Saint-Omer, por volta de 1050, de uma calcada antiga construida em pedras duras e sobre a qual tudo estava esquecido, inclusive a sua própria existéncia (*). Seria váo procurar as provas de criagáo de estradas pelos con quistadores bárbaros. O facto de, entre 350 e 470, se terem verifi cado grandes modificagoes do tragado das estradas numa das safdas de Liáo para leste, só pode ser explicado através do abandono da antiga Lugdunum (privada de água devido á destruigáo dos aquedutos) em proveito de um lugar num vale. Por conseguinte, a criagáo da nova encruzilhada de estradas de Liáo é uma consequéncia da crise que assinalou o fim dos tempos antigos e náo um sinal do génio bárbaro.
(') Existia também uma viticultura camponesa, conforme é demonstrado, por exemplo, através da leitura do políptico de Irminon. (’) Será isto uma prova do abandono das estradas romanas depois das grandes invasoes? Esta calcada nao devia ter sido abandonada senao pouco mais de um século antes, depois das incursoes normandas, caso contrário nao teria bastado a passagem de um arado para a descobrir.
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Náo é, no entanto, certo que as vias romanas tenham sido abandonadas no tempo dos Merovíngios. Apesar de alguns marcos milenários terem sido utilizados como sarcófagos, nada prova que as autoridades locáis náo tivessem garantido pelo menos uma manutengáo sumária: há dois textos de lei que impóem a manu te n g o das pontes e estradas «segundo os antigos costumes», devendo ser suprimidas as taxas de carga e as portagens sempre que náo fossem justificadas por trabalhos regulares. Letra-morta, perguntar-se-á, como a maior parte da legislagáo franca? Náo é certo, visto que a distribuido dos aderemos prova que, nos séculos VI e VII, a circulagáo fora mantida ao longo das estradas romanas. Isto acontece com as fivelas de estilo aquitánio, com as argolas de ferro embutido das oficinas do Nordeste... E aquilo que se sabe sobre o Nordeste da Franga no tempo dos Carolíngios demonstra que, aqui, a rede das vias antigas foi mantida; mais tarde ainda, no tempo das pilhagens normandas, os aglomerados e abadias que foram fortificados situavam-se geralmente ao longo da rede dessas estradas. Apesar da desorganizagáo — relativa — dos «servigos públicos», que se seguiu ás invasóes normandas, em fins do século X, a rede mantinha-se num estado razoável. Em 991, o monge Richer, que de si mesmo diz ser cavaleiro inexperiente e pouco habituado a viagens, podia fazer etapas diárias de 50 ou mesmo 70 quilómetros. No mesmo período, Sigerico, arcebispo da Cantuária, atravessava a Franga sem incidentes, seguindo os tragados romanos. Deste modo, portanto, a via antiga manteve-se, mesmo depois do ano 1000, uma realidade viva em muitas regióes. Uma realidade cuja posse era de tal modo preciosa que, pouco depois de 1015, vemos Eudes, conde de Blois, avangar a fronteira ocidental das suas possessóes da regiáo de Champagne um pouco para além da velha via Sens-Meaux, a fim de constituir uma «marca» contra os Capetos. Por volta de 1030, era ainda perigoso para os carros abandonar as vias romanas por estreitos caminhos que eram feitos apenas para peóes e cavaleiros. Nesta data, com efeito, a abadia de Saint-Martial de Limoges desejava com prar uma mesa de altar em mármore esculpido, orgulho da produgáo de Narbonne. Mas náo havia qualquer estrada an tiga que ligasse mais ou menos directamente Narbonne a Li moges e o carreteiro dos monges tentou encurtar caminho, abandonando a velha estrada Liáo-Bordéus, perto de Rodez. Encontrou-se bloqueado em Capdenac e foi preciso que o senhor da regiáo abatesse um pedago de muralha, porque a única estrada atravessava o castrum sob uma porta dema siado estreita. Mais adiante, a viatura caiu num precipicio. Felizmente, um milagre de Sáo Marcial arrancou dele a viatura e o seu conteúdo (J. Hubert). 46
Os transportes por estrada náo beneficiaram de melhoramentos sensíveis no decorrer da Alta Idade Média. O carro de bois (cf. a anedota táo gasta sobre as viagens dos «reis preguifosos»!) parece ser o mais usado, mas a sua capacidade era variável visto que podia ser puxado por um único boi, por uma parelha ou por mais. O termo carraca, que é vago e pode designar ao mesmo tempo a pa relha e a viatura, parece referir-se tanto aos carros de bois como ás carrosas puxadas por cavalos. De qualquer modo, os processos de tracgáo antiga mantém-se em uso. Para os bovinos, os antigos tinham legado a canga de cemelha: os dois animais ficavam unidos sob o pescogo á altura das espáduas. Esta canga de cernelha, a única ainda utilizada no tempo dos Carolíngios, continuou em uso até ao século X I ou século XII. Para o cavalo, a atrelagem antiga era ainda mais incó moda: uma correia flexível que rodeava o pescofo do animal; quando queria puxar, este era obrigado, para evitar o estrangulamento, a atirar a cabera para a frente e a abaular a garupa. Além disso, ignorava-se a atrelagem em flecha e colocavam-se os cavalos lateralmente (na quadriga, por exemplo): os cavalos puxavam de lado e a sua forga era portanto mal utilizada. Estes processos náo permitiam deslocar cargas pesadas O . O homem da primeira Idade Média prefería, portanto, quando transportava pouca carga, utilizar o «animal de carga». As pontes Sidónio Apolinário afirma que, no seu tempo, se suspirava pe rante a recordafáo «das pontes em arco, obras dos antigos». E, para Gregório de Tours, as pontes ainda utilizáveis no século VI teriam sido feitas de vigas mal unidas, que ás vezes eram substitui das por pontes de barcos muito instáveis quando soprava o vento. Parece ser certo que, no tempo dos Merovíngios e de outros reis bárbaros, as pontes romanas desapareceram, o que obrigou a que se recorresse sobretudo ao uso de vaus e barcadas. Mas continuaría por demonstrar que os soberanos francos, por exemplo, tivessem sido completamente insensíveis á degrada?ao do patrimonio público: citámos já dois actos legislativos que recordavam a necessidade de conservar as estradas e as pontes. Também uma capitular de Carlos Magno ordena que, se as doze pontes que existem sobre o Sena tiverem um dia de ser reconstrui das, deveráo sé-lo «nos mesmos locáis». Diversas pontes da bacia (‘) Na maior parte dos casos, apenas algumas centenas de quilos — e isto explica também que os homens dos séculos obscuros tenham sido mais sensiveis do que seria de esperar ao mau estado das vias e aos atoleiros.
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do Sena, nomeadamente as de Antuérpia, de Charenton, de Paris (no total de duas, uma lanzada sobre cada brago do rio), de Pitres, continuavam táo sólidas que puderam servir aos Francos como pontos de apoio fortificados, na sua resistencia contra os Nor mandos. Estas breves indicagóes sáo pelo menos suficientes para náo ser lícito afirmar que, no fim da primeira Idade Média, tal como nos séculos anteriores, havia falta de pontes ou que estas ameagavam ruir. Em 991, Richer, monge de Saint-Remi de Reims, viajou a cavalo, acompanhado por um seu criado, de Reims até Chartres. Depois de se terem perdido nos bosques e de terem sofrido as agruras de chuvas diluvianas, os dois homens chegaram a Meaux: a ponte sobre o Marne «estava sulcada por buracos táo grandes e táo numerosos que aqueles que tinham ligagoes com os da cidade tinham tido dificuldade em a atravessar durante o dia». Náo existe nada de decisivo a concluir desta recordagáo de Richer, visto que o fim da citagáo leva a pensar que esta ponte náo estava assim em táo mau estado desde há algum tempo. A dúvida subsiste. Mas o próprio Richer testemunha que na altura havia pontes em Paris e em Verdun.
As vias jluviais O rio permitía muitas vezes evitar o risco de inseguranga que parecía ser muito frequente ñas estradas. Sáo inúmeros os testemunhos dessa inseguranga. Um pouco por toda a parte, o «estrangeiro» era mal visto pelos lavradores locáis, que, tal como os ladrdes das estradas, náo hesitavam, quando chegava a altura, de o despojar do que levava. Por este motivo (e também por outros), tanto os pobres — como aquele que nos é apresentado, numa Vida de santo, conduzindo o seu burro carregado de sal de Orleáes para Paris — como os ricos mercadores, escolhiam as cidades para viver durante o Invernó, uma vez que o Veráo se apresentava menos propicio para emboscadas. Daqui resultava também, em qualquer estagao, a necessidade de, sempre que possível, se viajar em grupo e andar armado. Os rios superaram nítidamente as estradas, como vias de circula gáo económica, e náo apenas para os produtos mais comuns. É, no entanto, evidente que estes constituíam a maior parte dos carregamentos. Gregorio de Tours conta como um mercador da sua cidade se dirigiu a Orleáes para comprar vinho; depois de expedir esse vinho por barco de Orleáes para Tours, o mercador e os seus dois escravos decidiram voltar a cavalo para a sua cidade. 48
Limitemo-nos, a título de exemplo, á bacia do Sena. Tal como os seus principáis afluentes, o rio era indiscutivelmente, pelo menos nos séculos IX e X, mantido em condigdes de ser cruzado «por uma grande navegado» (R. Doehaerd), e a melhor prova deste facto é a facilidade com que as frotas normandas, que por vezes incluíam cem ou mesmo mais de duzentos navios, puderam penetrar bruscamente na bacia (poder-se-ia dizer o mesmo da bacia do Loire e de outras ainda). E, a despeito da indigencia das fontes, as mengoes da navegado no Sena sáo frequentes. Sáo testemunhos as Gesta dos abades de Fontenelle (Saint-Wandrille) que aludem á abundancia dos barcos que cruzam o rio, tendo os grandes dominios vizinhos á sua disposid°> de forma corrente, uma ou mais em barcares que serviam tanto para o transporte de mercadorias como para a guerra. Isto acontecía no século IX. E Nithard conta que, em 841, as tropas de Carlos o Calvo, que regressavam apressadamente da zona do Loire, puderam atravessar o Sena em Abril, em 28 barcos vindos de Ruáo. Em Setembro, voltaram a atravessar o rio, desta vez usando 20 navios ancora dos em Saint-Denis. No século X, o rio e os seus afluentes continuavam a ser muito frequentados. Em 925, os soldados de Roberto o Forte, em luta contra os Normandos, entáo instalados definitivamente na «Normandia», esperavam com ansiedade os barcos que vinham de Paris. Em 942, Hugo o Grande apoderou-se, no dizer de Flodoard, dos navios que cruzavam o Oise. Tratava-se, portanto, de uma bacia fluvial muito frequentada: dado o seu número elevado, os barcos exigiam instalagdes especiáis para a sua m anutendo e utilizado. Sem falar dos estaleiros de construgáo, que náo podiam deixar de existir ñas margens dos rios, aquetas in stalares eram centros «portuários», ou, por outras palavras, embarcadouros, forzosamente numerosos. E alguns ti nham tais dimensóes que, junto ao Sena, os Normandos os utilizaram para passar o Invernó. Resumindo, as vias aquáticas apresentavam duas vantagens. Em primeiro lugar, a vantagem de seguranza: Gregório de Tours conta que um mercador de Tréves, que trazia de Metz um carregamento de sal, pode dormir no barco durante a descida do Moselle entre as duas cidades. A segunda vantagem era a de os navios fluviais, mesmo de fraca tonelagem, terem uma capacidade muito superior á dos carros de tracgáo animal, de atrelagem feita á antiga. É daqui que resulta a m anutendo de uma certa actividade mercantil ñas cidades romanas melhor situadas ao longo dos cursos de água, como Colónia, Metz, Verdun, Amiens, Ruáo, Paris, Nantes, Bor déus... É certo que a vantagem da seguranza desapareceu du rante algum tempo, particularmente na segunda metade do século IX, em consequéncia das incursdes normandas que avangaram bastante no sentido da nascente dos rios e dos seus afluentes (cf. as atribulagóes de caga de Saint Philibert). Mas isto representou apenas um paréntesis e o século X depressa veio reconstituir um mínimo de seguranga. 49
Pouco se sabe sobre o aspecto e tonelagem dos navios fluviais utilizados durante a primeira Idade Média. Em fináis do século VI, teria existido uma em barcado comprida e estreita, o linter, movida a remos ou á vela e pouco estável. Apenas uma coisa é certa: a distingáo entre navios de mar e «fragatas», que para nós é habitual, náo existia nem viria a existir durante toda a Idade Média. Todos os tipos eram de fraca tonelagem e as embarcagóes utilizadas no mar podiam subir os rios.
A s vias marítimas Na ausencia de progressos técnicos e enquanto se esperava que — mais tarde — os Escandinavos deixassem o Ocidente tirar proveito do seu grande avanzo em matéria naval, tanto no Mediterráneo como ñas costas atlánticas, continuou a utilizar-se os navios de tipo romano. Na Gália Ocidental, conhecem-se duas embarcafóes: a scapha, navio costeiro mencionado por Gregório de Tours como utilizado no comércio com a Espanha, e a barca, na vio oceánico que ligava a Gália ás costas do mar da Irlanda. Na «Bretanha», usavam-se outros tipos, derivados talvez dos modelos romanos, como a navis longua. Na Irlanda, era já muito antigo o curragh: feito de pele de vaca montada sobre um cavemame de vime e mate, podia transportar cerca de vinte homens. Depois, a partir de mais ou menos 550, os Irlandeses comegaram a construir também embar c a r e s de madeira, sem dúvida de diversos tipos se considerarmos a coexistencia de diversos termos (barca, navícula, navis longua...). Para o conhecimento dos navios saxónicos, dispomos da admirável descoberta de Sutton Hoo, embora se trate, neste caso, de um antigo tipo báltico sem velas e pouco manejável no alto mar. De facto, os testemunhos escritos — neste caso mais seguros do que a arqueología — demonstram que, no século VIII, tal como no século V, os barcos saxónicos dispunham de uma vela: Béde fala de navis longua, sem que se saiba se se trata de um modelo próximo do seu homónimo celta. Na ilha de Gotland, encontram-se, nos anos 700, imagens de navios semelhantes aos knorres (navios de comércio) vikings dos séculos seguintes e que poderiam bem ser idénticos aos saxónicos. A menos que os barcos saxónicos tenham sido aparentados aos navios dos Frisoes, tal como os apresenta a moeda de Dorestad do tempo de Carlos Magno. E parece ser possível opor os bar cos do Báltico e do mar do Norte, construidos com rebites, aos do Atlántico, construidos com encaixes quadrados. Ha via, portanto, uma grande variedade de modelos e uma e s p e c i a l i z a d o mais ou menos forte de cada um deles. Entre os navios, mercantes ou náo, do fim da primeira Idade Média, mencionamos evidentemente os dos Vikings. No auge dos 50
assaltos dinamarqueses ao Nordeste inglés, comerciantes e guerreiros viajam juntos e, muitas vezes, muito longe. Os Vikings noruegueses que se instalaram em Noirmoutier e no estuário do Loire eram, além de larápios, mercadores ciosos do controlo do trans porte marítimo do vinho e do sal (as primeiras marinhas de sal que se encontram quando se vem do Norte sáo precisamente as do baixo Loire e de Noirmoutier). Entretanto, os Dinamarqueses que se instalaram um pouco mais tarde, e neste caso definitivamente, no baixo Sena, viriam a transíormar-se rápidamente em comer ciantes. Ora, devido a um acaso excepcional, as diversas categorias de barcos «normandos» sáo notavelmente conhecidas, sobretudo porque foram exumados restos consideráveis nos tumuli reais. Foi possível restaurá-los, ou mesmo fazer réplicas suas exactas e as únicas incertezas dizem respeito á vela e aparelhamentos feitos de téxteis putrescíveis que, portanto, desapareceram para sempre. O tipo em uso desde os séculos VII e VIII, constante mente diversificado e posteriormente mslhorado, é uma grande barca de quilha, náo pontiaguda. O casco, genero samente bojudo, prolongava-se tanto para a frente como para trás por um talha-mar que aumentava a sua estabilidade. A vela quadrangular em diagonal era suportada por um mastro. Os remos garantiam a propulsáo quando das manobras nos portos. A estibordo, havia um leme (remo de orientagáo cada vez mais aperfeigoado). A carga e a velocidade eram variáveis, tal como o comprimento. O de Knut o Grande tinha sessenta bancos, medindo portanto cerca de 80 m de comprimento. Mas trata-se do maior langskip (barco longo) conhecido. Os navios de comércio (kaupskip) eram mais curtos (20 a 25 m de comprimento) e mais ventrudos. Deu-se muitas vezes o nome de drakkar aos navios «normandos», pelo menos aos utilizados pelos invasores, sem distingáo de tipo, por causa da cabera de dragáo que muito frequentemente ornava a sua proa. Podiam navegar até dez nós durante días inteiros. Excelentes tanto para o comércio como para a guerra ou para as viagens de descobertas! Tanto mais que á qualidade vinha juntar-se o número: a sua construgáo, na Escandinávia e mais tarde na Normandia, fazia-se a um ritmo que prenunciava a grande série da indústria moderna. Abatiam-se florestas inteiras (cf. a «tapegaria de Bayeux» do fim do século XI) e utilizava-se o carvalho e outras madeiras para construir «essa gama de embarcagdes admiravelmente adaptadas tanto ás necessidades do comércio como ás do combate» (Fréd. Durand). Devido á sua penetragáo no Ocidente, os Vikings acabaram por fazer com que este tirasse proveito dos grandes progressos por eles realizados em matéria de navegagáo marítima e mesmo fluvial, visto que os drakkars podiam subir os rios, onde se encontravam táo á vontade como em pleno mar. 51
O fac to r «instrum ental». Form agSo e em prego do cap ital; a moeda e os investim entos
O capital é um conjunto de recursos heterogéneos visto que compreende bens materiais de diferentes espécies, equipamentos, moeda... Forma-se através do que se poupa, excedente do rendi mento sobre o consumo: uma parte do rendimento é subtraído a um emprego imediato para formar um capital futuro. Pode poupar-se em géneros e náo apenas numa economia de troca. Pode tratar-se de stocks de colheitas ou de produtos artesanais. E o desconto das futuras sementes numa colheita é também um acto de economia. Pode igualmente economizarse em moeda e é esta a regra ñas economías, ainda que pouco evoluídas, mais ou menos diversificadas pelo jogo dos mercados em número variável. Pode tratar-se de moeda metálica e também de metáis preciosos (ouro, prata) em barra ou transformados em objectos (jóias, cibórios, relicários, loicas, etc.). O capital aumenta através do investimento, o qual é constituido por todas as operagoes que aumentaráo o rendi mento no decorrer do período ulterior. Em suma, o investimento é o emprego produtivo daquilo que se economiza. Portanto, apesar de ser apenas uma parte do capital possuído por um individuo ou por uma dada sociedade, o capital monetário náo deixa por isso de ser a sua parte mais significativa, visto que os signos monetários sáo, ao mesmo tempo, o instrumento indispensável do comércio, na medida em que náo sáo apenas uma reserva de valores.
A moeda Segundo os economistas anteriores a Keynes, a moeda pode desempenhar um papel triplo. Bastante cedo, a Igreja viu nela essencialmente a medida do valor dos bens: a moeda teria sido inventada para medir o valor das coisas úteis á vida e sería, portanto, já a esse título, um instrumento de troca. Muito mais tarde, os escolásticos manteráo esta posigáo e, no século XIII, S. Tomás de Aquino escreverá ainda que a moeda é «regula et mensura rerum venalium». É exacto que esta foi a forma inicialmente assumida pela moeda na história: as civilizagoes babilónica ou egipcia «utilizaram a moeda unidade de conta, quando as trocas se faziam sem intervengo de um bem moeda geralmente aceite». Do ponto de vista cronológico, em que medida este primeiro papel da moeda terá ou nao sido único, numa determinada regiáo ou num certo período da primeira Idade Média? Em todo o caso, para a Igreja, as outras fungóes da moeda derivam do seu papel de medida. 52
A moeda é também intermediaria das trocas. Conforme viria a escrever S. Tomás de Aquino, «ela tem por uso próprio e primeiro ser dispendida ñas trocas». A troca directa limita estreitamente o comércio, porque requer, ao mesmo tempo, diversas condigoes para que a transacgáo se possa efectuar, mas a moeda elimina estas dificuldades. Torna possível a troca de um bem determinado contra um bem intermediário (que é ela própria) com o qual se pode adquirir qualquer outro bem. Como o poder de compra da moeda é . «indiferenciado», as aquisigoes do «indeterminado» sao feitas através déla (dentro do limite de determinadas quantidades), o que facilita ao máximo as transacgoes. Finalmente, a moeda é uma reserva de valor. Considerada ñas suas relagdes com os bens que permite obter, a moeda é um bem dotado de um valor durável, facto com que os teólogos estáo fácil mente de acordo, a ponto de, no século XIII, Santo Alberto Magno e S. Tomás de Aquino dizerem que ela é uma garantía, «uma ligagáo para o homem entre o presente e o futuro», «uma garantía em relagáo ás necessidades futuras», e também «o meio de dar ao poder de compra posto de lado um emprego óptimo num momento escolhido». A velocidade de circulagáo monetária depende da utilizagao que se faz da moeda como meio de troca e como reserva de valor. Vejamos os primeiros factos indiscutíveis: a moeda degradou-se depois das invasoes bárbaras, mas, em principio, o padráo-ouro da Antiguidade romana conservou-se durante vários séculos. Até fináis do século VII, a moedagem surge frequentemente como um prolongamento abastardado do Baixo Império, tendo-se as monarquías bárbaras limitado a usar em principio o soldo de ouro imperial, presente por todo o lado, no mundo mediterránico e romano. Mas, além do soldo (4,54 g de ouro, em principio, desde Constantino), depressa surge o meio-soldo e sobretudo o tergo de soldo (triens), que Tapidamente passariam a representar a única moeda corrente, embora com um quilate e um peso que declinaram de modo con tinuo. Por volta de 600, só subsistía o triens, náo se encontrando já nem soldos nem meios-soldos. Tal como o Baixo Império, os reinos bárbaros eram na realidade bimetalistas. Já Gregório de Tours aludia frequentemente a moedas de prata, pequeñas pegas de valor variável contendo apenas um grama de prata, de um quilate mais ou menos mediocre. No entanto, só no século VII reaparece o termo denier (denário) para designar uma nova moeda mais ou menos pesada (1,20 a 1,30 g), que, entretanto, representava apenas um tergo do peso do denário antigo. Em resumo, a rarefacgáo e a baixa qualidade da cunhagem da prata — e do bronze — tinham comegado no tempo dos últimos imperadores do Ocidente e a evolugáo comegara simplesmente no mesmo sentido depois dos anos 400. 53
De onde provinha este declínio de qualidade? Em parte, de uma causa política. A cunhagem é, em principio, um direito realengo, e Teodorico, em Itália, os chefes burgúndios e os reis visigodos souberam conservar o seu monopólio, quer tenham cunhado moedas que eram sim ples imitagoes das moedas bizantinas contemporáneas, quer tenham cunhado ñas moedas o seu monograma ou a sua titulatura. Mas o mesmo náo aconteceu no reino franco. Apesar de inicialmente se terem reproduzido, como noutros locáis, as moedas imperiais, a partir do último quartel do século VI, a cunhagem foi entregue a oficinas privadas, propriedade de moedeiros que, sendo depositários do metal, fabricaram moedas em que fizeram figurar o seu nome: estes homens desempenhavam, ao mesmo tempo, as fungoes de ourives de ouro e prata, de cambistas e, se tal se pode dizer, de «banqueiros». Portanto, no século VII, a cunhagem de moeda franca perdeu a sua unidade: os tipos monetários diversificaram-se de uma oficina para outra; a cunhagem fazia-se a uma escala regional ou local, havendo mais de 800 oficinas que, em nome de cerca de 5000 moedeiros, cunhavam triens e denários. E estas oficinas privadas situavam-se, embora sobretudo ñas cidades ou ñas pragas fortes, também em simples dominios rurais. Isto porque, com o privilégio da imunidade, as igrejas e as abadias tinham obtido o direito de cunhar moeda, ao mesmo tempo que muitos laicos e mesmo alguns clérigos o tinham usurpado. Depois de 650, a moeda merovíngia deteriora-se ainda mais. Impera o quilate do triens: trata-se de uma mistura de ouro e de prata, com uma maior proporgáo deste último metal, de tal modo que passa a ser apenas uma moeda «prateada» (sendo a prata recoberta por uma delgada camada de dourado). Finalmente, o triens passou a ser apenas uma moeda de prata, da qual nasceu, no século VIII, o denário carolíngio. Evidentemente que seria honrar demasiado os moedeiros, imputar-lhes esta continua dete rio rad o , este desaparecimento do ouro e a sua substituido pela prata. A prova disto é que a Inglaterra saxónica conheceu a mesma evoludo entre 650 e 750: deixou-se de cunhar moeda em ouro ao mesmo tempo que na Gália. E a Inglaterra inundou rápi damente a Europa do Norte e do Oeste com a sua moeda de prata: os primeiros exemplos de sceattas, pequeñas pegas de prata, remontam aproximadamente a 650. Sendo uma cópia do anverso do triens merovíngio, a gravura destas moedas de pequeño valor foi-se tomando cada vez mais grosseira. Pelo menos, e isto é o essencial, a sua liga náo era mediocre, ao contrário do que acontecia com as moedas merovingias que acabaram por conter apenas chumbo. Depois, na segunda metade do século VIII, as emissóes de sceattas cessaram, adoptando entáo os reis de Mércia o denário de prata como padráo monetario, como tinham feito os primeiros Carolíngios. Pelo contrário, na Itália lombarda e, evidentemente que com muito mais razáo, ñas possesóes bizantinas, a moeda de ouro 54
continuou a circular, pelo menos nos principáis mercados: solidi e tremisses de Pavia, Miláo, Luca, Mántua, Placéncia, Benevento e cidades lombardas coexistiam com o aureus bizantino. O volume de uma massa de moeda metálica é fungáo de diversos factores que sáo principalmente o volume da extracgáo do mineral precioso, o balando das contas e o entesouramento (entendido sob a sua forma mais vasta). Deste modo, a importáncia das emissSes de sceattas justifica-se pelo desenvolvimento económico da Ingla terra anglo-saxónica, que, além disso, possuía diversas minas de prata. Por outro lado, dizer que o ouro-moeda desapareceu progressivamente do Ocidente (excepto da Itália) entre os séculos V e VII merece ser explicado. Sobre este assunto, surgiram teorías brilhantes e ressonantes, aliás vivamente opostas urnas ás outras. Segundo H. Pirenne, o mundo antigo prolongou-se até ao século VIII e á irrupgáo do Isláo no Ocidente. Neste momento, os Sarracenos fizeram do Mediterráneo um mar hostil: «O Ocidente ficou engarrafado» e cortado do Oriente, as trocas internas diminuíram de ritmo, a vida urbana paralisou, a moeda de ouro foi-se rarificando até deixar de existir em circulagáo. Aprendendo á custa desta catástrofe, Carlos Magno teria adoptado o padráo-prata, consagrando deste modo a ruptura com o Oriente. O seu império terreno era um mosaico de villae, cada uma délas vivendo fechada sobre si mesma, pelo que quase náo havia necessidade de signos monetários. Portanto, e compreende-se que Pirenne tenha intitulado a sua obra Mahomet et Charlemagne, Maomet e as invasoes sarracenas prepararam o reino de Carlos Magno. Para M. Lombard, pelo contrário, a expansáo do Isláo teria conduzido ao renascimento do Ocidente e náo á sua regressáo (devida para Pirenne á sua separagáo do Oriente). O ouro teria sido o instrumento principal do poder econó mico do Isláo. Este último possuía os pontos de chegada das caravanas que traziam o ouro do Sudáo, da Núbia e da Abissínia. Além disso, as igrejas e mosteiros cristáos das regióes conquistadas da Asia e da África, sujeitos a pesados impostos langados pelos vencedores, teriam vendido os seus objectos preciosos para se libertarem, recolocando em cir culagáo este ouro e esta prata, depois de fundidos. Sem falar da violagáo dos túmulos dos faraós (a partir do século IX) e do produto dos resgates e pilhagens efectuados aqui e ali, a partir do século VII. Deste modo, o diñar mugulmano teria tendido a suplantar o nomisma bizantino como padráo «internacional». E, como os Sarracenos tinham necessidade de mercadorias do Ocidente, foi gragas ás «injecgóes» de ouro mugulmano que os sectores do Ocidente que tinham relagóes de negócios com o Isláo (Itália do Norte, regiáo do Mosa...) atingiram, entre os séculos VIII e X, um desenvolvimento comercial, urbano e demográfico. Segundo M. Lombard, o balango das contas do Ocidente teria sido favorável (enquanto para Pirenne é desfavorável ou mesmo inexistente): o défice ocidental em relagáo a Bizáncio (que vendía especiarías, tecidos e outros objectos 55
de alto prego) teria sido mais do que compensado pelo excedente das vendas ao Isláo (escravos, madeira, armas...) sobre as compras. A partir de meados do século VIII, o esgotamento das reservas metálicas do Ocidente teria passado a ser apenas uma má recordagáo e os dinars teriam entáo afluido ao Ocidente, sendo aliás o diñar (de denarius — denário), tal como o seu contemporáneo e o rival o nomisma bizantino, apenas uma boa cópia do soldo de ouro de Constantino. Além disso, por intermédio do Isláo, o Ocidente credor teria tirado partido da entrada em funcionamento das minas de prata da Transoxiánia a partir de 750 — o que, durante um século, teria produzido uma quebra da prata em relagáo ao ouro, antes de a situagáo sofrer uma nova viragem, aproximadamente em 850, com a abertura das minas de ouro da Núbia. Sem seguir Lom bard nem procurar, como S. Bolin, ver uma ligagáo estreita entre as variagóes para mais ou para menos do denário de prata ocidental, por um lado, e, por outro, o comego da exploragáo de minas táo estranhamente longínquas, pode supor-se uma relagáo entre a chegada — provável ou pos sível — de metal brando á Europa Ocidental, nos séculos VIII e IX, e a instauragáo pelos Carolingios do silver standard, sendo o gold standard completamente abando nado: com excepgáo da Inglaterra, os países do Ocidente eram, durante a primeira Idade Média, quase totalmente desprovidos de minas de prata em exploragáo no seu solo. Deixemos estas teorias, em relagáo ás quais a sedugáo náo pode esconder a fraqueza. Os historiadores mais prudentes acentuam o continuo desaparecimento do ouro no Ocidente depois do Baixo Império: náo parece que os produtos orientáis, produtos de luxo e portanto dispendiosos, importados a pregos elevados, tenham sido compensados em valor pelas vendas dos países do Ocidente. O gosto pelo luxo, bastante antigo entre os ricos que o conservaram, ao mesmo tempo que a Igreja o adquiría depois das invasóes bár baras, seria deste modo responsável pelo défice da «balanga comer cial», expressáo usual mas sem grande significado para a Idade Média. O facto de a cunhagem e a circulagáo do ouro terem decli nado, excepto talvez no reino lombardo, que tinha relagóes comer ciáis com a Itália bizantina, a qual, como a sua metrópole, se mantivera fiel ao metal amarelo, devia-se, portanto, a uma hemor ragia de ouro que náo era compensada visto que o Ocidente náo dispunha de minas de ouro. No entanto, tal facto verificava-se também, e sobretudo, por outros motivos. Durante séculos, o éxodo do metal amarelo foi agravado pelas desordens e pelas invasóes ou pilhagens. Era preciso pagar tributo aos invasores (Mugulmanos no Mediterráneo, Húngaros na Europa Central, Escandinavos na Europa Ocidental...), que também pilhavam igrejas, mosteiros, casas ricas, que, deste modo, se viam despojados dos seus objectos pre ciosos. Foi assim que o espólio metálico que os Vikings levaram consigo para o Oeste foi imenso: os objectos, provenientes sobre56
tudo dos tesouros monásticos, eram fundidos no regresso de cada incursáo (foram descobertos depósitos de fundirá®, onde os objectos destruidos sao ainda reconhecíveis). Até ao cometo do século X, no Ocidente franco, e mais tarde ainda em Inglaterra, foi preciso pagar tributo aos «Normandos» (os danegelds). Entretanto, os metáis preciosos (o ouro e a prata) que os Escandinavos levavam das suas expedigoes náo eram conservados ou utilizados sob a forma de moeda: houve, portanto, uma redugáo da massa monetária. Mas náo era apenas na Escandinávia, mas em todo o Ocidente, que, desde há séculos, o entesouramento do ouro se efectuava em grande escala. Foi esta sem dúvida a principal razáo do quase desaparecimento do ouro-moeda. Os grandes — o rei, os laicos, os clérigos — tinham ad quirido o hábito de acumular os metáis preciosos (sobretudo o ouro), qualquer que fosse a sua forma. Seria desperdicio de tempo multiplicar os exemplos desta «sede de ouro» que todos os autores evocam, animados ou náo por intengoes piedosas, pois eles sáo inúmeros, nomeadamente em Gre gório de Tours. «Nós entesouramos, teria dito Fredegunda. Os nossos cofres estáo cheios de ouro, de prata, de pedras preciosas, de colares e de outros ornamentos.» Mesmo Brunehaut, exilado, teria levado consigo duas caixas de jóias e de objectos de valor superior a 3000 soldos, além de tres sacos de valor superior a 2000 soldos. Quilperico teria man dado fazer uma bacia de ouro, enriquecida de pedras pre ciosas e pesando cinquenta libras. O mesmo acontecía, ñas devidas proporgóes, com os grandes senhores como aqueles condes que, por sua morte, deixavam «grandes quantidades de ouro, de prata e de objectos preciosos». E havia quem pretendesse descer ao túmulo sem abandonar todas essas riquezas: moedas de ouro e de prata e jóias acompanhavam o defunto. No túmulo de Quilperico I, pai de Clóvis, foram encontrados objectos de valor e muitas moedas de ouro e de prata. E o facto de se ter encontrado um número rela tivamente grande de jóias bárbaras deve-se a estas terem sido descobertas ñas sepulturas, em quase todos os casos. O ouro foi muito mais entesourado do que «desbaratado». No que lhe diz respeito, a Igreja depressa se pós a constituir «tesouros», «ao servigo de Deus», concentrando ñas suas máos riquezas que faziam ainda mais inveja aos reis do que aos ladr5es. «Eis que o nosso fisco se tornou pobre; eis que as nossas riquezas passaram para as igrejas!», teria exclamado um rei merovíngio. Enriquecidos pelas doagoes e legados dos próprios soberanos e dos fiéis ricos, os clérigos reuniram importantes capitais congelados: os cronistas descrevem esses cálices, essas cruzes, esses relicários «do mais puro ouro, ornado de gemas», provenientes tanto de doagoes em lingotes como de doagoes em moedas que tinham sido mandadas fundir. Mas a operagáo nem sempre era de sen tido único: em caso de necessidade (e isto far-se-á ainda depois do fim da Idade Média), podia-se náo apenas empenhar mas também mandar fundir os objectos preciosos — sagrados ou náo — ou negociá-los a peso. Assim deve 57
ter feito aquele bispo de Poitiers que «despedagou um cálice de ouro», o mandou transformar em moeda e pagou deste modo o tributo imposto aos seus fiéis. Ou aquele rei merovíngio que mandou quebrar os seus pratos de prata para obter numerário. Mas os clérigos — ao contrário do mundo laico — raramente foram constrangidos a tais extre mos. Muito metal precioso, sobretudo ouro, ficou portanto entesourado ou, mais exactamente, congelado. Apesar de, por exemplo, as abadias de Corbie ou a de Saint-Denis converterem sistemáticamente, como parece, as moedas de ouro em objectos sagrados, e de os poderosos lai cos as transformarem em jóias, nem uns nem outros tinham o sentimento de estar a retirar da circulagáo os signos mo netários. As próprias moedas eram consideradas objectos preciosos e o doador rico que oferecia aos monges cem soldos de ouro em moedas pensava estar a doar náo uma quantia em dinheiro, mas cem objectos de grande valor. A moeda de ouro náo foi toda «absorvida» pelo Oriente bizantino ou mugulmano, e também náo se «escondeu»: um soldo de ouro tinha-se tornado numa jóia (tal como os «napoleSes» que os nossos contemporáneos mandam ajus tar em ornamentos). A moeda de ouro náo era portanto mais do que uma medida e uma reserva de valores; a partir do século V, VI e VII, perderá progressivamente o seu papel de intermediário das trocas, tanto na Gália e na Inglaterra, como na Espanha cristá, ou mesmo na Itália náo bizantina (facto aliás discutível, neste último caso). Foi assim que o seu poder de compra se tornou demasiado conside rável para que ainda se pudesse utilizá-la em muitas transacgoes: no tempo de Gregório de Tours, a colecta das esmolas na célebre abadia de Saint-Martin de Tours, num dia de grande afluencia, representava apenas um triens. Era também esta a soma que se emprestava em casos de necessidade, soma que representava ainda o pecúlio acumulado por um habitante de Liáo. Enquanto a moeda de ouro podia continuar a ser utilizada para a compra dos produtos orientáis de luxo, pelo contrário, para as trocas mais indispensáveis, e económicamente mais significativas (produtos de primeira neces sidade e de consumo corrente, objecto do comércio de raio de acgáo curto ou médio), era preciso uma moeda á medida das ne cessidades. Portanto, só as moedas de prata podiam desempenhar esse papel. E, devido á imensidade do Ocidente, o metal branco fazia já, mesmo antes dos Carolíngios, as fungóes de padrao «inter nacional». Pode pensar-se que as poucas minas exploradas (em In glaterra, em Melle en Poitou, mais tarde no Harz e na Boémia) e os beneficios da venda dos escravos e de madeiras aos Mugulmanos conseguiram aumentar o stock disponível no Ocidente. Mas as moedas de prata merovíngias eram cada vez mais «ne gras», mais variadas, mais frequentemente falsificadas. Daqui resulta o aspecto perigoso do mercado, a dificuldade ñas trocas e o facto
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de, para evitar esses riscos, se recorrer muitas vezes ás sceattas saxónicas ou ás suas imitagóes frísias. Daqui resulta também a necessi dade que os Carolíngios tiveram de, quando assumiram o controlo da maior parte do Ocidente, proceder a um saneamento táo com pleto quanto possível. Ao optarem pelo monometalismo prata, Pe pino o Breve e Carlos Magno limitaram-se a reconhecer uma situa d o de facto, que nao provava mais o declínio económico das regiSes francas no seu conjunto do que o empobrecimento dos ricos ou a redugáo qualitativa do seu nivel de vida. Esta «reforma» prolongou-se por várias décadas e fez-se «á forga de capitulares» escalonadas entre 755 e 780, aproximadamente, ou mesmo 805-808. Iría marcar toda a Europa profunda e duradoiramente (até ao fim do século XVIII em Franga, até aos nossos dias em Inglaterra e na maior parte dos Estados anglo-saxónicos). Depois de diversas tentativas ou experiencias, foi criada uma libra mais pesada do que a libra romana (327 g), pesando — as opinioes difere m — de 451 a 491 g. Numa libra de prata inscreviam-se 240 de nários: cada denário tinha, portanto, um peso de cerca de 2 g de prata (2,04 g se considerarmos a equivalencia de 491 g para uma libra). As únicas moedas cunhadas, portanto, as únicas moedas reais, eram o denário e os seus submúltiplos (1 óbolo ou mealha = 1/2 denário; um picte — 1/4 de denário). O valor desta moeda sonante era fixado em referencia a «unidades monetárias» («simples expressóes numéricas», escrevia Marc Bloch) a que é costume chamar-se moedas de conta: a libra (ao mesmo tempo unidade de peso e moeda de conta) valia 20 soldos; o soldo (que náo era mais do que uma unidade de conta) valia 12 denários ('). O denário era, portanto, a moeda em circulagáo com maior valor. E o seu poder de compra era elevado visto que o prego máximo autorizado por Carlos Magno, em 794, para doze paes de trigo, de duas libras cada um, era precisamente 1 denário. Portanto, náo se podem considerar os denários carolíngios como moedas de valor mínimo, mas como verdadeiros signos monetários utilizados para as transacgñes importantes: para comprar um pao de duas libras utilizava-se um picte, mas, em 794, essa moeda valia trés vezes o prego «tabelado» desse pao. Carlos Magno e os seus sucessores, até aproximadamente 850, emitiram algumas moedas de ouro. Todavía, tratava-se apenas de manifestagdes de prestigio; tratava-se mais de moedas comemorativas do que de moedas correntes. Durante séculos, no Ocidente náo se voltou a cunhar ouro.
0 ) Por volta de 600, a lei das Ripuárias apresentava já esta equivaléncia, numa altura em que cfrculavam aínda soldos de ouro, moeda real. O que significa que, em principio, o ouro e a prata tém uma r e la j o de 12/1.
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O primeiro imperador pretendeu reservar o monopólio da cunha gem de denários de prata para a oficina do palácio. Náo o conse guiu e os seus sucessores ainda menos: as possessóes carolíngias eram demasiado vastas para o permitir. Pelo menos, até ao édito de Pitres (864-865), última disposigáo geral relativa á cunhagem e á circula d o de moedas, continuou a vigiar-se o fabrico por intermedio dos condes e dos missi, nao dispondo entáo os moedeiros de prestigio ou independéncia. A partir do fim do reinado de Carlos o Calvo, recomegaram e multiplicaram-se as concessoes aos bispos e depois aos laicos, ao mesmo tempo que os condes usurpavam os lucros das oficinas e o direito de moedagem que lhes competía vigiar. Desde antes de 900 a «moeda real» dá lugar á «moeda feudal». Tal como antes de Pepino o Breve, as oficinas monetárias vao voltar a proliferar. Tratar-se-á apenas de uma forma de anarquía ambiente e do declínio da autoridade central? Apesar de, no Norte da regiáo franca, a circulagáo monetária ser, no tempo dos Carolíngios, uma realidade semelhante á de outrora, em muitas outras regióes ela parece ter sido pouco activa e pouco rápida. Uma vez que a moeda circula frequentemente no interior de um círculo de curto raio, «cada pequeño grupo que gira em torno do mercado local (ou regional)» precisa da «sua oficina monetária». Apesar de ser exagerado afirmar que a moedagem «tem um significado dominial», o florescimento de oficinas monetárias, táo característico da primeira Idade Média por ter sempre tendéncia a reaparecer, consti tuí um indicio de uma velocidade insuficiente de circulagáo monetá ria (Pirenne), ainda que uma parte dessas oficinas tenha sido am bulante e náo fixa num dado local. Nos actos reais que criam ou autorizam uma oficina, há mengóes frequentes á penúria de moeda na provincia a que se refere. Conhece-se a fórmula de Irving-Fisher: M V — PT M — massa monetária em circulagáo. V — velocidade da circulagáo monetária. P — nivel dos pregos. T — quantidade de bens e servigos disponíveis no mer cado. Apesar de Keynes ter exagerado quando julgou distinguir uma tendéncia deflacionista a partir dos últimos séculos do Império Romano até ao fim da Idade Média, náo deixa de ser exacto que, no decorrer da primeira Idade Média, «a economia europeia esteve... submetida a uma formidáveí de pressáo monetária; a mais forte e a mais longa que o mundo jamais conhecera» (C. Cipolla). A velocidade de circulagáo V foi quase sempre fraca (cf. pp. anteriores), tanto mais que o congelamento, o entesouramento e o emprego do metal precioso apenas como reserva de valor, a travaram ainda mais. No que respeita ao factor M, náo 60
se pode provar que ele tenha sido afectado por uma tendéncia paralela táo nítida: náo há qualquer esperanza de se vir a conhecer a evolugáo das reservas metálicas da Alta Idade Média. Mas, relativamente á importancia do entesouramento, o factor M sofreu muito provavelmente uma compressáo. A tendencia depressiva de T é também nítida. Mas a queda deste factor T foi muito menos forte do que a dos factores M e V e, portanto, náo compensou o enfraquecimento dos dois primeiros. O aumento do valor da moeda é certo, conforme o testemunham a substituigáo do ouro pelo monometalismo prata e a reforma monetária de Pe pino e Carlos Magno. Este reforgo do valor da moeda, geral durante toda a Alta Idade Média, ñas regióes carolíngias e noutras, parece provar que o desgaste da massa monetária e a lentidáo da sua circulagáo foram muito mais acentuados do que a diminuigáo do volume das mercadorias oferecidas á clientela. Verifica-se, por conseguinte, uma depressáo dos pregos P, segundo a fórmula de Fisher, o que náo impedia (é precisamente entáo que dispomos de algumas indicag&es, bastante sucintas) uma acentuada nervosidade em tempo de miséria.
Os investimentos A ligagáo entre «esta excepcional depressáo monetária» e «a excepcional depressáo dos investimentos» é muito estreita. O subinvestimento pode evidentemente explicar-se através da fraqueza muito geral da margem de beneficio dos produtores. A leitura das listas de rendas devidas pelos foreiros ao seu dominus revela «a extrema modicidade dos lucros em moeda ou em géneros» que este último lhes cobrava. Os foreiros da abadia de Saint-Amand em Bousignies (Norte) devem, cada um, apenas uma galinha e cinco ovos; as rendas em cánhamo (1 libra), em malte (10 moios por fo reiro) e em lúpulo (2 moios) náo permitem que o grande proprietário obtenha lucros em numerário. O conjunto das rendas destinava-se ás oficinas dominiais, onde era transformado e consumido, ou utili zado localmente: em Bousignies, tratava-se principalmente de ofici nas de fabrico de cerveja. Sem estarem, ñas outras regióes, táo difun didas como em Itália, as rendas em prata eram frequentes, mas em geral ascendiam apenas a um pequeño total. Por conseguinte, para o dominus, do conjunto dos seus rendimentos, o que conta princi palmente é a reserva dominial, da qual extrai as únicas somas de prata importantes: isto acontece desde os tempos carolíngios e con tinua a verificar-se no fim da Idade Média. Contudo, salvo algumas excepgóes, apenas uma parte bastante restrita da produgáo da re serva participa na economia de lucro e de troca. Náo falamos, evidentemente, da margem de beneficio dos forei ros. Náo porque esta náo exista, mas porque ela é proporcional 61
mente mais b añ a do que a da reserva. Com efeito, na maior parte dos casos, a reserva era explorada na totalidade ou em parte g ragas aos bragos e ao material dos foreiros. Daqui resulta uma redugáo de forga em detrimento das tenures: numa grande fortuna fundiária, contava-se em dezenas de milhares o número de dias de trabalho de camponeses desviados em proveito das reservas, sob a forma de «servigos». No grande dominio temporal da abadia da Saint-Germain-des-Prés, o total elevava-se a 150 000 dias de trabalho, parciais ou completos, e em Santa Giulia de Brescia a 60 000. O abade de Saint-Trond podia, na altura da ceifa do feno, reunir nos seus pra dos entre 140 e 180 ceifeiros. Por outro lado, náo é certo que todos estes «servigos» tenham sido reclamados anualmente e, por exemplo, o des gaste dos instrumentos agrícolas dos foreiros, desgaste de vido ao trabalho na reserva e ao qual se vem juntar a deterioragáo natural devida á sua utilizagáo na tenure, náo deve ter sido táo rápido como se pode ser levado a pensar pela leitura dos polípticos. Em todo o caso, nao pode deixar de se ver no «grande desper dicio de máo-de-obra» (C. Cipolla) que esta massa de «servigos» representava uma das características da produgáo, a consequéncia, e talvez mesmo a causa, de investimentos demasiado fracos. É certo que os excedentes de receitas dos grandes laicos náo eram todos consagrados á compra dispendiosa de produtos exóticos, do mesmo modo que os das igrejas náo eram todos absorvidos pela compra de objectos sagrados (que se efectuava principalmente com o montante dos donativos). No entanto, parecia nunca ocorrer ao espirito dos clérigos a ideia de investir o produto de um donativo, ou mesmo de vender um objecto caro, destinando o montante obtido a investi mentos produtivos; excepto quando se trata de reconstrugáo depois de cada destruigáo. A guerra ou as razias reduziam ainda mais o capital imobiliário, destruindo por vezes os meios de produgáo ou de troca (estábulos, mós ou moinhos, barcas...). Contudo, é preciso náo exagerar: nem valorizar as descrigSes, bastante raras, como a do cronista do mosteiro de Saint-Bertin, que considera «um espectáculo admirável para o nosso tempo» (século X) a construgáo de um moinho de água, ordenada pelo abade ñas proximidades da abadia, nem afirmar que os inventários das curtes, apresentados pelos polípticos, denotam sempre a pobreza das instalagdes produtivas. Pelo contrário, quando se verifica a rarificagáo da escravatura, e portanto da máo-de-obra extremamente ba rata, entre o século VIII e o fim do século X, comegam a surgir por toda a parte, pelo menos ñas regides mais activas, os moinhos de água (antes de 400, havia apenas alguns na Gália): por exemplo, nos dominios de Saint-Germain-des-Prés no comego do século IX. 62
A partir de meados do século VIII, ou um pouco mais tarde, con forme os casos, a mentalidade dos grandes parece ter-se modificado ligeiramente, detectando-se também um leve aumento dos investi mentos produtivos, a despeito dos Normandos, dos Mugulmanos e dos Húngaros. Repetimos que o sucesso económico do século XI náo pode deixar de ter sido preparado, também desta forma, durante os séculos anteriores. Os ligeiros progressos dos investimentos significam ligeiros pro gressos dos capitais imobiliários e mobiliários. Na origem da formafáo dos grupos de mercadores cristáos, aproximadamente a partir de meados do século VIII, estiveram capitais mobiliários provenien tes de excedentes de receitas agrícolas. Muito antes de W. Sombart, os historiadores da economia tinham acentuado o papel desempenhado pela acumulacáo das rendas fundiárias. Apresentamos trés exemplos, dois respeitantes a cristáos e o terceiro aos judeus, que demonstram que alguns homens puderam envolver-se no negócio, mesmo a longa distáncia, porque dispunham de fundos provenientes da venda das suas térras ou da acumulagáo dos lucros das suas possessóes agrícolas. Em Veneza, porto recente mas cuja ascensáo será fulgurante, os primeiros patricios foram sem dúvida proprietários fundiários do interior que tinham conseguido converter os seus dominios em moeda. Em Génova, seriam os nobres ricos em térras a fornecer, sob a forma de empréstimos, os primeiros capitais destinados ao comércio marítimo. Finalmente, náo é de excluir que os capitais dos mercadores judeus provenham da térra, porque, do século V ao VII, os Judeus possuíram dominios bastante vastos em Espanha, assim como na Itália e na Gália. Mas, entre o século VI e o VIII, as legislares «nacionais» levaram os Judeus a desfazer-se das suas térras e a entregar-se ao negócio. Tratava-se evidentemente de uma primeira fase: numa segunda fase, foram os lucros do comércio que aumentaram os capitais dos mercadores. Os lucros da térra permitiram, quando muito, o «arranque» das actividades de negócio. O fac to r hum ano
Para os mercantilistas, como para os seus antecessores, a riqueza de um país depende, antes de mais, do número dos seus habitantes. Isto é indiscutível, na condigáo de que esse número náo ultrapasse, pelo menos, o ponto óptimo e náo conduza á superpopulagáo. E, no século XVI, Jean Bodin escreveu: «Náo há forga nem riqueza como o homem.» Talvez a primeira Idade Média náo tenha conhecido nada táo mal como o seu capital humano. Antes do período carolíngio, nenhum texto um pouco preciso aborda esta questáo. A partir do 63
século IX, podem utiüzar-se alguns polípticos, mas estes apenas esclarecem o problema relativamente a um número reduzido de villae, nem sempre limítrofes. Trata-se, portanto, da pré-história da demo grafía. As outras fontes, indirectas e qualitativas, dáo fácilmente a impressáo de que a populagáo era ao mesmo tempo dispersa e infeliz. Daqui se deduz que a primeira Idade Média sofreu uma depressáo demográfica crónica: muitos trabalhos apoiam-se, ainda que in conscientemente, naquilo que talvez seja apenas um postulado. Náo está, no entanto, demonstrado que essa depressáo tenha durado mais de meio milénio sem interrupgoes, sem algumas inversoes, frágeis ou notáveis, e de envergadura. Na falta de números, pode pelo menos tentar-se abordar o problema quantitativo «através de apreciagóes relativas, como baixo ou alto, maior ou mais pequeño» (C. Cipolla), que podiam permitir distinguir se a tendencia de um determinado período é para a expansáo ou para a depressáo. Qual é, á partida, o significado demográfico das grandes migragóesl Náo se deve opor uma Germánia superpovoada a um Império do Ocidente despovoado. É verdade que a Itália e a Gália sofriam, desde o século III, uma depressáo demográfica; daqui resulta o apelo aos Bárbaros do século IV, mais como camponeses do que como soldados. Mas a própria Germánia de antes de 400 náo era muito habitada e, depois de 400, náo houve massas bárbaras «inúmeras» — trata-se de «argumentos de vencidos», escreveu Marc Bloch— a langarem-se contra o Imperio. Os Germanos instalados no Ocidente, do século V ao VII, foram apenas uma pequeña minoria (5 % da populagáo total, calcula Pirenne); muitas regióes náo chegaram a conhecer a «ocupagáo» germánica, tendo os chefes bárbaros agru pado bastante sistemáticamente os seus homens em sectores que nem sempre eram muito vastos. Em números absolutos, nada se sabe dos efectivos «romanos»; no que respeita a alguns povos ger mánicos imigrados, dispomos de estimativas, mas estas variam demasiado de um autor para outro: o número de visigodos instala dos em Espanha oscila entre 70 000 e 500 000. Mas um facto é certo: todos estes povos eram pouco numerosos e, no entanto, a sua partida bastou para despovoar quase totalmente sectores inteiros da Germánia. Insiste-se frequentemente — demasiado, talvez — sobre o declínio das cidades, depois que estas tiveram de se fechar, no século III, dentro de estreitas muralhas. Este declínio acentuou-se evidente mente com as grandes invasdes. Algumas cidades, ainda que de fraca importancia, chegaram mesmo a ser destruidas (Comminges, na Hir viera italiana). Mas, posteriormente, pelo menos algumas cidades tiraram partido da instalagáo de reis bárbaros dentro dos seus muros, como aconteceu com Paris, Toulouse, Barcelona, Toledo ou Gene bra, e sobretudo Roma (muito provisoriamente), Ravena e Verona. Náo se trata já, para tentar fazer uma estimativa da populagáo 64
destas cidades, de se ter únicamente em conta a superficie limitada pelo aglomerado do Baixo Império. A cidade murada desempenhava o papel de cidadela e, desde o século VI, a populagáo instalava-se fácilmente extra muros, naquilo que passou a ser um suburbium. Assim, fora da ilha da Cité, Paris do século VI contava já com seis locáis de culto (quatro na margem esquerda e os outros dois na margem direita); por volta de 750, havia catorze (dez na margem esquerda e quatro na margem di reita), o que parece significar que Paris dos últimos Merovíngios tinha atingido os limites da antiga Lutécia, no tempo da sua maior expansáo. Um fenómeno semelhante verificava-se também em Tréves e em Metz, em Reims e em Bordéus. Entretanto, o destino de Roma foi completa mente diferente: antes de ser sitiada e tomada em 410, a Cidade Eterna teria ainda um total de 300000 habitantes, que, mais tarde, seria de apenas 200 000. Mas a guerra de reconquista bizantina reduziu consideravelmente este nú mero (enorme para a época, se pensarmos que as maiores cidades da Gália tinham entáo apenas alguns milhares de habitantes). As colinas outrora incluidas dentro da muralha de Aureliano tornaram-se zonas solitárias, onde se instala ram numerosos mosteiros, enquanto o papado abandonava o Latráo. As 20 000 almas que subsistiram concentravam-se no Campo de Marte e no Trastevere (chamado «Cidade leonina», do nome do papa Leáo IV que tinha fortificado a margem ocidental do Tibre). Nunca, antes do século XIX, Roma voltou a ter um grande peso demográfico. Sáo demasiado raras as tentativas feitas para estudar a «diná mica» da populagáo, ou seja, os casamentos, a natalidade e a mor talidade. É prematuro tirar daqui qualquer conclusao definitiva, a náo ser que os casamentos eram muito precoces, que o infanticidio e a limitagáo dos nascimentos eram muito comuns, que a mortali dade infantil era enorme (e assim será durante longos séculos) e a média de vida bastante baixa, se tivermos em conta os trabalhos dos analistas e as investigagoes arqueológicas realizadas ñas necrópoles. Para Gregório de Tours, viver para além dos 70 anos é uma excepgáo que quase atinge as raias do milagre. E, com efeito, num cemitério de Liáo, todos os homens e mulheres enterrados tinham morrido com menos de 60 anos. Pior ainda: numa necrópole da Ile-de-France, a idade dos adultos situa-se entre os 19 e os 29 anos e, em doze criangas, nove tinham menos de 10 anos quando da sua morte. A brevidade da vida humana e a forte mortalidade sáo fáceis de explicar. A primeira Idade Média foi frequentemente sacudida pelas invasóes, pelas guerras e pelas desordens. Náo acreditemos em Procópio, quando este afirma que a guerra gótica teria feito dez milhóes de mortos em Itália (a populagáo peninsular náo atingia por certo este número antes de 400). Mas acreditemos de qualquer modo
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em Paul Diacre, quando este mostra até que ponto a conquista pe ninsular pelos Lombardos fora mortífera: «Os homens cujo número tinha aumentado..., serrados uns contra os outros como espigas de trigo, foram mortos e secaram como fontes esgotadas.» E, no que diz respeito á Gália merovíngia, basta que nos refiramos, mais uma vez, a Gregório de Tours: a quase totalidade das páginas que escreveu deixa transparecer o eco das violencias francas, continuamente renascidas. Ainda mais mortíferos do que a violencia foram os flagelos naturais, numa época em que os homens estavam mal pro tegidos contra os seus ataques. Voltemos a consultar Gregório de Tours. Em cada um dos livros da sua História, surge como leitmotiv a mengáo a inundagoes medonhas, a chuvas diluvianas que impediam as sementeiras ou faziam apodrecer os graos, a incendios mor tíferos tais como os que destruíram pelo menos uma parte de Orleles, de Paris, de Bourges Ou de Bazas. As guerras e os flagelos naturais traziam consigo as fomes, muito mais violentas porque a térra dava apenas baixos rendimentos. Embora bastante pobre, a docum entado existente permite conhecer algumas délas, como a que, pouco depois de 500, devastou a Provenga, para onde Teodorico mandou trigo da Toscánia e da Campánia, ou a assinalada por Procópio no tempo da reconquista bizantina, que teria feito 50 000 vítimas em Emilia e na Toscánia: os habitantes dos Apeninos teriam ficado reduzidos a alimentar-se de pao feito de bolotas de carvalho; «a maior parte foi atingida por toda a espécie de doengas e apenas alguns conseguiram escapar saos e salvos». Também Gregório de Tours testemunha a gravidade das fomes na Gália: no Livro VII, descreve mesmo uma fome quase geral e particularmente longa (sete anos) que obrigara os habitantes a vencer a ausencia quase completa de farinha, comendo tudo o que apanhassem, incluindo raízes de fetos e ervas perigosas. «Muitas pessoas incharam e sucumbiram.» Diversos agambarcadores, mercadores ou mesmo clérigos, aproveitaram para vender a pregos elevadíssimos os stocks que ti nham conseguido constituir. Enfraquecido por uma alimentagáo já insuficiente em tempo normal, o homem era uma presa fácil para as epidemias. Embora, também aqui, falte um levantamento completo, as epidemias gerais ou regionais foram numerosas. Pode acontecer que se tenha tratado da peste bubónica, que voltará a fazer-se sentir em fins da Idade Média. As criangas pagam-lhe um tributo particularmente pesado, o mesmo acontecendo com os citadinos (que muitas vezes procuravam fugir da cidade, mas, em muitos casos, demasiado tarde). Confrontando os dados, parece que, em vez de um rosário de epidemias regionais, deparamos por vezes com uma pandemia, que nalguns casos levava anos a propagar-se de uma regiáo para outra. É o caso da peste bubónica que, segundo Procópio, provocou grandes danos em Bizáncio em 66
542, atingiu a Itália e a Espanha no ano seguinte, mas só se fez sentir na Provenga e em Auvergne em 546. Toda a segunda metade do século VI parece ter sido enlutada por recorréncias desta peste, principalmente nos seus últimos anos: a Itália em 587, a Espanha em 588 (um navio prove niente deste país contaminou Marselha), Roma em 590 (o papa foi uma das suas vítimas e o seu sucessor Gregorio Magno organizou procissóes para suplicar a Deus que afastasse o flagelo), Marselha em 591 (depois em 599) e ainda o vale do Loire... Apesar da parcimónia dos documentos que nos chegaram, sabemos que, durante o século VII, Roma foi atingida pelo menos trés vezes por uma epidemia (618, 679, 684). Uma nova pandemia, particularmente mortífera, fez os seus estragos em 742-743. Nao prossigamos com esta lista, bastante incompleta. Ela prova pelo menos que essas epidemias reapareciam a intervalos aproximados: o nivel de populagáo deve ter-se mantido bastante baixo e estacionário por quase toda a parte, até ao século VIII, excepto talvez em Inglaterra, cuja situagáo insular a parece ter posto ao abrigo de pelo menos uma parte das «pestes». No entanto, mesmo relativamente ao período anterior á segunda metade do século VIII, nao se deve dramatizar demasiado. A partir talvez do século VII, ou mesmo um pouco mais cedo, a populagáo urbana — apesar de mais exposta do que a rural — conseguiu ultrapassar ligeiramente o seu muito baixo nivel anterior. A fortiori, a dos campos, onde a alimentagáo era evidentemente menos má e onde se morria menos de epidemias. Mas os índices de crescimento — ainda que provisorio — anteriores á época carolíngia continuam a ser discutíveis: a criagáo de novas paróquias rurais, já detectável na Baixa Auvergne, em Touraine ou entre o Tarn e o Garonne, tanto pode revelar um progresso da evangelizagáo como um pro gresso do povoamento e dos arroteamentos. Vimos já que estes últi mos foram aparentemente bastante reduzidos e que a sua existencia só é verdaderamente garantida em algumas regióes (como a Gália do Norte, quase despovoada antes da fundagáo de grandes abadias). Com os tempos carolíngios, o renascimento do uso da escrita legou-nos alguns documentos «demográficos» menos vagos e de utilizagáo um pouco menos hipotética. A partir de 1921, baseando-se nos dados fornecidos pelo políptico de Irminon, F. Lot conjecturou que a populagáo de oito paróquias situadas a sul dos actuais subúrbios pari sienses era, já no comego do século IX, superior a metade do nivel que iria atingir em 1835, portanto com os grandes movimentos demográficos da época contemporánea: — no comego do século IX: 4100 habitantes; — em meados do século XVIII (tempo de grande prosperidade e de forte crescimento demográfico): 5700 habitantes; — em 1835 (data do nivel máximo da populagáo rural): 7754 habitantes. 67
Deste modo, desde aproximadamente 813 até 1745, a populagáo destas oito paróquias apenas tinha aumentado em 39% . Depois, entre 1745 e 1835, novamente em 36% . Quer isto dizer que, relativamente ao nivel das técnicas agrárias, a densidade populacional dessas paróquias era incomparavelmente mais elevada em comegos do século IX do que em 1835! Em 1945, confirmando estas conjecturas, Ch.-Ed. Perrin mostrou quais as conclusóes demográficas que se podiam tirar do estudo do fraccionamento do manse parisiense daquela época: se, por exemplo, o manse de Verriéres é superpovoado no comego do século IX, isso deve-se a um fenómeno já antigo que, localmente, conduziu a um «arroteamento muito activo» e á criagao de manses de dimensdes reduzidas. Estas oito aldeias, bastante próximas urnas das outras mas náo contiguas, tinham uma densidade de aproximada mente 39 habitantes por km1. Nada há que permita que se extrapole e se atribua uma táo forte densidade ao conjunto da regiáo parisiense. Isto náo impede que, com os arredores de Saint-Omer (34 habitantes por km3), ela represente o exemplo da mais elevada densidade entáo conhecida — o que é uma constante da história da Ile-de-France. No en tanto, a grande superficie dos manses picardos, artesianos e flamengos denota uma ocupagáo bastante tímida: Saint-Omer e os seus arredores eram apenas uma ilhota povoada numa regiáo quase desocupada. O nivel mais elevado conhecido através dos textos situava-se, portanto, entre 34 e 39 habitantes por km2. O segundo nivel, bas tante raro, era de 20 habitantes por km’ no Westergo (Países Baixos), por volta de 900. Pelo contrário, o terceiro nivel (de 9 a 12 habi tantes por km3) teria sido muito mais frequente: arredores de Lille (Somain, em 868-869), arredores de Munster (muito mais tarde: comego do século IX), Frísia e Ostergo nos Países Baixos (por volta de 900), toda a Inglaterra (em 1086). Finalmente, o nivel mais baixo (4 a 5 habitantes por kmJ) teria sido atingido por volta de 800 em alguns sectores do Mosela, por volta de 900 em diversas partes dos actuais Países Baixos (Zevenwonden, Groningue, Salland e Twente, Overijssel). Estes cálculos valem o que valem mas ilustram bastante bem a diversidade demográfica do Ocidente. É provável que, tendo em conta o grande afastamento entre os centros habitacionais devido á descontinuidade dos espagos cultivados, os dois níveis mais baixos tenham sido os mais frequentes. No entanto, existiam já algumas regióes demográficamente privilegiadas. O que fica para trás, um período de lacunas no espago e no tempo, tem pelo menos o mérito de estabelecer uma ordem de grandeza. Mas seria preciso saber qual foi a evolugáo entre meados do século VIII e o fim do século X. Verificou-se indiscutivelmente um aumento temporário da populagáo, entre os anos 750 e os
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anos 850(‘), do qual resultou o «renascimento carolíngio» e o apa recimento de superpovoamentos locáis. Posteriormente, porém, pelo menos em alguns sectores, verificou-se um recuo brusco e mais ou menos pronunciado e duradoiro, pois os polípticos posteriores a 850 mencionam uma proporgáo por vezes notável de mansi absi, ou seja, de manses desocupados, como o da abadia de Prüm (cerca de 893), criado inmediatamente após uma razia de normandos ñas bacías do Mosa e do Reno. Ch.-Ed. Perrin estudou um dos dominios dessa abadia, o de Villance, ñas Ardenas hoje belgas: era uma villa de for m a d o recente, dispersa por ser formada por numerosas clareiras (sete para a reserva e muitas outras para os manses espalhados pelo território de seis comunas actuais). Há indicagóes que provam que, antes da invasao, estes manses eram superpovoados (alguns tinham sido divididos ao meio ou mesmo em quartos). Ora, depois da razia, os quartos de manse estavam desocupados. Os monges ofereceram-nos aos sobreviventes em condigóes vantajosas, mas apenas encontraram quem quisesse um ou dois dos quinze mansi absi. Acontecía que a populagáo que restava era demasiado po bre em gado e em ferramentas para poder ocupar os man ses oferecidos; prefería, portanto, integrar-se nos outros manses, utilizando em comum os fracos recursos de cada um para os explorar. Deste modo, um parte deste novo terreno tinha voltado a ser terreno inculto pouco antes de 900. O século X é geralmente maltratado pelos historiadores, que só raramente se detém sobre ele e o pintam com cores sombrías. Poderá dizer-se que a anarquía nascida da ruina do Império caro língio, e as incursóes normandas, húngaras e sarracenas contribuíram para reduzir, por toda a parte e durante bastante tempo, os diversos níveis demográficos do Ocidente? É difícil afirmá-lo e sobre isto há duas observagóes a fazer. Em primeiro lugar, o império otaniano brilhou, no século X, com grande esplendor, sem dúvida porque a depressáo demográfica era ali menos acentuada. Por outro lado, nesta segunda metade do século X, náo voltou a haver incur sóes devastadoras, pois os Normandos estavam estabilizados, os Hún garos submetidos, ficando apenas algumas regióes ameagadas pelos Mugulmanos. Matava-se, portanto, menos e, normalmente, a demo grafía deveria ter-se orientado no sentido de um crescimento, como já acontecerá no tempo dos Carolíngios, várias dezenas de anos antes do ano 1000. Contudo, a natalidade deve ter-se mantido quase estacionária e náo parece que se tenha verificado uma brusca inver sáo da tendéncia antes do despontar do século XI. (*) Esse aumento é certo no Latium e na Sabina (P. Toubert).
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De qualquer forma, ninguém poe em causa o facto de, no decorrer da primeira Idade Média, a populagáo do Ocidente ter sido sempre demasiado fraca, e, portanto, incapaz de explorar a fundo as suas riquezas e de promover um mínimo de divisáo do trabalho. Cada regiáo, cada cantáo, cada villa procura produzir praticamente toda a gama de produtos alimentares: a frequente inseguranga, o prego elevado dos transportes (que C. Cipolla supóe) e a própria «estrutura mental» (dominada pelo medo da fome) impediram, excepto relativamente a algumas culturas (vinha, oliveira...), uma divisáo do trabalho no espago. Apesar de a divisáo vertical e horizontal náo ser desconhecida (dado que sempre houve, por exem plo, mercadores profissionais), a verdade é que os homens surgem frequentemente como «homens de sete oficios». E chegou mesmo a escrever-se que a organizagáo dominial «era em suma apenas uma última tentativa de remediar — de uma maneira aliás muito primi tiva — as desastrosas consequéncias dessa ausencia de raíz de qual quer divisáo do trabalho» (C. Cipolla).
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Capítulo 4
A TERRA E A ECONOMIA RURAL
Embora náo tenha sido o único elemento da actividade econó mica da primeira Idade Média, a agricultura foi, de longe, o seu elemento preponderante. «A térra é tudo», ou pelo menos quase tudo. Quase todas as cidades eram entáo menos activas do que antes de meados do século III e os próprios Bárbaros das grandes migragoes eram táo camponeses quanto guerreiros. A civilizagáo continuou portanto a refluir largamente para os campos. Mas ter-se-á a economia rural modificado com a instala gáo dos Germanos, sob a forma de hospitalitas, nos sectores onde estes foram bastante numerosos, principalmente nos ocupados, num primeiro período, pelos Francos, pelos Alamanos...? Este problema encontra-se na realidade ligado a um outro: o «dominio clássico», a villa, tal como no-lo dáo a conhecer as fontes carolíngias, será o resultado de uma pequeña modificagáo operada num organismo exis tente desde o Baixo Império, ou a conclusáo de uma evolugáo menos longa que seria uma consequéncia da relativa «barbarizagáo» dos campos do Ocidente? É aqui que reside o problema da continuidade da vida e das estruturas rurais. E as solugóes propostas sáo divergentes. Para Fustel de Coulanges, as invasóes germánicas náo teriam provocado qualquer modificagáo. Por exemplo, todo o territorio da Gália, excepgáo feita para as cidades e os burgos existentes em pequeño número, ter-se-ia mantido coberto de villae, que conservaram as características que eram as suas antes de 400: «No século IX, o dominio é ainda o mesmo do do século IV. Tem a mesma extensáo, os mesmos limites. Muitas vezes tem o mesmo nome, que lhe foi dado por um antigo proprietário romano.» Outros historiadores aceitaram a continuidade e a identidade de pelo menos algumas villae, desde a época galo-románica até aos tem pos carolíngios. Mas Marc Bloch e A. Déléage foram mais longe, 71
vendo no grande dominio do século IX um prolongamento da orga n izad o de um grupo social, fortemente fechado em tomo de um chefe, que dataria da Pré-História. O facto de a organizado domi nial ter apresentado particularidades de uma regiáo para outra explicar-se-ia, segundo eles, pelo facto mais remoto de uma villa e outra villa terem pertencido a «civilizares agrárias» distintas. Mas esta última expressáo, bastante vaga, é quase indefinível. Ch.-Ed. Perrin retomou um ponto de vista mais seguro e mais prudente, baseando-se nos polípticos e nos censos da primeira Idade Média. Perrin pos em destaque as anomalías do regime dominial «clássico», chamando a atengáo para um facto que os seus anteces sores tinham de bom grado negligenciado: náo houve estruturas agrícolas simultáneamente uniformes e estáveis ao longo dos séculos, mas, pelo contrário, essas estruturas evoluíram continua mente. Isto náo impede no entanto que, também para ele, alguns dos elementos essenciais deste regime «clássico» datem do Baixo Império: assim, a villa de Palaiseau, a alguns quilómetros ao sul de Paris, entregue, em 754, por Pepino o Breve a Saint-Germain-des-Prés, era uma antiga villa galo-románica. Alguns trabalhos, na maior parte dos casos muito recentes mas sempre largamente fundamentados nos de Ch.-Ed. Perrin, precisaram melhor determinados aspectos, apresentando novos cambiantes para o problema da extensáo ao mesmo tempo cronológica e geo gráfica do «dominio clássico». Estes últimos trabalhos debrugam-se sobre regiSes meridionais (Rouergue, Baixa Auvergne) ou, pelo menos, em geral exteriores á Bacia de Paris (Maine, regiáo de Gand, etc.). Para os seus autores, os dominios carolíngios, conheci dos através dos polípticos, e nomeadamente os da regiáo parisiense, seriam apenas «o resultado momentáneo de uma evolugáo essencialmente medieval». Este «regime de exploragáo náo representa o regime normal da organizado da propriedade em toda a Franga naquela época, constituindo sobretudo uma excepgáo, cuja aplicagáo se limitava a algumas regióes da Franca» (A.-E. Verhulst). Antes d a época carolíngia
Independentemente das origens do dominio carolíngio, devemos preocupar-nos com dois tipos de questóes. Por um lado, se náo é unánimemente reconhecido que a villa carolíngia seja filha da villa galo-románica, é preciso investigar se, no período intermédio, o período dos Merovíngios, é possível ter conhecimento de algo sobre os grandes dominios da altura, sem se lhes colar em cima a documentagáo, que só é verdadeiramente existente para o período carolíngio. Por outro lado, seria a villa — merovíngia ou caro língia — o tipo dominante, quase único, da exploragáo agrícola da 72
Alta Idade Média, facto que se pode imaginar com demasiada facilidade por ele ser, praticamente, o único tipo conhecido através das fontes? Ou existiría a par destas grandes propriedades reais, laicas, eclesiásticas, um número talvez considerável de pequeñas exploragóes absolutamente livres, que representariam, portanto, um fraccionamento maior do solo e exigiriam, para a sua valorizado, técnicas talvez diferentes das da «economia dominial», como pensava A. Dopsch e como R. Latouche estaría bastante tentado a acreditar? Uma villa carolíngia «clássica», do tipo das que se encontravam em grande número ñas regióes de entre o Loire médio e o Reno dos anos 750 até á segunda metade do século IX, tem uma estrutura e um modo de exploragáo claramente conhecidos — pelo menos na generalidade — gragas aos polípticos. Em principio de um único senhor, coincidindo frequentemente com a área de uma paróquia medieval e moderna, a villa tem uma estrutura bipartida: por um lado, o indominicatum ou reserva (térras aráveis, prados, vinhas, quando as havia, e também terrenos incultos), pelo outro, os manses ou tenures formados quase únicamente por campos cultivados. O regime de exploragáo caráeteriza-se pela participagáo dos foreiros, sob a forma de «servigos», na valorizagáo da reserva (que produz valores que sáo beneficio directo do dominus ou grande proprie tário). O contributo romano para o arroteamento do Ocidente náo mediterránico tinha sido massivo. Testemunham-no em Franga o grande número de topónimos em -acus ou em -anus. Testemu nham-no também os vestigios de numerosos fundi (termo utilizado antes do termo villa). Em face destes últimos, o vicus ( = aldeia), de origem pré-romana, conforme testemunha César, sofrera o con tragolpe do poder de absorgáo dos grandes dominios: durante o Baixo Império, muitos aristócratas que praticavam o «patrocinio das aldeias» tinham «anexado» antigas comunidades rurais, benefi ciando da obra de arroteamento que estas haviam realizado, e á qual vinha acrescentar-se o trabalho devido aos senhores dos fundi. Mas este desenvolvimento da grande propriedade náo tinha feito desaparecer todos os vici. Isto foi evidente relativamente a Maine e a Auvergne. E náo podemos esquecer que Gregorio de Tours atribuí o qualificativo de vicus a cerca de setenta localidades situa das, quase todas, ñas duas provincias que ele conhecia bem: Touraine e Auvergne. Tratava-se de aldeias e náo de grandes dominios: eram grupos de habitagóes rurais e quase todos dispunham de uma «basílica». Posteriormente, nem todos estes vici iriam desaparecer e, por exemplo na diocese do Mans, eles eram ainda numerosos no século IX. Poderemos, portanto, interrogar-nos sobre a relagáo existente entre as aldeias e as villae. A imprecisáo extrema do vocabulário náo permite que a conhegamos bem. 73
No entanto, é significativo que um bispo de Mans, no comego do século VII, para localizar trés villae, refira o nome do vicus mais próximo de cada uma délas. É bas tante possível que, em diversas provincias, exista um certo tipo de subordinagáo da villa em relagáo ao vicus (R. Latouche). Facto que se pode explicar fácilmente, se se quiser admitir que uma villa apenas podia ter uma extensáo média, muito inferior á de um terreno inteiro e ser ainda pobre em térras aráveis por falta de arroteamento. O facto de, entre o século V e meados do século VIII, o número das villae ter indiscutivelmente aumentado um pouco por toda a parte pode explicar-se de duas formas. O territorio de todo um grande dominio pode ter sido conquistado aos bosques e aos baldios: conhecem-se alguns casos através da toponimia (ex.: Le Breuil, de breuil — reserva de caga), ou através de textos, muitas vezes hagiográficos (Vidas de eremitas ou de fundadores de mosteiros). Ou entáo tinha prosseguido, podendo mesmo ter-se acelerado, a evo lugáo iniciada pelo menos a partir do século IV: os grandes laicos ou as abadias tinham conseguido, ñas suas zonas de acgáo, trans formar os vici em villae. Este «fenómeno de integragáo» foi facili tado pela desordem ambiente e pela ruina do «Estado» merovingio. Os antigos pequeños proprietários, desarmados em face da pressáo dos poderosos cuja protecgáo lhes era por outro lado necessária, continuaran» a explorar as suas térras, mas em troca de rendas e servigos, pois passaram a ser apenas usufrutuários das térras. Parece, portanto, que náo se pode dizer que a pequeña propriedade tenha verdaderamente recuado: foi sobretudo a grande propriedade — por vezes a grande exploragáo — que se desenvolveu, entre os séculos V e VIII, ñas regióes que há mais tempo pertenciam aos Merovíngios. Mas isto náo é verdade relativamente ao Sul da Gália, visto que a Aquitánia conservou um parcelamento bastante grande das térras e apenas conheceu raros dominios importantes. Ressalvemos o caso das regióes germánicas conquistadas pelos Mero víngios. A história agrária da Itália, dos Ostrogodos, dos Lombardos, ou dos Bizantinos, é bastante mal conhecida, mas o regime das térras parece ter sido aqui original e o fraccionamento da propriedade — ou mesmo da exploragáo — nítidamente mais acentuado do que noutras regióes. Sem dúvida que o mesmo aconteceu na parte mediterránica da Espanha e da Gália. Mais romanizadas do que as outras, as regióes mediterránicas tiveram, na Idade Média, uma história rural diferente da do Ocidente náo mediterránico. Em todo o caso, a villa merovíngia tem dimensóes menos vastas do que o dominio carolíngio. Ainda que, por vezes, a superficie total seja praticamente idéntica, ela compreende menos térras ará veis. Vejamos Palaiseau, nos arredores sul de Paris; no século VI, esta villa encontra-se ainda largamente coberta por uma parte da 74
grande floresta de Yveline; ao passo que, por volta de 800, apenas incluía trinta hectares de bosque. Menos vasta, mais arborizada, a villa merovíngia engloba também menos tenures. Pelo menos, é esta a hipótese — náo ousamos dizer a demonstradlo — mais recente. Enquanto, por volta de 800, a reserva representava apenas 20 a 40 por cento da superficie arável total do grande dominio, no dominio merovíngio ela fora «frequentemente a sua fracgáo mais impor tante». Antes do século VIII, esta reserva parece ainda principalmente valorizada por escravos e outros náo livres ligados ao centro de exploragáo, e portanto náo casados (os casados ou casati sáo aqueles a quem o dominus atribuiu uma tenure). O primeiro servido gra tuito, do ponto de vista cronológico, exigido a todos os foreiros teria sido a riga, ou cultura de um pedago de térra determinado por cada foreiro: as mais antigas mengóes deste servigo encontram-se na lei dos Bávaros e na dos Alamanos. A partir, talvez, do século VIII, foram impostas aos foreiros novas corveias agrícolas: isto tornara-se necessário devido ao esgotamento das fontes da escravatura, e o dominus, em virtude talvez daquilo a que se cha mará o ban (direito geral de comando), pode superar este esgota mento «pedindo» aos seus dependentes que fizessem servigos mais pesados na reserva. Sem, como por vezes acontece, acreditarmos num «vasto movimento de arroteamento» que teria acompanhado a evolugáo da villa entre os séculos V e VIII, náo se pode no entanto por em dúvida que os arroteamentos (e a secagem de pan tanos como nos Países Baixos) explicariam mais fácilmente a formagao de novas tenures, a extensáo das antigas e das reservas (em números absolutos, náo em números relativos e em percentagem da superficie total das villae). Mas dispomos ainda de poucos exemplos seguros desses arroteamentos, idénticos aos anteriores a 825 (mas anteriores até que ponto?), testemunhados pelo políptico de Montiérender. Uma outra hipótese, mais «geral», diz-nos que as culturas se teriam desenvolvido á custa da escravatura, entre os séculos VII e IX. Quem detinha o direito de comando mais eficaz sobre os cam poneses? Era, evidentemente, o rei e também os seus «fiéis». Ora, na Bacia Parisiense e na futura Lorena, houve uma densidade elevada da «implantagáo real e monástica»: o estabelecimento de colónias germánicas bastante densas seria aqui atestado pela abundancia de sufixos toponímicos em -court e em -ville. Nestas zonas, o solo é geralmente bom; era aqui que se situavam as capitais da Néustria assim como as da Austrásia; nos séculos VI e VII havia aqui mais náo livres e menos pequeños proprietários do que ao sul do Loire ou a Oeste. O rei e os aristócratas puderam, por tanto, muito mais fácilmente impor novos «servigos», ao mesmo tempo que aspiravam para a sua «órbita» pequeñas exploragóes 75
de rurais livres e proprietários. Uns e outros fundaram, nestas regióes, diversas abadias, que continuaran! e ampliaram o movimento de expansáo da villa. Tanto mais que, entre o médio Loire e o Reno, predominam os solos atractivos, e os terrenos repulsivos náo conheceram uma táo densa im plantado de villae.
A «villa clássicas d a época carolíngia
No que respeita a alguns dos seus elementos essenciais, o regime do.minial carolíngio teria, portanto, surgido no decorrer dos séculos VII e VIII, na maior parte das regióes de entre o Loire e o Reno. Este regime ter-se-ia mais ou menos generalizado, com relativa rapidez, segundo formas frequentemente «abastardadas», a partir destas regióes — novo centro de gravidade do Ocidente. Essa generalizado náo foi completa, a despeito dos esforgos dos reis (capitular De villis; Brevium exempla) e dos eclesiásticos no sentido de uniformizar o regime das suas propriedades, quando estas se encontravam dispersas por várias provincias, por vezes afastadas urnas das outras. É nesta regiáo de eleigáo da grande «propriedade» que se encon tram os imensos dominios temporais das abadias célebres. A despeito das espoliagóes de Carlos Martel, a despeito da necessidade em que se viram de conceder consideráveis fraegóes das suas villae como «beneficio» a alguns laicos, as abadias exploravam ainda vastas extensóes (aumentadas pelas doagoes e pelos legados). Vejamos alguns exemplos significativos: — o políptico de Irminon (comegos do século IX), que apenas foi conservado de forma incompleta, enumera, rela tivamente a Saint-Germain-des-Prés, cerca de 25 dominios, que cobriam cerca de 30 000 ha. — a abadia de Saint-Bertin (próximo da futura cidade de Saint-Omer) possuía, por volta de 750, cerca de quarenta villae espalhadas entre o Boulannais e o Vermandois. Por volta de 850, o manse conventual (porgáo do dominio temporal destinado ás necessidades gerais e á manutengáo dos monges) compreendia, por si só, dez dominios que ocupavam aproximadamente 10 000 ha. É quase garantido que a grande aristocracia laica detinha tam bém conjuntos muito vastos, dispersos por uma regiáo que podia ser muito extensa. Quando um grande doava á Igreja uma villa de um milhar de hectares, é evidente que conservava várias outras para a sua familia e para si próprio. É certo que os soberanos caro língios, sobretudo no comego, tinham os seus dominios ainda mais partilhados, o que explica que as suas villae tenham sido reunidas em fisci. 76
Vejamos alguns exemplos — que nao sao casos «médios — de superficies de uma villa ou de um «fisco». Comecemos por uma villa cujo caso é aparentemente excepcional. No século IX, uma dama chamada Angéle doou á catedral de Colónia um imenso dominio a sul da actual Bruxelas: era um vasto rectángulo de 2 a 5 km de largura por cerca de 25 km de comprimento, cobrindo uma extensáo de 18 600 ha, incluindo uma importante superficie de bosque, do qual subsiste nos nossos dias a floresta de Soignes. Veja mos seguidamente alguns «fiscos» reais. Os cinco fiscos cujo inventário bem pormenorizado se pode 1er num dos Brevium exempla e dos quais quatro se situaram entre o Artois, Toumai e a actual Lille (o quinto seria Triel, na regiáo parisiense) devem ter constituido o dote de Gisela, filha de Luís o Pió. Ora, cada um parece comportar uma grande villa e anexos bastante reduzidos. — Annapes (antigas comunas de Annapes e de Flers) mais trés dependencias: 2800 a 2900 ha. — Cysoing (comuna do mesmo nome, mais uma parte de duas comunas vizinhas entre as quais Bouvines): 1867 ha. — Somain (comuna deste nome, mais uma parte de trés outras comunas): 1406 ha. — Vitry-en-Artois: 1855 ha. Partindo destes exemplos, seria inútil calcular a superficie média. Isso dar-nos-ia uma ideia falsa, visto que essa superficie variava de uma maneira inacreditável de um dominio para outro. Náo é raro que a villa carolíngia tenha coincidido com uma paróquia do Antigo Regime e, portanto, com uma comuna do século XIX. No entanto, o caso dos fiscos deve ser considerado á parte, porque cada dominio principal tinha alguns outros de menor envergadura sob a sua depen dencia: os fiscos do Norte da Franga estendiam-se a diversas paró quias, mas poder-se-á dizer que cada um deles era habitado apenas por uma comunidade rural? De qualquer modo, a villa de Annapes ultrapassava os 2000 ha, enquanto cada um dos seus trés anexos (Gruson, Noyelles e Wattiessart) náo atingia mais de 200 ha (tal como as actuais comunas). É notável o facto de também noutros locáis se encontrarem villae igualmente pequeñas, que dariam origem a pequeñas paróquias ou comunas: entre o Loire e o Sena, alguns dominios de Saint-Germain-des-Prés eram igualmente reduzidos. E havia outros ainda mais pequeños. É o caso das villae muito infe riores a 50 ha, o das duas reservas da abadia de Lobbes que, no conjunto, náo chegavam a atingir 40 ha, ou o da villa de cerca de 20 ha sobre a qual foi edificado o mosteiro de Saint-Pierre-au-Mont-Blandin. Estas villae de pequeníssima envergadura náo comportavam, evidentemente, senáo alguns manses. Numa das extremidades do leque, ficavam portanto estas mansioniles ou villulae, e, na outra, as villae gigantescas como as de Leeuw-Saint-Pierre (18 600 ha). Os pequeños dominios, tal como os médios ou os mais vastos, podiam pertencer a um único senhor ou estar 77
divididos em numerosos pedamos. Esta nítida variedade de extensoes, a possível fragilidade de algumas villae (por partilhas de sucessáo ou concessSes em «beneficio», que podem conduzir á anexagáo das porciones que pertenciam a dominios vizinhos, assim como á divisáo entre dois proprietários, recebendo um os manses e o outro con servando a reserva), o contexto geográfico (regiáo nova ou povoada desde há muito tempo; terreno rico ou mediocre, etc.) podem con duzir a diferengas consideráveis de estrutura. O que vai seguir-se simplificará, portanto, demasiado a realidade, ou poderá mesmo falseá-la. Os elementos constituintes da «villa»: a reserva O termo reserva é moderno. Os homens do século IX chamavam-lhe mansus indominicatus, térra indominicata (dominicatus = = que pertence ao dominus, portanto ao dono da villa a que mais tarde se chamará senhor), ou ainda térra salica (ñas regióes ger mánicas). No centro, um conjunto de construyes qualificadas de curtís (em alemáo: Fronhof), rodeado por muros. É aqui que se encontra a casa de habitagáo (casa, sala dominica), em principio equipada com uma adega. Além déla, as construgóes de exploragáo (granjas, estábulos, cavalarigas, chiqueiros.. cozinhas, fornos de pao; oficinas para os artesáos, chamadas gineceus quando eram mulheres que nelas trabalhavam). Casas para os escravos. Um horto e um pomar, também eles muitas vezes rodeados de muros, apoiam a curtís. Era pelo menos este o caso de uma grande villa como Annapes, que dispunha também de um lagar (a despeito da latitude setentrional, em Annapes cultivava-se também um pouco de vinha). Nos dominios mais pequeños, a curtís era muito menos importante, mas havia sempre ñas suas proximidades um pomar e uma horta. Desta curtís dependiam bens diversos. Em primeiro lugar, as térras aráveis que podiam ser compostas por parcelas (campelli) mais ou menos numerosas e misturadas com os campos dos foreiros nos diversos sectores do terreno, mas que, na maior parte dos casos, compreendiam apenas algumas extensoes bastante grandes (as culturae, mais tarde as «costuras» ou condamines), cada uma délas com 30 a 90 ha no dominio temporal de Saint-Germain-des-Prés. Havia geralmente um prado, chamado pratum ou brolium (fr.: breuil-, al.: Brühl). E uma vinha ou clausum (fr.: clos) caso fosse possível: ainda mais a norte do que Annapes, ñas encostas do Monte Blandin, a abadia de Saint-Pierre possuía uma no meio da sua minúscula reserva. No entanto, quase sempre a parte mais importante da reserva é constituida por bosques. Trata-se náo ape nas de bosques verdadeiros, mas de charnecas e de terrenos baldios, 78
os pascua', é a estas pastagens (dado que os prados sao sempre demasiado pequeños por se limitarem ás margens dos ribeiros e aos fundos húmidos) que se vai buscar o sustento principal do gado. É muito raro haver, como em Coyecques en Artois, villa de Saint-Bertin, cinquenta hectares de prados, correspondentes a 20% da superficie em exploragáo. Que parte pertence á térra arabilis (campos e vinhas) da reserva no conjunto do território da villa? Isto varia em proporgoes enormes e o termo mansus indominicatus náo deve dar lugar a ilusñes. O políptico de Irminon permite, relativamente a Saint-Germain-des-Prés, «comparagóes precisas de superficie» (Ch.-Ed. Perrin). Em muitos casos, a reserva — incluindo o bosque — tem uma extensáo idéntica á dos manses tributários da villa. Reduzida á térra arabilis, a reserva representa ainda entre um quarto e a metade do espago cultivado no conjunto do dominio, ou seja, correntemente, várias cen tenas de hectares. É um caso frequente em Saint-Germain e em Saint-Bertin (em Coyecques: 255 ha, incluindo os prados), ou ainda na abadia de Lobbes (Leemes em Brabant: 194 ha de térras e 3 ha de prados). Mas, também aqui, os casos extremos náo eram raros. Como o da pequeña villa de Bousignies (Norte), que dependía do mosteiro de Saint-Amand e cuja única reserva era uma «costura» de 14 ha, ou seja, com a superficie bastante corrente para uma exploragáo camponesa. No extremo oposto, ocupando uma extensáo de conjunto de cerca de 2800 ha. Annapes e as suas trés mansioniles reuniam um milhar de hectares de térra arabilis que compunha a ou as reservas. Uma villa das Ardenas belgas, Allance, curiosa por ser formada por elementos dispersos, tinha uma reserva de sete blocos de cultura, totalizando mais de 430 ha. Tratava-se, portanto, de uma verdadeira amostragem e, muitas vezes, no próprio seio de um grande dominio temporal: os dominios da abadia de Lobbes, em Hainaut, dispunham de reservas cujas térras cultivadas se escalonavam entre mais de 450 ha e apenas 30 ha. Daqui se concluí que um terreno ocupado por uma importante villa faz frequentemente coexistir parcelas muito grandes, as «cos turas» da reserva, e outras de fracas dimensóes, correspondentes aos manses camponeses. As costuras agrupam-se geralmente perto do centro do dominio: é absolutamente excepcional (dois casos apenas no temporal de Saint-Germain-des-Prés) os elementos da reserva distarem do centro 15 a 20 km. Sáo diversos os anexos da exploragáo que também fazem parte integrante da reserva: um ou vários moinhos (cinco em Annapes) situados ao longo dos cursos de água, por vezes bastante insigni ficantes, pelo que o seu rendimento é irregular e incerto. Ñas regióes vinícolas, um pisoeiro e, ñas outras, uma unidade de pro dugáo de cerveja. É importante notar que os moinhos, pisoeiros ou 79
produtoras de cerveja podiam ser administrados com a reserva, portanto ligados á exploragáo desta última, ou «arrendados» por exemplo a um foreiro, contra pagamento anual de uma renda em géneros. Pelo contrário, todo o resto da reserva encontrava-se, sem excepgáo, submetido ao regime de exploragáo directa. Para valorizar essa reserva em proveito do dominus, era necessária uma máo-de-obra abundante. Mas onde encontrá-la fora da familia? Náo era de modo algum possível recorrer aos traba lhadores agrícolas, pagos á tarefa ou ao dia, porque os bragos deso cupados e as espécies monetárias eram bastante raros. Houve, evi dentemente, trabalhadores agrícolas, mas estes apenas parecem ter sido numerosos na Itália. Era preciso, na maior parte dos casos, recorrer aos foreiros, facto de que resulta a uniáo orgánica entre a reserva e as tenures para cada um dos trabalhos agrícolas do ano, e fazer trabalhar nela um grande número, devido ao carácter que se mantinha primitivo das técnicas agrárias.
Os elementos constitutivos da «villa»: os manses O conjunto das tenures camponesas de um dominio carolíngio é designado nos polípticos pela expressáo térra mansionaria: «a tenure dominial por exceléncia da época carolíngia» é com efeito o mansus. A partir de Benjamín Guérard, primeiro editor e admirável comentador do políptico de Irminon, os historiadores adquiriram o hábito de usar o termo manse, criado a partir do latim e indispensável na medida em que náo se presta á ambiguidade. A palavra mansus surge nos textos no comego do século VII. Difundiu-se em quase todo o Império carolíngio e mesmo fora dele: na língua germánica, o termo correspondente é Hoba ou Hova (Hufe em alemáo moderno). Encontramo-lo entre os Anglo-Saxóes, onde a tenure tipo do camponés, tanto quanto se sabe, de carácter e extensáo comparáveis, se chama hida. Os próprios países escan dinavos conheceram a palavra e o que lhe corresponde. O manse é uma «unidade fiscal» — é «o conjunto das térras que pagam determinadas prestagoes em proveito do dominus» — e «ao mesmo tempo, uma unidade de exploragáo», pois normal mente o manse é ocupado por uma única familia de exploradores, compreendendo a familia o pai, a máe e os filhos; a superficie do manse parece ser «calculada de forma a prover as necessidades de uma única familia» (Ch.-Ed. Perrin). Mas esta definigáo, válida para a época carolíngia, sé-lo-á também para um passado mais recuado? Pode ter acontecido que, originalmente, mansus (cf. o latim manere, mansio, de onde demeure, manoir...') tenha designado espe cialmente a casa de habitagáo e as construgóes de exploragáo 80
(estábulo, celeiro...), assim como a parcela onde se situavam esses edificios e cujo excedente servia de pátio, de horto e pomar (náo se sublinha suficientemente o contributo alimentar que o horto dava ao foreiro): aliás, é este o significado que reaparecerá, por exemplo, na Ile-de-France, por volta do século X II ou XIII. Depois, o termo deve ter passado Tapidamente a englobar o con junto da tenure: do mansus, centro da exploragáo camponesa, dependem as térras aráveis, muitas vezes uma parcela do prado, da vinha, e mais raramente um pedago de bosque ou de arbustos de fraca qualidade. Por outro lado, encontram-se muitas vezes ligados ao manse os direitos de utilizagáo comunitária: direito de enviar os porcos comer bolotas nos bosques do senhor e de retirar do bosque lenha e madeira; direito de mandar pastar o gado para as vastas extensdes de charnecas e terrenos alagadigos da reserva; direito de pastagem depois da colheita ñas térras náo vedadas ou na parte em pousio, quando este existe (mas estes últimos direitos náo sáo ainda generalizados). É errado pensar que o manse tenha sido, por toda a parte, uma «unidade topográfica» bem clara. É certo que, em muitas das regióes do Oeste (na medida em que a mata estava já parcialmente constituida) e do Sul (onde dominavam já os campos de forma irregular), o manse podia ser, de uma maneira geral e mais segura ñas regióes de habitat já disperso, uma exploragáo de um único foreiro: uma fotografía aérea permitiu deste modo reconstituir os contornos exactos de um manse «fóssil» do Rouergue. Pelo contrário, ñas regióes, geralmente setentrionais, de habitat aglomerado, as construgóes encontravam-se reunidas na aldeia, enquanto os campos estavam disseminados pelos diversos «quartéis» (trés ou quatro) do terreno. Na maior parte dos dominios, encontram-se diversas categorías de manses: manses ingénuiles, serviles, lidiles (estes últimos frequentes sobretudo na Francia orientalis). Originalmente, os pri meiros (que eram muitas vezes os mais numerosos, excepto na Germánia) deviam ter sido concedidos a homens «livres», os manses serviles a «nao livres» já entáo casati (portanto possuidores de uma exploragáo em vez de continuarem a ser alojados, alimentados, mantidos na casa do dominus), e os manses lidiles a «libertos» segundo o direito germánico (portanto, de estatuto intermedio entre o dos livres e o dos náo livres). Mas, no século IX, já náo há uma correspondéncia constante entre a qualidade do manse e a daquele que o explora: é frequente (como acontece no temporal de Saint-Germain-des-Prés), segundo parece, «as familias de serví terem-se extinguido, e uní grande número de familias de “colonos” ( = livres) terem afluido aos manses serviles». O facto de a distingáo entre as duas categorías de manses (livres e servís) ter persistido verifica-se 81
porque a superficie e os encargos eram nítidamente diferentes entre uns e outros. A partir do políptico de Irminon, que apresenta a superficie de cada pedago, B. Guérard calculara a superficie média do manse ingénuile no conjunto dos dominios de Saint-Germain, que era de 10 ha a 59 a, e a do manse servile, que atingía apenas de 7 ha a 43 a. Trata-se apenas de médias e dizem respeito, ao mesmo tempo, a diversas regioes (Saint-Germain-des-Prés tinha possessoes também fora da regiáo parisiense); e, mesmo que o manse tivesse uma «superficie habitual» — coisa bastante discutida e bas tante discutível—, esta variava de uma regiáo para outra. Contudo, subsiste um facto: o manse servile era mais reduzido do que o manee ingénuile. E estava sujeito a encargos mais pesados do que este último: servigos de bragos exigidos durante todo o ano, muitas vezes á razáo de tres dias por semana. Enquanto o manse ingé nuile exigia principalmente charrúas e servigos sasonais nos períodos de trabalho intensivo da térra (lavoura, ceifa, colheita, vindimas, carreto de madeira no Invernó...). É impossível determo-nos muito tempo sobre o problema da origem do manse em geral. O acordo é claro quanto a um ponto: esta tenure tipo era táo complexa no tempo dos Carolíngios que já lhe devia ser muito anterior. Chegando a este ponto, romanistas e germanistas assumem posigoes diametralmente opostas. Para os primeiros, o manse é o descendente do jugum; a difusáo tanto de um como do outro atingiu quase todos os territórios do Oci dente romano. O jugum era a tenure tipo do colono (era a extensáo explorável com um só jugo, ou seja, uma só parelha); depois, durante o Baixo Império, foi a unidade fiscal ficticia. Assumindo a posigáo contraria, os germa nistas véem no mansus uma forma de tenure germánica: a prova reside no facto de o manse náo ter existido ou ter desaparecido precocemente ñas regioes mediterránicas, que eram indiscutivelmente as mais romanizadas. Isto explicaría o facto de, pelo contrário, o encontrarmos nos sectores que nunca foram romanizados: as leis anglo-saxónicas dáo-nos a conhecer a hide desde o século VII; por seu tum o, a Hufe alemá é bem conhecida através dos textos a partir dos séculos IX-X. As duas, que sáo equivalentes, teriam sido originalmente o lote possuído pelo germano livre: tratar-se-ia de exploragóes familiares de uma «charruada», sendo esta última ao mesmo tempo uma unidade fiscal. A partir dos anos 400, os Germanos teriam difundido a instituigáo em todas as regióes invadidas e ocupadas duradoiramente. Ultrapassando este confronto entre romanistas e germanistas, Marc Bloch vira no mansus a oeste e na Hufe a leste duas instituigóes muito mais antigas, datando de uma apropriagáo do solo por atribuigáo de um lote a cada familia. 82
Se imaginarmos — sem provas — uma divisáo global em lotes numa época extremamente recuada, se encararmos o manse e os seus diversos sinónimos como uma unidade de tenure familiar, estamos a atribuir-lhe uma superficie mais ou menos constante. Mas ninguém se contenta já com as médias de extensáo calculadas por B. Guérard e depois por outros historiadores: na maior parte dos casos, trata-se apenas de médias aritméticas, sem base real, e que náo representam uma norma. Se essa média é de 10,5 ha na Ile-de-France e apenas de 7 ha na Borgonha, contra 15 ha na Baviera e 20 hectares na Gália do Norte, é porque — dizia-se — a Borgonha era povoada havia muito mais tempo do que a Ile-de-France, enquanto a Baviera e a Gália do Norte continuavam quase desprovidas de homens. As diferencias regionais explicar-se-iam, portanto, sobretudo através das diferengas de densidade de povoamento. E as diferengas locáis (nem todos os manses de uma mesma villa tém a mesma superficie) justificar-se-iam através das diferengas entre os bons e maus solos. Estas construgóes do espirito negligenciam um facto (cf. pp. 73-74"): alguns manses sáo antigas pequeñas propriedades que os camponeses, de livre vontade ou á forga, tiveram que deixar absorver pela villa vizinha e pelo seu senhor. Os últimos trabalhos — colocando-se em primeiro lugar os de Ch.-Ed. Perrin — sublinham as inúmeras irregularidades do sistema dos manses, a ausencia de «médias» válidas e o grande número de casos singulares. Ñas quatro villae de Saint-Germain-des-Prés ao sul de Paris, a superficie média varia já, de uma para outra, entre 9 ha e menos de 5 ha. Os casos individuáis mostram extraordinárias diferengas: os manses serviles variam de 1 (0,25 ha) a 37 (9,25 ha) e os ingénuiles de 1 (1,50 ha) a 10 (um pouco mais de 15 ha). Perguntamo-nos como podia viver uma familia — uma vez satisfeitos os encargos — com um hectare ou mesmo menos. Pelo contrário, ñas regióes mais setentrionais, o leque era muito menos aberto (de 1 a 3 ou a 4) e os manses sempre mais vastos (15 ha para os menos favorecidos, 30 ha e mais para os mais benefi ciados). Acontece que, aqui, os povoamentos, e portanto os dominios, eram mais recentes e, por conseguinte, menos densos. Pode acontecer que estas enormes divergencias no seio de muitas villae se expliquem através das alienagoes de parcelas em detri mento dos mais pobres rurais e em proveito dos mais hábeis e dos mais económicos, ou através dos «arroteamentos internos», no seio de um dominio, e dos quais alguns manses aproveitaram e outros náo. Mas o manse parece ter Tapidamente deixado de ser sempre uma unidade de tenure. Ainda antes de Carlos Magno, na Ile-de83
-France (o políptico de Irminon assim o testemunha), e um pouco mais tarde (cerca de 850) na Lotaríngia, houve um «superpovoamento do manse» (Ch.-Ed. Perrin). Em Verriéres, uma das quatro villae já estudadas de Saint-Germain ao sul de Paris, a média de familias por manse elevava-se a 1,84: podia tratar-se de vários casais descendentes de um único foreiro, ou de vários casais associados na sua pobreza para conseguirem a m anutengo de um terreno cultivado e para partilharem entre si o peso dos encargos devidos ao dominus; neste caso, a «unidade» da tenure existe apenas na aparéncia. Mas, noutros locáis, a evolugáo seguiu já outros caminhos; o fraccionamento de direito fez também a sua aparigáo, com plicando a tarefa do proprietário e dos seus administradores: os polípticos de Saint-Germain e de Prüm registam já numerosos «meios mansest) e «quartos» (ou «quartéis») de manses. O que se pode explicar através do termo da indivisáo familiar por partilha entre os co-herdeiros, sem prejuízo de outras causas possíveis.
Os encargos do manse Estes encargos sao de dois tipos: de um lado as rendas, do outro os servigos.
A s rendas Geralmente, sáo os encargos menos pesados e o seu montante é fixo. Representam em parte o «aluguer» devido pela possessáo — pelo menos vitalicia — da tenure, o contravalor dos direitos de utilizagáo do foreiro sobre os communia da villa e, finalmente, os antigos impostos públicos de cujo lucro o dominus se apropriou, muitas vezes abusivamente. As rendas em moeda, apesar de náo serem verdadeiramente raras, nao se encontram muito difundidas a náo ser em algumas regiSes (e pode adivinhar-se o — demasiado grande — partido que tiraram deste facto os defensores da «economia natural» ou «fechada»!). Trata-se frequentemente de taxas de substituigáo: os camponeses puderam (embora esse movimento só tenha sido vasto a partir do ano 1000) resgatar obrigagóes e, mais ainda, servigos que consideravam demasiado penosos ou demasiado absorventes. Pelo contrário, as rendas em géneros sáo variadas e muito comuns. As rendas á prorata da colheita, como o agrarium, tornaram-se raras no período carolíngio: encontram-se apenas no políp tico de Montiérender e elevam-se sempre a um décimo dos cereais colhidos pelo foreiro. No seu conjunto, as rendas consistem em quantidades fixas de gráos (trigo, centeio, aveia, cevada, espelta), XJ
de vinho, de linho... Algumas outras, extremamente comuns, pesam em especial sobre a casa ou o horto contiguo: trata-se de galinhas e de ovos. Evidentemente menos frequentes sao as rendas em cabegas de gado (carneiro, porco), devido ao peso que representavam e ao facto de parecerem destinar-se aos abastecimentos do exército. Os ocupantes dos manses deviam fornecer ao proprietário uma determinada quantidade de produtos fabricados, correspondentes ás necessidades mais correntes. Encontramos, em primeiro lugar, o trabalho da madeira: corte e desbaste das achas, fabricagáo de pranchas, ripas, aduelas e círculos para os barris, estacas para as vides, través... Para estes trabalhos diversos, devia aplicar-se a regra da rotatividade e, em cada ano, cada um dos foreiros deveria prestar um trabalho — de género diferente. Em segundo lugar, temos o trabalho téxtil: todos os anos o foreiro deveria fornecer um determinado número de pegas de paño de linho ou lá. Tratava-se de trabalho á pega, sendo a matéria-prima fornecida pelo dominus (embora também pudesse provir de rendas), efectuado pelo elemento feminino da familia camponesa.
Os servigos ou prestagoes em trabalho É preferível náo os designar pelo termo corveia (dia de trabalho gratuito), que na realidade evoca apenas o servigo de lavoura. Estes servigos sao de diversos tipos e sáo eles que permitem a exploragáo da reserva. Formam, além disso, o núcleo do sistema dominial «clássico». Quer isto dizer que os servigos agrícolas propriamente ditos sáo, de longe, os mais importantes. Numerosos, variados, os servigos agrícolas sáo os mais duros de suportar pelo foreiro, tanto mais que sáo efectuados em detrimento da valorizagáo do seu próprio manse. Na época dos Carolíngios, coexistem dois sistemas de servigos agrícolas. Encontramos em primeiro lugar, o do «lote-corveia»: consiste na jungáo de um lote de térra da reserva, frequentemente medido em ansanges (1 ansange — cerca de 14 ares), á exploragáo de um manse, cujo foreiro é obrigado a realizar o ciclo completo das operagoes agrícolas, até ao armazenamento da colheita nos celeiros da reserva. Quando a cada manse sáo anexados dois lotes-corveias, deduz-se que isso se deve á rotagáo trienal, mas o segundo lote-corveia é muitas vezes mais pequeño (2 ansanges contra 4 do primeiro, nos dominios de Saint-Germain-des-Prés): isto demonstra que se plantava menos «trigo» de Primavera do que cereais de Invernó. 85
O segundo sistema de servidos agrícolas era o mais próximo do que se encontrava em uso no tempo em que os escravos do senhor trabalhavam em grupo. Todos os foreiros deviam um certo número de dias por semana (o nao livre, cujo manse era mais pequeño, devia mais dias do que o livre), por cada uma das opera?5es tom a das necessárias pelo calendário agrícola, ou entáo tinham que trabalhar até á conclusao da tarefa a efectuar. De qualquer modo, qualquer que tenha sido o sistema em uso, para além do tempo que era subtraído á exploragáo do manse, o foreiro tinha de uti lizar o seu próprio material, facto que vinha lanzar pesados encargos sobre o seu nivel de vida. De facto, apesar de alguns trabalhos na reserva, como a sacha dos campos, a ceifa, a colheita, a debulha dos cereais, serem feitos á máo (os manoperae), para os outros eram necessários animais e material pesado e todos os foreiros tinham que fornecer os seus, caso os tivessem. Os carroperae, servigos prestados pelos animais, nem sempre eram servigos agrícolas propriamente ditos. Tratava-se em parte de carretos dos produtos da reserva a transportar até á curtís, ou seja, de carretos de cereais, vinho e madeira para o próprio interior da villa. No entanto, outros carroperae (dá-se-lhes precisamente o nome de angariae) eram efectuados para o exterior da villa. Estes angariae diziam respeito ao transporte dos excedentes da colheita até á residencia do bispo ou até á abadia, ou mesmo até a um mercado ou a um porto. Reminiscencia do tempo em que o Estado podia requisitar os homens, os seus animais e as suas viaturas, para os seus transportes, os angariae apresentam-se como carretos executados em comum pelos foreiros de uma mesma villa, que se associavam em pequeños grupos, fornecendo cada um o carro e a parelha, em geral á razáo de quatro bois por viatura (Ch.-Ed. Perrin). O políptico de Saint-Remi de Reims precisa as distancias, que atin giam de 80 a 100 km: os foreiros transportavam os cereais e o vi nho das villae até á própria abadia e também até ao mercado de Chálons-sur-Marne. Os foreiros da abadia de Wissemburgo, na Alsácia, transportavam os excedentes até ás cidades-mercado de Mayence (em especial), Spire e Worms. Finalmente, é muito possível que o carreto que, no políptico de Irminon, é designado por Wicharisca, designe uma angaria devida pelos camponeses de Saint-Germain-des-Prés e que os obrigava a garantir o transporte dos excedentes das reservas até ao porto de Quentovic (em Boulonnais). A dm lnistra?ao e papel económico da «villa»
Pouco se sabe sobre as pequeñas fortunas fundiárias, e náo é possível saber se muitos proprietários desta categoría se ocupavam ou náo de muito perto da administragáo dos seus bens. As fontes
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escritas dáo mais informagóes sobre as grandes fortunas. No que se refere aos dominios reais, a capitular De villis indica que á frente de cada villa se encontra um prefeito (maior ou villicus). As villae estáo agrupadas em circunscribes administrativas ou fisci: á cabera de cada fisco encontra-se um judex (delegado do senescal do palácio real ou imperial), que administra o conjunto do fiscus que goza de autonomía em relasáo ao conde e portanto de imunidade geral. E o judex controla a exploragáo económica das villae da sua jurisdi?áo: os maiores dependem dele e o mesmo acontece com os minis teriales ou agentes que dirigem servidos particulares (florestais, caudelarias, abastecimentos, alugueres, decanos...). É lógico que os mosteiros muito grandes se tenham inspirado nesta adm inistrado em várias fases: um «prefeito» á frente de cada dominio, um chefe á frente de cada grupo geográfico de villae bastante próximas umas das outras. Mas as provas escritas de que assim tenha sido sáo raras, excepto relativamente ao temporal de Priim que, no fim do século IX, tinha uma adm inistrado hierarquizada bastante análoga á dos fisci. Pode tratar-se de uma im itad o absolutamente voluntária ou talvez da aplicado de injun?5es reais. Em todo o caso, é certo que, durante a Baixa Idade Média, as grandes abadias (Saint-Denis, por exemplo) teráo ainda uma adm inistrado em tres escalas (o do minio — o grupo de dominios— a abadia). O intendente ou judex é a verdadeira chave-mestra do «regime dominial»: dirige tanto os criados da familia como os foreiros que viriam efectuar os servidos devidos, cobra as rendas, guarda os edi ficios do senhor e as suas provisoes. Tem grandes responsabilidades e, portanto, grande poder, que implica o grave perigo de abusos. Quando se lé a capitular De villis, percebe-se que um dos principáis escolhos do sistema provinha muito mais da desonestidade ou da indocilidade dos oficiáis (quer se trate de maiores ou de judex) do que da possível má-vontade dos foreiros ou da familia. No que diz respeito ao papel económico do dominio clássico, a imagem da villa, «quinta e manufactura vivendo em regime fechado» (Marc Bloch), náo é de modo algum exacta. Quando o dominus era possuidor de diversas villae (os possessores de uma só villa náo dei xaram quaisquer recorda?oes ñas fontes), a villa «integrava-se geralmente num conjunto económico mais vasto» (G. Duby). Alguns dominios eram especializados: os mosteiros setentrionais tinham vinhas no vale do Reno ou na Bacia Parisiense; as igrejas do vale do Pó possuíam villae plantadas de oliveiras na regiáo dos lagos italianos do Norte e salinas no sector de Comacchio; a cate dral de Lucques e outras igrejas da Toscánia tinham, por seu tumo, dominios que incluíam salinas, nos arredores de Volterra. Esta multiplicidade de centros produtores implicava «liga?5es» e transportes a média ou mesmo longa distancia. Sobretudo para o vinho: os monges das abadias do Norte tinham de organizar caravanas para todos 87
os anos mandar vir o vinho de Colónia para Saint-Bertin, do Laonnais para esta ou aqueta abadia flamenga. O mesmo náo acon tece com os proprietários laicos, «seminómadas», que náo exigiam muitos transportes de géneros para o seu consumo, uma vez que se deslocavam para os consumir no local, ñas suas villae, em perío dos determinados (mandava-se simplesmente por vezes buscar um produto a um dominio, quando aquele onde se encontrava o senhor náo o tinha na altura). Entretanto, em regra, os mosteiros onde os monges tinham de estar fixos eram obrigados a recorrer a trans portes anuais regulares entre todas as villae do temporal, próximas ou distantes. Havia, portanto, um pessoal quase especializado em transportes ao servido das grandes abadías. A abadia de Córbia tinha á sua disposigáo 140 servidores encarregados de trazer para Sáo Pedro de Córbia os produtos do temporal necessários para o abastecimento dos monges e da sua familia, em carrosas, barcos, ás costas de homens (cf. atrás a propósito dos angariae). Daqui resulta o que em geral se considera um desperdicio inaudito de forgas. É bem verdade que os foreiros requisitados para os grandes carretos ficavam temporariamente perdidos para a exploragáo dos seus man ses. E parece abusivo que um mosteiro, ainda que um dos maiores, tenha podido «mobilizar» de forma continua 140 pessoas (sem dúvida mais do que uma por monge) para o seu abastecimento. Seriam todos os géneros do conjunto das reservas e os entregues pelos foreiros consumidos pelos grandes, pelos seus numerosos cria dos e pelos seus numerosos hóspedes? Náo parece que tal acontecesse. Uma parte dos excedentes era absorvida pela distribuido de esmolas aos pobres: dezenas de indigentes recebiam todos os dias a sua ragáo á porta de Saint-Denis, de Saint-Germain-des-Prés, de Saint-Riquier... Os próprios aristócratas laicos distribuíam víveres aos necessitados, mais por razoes de prestigio do que para obedecer aos preceitos evangélicos. Portanto, uma primeira parte do exce dente era escoada gratuitamente, enquanto outra parte era trocada por numerario. E as quantidades assim comercializadas podiam ser enormes, principalmente em relagáo ao vinho. Um cálculo feito a partir dos dados do políptico de Irminon prova que Saint-Germain-des-Prés «retira va... anualmente, tanto do seu dominio próprio como das rendas, cerca de 15 000 moios de vinho. Como a abadia consumía apenas pouco mais de 2000, sobrava um excedente enorme, destinado sem dúvida alguma á venda» (R. Doehaerd). Náo se trata de um facto isolado: se avaliarmos por aquilo que ela possuía na Baixa Idade Média, a abadia de Saint-Denis ainda dispunha de mais vinhas do que Saint-Germain, que, no comego do século IX, tinha entretanto, ñas suas reser vas, mais de 1500 ha de vinha. Desde há muito tempo que se notara que a feira do mosteiro, aparentemente fundada por Dagoberto I e cuja abertura fora fixada para 9 de
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Outubro, día de Sáo Dinis, era, pela própria data, uma «feira de vinho»: era provavelmente «o próprio vinho da abadia... que se vendia na feira», mas também, sem qual quer dúvida, o de outros produtores. Mas o facto de os grandes proprietários serem vendedores de géneros náo se verificava apenas por estes terem de se desemba razar do excedente da sua producáo. Verificava-se também porque eles tinham necessidade de numerário a fim de procederem ás indis pensáveis compras de outros bens. Se a capitular De villis prescreve que os judices dos fis cos venham todos os anos, pelos Ramos, entregar no palácio do soberano «o dinheiro retirado das colheitas». náo é para que, como se diz com demasiada frequéncia. o senhor o «pudesse investir em térras e em jóias». Testemunha-o o abade de Ferriéres-en-Gátinais que mandava vender cereais e vinho para poder dispor de fundos para renovar o guarda-roupa dos seus monges. A economía dominial desembocava, portanto, numa economia de trocas. O escoamento dos excedentes dominiais gerava, «ao longo dos ríos e dos eixos onde a circulado era menos perigosa. uma actividade comercial de horizontes por vezes bastante largos» (G. Duby). Isto é praticamente seguro pelo menos no que respeita aos séculos IX e X (excepto, em medida variável. no decorrer do parénteses causado pelas mais duras incursoes normandas). «O do minio constituí (de facto) o ponto de partida de todas as funfóes económicas.» O dominus é o principal produtor da época; e tem quase sempre os seus transportadores e os seus agentes encarregados de vender e de comprar em seu nome. É «ele quem, no Norte, por exemplo, possui mais carneiros e mais lá; é ele quem possui os jazigos de metáis..., é ele quem ... possui as vinhas mais extensas; ... dispSe muitas vezes dos meios para mandar construir barcos ou carros exigidos pelo transporte de mercadorias; é ele quem, final mente, é tomado especialmente em considerado para a obtenfáo dos privilégios comerciáis concedidos pelos poderes públicos» (R. Doehaerd). A grande exploragáo representada pela reserva dominial «vivia (portanto) no meio de um mundo em movimento». Comunicava com as outras reservas do mesmo proprietário e também com as reservas de outros senhores das proximidades. E é altamente provável que tenha também estabelecido relacóes comerciáis com os exploradores camponeses das vizinhanjas, tanto com os foreiros do seu próprio dominus como com os dos outros grandes. Os rurais deviam possuir algumas moedas para liquidar rendas especificadas em espécies (que, afinal, náo eram, como pensaram 89
alguns, forzosamente pagas em géneros), bem como para pagar eventuais multas, uma vez que as leis e os costumes sancionavam a maior parte das infracgóes com uma pena pecuniária. Deveria reconstituir-se — embora seja aparentemente impossível —■ a geo grafía das regióes onde se fazia eventualmente o resgate de prestagóes ou de servigos e onde eram mais frequentes as rendas em espécies: alguns textos demonstram que, pelo menos em Itália, na Brescia, em Bobbio..., estas eram mais elevadas e mais numerosas do que na Francia occidentalis, na Lotaríngia e na Germánia. Mais do que a possibilidade de receber algumas moedas como assalariados ocasionáis, é a da venda de uma parte da produgáo das tenures que deve justificar a presenga de signos monetários nos lares rurais. Nada prova que a produgáo do manse fosse exclusivamente reservada para o consumo dos seus ocupantes e para as rendas devi das ao proprietário. É mesmo o inverso que se encontra indirecta mente provado pela verdadeira populagáo dos mercados semanais, inclusivamente ñas mais pequeñas aldeias, no decorrer dos séculos IX e X. Estes mercados náo eram de modo algum «órgáos inter nos» do dominio, visto que a capitular De villis prescreve, no seu artigo 54: «Que cada intendente vele... por que os nossos homens... náo percam o seu tempo a correr os mer cados.» Nestes mercados, os foreiros das villae dos arredores podiam escoar os excedentes dos seus cereais, do seu vinho, das suas aves de capoeira, e mais ainda talvez dos seus frutos e legumes... Os compradores tanto podiam fazer parte das fileiras camponesas como ser intendentes de grandes dominios das proximidades: o artigo 32 da capitular De villis prevé o caso de os judices, que devem ter sempre semente de primeira qualidade, a obterem «quer por com pra, quer de outro modo». Temos, portanto, um «movimento natu ral de compras e de vendas, evidentemente limitado mas regular». E o pequeño explorador podia ainda esperar vender alguns produtos aos viajantes ou aos mercadores de passagem. Portanto, tal como a reserva, embora evidentemente sem a mesma amplitude, as tenures praticavam o negocio. Este aspecto, pouco conhecido, da actividade de trocas era no entanto o seu aspecto mais importante, na medida em que a maior parte da populagáo se encontrava, como se vé, im plicada neste tráfico de curto raio de acgáo. Mas «esta época, que conheceu as pequeñas compras de subsisténcia no mercado da aldeia, náo ignorou as especulagoes com os produtos da térra, encorajadas pelos grandes desníveis de produgáo (entre um ano e o outro), pelo superpovoamento dos (raros) terrenos (bem cultivados), pela penuria permanente, pela carestia que era uma ameaga todas as Primaveras» (G. Duby). 90
Em 794, no sínodo de Francoforte, e de acordo com os bispos, o rei franco, que acabava de instituir os seus novos denários, fixa um máximo para os principáis cereais vendi dos a retalho: por moio, a aveia náo de verá ultrapassar 1 de nário, a cevada 2 denários, o centeio 3 denários e o trigo 4 denários. Para dar o exemplo, os cereais provenientes dos celeiros reais seráo vendidos mais baratos: o moio de aveia custará 1/2 denário, o de cevada 1 denário, o de centeio 2 denários e o trigo (que é, como sempre, o cereal mais caro da Idade Média) 3 denários. A taxafáo é alargada ao próprio pao vendido a retalho: por 1 denário, o padeiro deve vender doze páes de trigo de duas libras. No espirito de Carlos Magno, todas estas decisoes eram válidas tanto para os anos de carestia como para os anos de colheitas normáis. E o soberano acrescentava que, antes de vender os excedentes do fiscus, o intendente devia assegurar-se de que todos os foreiros tinham o suficiente para comer du rante o ano. Um pouco mais tarde, a capitular de Nimégue (806), cuja tonalidade «religiosa» é conhecida, ao condenar a usura, condena também a especulado de uma forma ainda mais clara: a fome devastava entáo diversas regiSes do Império. O artigo 17 vota á execrado todos aqueles que com prara vinho ou cereais imediatamente depois das colheitas para os voltar a vender pelo menos pelo triplo na Primavera seguinte, portanto, na altura da «soldadura». E, tres anos depois, Carlos Magno volta á carga, desta vez proibindo uma prática ainda mais grave, os adiantamentos em espécies ou em géneros antes da colheita, seguidos da exigencia do usurario de ser reembolsado do dobro ou do triplo do valor emprestado: tratava-se evidentemente dos camponeses que (art. 12) «vendiam o vinho e os cereais antes da colheita, de tal maneira que ficavam pobres». Os dom inios náo «clássicos»
O regime dominial «clássico», nascido entre o médio Loire e o Reno, generalizou-se em muitas regioes, mas segundo formas mais ou menos modificadas. Ele próprio apenas representa, aliás, uma «breve passagem no seio de uma evolugáo continua», nao sendo tal vez, no fundo, senao um regime «transitorio» (G. Duby). A Francia orientalis, entre o Reno e o Elba, foi cenário da m ultiplicado das villae, devido á conquista merovíngia e sobretudo carolíngia. E as fortunas fundiárias, nomeadamente as religiosas, ultrapassaram aqui em importancia as da Francia occidentalis ou media. Aos cerca de 2000 manses incluidos no temporal de Saint-Germain-des-Prés e aos 1600 do da abadia de Prüm, correspon dían! 4000 do mosteiro de Saint-Gall, enquanto duas outras abadias, uma saxónica e outra bávara, contavam, cada uma, com 11 000 manses, no século IX. E, no interior de uma villa «alema», havia diferengas em re la d o ás villae clássicas de entre o médio Loire e o 91
Reno, tais como a predomináncia dos manses serviles, a fraqueza dos servigos devidos pelos foreiros na reserva, que dispunha de uma máo-de-obra própria composta por mancipia. Ainda no século X, a organizagáo dominial da Francia orientalis parece bastante pouco evoluída. A reserva era entáo aqui geralmente bastante reduzida e formada por pedagos dispersos por um grande raio em volta da curtís, que por vezes náo era mais do que um centro de recepgáo das rendas (que incidiam mais sobre os foreiros do que sobre as tenures). Assim, a villa da Germánia, ou villicatio ( = circunscrigáo gerada por um villicus ou intendente), surge mais como uma entidade administrativa do que como um agrupamento económico. Isto náo impede que náo seja para além do Reno, para onde a villa foi aparentemente importada pelos Merovíngios e pelos Carolíngios, que se destacam, desde o século IX, as principáis diferengas em relagáo ao sistema de entre o Loire e o Reno. Estas verificam-se sobretudo a Sul e a Oeste. Um primeiro exemplo roostra que o sistema «clássico» náo chegou a atingir as provincias do Noroeste, ao norte do Loire. Em diversas possessóes de Saint-Germain-des-Prés, como Villemeux ou Corbon na Baixa Normandia, os man ses camponeses (adquiridos ou náo através de doagóes re centes aos monges) mantém-se quase todos, no tempo do abade de Irminon, em autonomía económica: náo participam na valorizagáo da reserva e a casa do senhor é simplesmente abastecida por aquilo que o abade exige dos seus fo reiros. Estes últimos, vagamente aparentados com os peque ños proprietários por conta própria, entregam uma parte da sua própria colheita. Aparentemente, sáo os escravos que cultivam inteiramente os mansi indominicati. De facto, a dispersáo dos campos e do habitat coloca os foreiros dema siado longe da reserva para nela poderem executar servigos agrícolas. De tal modo que a «Bretanha», uma parte da Normandia e o Maine (onde eram raras as exploragóes de grande envergadura) parece náo terem conhecido o regime «clássico». Enquanto o Norte da Borgonha pertence ao dominio das villae tipo, o mesmo náo se pode já dizer do Sul. Náo mais do que da Auvergne, da Aquitánia, com mais razáo do que da Septimánia e da Provenga. Portanto, ñas regióes francas, os lagos estreitos, orgánicos, entre reservas e tenures, materializados pela existéncia de servigos em trabalho impostos aos foreiros, apenas se encontram num sector bas tante restrito. Aliás, por toda a parte a disjungáo entre reserva e Na Lombardia, tal como na Germánia, eram as «gentes da casa» (masnada), equipas de escravos «prebendeiros», que valorizavam os «pátios» ( = reservas). Eram apoiados por alguns servi casati que manses é o caso mais frequente. 92
deviam servidos ilimitados. Exceptuando estes poucos foreiros náo livres, todos os outros, ou seja, a esmagadora maioria, eram livres, por exemplo ñas térras da abadia de Bobbio, por volta de 850. Estes homens livres, que por outro lado possuíam «alódios», eram os ditos libellarii, porque a sua tenure lhes tinha sido concedida por um acto escrito (ao contrário do que se passava na Gália ou na Germánia, onde a escrita, bastante rara, náo era nunca utilizada para assinalar a entrega de uma tenure). Esta tenure náo era vitalicia (como em principio ñas regioes de entre o médio Loire e o Reno) e muito menos hereditária (como era de facto a norte dos Alpes), mas ape nas concedida por um prazo fixo, bastante longo (29 anos pelo me nos). Trata-se evidentemente de reminiscencias do direito romano antigo. Salvo algumas excepgoes, os libellarii náo deviam servidos; estavam «isentos de toda a colaborado no trabalho» da curtís. Esta vam associados á «economia da corte» de uma maneira diferente, pois deviam entregar ao senhor do solo uma parte das suas próprias colheitas, aliás variável. Ñas térras de Santa-Giulia de Brescia, essa parte era de um tergo para os cereais e de metade para o vinho. Ñas da catedral da Ravena, as percentagens eram menos pesadas: 10 % para os cereais e o linho, 25 ou 33% para o vinho. Nada há aqui que evoque o sistema clássico. Na Itália do Norte, justapunham-se portanto «uma explorado de tipo servil á alemá e... um modo de gestáo da térra baseado na concessáo de carácter tempo rario» (G. Duby). Os libellarii eram já «quinteiros», sujeitos a uma renda em géneros, antepassados daqueles cujo número se multipli cará um pouco por toda a parte no Ocidente, por volta do século x m . Em fu n d o das condigoes económicas próprias da península, o «sistema italiano» evoluiu diferentemente da villa carolíngia. O fim do século IX e o século X conheceram aqui uma «vivacidade de trocas» maior do que o resto do Ocidente. Daqui resulta o uso cada vez menos restrito da moeda: as obrigagoes em servidos dos foreiros, já pouco pesadas, foram sendo resgatadas em dinheiro. De tal modo que, pouco antes do ano 1000, os servidos, e mesmo as taxas em géneros, quase tinham desaparecido, pagando os campo neses quase exclusivamente em moeda, como por exemplo ñas térras do capítulo da catedral de Lucques, na Itália Central. Que dizer, finalmente, da Inglaterra «anglo-saxónica»? A escuridáo é quase total, mas parece, no entanto, que, a partir do século VIII, a aristocracia, que de resto tinha uma influencia menos pesada do que no continente, concedía aos rurais térra, sementes e rebanhos em troca de servidos pessoais. Por outro lado, a leitura do Domesday Book, redigido em 1086, depois da conquista normanda, dera uma falsa impressáo, segundo a qual essa conquista, longe de se limi 93
tar a suplantar uma classe dirigente anglo-saxónica por uma nova, esta normanda, teria feito quase tábua rasa das estruturas rurais anteriores. Deveria, no entanto, ter-se pen sado que os Normandos eram apenas os últimos invasores da ilha. Haviam sido precedidos pelos SaxSes ocidentais e pelos Vikings. De cada vez, as tendencias económicas pro fundas tinham continuado a evoluir sem demasiados inci dentes. De tal modo que, antes de 1066, a Inglaterra se encontrava em pleno renascimento material, o que atraiu os Normandos. Apesar de o termo manoir (herdade) ser de importagáo nor manda, o organismo que ele designa era-lhe muito anterior. Sabe-se agora que os grupos dominiais, que se pensava serem uma criagáo de Guilherme o Conquistador, existiam desde a época saxónica. No Norte do país, os habitantes dos lugarejos afastados deviam servidos e prestagoes á aldeia central, onde se situavam a casa e o essencial das térras do senhor. O mesmo acontecía no Danelaw e noutras regioes. E parece que estas estruturas federáis eram entáo o pro duto de uma evolugáo: a partir do século VII, o temporal primitivo do arcebispado de York aumentara devido tanto ás doagSes como ao arroteamento de bosques e de chamecas, por exemplo, em Ripon. Também o desmembramento destes agrupamentos territoriais se esbogara muito antes de 1066: em Ripon, a evolugáo para a her dade clássica — composta por uma reserva e por tenures que se estendiam apenas sobre todo ou parte de um único terreno — comegou nítidamente mais cedo, conforme testemunham os nomes de locáis antigos. Portanto, as «herdades unicelulares» (Ed. Miller) surgiram no tempo dos reis saxónicos, em consequéncia, ao mesmo tempo, de partilhas sucessórias e de um desenvolvimento demográ fico continuo a partir do comego do século X, que obrigava a explo rar mais intensamente os terrenos e a criar novas pequeñas comu nidades «unitárias» ñas térras arroteadas.
Capítulo 5
A ECONOMIA DE TROCA
Relativamente a estes problemas, as fontes sáo pouco numerosas e, como sáo fontes indirectas, ao contrário das que se referem á térra, a sua utilizagáo apresenta muitos perigos. Assim, a economia de troca continua ainda pior esclarecida do que a economia rural. Há, entretanto, uma questao preliminar. Para a maior parte dos historiadores, náo pode existir actividade comercial sem cidades e sem mercadores profissionais. Como faltam vestigios escritos e ar queológicos de cidades numerosas e bastante activas, como sáo raras ou inexistentes as mengóes de negociatores, eles concluem tratar-se de marcas irrefutáveis de uma «economia fechada», ou pelo menos de uma fraca actividade da vida artesanal e comercial; é isto que se admite frequentemente em relagáo a este longo período de seis séculos. Ora esta posigáo de principio náo é nem sempre nem inteiramente justificada. Algumas pragas — como Dorestad ou Duurstede —, mencionadas nos séculos VII e VIII como importantes cen tros comerciáis, podem náo ser verdadeiras cidades mas únicamente, ou quase, entrepostos. E os Vikings, simultáneamente piratas e mer cadores, mostraram-se muito capazes de seguir a via do negocio lucrativo, sem para isso disporem de cidades na Escandinávia. In clusivamente, no final da Idade Média, uma grande parte do comér cio da lá de Inglaterra estava ñas máos de mercadores que viviam no campo e faziam trabalhar uma máo-de-obra camponesa (M.-M. Postan). Com efeito, o artesanato e o comércio podiam proporcio nar ocupagáo parcial a camponeses, pescadores e proprietários que exploravam grandes dominios. Para um tráfico local, as vendas e compras efectuadas nos mercados das aldeias náo tém necessidade de um mercador profissional: as feiras rurais do nosso tempo ainda o provam. E um «comércio sem mercadores» (M.-M. Postan) pode ter mesmo um raio de acgáo regional, como o ilustra o caso dos 95
homens que, por conta do grande mosteiro de que dependiam, se encarregavam de ir longe comprar ou vender os produtos que faltavam aos monges ou que estes tinham em excesso: esses praticantes monásticos náo eram negociatores e, contudo, o seu comércio náo era «ocasional». Pode também ter existido um comércio «a meio-tempo», exercido por aqueles a quem os historiadores ingleses chamam part-time merchants. Na Noruega, o trabalho da térra apenas é possível durante alguns meses, o solo é, por outro lado, muito pobre, pelo que os camponeses podiam, durante uma parte do ano, correr os mares e comerciar ñas costas longínquas; era tam bém o caso dos Frisoes que, entre duas campanhas de pesca, iam procurar muito longe o escoamento para os seus produtos. Assim, mesmo que as cidades da Alta Idade Média fossem poucas e pequeñas, mesmo que os mercadores profissionais constituíssem uma legiáo, essas náo seriam razoes suficientes para se concluir por uma extrema atonia da economia de troca. *
*
Apesar de tudo, o estado, a evolugáo e o número de cidades ao longo dos séculos obscuros seráo tomados como ponto de partida para este estudo. Porque sobre elas dispomos de fontes escritas e arqueológicas que apresentam algumas indicagoes mais precisas. As grandes m igra$3es de m eados do século V III
A s cidades Depois das primeiras invasoes do século III, a vida urbana desapareceu, facto que ninguém póe em dúvida. Mas em que medida se terá tratado de um eclipse total, em que medida teráo as cidades enfraquecido ainda mais ou desaparecido, em consequéncia das in vasoes posteriores aos anos 400? Pirenne admitía uma sobreviven cia, embora débil, das cidades merovíngias, anterior á sua ruina completa consecutiva á avanzada musulmana. As grandes e belas cidades romanas sobreviveram ás primeiras invasoes, mas em que estado! As pessoas ricas trocaram as suas «apertadas fortalezas» pelos seus dominios rurais (cf. Sidónio Apolinário, em meados do século V). O facto de os reis bárbaros terem feito de algumas délas as suas capitais (cf. p. 62) verificou-se por que viam nelas, sobretudo, fortalezas que lhes davam forga e pres tigio junto dos seus guerreiros e também dos «indígenas»: ao 1er Gregório de Tours ou o pseudo-Fredegário, apercebemo-nos de que os Merovíngios, por exemplo, residiam de preferencia ñas suas villae rústicas. 96
Desde a segunda metade do século III, o perímetro das suas muralhas é muito restrito. Pouco antes de 300, as muralhas rodearam, apressadamente, os bairros essenciais, sendo os materiais fornecidos pelos monumentos da periferia, que era abandonada. O re cinto de Reims tinha apenas 2200 metros (20 a 30 ha), o de Orleáes 2100 metros (25 ha), ao passo que em Soissons o seu perímetro atingia apenas 1400 metros (12 ha), 1300 ou 1500 em Paris (8 a 9 ha), 1900 em Auxerre (6 ha)... Eram, portanto, cidades de dimensóes reduzidas. A cada uma délas podia ser atribuido o verso de Fortunato (segunda metade do século VI) sobre Verdun: «Urbs Vereduna, breve quamvis claudaris in orbe» (A cidade de Verdun, ainda que pequeña por causa das muralhas). Notemos que, em geral, numa inten?áo defensiva, os reis bárbaros mandaram conservar cui dadosamente as muralhas. Mas, na época merovíngia, as cidades limitadas tornaram-se fre quentemente cidades santas: adoptando para a sua adm inistrado os quadros criados pelo Império Romano, a Igreja assegurou a sobrevivencia das velhas cidades, onde estabeleceu os seus bispos. Todavía, transferiu as suas sedes episcopais, criando uma vida urbana em aglomerados recónditos, enquanto as cidades de que se retirava ficavam abandonadas. Paris, Reims, Bordéus e Liáo ficaram a dever muito á presenta continua de um bispo, ao longo destes séculos tao conturbados. Mas a contraprova é também concludente: as cidades evacuadas pelos prelados decaíram, como é o caso de Aps em beneficio de Viviers, de Saint-Paulien em beneficio de Puy, de Javols em beneficio de Mende... Tongres, devastada no século IV pelos Francos e abandonada depois pelo seu bispo, fez a prosperidade de duas cidades que se tomaram sucessivamente sedes do bispado da Civitas Tungrorum, Maastricht e depois Liége. Langres foi desprezada pelo seu bispo em favor de Dijon, que em breve eclipsou a velha cidade romana: neste caso, a partida deveu-se, entre outras causas, ao desejo de encontrar um sitio mais favorável para a vinha (R. Dion). Pouco a pouco, depois das desordens mais violentas dos pri meiros tempos bárbaros, estas cidades fechadas come?aram, mais ou menos tímidamente, a ultrapassar as suas muralhas. Em volta das igrejas formaram-se aglomerados «suburbanos» (loca suburbana). Dos anos 400 até ás invasóes normandas, continuou-se a instalar os cemitérios extra muros. Daqui resulta o lento aparecimento de faubourgs (arrabaldes). Era, pois, fora dos muros que eram sepultados os már tires e as personagens santas. Nos locáis dos seus monu mentos funerários edificaram-se, no tempo dos Merovíngios, abadías e colegiadas, como o célebre mosteiro de Saint-Remi 97
sobre o túmulo do bispo Remi, a algumas centenas de metros no exterior das muralhas de Reims. Assim aconteceu sob os muros de muitas cidades: havia, por exemplo, vários arrabaldes deste género em Paris, sendo os mais antigos os de Saint-Marcel e de Sainte-Croix (hoje, Saint-Germain-des-Prés). Pouco a pouco, as igrejas cemiteriais e as basílicas de todos os géneros atraíram, além dos pere grinos, os habitantes. Apesar de esses suburbio terem con servado, durante muito tempo, um aspecto campestre e um habitat bastante disperso, alguns dos seus habitantes devem ter vivido náo da agricultura, mas pelo menos em parte do artesanato e do negócio.
A s cidades entre o Loire e o Mosa; a Bacia Parisiense e os futuros Países Baixos Distinguimos uma primeira zona, entre o Soma, o Mosa e o mar do Norte. É aqui que, fora da Itália, ficaráo as cidades mais activas e mais brilhantes a partir do século XI. Ora, no momento em que os Romanos abandonaram esta regiáo aos Francos, antes e depois dos anos 400, ela compreendia um número excepcional mente baixo de aglomerados urbanos. Principalmente a norte da estrada romana Bolonha-Bavait-Dinant, o espado apresentava sérios obstáculos á circulagáo, tais como a grande floresta carvoeira. Todavía, esta desvantagem era, pelo menos virtualmente, compen sada pelas vias de penetrado mais ou menos orientadas no sentido sul-norte que sao o Escalda e o Mosa, e por algumas estradas terrestres que irradiavam de Bolonha e Bavai. No vale do Mosa, as localidades galo-romanas, por vezes centros administrativos mas sempre centros comerciáis, eram duas civitates (Tongres e Maastricht) e diversas vici, que eram simultáneamente castra (existiu, seguramente, uma linha de defesa romana sobre o Mosa). Tal como Dinant, Huy e Namur. O que aconteceu a estes aglomerados do Mosa durante os tempos merovíngios? Tongres, devastada, acabou lentamente por perecer: ainda antes dos anos 500, cederá a sede episcopal a Maastricht. Mas como, no século IX, quando foi saqueada pelos Normandos, a classificaram de urbs, é lógico supor que Tongres conheceu um relativo renascimento entre os anos 500 e 800. Em todo o caso, Maastricht, ultrapassou-a em importáncia: nos anos 700, chamaram-lhe oppidum, urbs e civitas (este último termo explica-se pelo seu carácter episcopal, os outros dois demonstram que se trata va entáo de um aglomerado com uma certa amplitude). A partir do principio do século VII, passara a ser a sede de uma oficina mone tária de primeira ordem. No dizer de Eginhardo, no tempo de 98
AS CIDADES COM MURALHAS REDUZIDAS QUE DATAM DO BAIXO IMPÉRIO
A SUPERFÍCIE DE ALGUMAS CIDADES DA GÁLIA COMPARADA COM A DAS CIDADES DO ANTIGO MUNDO CRISTÁO
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Segundo J. Hubert, «Évolution de ia topographie et de i’aspect des villes de Gauic du Ve au Xe siécle >, \n L a Cittá nell'Alto Medio Evo, VI Settimana di Studio del Centro Italiano di stmii sulVAlto M edio Evo, Presso la Sede del Centro, Espoleto, 1958, pp. 544-545.
Carlos Magno, era um lugar muito frequentado pelos mercadores e nada leva a pensar que esse papel fosse recente. Se, antes do século VIII, Liége náo era ainda uma cidade (náo dispunha sequer de uma oficina monetária), o mesmo náo aconteceu com Huy: a sua oficina monetária, de que se encontraram moedas na Frísia, Domburg e Sutton Hoo, era talvez ainda mais activa do que a de Maastricht (apesar de haver oficinas monetarias fora das cidades, a presenta de uma oficina muito activa é uma carac terística urbana). Em Namur e em Dinant existiam terrádigos e oficinas monetárias importantes, embora um pouco menos do que a de Huy. Mouzon (vicus e castrum) tinha também uma oficina monetária mais activa do que a de Namur e menos do que a de Huy. Portanto, ao longo do Mosa, em cada lugar onde uma estrada romana o transpunha, existiam castra, centros de oficinas mone tárias, cujas moedas se encontram em muitas regioes da Europa, assim como nelas se encontram sceattas — por vezes também cen tros de recolha de terrádigos (Huy, Dinant, Maastricht). Salvo um precavo, preparavam-se para se transformar em «cidades», como já acontecerá com Maastricht. Que se passava com as cidades do interior, do sector outrora irrigado pela estrada, ou melhor, a rede estradal Bolonha-Bavai-Dinant? Podemos mencionar diversas civitates romanas, mas ao contrário do que aconteceu no vale do Mosa, aqui nenhum aglo merado esperou a época merovíngia para atingir a fase urbana. Tournai e Cambrai funcionaram como capitais francas nos séculos V e VI, ao mesmo tempo que foram ou se tom aram sedes episcopais, como Thérouanne e Arras. Também aqui se cunhou moeda: todavía, as oficinas monetárias destas quatro civitates foram muito menos activas do que as do Mosa e náo se encontraram sceattas ñas suas redondezas. Duas outras civitates, Cassel e Bavai, acentuaram o seu declínio, iniciado desde o fim do Baixo Império e devido, provavelmente, a náo estarem situadas perto de uma via fluvial. Finalmente, na costa, Bolonha, ponto de partida de múltiplos caminhos que atravessam o continente, era no tempo dos Romanos um grande porto de mar. Existia um emporium perto de Domburg, na ilha de Walchpren, portanto, na embocadura do Es calda; finalmente, Odemburgo, perto da actual Ostende, talvez tenha sido um centro urbano durante o Baixo Império. Na época merovíngia, Bolonha conheceu «um declínio progressivo» (J. Dhondt) que se deve primeiramente á pirataria saxónica e depois a um desvio do tráfego. Uma vez iniciado o desenvolvimento da Inglaterra saxónica, o papel do porto romano foi reassumido por Quentovic, situada mais ao sul, provavelmente na foz do Canche, perto da actual Étaples ou da actual Montreuil e mais favorecida do que Bolonha do ponto de vista das novas técnicas de navegagao. A acti vidade de Quentovxc só se desenvolveu progressivamente a partir
mn
do século VII: as moedas deste porto encontradas em Inglaterra náo sáo anteriores ao primeiro quartel do século VII (625) e a primeira mengáo expressa de Quentovic (a propósito de uma viagem ao continente de um bispo de Inglaterra) é pouco anterior a 668, sendo preciso esperar o período de 700 para se dispor de um texto que indica que a via de Quentovic é considerada a mais normal para as ligagoes com a grande ilha. Finalmente, foi também no século VII que Domburg, centro antigo, e Duurstede (ou Dorestad), um novo centro, na regiáo das embocaduras do Escalda, do Mosa e do Reno, surgiram ou ressurgiram como portos marítimos impor tantes. Mas resta saber se estes entrepostos formavam ou náo aglomerados que merecessem o nome de cidade. A vida urbana nasceu ou desenvolveu-se ao longo do Mosa, ou mesmo do mar, enquanto ñas antigas civitates gálio-romanas, única mente servidas por vias terrestres, a vida parecia adormecida. Apesar de Tournai náo ser ainda um centro muito activo, passou a sé-lo durante o período carolíngio, quando o Escalda despertou para o grande comércio. A partir daqui, passou a haver, durante muitos séculos, uma estreita ligagáo — desconhecida com esta grandeza no tempo dos Romanos — entre a vida urbana e as vias fiuviais e marítimas. A sul dos «Países Baixos», entre o Mosa superior, o Soma e o Loire, existiam perto de trinta cidades episcopais, promovidas á categoría de sedes de dioceses desde o século IV ou V. Foi, pois, sobretudo como centro diocesano que a cidade — aqui, como noutras regiSes — subsistiu entre os séculos V e VIII, e foi em parte grabas á sua funfáo religiosa que atraiu os homens e, consequentemente, as mercadorias, e que pode também subsistir um mínimo de actividade económica, mesmo nos momentos mais negros da época. Durante mais de tres séculos, as muralhas do Baixo Império foram bem conservadas. No interior do seu curto perímetro, a cidade com uma populagáo que oscila entre 1500 habitantes e, na melhor das hipóteses (em Reims, por exemplo), 5 ou 6000, quase náo dispoe de terreno onde construir (muito poucos jardins ou espatos náo utilizados); as rúas, muito estreitas, sáo dominadas por casas que podem ter vários andares (Gregorio de Tours, a propósito de Angers, testemunha esse aspecto como facto habitual) e muito apertadas urnas contra as outras. Náo era desconhecida uma certa «especializado de bairros urbanos» (F. Vercauteren): a propósito de um incendio previsto por uma mulher em 585, Gregório de Tours evoca as lojas parisienses quase' todas reunidas em algumas rúas. Há lojas de duas espécies: as ctbs artesáos (nem todos tinham emigrado para o campo), que vendiam os seus produtos (géneros alimentares como o páo, a carne; produtos fabricados como o vestuário e o calcado) e as dos mercadores que vendiam objectos de luxo. 101
A obra de Gregório de Tours dá ao leitor a impressáo bem precisa de que, já no fim do século VI, «o camponés urbano nada mudou (mudara) desde o Baixo Império» (F. Vercauteren). Nunca deixou de haver mercadores e a actividade comercial continuou para além do século VI: as parcas fontes do século VII e do prin cipio do seguinte corroboran! as in fo rm ale s fornecidas por Gre gório. Ao descrever a entrada do rei Gontráo em Orleáes (585), este evoca os cortejos que se dirigiam ao encontro do soberano: a «multidáo agitava bandeiras e cantava. Aqui, escreve, cantava-se em siríaco, ali em latim, além os Judeus recitavam hinos na sua .língua». Sobre o principio do século VI, a Vida de Sao Columbario assinala que Columbano e os dois monges que o acompanhavam encontraram, logo que transpuseram as muralhas de Orleáes, uma mulher «siria». Estes sáo alguns dos testemunhos do aspecto cosmo polita das cidades francas entre o século V e o principio do século VIII: as colonias de orientáis (gregos, levantinos, egipcios, judeus), sempre qualificadas de sirias, traficavam em produtos do Oriente (especiarías...). Em 583, segundo Gregorio de Tours, o conde Leodastis ia, em París, de uma exposi?áo de mercadorias a outra, examinando e comerciando jóias. Em 591, um sirio, Eusebius, conseguiu, náo sem simonía, ser escolhido para bispo de Paris e nomeou compatriotas seus para os cargos importantes da diocese. Mas París e Orleáes cediam em favor de Verdun. A partir do século VI, os seus habitantes passavam por ser comerciantes muito ricos, cuja fortuna provinha do tráfico de escravos. Assim, a sul do Soma, os novos aglomerados, que comegam a transformar-se em cidades, náo parecem ter nascido como nos futuros Países Baixos, porque as cidadelas eram muito menos nume rosas do que no Norte. Todas elas abrigavam negociatores e tam bém artesáos, ourives de ouro e prata que eram ao mesmo tempo moedeiros. E «a moeda desempenha sempre um papel essencial na vida económica» (F. Vercauteren). Tanto a sul como a norte do Soma, a regiáo náo estava ainda de forma táo clara económicamente dirigida para o Norte — se gundo Pirenne— como viria a ^estar no tempo dos Carolíngios, facto que decorre do atraso económico dos países anglo-saxónicos, pelo menos até ao inicio do século VII. Digamos que subsistían! as ligafoes de tráfico com o Centro e o Sul da Gália: Gregório de Tours assinala incidentalmente que um mercador de Tréves, depois de ter entregue sal em Metz, se dirigiu a Tours e Poitiers, ou ainda que um negociante de Poitiers ia comerciar em Reims. Tudo isto revela que o centro de gravidade económico do Ocidente se deslocava para norte mais tardíamente do que o centro de gravidade político. 102
As cidades de Italia Aqui, o reinado restaurador de Teodorico assinala uma prorro g a d o da decadencia urbana, frequentemente iniciada desde o século VI. Trinta anos de paz devem ter dado os seus frutos, mas aquilo que se conhece com seguranza sobre as cidades italianas é muito pouco. Os Anais descrevem Nápoles e os outros portos da Campánia como muito activos. Na Itália do Norte, as constru?5es civis e religiosas em Pavia, Verona e sobretudo em Ravena podem ser um sinal de renascimento urbano, neste principio do século VI. Ravena, capital por diversas vezes, contrasta com a Roma dos papas que parece muito desprezada e em decadencia. Este reinado foi apenas um parénteses entre duas fases infelizes. Para as cidades, os vinte anos de guerra entre godos e gregos foi uma catástrofe. A maior parte délas foram cercadas pelo menos duas vezes, Miláo foi arrasada, Roma e Nápoles foram saqueadas e praticamente abandonadas pelos seus habitantes. Outras cidades, atormentadas pela fome, escorragaram as bocas inúteis. O fisco bi zantino, muito pesado para os Italianos, impediu as cidades de recuperarem completamente, esfriando os esforgos dos cidadáos. Somente Ravena, capital do exarcado bizantino, e Nápoles tinham recuperado, em 568, uma notável actividade. Neste ano, os 200 000 (?) lombardos, homens, mulheres e crianzas, transpuseram os Alpes julianos, invadiram Venécia e infiltraram-se no vale do Pó, para oeste, até Miláo. As cidades fortificadas, onde se haviam refugiado as tropas gregas, foram evitadas, excepto Pavia, cuja posido era notável. Tomada depois de um cerco de tres anos, Pavia passou a ser a capital do reino lombardo. As cidades sem muralhas e sem defensores sofreram muito e diversas foram destruidas: a leste de Venécia, cidades outrora florescentes apenas deixaram o nome (Altino, Aquileia, Concordia), enquanto outras só renasceriam muito mais tarde e noutros locáis. Ñas outras regióes, conquistadas progressivamente pelos Lom bardos, sobretudo ao longo dos Apeninos, os desastres urbanos foram menos numerosos. Todavia, este povo era menos atraído pela vida urbana do que os outros invasores do Ocidente, o que fez o infortúnio de algumas cidadelas, nomeadamente de Florenga. Esta cidadela, que no século II abrigava talvez 10 000 habitantes e que suportara bastante bem os tempos dificéis do Baixo Império, sofrera já as dificuldades do século V. Escapando á justa ás hordas de Radagásio, esmagadas por Estilicao junto aos seus muros, em 406, foi parcialmente destruida pelo godo Tótila, em 532; a despeito da ilusória protecdo oferecida por uma reduzida muralha, edificada pelos bizantinos no interior da antiga cidade romana, em que diversos bairros se encontravam desabitados, caiu no 103
final do século VI ñas máos dos Lombardos, senhores de uma parte da Itália Central. A cidadela ficava ao alcance dos golpes dos exarcas bizantinos que permaneciam em Ravena, de tal modo que os reis lombardos hesitaram em utilizar, para as suas comunicafoes entre Pavia, Espoleto e Benevento, a grande estrada que passava por Bolonha e Florenfa. Transformaram uma estrada mais ocidental no eixo principal das relagoes internas do seu reino. Partindo de Miláo, Placéncia e Pavia, esta estrada, que será de ora em diante a principal via entre o Noroeste da Europa e Roma (a Via Francigena), evitava Floren?a. O ducado lom bardo da Toscana teve portanto por capital náo Floren?a mas Luca, que era servida por esta estrada. Na sequéncia do estado de guerra endémica entre bizantinos e lombar dos, Florenga, colocada numa posifáo que se tornara «mar ginal», vegetou relativamente a Luca, centro político, e a Pisa, mercado toscano no mar Tirreno. A oposigáo era nítida entre as cidades lombardas, estioladas, e as das provincias conservadas por Bizáncio, onde diversas cida des — Ravena, N ápoles...— puderam manter ou retomar uma certa actividade. Gregório Magno escreveu, por volta de 600, que «por toda a Itália as cidadelas sáo destruidas e as cidades des manteladas». Mas os Gregos fortificaram todas as posifdes favoráveis, em particular todas as pequeñas cidades (castella) que se estendiam de Grado, a norte, á Lucánia, a sul: as guamifóes eram for madas por recrutamento local (sobretudo camponés) e, como no tempo das «colonias» romanas, os soldados eram depois recompen sados com doafoes de térra (com toda a propriedade) ñas proxi midades.
A s cidades da Gódia do Sudeste Na Gália, esta regiáo, «a primeira e a mais profundamente mar cada pela influencia de Roma», era, no inicio da Idade Média, «a regiáo das cidades por exceléncia». As cidades conservaram aqui a sua vitalidade, de que é testemunho, por exemplo, a actividade do porto de Arles no tempo de S. Cesário. Narbona, Agde, Marselha, Toulon — como Arles e como ÓXtia ou Civita-Vecchia em Itá lia — mantiveram durante os séculos V, VI e VII, uma populagáo e uma actividade comercial e marítima comparativamente mais impor tante do que noutros lugares. Os portos e as cidades do interior chegaram a beneficiar de condi?5es menos desfavoráveis do que muitas cidades italianas. Estas condijdes explicam e justificam em parte a teoria de Pirenne sobre a sobrevivéncia das cidades antes da invasáo musulmana: é bem verdade que a partir do principio do século VIII a regiáo, transformada em posto avanzado da cristan dade, viu decrescer a importáncia e a actividade das suas cidades. 104
Mercadores, mercadorias, rotas comerciáis. Os mercadores O estudo das cidades entre o Loire e o Mosa mostrou que a maior parte dos mercadores assinalados pelas fontes eram orien táis, fácilmente qualificados de Syri. Na realidade, eles provinham de todo o Oriente outrora romano, da Grécia ao Egipto, e, entre eles, encontravam-se judeus. Esta preponderancia de orientáis no comércio, em particular no grande comércio «internacional», datava da Antiguidade: em todas as cidades das provincias romanas do Ocidente, eram as poderosas colónias de levantinos que detinham as rédeas da actividade de trocas e usavam o grego como língua comum. Depois das grandes invasóes, esta preponderancia dos mercadores orientáis em relagáo aos negociantes «latinos» ainda se reforgou mais. Mas será preciso, como Pirenne, ver no reforjo dessas colónias de orientáis a prova de que os Bárbaros náo arrui naran! o comércio dos produtos mediterránicos e que, em suma, no dominio da economia, a Antiguidade se prolongava? Ou, pelo contrário, será preciso, como outros afirmam, ver nesta predominancia dos Orientáis, muito nítida na orla do Mediterráneo Ocidental, e que se verificava mesmo na Bacia Parisiense, um indicio de que os «indíge nas» se desinteressavam do comércio? Deveremos ver estes orientáis como mercadores, que vinham oferecer os produtos exóticos de luxo (especiarias, tecidos, coiros trabalhados, papiros do Egipto, azeite, frutos, como támaras e figos) e que nao compravam nada em troca, logo exportando apenas do Ocidente metáis preciosos, sob a forma de moedas? Com efeito, apesar de esses orientáis serem traficantes itinerantes — como o seráo quase todos os mercadores até á segunda metade do século XII —, nao deixavam de estar definitivamente estabelecidos no Ocidente, onde tiveram descendencia e onde acabariam por se fundir na massa indígena. O seu número aumentou (em Roma, por exemplo) por imigragáo, no século VII e no principio do século seguinte: os Syri retrocederam, principalmente para Itália, fugindo á vaga sarracena que submergia quase todo o Levante. A aflitiva raridade das fontes deixa pelo menos entender que nem todos os mercadores que traficavam no Ocidente eram originários do Oriente. Havia «indígenas» ñas diversas categorías de negócio, a longa, média ou curta distancia. Seguramente que os mercadores de Verdun, sobre os quais esta mos excepcionalmente esclarecidos, náo foram os únicos negocian tes autóctones a percorrer as estradas e a enriquecer em todas as espécies de tráficos. E estes negociatores «ocidentais» náo comer105
ciavam somente em cscravos (Verdun) ou produtos artesanais. O seu Jugar devia ser primordial no tráfico dos géneros agrícolas. £ bastante provável que os Frisoes, ainda pagáos, instalados no lito ral do mar do Norte, entre o Escalda e o Eider, fossem dos mais activos. Citemos, por fim, os agentes dos reis, dos aristócratas e dos abades que, por conta dos seus senhores, iam a térras longínquas comprar e vender, tal como os oficiáis do abade de Saint Pierre-de-la-Couture no Mans, que se dirigiam periódicamente a Bordéus para comprar peixe.
Mercadorias e rotas do comércio A Alta Idade Média assistiu á p r o l i f e r a f á o de uma taxa de ori gem romana, o terrádigo, levantada sobre o transporte de mercado rias por térra ou por água e sobre a sua venda ou a sua compra. No tempo da monarquía franca, tratava-se ainda, a principio, de um imposto do Estado cobrado por certos funcionários. Relativa mente á época merovíngia, os textos náo atestam a existencia do terrádigo (teloneum) franco senao na Gália; no tempo dos Carolíngios, será cobrado no conjunto do Regnum Francorum e no reino lombardo, antes de se perpetuar em todos os Estados sucessores da monarquía franca «unitaria». A taxa era variável conforme os lugares: no século VIII, era de 10% ad valorem em Quentovic, em Duurstede e nos «desfiladeiros» dos Alpes, mas tratava-se seguramente de um máximo em relasáo aos outros locáis de cobranza (F. L. Ganshof). Além do terrádigo, cobrava-se, pelo menos a par tir do século VII, outras vectigalia, taxas complementares também elas de origem romana, tais como: o rotaticum (taxa sobre os carretos de transporte de géneros), o ripaticum (direito de atracadura), o portaticum (renda pela utili z a d o de um «porto» ou pela passagem da porta de uma cidade ou de um castellum), e o pontaticum (taxa pagável de uma ponte) (’). É inútil precisar que, no tempo da decadéncia do poder — nos fináis do período merovíngio e, mais tarde, a partir da segunda metade do século I X —, foram os condes e outras personagens poderosas que se apropriaram das receitas dos terrádigos já existentes, e que instituíram outros. Sáo os textos referentes a essas taxas — em particular os privilégios de isen?á° das igrejas — que, para os países fran cos, constituem a nossa fonte menos deficiente sobre as rotas do comércio e as principáis pragas de negócio. (') Durante a primeira Idade Média, engloba-se sob o termo terrádigo simultáneamente as taxas sobre circulado e sobre as transac;5es. Mais tarde, a palavra terrádigo será reservada em principio ás taxas sobre as transacfdes, designando entáo peagem os direitos que oneram a circulado.
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O comércio mediterránico náo parou bruscamente depois das grandes migra?5es: apenas afrouxou, como já come?ara a acontecer no fim do Baixo Império. Incidía sobre produtos de luxo, vendidos a prefo elevado para um pequeño volume: as especiarias, os tecidos ricos das regióes gregas confeccionados com matérias-primas orien táis, em particular a seda. Diversos artigos de consumo mais corrente vinham também do Levante: o papiro, que continuava a ser o su porte normal dos escritos, e o azeite, destinado ás lamparinas das igrejas e á alimentafáo (mas o seu consumo come?ou a retroceder em proveito, nos sectores náo mediterránicos, das gorduras ani mais). O que leva a crer que no século VII as correntes do comércio mediterránico ainda continuavam vivas é o facto de os principáis postos alfandegários, enumerados pelo formulário de Marculf, se rem portos do Mediterráneo (como Marselha e Fos) ou ainda cidades situadas no eixo Rodano-Saóne (Viena, Liáo, Chalon-sur-Sáone). O testemunho de Gregorio de Tours sobre os infortúnios de Marselha, disputada pelos soberanos bárbaros, atesta o notável papel económico que a cidade mantinha, continuando a ser a prin cipal porta dos países francos para o Mediterráneo. Outras regióes continuaram — ou passaram — a ser animadas por correntes de trocas a longa distáncia. Mas ainda náo existe perfeito acordo quanto a saber-se em que medida os produtos exó ticos podiam animá-las. O exemplo que se segue demonstrará, pelo menos, que o comércio a longa distáncia náo era únicamente um comércio de produtos meridionais. Sabe-se desde há pouco que a faixa atlántica do Ocidente náo estava económicamente bloqueada para oeste na época merovíngia. Este sector é pouco conhecido, talvez menos porque a arqueología e a numismática ainda sáo aqui pouco utilizadas, mas porque a atenfáo dos historiadores se dirigiu demasiado para o Mediterráneo. No entanto, a partir dos anos 550, «comegava no Atlántico uma nova era. As barreiras que separavam o mar do Norte do mar da Irlanda do mundo merovíngio... tendiam a desaparecer» (A.-R. Lewis). O Loire e o Garona eram animados pelo tráfego comercial. Em Mans, Orleáes e Bordéus eram edificadas novas «hospedarías». Esta última cidade e Poitiers ultrapassavam as suas muralhas do tempo do Baixo Império. Tours tinha uma colónia de Syri. Das 45 civitates citadas por Gregorio de Tours, 17 situavam-se a oeste da Gália. E da costa atlántica do Regnum Francorum partiam tres rotas marítimas: uma com destino á Galiza visigótica e a Gibraltar; a segunda virada para a Irlanda e a Inglaterra «celta» do Noroeste; a terceira dirigida para a Mancha, a Inglaterra Oriental e a Frísia. A Vida de Sao Filisberto evoca a presenta de mercadores irlandeses em Noirmoutier, de navios ingleses na foz 107
do Loire e do Carántono, a existencia de viagens directas, por água, de Tours a Inglaterra, ou da Nortúmbria até á Armórica. Estas raras anota?5es escritas sáo largamente confirmadas pelas descobertas arqueológicas e numismáticas. Por exemplo, apenas no Oeste — exceptuando as regioes do Reno e do M osa— se encontraram sceattas no continente. O tesouro de Bordéus (fim do século VII) compreende solidi visigóticos e merovíngios. Entre as moedas merovíngias desse tesouro, há moedas cunhadas ñas bacias do Garona, do Loire e do Sena e outras provenientes de Narbona e de Marselha, o que indica que o Sudoeste tinha relagoes com as regiSes mediterránicas. As investiga?5es arqueoló gicas e o estudo das formas artísticas provam que, através da Gália do Oeste e do Sudoeste, a Irlanda estava em contacto com o Oriente. Também a Inglaterra estava em ligafáo com o Oriente náo únicamente através do Reno e de Quentovic, mas ainda por intermédio do Noroeste da Espanha visigótica via costas francas do Atlántico. É mais difícil estabelecer a lista dos produtos de que se ocupava este comércio atlántico. O vinho era indiscutivelmente o principal objecto de tráfico: a existencia de um fisci vinitor perto de Bordéus assim o comprova. Era o vinho que os Francos transportavam para a Irlanda, que os Anglo-SaxSes e os Irlandeses vinham procurar na Gália atlántica, bem como, sem dúvida, os FrisSes e os Francos do Norte. O sal, do estuário do Loire e do Saintonge, e o óleo proveniente da Narbonesa, seguiam-se provavelmente ao vinho em ordem de importancia. Seria preciso citar em seguida o ferro, o mel, a granza dos tintureiros, o chumbo (de Melle, no Poitou) e o trigo (proveniente do interior ou reexpedido depois da sua chegada de Espanha), que eram enviados ou reexportados por mar para as Ilhas Británicas ou para a Bacia Parisiense. Da Irlanda, vinha couro, vestuário de lá grossa e talvez um pouco de ouro. Da Inglaterra, tecidos, estanho (da Cornualha), cobre (de Anglesey). Mas a prin cipal importagáo da Gália atlántica, destinada á reexportado para o Mediterráneo, era a dos escravos, tendo os Anglo-Saxoes tido durante muito tempo o costume de vender os seus compatriotas (F. Lot). Em contrapartida, náo existe qualquer tráfico de armas num sentido ou noutro: as espadas francas — tal como as vidrarias— destinadas ás Ilhas Británicas, eram expedidas pela Gália do Norte. Um outro sector activo, em pleno desenvolvimento, era o da regido de entre o Mosa e o mar do Norte: o desenvolvimento dos aglomerados no vale do Mosa (cf. pp. 98-101) ilustra-o claramente. Ora, este tráfico parece ter mudado aqui a sua direc?áo principal por volta dos anos 600. 108
Até ao fim do século VI, a regiáo caracterizava-se per ser o término, para o norte, das correntes vindas do Mediter ráneo pela via Ródano-Sáone: o facto de Verdun e as suas moedas terem conhecido um grande esplendor, verificou-se por a cidade beneficiar da sua posigáo de charneira entre os vales do Sáone e do Ródano, a sul, e a via do Mosa, onde ela se situava. Depois, a partir do século VII, a direegao principal do comércio inverteu-se: a actividade de toda a regiáo voltou-se cada vez mais para o Norte, em parte por causa da evangelizado dos Anglo-Saxóes, mais pacífi cos e que estreitavam os seus lagos, também económicos, com a cristandade do Ocidente: Quentovic e Domburg sáo portos orientados para a Inglaterra, enquanto Duurstede, mais ao norte, esta já em relagáo com o Báltico e com a Escandinávia. Estes factos assinalam simultáneamente o desenvolvimento da produgáo regional e do declínio quantitativo do comércio dos pro dutos exóticos. De notar também que, entre a Itália e a Gália do Norte e do Nordeste, o vale do Reno continuava a ser uma activa artéria económica, tanto mais que, devido ao perigo ávare na Alemanha Oriental e ao perigo lombardo no Sul, as estradas continentais se haviam deslocado para oeste, seguindo desde entáo alguns desfiladeiros dos Alpes e, precisamente, o próprio Reno.
De m eados do século V III a té ao fin al do século X
Reagindo cepticamente ás teorías de Pirenne, os historiadores pensam existir um período de cem anos (de 750 a 850, aproxima damente) que conheceu um renascimento limitado, mas indubitável, das cidades e do comércio. Consideram em geral que, depois de meados do século IX, o «primeiro mas imperfeito esbogo daquilo que será o desenvolvimento do Ocidente cristáo a partir do século XI» (E. Perroy) terminou: esta ascensáo, no meio de uma depressao com mais de meio milenio, fora pois quebrada pelas desordens da decadéncia carolíngia e, mais ainda, pelas incursóes nor mandas ou magiares. No entanto, estas parecem náo ter tido efeitos táo catastróficos como se pensou. Náo houve uma verdadeira fractura de um movimento de renascimento económico, mas sobre tudo — como a partir do século V — uma selecgáo: algumas regióes, algumas cidades sofreram seriamente, outras náo. E, salvo algumas excepgóes, os desgastes foram reparados relativamente depressa. O período que se estende de meados do século VIII até ao ano 1000 apresenta mais continuidade e menos esforgos destruidos do que se pensa. Logo, será estudado e considerado em bloco, náo sem sérias falhas. 109
A s cidades A s cidades de entre o Loire e o Reno: velhas cidades e novos «portus» Á primeira vista, o século VIII assinala uma «certa decadéncia» relativamente ás cidades, se se considerar apenas o aspecto monu mental. Com efeito, na época muitos edificios caem em ruinas ou sáo desviados do seu destino primitivo. Isto acontece em Reims, onde uma das torres da muralha foi transformada em capela e onde se fez uma fortaleza da porta de Marte. Mais grave ainda, a inspecfáo geral das rúas e estradas, orgulho dos Romanos, foi mais negligenciada do que durante os grandes reinados merovíngios. A partir do final do século VII, em Ruáo, a via publica foi chamada dilapidata. Um pouco por todo o lado, as rúas deixam de ser empedradas ou lajeadas e as cidades transformam-se em lama?ais. Mais prejudicial foi, no entanto, o facto de, no século VIII e no limiar do século IX, os soberanos se terem desinteressado da manuten?áo das muralhas, autorizando, muitas vezes, os cidadáos a transformá-las em pedreiras: «um soberano merovíngio nunca teria procedido de tal forma» (F. Vercauteren). Foi assim que as muralhas de Reims, de Beauvais, de Langres, de Melun (em 859, quando os Normandos já tinham causado devasta?5es na Francia!) serviram para fomecer materiais de construyo (por exemplo, para edificar a nova catedral de Reims). Apesar de náo se terem gene ralizado, estas destrui?6es efectuaram-se quando as regiSes francas estavam ameafadas. E, desde meados do século IX, logo que se comefou a organizar a resisténcia contra os Normandos, as cidades desempenharam um papel primordial como pontos de apoio do sis tema defensivo entáo posto de pé. Foi portanto preciso reconstruir á pressa ou restaurar por todo o lado (salvo em Melun!) as mura lhas urbanas, em particular entre o Loire, o Sena e o Escalda. Na segunda metade do século IX, as cidades tornaram-se «ver daderas fortalezas», o que foi um «momento importante na histó ria das cidades desta regiáo» (F. Vercauteren). Esta fun?áo defen siva nunca foi táo evidente como a partir dos anos 850: de facto, o reinado de Carlos o Calvo teve, perante os Normandos, uma atitude passiva, defendendo-se deles «sem travar batalhas mas construindo fortalezas». As cidades tornaram-se abrigos, onde camponeses e monges dos arredores se refugiavam a cada alerta. Chegou-se mesmo a fortificar os suburbio — o que é uma novidade cujas consequéncias a longo prazo seráo de primeira ordem —, transformando-os assim em postos avanzados providos de uma guarnido. Foi este o caso de Saint-Vaast em Arras, de Saint-Gery em Cambrai, de Saint-Remi em Reims, de Saint-Colombe em Sens, e assim sucessivamente.
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Pensa-se que, para a escola de Pirenne, este novo papel militar surge como prova irrefutável da letargía económica em que os Mugulmanos teriam precipitado as cidades do Ocidente. Na realidade, a história das cidades do Norte da Gália náo é a de uma decadéncia continua entre os anos 750 e as proximidades do ano 1000. Eis dois exemplos de cidades em relagáo ás quais, por excepgáo, estamos absolutamente seguros de que a superfi cie e a populagáo aumentaram. Comecemos por Arras onde subsistía, como em muitos outros lugares, uma civitas e onde existia, desde o século VII, uma abadia destinada á evangelizagáo da regiáo, a de Saint-Vaast; situada extra muros, a abadia dera lugar ao aparecimento de um suburbium, ao qual apenas se reconheceria, durante muito tempo, uma actividade rural. Mas J. Lestocquoy demonstrou que, antes do grande crescimento demográfico do século IX, se esbogara uma primeira extensáo da cidade no tempo de Carlos Magno: em dísticos, Alcuin enumera os edificios religiosos de entáo. Além da catedral e de Saint-Vaast exis tia também uma capela (que os Normandos destruiráo) e sobretudo duas igrejas — Saint-Maurice e Saint-Étienne — que se acreditava terem sido construidas somente no século XI. Isto significa que já existiam arrabaldes nos anos 800, de um lado e do outro da estrada romana de Cassel-Cambrai. O conjunto dos trés aglomerados (a cidadela, o velho arrabalde da abadia e Os dois novos subúrbios conti nuos) podia abrigar 5000 habitantes que dispunham desde há algum tempo de uma feira semanal. O segundo exemplo, o de Metz, é ainda mais significa tivo. Datada da segunda metade do século VIII, chegou até nós a lista das igrejas e capelas da cidade onde se desenrolavam os ritos da Quaresma. J. Schneider provou que, ape sar de a cidade do século XIV contar com 26 paróquias, incluindo os arredores, 23 délas existiam já no século VIII, das quais 8 ficavam dentro da muralha do século IV (20 ha) e 13 fora de portas. Se alguns desses edificios podiam ser apenas capelas sem paroquianos, os 8 situados intra muros eram já paróquias. Nos anos 750 ou 800, a populagáo de Metz, incluindo a dos subúrbios, devia ultrapassar os 6000 habitantes. Nem todos eles eram indiscutivelmente «rurais» e entre as suas fileiras incluíam-se artesáos e mercadores, uma vez que sabemos que a actividade de barcagem no Mosela era grande: os cais de descarga (portus) encontram-se em Metz já nesta época (cf. na actual toponimia da cidade locugóes como «En Rimport»...) O termo portus, cuja vulgarizagáo foi feita por Pirenne, quando Ihe deu o sentido de «ponto particularmente activo de transito», de signa na maior parte dos casos os novos aglomerados, tanto próximos de uma cidade antiga como situados num local «novo». Mas Pirenne reconhecia o aparecimento destes «portos» apenas no século XI, raramente no século X ou ainda mais cedo. Com efeito, muitos dos portus apareceram ainda nos tempos carolíngios, ñas regióes de 111
AS C O N STR U Y ES DE MURALHAS NOS SECULOS IX e X
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PÉRIGUEUX
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1. Muralha urbana restaurada ou construida. — 2. Muralha fortificada construida em volta de um mosteiro. — 3. Limite oriental das incursoes normandas. Em baixo, alguns exemplos de povoa^óes fortificadas perto das cidades. Segundo J. Hubert, op. cit.. pp. 544-545.
entre o Loire e o Reno, o que é indicio de um desenvolvimento urbano que, no entanto, se manteve limitado e sem medida comum com o do século XI: os cais de desembarque construidos numa primeira fase viram surgir ñas suas proximidades entrepostos e, depois, moradas para os mercadores e bateleiros. Eles foram muitas vezes as futuras cidades (cf. Bruges onde anteriormente só existia uma fortaleza) ou subúrbios importantes (nos casos em que existia já uma cidade ñas redondezas). O exemplo mais flagrante do aparecimento de um portus é o apresentado por Saint-Omer. Na margem de um vasto golfo, mais tarde assoreado por aluvióes e pela construgáo de polders, numa ilha do Aa, foi fundado, no século VII, o mosteiro de Sithiu (Saint-Bertin), com vista á evangeliza d o da regiáo. Numa colina vizinha, os monges fundaram um segundo mosteiro (transformado em colegial a partir do século VIII), Saint-Omer. Antes de 800, estas duas igrejas situavam-se ainda em pleno campo. Mas as coisas mudaram no decorrer do século IX. Em 843, uma «enorme multidao (?)... de povo» impediu o abade de transportar as reli quias de Saint-Omer para Saint-Quentin. Dez anos mais tarde, depois da aprovafáo «do conjunto do povo e do clero», o bispo de Thérouanne dirigiu-se a Sithiu, cujas finanzas acabavam de ser dissipadas por um mau prelado. Por fim, em 874, Carlos o Calvo concedeu á abadia os ren dimentos do terrádigo cobrado no mercado semanal. Pode mos supor que a cidade de Saint-Omer estava prestes a nascer 0): nao sao únicamente os foreiros dos clérigos que vivem no novo aglomerado, mas também os individuos que vivem das trocas com as térras planas. A cidade é, de resto, bem protegida: ainda antes de 846, a colegiada estava de fendida por uma palizada de madeira, que impediu os Nor mandos de a tomarem tal como haviam tomado Sithiu, em 860. E, a partir de 879, com o «apoio do povo e dos gran des» foi comecada a construir uma grande muralha: unida á da colegiada, englobava o mosteiro baixo de Sithiu e o aglomerado surgido no século IX entre as duas igrejas. A nova cidade de Saint-Omer, que nao sofreu muito grave mente com os Normandos, estava preparada, antes do século X e do fim dos perigos, para ser um notável centro comercial e artesanal, cujos progressos foram enormes e rápidos ainda antes do ano 1000. Na época carolíngia nasceram estes portus, particularmente nu merosos ñas margens dos tres rios do Norte: o Escalda, o Mosa e o Reno. No tempo dos Carolíngios, o Escalda viu nascer novos aglo merados e crescer os antigos. Apesar de, no que respeita a esta época, a história de Cambrai, cidade episcopal, ser pouco conhecida,
(*) Todavía, alguns pensam que a cidade nasceu somente depois do controlo dos condes da Flandres sobre a abadia e a colegiada, logo, por volta de 880.
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sabe-se em com pensado que, um pouco a jusante, surgiu entáo a localidade de Valenciennes, que os textos designam por vicus (aldeia importante, quando náo cidade) e depois por portus. Um portus em que está assinalada a presenta de bateleiros e negociantes. Na cidade de Tournai, abandonada pelo bispo que, desde o século VII, reside mais ao sul, em Noyon, alguns raros documentos atestam a exis tencia de um portus. Mais a jusante, Gand é um aglomerado muito recente, cuja história é curiosamente paralela á de Saint-Omer: havia ali dois mosteiros, Saint-Pierre sobre o monte Blandin (entre o Lis e o Escalda, antes da sua confluencia) e Saint-Bavon a leste do Escalda; mas aos pés de Saint-Bavon, logo junto do Escalda, surgiu, pouco depois de 800, um portus rápidamente animado por um grande tráfico de lá e de tecidos, gratas á batelagem, que transportava diversos outros produtos, entre os quais o chumbo da Ingla terra. Foi aqui que, em 811, Carlos Magno passou em revista a frota que mandara construir para proteger as costas e estuários do Norte contra as razias normandas, que apenas tinham cometpado. Para Pirenne, os portus tiveram apenas uma breve existencia: anteriormente nada existia e as invasóes normandas iriam fazé-los desaparecer ou enfraquecer ainda antes do século XI. Nao existia, portanto, qualquer relagáo de continuidade entre estes portus e os aglomerados de 900 até ao inicio do século XI. E, para ele — reen contraremos esta ideia a propósito do grande desenvolvimento ur bano do século X I —, os fundadores e animadores destes portus náo eram os homens do vinho, mas individuos errantes, vindos náo se sabe bem de que «outros sitios». Seria a estes bateleiros estrangeiros, cuja origem se conheceria excepcionalmente — frisoes transpor tando e vendendo fazendas «flamengas», enquanto outros estran geiros abasteciam a corte de Aix-la-Chapelle —, que se devia, por exemplo, a cria?áo dos portus do Mosa, no século IX. Na realidade, F. Rousseau, quase contemporáneo de Pirenne, demonstrou bem a existencia nada insignificante, e seguindo uma forma conti nua, de uma vida urbana ao longo do Mosa, desde a época merovingia até ao século XI. Dinant, Namur, Huy e Maastricht viram afirmar-se o seu papel comercial e o seu carácter urbano a partir de meados do século VIII, ao mesmo tempo que nascia o novo vicus de Liége. E as invasóes normandas náo interromperam esse desenvolvimento económico. Se as cidades do Mosa «conheceram um tal desenvolvimento no século XI, (náo foi) tanto por causa de um brusco e considerável renascimento económico posterior ao ano 1000, mas pelo facto (de se tratar) de uma consequéncia normal e progressiva de uma expansáo que, em todo o caso, se podia observar, durante os séculos IX-X» (G. Despy). Mas F. Rousseau, continuando apegado á teoría da economia dominial fechada, via ainda nestas «cidades» sobretudo «etapas da batelagem», distantes uma da outra trinta quilómetros, ou seja, o 114
equivalente a uma jornada de navegagáo. Com argumentos convin centes, e sem negar o possível papel dos Frisoes O e do comércio de mais ou menos longa distáncia, G. Despy póe pelo contrário em relevo o papel primordial das relagoes comerciáis cidade-campo nos séculos IX-X para o desenvolvimento continuo dos portus do Mosa. É significativo que estes vici se tenham estabelecido em locáis onde as estradas cortavam o rio. No vale médio do Mosa, as térras do interior rural conheceram uma expansáo regular durante os séculos IX e X. Os excedentes de linho e de lá eram vendidos na cidade vizinha. Os Milagres de Santo Huberto (cerca de 825) e outros textos mostram que os arte sáos rurais trabalhavam o ferro e o chumbo e vendiam igualmente o seu excedente nos mercados rurais (como o que ficava próximo do Mosteiro de Santo Huberto) ou noutros mais importantes como os de Bastonha, Visé, Fosses, e evidentemente nos das cidades fluviais. Estes mercados, com um raio de acgáo local e também regio nal, transformavam-se muitas vezes, pelo menos uma vez por ano, numa feira, como em Visé, onde entáo se negociavam animais, vestuário e objectos de metal. Náo se tratava pois únicamente de redis tribuir na regiáo os produtos chegados pelo rio, mas sim de um comércio nos dois sentidos. A leitura dos Milagres de Santo Huberto evoca os camponeses que vinham aos mercados traficar por sua conta com os negociantes das cidades do Mosa. Assim — e certamente o mesmo acontecía noutras regióes de entre o Loire e o R en o —, o estabelecimento do «dominio clássico» e o desenvolvi mento limitado mas seguro das cidades, a partir de meados ou do fim do século VIII, foram dois fenómenos ligados. O estudo das cidades renanas — Mayence em primeiro lugar — e das do Sena — Ruáo e Paris — assegurar-nos-ia quanto á proeminéncia das cidades de entre o Loire e o Reno sobre todas as cidades do Ocidente, excepto as da Itália bizantina. É significativo o facto de sete das dez cidades autoriza das pelo édito de Pitres (864-865) a fazer funcionar uma oficina monetária (sendo a décima primeira a do palácio) se situaram neste sector: Quentovic (cujo sucesso aumentara nos séculos VIII e IX, conforme o testemunha a abundan cia de moedas cunhadas na sua oficina, muitas das quais foram encontradas em Inglaterra, e que náo foi duradoiramente arruinada pelos Normandos, visto que ainda ali eram cunhadas moedas em 980), Reims, Chálons-sur-Marne, Ruáo, Paris, Sens e Orleáes. As outras tres eram Cha1on-sur-Saone, Melle (próxima das minas de prata de Poitou) e Narbona, única cidade meridional desta lista.
(’) Mas, entre 750 e o ano 1000, só um documento menciona um frisao que, aliás, nao se dedicava ao comércio.
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Tudo isto é muito significativo quanto a uma orientado econó mica virada mais francamente para o negócio com os países anglo-saxónicos e a Escandinávia do que no tempo dos Merovíngios. A parti de entáo, a Mancha e o mar do Norte tém uma importancia primordial e, no espado de entre o Loire e o Reno, sáo as cidades e os poríus mais setentrionais que tém uma actividade mais viva e um futuro mais belo. Isto náo impede que as cidades do Loire, viradas para o Atlántico, ainda mal estudadas, e o próprio comércio oceánico, náo devessem estar entáo táo adormecidas como de bom grado se imagina. As cidades da Gália do Sudeste a partir do século VIH Devido aos seus «indestrutíveis edificios romanos», a cidade ocupava ainda um lugar importante na paisagem do final do século VII. Mas, a partir do século seguinte, a regiáo sofreu mais do que qualquer outra com a deslocado do centro de gravidade económico do Ocidente cristáo: a partir de entáo náo é mais do que uma «regiáo marginal», uma zona fronteiri?a virada para as térras dominadas a oeste pelo Isláo e para o sul marítimo de onde vinham os saqueadores. É uma regiáo ameagada, «constantemente alerta, aberta ás incursóes dos bandos armados e ás devasta?5es» (G. Duby). Todo o século VIII foi dominado pela ameafa dos bandos arma dos vindos de Espanha a partir de 713 e que ocuparam a Septimánia e depois atingiram o Ródano e a Provenga, a despeito das expedi?5es de Carlos Martel e de Pepino, que reconquistou a regiáo de Narbona (752-759), mas náo pode protegé-la das pilhagens sarra cenas. No principio do século IX, a situ ad o Para oeste restabeleceu-se, grabas á progressiva constituido da Marca de Espanha pelos Carolíngios. Todavía, vinha do mar uma nova amea?a: os Mu?ulmanos e os Normandos. O momento de «maior perigo» situou-se na passagem do século IX para o X, quando os Sarracenos estabeleceram um posto fixo em Fraxinet, de onde os últimos piratas só foram desalojados em 972. Posteriormente, verificaram-se ainda alguns ataques, um deles o saque de Antibes em 1003; entretanto, o perigo mu?ulmano renascia a oeste (em 1020, pilhagem de Narbona). O risco era, portanto, verdadeiramente constante, oscilando entre o leste e o oeste do Ródano. A vida urbana, principalmente ñas costas proveníais, conheceu perturbares: Fréjus, Toulon, Nice e Antibes foram destruidas como o prova a ¡nterrupdo das listas episcopais (em Toulon entre 899 e 1021, em Nice entre 788 e o final do século X, em Antibes até 987). Em 923, os cónegos da catedral de Marselha refugiaram-se em Arles, enquanto o arcebispo de Aix procurou abrigo em Reims. 116
De um modo geral, estes perigos provocaram o desaparecimento temporário de todos os subúrbios, de todas as habitagóes exteriores ás muralhas. Assim, os bairros suburbanos de Narbona foram in cendiados em 793, e, em 883, os habitantes de Arles tiveram de restaurar o túmulo de S. César, situado extra muros e devastado pelos «pagaos». Outra consequéncia da inseguranga foi o facto de o «carácter militar» da vida urbana se ter acentuado fortemente. Apesar de serem as presas mais tentadoras por causa dos tesouros que supostamente guardavam, as cidades tambem representavam, devido ás suas muralhas e aos seus edi ficios de pedra, o melhor retúgio para os habitantes dos arredores. E como eram numerosas e muito próximas urnas das outras, as cidades do Sudeste formavam por si só «uma rede fechada de fortalezas»: náo houve aqui, como noutros lugares, uma necessidade urgente de fortificagoes rurais, e os castelos eram raros nos campos. «A vocagáo defensiva continuou a ser (portanto) o factor determinante da vitalidade urbana» (G. Duby). Nestas condigoes, que aconteceu á fungáo comercial? Apesar de a obscuridade das fontes ser frequentemente profunda, nume rosos indicios atestam que, nos séculos VIII, IX e X, o comércio a longa distáncia de objectos preciosos conseguirá manter-se. Mesmo nos piores momentos da pirataria sarracena, a cabotagem ao longo das costas subsistiu. A circulagáo mercadora ao longo de uma rota que, a partir do vale do Ródano, se dirigía para a Espanha musul mana, também continuou. Assim, Narbona, Béziers, Nimes, Uzés, Arles, Viena e Liáo eram os pontos de apoio de um tráfego que mantinha uma orientagao «mediterránica». os couros de Córdova, os tecidos orientáis e as moedas árabes náo deixaram de aparecer naquelas cidades. Mas tratar-se-ia, como pensava Pirenne, de trocas «intermiten tes», ou de uma «corrente robusta e regular»? É arriscado ser cate górico. Tudo quanto se pode afirmar é que «neste tipo de contacto entre a cristandade latina e os mundos islámico e bizantino, o trá fico de objectos de alto prego, de escravos ou de produtos artesanais do Oriente, nunca foi, segundo todas as aparéncias, interrompido» (G. Duby). A partir de meados do século VIII, os itinerarios foram principalmente orientados a partir de Arles para a Septimánia e para a Marca de Espanha, antes de se deslocarem, por volta do ano 1000, para o mar e para Marselha, reanimando a Provenga do Ródano. Por outro lado, além do «gado humano» destinado aos Mugulmanos de Espanha e dos produtos orientáis dirigidos para o interior do Baixo Ródano e da Provenga, o tráfico nascido da produgáo regional parece ter sustentado uma certa actividade comer cial regular em diversas cidades. Trata-se do comércio do sal, reu nido ñas cidades costeiras para ser encaminhado para o interior: 117
Arles concentrava o sal das salinas de Fos e de Istres e Narbona era outra «estrada do sal». Mas os produtos agrícolas alimentaram igualmente o negócio regional. «Devido ao comércio salineiro, devido á passagem (pelo menos) de longe em longe dos traficantes das marcas mediterránicas», tal vez devido a outros tráficos e a outras passagens, a vida económica náo foi «abafada» ñas cidades desta regiáo. Além disso, a partir do final do século X, ela foi estimulada por ligafoes mais estreitas com os campos vizinhos. «Todavia, até 1050, pelo menos, a fun?áo mercante parece ter permanecido secundária em relafáo á funfáo defensiva. O mercado e o porto nunca tiveram entáo tanta im portancia para a cidade como as muralhas e as torres» (G. Duby). Isto náo impede que fun?áo militar e fun?áo económica, mesmo nesta regiáo constantemente alerta, longe de serem forzosamente incompatíveis, pudessem coexistir nos períodos conturbados.
As cidades de Itália: nascimento e primeiros passos de Veneza Por o comércio mediterránico se ter mantido sem grandes con tingencias na Itália bizantina, para Pirenne, era aqui que se situavam as únicas cidades do Ocidente dignas desse nome depois da avalanche árabe. A justificado desta afirm ado assentaria no facto de elas terem sido as únicas que continuaram em ligafáo com Bizáncio e com o Levante. Efectivamente, diversas cidades de Itália parecem ter-se mantido, de uma forma mais ou menos continua, mais brilhantes do que as cidades dos outros sectores do Ocidente. Trata-se sobretudo das cidades do Sul: Barí na costa leste, Nápoles, Gaeta, Salerno e Amalfi na costa oeste, sendo de salientar o aparecimento de Veneza. Sabe-se que a invasáo lombarda obrigara os habitantes das velhas cidades romanas da Venécia a procurar refúgio ñas ilhas que separam esta provincia do Adriático. Desta infelicidade iria surgir uma das mais prestigiosas cidades medievais. O testemunho de Cassiodoro comprova que, antes do avanzo lombardo, os únicos habitantes destas ilhas pre sas entre a laguna e o mar eram pescadores e pequeños transportadores por mar de vinho e de azeite. A estes autóctones juntaram-se os ricos citadinos das cidades do interior que, escorra?ados das suas casas, tinham podido levar os bens móveis, encontrando refúgio ñas margens da Venécia e da ístria, ainda bizantinas. Pouco antes de 800, Veneza emergiu das brumas, com um governo (dependente nominalmente de Bizáncio) estabelecido em Rialto e um poder marítimo prometedor. A partir do inicio do século IX, o seu porto abrigava uma frota de guerra capaz, caso fosse necessário, de ir em socorro dos Gregos. No mesmo período, a sua frota de comércio já estabelecera liga?oes com a Sicí118
lia, a Grécia e mesmo o Egipto. Rivais dos mercadores de Comacchio, os negociantes venezianos vendem o seu sal e todos os produtos orientáis em Cremona e em Pavia. So bretudo os venezianos exportam para os hárens do Egipto e da Siria jovens eslavas que capturaram ou compraram na costa dálmata (G. Luzzato). Com toda a legitimidade, Pi renne via neste tráfico de escravas o factor principal da nascente prosperidade da cidade das lagunas: um papel comparável ao desempenhado, no século XVIII, pelo tráfico de negros, nos portos europeus do Atlántico. Estamos, portanto, perante uma cidade cujo aparecimento e desenvolvimento nada parecem ter a ver com as trocas com os cam pos do continente próximo, perante uma cidade excepcional porque nasceu somente do mar e do comércio marítimo. Ñas ilhotas are nosas da laguna, nada medrava. Os seus primeiros habitantes tinham, portanto, sido obrigados «a trocar com os seus vizinhos do conti nente o sal e o peixe que o mar lhes fornecia, por trigo, vinho e carne que náo podiam obter de outro modo». Depois, á medida que a cidade enriquecia e se povoava cada vez mais, foi preciso ir cada vez mais longe, para o interior, a fim de procurar o abastecimento. Cerca de 900, Veneza «requisitava» o território de Verona e o vale do Pó, excelente via de penetrado para oeste. E, por volta do ano 1000, Pavia, Verona, Ravena, e ainda outras cidades, seráo também obrigadas a dar o seu contributo. Entretanto, a expansáo veneziana para além dos mares foi desencadeada no século X. A «colónia» veneziana no Bosforo tornara-se táo poderosa e táo activa que o basileus lhe outorgou privilégios, os primeiros da longa lista que, ao longo dos séculos, os venezianos obterao de Bizáncio. No ano 1000, criam-se mais vinte estabelecimentos de Veneza nos portos e ñas ilhas de todo o circuito do mar 1 p.eu. No lado ocidental da Itália carolíngia e pós-carolíngia, come?avam a desenvolver-se duas comunidades marítimas, destinadas a tomar-se rivais de Veneza depois da primeira cruzada. Pisa e Gé nova conheceram, contudo, «um arranque» menos precoce do que o de Veneza. Conquistadas pelos Lombardos, logo comercialmente em desvantagem, continuaram expostas, nos séculos VIII e IX, aos ataques e devastares sarracenas. Por volta de 900, os Árabes foram, finalmente, dominados e Pisa, estimulada do ponto de vista naval pela resisténcia que lhes tinha oposto, comegou a desenvolver-se. Mas é apenas na orla do século XI que Pisa controla a Córsega e talvez a ilha de Elba, depois a Sardenha, um pouco mais tarde. Sáo estes os postos avanzados necessários para fazer voltar a paz ao mar Tir reno. Por seu turno, antes da segunda metade do século X, Génova náo lembrava ainda em nada a florescente cidade da época romana. Destruida por Rothari, abandonada 119
— como F lorenfa— pelo tráfego estradal (numa preocupa d o de seguranza, as duas estradas romanas que a serviam tinham sido abandonadas em proveito de uma via situada mais a leste, a Via Francigena que servia Placéncia, Sarzana...), Génova só ensaiou uma tímida ascensáo por volta de 950, sendo entáo a sua muralha reconstruida. No comefo do século XI, a cidade renascente juntar-se-ia a Pisa para, em trinta anos, afastar o perigo árabe pelo menos do Norte do mar Tirreno. Era preciso que este perigo desaparecesse para que Génova e Pisa conhecessem um grande desenvol vimento. Mercadores, mercadorias, rotas comerciáis Os mercadores A partir de meados do século VIII, escasseiam repentinamente as menfóes de Syri. Algumas das suas colonias, como as de Itália, que eram numerosas, perdem o monopólio do grande comércio com o Oriente e acabam por se fundir na massa das indígenas. É possível que a conquista árabe, ao separar estes emigrados da sua pátria de origem, tenha modificado as vias e os métodos do negócio com o Levante, despojando os Syri do seu mister em beneficio de outras categorías de mercadores. Ao consultar capitulares, anais ou vidas de santos, apercebemo-nos de que novos grupos aproveitaram a aberta. Os primeiros foram os Judeus, em parte reminiscencia da antiga categoría «siria». Desde Carlos Magno que os encontramos no meio palaciano: trazem seguramente os produtos orientáis de que os grandes, laicos ou clérigos, sáo praticamente os únicos clientes. No tempo de Luís o Piedoso, Agobard, bispo de Liáo, vitupera esses judeus, reprovando-lhes sobretudo a prática do tráfico de escravos (o que aliás tende a demonstrar que o comércio com o Oriente náo era de sentido único). Ñas cidades, um pouco em todas as regioes, as judiarías prosperam ao ponto de parecerem amea?adoras para a fé cristá: eram estas judiarías que serviam de pontos de apoio ao grande comércio. Era este, por exemplo, o caso das cidades do Sul da Gália. Em contrapartida, ñas regioes de entre o Loire e o Reno, os judeus eram nítidamente menos numerosos, sem dúvida porque o comércio destas regiSes se orientava cada vez mais para as térras do Norte da Europa. Mas os textos diferenciavam claramente os judeus dos negociatores cristáos, simplesmente porque, além das judiarías, existiam outros grupos de mercadores profissionais. Em 820, Eginardo, na sua correspondencia, faz frequentes alusóes aos mercadores de Mayence, que subiam o Reno para comprar cereais que depois revendiam na sua cidadela, a principal cidade renana. Em 828, o poeta 120
Ermold o Negro, exilado por Luís o Piedoso em Estrasburgo, escre veu uma epístola a Pepino da Aquitánia, na qual fala com insis tencia sobre o grande tráfico de produtos que animava o Reno. Em meados do século IX, os Anais de Fulda salientam, a propósito da narragáo de uma carestía, a importáncia do mercado de Mayence, onde uma colónia de mercadores estrangeiros — talvez frisoes na sua m aioria— estava instalada num bairro do porto. Assim, na Alsácia, na Francónia, na Renánia, viviam mercadores profissionais (e náo «ocasionáis», como pretendía Pirenne), especializados no comércio de cereais e especulando nesses tempos de frequentes carencias. O cronista da abadia de Saint-Gail vitupera um avarus negociator, que, como os seus confrades, armazenara trigo nos seus entrepostos e, quando a escassez sobreveio, o revendeu a um prego escandaloso. Outros mercadores cristáos organizavam caravanas para comer ciar com as térras mais longínquas, tal como os comerciantes de Verdun, que continuavam a ir á Espanha musulmana vender eunu cos e outros escravos. Em 870, os monges de Sithiu, que se dirigiam para Roma, encontraram uma destas caravanas. E, oitenta anos mais tarde, Liutprando de Cremona indigna-se ainda com este vergonhoso comércio, de que Verdun continuava a ser, desde há séculos, um dos centros principáis. Um belo exemplo da continuidade de um tráfico que durou pelo menos do século VI ao fim do século X! Em resumo, os mercatores constituíam, no Ocidente, grupos bastante importantes. Encontramos provas suplementares deste facto nos processos de langamento dos tributos pelos Normandos, entre 860 e 877. Em 866, por exemplo, para tentar afastar uma vez mais o perigo viking, Carlos o Ccdvo prometeu pagar um tributo de 4000 Lb. de prata. Para reunir esta enorme soma, impós na Francia Ocidental uma espécie de dupla contribuigáo: cada manse pagaría de Vs a 6 denários; por outro lado, os mercadores contribuiriam com Vio dos seus haveres mobiliários. Todavía, os esforgos dos reis e dos grandes para atrair os mercadores, dispensando-os das taxas (terrádigos), aliciando-os com diversos privilégios (judiciais, milita res...) denotam que mercadores e mercadorias circulavam insuficien temente. Os negociatores (mas eles pouco merecem este nome que lhes dáo os textos) mais numerosos e os únicos que mantiveram verdadeiramente uma relagáo continua com o conjunto da populagáo foram os vendedores ambulantes. Estes andavam de cidade em cidade, de mercado rural em mercado rural, de feira em feira (Saint-Denis náo foi a única feira que apareceu durante a primeira Idade Mé dia), possuindo pelo menos um animal de carga que lhe servia para transportar pequeñas quantidades de mercadorias (o sal, no caso do vendedor ambulante citado nos Milagres de Sao Germano), ven121
dendo aqui, comprando acolá outros produtos com o dinheiro da primeira venda, revendendo-os no mercado seguinte... As receitas sáo fracas: os Milagres de Sao Benedito (primeira metade do século IX) contam como dois vendedores ambulantes foram roubados por salteadores; ora os haveres de um deles náo ultrapassava os 12 denários!
Mercadorias e comércios As anotafóes menos raras dizem respeito aos produtos alimen tares e, sobretudo, aos cereais. Nos seus escritos, os homens do tempo inquietavam-se principalmente com as carestías. Existiam entretanto as trocas anuais regulares: assim, os naturais de Mayence enviam os trigos francos para as bocas do Reno (a Frísia nao se prestava á cultura dos cereais). O vinho era igualmente objecto de trocas regulares: por um lado, porque a maior parte dos clérigos que vi viam em sectores nao vinícolas possuíam vinhas «excéntricas», por outro, porque a clientela era sobretudo composta por grandes laicos com rendimentos chorudos. Os vinhateiros exportadores, a fim de limitar a extensáo do transporte, estavam estabelecidos nos limites mais setentrionais para a produfáo de um vinho de qualidade: Bacia Parisiense, vales médios do Mosela e do Reno. O peixe e o sal eram igualmente dois produtos que constituíam objecto de um importante comércio. Os dois estáo ligados, uma vez que um dos processos de conservadlo do peixe era a salga. No Mediterráneo, onde as salinas se encontravam perto dos locáis de pesca, bem como na orla do Atlántico, a partir do estuário do Loire, náo havia qualquer dificuldade. Porém, a norte deste rio, as salinas, por insuficiencia da insola?áo, náo produzem, e os outros processos para extrair o sal da água do mar sáo também muito deficientes. Daqui resulta a actividade dos mercadores salineiros que váo vender o sal ñas regiSes costeiras setentrionais: entre estes sali neiros, encontramos os vikings, piratas mas também comerciantes. Naturalmente, este comércio infiltrava-se pelo interior das térras. Numa regiáo de populagáo pouco densa em Annapes, antes de 850, o terrádigo do sal rendia anualmente ao rei 60 moios (ou seja, pelo menos, 10% da quantidade que transitara por aquele local). Por motivos religiosos (jejuns) ou de outra ordem, o consumo de peixe era — e continuou a ser durante muitos séculos— considerável. Os numerosos viveiros das villae náo podiam contudo satisfazer toda a procura. Daqui resultou um comércio de peixe de mar, salgado ou seco, que parece ter sido notável: as relafoes do terrádigo de Arras, redigidas perto do ano 1000, embora reproduzindo disposifoes muito antigas, fixam as taxas a pagar para a venda do arenque. 122
para o VINLA.ND
AS VIAS DO COMERCIO VIKING
para Samarcanda
Segundo H. Arbman, The Vikings, Thames andHudson, Londres, 1961
A Bacia Parisiense fornece um bom exemplo da zona de comércio inter-regional: é aqui que se situam as poucas feiras que sáo melhor conhecidas. Desde meados do século VIII, a de Saint-Denis, frequentada por mercadores vindos de longe, como os saxóes e os frisoes, representava, através das taxas cobradas sobre as trocas, uma fonte de riqueza disputada entre a abadia local e os condes de Paris. Apesar de, devido ás repetidas incursoes dos Normandos na regiáo de Paris, as trocas terem abrandado entre 845 e o final do século IX, parece que o século X assinalou um renascimento: deve ter sido pouco depois de 900 que foi redigido um falso diploma de Dagoberto concedendo gran des privilégios aos mercadores dos lugares remotos, chegados por Ruáo e Quentovic, e também aos das regióes medi terránicas. Outro local de feira foi Chappes, a 20 km de Troyes, preferido a Saint-Denis por estar mais protegido no tempo das invasóes normandas. Conhecemos também Troyes, onde se vendiam escravos desde o século VIII e onde os monges de Saint-Germain-des-Prés, isentados por Carlos Magno do terrádigo local, vendiam os seus produtos. Mais tarde, na segunda metade do século X, Chalons-sur-Marne, Langy e Provins comegam a ser assinalados como lugares frequentados por numerosos mercadores. Entre as mercadorias produzidas pela Bacia Parisiense, devemos citar em primeiro lugar o vinho, porque é ele que atrai principalmente os negociatores do Norte. Para estes, o «frete de ida» compunha-se de tecidos (os pallia frisonica, talvez tecidos na «Flandres» e únicamente transportados pelos Frisoes) e metáis. Assim, os monges de Ferriéres-en-Gatinais usavam vestuário tecido na regiáo de Montreuil-sur-Mer. Paris no século IX e Soissons no século X, entre outras, eram cidades consideradas habitadas por pessoas ricas. É esta a origem da obstinado dos Normandos em atingir a regiáo e, finalmente, em se instalar no baixo Sena. O caso da Bacia Parisiense impóe uma conclusao para o estudo do comércio regional e inter-regional. «A distinfáo que se faz entre o comércio de antes e depois do século X... (náo é) táo nítida» como dantes se pensava. Verifica-se uma «permanencia das vias de trocas», motivada em parte pelas condigóes geográficas. Verifica-se, mais ainda, uma «permanéncia de certos lugares de trocas»: as feiras de Saint-Denis e de Champagne já existiam como «feiras de vinho» antes de serem, no século XII, «os grandes alicerces do comércio dos tecidos». E «a passagem da economia agrícola predominante, de antes do século X, á fase de economia urbana predominante, a par tir do século XI, náo representa qualquer revolugáo, mas a ampli ficad o de um fenómeno preexistente» (R. Doehaerd). Foi o comércio a grande distáncia que reteve quase toda a aten d o dos historiadores, tal como retivera a dos homens da época, fascinados pelo esplendor e pela raridade dos produtos do Oriente. 124
Contudo, esse negocio, quase negado por uns e exagerado por outros, náo tinha um grande significado económico, porque a sua clientela era constituida apenas por alguns milhares de laicos e de clérigos mais afortunados. Por isso, seremos muito mais breves do que é hábito sobre este caso. Destaquemos como primeiro facto que certos produtos orientáis desapareceram do Ocidente a partir do século VIII. O papiro do Egipto foi completamente suplantado pelo pergaminho, mais fácil de conservar. O azeite deixou de ultrapassar a sua zona de produfáo. Aliás, a manteiga e a banha trouxeram novos progressos á ali m entado, enquanto a cera para as lamparinas das igrejas. e o sebo, para a ilum inado dos pobres, suplantavam a ilum inado a azeite. Portanto, náo continuavam a ser importados do Oriente senáo pro dutos como os tecidos de luxo (destinados a satisfazer o gosto pela riqueza e pela ostentado dos aristócratas e também dos clérigos, contra o qual clamaram os moralistas como Alcuin) e as especiarias. Os produtos exóticos penetravam no Ocidente por numerosas vias. Conhecemos já a rota do Extremo-Leste, a de Varégues. O papel de estad o de muda deesmpenhado por Duurstede antes da sua destruido, em meados do século IX, foi assumido por outros portus situados mais no interior das térras, como Tiel, muito prós pero no século X. Bréme, que sucedeu á Hamburgo destruida, foi também uma estad o de muda. O período das hostilidades «nor mandas» desorganizou apenas temporariamente o comércio nesta regiáo, que, no entanto, era a mais exposta e a mais devastada. Mas a rota do Adriático, onde os Bizantinos, que conservavam as margens opostas do canal de Otranto, impediam a penetrado da pirataria musulmana, era, desde os séculos IX e X, a principal via do comércio oriental, o que explica o desenvolvimento de Veneza. É preciso notar — as listas de numerosas p eregrinajes aos lugares santos assim o revelam — que os marinheiros do Adriático náo aportavam somente aos Baleas bizantinos, langando-se também, sem intermediários, até ao Levante islámico: a política de amizade entre Carlos Magno e o califa de Bagdade deu seguramente os seus frutos em matéria económica. Por seu tumo, o Ocidente mugulmano foi, pelo menos desde o tempo de Luís o Piedoso, um fornecedor do mundo «latino» em produtos «orientáis» que desembarcavam ainda em Marselha ou em Arles. Sabe-se que, em troca, o Ocidente cristáo abastecía de escravos a Espanha árabe. As últimas vias frequentadas, que aliás constituíam um feixe, foram as rotas continentais através dos países eslavos e da planicie do Danúbio, tanto antes como depois da derrota dos Ávares e desde o estabelecimento dos Magiares. Os mercadores ocidentais encontravam aqui mercadores bizantinos, a quem compravam produtos 125
exóticos que traziam juntamente com as peles e os escravos. Por razoes mais militares do que económicas, Carlos Magno (e mesmo os seus sucessores) quis controlar esse tráfico pelas armas. Estabeleceu, portanto, postos de controlo por onde os negociantes tinham obligatoriamente que passar, mas esse embriao de alfándega nao deve ter sido nem muito eficaz nem muito duradoiro.
Segunda Parte
A ERA DA EXPANSÁO (DO SÉCULO XI AO SÉCULO X III)
A entrada nos anos 1000 representou o cometo de uma nova era para o Ocidente: a era da expansáo económica e dos progressos em todos os dominios. Progressos que se verificaram nomeadamente na escrita, como consequéncia da renovafáo cultural. Isto significa que as fontes da história se váo multiplicar a pouco e pouco e melhorar de qualidade. Náo é possível, pois isso implicaría o risco de tornar esta obra demasiado extensa, apresentar uma visáo de con junto completa destas fontes, pelo que nos limitaremos a indicar, á medida que for oportuno, as categorías de documentos mais mar cantes. No entanto, é preciso frisar desde já que os escritos sáo cada vez mais fontes directas e náo apenas textos narrativos, por exem plo, no que respeita ás trocas: portanto, deixa de ser necessário, em principio, interpretar os seus dados incompletos e muitas vezes inexactos, visto que estes serviram directamente aos homens da época. Contudo, antes do século XIII, a história económica continua a ter a falta do suporte que os números representam
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Capítulo 6
VISÁO DE CONJUNTO O OCIDENTE ANIMA-SE E TORNA-SE CONQUISTADOR
No século X, tal como nos que o antecederam, a cristandade romana náo viveu fechada sobre si mesma, em comunidade de maiores ou menores dimensoes. Testemunha-o o reformador da Lorena enviado por Otáo I, em 935, á corte de Córdova, na companhia de um mercador de Verdun que conhecia bem a Península Ibérica. Vinte anos mais tarde, um árabe de passagem por Mayence encontra á venda toda uma gama de especiarías provenientes das Indias. Trata-se de dois exemplos entre outros. No entanto, é real mente certo que, pelo menos até meados do século X, as rela?5es do Ocidente cristáo com os mundos exteriores se desenvolveram, na maior parte dos casos a nivel «individual». E essas relagoes processavam-se menos «com a Polónia e a Rússia do que com as cidades fronteirifas do Elba, menos com o Oriente do que com os seus postos avanzados da Itália veneziana, napolitana ou siciliana e da Espanha musulmana» (L. Genicot). É bastante provável que os ocidentais que se aventuraran! até ao Bosforo, ou mesmo até ao Levante, tenham sido, na maior parte dos casos, mais peregrinos ou diplomatas do que mercadores «a 100 %». Com o século XI, o Ocidente anima-se mais ainda, multiplicando os seus contactos com os países árabes, com os Baleas e com o Império bizantino. Esses contactos foram seguramente muito varia dos, uns guerreiros, outros pacíficos, mas todos eles conduziram á «dilatagáo» do Ocidente, e representaran! o prenúncio do primeiro império comercial e do primeiro império colonial da cristandade latina. Império que se estabeleceu em detrimento dos Gregos e dos Sarracenos, e, ainda mais, á custa dos Eslavos: a marcha para Leste, que se tinha mais ou menos detido havia muito tempo e que fora fracamente reanimada pelos Otonidas, foi reiniciada e teve grandes sucessos. Finalmente, a Escandinávia foi evangelizada. 129
Na origem desta renovagáo encontra-se um facto de amplitude indiscutível: o crescimento demográfico exerce-se em todas as regióes e em todos os sectores. Os efectivos camponeses aumentam, facto de que resulta a extensáo dos antigos terrenos cultivados, a criafáo de novas aldeias e de novos terrenos e o aparecimento ou crescimento de aglomerados urbanos. Entre a aristocracia, o espi rito de aventura desenvolve-se ou adquire novos objectivos: os filhos das familias nobres, agora demasiado numerosos, procuram recur sos suplementares. Por gosto e por formafáo, os «jovens», ou seja, os cadetes, sáo evidentemente atraídos pelas empresas militares. Ao mesmo tempo, cometa a estabelecer-se um mínimo de ordem nos principados e as instituifóes de paz, pretendidas pela Igreja, come?am lentamente a penetrar nos costumes. Comefam deste modo a ser menos numerosas as ocasióes e os proveitos da guerra «á porta de casa». H preferível, portanto, que os «jovens» se lancem ñas expedi?6es longínquas. E o renascimento demográfico encontra-se também na origem da expansáo da cavalaria, principalmente da cavalaria «franca», das regióes de entre o Loire e o Reno, que, em muitos dominios, continuam a ser — com a Itália— o elemento motor do Ocidente. Estas empresas a térras distantes sáo, por outro lado, favorecidas pelo aperfeifoamento das técnicas de combate em uso entre os nobres: utilizado mais frequente do cavalo na batalha, aperfeifoamento do armamento defensivo e ofensivo, resultante do desenvolvimento do trabalho do ferro e do aumento dos rendimentos senhoriais. Por volta do ano 1000, as tradisóes guerreiras dos Vikings e a sua vitalidade ainda subsistiam na Normandia. E, aqui, os duques tinham a máo pesada para punir os causadores de problemas. O gosto pela aventura em térras distantes e a necessidade premente (a superpopulafáo das casas nobres foi talvez aqui mais precoce e mais premente do que ñas proximidades) levam muitos destes ho mens a abandonar a pátria e a alugar as suas espadas. Num pri meiro período, é para os confins meridionaís da cristandade latina que eles partem em busca de fortuna e de gloria: a partir de 1009, os «jovens» alistam-se ao servigo dos príncipes que disputam duramente entre si a Itália do Sul. Sem vergonha, passam de um campo para o outro, transformando-se fácilmente de mercenários em conquistadores. Os lombardos dos Apeninos, os bizantinos da Apúlia e da Calábria, cidades mercantis, os árabes da Sicilia, can sados por incessantes e intermináveis lutas, depressa sáo submersos por estes soldados valorosos, cujos efectivos aumentam continua mente, porque os normandos que ali se encontram chamam irmáos e primos, que de boa vontade se lhes vém juntar. Por volta de 1060, um desses normandos impóe-se a todos os seus compatriotas: o mercenário Roberto Guiscard passa a ser o único chefe dos Nor mandos, estabelece a sua autoridade sobre os lombardos do interior, 130
e funda da Calábria e na Apúlia um principado, que recebera como feudo do papa em 1059. Ocupa Bari em 1071, lanzando ao mar os últimos bizantinos, para depois, com a ajuda do seu irmáo Rogério, tomar a pouco e pouco toda a Sicilia aos Sarracenos (1072: tomada de Palermo). Finalmente, com a tomada de Corfú e Durazzo, controla o canal de Otranto, chegando mesmo a pensar lan?ar-se sobre os Baleas. Este novo Estado normando, de armadura sólida e com recursos consideráveis para a época, teve grande importáncia estratégica de vido á sua situ ado no ponto de encontro dos trés mundos: o ocidental, o bizantino e o mufulmano. A Sicilia, «encruzilhada de línguas, de religióes, de civilizares» (G. Duby), é também «escala dos grandes itinerarios marítimos, regiáo do ouro e de grande comércio». Foi um grande golpe para os piratas barbarescos a Sici lia ter regressado ao Ocidente cristáo: os navios «latinos», que agora dispunham de um «abrigo seguro», podiam atingir mais fácil mente os portos do Levante. O Mediterráneo ocidental encontra-se. portanto, desbloqueado. Até entáo, o único porto do mar Tirreno cujos barcos podiam, devido a acordos com os sarracenos da Sicilia, franquear o estreito de Messina, era Amalfi. Agora, o caminho para os outros portos estava livre. Mas os ocidentais cristáos náo devem aos Normandos apenas este sucesso: com a conquista da Inglaterra pelo duque Guilherme, o Bastardo, em 1066, as regioes anglo-saxónicas sáo subtraídas ás influéncias escandinavas e ligadas á civilizado das regiSes de entre o Loire e o Reno. Trata-se, portanto, segundo alguns aspectos, de uma espécie de reconquista em proveito do Ocidente. Outro sector de reconquista é a Península Ibérica. Os pequeños Estados cristáos, ou seja, o condado de Barcelona, o reino das Astúrias e Leáo e os seus satélites como a Navarra, estavam con finados ás montanhas do Norte, seguiam o Douro e náo atingiam o Ebro em todo o seu curso. Mas, a partir da primeira metade do século XI, chegam os cavaleiros de Franca, vindos de Champagne, de Borgonha e do Sudoeste. A Reconquista desenvolve-se segundo duas vias e duas velocidades diferentes. A leste, as expedifñes que partem dos Pirenéus — a primeira grande tentativa data de 1063 — progridem muito lentamente, visto que Saragofa só cai em 1118. Para oeste, pelo contrário, os sucessos sáo prodigiosos: Coimbra é tomada em 1064 e Toledo, no centro da península, rende-se em 1085. É certo que, por duas vezes, a intervendo de muculmanos da África, primeiro os Almorávidas e depois os Almóadas, com promete a reconquista. No entanto, de ambas as vezes, os cristáos recuperam. A partir do século XIII, o essencial foi conquistado. A península abre-se entáo á colonizado camponesa, ao mesmo tempo que a paisagem fica semeada de «castillos» (de onde o nome de «Castela»), 131
Mas a principal expansáo colonial verificou-se no Levante. Em 1095, o papa Urbano II apela á «libertagáo» dos lugares santos. Partem quatro exércitos que, finalmente, se apoderam da Jerusalém terrestre em 15 de Julho de 1099. Continuamente reforjados por novos contingentes, vindos, tal como eles, sobretudo das regióes de língua «francesa», os «Francos» alargam as suas primeiras con quistas e organizam-nas á maneira ocidental. A cruzada é de facto uma «instituido permanente». Mas Edessa cai em 1144 e o túmulo de Cristo é perdido em 1187. A maior parte resiste entretanto até ao fim do século XIII. Este recuo lento perante o Isláo do Oriente é, no entanto, compensado por outros sucessos: Constantinopla é tomada em 1204. Apesar de o império latino entáo criado ser frágil, os «Francos» — os Venezianos sobretudo — estabeleceram-se duradoiramente em diversos pontos, nomeadamente na Moreia. As consequéncias económicas das Cruzadas foram extremamente importantes. Em primeiro lugar, no Ocidente, onde, sobretudo em Franca, na Inglaterra, na Lotaríngia e na Alemanha do Reno e do Sul, houve poucas linhagens nobres ñas quais um ou mais dos seus membros nao tenha sido cruzado. Os efeitos da expansáo demo gráfica no Ocidente foram atenuados: os patrimónios nobres foram menos fragmentados e sofreram menos do que se todos os herdeiros tivessem ficado na Europa. As Cruzadas foram sobretudo uma excelente válvula de escape para os ánimos combativos dos cavalei ros e, conforme previra o génio de Urbano II, a paz de Deus estabelece-se no Ocidente, onde se consolida um mínimo de ordem que vem favorecer a produgáo e as trocas. Mas o desenvolvimento económico surgido ou reforjado por ocasiáo das Cruzadas foi principalmente proveitoso para os Italia nos. Apesar de, antes do fim do século XI, traficarem já no Oriente, a conquista da costa Siria-Palestina veio abrir-lhes novos portos e, portanto, novas escalas para novas rotas de comércio. Inversamente, a própria existencia de um Levante «franco» dependía á partida da solidez de boas ligagoes marítimas com o Ocidente cristáo, ligagoes que. por seu turno, só podiam ser asseguradas pelas cidades marí timas e mercantis da Itália. Por outro lado, entalados entre o mar e o mundo árabe, assediados pela malevoléncia bizantina, os «Fran cos» encontravam-se á mercé dos Italianos, aos quais tiveram de conceder privilégios exorbitantes. Mas náo nos deixemos influenciar e náo imaginemos que o extraordinário desenvolvimento das gran des cidades italianas foi apenas provocado directamente pela expan sáo decorrente das Cruzadas ou exclusivamente alimentado pelo comércio com os Estados latinos do Oriente. O essencial continua a ser válido: as ligagóes entre a cristandade latina e o seu império colonial do Levante foram mantidas pelos Italianos, de maneira firme e hábil. Depressa as Cruzadas se tornaram para eles origem de grandes lucros. Os Italianos só «em132
prestavam» os seus marinheiros e os seus navios aos cruzados ou aos portos da Siria-Palestina á custa de tarifas muito elevadas. Além disso, em troca da sua ajuda, já de si táo pouco desinteressada, eles exigiam dos chefes das cruzadas privilégios cada vez mais excessivos, que iriam dar origem ás feitorias italianas do Levante. A primeira destas feitorias foi um bairro autónomo de Antioquia, que os Genoveses extorquiram a Bohemond quando da primeira cruzada. Pouco depois (Fevereiro de 1100), os italianos de Pisa obtiveram de Godofredo de Bulháo um bairro de Jafa, que trans formaran! em colónia. No Veráo de 1100, Veneza vendeu o seu auxilio ao mesmo Godofredo em troca da sua instalado em Haifa. £ , nos anos que se seguiram, os Italianos cobraram igualmente o seu contributo com a concessáo de feitorias nos novos portos con quistados: Génova em Antioquia, Acra...; Veneza em Beirute, Acra, Tiro, Sídon...; Pisa (menos bem «compensada») em Tiro e Acra. Em geral, uma «colónia» italiana era composta por um bairro cons truido ou a construir e por entrepostos anexos ou situados no porto: o entreposto chamava-se fundacum, de onde a designado fundaco atribuida a cada colónia. E os privilégios comerciáis e fiscais do fundaco — isenfáo total ou parcial dos direitos alfandegários e de taxas diversas — eram muitas vezes acompanhados pela autonomía administrativa e judicial. Mas as rivalidades que opunham entre si os grandes portos de Itália e que se agravaram no século XIII, acabaram por enfraquecer alguns fundachi e, por conseguinte, os Estados latinos. Apesar de inicialmente ter parecido em atraso em relasáo a Génova e a Pisa, Veneza iria posteriormente exercer uma verdadeira hegemonía sobre uma parte do comércio oriental. O seu golpe de mestre foi a queda de Constantinopla e a sua instalado, em 1204, em diversos despojos do império grego; na própria Bizáncio (Pera), com pontos de apoio nos Dardanelos e no mar de Mármara e também com as ilhas (Cándia e Negroponte). Mas este sucesso foi em parte efémero: a restaurado do Império bizantino em 1261 foi principalmente aproveitada por Génova. Isto náo impede que, por volta de 1300, continuem a ser os Italianos a dominar uma parte do Mediterráneo Oriental, apesar do desaparecimento da maior parte das bases «latinas» em território mu?ulmano. Mas, ao mesmo tempo, os Venezianos, Genoveses e Písanos tinham obtido uma posido privilegiada na própria térra do Isláo. Cada um de tres grandes portos de Itália tinha o seu estabeleci mento em Alexandria, em Damieta, no Cairo; o mesmo acontecía no Norte de África, onde, durante o século XII, os seus dependen tes tinham obtido grandes vantagens em Trípolis, Tunes, Bugia, Oráo, Ceuta e até em Salé, no Atlántico. Por outro lado, os Italia nos haviam-se associado aos cristáos de Espanha, o que permitiu que os Písanos tomassem as Baleares em 1115 e que os Genoveses con133
quistassem Almería em 1146. E, dado que anteriormente tinham expulso os Mouros da Córsega e da Sardenha, genoveses e písanos dominavam agora o mar Tirreno e o Mediterráneo Ocidental, ao mesmo tempo que Veneza acaba va de estabelecer a sua hegemonía no Adriático. O Mediterráneo tendia, deste modo, a transformar-se num lago italiano, ao mesmo tempo que, no Norte da Europa, o mar do Norte e, mais tarde, o Báltico se transformavam em lagos germánicos. Mais tardia e também mais duradoira do que a expansáo «franca» e italiana no Levante, foi a marcha para Leste. Depois dos sucessos obtidos por Carlos Magno, as posteriores tendencias de avanzo na zona eslava para além do Elba tinham-se geralmente saldado em derrotas. Assim, as «marcas» criadas por Otáo o Grande para além do rio encontravam-se arruinadas desde o fim do século X, quando da insurreigáo geral dos Eslavos que se seguiu á queda de Otáo II, em Itália. De facto, entre o Elba e o Óder viviam povos pagaos e ciosos da sua independencia, que só aceitavam o baptismo e o pagamento de um tributo depois de uma derrota, antes de rejeitarem um e outro uma vez passado o perigo. A partir de entáo, no decurso do século XI, os progressos dos Alemáes foram nulos, acontecendo isto também na sequéncia de uma mudanza de dinastía: os reis da Germánia, francónios e já náo saxóes, só se interessavam pelo Sul e pela Itália, tanto mais que se encontravam absorvidos pelas querelas das investiduras. Da obra otoniana subsistía, no en tanto, a fundagáo da igreja polaca e uma vaga vassalidade dos príncipes polacos em relagáo ao rei da Germánia. Mas os príncipes polacos queriam também apoderar-se da regiáo entre o Elba e o Óder, donde resultavam os frequentes atritos com o império. Por outro lado, a norte, em parte devido ao impulso alemáo, o reino da Dinamarca — inclusive o Schleswig e a Scania «sueca» — era cristianizado e mantinha relagoes bastante boas com o império. O com ego do século XII trouxe condigóes favoráveis a uma penetragáo alemá mais duradoira para além do Elba. Como no tempo dos Carolíngios, a sua primeira fase foi a cristianizagáo: os seus sucessos foram mais rápidos na Pomeránia do que, por exemplo, no Holstein, apesar de terem sido facilitados um pouco por toda a parte, depois de 1140, devido á chegada de diversos colonos germánicos. Mas a viragem decisiva da colonizagáo náo ficou a dever-se a uma «cruzada», que iria ter lugar em 1147, mas ao reinado de Lotário III, duque da Saxónia e rei desde 1125. Ao conceder o Holstein a Adolfo I de Schauenburgo (cujo filho fun dará Lubeque), a Marca do Norte a Alberto o Urso e ao reconhecer o ducado da Saxónia a Henrique o Orgulhoso (pai de Henrique o Ledo), Lotário III instalou tres dinastías que iam fazer progredir de forma decisiva a colonizagáo para leste. Além disso, e sob reserva de reciprocidade, concedeu privilégios aos mercadores da 134
ilha escandinava de Gotland na Saxónia. Este soberano foi de facto «o grande obreiro da expansáo política e comercial dos Ale máes» (Ph. Dollinger). No entanto, o motor mais decisivo do Drang nach Oslen, do século XII ao século XIV, foram as vagas de migrafóes germánicas cujo número (provável) atingiu as centenas de milhares. Estas migra9&es tornaram-se possíveis devido ao crescimento demográfico do Ocidente, mais precisamente das regioes germánicas do Oeste e do Norte. Flamengos, holandeses, renanos, vestefaJianos e francónios, comprimidos — como em quase toda a parte na Europa «romana» — em térras que a fragm entado de gerafáo em geragáo tornava exiguas, foram atraídos pela promessa de vastas térras gratuitas que lhes dariam a riqueza ou, pelo menos e finalmente, uma vida mais fácil. Depois do Holstein e do Brandeburgo, colo nizados a partir sobretudo de meados do século XII, todos os sectores de entre o Elba e o Óder, e até para além do Óder, foram invadidos pelas vagas de imigrantes. Tratou-se, em primeiro lugar e antes de mais, de colonizado camponesa. Mas depressa surgiu a colonizagáo mercantil, que acompanhava a fundado das cidades. Em breve iria ser formada e alargada a Hansa. A sua fundado data da segunda metade do século XII, quando se desenvolviam as cidades antigas — com o primeiro lugar para Colónia, a «máe das cidades alemás» — e comefavam a surgir novas cidades. De salientar, entretanto, que, na regiáo eslava — em Meclemburgo, na Pomeránia, na Polonia —, algumas cidades tinham sido constituidas, como na Europa Ocidental, a partir de antes do século X, facto de que só temos conhecimento desde náo há muito tempo. No entanto, as fundagóes germá nicas, tanto as da Hansa como as outras, iriam por vezes apagar completamente os vestigios deste primeiro desenvolvimento urbano. Depois das dificuldades entre Henrique o Leño e o conde de Holstein, foram criados definitivamente, em 1158-1159, a cidade e o porto de Lubeque, cujo objectivo principal era o comércio com o Báltico. O seu desenvolvimento foi rápido; grabas ao acordo com os Gotlandeses, alguns alemáes instalaram-se em Visby, centro cuja actividade duplicou por esse facto. Visby, cujas feiras eram activas, era um ponto de partida para a Rússia e para a Suécia. Assim, alguns mercadores alemáes comegaram a seguir os Escan dinavos até á Rússia, como eles atraídos pelo grande mercado dos produtos orientáis que era Novgorod, em pleno desenvolvimento: instalaram uma feitoria em Novgorod, a «Corte Sáo Pedro», donde irradiaram tanto para outros mercados russos como para as regioes bálticas. A cristianizado da Livónia, a fundado de Riga (1201) e a instalado, em 1202, dos cavaleiros Porte-Glaive foram acompanhadas por uma colonizagáo na qual os mercadores germánicos, «urnas vezes soldados, outras comerciantes», desempenharam um 135
papel considerável. Mas, em 1236, os Porte-Glaive, vencidos pelos Lituanos, foram suplantados pelos cavaleiros teutónicos, que comegavam a conquista e a cristianizado da Prússia. Havia entáo perto de um século que os mercadores alemáes das antigas cidades (da Renánia sobretudo) e das cidades novas, das quais a mais impor tante passara a ser decididamente Lubeque, se tinham mais ou menos agrupado numa associagao bastante fluida que já se pode qualificar de Hansa: politicamente, esta teve de ceder terreno aos teutónicos numa parte das costas sudeste do Báltico. De qual quer modo, a germanizado e o comércio alemáo eram vencedores. Na Alemanha de Leste, pelo contrário, os sucessos da Hansa, menos rápidos, foram no entanto mais completos. Entre o Elba e o Óder, ou mesmo mais a leste, a colonizagáo rural e comercial tinha indiscutivelmente conseguido germanizar esta vasta regiáo, no fim do século XIII. Neste século, tinham-se desenvolvido uma série de cidades novas, nomeadamente na costa: primeiro Rostock, depois Wismar, Straslsund, Danzigue..., ñas costas do Báltico; Brandeburgo, Frankfurt an der Oder... no interior. E a conquista da Prússia pelos teutónicos, regressados da Terra Santa no século XII, permitiu que os colonos alemáes passassem para além do leste do Vístula: ao longo desses rios, foram fundadas Thorn e Elbing, depois Koenigsberg mais a leste. Ainda neste mesmo século, o «avango para leste» foi acompanhado por um «avango para norte» quase igualmente forte: a Escandinávia abriu-se entáo largamente ao comércio e á colonizagáo dos Alemáes. O motor desta expansáo fora a associagáo dos mercadores ale máes que frequentavam a ilha de Gotland. Mas esta primeira Hansa, depois de ter agrupado mercadores de várias dezenas de cidades germánicas, marítimas ou continentais, de Colónia a Riga, entrou em decadencia por volta de 1250. No último quartel do século XIII, diversas ligas urbanas voltaram a dar vida a esta Hansa dos mercadores alemáes, que prenuncia a Hansa das cidades, cuja gestagáo será difícil e á qual apenas as lutas a travar no século XIV daráo, finalmente, por volta de 1350, uma organizagao mais sólida. No decorrer destes tres séculos (XI-XII-XIII), as condigóes polí ticas e sociais sofreram imensas transformagoes. Tratou-se com efeito de um período de «reconstrugáo de alto a baixo» (R.-S. Ló pez). No melhor dos casos (o do reino de Franga, por exemplo), passou-se de uma infinidade de feudos a um reino náo «centralizado» — o termo seria anacrónico —, mas bem controlado pelo rei, suserano, soberano e possuidor de um dominio em extensáo. Nos casos menos favoráveis (o do reino da Alemanha, entre outros), um grupo restrito de príncipes criou territorios relativamente extensos. Na Itália, onde as rivalidades existiam náo entre principados mas entre cidades, as maiores e as mais hábeis conseguiram criar um 136
contado. Deste modo, a carta política simplificou-se muito por toda a parte. Durante muito tempo, foi moda dizer que a feudalidade nascera da «economia natural»: sendo a circulado monetária reduzida e difícil, os dependentes eram compensados em térras. O sistema náo possuía elasticidade e, na realidade, náo se tratava de um salario, uma vez que «náo é táo fácil desalojar um detentor de térras como suprimir um salário combinado» (R.-S. López). Mas, estando a superficie das térras disponíveis a ser incessantemente reduzida, «como contratar empregados extraordinários para tarefas ocasio náis»? A feudalidade teria portanto preparado o seu declínio a par tir do momento em que a economia comegou a sair da estagnagáo. Aumentando os rendimentos em especies, o príncipe, o pequeño nobre, o clérigo ou o burgués podiam a partir de entáo recrutar os seus «dependentes» por meio de um salário. De tal modo que, em diversas grandes cidades mercantis de Itália, a feudalidade quase desapareceu. Mas é preciso considerar diversos aspectos. Se a térra era outrora a principal fonte de riqueza, eram precisamente os senhores feudais, tanto clérigos como laicos, quem dispunha de metáis preciosos amoedados ou «congelados», o que lhes permitia sempre adquirir produtos de luxo e ainda — sobretudo no caso da Igreja — aumentar as suas possessoes fundiárias. Portanto, teria sido possível contratar «dependentes» com a ajuda de metáis preciosos e por certo que tal se verificou muito menos raramente do que ainda se pensa. O facto de tal se fazer principalmente á custa de térras verificou-se porque o «espirito da época» mais do que as condigSes económicas ambientes assim o determinaram (R.-S. López). Vendo o problema mais de perto, observa-se um desnivel entre a evolugáo económica e a evolugáo política. O ponto mais baixo da «economia monetária» foi aparentemente anterior ao século X, quando ainda nos encontrávamos na «fase embrionária» das instituigoes feudais. Entretanto, o ponto de partida da recuperagáo económica (segunda metade do século X ou comegos do século XI) coincide com o completo triunfo da feudalidade em Franga. Tra ta-se de dois exemplos contraditórios e portanto perturbadores para quem se deixa vencer demasiado pelas querelas de escolas. Nos séculos X II e XIII, o magnífico avango das cidades italianas fez mais ou menos soar «o dobre de finados do sistema feudal». Ao passo que em Inglaterra o feudalismo de importagáo normanda continuava, muito tempo depois dos anos 1100, a acomodar-se bastante bem aos progressos da «economia monetária». Para o historiador e economista, o essencial náo reside nestas questSes. O fenómeno principal é a reconstituigao progressiva de «unidades políticas» cada vez mais vastas, que váo desde o grande 137
principado até a um quase reino. Quais foram as incidencias deste facto sobre a actividade material? Náo é fácil saber se foi a aceleragáo da circulagáo dos bens que precedeu o desenvolvimento dos novos poderes políticos ou se se deu o inverso. Sabe-se, no entanto, que estes dois factores de ordem — relativa — se favoreceram e reforgaram continuamente um ao outro. Os grandes baroes e os soberanos lutaram contra o banditismo dos pequeños feudais saqueadores, tomando deste modo cada vez menos perigosa a circulagáo de homens e mercadorias. O exemplo dos Capetos, que, no fim do século XI e ñas primeiras décadas do século XII, meteram na ordem os casteláos salteadores da Ile-de-France, é indiscutivelmente um exemplo típico. Reaparece, portanto, um mínimo de seguranga em todas as estradas do dominio real, nomeadamente ñas do «eixo da monarquía», ou seja, o trajecto de Paris a Orleáes. Esta seguranga favoreceu o despertar da Ile-de-France para o grande tráfico. E os poderosos vassalos dos reis de Franga procederam do mesmo modo nos seus principados da Normandia, da Flandres, de Champagne, de Anjou... Como contrapartida, condes, duques ou reis beneficiaram do seu sucesso contra a desordem, que, aliás, em muitos casos demorou um século ou dois a desaparecer por completo. Os tesouros prin cipescos ou reais encheram-se com o produto dos direitos de toda a espécie cobrados sobre as mercadorias (peagens e terrádigos prin cipalmente) e sobre os mercadores que eram protegidos. A partir daqui, «o dinheiro é que confere o verdadeiro poder» (G. Duby) e os nobres acabam por tomar consciencia disso, surgindo-lhes o comércio como uma actividade infinitamente preciosa, que devia merecer a sua protecgáo. As preocupagóes «económicas» reforgam-se no seu meio: já náo basta proteger os clérigos, as viúvas e os órfáos. como a Igreja continua a pedir aos senhores restabelecidos no seu poder, mas é preciso alargar essa protecgáo aos mercadores. E estas preocupagóes de ordem económica tomam-se pouco a pouco comuns entre algumas personagens particularmente prudentes: no fim do século XIII, Filipe o Belo manda manipular a sua moeda nao apenas para obter novos recursos, mas também talvez para aumentar o volume, manifestamente insuficiente, dos signos mone tários. Por volta de 1300, as «regióes económicas» ignoram ainda fácil mente as movimentagóes, tanto as dos grandes feudos como as dos próprios reinos. Deste modo, a «regiáo flamenga» ultrapassa larga mente as «fronteiras» do condado da Flandres, uma vez que para sul atinge provavelmente o Soma e, para leste, ultrapassa o Escalda — limite entre o reino da Franga e o império —, ocupando um sector dependente do imperador nos montes Cámbricos, em Hainaut e mesmo no Brabante. Náo existe ainda qualquer área económica á escala de todo um país; existem, no entanto, já aleumas entidades económicas que ultrapassam os limites de um grande feudo. 138
Capítulo 7
A EXPANSÁO ECONÓMICA E OS FACTORES DA PRODUgÁO
Sáo indispensáveis algumas observagoes preliminares. Ainda que a docum entado seja incomparavelmente mais rica do que a relativa aos séculos precedentes, náo é contudo ainda possível conhecer bem o consumo, o investimento ou a poupanga; o que, por pru dencia, leva a desmontar os mecanismos económicos, a partir da produgáo, como já se fez na primeira parte. Isto torna, aliás, possíveis as comparagóes entre os factores de produgáo da primeira Idade Média com os posteriores ao ano 1000. E para evitar repetigSes — o corte dos anos 1300 é bem menos nítido do que o das proximidades do ano 1000 — náo se receia prolongar o estudo destes factores além do final do séc. X III e até ao séc. XV. Para comegar, póe-se a questáo do crescimento e desenvol vimento económicos, considerada fundamental pelos economistas actuais. A nogáo de crescimento é, para os economistas, uma nogáo perfeitamente primordial. Distinguem o crescimento a longo e a curto prazo. O primeiro, muito complexo, traduz a evolugáo de toda uma civilizagáo, com as suas fases de juventude, de maturidade e de velhice: as grandes variáveis (populagáo, principáis produgóes...) progridem segundo uma taxa inicialmente acelerada, depois cons tante, lenta no final (o que, numa economia muito envelhecida significa a estagnagáo pura e simples). Este crescimento «logístico» afecta as economías, no seu conjunto, e caracteriza também a evolugáo de todas as produgóes: uma produgáo ligada á invengáo técnica entra na fase de crescimento assimptótico, portanto acele rado, antes de passar a uma fase de crescimento constante, para acabar na fase exponencial, logo, de crescimento cada vez mais fraco. Entretanto, o crescimento a curto prazo (na escala de uma ou várias geragóes) levanta o dilema que constitui o problema fundamental da ciencia económica: consumo ou investimento? 139
Dever-se-á preferir os bens futuros aos bens presentes, poupar para investir em lugar de consumir? Há a considerar tres principios: — a taxa de crescimento de uma economia depende do seu rendi mento global, em épocas sucessivas; — a importancia desse rendimento global é fungáo do capital disponfvel em imóveis, em equipamentos, em energía; — a importancia do capital disponível é fungáo dos sacrificios realizados no consumo. Considerando apenas os séculos XIX e XX, os economistas pensam que o crescimento económico do nosso tempo pode caracterizar-se pela elevagáo de duas variáveis principáis: o crescimento demográfico e o aumento dos recursos disponíveis, efectuando-se este paralelamente ao aumento da populagáo. Considera-se que este crescimento dos recursos é acompanhado por um melhoramento da produtividade do trabalho humano. O progresso económico é muitas vezes definido como um aumento dos recursos disponíveis superior ao crescimento da popu lagáo. Este progresso caracteriza-se por um deslocamento gradual da populagáo activa da agricultura para o sector da indústria e dos servigos: este deslocamento, mais ou menos rápido e mais ou menos acentuado, permite escalonar as etapas do desenvolvi mento. Como a agricultura entra muito depressa na fase de rendi mentos decrescentes, visto que atinge — pelo menos nos nossos dias — o seu máximo de produtividade com poucos homens e abundantes capitais, a formagáo de novos capitais conduz a um deslocamento de máo-de-obra para o sector da indústria, onde a produtividade é maior. Surgem as industrias de bens de consumo e depois as indústrias de bens de investimento, estabelecendo-se um equilibrio entre estes dois tipos de indústria. Depois, quando o consumo de bens «secundários» (ou seja, industriáis) atinge o máximo, o consumo transfere-se dos produtos «secundários» para os produtos e servigos «terciários» (em geral, os do comércio). Há, pois, uma transferencia da populagáo activa da agricultura para a indústria e depois da indústria para o comércio. Em suma, existem quatro factores de desenvolvimento (Raymond Barre): — o dinamismo demográfico: qualquer sociedade encontra na pressao demográfica o mais eficaz incitamento ao trabalho e á produgáo; — o dinamismo da inovagáo, ou seja, a propensáo para inovar e também para aceitar a inovagáo; — o dinamismo da dominagáo: a unidade económica dominante pode ser um grande proprietário, uma grande firma ou um «com plexo» (como as cidades italianas da Idade Média; pragas finan ceiras como Bruges no século XV, Londres outrora e agora Nova Iorque e Tóquio). Este complexo que, na Idade Média, era uma 140
regiáo económica, nos nossos dias é frequentemente uma nagáo; — o dinamismo dos grupos sociais: alguns grupos sáo fonte de crescimento e progresso económico como acontece com a burguesía medieval do século XIX. Em que medida este esquema — voluntariamente simplificado —• é aplicável á Idade Média de depois do ano 1000? Adivinha-se — porquanto demos já alguns exemplos medievais — que a resposta nos parece, em certa medida, afirmativa. Uma importante reserva há, contudo, a fazer: a agricultura medieval náo atingiu o seu oplimum com um pequeño número de cultivadores porque náo era mecanizada. E falámos de rendimento «global» enquanto os economistas falam de rendimento «nacional»: na Idade Média, náo há uma economia nacional mas apenas economías regionais. Este retoque necessário da linguagem náo transforma fundamental mente o raciocinio económico. A melhor prova de que, em principio, se podem aplicar á Idade Média as nogSes de crescimento e desenvolvimento reside no facto de os economistas clássicos, do século XVIII e da primeira metade do século XIX, de Adam Smith a Stuart Mili, que conheceram a economia tradicional — a anterior ao impulso da «revo l u t o industrial» — notarem etapas do desenvolvimento que já existiam em grande parte desde os séculos XI, X II e XIII. Para eles, o desenvolvimento é uma corrida contra-relógio entre o cresci mento demográfico e o progresso técnico: e essa é justamente a imagem que nos oferecem os séculos XI, XII e XIII. Um aumento dos lucros provoca o dos investimentos, portanto do volume total do capital: isto favorece o progresso técnico e faz aumentar os salários. Daí resulta uma aceleragáo do crescimento demográfico, com os correspondentes rendimentos decrescentes do trabalho da térra, um aumento dos custos de produgáo e diminuigáo dos lucros. Isto conduz á redugáo dos investimentos, enfraquece o progresso técnico e a massa salarial e provoca uma baixa demográfica. Esta última, por sua vez, diminuí os custos do trabalho (agrícola) e faz aumentar os lucros. Depois, o ciclo recomega. Mas, como a popu lagáo aumenta Tapidamente, encontramos rendimentos sempre de crescentes, que conduzem á estagnagáo. A aplicagáo deste modelo fora tentada relativamente ao século XVI. Náo poderemos entáo recuar mais no passado e tentar confrontar este modelo com os factos dos trés grandes séculos medievais? Náo como mero exercício escolar, mas com o intuito de diminuir as barreiras, ainda bem grandes, entre a Idade Média e os tempos modernos e de provar que as «novidades» que se revelam a partir do século XVI só náo foram detectadas anteriormente porque se conhece mal a realidade medieval. «A acumulagáo dos lucros do artesanato e do comércio», escreve-se, «permitiu aos europeus (do século XVI) aumentar o seu capital total e difundir um 141
certo progresso técnico, aumentando o fundo dos salários (conta bilizando como salário uma parte do rendimento camponés e arte sanal). Daqui resulta um crescimento demográfico que, por seu turno, acarreta rendimentos decrescentes (em particular no campo e ñas minas), um aumento dos custos do trabalho e uma baixa dos lucros. Assim se explicariam as crises da segunda metade do século XVI» (F. Mauro). Mas, poder-se-ia explicar, do mesmo modo, o retorno de sérias dificuldades, no Ocidente, a partir dos anos 1300, dificuldades que teriam, parcialmente, posto termo á «prosperidade» dos séculos XI, X II e X III, da qual eram a sequéncia lógica? Por outro lado, o estudo das economías do Terceiro Mundo deveria esclarecer o da economia da Idade Média, tal como a do século XVI: os lucros náo sáo, ou náo eram, suficientemente reinvestidos (sendo o consumo de bens de luxo demasiado grande) e o mercado de consumo, muito restrito, era, pois, insuficientemente estimulante. Justamente por se basearem em factos económicos contempo ráneos e dizerem respeito a grandes países industriáis, certas teorías económicas recentes sobre o desenvolvimento náo se podem aplicar á Idade Média. O mesmo náo se passa com uma das últimas, exposta por W.-W. Rostow em Les étapes de la croissance écono mique (1960). W.-W. Rostow quis «considerar a história da economia segundo o ponto de vista das teorías económicas modernas». Limitou-se, contudo, á história moderna e dentro déla só aos seus últimos séculos, pois nem sequer recuou para além dos primeiros anos do século XVIII. Examinemos rápidamente esta teoria, embora inter rogando-nos se ela se poderá aplicar aos séculos anteriores. Sob que impulsos — interrogou-se inicialmente Rostow — «as sociedades tradicionais e agrícolas se lanfaram no processo de modernizado?». «Se nos colocarmos no ponto de vista dos móbeis de ac?5es humanas, estamos a considerar que a maioria das mudanzas económicas mais profundas sáo ditadas por motivos e asp ira res desprovidas de qual quer carácter económico. O especialista que se preocupa em encontrar a origem do crescimento económico ñas motivafoes humanas nunca deveria esquecer a máxima de Keynes: se a natureza humana náo fosse tentada a correr riscos, náo experimentaría satisfa?áo (abstrac?áo feita do lucro) em construir uma fábrica, um caminho-de-ferro, uma mina ou uma herdade, nem encontraríamos, por certo, quaisquer investimentos inspirados apenas em frios cál culos.» É claro que, se retirarmos as alusoes á fábrica e ao caminho-de-ferro, as línhas de Keynes, retomadas por Rostow, adaptam-se perfeitamente á Idade Média. A ideia mestra de Rostow é a seguinte: «Pode dizer-se que todas as sociedades passam por uma das cinco fases seguintes: a socie142
dade tradicional, as condigóes preliminares para o arranque, o arranque, o progresso em direcgáo á maturidade e a era do consumo de massa.» Há, pois, «cinco etapas de crescimento». É á definigáo de sociedade tradicional, tal como a vé o autor, que levantaremos objecgoes, náo para destruir a sua teoría mas para tentar alargar a sua aplicagáo — uma aplicagáo que nos parece justa — ao período medieval. Para W.-W. Rostow, os homens náo pensavam, antes de Newton, que o mundo exterior estivesse sujeito a quaisquer leis, nem que «podia ser organizado sistemáticamente com vista á produgáo». Logo, a sociedade tradicional, antes de Newton, tinha uma estrutura «determinada por fungóes de pro dugáo limitadas». É certo que, para Rostow, a concepgáo dessa sociedade náo excluía a possibilidade de aumento de produgáo agrícola nem as inovagóes técnicas em qualquer dominio. Mas, segundo ele, a sua «característica profunda ... consistía em o rendi mento potencial por individuo náo poder ultrapassar um nivel máximo», na ausencia das vastas possibilidades oferecidas pela ciencia e pela tecnología modernas. Apesar de esta sociedade náo ter podido ser mais do que «uma sequéncia ininterrupta de transformagóes, «estas foram sempre limitadas, ou mesmo bloqueadas porque a ciencia newtoniana ainda náo nascera e também devido a formas erradas de pensar, especialmente caracterizadas por um «fatalismo a longo prazo», uma vez que se admitía que a gama das possibilidades oferecidas ás changas era pratica mente a mesma que se oferecia aos seus avós... Seguramente Rostow, como a maioria dos economistas actuais, representou as sociedades ditas tradicionais, entre as quais as medie vais, de modo demasiado simplista (tal como Karl Marx e os seus contemporáneos). Aceitemos, contudo, a sua definigáo da «sociedade tradicional». Acontece que, depois do ano 1000, a economia do Ocidente, pelo menos em certos sectores de produgáo e em certas regióes, chegara á segunda etapa de crescimento O , tornando-se a socie dade numa «sociedade em vias de transigáo». Na realidade, foi precisamente nessa altura que surgiram, pela primeira vez, a maior parte dos critérios e características desta segunda etapa: uma eco nomia até entáo essencialmente agrícola, onde a térra era «tudo», comegou a dar um lugar, que será cada vez maior, á «indústria», aos negócios de transporte e comércio; economías locáis cada vez menos «autárquicas», um movimento de negócio parcialmente «in ternacional», uma concentragáo de capitais ñas máos de outros que náo os grandes proprietários da térra; um melhor dominio
(*) Mais valería a Rostow dizer primeira etapa de crescimento verdadeiro, uma vez fue náo poderla existir real crescimento numa sociedade tradicional.
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das condigoes naturais, a aparigáo de uma «nova élite-» (a bur guesía)... Para Rostow, «na origem da cria d o das condigóes preli minares para o arranque» encontra-se «uma série de modificagoes sociológicas e psicológicas». Ora, estas modificagoes surgem pouco a pouco a partir do ano 1000. A agricultura, em particular, representou bem, a partir do século XI, o papel que W.-W. Rostow lhe reconhece na passagem da sociedade tradicional á sociedade que prepara o seu arranque, visto que a produgáo aumentou para fazer face ao aumento da populagáo, tanto do campo como das cidades, cujo acréscimo é sempre notório nesta segunda fase de crescimento. As despesas em infra-estruturas (estradas e pontes, animais de tracgáo, carrogas, navios...) foram aumentadas no Ocidente de depois do ano 1000, tal como o seriam, ñas devidas proporgoes, nos séculos XVIII e XIX, nos países novos que preparavam o seu arranque. Pode considerar-se a economía do Ocidente, ou antes as econo mías das suas regides em maior progresso, como uma economia de transigáo, logo, uma economia que comegou o seu crescimento, facto que o estudo dos factores de produgáo tentará demonstrar. Poderíamos ir mais longe e interrogarmo-nos sobre se a economia medieval atingiría a terceira fase revelada por W.-W. Rostow, «a fase decisiva da história de uma sociedade, na qual o crescimento se torna um fenómeno normal», e viria a adquirir uma velocidade menos lenta do que na segunda fase? Levantemos a questáo mas deixemos em suspenso a resposta, que só será proposta mais adiante, nesta obra. P rogresso económico e conquista do m eio n a tu ra l
Um dos grandes acontecimentos da história universal foi a luta vitoriosa que, entre fins do século X e o século XIII, o homem levou a cabo no Ocidente contra a natureza, a fim de melhor a dominar.
Os progressos no dominio das condigoes naturais A primeira linha de resisténcia a vencer continuava a ser, evi dentemente, a do clima. Se este conheceu variagóes, estas náo tiveram as mesmas incidéncias em todos os lugares: as térras mar gináis e os sectores menos evoluídos sao sempre os mais sensíveis ás alteragóes climatéricas. Por outro lado, náo existe um acordo entre os historiadores quanto á cronología das mudangas climáticas que possam ter ocorrido depois do ano 1000: como em relagáo aos séculos passados, as fontes sáo de interpretagáo pouco segura, tanto 144
quanto á temperatura como quanto ao grau de humidade. É de crer que a fase quente da Alta Idade Média tenha sido seguida, no século XI, por uma fase fria que teria facilitado o trabalho de degradado das florestas. Para C.-E.-P. Brooks, entre os anos 1100 e 1175 apro ximadamente, teve lugar um período frió, e nos anos 950 uma fase seca, que se prolonga até ao fim do século XIII. Assim, os trés primeiros quartos do século X ll teriam sido simultáneamente secos e frios; este facto é comprovado pelo apogeu dos «grandes arroteamentos» deste século. E, para J.-P. Bakker, todas as condigóes climáticas teriam sido favoráveis, ñas costas dos Países Baixos entre 950 e 1200, donde o extraordinário progresso económico deste sector. Mas estes esquemas náo sáo unánimes. O recuo da floresta e a extensáo das culturas A partir do fim do século X, há claros sinais de uma descontracgáo da economia rural. Termos como «planicie», «arroteia» (de ex-arare), nos países romanos, evocam as novas térras em cultura. Foi entáo, com efeito, que as florestas, as charnecas, os pantanos e o próprio mar iniciaram um recuo que viria a ser muito ampio. Para os historiadores franceses e alemáes O , com os «grandes arroteamentos» dos séculos XI, X II e X III nasceu uma era de prosperidade rural. Mas estes «grandes arroteamentos» continuam a ser mal conhecidos, porque ainda náo foram objecto de uma obra que seja verdadeiramente um trabalho de conjunto, ainda que se tenha generalizado talvez depressa de mais e até exagerado a sua amplitude: é certo que o aspecto de muitas paisagens rurais mudou, mas, paralelamente ás regióes cuja existencia foi alterada, outras apenas mudaram á superficie (na Franga do Norte, os ter renos lodosos e as paisagens abertas deixavam, por vezes, pouco espago para as térras novas). Relativamente ás pesquisas futuras, como ás já realizadas, o estudo dos vestigios botánicos, no qual os Alemáes sáo eximios, permite medir, no decorrer do tempo, as proporgóes respectivas das árvores, dos silvados e das plantas cultivadas. A precisáo cro nológica mantém-se, contudo, demasiado fluida. A geografía retros (*) O que se segue nao se aplica de modo nenhum á Itália, cuja história rural é diferente. N o Lácio e na Sabina, em ruptura com uma forma de cresci mento mais antiga, mais individualista, os domini, a partir do séc. X , e para melhor dominar a expansáo, levaram á concentrado do habitat rural em burgos fortificados, os castra. O encastramento teve por corolário uma rígida plani fic a d o dos terrenos (P. Toubert).
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pectiva é frequentemente mais segura: a paisagem actual guarda muitos tragos da sua história, que os documentos medievais ou modernos precisam (macro e microtoponomia, aspecto das orlas florestais e formas dos bosques, planos de aglomerados e parcelas, composigáo das formagoes vegetáis que ocupam as pradarias e os baldíos actuais...). Sáo os documentos escritos, cada vez mais nume rosos, que permitem datar com relativa precisáo o que a geografía histórica revela: em fungáo da obra a realizar, foram estabelecidos actos de associagáo entre dois senhores para arroteamentos, alvarás de povoamento para atrair colonos, contratos (muito raros) entre senhores e arroteadores. Outros escritos, ainda em maior número, fornecem casualmente preciosas indicagoes: alvarás de doagáo ou de partilha, que descrevem a paisagem, crónicas, documentos rela tivos ás dízimas novales, ou seja, as dízimas sobre as novas térras cultivadas... Tentemos antes de mais fixar o ponto de partida e depois a duragáo do movimento de extensáo das culturas. É uma tarefa difícil, visto que, em muitas provincias, as fontes anteriores ao século X II sáo pobres. Em Máconnais, onde elas sáo abundantes, G. Duby data da segunda metade do século X (o ano 1000 nem sempre é a charneira cronológica!) os primeiros ataques ás florestas ñas margens do Sáone e ñas colinas de Beaujolais. Quase táo precoce foi a Flandres; aqui náo sáo as florestas mas sim o mar que comega a recuar, por volta do ano 1000; os pantanos, nascidos da recente e terceira transgressáo dunquerquiana, passam a ser prote gidos por pequeños diques e as igrejas possuem já os primeiros polders, que comegam a ser trabalhados e povoados. Pelo contrário, em Inglaterra, sao muito raras as alusóes feitas no Domesday Book ás arroteias recentes; contudo, em certas herdades senhoriais, entre 1066 e 1086, as varas de porcos foram reduzidas, o que parece indicar uma certa regressáo das árvores. Claro que ñas regiSes onde a malha de ocupagáo era densa havia mais tempo, como na Ile-de-France ou na Champagne, a este de Provins e de Coulommiers, as provas de arroteamento náo podem ser táo numerosas como noutros lugares. Nestas provincias, onde o openfield já existia, subsistiam contudo belas zonas florestais: a partir do século XI, comegam a ser atacadas. O século X II foi o «momento culminante dos arroteamentos» (G. Duby), em quase todo o Ocidente. Estes atingem um «ímpeto conquistador», tanto na Bacia Parisiense (em Brie, por exemplo), onde os macigos florestais sáo profundamente penetrados, como em Anjou, onde as novas arroteias sáo protegidas das cheias dos ríos por diques, d es tureies» (R. Dion), ou como na planicie do Pó, onde as cidades dirigem as operagóes de drenagem nos vales e de irrigagáo nos declives das colinas. Em Inglaterra, florestas do interior e pantanos costeiros tém também que haver-se com os seus 146
conquistadores. Na Germánia, as desarborizagoes afectam princi palmente a Hohenloher Ebene, as regiSes de Nuremberga e de Bayreuth, no Sul do país, a planicie de Vestefália, o Eifel e o Westerwald, na Alemanha Oriental. Mas é sobretudo a este do Elba que o contraste com a Alta Idade Média é mais violento: a partir de 1100, «mais de metade das antigas regioes florestais teriam sido arroteadas, tal como na Boémia e na Morávia» (M. Deveze). Estes arroteamentos atingiram zonas cada vez mais elevadas e cada vez menos férteis. Na Alemanha, foi este o caso de Eifel ou do Westerwald, por exemplo. O mesmo acontece na Bretanha, no Maine, onde as colinas foram atacadas, como as das montanhas do Franco Condado, em Dauphiné e na Alta Provenga. A Lorena ilustra bem este avanzo dos arroteadores: do século VI ao IX, os arroteadores — muitos deles monges — atacaram as planicies e os planaltos (com excepgáo dos Altos de Mosa e de Mosela), enquanto, do século XI ao XIII, os altos vales e as próprias encostas dos montes, desde os Faucilles até aos Vosgos, foram desarbo rizados. Mas apesar de, na planicie como nos montes, o século X II ter sido, em geral, o grande século dos arroteamentos, em certos sec tores assiste-se nesta época apenas ao seu arranque; foi este muitas vezes o caso do Sudoeste francés: Marc Bloch via neste facto uma consequéncia da emigrafáo dos Aquitánios para a Espanha crista em expansáo. Seria altamente desejável poder confrontar, em todas as regioes, a data do inicio dos arroteamentos e o movimento de crescimento demográfico e também poder saber se o sécuio XII foi simultáneamente o grande século dos arroteamentos e o grande século do dinamismo demográfico. Como se apresentavam as florestas do século XI, face aos ataques do homem? Segundo Marc Bloch, elas estavam ocupadas, e mais densamente do que antes, por «todo um mundo de lenhadores» enquanto os rebanhos vagabundos se tornavam mais nume rosos. Esta utilizafáo, simultáneamente intensa e desordenada tinha pouco a pouco diminuido a densidade das florestas. Sem tomar muito a peito o testemunho de Suger a propósito da floresta de Yveline, é provável que se deva imaginar os bosques de entáo cheios de troncos mortos e moitas pisadas pelos animais e pelos humanos, tendo «o dente dos animais e a máo dos lenhadores» rarificado e debilitado as árvores e assim preparado a obra do arroteamento. Mas este foi também facilitado por aperfeifoamentos técnicos: as incursñes nos bosques, julgados até entáo quase «impenetráveis» — com ou sem razáo — foram possíveis pelo aperfeigoamento dos instrumentos de corte e de derrube (como as serras melhor acabadas) e por uma organizagáo, desta vez mais metódica do trabalho. 147
Os grandes macigos florestais ficavam ainda longe dos locáis habitados, salvo ñas suas orlas, e a sua individualidade afirmava-se, por volta de 1050, tal como a dos ríos ou dos relevos: dizia-se a Yveline, a Biére, a Laye ou a Loge. Entretanto, no século XIII, apercebemo-nos de que as extensóes poupadas pelos arroteadores perderam esta individualidade e tomaram o nome do aglomerado mais próximo: já só se fala da floresta de Rambouillet, da de Fontainebleau, da de Saint-Germain-en-Laye ou da de Orleáes. No que diz respeito ás etapas e tipos de arroteamento, fagamos a distingáo, como G. Duby, de tres categorías que se sucederam ou existiram paralelamente, embora náo tivessem nem a mesma amplitude nem as mesmas consequéncias. O primeiro tipo, ou primeira etapa, consistiu no alargamento dos terreiros antigos. Esta forma era «a mais cómoda e a mais discreta», de tal modo que podia ser levada a cabo sem o conhecimento do senhor. Devido a esta «discrigáo», deixou poucos vestigios nos documentos escritos. Para saber se, num dado caso, ñas orlas da clareira cultivada, os campos novos reduziram ou náo os bosques e os baldíos, é necessário observar os microtopónimos, ou seja, os nomes das térras e dos lugares: os termos «arroteia», «artigue» (no Sudoeste francés), «plano» (de planumi), na Franga do Norte e Nordeste, que datam dos séculos XI e XII, evocam os próprios arroteamentos, enquanto outros lembram a vegetagáo anterior (brenhas, amieiros, mata, faia...). Há outros textos que permitem uma melhor precisáo (porque a microtoponomia nem sempre consente a datagáo). Referimo-nos a partes de processos (conflitos entre comunidades rurais, preocupadas em defender os terrenos de pasto contra o avango dos arroteadores ou sublevadas pelo aumento dos impostos novales...). Sem falar nos admiráveis arquivos do bispo de Ely ou da abadía de Ransey, que demonstram que, a partir de fins do século XII, as receitas de foro (cens) aumentaram pela criagáo de novas tenures ñas térras «secadas» de Fens. Depois de Marc Bloch e R. Dion, os historiadores franceses tentaram extrair indi cios de arroteamento (deste primeiro tipo) da coexisténcia de dois tipos de tenure na maior parte das regioes da Franga: a de foro e a de champart *, aplicando-se esta úl tima, de preferéncia, aos solos recentemente comegados a cultivar, num dado terreiro. O alargamento dos terreiros antigos náo pode prolongar-se sem o consentimento do senhor. Por vezes, ele próprio dirigiu o tra balho, posto que na luta contra os pántanos, marinhos ou fluviais, a drenagem e o regulamento do corte das árvores exigiam uma unidade de acgáo que só o senhor podia impor. Por vezes, na luta contra a árvore, deu-se o mesmo caso, por exemplo, na Inglaterra (*) Champan: direito feudal sobre a colheita. (N . do E.)
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e na Ile-de-France: Suger testemunha que instalou oitenta «hos pedes» num pátio «novo» próximo de Saint Denis (náo se trata da funda^áo de uma nova aldeia mas apenas do estabelecimento de novos habitantes num aglomerado antigo, para alargar o terreiro antigo). Esta primeira forma de conquista do solo foi muito provavelmente a que conquistou mais térras novas para as culturas em todas as regióes: neste sentido, uma aldeia milanesa cu jos baldios, em 80 anos, diminuíram de 45 para 16 por cento, deve ilustrar milhares de outros exemplos. Até em várias regióes, onde os locáis habi tados ficavam próximos uns dos outros, sendo portanto já raros os «espatos solitários» como acontecía aparentemente em quase toda a Inglaterra, esta primeira forma foi o único «modo de extensáo das culturas» (G. Duby). Em contrapartida, noutros locáis surgiram uma ou duas outras formas. O segundo aspecto dos arroteamentos consistiu na c ria d o de novos terreiros e de vila novas. Nos séculos obscuros, havia em muitas provincias brutais contrastes que opunham, mesmo local mente, os sectores colonizados, de modo mais ou menos denso, aos sectores desabitados. É o caso da Brie oriental, com bosques, húmida e deserta, situada entre a Champagne e o co rad o da regiáo parisiense, estas últimas bem povoadas desde a época gaulesa ou romana. Ora, esta solidáo dos bosques tinha má reputado e sabia-se que o solo era aqui pesado e húmido, pelo que as aldeias ribeirinhas se contentavam em seguir junto ás suas orlas. Além do mais, esses «desertos» náo podiam ser conquistados por homens isolados mas apenas por pequeños grupos, cujos membros haviam abandonado a casa paterna, onde se sentiam demasiado limitados, e estavam decididos a muitos sacrificios para se dedicarem a gran des exploradles. Foram pois os desenraizados — os «hospedes» ■ — que, agrupados para a aventura, formaram as equipas que iriam domesticar a natureza rebelde e estabelecer habitagoes e campos no lugar das árvores. Estas equipas constituíram-se espontáneamente ou devido ao impulso dos senhores. As duas formas corresponden! á realidade mas a primeira é a menos visível nos documentos. Na verdade, há muito poucos exemplos de aldeias e terreiros nascidos espontáneamente. É muito mais frequente terem por ori gem uma decisáo senhorial. Em qualquer das hipóteses, o resultado era o mesmo: o novo quadro de vida agrícola era muito semelhante ao antigo, tal como o conheciam os desenraizados. As aldeias sáo idénticas — sendo a «vila nova» simultáneamente burgo e paróquia como parte do habitat aglomerado— e os terrenos sao idén ticos ainda que no pormenor importantes diferen?as tenham fre quentemente distinguido as antigas aldeias das «vilas novas» e os antigos terreiros dos novos. 149
Como as fontes escritas informam incomparavelmente melhor sobre este tipo de arroteamento e compreendem muitas actas explí citas, que váo do século X I ao século XIII, há a tendencia para exagerar a sua importáncia e para aumentar a durabilidade dos seus efeitos. Pensemos que contra 138 topónimos em «artigue», descobertos por Ch. Higounet para o actual departamento da Gironde, o mesmo historiador apenas encontrou para o mesmo espado uma dúzia de fundagóes e marcas de colo nizad o colectiva. Ora, trata-se de uma regiáo onde estas foram numerosas, em compara?ao com a Inglaterra, onde a forte densidade de velhos centros habitados e a existencia de «florestas reais» reduziam numéricamente os jovens aglo merados. Este esforgo de colonizado só muito raramente transformou a paisagem agrária de modo radical, salvo ñas regióes dos polders. O vocabulário aplicado aos novos locáis habitados é rico em significado. Nos textos, que durante muito tempo se mantiveram em latim, o termo mais frequente é o de villa nova. Esta palavra é seguramente ambigua. Ville deriva de villa. Mas no tempo dos Carolíngios, e mais tarde ainda, a villa era, como se sabe, um dominio rural e náo um aglo merado. Contudo, a partir do século XI, este termo comegou a designar qualquer tipo de local habitado, do lugarejo á cidade passando pela aldeia: no espirito dos homens desse tempo, nao havia qualquer diferenga de natureza entre a cidade e o campo ou entre a cidade e a aldeia. Apenas o acaso histórico ou geográfico fez com que algumas vilas novas — decerto a m aioria— tenham continuado a ser lugarejos ou aldeias, enquanto outras cresciam a ponto de, por vezes, se revestirem de um carácter urbano, onde o artesanato suplantava as actividades agrícolas. Portanto, quando da sua fundado, previam-se sempre os mesmos privilégios e alguns deles, como isengoes ou redugoes de peagens e terrádigos, faziam também parte do que era con cedido ás concentragóes de mercadores. É neste sentido que se pode dizer que a cria d o de aldeias novas náo se deve separar do desenvolvimento urbano: trata-se de movimentos paralelos e, ao mesmo tempo, frequentemente entrecru zados, uma vez que aldeias se transformaram em cidades e (mais raramente) cidades se tornaram aldeias (E. Perroy). De qualquer modo, mesmo ñas provincias de Franga, a palavra villeneuve (vila nova) náo foi a única utilizada. Ñas provincias do Oeste, do Maine á Bretanha Oriental e numa parte de Poitou, onde já existia — aparentemente— uma paisagem de arvoredo, utilizava-se o termo bourg (burgo), também ambiguo. De origem germánica, a palavra designava primitivamente um espago fortificado: assim, surgiu na In glaterra no século X com o sentido de «castelo». No século XI, passou a designar os aglomerados urbanos rodea dos por uma cintura de muralhas e fossos, sendo os seus habitantes os «burguenses» ou «burgueses». Mas, excepcio nalmente, no Oeste da Franga, os burgos designavam antes de mais as aldeias novas, sem qualquer relagáo com castelos ou qualquer fortificagáo, enquanto os seus habitantes 150
— que na realidade sáo hóspedes como em todas as novas fundagóes — se chamam burgueses. E o topónimo de «bourgneuf» (burgo novo) abunda ainda no Oeste, o mesmo acontecendo com «villeneuve» (vila nova) noutras regioes, como a Bacia Parisiense. No Leste, especialmente na Borgonha, utilizava-se outro termo, mais significativo: «abergemente (do baixo latim, álbergamentum), o lugar onde se «albergavam» os hóspedes ('). No Sudoeste francés, vários outros termos foram sucessivamente utilizados. A palavra «sauveté» (salvamento) é aplicada exclusivamente ás fundagóes do século XII, época em que o movimento de paz suscitado pela Igreja vivia o seu apogeu. A fundagáo de aldeias novas contribuía para garantir a paz e a seguranga da regiáo onde elas eram erguidas e a palavra lembrava o estatuto privilegiado dos seus habitantes. Mais tarde, no século seguinte, foi o termo bastide (bastida) que predominou. Esta palavra, que significa construgáo, evoca o próprio acto de construgáo de uma vila nova: as bastidas, inicialmente «aldeias abertas» e dota das de largos privilégios, foram fortificadas quando da Guerra dos Cem Anos. Muitas tém o nome do seu funda dor: Libourne, por exemplo. Outras — caso muito frequente em todo o período de colonizagáo— foram buscar os seus nomes a aglomerados longínquos: senhores, antigos cruza dos, fundaram Belém, Jerusalém; um outro que lutou em Espanha criou Córdova; e há duas comunas actuais com o nome de Bruges, um perto de Bordéus e outra perto de Pau. Finalmente, muitas bastidas chamam-se «Villefranche» (vila franca) ou «Villeneuve» (vila nova). O nome das fundagóes novas, nos países germánicos, evocam sobretudo o arroteamento através de um sufixo acrescentado ao nodo fundador: -rodé, por exemplo, que em flamengo e alemáo corresponde ao sufixo francés -sart; encontra-se também só na Turíngia -ried, -rente, -hagen, -hain, -feld, -brennen, -sengen, -grün, -tcd, -schlag... As fundagóes de vilas novas mais conhecidas sáo as que originaram contratos de associagáo entre dois ou mais senhores, que se uniam para a sua fundagao e colonizagáo: trata-se dos contratos de paridade de direitos, que os arquivos das igrejas conservaram. Um dos associados é pois um clérigo ou uma casa de religiáo. Mas náo é já preciso, como se fez durante tanto tempo, exagerar o papel do mundo eclesiástico na expansáo agrária. De facto, as bastidas deveram sempre ou quase sempre a sua origem a iniciativas de senho res laicos. Quer ha ja um ou vários fundadores, o incentivo econó mico está na base de todos estes empreendimentos: desejo de au mentar os rendimentos dominiais, desejo ainda maior de aumentar os lucros provenientes da justiga.
(l) De assinalar, e isto é bem significativo quanto a uma circulacao mais intensa de homens e palavras, que exista um bourgneuf, no Saóne e Loire, e um herbergement nos limites do Loire-Atlántico e da Vendeia.
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Quando tinham éxito (mas houve muitas tentativas que fracassaram), estas fundagSes novas implicaram a rápida criagáo de um sistema parcelário. A fotografía aérea revela, relativamente a este ou aquele lugarejo inglés, «a estrita igualdade das parcelas atribuidas outrora a cada casal de pioneiros» (G. Duby). Entre tanto, o plano de cada nova aldeia era em geral regular. Os dois tipos principáis sáo a aldeia-rua e a aldeia aglomerada. Em geral, ñas regi6es de arvoredos, a aldeia é uma rúa (ou em forma de espinha de peixe), alinhando-se as habitagóes com as suas cercas ao longo de um caminho tragado expressamente, e estendendo-se os campos de ambos os lados deste eixo central; é o caso da Alta Normandia, das aldeias criadas na floresta de Alihermont pelos arcebispos de Ruáo. O segundo tipo é o da aldeia aglomerada. A forma mais frequente da aldeia é, como ñas bastidas do Sudoeste, um plano que lembra um tabuleiro de xadrez, recortando-se todas as rúas na perpendicular, tal como na Brie, a aldeia de Villeneuve-le-Comte, fundada por Gaucher de Chátillon, perto de Villeneuve-Saint-Denis, criada pelos monges de Saint-Denis, que tém a mesma aparéncia. A secagem dos pántanos e a criagao de polders (’) merecem uma especial atengáo. No fim da Alta Idade Média, os raros agrupamentos humanos instalados nos outeiros que dominavam os pán tanos (as «lamas») tinham pouco vocagáo para criadores de animais e ainda menos para agricultores. Praticavam a pesca, sobretudo de enguias, muito pro curadas na Idade Média, e a exploragáo de salinas (conhece-se o papel importante do sal na alimentagáo e na conservagáo do peixe e da carne). Tinham sido criadas nume rosas salinas, mesmo nos países do Norte, tanto na Ingla terra, como na Flandres ou na Zelándia. Como nestes países de insolagáo muito fraca a evaporagáo se tornava insufi ciente, fazia-se ferver a água salgada em caldeiroes, utili zando a turfa, com o intuito de obter os cristais mais de pressa. Estas duas actividades, a pesca e a produgáo de sal, mantiveram-se ñas comunidades depois da criagáo de pol ders, tanto tempo quanto durou a secagem: continuavam a ser indispensáveis á sobrevivencia das populagSes, para as quais a valorizagáo das térras novas era mais dura, mais de licada e muito mais aleatoria que em qualquer outro lugar. As transgressdes marinhas tinham quebrado o cordáo de dunas litorais, fragmentando-as numa série de ilhotas análogas ás muitas que subsistem ainda ao largo da costa da Frísia e do Zuiderzee. Foi a partir do século IX que nasceram nestas ilhotas diversas aldeias como Dunquerque
O Limitando-se aos mais importantes, que sao os da Flandres e Zelándia, mas nao esquecendo a obra inglesa nos Fens (térras baixas que rodeiam o Wash), nem a obra dos Bretdes ou dos Poitevins.
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(«igreja das dunas»), ou, numa mesma ilha, Westende a oeste e Ostende a leste. Por trás destas ilhas e submergindo os vales baixos, formaram-se o golfo de Aa (na base das colinas de Artois e chegando aos acessos de Saint-Omer), o de Yser (que ia até Ypres), o de Zwin (no fundo do qual surgiu o aglomerado de Bruges)... No meio destes pantanos, ñas ilhotas, os condes da Flandres fundaram castelos e aba días. A colmatagem natural comegou a ser precipitada pela criagáo do homem, a partir dos séculos X e XI. Com razáo, Pirenne via na demografía uma «causa eficiente das primeiras obras de secagem»: os textos permitem afirmar que, a partir do século XI, a Flandres tinha já grandes dificuldades em assegurar a subsisténcia das suas populares. Foi preciso encontrar rápidamente outros meios de existencia, o que provocou a acelerad0 dos trabalhos de construgáo de diques. Tal como os pantanos (mersen, broekeri), as térras aluviais dependiam do poder dos condes e foram eles que tomaram a iniciativa e a direcgáo das operagóes de secagem, a que se dedicaram a fundo. No tempo de Balduíno V (1035-1067), os progressos eram já consideráveis: o arcebispo de Reims felicitava o conde por ter transformado pántanos estéreis em térras cobertas de rebanhos. De inicio, com efeito, os polders ou schorren ainda náo estavam suficientemente drenados nem dessalgados: foram, por tanto, abandonados aos animais e foi assim que a regiáo marítima se encheu de «curráis», depois de «vacarías», sendo a única receita tirada dos jovens polders a proveniente da criagáo de animais. Numa fase posterior, podia pensar-se em cultivá-los; entáo, se o mau tempo náo provocasse um regresso ofensivo do mar, o rendi mento seria considerável e compensaría os hóspedes pelos seus ¡nú meros sacrificios. As condigóes particulares que a luta contra o mar exi gia, acompanhadas pela luta de drenagem dos schorren. impuseram aos hóspedes «uma colaboragáo mais íntima do que a dos camponeses de térra firme» (H. Pirenne). Cola boragáo entre rurais e também entre os aldeáos dos novos locáis habitados e os seus senhores, ou seja, o conde ou as abadías favorecidos pelos príncipes flamengos, que tomaram parte activa na obra de represamento das águas, como as abadías de Gand ou os mosteiros de Dunes, Ter Doest, Bourbourg... Náo era necessária uma grande catástrofe, como a última transgressáo dunquerquiana que, logo após o ano 1000, quase arruinou a obra já realizada. Bastava uma maré-cheia de equinócio para abalar tudo. Por isso, antes de Saint-Remi (o 1.® de Outubro), os hóspedes tinham por obrigagáo reparar os diques e as fossas. Mas as obrigagóes comunitárias náo se limitavam a isso: a drenagem e o escoamento das águas necessitava de um dispendioso equipamento de comportas, fechadas ou abertas, conforme a altura da maré. Este sistema de watergang era inseparável da forma153
gao de associagdes de wateringues, que devem ter surgido logo no inicio da secagem: eram «agrupamentos obrigatórios, constituidos com vista á regularizado do regime das águas e á m anutengo dos diques, num mesmo distrito ma rítimo» (H. Pirenne). A m anutengo estava a cargo dos hóspedes, mas as despesas de investimento, muito pesadas, só podiam ser suportadas pelos senhores. A partir do século XII, no estuario do Escalda (o Hont) e ao longo da costa do mar do Norte, encontravam-se estes polders, a que se chama «médios», por oposido aos poucos polders «antigos», da época precedente (A.-E. Verhulst;. A charrúa e os cereais suplantavam já progressivamente o gado. Falta referir o terceiro tipo de arroteamento, que, tal como o primeiro, se deveu a iniciativas individuáis e que foi talvez o mais tardío dos tres. Conduziu a um povoamento intercalar, reflectindo «uma nova disposido do homem face á natureza» (G. Duby). Antes, as casas rurais isoladas eram em geral uma excepdo. A partir dos anos 1100, tornam-se menos raras: casas de Deus, leprosarias, catedrais, «granjas» cistercienses, canoniais e já algumas cabanas de pioneiros camponeses. Por volta de 1200-1225, esta forma de habitat parece multiplicar-se. Como este tipo de arroteamento foi frequentemente resultado de iniciativas individuáis, camponesas ou senhoriais, as fontes escritas sáo pouco explícitas a seu res peito — como aliás em re la d o ao primeiro tipo. Mas acabam aqui as semelhangas, tanto mais que o povoamento intercalar determinou o aparecimento de tenures de um único foreiro, no meio das quais os camponeses se instalavam, protegendo-as por cercas perma nentes, ou seja, por sebes. Á falta de fontes escritas, temos que nos apoiar no estudo da toponimia e do sistema parcelário. Actualmente, ñas regióes arborizadas de Franca, há dois tragos toponí micos fácilmente referenciáveis. Muitas das habitagóes er guidas no meio de terrenos de cultura tém ainda hoje nomes de homens (os dos seus fundadores), em geral acrescentados de um prefixo ou um sufixo. Em Angoumois e numa parte do Sudoeste, vé-se «Chez Guillaume», «Chez Garnier», «Chez Trappe». Mas no Centro-Oeste, encontramos «La Bemerie» (fundada por um tal Bernier), «La Garnerie», «La Rogére», ou ainda «La Girardiére»... Segundo traco toponímico: outros nomes de lugares lembram a vedado, característica essencial das tenures e granjas, como «Le Plessis» «La Haje», «Le Clos». Portanto, o estudo da macro e da microtoponímia evidencia a a c d o dos arroteadores estabelecidos nos próprios locáis dos terrenos que preparavam para cultura: a casa tomou o nome do primeiro ocupante, ou de um dos seus descendentes, e as vedagóes denotam o aparecimento de uma primeira espécie de «indi vidualismo agrário». Infelizmente, a toponimia náo permite avangar datas precisas para o aparecimento destes fenó menos. O mesmo se passa com o estudo do sistema parcelá154
rio, que permite encontrar a silhueta de pequeñas tenures e de uma explorado senhorial isolada (de maior enverga dura), mas náo fomece indicagSes cronológicas. Isto explica que os historiadores e os geógrafos estejam táo pouco de acordo entre si quanto á determ inad0 do que, na arbori z a d o actual, remonta aos bons tempos da Idade Média, tanto mais que — dificuldade suplementar— o povoamento intercalar nem sempre conduziu, sobretudo em regiSes de montanha (cf. o caso do Macigo Central), á criagáo de uma paisagem de campos fechados, quer em Franga quer na Alemanha. É necessário interrogarmo-nos quanto ás causas e á importáncia deste primeiro individualismo agrario, que táo vivamente se opunha á «velha economia colectiva», baseada na utilizagáo comunitária de instalagSes, na criagáo de animais em comum, e ñas pastagens bal días. Seria apenas por motivos de comodidade? Arroteia-se longe de qualquer aldeia e mais vale, pois, construir a sua cabana, depois a casa e os edificios de exploragáo no meio das térras acabadas de tornar próprias para cultura. Mas náo existiriam motivos de natureza propriamente económica? Em geral, estas últimas térras arroteadas eram «solos repulsivos» (R. Dion), quer dizer, frios e mais próprios para a criagáo de animais do que para a cultura de cereais ou da vinha. Ora, com a crescente animagáo das trocas, o crescimento das cidades e a procura ascendente de carne, lá e couro, os investimentos e as energías camponesas, senhoriais ou burguesas, ter-se-iam virado para as produgóes pastoris ao mesmo tempo que os homens, tanto os ricos como os rurais, teriam compreendido (como acontece com os seus seguidores, nossos contem poráneos) que uma exploragáo extensiva é sempre mais lucrativa, para uma mesma superficie, do que uma exploragáo fragmentada em numerosos bocados de térra. Teria havido entáo uma «espécie de retracgáo do progresso propriamente agrícola», sendo a exten sáo dos terrenos cultivados apenas um fenómeno secundário, subor dinado ao sucesso pastoral e a uma exploragáo mais intensiva das pastagens» (G. Duby). Esta é a última hipótese emitida pelos his toriadores e tem o mérito de melhor nos fazer compreender a razáo por que, a partir do século X II — o século que assistiu ao sucesso do habitat intercalar e das exploragSes náo parcelares—, a extensáo dos campos de cereais chegou quase sempre ao seu termo.
O fim dos arroteamentos, a estabilizado da frente florestal e o problema do equilibrio culturas-criagao de animais É com efeito a partir dos principios do século XIII que o grande movimento de expansáo agrícola apresenta os primeiros 155
indicios de falta de fólego e é ao longo deste século ou perto do fim que, em geral, ele atinge o seu termo. Depois de 1300, este movimento só prosseguiria em algumas regioes, em particular para lá do Elba e do óder, nos altos vales do Jura e dos Alpes lombardos ou no condado de Warwick, na Flandres-Zelándia, e também na Península Ibérica. A falta de documentos suficientes, torna-se impossível captar o ritmo decrescente dos pequeños arroteamentos individuáis. Em con trapartida, isso já é possível em relagao ás vilas novas. Assim, salvo na Brie, onde a organizajáo de novos lugares habitados se prolongou até por volta de 1300, a regiáo parisiense apesar da presenta de um grande mercado urbano, que assegurava a venda proveitosa de enormes quantidades de cereal, náo viu nascer mais vilas novas depois de 1230. Na Alta Provenga, o abrandamento ou mesmo a paragem datam dos anos 1250: o arroteamento é doravante refreado pela pobreza dos solos a arrancar aos baldíos pela sobrecarga pas toral desses baldíos, que dentro em pouco conduziriam ao despovoamento. É certo que no Sudoeste a situagáo era entáo bem dife rente; é justamente na segunda metade do século X III que os Plantagenetas e Afonso de Poitiers fundam bastidas. Mas sabe-se que houve um desfasamento de tempo em relagao ao movimento de arroteamentos nesta regiáo. Por outro lado, as bastidas justificaram-se mais por razóes políticas do que económicas; os príncipes queriam alargar o seu poder aos limites extremos dos seus dominios. Algumas térras recentemente comegadas a cultivar sáo aban donadas a partir da segunda metade do século XIII, por exemplo, na montanha de Beaujolais (E. Perroy). De facto, «salvo ñas novas exploragóes isoladas, votadas á criagáo de animais, o arroteamento tinha ultrapassado o limiar pedológico para além do qual o rendi mento da agricultura cerealífera deixava de compensar os esforgos do cultivador» (G. Duby) (l). As últimas térras arroteadas eram «térras repulsivas», cujos rendimentos depois das primeiras colheitas, por queimada, se revelaram muito fracos. Ora, depois de gran des progressos nos séculos XI e XII, as técnicas agrárias náo conheceram quaisquer outros aperfeigoamentos que pudessem amenizar as deficiencias das últimas térras arroteadas ou a arrotear. Esta suspensáo quase generalizada dos arroteamentos tem outras causas económicas. O equilibrio entre pastagens e culturas, que se mantivera no século XII, desapareceu no século seguinte. Ora, a combinagáo entre a criagáo de animais e as culturas continuava a ser necessária. O círculo vicioso da agricultura medieval residía
(') De uma maneira geral, as térras atlánticas tinham perdido uma parte da sua superioridade sobre as térras mediterránicas, cultivadas desde há muito tempo ou até supercultivadas desde o fim da Antiguidade (M.-M. Postan).
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no facto de náo se poder obter um rendimento conveniente das térras sem um grande rebanho que estrumava naturalmente o solo. Mas o estrume era pouco abundante porque a estabulado era reduzida: de onde resulta a necessidade do pousio, de culturas extensivas e o desejo de arrotear novas térras. Estas últimas, conquistadas aos matos e florestas onde o gado vagueava, diminuíam ainda mais as possibilidades da criagáo de animais. Como os prados de ceifa eram raros (e os seus pregos elevados: nos arredores de Ruáo, os prados eram duas ou tres vezes mais caros do que os campos) e como os baldíos, os terrenos em pousio, as charnecas e os bosques forneciam pouco alimento aos animais, a superficie dos baldíos e flo restas continuava a ser muito grande. Tanto mais que, aumen tando a populagáo, aumentava o número de rebanhos. A extensáo das térras cultivadas e o aumento de cabegas de gado, ambos con sequéncia de uma demografía dinámica, eram completamente contraditórios. Citemos o exemplo da Alta Provenga (Th. Sclafert). Hoje deserta, a regiáo era, por volta de 1200, semeada de grandes aldeias e muito próspera. Os vastos baldíos permitiam a manutengáo de grandes rebanhos, cujos proprietários produziam também cereais. Mas sob a pressáo da demo grafía, as comunidades desarborizaram de mais, estabeleceram culturas temporárias em térras cada vez menos rendíveis e depressa abandonadas, onde a vegetagáo natural rea parecía, mas empobrecida e alimentando pior o gado do que antes. Além deste desequilibrio comum a quase todo o Ocidente, a provincia foi também vítima das ilusóes dos senhores, em especial do conde da Provenga. Julgando que os recursos dos baldíos eram inesgotáveis, os senhores concederam o direito de praticar a transumáncia, mediante pagamento, aos lavradores da Baixa Provenga. Houve entáo uma «sobrecarga pastoral» e, por volta de 1300, a regiáo alta comegou a despovoar-se. Em geral, contudo, os contemporáneos empenharam-se em con seguir um mínimo de equilibrio. Testemunham-no as inúmeras contestagóes feitas no século XIII pelos utilizadores das pastagens, que se tomavam insuficientes; as comunidades camponesas voltavam-se contra os monges, cujos rebanhos eram bem alimentados, contra outras comunidades vizinhas, ou ainda contra os senhores. Apesar da impopularidade da sua atitude, foram estes últimos — aliás, só eles dispunham de m eios— que tomaram as medidas apropriadas: interdigáo, sob pena de multa, dos arroteamentos clandestinos, limitagáo do número de animais autorizados a pastar nos bosques senhoriais, protecgáo das árvores e raciónalizagáo do corte dos bosques (em Gatinais e arredores, por exemplo), interdigáo da caga no «parque» (sector das florestas fechado e reservado ao senhor, que nele criou as primeiras coutadas). Mas, por necessárias que 157
fossem, estas medidas foram muito graves para o mundo campo nés, que viu limitadas as suas possibilidades de criar gado. Esta « re a c g á o senhorial» é talvez uma das origens dos conflitos cam poneses do século XIV. O retomo ao equilibrio só se daria, aliás difícil e incompletamente, com a queda demográfica dos campos no século XLV.
Os progressos na domesticaqáo de seres vivos Culturas e rendimentos Sobre as técnicas e práticas agrícolas estamos incomparavelmente melhor informados do que relativamente ás épocas anteriores. Como sinal dos tempos, no século XIII, escreveram-se e difundiram-se um pouco por todo o lado tratados de agronomía, italianos ou ingleses. Eles sáo o testemunho da preocupado dos contemporá neos de melhorar os cuidados a ter com a térra, com as plantas e com os animais. Sáo também um testemunho precioso para o histo riador, ainda que este os náo tenha incluido ñas compilagóes dos clássicos latinos, pelo que náo se pode medir o alcance desses escritos. Muitas outras fontes podem, aliás, dar o seu contributo, quer se trate de descobertas arqueológicas (mas já se disse até que ponto o Ocidente em geral e a Franca em particular estavam atrasados em relagáo aos países eslavos), ou, ainda mais, de fontes artísticas (por exemplo, as ilustragóes dos trabalhos dos «Mois», cujo estudo sistemático é necessário empreender e dos documentos escritos de toda a ordem (entre outros, as contas dominiais, que, a partir do século XIII, se multiplicam, constituem uma mina muito rica e ainda mal explorada). Comecemos por observar que os grandes arroteamentos náo teriam podido realizar-se e a populagáo náo teria podido crescer durante séculos sem a ajuda de novas técnicas, mais aperfeigoadas do que as das épocas anteriores. Novas técnicas, mas, antes de mais, novos instrumentos. O progresso técnico decisivo foi, segu ramente, o da metalurgia. O mineral e o carváo de madeira encontram-se um pouco por todo o lado e as forjas multiplicam-se nos bosques, enquanto o fabrico de instrumentos de ferro se loca liza ñas aldeias ou ñas cidades (em Metz, no século XII, a «ferragem» era o oficio mais importante). A multiplicagáo das forjas das aldeias, os artigos em ferro mencionados ñas tarifas de peagem e de terrádigo, pelo menos desde o fim do século X I (mas o movi mento náo teria comegado exactamente no inicio dos arroteamen tos, que se explicariam mal sem ele?), sáo indicios seguros do 158
aperfeifoamento dos instrumentos camponeses, devido ao emprego sempre crescente do ferro 0). A «arma principal» do camponés é evidentemente o seu arado, instrumento de lavoura e parelha. Isso pode comprovar-se na prin cipal oposigáo entre os rurais: com efeito, distinguiam-se os «trabalhadores bragais» dos «lavradores», que eram os únicos verdadeiros agricultores, justamente por possuírem um equipamento de cul tura (2). Que animais compunham a parelhal Exceptuando os terreiros mediterránicos, muito pobres em pastagens, de solos pedregosos e onde, em geral, se continuou a usar o burro para puxar o arado, nos séculos XI e XII, manteve-se o uso de bovinos, que no entanto foram pouco a pouco suplantados parcialmente pelos cavalos. Os processos de atrelagem foram muito aperfeigoados, quer para uns quer para outros. No século XII, ou até talvez mais cedo, em lugar do jugo de garrote usou-se um jugo colocado sobre os cornos dos bois; depois, no século XIII, o sistema utilizado em toda a parte foi o que ainda hoje está em vigor, ou seja, o jugo frontal. Relativamente aos cavalos, os arreios de dorso, rígidos, a atrelagem em fila e a utilizagáo de ferros devem ter surgido o mais tardar no século XI. Os animais podiam doravante puxar mais fácilmente cargas mais pesadas, instrumentos de lavoura mais aperfeigoados e as carrosas mais cheias. No entanto, pelo menos em relagáo aos cavalos, náo parece que estas invengóes, consideráveis pelo seu alcance, se tenham expandido muito ou depressa, nem que o cavalo, cuja forga e rapidez sáo muito maiores, tenha suplantado o boi antes do século XIII, e mesmo entáo só ñas ricas explorares das vastas planicies de trigo da Europa do Noroeste. O facto de os rurais se recusarem durante tanto tempo a fazer puxar o instrumento de lavoura por um ou vários cavalos, privando-se assim de uma forte possibilidade de aumentar os rendimentos e a rendibilidade, deve-se a várias causas; a alimentagáo do cavalo é tres ou quatro vezes mais cara do que a do boi, a saúde do cavalo é menos robusta (daí o seu prego táo elevado, quase proibitivo para um explorador médio) e o seu passo bem mais rápido (o que permite lavrar mais depressa; mas os lavradores, que esta vam habituados ao passo mais lento dos bovinos, pensavam (’) Ainda que a madeira tenha continuado a ter uma maior utilizacao do que presentemente, náo eram apenas os cabos dos utensilios de máo que eram feitos em madeira. No fim da Idade Média, uma miniatura das Trois Riches Heures du duc du Berry representa ancinhos cujos dentes sáo em madeira. Ainda existem nos nossos dias. (2) Disse-se já que este equipamento de cultura representa a transigao entre a técnica pastoral (criapáo de animais de trac(áo) e a técnica das culturas (instrumento de lavoura). Esta é uma razáo suplementar para que as culturas e a criafáo de animais tenham estado sempre associadas.
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que teriam dificuldade em andar táo depressa quanto o cavalo); finalmente, o espirito rotineiro do mundo rural teve um papel quase táo grande quanto o das consideragóes económicas, na lentidáo com que foi difundida a parelha de cavalos. Os bois continuaram portanto a ser os princi páis animais de tracfáo para as culturas: o novo jugo per mitía aliás que os homens dos séculos X II e X III deles tirassem melhor partido. Os textos utilizam sempre a palavra boves, que tanto podia significar bois como vacas. O número de bovinos utilizados na lavra dependía evidentemente da natureza do solo: assim, em terrenos leves, era suficiente uma pare lha, mas já eram necessárias várias ñas térras mais pesadas, como as das grandes bacías sedimentares. Utilizavam-se tres sistemas principáis de medidas agrárias: um com base no «jornal» (superficie arável num dia), outro no «moio», no arpento ou no «acre» (superficie correspondente a uma determinada quantidade de semente), assentando o terceiro no equipamento de cultura: a carrucata ou «charruada» era a extensáo cultivável num ano por um equipa mento de cultura; os seus submúltiplos eram as bovatae ou «boiadas» e a charruada continha tantas «boiadas» quantos bois fosse necessário atrelar a uma charrúa. Ora, o número de «boiadas» de uma charruada variava muito de regiáo para regiáo: consultando o Domesday Book, apercebemo-nos de que, nos terrenos leves (Devon ou mes mo Cornualha), a charruada comportava apenas seis boia das, contra oito ñas grandes planicies argilosas. Assim, quanto mais rico e pesado era o solo mais importante tinha de ser o equipamento de cultura: os pequeños foreiros tinham, portanto, de associar-se e utilizar em comum os animais, na lavra das suas tenures. Uma dificuldade suplementar surgía relativamente aos arados e charrúas com mais de um jugo: uma vez que náo se podia simultaneamente segurar as rabilas e guiar os animais, era preciso um segundo homem ñas lavras, pelo que os textos do século XIII distinguem o lavrador (aquele que dirige a lavra) e o boieiro, que guia os animais. Os problemas levantados pelo instrumento de lavoura sáo parti cularmente árduos. A distinfáo entre arado e charrúa náo se pode fazer a partir do vocabulário empregue: se o clérigo conhece o bom latim usará para ambos os instrumentos o termo aratrum, enquanto se o seu latim for mediocre usará para ambos o termo carruca, que gozava das grabas do latim medieval. Apesar de os documentos iconográficos serem ricos em representagóes de cenas de lavoura, estas ainda náo foram bem estudadas; acrescentando-se que os plagiatos, os erros ou a fantasía do artista podem ter intervido e que seria necessário encontrar a sua pista. É de qualquer modo seguro que a charrúa surgiu e se expandiu numa parte do Ocidente entre o século XI e o XIII. Como as formas de cultura variam conforme se usa o arado ou a charrúa, o mundo medieval dividiu-se em duas zonas de características bem 160
diferentes, mas de limites pouco conhecidos. Nao voltaremos a falar do arado, que era preciso fazer passar várias vezes no mesmo campo (cada uma das vezes perpendicularmente á vez anterior) para o preparar convenientemente. Como o instrumento era leve e náo trabalhava o solo em profundidade, uma parelha de bovinos era suficiente, mesmo ñas térras pesadas (para os solos leves, um burro ou uma muía eram o suficiente), tivesse ou náo sido aperfeigoado, nomeadamente pela jungáo de um jogo de rodas dianteiro ('). A charrúa distingue-se do arado em diversos aspectos. Nao pelo jogo de rodas dianteiro, porque os arados aperfeigoados tam bém o tinham, ainda que para assegurar uma maior estabilidade ao aparelho este seja bem mais necessário á charrúa, que é um instrumento dissimétrico. Nem pela relha, de ferro e semelhante a duas grandes orelhas: a relha da charrúa é apenas mais desen volvida e permite uma mais profunda penetragáo da térra, revolvendo-a e levantando-a. A charrúa possui ainda um escantilháo, grande lámina vertical, que serve para tragar a linha do regó que a relha vai abrir. Mas, cada vez mais, a charrúa era equipada com uma aiveca fixa, em ferro ou em madeira. Esta aiveca guia o torráo de térra e joga-o de um só lado da charrúa, enquanto o arado reparte a térra em dois lados: é a aiveca que torna dissi métrico o trabalho da charrúa e dá aos campos o aspecto que nos é familiar (regó + sulco). Deste modo, a térra é completa e convenientemente preparada, náo sendo necessário recorrer ás lavras cruzadas. Haverá, como se pensou (Marc Bloch, por exemplo), uma ligagáo estreita entre o uso da charrúa e a forma dos campos? Como a charrúa é pesada e exige um forte jugo de atrelagem (duas parelhas de bois e mais, se o solo é pesado, pelo menos dois ou tres cavalos, se a térra é pastosa, como na Ile-de-France), o camponés tinha todo o interesse em dar meia volta o menor número de vezes pos sível e em diminuir o espago perdido em cada uma das extremidades do campo para efectuar a manobra de volta, ou seja, interessava-lhe lavrar um campo em tiras, de regos compridos e pouco numerosos. É indiscutível que em todas as grandes planicies de trigo da Europa, da Escandinávia ao Loire, as parcelas, muito compridas, atingiam facil(l) O seu emprego adaptava-se bem aos campos grosseiramente quadrados. Mas dever-se-á pensar que a lavra cruzada teve repercussoes sobre o sistema parcelário? Sim e náo. Por um lado, muitos terrenos do Oeste e do Nordeste da Franga passaram do arado á charrúa sem passar dos campos quadrados a outras formas, o que significa que o arado náo transforma obrigatoriamente o sistema parcelário. Mas, por outro lado, é bem certo que, onde o arado se manteve, na Idade Média e, por vezes, até aos nossos dias, os campos sáo irregulares, estendendo-se mais em largura do que em comprimento.
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mente os 100 ou 200 metros, ou mesmo mais, e apenas compreendiam uma dezena de regos ou menos. Tanto mais que por deficiencia da aiveca (que só no século XVIII passou a ser móvel), se tinha ainda que enfrentar a dificul dade adicional de comegar a lavra pelo meio do campo e depois executar difíceis manobras, para que o terreno náo ficasse demasiado abaulado visto que a térra era sempre ¡angada para a mediania da parcela. Para limitar este abaulamento, tinha de se praticar, pelo menos durante um ano e periódicamente, uma lavra que comegasse pelos extremos e nao pela mediania da parcela. De qualquer modo, é evidente que o campo em tiras era o que mais convinha a uma charrúa de aiveca fixa. Isto náo impede que náo se possa demonstrar a existencia de um lago estreito, de causa-efeito, entre a utilízagáo da charrúa e a paisagem de campos abertos e alongados, os quais seriam, segundo esta hipótese, uma criagáo tardia, tal como a deste instrumento de lavra. Hoje em dia, só se lavra uma vez antes das sementeiras. Mas a Idade Média esta va habituada ás larras múltiplas. As corveias requeridas pela reserva da villa carolíngia eram exigidas para duas lavras no terreno em pousio, antes da sementeira do «trigo de Invernó» e para uma terceira sobre o restolho de centeio ou de trigo candial, antes das sementeiras de irémois (cereais de Prima vera). A segunda lavra no terreno em pousio explica-se bastante bem: em fins de Agosto, a primeira lavra. numa térra náo lavrada havia dezoito meses, fazia torróes e revolvia-os: a segunda, 15 dias depois, esmagava os torróes e enterrava as ervas e raízes para fazer o «estrume verde» (binagem). realizando-se as sementeiras só duas semanas depois. A estas tres lavras em tres anos, ñas regioes de rotagáo trienal, veio juntar-se. entre 1150 e 1250, uma quarta lavra que se difundiu especialmente no Norte da Franga e se realizava ao fim do ano de pousio; os cereais de Invernó eram semeados num solo lavrado tres vezes. Mais tarde, por volta de 1300, ñas exploragdes mais cuidadas, surgiu uma quarta lavra do terreno em pousio, contentando-se os cereais de Primavera com apenas mais uma lavra. Esta multiplicagáo das lavras acelerava a reconstituigáo do solo, contribuía para renovar a sua fertilidade e permitia, portanto, um aumento do rendimento das sementes (G. Duby). Comprova-o o facto de a regiáo de Neubourg, na Normandia, onde apenas se faziam tres lavras em tres anos, ter rendimentos comparativamente muito baixos (A. Plaisse). Mas houve ainda «mais assiduidade no trabalho da térra» gragas á grade de esterroar. Ignorada na Antiguidade, a grade — de madeira — surgirá timidamente nos tempos carolíngios. A sua difusáo comegou no século XI e a sua eficácia aumentou quando o ferro suplantou a madeira. A gradagem, des tinada a esmagar os últimos torróes de térra, podia praticar-se de 162
duas maneiras. No primeiro caso, depois da primeira lavra dos campos, gradava-se o terreno para o aplanar, semeava-se e depois binava-se: é este o processo representado pela «tapegaria de Bayeux» de fins do século XI. O segundo processo consistía em, depois das duas, tres ou quatro lavras (no caso de cereais de Invernó e depois de uma única no caso de cereais de Primavera), semear-se e finalmente gradar-se: esta segunda maneira de proceder, mais correcta, utilizava-se na Ile-de-France (cf., relativamente ao fim da Idade Média, uma miniatura das Trois Riches Heures du duc de Berry). De qualquer modo, por volta de 1250, a gradagem era uma prática generalizada: perpendicular aos regos, permitía uma melhor mistura da térra com as sementes. A gradagem manteve-se através dos séculos, mas o mesmo náo aconteceu com outros trabalhos, que se tornaram inúteis devido ás técnicas modernas. É o caso da sacha: no inicio da Primavera, munido de uma enxada, o camponés trabalhava os campos semeados de trigo de Invernó quebrando a crosta da térra e desembarazando as novas plantas das ervas daninhas; por volta do mes de Junho, era necessária uma segunda limpeza, desta vez um trabalho de mulher, a qual, com uma pequeña forquilha (semelhante aos nossos sachos de jardineiro), arrancava ervas daninhas e cardos. Todos estes trabalhos, que ocupavam tantos dias e semanas, tinham por objectivo remediar a insuficiencia dos estrumes, tentando o esforgo dos rurais compensar a fraqueza persistente da técnica. De facto, a prática da estrumagem parece nao ter sido aperfeifoada depois do ano 1000, o que constituiria um dos pontos fracos da economia medieval. É certo que os tratados de agronomía (') sáo muitas vezes prolixos quanto á questáo dos estrumes. Mas só foram compreendidos pelos grandes senhores. em especial do clero. Em Inglaterra, era muito gabado o «casco de ouro» do carneiro que pisa táo bem a térra que esta se mistura ñas melhores condi^Ses com os seus excrementos. No continente, os grandes proprietários parecem ter estado também ao facto da importáncia do estrume animal e mostravam interesse em enterrar no solo a palha que os animais náo tinham comido no pasto baldío (os cereais eram cortados alto e com foices pequeñas). Mas. por toda a parte, tanto ñas pequeñas explorares como ñas grandes, náo havia estrume em quantidade suficiente, apesar da extensáo dos rebanhos entre o século XI e o XIII: a estabulagáo continuava a ser breve (de algumas semanas a dois ou tres meses), sendo a cama do gado, ideal para fixar os excrementos ou bosta, insuficiente, urna vez que se ceifava alto e o recurso aos fetos náo passava de um magro paliativo. Logo, o estrume náo chegava para todo o terreno, tor-
(') Cf. Histoire de la France rurale, t. 1, pp. 414-415.
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nando-se necessário escolher. A maior parte era guardada para as culturas de enxada (culturas hortícolas O» industriáis, mergulhdes das vinhas), sendo o excedente miseravelmente — e por vezes nem todos os anos! — espalhado sobre as térras lavradas. Ñas regioes pobres (Escócia, Cornualha, Bretanha interior, Maci?o Cen tral), o terreiro era dividido em duas zonas concéntricas: espalhava-se todo o estrume no infield, onde a cultura era continua, sendo o outfield, por falta de estrume, destinado a culturas temporarias. Havia dois paliativos possíveis: os elementos minerais e a pas tagem livre. Os primeiros iriam contudo ser apenas de emprego local (muito pesados e de pouco valor, náo suportariam longos transportes), náo se utilizando a calagem, aparentemente pouco conhecida, mas apenas a margagem, que era praticada em regides como a Inglaterra, a Ile-de-France, o Artois, a Normandia, o Anjou e Poitou — todas elas regides que possuem marga. Em meados do século XIII, quando surgem os primeiros arrendamentos de terre nos que foram conservados, encontramos neles a obrigatoriedade de margar as térras de seis ou de nove em nove anos. De qualquer modo, a marga é um estrume incompleto. Resta, pois, a pastagem livre: em muitas regides, era assegurada uma certa estrumagem pela passagem do gado grosso nos campos que acabavam de ser ceifados, mas os animais regressavam muito rápidamente ás charnecas e aos bosques. Para preparar a térra, restava apenas o recurso — generalizado — ao pousio. Surge deste modo o problema da rotagáo das culturas e dos sistemas de afolhamento, a partir do século XI. Afolhar uma térra é dividi-la em vários grandes sectores, os «quartéis» ou «folhas»: todos os possuidores de parcelas de um dado quartel devem, num dado ano, praticar o mesmo tipo de cultura ou deixá-las em pousio ao mesmo tempo. O afolhamento, que pressupóe uma forte ligado comunitária, só por volta de 1300 pode ser comprovado com seguranza, difundindo-se lentamente e apenas ñas regides de campo aberto. Pensemos, pois, apenas na ro ta d 0 das culturas, hábito nascido em tempos bem mais antigos, visto que os polípticos e os Brevium Exempla carolíngios a ele se referem. A organizajáo dos ciclos é comandada simultáneamente pela necessidade de náo esterilizar a térra e pelos hábitos alimentares dos homens e do gado. Mais do que outrora, quando os homens se alimentavam principalmente de papas, o pao passara a ser a base da alim entado. Era necessário, portanto, em toda a parte — porque em toda a parte existiam culturas alimentares — produzir cereais panificáveis, em especial «cereais de Invernó». O centeio tivera durante bastante tempo a preferéncia, sobretudo para os
(*) Para as quais se utilizavam também excrementos de aves. 1A d
solos silicosos, por render mais, ser pouco exigente e fácil de malhar. Mas a partir do século XI, e isto constitui um sério indicio de crescimento económico (G. Duby), os ricos, clérigos e laicos, comegam a comer apenas páo branco, impondo aos seus foreiros, pela existencia de rendas em géneros, mais sementeiras de trigo candial. Mais caro e muito procurado, o trigo candial vendia-se sempre bem, o que também incitava os rurais a desenvolver a sua cultura. Mas os camponeses comiam ainda páo negro, feito de milho (em Comminges, na regiáo de Orleáes, nos séculos XII-XIII), de milho miúdo (na Lombardia) ou de qualquer outro cereal, como a cevada (cereais de grande rendimento) ou a aveia. Entretanto, o páo escuro, feito de farinha mista de trigo e centeio, propagava-se pelo menos ñas regióes ricas (como a Ile-de-France). A cevada e a aveia sáo cereais de Primavera, de «mari» ou de trémois (salvo nos sectores de clima rude, onde eram semeados no Outono). Se a cultura da aveia se desenvolveu muito, a partir do século XI, isso deve-se ao facto de ser necessária á alim entado do cavalo, cuja criad o , para a guerra ou para o transporte, alastrava cada vez mais. O sistema exigia, portanto, simultáneamente a produgáo de cereais de Invernó e de Primavera, e apresentava grandes vantagens técnicas. A térra esterilizava menos, as lavras podiam ser mais espadadas e era possível permitir aos animais mais tempo de pas sagem fertilizante sobre os campos, ficando também repartidos os riscos de más colheitas (se o Outono fosse demasiado húmido e estragasse o trigo de Invernó, o trigo de Primavera vinha substituí-lo). Houve, pois, um grande progresso no sistema de culturas com a expansáo do trigo de Primavera. Este implica va a alternancia, num mesmo campo, de cereais de Invernó (frumento, centeio, m éteil— 1/2 frumento, 1/2 centeio — e terceil— 2/3 cevada e 1/3 frumento — no Oeste; espelta nos Países Baixos: trigo duro ñas regióes do Sul e cereais de Primavera (aveia ou cevada em concorréncia: a aveia ultrapassou a cevada, do século XI ao século XIII, depois recuou face aos melhores rendimentos desta última). G. Duby emitiu a hipótese de este ciclo de culturas se ter generalizado em meados do século XIII, posto que nesta altura acabaram os arroteamentos: era preciso extrair mais de uma mesma superficie, porquanto a populagáo continuava a aumentar e náo havia mais térras novas. O segundo elemento do ciclo é o pousio: devido á falta de adubo, era preciso deixar repousar a térra e, devido á falta de pastagens, era necessário abandoná-la durante um certo tempo á vegetagáo natural, de que os animais se alimentavam. Entretanto, a d u ra d o do pousio variava, podendo a térra ser deixada em repouso um ano em cada dois, um ano em cada trés, ou mais. Ou seja, a rotatividade podia ser bienal, trienal ou mais fraca ainda, 165
mantendo-se metade, um tergo ou qualquer outra proporgáo das térras sempre improdutivas. Ponhamos de parte as térras pobres (outfield da Inglaterra do Oeste e Noroeste, terreiros franceses recentemente arroteados em solos mais pobres como o Forez): depois de alguns anos de colheita, deixava-se o terreno repousar durante dez anos (E. Perroy). O territorio acabou por ser dividido por dois sistemas, ñas outras regiSes do Ocidente: a rotagáo bienal e a rotagáo trienal. Mais recente, a rotagáo trienal já era conhecida no tempo dos Carolíngios, ou talvez antes, e fez progressos nos séculos XI e XII. A rotagao trienal predomina nos terreiros ricos, principalmente situados na metade norte do Ocidente, a partir de 1250. O centro da Bacia Parisiense, o sector mais valorizado da Europa carolíngia, assim o testemunha, desde 1248 (na granja cisterciense de Valeurent, depois nos dominios da abadia de Saint-Denis). O sistema expandiu-se extraordinariamente, antes de 1300, ñas grandes planicies do Noroeste da Europa, incluindo a Bacia de Londres. Cometa também a penetrar para além destas zonas, por exemplo, na Ingla terra do Noroeste e no Sul mediterránico, onde andou a par com a velha rotafao bienal. Contudo, por volta de 1300, só ñas térras lodosas da Bacia de Paris a rotagáo trienal era perfeita. Só aqui ela era equilibrada, reservando cada exploragáo um tergo da sua superficie a cada uma das espécies de cereal e ao pousio. Durante o ano 1334-1335, em Tremblay, na planicie de Franga, a granja de Saint-Denis compreendia 136 jeiras em cereal de Invernó, 154 em «mars» e 136 em pousio. Em Inglaterra, a rotagáo só se equilibrou no decorrer do século XIV: até entao, o pousio ocupava níti damente mais de um tergo das térras. Note-se que, na passagem do século X III para o século XIV, houve por vezes uma espécie de «retraimento da rotagáo trienal»; na Alsácia, sob a pressáo da procura das cidades renanas em rápida ascensáo, renunciou-se aos cereais de Primavera para semear de frumento metade dos campos. Por outro lado, os «mars» compunham-se frequentemente em parte de leguminosas, que por vezes substituíam o pousio. É preciso ver na extensáo das leguminosas um paliativo imaginado por uma populagáo superabundante, face á penúria das térras e á insuficiencia das colheitas. Até entáo, os homens tinham pelo menos comido o que lhes apetecia, gragas á extensáo das superficies cultivadas e porque as novas técnicas haviam permitido aumentar os rendimentos. Entre o século IX e o século XIII, G. Duby arriscou a seguinte hipótese: «Os rendimentos médios, que é lícito situar em cerca de 2,5 para 1, passaram, nos casos menos favoráveis, para cerca de 4. Ou seja, a porgáo da colheita de que o produtor podia dispor duplicou.» A cronologia deste crescimento náo é clara, mas, segundo o estádio actual das pesquisas, parece que o seu «arranque» dataria do inicio 166
ou meados do século XII e que depois de meados ou fins do século XIII teria havido uma estabilizado que, em geral, durou vários séculos. A proporgáo avanzada por Duby é apenas uma média, porque os rendimentos variavam muito e de várias formas, segundo o ano, segundo as espécies, os terrenos e as regióes. O frumento rendia menos do que o centeio e a cevada bem mais do que a aveia. Ñas regióes montan hosas, como os Alpes provengáis, o rendimento baixava para o nivel carolíngio (2 ou 2,5 para 1). Em muitos solos arroteados, «repulsivos», o rendimento náo se elevava mais, o que explica o abandono de algumas novas térras e a vida mediocre que tiveram numerosas vilas novas cujo tamanho nunca ultrapassa o de um lugarejo ou de uma pequeña aldeia. Em contrapartida, nos «solos atractivos», apesar de os rendimentos de 15 para 1, obtidos por vezes em Artois, parecerem extraordinários, um rendimento de 8 para 1 é frequente nos solos lodosos da Ile-de-France, bem cultivados pelos grandes senhores e pelos seus foreiros. Mais tarde, Olivier de Serres fornece-nos números inferiores (5 a 6 para 1 ñas térras boas), que nos parecem irrisorios, decerto os homens da Idade Média náo sabiam seleccionar as sementes. E as contas das herdades senhoriais inglesas provam que as taxas apresentadas como normáis pelos agrónomos do século XIII eram «bastante optimistas»: estas taxas, pretensamente normáis, eram de 8 para a cevada, 7 para o centeio, 5 para o frumento (as térras inglesas sáo menos ricas do que as de Artois ou da Ile-de-France) e 4 para a aveia (’).
A vinha O renascimento comercial dos séculos XI a XIII e a elevagáo do nivel de vida provocaram uma considerável extensáo da cultura da vinha. A viticultura eclesiástica e a dos príncipes continuaram a desempenhar um papel importante. Mas «nunca até entáo a difícil produgáo de vinhos de qualidade ñas orlas setentrionais do mundo vitícola fora táo justificada nem tao encorajada como o foi pelas burguesías do Norte, largamente próvidas de numerário e amigas de mesas faustosas» (R. Dion). E, em todas as regióes vinícolas, passou a haver uma viticultura burguesa OAs técnicas da viticultura e as da vinificagáo, pouco conhecidas na Alta Idade Média, sáo descritas com precisáo na documentagáo (') Ñas melhores térras (Artois, Hainaut, Cambrésis), o rendimento teria sido de 11 a 13 q por hectare, se nos fiarmos em conversoes talvez aventurosas. O E, bem entendido, a viticultura camponesa, antiga, desenvolveu-se tam bém, embora mais em quantidade do que em qualidade.
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escrita (as contas senhoriais, nomeadamente, sáo uma mina inesgotável) e na iconografía. Criadas entre os séculos X I e X III — e náo iráo variar até á época da filoxera —, estas sáo as técnicas rurais mais avanzadas do mundo ocidental. Ñas regioes onde o vinhedo prosperava, a arte do vinhateiro e os oficios com ela rela cionados infiltravam-se nos subúrbios e até no interior das capitais do vinho, entáo em maior número em Franca do que nos nossos días e diferentemente distribuidas pelo território. O «vinhedo em redor da nossa cidade de Paris», como dirá Luís XI, era de tal modo envolvente que «até na própria cidade se respirava, con soante as estafóes, o fumo das vides quando eram queimadas ou o odor das uvas recentemente pisadas» (R. Dion). Durante o Invernó, o solo era objecto de vários «trabalhos» (trés, na Ile-de-France, quatro, por exemplo, em Bordelais): rodeava-se de térra e escavava-se alternadamente os pés das vides, durante o Invernó e principio da Primavera, com instrumentos de lavra (ñas térras fortes) ou a «braco», ou seja, com a enxada. Em Fevereiro-Marco, carregava-se o «estrume» (ou o lodo), embora em quantidades limitadas e sobretudo para os «mergulhóes»: muitas vezes, era á enxada que se cavava o estrume (este era o segundo dos tres ou quatro trabalhos) ou entáo era depositado numa fossa em volta dos troncos. Em Margo, a vinha era podada, sendo depois vergada e presa ás estacas com vime ou «verga». Em fins de Marco ou principios de Abril, pensava-se na renovacáo parcial da vinha, procedendo-se á «mergulhia» (ou mergulha), uma espécie de alporquía: a haste do sarmentó era dobrada e metida na térra, para provocar o nascimento de raízes e de uma nova planta, cuja liga d o com a planta original seria cortada mais tarde. E, em cada ano, um grande vinhateiro tinha de fazer milhares de mergulhóes, renovando assim a vinha de modo progressivo: á medida que os mergulhóes atingiam a idade de produzir, as vides mais velhas eram arrancadas. Em Junho, limpavam-se os pés das vinhas. Em Julho, erguiam-se e amarravam-se os sarmentos. No més de Agosto, «podava-se», para que os cachos a amadurecer ficassem mais expostos ao sol e náo fossem privados de seiva por rebentos demasiado grandes 0). Vinham por fim as vindimas, cuja data variava segundo as regioes, e, num mesmo «vinhedo», de ano para ano. Na Ile-de-France, a data de abertura é conhecida relativamente a todos os anos, porque o Parlamento de Paris entrava entáo de férias: em geral, realizava-se entre 10 de Setembro e principios de Outubro. Era preciso reunir uma máo-de-obra abundante para este grande mo-
(*) Tudo isto se refere, mais particularmente, ás vinhas baixos, nao medi terráneas.
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mentó da vida rural, sendo a maior parte destes efectivos consti tuida por cortadores e cortadoras. Uma vez vindimada, a uva era recolhida em cestos pelos carregadores que iam despejar o seu conteúdo em cangalhas pendentes dos flancos dos burros ou dos cavalos trazidos para perto das vinhas, ou em grandes cestos ou talhas colocados em carrosas. Os cachos eram guardados em gran des dornas: o sumo produzido pela natural compressáo dos cachos era água-pé, muito apreciada pelos conhecedores. Os residuos eram depois pisados: consoante as regióes, os calcadores serviam-se dos pés ou de pilóes. Por fim, levava-se o pé para as prensas (instru mentos extremamente aperfeigoados desde o século XIII) e este terceiro suco ia dar o «vinho de prensagem», de qualidade inferior e mais barato. Contudo, existiam ainda poucos lagares em certas regióes vinhateiras. Ao fim de algumas semanas, o mosto transformava-se em vinho claro, esse vinho branco que parece ter constituido o objectivo essencial das expedigóes. Mas quanto ao clarete (o nosso rosé), também muito exportado, e ao vinho tinto, era necessário fazer um «segundo pé tinto» voltando a colocar o pé na selha onde fermentava o mosto tirado da uva preta. Chegava-se entáo á fase de o verter em pipas, fabricadas ou reparadas em quantidades enor mes nos meses anteriores, ñas cidades e aldeias (a aduela era em geral em madeira de carvalho e os arcos em castanheiro jovem ou em aveleira)... O tonel era a pipa de maior capacidade (Y. Re nouard), com aproximadamente 900 litros em Bordéus e 800 em Paris (o primeiro servia para medir a arqueagáo dos navios de mar, o segundo para os barcos que animavam o Sena e seus afluentes (l). Todos estes vinhos, mesmo os de melhor produgáo, conserva vam-se mal e sofriam da insuficiéncia das manipulagóes. A trasiega era contudo conhecida pelo nome de eschantelage (chamando-se o batoque chan telle) assim como o atestamento (que entáo se chamava remplaige). A lotagáo parece náo ter sido praticada, ao contrário do adogamento (com mel), conhecido em várias regióes, como a Ile-de-France. Salvo ñas regióes mediterránicas, onde o «vinho velho» podia ser um vinho de tres ou quatro anos (e mesmo assim isso era raro na Itália dos séculos XIV e XV), o vinho de um ano estava já por vezes «infecto». Todos se apressavam a vender o vinho medieval, poucas semanas depois da prensagem. Relativamente ás regióes mediterránicas, a atengáo dos histo riadores incidiu quase exclusivamente sobre o negocio, pelo que
O Os submúltiplos e os outros cascos eram o meio tonel (chamado «pipa» em Bordéus, Nantes, Angers, e «barril» na Ile-de-France e na Borgonha) e o quarto de tonel (chamado «barrica» em Bordéus, upoinfon* na Ile-de-France e nos vinhedos do médio Loire). Havia também o «moio» (um terso de tonel) simultáneamente medida de capacidade e recipiente de vinho.
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náo dispomos de trabalhos consagrados á oliveira, comparáveis aos belos estudos que R. Dion dedicou ás vinhas de Franca. Náo há, contudo, dúvida de que a cultura da oliveira, cuja clientela era na verdade menos vasta do que a do vinho, conheceu, onde quer que se pudesse desenvolver, um vivo impulso devido especialmente ás opulentas burguesias das cidades de Itália. No entanto, nos sectores onde a oliveira e a vinha coexistiam, a proporfáo era, pelo menos relativamente ao século XI, de uma oliveira para sete pés de vinha. Mais tarde, as oliveiras aumentaram em número e melhoraram de qualidade, de forma que, na aurora do século XIV, as colinas da Toscánia de Duccio, por exemplo, estavam bem tratadas e cobertas de planta?5es arborescentes (E. Sereni).
A criagáo de animais A partir do século XI, os efectivos em gado grosso comefaram, segundo parece, a aumentar; os cavalos, em parte, para a guerra e os bovinos essencialmente para a agricultura. Mas — e tudo isto explica a «sobrecarga pastoral» de cuja gravidade se falou relati vamente ao século X III — o gado miúdo também conheceu um grande desenvolvimento, quer porque os próprios trabalhadores bracais tinham possibilidade de mandar porcos e carneiros pastar ñas pastagens concedidas á comunidade da aldeia, quer porque o vivo progresso dos lanificios justificava a manutenfáo de grandes reba nhos de ovinos. Em 1086, em tres condados ingleses povoados por 11 707 viláos, criavam-se 129 971 ovinos contra 31 088 suínos, apro ximadamente 9000 bovinos e 2721 cavalos. Seria este gado, mais numeroso do que amigamente, de melhor qualidade e capaz de fornecer um melhor trabalho e melhores produtos? É difícil responder com precisáo e saber se a maioria dos historiadores, que insistem nos fracos melhoramentos qualitativos ocorridos entre os anos 1000 e o fim do século X III ou mesmo o fim da Idade Média, tém ou nao razáo. Segundo eles, os animais viviam ainda no estado semi-selvagem, eram táo mal seleccionados como as sementes e mediocremente alimentados, por nao haver feno em quantidade suficiente ñas térras baldías, ñas charnecas e nos bosques. Contudo, a carne (’) tornou-se menos rara ñas mesas senhoriais, burguesas e camponesas, a partir do século XIII. Das contas das despesas das vindimas na regiáo de Toulouse e na Ile-de-France constam, desde meados do século XIII, muitos quartéis de carne
(*) Continuando as aves a ser, como é natural, em todos os meios, um notável complemento alimentar.
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de porco, de carneiro e de vaca, servidos aos vindimadores. Daqui resulta a importancia crescente, em todas as cidades, do mister de talhante, cujos membros podem ter provocado uma extensáo das culturas forraginosas e até dos pastos naturais em boas térras húmidas, desenvolvendo os prados de engorda. É hábito ver-se no aumento do consumo da carne, em todas as regióes e em todas as épocas, um sinal seguro da eleva<;ao do nivel de vida. Tudo leva a crer que assim aconteceu em grande parte do Ocidente, pelo menos no século XIII. Um outro sinal é a generalizado do consumo de vinho, em todas as regióes, para as pessoas ricas ou remediadas, em todas as mesas, até mesmo ñas camponesas, sobretudo das regióes vinhateiras. Dominando me lhor a natureza, o homem conseguiu viver melhor e de modo menos precário: a obsessáo da miséria, geral até ao século X, esfumou-se um pouco nos tres séculos seguintes.
Os progressos no dominio do espago As vias terrestres «No Invernó, devia ser quase impossível circular nos barrancos dos caminhos, cheios de água e de lama. O cuidado das estradas era abandonado aos que viviam á beira délas ou aos que tinham interesse na sua m anutendo» (H. Pirenne). A m anutendo das estradas deixara de ser um servido público e só muito raramente voltaria a sé-lo, mesmo depois do renascimento da ideia de Estado e da form ado do poder dos Plantagenetas e dos Capetos. Nem mesmo as cidades lombardas se esfonjaram por melhorar as passagens nos Alpes (Mont-Cenis, Brenner, Septimer, Saint-Bernard): foram peregrinos, viajantés e negociantes que tomaram a iniciativa de abrir, em inicios do século XIII, a estrada de Saint-Gohard, tornando-se esta a vía mais directa entre Miláo, o Reno e o Danúbio. Alias, as vias terrestres opunham á circulado uma outra dificuldade, de natureza financeira. Com o renascimento económico, as peagens proliferaram e este movimento náo se deteve até ao fim da Idade Média, apesar dos problemas (ou talvez por causa deles) existentes ñas estradas, ñas pontes e nos rios. Cada senhor casteláo assegurava no territorio próximo do seu castelo o «comando das estradas», julgando-se cada um no direito de se fazer pagar por esta protecdo, pelo que instituíam peagens da sua autoria. Se a p rotecdo de um castelo era verdaderamente eficaz, os mercadores eram incitados a passar ñas suas proximidades, a menos que a nova peagem fosse proibitiva, caso em que exacgóes demasiado pesadas os afastavam. 171
Assim, os itinerarios eram flutuantes e a circulado difusa. Havia, no entanto, estradas «fixas», onde se verificava maior actividade. Vejamos dois exemplos: o da Franca e o da Inglaterra. Em Franga, houve duas bases de transform ado da rede: as estradas romanas deixaram de ter o grande papel que sempre lhes pertencera durante os séculos obscuros, ao mesmo tempo que a velocidade de circulado aumentava. As estradas romanas decaíram devido ao facto de a orientado das estradas francesas ter sido profundamente modificada. As cau sas deste facto foram múltiplas: as numerosas fundagóes de casas de religiáo e de castelos, os arroteamentos de sectores que se tornava necessário irrigar por vias terrestres, as novas necessidades económicas e o importante papel desempenhado pelos Capetos e por Paris. Assim, a partir do século X, muitas estradas foram cria das ou arranjadas para responder ás necessidades dos novos mosteiros; a fu ndado de Cluny altera a rede de uma parte da Borgonha, «provocando fenómenos de captura e de derivado análogos aos registados pelo geógrafo numa superficie de erosáo» (Ch. Perrat). Na sua viagem de 1095-1096, o papa Urbano II seguiu apenas por dois trofos das vias romanas e viajou principalmente pelas novas estradas ou por antigos caminhos secundários conservados pelos Beneditinos, que, por outro lado, os tinham ladeado de hospe darías, verdadeiros pontos de etapa para os viajantes (R. Grozet). Os melhores exemplos destas estradas de origem religiosa sao evi dentemente as estradas de peregrinado, especialmente as que conduzem a Santiago de Compostela. E muitos senhores, clérigos (como a abadía de Saint-Germain-des-Prés ou diversos mosteiros de Poitou) ou laicos (como o visconde de Bourges e o conde de Cham pagne), compreenderam até que ponto uma calfada (estrada pavi mentada) era factor de povoamento e de actividade económica. As estradas monásticas, as estradas feudais e as criadas pela realeza nos seus dominios conheceram destinos diversos. Mas náo deixaram de constituir uma «trama sólida cujos ramos vinham reunir-se em Paris, capital da Franja real» (J. Hubert). Eis uma transform ado fundamental: os grandes séculos medievais substituíram o leque de estradas em redor de Liáo, heranfa romana, por um novo leque irradiando de Paris, e que daí por diante iría sem pre aperfeifoar-se. Por outro lado, subestimou-se a importancia da obra dos séculos X II e X III em matéria de conservado de estradas, nem todas elas lamajais. R.-H. Bautier calculou que, no tempo de Sáo Luís, a velocidade de circulado ñas estradas que conduziam ás feiras de Champagne era mais ou menos idéntica á de cornejos do 172
século XIX. Era outra vez possível construir estradas resistentes, capazes de suportar cargas mais pesadas do que outrora ('). Nos séculos X III e XIV, na regiáo de Troyes, ñas novas estradas havia carros que transportavam mais de duas toneladas de pedra e, por vezes, quase quatro. Se se acrescentar a tara do carro (2500 kg apro ximadamente), obtém-se um máximo de 6400 kg, peso sensivelmente igual ao das pesadas carrosas que circulavam em Franga, no inicio do século XX, antes de aparecerem os veículos automóveis. Mas é claro que, além destas estradas edificadas para transportes pesa dos, subsistiram ou foram criadas muitas más vias. Apesar de nenhum cronista do século XIII se ter queixado do estado das estradas em Franga, as lamentagóes iriam surgir durante a Guerra dos Cem Anos, que interrompeu ou atrasou os trabalhos sazonais de manutengáo. Na Inglaterra, em geral, o tragado antigo manteve-se. Assim o prova o Gough Map do século XIV, recordando além disso que esta persistencia se deve ao facto de a maior parte das vias romanas partirem de Londres. Ao contrário do que aconteceu em Franga, o principal centro inglés náo se deslocou através dos tempos. Nos dois países onde, afinal, o poder real se revelou forte, houve o mesmo esforgo — limitado — desse poder para garantir, pelo menos em principio, mas por vezes também de facto, um mínimo de conservagáo da strata publica ou via comunis e de policiamento ñas estradas principáis, esforgo em que participaram os senhores e as cidades. Na Itália e em Espanha, seria oportuno levantar também a questáo da sobrevivéncia das vias romanas, aliás bem frequente apesar de alguns desvíos de tráfego. Na Germania, tudo ou quase tudo estava por fazer por volta do ano 1000. Até ao século XII, no sentido oeste-leste, apenas existía uma via, o Hellweg, que ia de Dortmund, na Vestefália, a Magdebourg no Elba e conduzia ás por tas dos países eslavos. Mas, a partir do século XIII, multiplicaram-se as estradas norte-sul e oeste-leste: seis, pelo menos, foram criadas entre as portas alemas do Báltico e a Europa do Leste (Polonia meridional, Boémia, Hungría) e várias entre Bruges e o Reno, de um lado, e as regióes do Óder e do Vístula, do outro.
(') Nem todas as boas estradas medievais eram pavimentadas: por exemplo, a que se acaba de reconhecer na zona de Conques comportava seis camadas de grandes lajes de xisto com uma espessura total de 30 a 40 cm. Estas estradas podiam, pelo menos, ser fácilmente reparadas. A via medieval diferenciava-se ainda sob outros aspectos da sua antepassada romana: tinha o mesmo trabado sinuoso que as veredas que a haviam precedido.
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A s pontes Em Inglaterra e no continente, subsiste um certo número de pontes — muitas vezes fortificadas — que remontam ao tempo do grande despertar económico. Como outros edificios civis ou religio sos, estas pontes testemunham os notáveis progressos realizados pela arte da construgáo. Em Franja, a maior parte das antigas pontes remontam, ñas suas actuais fundajóes, aos séculos XI e XII. Todas as grandes pontes necessitam de avultados fundos para a sua edificado e mesmo para a sua conservado ulterior. Apesar de náo se poder afirmar que o poder senhorial se desinteressou sempre do problema, foi sobretudo á custa das cidades e dos bur gueses que se construíram pontes como as de Paris e de Ruao, a de Avinháo, as de Londres, de Verdun, Namur, Huy, Liége e Maastricht. Também a Igreja contribuiu largamente para a edifi c a d o de pontes, declarando-a obra pia e angariando esmolas, dona tivos e legados para o efeito. O isolamento foi também atenuado pelo facto de as vias terres tres beneficiarem dos novos sistemas de atrelagem de cavalos e bovinos, assim como da lenta, mas muitas vezes irresistível, substi tu id o do boi pelo cavalo. E, uma vez que os animais podiam puxar uma carga nítidamente superior á de outrora, as carrosas tornaram-se maiores, ainda que a consulta das tarifas de terrádigo e de peagens nos convenga fácilmente de que a carrosa era, mesmo no século XIII, de utilizasáo bem mais corrente do que o carro. Por outro lado, a constante mensáo de costaneiros ñas tarifas, recordam que muitas mercadorias — as menos volumosas e de peso limi tad o — eram, como antigamente, transportadas pelo cavalo, pela muía ou pelo burro, que as carregavam no dorso ou encostadas ao flanco, em alforges e em cestos.
A navegagao fluvial As «vias do comércio por excelencia», «o grande instrumento de trocas e o melhor veículo dos transportes» foram, mais ainda do que na primeira Idade Média, os rios principáis e afluentes (H. Pirenne), apesar de muitos deles nem sempre serem utilizáveis ao longo do ano, devido ás secas, ao frió e aos gelos. O «termo da navegasáo ascendente» situava-se muito mais a montante das ribeiras do que poderíamos pensar, porque a tonela gem dos barcos podia ser muito fraca, próxima da de uma barcasa. R. Dion demonstrou que os vinhateiros só apareceram nos vales «a partir do momento em que o rio secundário, no seu estado anterior ás modificasoes modernas, comesou a ser utilizado pela navegasáo comercial». Este ponto situava-se na Dordogne, na regiáo de Ber174
gerac, em Gaillac no Tarn, em Cahors no Lot, em Pamiers no Ariége, em Vierzon no Cher, em Ris no Dore, em Saint-Pourgain no Sioule, ou ainda. no Yonne na sua confluencia com o Cura. No entanto, é claro que a actividade mercantil era activa sobre tudo nos grandes rios e no curso inferior dos seus principáis afluen tes. Havia várias redes de importancia capital. A do Pó era a maior via de navegagáo interna do mundo mediterránico. A do Ródano e do Saóne era a principal via sul-norte (em ligagáo com o Mosa e o Mosela). A do Loire continuou a ser muito frequentada até ao aparecimento das vias férreas. A do Sena enriqueceu Ruáo e ainda mais Paris. Fora do reino de Franga, a do Tamisa, as do Reno e talvez do Danúbio permitiram o grande progresso da Ale manha renana e, no fim da Idade Média, da Alemanha do Sul. E, a pouco e pouco, acompanhando os progressos da expansáo germá nica para leste e o crescimento das cidades hanseáticas, o Elba, o Óder e o Vístula entraram ñas fileiras dos rios mais frequentados. Diques, cais, desembarcadouros multiplicaram-se ñas margens dos rios, gragas ao dinheiro e ao impulso das associagóes de mercadores, tal como a Hansa parisiense dos mercadores de água. Mas o homem comegou a abrir canais, pelo menos na planicie flamenga, «onde as águas interiores correm num movimento insensível» e onde o solo e a ausencia de relevo tornavam a obra menos difícil do que em qualquer outra parte. Os mais antigos destes vaarten, destinados a estabelecer a comunicagáo entre os rios secundários, remontam ao século XII. Ao longo do século seguinte, o seu número aumentou bastante, um indicio entre tantos outros da pode rosa actividade comercial da regiáo. «O nivel das águas era mantido á altura necessária por barragens de vigas, escalo nadas a uma certa distáncia uma das outras. Os barcos ultrapassavam-nas gragas a planos inclinados sobre os quais deslizavam de uma calha para a calha seguinte, com a ajuda de cordas puxadas por um sarilho. O conjunto da instalagáo chamava-se um overdrag» (H. Pirenne). Para amortizar as despesas de instalagáo e conservagáo, as cidades ou os agrupamentos de mercadores levantavam taxas — parecidas va gamente com as peagens — sobre os marinheiros e as suas mercadorias. Sáo os cereais, o vinho, o sal, a madeira, o feno, as magas e a lá — os produtos pesados— que, bastante impropriamente, A. Sapori qualificou de «mercadorias pobres», os que utilizam principal mente a via aquática. Na verdade, excluindo as barcas, o mais pe queño dos barcos do rio tinha uma capacidade bastante superior á das carrogas ou dos carros. Na maior parte dos casos, as vias terres tres eram apenas utilizadas como vias de ligagáo entre cursos de água diferentes, salvo nos sectores nao servidos por um rio navegável. É pois por mudas sucessivas que os comboios «de animais de 175
carga, carros, e barcas de ribeira transportavam... — por exemplo — a lá ou os cereais para os portos exportadores, partindo das gran des casas eclesiásticas produtoras destes géneros — em Inglaterra — e que também colectavam ñas suas proximidades os excedentes cam poneses» (G. Duby). Os mercadores náo hesitavam em alongar bastante o seu trajecto para utilizar um curso de água, por vezes á custa de várias cargas e descargas. Entre Saint-Denis e Pa ris, bastante próximas por estrada, mesmo na subida e ape sar das suas curvas, utilizava-se de preferéncia o Sena: depois do carreto entre Saint-Denis e a Ile-Saint-Denis, as mer cadorias eram transportadas para um barco, para depois, á chegada a Paris, serem de novo descarregadas, desta vez do barco para novas carrosas. Para os vinhos da colina de Cormeilles-en-Parisis, destinados á venda ou ao consumo em Saint-Denis, quadruplicava-se a distancia a percorrer, em barcándoos no rio na base das colinas, transportando-os a «contracorrente» até á Ile-Saint-Denis, onde era pre ciso transbordá-los para os conduzir finalmente, por via ter restre, até á cidade. A tendéncia dos cursos de água para veicular as mercadorias pesadas afirmou-se a partir do século XI e do «arranque» do comér cio. É através déla que se explica o poder das cidades, mesmo pe queñas, bem situadas num ponto obligatorio de carga e descarga (por exemplo, Compiégne sur L ’Oise). Contudo, salvo em Inglaterra, os rios principáis e secundários náo tinham menos peagens do que as estradas. Em Franga, na altura da Guerra dos Cem Anos, o seu número aumentou, chegando a atingir 130 ao longo do Loire. Mesmo no Sena, em fíns do século XV, os encargos devidos ás peagens equivaliam a mais de 50% do prego de venda dos cereais. Necessário se torna, pois, ten tar apreciar a incidencia destes adiantamentos financeiros sobre a actividade comercial. Esta incidencia podia revestir-se de tres aspectos: con forme os períodos, as vias de um mesmo comércio podiam oscilar entre a estrada e o rio. Assim, através das suas exacgoes, os príncipes eclesiásticos desviaram do Reno, e até do Main e do Elba, em proveito das estradas terrestres, uma parte do tráfego dos cereais, enquanto, no fim da Idade Média, a madeira continuava a descer de barco até á Holanda e no Elba as cidades continuavam a traficar em mercadorias pesadas, peixe e sal. De notar que nem todas as cidades sofriam tantas peagens, posto que algumas, como Colonia, estavam isentas de muitas délas. Quererá isto dizer — e este é o segundo aspecto do problema— que estas peagens atrasaram o crescimento do movimento comercial ou chegaram mesmo a diminuf-lo? Na verdade, é impossível responder a esta questáo, mas um facto deve ser sublinhado: os produtos agrícolas continuavam a ser exportados e im 176
portados, quaisquer que fossem os custos financeiros do transporte e das taxas, porque se tratava de géneros de primeira necessidade. Em contrapartida, alguns produtos artesanais, como os téxteis e os objectos de metal (os artigos de luxo eram muito menos sensíveis ao custo do trans porte), teriam podido ver a sua produgáo comercializada e exportada desenvolver-se mais se náo existissem tantas pea gens. Finalmente — e este é o terceiro e último aspecto da questáo—, náo se poderá pensar que tantas «exacgóes» atrasaram o movimento que, desde o século XI, em todas as regióes, levava as economías locáis a saírem do seu isolamento e abandonarem a sistemática tentativa de auto suficiencia? É certo que a parte exportável da produgáo era reduzida, uma vez que era necessário, por vezes dramaticamente, reduzir o lucro a fim de vender longe a um prego náo proibitivo, apesar das taxas. Contudo, náo há qualquer prova do desaparecimento de um tráfego devido ás peagens, mas apenas de mudanga da sua direcgáo. Navios de mar e vias marítimas Uma das vantagens dos transportes marítimos foi precisamente a de escapar ás peagens e de ser, por isso, de custo infinitamente menos elevado. Entretanto, a navegagáo marítima continuava a ser perigosa, o que explica o muito precoce aparecimento do seguro marítimo, praticado em Génova, de modo ainda rudimentar, a par tir da segunda metade do século XIII. Mas até ao fim deste século, tratava-se sobretudo de uma cabotagem, submetida a pesados encar gos nos portos de escala. O direito de arrombamento e salvados foi assim comercializado pelos duques da Bretanha (através da venda de licengas aos navegantes) para todos os navios vogando ñas águas bretás do Atlántico e da Mancha. No século XII, foi elaborado um código elementar de direito marítimo em La Rochelle para ser adoptado em todos os mares a oeste e a norte da Europa. O principal aperfeigoamento da navegagáo foi o leme de co daste: gragas a ele, aumentaram a estabilidade e a maneabilidade dos barcos, o que constituirla uma das razóes do aparecimento, no primeiro quartel do século XIV — quando este leme, lentamente difundido desde o inicio do século XIII, se impusera finalmente—, de uma linha de navegagáo directa entre a Itália, a Inglaterra e os Países Baixos, via Gibraltar. Mas, relativamente ás técnicas, outros progressos tinham sido realizados a partir do século XI, com a utilizagáo de astrolábios aperfeigoados, e no século XII, pelo menos no campo italiano, com o uso da bússola. Os tipos de navios melhoraram, sob todos os pon tos de vista, sobretudo no Ocidente. Estes progressos talvez se devam em parte ao facto de os barcos medievais se deterioraren! dema siado depressa, aguentando o mar apenas cinco ou seis anos (daqui 177
a importancia dos estaleiros navais de Génova, Veneza e dos portos hanseáticos). A construfáo naval exigia grandes investimentos e um importante comércio de madeira de construfáo para as regiSes que náo a possuíam (países islámicos e vários países cristáos). Durante muito tempo, os navios mantiveram uma tonelagem pequeña. Em meados do século XII, os mares do Norte eram sulcados por dois tipos de barcos: a barca dos descendentes dos Vikings, esguia e rápida, á vela e a remos, de pequeño calado; a nave ocidental, á vela, de formas arredondadas, mais estável e mais larga, mais lenta e mais curta. Uma e outra tinham apenas uma capacidade de carga mediocre, que náo ia além das trir.ía toneladas. Mas por volta de 1200, surge no Norte um navio de maiores dimensSes, que cedo se comefou a designar por Kogge ou cogge. Transportava oito ou dez vezes mais carga do que os barcos de outrora. Com trinta metros de comprimento por sete de largura, o cogge tinha um calado de 3 metros. O casco era feito de pranchas sobrepostas como as telhas de um telhado, sendo a quilha e a proa rectilíneas. Tinha uma única vela e, a partir de 1210-1220, a barra lateral, até entáo utilizada, foi substituida pelo leme de cadaste. Era um navio maneável, rápido, fazendo dez a quinze milhas por hora com bom vento. Os inventores deste novo tipo foram os Frisoes que, durante muito tempo, quase sós com os Alemáes, utilizaram duravelmente embarcafoes de envergadura excepcional para a época. No Atlántico, na Mancha e até em parte das costas do mar do Norte, as naus foram durante muito tempo navios mais peque ños, cuja tonelagem era avaliada em tonéis ('). Apesar de também bojudas, a vela latina (invenfáo grega ou siria, a despeito do qualificativo) dava a estas naves uma facilidade de manobra que a forma arredondada da sua quilha náo teria per mitido. Mas o astrolábio aperfeifoado e a bússola só entrariam em uso a bordo no fim da Idade Média; mais uma vez, os povos mediterránicos se haviam revelado mais precoces. Os carpinteiros italianos continuaram a construir segundo a tradigáo greco-romana, modificada pela escola de Bizáncio. Era uma tradifáo de barcos de grande porte, bastante complexos e geralmente mais lentos. A galera, com uma única ponte, aparecera no século X e só utilizava remadores livres. Muito alongada, mu nida de um esporáo, fora a mais rápida unidade da frota bizantina antes de ser adoptada pelo comércio italiano. Muito elegante, náo podia contudo subir os rios pouco profundos, ao contrário da maioria das naus da Mancha ou do Atlántico. Os Italianos chegaram
0 ) O tonel de Bordéus, de aproximadamente 900 litros, servia de medida de capacidade, posto que, nesses mares, o vinho era a principal mercadoria transportada.
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a dar-lhe um tamanho ainda maior, mas nao sem serios inconve nientes: utilizando mais os remos do que a vela, era dispendiosa para o transporte de mercadorias pesadas e «pobres». É certo que os italianos traficavam sobretudo em produtos caros e de pequeño volume. O aperfeigoamento dos barcos e da navegagáo e a crescente actividade da mesma trouxeram aos portos do Ocidente um tráfico cuja expansáo iria continuar mesmo depois dos anos 1300-1400. Como consequéncia evidente, foi preciso dotar estes portos de instalagóes cada vez mais importantes e mais engenhosas: diques, cais, grúas... de que a iconografía nos deixou algumas recordares, em bora infelizmente só relativas ao fim da Idade Média. O dinam ism o da dem ografía
A expansáo do Ocidente a partir do século X I foi acompanhada por um muito forte crescimento demográfico, reforgando-se estes fenómenos mutuamente. O aperfeigoamento das técnicas agrícolas e a extensáo das superficies cultivadas foram ao mesmo tempo causa e consequéncia do crescimento das populagoes do Ocidente. Con tudo, «o forte progresso do povoamento» náo pode ser medido antes do século XIII: todos os índices concorrem para afirmar a sua existéncia, mas os dados de que dispomos sáo imprecisos. As fontes, algumas das quais fornecem finalmente alguns dados, só no século X III se tornam menos vagas. Dado que a fiscalizagáo pri vada e pública se torna menos rudimentar, comega a ver-se, e cada vez mais a partir dos anos 1250, os soberanos e os grandes senhores mandarem fazer recenseamentos de fogos, servindo, em geral as casas de base para os impostos e para as diversas taxas senhoriais 0). Apesar dos muito recentes progressos atribuidos á demografía histó rica, náo conhecemos ainda bem os movimentos demográficos da Baixa Idade Média. Aliás, a maioria dos dados seguros sáo locáis ou regionais. A Provenga constituí, portanto, quase uma excepgáo pela riqueza — muito relativa — da documentagáo que conservou (E. Baratier). O número de fogos — fogos reais e náo artificios de percepgáo — duplicou por vezes entre meados do século X III e os anos 1300. Apesar de a consistencia destes fogos náo ter variado no intervalo, a populagáo provengal sofreu entáo uma forte ascensáo, embora muitos cantóes tenham sido muito pobres. Nota-se também uma
(') Sobre o fogo e o seu equivalente em número de habitantes, cf. infra pp. 317-321. O mais antigo pollptico da diocese de Chartres (entre 1250-1276) é também muito precioso como fonte demográfica (A. Chédeville).
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desigualdade de crescimento entre aldeias: nos terreiros pobres nao há aumento do número de fogos, enquanto nos terreiros mais favorecidos este chegou a atingir os 300%. Como em muitas outras épocas, o crescimento demográfico náo foi uniforme e veio acentuar as diferengas regionais ou locáis. E as mesmas conclusóes se poderiam tirar de indicajSes numéricas provenientes de aldeias inglesas. Daqui resulta uma tendencia natural, mas talvez imprudente, dos historiadores para a extrapolado. Ponhamos de parte o caso dos sectores anteriormente quase de sabitados. Como é natural, aqui a populagáo aumentou, por vezes mais do que em qualquer outro lugar: calcula-se que vinte a trinta mil pessoas surgiram em Brie entre 1100 e os anos 1250. Isto leva-nos a levantar o problema das migragoes, sobre as quais as fontes senhoriais podem projectar um pouco de luz. De onde vinham os «hóspedes» que arrotearam e povoaram as vilas novas ou criaram casas isoladas? Para o saber, o melhor é, quando possível, reportarmo-nos aos censos: náo existem patrónimos hereditários até uma certa data, variável de regiáo para regiáo, mas que frequentemente se sitúa em meados ou fináis do século XIII, e os homens distinguiam-se náo só pelo nome mas também por uma alcunha ou sobrenome vitalicio. Ora, muitos apelidos evocavam o lugar de origem dos seus titulares, o que permite verificar que, apesar de muitos camponeses se terem instalado num campo ou numa cidade próxima da sua al deia de origem, superpovoada, outros foram para muito longe, sabendo-se hoje que o campesinato foi muito mais móvel do que se afirmou durante muito tempo. Disso foi testemunha a regiáo Entre-Dois-Mares, entre o Garona e o Dordogne antes da sua confluencia, que viu chegar bre tóes, naturais de Poitou e hóspedes provenientes de outras regiSes da F ranja do Centro-Oeste e do Sudoeste. Tratava-se de um movimento de uma amplitude excepcional, que faz pensar ñas vagas flamengas e holandesas com destino ás regiSes para além do Elba. Mas houve outras. Por exem plo, á luz das contas da abadía de Saint-Denis, percebe-se uma migrajáo — que durava ainda no século XIX — diri gida para a Ile-de-France e proveniente das regiSes menos ricas e mesmo muito pobres como o Macijo Armonicano, o Marico Central, Maine ou Poitou. As migrajSes orientavam-se, pois, frequentemente para as zonas já densas mas ricas. Persiste, deste modo, a desigualdade das den sidades regionais e mesmo locáis. Tomemos como exemplo a Ile-de-France, cujo número de_fogos reais, relativamente a 1328, é conhecido, náo al deia por aldeia, mas frequentemente castelania por castelania. Como as castelanias tinham uma fraca extensáo, pode perceber-se de modo satisfatório a v ariado de densidade entre pequeños sectores. Esta densidade foi calculada em ---------
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fogos/km!, o que excluí a arbitrariedade de todos os coefi cientes de fogos propostos. Em cerca de 5000 km2 — super ficie aproximativa de um actual departamento médio—, essa densidade variava do simples ao triplo: de 19 fogos/km2 na planicie de Franga e de 16 nos arredores de Paris, des d a para 10 ou 12 em Vexin (francés) e Thelle, decaindo para 7 ou menos de 6 em Hurepoix (zona dos arroteamentos dos séculos XI e XII). Só na Brie francesa variava do sim ples para o dobro: mais de 13 á beira dos grandes rios (Marne e Sena) e dos pequeños (o Yerres navegável) e apenas 7 noutros lugares. Isto explica a variedade de econo mías e paisagens, numa mesma regiáo. As densidades eram muito variadas numa mesma regiáo, e tam bém, evidentemente, entre regióes. Com uma densidade quilométrica total de 14,12 fogos em 1328, náo incluindo Paris nem Saint- Denis, e de 31,20 com estas duas cidades, o que equivale a entre 120 e 150 habitantes, a regiáo parisiense era indiscutivelmente a provincia mais densa de todo o Ocidente. Este facto teve incidencias em todos os dominios, inclusive no político: pode assim compreender-se melhor o «milagre capetiano», que fez do pretenso «pequeño senhor da Ile-de-France» o senhor de quase todo o reino de Franga. Esta regiáo era a mais povoada de todo o reino, em primeiro lugar porque a densi dade média deste nao ultrapassava entáo 7,7 fogos por km2, segundo os cálculos de F. Lot. Era também a mais povoada de toda a Europa: a Itália, entáo considerada um formigueiro humano, era de facto muito menos povoada. Segundo os cálculos dos historiadores italianos — frequente mente considerados conjecturas demasiado optimistas—, a populagáo do reino de Nápoles náo teria ultrapassado os 7,7 fogos, enquanto o «condado» florentino, incluindo Fiorenga e a Lombardia, náo teriam atingido os 15 fogos/km2. Também a Flandres, outro formigueiro, náo parece ter ultrapassado a Toscánia em densidade. Raras sáo, em todo o caso, as regióes em relagáo ás quais pode mos calcular actualmente, ainda que de forma grosseira, o aumento demográfico. Isso náo é totalmente possível mesmo relativamente á Provenga, porquanto o ponto de partida das indicagóes numéri cas é, como vimos, próximo dos anos 1250. Quanto á Ile-de-France, os dados válidos em relagáo a 1328 apenas se podem comparar — e só aproximadamente— com os do inicio do século IX e apenas respeitantes a algumas aldeias (cf. p. 66). A fortiori, náo se pode medir este aumento «em campos mais vastos», em reinos, por exem plo. Mesmo relativamente á Franga, no entanto quase privilegiada, náo dispomos de nada anterior ao État des Paroisses et des Feux, de 1328, o qual tem pelo menos o mérito de mostrar que o pais, com 16 ou 20 milhóes de habitantes dentro dos seus limites de entáo, era o reino mais povoado de todo o Ocidente. A única 181
excepgáo é o reino de Inglaterra, onde as hipóteses se baseiam numa irefutável docum entado, fundamentada em dois inquéritos de con junto. Em 1086, segundo o Domesday Book, o país abrigava 1 100 000 habitantes e, ñas vésperas da peste de 1348 (a avaliagáo baseia-se em indicagoes fornecidas pelos registos da Poli Tax de 1377) 3 757 000 habitantes. Como o crescimento da densidade estagnou a partir de 1300, pode dizer-se que a populagáo de Ingla terra aumentou para mais do triplo entre o fim do século X I e o fim do século XIII. Mas nada permite avancar que a taxa de cres cimento foi a mesma nos outros países. Mantenhamo-nos prudentes e náo tentemos estabelecer quadros ou desenhar gráficos de crescimento que seriam táo falsos como sedutores. As tentativas já realizadas, táo temerarias como aventurosas, divergem aliás muito: W.-C. Robinson afirmou que a taxa média anual de crescimento náo teria ultrapassado 0,2% , relativa mente a toda a Europa — número que seguramente é muito inferior á realidade —, enquanto W. Abel a avaliou em 0,39 % relativa mente á F ranja e mesmo em 0,48 % relativamente ao reino da Germán ia. A demografía náo se debruga apenas sobre o volume da popu lagáo. Levanta muitas outras questóes, cujas respostas raramente sáo menos difíceis — no estado actual das pesquisas — do que o eram em relagáo á primeira Idade Média. Essas questoes sáo a taxa de nupcialidade, a idade média para contrair casamento, o controlo dos nascimentos ou a mortalidade infantil, ou ainda a esperanga de vida; aliás, o todo varia segundo os grupos sociais e os lugares. Pode, pelo menos, fazer-se uma observagáo de bom senso e de grande alcance: uma vez que, do século XI ao XIII, os homens passaram finalmente a andar em geral bem alimentados, a duragáo média da vida humana deve ter aumentado. Mas quanto? Apesar de os documentos — em especial os censos — provarem a existen cia de uma grande percentagem de familias numerosas, náo se sabe entretanto grande coisa sobre a mortalidade infantil na maioria das aldeias, a náo ser que manteve uma taxa alta. Em todo o caso, em fináis do século XIII e principios do século seguinte, a tendencia do movimento demográfico ia inverter-se e o espectro da fome renasceria. Apesar de as fomes e as epidemias — conduzindo urnas frequentemente ao aparecimento das outras — terem sido afinal pouco numerosas e quase sempre localizadas desde o ano 1000, o mesmo náo iria acontecer a partir dos anos 1300, e por vezes mesmo dos anos 1250. Dado que as arroteamentos náo progrediram a partir de, pelo menos, meados do século XIII, en quanto a pressáo demográfica náo diminuía e os progressos técnicos tinham praticamente terminado, cada familia dispunha de cada vez menos térra para se alimentar, conforme testemunham os censos, 182
mostrando uma fragm entado extrema das exploragóes camponesas e uma dim inuido continua da superficie média dos campos, por exemplo na Ile-de-France. Outra prova deste facto é a subida ní tida dos pregos dos cereais, marca da crescente tensáo da procura e náo apenas do prosseguimento do crescimento económico (conhecem-se os pregos dos cereais ingleses desde 1160, os da Ue-de-France desde 1229 e 1280), estando esta subida em contraste com a estagnagáo ou mesmo com uma ligeira redugáo dos salários. É claro que foram os rurais mais pobres, os jornaleiros e os caseiros quase sem térra, os primeiros a ser atingidos: no seu meio, a taxa de nupcialidade diminuiu a partir da segunda metade do século XIII, enquanto se elevava a de mortalidade. Depois, no inicio do século seguinte, esta última seguiu a mesma tendencia em todos os meios rurais. O único estudo sólido consagrado á inversáo desta ten dencia, cujos efeitos iam, na maior parte dos casos, manter-se durante bastante tempo, baseou-se nos importantes relatórios da contabilidade do bispado de Winchester rela tivamente ao período que vai de 1240 a 1350. Em 1245, para um homem com mais de 20 anos, a esperanga de vida era de vinte e quatro anos. Uma vez que nada se sabe sobre a mortalidade infantil, só se pode calcular a taxa de mortalidade para os adultos. Ora se esta foi, em relagáo ao conjunto do período, de 40% (portanto de 70% talvez para toda a populagáo, incluindo as criangas), entre 1297 e 1347, ela atingiu 52% — nivel máximo que actualmente náo é, por certo, atingido em parte alguma do mundo —, reduzindo a esperanga de vida para apenas 20 anos. Ter-se-ia a vida tornado táo curta e precária como no tempo dos Carolíngios? Podemos perguntá-lo, como faz G. Duby. Em todo o caso, dois séculos e meio ou trés (conforme as regióes) teriam apenas representado uma trégua entre dois períodos de vida breve e mal alimentada? Por volta de 1300, os campos do Ocidente — salvo a leste do Elba e ñas térras recentemente conquistadas pelos cristáos, em Espanha e em Portugal — estavam portanto simultáneamente superpovoados e ameagados a breve prazo pelas catástrofes. Apresentamos um outro exemplo deste superpovoamento: os campos parisienses eram entáo táo densamente povoados como no inicio do século XIX (no intervalo, o crescimento demográfico incidiría apenas ñas cidades). Assim, em redor de Poissy e Pontoise, no Vexin francés e em Thelle, os burgos com pelo menos 100 casas — em 1815— contavam, no inicio do século XIV, com um nú mero equivalente de fogos aglomerados; porém, sendo o nivel das técnicas agrícolas mais elevado a partir do século XVIII, vivia-se melhor ñas regióes planas em 1815 do que por volta de 1300 e a esperanga de vida aumentara. 183
A expansáo m o n etaria e os investim entos
Expansao monetária A tendencia para «ligar demasiado estreitamente o progresso urbano ao hábito do manejo do dinheiro» mantém-se forte (G. Duby). Como a sociedade continuou a ser predominantemente rural, é preciso comejar por saber como e quando o meio campestre comegou a utilizar mais amplamente os signos monetárias. Comecemos por analisar o exemplo da Normandia, ao qual se poderia acrescentar, por ser análogo, o da Inglaterra. Trata-se de regides onde o progresso urbano nao foi de modo algum comparável ao da Flandres ou da Itália. Ora, na Normandia, «o dinheiro cir cula... no século XI e frequentemente em grandes unidades» (L. Musset). Assim o testemunham as operagóes financeiras da abadia de Fécamp: por volta de 1050, o abade Jean de Ravenne náo recuou perante pagamentos de 80, 150 e até 312 libras (lb.), quando se tornou necessário defender os bens ecle siásticos das pretensóes de senhores demasiado ávidos, ou quando fundou novos priorados. Os metáis preciosos náo transformados em moeda eram abundantes: quando da criagáo da pequeña colegiada de Aumale, benfeitores laicos contribuíram com trés cálices (dois de prata e um de ouro), uma cruz e dois candelabros de ouro. Estes meios de paga mento (um deles pode ser um objecto de metal precioso, tal como a moeda) parecem ter duas origens na Normandia dos séculos X e XI. A primeira é antiga e de alcance geral: tratava-se das rendas colectadas moeda a moeda, no meio rural, em proveito dos senhores. Mas a segunda é carac terística das regioes «normandas». «A guerra longínqua foi a indústria nacional dos Normandos; das costas da Mancha no século X, da Apúlia e sobretudo de Inglaterra no século XI, trouxeram por vezes enormes tesouros» (L. Mus set). Vejamos alguns exemplos: a catedral romana de Coutances foi na maior parte paga por Robert Guiscard, a de Sées por aventureiros vindos da Apúlia ou que tinham passado para o servigo do basileus, o tesouro da abadia de Saint-Martin-de-Sées foi enriquecido com despojos anglo-gauleses e os mosteiros de Caen foram edificados com o produto de confiscables efectuadas em Inglaterra por Guilherme o Conquistador... Embora destinado a monumentos sem utilidade económica, este metal precioso entrava em circulagáo no ducado. E esta é uma das causas do aumento de volume monetário ocidental. Por outro lado, ainda que a partida de emigrantes reduzisse o beneficio final dos entesouramentos normandos, uma vez que estes vendiam os seus imóveis, levando apenas moedas, a sua partida «habituava precisamente largas camadas da populagáo a mani pular o numerário e a assinar contratos financeiros, sobre tudo sob a forma de caugdes» (L. Musset). 184
O segundo exemplo é o da poderosa abadia de Cluny. Por volta de 1080, o mosteiro e todos os que ali vivem estáo ainda mergulhados na «economia tradicional». A produgáo dos bens ecle siásticos satisfaz a maior parte das necessidades em víveres dos trezentos monges, dos seus servidores e pensionistas e dos indi gentes que socorriam. As compras ao exterior (como os panos e as especiarias) sáo pagas com as moedas provenientes das reservas senhoriais e das rendas pagas pelos foreiros. Ora, entre 1080 e 1120, Cluny beneficiou «de novos recursos em moeda, estranhos ao dominio e que, aumentando sempre, iam... alterar de cima a baixo a economia da casa» (G. Duby). A sua irradiagáo espiritual, particularmente brilhante no Sul da Franga, na Espanha cristá e em Itália, valia-lhe entáo um «acréscimo de lucros»: constituida a ordem, a casa máe exigía das suas filiáis algumas prestagoes anuais em dinheiro. Apesar de modestas, estas prestagoes eram pagas por numerosas comunidades dependentes: só por si, os 15 priorados da Provenga pagavam no total perto de 50 lb. Entretanto, as esmolas em numerario iam afluindo: G. Duby calculou que só o donativo anual dos reis espanhóis proporcionava ao camareiro de Cluny um volume de ouro que vaha pelo menos 400 lb. clunisianas, ou seja, muito mais do que todas as receitas senhoriais. Os monges dividiram este acréscimo dos recursos metá licos em duas partes. Uma foi investida e transformada em capitais congelados (vasos e ornamentos sagrados, molduras e relicários...) ou em térras: comprando ou fazendo em préstimos sob penhora aos cavaleiros vizinhos desejosos de levar moedas para as Cruzadas, o mosteiro aumentou os seus bens (perto de 1000 lb. entre 1090 e 1110). A se gunda parte, a mais importante, das moedas e metáis pre ciosos náo foi capitalizada: «Mais vale», dizia o abade Hugues, «gastar o ouro e a prata do que guardá-los intactos e rutilantes.» O santuário foi consideravelmente embelezado, o que obrigou a pagar e alimentar muitos empreiteiros e, portanto, a comprar muito mais artigos no exterior do que antigamente. Em 1122, Cluny já só extraía das suas térras um quarto da sua subsisténcia e comprava anual mente vinho e cereais no valor de mais de 20 000 soldos. Dominados pela preocupagáo de aumentar os lucros em dinheiro dos senhorios, os deóes passaram a aceitar con verter em denários certos servigos em trabalho devidos pelos dependentes. «Numa geragáo, a comunidade de Cluny trocou a economia dominial pela economia monetária»: tal vez o património fosse gerido com mais negligéncia, mas decerto as necessidades tinham aumentado, revelando-se os consumidores mais exigentes e mais numerosos. No inicio do século XII, Cluny espalha em seu redor os metáis preciosos — o próprio ouro árabe, por intermédio dos cristáos de Espanha — que recolhe em todo o Sul do Ocidente: este foi «um dos múltiplos canais através dos quais o metal amarelo foi introduzido no débil circuito monetário da Franga continental». A aristocracia fundiária é 185
quem tira proveito: vendendo as térras ou contraindo em préstimos, os cavaleiros recolhem as moedas e dáo, nos seus recursos, um lugar mais importante ao numerário, habituando-se, tal como os monges, a maiores despesas e mais luxo. Entretanto, o aumento das necessidades da co munidade leva os camponeses a estimular a sua produjáo agrícola, o que lhes permite receber todos os anos uma parte dos 20 mil soldos clunisianos que a abadia gastava, tendo também a possibilidade de se empregarem nos esta leiros de construyo. Contudo, esta acelerado das transacfóes comerciáis, suscitada por Cluny, é ainda mais proveitosa para os mercadores, atraídos em maior número pela crescente amplitude das compras. E o pequeño burgo rural de Cluny, originalmente afastado dos grandes itinerários, torna-se uma cidade povoada por comerciantes e para a qual converge «o circuito monetário percorrido por todo o meio rural». Mas náo generalizemos. Apesar de, no inicio do século XII, o dinheiro circular por mil canais em certas provincias, outras houve que foram menos favorecidas, como a Alta Provenga, onde, ainda por volta de 1300, o gado continuava a ser a única riqueza mobiliária dos montanheses. O certo é que, na maioria das regiSes da Franja, a fortiori em Itália, a nojáo de instabilidade da moeda despertou na segunda metade do século XI, e mais cedo na Aquitánia do que nos vales do Saóne e do Ródano. A maior sensibilidade ás variajóes do numerário verifica-se porque dele se faz um maior uso. As trocas parecem ter-se desenvolvido mais depressa do que se acelerava a circulajáo da moeda ou se intensificava a sua cunhagem. Até 1075, em toda a Europa meridional, os prejos estipulados em dinheiro sáo correntemente reproduzidos nos actos escritos pelo dobro do seu equivalente em gado ou em géneros. Mais tarde, esta prática enfraqueceu, desaparecendo por volta de 1140. Que se passava entáo com as oficinas monetarias e com as suas emissóes? Inicialmente, as oficinas multiplicaram-se nos sectores pior equi pados, como a Germánia de além Reno, onde os imperadores saxóes e sálios criaram muitas. Fora da Alemanha e também da Inglaterra, onde os reis chegaram a reter ou a recuperar, em certa medida, o direito de cunhar moeda, os pequeños e grandes feudais, as igrejas e por vezes as cidades apoderaram-se deste di reito, entre a segunda metade do século IX e o século XII. Havia quase tantas espécies de moedas como feudos nomeados pela alta justija. Daqui resultava uma incrível desordem ñas moedas «feu dais», o que explica o hábito adquirido em Franja, entre 1050 e 1100, de distinguir ñas actas as moedas emitidas por esta ou aquela oficina e de precisar a natureza das moedas exigidas para determinado acordo. Pela mesma razáo, surgiu um sentimento de 186
A
instabilidade monetária: na ausencia de qualquer controlo superior, as moedas eram alteradas mais ou menos segundo os lugares e os senhores. Sob a pressáo de uma maior procura, as antigas oficinas e as novas foram incitadas a emitir mais moedas a partir do século XI. Para isso era necessário dispor-se de um stock metálico superior ao do passado, a menos que se recorresse a lamentáveis «mani p ulares». Mas o stock de metáis preciosos tinha precisamente aumentado, e de várias formas. Antes de mais, fora enriquecido com moedas provenientes de países náo ocidentais (árabes ou bizan tinos) e canalizadas para o Ocidente mais exportador do que impor tador: Veneza, Génova e Pisa trouxeram assim metal precioso para a Europa latina. As Cruzadas desempenharam o mesmo papel, quer porque os «Francos» langaram a máo a «tesouros» (por exemplo, na quarta cruzada, o saque de Constantinopla, caso tardío e extremo), quer porque deram um novo impulso ao comér cio entre as duas metades do Mediterráneo. Mas as Cruzadas e o comércio foram apenas alguns meios entre outros (caso da Normandia e de Cluny). Pelo menos relativamente á prata, o stock metálico aumentou também, gragas ás minas. A partir da segunda metade do século X, foram descobertos muitos jazigos na Germánia, em especial os de cobre e prata do Rammelsberg que, no Harz, domina a cidade de Goslar. Mais tarde, nos séculos XI e XII, o trabalho das minas adquiriu maior importáncia: minas já antes conhecidas foram reabertas, outras novas foram exploradas nos Alpes orientáis, no Harz, nos Vosgos e no Jura. Eram minas de chumbo, cobre, prata e, em menos casos, de algum ouro. E os progressos intensificaram-se, comegando o primeiro grande período da história mineira do Ocidente com a descoberta, em 1170, dos ricos filóes argentíferos de Freiberg, no Saxe (J.-U. Nef). Houve, portanto, um recrudescimento da extracgáo do metal precioso, ainda que limitado devido ás técnicas antiquadas, que se limitavam, como na primeira Idade Média, a uma raspagem superficial, explorando-se apenas os filóes á flor da térra (quer em relagáo á prata como aos outros minerais), o que denota um serio recuo em relagáo ás técnicas romanas. E, finalmente, até ao século XIII, que assinalará alguns progressos, a extracgáo de metal precioso representou um papel mais restrito do que o comércio ou as guerras no aumento do stock, que o enriquecimento dos «tesouros» das igrejas náo anulou. Mas mesmo este aumento só se produziu depois do «arran que» das actividades terciárias, do negocio. Na origem do recru descimento monetário encontra-se, portanto, um outro fenómeno: a mais rápida circulagáo do numerário pode compensar parcial mente, no inicio e posteriormente, a insuficiencia do entesouramento metálico. Sabe-se, através da fórmula de Fischer (cf. p. 60), que a actividade de trocas é fungáo simultánea do stock metálico 187
e da sua velocidade de circulajáo. A longa depressáo monetaria da época precedente pode chegar ao seu termo devido ao simples facto de a mobilidade da moeda se tornar mais viva. E a partir da segunda metade do século XII, um certo grau de inflajáo, assinalado anteriormente e devido ás manipulajóes dos senhores cujas oficinas emitiam moedas cada vez mais «negras», jogou evidente mente no mesmo sentido. A apropriajáo do direito de cunhar moeda por parte dos senho re s— altos justiceiros — náo deixou de ter péssimos efeitos a partir do século XI: este facto é fácil de verificar comparando a situajáo do continente com a de Inglaterra, poupada ao flagelo. «Quanto mais indispensável se tornava a moeda para a vida económica, mais ela era alterada pelos que detinham o monopólio da sua cunhagem» (H. Pirenne). Era no interesse do seu tesouro e náo no do negócio que frequentemente os príncipes emitiam moedas. Multiplicavam-se as emissóes, recolhendo as moedas ás oficinas a fim de serem refundidas em pior qualidade do que antes da recolha, por vezes. várias vezes por ano. É um facto que a acjáo das cidades foi benéfica e que, na Flandres e na Renánia, estas souberam enfrentar os expedientes dos grandes senhores, limitando os seus abusos mais graves. E ainda que os senhores que cunhavam moeda nem sempre tenham caído com demasiada frequéncia em expedientes, o elevado número das moedas tornava-as demasiado diversas. Por sorte, dois elementos impediram que a anarquía fosse quase completa em toda a Europa Ocidental (’)• O primeiro foi a manutenjáo do sistema carolíngio dos denários, cunhados pelas oficinas, tal como as moedas divisionárias, a mealha (meio denário) e o píete (um quarto de dená rio); o soldo e a libra continuaram a ser apenas unidades de conta, náo materializadas em moedas, que náo passavam de «simples expressóes numéricas». O segundo elemento que obstou um pouco á anarquía monetária foi o facto dos denários serem sempre cunhados numa liga de prata cujo quilate (título) era conhecido, o que permitía comparar os denários entre si. Mas cada senhor fixa o valor das suas moedas em funjáo de uma moeda de conta, unidade que nada tem de ideal mas sempre relacionada, mais ou menos directamente, á prata-metal. Esta moeda de conta varia conforme as regiSes, ainda que em todas elas se chame soldo ou libra. Por isso, a partir do século XI, precisava-se nos contratos de que libras ou denários se tratava.
í 1) Salvo talvez na Alemanha, onde desde os cornetos do século X I se introduziram um peso e uma unidade monetária diferentes da lb., o marco de prata de 218 g, aparentemente originário da Escandinávia e que deu origem a outros marcos, dos quais o mais célebre foi o de Colónia.
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As somas a que nos referimos, por exemplo a propósito de Cluny, foram expressas em libras clunisianas, embora houvesse muitas outras, como a libra de Provins, em Cham pagne, a libra de Tour (lb. t.) ou a libra parisis em Paris (lb. p.). E quando, em 1205, Filipe Augusto agregou Touraine ao dominio real e introduziu em Paris e noutros pontos a lb. t., foi preciso estabelecer uma relagáo fixa (que se irá manter através dos séculos) entre as duas moedas de conta: 12 d. p. = 15 d. t. 20 s. p. = 25 s. t. (o de Tours valia apenas 4/5 do parisis) ou 1 lb. p. = 25 s. t. Mais tarde, Sáo Luís tentará, náo sem resultados, trans formar o sistema de Tours em sistema oficial do reino. Contudo, o parisis só iria desaparecer completamente no reinado de Luis XIV! Por conseguinte, tanto ñas regióes do Norte como ñas do Sul iriam, de uma maneira ou de outra, manter-se vários sistemas. Mas uma nova compli c a d o ia surgir, na Flandres, em fináis do século XIII, onde comegaram a cunhar-se novas moedas chamadas denários brancos ou gros, cada um com um valor de cámbio de ls. p. A nova moeda de base, o gros, dá origem a um novo sistema monetário de conta, em que cada unidade (soldo de gros ou libra de gros) vale 12 vezes mais do que o seu homólogo parisis. Em Inglaterra, em contrapartida, nada disto se passa: os reis tinham de defender a unidade dos signos monetários, reais e de conta. Henrique II, Plantageneta, instauraría a libra esterlina, subdividida segundo o modelo carolíngio em 20 shillings (xelim), equivalendo cada shilling a 12 pence: o penny era a moeda de prata, logo a moeda real, e equivalía em peso a 32 gráos de trigo. Em que medida poderá esta multiplicidade de moedas perturbar as transacgóes? Confrontemos mais uma vez duas espécies de comer cio, o a curta ou média distancia e o com maior raio de acgáo. Em relagáo á primeira, náo há dificuldade de maior: cada sistema possui «uma zona de difusáo que lhe é própria», determinada náo pelo acaso mas pela actividade económica de uma regiáo que gravite em torno de uma cidade. A geografía dos sistemas mone tários, que continua por fazer, seria uma geografía dos espagos económicos regionais. Mas no segundo tipo de comércio, de maior raio de acgáo, a abundáncia de tipos de moeda chegou a perturbar os negociantes. Isto explica o aparecimento de um novo tipo de oficio, o de cambista, por certo quase ignorado na Alta Idade Média. Para fixar uma tabela de cámbio, os cambistas tiveram de estabelecer toda uma hierarquia dos denários (J. Imbert), tendo em conta, para o efeito, os locáis e as datas de emissáo e procurando calcular o valor de cada moeda sobretudo em fungáo do peso de metal puro que ela continha. Mais tarde ou mais cedo, os poderes reais ou dos príncipes, uma vez consolidados, iriam lutar contra esta proliferagáo de 189
moedas diferentes e contra a «má moeda», emitida por algumas oficinas senhoriais, e que continha muito pouco metal precioso em relajáo a outras. No reino de F ranja, foi S. Luís quem se dedicou, náo sem sucesso, á obra de clarificajáo e saneamento. Animado por intenjóes moráis e religiosas, S. Luís considerava o fabrico de «má moeda» um pecado. É conhecida a des ventura do conde de Angouléme que depreciara a sua moeda (ou seja, enfraquecera) para pagar mais fácilmente aos seus credores: a «depreciajao» que pode ser uma inflajáo, permite, tal como ela, que os devedores se libertem mais fácilmente das suas dividas. A Curia Regis obrigou este vassalo a indemnizar os seus credores pelo prejuízo causado. Foi um golpe severo desferido contra a autonomía das oficinas monetárias náo reais! Mais tarde, a ordenanza de 1262 impós, em todo o reino, um cámbio legal para a moeda do rei: as moedas dos vassalos só podiam circular ñas térras do vassalo que as mandara cunhar. Outras me didas restritivas foram tomadas seguidamente pelos sobe ranos, entre o final do reinado de S. Luís e 1328. O próprio S. Luís interditou a imitajáo de moedas reais (de melhor auilate do que as outras), vendo-se o seu irmáo, Afonso de Poitiers, que emitirá moedas de um tipo análogo, constrangido a modificá-las. E, para se chegar a uma lenta mas inexorável extinjáo da cunhagem «privada», decidiu-se que as oficinas que se mantinham náo poderiam emitir pejas novas, ficando estabelecido que náo seria concedido aos vassalos qualquer novo direito de cunhar moeda. O nú mero das oficinas senhoriais de F ranja, que no inicio do século XII rondava as tres centenas, ficou reduzido a menos de uma centena no fim do reinado de S. Luís, e, em 1315, apenas a trinta. A maior parte destas trinta que haviam escapado foram posteriormente recatadas ou su primidas pelos monarcas. E, por volta de 1500, pode dizer-se que «toda a moeda em F ranja é real» (J. Imbert). Salvo algumas excepjoes, como a Flandres, que conservava a sua moeda gros: mesmo guando ainda eram vassalos do castelo do Louvre, os condes souberam tornear a proibijáo real, mandando cunhar a sua moeda, a partir de 1337, ñas suas térras dependentes do império e náo do reino. No tempo dos Carolíngios o poder de compra dos denários era elevado (cf. p. 59X Mas os séculos nassaram, gastando a moeda em todas as acepjoes da palavra. Mesmo sem inflajáo, mesmo em períodos de grande depressáo, o poder de compra de cada moeda vai diminuindo pouco a pouco. Assim, nos séculos XI-XII e a fortiori no século XIII, o denário perderá uma parte do seu poder de compra (parte que infelizmente náo se pode medir), en quanto as trocas aumentavam de volume e de velocidade. Estes sáo dois motivos aue exnlicam a necessidade one se sentia de. mais tarde ou mais cedo, cunhar moedas de poder libera+ório mais forte. A operajáo efectuou-se em geral no século XIII, século do 190
zénite da actividade medieval. E foi, evidentemente, a opulenta Veneza que, em 1200, desferiu o golpe: náo se tratava de aban donar o sistema carolíngio mas antes de fazer com que o soldo, até ai simples moeda de conta, se transformasse de uma vez por todas em moeda real. O matapan ou gros representa um soldo e coloca o denário na categoría de moeda divisionária. Foi quase simultáneamente que surgiu em Inglaterra a esterlina, denário re forzado. Um pouco mais tarde, ainda antes de 1240, Florenga seguiu Veneza, o mesmo se passando em 1266 com a Franga de S. Luís, soberano que teve um papel de primeira grandeza na própria história monetária do país. O soldo chamado gros, ou apenas soldo de Tours, era, á data da sua criagáo, uma moeda com 4,22 g de peso, do qual aproximadamente 4 g eram prata, enquanto o denário continha apenas 1/12 desse peso de metal precioso (0,36 gramas numa moeda com um peso total de 1,11 g). Como moeda de conta, este gros valia 1 s. p., ou ainda 12 d. t. Foi também no século XIII que no Ocidente se recomegou a cunhar ouro. A Europa «latina» que, havia muito, vivia em regime de monometalismo prata, ia pois voltar, como no tempo do império romano e no inicio da época dos bárbaros, ao bimetalismo ouro-prata: este facto foi por vezes negado e, contudo, ainda que durante muito tempo se tivessem cunhado poucas moedas de ouro (salvo em Itália), houve de facto bimetalismo, uma vez que, a partir de entáo, as moedas de ouro indígenas ou estrangeiras foram utilizadas nos grandes pagamentos. O grande problema da circulagáo das moedas de ouro, bizan tinas e árabes (hyperpéres, marabotins, bezants...), náo foi resolvido. Mas é certo que estas moedas estrangeiras circulavam em grande número desde o renascimento comercial que enriquecía o Ocidente á custa de outros mundos: na Europa, elas chegaram a dar origem a contrafaccóes devidas á iniciativa deste ou daquele príncipe. Apesar de, durante muito tempo, as moedas de ouro terem sido entesouradas, náo abandonando os tesouros religiosos e laicos senáo a título excepcional e para os pagamentos importantes depois de 1230, elas comegaram a circular mais intensamente. Consequentemente, o recomego da cunhagem do ouro no Ocidente seria menos uma revolugáo do que o reconhecimento de um facto e de uma necessidade. E náo devemos espantar-nos por ver esta cunhagem recomegar primeiro em Itália, onde, em consequéncia da longa sobrevivencia das possessóes bizantinas, o ouro moeda náo desaparecera como noutros locáis, tanto mais que os lagos econó micos com as regióes de moeda de ouro (Bizáncio e o Isláo) sempre foram mantidas até assumirem um grande desenvolvimento. E foi justamente um siciliano, nascido portanto na encruzilhada das diver sas economías da época, quem retomou a tradigáo da cunhagem do ouro: o imperador Frederico II emitiu em 1231, no seu reino 191
da Sicilia, os augustales, que foram as mais belas moedas de ouro medievais. A sua difusáo limitou-se contudo á Itália do Sul, surgindo Frederico II como um precursor, com grande avanjo sobre a sua época, tanto neste dominio como em outros. Só vinte e um anos depois, Florenja emitiu os seus primeiros florins. O fiorino d ’oro ia buscar o seu nome á flor-de-lis, emblema da cidade representado ñas moedas. No mesmo ano, Génova cunhava os seus primeiros genoveses. Desta vez, estava aberta a porta «á expansáo do numerário de ouro no Ocidente» (H. Pirenne). Entretanto, curiosamente, Veneza esperou pelo ano 1248 para cunhar os primeiros ducados ou sequins. O ducado era uma réplica do florim, pesando uma e outra 3,5 g; mas destas duas moedas, o ducado iria revelar-se a mais activa, assumindo um ascendente crescente sobre o florim, primeiro no Mediterráneo Oriental, depois em toda a Europa. De qualquer modo, ambas correspondiam em principio ao valor de uma libra de gros em prata. Este facto teve duas consequéncias: a lb., tal como o soldo, já náo era apenas uma moeda de conta mas uma moeda real. E, como a lb. de gros de prata — cujo peso de metal puro era fixado — correspondía a um ducado ou a um florim de ouro, a relajáo entre ouro e prata — ponto sempre delicado em regime de bimetalismo — era também fixada. É necessário sublinhar que as mudanzas interiores (isto é, as relajdes de valor entre moedas de ouro e moedas de prata) iriam sofrer posteriormente alterajdes notáveis: subida notória do ouro entre 1250 e 1320, estabilidade entre 1320 e 1400, depois nova e muito forte subida do ouro entre 1400 e 1450. É possível que estas variajóes se devam á crescente necessidade de meios de paga mento, ainda que esta explicajáo seja certamente insuficiente. O Ocidente, no seu conjunto, adaptou-se bastante Tapidamente ao exemplo italiano, e mais depressa em relajáo ás moedas de ouro do que aos gros de prata. Para Pirenne, trata-se de um sinal evi dente do «progresso crescente das relajoes comerciáis» neste século XIII. A partir de 1266, ano em que criara o gros de prata (com um atraso de várias dezenas de anos sobre a Itália), S. Luís emitiu os seus escudos de ouro (cria-se quase por toda a parte o hábito de atribuir a cada peja um nome relacionado com a figura do anverso ou do reverso), a que também se chamou denários de ouro: este último termo presta-se a confusáo, mas lembra o tempo em que o denário era, com os seus submúltiplos, a única moeda em circulajáo. O sucesso destes escudos náo foi fulgurante, tendo mesmo de se interromper a sua cunhagem bastante depressa. As emissóes de moedas de ouro tornaram-se, contudo, um pouco mais intensas no tempo dos primeiros sucessores de S. Luís. E a F ranja foi assim o primeiro país náo italiano a ter a sua própria 192
moeda de ouro, indicio da riqueza e do poder do reino que atingia o seu apogeu. Porque a tentativa de Henrique III, Plantageneta, de imitar o escudo capetiano náo surtiu efeito. Eis algumas datas conhecidas do inicio da cunhagem do ouro nos países do Ocidente, além da Itália e da Franga: — na Boémia: 1325; — em Castela: reinado de Afonso X I (1312-1350); — em Inglaterra (depois da tentativa abortada de Hen rique III): 1344 (emissáo de florins de ouro por Eduardo III); — nos principados dos Países Baixos: Brabante: no tempo de Joáo III (1312-1355); Flandres (viu-se que, do ponto de vista monetário, o condado é independente do reino de Franga, aínda que seja feudo móvel de París): no tempo de Louis de Nevers (antes de 1377); Bispado de Liége: entre 1345 e 1364; Holanda: no tempo de Guilherme V (1346-1389)... (ainda náo se explicou cabalmente o motivo por que o pólo económico dos Países Baixos se atrasou tanto em relagáo á Franga). A cunhagem de moedas — de ouro ou prata — com mais forte poder de compra do que os antigos denários náo teve qualquer efeito sobre aquilo a que se chama, de um modo talvez um pouco simplista, os abusos da circulagáo monetária, a alteragáo das moedas e a fixagáo arbitraria de cambios «oficiáis», diferentes dos cambios reais. É certo que, até ao fim da época medieval, o valor das moedas descreveu uma curva em geral descendente, que náo se deve apenas á usura fatal de qualquer moeda. Efectuaram-se frequentes alteragoes monetárias, sendo as moedas depreciadas a fim de serem enfraquecidas (caso mais frequente) ou serem submetidas a um acrés cimo de valor. Testemunha-o o caso da Franga: desvaloriza-se vá rias vezes seguidas e a intervalos cada vez mais curtos, para depois se reavaliar enquanto se espera a próxima sequéncia de desvalorizagóes. A depreciagáo (recolha das pegas em circulagáo seguida da emissáo de novas moedas de valor diferente) náo era, aliás, sequer necessária: bastava que se fixasse um cámbio oficial mais alto ou mais baixo, exprimindo em moeda de conta o valor libe ratorio de cada pega. É preciso, pois, saber como era fixado o valor da moeda, no qual podiam entrar em jogo tres elementos: a talha, o quilate e o cámbio. Comecemos pela talha. A oficina monetária comprava os lingotes de metal precioso a um cámbio fixado pelo rei, pelo príncipe ou até pela cidade. O lingote é avaliado numa medida de peso especial (o marco de Troyes, usado no reino de Franga, inclusive na Flan dres, pesava 245 g). A autoridade monetária fixa o número de 193
moedas de um certo tipo que se talhará de um marco, a talha é, pois, a quantidade de moedas cunhadas com o metal precioso de um marco com o quilate fixado pela ordenanza monetária em vigor OO quilate é a concentrado em metal, a proporjáo de prata ou de ouro que entra na liga da qual é feito o marco (2). O valor de cámbio é, como já referimos, a fixafáo do valor, expresso em moeda de conta, de cada moeda em circulado OSendo cada moeda uma mercadoria com um valor intrínseco, pelo facto de conter metal precioso, poderia o cámbio legal ser arbitrário ou, pelo contrário, deveria ter em conta o valor comer cial? Fixando-se uma taxa demasiado arbitraria, náo havia que esperar qualquer hipótese de sucesso: de cada vez que os reis e os príncipes o tentaram, viram-se obrigados a enfrentar os efeitos da lei dita de Gresham. Esta lei fora erradamente atribuida a Gresham, financeiro inglés do tempo de Isabel I, mas de facto já fora exposta com clareza por Nicolás Oresme, conselheiro de Carlos V. Na sua versáo mais popular, diz o seguinte: «A má moeda escorraga a boa.» Quando duas moedas, ligadas por uma re la d o de troca legal, circulam conjuntamente numa regiáo, a que é tida por me lhor — na sequéncia de uma apreciado do seu valor comercial — tende a desaparecer. A boa moeda (as moedas estrangeiras, por exemplo) é, com efeito, entesourada (neste caso diz-se que se esconde), utilizada para pagamentos ao exterior, ou ainda fundida e vendida pelos particulares á Casa da Moeda em troca de exemplares de «má moeda» emitida pelo príncipe em dificuldades, das quais
0 ) Assim, a 25 de Novembro de 1356, o conde da Flandres, Louis de Male, autoriza o seu ministro da Moeda — um florentino — a cunhar um denário branco, que será de 5 s. 9 d. de talha, num marco de Troyes. Ou seja, num marco talhar-se-iam 5 s. 9 d., portanto, 69 denários: o denário branco (que é um gros ao cámbio legal de 12 d. de conta) pesaría assim 1/69 do marco de prata de lei, ou seja, 3,55 g de metal precioso. (J) Na sua ordenanza de 1356, Louis de Male decidiu que o denário branco seria de «6 d. e 4 graos de quilate de prata de lei». Hoje, avalia-se a concen trad o de uma liga em milésimos: uma liga de 950/1000 de prata é uma liga cujo conteúdo em metal puro é muito elevado, posto que é de 19/20. Mas na Idade Média avaliava-se a liga em denários, sendo cada denário subdividido em 24 graos: uma liga com 9 d. era portanto uma liga de 750/1000. Em 1356, 6 d. 4 graos o quilate do marco de prata no qual se iam talhar 69 gros era de: ------------------37 12 d. = — de pureza, ou seja, uma concentracao pouco superior a 500/1000. O peso de prata pura contida num denário branco ia ser, pois, de 1,82 g (37/72 de 3,55 g). (3) Louis de Male fixava o cámbio legal do denário branco em 12 d. p-, baseando-se no antigo sistema de conta parisis (quando já nem sequer havia denários parisis em circulagao na Flandres do século XIV), e nao no novo sistema de conta flamengo (lb., s. e d. de gros).
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se recebe um maior número. Quando uma moeda era subavaliada em relagáo á moedas entáo emitidas pela autoridade monetária, desaparecía da circulagáo ou passava a circular ao cámbio do mer cado, superior ao cámbio oficial. A avaliagáo oficial tinha portanto que ter em conta, simultaneamente, o prego e o peso do ouro contido na moeda, e o prego e o peso da prata incluida na moeda de referencia (aqui o gros) e a relagáo (náo imutável, mas fixada no mercado) entre o valor do ouro e o da prata. É verdade que a existencia do direito do senhorio concedía ás autoridades monetárias uma certa margem para a fixagáo dos valores oficiáis. Com efeito, havia uma diferenga obrigatória entre o prego de compra do metal precioso pela Casa da Moeda e o seu prego de venda sob a forma de moeda, diferenga que se destinava a cobrir as despesas de cunhagem e sobretudo a fazer recair sobre os utentes a taxa de senhorio, cobrada por qual quer detentor do direito de cunhar moeda 0). É bastante fácil avahar a evolugáo das moedas de prata da Flandres, desde os tempos de Louis de Male até aos do Temerario. Apesar de algumas reavaliagoes realizadas como tentativa de fazer inverter a corrente, náo se pode ou náo se quis fazer nada real mente sério contra a depreciagáo da moeda, especialmente rápida no século XIV. A erosáo foi muito acentuada: de 4,22 g em 1317, o peso em prata de lei do gros caiu para 1,82 g em 1356, 1,01 g em 1383, 0,71 g em 1467 e 0,64 g em 1480. Precisando-se que o peso de metal precioso contido nos múltiplos e nos submúltiplos do gros náo seria exactamente proporcional ao seu valor nominal: a moeda negra (submúltiplos da unidade monetária), em proporgáo, contém sempre menos metal puro, vindo daí o seu qualificativo. Na Idade Média (e ainda na época moderna), existiam tres processos de desvalorizagáo e depreciagáo, que podiam combinar-se ou náo (J. Imbert): a) mutaüo in materia ou in proportione: efectuava-se diminuindo o peso de ouro ou prata fina contido na unidade monetária, reduzindo assim o pé das moedas (ou seja, o quilate). Isto impunha
(') Assim, a ordenanza de Louis de Male decidía, em 1356, que os mercadores que vendessem prata/metal á Casa da Moeda receberiam por cada marco de prata de lei a 23/24 de pureza, 118 gros. Ora, com a prata de um marco do mesmo quilate iam ser cunhados 134 gros, uma vez que se talhariam 69 num marco de 37/77 de pureza: 72 69 X — = 134. 37 Neste preciso caso, as despesas de cunhagem e o direito de senhorio, somados, 16 elevam-se portanto a 134 — 118 = 16 gros, ou seja, a mais de 14% (------).
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uma subida do prejo do marco de prata ou de ouro de lei, pago pela Casa da Moeda, e uma rápida revisáo do cámbio oficial ao qual se cotavam as moedas náo depreciadas. b) mutatio in pondera', também aqui as moedas eram deprecia das e, portanto, demonetizadas, enquanto as novas, com um cámbio oficial pelo menos igual, iam sofrer uma dim inuido de peso em metal precioso, embora o quilate se mantivesse inalterado. As novas moedas, mais leves em metal puro, eliminariam seguramente as antigas, mais pesadas, que náo tivessem sido entregues á Casa da Moeda, se o valor destas, quando fundidas, fosse superior ao seu próprio valor. Em virtude da lei de Gresham, das antigas moedas, só náo se escondiam aquelas que estavam limadas ou usadas. c) mutatio in appellatione: este último processo, o mais simples, consistía em fazer variar, aumentando-o, apenas o cámbio legal das moedas. Para reforjar, logo para reavaliar a unidade monetária de modo a fazé-la subir, abandonar a moeda fraca e regressar á moeda forte, a autoridade baixava o valor de cámbio em moeda de conta de todas as moedas em circulado. Depreciava as moedas de prata e diminuía o prego pago pela Casa da Moeda, de ai em diante, pelo metal precioso em bruto. Mas durante algum tempo, até á emissáo suficientemente importante das novas moedas fortes, a actividade económica ia sofrer de uma insuficiencia de signos monetários. Mas náo era este o aspecto mais grave das alternáncias mais ou menos próximas de inflajáo e deflajáo. Os efeitos da inflado sáo demasiado conhecidos: subida do custo de vida, dificuldades para os credores e detentores de lucros fixos... Os da deflajáo podem contudo ser igualmente graves: conflitos sociais devidos á redujáo dos salários — e náo só dos prejos — estabelecidos em moeda de conta; depressáo económica, logo falencias, desemprego, descon tentamente ainda mais generalizado do que por vezes em tempo de inflado. A opiniáo pública qualificou certos soberanos de falsos moedeiros. Em especial, Filipe o Belo que, com as suas alterajóes de moeda, conquistou uma má reputado (mais ainda, é certo, entre os historiadores do que entre os seus contemporáneos). Foi apresentado «falsificando» moedas a fim de aumentar os seus lucros e reduzir as dividas. É certo que o lucro da moedagem náo é de desdenhar e, multiplicar as emissóes, aumentando os direitos de se nhorio, podia com efeito constituir um meio de encher os cofres reais. Mas quando se afirma que os soberanos decidiam as mutajoes em funjáo das suas fortunas, dos seus créditos ou das suas dividas, nem sempre se está dentro da verdade: para um príncipe, que nunca era um grande credor, reforjar a moeda a fim de consolidar os seus créditos náo era uma medida assim táo útil. E enfraquecé-la para valorizar o tesouro ou diminuir as dividas também o náo era,
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dado que os tesouros reais eram reduzidos em moedas e, além do mais, havia outros meios de pressáo a exercer sobre os credores mais diffceis (expulsáo e confisco dos bens dos Judeus ou dos Lom bardos). Portanto, se Filipe o Belo e os soberanos seus contemporá neos se langaram na prática das alteragóes monetárias foi por dois outros motivos, cuja natureza era, pelo menos em parte, «econó mica». Antes de mais, o ajustamento das moedas representou, mais do que uma vez, uma coacgáo á desvalorizado. Se uma regiáo de moeda forte é vizinha de outra de moeda fraca e, apesar da ritual interdigan de exportar metal precioso e moedas, as fortes da pri meira sáo atraídas para as oficinas monetárias da segunda, que as paga a bom prego, a segunda vé afluir o metal precioso da primeira, o que constituí uma das vantagens da moeda fraca. Esta é impor tada pela primeira regiáo e trocada por moedas fortes, o que cor responde a dizer que a lei de Gresham tem por efeito o desaparecimento quase completo, da regiáo de moeda forte, das suas próprias moedas, em proveito das moedas fracas da outra. Ora, justa mente no tempo de Filipe o Belo, tinham surgido no Ocidente núcleos de má moeda e este rei de Franga apenas cumpria o seu dever tentando defender-se deles: em 1287 ou 1288, o ministro da Moeda, um lombardo, pós o rei em guarda, demonstrando-lhe que as mutagóes se «exportavam». Para fazer face á substituigáo par cial, no reino, da boa moeda local pela má moeda estrangeira e ao atraso da cunhagem ñas oficinas de Franga — posto que havia uma fuga do metal francés para as zonas de moeda depreciada — apenas restava enfraquecer as moedas francesas, ajustando-as ás estrangeiras. No fim do século XIII, o segundo motivo, a influéncia do numerário, actuou no mesmo sentido. Apesar de, em meados deste século, ter havido um afluxo moderado de metáis preciosos — o que permitirá a emissáo de moedas de maior valor em ouro ou em p ra ta—, o stock parece ter sido depois pior alimentado ou, o que vem a dar ao mesmo, ter aumentado mais lentamente do que o volume dos produtos comercializados. O crescimento da produ gáo, sobretudo artesanal, e o aumento das trocas, inicialmente promovidas pelo aumento da circulagáo monetária e depois pertur badas pelo seu abrandamento, acabavam assim por repercutir-se sobre as políticas monetárias. Tanto mais que, aparentemente, o progresso das importagoes do Ocidente (especiarias, alúmen, objectos de luxo...) teria sido maior do que o das exportagdes para o Oriente, facto que se verificava porque os lucros e, consequentemente, o consumo, beneficiavam de um aumento mais forte numa Europa próspera. Daqui resulta uma diminuigáo dos exce dentes da «balanga comercial» geral do Ocidente e menos entradas de metáis preciosos. As trocas internas chegaram a ter falta de 197
numerário. Houve, escreveu Marc Bloch, uma espécie de «fome monetária», que constituiu uma entrave ao prosseguimento do desenvolvimento económico. Filipe o Belo náo deixava de ter razáo ao invocar a «falta de moeda» para justificar o enfraquecimento monetário numa época em que as técnicas de crédito e da banca ainda náo permitiam aliviar esta «falta» (cf. infra, pp. 275 segs.) A desvalorizado tem como consequéncia evidente o aumento do número de moedas em circulado ou, o que conduz ao mesmo, a subida do seu valor de cámbio oficial. Mas isso correspondía a pór a funcionar a engrenagem do «ciclo infernal»: a subida dos pre gos anulava rápidamente o beneficio extraído da o p erad 0 Pel° tesouro público e pelas trocas. O processo instaurava «as condigóes para um enfraquecimento crónico da moeda: as mutagoes engendravam novas mutagóes» (J. Ibanés). Qualquer reforgo que interrompesse o processo, acabava por constituir apenas um meio de tornar mais lucrativo o próximo enfraquecimento. No entanto, foram de facto opgóes políticas que, especialmente no tempo de Filipe o Belo, conduziram a certas desvalorizagóes. A alterad o de Abril de 1295 verificou-se logo após o pagamento de 260 000 Lb. t. a diversos príncipes estrangeiros e a de Agosto de 1303 justificou-se pelo desejo de obter recursos «extraordinários» para a campanha da Flandres. A política externa, os progressos da relativa «centralizagao» capetiana explicam muito melhor a erosáo monetária no seu conjunto do que as motivagoes «económicas». A Igreja do século XIII, cuja teoria monetária, antiga mas me lhor expressa pelos doutores desse tempo, é conhecida (cf. supra, p. 52), náo podia deixar de apresentar a sua opiniáo em matéria de alteragáo de moedas. Apesar de atribuírem ao príncipe o direito de determinar a moeda, os escolásticos apenas lhe reconhecem o poder de agir em nome de todos e sem decisoes arbitrárias. Antes de mais, o rei nao dispoe de uma grande liberdade para fixar o valor da moeda: é certo que, ao valor intrínseco desta (valor do metal puro que contém), vem acrescentar-se, dizem os teólogos como Sáo Tomás de Aquino, um certo valor extrínseco, uma vez que a sua promogáo monetária confere aos metáis preciosos um acréscimo de valor. A diferenga entre estes dois valores constituí o lucro tirado pelo soberano da sua cunhagem, cabendo-lhe, por outro lado, o encargo de agir no sentido do «bem comum» e da «justiga», através da compra do metal ao seu «justo prego» (prego do mercado). Com mais razáo ainda, o rei vai contra os interesses do bem comum, quando «movimenta» a sua moeda. A propósito da Sicilia, Honorio IV escreveu: «Proibimos a mutagáo frequente das moedas. Cada rei da Sicilia terá o direito de cunhar moedas novas, mas de bom quilate, apenas uma vez no seu reinado.» O que este papa proíbe é a própria frequéncia das cunhagens, mais do que as mutagdes, o que prova bem quanto a mutagáo parece condenável 198
ao clero. Sendo a moeda a medida das medidas, a medida do valor dos bens nao deve sofrer variagóes — escreve Inocencio III — por que, nesse caso, nao haveria certum, justum, legitimum pondus. E, acrescenta Sáo Tomás, a m utajáo faz-se sempre em detrimento do povo. Como todos os grandes teólogos do século XIII, Sáo Tomás sabe que ela altera as condijoes do cálculo económico e que, mesmo quando deixa sem alterad o os prejos relativos, cria uma modifi cado das relagoes sociais que pode ir até á tensáo, como consequéncia das diferenjas de elasticidade entre os lucros. A regra para o soberano é, portanto, «assegurar a estabilidade da unidade de medida do valor das coisas, entendida como uma realidade social fundamental, enquanto unidade do cálculo económico, dos lucros e da riqueza adquirida» (J. Ibanés). No fundo, o valor extrínseco da moeda é muito fraco e os escolásticos ou os teólogos sáo verdadeiros «metalistas» ou quase: o numerário vale exclusivamente o que vale a matéria de que é composto. No século XIV, ainda, romanistas como Bartole levam a concepjáo metalista ao extremo e consideram a moeda apenas uma mercadoria comum, só dotada de um valor intrínseco. Na verdade, o objectivo é exactamente «a permanencia sem modificado da unidade de medida e a considerado de que esta deve orientar» qualquer política monetária. Entretanto, a Igreja náo interditou totalmente a movimentajáo da moeda. Inocencio III e Inocencio IV disseram que o rei podia proceder a uma m utajáo em caso de necessidade e dentro dos limi tes da maior m oderado, doutrina que Sáo Tomás confirmou. Mas o rei nao deve actuar por egoísmo. De qualquer modo, as emissSes devem ser regulamentadas, por forma a serem continuamente pro porcionáis ás necessidades das trocas. Ainda no século XIII, os teólogos procurariam em váo fazer uma análise da moeda enquanto instrumento da «política económica» em geral, tendendo apenas a definir como o bom uso do numerário pode náo perturbar a vida material e náo o concebendo como um meio de agir sobre a econo mia no sentido do desenvolvimento. Durante os séculos XIV e XV, o pensamento religioso náo progrediu muito nem sofreu modifica r e s notáveis quanto a estes problemas, acompanhando segundo parece o das autoridades monetárias.
Os investimentos O subinvestimento, que durava havia longos séculos, acabou depois do ano 1000. Todas as categorías de fontes assim o provam, tanto relativamente ao sector primário, como ao secundário ou terciário. Mas estas fontes foram durante muito tempo indirectas, enquanto náo aparecem contas, senhoriais ou comerciáis, ou mesmo 199
contratos constitutivos de sociedades comerciáis. É relativamente aos sectores artesanais e comerciáis que as fontes directas sáo mais tardías ou em menor número. Contudo, o volume mais importante de signos monetários, a formagáo de fortunas burguesas cada vez mais consideráveis (cf. entre outras, as dos patricios de Arras), ligadas á extensáo acelerada dos assuntos comerciáis e téxteis e mui tos outros indicios ainda, denotam sem dúvida a formagáo de capi tais e de investimentos que certamente pareceram enormes aos ho mens desse tempo. Esses investimentos, por exemplo no artesanato téxtil, que exigia muitos utensilios e máquinas O , ou na construgáo naval, que assumia proporgoes cada vez mais ampias, provinham de duas origens: dos lucros dos negócios que permitiram aos capitais fazer «bola de neve» e dos extraídos da térra pelos grandes explo radores. Esta segunda origem náo pode ser posta em dúvida, espe cialmente nos países mediterránicos, onde os investimentos no comércio náo causavam qualquer repugnancia ao clero ou aos cavaleiros. Em contrapartida, encontramo-nos melhor informados quanto aos investimentos no campo, surgindo as fontes directas a partir do século XIII. A segunda fase dos grandes arroteamentos, a que assistiu ao nascimento de novos terreiros e «vilas novas», náo podia conceber-se sem o contributo de capitais. «Para criar uma nova aldeia, era necessário que o empresário conseguisse dinheiro», escreve G. Duby, que evoca «a atitude especulativa dos senhores que decidiram levantar algum metal precioso dos seus tesouros, a fim de aumentar o número dos seus súbditos e tornar assim mais rendíveis os seus proventos futuros». Verificou-se de facto uma mudanga de mentalidade quer entre os cavaleiros «que se privaram... em parte das alegrías da montaría para assim encherem os seus celeiros», quer entre o clero. A «preocupagáo do lucro e do aumento dos rendi mentos fundiários» de todos os grandes proprietários e a «ideia de lucro» sáo difíceis de datar quanto ao seu aparecimento, mas parecem ter nascido no século XII, século que assistiu precisamente ao maior número de arroteamentos, á criagáo de ¡números polders e á intensificagáo da colonizagáo dos limites da Europa crista. Os senhores eclesiásticos eram decerto os que dispunham de mais capitais e o seu papel foi, portanto, o mais importante. Isto adivinha-se pela leitura dos contratos de pariage, que quase sempre uniam uma casa de religiáo a um senhor laico. O segundo «fornecia a térra e os direitos de ban sobre o espago inculto, o outro... o dinheiro» necessário e as possibilidades, «através da rede de congregagdes e filiáis», de «organizar a publicidade longínqua ñas regides superpovoadas», a fim de recrutar os «hóspedes». Quando eram os (‘) Um ponto de partida da prosperidade flamenga foi, por volta de 1050, a invenfáo e difusáo do tear, na regiáo de Ypres (Ch. Verlinden).
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clérigos que possuíam a térra, caso mais raro, associavam-se a um príncipe, que era o único capaz de fornecer a protecgáo e as imu nidades. Com o senhorio banal (cf. infra, p. 211) surgiram as banalidades: no territorio dos senhorios só podiam existir moinhos, fomos, e, em térras de vinhateiros, lagares... pertencentes ao senhor, detentor do direito de ban. Os camponeses tinham, portanto, de re correr a ele obrigatoriamente, mediante o pagamento de uma taxa que representava respectivamente o salário do moleiro, do padeiro, do guarda do lagar..., e o pagamento das rendas senhoriais. As banalidades sempre tiveram má fama e frequentemente foram qualificadas de «exacfóes», termo tomado na acepgáo mais desfavorável. Contudo, só o senhor dispunha de capitais suficientes para edificar e manter estas construgóes banniers 0), o único «luxo dos campos», que se multiplicaram a partir do século XI, ao mesmo tempo que se aperfeigoavam. Até agora, praticamente só os instrumentos hidráulicos constituíram objecto de sólidos estudos (2)- Gragas a investimentos cada vez mais importantes, o número de moinhos movidos pela forga dos rios, mesmo os mais pequeños, foi sempre aumentando, penetrando em todos os campos. Multiplicaram-se em redor das cidades e até no interior das muralhas — em geral em volta das pontes — para suprir as necessidades dos citadinos. Apesar de Toulouse, que viu a burguesía tomar parte na exploragáo dos grandes moinhos de Bazacle, parecer uma excepgáo, Ruáo, pelo contrário, representa um caso normal. Aqui, a progressáo do número de moinhos urba nos foi a seguinte: de dois moinhos, apenas num quartel atravessado por um ribeiro, no século X, passou-se a sete no século XII, dezassete no século X III e trinta e um no seguinte. Como é frequente, os progressos da técnica e os dos investimentos andavam a par: as velhas mós á romana, movidas a bragos ou puxadas por um cavalo, que os agentes dos senhores proibiam, passaram á categoria de instrumentos dos pobres ou de substituigáo. Aliás, os instrumentos hidráulicos tiveram outras utilizagoes: o «jogo das pás e empeñas» permitiu, a partir do século XII, fabricar cerveja e fazer azeite, servindo também para «animar malhos e batedores». Estes batedores, que se encontram em Dauphiné a partir de meados do século XI para bater as matérias téxteis, iriam, num século, difundir-se por toda a parte. Os martelos hidráulicos e os moinhos de ferro sur gem a partir da primeira metade do século XI na Franga e na Catalunha. (*) Ainda que os camponeses talvez tenham podido associar-se para a construgao de moinhos (R. H. Hilton), o que provocava a ira do senhor. (2) Náo podemos esquecer, por outro lado, o dominio da for?a eólica (apare cimento e difusáo do moinho de vento).
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Os lagares, ñas regioes vitícolas, expandiram-se e aperfeijoaram-se. O seu estudo, ainda por fazer, seria possível através das contabilidades senhoriais a partir do século XIII, pois é geralmente neste século que os senhores comejam a manter uma escrita mais séria das suas contas. Consultemos as da abadia real de Saint-Denis, conserva das relativamente a 1229-1230 e depois a partir dos anos 1280, e aperceber-nos-emos do que era a política de inves timentos de um grande proprietário. Todos os anos, uma quantidade importante de moinhos, fornos e lagares eram reparados, melhorados, ou até completamente reconstrui dos. Assim, em 1288-1289, pelo menos quinze lagares, catorze moinhos e tres fornos foram sujeitos a obras. Estas obras, parciais ou completas, parecem ter sido muito frequentes, o que levar a crer que os monges náo esperavam, caso fosse necessário, que o edificio e os aparelhos estivessem fora de uso. Da Expensa de facturis apenas cerca de 10% eram constituidos por despesas com os edificios banniers; o restante ia para a manutenjáo ou compra de material agrícola e para a rep arad o e construjao de casas. Das receitas brutas tiradas das granjas, 10%, em média, eram ¡mediatamente investidos. Os senhores eclesiásticos náo hesitavam em chegar ao fim do ano em défice: sabiam que as «esmolas» tapariam os buracos, por isso decidiam as reparafoes, as construfñes ou as compras que julgavam indispensáveis, mesmo sabendo de antemáo que o ano de contabilidade seria defidtário. Mas que se passava com os laicos? Náo lhes era permitida, evidentemente, a mesma audácia, salvo aos mais poderosos. Contudo, apesar de os investimentos serem provavelmente menos elevados da parte dos senhorios laicos — as fontes que lhes dizem respeito sáo infinitamente menos ricas—, náo pa rece, no entanto, que tenham sido mediocres, mesmo nos dominios de tamanho médio.
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Capítulo 8
O SECTOR DE ACTIVIDADE PRIMARIA: A ECONOMIA RURAL
Depois de Colin Clark, os economistas adquiriram o hábito de distinguir tres sectores de actividade. Ph. Wolff teve o mérito de aplicar, modificando-a, esta classificagáo á economia medieval. Wolff coloca no sector primário tudo o que diz respeito á produfáo de matérias-primas (agricultura e florestas, minas e pedreiras, pescas e salinas), no sector secundário, a actividade «industrial» (fabrico e transform ado de produtos «manufacturados», construgáo imobiliária e obras públicas), e no sector terciário, os transportes, o comércio, os grandes servidos públicos e a actividade cultural. Pela nossa parte, seguimos esta última classificafáo, um pouco diferente de todas as que nos foram propostas — e é normal — para a economia do nosso tempo. Entre o ano 1000 e o principio do século XIV, os progressos mais decisivos, aqueles que «empurraram» os outros sectores, foram seguramente os do sector primário, que foi portanto o sector motor. A spectos económicos do senhorio
«Na obscuridade do século X e coméeos do XI», o regime dominial havia sido «demolido» pouco a pouco (G. Duby) e tinha dado lugar ao senhorio que, por seu turno, iria posteriormente sofrer transform ares. Existiam várias «espécies de senhorios» e o termo pode entender-se de diversas formas, visto que cada senhorio teve vários aspectos. Os dois principáis interessam ao historiador da economia: o senhorio é, por um lado, um grande dominio, herdeiro, quanto ao essencial, da villa ñas regióes carolíngias, sendo a sua base territorial, bem como a daquela, dividida em duas (reserva e tenures). Por outro lado, ele é também um poder de explorado económica. A continuidade da evolufáo é muitas vezes difícil de 203
observar devido á raridade das fontes escritas do século X e de até pelo menos meados do século XII: foi através de investigares extremamente pacientes que os extractos sucessivos desta evoiufao puderam ser postos em evidencia, e apenas relativamente a algumas provincias como a Lorena (Ch.-Ed. Perrin). Efectivamente, só para algumas regioes se conservou o texto de polípticos, retocados ao longo dos anos. Felizmente, a prática de inquéritos e de inventarios (censuáis;, que elaboravam a lista dos foreiros, das suas possessóes e das suas obngajóes, mantida viva ñas casas de reiigiáo e uuroduzida em Inglaterra, foi cada vez mais seguida, e os documentos muitipiicaram-se, a partir de meados e fináis do século X li.
O senhorio fundiário É lógico comejar por considerar a base territorial do senhorio e a sua evolufá°, bem como a das relafóes entre a reserva e as tenures camponesas. Qual foi a extensáo do senhorio considerado como um todo, qual foi a da reserva e o que aconteceu aos manses da época precedente? Insiste-se de bom grado na ideia de que a villa, em muitas regides antepassado do senhorio fundiário, teria visto, no decorrer dos tempos, diminuir a sua extensáo total, ao mesmo tempo que também a da reserva se reduzia. Esta ideia de um processo de «desmembramento» da villa remonta, quanto ao essencial, ás Ori gines de l ’ancienne France, velha obra de J. Flach. Entre os textos utilizados por este último, encontra-se a história das possessóes da abadia de Saint-Vaast d’Arras, que remonta a 886 e foi redigida pelo monge Guiman no fim do século XII. Através da leitura deste escrito, apercebemo-nos de que o tempo deixou em más condifóes muitos dominios monásticos, tendo a devastado, a usurpado e a enfeudado conjugado os seus esforjos para desorganizar muitas villae. «Algumas villae despovoadas sáo abandonadas ao conde da Flandres pela abadia, que só conserva em cada um délas um manse para ai enceleirar as dizimas; nalgumas villae, a abadia náo tem mais do que algumas hortas, ou entáo um mansus indominicatus, ou ainda algumas parcelas de reserva. Por vezes, a abadia conseguiu salvaguardar uma cota-parte dos rendimentos: um terjo das rendas dominiais, um sexto do imposto de justifa ou do terrádigo; por vezes, também a villa foi fraccionada em feudos em proveito de vassalos, que receberam um sexto, um terco ou metade da villa» (Ch.-Ed. Perrin). Se, em certos casos, foram os rendimentos o objecto de partilhas, noutros, pelo contrário, a villa, fragmentada, deu origem a vários dominios senhoriais bastante distintos. Daqui resulta uma evolufáo, ou antes uma diversificado, do sentido da palavra villa: esta última tomou-se ambigua pois passou a designar 204
tanto a antigo dominio inteiro, como uma ou outra das villae dele resultantes por fragm entado. Chegar-se-ia a dizer: villa mea in villa illa. Como o antigo dominio carolíngio coincidía bastante frequente mente com um terreiro inteiro, o termo villa passou pouco a pouco a designar a «aldeia», enquanto cada dominio resultante do desmembramento era classificado de curtís ou «cortes» (que se «relatinizou» em curia). Seria váo querer negar ou minimizar este movimento que reduziu ou fragmentou algumas villae. Mas, por volta do século XII, produzir-se-ia frequentemente uma inversáo desta tendéncia: o Liber de administratione sua de Suger está pleno de indicares, ñas quais o autor assinala a restituido ou a reaquisido de direitos e de térras, em reserva ou náo, que chegariam, se nao a reconstituir o estado antigo, pelo menos a reparar certas brechas. Seguramente, a re forma gregoriana desempenhou um papel notável nesta inversáo da tendéncia, relativamente ás térras eclesiásticas, que sáo e se rao as melhores conhecidas através das fontes.
A evolugáo da reserva Náo devemos também imaginar que a extensáo da reserva se restringiu sempre muito. É legítimo opor «os imensos campos do miniais que comem a pele dos escravos das grandes abadías carolíngias» á «reserva limitada e mesmo ao pé da casa, da qual os senhores, tres séculos mais tarde, tirariam o aprovisionamento da sua mesa» (G. Duby). Na Germánia, como em Franga ou em Ingla terra (que havia conhecido um regime talvez comparável ao das regióes carolíngias, cf. supra, p. 93), há bastantes indicios de uma dissoludo da reserva. Raros sáo os vestigios de um verdadeiro loteamento, feito de uma só vez, como o que foi efectuado em 974 pelos monges de Saint-Philibert de Tournus, que partilharam entre os foreiros grandes junturas, anteriormente loteadas em par celas, que um conde lhes havia dado como esmola. Na maior parte dos casos, o processo foi lento: de vez em quando, separava-se um pequeño lote que se cedia vitalicia ou perpetuamente a campone ses. É impossível náo ligar estes factos ao progresso dos rendimen tos da térra, particularmente líquidos nos campos — melhor cuida dos — dos senhores: o abastecimento do senhor e dos seus próxi mos exigia doravante menos superficie em cultura. No entanto, a distribuido dos campos da reserva por lotes atribuidos a foreiros aparece como uma excepgáo ou um expe diente, pelo menos até aos anos 1200. A divisáo em lotes atingia as térras mais afastadas do centro do senhorio, portanto difíceis de explorar convenientemente, ou as térras recentemente adquiridas e 205
que náo se inseriam bem na organizado do património (cf. o caso dos monges de Tournus) ou era, nalguns casos, consequéncia de uma crise temporária de máo-de-obra. «É necessário, portanto, considerar quase sempre o loteamento do indominicatum como um fenómeno acidental, provocado frequentemente pelo crescimento do próprio património» (G. Duby). O que pode aplicar-se antes do mais aos dominios temporais de igrejas. Nos senhorios mantidos por lai cos, intervieram principalmente a constituido de feudos e, mais ainda, as partilhas sucessórias: os grandes campos, bem como as junturas, fraccionaram-se de gerado em g erad o e náo eram mais do que um conjunto de pedamos disseminados. A responsabilidade pertencia á necessidade das partilhas e náo a uma vontade delibe rada de reduzir as reservas. Os textos fornecem provas de que certos senhores tiveram ten déncia, pelo contrário, para desenvolver as suas reservas. Este de sejo pode provir de uma m otivado religiosa: todas as ordens mo násticas, estimuladas pela vontade de reagir contra o monaquismo clunisiano e de manter algo do ideal eremítico, a comegar por Cíteaux, obrigaram-se a si mesmas a trabalhar as suas térras, pelo menos até meados do século XII. Os cistercienses, por exemplo, proibiram a si mesmos cobrar dízimas e adquirir moinhos, foros e foreiros: as suas riquezas fundiárias, que beneficiaram de um grande impulso de esmolas, foram integralmente divididas em reser vas — as granjas— confiadas, cada uma, a trabalhadores domésti cos dirigidos por monges, que faziam também uso das suas máos. E isto actuou sobre os velhos patrimónios eclesiásticos: G. Duby mostrou que foi na intensificado da produdo das reservas que o abade de Cluny, Pedro o Venerável, viu, no comefo do século XII, o melhor meio de restaurar as finanzas monásticas, comprometidas por compras demasiado avultadas de géneros. Ainda na primeira metade do século XII, o abade Suger teve a mesma atitude, náo se limitando a exigir aos laicos usurpadores a restituido da Ile-de-France, mas restaurando também e engrandecendo muitas reservas do poder temporal de Saint-Denis. Em suma, foi sobretudo no século X que as villae e as reservas puderam ser levadas á ruina; contudo, a partir de um momento que se sitúa, quanto muito, no século XI, umas e outras conheceram um certo restabelecimento, ao mesmo tempo que novas reservas nasciam. Náo esquejamos também que os senhores dirigiram nume rosas obras de arroteamento e que estas deram origem a novas tenures camponesas e também a reservas, como o demonstra a leitura de diversas cartas de fundado de vilas novas, ou de contratos de pariage. Encontramo-nos perante exemplos de investimentos, numa altura em que o comércio de produtos agrícolas sofria um impulso, embora se mantivessem os tipos de gestáo que datavam pelo menos da época carolíngia e que se podem classificar de faire206
-valoir(*) directo. Portanto, nos séculos XI e XII, salvo exceptes, náo se encontravam senhorios sem reservas. Por vezes, em Ingla terra e também no continente, a superficie da reserva era igual ou superior á do conjunto das tenures. Que restava ainda dos lagos económicos do passado, ñas relafSes entre essa reserva, reduzida ou náo, e as tenures camponesas? Em que medida estes tafos, táo estreitos em certas regiSes carolíngias (cf. pp. 78, 86), se distenderam ou náo? Situemo-nos nos séculos XI e X III e somente nos velhos terreiros que náo beneficiaram de fran quias alargadas. O faire-valoir no seu estado mais puro é seguramente o sistema em que o senhor abriga uma familia, isto é, os «servidores domés ticos» nos seus edificios. Ora, um pouco por toda a parte no Oci dente, as tarefas essenciais sáo atribuidas em primeiro lugar a esses servidores, na medida em que os servos substituíram os escravos. O seu papel primordial é excelentemente demonstrado pela facto de se avahar fácilmente o poder económico em charrúas, sendo entáo a charrúa considerada como um «grupo de trabalho» que compreende a atrelagem (instrumento de lavoura e animais de tracfáo) e os lacaios que a conduzem, o que forma o «equipamento de base de todas as cortes» (G. Duby). Muitos servidores eram «prebendeiros»; ñas ordens monásticas nascidas em fináis do século XI, estes eram religiosos de origem camponesa — os conversos. Contudo, outros servidores que trabalhavam á jorna ñas térras da reserva possuíam a sua casa e uma pequeña tenure: as distribuigoes de víveres feitas pelo senhor ou pelo seu administrador constituíam uma garantía de rem unerado para servidores e familias. Ao lado destes serví quotidiani, encontravam-se também ministeriais dota dos de um pequeño feudo, isento de impostos materiais. Este feudo era demasiado exiguo e os seus recursos eram completados por distribuifóes e até mesmo pela possibilidade de uso dos instrumen tos agrícolas do senhor. Tal era o caso dos bovarii da regiáo de Mácon ou de Inglaterra: estes ministeriais eram sem dúvida encarregados de trabalhos especializados. O apelo aos assalariados, auxiliares provisorios destinados aos períodos de aperto do ano agrícola (ceifas, vindimas...), parece ter-se tomado mais generalizado, frequentemente mais compacto do que outrora. Os próprios cistercienses tinham entáo de dar aos seus conversos o apoio de uma máo-de-obra suplementar. Os «caseiros» ingleses, cujas tenures eram particularmente reduzidas, alugavam assim os seus servidos ao senhor ou a outro camponés da vizinhanfa. Indiscutivelmente, estes recursos de troca permitiram que os camponeses mais pobres subsistissem. (*) Faire-valoir — accáo de levar uma explorado agrícola a produzir lucros. (.N. do E.)
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Resta a terceira fonte de máo-de-obra: o trabalho forgado dos foreiros, que em geral se reduziu. G. Duby tentou esbozar uma geogratia dos servidos em trabalho e opós o conjunto da metade setentrional do Ocidente á sua metade meridional. Na primeira, aquela onde as fontes carolíngias eram relativamente mais nume rosas, as prestagoes, até pleno século XII, continuavam a ser bas tante pesadas, ainda que muito menos opressivas. É por exemplo o caso da Lotaríngia, onde por vezes se foram buscar á realidade as modalidades de redugáo de servidos. Estes últimos eram do mesmo tipo que no século IX: cultura de duas parcelas (uma de trigo de Invernó e outra de trigo de Primavera) durante todo o ano, ser vidos sazonais (participado na colheita do feno, na ceiía, nos carretos das colheitas...), abastecimento de madeira talhada..., para náo falar na obrigagáo mantida de efectuar os diversos trabalhos com os seus próprios instrumentos. No entanto, as prestagoes de trabalho já tinham entrado na via do declínio, frequentemente irremediável: em 1117, o abade de Marmontier, na Alsácia, suprimiu o servigo gratuito de tres dias semanais devido pelas tenures servis e subsutuiu-o por uma renda em dinheiro assaz pesada. Por que motivo? O abade explicou-o evocando «a incuria, a inutilidade, a indolencia e a preguiga daqueles que serviam» (Ch.-Ed. Perrin). No entanto, havia a ter em conta razóes como o fraccionamento de senhorios e de algumas reservas, que desorganizava a «umáo orgá nica» entre reserva e tenures (elas mesmas desmembradas: cf. infra, pp. 209-210; o desenvolvimento das trocas, que vinha aumentar as necessidades dos senhores em numerário e que o tornava acessível aos camponeses que podiam resgatar os servigos; e, por último, o aperfeigoamento das técnicas, que evitava a reuniáo de equipas de trabalhadores táo numerosas como anteriormente. O século XII, que foi um grande século agrícola, trouxe também — tudo está relacionado — o alijamento de servigos. E por que motivo continuariam os senhores a exigir a entrega de produtos fabricados, quando, na cidade vizinha, os artesáos os fabricavam já mais bara tos e de melhor qualidade? O artesanato «ocasional» e forgado dos camponeses via-se em grande parte suplantado por um artesanato a tempo inteiro e principalmente instalado na cidade. Mas a Inglaterra é uma excepgao. Naquela ilha, a associagáo de trabalho entre reserva e tenures, já existente na época saxónica, revela-se no século XII bem mais estreita do que em qualquer outro lado, lembrando o que esta fora no continente, no século IX, ñas regióes de «dominio clássico». Sabemo-lo gragas aos belos inventários dos grandes senhorios da Igreja, beneditinos na sua maior parte. Quanto aos servigos, havia duas categorías de foreiros ñas herdades senhoriais. A primeira só devia prestar servigos comple mentares, em especial para as lavras e os carretos, sendo a sua situagáo análoga á de muitos rurais do Norte da Franga e da 208
Alemanha. A segunda categoría, formada pelos vilaos ( = os cam poneses por excelencia), era, pelo contrário, fortemente submetida ao trabalho forjado. As tenures «dos vilaos», de superficies de resto muito desiguais, só ocupavam o foreiro durante metade do tempo. Este estava, portanto, disponível metade da semana: os weekworks (trabalhos semanais), «obrigagáo específica dos vilaos», impunham que o camponés se apresentasse tres manhás de cada semana no centro da herdade senhorial para executar tudo o que dele se exigisse. Além disso, o vilao devia efectuar alguns trabalhos sazonais (tosquia das ovelhas, preparado do malte para a cervejaria senho rial, lavoura...). O viláo «encontrava-se, portanto, numa posigáo intermédia entre as duas categorías de trabalhadores empregados em todos os senhorios da Europa, entre os servidores permanentes da familia e os trabalhadores de corveia periódica que, de longe em longe, se reuniam nos campos do senhor para contribuir para a sua exploragáo» (G. Duby). Resta a parte meridional do Ocidente, ao sul do Loire e da Borgonha, em Franga, e a Itália. É preciso acrescentar o Oeste armórico, onde, desde a época carolíngia, os manses eram económicamente autónomos (cf. supra p. 92), ou onde a maior parte das tenures estavam ou completamente dispen sadas de servidos ou sujeitas apenas a servidos muito ligeiros. No cometo do século XII, as trinta e cinco exploragdes camponesas de um senhorio do bispo de Macón deviam, no seu conjunto, apenas cento e vinte dias de trabalho, montante correspondente ao devido por duas ou, quanto muito, tres exploragdes de entre o Eure e o Reno no reinado de Carlos Magno. Em suma, os senhores náo pediam mais do que «uma ajuda» quando o trabalho apertava, nomeadamente para a lavra e a ceifa. No fundo, tratava-se de regides onde as prestagoes em trabalho tinham sido sempre menos pesadas do que ñas regides do Norte: como estas tinham ainda di minuido, a oposigáo entre o Norte e o Sul da Europa persistía. Mas por toda a parte, salvo em Inglaterra, a «uniáo orgánica» entre a reserva e as tenures estava ameagada e, por vezes, já quase abo lida. Neste sentido, o Oeste e o Sul da Franga e a Itália também assumem o papel de precursores.
O destino do manse Passado o século IX, em datas variáveis conforme os países, o fraccionamento do manse teve tendencia a generalizar-se. Este pro cesso foi melhor estudado relativamente á Lorena (Ch.-Ed. Perrin). Nos polípticos do século IX, o meio manse e o quarteiro eram já conhecidos, mas ainda bastante raros. Em contrapartida, no século XII, o quarteiro havia-se tornado «a unidade de tenure por excelencia na Lorena», unidade em que os senhores se tinham ba209
seado para o reajustamento das rendas: a superficie média de um quarteiro podia atingir as quinze jomas ( = trés a quatro hectares), ou seja, a quarta parte de um manse carolíngio médio na mesma regiáo. Como podia uma familia viver dele? É duvidoso que o rendimento das térras tenha quadriplicado no espado de tres séculos. Mas o aumento dos rendimentos acrescentado ao arroteamento das orlas dos bosques (que constituíam os anexos do quarteiro) devem ter atenuado os efeitos da redugáo em superficie da tenure familiar. Postos de parte alguns desfasamentos cronológicos, a situagáo foi análoga no Namurois, onde, a partir de 1200, os textos já náo mencionam o mansus e onde a única tenure é o quarteiro, com uma superficie de 4 a 12 bonniers ( = 1 bonnier equivalia a 94 ares), por tanto mais extenso do que o quarteiro da Lorena (L. Genicot). Enquanto a hide inglesa resistiu melhor aos factores de destruigáo — só desaparecerá no século X III para dar lugar á vergée (quarta parte da hide) e á bovée (oitava parte da hide) —, porque em Ingla terra se manteve o sistema de imposto real, baseado na unidade de tenure, a Hufe alema fraccionou-se bastante cedo em Halbehufe e em Viertelhufe. Houve, portanto, desfasamentos no tempo: entre a Inglaterra, onde a hide teve uma vida particularmente longa, e a Normandia, onde o manse desapareceu prematuramente (em proveito da charruada, provavelmente a partir do século X), existem situafóes intermédias como a da Lorena. O termo da evolugáo é lógico. Uma vez desaparecidos o manse e os seus submúltiplos, nunca mais existiu unidade territorial de cobranga de impostos, pelo que estes se individualizaram, sendo a casa e cada uma das parcelas submetidas separadamente a rendas. Este final náo foi, no entanto, atingido em todos os países. Assim, na Baviera e no Noroeste da Alemanha, a coesáo da unidade de tenure manteve-se, sendo proibidas as partilhas de exploragdes nascidas de arroteamento ou imposto o direito de primogenitura em meios camponeses. O quarteiro da Lorena, pelo contrário, desagregou-se no século XIII: de agora em diante, as rendas incidem sobre cada uma das parcelas; somente as prestagoes em trabalho continuam a ser pagas globalmente pelo quarteiro (‘). Na Flandres, na Ile-de-France, na Alsácia, na Suébia, a evolugáo chegara ao seu termo desde o século XII: nem o manse nem os seus submúltiplos existíam mais (os seus últimos vestigios na Ile-de-France situam-se entre 1135 e 1190). As rendas em dinheiro haviam sido repartidas entre as diversas parcelas, enquanto a casa pagava as rendas em galinhas e em ovos, assim como em servigos quando estes ainda perduravam.
(’) Mas no Namurois (L. Genicot), no século XIII e mais tarde ainda, o foro continuará a incidir globalmente sobre o quarteiro, apesar de dividido.
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Na toponimia, existem vestigios da mais ou menos longa existéncia do manse como este subsistía na língua da Idade Média. Assim, o casebre ou pardieiro parisiense — derivando o termo francés masure de mansus por intermédio de mansura — designa, pelo menos a partir do cornejo do século XIII, o pedajo de térra onde ficavam a habitado e as suas dependencias, como pátio á frente e horta ñas traseiras. Encontramos o mesmo termo com um sentido ligera mente diferente na regiáo normanda. O meix borgonhés e o mayne bordalés tém, mais ou menos na mesma época, significado semelhante. Enquanto o mas do Limousin e das provincias meridionais conservava, por seu turno, algo do tempo em que o mansus e os seus derivados romanos designavam o conjunto de uma explorado.
O senhorio banal Os registos de foros tornam-se entáo mais pormenorizados, sendo em certos aspectos parecidos com as «matrizes cadastrais», pois tém de enumerar todas as parcelas que fazem parte da tenure e de as individualizar pela indicado dos seus nomes ou das confronta?5es. Nos melhores casos, podemos conhecer assim o parcelamento de um terreiro. Apesar de os encargos devidos pelo foreiro ao seu senhor fundiário terem sido nitidamente aligeirados desde os tempos carolíngios, este aligeiramento foi contrabalanjado por novas obrigajóes impostas pelo senhor do ban. Na origem do poder banal encontra-se certamente a imunidade obtida, desde os tempos carolingios, por concessao ou por simples usurpado: desde o século X, os imunistas, substituindo-se ao Estado enfraquecido, passaram a ser juízes dos seus homens. As justijas privadas devem contudo ter tido outras origens: «um poderoso proprietário de alodios, dedicado pela sua fortuna e pelos seus gostos ao oficio das armas, póde constituir-se chefe de um senhorio e improvisar os órgáos sem os quais esta nova célula social e política nao poderia viver» (Ch.-Ed. Perrin). Com o tempo, as justijas privadas confundiram-se com o direito de ban, direito geral de comandar, constrangendo e punindo. Ora, precisa mente na altura em que se formavam estas justijas privadas, os forei ros e pequeños proprietários de alodios estabelecidos ñas proximi dades de um senhorio, que haviam solicitado ou sofrido a domina d o do senhor, tinham caído num estado de dependéncia mais pesada do que o dos foreiros livres da villa: chamou-se-lhes homines de potestate, portanto súbditos de uma potestas ou senhorio. Partindo deste direito de ban, os senhores náo se limitaram á explorado judiciária, entregando-se também á explorado econó mica. No momento em que as antigas prestagoes em trabalho se reduziam por resgate ou por desuso (o caso produziu-se frequente211
mente), os senhores puderam permitir-se tudo, em virtude deste direito de ban, táo vago e vasto como inquietante, fazendo, por exemplo, reviver servidos antigos, como os dos carretos, embora apenas relativamente aos seus foreiros. Impuseram também e sobre tudo novas exigencias, desta vez a todos os habitantes que ficavam sob a sua aleada: rendas e prestafóes táo diversas quanto desejavam. O direito de ban permite ao senhor «regular a vida económica do senhorio» banal: «é o senhor quem fixa o ciclo» das rotafóes (quando elas existem, dos afolhamentos mais tarde), «impoe a data em que podem comefar os trabalhos da colheita, reguiamenta os direitos de uso das florestas, dos baldios ou das térras desocupadas depois das colheitas. É finalmente em virtude do direito de ban que o senhor impóe aos súbditos do senhorio a obriga^ao de utilizar de maneira exclusiva o forno, o moinho, a prensa que ele mesmo edificou. De qualquer forma, o direito de ban é uma fonte de lucros para o senhor, quer directamente, como no caso das banalidades, quer indirectamente, em virtude das multas que sancionam toda a desobediencia ao comando» (Ch.-Ed. Perrin). O exercício do direito de ban era agravado pelo exercício de um outro direito, que náo se confundia completamente com ele, e que dizia respeito á protec?áo geral, reivindicada pelo senhor sobre todos os seus dependentes, livres e náo livres. Do mesmo modo que o vassalo, em troca da protecgáo do seu senhor feudal, devia ajudá-lo, por todos os meios, inclusive a ajuda pecuniária, também os dependentes deviam ajudar, nomeadamente com a bolsa, o seu senhor rural. Daqui resulta o nascimento da talha (petitio, precaria; em francés taille; em alemáo Bede). No seguimento de um pedido do senhor, os seus dependentes deviam pagar-lhe a talha, cujo montante era arbitrariamente fixado pelo senhor, como acon tecía com os direitos ligados ás banalidades. Poderemos, se nos colocarmos no fim do século X III — perguntou-se G. Duby — «estimar o peso deste sistema de requisifáo, cujo estabelecimento progressivo parece ter acompanhado o aumento dos recursos aldeáos, sobre a economia camponesa? Terá esta sido ou náo anulada pelas requisigoes? É muito difícil ser preciso, visto que as indicagoes numéricas só se tom aram suficientemente numerosas ñas fontes a partir do século seguinte. Tudo o que se pode dizer a partir de alguns índices e de alguns fragmentos de contas, é que os direitos de justifa, as banalidades e as talhas eram «incomparavelmente mais elevados» do que as ren das provenientes do senhorio banal. Em Inglaterra, perto de 1200, a jorna elevava-se a 1 d. e o contrato de cria?áo de gado dos cam poneses náo ultrapassava em média um valor de 10 s.; ora, as multas infligidas pelos juízes em cada sessáo solene atingiam as cen tenas de lb. Ainda que depois fosse preciso «moderar» essas multas, náo há dúvida de que elas traziam grandes lucros aos senhores: de 212
onde a prontidáo dos senhores laicos ou eclesiásticos em defender os seus direitos de justija e, frequentemente, em tentar alargá-los; de onde as exigencias dos camponeses, que reclamaram, como uma das primeiras «franquías» indispensáveis, a limitajáo da competen cia dos juízes senhoriais e a fixajáo muito precisa das multas. Pelo menos, as multas náo se abatiam todos os anos sobre os campone ses, náo mais, em geral, do que a talha. Em contrapartida, as bana lidades efectuavam «punzóes» regulares sobre os seus recursos, par cialmente justificadas pela vantagem técnica que os edificios banais lhes fomeciam. É verdade que se pode seguir G. Duby, quando este faz notar que estas exacfóes, regulares ou náo, muito frequentemente arbitrárias, podiam ter o seu lado bom, «estimulando vivamente a produfáo camponesa». Mas esvaziando periódicamente as pequeñas explorafoes das suas reservas mobiliárias acumuladas (as talhas), atrasavam o movimento de ascensáo económica dos rurais mais favorecidos pela sorte ou mais empreendedores. Para cumprir as suas funjoes de justiceiro e receber as «exacjóes», o senhor banal teve de recorrer a numerosos «ministeriais», geralmente recrutados no seio da familia. Desde o moleiro ao guarda florestal, do guarda da prensa ao juiz, ao preboste e ao bailio, todos estes homens enriqueceram indiscutivelmente. Dotados de um feudo, lote de térra concedido gratuitamente, recebendo uma percentagem das multas e das taxas banais, os ministeriais tendiam a formar «uma pequeña aristocracia rural» (G. Duby) no seio do campesinato: por volta de 1200, na regiáo de Mácon, as cerca de cinquenta familias de grandes ministeriais e os cento e cinquenta familiares de fidalgos de aldeia «parecem encontrar-se sensivelmente ao mesmo nivel económico». E alguns ministeriais, que lucraram, mais do que todos os outros camponeses, com a prosperidade material, acabaram por vezes por se tom ar os senhores efectivos dos senhorios, quando o senhor estava estabelecido longe ou era demasiado negligente. Pelo menos no continente, «o senhorio banal teve um papel de primeiro plano na evolufáo da economia rural». Mas o mesmo náo aconteceu em Inglaterra, onde a autoridade real foi bastante pode rosa para limitar severamente o poder de exacfáo dos senhores: a talha e mesmo a justifa náo atingiram, portanto, lucros táo consideráveis como em Franja, por exemplo, onde os senhores laicos iam por vezes ao ponto de se desinteressarem da reserva que lhes proporcionava muito menos dinheiro do que a explorajáo do direito de ban. E. Perroy demonstrou que daqui resultou uma orientajáo divergente quanto á explorajáo das herdades senhoriais, a partir, precisamente, do fim do século XII: dispondo apenas de um poder de exacjáo reduzido, os clérigos ingleses «empenharam-se, portanto, em desenvolver a produjáo dos campos da herdade senhorial». 213
A reacgáo camponesa: privilégios e novas tenures Mas o campesinato náo ficou passivo em face das exaccóes senhoriais: ñas suas fileiras desenvolveu-se uma certa consciencia comum, que, em muitos casos, chegou a organizá-lo como uma frente unida que forcava o senhor a contar com ela. É preciso dizer que os grandes arroteamentos forneceram exce lentes meios de pressáo ao campesinato. «É inegável que a coloni z a d o contribuiu para a melhoria da condido (camponesa). Com efeito, para atrair os arroteadores, os senhores viram-se na obrigad o de proporcionar condifdes favoráveis aos colonos, em particular no que diz respeito ao exercício do direito de ban; de facto, acontece frequentemente uma carta de arroteamento ter o mesmo valor que uma carta de franquía. O arroteamento teve igualmente consequéncias indirectas em proveito das populafSes que, sem se deslocarem, náo tomaram parte neíe: com efeito, sob pena de ver os homens dos seus senhorios engrossar o fluxo dos emigrantes, bastantes senhores tiveram de lhes conceder regalías» (Ch.-Ed. Perrin). Este facto é particularmente evidente na Alemanha, onde se pode seguir o movimento de colonizado na direcdo leste: ameacados de despovoamento no século XII, em consequéncia da partida de nume rosos colonos, os senhorios do Oeste da Alemanha beneficiaram de notáveis privilégios, segundo as «relafoes de direitos» do século XIII. Entretanto, em Franca, a partir do século XII, assistimos á multi plicado das cartas de franquías em proveito de aldeias antigas, quase ao mesmo tempo que surgem as cartas de fundado de vilas novas. E o movimento de alforria dos servos em Franca, no século XIII, é também uma consequéncia mais ou menos directa dos arroteamentos. Sao, no entanto, evidentes algumas diferenpas entre a Franca e a Germánia. A reaccáo camponesa em Franca anunciou-se o mais tardar a partir do segundo quartel do século XII; no reino vizinho, essa reaccáo náo foi anterior aos últimos anos do século XII. Os meios a que se recorreu para reduzir a arbitrariedade senhorial também náo foram os mesmos nos dois países. A em ancipado económica e social — relativa — dos campone ses fez-se em Franca gracas ás car/as de franquías, a mais célebre das quais e uma das mais antigas foi a de Lorris-en-Gatinais (1108-1137). Concedida pelo senhor aos habitantes de um dos seus senho rios (por Luís VI, por exemplo, ás gentes de Lorris), a carta náo era geralmente imposta por um golpe de forca, mas obtida «por bom dinheiro contado»: os capitais necessários eram frequentemente emprestados pelos burgueses da cidade vizinha que encontravam nestes empréstimos um dos principáis meios de se infiltrar no campo. A forma e as cláusulas destas cartas variam até ao infinito, consoante as condicSes locáis (como a proximidade de uma vila nova 214
que obtivera determinados privilégios, nos quais a carta de franquia se iría inspirar), a boa vontade do senhor e os pedidos apresentados. Mas é de notar que dezenas e centenas de velhos terreiros obtiveram as mesmas franquias, tendo algumas cartas, como a de Lorris e mais ainda a de Beaumont-en-Argonne, conhecido uma difusáo geográfica muito grande, como também aconteceu com a carta-lei de Prisches. Nalguns pontos, as cartas limitaram-se a codificar o costume local para o pór ao abrigo de interpretares abusivas do senhor e dos seus ministeriais: as cláusulas desta primeira categoría sáo as consuetudines. Mas há outras que constituem inovajoes, precisando «as condifSes e os limites dentro dos quais, no futuro, o senhor poderá exigir rendas e servidos» (Ch.-Ed. Perrin). As multas, a talha, o servido de hoste e de cavalgada ficam sujeitos a tarifas fixas. Os privilégios económicos ficam ao abrigo de artigos: diminui?áo (e tarifajáo) das banalidades, das peagens, dos impostos de terrádigo a favor dos habitantes do senhorio; reconhecimento de mobilidade dos bens e das pessoas (qualquer pessoa poderá deixar o senhorio depois de ter vendido os seus bens imobiliários e levando os seus bens imóveis). Algumas cartas, como a de Beaumont-en-Argonne (1182), difundida desde a regiáo de Champagne até á Lorena e ao Luxemburgo, «reconheciam á comunidade dos habitantes o direito de dispor de representantes, de participar na adm inistrado do domi nio e de lanzar impostos em proveito da comunidade». Como a finalidade destas cartas consistía em acabar com a arbitrariedade do direito de ban, náo se encontra nelas algo que diga respeito ao senhorio fundiário. As cartas de franquias penetraram na Alemanha renana com o nome de Handfeste, enquanto as cartas de fundado de vilas novas penetravam ñas regioes de colonizado para além do Elba. Mas a «Alemanha mostrou-se pouco receptiva a um tipo de auto que conheceu um sucesso prodigioso em Franja» (Ch.-Ed. Perrin). Os autos que, a partir dos últimos anos do século XII, fixaram o cos tume e melhoraram simultáneamente a condijáo dos rurais da Ale manha sáo os Weistümer, cuja origem está ligada ao vigor das instituifóes da procuradoria do império. Na Lorena e na Valónia, encontram-se documentos análogos (relajoes de direitos ou registos de costumes). O Weistum é uma declarado solene feita pelos súbditos do senhorio, a pedido do senhor, quando de uma das suas trés sessoes anuais, com o fim de precisar os direitos do senhor de acordo com o costume do senhorio. Embora a iniciativa parta sempre do senhor, o Weistum tem um «cunho popular inegável e revelou-se um instru mento de codificado muito flexível, do qual os declarantes soube215
ram em muitos casos tirar proveito. Com efeito, apesar de o senhor poder exigir a mengáo, no Welstum, de todos os costumes atestados por uma longa prática e de todos os precedentes que criaram um direito a seu favor, os declarantes podem propor, no decurso da sua declarado, todas as inovagóes que lhes sejam favoráveis, assim como, inversamente, podem omitir todas as práticas que lhes sejam prejudiciais, susceptíveis de ser abrangidas pela prescrigáo. A este respeito, é notável o facto de, na Lorena, onde coexistem cartas de franquías e relagoes de direitos, estas últimas beneficiarem frequen temente os súbditos de senhorios náo abrangidos pelos privilégios adquiridos por senhorios vizinhos, dotados de uma carta de fran quía» (Ch.-Ed. Perrin). O manse e os seus submúltiplos foram substituidos por outras formas de tenure, cuja origem é pouco conhecida, por mergulhar em tempos pouco favorecidos pela escrita. No entanto, é certo que estas tenures se desenvolveram em ligagáo com os grandes arrotea mentos e com a concessáo de cartas de fundado de vilas novas e de cartas de franquías em favor dos antigos terreiros: encontram-se finalmente por toda a parte, inclusive ñas parcelas loteadas de reser vas. É significativo o facto de a «hostise» (tenure concedida a um hospede num jovem terreiro de arroteamento) e a «censive» terem sido termos sinónimos em muitas provincias de Franga.
Estas novas tenures distribuem-se por duas categorías principáis: 1. A tenure de foro. Os documentos de linguagem vulgar falam de censive, de hostise ou de tenure em vilanagem, deixando esta última designado entender que se tratava mesmo de uma tenure tipo. Enquanto a velha tenure dominial era de regime costumeiro, esta nova tenure teve por origem um contrato colectivo, numa pri meira fase, e, numa segunda, um contrato individual, de que os arquivos conservaram milhares de exemplares, sobretudo a partir do século XIII. A censive, como todas as tenures, náo é uma propriedade: nela coexistem (em Franga até á Revolugáo) duas formas de possessáo e dois direitos: o «dominio eminente» (direito de senhorio em Guyanne), que pertence ao senhor rural, e o «dominio útil», pertencente ao foreiro. Em geral, a partir do século XI ou XII, o domi nio útil alarga-se em detrimento do dominio eminente. Ao ponto de, em diversas provincias como a Ile-de-France, onde as prerroga tivas do camponés teriam sido particularmente alargadas, os juristas comegarem, no século XV, a qualificar — erradamente — de pro priedade a possessáo de que o foreiro usufruía. 216
Os direitos eminentes do senhor impunham ao camponés encar gos mais ou menos pesados, alguns deles formulados no contrato de concessáo da tenure e outros impostos pelo costume da regiáo e do senhorio (codificado na carta de franquía, quando esta existía). Estes encargos tinham um carácter sobretudo económico (as rendas e, antes de mais, o foro de um montante fixo em espécies ou em géneros; ou mesmo, além destes, alguns servidos), reforjado por um carácter judiciário, pertencendo ao senhor pelo menos o exercício da justija fundiária sobre os seus foreiros, em certa medida assimilável á baixa justija. Originalmente, a tenure de foro náo fora perpétua, hereditária e alienável. No século XI, era ainda apenas uma concessáo vitalicia ou a curto prazo. O interesse das partes em breve a tornaría perpétua. Como seria possível empreender os arroteamentos, fixar os camponeses no local, estimulá-los a edificar uma residéncia e edificios de explorajáo ou a cuidar destes convenientemente se, por morte do pai, a tenure náo passasse para os filhos? Os herdeiros directos tiveram de com ejar por negociar com o senhor para obter uma renovajáo da concessáo. Na Ile-de-France, desde a primeira metade do século XII, o último passo no sentido da hereditariedade tinha sido dado: surgem entáo, no século XIII, «aforamentos para sempre», que se tornam regra, passando o contrato de concessáo temporária a cons tituir excepjáo. O senhor tinha tanto mais interesse em permitir a realizajáo do contrato, na medida em que os herdeiros directos lhe ofereciam uma quantia em dinheiro para o decidir, o que representava uma obrigajáo idéntica ao resgate pago pelos herdeiros do vassalo que desejavam obter concessáo do feudo. Mas (a partir do final do século XII, na regiáo parisiense) esta taxa desapareceu, deixando de ser uma condijáo indispensável á perpetuajáo da tenure, que era agora automática. O resgate passou a ser gratuito, como no Namurois, ou foi substituido por uma taxa recognitiva (a posse de bens de raiz na regiáo de Paris só custava 12 d.): era um simples meio de o senhor fazer reconhecer pelos herdeiros o seu direito eminente sobre o bem. Restava o problema da alienabilidade. Numa regiáo de costumes particularmente liberáis, como a Ile-de-France, encontra-se ainda, em meados do século XII, em nume rosos contratos de arrendamento, a proibigáo de dispor da tenure por alienajáo a título oneroso ou a título gratuito. Estes impedimentos desapareceram mais depressa ainda ñas regióes onde a mobilidade da populajáo era maior: depois de uma fase intermédia (negociajáo e pagamento de uma quantia ao senhor), a liberdade de disposijáo passou a ser total. Isto aconteceu, na regiáo parisiense, antes de 1250. Mas foi o direito reconhecido por toda a parte ao senhor de lanjar uma taxa sobre cada venda que permitiu que a tenure se tomasse plenamente alienável: o laudémio e as vendas (na Ile-de-France), as vendas, os servidos (em Na murois)... eram fixados proporcionalmente ao valor do 217
bem — 8,33% na Ile-de-France, 12,50% em Bordelais... De qualquer modo, o direito medieval náo considerava que a conclusao do acto escrito ou o direito á he ranga conferissem posse ao arrendatário. Era necessária uma cerimónia muito simples, o empossamento parisiense, a in vestidura do Namurois ou gasconhesa ... que incluía uma declaragáo oral do senhor ou do seu representante e a entrega de uma palha. Esta cerimónia nem sempre era, como na instáncia de Paris, uma simples formalidade. No Bordelais, por exemplo, o senhor da térra podia responder ao pedido de investidura desaprovando a alienagáo e reto mar o imóvel desinteressando o comprador (‘). Suspeita-se que se tratava sobretudo de uma prevenpáo contra as dissi mulagóes de pregos. O arrendatário deve uma «pensáo anual», sob a forma de uma quantia em dinheiro muito pouco importante (al guns denários, quando muito alguns soldos), ou de uma renda em géneros, também fixa e perpetuamente invariável, ou em dinheiro e produtos agrícolas. Esta pensáo é o foro, o qual «conquista senhorio». É este o motivo por que, na regiáo de Paris, o foro foi frequentemente classificado de primo foro (e também de fundos de térra, ou de foro miúdo por causa do seu pequeño montante). A situagáo era menos clara ñas regióes do Midi: no Bordelais, o foro continuava a náo existir e era a «esporle» (de 2 a 12 d., portanto uma quantia insignificante) que «conquistava se nhorio». «Esporlar» alguém significava reconhecer-se seu dependente. Representaría o foro, na origem da concessao, o valor locativo do bem concedido? É duvidoso. Em todo o caso, desde o século XIII, era sempre muito inferior a esse valor locativo, conforme mostraram os cálculos, por exemplo para o Namurois (L. Genícot). É evidente que o senhor rural contava principalmente com outras fontes de receitas, tais como as provenientes dos direitos de ban e dos direitos de transmissáo. Recordemos que. salvo em caso de loteamento ou de falta de herdeiros, o arrendamento de foro só raramente concedía ao arren datário uma exploragáo inteira, dizendo em geral apenas respeito a um dos seus elementos, casa, prado, vinha, horta, térra, visto que a unidade jurídica da tenure morrera com o manse e os seus submúltiplos. Era perfeitamente possível explorar quinze parcelas concedidas por outros tantos actos diferentes. Notemos finalmente que o contrato estipulava que «o foro incidía sobre laudémios e vendas, posse de bens de raiz e multa»: por falta de pagamento, era inflingida ao arrendatário uma multa fixada pela carta ou pelo costume. E a fórmula sublinha ainda que era o foro que conferia ao concedente os seus direitos de justiga fundiária. O Em contrapartida, um dos costumes mais liberáis, o de Paris, náo admitiu a «suspensáo censual» em proveito do senhor.
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2. A tenure de champart. O termo francés champart deriva de campi pars e recorda que a renda náo era fixa mas estabelecida proporcionalmente á colheita. A renda incide principalmente sobre os campos, de onde os sinónimos vulgarmente usados: terrage (na Ile-de-France, no Namurois e em muitas provincias do Norte de Franja) e agrére, em regióes meridionais como a Gasconha (de ager = campo). Para as vinhas, caso menos frequente, falava-se de pressurage (prensagem), por exemplo na regiáo de Paris. Com os arroteamentos, desenvolveu-se por certo uma tenure exclusivamente rural (enquanto, ñas cidades, havia numerosas tenu res de foro), uma vez que a forma de renda que a caracteriza era bastante rara no tempo dos Carolíngios. No entanto, é curioso náo a encontrarmos com frequéncia nos actos anteriores ao século XII, mas isto talvez possa ser explicado pelo facto de ela ter sido objecto de contratos verbais, durante mais tempo do que a tenure verbal (Fr. Olivier-Martin). Além disso, podemos interrogar-nos sobre se esta raridade de textos náo significará uma menor difusáo do champart nos senhorios eclesiásticos cujos cartulários constituem a nossa principal fonte até ao século XIII: capítulos, abadias e bispos dispunham já de uma grande quantidade de cereais e de vinho provenientes das dízimas, pelo que tinham menos necessidade do que os laicos de exigir aos foreiros uma quota-parte das suas colheitas como pagamento do «aluguer» da tenure. Em todo o caso, o champart difundiu-se tanto ñas zonas de arroteamento como ñas outras, no seio de uma mesma regiáo. Como renda de prestajáo, o champart só tem de ser pago dois anos em cada trés, ñas regióes de rotajáo trienal, e um ano em cada dois ñas de rotajáo bienal, quando incide sobre os campos. A renda é pelo contrário cobrada anual mente ñas vinhas bordalesas, parisienses..., bem como nos prados (diversos prados sáo arrendados em champart na bacía do Garona). Insistamos sobre o facto de náo se tratar de um arrendamento a meias perpétuo, dado que, salvo algumas excepjóes, o senhor náo participa nos encargos de explorajáo: o arrendatário suporta a totalidade dos en cargos de cultura e os agentes do senhor, os champarteurs (cobradores de imposto sobre a colheita) limitam-se a pro ceder ás cobranzas de uma percentagem de palha depois da ceifa, das paveias depois da colheita, dos tonéis depois das vindimas e da prensagem. A quota-parte do senhorio varia muito de uma regiáo para outra e as taxas sáo mais ou menos desfavoráveis ao arrendatário. Na Ile-de-France, a parte do senhor champarteur é frequentemente, para os cereais, de uma paveia em cada onze, embora possa oscilar de 1/9 a 1/14. Em relajao ás vinhas, cujo rendimento é mais elevado do que o dos campos, a percentagem é por vezes mais pesada (na regiáo de Paris, uma vasilha em cada tres ou em cada 219
quatro, embora seja mais frequente uma vasilha por cada nove ou cada dez. Nesta provincia, vemos que o champart é próximo de uma dízima). Na Guyenne, a agriére mais comum é a de 1/5 e, menos frequentemente, de 1/6. Mas, nesta regiáo, a agriére incide mais frequentemente sobre as vinhas, os prados, os vimieiros e as plantacdes de salgueiros. Assim, as vinhas dos Graves e dos outeiros pagam geralmente um terco ou um quarto dos frutos, mais rara mente um quinto. Os prados devem habitualmente um quarto de feno, por vezes um terco. Para os vimieiros e os salgueirais, as taxas sáo as mesmas. Como se sabe, o feno, raro, é excepcional mente precioso na Idade Média e as vinhas da reserva exigem muito vime ('). Tudo o que foi dito sobre a tenure de foro é, por outro lado, aplicável ao champart, tanto no que diz respeito aos direitos do camponés sobre a sua tenure como aos do senhor. Sobre qualquer tenure pesavam quase sempre diversos outros encargos, que náo era necessário indicar no contrato de arrenda mento. O primeiro e o principal é a dízima: um pouco menos pesada do que o champart, incidia no entanto sobre todas as colheitas e sobre o crescimento do rebanho. Outras taxas representavam a abonacáo de antigos direitos arbitrários: o resgate das corveias (que continuavam a ser arbitrarias para os servos em regióes como a Guyenne, onde a servidáo náo tinha desaparecido no século XIII). Náo esquecamos finalmente a talha. Na Ile-de-France, e por vezes na sequéncia de movimentos concertados de camponeses que a realeza tinha algumas vezes apoiado, a talha era abonada desde 1250-1270. Outrora irregular, tanto no seu montante como na sua cobranca, era paga anualmente. Para o estabelecimento desta abo nacáo, foram utilizados dois processos, podendo ambos ser encon trados na Ile-de-France. Num dos casos, o montante devido por cada casa, por vezes por cada campo ou cerrado de vinha, tinha sido fixado de uma vez por todas: era referido no contrato de arrendamento. No segundo caso, o total devido pelos camponeses da aldeia outrora inscritos devia ser redistribuido anualmente entre todos os foreiros. Este montante podia variar para cada um, em funcáo da evolucáo demográfica do senhorio. As operacóes, de cobranca no primeiro caso, de distribuicáo e cobranca no segundo, eram quase sempre levadas a cabo pelos representantes da comunidade rural, facto que levanta o problema do papel económico das comunidades rurais. Este papel é mal conhecido — elas náo deixavam arquivos—, mas foi seguramente
O N o Namurois, o «privilegio (do champart) é escasso» e táo raro como ligeiro (a duodécima ou mesmo a décima-quinta parte da colheita). Os contrastes regionais do champart sáo infinitamente mais agudos do que os do foro.
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importante em todas as regioes, sobretudo ñas de c ria d 0 colectiva de gado (pastagem alpina...) e ñas de habitat aglomerado em afolhamento e pastagem em terrenos incultos (portanto, talvez a partir do século XIII, quando o afolhamento, precoce, substituiu a sim ples ro ta d o das culturas). Pouco a pouco, estas comunidades toma ram, elas mesmas, térras, hortos e prados em foro. A com erciallzasao dos produtos agrícolas
O crescimento agrícola do Ocidente foi acompanhado e susten tado por uma «abertura progressiva» dos campos ao comércio. Pouco a pouco, «as explorajoes rurais foram solicitadas a produzir além de para a sua própria subsisténcia, de forma a responder á procura constantemente mais premente dos compradores». Este facto foi, ao mesmo tempo, causa e consequéncia do progresso téc nico e permitiu ao meio rural suportar com menor dificuldade «uma carga excessiva de populado» (G. Duby). Até ao século X, as correntes mais regulares tinham sido as que «veiculavam os pro dutos dos campos e da floresta para as cortes e para as residencias urbanas da aristocracia». Depois do ano 1000, estas correntes «assumiram ao mesmo tempo amplitude e rapidez», mas, e isto foi o mais notável, «assistiu-se á expansáo e ram ificado de uma rede de trocas, baseadas na compra, na venda e no manuseamento da moeda» (G. Duby). Alguns indicios muito seguros permitem afirmar que a procura urbana náo deixou de aumentar entre o século XI e o XIII. Quanto mais uma cidade era densamente povoada, mais a sua «zona abas tecedora» tinha de aumentar. Calculou-se que, para um pequeño aglomerado de 3000 habitantes, eram necessários, em pleno século XIII, 3000 hectares de térra que produzissem mil toneladas de cereais! Uma parte do abastecimento provinha, é certo, dos senhorios que os aristócratas da cidade possuíam na regiáo: esta parte escapava, portanto, parcialmente ás actividades de negocio. Era, no entanto, através deste último que se obtinha a maior parte da alim entado urbana. Daqui resulta o número elevado e a pros peridade dos comerciantes e retalhistas de géneros alimenticios: os carniceiros formaram muitas vezes «as primeiras e mais poderosas associajoes profissionais urbanas». Num pequeño burgo de Forez, Montbrison, que abrigava no máximo 2000 habitantes, existiam, no século XIII, doze negociantes e retalhistas que vendiam carne, sal, lás, coiros... e que enriquecerán! rápidamente (E. Perroy). Outro indicio da crescente penetrado do comércio no campo (com os progressos da circulado monetária) é a multiplicagao dos mercados hebdomadários e das feiras agrícolas. A sua proliferado pode ser seguida de um extremo ao outro do Ocidente, excepto 221
em Itália, onde, apesar de numerosos no século X, estes iríam decair em consequéncia da concentrado na cidade da maior parte do tráfico dos produtos agrícolas. Através da leitura das cartas de franquias e das cartas de fundado de vilas novas, torna-se notório que muitas das suas cláusulas dizem respeito ao comércio agrícola: era criado ou regulamentado um mercado semanal, os monopolios comerciáis do senhor eram reduzidos (privilégio de compra a cré dito, de vender o seu vinho prioritariamente, de ser o único a conservar as medidas de capacidade...); os aldeáos queriam poder comerciar sem restrigóes. No principio do século XIII, a fu n d o das bastidas náo consistía apenas em abrigar guarnigoes mas tam bém mercados ou feiras. Isto, no Sudoeste da Franga. E no Sul deste, na Provenga interior, foi implantada na mesma época «uma constelagáo cerrada de pequeñas feiras sazonais» (Th. Sclafert, G. Duby). A variedade infinita da paisagem devida ás diferengas geográ ficas (relevo, solo, clima, exposigáo...) era esbatida pelos impe rativos das técnicas agrárias, que tendiam a uniformizar o aspecto dos campos. Um destes imperativos era a necessidade de conservar em toda a parte uma policultura alimentar baseada nos cereais. No entanto, ñas regióes mais abertas ao comércio, esta necessidade deixou de ser a dominante indiscutível da paisagem, como quase sempre acontecerá durante a primeira Idade Média. A presenga dos consumidores urbanos, a partir de entáo numerosos em algumas provincias e que em nenhuma faltavam, o desejo de vender na cidade ou mesmo de entregar produtos ao comércio de longa ou média distáncia, em suma, a abertura progressiva do mundo rural no sentido de uma economia de lucros, provocaram o abandono — ainda que só parcial — da policultura alimentar, em favor náo da monocultura (da qual náo existem exemplos medievais) mas das culturas preponderantes: por esta expressáo náo se devem entender as culturas que cobriam a maior parte das térras culti vadas (mesmo em regióes de grande vinhedo, a vinha, por exemplo na Ile-de-France, nunca ocupou mais de 10 a 20% do solo explo rado). Devemos entender simplesmente por esta expressáo uma cultura destinada, na maior parte da sua produgáo, á venda fora da térra e da aldeia. É inútil precisar que as grandes exploragóes (que sustentavam os «familiares» com o produto das rendas e das dízimas) dispunham de excedentes comercializáveis muito mais consideráveis do que as pequeñas exploragoes camponesas. Isto náo significa de modo algum que os camponeses náo participavam ñas produgoes «preponderantes». Á volta das grandes cidades, mesmo dentro dos seus muros e por vezes no interior das suas muralhas, havia as culturas hortí colas. Exigindo térras leves e ricas, estas culturas instalaram-se de preferéncia em pántanos drenados. Paris, a maior cidade das regióes a norte dos Alpes, tinha assim uma cintura de culturas
de legumes, principalmente no vale do Biévre e onde agora se sitúa o bairro do Marais. Outro exemplo, um pouco mais tardio visto que remonta apenas ao século ^CIII, é o de Amiens que, ao atingir o pleno desenvolvimento comercial, viu progredir as culturas hortí colas ñas lezírías do Somma que rodeiam a cidade. Mas teriam existido horticultores no estado puro? Náo parece que tal tenha acontecido, ocupando-se o horticultor simultáneamente da policultura. Existiram também as culturas industriáis. Nos baixios húmidos do Oeste e da Flandres, cultivava-se o linho, o cánhamo e ainda plantas tintórias aclimatadas ao Oriente, o lírio-dos-tintureiros obtido das giestas da Espanha que crescia em muitas regioes (como a Ile-de-France) e, sobretudo o pastel-dos-tintureiros, que fez a for tuna da Picardía ou de zonas como a de Toulouse e os arredores de Erfurt. Os meridionais chamavam pastel a este produto tintório. A cultura do pastel apresentava analogías com a horticultura, requerendo também solos moles e ricos, trabalhados á enxada. A apanha era feita á medida que desabrochavam os botóes, que eram em seguida prensados em pequeños blocos, donde o nome pastel. A procura crescente de téxteis levou a que, por vezes (na Picardía), a sua cultura acabasse por alastrar ás planicies aluviais e aos planaltos onde se plantavam habitualmente cereais, ao ponto de ter chegado a ser introduzida por vezes na rotajao das culturas. No entanto, o pastel-dos-tintureiros exigía muita mao-de-obra, facto que iria limitar a expansáo da sua cultura, apesar da procura cres cente por parte da indústria textil. Foi sobretudo o desenvolvimento da viticultura que modificou as paisagens e contribuiu para o crescimento do comércio de géneros agrícolas e, portanto, para o enriquecimento dos campos, ao mesmo tempo que desenvolvía um dos mais prósperos artesanatos rurais, a tanoaria. Ponhamos de lado os «vinhos da regiáo», que a Franja cultivou cada vez mais abundantemente, salvo no extremo Norte e no extremo Oeste, para nos ocuparmos apenas dos grandes vinhos e dos grandes vinhateiros. Os das regioes marginais, de Mantés a Metz passando por Paris, Soissons e Laon, já outrora favorecidos pela proximidade das regioes sem vinhas, desenvolveram-se prodi giosamente, ao mesmo tempo que os «Países Baixos» se povoavam de uma burguesía cada vez mais rica e que gostava de bom vinho. Os vinhos de F ranja, isto é, ao mesmo tempo os de Paris, de Champagne, da regiáo de Laon e de Soissons, foram produzidos em quantidades cada vez mais consideráveis a partir dos séculos XI e XII. No entanto, a irregularidade da sua produjao, insuficiente sobretudo em anos maus para os gastrónomos do Norte, levou os mercadores a procurar mais a sul um abastecimento complementar, destinado a expedijSes que iam até á Escandinávia: daqui o renome dos vinhos de Auxerrois, de Saint-Pourjain-sur-le-Sioule, dos vinhos 223
do Loire desde o século XII, e também do vinho de Poitou, expor tado pelo porto de La Rochelle para os Países Baixos e para a Inglaterra. No comego do século XIII, o mapa dos grandes vinhateiros de exportagáo sofreu duas modificagoes aliás ligadas. Por um lado, o vinhateiro de La Rochelle viu diminuir a sua importáncia. Os viti cultores da regiáo, atraídos pelo lucro, cometeram o erro de aumen tar a produgáo, sacrificando por vezes a qualidade á quantidade. Por outro lado, na primeira metade do século, a regiáo foi anexada ao dominio real pelos Capetos: a Inglaterra tomou entáo medidas «proteccionistas» e fechou-se mais ou menos a estes vinhos que se tinham tornado estrangeiros, em proveito exclusivo dos vinhos da Gasconha. O vinhateiro bordalés estendeu as suas ram ificares ao longo do Garona e dos seus afluentes: a Gasconha representou desde entáo, e por muito tempo, um exemplo perfeito de uma eco nomia dominada pelas necessidades insaciáveis de um país longínquo. Segura de vender o seu vinho, com preferencia sobre todos os outros, em Inglaterra, a provincia já náo podia viver sem a sua metrópole, realidade de que resultaram as extremas dificuldades de reconversao depois de 1453 e da conquista francesa. A clientela «internacional» manteve-se por muito tempo fiel aos vinhos brancos e leves e também aos claretes, em detrimento dos «vinhos fortes». O «arranque» do vinhateiro de Beaune anuncia-se apenas no século X III (em 1248, o monge italiano Salimbene considera-o um dos tres melhores vinhos do reino). A partir dos anos 1300, vemo-lo figurar á mesa dos Capetos. Mas o pleno desen volvimento dos «vinhos da Borgonha» efectuou-se a partir do século XIV, grasas aos duques que souberam, através da publicidade, difundi-los ñas regióes do Norte, nomeadamente no seu feudo da Flandres, onde destronaram pouco a pouco os vinhos leves de «Franca» 0). O comércio de cereais conheceu também uma grande extensáo visto que era preciso alimentar as cidades e, por vezes, algumas regióes afastadas, demasiado densas para se contentarem com a produgáo local. Este comércio era de uma irregularidade certa porque dependía dos resultados de cada colheita e de possíveis fomes regionais decorrentes de um mau ano: nestas alturas, ás correntes habituais podiam juntar-se correntes provisórias. Por (*) A propaganda é portanto uma invengao medieval, mais precisamente dos viticultores medievais. Os seus «auxiliares eram a medicina, a geografía e, mais ainda, o apoio do rei» (R. Dion). «Muito tempo ainda depois do final da Idade Média, as cidades vinícolas do reino daráo (o maior) valor á honra de fomecer vinho para o uso pessoal do rei.» É evidente que o apoio de um príncipe podia prestar os mesmos servidos á publicidade e, com o desenvol vimento dos vinhos de Borgonha, apercebemo-nos de que os duques o teráo sempre á sua mesa, para beber e oferecer aos hóspedes.
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culpa das fontes, conhecemos melhor o comércio por mar, porque nos portos — sobretudo da Inglaterra — foram conservados registos de taxas alfandegárias desde uma época bastante remota. Conhe cemos, portanto, melhor as exportagóes de trigo inglés para a Flan dres e as de trigo das montanhas da Provenga destinadas ao mer cado genovés. As fontes inglesas dáo também a conhecer um aumento continuo do prego dos cereais, que parece ter comegado por volta de 1150 e constituí a prova de uma procura elevada e em pleno desenvolvimento. Este aumento teria sido mesmo «o mais violento movimento de presos da história da Inglaterra», porque o custo dos «trigos» duplicou, ou triplicou mesmo, talvez, entre os anos de 1175 e cerca de 1225, para se elevar em seguida, embora mais lentamente, até aos anos de 1315. A partir de 1280, as fontes contabilísticas de Saint-Denis confirmam este movimento de aumento continuo em período longo: comparados aos pregos de 1229, os dos anos 1280 sáo no mínimo quatro vezes mais elevados. Assim, «as exploragoes foram constantemente solicitadas a produzir mais para responder ao aumento do consumo» (G. Duby). Um «elemento principal de dinamismo e de progresso no seio da economia rural» foram os administradores ou regentes dos grandes dominios, muitas vezes de origem citadina e verdadeiros «empreendedores investidos de grandes poderes económicos», que haviam «transmitido o incentivo ao mundo dos campos» (G. Duby). Na Ile-de-France, em Inglaterra e seguramente noutras regiSes, a parte dos cereais colhidos ñas grandes reservas e destinada á venda era enorme: perto de metade do produto bruto dos campos da reserva para o temporal de Saint-Denis e também para o do bispo de Win chester. O ponto culminante do comércio de cereais situa-se perto de 1300, apogeu da economia agrícola. Mesmo os senhorios modestos, situados em provincias pouco favorecidas como a Provenga interior, participaram no movimento. O tráfego marítimo cometa va a trans portar para as regioes mais povoadas (como a Flandres) os trigos dos países novos de para além do Elba. Também o tráfego terrestre se desenvolveu, enviando os excedentes da Ile-de-France e do Artois para as grandes cidades flamengas, em grandes carrejas (e, quando necessário, em barcos fluviais). No século XIII, Bruges fornecia-se na Prússia. Em anos desfavoráveis, a área de abastecimento de Paris quase ultrapassava os limites da grande Bacia Parisiense. Por volta de 1180, o prego do gado, até entáo bastante estável, aumentou acentuadamente em Inglaterra, duplicando para os bovi nos e aumentando em 50% para os ovinos. E o desenvolvimento, que iria prolongar-se mesmo depois de 1300, prosseguiu, nao pa rando de aumentar o consumo de carne, queijo, manteiga, assim como o do coiro e da lá. A criagáo de gado tinha-se portanto tornado «acima de tudo uma questáo de dinheiro e de comércio 225
OS PRECOS DOS CEREAIS EM WINCHESTER DE 1208 A 1325
Em cima: i . Pre^o do frumento. — 2. Pre§o do centeio. — 3. Pre^o da cevada. — 4 Pre<;o da aveia. Em baixo; l . Pre^o do frumento. — 2. Curva inversa do rendimento da semente. — ?. Média variúvcl septenal. Os presos sáo dados em shillings por «quartel>'. Executada segundo os relatónos de contas do senhorio episcopal de Winchester, a curva das medias variáveis septenais do pre^o de venda dos diferentes cereais revela, eliminando as tlutua^óes a curto prazo, uma alta progressiva e lenta ao longo de todo o século XIII. Entre 1310 e 1325, uma o scilad o visivelmente mais acentuada corresponde á primeira das grandes carencias alimentares que afectaram a Inglaterra do século XIV. Verificar-se-á que os presos dos quatro principáis cereais se comportam sensivelmente do mesmo modo Se compararmob, relativamente ao primeiro quartel do século XIV, em que os índices documentáis sáo mais abundantes, a curva dos presos do frumento com a curva, invertida, do rendimento das sementeiras. verifica-se que as oscila<;óes dos presos seguem, e mais estreitamente depois de 1310, as fiutua^oes anuais da colheita. Segundo D. L. Farmer, «Some grain price movements in thirteenth century England-. The E conom ic H istory R evif-v, 1957.
Abastecía a casa rural de denários; punha-a em ligagáo com os vendedores de gado e com os negociantes de lá; ligava-a sobretudo ao pequeño burgo vizinho e ás suas feiras de fim de estapáo» (G. Duby), fazendo a fortuna dos donos de grandes rebanhos, os senhores. Em Inglaterra, os rebanhos de ovinos aumentaram continua mente em quantidade e em qualidade. A venda das peles (em particular para pergaminhos), da carne, do queijo e do leite proporcionava grandes lucros. Mas era sobretudo a lá que constituía o objecto da procura dos compradores dos Países Baixos e da Itália. Por este motivo, fizeram-se tentativas continuas para melhorar as rafas e a qualidade das las, frequentemente dirigidas pelos mosteiros cistercienses que praticavam o tipo de criapáo mais racio nal. O Lincolnshire e o Shropshire especializaram-se assim na cria páo de animais de pelo comprido. Estima-se que, por volta de 1300, os efectivos totais de cameiros ingleses seriam cerca de oito milhóes de unidades. O consequente enriquecimento nao abrangeu somente os grandes exploradores: como para a produpáo vinícola de Franpa, considera-se que a maior parte do gado provinha das explorapóes camponesas. Em 1225, numa herdade senhorial próxima de Salisbury, o abade de Glastonbury criava 560 ovelhas, ñas suas térras, e os seus foreiros (cerca de duzentos) 760. Ñas regióes alpinas, o desenvolvimento da criapáo de gado e do seu comércio, ainda bastante mal conhecido, parece ter tido, no século XIII, uma amplitude quase comparavel. Foi entáo que se comepou a organizar convenientemente os prados de montanha, os «alpes». Nos Alpes da Baviera e do Tirol, as pastagens alpinas deixaram de estar desertas e improdutivas: a cada familia de pas tores era confiada uma centena de ovinos e de bovinos; além de guardarem o rebanho, os pastores fabricavam manteiga e queijo. Foi também entáo que se organizou a transumáncia nos Alpes da Provenga: «Através dos acordos de passagem concluidos ao longo dos itinerarios entre os condutores de rebanhos e as comuni dades agrícolas, estabelece-se ... de forma regular, o grande balanceamento sazonal que transportava, á procura de erva mais abun dante, dezenas de milhares de animais entre as montanhas da Pro venga e as grandes pastagens de Invernó da regiáo de Arles» (G. Duby). Noutras regióes montanhosas, como os Pirenéus ou o Macipo Central, desenvolveram-se situapóes semelhantes, sempre a partir do final do século XII. Vejamos um terceiro exemplo tanto mais significativo na medida em que diz respeito a uma regiáo que nada predispunha para uma criapáo excepcional: nem montanhas, nem uma grande procura de lá, como é o caso da Ile-de-France. Relativamente ao ano contabilístico de 1229-1230, é conhecido o número de animais vendidos ñas principáis 227
«granjas» do mosteiro de Saint-Denis. Números eloquentes! Em Maisoncelles-en-Brie, os monges venderam 516 «ani mais de la», 40 porcos, 7 bois, 30 vacas, vitelos e touros vivos: ainda que alguns animais fossem «animais de dízima», isso náo impede que o rebanho deste dominio atingisse vários milhares de caberas, sendo portanto comparável aos grandes rebanhos ingleses. As exploragóes ru ra is no século X III
Nesta altura, convém fazer o ponto da situapáo, uma vez que o século X III foi, ao mesmo tempo, um século de grandes progressos e o último século a conhecer uma prosperidade quase geral nos campos. Em que medida se teráo as estruturas modificado, em fun?áo da penetrafáo crescente das trocas e da explosáo demográfica, cujo apogeu se sitúa precisamente no fim do século?
As exploraqóes senhoriais e os recursos dos grandes poderosos A s granjas senhoriais Os temporais dos senhorios eclesiásticos continuaram frequente mente a aumentar a sua extensáo através de legados e dádivas ou por compra (os fundos provinham de esmolas ou da coloca?ao dos rendimentos dos próprios clérigos). Ainda no fim do século XIII, os monges de Saint-Denis consagravam todos os anos várias cente nas de libras ao aumento da extensáo de um terreno, á compra de um direito, á liquidapáo de um litigio fundiário. No entanto, nem sempre acontecía o mesmo com os temporais mais modestos, onde, pelo menos, a estabilidade era a regra. Em contrapartida, as for tunas laicas estavam sujeitas ás partilhas sucessórias em cada gera£ao, ou mesmo á prodigalidade — que se exagerou— de alguns nobres. Os filhos de um cavaleiro pouco afortunado eram por vezes possuidores de «senhorios fantasmas», sobretudo ñas provincias onde o costume ignorava o direito de primogenitura e permitía que os feudos se dividissem até ao infinito, como a Ile-de-France. Ñas fileiras desta «plebe nobiliária», podemos inserir Adam de Mitry, que, no cometo do século XIV, tinha por senhorio uma reserva composta por uma «casa e pátio» e por seis arpentos de térra (1 arpento = de lU a 1/, de ha), e a quem o feudo rendía anual mente apenas seis sesteiros de cereal de «taxapáo» e quatro soldos de foro. Mas o século X III náo assistiu á debandada das fortunas laicas: tanto em Inglaterra como no continente, os cavaleiros con servaran! numerosos senhorios de extensáo considerável. Náo se verificou uma invasáo burguesa dos campos, excepto sem dúvida 228
em Itália. Aliás, mesmo quando os seus bens já náo lhes bastavam para viver, os cavaleiros náo os aüenavam fácilmente: queriam conservar a térra ancestral e viviam cada vez mais de oficios reais ou principescos. Marc Uloch considerou os senhores do século X III «capitalistas do soio», que tenam sido vítimas das transíormajoes económicas: devido aos arroteamentos e á reacjáo camponesa, a renda senhorial era cada vez mais composia por somas em dinheiro, fixadas per petuamente, ao mesmo tempo que o prejo dos géneros aumentava regularmente. De facto, os senhores, clérigos e laicos, eram tam bém exploradores, conforme testemunha a extensáo que a reserva senhorial conservou C). Em relajáo ás técnicas, e náo obstante o seu progresso, existía em todas as regioes uma extensáo óptima para uma explorajáo. Assim, na Ile-de-France, no final do século XIII, este óptimo era de cerca de 300 arpentos (aproximadamente ISO ha) e manter-se-ia fixo até ao cornejo do século XIX, período em que duplicará, em consequéncia de novos progressos da técnica. Com 400 arpentos de térra, a granja de Tremblay era demasiado vasta. E a maior parte das granjas parisienses tinham, no que diz respeito aos clérigos, menos de 300 arpentos: uma reserva de 200 arpentos era ainda uma bela explorajáo. Muitas explorajdes com esta superficie esta vam ñas máos dos nobres. A parte náo censatária do dominio compreendia os bosques, ainda importantes em extensáo e rendimentos: 6 a 10% das receitas de Saint-Denis provinham dos bosques da abadía, o que correspondía a quatro vezes mais do que os lucros entáo (1280-1305) provenientes dos foros e das rendas. Próximo de cada herdade senhorial havia muitas vezes um lago, indispensável para o abastecimento de peixe aos senhores e aos camponeses, e náo apenas devido ao grande número de días de abstinéncia: em Salogne, os senhores tiravam do lago recursos notáveis (I. Guérin). A parte cultivada era geralmente inferior á parte arborizada ou inculta. Os campos tinham na maior parte dos casos uma superficie superior á das parcelas tratadas pelos camponeses. No que respeita aos modos de explorajáo, é necessário, antes de mais, fazer a distinjáo entre o continente e a Inglaterra. O fairevaloir directo mantivera-se no continente desde a época carolíngia, mas nem os senhores laicos, excepto os que possuíam apenas um senhorio, nem os eclesiásticos, salvo no caso de ordens
O Houve — é certo — alguns loteamentos de reservas no século XIII, menos raros do que no século precedente. Eram sem dúvida devidos á pressáo demográfica dos camponeses e nao, salvo excepcóes, a motivos económicos, dado que os excedentes da produgáo tinham garantía de encontrar comprador. Em geral, esses loteamentos foram limitados, com excep^So da Itália, onde as reservas parecem encontrar-se em declínio.
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religiosas (a de Citeaux principalmente) cujas regras impunham o trabalho manual, dirigiam pessoalmente a explorapáo dos seus domi nios. A adm inistrado era confiada a ministeriais que tinham ten dencia para se libertar da vigilancia do senhor. Persistía, no entanto, um elemento primordial do faire-valoir directo: em principio, a totalidade dos lucros que o administrador náo guardava era entregue, sob a forma de dinheiro contado, ao senhor, que dispunha portanto de rendimentos flutuantes consoante os anos e o ritmo das varia r e s do clima. Para Marc Bloch, o faire-valoir directo teria sido abandonado no século XIII, os senhores ter-se-iam distanciado da térra, por gosto ou por necessidade, transformando-se, por esta razáo entre outras, em «capitalistas do solo», e passando a arrendar as suas reservas. Trata-se de uma visáo demasiado simplificada, que alguns estudos recentes, realizados particularmente em Franpa, vieram alterar. Em primeiro lugar, a distáncia entre o sistema anterior e o novo náo era assim táo grande. Depois de uma tran sid o habitual (con trato de arrendamento vitalicio para uma ou duas gerapóes), veio a affermage, ou seja, o arrendamento a curto prazo (por tres, seis ou nove anos ñas regióes de ro ta d o trienal como a Normandia e a Ile-de-France, mais curto ainda — náo se sabe bem quanto— na Franpa meridional, e mais longo, podendo ir até vinte e quatro anos, na regiáo do Namur). Forpando ligeiramente, podíamos mesmo adiantar que a diferenpa principal residía ñas contas, simplificadas, que o fazendeiro — frequentemente um antigo administrador, um mercador ou um camponés bem instalado, que enriquecía deste modo — apresentava ao seu senhorio, no fim do exer cício. Esta simplificapáo provinha do facto de a renda ser fixa, pelo que, para o senhor, o rendimento náo variava no decorrer do contrato. Esta passagem da explorapáo para o arrendamento náo denota de modo algum um «afastamento do campo», ainda que insensível ou inconsciente. «As tradipóes, as conveniencias, o seu gosto mais profundo... convidavam os mais ricos proprietários fundiários... a ver amadurecer as suas colheitas e crescer o seu rebanho, a beber o vinho da sua vinha» (G. Duby). É impossível acreditar numa verdadeira alterad o da mentalidade dos senhores quando, mais tarde, vemos Carlos V dizer que é seu dever governar o reino como govemava os seus dominios: salva guardadas as devidas proporpóes, o ideal do monarca aparentava-se ao ideal da explorado agrícola. É impossível ver nesta mudanpa do modo de explorapáo qualquer espécie de medo do esforpo por parte dos grandes, que, em Franpa, nos séculos XIV e XV, deram provas de uma coragem admirável para erguer os senhorios das suas ruinas. A affermage, que se difundiu bastante a partir de 1250, aproxi madamente, em todas as regióes da parte Norte do continente, náo 230
chegou a generalizar-se. Na maior parte dos casos, foi apenas apli cada ás granjas mais importantes e ás que, indepeodentemente das suas dimensóes, pertenciam a grandes senhores, laicos e eclesiásticos, que viviam longe e que eram cada vez mais absorvidos pelos servifos do rei, do papa ou dos príncipes (nao seria esta a causa princi pal da expansáo do arrendamento?). As granjas, reduzidas ou médias, que pertenciam a pequeños nobres que viviam com as suas familias ñas casas senhoriais plantadas no meio do senhorio (salvo quando as suas obrigajóes os chamavam a outros locáis), mantiveram-se frequentemente num estado mais ou menos puro de faire-valoir directo. Finalmente, o arrendamento náo era fruto da «ca tástrofe», como muitas vezes se pretendeu: nem a «crise» — náo geral— das abadías beneditinas no século XIII, nem uma falta frequente de máo-de-obra (que está por confirmar), nem a crise de 1315 podem explicar os progressos do arrendamento a partir dos anos 1250. Mesmo ñas reservas maiores, o seu terreno de eleijáo, o arren damento náo teve jamais a sua causa definitivamente ganha, reservando-se os senhores o direito de retomar a explorajáo da sua granja no termo do contrato, o que por vezes fizeram. Além disso, o arrendamento náo abrangia toda a parte cultivada da granja; os prados e sobretudo os cerrados de vinha permaneciam geralmente sob adm inistrado. Assim acontecía na Ile-de-France em todas as granjas de igrejas, onde o rendeiro, oficial senhorial, continuava a dirigir a cultura dos cerrados de vinha e a produjáo de vinho, por conta do senhor. Foram poucos os contratos de arrendamento conservados (por que os conservaría o senhorio depois de terem expi rado?) e a nossa principal fonte provém das contas, sobre tudo das contas senhoriais da Ile-de-France e de outras regióes. No contrato, o rendeiro comprometia-se a náo forfar a térra, a conservar os edificios (ficando as reparajoes a seu cargo) e os instrumentos, a dar contas do gado morto; náo devia também interromper as rotajoes, nem utilizar todo o feno, palha e trabalho dos animais nos imóveis alugados. A garantía do senhor contra a má-fé ou a eventual insolvéncia dos rendeiros (as pessoas associavam-se para arrendar os dominios maiores) residía numa hipoteca ou em caujoes. Para definir o contrato, encontravam-se, ao lado da palavra «renda», outros termos como «amodiation» (forma de arren damento, de modus = medida), por exemplo na Normandia e na Ile-de-France, ou «moison», colheita de cereais. De facto, para além de uma quantia em dinheiro pagável em uma ou duas prestajóes anuais, o arrendatário comprome tia-se também a pagar uma certa quantidade de trigo e de aveia, o que permitía ao senhor tirar partido de um even tual aumento dos prejos dos cereais, durante a vigéncia do contrato, e consumir o produto dos seus campos. Apesar de venderem no local uma parte da colheita, os senhores exi231
giam que o excedente lhes fosse entregue para o venderem na cidade ou para seu próprio uso. Este arrendamento, pago totalmente em espécies, ou metade em dinheiro e metade em géneros, ou ainda exclusivamente em géneros, representava em especial o aluguer da granja, corte ou censo (nos Países Baixos, o arrendamento chamava-se frequentemente censo). Quanto ao resto, o arrendamento representava o prego do aluguer das dízimas (no caso de as haver) e de alguns direitos senhoriais (foros e rendas, direito de baixa justipa, direitos de champart). Com efeito, o rendeiro alugava também uma parte dos direitos do senhor sobre as tenures. Outros direitos, sobre os edificios banais, eram alugados separadamente: os moinhos a moleiros, as prensas a vinhateiros... prática de que encontramos vestigios desde a época carolíngia. Finalmente, e salvo em caso acidental, uma reserva alugada raramente voltava a ser administrada, o que representa a melhor prova de que as vantagens do novo sistema eram grandes. Vigiar o rendeiro era menos trabalhoso do que vigiar o administrador. O senhor assegurava assim o usufruto de um rendimento regular durante vários anos. Podia inclusivamente — progresso enorme para as grandes fortu nas fundiárias — estabelecer o seu ornamento e prever antecipadamente uma grande parte das suas receitas totais, náo se encontrando as suas despesas sujeitas aos encargos diver sos e bastante imprevisíveis da explorapáo directa. E, quando os prepos aumentavam, aumentava o valor do arren damento quando este expirava. Tal como na época actual, por volta de 1300-1320, o arrenda mento era bastante comum principalmente nos Países Baixos e na Franpa a norte do Loire. É, no entanto, conveniente notar que á «renda» vinha frequentemente juntar-se o arrendamento separado de frutos e pastos, celebrado sob a forma de contrato de métayage, para o gado senhorial. Os contratos de métayage puros, para as térras e para o gado ao mesmo tempo, eram mais comuns ao sul do Loire e ñas regióes mediterránicas («facherie» provenpal, «mezzadria» italiana), onde podiam coexistir com o arrendamento (exis tente tanto na Sologne e no Bordelais como na Lombardia e na Provenpa). Em principio, a métayage oferecia uma nítida vantagem para o senhor: se, no decurso de um arrendamento (com a durapáo de al guns anos), a produtividade do dominio aumentasse, este seria bene ficiado. Mas a grande irregularidade das colheitas de ano para ano e a preocupapáo constante de ter que vigiar o «parceiro» para que este náo ocultasse parte dos «frutos», ocupavam tanto tempo como a própria administrapáo. Daqui resulta o hábito frequente de reduzir a periodicidade dos arrendamentos e a substituipáo, menos excepcional do que se pensa, do sistema de métayage pelo arren damento. 232
A parte do senhor era muito variável, nem sempre atingindo metade dos lucros. Por vezes era de dois tercos, outras de um terjo ou mais baixa ainda, no caso de térras menos férteis. A diferenja fundamental entre o arrenda mento e a métayage, para além da irregularidade dos lucros do senhorio, residía no facto de, na métayage, os encargos serem partilhados entre as duas partes e geralmente na mesma proporjao que as receitas. De tudo o que foi dito, podemos tirar uma conclusáo bastante evidente: no continente, nasceram, no século XIII, dois tipos de arrendamento temporario, que iriam durar mais tempo do que o senhorio rural, visto que ainda hoje existem. De notar ainda que a sua distribuido geográfica de entáo náo se modificou fundamen talmente desde há sete séculos. Aproximadamente ao mesmo tempo que se instaurava no con tinente, o arrendamento sofría um vivo retrocesso em Inglaterra, onde o seu aparecimento fora muito mais precoce (náo haveria, no entanto, alguns indicios de precocidade noutras regiSes?). A partir do final do século XI, á cabera das unidades senhoriais das igrejas inglesas encontrava-se frequentemente um firmarius, concessionário que recebera «todos os poderes do senhor» para um período de tempo aliás mais longo do que no continente do século XIII, dado que muitas vezes era vitalicio. Tratava-se, portanto, de um contrato de arrendamento geral, que implicava «um pesado servido de abastecimento» da casa senhorial. O processo náo era muito mau, tuna vez que, ñas térras do mosteiro de Ramsey, o produto das quintas iría duplicar entre 1086 e 1140 (S.-A. Raftis). Mas, no último quartel do século XII, este sistema de arrenda mento geral foi abandonado pouco a pouco: Ramsey e Ely náo renovaram os contratos de arrendamento depois de 1175, porque o produto das rendas náo era suficiente para equilibrar as suas recei tas e as suas despesas. Nos grandes senhorios monásticos do Centro e do Leste de Inglaterra, voltou-se entáo ao sistema de explorado directa, que iria recorrer a métodos «arcaizantes»: deixou de se aceitar dinheiro em troca das rendas em trabalho e voltou-se a um modo de explorado «de tipo esclavagista» (G. Duby). Os lajos de homem para homem recuperaram o seu vigor na herdade: «Abateram-se sobre a vilanagem servigos em trabalho, especialmente ser vidos de lavoura, táo pesados como no século XI.» Nenhuma isend o foi concedida e todos os dependentes tiveram de trabalhar nos campos do senhor: assim, entre 1221 e 1251, os weekworks exigidos nos senhorios da igreja de Ely aumentaram em 10%. Durante este período, a adm inistrado foi reorganizada, sendo um dos viláos designado pelo senhor para o cargo de reeve, encarregado da direcd o da explorado e da venda dos excedentes, que era vigiado (como 233
o eram em Franca os administradores do século XIII) por rendeiros ou por prebostes. Mesmo ñas grandes herdades da Igreja, e a despeito dos pesados servidos em trabalho de novo exigidos, era preciso recorrer, cada vez mais e acompanhando os progressos da expansáo, á máo-de-obra assalariada, fácil de contratar num país superpovoado e cheio de camponeses sem térra e no qual os salários — ao contrário dos pro dutos do solo — se mantiveram estáveis durante todo o século XIII e cometo do seguinte. A fortiori, vieram a utilizar-se assalariados para a valorizado das reservas, ñas herdades de menores dimensoes que se encontravam ñas máos de clérigos ou de laicos. Tal como no continente, estas reservas pequeñas e médías eram cada vez mais numerosas, pelo que náo tiveram de recorrer muito ao trabalho forjado, cujo «ressuscitar» no século XII foi afinal bastante limi tado.
A composigao das receitas senhoriais
A partir do fim do século XII, os arquivos apresentam contas doinirtiais, em primeiro lugar e principalmente em Inglaterra. Tratar-se-á apenas de um acaso de conservado? É de supor que tal se verifica devido ao facto de os senhores de entáo se terem rodeado de profissionais que, a pouco e pouco, criaram e desenvolveram a contabilidade rural, cuja história se comepou a fazer (G. Sivéry). Segundo as contas de Inglaterra, a reserva náo parece ter um papel preponderante no conjunto das receitas: em 1255, a reserva rendía á igreia de Ely uma média de metade dos seus recursos e, em 1298, náo lhe fornecia mais de 40% . De facto, em Ely, a admi n istrad o comepou a declinar na segunda metade do século XIII, ao mesmo tempo que se procedía ao loteamento em tenures de uma parte das térras da reserva. No continente, pelo contrário, o produto da reserva, arrendada ou náo, tem uma preponderancia notoria para o conjunto das recei tas senhoriais. O comendador de Saint-Denis, que administrava cerca de 80% do temporal da abadia real, retirava perto de 80 a 85% das suas receitas totais das «granjas» da abadia, mesmo náo contabilizando o contravalor em dinheiro dos produtos das colheitas consumidos e náo vendidos. Isto acontecia tanto em 1229 como no fim do século XIII. Entre 15 e 20% dos excedentes provinham muito mais dos bosques, dos terrádigos e das peagens do que dos feudos. Por sua vez, estas náo arranjavam dinheiro através dos fo ros (apenas 2 % do conjunto das receitas totais em numerario), mas sobretudo através das banalidades, dos direitos de justipa e de mu 234
ta?áo. Em 1332, no seu dominio de entre o Sena e o Loire médios, Filipe VI recebia mais dinheiro apenas das banalidades do que dos feudos. A s exploragdes camponesas O facto de os senhores terem concentrado os seus cuidados ñas «granjas» náo se deveu apenas ao amor pelas suas térras, mas tam bém, em parte, á luta contra o enfraquecimento dos foros. Estes últimos eram perpétuos e frequentemente cobrados em dinheiro: uma tenure só voltava para o senhor, que a podia voltar a conceder em foro por um montante mais elevado, em caso de ficar vaga ou de ser apreendida por náo pagamento do foro. Ainda que, originalmente, o foro tivesse representado o «valor locativo» — o que é duvidoso —, isso já náo acontecía á medida que se avan?ava pelo século XIII: o valor da térra continuava a aumentar, ao mesmo tempo que o dos géneros agrícolas, enquanto a moeda sofría o desgaste próprio de todos os signos monetários. O camponés era favorecido por estes fenómenos. Quererá isto dizer que a condijáo dos rurais melhorou no século XIII? De forma alguma. Muito antes dos anos 1300, a «fome de terras» foi um facto geral no Ocidente, excepto ñas térras de colonizado da Alemanha Orien tal e da Península Ibérica. A em igrado para as cidades representou apenas um fraco alivio para os campos superpovoados. Ñas próprias regioes «urbanizadas» como a Itália, a Ide-de-France e os Países Baixos, a maior parte das tenures estavam bastante reduzidas. Nos cantóes mais favorecidos, as maiores tenures podiam, de facto, atin gir os cinco ou sete — raramente dez — hectares. Pelo contrário, perto de Saint-Denis, em Garges, sessenta e seis familias em noventa e sete dispunham apenas, além da sua casa e pardieiro (com uma extensáo média de 5 a 6000 iri2 na Ile-de-France), de um peda?o de vinha ou de térra geralmente inferior a um arpento. Dezasseis familias tinham duas parcelas, nove dispunham de tres, tres possuíam quatro, uma sete e outra oito. Uma única familia detinha catorze campos e vinhas, totalizando mais de 24 arpentos (doze hectares), 18 dos quais utilizados para lavoura. Isto acontecía em 1311. Pouco depois, em Mesnil-Amelot, na planicie francesa, o feudo do capítulo de Notre-Dame, constituido por 155 arpentos, encontrava-se fragmentado em 271 pedamos que eram partilhados por 171 censatários! Mais uma vez, um único «galo de aldeia» detinha só para si mais de dez parcelas. Deste modo, era muito pouco elevado o número de camponeses náo demasiado desprovidos de térra, cujo nivel de vida era conveniente e entre os quais os grandes proprietários recrutavam os seus rendeiros. Daqui resultava um angustiante problema de sobrevivencia, que os homens enfren-
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tavam entáo, como o tinham enfrentado, por outros motivos, os seus antepassados da primeira Idade Média. Poderá pensar-se que pelo menos estas minúsculas tenures suportavam encargos reduzidos, uma vez que o montante dispendido para pagamento do foro representava um poder de compra cada vez mais fraco, enquanto a térra, duramente disputada, valia cad' vez mais; as contas dominiais assim o testemunham. Foi de factr porque a térra valia cada vez mais que os camponeses se sentiram tentados, a partir do fim do século XII, a sobrecarregá-la. De tal modo que, por volta de 1300, aos foros e ás taxas estabelecidas pelo costume (enquanto náo aumenta o peso do fisco real), vem juntar-se, na maior parte das tenures, o servipo de rendas perpetuas, principal forma de crédito rural. De facto, os camponeses do século X III recorreram, e cada vez mais frequentemente, ao crédito, abrindo assim vastas perspectivas de investimento aos detentores de capitais mobiliários. Contraíram empréstimos junto de mercadores que frequentavam as aldeias, junto dos usurários profissionais, «lombardos» ou judeus que emprestavam sob penhora e que, precisamente no século XIII, se espalharam pelos campos — os judeus ñas regióes meridionais e os italianos um pouco por todo o lado. Assim, os Gallerani, financeiros do Sena instalados em Paris (1302-1305), emprestaram diversas pequeñas quantias (raramente superiores a 10 Lb.) a muitos cam poneses da regiáo, sobretudo na altura das sementeiras. Os grandes e os burgueses foram agentes de crédito agrícola infinitamente mais importantes. Os seus empréstimos eram entáo feitos de outra maneira. A prática das rendas, surgida em Franpa no fim do século X II e em progresso na primeira metade do século XIII, passou a ser «universalmente usada» a partir dos anos 1240-1250. Surgida a partir do momento em que o costume considerou a tenure alienável, esta prática era uma subconcessáo que podia ter duas formas, que podem ser encontradas depois de 1170 na Ile-de-France, provincia precoce, e apenas a partir de 1300, apro ximadamente, no Sudoeste da Franpa. No arrendamento de renda perpétua, o foreiro, senhorio, cedia o seu dominio útil ao arrendatário, o qual passava a ser possuidor do fundo mediante o pagamento ao antigo foreiro de uma renda que onerava a térra (e mediante o pagamento ao senhor das rendas estabelecidas pelo costume): os camponeses ampliavam a sua explo rapáo por este processo, que nada tinha a ver com o crédito rural. A constituipáo de renda perpétua era de facto, pelo contrário, além de um meio de investimento para os detentores de capitais, um processo de crédito rural, aliás, o mais comum. Através da constituipáo de renda, o possuidor (que se tomava «capitalista de débitos») náo se despojava do usufruto do seu imóvel, vendendo apenas ao «capitalista de créditos» o direito de receber anualmente
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e «para sempre» uma renda sobre essa heranja. A renda ficava geralmente compreendida entre o denário doze (8,33 % ) e o dená rio vinte (5 %). Na Ile-de-France, esta última taxa de lucro parece ter sido a mais frequente durante muito tempo. Embora muito diferentes, estes dois contratos tinham pontos comuns: a renda era perpétua e constituía um crédito imobiliário. Os costumes tomaram a seu cargo decidir que a renda fixa, em dinheiro ou em géneros (no segundo caso, frequente, quem adquiría a renda participava no aumento dos prefos agrícolas), que se sobrepunha ao foro, nao tinha qualquer carácter senhorial. Esta «decisao» tinha por objectivo tranquilizar os senhores que, inicialmente, haviam encarado mal este «cncurtamento» da tenure, cujo dominio eminente possuíam, sobretudo quando se tratava de arrendamento de renda. No que respeita á constituido de renda, foi rápidamente reconhecido ao senhor o direito de cobrar laudémios e vendas, como no caso de alienado completa. No que se refere ao arrenda mento de renda, os senhores conservaram durante muito tempo o direito de autorizar ou náo a conclusao do contrato. Depois, para além do direito de também aqui contar laudémios e vendas, os cos tumes reconheceram ao senhor do fundo a possibilidade de evocar o adágio «foro sobre foro náo vale». Uma vez afastados todos os perigos antes existentes para o detentor do dominio, este deixou de se opor. Isto acontecía sobretudo porque, em muitos casos, era o próprio senhor, e náo um burgués da cidade vizinha, quem beneficiava des tas rendas. Assim, por volta de 1300, quase todas as tenures da regiáo parisiense estavam oneradas por uma renda, mas esta era muito frequentemente recebida pelo senhor. Na realidade, este ex plorara as necessidades de dinheiro dos seus próprios foreiros: entre 1230 e 1270, os aldeáos tinham desejado pagar as suas franquias ou tinham abonado a talha, as banalidades, ou mesmo as dízimas e tiveram necessidade de dinheiro para pagar os primeiros premios da abonado. Foi o próprio senhor quem adiantou os fundos, com prando rendas, que surgem portanto como «um reforjo do foro» e, ao mesmo tempo, como um estabelecimento do «aluguer» da tenure. Só as familias mais abastadas, que nao tinham necessidade de contrair empréstimos para comprar as «fraquezas», se tinham «verda deram ente libertado». Mas estas eram pouco numerosas. Demasiado exigua e de novo seriamente sobrecarregada, a tenure média náo podia por si só fazer viver o camponés de 1300, mesmo com o reforjo constituido pelas cabejas de gado que mandava pas tar para os «comunais» e para a floresta senhorial. Se a miséria se mantinha limitada era porque os camponeses dispunham de recur sos complementares: alugavam os seus servidos nos momentos de aperto ñas térras e nos prados, ñas vinhas da reserva, realizavam trabalhos artesanais, como o fabrico ou a reparado de tonéis nos 237
meses que precediam as vindimas... A proximidade de uma cidade activa, quando esta tinha uma indústria textil próspera, proporcionava outros trabalhos complementares. A s indústrias rurais sáo ainda muito mal conhecidas relativamente ao período anterior ao século XIV, mas é certo que os camponeses — e mais ainda as camponesas— participavam nalgumas fases do fabrico de tecidos, nomeadamente durante o Invernó (cf. infra, pp. 258).
Capítulo 9
AS CIDADES E O SECTOR SECUNDARIO
O desenvolvim ento urbano do século X I ao século X III
O dinamismo demográfico, verificado no Ocidente no decorrer destes trés séculos, permitiu, ao mesmo tempo, uma ocupado dos campos mais densa e mais completa e um brilhante desenvolvimento das cidades e das actividades urbanas. A s causas do desenvolvimento urbano: fados e hipóteses Para Pirenne, saíra-se de facto do nada quando, na segunda metade do século X, surgiram os primeiros síntomas de um renascimento urbano. Anteriormente, as cidades antigas — ou cidades «pré-normandas» — seriam desprovidas de qualquer importáncia económica, trabalhando os artesáos apenas para os clérigos e subsistindo só através dos campos, grabas ao abastecimento do pequeño mercado local pelos camponeses das redondezas. Também os «bur gos» (locáis de abrigo protegidos por uma torre e por uma palizada), edificados em pontos estratégicos no período de inseguranga provo cada pelos Vikings, náo teriam tido qualquer actividade económica. Seria o reaparecimento do comércio, a partir do fim do século X, que faria ressurgir as actividades propriamente citadinas e, portanto, as próprias cidades: grupos de mercadores errantes, vindos de muito longe, ter-se-iam instalado, para passar o Invernó ou para guardar as mercadorias e abrigar as suas familias, junto da cidadela pré-normanda, do «burgo» ou da fortaleza feudal, ou perto de abadías, que também eram fortificadas no tempo dos Vikings. Daqui resulta a expressáo «núcleo pré-urbano» utilizada para designar estas diver sas localidades (F.-L. Ganshof). Foi, portanto, fora dos recintos desses «núcleos» que os negociantes fundaram o que viria a ser a parte essencial da cidade futura, o portus. Segundo Pirenne, na Flandres e na Inglaterra, este termo deu origem a que os habitantes do «porto» se chamassem poorters ou portmen, designa?5es que, 239
durante muito tempo, foram sinónimos de burgués, dado que a burguesía primitiva se compunha exclusivamente de homens que viviam do comércio. Já antes do fim do século XI, estes homens passaram a ser designados através do novo termo burgués, porque «desde muito cedo, o aglomerado dos mercadores (concentrado em funjáo dos “burgos” ou das velhas cidadelas) foi também rodeado por uma muralha ou por uma palijada indispensável á sua seguranza, tornando-se assim, por seu turno, um “burgo”. O alargamento de sen tido compreende-se tanto melhor na medida em que o novo burgo nao tardou a levar a melhor sobre o antigo. Nos centros mais acti vos da vida comercial, em Bruges por exemplo, o novo burgo encerra já por completo, no cornejo do século XII, a fortaleza que inicialmente lhe servirá de ponto de concentrado. O acessório pas sou a ser essencial e os recém-chegados levaram a melhor sobre os antigos habitantes. Neste sentido, é rigorosamente verdadeira a afirm ajáo que diz que a cidade da Idade Média e, por conseguinte, a cidade moderna, teve o seu berjo no arrabalde da cidadela ou do burgo que determinou a sua localizado» (H. Pirenne). Este quadro é indiscutivelmente válido para a regiáo flamenga que Pirenne tomou para base da sua teoria, ainda que alguns portus sejam mais antigos, datando dos tempos carolíngios ou pós-carolíngios. Com efeito, por volta do ano 1000, havia poucas cidades nesta regiáo. Poder-se-ia, no entanto, argumentar que esta teoria náo reconhece qualquer papel aos condes da Flandres: na realidade, a criafáo de cidades, sobretudo no interior da regiáo, foi encorajada por estes condes que, no século XI, fundaram castelos e colegiáis, que iriam conduzir ao aparecimento de diversos aglomerados, alguns dos quais destinados a um futuro brilhante, como Lille (J. Dhondt). Em contrapartida, o quadro esbojado por Pirenne é igualmente em parte válido para as cidades — forzosamente novas — dos paises novos, como as cidades hanseáticas da Alemanha. Mas Pirenne, e mais ainda os seus discípulos, pretenderam alargar a sua aplicado a todo o Ocidente, por exemplo, a toda a parte Norte da F ranja (V. Vercauteren) ou á Inglaterra. Os «burgos» ou wiks anglo-saxónicos teriam sido apenas núcleos pré-urbanos, só aparecendo a cidade no pleno sentido do termo depois da instalajáo do reino normando (C. Stephenson). Sabe-se, no entanto, que nem sempre houve um hiato urbano decorrente das incursóes vikings e que a continuidade urbana se encontra quase sempre provada, mesmo na Flandres (Arras, Saint-Omer, Gand), desde a época carolingia, e por vezes até desde os tempos merovíngios (como no vale do Mosa). Os primeiros mercadores e os primeiros artesáos surgiram, portanto, frequentemente muito tempo antes do ano 1000. 240
Ainda para Pirenne, foi o renascimento comercial que deu ori gem ao renascimento urbano, só depois dele se afirmando o desen volvimento do artesanato: «O afluxo dos mercadores aos locáis favoráveis provocou rápidamente o próprio afluxo dos artesáos aos mesmos locáis.» Estes mercadores, verdadeiros fundadores das cida des, teriam sido «forasteiros», «desenraizados», portanto, homens errantes que finalmente teriam abandonado a sua vida aventurosa, e náo homens da térra. Com efeito, tais homens só podiam ser «novos ricos», vindos de bastante longe, dado que, anteriormente, a actividade comercial e o artesanato (ele próprio em grande parte rural) tinham sido apenas actividades secundárias e intermitentes, exercidas pelos agentes dominiais ou pelos domésticos empregados pelos grandes. Mas, com o renascimento do século XI, estas activi dades tornar-se-iam, pela primeira vez, profissóes independentes, cujos membros só podiam ser «homens novos». E seria inútil pro curar um lafo de filiafáo entre eles e o pessoal servil ligado ás ofi cinas dominiais ou os ministeriais outrora encarregados de comprar e vender por conta da aristocracia. Os mercadores e os artesáos ter-se-iam ¿mediatamente manifestado como seres livres, numa época em que a servidáo teria sido «a condifáo normal do povo» (tal como Marc Bloch, Pirenne pensava erradamente que quase to dos os rurais de entáo estavam privados de liberdade). Estes «desen raizados» teriam sido homens desprovidos de térra, portanto de senhor, vivendo á margem de uma sociedade na qual só a térra ga rantía a existencia e servia de base única ás rela^oes sociais. Alguns destes homens errantes teriam andado de mosteiro em mosteiro, pedindo esmola ou alugando os seus servidos como operarios agrí colas. Outros ter-se-iam integrado como mercenários nos barcos venezianos ou normandos. Outros ainda teriam conseguido ser con tratados para as caravanas dos mercadores ambulantes cujo número aumentava. Os que tinham mais sorte, os mais hábeis, os mais aventureiros, teriam acabado por fazer fortuna, como testemunha Godric de Finchal, que Pirenne transformou no prototipo do «novo rico». Estes pontos de vista sáo muito mais sedutores do que convin centes. É neles que se encontra a base de uma fraqueza maior, que é o esquecimento do que foi, no século XI, a evolufáo das popula r e s rurais e da economia dos campos. É devido a este esquecimento que se transforma o mercador «desenraizado» no tipo normal do negociante do século XI, e que, ao fazé-lo, se nega o peso decisivo do desenvolvimento da economia rural sobre o desenvolvimento urbano. É certo que, durante muito tempo, em Inglaterra, os tribunais de comércio se chamariam «cortes dos piepowders» ( = pés poeirentos), mas só este argumento náo basta. Até ao século X, os camponeses viveram de facto, e em resumo, de uma forma muito sedentária, amontoados em terreiros demasiado 241
pequeños, estabelecidos no meio das charnecas, dos bosques ou dos pantanos, de onde só raramente saíam. Mas os aperfeijoamentos técnicos dos séculos XI e X II deram maior mobilidade á populajáo. Mais numerosos do que outrora, peregrinos, viajantes, mercadores, foram clientes dos camponeses que lhes vendiam os produtos das suas térras. Alguns desses camponeses foram mesmo instalar-se, em número sempre crescente, como padeiros, carniceiros, taberneiros... ñas cidades. E os pescadores ribeirinhos dos cursos de água navegáveis tomaram-se bateleiros. Por seu turno, os minis teriais das igrejas comejaram a pouco e pouco a comerciar por sua própria conta de tempos a tempos, até ao día em que alguns deles se tom aram verdadeiros mercadores independentes. Náo es quejamos também o papel dos detentares de solo urbano que, por exemplo em Gand, aproveitaram o afluxo dos camponeses dos arredores para lotar os novos bairros das cidades. Deste modo, á teoria de Pirenne vem opor-se uma tese que considera a transfor madlo de um pequeño burgo em cidade um processo complexo, inicialmente insensível e depois acelerado. Teráo sido os primeiros burgueses «filhos de ricos» ou «novos ricos»? Na realidade, verificaram-se os dois casos, em proporjóes variáveis de uma cidade para outra; em Arras, por exemplo, encontramos sobretudo «filhos de ricos» (J. Lestocquoy). Que resta entáo das teorías de Pirenne, demasiado atacadas depois de terem sido demasiado admiradas? Em primeiro lugar, essas teorías mostraram que, pelo menos nalguns casos, o impulso decisivo pode ter partido de mercadores, inicialmente errantes — pois náo se trata de negar a existencia de traficantes «desenraizados». Por outro lado, Pirenne foi o primeiro a acentuar a funjáo econó mica da cidade medieval: antes dele, os historiadores perdiam-se em discussóes demasiado jurídicas sobre o estatuto dos citadinos, da térra intra muros... Pirenne destacou bem a importancia do elemento mercador e do papel do mercado como elemento de fixajáo urbana, nestas cidades. mesmo ñas mais modestas. Testemunham-no ainda as vastas prajas, desproporcionadas em relajáo ao tamanho do aglomerado no momento em que foram desenliadas, que se encontram quase intactas em Bruxelas, em Lille e sobretudo em Arras (onde há duas). Por outro lado, Pirenne demonstrou bem que, ñas cidades, o papel dominante, e náo apenas em matéria económica, foi desempenhado pelos mercadores, mais exactamente pelos grandes mercadores, que sempre se destacaram nítidamente tanto dos pequeños comerciantes de géneros alimentares como dos artesáos. Contudo, a praja de comércio náo foi táo grande, em todas as cidades, como Pirenne a via, a justo título, ñas poderosas cidades dos Países Baixos. Sáo necessários estudos mais numerosos sobre as chamadas cidades «secundárias» (J. Schneider), ñas quais, depois 242
do sucesso inicial, a populado nem sempre aumentou muito e cuja influencia económica teve sempre um curto raio de acfáo: teráo os artesáos tido aqui mais peso do que os mercadores? Teráo também tido um papel importante, nos primeiros tempos da cidade? Muitas cidades mantiveram-se semi-rurais, como Aire-sur-la-Lys, Nivelles no Brabante, os aglomerados «urbanos» da regiáo de Ma cón, ou Provins e as outras cidades de feira na regiáo de Cham pagne, com excepfáo de Troyes. Nestas cidades, artesáos e mesmo mercadores ainda cultivavam os campos, as vinhas, e mandavam o seu gado para os pastos próximos das muralhas. Mas vamos um pouco mais longe. Terá sido realmente a econo mia a desempenhar o primeiro papel em todas as cidades? Esta interrogado obriga-nos a voltar ás origens e aos comefos das cidades mais ou menos novas e ao «despertar» das antigas. Teráo todas elas conhecido um arranque ou uma transform ado essencialmente económica? Na realidade, a partir do século XI e de mais tarde ainda, existem muitos casos diferentes. Diversidade dos aspectos e dos destinos urbanos No Ocidente, destacam-se diversos sectores urbanos (E. Ennen). Na Inglaterra e na Alemanha do Norte, a populado, que durante muito tempo se manteve dispersa, era dominada por grandes proprietários fundiários que, até ao século X, ignoravam as cidades. Nestas zonas havia, no entanto, wiks, pontos de apoio para os mer cadores ambulantes seguidamente organizados em associa^oes pro fissionais, e aparentemente a maior parte das cidades teria nascido dos wiks ou portus. Na zona intermédia da Europa do Noroeste, a tra d id o romana conservara-se parcialmente ao longo das idades. Regra geral, á medida que nos afastamos do Norte, diminui a importancia do wik ou do portus e aumenta a da civitas. A uniáo da colónia mercantil náo fortificada com o castrum ou a civitas é frequente, o que explica que Pirenne. náo sem uma generalizado abusiva, tenha podido edificar a sua teoria partindo de exemplos encontrados nos Países Baixos. Entretanto, ñas regióes mediterrá neas, náo existe o dualismo castrum ¡civitas burgus/portus. A unidade e a continuidade da civitas mantém-se como regra. As cidades sáo muito próximas urnas das outras. Como no passado, os grandes, os nobres, continuam a residir nelas: o senhor rural vive apenas uma parte do ano no seu dominio das planicies, passa o resto do tempo numa mansáo urbana dominada por uma torre, e náo hesita, nalguns casos, em investir no comércio uma parte dos seus bene ficios fundiários. Também os mosteiros mediterránicos se estabeleceram frequentemente nos próprios limites das cidades. Existe portanto uma élite urbana composta por nobres e clérigos, além 243
dos mercadores, cujos efectivos aumentaram ainda a partir ao se culo XI. A sociedade é aqui mais unitária do que noutros locaií e todos os seus componentes participam largamente no movimento comercial ou mesmo artesanal. Nesta regiáo, as cidades novas constituem a excepfáo (no ano 1000, Veneza já náo é uma cidade nova) e seria bastante difícil distinguir cidades únicamente religiosas (excepto Roma), políticas, militares ou mercantis. Desde antes do século XI, todas as actividades, todas as élites se encontram aqui muito mais inextricavelmente ligadas do que noutros locáis. Desde muito cedo, os mercadores sentiram a necessidade de se unir a fim de se entreajudarem ñas opera?5es comerciáis, tanto para a organizado dos seus comboios como para opor uma frente comum, no seu porto de descarga, ás autoridades senhoriais ou principescas. Desde os anos 1050, surgiram algumas associafóes com fins profissionais e religiosos. Os regulamentos mais antigos que foram conservados sáo os da Karitet de Valenciennes (cerca de 1050-1070) e da Guilda de Saint-Omer (antes de 1080). Vários artigos desses regulamentos tém um carácter mais caridoso e reli gioso do que profissional. Depois, estes agrupamentos laicizaram-se e concentraram-se sobretudo nos problemas profissionais. Os objectivos de seguranza (para as viagens em grupo...) foram também progressivamente suplantados pela preocupado de afastar novos concorrentes, de garantir o monopólio da venda num mercado local (guildas) ou do tráfico com um mercado estrangeiro (hansas). Inicialmente simples movimentos de entreajuda, as guil das, numerosas nos Países Baixos, na Bacia de Paris, em Inglaterra e na Renánia, conseguiram regulamentar o negócio urbano de forma «monopolística», ou mesmo dominar toda a vida urbana. E, se a cidade era favorecida pela geo grafía, a guilda que a dirigía dominava ao mesmo tempo todo o interior do país, como a Hansa (que era de facto uma guilda) dos Mercadores de Água em Paris. A s hansas eram agrupamentos mais vastos, destinados a operar sobretudo no estrangeiro, limitando o número de participantes nos grandes tráficos, e a organizá-los em seu proveito exclusivo. Havia-as nos Países Baixos, em Ingla terra, na Alemanha (mas é preciso nao as confundir com a Hansa Teutónica, formada quanto ao essencial no século XIII, e que foi uma associado talvez táo política como económica de numerosas cidades). Nos Países Baixos, chegou a haver hansas interurbanas; todavia, com excepdo da hansa das 17 cidades (constituida tendo em vista o tráfico ñas feiras de Champagne), estas foram, no seu conjunto, frágeis e efémeras. As guildas e hansas foram um factor de em ancipado urbana menos eficaz do que a «conjuratio», juramento de entreajuda que ligava todos os possuidores de bens fundiários. Este juramento
permitiu a ob ten do de uma «comuna» ou, pelo menos, de uma carta de franquía, a partir do fim do século XI. Algumas causas da «revolufáo comunal» foram de ordem jurí dica (vontade de escapar aos tribunais senhoriais, duros e inadap tados e que aplicavam um direito que ignorava o comércio e os mercadores), e outras de ordem política: a sociedade de negociantes já ricos procurou sacudir o jugo de uma sociedade «terriária», dotando-se de instituifóes próprias, bem diferenciadas das do meio rural. Mas diversas outras causas eram puramente económicas: o desenvolvimento comercial era prejudicado pela ineficácia da protecfáo senhorial em favor das trocas, dos mercadores de feira que frequentavam o mercado urbano e as exacfóes, que muitos senhores exerciam sobre o mundo do negócio, eram também um obstáculo sério. Os resultados obtidos pelas colectividades urbanas foram mais ou menos consideráveis. Uma coisa pelo menos é certa: as consequéncias do movimento de aforamento das cidades, favorecendo o comércio e os mercadores, permitiram frequentemente que estes últimos lanfassem a máo a toda a «política comercial» da sua cidade, mesmo quando náo conseguiam apropriar-se da própria adm inistrado urbana. Em todo o caso, náo houve «democracias urbanas» e foram os grandes mercadores que deram o tom sozinhos. O exemplo de Paris, que náo foi uma comuna, ilustra bem o sucesso do mundo mercantil. A Hansa parisiense dos Mercadores de Água constituiu-se no fim do século XI para lutar contra a crescente prosperidade de Ruáo, favorecida pela conquista da Inglaterra pelos Normandos. Paris náo era sequer um ponto de paragem obrigatório para os homens de Ruáo que subiam o Sena e os seus afluentes até á Champagne e á Baixa Bor gonha a fim de procurar vinho. A Hansa pretendeu tornar-se senhora do comércio do centro da Bacia Parisiense: para comefar, obrigou todos os feirantes que navegavam entre Mantés e Paris a associar-se a um burgués «hansado». Tratava-se do primeiro monopólio hanseático. Desde a sua entrada na história, a associado teve também «a ambifáo de controlar o comércio parisiense de exportado de vinhos» (R. Dion). Porque em Paris, como em todas as capitais vití colas, o vinho foi o principal factor de em ancipado urbana: o mais antigo privilégio concedido pela realeza (1121) dizia respeito ao comércio do vinho e a chave-mestra do poder dos mercadores de água foi o édito através do qual, em 1192, Filipe Augusto proibiu a todos quantos náo fossem burgueses de Paris a descarga de vinho na cidade e o seu armazenamento. O comércio do vinho e também todos os outros comércios, ficavam assim reservados aos parisienses e aos feirantes que tivessem tomado «companhia^ francesa», ou seja, um associado parisiense. Em 1220, mediante paga mento de uma renda anual, o mesmo soberano concedeu á Hansa o «pregáo» e a «medido» do vinho e também a 245
medijáo dos cereais: a partir de entáo, a Hansa nomearia e destituiría a seu bel-prazer os pregoeiros e os medidores, estabelecendo ela própria as medidas. Foi igualmente durante o reinado do primeiro grande Capeto que os mercadores se tornaram representantes do conjunto da burguesía: foram-lhes entregues o lanjamento e cobranza de impostos na capital. No tempo de Sáo Luís, o preboste dos mercadores e os almotacéis — a despeito da existéncia, ao seu lado, do preboste real — viram a sua jurisdijáo transformar-se numa verdadeira jurisdijáo pari siense: Paris tinha finalmente uma espécie de «municipalidade» surgida «sem ruido e sem clamor». Para a Hansa, náo se tratava já apenas de defender — e de desenvolver — os privilégios hanseáticos: era preciso também dirigir a polícia de víveres, desenvolver a prosperidade geral da ci dade, proceder aos trabalhos de utilidade pública (pavi m en tad o de rúas, m odernizado dos cais do Sena, reforjo da seguranza fluvial). Na sua cámara, que em 1289 se chama va «Locutorio dos burgueses», os senhores da Hansa sentem-se táo pode rosos como porta-vozes, reconhecidos pelo rei, de toda a populado, que náo hesitam em apresentar a este último as queixas dos Parisienses. Por volta de 1300, eles sáo os senhores dos cursos do Sena, desde Pont-de-l’Arche (ás portas de Ruáo) até para além de Corbeil e do curso inferior, ou mesmo médio, do Oise e do Mame. Grajas á acjáo inflexível dos senhores da água, os privilégios hanseáticos alastram cada vez mais. Náo contente com melhorar a navegado, a Hansa chegou mesmo a reduzir as tarifas das peagens e, por vezes, a fazé-las desaparecer. Na própria París, uma multidáo de pregoeiros, de medido res, de vendedores ajuramentados, de corretores, dominava todas as transacjóes e todos os tráficos em proveito da Hansa, a comejar pelo comércio do vinho. Torna-se claro que, entre o ano 1000 e 1300. a populado urbana, que sempre partiu de muito baixo, beneficiou de um desenvolvi mento demográfico mais acentuado do que o das planicies, de onde vinham aliás os novos citadinos. Poderá medir-se este desenvolvi mento? A resposta a esta questáo é lamentavelmente negativa. Com demasiada frequéncia, somos forjados a contentar-nos com provas indirectas, como a data dos sucessivos recintos murados, as suas superficies e os seus perímetros ou com a evolujáo do número de paróquias. Para o avaliarmos aproximadamente, é preciso colocarmo-nos ñas proximidades de 1300. Desde logo, chama a atenjáo o facto de as cidades medievais — mesmo as mais activas — serem, do nosso ponto de vista, quase sempre bastante pouco povoadas, náo sendo sempre as mais densamente habitadas as que beneficiam de fran quias urbanas mais alargadas. As poucas cidades que atingiam ou ultrapassavam os 100 000 habitantes eram italianas. Só Miláo e Veneza teriam abrigado 200 000 habitantes: Florenja, Génova e tal246
vez Nápoles e Palermo devem ter atingido aproximadamente os 100 000. As restantes cidades de Itália, incluindo as cidades mais animadas e activas, náo teriam ultrapassado algumas dezenas de milhares de habitantes. Em todo o resto do Ocidente, as cidades mais poderosas eram menos povoadas, com excepfáo de Paris que, em 1328, tinha seguramente 200 000 habitantes C). No tempo do seu maior esplendor, Arras (J. Lestocquoy) e Ypres (H. Pirenne) náo ultrapassavam os 20 000 habitantes; provavelmente, apenas Gand e Bruges atingiam os 50 000 habitantes no cometo do século XIV (2). Apesar de já serem numerosas, as cidades da Holanda mantinham-se pouco povoadas: as quatro maiores (Leyde, Amesterdáo, Delft e Haarlem) tinham menos de 10 000 habitantes. Em Inglaterra, só uma cidade — Londres — contava 40 000 habitantes e apenas tres outras atingiam ou ultrapassavam de perto os 10 000 (York, Norwish e Bristol). Um pouco antes, em 1238, na Península Ibérica, Valenfa apenas abrigava no interior das suas muralhas entre 15 000 e 18 000 habitantes (é certo que os seus arrabaldes eram bastante povoados). Perto de 1300, Sevilha devia ter cerca de 20 000 citadinos, continuando Barcelona a ser a maior cidade, com 35 000 habitantes. No que respeita ao Império, os historiadores tentaram esbozar um quadro de conjunto para as proximidades de 1300. Apenas uma cidade — Colónia — teria tido 40 000 habitantes. Sete ou oito outras cidades, 20 000, das quais cinco situadas no Sul (Estrasburgo, Nuremberga, Augsburgo, Praga e Viena) contra duas ou tres do Norte (Lubeque, Magdeburgo, e talvez Danzigue). Seis outras teriam tido perto de 10 000 citadinos enquanto duzentos outros aglomerados nao teriam ultrapassado entre 2000 e 9000. Náo deve imaginar-se que as capitais regionais, com uma acti vidade económica média, portanto, as cidades «secundárias», eram sempre menos povoados do que os muito grandes centros da vida de trocas a norte dos Alpes. É assim que Narbonne viria a atingir os 30 000 habitantes, portanto, nitidamente mais do que a poderosa Arras. Tal como Toulouse no cometo do século XIV (Ph. Wolff). Em 1300, Metz abrigava 35 000 pessoas (J. Schneider). Todas estas cidades, da mais poderosa á mais insignificante, aumentavam os seus efectivos através da imigragao dos camponeses O Pretendeu-se reduzir este número para 80 000 hab., mas os argumentos apresentados (Ph. Dollinguer) nao sao de modo algum convincentes. De qual quer modo, sáo-no menos do que os que, como apoio da avaliagáo de 200 000 hab. (cerca de 60 000 fogos), recordam que a populagáo das planicies das proximidades era aparentemente a mais densa do Ocidente (cf. supra, p. 181 e também que Paris acumulava talvez mais papéis do que qualquer outra cidade. (2) Estes dados só sáo verdadeiramente seguros para Gand (56 000 hab.) e náo para Bruges que, segundo alguns historiadores, teria apenas 35 000 habi tantes antes da peste negra dé 1348.
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da regiáo vizinha. Em geral, o círculo no interior do qual estes se iam frequentemente instalar como operários ou lojistas náo ultrapassava os 30 km de raio; assim acontecía em Metz (Ch.-Ed. Perrin) e em Arras (R. Berger). Este círculo apenas, ou quase, atingía os 50 km á volta de Paris. Mas a capital dos Capetos era, a mais do que um título, «excepcional».
O arte san a to e os oficios
A partir do século XI, o sector secundário é caracterizado por dois factos principáis. O artesanato troca em grande parte o campo pela cidade e organiza-se em oficios. Por outro lado, esse artesanato diversifica-se, aperfeifoa as suas técnicas de forma notável em alguns sectores e permite o nascimento de uma «grande indústria», a indústria dos téxteis.
A organizagao dos oficios: aparéncia e realidade A organizado do artesanato em oficios, táo característica da vida urbana até ao fim do Antigo Regime, teria surgido com o desenvolvimento económico desencadeado no século XI. Á frente do oficio encontrava-se uma direcfáo colegial composta por ajuramentados na Provenfa do Norte, por cónsules ou bayles no resto da Provenga, por síndicos ou por priores em Itália, por Meister na Alemanha, etc. A «juranda» (conjunto de ajuramentados) tinha um poder disciplinar; os chefes do oficio, frequentemente destituíveis todos os anos ou de dois em dois anos, eram escolhidos entre os mestres. Cada mestre era, em principio, proprietário da sua oficina, das suas ferramentas, da matéria-prima trabalhada, e, ainda em principio, um verdadeiro empresário, na medida em que suportava todos os riscos e guardava todos os lucros da sua «em presa». Numa oficina, além dos operários qualificados (criados ou companheiros), havia os aprendizes: a aprendizagem comecava na idade dos 10 ou 12 anos e durava em geral vários outros. Os ajura mentados dispunham de todos os poderes para inspeccionar as ofici nas, verificar se o aprendiz era bem tratado, se o ensino prático era bem conduzido...; na maior parte dos casos, cada mestre tinha apenas um aprendiz. Os regulamentos teriam tido por efeito gerar uma maior harmonía tanto no seio de cada oficina como entre todos os mestres. Neste sentido, um mestre náo podia ter ao seu servido mais companheiros ou aprendizes do que os outros sem o consentimento destes últimos. Cada oficio dispunha de uma sociedade de socorro mútuo que, através das cotizajóes pagas, 248
H UY. DAS ORIGENS AO SÉCULO XIII
l. Limite do castrum primitivo. — 2. Limite do suburbium (1066 — fim século XII). — 3. Limite da m uralha (fim séc. XII — inicio séc. XIII). A muralha e o seu trabado: !. Torre Saint-Nicolas. — 2. Porta de Gonhierrue. — 3. Torre Sainl-Georges. — 4. Torre Saint-Jean. —• 5. Porta de Rioul (Neuville). — 6. Porta Saint-Denis. —>7. Portados Cruzados. — 8. Porta de Constantinopla. — 9. Porta de Senhorio. — 10. Trawá (au* Arvóts). — M. Porta de Spontin. — 12. T one Damiette. — 13. Porta de Namur. — 14. Porta do Mosa. — 15. Porta Saint-Pierre. — 16 Porta Saint-Germ ain— 17. Porta Saint-Hilaire. — 13 Porta de Manhoie. 19 — Porta Godelei. Principáis edificios: A. Colegiada Notre-Dame. — B. Igreja Saint-Pierre (com claustros). — C. Igreja Saint-Étienne. — D. Igreja Saint-Nicolas. — E. Igreja Saint-Remy. — F. Igreja Saint-Jacques au Tilleul. — G. Igreja Saint-Martin in foro (no mercado). — H. Igreja Saint-Séverin. — j. Igreja Saint-Mengold. — J. Igreja Saint-Denis — K. Igreja Saint-Georges en Rioul. — L. Igreja Saint-Germain. — M. Igreja Saint-Martin. — N Igreja Saint-Hilaire. — O. Igreja Saint-Pierre. — P. Igreja Saint-Georges aun Prés. — Q. Convento dos Irmáos Menores. — R. Refugio da abadia de Aulne. — S. Mercado dos tecidos. — T Mercado das lás. — U. Torre do Sino. — V. Grande Hospital. Rúas e lugares'. a. En Gonhierrue. — b. En Mounie. — c. En Bolengirue. — d. Aux Fouarges. — e. En Brasseurue. — f. En Tanneurue. — g. Sur les Tindeurs. — h. Sur Ies Foulons. — i. Chaussée sous-le-Cháteau — j. Chaussée Saint-Maur. — k. Cherave. — 1. En Griange. — m. Neuve rué du pont. — n. En Tesseurue. — o. Grande Strée. Segundo A. Joris, Huy, vitle médiévale, La Renaissance du Livre, Bruxelas. 1965, planta extrate.xto.
auxiliava cada um dos seus membros em caso de necessidade ou doenja e também as viúvas e órfáos. É certo que um oficio bem estruturado, como se pensa terem existido alguns a partir do século XI, de organizado aristocrática e náo democrática (os mestres eram os únicos a eleger os ajuramentados), tinha de dispor de uma caixa, alimentada pelas cotizajoes que financiavam acjóes de caridade e colectivas, uma justija privada (as dificuldades intestinas e as faltas de cumprimento dos regulamentos eram julgadas no interior do oficio). Por vezes, como em Itália, eram necessários fundos para constituir ocasionalmente uma forja militar, organizada sob a «bandeira» do oficio, reconhecida pela cidade e que podia constituir um dos elementos da milicia urbana. E, para atingir uma personalidade jurídica, o oficio tinha de possuir uma chancela própria. Tudo quanto ficou dito dá a entender, com razáo ou sem ela: — que os oficios organizados surgiram muito cedo, quase desde o cornejo do século XI e do renascimento eco nómico, — que estes eram mais ou menos independentes das auto ridades urbanas e também dos grandes mercadores, que depressam dominaram o comércio importante e as cidades, — que o sistema funcionava com satisfajáo geral, sendo as categorías mais humildes bem protegidas contra toda a explorajáo económica dos homens poderosos no interior ou no exterior do oficio, — que os interesses do comprador e do consumidor eram defendidos, mesmo em detrimento dos dos produtores (E. Perroy). A Igreja náo teria sido, portanto, a única a pretender subordinar a vida e a actividade materiais a normas reli giosas e moráis. Os próprios interessados, os responsáveis pela vida urbana e pela produjáo teriam querido reger o exercício dos oficios em conformidade com as regras da mora! natural e crista. De facto, a organizajáo em oficios náo foi geral, nem no tempo nem no espajo. Algumas regioes e algumas cidades (como Liáo) nao conheceram qualquer organizajáo deste género, pelo menos de uma forma generalizada. No entanto, uma «visáo simplificada» mostra-nos os oficios de F ranja sólidamente estabelecidos no século XII, «ao longo dos grandes eixos de circulajáo e ñas regioes do Norte e ñas cidades do Midi que se dedicam a grandes indústrias de exportajáo» (E. Coomaert). Todos os sectores povoados e bem evoluídos do Ocidente viveram este mesmo regime. E, uma vez conquistadas as suas liberdades ou mesmo a sua independéncia,
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as cidades impuseram uma disciplina á vida artesanal, embora por vezes tenham subsistido zonas de liberdade (em Paris havia várias, entre as quais a do Templo e, perto da muralha, o arrabalde de Saint-Antoine). Sendo o oficio dirigido pelos mestres, o regulamento protegía antes de mais o seu lucro e tornava o mais pesado possível o seu dominio sobre companheiros e aprendizes. Recorde-se, no en tanto, que esse lucro era, segundo vários pontos de vista, muito distante do lucro «patronal» em regime de liberalismo e de indi vidualismo. Pretendia-se manter a igualdade entre todos os mestres, sendo proibidas todas as formas de concorréncia, pelo menos na fase de produjáo. Nada de publicidade, o que seria contrário á «confraternidade», nada de invenjóes ¡soladas e secretas que representariam uma falta de «lealdade» para com os confrades. Na sua esséncia, este regime de oficios era evidentemente acapitalista (A. Piettre), funcionando num mundo de constrangimento e de proibijáo, que tenderiam a agravar-se. O regulamento favorecía os mestres e também, pelo menos em principio, a clientela, visando uma produgao qualitativa. Violar a qualidade era trair tanto o oficio como o cliente. É este o motivo por que os artigos fabricados com desprezo pelas regras eram declarados falsos, tal como a moeda falsa, sendo os infractores quase igualmente perseguidos. Existia um ideal de fabrico, que as regras do oficio protegiam. O culto da «obra bela», da «obra-prima» — aliás tardío —, apesar de náo ocultar as facetas menos agradáveis da realidade, mostra pelo menos que o trabalho era um factor de civilizado crista e nao apenas um factor de produgao. Mas náo devemos ir ao ponto de dizer que o factor religioso (confrarias) pode por si só justificar o fenómeno «corporativo». Na opiniáo de alguns historiadores, o único factor original foi um factor egoísta: em toda a Europa medieval, foram os artesáos — actuando como um cartel — a criarem os oficios para eliminar a concorréncia entre si. Para outros, que pensam principalmente na Flandres e no Brabante, teria havido náo um mas quatro fac tores: dois predominantes (organizajáo e vigilancia das profissóes artesanais e comerciáis muitas vezes misturadas ou confundidas; acjáo dos artesáos no ámbito dos oficios criados pela cidade) e dois acessórios (organizajáo militar dos bairros e dos oficios; final mente, confrarias de oficios). Há quem diga o mesmo a respeito do Languedoc. De qualquer modo, toda a gente está de acordo em negar, mesmo a propósito da Itália, qualquer continuidade entre os collegia da época romana e os oficios, que sáo realmente uma criajáo da Idade Média, mais precisamente da Baixa Idade Média: nada prova que tenham existido protótipos de oficios no tempo dos Carolíngios, por exemplo na Renánia ou na F ranja Setentrional. 251
Por outro lado, nao está provado que os oficios tenham sido todos contemporáneos dos primeiros anos do desenvolvimento das cidades e das liberdades urbanas, ou do cornejo do desenvolvi mento artesanal e comercial: ainda no século XUI, náo havia vestigios de organizajáo «corporativa» em algumas cidades da Flan dres. Na realidade, esta organizajáo foi frequentemente uma criajáo ao mesmo tempo espontánea e tardia. É também possível distinguir duas grandes categorías profissionais: as profissdes indispensáveis á existencia de todos os días encontravam-se em todas as cidades, mesmo ñas mais pequeñas, e, em alguns casos, podiam dar origem a um grande comércio, nomeadamente o do vinho; e as profissoes relacionadas com as produjóes massivas, objecto de um comércio a distancia mais ou menos longa — sendo o mais importante o dos tecidos—, só se encontravam realmente ñas «grandes» cidades.
O abastecimento Como é normal, as primeiras menjoes de artesáos e de comer ciantes relacionam-se em geral com a alimentajáo, surgindo ¡me diatamente uma tendencia para o monopólio, «como defesa contra os oficios rurais»: ñas tarifas de Coblence, os padeiros que iam vender o seu pao ao campo encontravam-se sujeitos a uma regulam entajáo estrita. Os primeiros oficios a organizar-se foram, por tanto, os que qualquer camponés podia fácilmente praticar: «Qual é o camponés que náo sabe esfolar um boi..., fazer pao..., even tualmente construir uma casa..., fazer um tamanco?» (J. Schneider). A primeira preocupajáo dos oficios urbanos foi, por conseguinte, delimitarem-se em relajáo a outros que náo requeriam qualquer qualificajáo. É aqui que reside todo o problema da implantajáo das cidades no meio rural: os camponeses que vieram povoar a cidade quiseram imediatamente defender-se contra os seus antigos vizinhos que ficaram no campo e, por isso, impedir toda a concor réncia. As autoridades — o casteláo, depois o «magistrado» urbano e, finalmente, por vezes, o príncipe — comejaram por agir relativa mente aos oficios indispensáveis ao bom abastecimento dos habi tantes das cidades. Era preciso providenciar para que as coisas chegassem, impedir o ajambarcamento e as subidas exageradas de prejos. Por razdes claramente económicas mas também «políticas», os burgueses tinham de encontrar os géneros necessários á sua subsisténcia ao melhor prejo e em quantidades suficientes. Isto conseguia-se de duas formas: através da publicidade das transacjoes e através da proibijáo do recurso aos intermediários, excepto em casos excepcionais. O vendedor do campo e o comprador da cidade (simples burgués ou membro de um dos oficios da alimentajáo) 252
tinham de estar «directamente em presenta, sob o co ñ u d o de todos» (H. Pirenne). Daqui resulta a prom ulgado de proclamafoes e de ordenanzas, a partir do século XII, aplicáveis aos consumi dores e aos retalhistas, e referentes á compra aos camponeses de produtos de consumo imediato e á compra de produtos a transfor mar (o trigo em pao pelo padeiro, o animal vivo ou abatido pelos carniceiros...). Existia a obrigafáo de levar todos os géneros para o mercado sem vender nada pelo caminho, de os expor até uma hora determinada, de só os vender aos burgueses, cada um dos quais só podia comprar a quantidade necessária para a sua própria casa, a menos que fosse retalhista. Os padeiros náo podiam comprar farinha para além da quantidade necessária «para a sua própria cozedura», os carniceiros náo podiam armazenar carne na cave. Todos os géneros eram severamente inspeccionados e os que náo estavam em condicóes eram confiscados ou destruidos, expondo-se os infractores a pesadas sanfóes que podiam chegar ao banimento. A especulado e o agambarcamento náo eram menos severamente castigados do que as fraudes e, em caso de aumento artificial ou mesmo justificado, os oficios «de vitualhas» podiam ser atingidos pela pena máxima. Registamos o facto curioso de, durante muito tempo, o preso do páo se ter mantido invariável, ao mesmo tempo que o seu peso variava na razáo inversa do pre?o dos cereais panificáveis. Resumindo, houve por toda a parte uma policio dos mercados e também uma policía dos oficios da alimentando. É realmente em re la d o a estes oficios que se pode dizer que o preceito do bem comum esteve na origem da regulam entado imposta. Na realidade, o bem comum coincidía, nesta matéria, com o interesse dos grandes burgueses que queriam evitar o descontentamente popular e as reclam ares dos operarios quanto a aumentos de salários... Quaisquer que tenham sido os pensamentos preconcebidos dos notáveis burgueses, foi também a estes oficios, que tém a participado simul tánea do artesanato e do comércio, que a regra do exclusivismo se aplicou de forma geral e intangível. Foi este o dominio em que todas as camadas da burguesía, por uma vez de acordo entre si, se defenderam mais duramente contra a concorréncia dos «feiran tes», com plena aprovado do rei ou do príncipe, mesmo quando os «feirantes» eram também súbditos destes. Em todo o caso, ainda no tempo de Sáo Luís, náo deixa de ser significativo ver a maior parte dos oficios «de vitualhas» figurar á cabera do «Livro dos Oficios» de Étienne Boileau, preboste real do prebostado e viscondado ( = bailiado) de Paris. Quando o soberano ou o prín cipe tem o seu poder bem consolidado ñas cidades que se encontram sob a sua aleada, o seu interesse incide em primeiro lugar sobre o mundo dos «abastecedores».
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Os oficios «nao de vitualhas» Em termos gerais, estes oficios eram de dois tipos. Os primeiros encontravam-se em todas as cidades, mesmo ñas mais pequeñas (por vezes, até ñas grandes aldeias): sapateiros, tamanqueiros, ferreiros... necessários, portanto, a todos os consumidores. É frequen temente a estes que se aplica bem a imagem demasiado clássica do artesáo, cidadáo livre, mesmo económicamente, que produz pouco mas é proprietário da sua oficina, dos seus instrumentos, da sua produgáo, e que vende directamente á clientela. Os segundos oficios estavam instalados apenas ñas cidades activas, por vezes integrados num ciclo de produgáo e de venda que os ultrapassava. Os artesaos destes oficios trabalhavam principalmente para a venda em locáis distantes, pelo que tinham apenas uma liberdade «eco nómica» limitada ou mesmo quase nula. Era este o caso dos artesaos de téxteis dos Países Baixos ou das grandes cidades de Itália. Os oficios nasceram mais tarde do que se pensou: foi apenas no segundo quartel do século XII que se verificou uma quase «simultaneidade do aparecimento destas co rp o rales profissionais». Na Provenga do Norte, o primeiro texto conhecido referente aos sapateiros de Ruáo é de Henrique I Beauclerc (1100-1135). Os primeiros oficios parisienses seriam quase contemporáneos: foi em 1121 que Luís VI concedeu os primeiros privilégios á Hansa dos Mercadores de Água, que, como se sabe, eram uma «corporagáo» que se entregava ao comércio e náo, como os sapateiros de Ruáo, composta por artesáos. Cerca de 1171, estavam constituidos em Paris outros grupos de artesáos ou de mercadores: tratava-se dos alfaiates, dos peleiros, dos negociantes de tecidos, dos carniceiros do «Grande Agougue». No tempo de Sáo Luís, o número dos oficios parisienses será superior a uma centena. Foi igualmente no segundo quartel do século XII que sürgiram os oficios no Império, os sapa teiros em Wurzburgo em 1128, os peleiros em Estrasburgo em 1130, os teceláos em Colonia em 1149. Em Espanha, assinala-se um oficio de peleiros em Saragoga em 1137. Depois, na segunda metade do século XII, multiplicam-se as referencias, na regiáo da Flandres-Artois, em Inglaterra, em Itália, e também no Midi da Franga (curtidores de Toulouse em 1158, cambistas de Saint-Gilles em 1176, tintureiros de Toulouse em 1181...). De quem partira a iniciativa? Os casos foram diversos. Em algumas cidades do Império, vemos o costume urbano do século XII fixar as obrigagdes dos oficios para com os senhores. O artesanato pdde, portanto, constituir-se no quadro senhorial: em Estrasburgo, era o burgrave do bispo que estabelecia o «mestre» á cabega do ofi cio, tendo esse «mestre ( = Meister) imposto jurisdigáo sobre todos os membros do oficio. Pelo contrário, em Inglaterra como em 254
Paris, foi o mundo dos mercadores que parece ter estado na origem da organizado em oficios. Por volta de 1100, em muitas cidades inglesas, tinham surgido guildas de mercadores que controlavam o comércio da cidade e regiam o fabrico dos produtos que depois vendiam. Ignora-se se os artesáos foram admitidos nestas guildas, caso em que teriam certamente saído mais tarde, uma vez que, a partir do reinado de Henrique II (1154-1189), surgiram outras guil das, desta vez puramente artesanais. O grande rei Plantageneta confirmou assim a guilda dos teceláos londrinos, concedendo o monopólio do exercício da profissáo aos seus membros no interior da cidade e ñas suas vizinhangas, mediante uma renda anual que lhe era paga. Noutras regióes, como nos Países Baixos, os artesáos parecem igualmente ter-se agrupado, como im itado — ou por inci tamento — dos mercadores. Tratou-se, portanto, de iniciativa senhorial nalguns casos e de fo rm ad o espontánea noutros. Contudo, em Espanha, o factor religioso deve ser colocado na origem dos oficios. A adm inistrado urbana pode ter tomado iniciativas, como fizera para os oficios «de vitualhas», a menos que, ao fazé-lo, tenha apenas seguido a via tragada pela autoridade senhorial, como no caso do Languedoc. Nesta provincia, numa primeira fase, os senhores tinham frequen temente concedido isengóes ou redu?5es de impostos em troca de obrigagóes profissionais e militares. Numa segunda fase, destacaram-se os consulados, julgando as faltas de cumprimento dos regulamentos, limitando os beneficios, controlando pesos e medidas. Por volta do século XIII, controlavam as tendencias para o mono pólio dos oficios, obrigando-os a conservar um certo carácter «aberto». De uma maneira geral, as cidades de «grande indústria», por tanto, as cidades «da lá» em especial, mas também as que trabalhavam outras materias téxteis, opunham-se ás cidades principal mente mercadoras. Nestas últimas, os oficios só raramente conse guiram participar na adm inistrado urbana. No grande porto de Veneza, náo se reconheceu qualquer papel «político» aos artesáos reunidos em oficios, caso que sempre se opóe ao de Florenga, onde vinte e uma «artes» (oficios) conseguiram formar a «Senhoria». No Imperio, encontra-se a mesma oposido entre as cidades mercantis como Viena, Nuremberga ou Lubeque, ñas quais os arte sáos náo tinham voz, e as cidades «industriáis» como Estrasburgo,. Basileia, Augsburgo. Nestas últimas, o conselho da cidade admitiu frequentemente alguns representantes dos oficios, aos quais se pedia ajuda, nomeadamente militar. É evidente que as consequéncias «económicas» desta oposido entre duas categorías de cidades tiveram grande importáncia.
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Os téxteis Ñas grandes produgóes que eram os téxteis, o belo período medieval náo ignorou como outrora a diviseio do trabalho, de que encontramos vestigios nos oficios: nos téxteis, por exemplo, houve náo um mas diversos oficios, tantos quantas as principáis fases da produgáo, cada uma das quais requer um trabalho muito espe cializado. Assim, em Paris (cf. o Livro dos Oficios), encontramos as fiadeiras, os teceláos, os pisoeiros, os tintureiros..., formando cada grupo um oficio distinto. Em contrapartida, náo existem fábricas, no sentido moderno do termo. Quando Chrétien de Troyes descrevia, no fim do século XII, uma grande oficina situada num castelo, a qual chegaria a ocupar «trezentas donzelas», tratava-se apenas de imaginagáo. Só existiráo fábricas no fim da Idade Média, e apenas para fiar a seda ou ainda em algumas abadias ou hospitais. As grandes cidades «téxteis» dos Países Baixos e de Itália ignoraram-nas, ex cepto em relagáo ao trabalho das mulheres que triavam ou fiavam a lá e que por vezes se reuniam em grande número — para a época — na oficina do teceláo. Cada artesáo trabalha, portanto, em casa, no rés-do-cháo, numa oficina bem aberta para a rúa, de modo a que os controladores (os «eswardeurs» nos Países Baixos) possam, a qualquer momento, detectar as possíveis deslealdades. Entre a chegada da matéria bruta e o dia em que a pega está pronta para venda, efectua-se um elevado número de operagóes manuais, mecánicas e químicas. Daqui resulta uma especializagáo do trabalho, crescente ñas grandes cidades, sendo cada gesto ou quase reservado a um operário particular. Mas este trabalho em cadeia náo é o da nossa época. Em primeiro lugar, a sua cadéncia era infinitamente menos rápida e as diferentes operagóes náo eram efectuadas no mesmo local. E, sobretudo, ele náo tinha por objectivo acelerar a produgáo mas, pelo contrário, se assim se pode dizer, obter a melhor qualidade. Evidentemente que este fraccionamento do trabalho era mais acentuado nos grandes centros do que nos aglomerados secundários. Nestes últimos, depois de o fio estar pronto para a tecelagem, as operagóes eram entregues ñas máos de apenas trés artesáos: o teceláo, o pisoeiro e o tintureiro. Nos centros principáis, o teceláo náo podía ser o próprio a fixar os fios de urdidura ao seu bastidor, tendo para tal de con tratar um especialista, o «urdidor», a quem pagava. Os preparas eram extremamente complicados. Entre os tosadores de lá distinguiam-se, consoante o tamanho das tesouras utilizadas e a natureza do processo, os «tosadores de grandes forgas» e os «tosadores de pequeña forga», havendo igualmente diversas categorías de tintu reiros. 256
I
A técnica dos téxteis, que durante muito tempo foi a única «grande indústria» medieval, é excepcionalmente bem conhecida, á luz dos minuciosos regulamentos dos oficios e das proclamagoes de almotagaria. No entanto, muitos desses textos sao posteriores a 1300, náo sendo portanto absolutamente seguro que o que se segue se refira exactamente ás técnicas do período que acaba com esses anos. -<45 operaqoes preliminares Trata-se da triagem da lá, gao, da fiagáo e da dobagem. do que forga, pelo que eram feminina, que constituía um pago.
da pisoagem, da penteadura ou cardaEstas operagóes exigem mais destreza geralmente reservadas á máo-de-obra subproletariado particularmente mal
Na Flandres, a lá, em fardos, provinha principalmente de Inglaterra. Antes de ser embalada, tinha por vezes sido feita uma triagem preliminar, mas era preciso proceder a uma segunda á chegada, desta vez para separar as diferentes qualidades. O valor e a resistencia do tecido dependiam lar gamente desta triagem que, por isso mesmo, era severa mente regulamentada: as «escolhedoras» desenredavam e triavam as fibras, cortando nós e residuos, tudo isto á máo. Uma vez a lá distribuida em tantos lotes quantas as qua lidades existentes, procedia-se á pisoagem. Este trabalho era a única operagáo preliminar reservada aos homens, por exi gir forga física. A lá náo estava ainda suficientemente sjiave e conservava impurezas. Era estendida sobre grades e um operário batia-a, empunhando em cada máo uma vara de madeira flexível chamada arco. A lá bruta era desencascada, uma vez para diante, outras para trás e, depois de lavada, era novamente engordurada para se tom ar mais macia. Seguia-se a penteadura ou a cardagáo. Nos tecidos mais pesa dos, ou seja, ñas pegas mais belas, o fio de undidura era obligatoriamente formado por um fio penteado, enquanto o fio de trama podia ser — pelo menos a partir do fim do século X III— de lá cardada. Em contrapartida, os tecidos médios — a que se chamava «leves» (sarjas) — eram, em principio, inteiramente de lá cardada. As lás de fibras ton gas destinavam-se, em geral, á penteadura, reservando-se a cardagáo para as mais curtas. A «penteagáo» deve ter precedido a «cardagáo»: a car dadura surge apenas por volta de 1250, em Bruges ou em Douai, para os tecidos de qualidade média e, ainda em pleno século XIV, muitas cidades proibiam ou restringiam o pro cesso de cardadura. O trabalho da penteadora é longo e fastidioso: fá-lo sentada e protegida por um avental de coiro, agarrando, com cada uma das máos, um pente de ferro, desenredando e alongando as fibras, dispostas em meadas. Os últimos detritos, o tomento, sáo eliminados deste modo. A cardadura é uma operagáo mecánica, portanto mais rápida: as cardadoras estendem as felpas de lá sobre 257
uma prancha fixada a um cavalete ou colocada sobre os joelhos, desenredam-nas passando sobre elas uma prancha móvel guarnecida de pontas agujadas ou, mais tarde, de dentes de ferro. A fiagáo náo é muito bem conhecida através dos regu lamentos de cidades e de oficios, dado que, mais do que a penteadura e a cardadura, era frequentemente feita no campo, vindo as camponesas á cidade, todas as semanas, entregar as suas meadas de fio e buscar a sua provisáo de lá. As camponesas náo estavam, portanto, sujeitas ás inspecfSes ao domicilio dos agentes da corpora?áo de oficios ou da cidade. O muito antigo processo de fiagáo com fuso ou com roca manteve-se durante muito tempo em todas as regiSes do Ocidente. Os fusos eram de madeira torneada, muito curtos, enquanto a roca era de madeira flexível (ou até de vime) e lastrada com um pequeño peso de chumbo. Com uma máo, a «fiandeira» puxava os fibras apertadas entre dois dedos; com a outra, torcia-as para assim formar um fio mais ou menos apertado (retrós) ou lasso (felpa). Seguidamente, a «dobadeira» desenrolava os fios que rodeavam os fusos ou as brochas, reunia-os em meadas de comprimento e de peso iguais, que depois atava em feixes. Na segunda metade do século XIII — ao mesmo tempo que surgia a cardadura —, foi introduzido um novo instrumento: a roda, que permitía uma fia?áo mais rápida (l). As «operarías da lá» náo estavam agrupadas em oficios e náo possuíam qualquer independencia pessoal no seu trabalho. Eram assalariadas, tal como os homens (por exemplo, os pisoeiros), que as secundavam, trabalhavam quase sempre em casa, eram pagas á tarefa ou por empreitada. náo possuíam a matéria-prima (excepto as camponesas que trabalhavam a sua própria lá). Na maior parte dos casos, para elas, tratava-se de uma ocupagáo complementar para a «esta?áo vazia» do trabalho agrícola. O empresário (no sen tido actual do termo), proprietário da lá, impunha — como ainda acontece nos nossos días ás operarías que trabalham em casa — condi?5es duras: salários muito baixos, obrigagáo de trabalhar todas as semanas uma quantidade determinada de lá, amea?a de despe dimento ao mínimo erro ou á mínima reivindicado. Sem defesa por náo estar filiada num oficio, a operária encontrava-se. de forma latente, ameagada pelo desemprego. A tecelagem Com a tecelagem, penetramos nos «oficios» artesanais. O tece láo era quase sempre simultáneamente trabalhador manual e patrao. Dirigía a sua oficina e empregava — em número restrito — os assa(‘) Viria a suspeitar-se que o seu rendimento era mau em qualidade, devido a uma opiniáo artesanal e urbana sempre muito tradicionalista. O fim do século XIII está, portanto, cheio de proibifoes de utiliza?ao da roda em mui tas cidades.
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lariados. os companheiros ou criados e os aprendizes. Muito rara mente, em particular nos Países Baixos, alguns grandes mercadores de tecidos ter-se-iam transformado em empresários da tecelagem, caso em que o teceláo náo teria trabalhado com o seu próprio tear e seria apenas um assalariado. Mas a existencia destes artesáos assa lariados nem sempre está completamente demonstrada. O mestre teceláo exercia a profissáo mais considerada de toda a indústria téxtil. O seu tear era a máquina textil mais dispendiosa. Estava ajuramentado porque tinha jurado seguir as regras de fa brico ditadas pelo costume. As condifoes de trabalho e de remune r a d o eram, pelo menos em principio, discutidas livremente com o mercador: o seu trabalho era sempre á tarefa. Muitas vezes, era o próprio artesáo quem pagava a alguns dos operários encarregados de preparar e depois de completar a sua obra (os urdidores antes da tecelagem ou os pisoeiros depois). Nos Países Baixos, os almotacéis consultavam sempre os mestres artesáos, alguns dos quais faziam além disso parte do corpo de controladores da profissáo, os eswardeurs. Finalmente, em muitas cidades, os teceloes tinham sido os primeiros a organizar uma corporafáo do oficio. Os teceláos eram portanto «trabalhadores de élite» e de peso, que, a partir de meados do século XIII, iriam desempenhar um papel importante ñas agitagoes sociais e na luta contra a oligarquía mercantil, tanto nos Países Baixos como em Itália. De facto, a referida oligarquía dispunha de fortes meios de pressáo económica sobre os teceláos: a rem unerado global do mestre teceláo, que este «partilhava» com os seus subordinados, era fixada entre este último e o comerciante que fomecera a matéria-prima e que vinha buscar o trabalho terminado. Essa rem unerado era estabelecida ao mais baixo nivel possível. Mas o teceláo tinha encargos incompreensíveis; os salários das outras fases de fabrico eram com efeito fixados pela cidade, que regulamentava também os salários dos companhei ros ou criados do teceláo. Daqui resultavam ameagas continuas con tra a margem de lucro do mestre teceláo. No entanto, este tinha algumas possibilidades de liberdade: no século XIII, os italianos e outros feirantes vinham vender lá aos Países Baixos, como fariam mais tarde os hanseáticos. Assim, o teceláo podia com bastante frequéncia fornecer-se junto de oatros mercadores que náo os dema siado poderosos empresários do téxtil da sua cidade, que acumulavam, em detrimento dos teceláos, as fungoes de empresário e de mercador. Á preparado da urdidura, conjunto de fios paralelos e muito apertados que tinham o comprimento da futura pega de tecido (20 a 30 m em geral), seguia-se a tecelagem propropriamente dita. O tear ( = ostille na Picardía), agora já horizontal, era uma espécie de cavalete de madeira. Sentado num banco, o operário tinha á sua frente um eixo, o cilm259
dro, onde á medida que se tecia, a pega se ia enrolando. Mais afastado, encontrava-se o cilindro principal (vara de tecelagem), onde se enrolavam os fios da urdidura, bem esticados entre os dois cilindros e muito apertados. Mano brando um pedal, o operário erguia o primeiro ligarol (travessa que era passada sob os fios pares da urdidura), passava a langadeira (vareta de madeira que continha uma canela onde estava enrolado o fio da urdidura), levantava seguida mente o segundo ligarol (passando sob os fios Impares) e voltava a passar a langadeira. O afastamento regular dos fios da urdidura era mantido por sedeiros, que apertavam progressivamente os fios da trama. De notar que, de cada lado á largura da pega, era tecida uma ourela (de fios mais finos e de outras cores) que formava a «marca de fábrica» e indicava a qualidade da la e a natureza da tecelagem: era severamente verificada pelos eswardeurs, os «eswardeurs da percha».
As últimas operagóes 1.
A compreensáo e a tintura
Depois de sair da oficina do teceláo, a pega era lavada pelos pisoeiros de acabamentos e procedia-se aos últimos preparas que eram indispensáveis. Finalmente, levantava-se o problema da tintura, que podia ser feita numa ou noutra das diversas fases: depois da penteadura ou da cardadura («tecidos tingidos em lá»), depois da fiagáo («tecidos tintos em fio») ou depois da tecelagem («tecidos tingidos em pega»). Por razoes socio-económicas, referir-nos-emos aos pisoeiros e tintureiros ao mesmo tempo. Por um lado, estas duas profissdes faziam dos seus membros trabalhadores de forga e náo operários verdaderamente especializados. Ambas exigiam oficinas de dimensóes vastas para a época, instrumentos de difícil manejo pelo seu peso e muita água. A instalagáo destas oficinas fazia-se, portanto, como a das oficinas de curtidores á beira dos cursos de água e longe do centro da cidade. As máos dos operários estavam em con tacto quase continuo com matérias corrosivas. É esta a origem da alcunha pejorativa de «unhas azuis», comum nos Países Baixos. De acordo por uma vez, teceláos e grandes burgueses desprezavam e combatiam os pisoeiros que muitas vezes eram seus empregados. Em contrapartida, a situagáo económica destas duas profissdes era muito superior á pouca consideragáo social que as rodeava. De facto, pisoeiros e tintureiros, organizados em verdadeiros oficios, proprietários de material dispendioso, destacavam-se, como os teceláos, do resto do mundo artesanal téxtil. 260
Na oficina do pisoeiro, a peca comegava por ser submetida a uma lavagem destinada a desengordurá-la. Na Flan dres, o detersivo utilizado era a argila (a «térra do pi soeiro»), com a qual se polvilhava a pega colocada num recipiente cheio de água quente. Durante horas, o operário calcava-a com os pés, para que o tecido fosse bem penetrado pelo detersivo. Seguidamente, procedia-se a várias lavagens, durante as quais o tecido voltava a ser pisado. Depois, a pega era posta a secar, pendurada em varas, batida pelos acabadores para, por feltragem, se obter um tecido mais espesso e portanto de dimensóes menores. A pisoagem propriamente dita destinava-se a melhorar os resultados da fel tragem. Novamente colocada no recipiente de pisoagem, a pega era molhada e metida num banho de manteiga ou de pingue, torcida e calcada com os pés por diversas vezes e em várias águas. A última lavagem fazia-se dois dias mais tarde (incluindo a lavagem e o acabamento, a duragáo total do trabalho dos pisoeiros ñas mesmas pegas era de tres dias). Provavelmente no século XI, quando do grande desper tar técnico do Ocidente, verificara-se uma invengáo de pri meira importáncia. Trata-se do pisao, destinado a substituir a pisoagem com os pés. Mas só no século X III se verificaría a difusáo e generalizagáo do pisáo mecánico em todo o Ocidente. Em quase todas as grandes cidades «téxteis» dos Países Baixos, o pisáo deparou com uma dupla e violenta hostilidade do oficio e dos almotacéis. No entanto, no século XIII, náo havia ainda o medo do desemprego, como viría a acontecer mais tarde; a mecanizagáo caminhava a par com a expansáo da produgáo. Mas pensava-se — e isso ainda acontece ás vezes nos nossos dias— que a qualidade de um produto obtido mecánicamente é inferior á de uma mercadoria que é produto do trabalho quase exclusivo do homem. Daqui resultam consequéncias de grande alcance: mais ou menos proibido em muitas cidades poderosas, o pi sáo mecánico teve de se refugiar nos pequeños aglomera dos e nos campos. Em maior ou menor escala, isto iria des locar a indústria téxtil para os campos. Parece certo ter sido a difusáo do pisáo que contribuiu largamente para a expansáo dos téxteis de lanificios em numerosas regióes rurais da Ingalterra. O lugar dos tintureiros na cadeia de produgáo era va riável. Eram também variáveis a qualidade e o aspecto da tintura de uma cidade para outra, porque havia segredos de fabrico variados e ciosamente guardados por cada ofi cina. O oficio dos tintureiros apresentava uma vantagem em relagáo aos dos teceláos: os pregos eram estabelecidos para cada tipo de tintura e de tecido tingido, o que impossibilitava os empresários de os debater «amigavelmente», portanto, de reduzir ao mínimo os lucros e a remuneragáo do tintureiro. Em virtude da extrema especializagáo dos fabricos téx teis, existiam na realidade dois oficios da tintura, consoante a natureza dos corantes. Os tintureiros de pastel nao necessitavam de corrosivo. Numa primeira operagáo, despejava-se água quente, previamente clarificada e férvida, numa grande tina de madeira, no fundo da qual se tinha já colocado o pastel e a cinza de madeira: a pega era voltada á máo ou
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com o auxilio de rodos ou pás. Depois de ter tomado um tom esverdeado, a pega era retirada da tina e exposta ao ar que, por oxidado, transformava a sua cor em azul. Voltava a ser mergulhada diversas vezes na tina, o que exigia muito tempo e uma máo-de-obra bastante numerosa, em particular no caso das pegas de tecido que muitas vezes tinham várias dezenas de metros. O trabalho dos tintureiros de verbasco era menos longo, mas exigia um corrosivo (o alúmen), que era mergulhado em tinas de cobre cheias de água férvida com o produto tintural amarelo (giesta de Es panha) ou vermelho (ruiva-dos-tintureiros ou cochinilha). 2.
Os últimos aprestos
Sempre pisoada, em geral já tingida, a pega exigia ainda diversas operagóes destinadas a dar-lhe uma melhor aparéncia. Como as técnicas eram delicadas, os operários especializados nestes aprestos eram quase sempre menos infelizes do que os das fases preliminares do trabalho textil. No entanto, o fraccionamento dos oficios era de tal modo extremo que cada um deles era demasiado fraco e dema siado mal estruturado para fazer face aos empresáríos, que tinham trunfos suficientes para impor condigdes financeiras draconianas. É vulgar considerar-se a existencia de dois grupos principáis des tes trabalhadores: os estendedores ou ligoeiros e os tosadores de pegas. O trabalho dos primeiros exigia mais forga física do que conhecimentos técnicos, tendo o mestre necessidade sobre tudo de «criados» e sendo ele mesmo frequentemente ape nas um assalariado: o mercador era proprietário do material e da vasta oficina que eram necessários. Novamente molhada, a pega era estendida no sentido da largura, puxando os criados as travessas seguras a postes fixos (o conjunto constituía os ligos), e depois no sentido do comprimento por meio de um sarilho. No fim, o tecido seco tinha as suas dimensóes definitivas: como depois da conclusño de cada fase de fabrico, a pega era controlada por um esward, que detectava os defeitos, no caso de os haver. Seria demasiado longo e demasiado fastidioso precisar todos os aprestos possíveis depois de a pega ter sido esten dida. Tosadores e aparadores nao precisavam de um local, mas tinham de ter uma longa aprendizagem, sendo o seu trabalho bastante delicado. O artesáo e os seus ajudantes trabalhavam ao domicilio, em casa do seu empresário (tece láo, pisoeiro ou mercador), que por vezes podia ser um «feirante», pelo que dispunham de uma certa independéncia económica e do apoio de um oficio bem estruturado. Ar mado de tesouras chatas, o tosador cortava rentes os pélos das duas faces da pega, estendida sobre urna mesa comprida, para lhe dar uma superficie uniforme. 262
No total, procedia-se a cerca de trinta operagoes diferentes, con fiadas a outros tantos operários, que as realizavam durante cerca de um mes. A mercadoria era constantemente transportada de um lado para o outro. «Perda de tempo, de energia e de dinheiro: estamos longe da racionalizado moderna!» (Ph. Wolff). Isto náo impede que a «divisao do trabalho», ainda que muito distante da do século XX, tenha sido um factor de progresso.
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Dois exemplos: Países Baixos e Florenqa Em que medida terá havido uma sólida organizado dos oficios antes do fim do século XIII, nos Países Baixos, o principal centro da indústria téxtil medieval? O problema continua a ser controverso.
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Como em diversas outras regides, foram os mercadores os primeiros a organizar-se sob nomes diferentes. Acreditou-se na organizado precoce dos oficios dos téxteis, porque se sabe que desde cedo os almotacéis e os eswardeurs ouviram as opinioes dos mestres. Mas poder-se-á realmente deduzir daqui que existia uma form ado bem estruturada em «corporado» de oficios? No que diz respeito a Artois e á Flandres francesa, G. Espinas só conseguiu detectar cor p o ra le s de oficios bem definidos, antes de 1300, em duas cidades, aliás importantes: Saint-Omer e Arras. Em Saint-Omer, a existencia de uma tal organizado para os teceláos é atestada por uma procla madlo de 1275. Á cabeja dessa organizajáo encontrava-se entáo um chefe, o casteláo, talvez eleito, encarregado de cobrar uma cotiza d o de um denário a cada membro e que dispunha de alguns pode res de comando e de coacdo (por exemplo, o direito de excluir temporariamente um mestre que tivesse pago com atraso os salá rios dos seus operários). Em Arras, os teceláos e os tosquiadores organizaram-se um pouco mais cedo. Assim, a partir de 1232, os teceloes formavam já uma «corporado» que dispunha mesmo de um aparelho militar; a sua guilda foi confirmada pelo conde da Flandres. Um regulamento de cerca de 1235 demonstra que os tosa dores de pecas formavam uma confraria religiosa, obrigatória para todos os membros do oficio e encarregada de cobrar uma cotizado, evidentemente mais elevada para os mestres do que para os com panheiros ou criados e aprendizes. Os dignitários, sem dúvida eleitos, chamavam-se «administradores e almotacéis», tal como os chefes da comuna, e promulgavam regulamentos internos, aplicavam multas, comandavam um pequeño exército armado... De notar que os almotacéis, dominados nestas duas cidades, como em muitas outras, pelos mercadores de tecidos, eram bastante severos com os teceláos, considerados mais perigosos dos que os tosadores de Arras, que possuíam uma relativa autonomía desde antes de 1250. Em quase todas as outras cidades, sobretudo ñas mais podero sas, os almotacéis conseguiram, pelo menos até aos anos 1280, im pedir a fo rm ado de «corporales» bem estruturadas, de forma a manter o dominio económico e social dos mercadores sobre os artesáos dos téxteis. Só em fins do século X III e principios do século XIV se póde difundir a organizado «corporativa» dos ofi cios; o que representou «uma c ria d o revolucionária» (E. Perroy). As necessidades de a c d o , onde se confundiam as questSes econó micas, sociais e políticas, «conduziram (entáo) ao nascimento de organismos de combate contra os patricios, em primeiro lugar, e depois contra o rei de Franca» (E. Perroy). Apesar de náo terem conseguido conquistar o poder urbano nos Países Baixos, os oficios conseguiram pelo menos atingir a sua autonomía. No século XIV, os oficios reforjaram-se cada vez mais por «contágio». «A verdadeira organizajáo corporativa dos oficios dos téxteis náo decorre
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portanto, do apogeu da indústria textil que é o século XIII, mas dos tempos difíceis dos séculos XIV e XV» (E. Perroy). Florenga é indiscutivelmente a cidade italiana onde os oficios se destacam mais vivamente e onde os seus diversos papéis sáo mais evidentes. Os diversos oficios, ou «artes», desenvolveram-se e criaram a sua forja de maneira progressiva. O primeiro passo impor tante foi dado em 1267, quando os sete oficios mais ricos se constituem como forja económica e também política de primeira ordem. A Arte di Colímala (composta por grandes mercadores de tecidos), a de Seta (grandes negociantes de seda), a da Lana (fabricantes de lanificios), a arte dos peleiros, a arte dos merceeiros, negociantes de miudezas e remédios, a arte do cámbio e a dos juízes e notários — as sete «artes maiores» — formam o popolo grosso-, estas sete «artes» dominam, de inicio sozinhas e depois na companhia das outras artes que quase sempre se mantiveram como suas subor dinadas, a grande cidade do Lis. Conforme indica a lista anterior, tratava-se muito mais de uma élite do comércio e das profissSes liberáis ou intelectuais do que um simples agrupamento artesanal. Em 1287, vieram juntar-se-lhe as cinco «artes médias»: reuniam os camiceiros, os chapeleiros, os ferreiros, os artesáos da pedra e da madeira, os adeleiros e negociantes de roupa branca, portanto, arte sáos e lojistas já de importáncia secundária, salvo excepjdes. Sete anos mais tarde, foi a vez das «artes menores», num total de nove, compostas por artesáos e comerciantes ainda menos importantes e menos poderosos: curtidores, armeiros... Vinte e uma artes compunham entáo o senhorio colectivo da cidade. Encontrando-se excluida das artes, a multidáo operária estava-o também de qualquer participajáo no govemo urbano. E o popolo minuto, o das artes menores ou mesmo das artes médias. tinha de se inclinar perante a preponderancia do popolo grosso, ou seja, perante o poder dos capitalistas dos téxteis (simultaneamente empresários e mercadores como nos Países Baixos) e do cámbio (os banqueiros). Náo há aqui nada semelhante, mesmo de longe, a uma «democracia dos oficios» de que se tém procurado em váo exemplos no Ocidente.
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Capítulo 10
O SECTOR TERCIARIO
O sector terciario compreende esencialmente os transportes (cf. supra, p. 171), as técnicas do negócio e o comércio. Os aspectos económicos dos grandes servidos colectivos, da administra d o e da actividade cultural, todos em vivo progresso, seráo, por falta de espajo, omitidos.
As técnicas com erciáis
A «revolüfáo comercial», esbozada desde o século XI, foi em parte uma revolujáo das técnicas do negócio. Mas esta última foi lenta, lenta no seu aparecimento e, mais ainda, no seu progresso, de tal modo que, no fim do século X III e mesmo no fim da Idade Média, as técnicas novas e as técnicas ainda rudimentares viviam lado a lado. A influencia da Igreja mantinha-se muito viva. Com razáo ou sem ela, muitos historiadores pensam ainda que a Igreja atrasou os progressos técnicos do comércio e o próprio desenvolvimento económico no seu conjunto. O facto de a Igreja (ou talvez mesmo todos os clérigos) ter perseguido incessantemente o empréstimo a juros, portanto a usura, levou a que se concluísse que ela se mos trara fácilmente hostil aos mercadores. Passados os cornejos do século XI, a Igreja passou a encarar o «facto mercador». O 22.® cánone do Concilio de Latrao (1179) de cide que os mercatores seriam abrangidos pelo beneficio da protecjao dita «trégua de Deus». A Igreja sempre receou que os que se dedicavam ao oficio do comércio se sentissem tentados a subordi nar o servijo ao lucro e ao incentivo do ganho. Por isso, tentou desviá-los dos lucros demasiado tentadores do comércio. No entanto, nunca contestou a sua utilidade como intermediários necessários das 267
trocas, nem negou que os «servidos» por eles prestados merecessem uma justa rem unerado. Durante muito tempo, o comércio medieval manteve-se como comércio errante, acompanhando o mercador as suas mercadorias até ao local de distribuido. A venda era feita náo por amostras, mas por exposido pública em pequeña lojas, no mercado ou na feira. Por razoes comerciáis e igualmente por motivos de seguranza, os mercadores circulavam em grupos e reuniam-se em associafSes. Uma das características dos tres grandes séculos da Idade Média reside na substituido, embora tardia e inacabada, do mercador itinerante, do «pés poeirentos», pelo mercador que dirigía os seus negócios a partir da sede central. O negocio itinerante e as feiras É o comércio errante, a que também se chama comércio activo, que explica a importáncia das feiras na economia do Ocidente até ao fim do século XIII. A feira (de feria = festa de um santo) era sobretudo um encontro de mercadores feirantes, frequentemente vindos de muito longe (*). A feira durava várias semanas: oito dias de entrada (desenfardamento das mercadorias, lo cad o dos balcSes), dois ou trés dias de venda e dez dias para fecho ou «devidos paga mentos» (apuramento de contas). O século X II viu surgir ciclos de feiras regionais ou inter-regionais, que formavam uma espécie de mercado continuo, excepto no período de mau tempo: em Ingla terra, para a compra de lá (Winchester, Boston, Northampton, Saint-Yves, Stamford), na Flandres, para a redistribuido da lá e das fazendas (Ypres, Lille, Bruges, Messines, Thourout), na Cham pagne, para o comércio dos téxteis, principalmente (Lagny, Provins, Bar-sur-Aube e Troyes). Qual foi o mais antigo dos dois ciclos principáis, o da Flandres ou o de Champagne? Náo tiveram os condes, na Champagne, «que homologar uma série anterior á sua a c d o — da qual cortaram sem dúvida uma terceira feira de Provins? Como e porqué foram as féiras de localidades insignificantes como Bar-sur-Aube e Lagny admitidas no ciclo das maiores, enquanto as de Reims e de Chálons, ci dades que, além disso, dispunham de grupos de mercadores poderosos, náo conseguiram essa prom odo?» Estas interro(*) Assim, para Pirenne, seria váo procurar a origem destas feiras nos pequeños mercados locáis, muito numerosos pelo menos desde os tempos carolíngios (cf. supra pp. 221-222). Mas nada nos diz que alguns destes «mercados», anteriores ao renascimento comercial do século XI, náo tivessem já sido feiras. A de Saint-Denis, que remonta á época merovíngia, talvez náo tenha sido única no seu género (cf. p. 268).
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gandes foram apresentadas por £ . Coomaert. No que diz respeito ao ciclo flamengo, deduz-se apenas que a sua for m a d o foi lenta: «Se os mosteiros de Thourout e de Messines, de idades muito diferentes, puderam constituir o núcleo de duas feiras, que facto determinou a entrada dos outros na serie dos cinco grandes?» (id.). De qualquer modo, é bizarro que as feiras de Saint-Omer, de Douai e de Gand náo tenham sido integradas na série, como também o é o facto de a de Bruges datar apenas de 1200. Quaisquer que sejam as respostas para estas perguntas, uma coisa é certa: apesar de «a expansáo comercial esbo?ada nos séculos X e XI ter agrupado progressivamente, em torno do Oeste europeu, as zonas comerciáis limitadas em unidades, simul táneamente cada vez mais vastas e cada vez mais homo géneas» (E. Coomaert), este movimento está ligado, apenas de forma acessória, á simplificado do mapa político da Europa (form ado de principados e de reinos, que a pouco e pouco suplantou o incrível parcelamento anterior) e, de forma decisiva, á actividade das grandes feiras. As feiras mais importantes, aquelas cuja influéncia se exerceu durante várias gera?oes (quase dois séculos) em todo o Ocidente, foram as de Champagne. «O seu... brilho dominou todo o comércio internacional... Seguindo o eixo vital que ligava a Itália aos Países Baixos, os seus recintos atraíram mercadores de todas as regioes» (E. Coomaert). Recintos táo animados que se pode deduzir que as peagens, os terrádigos e todas as taxas «náo opunham barreiras táo decisivas ás trocas como as nossas fronteiras alfandegárias e políti cas modernas». Faremos apenas algumas observares sobre a origem das feiras de Champagne. Pirenne, seguido por H. Laurent, pensava que elas tinham surgido no momento em que os mercadores flamengos, que se dirigiam para o Mediterráneo, e os italianos, que seguiam o eixo Ródano-Saóne, se teriam encontrado a meio caminho. No entanto, Chálons e Bar-sur-Seine, encruzilhadas de estradas importantes, estariam em melhor localizado do que Provins e Bar-sus-Aube. E este encontro teria sido antes um cruzamento, visto que, desde comeaos do século XII (altura em que as feiras de Cham pagne come?avam bastante modestamente e as de Bar eram sobretudo feiras de animais), havia italianos na Flandres e vendedores de tecidos de Arras em Génova. Aliás, as feiras existiam antes de serení frequentadas pelos flamengos e pelos italianos: deram os seus primeiros passos por volta de 1150, mas os flamengos eram ainda bastante raros nesta época e os italianos só apareceriam no último quartel do século XII. H. Laurent pensava também que a indústria de lanificios das cidades de Champagne teria podido provocar a localizado das feiras: de facto, esta indústria era ainda nascente no século XII e foram pelo contrário as feiras que a tom aram próspera. E. Chapín e R.-H. Bautier, de acordo quanto ao essencial, pensam que a localizado destas seis feiras (havia duas em Provins e também em Troyes) ñas 269
quatro cidades se deve menos á sua posido geográfica do que á a c d o inteligente dos condes de Champagne que, na segunda metade do século XII, teriam concebido o ciclo das feiras, ciclo com «uma regularidade de relógio» (R.-H. Bautier), e concedido aos mercadores privilégios hábilmente pensados. Todos os senhores que pretendessem atrair papalvos e mercadores á sua feira e que desejassem fazer déla «um oásis de paz e um terreno de experiencia» (R.-S. López), concediam a «paz do mer cado», prometendo nao fazer sofrer qualquer vexame (confiscares em virtude do direito de aubaine (*) ou devidas a represálias) e oferecendo condifóes de alojamento e de armazenamento vantajosas, e ainda uma isengáo ou redufáo das taxas. No fundo, foi o que fizeram os condes de Champagne, embora com mais habilidade e espirito consequente do que muitos outros senhores. Para este sucesso, contribuíram de forma talvez determinante duas criagóes em particular: o «conduto» e os guardas das feiras. O «conduto» das feiras era a protecfáo concedida pelo senhor aos mercadores que se dirigiam para a feira. Até entáo, esta protec?áo era concebida apenas para ser exercida no território contro lado pelo senhor. O conde Thibaud o Grande, teve déla uma outra concepdo, completamente inovadora, esfor?ando-se por alargar essa protec?áo para além dos limites do seu condado. Assim, em 1148, alguns cambistas de Vézelay, que se dirigiam para as feiras, foram presos perto de Sens pelo filho do visconde de Sens: Thibaud escreveu ao abade Suger, regente do reino, exigindo uma reparado. Os seus sucessores conseguiram a confirm ado do conduto por to dos os príncipes territoriais. Finalmente, em 1209, Filipe Augusto colocou sob a sua conduta real todos os mercadores que se dirigiam para as feiras. E esses condutos, o condal e depois o real, foram sempre respeitados de maneira notável. Por seu turno, os guardas tinham por fu n d o garantir o policiamento durante as feiras e também reforjar a seguranza dos mer cadores. Inicialmente, eram simples agentes condais encarregados da organizado material e do controlo dos regulamentos. Depois, pelo menos a partir de 1174, passaram a ter poderes íte jurisdido sobre os mercadores reunidos dentro dos limites privilegiados da feira. Finalmente, no decorrer do século XIII, adquiriram uma jurisdido «universal», que se estendia a quase todo o Ocidente cristao. Entre 1225 e 1247, os particulares passaram a submeter aos guardas con tratos de toda a espécie. Finalmente, a partir de 1260, estas «cartas dos guardas das feiras» tomaram-se táo numerosas que a adminis tr a d o passou a incluir notários, procuradores e sargentos. Estes (*) A ubaine — direito em virtude do qual reverte em favor do soberano a sucessáo do estrangeiro que morre nos seus Estados. (N. do E.)
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últimos espalhavam-se por todas as estradas da Europa de tal maneira que os contratos passados durante as feiras eram executórios em toda a cristandade latina. Foi indiscutivelmente isto que contribuiu para que a actividade das cidades das feiras se prolongasse até ao cometo do século XIV. Entretanto, os mercadores tinham-se também organizado, com a plena aprovafáo da autoridade contal. O melhor período das fei ras de Champagne situa-se no fim do século X II a meados do século seguinte: entáo, elas eram realmente o centro da actividade comercial do mundo ocidental. Os produtos da indústria de lanifi cios do Norte passavam para as máos dos mercadores italianos, sendo por eles largamente distribuidos na zona do Mediterráneo, princi palmente através de Génova que os exportava para as escalas do Levante. Em sentido inverso, os Flamengos importavam tecidos de seda e especiarías, que os negociantes do Norte da Europa vendiam seguidamente em Bruges, ao mesmo tempo que os tecidos flamengos e o vinho francés. De inicio, os mercadores de uma mesma cidade, depois de viajarem sós ou em caravana, encontravam-se ñas feiras, alojados no mesmo hotel e vendendo no mesmo mercado, onde o conde os autorizara a instalar-se e fora do qual lhes estava proibida qualquer transacfáo. Ainda náo tinham uma representado particular e permanente. Depois, desde antes dos anos 1250, os Italianos comecaram a criar con sulados para cada uma das suas colónias que participavam ñas feiras. O consulado mais antigo parece ter sido o dos Senenses (1246), sendo os das outras cidades um pouco posteriores. O cónsul náo era apenas o representante dos oficios da cidade, representando também uma em anado do govemo da cidade de Itália. Representava este último junto dos seus concidadáos e junto dos príncipes e das Jus tinas estrangeiros e organizava assembleias dos seus com patriotas vindos ás feiras, arbitrando os seus diferendos. No total, conhecem-se quinze consulados italianos para as quatro cidades de feiras. É provável que os Cataláes também tenham tido consulados. Por seu turno, os mercadores dos Países Baixos tinham-se organizado de maneira diferente. Existiu apenas um grupo de cidades de téxteis, o das «17 cidades» (o número tomou-se aliás um pouco mais elevado): as cidades de língua románica e as cidades de língua flamenga, cidades do reino e cidades do Império, situadas na Flandres e tam bém em Artois, no Pointhieu, no Hainaut e mesmo em Champagne. Náo sáo bem claros os lacos que podiam unir algumas das cidades dessa hansa interurbana, como Bruges e Reims. Seja como for, a organizad0 dos mercadores do Norte era bastante frouxa: náo tinha um chefe á sua frente, mas apenas a reuniáo de assembleias gerais para deliberar sobre os interesses comuns. A partir de meados do século XIII, os Italianos aperfei?oaram a sua organizad0» unificando-a. Constituidos em societas et universitas, os consulados, pelo menos a partir 271
de 1278, elegeram para os chefiar um capitáo encarregado de tratar com o rei de Franca, em nome dos seus doze mandatos toscanos e lombardos. Posteriormente, a autorídade deste capitáo e a sua jurisdido alastraran) a todos os italianos que traficavam ñas feiras de Champagne e também no conjunto do reino. Os mercadores da Provenga e do Languedoc criaram uma organizado análoga. Toda vía, o seu capitáo náo era eleito pelos cónsules das cidades destas provincias, mas escolhido pelo Conselho da cidade de Montpellier entre os seus notáveis: tinha jurisdido obrigatória sobre todos os mercadores da cidade em toda a Franca, apenas facultativa sobre os negociantes das outras cidades meridionais. A partir de 1246, os textos mencionam um capitáo e um cónsul de Montpellier: excepcionalmente, os Italianos, iniciadores em todas as questóes de comércio, teriam sido portanto ultrapassados pelos franceses do Midi. Tudo quanto ficou escrito anteriormente pro va que a populagáo mercantil das feiras de Champagne se distribua por trés grupos principáis: flamengos e outros negociantes dos Países Baixos, ita lianos e homens do Midi francés. A partir de meados do século XIII, quando os organismos mercantis estavam ainda em fase de aperfeifoamento, o papel co mercial das feiras de Champagne comecou a declinar, embora tenha sido nessa época que se muitiplicaram os contactos com os mer cadores da Alemanha. Consultemos com efeito a correspondéncia da poderosa familia senense dos Tolomei, a mais preciosa fonte para a história das feiras na segunda metade do século. No caso da Franga, a sede da sociedade dos Tolomei era ñas feiras de Cham pagne. Era a estas feiras que a sociedade ia buscar numerário para a compra de tecidos, quer através de meios bancários (adiantamentos, empréstimos, cámbio de moedas provenientes das suas sucursais de Itália), quer através da venda de mercadorias trazidas para Champagne pelos seus agentes, de maneira a evitar o mais possível o transporte das espécies. Em 1262, os tecidos eram com prados directamente por um factor nos próprios locáis de producáo (Ypres, Chálons-sur-Marne, Montreuil...) e este levava o dinheiro consigo. Para as aquisigóes a efe feira, o factor partía na altura os tecidos pudessem chegar a Champagne no momento pretendido e a soma por ele transportada representava um adiantamento. Do mesmo modo, no comeco do século XIV, os Bardi e os Del Bene obtinham as espécies em feiras, mas as compras eram efectuadas em Ypres, Douai, Malines... A expedido dos tecidos já náo partía de Champagne, como no tempo dos Tolomei em 1262, mas de Paris. Todos estes factos convergem e demonstram que, a partir de aproximadamente 1250, as feiras de Champagne tinham mudado de carácter: eram cada vez menos o mercado «internacional» dos
tecidos e tinham-se tornado a grande pra?a ocidental do cámbio, o «domicilio do cámbio de toda a Europa» (P. Huvelin). A partir do século XII, tinha-se criado pacientemente uma organizado do cámbio. Os contratos de cámbio (cf. infra, p. 277 e seg.) foram cada vez mais utilizados pelos italianos e pelos outros grandes mercadores que souberam iniciar-se nesta nova prática nascida na península. Tratava-se ainda apenas de simples promessas escritas de pagamento de uma soma num local diferente daquele onde a promessa fora feita (ordem de pagamento com alterad o de local). Existia a cláusula de ordem passiva (o signatário da pro messa pagaría ao remetente ou ao seu nuntius, nesse outro local) e a cláusula de ordem activa (o signatário mandaría pagar por um nuntius ou por um encarregado que agiría em seu nome). A frequéncia das feiras de Champagne era tal que, a partir de meados do século XIII, a maior parte das obrigafóes passadas no Ocidente, incluindo as contraídas pelos príncipes, os grandes e as igrejas, eram pagáveis, por ajuste, numa dessas feiras. Como todas as pravas da Europa tinham relafoes com as feiras de Champagne, surgiu, nesta regiáo, um sistema de extindo das dividas por com pensado, tornando-se aquetas feiras uma clearing house «internacional». O va lor das numerosas e diversas espécies e notas aqui estabelecido era conhecido num curto espado de tempo em zonas distantes, grabas aos «correios de feira», que depressa se tornaram importantes auxiliares da especulado. Assim, estas feiras contribuíram, numa medida considerável, para dar a conhecer a todo o Ocidente os aperfeÍ£oamentos dos meios de crédito usados pelos Senenses e pelos Florentinos, cuja influéncia sobre o comércio do dinheiro era enorme. Enquanto os meados do século X III tinham assistido a uma profunda alterad o do papel das feiras de Champagne, o primeiro quartel do século seguinte seria testemunha da sua irremediável decadéncia. Por volta de 1320, a decadencia do seu papel financeiro já se produzira, e esse papel náo seria substituido por qualquer outro. As causas do declínio foram múltiplas e é difícil atribuir mais importáncia a uma do que a outra. Afastemos a hipótese de H. Laurent, que atribuí este desafecto ás «exac?5es» financeiras de Filipe o Belo, que se tornara conde de Champagne: os «excessos» do seu fisco parecem-nos bastante insignificantes, uma vez que a taxa que ele estabeleceu para as transacfoes era apenas de um denário por libra (4,1 % ) e sobre os cambios mais baixa ainda (1 %). Afastemos também a tese segundo a qual a origem desta decadéncia se deve á abertura de uma via marítima directa entre o Mediterráneo e Bruges: experi mentada a partir de 1278, esta nova estrada só passou a ser um itinerário regular a partir de 1318-1328 (R. Doehaerd). Em contrapartida, há outras causas que parecem 273
bem reais. Náo se pode negar que as guerras que opuseram a Flandres ao rei de Franca, entre 1296 e 1320, desorga nizaran em parte os antigos mercados da lá e dos tecidos; mas havia algum tempo que os Flamengos acorriam em menor número e, desde 1294, os téxteis da Flandres repre senta vam apenas 15% em quantidade e 20% em valor de todos os tecidos vendidos — ou antes, pagos — nestas feiras. R.-H. Bautier demonstrou que as duas causas essenciais sáo outras. Por um lado, a indústria italiana desenvolveu-se a partir dos anos 1290: anteriormente produtora de tecidos inferiores, destinados ao consumo local, a indústria téxtil de Miláo e de Florenca passa a rivalizar em qualidade com a flamenga; suplanta-a nalguns mercados, o que reduz consideravelmente as compras italianas de tecidos flamengos. Além disso, os Italianos estáo prestes a despojar os Fla mencos do comércio das lás inglesas. Já náo é portanto preciso utilizar as feiras de Champagne e quase todas as sociedades italianas que mantinham retardes estreitas com essas feiras desaparecem urnas a seguir ás outras. Por outro lado, essas sociedades foram vítimas de uma «revo l u t o no mercado dos metáis preciosos»: o ouro acabava de assumir a primazia sobre a prata, a relafáo entre estes dois metáis sofrera variacoes precipitadas que levaram á faléncia as companhias cuja actividade assentava no cámbio e ñas espécies. Por outro lado ainda, e esta é, para R.-H. Bautier, a segunda causa essencial do declínio das feiras, Paris, que enriquecerá muito no século XIII, representava uma clientela de primeira ordem para os Italianos. A partir do cometo do século XIV, os «lombardos» sáo mais nume rosos em Paris do que ñas cidades de feira, em especial em Lagny. A feira de Lendit, realizada em Junho num local situado entre Paris e Saint-Denis — e que náo faz qualquer concorréncia á velha feira de Saint-Denis (prin cipio de Outubro) —, eclipsa as feiras de Champagne como mercado de téxteis, facto que se verifica bastante antes de 1300. Paris torna-se uma grande praga de cámbio, mais ou menos no momento em que a instalado do papado em Avinháo e a abertura de uma linha marítima regular entre Génova, Veneza, Southampton e Bruges, transformam esta última cidade e também Avinháo em enormes mercados do cámbio. As cidades de Champagne foram portanto víti mas do desvio de uma grande parte da corrente dos cámbios. Mas há outras causas. A abertura das novas estradas transalpinas (onde as taxas eram, no entanto, mais elevadas do que as estabelecidas em Champagne^por Filipe IV) passa a deslocar mais para leste (pela Suí?a e pelo vale do Reno) o tráfico entre a Itália e os Países Baixos. Todo o reino de Franca, e náo apenas as feiras de Champagne, sente os efeitos catastróficos desta deslocacáo. R. De Roover provou que a m odificado de mentalidade e de género de vida dos mercadores se encontrou também na base da decadéncia de Champagne. Os grandes mercadores tornaram-se sedentários. As viagens quase continuas dos negociantes correspon dían! a uma determinada civilizado, o mesmo acontecendo com as «feiras cíclicas». O comeco ca século XIV assinalou uma nova 274
fase: a partir de entáo, os principáis «errantes» passaram a ser, salvo excepgSes, os empregados das grandes casas italianas que, ao mesmo tempo, instalaram factores fixos nos maiores centros, como Londres, Paris e Bruges. Consequentemente, o comércio ac tivo, exercido pelos mercadores dos Países Baixos, também entrou em declinio, porque, no século XIV, numerosos agentes italianos se instalaram na Flandres e no Brabante. Compradores e vende dores, que agora mantinham contactos continuos, nao precisavam de ir ás feiras. Náo vamos mais longe. A sedentariza^áo do comércio nao se completou antes do fim dos tempos modernos. R.-H. Bautier recorda que o número de feiras — considerável nos séculos X II e X III em todo o Ocidente — náo estava reduzido no fim da Idade Média, que tinha outras feiras «internacionais», como as de Antuérpia, Francoforte, Génova, Liáo... Mas a verdade é que nenhuma desempenhou o papel verdaderamente imenso que pertencera ás seis feiras de Champagne. O crédito e a banca Náo se trata aqui do papel da Igreja como «arrendatária» de fundos, uma vez que esta praticou sobretudo os empréstimos de consumo concedidos a agricultores, camponeses e pequeños fidalgos rurais das vizinhan?as. Vamos debrufar-nos sobre o crédito comer cial, o desenvolvimento das actividades de negócio, que desvendaram perante os homens a ncxpáo clara da produtividade do capital mobiliário. Estudemos em primeiro lugar o caso dos credores. Durante muito tempo, considerou-se que os Judeus tinham sido os criadores do crédito e da banca. Há meio século, W. Sombart vía neles os iniciadores deste oficio altamente qualificado que é a profissáo de banqueiro. Isto é inexacto, porque, apesar de a doutrina da usura, elaborada durante os primeiros séculos medievais, proibir os cristáos de emprestar a juros, muitos deles, mesmo clérigos, náo tinham pejo em tornear a proibifáo canónica. Náo é portanto de crer que o comércio do dinheiro tenha sido uma actividade reservada aos náo cristáos. Os Judeus náo tiveram por conseguinte qualquer mono polio de facto, e náo se pode dizer que tenham estado na origem dos progressos técnicos, que provavelmente tiveram como origem principal o desejo de contornar a proibifáo sobre empréstimos a juros através de contratos hábeis. Os Judeus náo foram aliás omnipresentes na Europa «latina». O seu papel foi verdadeiramente importante ape nas em Espanha — só até ao século XIII — e no Languedoc. Contudo, no seu caso, tratava-se apenas de empréstimos de 275
consumo sob penhora. Em fins do século XIII, os Judeus foram regularmente atingidos por confisca?5es e expulsóes. Passamos a encontrá-los apenas, em grupos compactos, em países económicamente atrasados como uma parte da Ale manha e ñas regiSes vizinhas (Boémia, Polonia...). Foi, por tanto, a justo título que Pirenne escreveu que «quanto mais um país está económicamente adiantado, menos nele se encontram credores judeus». Na realidade, os agentes do crédito comercial foram burgueses, náo sendo tal facto de surpreender. A partir do século X I — e até a partir do século X em Veneza —, os mercados mais ricos dispunham de valores líquidos volumosos para se lan?arem ñas operagoes de crédito. Os dois polos económicos que foram os Países Baixos e a Itália desempenharam o papel principal, que, no entanto, náo foi exclusivo. Foram, por exemplo, os mercadores de Liége que, em 1082, emprestaram ao abade de Saint-Hubert o dinheiro necessário para a compra de um dominio: este empréstimo náo foi por certo nem gratuito nem o único efectuado por estes mercatores. A partir de meados do século XII, o comércio do dinheiro representara metade das operapoes (sendo a outra metade composta pelo tráfico de mercadorias variadas) a que se dedicou Guilherme Cade, mercador de Saint-Omer, morto por volta de 1166. Cade entregara-se a operagSes a prazo, comprando adiantadamente ás abadias inglesas a lá dos seus rebanhos, agindo deste modo em conformidade com «o uso geral de todos os grandes negociantes da sua época» (H. Pi renne); o hábito de comprar e vender a crédito encontrava-se já bem alicergado no comércio por grosso de especiarías, do vinho e dos tecidos e ainda no da lá. Os credores náo eram apenas clérigos (que por vezes puseram em perigo o seu temporal), mas também os reis, os nobres e as cidades, para já náo falar dos burgueses desejosos de aumentar os capitais envolvidos nos seus próprios negócios. O próprio Gui lherme Cade emprestara grandes somas ao rei de Inglaterra e a diversos cavaleiros ingleses. Mais tarde, Joao Sem-Terra recorreu também a financeiros de Gant. Mas, no século XII, os credores mais célebres foram os ricos mercadores de -Arras, a primeira capital cronológica do dinheiro no Ocidente: «Atrebatum... urbs... plena Divitiis, inhians lucris et foenore gaudens», proclamava Guilherme o Bretao, panegirista de Filipe Augusto. No século XIII, as sátiras e as comedias de Adam de La Halle e de Jean Bodel ridicularizavam a avidez dos Crespin e dos outros grandes «usurários» da cidade. De facto, náo foi por acaso que a primeira capital do dinheiro foi também o bergo da literatura satí rica de língua francesa. 276
Fora dos Países Baixos, os mercadores de Cahors, excelentes rntermediários entre o Languedoc e a Inglaterra, adquiriram uma rep u tad o táo sólidamente estabelecida como a dos seus contem poráneos de Arras, facto de que resulta que o termo «Cahorsin» seja sinónimo de usurário. Mas a designagáo «lombardos» teve ainda mais sucesso; originalmente, provém da actividade de algumas familias do Piemonte (de Asti, de Chieri...) que, grabas á p o sid ° da regiáo ñas estradas alpinas, tinham conseguido imiscuir-se no movimento dos negócios. Pouco a pouco, os «lombardos» estabeleceram-se em muitas cidades de Franca e dos Países Baixos. Os empréstimos feitos por estes diversos «usurários» tinham por garantía «móveis» (no sentido jurídico do termo) cuja venda era lícita, no caso de o principal náo ser restituido dentro do prazo combinado; estes empréstimos proporcionavam juros elevados (de 30 a 40% ), facto de que resulta a impopularidade dos usurários. O mundo da usura teve apenas um papel bastante secundário no crédito propriamentc comercial. O primeiro tipo de cámbio é o cámbio manual, conhecido muito cedo. Os cambistas — apenas alguns, cujo número era estritamente limitado pelas autoridades senhoriais, urbanas ou principescas — tinham as suas mesas ou ban cos (daí o termo banca) no mercado de cada cidade. Uma vez que as espécies em circulado foram durante muito tempo cunhadas por autoridades monetárias bastante numerosas, os seus tipos e os seus valores eram diferentes: nenhum mercado, ainda que pouco importante, podia passar sem os servidos do cambista. Mas, ñas grandes cidades, sobretudo em Itália, os cambistas — que rápidamente passaram a chamar-se banqueiros, por exemplo em Génova — depressa alargaram o campo da sua actividade, ocupando-se de depósitos e de transferencias (daí a necessidade de um cámbio mais hábil). Alguns comefaram por aceitar conservar as moedas que lhes confiavam clientes pouco desejosos que estas lhes causassem estorvo ou de as transportar, comprometendo-se os depositários a restituí-las a pedido. «Que o cliente encarregue o seu cambista de efectuar pagamentos em seu nome. Que, em troca, o deixe investir uma parte das somas que lhe entregou em depósito, na condifáo de, a todo o momento, obter o equivalente (e náo as mesmas moedas depositadas como no «depósito regular» da Roma antiga), e está dado o passo decisivo» (Ph. Wolff). Consul tando as nótulas dos notários de Génova, parecem de facto ter sido os bancherii desta cidade que, a partir do século XII, aceitaram os primeiros depósitos reembolsáveis a pedido, efectuaram pagamentos por transferencia segundo as ordens recebidas e, final mente, concederam empréstimos aos seus clientes. Por transferen cias, entendemos operagóes de crédito ou débito de um depósito para um outro por ordem deste ou daquele depositante de um mesmo cambista. Desde antes de 1200, os Genoveses come?aram 277
também a utilizar o sistema de compensado: os banqueiros efectuavam pagamentos por transferencia, mesmo quando o credor e o devedor náo tinham os respectivos fundos entregues ao mesmo banqueiro. A experiencia ensinara aos Genoveses que bastava con servar uma parte (um ter?o, em geral) das somas depositadas para fazer face, pelo menos num período normal, a todos os possíveis pedidos de reembolso. O excedente — portanto dois tercos — podia deste modo ser utilizado para investir fundos em negócios de comércio ou para conceder adiantamentos aos clientes em conta-corrente. Como depositário dos seus clientes, o cambista-banqueiro pode receber deles ordem para pagar um ter?o e, no caso de o cliente ter conta no seu «banco», a operado faz-se através de escri turas, sem qualquer manuseamento de espécies. Os banqueiros da mesma cidade estabeleceram Tapidamente uma «conta-corrente» entre si. A banca de depósito e de transferencia, assim como a banca de negócios, nasceram portanto em Génova no decorrer do século XII. Estes organismos atraíram os depositantes, oferecendo-lhes o pagamento de juros ou mesmo a participado nos lucros realizados com os fundos investidos. No entanto, os banqueiros de Génova do século XII investiram pouco no grande comércio e, durante muito tempo, os seus negócios náo ultrapassaram o ámbito local. Só no século X III os banqueiros de outras pragas alargaram o campo de actividade das suas operafóes. Mesmo em Génova, foram os mercadores-banqueiros, mais mercadores do que banqueiros, de outras cidades, situadas no inte rior, sobretudo de Placéncia mas também de Sena e de Florenfa, quem tomou a iniciativa do cambium per litteras, ou seja, do nego cio dos contratos de cámbio. As suas transacfóes estendiam-se a numerosas pravas que náo usavam as mesmas moedas. E, como já pertenciam a sociedades familiares que estendiam as suas ramificafSes a diversas regioes, os mercadores-banqueiros financiavam os negócios de outros negociantes, aceitando obrigacoes pagáveis geralmente ñas feiras de Champagne. Foram de facto as feiras de Champagne (cf. supra, p. 273) que deram o passo decisivo no sentido do cámbio náe/manual. O comér cio levantava problemas delicados nestas feiras, a partir do mo mento em que a compra e a venda tenderam a dissociar-se. O ex portador italiano que frequentava as feiras contraía empréstimos na sua cidade, em moeda local, para comprar as sedas e as espe ciarías que ia vender numa das quatro cidades de feiras. Feita a venda, por exemplo em Provins, passava a dispor de uma soma em moeda provinense que era preciso cambiar antes de reembolsar o credor italiano. Inversamente, um italiano que comprasse tecidos da Flandres em Troyes ou em Lagny, precisava, para tal, de obter moeda provinense. 278
Até cerca de 1300, o instrumento das transacgóes deste género iria ser o contrato de cámbio. Os historiadores italianos e R. Doehaerd publicaram um grande número de nótulas dos notários geno veses dos séculos XII e XIII e do cometo do século seguinte. No primeiro registo, o de Giovanni Scriba (1155-1164), encontram-se ainda poucos contratos relativos ao cámbio de prafa para prafa: as sociedades de comércio eram entáo fundadas apenas para uma única viagem de ida e volta e os mercadores faziam as suas compras com o montante da venda dos produtos que tinham levado consigo. Mas, pouco a pouco, os contratos de cambio tomam-se mais nume rosos nos registos notarais, de tal modo que, por volta de 1250, se tornaram correntes em consequéncia da separado das o p erare s de im portado e de exportado. Resta sublinhar que diversos actos do registo de Scriba anunciam claramente o futuro. É o caso do acto de 8 de Junho de 1156, no qual dois irmáos reconhecem ter recebido 115 Lb. genovesas de Ribaldo Boleto, ao qual prometem reembolsar o respectivo con travalor (460 besantes) um mes depois da sua chegada a Constantinopla ou á corte do basileus se esta se situar entáo noutra cidade. Este contrato tem outras cláusulas importantes: se o pagamento náo for efectuado conforme previsto, o credor terá direito a 500 besantes pagáveis no Levante no próximo Dia de Todos os Santos; se os devedores náo cumprirem ainda em 1 de Novembro, deveráo pagar já náo em Bizáncio mas na própria Génova, antes de 1 de Agosto de 1157, á razáo de 10 soldos por besante, ou seja, 250 Lb. genovesas. A divida teria assim mais do que duplicado em catorze meses; como se vé, era fácil manipular a taxa de cámbio, de modo a incluir nela os juros. O cámbio e o recambio surgiram antes do fim do século XII. O registo de Guglielmo Cassinese (1190-1192) refere-se a adiantamentos feitos em Génova em moeda local e reembolsáveis em moeda de Provins na próxima feira de Champagne. Neste registo encontra-se por vezes uma cláusula de «recambio»: se o reembolso previsto náo se verificar, a divida será pagável em Génova, no regresso da viagem dos mercadores que estiveram em Champagne, e, neste caso, o contrato determina antecipadamente qual a taxa segundo a qual a moeda de Provins será reconvertida em moeda genovesa. Isto já era previsto no contrato de 1156. Todos estes actos, a que os contemporáneos chamavam instru menta ex causa cambii, sáo prototipos da carta de cámbio. Trata-se ainda de contratos auténticos, que R. Doehaerd demonstrou comportarem uma o perado de crédito. O mutuante retira um juro do seu adiantamento, mas esse juro está camuflado. ísto torna-se claro através da leitura dos actos notaríais do século XIII, dado que, entáo, se pode controlar a taxa de cámbio por eles fixada, con279
cedendo as feiras de Champagne o «certo» a todas as pravas italianas, baseando-se sempre o valor de cámbio no soldo de 12 denários de Provins e exprimindo-se num número variável de denários, genoveses em Génova, florentinos em Florenfa... Vejamos um outro acto notarial concluido em Génova em 31 de Outubro de 1252. Um associado da Compianhia dos Buonsignori reconhece ter recebido nomine cambii de Gherardo Oltremare 1416 Lb. 13 s. 4 d. geno veses. Promete reembolsar o «equivalente», ou seja, 1000 Lb. de Provins, na próxima feira de Troyes (3 de Dezembro). Se o reembolso náo se verificar nessa data, o devedor pa gará ao credor em Génova, antes de 2 de Fevereiro de 1252: mas as 1000 Lb. de Provins seráo entáo reembolsáveis em moeda genovesa á razáo de 19 d. genoveses por 12 d. de Provins. Se o pagamento náo se efectuar ainda nesta segunda data, o devedor reembolsará o dobro da soma emprestada. Verificar-se-á portanto uma dupla transacfáo: um cámbio de Génova ñas feiras de Champagne e um recámbio por conversao da moeda de Provins em moeda genovesa. O pre^o do primeiro cámbio é de 12 d. de Pro vins para 17 d. genoveses (1416 Lb. 13 s. 4 d. gen. — 1000 Lb. pr.). Mas o recámbio far-se-á a 12 d. pr. para 19 d. gen., o que quer dizer que o devedor entregará 1583 Lb. 6 s. 8 d. gen., sendo portanto o lucro do mutuante de 166 Lb. 13 s. 4 d. gen. Em casos-limite, bastante frequentes, os contratos de cámbio foram apenas empréstimos disfamados, evidentemente condenados pela Igreja. Nestes contratos de cámbio ficticios, o valor do recám bio é antecipadamente estabelecido segundo uma tabela superior ao prefo corrente do mercado e, além disso, estipula-se desde inicio que a regularizado náo se verificará numa outra prafa. Trata-se de um bom exemplo de empréstimos de lucro certo, portanto, usurário. Mas, em todo o caso, o rendimento dos capitais colocados no cámbio era elevado visto que o comércio internacional proporcionava, em caso de ser bem sucedido, grandes beneficios. A taxa de juro, mesmo para os contratos de cámbio náo ficticios, era ainda de 30% no século XIII, o que significa que era mais elevado do que anteriormente e mais alto do que virá a ser a partir do século XIV (apenas 20, 15 e por vezes 10%). v No século XIII, os contratos de cámbio ficticios parecem ter sido menos numerosos em Génova do que ñas outras cidades, particularmente Sena. Seja como for, uma coisa é certa: estes empréstimos disfamados de contratos de cámbio náo ficticio foram uma c ria d o de Génova, chegando depois a sua difusáo aos Italianos do Norte e do Centro. Contudo, a pouco e pouco, o contrato nota rial é substituido por uma simples carta missiva. Esta evoludo fundamental foi relacionada com a «sedentarizad o » do grande comércio e com o desenvolvimento da instrudo no mundo dos homens de negócios. Como a docum entado náo apresenta etapas claras, as hipóteses de explica?5es divergem entre si. 280
Disse-se que a carta de cámbio derivaría de um documento com plementar, chamado lettera di pagamento, surgido na segunda me tade do século XIII. O vendedor de divisas estrangeiras informava o seu associado, factor ou correspondente, da conclusao do con trato e dava-lhe ordem de pagar o montante prometido pelo acto notarial: é certo que se tomava necessária uma ordem de pagamento a partir do momento em que os mercadores já náo se deslocavam como anteriormente e que uma promessa, ainda que sob forma auténtica, náo vinculava um correspondente que nao fosse parte do contrato, quando este náo era factor ou «companheiro» (associado) do homem de negócios. Até aproximadamente 1300, esta carta de pagamento foi uma carta patente, mas depois passou a ser uma simples carta fechada. Antes de 1300, estas cartas de pagamento náo podem ser con sideradas verdadeiras cartas de cámbio, salvo as emitidas por Senenses e Florentinos: no fim do século XIII, só em Sena e Florenga havia o hábito de náo enviar directamente a carta ao aceitante: o sacador entregava-a em máo própria ao credor, o que representa a característica essencial de uma verdadeira carta de cámbio. Por influencia de R. De Roover, voltou-se a uma tese antiga sobre a origem da carta de cámbio. A despeito do seu nome, a carta de cámbio náo derivaría da carta de pagamento, cuja existéncia e grande uso sáo indiscutíveis, mas da própria acta notarial. Como a conclusao de qualquer acta notarial exige tempo — e o direito comercial tem que ser um direito expeditivo — e é muito difícil de substituir em caso de perda, os mercadores procuraram um processo mais rápido: a acta notarial foi deste modo substi tuida por uma simples carta. Tanto mais que as assinaturas dos agentes das sociedades bancárias, que tinham crédito em todas as pravas, valiam muito mais do que a de um simples notário. Seja como for, um facto continua válido: por volta de 1300, as cidades toscanas, mais predispostas ás inovafoes do que Génova e Veneza, já náo usam o contrato de cámbio mas a carta de cámbio, embora isso acóntela, sem dúvida, desde há pouco tempo. As somas utilizadas pelos banqueiros para as suas operagoes de cámbio, real ou ficticio, provinham cada vez mais, a partir dos anos 1250, dos capitais depositados por particulares ñas compa nhias. A partir de meados do século XIII, com efeito, estes depó sitos assumem um lugar superior ao das participafóes. As «com panhias terrestres», ou seja, as das cidades do interior (sendo as primeiras F lorería e Placéncia), estabeleciam-se com capitais dos seus associados: estes últimos eram muitas vezes parentes uns dos outros, pelo que havia a possibilidade de conclusao de acordos a 281
mais longo prazo do que ñas «sociedades marítimas». Por outro lado, os riscos das viagens por térra sempre foram menores do que os das viagens por mar. Portanto, enquanto uma sociedade marí tima durava por vezes apenas o tempo de uma viagem, a sociedade terrestre e familiar tinha uma vida menos breve. Devido a esta estabilidade — relativa —, as sociedades terrestres, que desde a sua form ado dispunham de capitais, puderam desempenhar fun?óes bancárias. Inspiraram confianza suficiente para que os particulares depositassem nelas os seus fundos, o que lhes permitiu o desenvolvimento dos negócios: principalmente depósitos a prazo, más também depósitos á ordem ou com um período de pré-aviso muito curto. Estes depósitos, remunerados por um juro, pareceram legítimos á Igreja, embora tenham podido servir para financiar empréstimos com juros. Para os teólogos como Sáo To más, estes relacionavam-se com as participares ñas sociedades que os clérigos consideravam lícitas. Em principio, se os depósitos tivessem uma dura?ao mais curta do que a da sociedade depositária, podiam ser renovados, o que aconteceu frequentemente. No tempo das feiras de Champagne, estes depósitos rendem de 7 a 10% fixos. Náo se tratará de um juro? Nao, porque o depósito é pró ximo da participado: o depositante sabe que o depositário empenhará o capital depositado nos seus negócios, e que isto implica uma participado. Tal como numa associado, o depositante con tinua a ser proprietário dos fundos investidos, sendo o depositário apenas um intermediário para o investimento e comprometendo-se a retirar uma parte dos seus lucros, sob a forma de uma percentagem previamente fixada, para a entregar ao seu depositante. Uma vez que, por ter a propriedade de uma parte dos capitais investidos pela sociedade, o depositante participa na produtividade, parece legítimo á Igreja que este retire déla uma rem unerado, a despeito do desagradável parentesco desta operado com o mutuum. Teráo estes estabelecimentos deparado com a oposido da Igreja, enquanto bancos de cámbio e náo já bancos de depósito? Aquela tinha evidentemente uma palavra a dizer, na medida em que o cámbio podia dissimular um juro. Mas as cor)sidera?5es sobre a influencia da doutrina canónica sáo bastante contraditórias. Para alguns, esta doutrina teria «travado o progresso económico, a apli c a d o de capitais em negócios, a mobilizado do crédito... uma política de investimentos» (E. Labrousse). Para outros, tais afir m a re s sáo táo injustas como inexactas. Keynes defendeu que a Igreja tornara possível o suficiente incentivo ao investimento. Na sua Théorie genérale de l ’emploi, de l'intérét et de la monnaie, Keynes recordou que as leis contra a usura datavam da Antiguidade. Também na Idade Média, «o mal essencial», «o obstáculo principal ao desenvolvimento da riqueza», o desaparecimento do «incentivo ao investimento» residíu na «preferencia excessiva pela 282
liquidez». «Isto era bastante natural; alguns dos riscos e dos acasos da vida económica diminuem com efeito a eficácia marginal do capital, enquanto os outros reforfam a preferencia pela liquidez. Num mundo que ninguém considerava seguro, era quase inevitável que a taxa de juro, se náo fosse reduzida por todos os meios de que a sociedade dispunha, fosse demasiado elevada para tornar possível um suficiente incentivo ao investimento.» É, no entanto, certo que a prática do cámbio foi encarada com desconfianza pelos teóricos canónicos que, tal como Robert de Courfon e Raymond de Peflafort, desaconselharam, aliás sem sucesso, ao papado o recurso aos servidos dos banqueiros. Contudo, a partir do século XIII, e portanto a partir do primeiro grande desenvolvimento das opera?óes de cámbio, a maior parte dos teó logos justificaram o beneficio ligado ao cámbio. Uma vez que o cámbio se tornara indispensável ao negocio, tanto mais que o volume das moedas metálicas continuava a ser insuficiente, a uti lidade social dos cambistas tornava-se evidente; os riscos inerentes ás suas opera?5es (por exemplo, a transferencia de fundos) legitimavam a rem unerado. A s sociedades de comércio A Idade Média deu inicio á elaborado de novos tipos de associafóes mercantis e, também, do direito das sociedades, para os negócios de dimensóes particularmente vastas, portanto em especial para as do «grande comércio internacional». Numa primeira fase, as associafoes de mercadores foram, no século XI, associa?8es de defesa e de organizado da profissáo (guildas, hansas...) no seio de uma cidade ou com vista a viagens longas a efectuar. As que surgiram depois e sobre as quais nos vamos debrugar eram muito diferentes. Para evitar qualquer ambiguidade, chamar-lhes-emos companhias (como faziam os Italianos) ou, melho' ainda, sociedades, termo mais exacto do ponto de vista jurídico. A partir do século XI em Veneza, a partir pelo menos dos séculos XII e X III ñas outras grandes cidades italianas, diversos mercadores come?aram a associar-se. Mais uma vez, os Italianos foram os pioneiros. E, até ao fim do século XIII, foram praticamente os únicos participantes nestas companhias. Do mesmo modo, foi preciso esperar pelo século XIV para que os cambistas da grande praga de Bruges se transformassem em verdadeiros banqueiros. Os dois principáis tipos de «associa?oes» foram a comanda e a verdadeira sociedade, tendo a primeira surgido em diversos portos de Itália e a segunda ñas grandes cidades comerciáis do interior. Ñas cidades marítimas da península, as associafóes tiveram que se vergar a «coac?óes gerais». As viagens por mar tinham muitos 283
perigos: piratas muculmanos ou cristáos, capturas de navios e carregamentos mesmo neutros em tempo de guerra, «o mau tempo que provoca avarias ou forfa a lanzar o carregamento ao mar» e naufrágios por vezes. Assim, nos empréstimos marítimos, os devedores apenas reembolsavam os credores quando o navio chegava a bom porto, salva eunte navi (Y. Renouard). Cada empréstimo relacionava-se apenas com uma transaccao ou com uma viagem determinada e o risco pesava sobre os únicos que o podiam suportar, ou seja, sobre os que emprestavam fundos. «O fraccionamento e a associafáo sao, portanto, a regra necessária dos negócios» marítimos (Y. Renouard): quando há tres associados em partes iguais, o risco é dividido por tres; e, devido «á incerteza das empresas marítimas», nenhum homem de negócios se empenha por mais de uma viagem. A comanda é, portanto, a partir do século XI em Veneza e nos dois séculos seguintes noutros portos, uma sociedade feita entre um ou vários capitalistas, que fornecem o capital, e um mercador, que faz a viagem. Note-se que, além da comanda propriamente dita, existe um outro tipo um pouco diferente: a colleganzia veneziana e a societas genovesa. Um ou vários capitalistas fornecem a maior parte dos fundos sem se deslocarem, enquanto o mer cador fornece, além da sua actividade, uma parte — bem m enor— do capital. O século X III assistiu a um grande desenvolvimento da comanda e dos seus derivados. Como escreveu Marc Bloch, ela foi «a fonte principal das fortunas capitalistas ñas grandes cidades mercantis da Itália». O mesmo se pode dizer das verdadeiras sociedades ou com panhias (no sentido mais exacto do termo), surgidas em diversas pravas importantes da Itália interior. O seu comércio fazia-se sobre tudo por via terrestre ou por água doce. «Apesar de expostos aos perigos da pilhagem, tal como os comboios marítimos, o carreto e a navegado fluvial estáo isentos de todo o risco de cataclismo natu ral; assim, em geral, prevé-se o seu pleno sucesso» (Y. Renouard). As associafoes podem, portanto, ser constituidas por um prazo mais longo, em geral de vários anos, sem que seja iíecessário especificar todos os negócios de que se ocupará. Sao «estáveis, gerais, de objectivo indefinido» (Y. Renouard). «E, como (os associados) nao se sentem inquietos por cada negócio em particular, náo pensam em dividir os riscos através da fragm entado das associafSes: associam-se e cada um contribuí para o fundo social da sociedade, empenhando nela o total ou uma parte do seu capital disponível» (Y. Renouard), o que corresponde a mais do que o capital aplicado ñas associafoes dos portos italianos. Em Placéncia, Sena, Miláo, Lucques, Florencia..., a compagnia, sociedade de nome colectivo, agrupa ordinariamente os membros de 284
uma familia ou de duas familias que tém interesses comuns. O capi tal social nao é dividido em partes cessiveis e, geralmente, os associa dos sao responsáveis in infinitum e solidariamente. Esta sociedade de pessoas, criada para vários anos (o que parece longo, mesmo no século XIII), é sempre recondutível e frequentemente reconduzida. Pode também enviar para longe um dos seus associados para a representar e a existencia de tais mandatários nos mercados mais distantes, com os quais a sociedade se relaciona, facilita grandemente o curso e a extensáo dos seus negócios. Além da sua estabilidade, da sua du rad o , da importancia do capital social, e de dispor de correspondentes e de bases de poder distantes, estas companhias apresentam ainda outras características que as distinguem das associagóes comerciáis das cidades marítimas. Sendo duradoiras, podem vender a crédito, ajudando «homens com iniciativa, mas sem fortuna, a constituir a pouco e pouco o pequeño capital que lhes permitirá ulteriormente o acesso a uma companhia» (Y. Renouard). Sobretudo, como se viu (cf. supra, p. 282), as companhias desdobraram-se fácilmente em bancos de depósito e de cámbio; os empréstimos e sobretudo os depósitos feitos por parti culares mediante um juro fixo serviram para que os associados desenvolvessem as suas operafóes comerciáis, os seus investimentos e os seus empréstimos (com um juro evidentemente mais elevado do que o concedido aos depositantes). E a presenta de representan tes nos mercados exteriores, em particular ñas cidades de feiras de Champagne e ñas dos Países Baixos, permitiu-lhes efectuar, sem muitos transportes de numerário, transferencias de fundos de pra?a para pra?a através de simples correspondencia. O grande comércio e a banca náo bastaram para a devoradora actividade das companhias italianas que, progressivamente, se entre garan! ao comércio e á própria transform ado da lá, produto indus trial cuja procura era universal. Muito antes de 1300, estas compa nhias montaram uma indústria textil, organizada no plano da empresa, na maior parte dos mercados. O comércio dos téxteis era depois alargado, pelos grandes negociantes dessas companhias, até ao próprio Oriente, onde os tecidos eram trocados por géneros exóticos. Estas companhias tinham o nome da familia dominante. As mais célebres de Sena do século X III foram as dos Tolomei e dos Buonsignori. Muito poderosas ñas feiras de Champagne, faliram pouco antes de 1300. A sua fraqueza provinha em particular dos empréstimos que fazia (nem sempre reembolsados) aos príncipes e aos papas e, sobretudo, da utilizado dos fundos dos depositantes nos seus negócios, facto que as colocava á mercé do mínimo pánico, ainda que injustificado. Em Lucques, dominavam os Rapondi, mais interessados no trabalho e na venda das sedas do que nos da lá e que, com outras familias locáis, foram muito poderosos na corte 285
dos últimos Capetos directos. Já no século XIII, as companhias flo rentinas tinham alcanzado o primeiro lugar. Os Spini, os Scali, os Frescobaldi e outros dirigiam poderosas sociedades que tinham lan zado verdadeiras teias de aranha no Ocidente, da Champagne á Flandres e á Inglaterra. Mas também para elas os anos 1300-1326 seriam fatais: entre 1302 e 1326, seriam arrastadas por uma cadeia de faléncias. Ao lado da comanda e da compagnia, a co-propriedade parece uma associado bastante pouco evoluída. No entanto, este tipo de associado foi, e manteve-se durante muito tempo, o mais difundido fora de Itália, por exemplo, ñas minas e ñas salinas. No dominio marítimo e terrestre das cidades da Hansa Teutónica, encontramo-la, em muitos ca sos e durante muito tempo, ao lado da empresa individual. Por conseguinte, os novos tipos de associado náo eram uma base indispensável para a expansáo comercial á escala dos grandes mares, como foi a dos Hanseáticos. A Igreja náo hesitara em reconhecer a legitimidade das associafóes comerciáis. Assim o testemunha Inocéncio III, na sua carta Per vestras ao arcebispo de Génova: é lícito confiar o capital a um mercador. Assim o testemunha também Sáo Tomás de Aquino que, na sua Somme théologique, escreveu: «Aquele que confia o seu dinheiro a um mercador ou a um artesáo, por meio de qualquer associado, náo transiere a propriedade do numerario, que continua a pertencer-lhe. É, portanto, com o risco do dito proprietário que o mercador faz comércio ou que o artesáo trabalha. Assim, aquele que confiou o seu dinheiro está autorizado a reivindicar uma parte do lucro obtido, como proveniente do seu próprio bem.» A associa d o comercial é, portanto, fundamentalmente diferente do empréstimo a juros, uma vez que náo implica transferencia de propriedade (J. Ibanés). Cada associado tem direito a receber uma parte do lucro obtido por dispor de um dos títulos de participado na produtividade: o capital (sendo a outra, obviamente, o trabalho). Pode ter acontecido que a proibifáo do mutuum tenha contri buido para o crescimento das companhias, afamando parcialmente os detentores de capital das operafoes proibidas em proveito de sociedades reconhecidas como lícitas. Isto provaria que a doutrina da Igreja está muito longe de ter representado um grave obstáculo ao emprego de capitais nos negócios comerciáis.
H ierarq u ia das m ercadorias, das co rrentes e dos polos com erciáis
Desde o fim do século X até aos anos 1300, o volume do comércio, ou melhor aínda dos comércios, aumentou em proporfóes absolutamente consideráveis. Todos os factos, todas as fontes con286
cordam para que o historiador o possa afirmar. Mas a indigencia dos documentos cifrados torna impossível qualquer tentativa de avalia?áo e medi?áo dos progressos quantitativos. Pode-se apenas, e com dificuldade, como fizeram alguns historiadores, estabelecer o sentido da balanza comercial entre diversas «regioes económicas». Na economia, há produtos dominantes: os metáis preciosos, a lá, os tecidos, as especiarías, o vinho, o sal e, evidentemente, os cereais, que sáo objecto de um comércio «internacional» á escala do Ocidente ou mesmo de todo o mundo antigo. Existem igualmente economías dominantes, ou seja, correntes comerciáis dominantes. A no?áo de pólo de desenvolvimento (Fr. Perroux) evoca um facto evidente: o desenvolvimento é sempre desigual no espado e no tempo. Ele é sempre — tanto no nosso tempo como na Idade Mé dia — uma hierarquia das potencias económicas: sabemos já que os Países Baixos e a Itália do Norte e do Centro foram, incontestavelmente, a partir do século XI, os dois maiores pólos de desenvolvi mento ocidentais. Mas outros se viriam a afirmar, em datas dife rentes: algumas regioes da Franca, da Inglaterra, da Espanha ou da Renánia, as costas alemas do mar do Norte e do Báltico. Nao é, portanto, apenas ao sector primário que as desigualdades sao fla grantes. No sector terciário, ao qual se encontra frequentemente subordinado o sector secundário, podem distinguir-se dois tipos de pólos: os grandes centros de impulsáo e de produ?áo, por um lado, e os de consumo, por outro. Um mesmo centro pode aliás pertencer aos dois tipos: a Flandres é um centro de impulsáo e de produ?áo para os téxteis e, ao mesmo tempo, um centro de consumo para os géneros agrícolas e para a lá, os corrosivos e os corantes necessários para o fabrico de tecidos. Por falta de espado, centraremos a nossa atencáo apenas nos produtos dominantes. Em contrapartida, apesar de as correntes comerciáis e as economías dominantes nos ocuparem especialmente, náo nos abstrairemos das economías dominadas, uma vez que os produtos dominantes e os mercadores das economías dominantes, por definido, circularam nelas muitas vezes como senhores e por que uma mesma regiáo pode participar ao mesmo tempo em dois tipos de economia: assim, a grande regiáo vinícola de Franca do mina, pelas suas exporta?oes, uma determinada provincia que, por seu turno, domina aquela regiáo pela sua venda de tecidos. A s especiarías e os tecidos: Itália e Penses Baixos As especiarías estáo na origem do poder económico dos grandes portos do Mediterráneo Ocidental, embora muitos outros factores tenham podido provocar, por exemplo, o admirável desenvolvimento de Veneza. «Elas constituíam (entáo) por excelencia», escreveu 287
Pirenne, «a carga dos navios» que frequentavam as escalas do Levante, até onde eram transportadas em caravanas vindas da Arábia ou mesmo da India e do Extremo Oriente. As especiarias eram géneros de luxo, fáceis de transportar por náo serem pesados, náo necessitando de instala?;oes dispendiosas, e tinham um prego elevado que permitia grandes lucros, apesar do elevado prego de compra. Estas características permitem compreender que o seu comércio se tenha desenvolvido táo vivamente, ao longo dos anos. Bastavam «modestos desembarcadouros de madeira, equipados com uma ou duas grúas» para «a manutengáo, carga e expedido de alguns mi litares de quilos de pimenta, cañeta, cravinho, noz-moscada, agúcar de cana, etc., que constituem a preciosa carga dos navios» (H. Pi renne). «Pode-se multiplicar as chegadas, que (as especiarias) nao ficaráo sem comprador. Os armadores medievais nunca tiveram que recear a catástrofe da acum ulado dos stocks, nem a baixa rui nosa dos pregos. Qualquer navio que regressasse ao seu porto de origem trazia consigo a certeza de lucros abundantes.» Tratava-se de um comércio táo frutuoso que os portos italianos mais ligados ao Oriente encontraram nele um dos principáis motivos para se defenderem náo apenas da concorréncia, mas até para fazer a guerra. A partir do fim do século XII, os Italianos trouxeram das esca las, além das preciosas especiarias, seda bruta e algodáo (foram os Genoveses que transmitiram a todas as línguas da Europa o termo árabe cotone): estas matérias téxteis foram trabalhadas ape nas pelas indústrias da Itália, até quase ao fim da Idade Média. Isto náo impediu que, como anteriormente, os Italianos continuassem a trazer do Oriente, embora em quantidades menores, «damas cos de Damasco, baldaquinos de Bagdade, musselinas de Mossoul, gazes de Gaza», tecidos que seriam imitados no Ocidente e, em primeiro lugar, em Itália. As cargas dos navios italianos incluíam também o corrosivo (alúmen) e as plantas tinturiais (pau-brasil... que provém da India, cochinilha...), necessários para as indústrias téxteis, nomeadamente para a principal, dos Países Baixos. Em sentido inverso, os Italianos recolhiam no Ocidente ou ñas suas orlas pagas as mercadorias e os escravos, que iam vender aos Bizantinos e aos Mugulmanos. O essencial destas exportagóes era evidentemente os tecidos: a área de difusáo dos produtos téxteis do Ocidente quase se confunde com o mundo entáo conhecido pela cristandade «latina». Até meados do século XII, os Italianos tinham-se limitado a fornecer ao Oriente os fustóes e outros tecidos produzidos pela indústria italiana, cuja importancia era limitada. Depois, passados os anos 1150, vemos os negociantes da península difundir em quase toda a extensáo do Mediterráneo os tecidos dos Países Baixos e de outras cidades francesas: a partir do último quartel do século X II e até cerca de 1250, a troca dos tecidos flamengos 288
por produtos exóticos efectuou-se ñas feiras de Champagne (cf. supra, p. 271). Através das actas notaríais conservadas em grande número em Génova, apercebemo-nos de que este grande porto exportava tecidos de Arras, de Gand, de Ypres, de Douai, de Lille, de Cambraia, de Touraai, de Amiens, de Montreuil... Os tecidos dos Países Baixos, de grande qualidade, vendiam-se muito caros e era portanto possível transportá-los para longe, a despeito das despesas de transporte, com a certeza de lhes encontrar com prador. Conforme diz Pirenne, «no dominio dos téxteis (os tecidos de lá flamengos) desempenharam em suma o mesmo papel que as especiarías, no dominio da alim entad0»Devido ás suas grandes disponibilidades financeiras e ao avanzo das técnicas comerciáis que utilizaram, os Italianos conseguiram apropriar-se, no século XIII, do quase monopólio da exportado dos tecidos do Norte para as regiSes do Sul. Mas quanto ás outras regioes? Até ao último quartel do século XIII, eram os próprios mercadores da Flandres que iam vender os seus tecidos numa grande parte da sua enorme área de difusáo (no século XIII, estes eram vendidos desde a Islándia até ao Báltico). Antes de 1250, tinham sido os tecidos da Flandres e de Hainaut, produzidos pelas grandes cidades, a invadir os mercados estrangeiros. Depois, na segunda metade do século XIII, os tecidos dos gran des centros do Brabante vieram juntar-se-lhes, precedendo os pro dutos dos centros secundários do Hainaut e da Flandres em algu mas décadas. Os agentes desta vasta difusáo tinham sido, excepto, como se sabe, no Sul, os próprios mercadores itinerantes dos Países Baixos, que tinham sabido mostrar-se comerciantes muito activos e muito avisados, que arriscavam os seus capitais em vastas opera r e s financeiras e garantiam a ligado entre a sua regiáo e os compradores estrangeiros. Por vezes fixavam-se em locáis distantes, mas os produtos da sua regiáo de origem continuavam a ser a base da sua actividade. Em suma, foram principalmente os mercadores de trés cidades — Gand, Arras e Bruges— que tomaram a inicia tiva desta expansao e que animaram as vias terrestres e marítimas do grande comércio de téxteis. Gand dirigia-se particularmente para as regioes do Imperio. Pensa-se sempre na grande estrada que unia a Flandres e a Itália, via as cidades de feiras de Champagne. Mas havia muitas outras estradas Jbastante animadas, que náo se podem classificar de secundárias. Era o caso da via que, partindo de Bruges e Gand, conduzia a Colonia pelo Brabante (o que permitiu o desenvolvimento textil desta provincia e provocou ao mesmo tempo um relativo declínio do comércio fluvial do Mosa e do Reno). Gand, bem servida por esta estrada terrestre, soubera apoderar-se do comércio com a Ale manha. Indiscutivelmente á cabera de uma hansa, Gand difundiu os tecidos da Flandres em todo o Império, comprando vinhos rena289
nos, cereais, arenques, madeira..., da Alemanha do Norte e da Escandinávia. Arras dirigía os seus mercadores para Sul, sendo, portanto, os naturais de Arras que frequentaram em grande número as feiras de Champagne, trocando os seus tecidos e os das outras cidades téxteis por géneros exóticos trazidos pelos Italianos (produtos de luxo contra outros produtos de luxo, ao contrário dos naturais de Gand, que compravam mercadorias pesadas). É certo que os mer cadores de Arras foram o grupo mais activo ñas feiras e que, tendo deste modo contactos mais estreitos com os negociantes italianos, conseguiram aproveitar melhor ou mais depressa do que os outros da sua experíéncia desigual em matéria de técnica comercial. Bruges encontrava-se geográficamente voltada para o tráfico com a Inglaterra, apropriando-se do comércio da lá inglesa, á qual se recorría cada vez mais, á medida que se desenvolvía a produgáo de tecidos, uma vez que os rebanhos flamengos depressa deixaram de fomecer materia-prima suficiente. Foram os mercadores de Bru ges, aliás acompanhados por negociantes de outras grandes cidades como Ypres ou Lille, que cortejaram os reis de Inglaterra e lhes emprestaram grandes somas, devido ao receio em que a Flandres sempre viveu de uma suspensáo das remessas inglesas de lá, das quais a sua economia estava cada vez mais dependente. Em troca da matéria-prima, os negociantes de Bruges e os seus confrades abasteciam a grande ilha de tecidos, ou mesmo de vinho. Mas o papel de Bruges náo se limitou, como o de Gand, ou de Arras, a reabastecer os Países Baixos; Bruges tornou-se o centro da activi dade material, primeiro dos Países Baixos e depois de uma grande parte do Ocidente. Toda a navegagao setentrional, e náo apenas a das costas inglesas, se orientou a pouco e pouco para este porto. A importancia de Bruges comegou a esbogar-se no século XI, quando foi aberto um canal que ligava a cidade ao estuário do Zwin que se formara entretanto (A.-E. Verhulst). Os Escandinavos abandonaram entáo Tiel em seu favor. Depois, no século XII, os Alemáes tornaram-se por seu turno senhores do mar do Norte e do Báltico e frequen taram intensamente Bruges que recebeu deste modo um novo impulso. Pensa-se geralmente que a criagáo do anteporto de Damme antes de 1180 e, depois, cerca de 1260, a de um outro situado mais a jusante, o Sluis, se explicam tanto através da substituigáo das barcas escandinavas pelos navios hanseáticos, que exigiam molhes mais profundos e maior espago devido ao seu afluxo, como através do lodo que progressivamente cobria os acessos de Bruges. É um facto característico que, mesmo antes do fim do século XIII, quando os mercadores flamengos ainda eram itinerantes, os barcos ancorados em Bruges ou nos seus anteportos tenham pertencido a armadores «feirantes». Os habitantes serviam de intermediários entre os negociantes vindos de todos os pontos do Ocidente, venezianos, genoveses, florentinos, ca290
taláes, baioneses, bretóes, alemáes, que, desde o século XIII, tinham lojas ou bancas em Bruges. N a sequéncia do de clínio económico das feiras de Champagne, Bruges assumiu o papel de principal praca de comércio «internacional» do Ocidente: «É desprezivo chamar-lhe, como tantas ve zes se fez, a Veneza do Norte, pois Veneza náo gozou nunca da importáncia internacional que faz a originalidade do grande porto flamengo. O seu poder assentava essencialmente na navegacao: nada devia ao estrangeiro» e só os Alemáes tiveram ali um estabelecimento permanente «cuja actividade se limitava á compra dos produtos importados pelos barcos venezianos» (H. Pirenne). Depois de meados do século X III, as companhias italianas instalaram em Bru ges factores ou correspondentes, encarregados da compra dos tecidos da Flandres e do Brabante, tecidos que frequen temente recebiam os últimos acabamentos em Floren?a, feitos pela Arte di Colímala. A pouco e pouco, o estabelecimento permanente dos represen tantes das sociedades italianas e de outros estrangeiros, como os Hanseáticos, tornaram os mercadores flamengos — tanto os de Bru ges como os outros— cada vez mais «caseiros». No entanto, nem todos o foram, uma vez que, no fim do século X III, o declínio do comércio «activo» ainda náo era completo, e que, no século XIV e até no século XV, alguns negociantes dos Países Baixos ainda frequentavam Paris, Chalon-sur-Saóne, a costa atlántica da Franca e da Espanha. Mas a maioria dos negociantes de Bruges tinham passado de mercadores itinerantes a corretores. Aliás, nem sempre corretores forjados porque, e isto iría permitir que o papel inter nacional de Bruges sobrevivesse ao relativo declínio do comércio textil até pleno século XV, a cidade (facto quase único na Europa) renunciara ao monopólio de algumas opera?oes em proveito dos seus burgueses: em certa medida, os estrangeiros puderam comer ciar livremente entre si ou mesmo comprar e vender a retalho. Náo se pode dizer que a economia dos Países Baixos tenha passado, depois de 1250 ou 1300, de economia dominante a economia domi nada, porque Bruges tirou largamente partido da presenta de mer cadores de todas as origens e de produtos táo diversos como os tecidos locáis, a lá inglesa ou, já, ibérica, as especiarías, os frutos do Sul, o gado da Holanda e da Frísia, os cereais da Picardía e do Báltico, os vinhos da Franca e do Reno, as peles da Escandinávia, a madeira do Leste...
Um novo polo de desenvolvimento: a Hansa Teutónica Foi no século X III que a expansáo alema se manifestou verdadeiramente no mar do Norte, no sentido de Inglaterra, e, mais ainda, dos Países Baixos. «Neste sector, (a expansáo alemá) náo 291
tomou o aspecto, como a Leste ou a Norte, de uma imigragáo massiva, de uma colonizado. Conservou um carácter estritamente comercial, estabelecendo os grupos de mercadores relagoes cada vez mais importantes com os portos ingleses e com Bruges» (Ph. Dollinger). Os lagos comerciáis entre Colonia, Bremen e a Inglaterra eram muito antigos e remontavam pelo menos ao século XII. O facto novo do século X III foi «o aparecimento e a m ultiplicado rápida, no mar do Norte, de mercadores provenientes do Leste — que mais tarde foram chamados esterlinos ou osterlinos—, sobretudo de Lubeque, mas também de Visby, dos portos do Báltico, Rostock, Stralsund, Elbing, Riga e, finalmente, das cidades saxónicas»: só na segunda metade do século se estabeleceu uma ligado marítima entre o mar do Norte e o Báltico por circum-navegagáo á volta da Jutlándia, substituindo a estrada terrestre mais curta de Lubeque a Hamburgo, anteriormente utilizada, para ganhar tempo e evitar os perigos dos estreitos dinamarqueses. Colonia comegara por ser a única cidade a desenvolver negócios com a Inglaterra. No comego do século XIII, o seu monopolio foi batido pela expansáo dos negociantes de Lubeque e dos outros mer cadores do Leste. Pouco tempo depois, tres grupos rivais, aos quais os reis de Inglaterra concederam privilégios sensivelmente iguais, formaram trés hansas: a de Colonia, a mais antiga, a de Ham burgo (1266) e a de Lubeque (1267), que se fundiram em 1281, for mando a «Hansa da Alemanha», dirigida em Londres por um anciáo, eleito pelos negociantes e confirmado pela cidade. A su cursal hanseática da capital inglesa surgiu, portanto, em 1281, en quanto o Stalhof, fundado em meados do século XII, admitía os mercadores que náo eram de Colonia. Em contrapartida, os mercadores alemáes, mesmo os de Colónia, só bastante tarde aparecem na Flandres. O «facto é paradoxal, quando se tem em conta a proximidade da Renánia e o lugar impar desempenhado por Bruges na história da Hansa» germánica (Ph. Dollinger), mas explica-se pelo poder do comércio «activo» dos Países Baixos em Colónia, em Bremen, em Hamburgo e mesmo no Báltico. Só no segundo quartel do século XIII, o número dos mer cadores alemáes que frequentavam Bruges aumentou sensivelmente. «Os mercadores de Colónia e da Vestefália iam sem dúvida a Bruges sobretudo por térra, enquanto os de Bremen, Hamburgo e Lubeque viajavam cada vez mais por mar. Ao contrário do que acontecía em Londres, os mercadores de Colónia e de Lubeque náo entraram em conflito. Os primeiros náo tinham que defender privilégios anti gos e preocupavam-se sobretudo em debitar o seu vinho ñas cidades flamengas; no que dizia respeito á compra de tecidos destinados á Inglaterra, eram mais apropriadas outras cidades flamengas ou do Brabante» (Ph. Dollinger).
Ao contrário de Londres e de Novgorod (os Alemáes suplanta ran! os Escandinavos no comércio com a Rússia), onde os mercadores teutónicos estavam «enclausurados num espado reservado» (o Stalhof. em Londres, o Peterhof, em Novgorod), no grande porto de Bruges, os Alemáes viveram entre a popula?áo, «o que teve certamente grandes consequéncias náo apenas para os seus negócios, mas também para os contactos culturáis». Em 1252 e 1253, a condessa da Flandres, Margarida, concedeu garantías judiciárias e redufSes do terrádigo aos Alemáes (em Bruges e em Damme). Pos teriormente ampliados, estes privilégios constituíram a base do éxito comercial dos hanseáticos nos Países Baixos. Esse éxito aumentou na segunda metade do século XIII e esteve parcialmente ligado ao declínio do comércio «activo» flamengo, a pouco e pouco elimi nado no Báltico e mesmo em alguns pontos do mar do Norte. As possibilidades de tráfico tornaram-se «quase ilimitadas» em Bruges. Apesar de afluírem a este porto sobretudo para adquirir os tecidos da Flandres, «de uma variedade infinita susceptível de satisfazer todas as clientelas», os Alemáes — os de Hamburgo e os de Lubeque, os mais numerosos, deram o seu nome a duas rúas da cidade — traziam também uma gama considerável de produtos. As exportagóes dos Hanseáticos compunham-se — numa diferen?a no toria em relasáo ás dos portos italianos, escreveu Pirenne — de «produtos naturais» que lhes eram fornecidos pelas regiSes agrícolas do seu hinterland e pelos mares: trigos da Prússia (cuja importáncia como género de exporta?áo talvez tenha sido exagerada), peles da Escandinávia e da Rússia, mel deste último país, madeira para construgáo, pez, peixes secos e arenques salgados. Acrescentemos ainda a cerveja de Bremen, cujo sucesso foi grande nos Países Bai xos, onde esta bebida reduziu a pouco e pouco o consumo de vinho. Nos fretes de regresso juntavam-se as las que os barcos hanseáticos iam buscar a Inglaterra, o sal das costas de entre o Loire e o Gironde — particularmente o Baiesalz da baía de Bourgneuf-en-Retz —, os vinhos de La Rochelle e da Gasconha. Resumindo, este tráfico multiforme gravitava em tom o de Bruges, «etapa central» do comércio hanseático «por ficar a meio caminho entre o Báltico e o golfo da Gasconha (término sul das linhas de navega?áo alemás)». Era em Bruges que estavam á venda as especiarías vindas de Itália e os tecidos dos Países Baixos, produtos que os Hanseáti cos distribuían! até á Europa Central e Oriental, para além do Weser, do Elba, do Óder, do Vístula, até ao ponto extremo — este terrestre— do seu comércio, que era Novgorod. Pirenne chegou a pensar que o volume do comércio hanseático teria atingido, ou mesmo ultrapassado, o volume do comércio mediterránico. Contudo, os capitais utilizados pelos Hanseáticos eram muito menos elevados. «O valor das mercadorias (por eles) expor tadas náo permítia os grandes lucros resultantes da venda das espe293
AS VIAS TERRESTRES E MARÍTIMAS
Mapa extraído de R -S. López, S a t^ a n c e de l ’Europt \ * ’X f\'e siécle, A. Colín. Pans. r**62.
DO SÉCULO XI AO SÉCULO XIII
ciarías; era preciso escapar muito para, em troca, se receber bem pouca coisa.» Náo se pode aprovar completamente Pirenne, uma vez que os tecidos comerciados pelos Alemáes deviam proporcionar belos lucros, tal como o vinho e o sal. Mas, de facto, as cidades hanseáticas nunca conheceram «esses poderosos manejadores de dinheiro que, na Itália da Idade Média, obtiveram o dominio financeiro da Europa... E o contraste entre a técnica aperfeigoada que se verifica (em Itália) e a simplicidade dos negócios que se praticam (no meio hanseático) náo é menor». La, vinho e sal, produtos dominantes. Alemanha continental Inglaterra, Franga, Península Ibérica, economías dominadas? Um dos contrastes mais vivos que o comércio medieval apresentou durante muito tempo foi o que opds a Alemanha «hanseática» á Alemanha do Sul e mesmo á Renánia. Apesar de a civilizado «urbana» do Império ter comefado na Renánia, no século XIII, a sua proeminéncia foi contestada pelas cidades marítimas: Colónia, o grande mercado da Germánia até perto de 1250, foi depois eclisada por Lubeque. É certo que o Reno, entre Basileia e Utreque, continua a ser uma artéria bastante animada. No entanto, é agora apenas uma via de tránsito entre a Itália e os Países Baixos e uma via de exportado dos vinhos do seu vale e da regiáo do Mosela. Apesar de activa, a indústria tem apenas um raio de difusáo re gional. A Alemanha meridional apresenta-se como uma regiáo de econo mia dominada e «retardatária», onde sáo poucos os índices que deixam prever o brilhante desenvolvimento que viria a sofrer no fim da Idade Média. O Fondaco dei Tedeschi que os seus negocian tes fundaram em Veneza náo é de modo algum comparável á pode rosa organizado hanseática de Bruges e serve apenas para concen trar os géneros mediterránicos e orientáis necessários aos Alemáes do Sul. As minas do Tirol e da Boémia ou da Caríntia, exploradas de forma rudimentar, encontram-se ainda no cometo. E o sal de Salzkammergut (tal como o de Luneburgo, na Alemanha Setentrional) é incapaz de sustentar a concorréncia do Baiesalz, que os Han seáticos transportam até á sua própria zona. O Danúbio forma um contraste violento com a maior parte dos grandes rios do Ocidente, pois apenas serve de via de transito entre a Baviera e a Austria, Augsburgo, Ratisbona e Viena. É certo que o atraso económico da Hungría e as continuas perturbafóes nos Baleas impediam qualquer tráfico importante para o mar Negro, onde os Italianos só conseguiram chegar pela via marítima. Em que medida a incrível fragmen ta d o política do Império terá sido a causa desse atraso económico do Sul, como Pirenne tende a acreditar? Pode dizer-se que só numa
medida reduzida, visto que essa fragm entado náo impedirá o do minio económico da Hansa de se transform ar, a partir do século XIII, em economia dominante. O primeiro dos países do Ocidente, a Inglaterra, possuiu uma monarquía forte que, pelo menos até ao reinado de Joáo Sem-Terra, náo teve muito a recear da grande feudaüdade. Além disso, os seus reis parecem ter compreendido mais depressa do que os reis e a maior parte dos príncipes do continente a necessidade de o poder monárquico se interessar pelas questdes económicas. No entanto, sob certos aspectos, o reino da Inglaterra faz parte do número das economías dominadas. Com efeito, até aos anos 1350, a Inglaterra foi um país essencialmente agrícola, cujo comércio se encontrava ñas máos de estrangeiros. Com excepgáo de Londres, bastante frequentada pelos gran des mercadores do continente, a partir do século XI, as cidades ainda pouco povoadas (cf. supra, p. 247) eram apenas mercados regionais. Os Ingleses foram ultrapassados pelos Flamengos no do minio dos téxteis, cujo desenvolvimento extraordinário permitiram através das suas consideráveis vendas de matéria-prima, das quais a monarquía e sobretudo as abadías retiravam belos lucros. Foi o negócio da lá que alimentou a actividade das feiras de Saint-Yves junto ao Ouse, de Saint-Gilles em Winchester, de Saint-Botolph em Boston, de Westminster, de Bristol..., e também o movimento dos portos. Entretanto, os Ingleses compravam os tecidos flamengos. Contudo, os compradores de lá náo conseguiram impor pregos bai xos e, desde muito cedo, a realeza soube transformar a necessidade fundamental da Flandres de lá inglesa num meio de pressáo polí tica. A economia inglesa náo foi completamente dominada. Náo deixa de ser extraordinário — para nós — que os portos ingleses tenham sido frequentados quase únicamente por navios de regióes continentais, que, na sua maioria, pertenciam á Hansa germánica, pelo menos no século XIII. Até meados do século XIV, a Ingla terra foi um país agrícola e quase sem marinha. Um pais onde os financeiros, numerosos, eram quase todos italianos que também exportavam lás inglesas para o Mediterráneo. Durante muito tempo, da Franqa apenas se considerou a Flan dres e as feiras de Champagne. Sobre as outras provincias, sobre o seu tráfico, pouco se dizia, excepto de Paris, cidade a que se reconheceu, pelo menos a partir do fim do século XIII, um papel muito notável de praga financeira, aliás dominada pelos Italianos, embora se minimizasse o seu papel artesanal e comercial. Vejamos separadamente a parte mediterránica. Até ao fim do século XIII, os portos da Provenga, em primeiro lugar Marselha, e os do Languedoc, Montpellier, Narbonne ou Aigues-Mortes, participaram, numa medida náo negligenciável, no tráfico de tipo italiano, de especiarias do Oriente contra tecidos dos Países Baixos. 297
Mas depois das derrotas de Sáo Luís ñas Cruzadas e do desenvol vimento da concorréncia genovesa em fins do século XIII, o raio de accao destas cidades marítimas, incluindo o de Marselha, teve tendencia a tornar-se apenas regional. Os seus mercadores deixaram de traficar em portos distantes, como acontecerá no tempo das feiras de Champagne. Em contrapartida, a bacía do Sena, normalmente voltada para os Países Baixos e para a Inglaterra, e a fachada atlántica do reino, náo deixaram de desempenhar um papel importante no movimento comercial. Estas duas regioes eram grandes produtoras de um dos produtos dominantes, o vinho, e o segundo sector produzia também, entre o Loire e o Girondo, outro desses produtos, o sal. Pirenne foi o primeiro a compreender o papel imenso desempenhado no comércio pelos vinhos do reino (os de Itália náo se prestavam á exportado e os do Reno e do Mosela eram produzidos em quantidades demasiado pequeñas para alimentar vendas massivas). E, «por um feliz concurso de circunstancias geográficas», as salinas marinhas da Franca do Oeste encontravam-se na rota dos navios que se vinham abastecer de vinhos do Sudoeste. Mas, ñas costas da Mancha e do Atlántico, a maior parte dos barcos eram estrangeiros: ingleses, espanhóis e sobretudo hanseáticos. Sob diversos aspectos, a Franca, surge, portanto, tal como a Inglaterra, como um con junto de economías dominadas. Falta referir o caso dos sectores cristáos da Península Ibérica. Durante muito tempo, deu-se-lhes muito pouca atenfáo. No entanto, a sua expansáo foi notável, principalmente, numa primeira fase, na Catalunha e ñas Baleares. O grande centro foi indiscutivelmente Barcelona, cujos marinheiros viajaram pelo Mediterráneo, desde o século XII, primeiro na sua parte ocidental, depois até ao mar Egeu. A frota catalá era sustentada por um movimento e um volume de capitais importantes, de tal modo que, a partir de 1281, ou seja, tres anos apenas depois da primeira galera genovesa, uma em barcado de Maiorca foi até Londres, por Gibraltar. Os Cataláes tinham diversas semelhancas com os mercadores italianos: de comego como os Venezianos, praticam o comércio de escravos (que a Reconquista Ihes fornecia abundantemente), iniciando-se depois ñas técnicas comerciáis italianas. A partir de meados do século XIII, atingiram por via terrestre a Champagne e a Flandres, entregando-se aos mesmos tráficos que os negociantes de Itália. Comparados com os cataláes, portugueses e galegos fazem fraca figura até ás proximidades do século XIII. Os seus mari nheiros entregam-se sobretudo á cabotagem em trajectos bastante limitados, vendendo metáis e lás. As lás de Espanha teriam um belo futuro: nos últimos séculos medievais, substituíram largamente a 13 inglesa nos Países Baixos. Mas a «revolugao da lá» náo se produziu antes de 1300. 298
A expansao medieval terá sido pré-capitalista?
Wemer Sombart datava do século XVI os verdadeiros comeaos do capitalismo, juntando-se deste modo a Karl Marx, para quem o possuidor de capitais ou de mercadorias só se poderia transformar em capitalista quando os mínimos fixados para a produgáo «ultrapassassem largamente o máximo medieval». De facto, houve homens de negócios poderosos antes dos anos 1300 e, por exemplo, os Fugger tiveram precursores italianos mais de dois séculos antes do Renascimento e da Reforma. «Existem nada menos de dezoito definieses diferentes» do capitalismo (J. Imbert). É preferível basearmo-nos na definido tutiorista, já que é ela a preferida pela maior parte dos economistas. Esta definido é dupla, incidindo ao mesmo tempo sobre a estrutura e o espirito do capitalismo. «Estrutura: métodos, processos utili zados, ciencia comercial ou industrial»; essa estrutura caracteriza-se pelo gosto pela inovagáo (papel do empreendedor), «pela queda para a previsáo pensada, aliada a uma direcgáo inteligente», e também pelo volume das empresas comerciáis ou industriáis. «Espirito: o capitalismo é dominado pela procura do lucro ilimitado, sem ser contrariado por objectivos religiosos ou sociais» (J. Imbert). A primeira objec?áo á existéncia de um capitalismo medieval assenta no peso da doutrina canónica e das suas proibi?5es que visavam a usura, a procura do lucro ilimitado e o individualismo, que náo reconhece a fu n d o simultáneamente social, moral e reli giosa do produtor, do artesáo, do mercador e do banqueiro. Contra isto poderá dizer-se que a proibigáo do mutuum náo perturbou verdaderamente o desenvolvimento das técnicas e dos negócios, podendo mesmo ter-se tornado um estimulante para o espirito inven tivo ou de engenhosidade (cf. supra, pp. 282, 286). E os homens de negócios souberam conciliar notavelmente a sua ansia de lucro e os seus escrúpulos religiosos. A segunda objecgao diz respeito ao facto de a economia medieval se ter mantido como economia predominantemente rural. O capi talismo «agrícola» é geralmente coisa rara e superficial. Poderá argumentar-se que uma regiáo pode conhecer o capitalismo, sem que este alastre a todos os sectores económicos. Uma terceira objec?áo dir-nos-á que náo houve mais capita lismo industrial do que capitalismo agrícola na Idade Média, devido á organizagáo «corporativa», em oficios, do artesanato. «A r e g la m en tad o das comunidades de oficios... levantava demasiadas proibi?oes, demasiadas restri?5es á iniciativa individual para que se pudessem desenvolver indústrias suficientemente importantes, quanto ao número de operários e á intensidade da sua produ?áo, para poderem dar origem a um verdadeiro capitalismo: como poderia um mestre aumentar a sua produtividade, quando a qualidade e 299
a quantidade das matérias-primas, o número dos seus operários e os processos de fabrico eram estritamente regulamentados e con trolados?» (J. Imbert). Os economistas, por vezes obnubilados pela «revolugáo indus trial» dos Tempos Modernos ou Contemporáneos só reconhecem o capitalismo industrial. Mas, cronológicamente, o pré-capitalismo industrial é mais recente do que o pré-capitalismo comercial e financeiro. Ora, este último parece ter surgido de facto no século XIII. Apesar de a indústria se ter mantido «doméstica», os negociantes ricos em capitais souberam discipliná-la de maneira a que a sua produgáo pudesse responder ás exigencias do comércio mais distante. Desde este momento, houve capitalistas, como Jean Boinebroke, grande burgués de Douai morto em 1286 (G. Espinas): todos os meios lhe serviram para «realizar o máximo de lucros», para dominar económicamente o artesanato dos téxteis. «Sire Jehan esmaga com todo o poder do seu dinheiro esse rebanho de fabri cantes famélicos: oprime com todo o poder do seu patriciado essa massa de burgueses débeis; todos... se vergam sob o seu peso.» Trata-se de uma opressáo económica mas também política, visto que este mercador de tecidos domina as autoridades urbanas. Na medida em que se considera o capitalismo como uma forma de dominagáo simultáneamente económica e política ou social, Jean Boinebroke constituí um bom exemplo. No século XIII, existiam já «uma finanga e um comércio intemacionais baseados num sis tema de crédito complexo, animados por um desejo de lucro ilimi tado, capitalistas até ao ámago» (Power). Mas teráo sido os capi talistas suficientemente numerosos, a partir do século XIII, para que se possa falar com exactidao de pré-capitalismo? Foram-no de facto, mas apenas ñas poucas regióes de economia dominante. E, mesmo nessas regióes, os grandes negócios capitalistas formavam ainda apenas uma espécie de película, mantendo-se frágeis devido ao volume dos empréstimos que tinham de conceder aos príncipes. O seu crescimento era aliás atrasado pelo desejo dos capitalistas de investir uma parte dos seus lucros em imóveis, atitude que, prin cipalmente em Franga, limitou o desenvolvimento económico até aos tempos da monarquía absoluta. Assim, por volta de 1300, a economia das regióes mais adiantadas náo atingiu a terceira fase de desenvolvimento, tal como a considera W. W. Rostov/ (cf. supra, p. 143). O pré-capitalismo é portanto demasiado limitado e demasiado esporádico para que a vida material atinja a fase de verdadeiro «arranque», que só virá a concretizar-se no século XV.
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Terceira Parte
A ERA DAS MUTACÓES (SÉCULOS XIV E XV)
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Capítulo 11
VISÁO DE CONJUNTO EXTENSAO OU REGRESSÁO DO OCIDENTE?
O arroteamento dos solos em larga escala e a colonizado agrí cola náo acabaram por toda a parte com os anos 1300. A sudoeste e a nordeste, a cristandade do Ocidente continua a implantar-se nos países mais recentemente formados. A Reconquista, que só termina com o desaparecimento do reino mugulmano de Granada (1492), é acompanhada, a exemplo do que acontecerá nos séculos precedentes, pela ocupa?ao de térras por camponeses cristáos, pro venientes cada vez menos de além Pirenéus e cada vez mais de Espanha. Por seu turno, a parte oriental da Alemanha continua, salvo alguns acidentes de percurso, a alargar-se territorialmente á custa dos Eslavos, atraindo colonos germanos, em especial da Renánia e da Flandres. Os próprios Eslavos dominam cada vez melhor o espado que conseguem defender do assalto alemáo, en quanto, por exemplo, a Boémia e a Polonia entram bem mais fácilmente na órbita do Ocidente. Mais a sul, o mesmo acontece com a Hungría, povoada, como se sabe, por gentes de origem mais remota. A cristandade «latina» dispSe, por conseguinte, sempre de uma especie de «marca» oriental, que náo é exclusivamente ger mánica. A esta colonizagáo agrícola — particularmente intensa entre o Elba e o Óder, mas também na Prússia e nos países bálticos, no que respeita aos Alemáes — e ao progresso agrícola ñas regiSes eslavas, sobretudo na Polonia, vem juntar-se a colonizado comer cial, ou mesmo artesanal, do Ocidente, cuja amplitude foi bem maior. Ñas regiSes nórdicas, o século XIV foi assinalado pelo esplen dor máximo da Hansa alemá. Devendo a sua forga ás setenta cida des que a compunham, e antes mesmo de ter obtido da Dinamarca, vencida no fim do século, o monopólio do comércio através dos estreitos que fazem comunicar o mar do Norte e o Báltico, a Hansa 303
impós-se sobretudo na zona do Báltico e ñas costas norueguesas do mar do Norte, bem mais fortemente do que outrora. O Báltico transforma-se assim num verdadeiro «lago hanseático», cujas «cha ves» a Hansa detém, e que lhe permitem infiltrar-se bem no seio da Europa Oriental (até Novgorod) com o apoio, por vezes náo muito firme, da Ordem Teutónica, assim como em todos os secto res activos da Escandinávia. Homens de negócios em busca de rotas comerciáis lucrativas, artesáos e agentes de toda a espécie, vindos muitas vezes para se instalarem definitivamente, transformam os países escandinavos em verdadeiras colónias germánicas. Oslo ou Bergen, na Noruega, perderam a conta aos artesáos provenientes da Alemanha. Em 1378, vinte por cento dos burgueses de Copenhaga tinham apelidos alemáes e, por volta de 1460, os alemáes constituíam um ter?o dos efectivos burgueses de Estocolmo. Os privilégios comerciáis, e também políticos (em maior número na Noruega do que na Suécia ou na Dinamarca), permitem aos Hanseáticos dominar cidades ou mesmo burgos: foi considerável «o perigo que a em igrado germánica representou para as nacio nalidades escandinavas» (L. Musset). Trata-se de facto de um império colonial do Ocidente, já que os Hanseáticos iam buscar a esses países sobretudo géneros alimentares e matérias-primas: cereais de entre o Elba e o óder e da Polónia, madeiras do Vístula, peixe, madeiras e peles da Escandinávia... Em contrapartida, a Hansa fornecia a esses países sobretudo produtos manufacturados. Contudo, este vasto dominio colonial náo permaneceu sob a domina?5o exclusiva da Hansa até ao fim da Idade Média. Pouco a pouco, no decurso do século XV, ingleses e holandeses minaram o monopólio da Hansa, ao mesmo tempo que se assistia a uma contraofensiva eslava, assinalada sobretudo pela vitória dos Jagelóes sobre os Alemáes em Grünwald (1410). Mas estes factos novos tém um interesse relativo para o nosso estudo, pois continua a ser o Ocidente, alemáo ou náo, a dispor, em 1500, de um império colonial ñas regióes do Norte e do Nordeste. No extremo sudoeste da Europa abrem-se novos horizontes. O considerável alargamento da posido do Ocidente sobre o Atlántico foi condicionado por um dos grandes acontecimentos económicos do fim da Idade Média: o progresso notável da Península Ibérica, muito antes da queda do reino mouro de Granada. Mais do que a Barcelona e á Catalunha, esse acontecimento diz respeito a Castela e a Portugal e marca o fim do monopólio italiano no Medi terráneo Ocidental, a partir de 1400. Os marinheiros ibéricos e muitos outros, ao servido dos soberanos da península, iniciaram a maior expansáo que a Europa cristá jamais conhecera. No entanto, neste aspecto, os pioneiros do século XIV tinham sido os Genoveses, na sua quase totalidade. A sua principal preo304
cupagáo talvez tivesse sido atingir o ouro do Sudáo. Era a necessidadc de metáis preciosos, sentida por toda a cristandade latina, que os impelía a procurar novos mercados em África, tanto mais que tinham sido encerradas as rotas da Ásia Central. A partir de 1300, foram descobertas as ilhas Canárias e, seguidamente, a Madeira e o interior do Sudáo, em explora?5es a principio sem continuidade, mas que, pelo menos, fizeram progredir a cartografía e a geografía (cf. o célebre portulano de 1351 e o atlas «cataláo» de' 1375, pertencente a Carlos V). Pelo contrário, as viagens do século XV deram inicio a uma colonizado, ao mesmo tempo que desdobravam novas rotas comer ciáis. Em 1402, o normando Jean de Bettencourt — precursor dos grandes exploradores e colonizadores dos séculos futuros — tentou colonizar o arquipélago das Canárias, mas náo o conseguiu e cedeu os direitos ao rei de Castela. Foi entáo que os Ibéricos tomaram a dianteira — náo os Bascos ou os Andaluzes, mas os Portugueses. Portugal debatia-se na altura com serias dificuldades de abastecimento alimentar e os nobres sonhavam com dominios de além-mar; para além disso, o desejo de conquistar térras e mercados era refor jado por um desejo profundo de cruzada, que continuava vivo nesta regiáo da Reconquista: era preciso bater os Marroquinos mufulmanos para atingir o reino lendário do Preste Joáo. Iniciadas no principio do século XV, as descobertas foram depois encora jadas, e admiravelmente organizadas, pelos dois filhos do rei D. Joáo I, Henrique o Navegador, e o regente D. Pedro: grapas a eles, entre 1435 e 1444, Portugal voltou-se com determ inado para a descoberta e a colonizado pacífica de térras longínquas. Assinalemos sucintamente as etapas. 1415: tomada de Ceuta e estabelecimento dos Portugueses ñas cidades atlánticas de Marroeos; redescoberta, com os Castelhanos, das Canárias. 1420: ocupa d o da Madeira. 1427: redescoberta dos Afores. Depois, a pouco e pouco, veio o reconhecimento do litoral africano entre o cabo Bojador (1434) e Cabo Verde (1444). Em 1443, os marinheiros portugueses instalam-se na baía de Arguim, ponto de chegada das caravanas provenientes de Tombuctu, um dos grandes centros do tráfico do sal, de escravos e talvez sobretudo do ouro do Sudáo, que os Portugueses passam a atrair para si, desviando-o dos portos mediterránicos do Magrebe. Em 1445, encontramos os Portugueses instalados na Gámbia e ñas ilhas de Cabo Verde: nessa altura, obtém do papa, para além dos territórios situados na costa afri cana, todos os territórios a descobrir ad indios. Em 1460, ei-los ñas costas do golfo da Guiñé. Tudo isto é simultáneamente causa e consequéncia de novos progressos científicos e técnicos, tanto no dominio da astronomía (astrolábio e quadrante) como da nave g a d o (criado, por volta de 1440, da caravela, cujos perfil alon 305
gado e desenvolvimento do velame lhe permitem ser «manobrável e rápida»). Estes progressos e outros ainda (como um melhor conhecimento dos ventos, que em breve iria favorecer a viagem de Cristóváo Colombo) permitiram aos Portugueses ir cada vez mais longe. A «linha» (Equador) seria ultrapassada por volta de 1471. Mais tarde, em 1487, Bartolomeu Dias dobrou o cabo das Tormentas: está descoberta uma nova rota das Indias que, ao contrário das anteriores, será mantida e utilizada pelos Ocidentais, que buscavam precisamente havia perto de quarenta anos um meio de atingir, sem intermediários que os estorvassem, os países produtores de especiarias. Presos a esta nova rota, que os haveria de conduzir finalmente á Etiópia do Preste Joáo, os Portugueses náo prestaram atengáo ás propostas de um aventureiro genovés, que acabaría por ter melhor sorte em Sevilha. Na realidade, largamente ultrapassados pelos Portugueses, os Italianos náo tinham perdido a esperanza de também descobrir novas rotas comerciáis. O genovés Cristóváo Colombo partiu, portanto, á conquista do Novo Mundo, abrindo á expansáo europeia, a partir de 1492 e sobretudo a partir dos anos seguintes, um océano e um continente inteiros. Assim se deu «a tomada de consciencia do cosmos por toda uma geragao humana» (E. Perroy). A preocupado da procura de novos mercados e também de novas rotas para atingir os antigos, explica-se em certa medida através das dificuldades que assinalaram para o Ocidente o fim da Idade Média no Mediterráneo Oriental, onde se verificou um retrocesso dos Ocidentais, que embora menos catastrófico do que por vezes' se diz, náo deixou de ter consequéncias. No principio do século XIV, as trocas do Ocidente com os Orientes, o grego, o mufulmano ou mesmo os mais distantes, eram muito activas. Em especial, os Genoveses, rivais dos Venezianos, tinham rápidamente tirado grande partido da restaurado do Império Bizantino na Europa: além de enormes privilégios na própria Constantinopla, conseguiram todas as facilidades através dos estreitos. Assim, por volta de 1300, iniciavam a form ado de um império colonial prodi giosamente rico, com Caffa na Crimeia, e Trebizonda e La Tana, no mar de Azove. Enfrentando o mar Negro com navios cada vez mais bem equipados para vencer as perigosas tempestades invernáis, os Genoveses fizeram deste mar a etapa principal do grande comér cio da Asia, em detrimento da Siria e do Egipto, sempre frequentados por um grande número de venezianos. Chegaram ao Cáucaso e levaram os seus navios até ao mar Cáspio. Gragas á «paz mongol», Génova atingiu a India e Pequim. Mas Veneza náo ficara inactiva e conseguiu também estabelecer-se no m ar Negro. Os khans(*) (*) Khan — príncipe ou chefe asiático. (N. do E.)
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tinham-lhe cedido Soldaia na Crimeia e, mais tarde, em 1322, uma feitoria em La Tana. Grapas á boa vontade conjugada do basileus, que abrira os seus estreitos aos Italianos, e dos khans, o mar Negro transformara-se num «lago italiano». Contudo, as possessóes ocidentais do Levante respiravam já o último alentó. Depois da perda de Sáo Joáo de Acre, em 1291, os «Francos» já só conservavam, do tempo das Cruzadas, a ilha de Chipre. O desmoronamento do Império Mongol, em meados do século XIV, arruinou o comércio das grandes rotas italianas da Asia. Por volta de 1400, Tamerláo devastou La Tana e saqueou Foceia. Os Italianos conseguiram manter-se ñas costas do mar Negro, mas tiveram novamente de recorrer á intercedéncia musul mana da Siria e do Egipto. É verdade que os Genoveses consolidaram posipoes na retaguarda; instalando-se em Lemnos, Imbros, Tenedos e Samotrácia, puderam dominar mais fácilmente o norte e o leste do mar Egeu. Mas de que valia este sucesso perante o perigo turco? A partir de 1356, os Otomanos, que já tinham chegado á Europa, cortaram as ligapóes por térra entre Bizáncio e o Ocidente. Cossovo (1389) e Nicópolis (1396), duas terríveis der rotas cristas, colocaram os Baleas ñas suas máos. Em breve ocuparam toda a Asia Menor e apoderaram-se de Constantinopla, em 1453. Os Italianos, embora forpados a deixar o mar Negro, conse guiram feitorias no mar Egeu. Por outro lado, em 1489, Veneza apoderou-se de Chipre, onde os Italianos já traficavam desde há séculos. Por conseguinte, por volta de 1500, o Ocidente conserva va pro visoriamente restos do seu antigo império colonial no Mediterráneo Oriental. No entanto, este encontrava-se evidentemente enfraquecido pelo recuo dos comerciantes de Itália, facto que se verifica no momento em que o Atlántico abre as suas portas. O centro de gravidade do comércio do Ocidente desloca-se mais uma vez e agora para oeste. Esta deslocapáo lenta náo é a única característica do fim da Idade Média. De notar igualmente o aumento do número de núcleos de grande actividade material, que se desenvolveram em especial na Península Ibérica e na Alemanha do Sul, cujo poder económico crescera de forma por vezes prodigiosa. Existem ainda outros núcleos, em especial em Inglaterra (Bristol, por exemplo), na Ho landa, ou mesmo em Itália (Lombardia). Entretanto, o tráfico «internacional», isto é, o grande comércio, parece entáo ignorar praticamente a Franpa, passando de bom grado a leste ou a oeste do reino, interessando-o apenas de forma marginal (no sentido geo gráfico). Tal facto contrasta flagrantemente com a actividade mui tas vezes febril do «Estado borgonhés», no qual alguns componentes (principalmente a Flandres) souberam lutar contra um eventual 307
declínio, dedicando-se a outras produ?5es. Ao mesmo tempo que se anuncia a decadencia de Bruges, a vizinha Antuerpia prepara-se para ocupar o seu lugar. Outra característica nova é o peso cada vez mais evidente da política sobre a vida económica. Os reis, os príncipes e as cidades «independentes» tiraram bastante partido da expansáo económica: os direitos de peagem e de terrádigo, as ajudas e toda a espécie de receitas provenientes das taxas sobre a circulado de bens ou sobre as transac?oes forneciam-lhes uma grande parte dos seus re cursos (em 1332, constituíam 25 por cento das receitas totais do rei de Franca, em Gátinais). Todos eles tinham plena consciéncia deste facto, ao mesmo tempo que se apercebiam da possibilidade de utilizar argumentos económicos, tanto em tempo de guerra como em tempo de paz. De forma excelente, H. Pirenne escreveu: «Por mais estranha que a concepgáo de uma economia nacional pareja ainda aos govemos... dos séculos XIV e XV, é, no entanto, certo que a sua conduta deixa trans parecer o desejo de proteger a indústria e o comércio dos seus súbditos contra os interesses estrangeiros e mesmo, esporádicamente, de introduzir nos respectivos países novas actividades, para o que se inspiraram no exemplo das cida des. No fundo, a sua política é apenas uma política urbana alargada ás fronteiras do Estado, apresentando a caracte rística essencial da política urbana: o proteccionismo. É o inicio da evolu?áo que, a longo prazo, romperá com o internacionalismo medieval e impregnará as rela?5es entre Estados de um particularismo táo exclusivo como o que. durante séculos, caracterizara as relagoes entre cidades.» Se, por mercantilismo, se entende um sistema complexo, que tende a reter os metáis preciosos num dado Estado, a fazer coinci dir espado político e espago económico (engrandecendo um e outro), a tornar favorável a balanza comercial (para reter o ouro e a prata), desenvolvendo por todos os meios a indústria «nacional», inclusive e sobretudo através de proibigSes e pesados direitos aduaneiros sobre os produtos estrangeiros, e se, finalmente, se reconhece o mercantilismo como verdadeira concepgáo da sociedade, pode dizer-se que este nasceu de facto — embora só se tendo desenvol vido imperfeitamente — antes do fim da Idade Média 0). Os seus primeiros indicios surgiram em Inglaterra, país onde a unidade económica e política era mais avanzada. Desde principios do século XIV, o rei Eduardo II comegara a pensar na interdigáo quase total dos tecidos estrangeiros. A partir de 1331, Eduardo III atraiu os teceláos flamengos. Em 1381, foi promulgado o primeiro acto
0 ) N o plano da análise, os escolásticos forám alias bastante mais longe do que os mercantilistas (infra, p. 439).
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de navegagáo, reservando as águas territoriais inglesas aos navios ingleses. Tratou-se de um acto inaplicável na altura, mas, embora náo aplicado, foi bem significativo! No século XV, o movimento acelerou-se com a proibigáo aos estrangeiros de exportar lá inglesa e a proibigáo de entrada de tecidos estrangeiros, disposigSes ante riores ao reinado de Henrique VII (1485-1509), cuja política seria ainda mais decididamente proteccionista e mercantilista. Mas já no século XV, a Inglaterra náo estava só nesta via em que a maior parte dos Estados, pequeños e grandes, se lhe comegava a juntar, como aconteceu com a Franca de Luís XI. Evidentemente que nem Henrique VII nem Luís X I eram Laffemas ou Colbert. Contudo, comegava-se a querer «subordinar a economia aos superiores interesses da política». É, por conseguinte, ainda antes da Renascenga— contrariamente ao que ainda hoje muitas vezes se afirma — que o Estado comega a pretender impor-se na vida económica, considerando-a como um dos seus objectivos supremos: testemunham-no os Médicis que, de banqueiros, se trans formaran! em homens políticos, porque a política era um meio, e depois um fim, para os seus negócios. Era a condenagáo a prazo dos grandes núcleos económicos que náo estavam apoiados num Estado vasto e militarmente poderoso. Daqui resultou o declínio relativo, que se iniciava, das cidades ita lianas e hanseáticas, que dominavam apenas territórios demasiado reduzidos; daqui resultou o fim dos seus monopólios e também o progresso da Inglaterra, de Castela (posteriormente, nos derradeiros anos do século XV, da Espanha unificada) e, mais tarde, da Franga. Apesar de ainda náo existirem «economías nacionais», estas estáo já, no entanto, em gestagáo. A carta das áreas económicas tendia já a simplificar-se e a ideia de que um Estado devia gozar de uma independencia simultáneamente política e material ganhava cada vez mais forma.
Capítulo 12
O NASCIMENTO DAS PRÉ-ESTATÍSTICAS E OS COMEAOS DA HISTÓRIA DA CONJUNTURA
A vida económica desenrola-se em dois planos: o das estruturas e o da conjuntura. Devido á escassez de fontes, referimo-nos somente ás estruturas ñas duas primeiras partes desta obra. Em con trapartida, a partir dos anos 1300, os documentos sáo mais ricos e mais precisos, permitindo levantar um pouco a ponta do véu que cobria a conjuntura. Durante bastante tempo, os historiadores debrufaram-se exclu sivamente sobre as estruturas, ou seja, sobre aquilo que os textos permitiam conhecer, com menos dificuldade porventura e segura mente com o mínimo risco de erro. E isto porque se trata de fenó menos que variam muito lentamente. É de facto necessário destacar o grande papel económico de Bruges ou de Floren?a no fim da Idade Média, ou desmontar os mecanismos das grandes compa nhias comerciáis e bancárias, ou ainda estudar o mecanismo do senhorio banal. Contudo, nao é menos importante saber como pode a conjuntura enquadrar-se nessas estruturas. Assinalar as fases de expansáo ou de depressáo, datá-las com precisáo, medir a respectiva amplitude, tudo isso parece natural — e obrigatório — para os historiadores e economistas do nosso tempo relativamente aos dois últimos séculos. Ora, alguns medievistas pensaram que se podia tentar, na medida do possível, utilizar o mesmo método para o fim da Idade Média. Outros, pelo con trário, pondo em dúvida o resultado desses esfor?os, sustentam que esse método tem um significado demasiado limitado no espago ou no tempo para ter qualquer significado. Raramente se diz que a principal falha reside no facto de o Ocidente náo ser um todo económico, tal como os países que o compunham: a despeito do significado crescente do mapa das regides económicas, temos de contar, mesmo nos séculos XIV e XV, com a existéncia de muitas economias regionais. Daí decorre que 311
também a docum entado cifrada é quase sempre fragmentária, por ser de alcance regional ou mesmo local, o que tom a difícil saber em que pode consistir e o que se pode esperar extrair déla.
As p ré-estatísticas e a o ferta
A produgáo agrícola Diz-se, por vezes, mas um tanto levianamente, que náo existem números relativos á produgáo agrícola. Contudo, eles existem e sáo bastante numerosos, embora se refiram, na maior parte dos casos, a um único dominio ou a um grupo de dominios. Estes podem ser ampios, como os que nos sáo revelados pelas contas senhoriais da Inglaterra. Trata-se quase sempre de contas elaboradas para os senhorios eclesiásticos: incorreremos num erro de análise ao extrapolarmos a partir desses dados? Sabemos que os dominios clericais tém a rep u tado de terem sido mais bem geridos do que os outros e, ás vezes, de forma diferente; mas todas as exploragóes estavam, no entanto, submetidas á mesma conjuntura. Trata-se, sobretudo, de contas de «granjas», mais pormenorizadas em Inglaterra do que em Franga, visto que o arrendamento ainda náo ocupava na ilha a posigáo conquistada no continente. Isto náo impede que disponhamos para a Franga de indicagdes sobre a evolugáo da produgáo a curto, médio e longo prazo por todos os locáis onde a experiencia de utilizagáo de contas fora tentada até entáo (Ile-de-France, Hainaut, Cambrésis, Normandia, regiáo de Toulouse...). O cultivo das reservas senhoriais — que se mantinham geralmente estáveis — seguia, por entre ligeiras deformagóes e pequeños atrasos, a evolugáo da produgáo agrícola. Outro exce lente índice — também náo muito evidente — é o que nos é dado pelos registos das dízimas: sáo infelizmente raros antes do período moderno, salvo na regiáo de Liége, onde já se encontram alguns do século XV. Outra categoría de documentos cifrados sáo as fontes fiscais, que, em virtude das trocas comerciáis submetidas a taxas, podem fazer alguma luz sobre o conjunto da produgáo. Sáo utilizáveis as contas relativas ao produto das esmolas ñas paróquias de um bailiado e que se referem a esta ou aquela mercadoria: foram con servadas várias do prebostado e do viscondado de Paris, no tempo de Carlos V e de Carlos VI, referentes aos cereais, vinho, etc. Claro que estes registos fiscais apenas nos fomecem o montante de renda (eram os rendeiros que normalmente colectavam os impostos), reflectindo a previsáo do volume mínimo das transacgóes, menos o lucro de que beneficiara o rendeiro. O mais belo exemplo de documentos fiscais que podem ser utilizados para a determinagáo 312
da produgáo agrícola sáo as Customs Accounts inglesas, que constituem a serie mais importante de documentos «aduaneiros» de todo o Ocidente. Desde há algumas décadas que délas se tém extraído verdadeiras estatísticas, tanto para as exportagóes inglesas (lá, teci dos) como para as importafSes (vinho da Gasconha, em primeiro lugar). Temos assim o «limite inferior» de tres produgoes principáis. Exceptuando este notável conjunto de dados cifrados, náo dis pomos de facto de séries verdaderamente longas, embora as contas privadas estejam longe de se encontrar completamente inventariadas e reconhecidas. Salvo para alguns temporais de Inglaterra, actual mente temos de nos limitar a constituir quadros, curvas e diagramas «parciais» e interrompidos por falhas. Apesar destas falhas, pode conhecer-se em linhas gerais a marcha da conjuntura, por exemplo, na Ile-de-France, para os cereais e o vinho. É o carácter incom pleto das séries cifradas que nos faz optar pelo termo pré-estatísticas em vez de estatísticas, que pode, todavia, ser aplicado para os registos aduaneiros ingleses, excepcionalmente continuos.
A produgao artesanal As indicafóes cifradas sáo menos numerosas neste dominio do que relativamente á agricultura. Existem, contudo, algumas excep?5es, e já demos o exemplo da produ?áo (seria melhor dizer da exportado) inglesa de tecidos, cujo volume global aproximado é apresentado pelas Customs Accounts. Para os téxteis, podem utilizar-se outros registos fiscais, como os da Etapa da Flandres, e, ainda melhor, outros que nos podem indicar a produfáo exportada pela regiáo que utiliza um determinado porto. Mas náo esquejamos as contas urbanas, ainda muito mal conhecidas e exploradas e que poderiam permitir, por vezes, avaliar grosso modo a produgáo de uma cidade. Assim, para várias cidades da Flandres (Ypres, Lille...), as contas anuais mostram o número de selos de chumbo utilizados para garantir a origem e a qualidade dos tecidos 0). Os cronistas podem avanzar números. É, contudo, de bom tom rejeitá-los em bloco, porque muitos, como Froissart, apresentam números fantasistas; mas os números apresentados por um Villani, relativamente a Florenga, sáo dignos de fé. (*) Tratava-se na realidade dos selos de chumbo fabricados, cuja totalidade podia náo ser empregue num só ano, sendo, portanto, necessário dispor de uma série continua de contas municipais (é por exemplo o caso de Lille, onde se procede ao seu estudo) que nos dé indicagoes dos transportes para se poder tragar a curva da produfao. É uma tarefa tanto mais delicada — mas perfeitamente concretizável — na medida em que cada peca de tecido comportava vários selos de chumbo (cada eswardeur apensava-lhe um), em número varlável consoante a qualidade do tecido.
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Contudo, no conjunto, tanto para a produgáo artesanal como para a produgáo agrícola, só se consegue conhecer a parte expor tada ou comercializada, com menos frequéncia a parte consumida localmente, com menor frequéncia ainda as duas ao mesmo tempo. Por conseguinte, raramente se conhece o volume global da produ gáo ou a proporgao entre o consumo e a venda externa. A s trocas A maior parte das fontes cifradas referem-se, portanto, a acti vidades comerciáis e sáo mais dignas de confianga quando utilizadas somente para o comércio, pois as correntes do negocio encontram-se por vezes submetidas a acasos náo relacionados com a produgáo (dificuldades políticas, militares...). Referimo-nos principalmente aos registos de impostos ou de direitos senhoriais que incidem sobre as próprias transacgóes ou sobre as entradas e saídas (alfándegas). Para além das célebres Customs Accounts, citamos ainda os Port Books de Londres — e de Southampton —, e os registos da Etapa. Fora do dominio anglo-flamengo, a documentagáo é pobre e os registos aduaneiros que ainda existem sáo raros. Contudo, muitos documentos, urbanos ou privados, como os livros de contas dos comerciantes, náo sáo ainda conhecidos. Vejamos um caso concreto. Qual a documentagáo cifrada exis tente sobre o comércio hanseáticol Ph. Dollinger considera duas fases. Entre os fins do século XII e meados do século seguinte, aparecem dados ci frados nos livros de crédito instituidos em várias cidades (Hamburgo, Lubeque, Riga...), que, no entanto, só fomecem informagoes de pormenor sobre uma dada operagáo de um mercador. O mesmo se passa com os livros de contas mais antigos dos comerciantes de Lubeque, datados do segundo quartel do século XIV, e com os primeiros inventarios de navios perdidos. Dos Customs Accounts, providenciáis para o historiador de qualquer comércio que se relacione com a Inglaterra, podem tirar-se algumas anotagóes (mais nume rosas a partir de 1325), de valor modesto. «O enorme de senvolvimento do comércio hanseático durante este período e a sua superioridade nos mares setentrionais náo se traduzem por qualquer número» de conjunto. A partir de meados do século XIV, a documentagáo torna-se mais rica, possibilitando a elaboragáo de pré-estatís ticas. Além das categorías de textos já existentes anterior mente e que se tornam mais numerosos e precisos, apare cem categorías novas, de que sáo exemplo as cartas de mer cador. As listas de «impostos por libra» (Pfurtdzollbücher), langados nos portos hanseáticos, em tempo de guerra, sobre a entrada e saída de navios e mercadorias, constituem uma fonte essencial e incomparável. Entre 1361 e 1400, houve cerca de dez destes langamentos de impostos, cujo número 314
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aumentou no século XV. Os Pfundzollbücher indicam, em principio, a totalidade dos navios e produtos entrados e saidos num determinado ano, num determinado porto. Estas fontes tém o inconveniente de se reportarem somente aos anos de guerra, que sáo excepcionais pelo baixo nivel de actividade. Além disso, náo se trata de séries continuas por definido. Estas encontram-se nos Customs Accounts (de 1399 a 1482, as exporta?5es de tecidos ingleses pelos han seáticos sáo conhecidas, ano a ano, quase sem lacunas) e ñas contas da Ordem Teutónica (que se referem ás trocas efectuadas pelo Grao Economato de Koenigsberg com a Flandres, entre 1390 e 1404; os números correspondentes do Grao Economato de Marienburgo perderam-se). Finalmente, os registos do direito de ancoragem (Pfahlgeld), cobrado em Danzigue, fornecem números parciais sobre o tráfego deste porto, durante cerca de dez anos, distribuidos entre 1460 e 1496. Assim, mesmo para o período compreendido entre 1350 e 1500, a docum entado cifrada sobre o comércio da Hansa é dispar e des continua. Por vezes, acontece náo se dispor á partida de números suficien tes para avaliar um determinado tráfico de uma cidade ou de uma provincia e acabar por se descobrir, no fim, o que de inicio esca para. Foi o que aconteceu com o vinho «francés» (da Ile-de-France), que náo era praticamente vendido em Inglaterra. Por si sós, dois ou tres documentos fiscais podem dar uma ideia, aproximada, do comércio de que este era alvo. Consequentemente, minimizou-se bastante a sua produfáo e a sua venda a distáncia. E, contudo, um dia virá a conhecer-se aproximadamente o volume das suas expedí?5es para o sul dos Países Baixos, zona que figura entre os principáis consumidores: para isso será necessário referenciá-lo relati vamente á chegada ás várias cidades da regiáo. O estudo está em curso e já deu bons resultados para o Hinaut, para Lille e para Saint-Omer (G. Sivéry, B. Sory, A. Derville) 0). Quando outras pesquisas tiverem permitido «cobrir» o con junto das grandes cidades dos Países Baixos meridionais, as conclusdes quanto ao volume das exportafoes seráo quase táo sólidas, se náo táo completas, como se tivéssemos disposto de pré-estatísticas parisienses. Inútil é tentar dissimular que, até hoje, a maior parte das séries utilizadas para os quadros, curvas ou diagramas de produ?3o ou de comércio se encontra limitada tanto no tempo como no espado. Mas, na ausencia de séries de presos ou de volumes de produgáo ou de tráfico, a pré-estatística pode apoiar-se em outros documentos, como por exemplo as actas notaríais, bastante numerosas ñas regiSes meridionais. (*) Assim como para Cambrai (J.-P. Chevalier).
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Ph. Wolff provou, no caso de Toulouse, que estas sao perfeitamente utilizáveis, e R. Doehaerd soube tirar partido dos registos de almotagaria, extraindo deles cerca de 4000 actas referentes ás transacfoes «internacionais» de Antuérpia, entre 1488 e 1514. Como os comerciantes nao eram obrigados a recorrer a escrituras públicas para a realizado de contratos, R. Doe haerd dispunha apenas de uma parte das transacfóes que tiveram lugar na altura. Em que medida é esta amostragem representativa e qual a sua importáncia quantitativa relati vamente ao conjunto das actas que nao deixaram rasto nos registos de almotagaria? Por outras palavras, a que conjunto de fenómenos se referem estes dados e em re la d o a que outros nada dizem? Nada encontramos neles sobre as transacfdes a contado e as opera?5es a crédito só sáo referidas em caso de contestado. Em contrapartida, os contratos de transporte figuram neles muito frequentemente (devido aos numerosos e variados riscos que era prudente prever). Estes documentos permitem, pelo menos, dosear a importáncia relativa dos factos. Assim, de 1488 a 1513, a autora descobriu a existencia de 2186 estrangeiros em Antuérpia. En tre eles, contavam-se 1227 alemáes (dos quais 742 renanos e, entre estes últimos, 532 negociantes de Colónia e 97 de Aix-la-Chapelle). Embora desconhecendo o total real destes estrangeiros, conhecemos pelo menos a sua distribuido relativa e podemos deduzir, sem qualquer risco de erro, a enorme importáncia do comércio alemáo em Antuérpia. Em muitos casos, pode utilizar-se um método semelhante: a im portancia respectiva das várias regióes que vendiam e compravam em Paris, a importáncia das diversas mercadorias negociadas na capital, podem ser deduzidas das licen?as de transporte e das condenares emanadas da Hansa dos Mer cadores de Agua. E este método, susceptível de ser aperfeifoado, fornecerá ainda mais pré-estatísticas para um estudo cada vez mais desenvolvido da oferta. As p ré-estatísticas e a procura
A demografía A partir do século XIV, come?a-se por fim a dispor de uma documentagáo propriamente demográfica, que já náo se baseia em fontes indirectas e narrativas. Existem alguns recenseamentos praticamente completos, referentes a diversas cidades do século XIV (Ypres e Friburgo na Suífa, Nuremberga, Nordlingen e Estras burgo...). Tal como se fazia desde o fim do século X II ñas cidades italianas, tratava-se de fazer o inventário das provisoes e das bocas a alimentar. Menos satisfatórios para a demografía, mas conservados em número muito maior, sáo os registos de carácter fiscal. Para estabelecer os impostos urbanos, principescos ou reais, continuou-se, 316
depois de 1300, a enumerar os fogos (a que os Cataláes chamavam fogatge), e dispomos de um número considerável de registos de impostos por fogo, de talhas, de «estimas» (em Lanquedoc), de ovaría ou de gabella possessionum (em Itália). Através destes regis tos pode conhecer-se náo o número de individuos mas o número de fogos, o que continua a levantar graves problemas de interpretagao e de equivalencia. Muitas cidades, principados, tanto nos Países Baixos como na Alemanha, e mesmo ñas regióes meridionais, por vezes um reino inteiro (por exemplo a Franga de 1328), foram assim objecto de idénticas avaliagdes, e o número das que atravessaram os séculos tem vindo a aumentar gradualmente, gragas ás pesquisas feitas nos arquivos medievais (l). No total, para os séculos XIV e XV, conhece-se pelo menos o número global da populagáo de uma centena de cidades, só em Franga, nos Países Baixos e no Império. Para várias cidades e diversas regioes, conhecem-se vários números referentes a datas diferentes, o que permite seguir o curso da evolugáo. Evidentemente que se discutem muitas vezes estes números, uma vez que eles se referem aos individuos sujeitos ao pagamento de impostos, na maior parte dos casos. No entanto, eles fornecem pelo menos uma ordem de grandeza segura, o que é quase suficiente para a história econó mica. De notar que o número das informagóes cifradas aumenta geralmente á medida que nos aproximamos dos tempos modernos. Para as variagoes demográficas de carácter brutal e de forte amplitude, a demografía histórica comega a dispor de melhores meios. Presentemente, já náo se ignoram a maior parte das epide mias e fomes do fim da Idade Média, nem os seus efeitos sobre a populagáo total. Desconfiemos, contudo, dos números fornecidos pelos cronistas: até uma fonte isenta como Le Bourgeois de Paris se sentiu na obrigagáo de apresentar números por de mais «sensacionalistas». Pelo contrário, as fontes anteriormente indicadas tém grande valor: em Albi, puderam ser avaliadas as consequéncias de mográficas da peste negra de 1348, confrontando os dados de dois registos de estimas, o de 1343 e o de 1357. Náo se devem omitir as fontes «senhoriais»: é através da comparagáo de vários foros, que apresentam a lista dos foreiros e, por conseguinte, o seu número, que se podem avahar as razias demográficas em várias aldeias da Ile-de-France, fustigadas pelas epidemias. Finalmente, existem as fontes «de excepgáo», muito mais raras, e de que sáo exemplo os registos de contas de Ypres e Bruges, que apresentam os salários pagos ao coveiros em 1316, por alturas (') Foi desta forma que H. Touchard pdde avaliar a populado do ducado da Bretanha em 1392. Segundo a primeira estimativa conhecida dos impostos por fogo, ela rondaría um milhao ou 1 250 000 habitantes, ou seja, aproxima damente os 30 a 36 hab./km’.
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de uma grande fome (H. Van Werveke), ou o registo paroquial de Givry, na Borgonha, que permite seguir dia a dia a evolu?ao demo gráfica desta aldeia, entre 1334 e 1357, e, por conseguinte, a mortalidade provocada pela peste negra. Ou ainda o registo dos fabriqueiros de Saint-Germain-l’Auxerrois, em Paris, entre 1340 e 1358: desta forma pode seguir-se grosso modo a amplitude da curva de mográfica de Paris, antes, durante e após a peste negra (M. Mollat). A evolugáo a longo prazo da populado náo depende únicamente do excedente (ou do défice) dos nascimentos sobre as mortes, mas também das condi?5es de higiene (mortalidade infantil, subnutrifáo...) e da imigragáo ou em igrado em determinada cidade ou provincia. Destes pontos de vista, as fontes sáo particularmente defi cientes. Seria igualmente necessário conhecer a composi?áo das popula?5es. Comecemos pela pirámide de cidades, em re la d o á qual os melhores documentos sáo de interpretado difícil, pois as crianzas muito pequeñas náo eram mencionadas e uma parte dos adolescentes eram enviados para outros locáis como aprendizes. Vejamos seguidamente a taxa de esperanza de vida, cujo cálculo é entretanto raramente possível, pois os registos quase nunca mencionam as idades, náo fazendo sequer distinfáo entre adultos e enancas e interessando-se somente por quem estava sujeito a contribui?5es e pelas bocas a alimentar. Finalmente, a propor?áo da popula?áo activa, relativamente á populado total, e a das mulheres em re la d o aos homens sáo também quase sempre impossíveis de dete; .minar, tal como a propor?áo de casados, viúvos e solteiros. Apresentamos dois exemplos precisos daquilo que se pode espe rar extrair dos documentos medievais. As melhores fontes sáo evi dentemente os inventários das bocas e alimentar e das provisóes a recolher. Pensava-se que, antes de 1959, náo havia nenhum em toda a Franca. Contudo, R.-H. Bautier descobriu um inventário, elabo rado em Carpentras, no principio de Setembro de 1473, e P. Des portes descobriu recentemente outro, referente a Reims, no ano de 1422. Reims estava entáo mergulhada na desgrana, acabando de sair de uma epidemia. Em cada paróquia, os recenseadores percorreram todas as rúas e entraram em todas as casas. Assinalaram a composido dos agregados familiares e o número de crianzas por agregado (em média, uma crianza por familia, pois os mais velhos já tinham deixado os pais); investigaram — o que é excepcional — a idade das pessoas, de tal modo que é possível estabelecer uma pirá mide de idades para uma das paróquias recenseadas. Infe lizmente, o documento, incompleto, refere-se apenas a duas das treze paróquias. Trata-se das duas paróquias mais ricas e mais activas da época, Saint-Hilaire e Saint-Pierre, mas temos que nos limitar a outros textos, incomparavelmente menos precisos, para concluir qual era a populado total de Reims (cerca de 9000 hab., contra 14 000 em 1300 e 318
novamente 14 000 por volta de 1600). Pelo menos, o recenseamento de 1442 langa alguma luz sobre um dos mais duros problemas com que se debate a demografía da Idade Média e dos tempos modernos, o do valor de cada fogo, o único dado constante da maior parte dos textos. Este recenseamento apresenta, ao mesmo tempo, o número de casas e o número de habitantes de cada uma délas: — paróquia de Saint-Pierre: 1385 habitantes para 373 la res, coeficientes: 3,6 hab./fogo. — paróquia de Saint-Hilaire: 1810 habitantes para 472 lares, coeficiente: 3,8 hab./fogo. O segundo exemplo é o da Provenga, onde os documentos demo gráficos subsistem em número relativamente grande (E. Baratier). Estes levantam — e permitem resolver convenientemente — duas questdes árduas: a da relagao entre «fogos reais» e «fogos fiscais» e a do valor de cada fogo. A partir do século XIII, o principal imposto era aqui a queste, que incidía sobre cada fogo ou, mais precisamente, sobre cada agregado familiar. Até 1374, o imposto incidía sobre os fogos reais, isto é, sobre todas as casas. Seguida mente, o imposto de quotizagáo foi substituido pelo de rcpartigáo: os Estados estabeleciam uma soma fixa, a repartir segundo as faculdades contributivas das comunidades. Os fiscais aumentavam ou diminuíam o número de fogos colectáveis de cada comunidade, de acordo com a avaliagáo da riqueza ou da pobreza de cada cidade ou aldeia. Por conseguinte, a variagáo dos fogos fiscais náo estava directa mente relacionada com o número de fogos reais. Quererá isto dizer que o valor demográfico dos fogos fiscais é nulo? A resposta é afirmativa, salvo se, como na Provenga, os pudermos confrontar com os inquéritos pormenorizados que precediam cada langamento da queste'. os fiscais tinham em conta em primeiro lugar os fogos reais, que comparavam com outros elementos representativos das faculdades finan ceiras das comunidades (‘). No entanto, nem todas as dificuldades foram resolvidas. Os fogos reais representam apenas os residentes sujeitos a queste'. estáo excluidos os nobres, os membros do clero, os pobres e mendigos... e os burlóes. Mas a fraude grave era bastante rara e pode calcular-se a proporgáo dos náo colecta dos relativamente aos colectados: na altura, esta situava-se entre Vi e V4 no campo, e Vi e Vi ñas cidades. Resta o pro blema do número médio de habitantes por fogo. E. Baratier também conseguiu estabelecer um coeficiente médio: 5,5 para a populagáo urbana, 4,5 para a populagáo rural. Eram coeficientes elevados, como aconteceria frequentemente ñas regioes mediterránicas. (*) O que indica que os historiadores franceses nao se deixaram desencorajar muito depressa perante os levantamentos de «fogos fiscais», que — pensavam — eram praticamente os únicos que se podiam deduzir dos documentos posteriores ao admirável tevantamento geral do reino de Franca de 1328.
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Actualmente, o estudo dos fogos reais avanza a bom ritmo, porque os investigadores se debru^am mais sobre a história da familia restrita (aspecto negligenciado durante muito tempo, sobre tudo em Franca), partindo para a avaliacáo e para as variafoes do coeficiente familiar, tanto no tempo como no espafo. Até as proporfóes entre casados, viúvos e solteiros, e a idade de casamento se comefam a tornar mais claras. As investiga?5es mais recentes demonstram a inutilidade do pretenso fogo médio, coeficiente quase sempre pretensamente aplicável. Referir-nos-emos, em primeiro lugar, aos recentes trabalhos sobre a Itália, que p5em em causa postulados apriorísticos, provando que a natalidade nem sempre foi elevada e que a esperanza de vida nem sempre foi muito curta. Apercebemo-nos de que na Toscánia, por exemplo, o comportamento social e familiar náo era idéntico na cidade e no campo. No contado de Arezzo, de acordo com o cadastro de 1427, em cem chefes de familia que pagavam impostos, 57,8% eram, na cidade, homens casados, taxa que correspondía, em todo o contado, a 74% : em Arezzo, havia 17,6% de viúvos, correspondentes a apenas 6 % no campo (C. Klapisch). O mesmo acontecía em Floren?a, no mesmo ano: a proporgáo de homens casados e jovens era claramente mais fraca na cidade (D. Herlihy). A idade média de casamento para os homens era em geral pouco precoce: em Floren?a, somente 5,5% dos homens estavam casados antes dos 22 anos, e menos de metade aos 32 anos. Estas proporgoes sáo mais baixas do que em Pistóia e no respectivo contado, onde cerca de dois tercos dos homens com idades compreendidas entre os 23 e os 27 anos eram casados. Na Itália do século XV, um rela tivo malthusianismo parece ter retardado o casamento, sem contudo afectar a natalidade. Mesmo nos meios mais abastados, os casamentos ocorriam frequentemente depois dos 30 anos. Os homens casavam com uma rapariga muito jovem, sobretudo nos estratos sociais mais elevados, e tudo indica que as mulheres morriam muito mais cedo do que os homens, que voltavam a casar com uma mulher muito jovem. Os terceiros casamentos náo eram raros e a última esposa ficava viúva ainda jovem. Por outro lado, os fogos ricos abrigavam em geral maior número de pessoas do que os outros. Assim, nos arredores de Pistóia, o número de crianzas por familia camponesa oscilava entre menos de 1,50 e 3,21, segundo o valor do imposto sobre o património. O mesmo se verificava em Franca, em Carpentras, onde os fogos pobres abrigavam menos de trés pessoas, contra uma média mais do que dupla nos fogos ricos (R. H. Bautier). Outras investigacoes apontam idénticas conclusSes, em sectores mais longinquos da península. M.-Th. Lorcin explorou 900 testa mentos registados de 1301 a 1518 pelas autoridades de Liáo. Apesar de a sua utilizacáo ser algo aleatória, para se seguir a evolucáo 320
global de uma populagáo, os testamentos sáo preciosos para a deter m in ad o dos efectivos familiares: contudo, tendo em conta que os testadores sáo muitas vezes pessoas idosas, os números obtidos sáo um pouco inferiores ao coeficiente familiar real. Na regiáo de Liáo, no longo período entre 1330 e 1500, o coeficiente médio era de 2,38. Mas, em 170 anos, o número de membros das familias lionesas variou bastante. Antes da peste negra, o coeficiente era de 3,9. Seguiu-se uma redugáo e, de 1350 a 1430, oscilou entre 0,6 e 1,9. A partir de 1430, foi aumentando regularmente até 5,1, entre 1470 e 1480. Estes dados sáo, grosso modo, confirmados pelo Forez: 2,21 entre 1331 e 1340, depois uma queda, embora menos pronun ciada, pois o coeficiente nunca desee para além de 1,3; por fim, uma subida precoce, que se esboga va desde 1381. No caso da regiáo de Liáo, náo se pode determinar o coeficiente familiar particular de cada grupo social, excepto para a pequeña cidade de Saint-Symphorien, cujas actividades eram muito diversificadas: de 1360 a 1501, esse coeficiente era de 3 para as familias abastadas e somente de 1,4 para as familias de pequeños artesáos e camponeses. Como na Itália Central ou em Carpentras, este variava do simples ao dobro e os fogos mais abastados eram os mais povoados. As variagóes do coeficiente do fim da Idade Média sáo eloquentes. As suas redugóes indicam os períodos de epidemias, de fomes, de guerras e outros desastres. Náo resultam de uma recusa da vida, uma vez que, sempre que as condigóes geradas melhoravam, esse coeficiente tendía a subir.
A determinagáo do nivel de vida A capacidade de compra de um individuo depende simultaneamente das suas necessidades e dos seus proventos. O cálculo do nivel de vida deve, por conseguinte, exprimir-se por meio de uma comparagáo dupla: a dos rendimentos no tempo e a dos rendimentos no espago. Mesmo para épocas mais recentes, o estabelecimento desta medida depara com dificuldades frequentemente inultrapassáveis. Comparagáo dos rendimentos no tempo? Para tal, seria necessário conhecer as variagóes do nivel geral dos pregos (ou do poder de compra da moeda) e as variagóes da estrutura dos pregos rela tivos (se há bens que desaparecem, outros podem aparecer, como foi o caso da roupa interior, no fim da Idade Média). Comparagáo dos rendimentos no espago? Deparamos com dificuldades muito sérias, que se devem sobretudo ás diferengas, de regiáo para regiáo, da estrutura dos pregos relativos (o trigo candial é mais barato ñas regioes mais férteis) e ás necessidades diversas que dependem dos climas (come-se mais ñas regiSes de climas mais frios). 321
Mesmo para o fim da Idade Média, apenas se pode ter uma ideia muito sumaria do nivel de vida e das suas variagóes. O pro cesso menos arriscado é o seguinte: compara-se o salário de um operário qualificado (da agricultura ou do artesanato) e os presos dos principáis géneros alimentares e dos principáis produtos manu facturados em uso em determinada cidade ou regiáo. Exemplo: se, em 1480, um operário qualificado pode adquirir, com o seu salário de um dia, mais páo, mais ovos, mais manteiga ou qualquer outra mercadoria fabricada do que em 1450, é muito possível que o nivel de vida tenha subido no local em questáo, entre estas duas datas. Mas seria necessário, para o saber com certeza, possuir simultaneamente muitos presos e conhecer melhor o montante dos salários. Ora, nao tem havido grande interesse pelos salários e as fontes utilizáveis ainda nao estáo todas referenciadas (contas urbanas e senhoriais, em especial).
As p ré-estatísticas e os presos
Conhecer os presos e a sua evolugáo é, por vezes, mais impor tante do que ter apenas elementos sobre a oferta e a procura, pois aqueles permitem que nos apercebamos das alteragóes ocorridas no equilibrio entre uma e outra (com efeito, os pregos sáo evidente mente a resultante das forgas que a oferta e a procura constituem). Isto explica que as investigagoes da história contemporánea e mesmo moderna lhes consagrem uma atengáo cada vez maior. E definir a conjuntura corresponde em grande parte a seguir as variagóes dos pregos. É precisamente a partir do século XIV que as fontes histó ricas fornecem por fim maior número de pregos. Mas em que me dida estes sáo verdadeiramente utilizáveis? Dispomos em primeiro lugar de coritas públicas, provenientes de soberanos, de príncipes, de administradores de toda a espécie, incluindo os das cidades. Em Franga, onde subsistem poucos arquivos financeiros, devido a incendios, revolugóes e á incompreensáo dos historiadores dos anos 1800-1850, temos de nos limitar á análise das compras de produtos destinados aos pagos do rei, da rainha e de alguns príncipes. As outras contas, muito mais numerosas noutros países, dáo-nos elementos sobre as receitas e despesas da governagáo: isto é, fornecem sobretudo elementos relativos ao nivel de vida (através da grandeza das taxas fiscais). EmboTa bastante nume rosas, as contas públicas foram as menos estudadas. As coritas privadas sáo muito pouco seguras. As mais comuns sáo as dos senhores rurais, que existem em grande número em In glaterra. Embora nos déem principalmente elementos relativos aos pregos agrícolas, algumas, as dos mercadores, permitem encontrar outras categorías de pregos, e, em Itália, o número de contas de 322
comerciantes é bastante elevado. Evidentemente que as actas nota ríais sáo muito ricas em indicagSes de pregos agrícolas e artesanais, bem como de pregos de servigos. Náo se devem rejeitar a priori os pregos fornecidos pelos cronistas; recentemente, provou-se que, por exemplo, os pregos fornecidos pelo Journal d ’un Bourgeois de Paris sáo bastante exactos (J. Meuvret). Os mais recentes trabalhos de história económica sobre o fim da Idade Média contém quadros e gráficos de pregos. É o caso dos que se referem á regiáo de Toulouse, á Normandia, á regiáo pari siense, ao Hainaut, ao Cambrésis, etc. Contudo, os seus autores tiveram de enfrentar dificuldades muito sérias, maiores ainda para os períodos longos do que para os períodos breves, pois as séries continuam, com demasiada frequéncia, a ser curtas. A primeira dificuldade diz respeito á moeda; certos pregos sáo expressos em moeda de conta, outros em moeda real, mas sempre numa moeda sensível á inflagáo e á deflagáo, facto a ter em conta especialmente para as séries mais longas. Para superar esta dificul dade foram já utilizados dois processos: exprimir cada prego em miligramas de ouro (Ph. Wolff) ou de prata (o que é perfeitamente possível, uma vez que o peso do metal fino da unidade monetária real ou de conta é conhecido de forma regular); ou, entáo, colocar sobre o mesmo esquema semilogarítmico os pregos nomináis da mercadoria (primeira curva) e o curso do metal precioso tomado como referéncia (segunda curva). Ambos os processos permitem suprimir as curvas das altas ou baixas de pregos aparentes, depen dentes das variagóes de valor da moeda. A segunda dificuldade deve-se ás diferengas de pregos de uma mesma mercadoria entre dois locáis, mesmo pouco distantes, na mesma data. Apesar de ser cada vez menos acentuada, a «compartimentagao» da maior parte dos mercados persiste no fim da Idade Média e deve ser tida em consideragao quando se elaboram as pré-estatísticas. Cada gráfico só deve englobar os pregos de uma única regiáo, de uma única cidade, de um único mercado rural. As curvas ou os diagramas seráo tantos quantos os mercados. Paris e Saint-Denis sáo duas cidades muito próximas, mas náo devem ser utili zados os pregos praticados numa e noutra para o mesmo gráfico. Este processo prudente tem ainda a vantagem de resolver uma terceira dificuldade, que advém da multiplicidade e da compartimentagáo das medidas no interior de uma mesma regiáo. Conside remos uma curva do prego do trigo de mistura em Saint-Denis e outra, também relativa ao trigo de mistura, em París. Se se pre tende comparar os pregos de um género nestas duas cidades, será necessário ter em conta a diferenga de volume da unidade de me dida, mesmo quando ela tem o mesmo nome (neste caso, o sesteiro) em París e em Saint-Denis. Infelizmente e a despeito de esforgos 323
recentes, aínda náo dispomos de suficientes tabelas de equivalencia de medidas de capacidade (ou de superficie) da Idade Média. Finalmente, náo se pode atribuir o mesmo significado e o mesmo valor probatório aos pregos de todos os bens. Só podem ser utiliza dos pregos de mercadorias comparáveis entre si. É certo que existem várias qualidades de trigo candial, mas náo é muito grave misturar, mesmo inconscientemente, os pregos das diversas qualidades, por que a diferenga entre uns e outros é geralmente pequeña. Em con trapartida, seria imprudente tentar seguir de demasiado perto a evolugáo do prego dos cavalos: a idade, a raga, as qualidades... variam muito de animal para animal. Isto corresponde a uma adverténcia contra os gráficos de prego do gado vivo. Também existem vinhos... e vinhos. Uma série de pregos deve referir-se apenas a uma colheita, proveniente de uma única regiáo, se possível da mesma vinha, centrando-se sempre no vinho branco, tinto ou clarete. Alguns pregos sáo mais significativos do que outros. Os dos objectos de luxo abrangem únicamente camadas restritas da populagáo e sáo mais estáveis, uma vez que, em anos maus, a procura pode ser reduzida. Tém, por conseguinte, menos interesse do que os pregos dos produtos manufacturados de consumo corrente e, sobre tudo, do que os pregos dos géneros alimentares de primeira neces sidade. Isto significa que os pregos dos cereais sáo os que mais importa investigar. Muito sensíveis a todas as formas de variagáo da conjuntura (acidentes imprevisíveis, boas ou más colheitas, flutuagoes sazonais de curta, média ou longa duragáo), sáo os que nos dáo melhores informagoes sobre a conjuntura. Sáo o melhor «barómetro económico» existente, pois referem-se, no que respeita á procura, ao conjunto da populagáo, e, para a oferta, á grande maioria. O ideal seria ter um número suficiente de pregos para cada mes de cada ano. Os pregos de determinado bem de consumo devem ter sempre a mesma natureza, antes de se poder pensar em traduzi-los num gráfico: todos eles devem ser avahados ñas mesmas circunstancias e no mesmo escaláo do mercado. Devem ser, por exemplo, única mente pregos de venda ao público, de venda a retalho ou por grosso, praticados no mesmo local de um aglomerado. Consideremos dois exemplos. Comecemos pelo exemplo — verdadeiramente excepcional, ao que parece— da pri meira mercurial de Paris. Por mercurial entende-se um levantamento regular, mercado por mercado, dos pregos dos cereais, com valor de constatagáo completa, constante e ofi cial (J. Meuvret). Uma das mais antigas, dizia-se há vinte anos, foi a de Paris, iniciada em 1520 e referente aos pregos dos cereais, anotados duas vezes por semana. J. Meuvret conseguiu descobrir que a mercurial parisiense nasceu de facto em 19 de Dezembro de 1439. O manuscrito conser 324
vado, que é apenas uma cópia, interrompe-se em 28 de Fevereiro de 1478: Tal como é, o referido manuscrito prova que, em cada mercado (cerca de 2000 durante esses quarenta anos), eram estabelecidos os pregos de primeira e das diver sas qualidades de trigo candial, de trigo de mistura, de centeio, de cevada e de aveia. A com pilado, embora mutilada, permite o estudo da evolugáo sazonal, em muitos casos, e, sempre, da evolugáo dos pregos anuais. J. Meuvret estabeleceu, por conseguinte, um gráfico dos pregos máximos do trigo candial, a título de exemplo, e comparou-o com outros, deduzidos das contas de Bruges 0). Detecta-se um parale lismo aproximativo da evolugáo do prego do trigo candial nestas duas grandes cidades, no entanto, bem distantes uma da outra. Daqui se pode concluir que náo há razáo para se ser demasiado pessimista: a compartimentagáo dos pregos enfraqueceu no século XV. Descobrir-se-áo outras mercuriais medievais? Náo é impossível. Até lá, teremos de nos contentar com outras fontes, mais imperfeitas. Consideremos agora o segundo exem plo, de um texto que náo é excepcional em si mesmo, mas que, no entanto, apresenta uma série de pregos excepcional mente longa. No fim da Idade Média, Douai, situada no coragáo de uma fértil regiáo agrícola, era um mercado cerealífero, cuja importancia aumentou continuamente, ao ponto de se ter tornado, no século XVI, a principal activi dade da cidade. Dois registos conhecidos de G. Espinas, dos quais M. Mestayer extraiu um gráfico (aliás discutível), apre sentam, o primeiro, a contabilidade da abadia de Prés entre 1329 e 1382 (declarando, acessoriamente, pregos agrícolas), e o segundo, o prego do trigo, da aveia e dos capóes, de 1368 a 1839. O segundo comporta apenas duas lacunas (cinco anos relativamente ao século XIV que se encontrava no fim e dois relativamente a todo o século XVI) e tem valor oficial: os magistrados municipais determinavam, em 1 de Outubro, os pregos nele consignados, que serviam para calcular o valor em dinheiro dos alugueres das casas, dos foros e das rendas, expressos em géneros. Dispomos, por tanto, apenas de um prego para cada ano, mas numa data interessante: em 1 de Outubro, a colheita aflui ao mercado e, em principio, as tarifas sáo nessa altura as mais baixas de todo o ano. Sem se tratar de uma mercurial, este documento é, contudo, um dos elementos de uma mercurial. E, mais uma vez, os resultados permitem aproximagSes úteis do prego dos cereais noutras cidades. Náo relativamente ao século XIV, porque Douai parece ser a única cidade com uma lista deste tipo, mas em relagáo ao século seguinte. Desta forma, a alta de pregos ocorrida em Douai em 1408 verifica-se no ano seguinte em Bruges e em Gand. Em 1438, crise do trigo O Os dois diagramas (efectivamente preferíveis ás curvas) sáo desenhados sobre o mesmo esquema semilogarítmico, o que permite uma melhor compa r a d o , visto que todos os presos foram convertidos em gramas de prata fina. Pouco importa, por conseguinte, neste caso, que as medidas fossem diferentes, o quartilho em Paris e o heude em Bruges, visto que os dois diagramas sáo semilogaritmicos, náo reflectindo portanto a falta da conversáo (que sería aleatoria) das duas medidas de capacidade entre si.
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candial em Douai, bem como em Bruges, Gand e Antuér pia. Os valores máximos de Doaui de 1457-1458 e 1482-1483 verificam-se em Bruges, em Antuérpia e mesmo (para 1482-1483) na longínqua cidade de Francoforte. As listas de pre sos anuais, estabelecidas para uso na conversáo de rendas estipuladas em géneros num equivalente monetário eram frequentes um pouco por toda a parte no fim da Idade Média, pelo que se espera vir a descobrir exemplares idén ticos, embora alguns, como no caso de Bruxelas, paregam ter passado a ser conservados apenas a partir de certa altura do século XVI. A de Douai, assim como o mercurial de Paris, demonstra que os riscos de extrapolado aventureira, com que se debatem os historiadores, diminuem desde antes do fim da Idade Média, porque a circulado era nessa altura mais activa, passando a manifestar-se claramente uma certa interdependencia entre cidades e entre regióes. Trata-se, por conseguinte, de um terreno bastante favorável á utilizado de pré-estatísticas. Mas as distorfóes persistem, como demonstram alguns trabalhos recentes (G. Sivery para o Hinaut, H. Neveux para o Cambrésis, M.-J. Tits-Dieuaide para o Brabante e a Flandres).
326
Capítulo 13
A GRANDE DEPRESSÁO DO FIM DA IDADE MÉDIA E OS SEUS LIMITES
O século X III notabilizara-se por um movimento de longa duragao, orientado para o aumento dos pregos (a fase A dos economis tas). Uma alta de pregos fraca, mas continua, que favorecia o me lhor possível, em todas as regiSes e tanto no campo como na cidade, a produgáo e as trocas, tanto mais que os salários se tinham mantido praticamente estáveis, pelo menos em alguns sectores. Foi no século XIV que se verificou a viragem, a partir das primeiras décadas para a agricultura, um pouco mais tarde e numa medida variável para os produtos artesanais: até á revolugáo industrial do século XIX, as alteragoes de conjuntura e as crises produziram-se pri meiro no campo, só depois se repercutindo nos sectores secundário e terciário. Esbogou-se assim um novo movimento de longa duragáo, uma depressáo (a fase B), que seria mais ou menos longa e mais ou menos acentuada conforme as provincias e os ramos de activi dade. A crise de 1315 e as suas repercussóes
A baixa conjuntura comegou por se fazer sentir no campo, embora as cidades nem sempre tenham estado ao abrigo de alguns dos seus efeitos mais ¡mediatos. Segundo as características das econo mías «pré-industriais», registou-se em primeiro lugar uma «crise cerealífera de mecanismo clássico» (E. Perroy). Como a colheita de cereais fora de um modo geral deficitária na Europa do Noroeste, em 1314, registou-se uma alta de pregos, sobretudo nos primeiros meses de 1315, no período de inactividade agrícola que se anunciava difícil. A Inglaterra tentou sem éxito bloquear os pregos, mas viu-se Tapidamente forgada a abandonar os «máximos» fixados. Além disso, o ano de 1315 foi por seu turno mau: em todas as regioes náo mediterránicas, as chuvas, demasiado frequentes, arras327
taram-se da Primavera até ao Outono. As sementeiras primaveris foram prejudicadas, a colheita reduzida por muitas sementes terem apodrecido e as lavras do Outono enterradas na lama (‘). Novamente, em 1316, a colheita foi muito inferior ao normal. Foi pre ciso aguardar a ceifa de 1317 para que os abastecimentos de cereais voltassem a ser suficientes. Durante esta crise cerealífera — a pri meira táo acentuada e táo generalizada desde há cem anos, ou, pelo menos, a primeira que se conhece suficientemente bem —, o prego do trigo quadriplicara na Inglaterra em 1315 e, no ano seguinte, aumentara oito vezes. Ocorreram, por conseguinte, fomes, epidemias e aumento da taxa de mortalidade ñas cidades dos países superpovoados e importadores de cereais. Como na Flandres. De 1 de Maio a 1 de Novembro de 1316, Ypres viu morrer 2660 dos seus, ou seja, cerca de 10% da populagáo. Em Bruges, fácilmente abastecida por mar, a mortalidade foi, no mesmo lapso de tempo, de ape nas 2000 pessoas, ou seja, 5,5 % da sua populagáo total. Náo tiremos, contudo, destes dois exemplos conclusóes demasiado gerais: a maior parte das cidades do Ocidente náo parece ter sofrido tais razias e náo devemos tomar á letra os cro nistas que descrevem Paris com as pessoas a morrer de fome «pelas rúas e pelas pragas». A colheita de 1317 foi excelente na maior parte das provincias do Ocidente (á excepgáo de algumas regióes, onde ainda foi preciso esperar um ou dois anos). Nessa altura, em Inglaterra, os pregos dos cereais baixaram para níveis inferiores aos de antes da fome e que se mantiveram durante bastante tempo. Tomando por base 100 as médias por década, entre 1301 e 1310, o índice eleva-se a 130 du rante a fome, mantendo-se em 90 entre 1331 e 1350. As despesas agrícolas, nomeadamente os produtos manufacturados (ferro, madei ras para construgáo, telhas, panos), continuam lentamente a aumen tar de prego; os salários dos ceifeiros, carpinteiros e pedreiros tam bém aumentavam ligeiramente. Daqui resulta uma cisao de pregos (E. Perroy). De qualquer modo, trata-se da ilustragáo da tendencia dos pre gos agrícolas — sobretudo dos pregos dos cereais— para aumentar ou baixar mais fácilmente e com maior intensidade do que os pre gos «industriáis». O principal motivo deste facto reside na grande dificuldade que os pregos agrícolas, em geral, e os dos cereais, em particular, tém em atingir o ponto de equilibrio entre a oferta e a procura: o mais pequeño excesso de produgáo faz baixar vertigino(*) Pode ter acontecido que o clima tenha sofrido novas alterafoes nos séculos XIV e XV. Mas, tal como antes, as opinioes divergem relativamente ao sentido, data e amplitude dessas possíveis modificacóes.
328
sámente o prego dos cereais e qualquer colheita inferior ao nor mal — ainda que pouco— fá-lo subir em flecha. De facto, a pro cura dos cereais é entáo a menos elástica; basta um mínimo, incompreensível ainda que os presos tenham atingido níveis muito eleva dos, e os presos muito baixos proporcionam um excedente de rendi mentos disponíveis que levam os consumidores, ainda que modes tos, a comprar outros géneros (carne, manteiga...) e produtos «in dustriáis». No período que se seguiu á crise cerealífera, o baixo nivel dos presos dos cereais manteve-se: entrou-se num longo período de baixa conjuntura e seria interessante poder explicar a sua durafáo insólita, por ser muito superior á de um movimento «secular». Debrucemo-nos sobre os movimentos dos presos dos cereais e dos salários dos debulhadores nos dominios do bispo de Winchester, entre 1300 e 1479 (M.-M. Postan):
1300-1319 1320-1339 1340-1359 1360-1379 1380-1399 1400-1419 1420-1439 1440-1459 1460-1479
................. ................. ................. ................. ................. ................. ................. ................. .................
índice do trigo
índice dos salários
Proporgao salários trigo
100 90 79 89 65 68 64 53 47
100 124 117 137 151 144 130 125 102
100 138 148 154 232 212 203 236 217
Passados oitenta anos, os salários reais, expressos em cereais, ultrapassaram o seu dobro no temporal episcopal de Winchester. Este facto é confirmado pelos arquivos da aba día de Westminster. Quanto aos produtos «industriáis» de Inglaterra, o seu aumento de pre?o foi ainda superior aos dos salários reais agrícolas. Conforme indicam os índices do preco do ferro trabalhado: 1300-1350 .......................... 1351-1360 .......................... 1389-1400 ..........................
100 159 352
O que significa que as ferramentas, no todo ou em parte, se tom aram muito caras para a maior parte dos campone ses. Verificou-se certamente uma redufáo progressiva dos instrumentos de trabalho ñas pequeñas explorares, o que deverá ter afectado os rendimentos. 329
Atravessemos agora a Mancha. Pelo menos em relafáo aos ce reais, a situafáo foi idéntica em Franca, tanto quanto se sabe actualmente, já que poucas sáo as fontes cifradas até agora explo radas. A despeito de uma lacuna particularmente inoportuna ñas contas de Saint-Denis, nota-se, na Ile-de-France, uma clara ruptura no pre;o do trigo de mistura utilizado na alim entado humana e no da aveia, ficando claro que as altera?6es de valor do primeiro sáo sempre mais bruscas do que as da segunda: nalguns anos, o prefo médio anual do trigo de mistura foi inferior em metade ao prefo de antes da fome. Este marasmo manteve-se durante longo tempo: á excepfáo dos anos de fome, de epidemia ou de guerra, os presos dos cereais mantiveram-se a níveis baixos e estanques até por volta de 1410, momento em que surgiram novas alterafóes: registaram-se movimentos desordenados, provocados pelas guerras civil e estrangeira, pelas epidemias e fomes, antes de se voltar a cair num marasmo que só terminaría pouco antes do fim do século XV. O processo geral foi idéntico ñas regioes normandas: no baronato de Neuburgo, a medida de trigo candial quedou-se a um nivel igualmente mediocre, salvo em alturas de acidentes políticos e demográficos, entre cerca de 1325 e os comeaos, ou mesmo mea dos, do século XV. Em Languedoc, a situagáo foi comparável, ao contrário do Hainaut e de Champagne meridional. U M A O S C IL A g Á O D O S P R E S O S E M P A R IS em soldos parisienses
500 i 400
O Prcijo do sesieiro do trigo e do centeio
°
Preqo do sesieiro da aveia 300
;
I
200 ; e m libras, lo m c s a s-
o •!
i
PRATM 30
100 1
oo
OURO
oo
180
-
150'
50
120-
OURO
90
1
-
PRATA 20 I------
10
JUN. JAN.
1419
JUN.
JUN. JAN. *......
1420
JAN.
1421
JUN. JAN.
1422
JAN.
1423
O sesteiro é o de Saini-Germ ain-des-Prés, m edida de Paris. Segundo G uy Fourquin, Les C am pagnes de la région parisienne á la fin du M oyen Age (du milieu du X III'' ao debut d u X V !e siécle), P .U .F ., Paris, 1964, p. 315.
330
JUN.
JUN. JAN.
1424 JAN. 1425
Mas esta estagnagáo frequente dos pregos dos cereais nao se estendeu de forma alguma aos outros pregos. Assim o testemunha o prego do vinho na Ile-de-France. O facto de variar bruscamente desde 1320 nao constituí novidade: as variagSes dependem simultá neamente da qualidade e da quantidade de cada colheita e nada é mais irregular. Tanto em valor real como em valor nominal, o moio de vinho de París era em média mais caro entre 1320 e 1342 do que no período compreendido entre 1287 e 1303. Isto significa que a cultura da vinha na Ile-de-France se tornou mais compensadora depois da crise cerealífera e que, nos cantóes onde era praticada, o aumento dos lucros assim obtidos compensou, em certa medida, a perda motivada pelos baixos pregos dos cereais. Resta saber se esta situagáo se estendeu a outras provincias de Franga, como tudo indica. O conhecimento dos pregos agrícolas em Itália, tal como toda a historia rural do país, é ainda muito deficiente. Á parte este caso, parece que, em geral, no Ocidente, os pregos dos produtos de origem animal (á excepgao da manteiga holandesa) teráo igual mente aumentado em relagáo aos dos cereais. As notagóes de pregos artesanais feitas fora de Inglaterra pelos historiadores sáo, até ao presente, pouco numerosas e náo muito dignas de crédito, mas levam-nos a pensar que a evolugáo em Franga foi bastante semelhante á de além-Mancha. É, portanto, provável que a distorgáo entre alguns pregos agrícolas e certos pregos artesanais náo fosse rara. Finalmente, no que se refere aos salários agrícolas — mais conhecidos do que os salários artesanais —, o aumento notado para as mansoes do bispado de Winchester encontra-se um pouco por toda a parte, embora seja frequentemente menos pronunciado. Assim, em Navarra, onde o salário nominal era de 16,2 em 1308, de 17,0 em 1309 e de 16,8 em 1310, esse índice só atingiu os 17,5 entre 1346 e 1350. Em Franga, porque as granjas dos grandes senhores estavam geralmente arrendadas, normalmente só se conhecem os salários pagos aos trabalhadores das vinhas: salários anuais recebidos pelos «dosiers» (agentes senhoriais que regiam os «cerrados») e pelos lavradores de vinhas, salários á jorna pagos aos vindimadores da regiáo de Toulouse e da Ile-de-France. Nestas duas provincias, a regra foi a estabilidade de facto até 1348: os aumentos com uma certa duragáo foram na maior parte dos casos nomináis, mas nunca reais. Pode dizer-se que houve uma manutengáo dos salários, mesmo em épocas em que os cereais eram vendidos a pregos mais baixos do que anteriormente, dificuldades maiores, portanto, para os explo radores que dependiam principalmente das entradas de dinheiro provenientes da venda de cereais. Estas dificuldades agravaram-se após a peste negra, em quase toda a parte. 331
OS PRESOS EM TOULOUSE cm libras tomesas
Indice 7)2 700 -
TRIGO FRUMENTO
80
70
PRECOS INDUSTRIAIS
PRECOS ALIMENTARES
60
3 00
TECID O M ADEIRA 1á, ..C E R A 129 133 125
SAL 204
200
VACA 147
100
PASTEL
VINHO
__ Q
■"kri— 1
<3 ^
CL
^22
50
40
<9 63 6< A CAIXA ¡ DH AVEIA- 30
25UFOLHAS. 'D E OS 10 PUNHADOS -■ —
DE SAL
------ PAPFI AS 10 LIBRAS DE QUEIJO
1419
1420
1421
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A LIH R .V
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1422
Indice
220
-
a. Tipos de presos de 1360a 1450 (vanadio dos índices). — b. A oscjla;áo dos presos de 1419a 1422. — c. Principáis índices de p ref os de 1437 a 1449. Segundo Ph. Wolff, Commerces et marchands de Toulouse (vers 1350 - vers 1450), Plon, Paris, W.M, quadros XIII e XIV.
E pidem ias e depressáo dem ográfica
Do século XI até ao fim do século XIII, tanto a populado dos campos como a das cidades comeu quase sempre á vontade e a história nao conserva memória de fomes terríveis. A de 1315-1316 inaugurou uma nova série de fomes, circunscritas geralmente a algu mas regioes e de que existem vestigios em todos os países, nomeadamente em Franca, onde esses desastres se deveram sobretudo á anarquía e ás devastafdes provocadas pela Guerra dos Cem Anos e pelos motins civis. Mas houve-as igualmente noutros locáis: em Barcelona e em toda a Catalunha, a fome de 1333 durou dois meses até ao desembarque de navios carregados de cereais. Na Alta Pro venga, portanto, fora do reino de Franca, numerosas comunidades rurais passaram, por volta de 1338, por graves dificuldades materiais, de que saíram empobrecidas e numéricamente menos fortes. Apesar de náo estar demonstrado que o Ocidente tenha sofrido, no século XIV, tal como antes do ano 1000, de subalimenta?áo crónica, há pelo menos a certeza de que passou entáo de novo, e um pouco por toda a parte, por meses de escassez de alimentos. Uma consequéncia deste facto foi uma menor resistencia ás epide mias nos meios mais pobres. Infinitamente mais graves ainda do que a relativa depressáo económica iría ser a depressáo demográ fica e o consequente subpovoamento (dos campos sobretudo), pro vocados pela peste negra, e que se iriam manter e acentuar devido ás recorréncias desta pandemia. Aparentemente proveniente das feitorias italianas da Crimeia, a Grande Peste atingiu, em condi?5es aterradoras, quase todo o Ocidente, mais ou menos entre 1348 e 1350. Esta peste bubónica era em si uma doen?a mais grave do que a maior parte das «pestes» já conhecidas, náo só por que provocava problemas pulmonares, mas também devido á subalimenta?áo dos pobres de muitas regioes. Os nume rosos testemunhos contemporáneos denotam o pavor que se apoderou dos homens. Difíceis de calcular, as perdas de vidas humanas foram desiguais e a proporfáo avanzada — um ter?o — nem sempre se verificou. Só agora se cometa a conhecé-las melhor, grabas aos recentes tra balhos de demografía e ás pesquisas ñas «aldeias abandonadas». A razia era por vezes táo forte que alguns aglomerados rurais desapareceram, provisória ou definitivamente, sem qualquer inter v en g o das guerras. Foram os Alemáes os primeiros a chamar a atenfáo para estes Wüstungen, sabendo-se agora que, para além da Alemanha, a Inglaterra, a Itália e a Espanha, algumas provincias francesas, a Escandinávia, a Polónia..., foram atingidas por este movimento que riscou do mapa tantas aldeias. Apesar de nem 333
todos esses desaparecimentos terem por causa única a pandemia de 1348-1350 e as suas sequelas (deve igualmente ter-se em conta a intervengáo de causas económicas ou sociais e notar-se que as aldeias morías eram frequentemente aldeias «marginais» por terem sido estabelecidas em solos de má qualidade), a verdade é que as «pestes» tiveram uma parte da responsabilidade. É altamente provável que as cidades tenham sofrido ainda mais do que os campos: o contágio propaga-se com mais facilidade na cidade, devido á promiscuidade e ás más condigoes de higiene pú blica. No campo, pelo contrário, as perdas de vidas humanas foram mais desiguais; as lost villages nao impediram que outros burgos rurais tenham sobrevivido, com algumas baixas, ñas suas proximi dades. Estudos ainda bastante parciais descrevem por vezes duas aldeias vizinhas, uma quase intacta e a outra completamente dizimada. Vejamos o exemplo excepcional de uma grande aldeia duramente afectada pela epidemia. Numa populagáo de cerca de 1500 habitantes, Givry, na Borgonha — que conservou o registo paroquial da altu ra—, perdeu 643 dos seus habitantes, entre 1 de Agosto e 15 de Novembro de 1348, ou seja, 43 % da populagáo! Em várias mansoes da abadía de Westminster, morreram, em 1349, 707 pessoas, contra 24 em 1346 e 50 em 1347 e em 1348. O que aconteceu, entretanto, ñas aldeias situadas ñas proximidades? De facto, apesar de, entre 1346 e 1351, o número de fogos de «albergues» na Provenga ter baixado de pelo menos 50 °!o no seu conjunto, a percentagem variou de local para local. Por exemplo, no vale de Rians, a nordeste de Aix, Saint-André d’Amirat passou de 40 fogos para somente 11 e Saint-Paul-le-Fougassier de 92 para 40, mas Rians só perdeu um total de 87 fogos em 300 (ou seja, apenas pouco mais de um quarto). As perigosas recorréncias da pandemia, que se verifi caran! sobretudo a nivel regional, foram em geral menos mortíferas; no entanto, todas elas baixaram os efectivos humanos. Vejamos, por exemplo, a evolugáo demográfica do burgo provenga) de Guillaume: — 1313: 276 fogos recenseados. — 1343: 183 somente (o subpovoamento devido á defi ciente alimentagáo e ao provável éxodo para as cida des, comegou, por conseguinte, antes da Grande Peste). — 1364: 104 fogos (verifica-se uma recorréncia). Em geral, no principio do século XV, os homens eram ainda menos numerosos, e náo apenas na Provenga, a despeito de se ter verificado uma paragem na descida entre 1370 e 1400. Uma aldeia borgonhesa dependente de Citeaux que, em 1280, contava 80 fogos, tinha apenas 54 em 1378 e 53 em 1400; depois, a descida prosseguiu: esta mesma aldeia tinha somente 13 fogos em 1423, só passando a ter 28 em 1436. 334
Variável de aldeia para aldeia, a razia foi também diferente consoante as regiSes. Apesar dé, entre 1320 e os anos 1400, o con dado de Nice e a Alta Provenfa terem perdido, uma e outra, dois tercos da sua populagáo, e de parecer que a Ile-de-France perderá metade dos seus habitantes entre 1348 e 1444, outras provincias houve que sofreram menos, como é o caso do Brabante e da Holanda. Á excepdo em alguns centros como Deventer, esta última foi praticamente poupada (o que explica o desenvolvimento holandés do último período do fim da Idade Média). No caso do Brabante, as punzóes de meados do século XIV parecem ter tido fracos efeitos, e, entre 1370 ou 1375 e meados do século XV, o número dos fogos aumentou em proporcóes que chegaram a atingir um ter^o. Entre esta zona setentrional, praticamente imune, e o Norte da Franca, fortemente atingido, o Hainaut funciona como zona de transido: pensou-se que o conjunto do condado fora poupado, mas um estudo recenie prova que o Sul foi realmente atingido (entre 1286 e 1365, a populado baixou de entre 30 e 60% , consoante os cantóes), enquanto o Norte mal era tocado (G. Sivéry). No entanto, seguidamente, todo o condado sofreu a mesma sorte: as recorréncias infiltraram-se mesmo na parte Norte (M.-A. Arnould). Aqui e além, os movimentos apresentam nítidas discordancias. Assim, entre 1359 e 1369, e por se encontrar em pleno desenvol vimento económico, a Catalunha passara de 86 900 para 95 258 fogos; em 1378 contava apenas com 78 000 fogos e, em 1497, com menos de 60 000, enquanto, no conjunto da Europa, o fim do século XV assistia a um novo aumento populacional. A Inglaterra é o único país em relasáo ao qual existem núme ros para quase todo o reino. Mas trata-se de «reconstitui?oes» feitas a partir de fontes um tanto heterogéneas, que devem, portanto, ser consideradas de forma cautelosa (J.-C. Russel): 1348: 1350: 1360-1361: 1369: 1374: 1377:
3 757 500 3 127 500 2 745 000 2 452 500 2 250 000 2 223 175
hab. hab. hab. hab. hab. hab. (ou somente 2 073 279 hab.) Relativamente a 1348, a diminui d o foi, por conseguinte, de cerca de 40% . 1400: 2 100 000 hab. 1430: 2 100 000 hab. O nivel anterior á Grande Peste, ou seja, mais de 3 750000 hab., só seria atingido novamente por volta de 1600. Os dados anteriores centram-se evidentemente nos campos, já que a percentagem da populado citadina era quase sempre fraca
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em relagáo á populagáo do conjunto de uma provincia ou de um reino. Analisemos alguns «recenseamentos» puramente urbanos. A cidade de Toulouse contava, antes de 1348, pelo menos 30 000 hab. Mas em 1385 contava apenas 24 000, em 1405, 22 500, e sem dúvida menos de 20 000 pouco antes de 1450, embora a imigragáo defini tiva náo tenha cessado de colmatar parte dos vazios. Entre as cidades com uma populagáo de amplitude semelhante, mas com importáncia económica maior, podemos contrapor Gand, que continuou a rondar os 50 000 hab. (verificaram-se muito poucas perdas), a Ypres, que passou de 30 000 para 18 000 hab., e a Arras, que baixou de cerca de 20 000 hab. para menos de 10 000 hab. Diversidade dos efeitos das epidemias sobre os destinos urbanos! Como exemplo de uma grande cidade, tomemos Fiorenga: em 1338, cerca de 110000 hab.; em 1351, entre 45 000 e 50 000 hab.; em 1380, de 70 a 75 000 hab.; em 1526, cerca de 70 000 hab. Trata-se de uma baixa severa, embora Florenga seja uma das cidades que se mantiveram mais prósperas. De notar que a recuperagáo, entre 1351 e 1380, parece ter-se devido sobretudo á imigragáo. O destino das pequeñas cidades — pequeñas em popu lagáo ou devido ao seu raio de acgáo — foi variável, como as perdas sofridas: Zurique, em 1350: 12 375 hab.; em 1468, 4713 hab. Albi: 2749 chefes de familia em 1343; apenas 1100 em 1357. O ponto de partida da recuperagáo demográfica variou de regiáo para regiáo. A Franga só comegou a repovoar-se na segunda metade do século XV, uma vez terminada a guerra. Embora parega estranho, este país representa, no entanto, um caso médio. Em países que náo tinham estado sujeitos a desordens graves, a queda prosseguiu entre 1437 e 1496. Em contrapartida, o ponto de partida ocorreu mais cedo, no decorrer do século XV, tanto na Flandres como na Itália do Norte e do Centro. Mas, salvo excepgóes verda deram ente raras, o elevado nivel demográfico anterior á peste negra náo foi recuperado antes do século XVI ou mesmo do século XVII. Todas as avaliagdes, baseadas num estudo directo do número de habitantes, sáo discutíveis, uma vez que as fontes utilizadas sao de interpretagáo difícil. Isto explica que alguns historiadores se tenham orientado preferencialmente no sentido da avaliagáo da populagáo por métodos indirectos. Deste modo, houve quem se interessasse pelas taxas de crescimento (ou de substituigao): J.-C. Russell pretendeu extrair condusóes sobre a idade média de morte no século XV ou sobre a composigáo das familias, do estudo dos testa mentos, mas náo obteve uma adesáo unánime. S.-L. Thrupp retomou o problema, já nao relativamente a Inglaterra mas somente ao arcediagado de Essex. 336
Eis as suas conclusoes: — média de crianzas por testador masculino: 1420-1425: 0,54 1477-1479: 0,70 1480-1492: 1,18 — evolujáo da taxa de nupcialidade: 1429-1435: 20% dos homens testadores náo sáo casa dos 1477-1479: 12% dos homens testadores náo sáo ca sados 1480-1492: 2 % dos homens testadores náo sáo casa dos — evolugáo da mortalidade infantil: 1420-1435: 38 % das crianzas citadas nos testamentos sáo adultas 1480-1492: 79% das crianzas citadas nos testamentos sáo adultas. No fundo, tudo isto confirma e explica os números absolutos de populagáo: a taxa de nupcialidade aumentou e a mortalidade infantil diminuiu no decorrer do século XV. A despeito da recuperado do século XV, a massa de consu midores e de produtores manteve-se geralmente reduzida em relasáo ao século X III e aos comeaos do século XIV. Por outro lado, esta massa náo estava distribuida exactamente como outrora: Toulouse e Florenja náo foram as únicas cidades onde a imigra?áo rural preencheu em parte os vazios que as epidemias tinham acabado de causar. Isto significa que numerosas cidades passaram a ter mais peso sobre os campos dos seus países, proporcionalmente mais despovoados. A redujáo das superficies cultivadas terá sido mais ou menos forte do que a contracgáo demográfica dos campos? Se estivéssemos em condifóes de responder claramente a esta questáo primor dial, conheceriamos melhor os recursos alimentares e o nivel de vida dos sobreviventes do campo e da cidade. Mas seria arriscado responder sem estabelecer diferengas. As epidemias atingiram sobre tudo os mais mal alimentados, os camponeses sem térra e os operá rios do artesanato. É provável que os rurais que já tinham térra ou que conseguiram adquirir bens que tinham ficado vagos, tal como os burgueses médios, tenham passado a viver de forma menos precária do que anteriormente. Terá a produfáo dos sectores náo atingidos pelas guerras sido menos reduzida do que o nivel demográfico? Isto náo é certo nem geral. O peso d as g u erras
No seu conjunto, o fim da Idade Média foi uma época contuibada. Guerra dos Cem Anos, complicada píela guerra civil entre os Armanhaques e os Borguinhdes, em Franja. Guerra dos Ingle 337
ses contra os Escoceses, guerra civil no tempo de Ricardo II, guerra das Duas Rosas entre York e Lancaster. Lutas intestinas em Castela e no Sul de Itália. D evastares feitas pelos soldados aventureiros e pelos condottieri ñas numerosas campanhas «locáis» no Norte de Itália, nos Estados pontificáis, no Sul da Alemanha. Tumultos civis na Flandres. E assim por diante. Tudo isto preparou ou completou a obra nefasta das fomes e das epidemias. Mas foram os males provocados pela Guerra dos Cem Anos que atraíram particularmente a atengáo dos historiadores. Há mui tas décadas, no tempo de P. Denifle e da sua Désolation des Eglises de France, imputava-se á guerra todas as prova?5es entáo sofridas pelos homens, porque se acreditava demasiado ñas queixas dos contribuintes e principalmente do clero. Convém desconfiar de algumas fontes e, agora, há tendencia para reduzir ás suas justas propor^óes as provafóes que se deveram indiscutivelmente a esta guerra. Os seus efeitos sobre a Franca náo deixaram de ser muito importantes. Observamos, em primeiro lugar, que a guerra causou estragos no estado endémico a partir dos anos 40 do século XIV, «reacendendo-se aqui quando se extinguía além». E náo se tratava já de uma sucessáo de recontros, por vezes sem futuro, entre dois peque ños exércitos, mas de uma oposifáo muito viva entre dois reinos que procuravam mutuamente prejudicar-se ao máximo. Sabemos que cada exército náo contou nunca com mais de alguns milhares de homens. Mas tratava-se já entáo de guerreiros profissionais, obrigados a depender da populagáo por serem mal e irregularmente pagos. Quando era concluida uma trégua, ou quando o tesouro real náo podia continuar a pagar-lhes. estes sol dados aventureiros, estas companhias — compostas por algumas cen tenas ou mesmo algumas dezenas de soldados — deixavam-se ficar onde estavam e viviam á custa da populafáo, pilhando e roubando camponeses e mercadores. A estes «salteadores» ocasionáis juntavam-se com demasiada frequéncia bandidos profissionais (aparecem sempre como formigas em períodos conturbados) ou mesmo cam poneses arruinados e desesperados, os Gueux (indigentes), os Ecorcheurs (esfoladores), os Coquillards (peregrinos), os Tuchins ou os Cáimans (duros). Acrescente-se ainda a política de «térra queimada», iniciada em Franca por Carlos V e Duguesclin. «Mais vale país pilhado do que térra perdida», afirmavam. Esta estratégia foi de facto eficaz mas arruinou muitos cantóes, nomeadamente perto de cidades como Paris e Bordéus. As devastares tiveram amplitude variável de regiáo para regiáo e, numa mesma provincia, entre um cantáo e o outro. As casas isoladas e os priorados afastados dos burgos sofreram mais do que os centros de habitat aglomerado. Grosso modo, pode dizer-se que os sectores que mais sofreram foram os menos povoados e, portanto, 338
menos aptos a defender-se contra um pequeño «bando», como foi o caso de Brie e Hurepoix, na Ile-de-France. As zonas das cidades, pontos estratégicos, foram também frequentemente destruidas, tanto mais que estavam destinadas a mudar de dono muitas vezes. No campo, as vinhas sofreram mais do que as searas. A s exploragdes senhoriais foram mais sacrificadas do que as pequeñas exploragdes rurais, porque os camponeses, ao mínimo alerta, fugiam para os bosques, para as ilhas ou para os pantanos com o seu gado, as suas ferramentas e quase todos os seus magros bens. Além disso, as pequeñas exploragSes, onde pouco havia para roubar, nem sempre atraíam os aventureiros. Pelo contrario, as granjas senhoriais eram o alvo mais cobijado: era nelas que se encontravam os fornos, os moinhos, os lagares; quando eram inutilizados, toda a comunidade sofría com isso. Os séculos XIV e XV foram férteis em «terror», tanto no campo como na cidade. Produziam-se por vezes, como na Catalunha, «mobilizagSes do campo contra a cidade», contudo menos frequentes do que as mobilizagSes de grupos citadinos contra os burgueses ricos. A necessidade de regressar ao equilibrio e ao antigo estado de coisas era o sentimento comum que unia, um pouco por todo o lado, os revoltados. Raras foram, em suma, as cidades e os campos que viveram continuamente em calma social, no decorrer destes dois últimos séculos medievais OO necessário equilibrio cidade-campo foi frequentemente per turbado, ou mesmo cortado, e náo apenas em Franga. No reino, há os exemplos de Guyenne, da regiáo de Toulouse e da Ile-de-France para mostrar que a relagáo de forgas entre a cidade e o campo mudou várias vezes de sentido. Em todo o Ocidente, enquanto as cidades sofriam mais com as fomes e as epidemias, as regiSes atingidas pela guerra conheciam os cercos e bloqueios. Por vezes, pelo contrário, as cidades serviram de refugio aos campo neses. Assim, entre 1346 e 1441, Paris foi urnas vezes local de asilo, outras local a evitar. No entanto, o éxodo rural assumiu um aspecto definitivo por toda a parte. Finalmente, as relagóes entre as cidades e os campos, um dos principáis problemas da vida econó mica, tornaram-se singularmente mais complexas do que outrora. Umas vezes, a cidade atrai os reveses (peste, aventureiros...) sobre os seus arredores rurais. Outras vezes, como reserva de adminis tradores, de capitais e também de consumidores, contribuí para reactivar o campo, como vira a acontecer na Franga da secunda metade do século XV.
0 ) G. Fourquin, L es Soulévements populaires au Moyen Age.
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D uragao e lim ites da g ran d e depressáo
Para tentar fixar a duragáo da grande depressáo e saber em que data aproximada ela terminou, o exame dos presos náo é nem satisfatório nem sempre muito convincente, em particular devido á longa distordo entre os presos cerealíferos e os outros. Dizer que a estagna?áo dos presos dos cereais só terminou, na maior parte dos casos, nos derradeiros anos do século XV, náo basta para se afirmar que a depressáo só entáo cessou, pelo menos nos campos. Os pre?os cerealíferos náo permitem determinar se, por detrás da tendencia depressiva geral, náo houve «pulsa?5es irregulares e frequentes de uma vida económica urnas vezes em progresso, outras em recessáo». Assim parece, se considerarmos, por exemplo, a histó ria do temporal da abadia inglesa de Ramsey (J.-A. Raftis). É necessário também compreender a significado do trend, ou seja, os efeitos da incidéncia económica sobre as condi?5es sociais, dado que o movimento regressivo dos presos náo se traduz necessariamente por um agravamento geral da condifáo dos homens. F. Lütge e M.-M. Postan afirmaram, respectivamente para a Alemanha e para a Inglaterra, que o relativo declínio económico do fim da Idade Média melhorou as condi?6es sociais. Tudo isto explica que os historiadores, sobretudo os ingleses, especialmente favorecidos pela abundancia das fontes cifradas, se tenham sempre debrufado em particular sobre a hierarquia das ex p lo rares camponesas e dos níveis de vida rurais e também sobre o exame dos salários agrícolas, que presentemente sao um pouco melhor conhecidos do que os salários urbanos. O que se segue aplica-se sobretudo á Inglaterra, cujo caso tentaremos comparar na medida do possível com o da Franca (*). «Nos campos ingleses, a superabundancia de máo-de-obra (pro longara) até por volta de 1320 a estabilidade dos salários em di nheiro.» Seguidamente, estes últimos elevaram-se um pouco «aqui e além» (G. Duby). Foi, no entanto, a peste negra que precipitou o seu aumento, tanto na cidade como no campo: o quadro (cf. supra, p. 329) dos salários reais expressos em cereais já o demons trara, embora menos evidentemente do que o que se segue e que diz respeito aos mesmos salários, pagos pelo bispado de Winchester, e desta vez expressos em dinheiro
O Evidentemente que o estudo dos níveis de vida camponeses e o dos salários, ligados um e outro á conjuntura económica e também demográfica, sao os melhores para se avaliar a envergadura, a duragáo e o termo da grande depressáo. Trata-se, contudo, de estudos diffceis, cujas conclusóes divergem de historiador para historiador.
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1300-1319: base 100 1320-1339: 124 1340-1359: 133 1360-1379: 169 1380-1399: 188 Seguidamente, por volta de 1400 ou 1410, os salários pagos pelo bispo estabilizaran! ao nivel do extremo final do século XIV. No decurso do século XV, o índice dos servidos agrícolas náo voltou a variar de forma sensível. Mas em Inglaterra os cereais esbogaram uma nova descida por volta de 1440: o índice do trigo candial desceu de 64, em 1420-1439, para apenas 53, em 1440-1459, e para 47, em 1460-1479 (segundo os mesmos arquivos episcopais de Win chester). A distorgáo entre os presos dos cereais e os salários agrí colas agravou-se ainda mais. E, ainda em Inglaterra, «o leque dos salários voltou a fechar-se»: os salários dos trabalhadores manuais sem qualificagáo reagiram mais acentuadamente do que os dos operários qualificados. «No fim do século XIII, em Winchester, pagava-se tres vezes mais a um pedreiro do que a um ceifeiro á jorna; na primeira metade do século XV, o primeiro recebia apenas mais um tergo do que o segundo» (G. Duby). Com efeito, o valor dos salários da máo-de-obra qualificada diminuiu constantemente em relagao ao das outras (214%, em 1310; 159%, em 1400; 144%, em 1420; apenas 127%, em 1450). A causa de tal facto é evidente: a máo-de-obra reduziu-se continuamente pelo menos a partir da peste negra. Em Franga, onde, devido ao arrendamento, as contas dominiais náo sáo igualmente ricas em notagoes do mesmo género, a situagáo — e isso já foi demonstrado para a regiáo de Toulouse e para a Ile-de-France — e a evolugáo foram praticamente paralelas, o que prova que a guerra náo teve consequéncias profundas sobre os salários. No conjunto, depois da grande peste, os servigos agrícolas duplicaram, mantendo-se seguidamente grosso modo no seu novo patamar até ao cometo do século XVI OEnquanto o aumento dos salários foi, pelo menos na Ile-de-France, praticamente comparável ao dos pregos do vinho, os
0 ) Em 1344, o bispo de Paris pagava o «amanho» anual de um arpento de vinha por 50 s.p. Depois, teria que dispender de 6 a 7 Lb.p., ou seja, uma soma de mais do dobro. Mas os salários pagos aos vindimadores nao ultrapassaram geralmente o dobro. Assim, os vindimadores dos dominios parisienses de Jeanne d’Evreux recebiam diariamente de 6 a 10 d.t., e os seus cesteiros e pisoeiros de 10 a 16 d.t., entre 1330 e 1335. Mas, na segunda metade do século XIV e no cometo do século seguinte, os primeiros recebiam de 8 a 12 d.p. e os segundos 20-24 d.p., ñas vinhas de Saint-Martin-des-Champs ou de Saint-Denis. Estas tarifas manter-se-iam durante todo o século XV.
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«trigos» tiveram uma descida acentuada no cometo ou meados do século XV. Poder-se-á concluir, a partir daqui, que a baixa conjuntura se prolongou até mesmo ao fim da Idade Média? É a este propósito que as opiniSes divergem, tal como diferem as explica^Ses apresentadas quanto ás incidencias sociais do aumento dos salários agrícolas. Para alguns historiadores, como M.-M. Postan, este aumento náo foi apenas um efeito da depressáo demográfica (o alto nivel dos servidos manteve-se, alias, depois do inicio da recupe r a d o demográfica no decorrer do século XV): ele decorre também da prom odo de alguns cottagers sem térra ás categorías superiores de householders, virgaters ou semi-virgaters. Mas R.-H. Hilton e E. Kosminsky responderam que isso náo é exacto: a sociedade inglesa foi «polarizada» pelo desenvolvimento simultáneo, nos dois extremos da escala social, de uma classe de koulaks e de um proletariado proliferante. Os camponeses pobres tornaram-se mais pobres, facto de que resulta a indiscutível dim inuido relativa das pequeñas tenures, e os camponeses ricos langaram a máo a todas as térras disponíveis em consequéncia das dificuldades económicas e do declínio demográfico. Por outro lado, para E. Kosminsky e A.-R. Bridbury, nem todos os ramos da agricultura foram atingidos simultáneamente — o que é indiscutível, já que a produdo cerealífera da Inglaterra ou da Franca foi a principal vítima, por vezes a única — e o século XV teria assistido sobretudo ao cresci mento económico inglés, dado que a expansáo «industrial» e comer cial vinha compensar a depressáo agrária. Resumindo, a grande depressáo teria tido o seu termo nos comeaos do século XV. O mesmo se verificaría na Alemanha, onde a redistribuido dos rendimentos rurais teria beneficiado a economía urbana (F. Lütge). A isto responde M.-M. Postan que os anos de depressáo agrícola acentuada coincidiram frequentemente com anos de crise comercial e que a redistribuido dos rendimentos rurais, que M.-M. Postan náo encara exactamente como R.-H. Hilton ou E. Kosminsky, náo teria beneficiado a economía urbana em Inglaterra, como acon tecerá na Alemanha a partir do cometo do século XV. Além disso, o aumento do nivel dos salários artesanais náo parece ter sido superior ao dos salários pagos aos camponeses. A recuperado da actividade económica, ou seja, uma nova fase A, só se teria veri ficado, ao mesmo tempo nos campos e ñas cidades, por volta de 1470, isto é, apesar de tudo, ainda antes do fim da distordo entre os presos cerealíferos e os restantes, que só se produziria perto dos anos 1500. No que diz respeito ao seu próprio país, os historiadores fran ceses dáo quase obrigatoriamente razáo a M.-M. Postan, o que náo basta, no entanto, para «desempatar» os autores ingleses. Na realidade, em Franca houve as devastares provocadas pela Guerra 342
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dos Cem Anos, cujos efeitos essenciais só foram apagados por volta de 1470-1475: todas as produ?5es, rurais ou urbanas, os tres sectores em simultáneo, orientaram-se entáo claramente no sentido da expansáo. Terá havido em Franga um crescimento dos sectores secundário e sobretudo terciário mais precoce e mais acentuado do que o do sector primário, como aconteceu de facto na Alemanha e talvez em Inglaterra ou noutros países? O debate mantém-se em aberto mas a resposta bem poderia ser afirmativa. A grande depressáo náo teve a mesma dura?áo nem a mesma intensidade em toda a parte. A própria «no?áo de um movimento geral da conjuntura, para todo o mundo ocidental, é (em si) bas tante criticável. É uma ideia abstracta, demasiado simplista, que desconhece decididamente a extrema compartimenta?ao económica» (J. Heers). Verificou-se, sem dúvida, «uma certa solidariedade», particularmente nos meios do grande comércio. Ainda surgem, no entanto, divergencias fundamentáis ñas estruturas económicas e sociais, em consequéncia da interven?áo mais ou menos clara do capital. É preciso em particular opor o Sul da Europa ao Norte. O exame das economías mediterráneas, das regiSes e das cidades de Itália e de Espanha, mostra claramente que a contracgáo demográfica e económica foi aqui nítidamente menos sensível e, de qualquer modo, bastante mais curta do que no Norte. Evidentemente que estes países conheceram a peste e diferentes períodos difíceis, mas preencheram mais ou me nos os vazios por eles provocados; no século XV, lan?aram-se á conquista do mundo de além-mar. Como falar de «crise» em relagáo a cidades e povos que manifestam uma tal vontade de expansao? É esta a questáo levantada por J. Heers, cujo ponto de vista de conjunto pode ser aprovado. No fundo, a história da conjuntura da Baixa Idade Média foi durante demasiado tempo observada do alto da torre de Bruges ou de Arras: Pirenne verificara um nítido declínio dos téxteis e avahara os danos causados pelas fomes e pelas epidemias em Gand, Bruges e noutras cidades flamengas. As suas conclusSes pessimistas foram seguidamente aplicadas ao Sul da Europa. E, no próprio Norte, houve «importantes divergéncias na evolufáo da conjuntura económica» (J. Heers). O modelo bretáo (H. Touchard) e os modelos «borgonheses» (Van der Wee, Van Uytven, Sivéry, Genicot) mostram que, ás fases de depressáo de que sofre a maior parte da Fran?a, correspondem ordinariamente fases de prosperidade, pelo menos relativa, ñas regiSes mais ou menos neutras. Pelo contrário, os períodos de recuperagáo do reino correspondem frequentemente a dificuldades ñas zonas que a guerra náo atingiu gravemente. O exame da economia rural do Hainaut (G. Sivéry) prova que estas fases de inversáo datam por vezes do comefo da Guerra dos Cem Anos. É este o «modelo hennuyer», mais convincente do que os 343
outros modelos dos Países Baixos, onde a precisao das fontes só surge verdaderamente no século XV, como em Cambrésis (H. Neveux). Por outro lado, em quase todo o Norte da Europa, as crises foram frequentemente motivo para um sobressalto, para uma mudanza de rumo nos sectores mais fracos da economía: pode ter sido este o papel da vinha, da criagáo de gado, da «nova tecelagem» (o papel da lá indígena na tecelagem dos antigos Países Baixos foi continuo e aumentou, quando se tornou difícil a chegada da la inglesa — A.-E. Verhulst).
Capítulo 14
AS DIFICULDADES E AS MODIFICALES DO SECTOR PRIMARIO
Depois dos anos 1300, o sector primario de actividade deixou de ser o sector motor da economia, tal como fora anteriormente, cedendo esse papel ao sector terciário, ao mesmo tempo que a actividade mineira passava para o sector secundario.
As dificuldades agrícolas do século X IV (1300-1450)
A transjormagáo das paisagens agrárias A amplitude das desergóes de aldeias foi o elemento que mais chamou a a te n d o dos cronistas e, sobretudo, dos historiadores. Durante muito tempo, este problema foi estudado de forma exclu siva em Inglaterra e na Alemanha, mas agora ele preocupa os historiadores de todo o Ocidente. W. Abel estabeleceu uma carta das regi5es alemas, onde os abandonos atingem pelo menos 40% dos centros habitados, e na qual figuram provincias quase inteiras (Hesse, bacías de Saxe e da Turíngia, colinas da Suábia ou da Francónia, regiáo de Mecklemburgo, de Brandeburgo, de Saxe, da Silésia). Com apenas 20% de perdas, o Würtemberg quase parece ter sido poupado. A estas aldeias desaparecidas seria necessário acrescentar muitas outras, onde a populado diminuiu muito, como por exemplo Mecklemburgo. A decadencia vai táo longe que, ñas costas onde já náo se cuida dos diques, o mar apresenta na Ale manha uma recuperado ofensiva. Em resumo, das 170 000 locali dades rurais existentes na Alemanha por volta de 1300, cerca de 40 000 tinham desaparecido em 1500. A situado foi um pouco menos catastrófica em Inglaterra. No entanto, foram apagados do mapa cerca de 20% dos aglomerados rurais, a maior parte dos 345
quais situados na rica Inglaterra de Leste, que desde há muito se dedicava á produfáo de cereais. Em Itália, existem dois tipos de situa?áo. No Norte e no Centro da península, os abandonos foram bastante raros, embora atinjam cerca de 10% na Toscania. No Sul e ñas ilhas, a situa?ao foi incomparavelmente mais grave, atingindo os 25 % na zona de Roma e os 50% na Sicilia e na Sardenha, propor?áo enorme que voltaremos a encontrar em diversos sectores da Península Ibérica. O que se passa com a Franca, assolada pela Guerra dos Cem Anos? Contrariamente a todas as expectativas, «o fenómeno náo é táo macifo, mas minoritário e variado». As regiSes entáo incluidas no reino de Franca e que parecem ter sofrido maior número de deserfoes de aldeias sáo a costa do Languedoc, a regiáo de Bordéus ou entáo a Ile-de-France. Em parte alguma se encontram percentagens táo elevadas como na Alemanha ou na Itália meridional ou mesmo em Inglaterra. Além disso, pondo de parte a Alta Provenga, que em breve seria integrada no reino, raramente se trata de deser^Ses definitivas, como acontece nos países vizinhos. Apesar de, por volta de 1450, 20% das paróquias do Hurepoix e 30% das da regiáo de Bordéus se encontrarem «desertas», pouco depois elas voltavam a ter paroquianos e curas 0). Verificaram-se d ese rtes de centros agrícolas, por algum tempo ou para sempre, e também, visto que os dois fenómenos estáo ligados, uma restrigao do espago cultivado. Na maior parte dos terrenos onde a continuidade rural foi a regra, a superficie culti vada ou plantada com vinha diminuiu. Tal facto pode ser comprovado através da leitura das actas cada vez mais numerosas sobre o senhorio e a vida rural, por exemplo na Ile-de-France, ñas regiSes de Toulouse e de Bordéus... É certo que o fenómeno é complexo e resulta da intervengo, ela própria desigual, de diversos factores, que náo exclusivamente as guerras, uma vez que provincias por elas poupadas também foram atingidas. A contracfáo demográfica, que foi mais ou menos geral, é frequentemente a causa principal. Náo a única, nem por vezes a mais importante. Em Itália, os aban donos de aldeias come?aram muito antes e prolongaram-se por
(') Estes desaparecimentos terao sido provisórios ou definitivos? Muitos foram definitivos, mas principalmente fora de Franca, quando se tratava de lugarejos ou de pequeñas aldeias que tinham, em suma, um carácter frequen temente «periódico», nascendo de um período de expansao demográfica e agrícola para com ele desaparecerem e podendo voltar a renascer com um outro. Este habitat «por eclipses» implantara-se muitas vezes em térras marginais, nos séculos XII e XIII, e a ruina daquelas implicava a sua própria ruina: os «terrenos repulsivos» e, portanto, os centros habitados que os rodeiam, resistem muito menos ás provagoes do que os «terrenos atractivos» e as suas grandes aldeias (R. Dion).
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muito depois dessa contracfáo. Deste modo, alguns historiadores da economia defendem que se deveriam colocar as transformafSes do sector primário no primeiro lugar das causas. A associad0 agro-pastoral teria enfraquecido em proveito da cria d o de gado ou, noutros casos, das culturas especializadas. £ , finalmente, as lost villages surgem algumas vezes como indicio de progresso eco nómico. Abandonemos, no entanto, o campo das explicares, ainda pouco seguras. Os factos mantém-se. Ainda que se observe que foram as térras más, ou seja, as últimas a serem arroteadas nos séculos anteriores, que foram abandonadas, nao deixa de ser verdade que esta fase de Entsiedlung nao pode ser minimizada quanto á sua amplitude. «A invasáo da vegetado selvagem dos séculos XIV e XV constituí um episodio de importancia igual á da aventura dos arroteamentos, na história da civilizado europeia» (G. Duby). Inevitavelmente, as estruturas tradicionais dos campos suportaram o contragolpe deste estado de coisas, tanto nos senhorios como ñas explora?5es ou no comércio.
A queda do senhorio: amplitude e limites É evidente que as dificuldades económicas (o marasmo dos presos dos cereais) e demográficas (a falta de máo-de-obra e a subida dos salários), para nao falar das dificuldades políticas ou militares (anarquía, pirataria, devasta?oes provocadas pelos sol dados...), representaran! golpes para o sistema senhorial e para os diversos tipos de explorares, tanto senhoriais como camponesas. Mas as opinióes sobre o significado e a amplitude destes golpes encontram-se divididas. Assim, para os historiadores marxistas, como E. Kosminsky, as dificuldades da economia rural, que os nume rosos documentos da época esclarecem de uma maneira por vezes mais prolixa do que satisfatória, náo poderiam ser explicadas através de uma inversáo da conjuntura, e, por tanto, através dos «ciclos de longa durado», nem através das convulsoes e das guerras. Para eles, náo teriam sequer existido dificuldades gerais da economia rural e do sector primário. Ter-se-ia simplesmente assistido a um afundar da «feudalidade» — aqui, o termo, desactualizado e inexacto, significa «economia senhorial» — e a uma transferéncia das forfas produtivas dos senhores para o campesinato. Daqui decorre, por conseguinte, q grande movimento de recupe r a d o a partir dos anos 1450. Quanto a esta tese existem duas objecgdes principáis. A «falha» da economia senho rial náo foi geral e, nos locáis onde se verificou, teve na maior parte dos casos carácter provisório. 347
A s dificuldades senhoriais O declínio senhorial e de uma parte dos camponeses, este último talvez menos nítido, pode medir-se através da queda dos rendi mentos provenientes das granjas, dos direitos senhoriais sobre as transacfoes e das censives. A diminuifáo dos rendimentos e do valor da térra parece, com efeito, bastante forte em Franca, pelo menos ñas provincias que, até agora, foram objecto de estudos de conjunto e algumas das quais possuem suficientes documentos pré-estatísticos. É o caso da Normandia, no Neuburgo (A. Plaisse) e na sua parte oriental, ou o da Ile-de-France, no Hainaut (em parte). Em que data deveremos colocar-nos para avahar a queda da renda senhorial? É indispensável escolher náo uma mas várias, visto que o declínio náo foi continuo até cerca de 1450. As fases de infortunios e de devastafóes alternaran) com fases de «reconstrufáo por eclipses» (R. Boutruche), em todas as regioes. Quando se verificava uma trégua, os homens lanfavam-se corajosamente ao trabalho para tentar apagar pelo menos uma parte dos estragos. Contudo, estas fases alternadas tém cronologías diferentes consoante os locáis, pelo que as suas datas variam de uma provincia para outra. Assim, na regiáo de Bordéus, houve duas tentativas de restaurafáo, a primeira de 1350 a 1374 e a segunda de 1379 a 1405 aproximadamente, enquanto, tanto na regiáo de Toulouse como na Ile-de-France, se verificou apenas uma, embora mais longa (1392-1410, no primeiro caso, cerca de 1365-cerca de 1410, no segundo). Estas tentativas constituem um testemunho da tenacidade dos homens da época, tanto dos senhores como dos campo neses, visto que era preciso o acordo de uns e outros. E chegou mesmo a assistir-se a tentativas de restaurado agrária no auge dos piores anos. Vejamos o caso da regiáo parisiense e assinalemos as etapas da evolufáo dos rendimentos fundiários, em paralelo com os do estado material da provincia. Recorde-se que estamos melhor informados sobre as granjas do que sobre as exploragdes camponesas. O capital e os rendimentos senhoriais, ponto de mira dos soldados aventureiros, sofreram mais do que os bens camponeses. Dispomos de trés categorías de textos: as declarafoes e os inventários, as con tas senhoriais e os contratos de foro e de arrendamento. Vejamos um exemplo «médio» do primeiro tipo: em 1384 — altura em que, no entanto, náo se verificavam incursSes devastadoras desde há mais de quinze anos—, a abadia de Lys, situada nos arredores de Melun, apresentou a sua declarafáo ao rei. Em redor dos edificios monásticos, 300 arpentos de bosque em 460 estavam «quemados e gastos», 90 arpentos de térra em 190 estavam em «espinhos», 22 ar pentos de vinha em 32 «em baldio e em espinhos». Das 20 Lb. de foro em Melun, perto de metade perdeu-se «para 348
as casas e térras que ficaram desertas pelas guerras». Mais de um terfo das droitures de Dammarie-les-Lys já náo eram cobráveis porque uma parte do terreno «ficara em deserto, tanto ñas casas como ñas térras e vinhas». E assim por diante. Vejamos agora as receitas do mosteiro de Saint-Denis, em 1342-1375 (portanto antes do aparecimento da guerra na Ile-de-France) e em 1374-1375 (quando a guerra parece ter acabado, ao fim de dez anos). Pode ver-se até que ponto sáo severas as perdas em rendimentos: nos casos menos desfavoráveis, estes ficaram reduzidos a metade, mas, no con junto, a queda aproxima-se dos dois terfos, tanto relati vamente ás receitas em géneros como ás receitas em numerário, tanto relativamente ás provenientes das censives, como ás provenientes das granjas, peagens, terrádigo... Uma das consequéncias que mais chamam a aten?áo é que a abadía quase já náo pode vender cereais: 133 moios de «trigo» de Invernó vendidos em 1342-1343, 4 moios em 1374-1375! A terceira categoría de documentos, os contratos de arrendamento, denotam uma queda de metade ou de dois terfos no pre?o do aluguer. Trata-se, entretanto, da soma devida pelo rendeiro. E, conforme provam as contas dominiais, muitos deles náo conseguiram pagar integralmente: em 1374-1375, apenas um pagou por inteiro aos monges a soma em dinheiro e a quantidade de cereais combinados! Os contratos de foro denotam duas coisas ao mesmo tempo: em primeiro lugar, que muitos camponeses tinham morrido ou «saldo» (trata-se de um abandono de facto, ou de direito ao mesmo tempo, de uma tenure, visto que havia entáo bens vagos, em grande quantidade; em segundo lugar, que houve alguns candidatos a tomar em foro algumas dessas tenures em mau estado. Examinando estes contratos, pode, portanto, seguir-se os progressos das tentativas de restaura dlo agrária. Uma vez que o senhor podia retomar uma tenure abandonada devido á morte ou á «suida» do seu último foreiro — mas apenas após um certo prazo e segundo o processo habitual dos «pregóes»—, os grandes proprietários, sempre que podiam, voltavam a atribuir em foro os «bens em ruinas e vagos». Mas era preciso encontrar candidatos, o que era bem difícil num período de depres sáo demográfica. O que mais chama a aten?áo é que, embora empreendida com um inegável espirito de persistencia, esta recupe r a d o nem por isso foi muito vigorosa. Na Ile-de-France, poucos «casebres» (no novo sentido do termo — o nosso) e mais vinhas do que térras puderam voltar a ser atribuidas em foro, na maior parte dos casos a foreiros locáis, desejosos de alargar as suas explora?5es. Apesar de ajudada, na regiáo de Bordéus, por uma certa imigracáo, a restaurado foi limitada. A reconstrudo foi lenta e muito incompleta, incidindo, ñas duas provincias, muito mais sobre as vinhas do que sobre os campos. 349
Estas tentativas foram eminentemente conservadoras. Os senhores náo abdicaram em nada e pretenderam tirar dos imóveis, reatribuídos em foro, as rendas (em valor e em composifáo) de antes da guerra. Nao lhes ocorreu a ideia de unificar os encargos das habitafóes, os dos campos ou os das vinhas novamente concedidas. Mantinham a esperanza — ilusória — de encontrar interessados em tudo o que ainda estava ao abandono, e de — de forma nao menos ilu sória— restabelecer as suas receitas, tal como elas eram, em valor e em composifáo, antes dos anos 1340 ou 1350. Na realidade, a despeito da existéncia de uma oferta muito superior á procura, os interessados ficaram bem longe de obter sempre bens vagos a taxas mais baixas do que anteriormente. Os «encargos antigos» continuavam a ser inferiores ao valor locativo, ou pelo menos nao o ultrapassavam, a despeito da queda do valor venal dos imóveis. Os compromissos assumidos pelos novos foreiros teráo sido mantidos? Mais ainda do que no passado, os camponeses parecem ter acertado irre gularmente o pagamento de foros, rendas, droitures..., o que representou uma dificuldade suplementar para as finanzas senhoriais. Mas, como se sabe, os senhores retiravam a maior parte dos seus recursos das granjas. Na Ile-de-France, o arrendamento continuou a ser a regra durante a restaurado limitada do fim do século XIV e a composifao dos bens e direitos alugados a curto prazo náo variou sensivelmente. Portanto, a evolusáo dos arrendamentos con tinua a ser uma excelente medida da actividade rural. Como pri meira observasáo, vemos que apenas dois tersos das granjas de Saint-Denis sáo alugadas a preso mais elevado em 1410 do que em 1360-1370, o que significa que a produfáo náo foi recuperada em toda a parte, nem mesmo parcialmente. E, se compararmos o mon tante dos arrendamentos de antes de 1345 com o do comeso do século XV, apercebemo-nos de uma descontinuidade muito acen tuada. Vejamos um único exemplo, o de Tremblay. Nos anos 1335-1343, o aluguer em dinheiro era de 500 Lb. p. Em 1368-1369, nao ultrapassava as 205 Lb. p., para voltar a su bir para apenas 216 Lb. p., por volta de 1375, e para 270 Lb. p., por volta de 1400. Por outro lado, antes da guerra, o rendeiro entregava quarenta moios de trigo de Invernó e outro tanto de trigo de «Marso». Relativamente ao «trigo», a quantidade era apenas de 26 moios, em 1368-1372 (e de 33 moios por volta de 1400), e relativamente á aveia descera para 13 moios, em 1368-1372 (só voltando a subir para 17 moios por volta de 1400). Uma subida parcial inicial, seguida de sufocasáo e estabilidade dentro da mediocridade, foi também a sorte dos cerrados de vinha em explorasáo directa. A partir dos anos 1375, a colheita de vinho do comendador de Saint-Denis estacionou entre os 700 e os 1000 350
moios, enquanto outrora oscilava entre os 1000 e os 3000 moios. Sem dúvida devido á falta de máo-de-obra, as superficies plantadas de vides foram reduzidas. Tudo isto explica que os rendimentos globais dos grandes senhores de Ile-de-France fossem, por volta de 1405-1410, muito inferiores aqueles de que dispunham cerca de 1340, expressos numa moeda que, entretanto, reduzira o seu valor. Menos de 15 000 Lb. p. (mais 183 moios de «trigo», 87 de aveia e 707 de vinho) relativamente a Saint-Denis, em 1403-1404, contra, por volta de 1340, trinta milhares de Lb. p. (mais 280 moios de «trigo», outro tanto de aveia e uma média de 2000 moios de vinho). Em re la d o ao período anterior á guerra, e a despeito de uma recuperado parcial entretanto ocorrida, a perda continua a ser, portanto, de pelo menos 50% , no cometo do século XV. Em resumo, os resultados foram mediocres. Os contemporáneos náo se tinham poupado a esforfos: náo houve «demissáo» nem da parte dos senhores nem da dos camponeses. O poder político exerceu um peso excessivo, através da fiscalidade, absorvendo uma parte dos capitais disponíveis, ajudando a reerguer castelos e muralhas urbanas, mas nada fazendo pela restaurado dos campos ou das cidades, tanto no caso do rei de Franga, como no do Plantageneta na Guyenne, como, noutros locáis, de príncipes dotados. Por seu turno, a Igreja partilhou os seus recursos disponíveis entre a restaurado dos edificios do culto e o renascimento do seu tempo ral. Isto era normal, tanto da parte do poder político como da Igreja, mas significou que apenas uma parte dos capitais disponíveis em Franca pode ser investido ñas explorares agrícolas, incluindo ñas dos camponeses, que o senhor devia ajudar «se náo os quisesse ver emigrar e abandonar por largo tempo a sua térra, ou simplesmente se quería estar em conformidade com a imagem exemplar do senhor e continuar a desempenhar entre os camponeses o papel tu telar que o sentimento colectivo esperava que ele desempenhasse» (G. Duby). Ora, em Franca, estes resultados mediocres foram reduzidos a nada no decorrer do período sombrío da Guerra dos Cem Anos, que comefou pouco depois de 1410 e só se extinguiu depois de 1450. Como no século anterior, os senhores deram provas de uma resistencia notável para manter ou voltar a por em funcionamento as suas explorafóes. Também os seus rendeiros, clérigos, cura local e mais frequentemente camponeses ou burgueses, náo tiveram falta de coragem. No entanto, no caso das granjas arrendadas, os aban donos no decorrer do contrato náo foram raros. Entáo, o senhor regressava á explorado directa, enquanto náo se apresentassem no vos interessados. 351
O empobrecimento do mundo senhorial foi acompanhado por um empobrecimento do mundo camponés. Assim o testemunha o facto de o direito de «pastagem» na floresta de Neuburgo, que ren día 23 Lb. em 1397-1398 (eram entáo para lá levados mais de 2000 porcos), ter descido para 5 L b 15 s. em 1437-1438 e para 3Lb. 11 s. em 1444-1445 (os camponeses levavam na altura apenas 430 porcos), ou seja, nos últimos anos da ocupagáo inglesa da Normandia. As contas dominiais de Neuburgo dáo uma ideia exacta da deteriorafáo das tenures. Durante a domina?áo inglesa, houve uma quebra geral dos foros e das rendas em géneros. Iniciada em 1405, a descida acelerou-se depois de 1428, atingindo o ponto mais baixo em 1444, para só voltar a subir depois de 1450 e da partida dos Ingleses, facto que consti tuí uma prova da miséria crescente no decorrer deste terco do século, ou mesmo deste meio século. Os denários «náo recebidos» dos foreiros hereditários, ou, por outras palavras, os direitos senhoriais com os quais o senhor náo podia con tinuar a contar, passaram de 50 Lb., em 1398, para 173 Lb., em 1428, depois para 356 Lb., em 1436, e, finalmente, para 517 Lb., em 1444. Enquanto, em 1405, as remessas (aos fo reiros empobrecidos, mas ainda no local) e os «náo valores» (os das tenures abandonadas) representavam apenas 3 % do montante inicial, nos últimos anos da adm inistrado in glesa eles tinham ultrapassado os 66% . Em 1444-1445, tres prebostados do baronato de Neuburgo, entre os quais o próprio Neuburgo, náo rendiam um único denário ao senhor. Nesta regiáo, a única solu?áo para tentar obter um rendimento das tenures incultas pareceu ser fazer contratos a prazo por seis ou nove anos ou um arrendamento anual. No entanto, apenas uma parte das térras abandonadas encontraram locatários. De qualquer modo, manifestou-se a de terio rad o do prego das térras na Alta Normandia: no prebostado de La Neuville-du-Bosc, que, no entanto, fora o que menos sofrera, o prego médio do acre de térra desceu de 15 Lb., cerca de 1400, para apenas 8 Lb., em 1445-1446, o que representa uma quebra de cerca de 50% . A Ile-de-France dos anos 1415-1441 oferece o mesmo quadro. As fontes ilustram a fraca capacidade financeira ou o reduzido valor dos foreiros que náo abandonaram as térras. Com grande dificuldade em encontrar novos ocupantes em número suficiente, os senhores foram forjados frequen temente a permitir «arrendamentos» periódicos ou «para sempre». A redufáo dos rendimentos senhoriais foi tanto mais forte na medida em que muitos foreiros que se mantinham ñas térras se afirmavam insolventes — o que por vezes era verdade — e náo pagavam já nada. As novas atribuifóes em foro, menos raras do que se poderia pensar em rela?áo á rudeza dos tempos, foram evidentemente conclui das em condifóes ainda mais favoráveis do que antes de 1410: desaparecimento frequente das rendas em géneros e da talha, abatimentos sensíveis dos foros e rendas. E como 352
compreenderam que os encargos mesmo médios se poderiam tom ar insuportáveis em caso de situado grave e, por tanto, levar, mais cedo ou mais tarde, os rendeiros a par tir, os senhores da térra mandaram inserir nos novos con tratos duas cláusulas, que teriam uma grande difusáo: a proibifáo de o rendeiro criar novos encargos para o imóvel (isto é, a proibifáo de vender uma renda constituida ou de contratar mais tarde em troca de uma renda suplementar) e a obriga?ao correlativa de investir uma soma determinada na rep arad o ou reconstruyo dos edificios, de arrotear num prazo reduzido e de manter a «heranfa» em bom estado. Na regiáo de Bordéus, a situ ad o era idéntica, pelo menos em parte. Apesar da ausencia de fontes cifradas, apercebemo-nos de que, também aqui, a atitude dos senhores foi dominada pela preo cu p ad o de «defesa dos direitos tradicionais», aliada á necessidade de impedir a propagado dos abandonos. Mas o senhorio bórdales mostrou-se mais duro do que muitos dos seus contemporáneos (R. Boutruche). A servidáo que aqui subsistía evoluiu no sentido «real» e a residencia foi imposta mesmo aos foreiros livres. E apesar de muitos senhores terem tido de consentir redufóes de rendas, estes casos foram menos frequentes do que ñas regides do Norte. Além disso, os senhores impuseram muitas vezes aos novos rendeiros a m anutendo de encargos antigos. Aceitaram, no entanto, o resgate de servidos na reserva, enquanto grandes senhores, como o arcebispado de Bordéus, recorriam entáo ao arrendamento para a poderem explorar, assim como aos direitos senhoriais e ás dízimas. Segundo parece, foi sob a pressáo das circunstancias adversas que o arrendamento se difundiu no Sudoeste da Franca, que recuperou em parte o seu atraso em re la d o ás regióes setentrionais, mais ou menos habituadas aos contratos a curto prazo para a valo riz a d o das grandes reservas, desde antes do desencadear da Guerra dos Cem Anos. Em Franfa, o «esgotamento dos recursos senhoriais foi, portanto, em grande parte fruto da guerra» (G. Duby). Náo exclusivamente, no entanto: apesar de as suas «observafóes mais directas incidirem sobre uma regiáo mais fustigada do que as outras pelas perturba?5es militares» e de terem «muitas vezes tendencia para exagerar essa fraqueza», os historiadores franceses tém pelo menos o mérito de chamar a a te n d ° para ela. Embora menos acentuada, essa fraqueza foi bastante sensível em muitas regióes que as guerras pouparam ou atingiram apenas de forma indirecta. Quer isto dizer que, em Franca e fora déla, é preciso atribuir um papel importante, na re d u d o dos rendimentos, aos efeitos de retorno da conjuntura (em particular relativamente ás reservas senhoriais) e, talvez maior ainda, ao declínio demográfico (de onde os abandonos das térras e a descida do seu valor). 353
Por exemplo em Inglaterra, as contas das mansoes denotam uma descida dos rendimentos totais. Assim, na herdade de Fomcett, o acre de térra que era concedido em troca de um foro médio de mais de 10 d., ainda em 1376-1378, podia ser obtido apenas por 9 ou 8 d. aproximadamente, entre 1400 e 1440, por menos de 8 d. em 1441-1450 e por um pouco menos de 6d. em 1451-1460. Isto representa uma baixa do valor nominal de mais de um terco, em menos de um século. Dado que a moeda de conta se degradara seriamente no decorrer deste período, a red u d o era ainda mais acentuada. O mesmo acontece na Alemanha. Em 1437, o capítulo principal de Schelswig pretendeu comparar os seus rendimentos fundiários com os de 1352. Esta com parado é eloquente (ver quadro da pá gina seguinte). A descida — seria mais exacto dizer a queda — foi, portanto, de dois tercos, em menos de um século (C.-A. Christensen). E apesar de os cánones incriminarem principalmente guerras e inundares, de facto, as causas principáis residiam no despovoamento e na depressáo agrícola. Este caso náo constituí excepcáo ñas regioes alemas. Assim, entre 1361 e 1459, os rendimentos fundiários da Ordem Teutónica tinham passado de 23 370 florins para 19 649. De 1394 a 1421, as colectas dos senhores de Holloben, no Saxe, tinham descido de 30 medidas de centeio para 5, de 54 medidas de aveia para 9 e de 33 moedas para 5 (W. Abel). Os arrendamentos, por exemplo no sector de Góttingen, tinham seguido uma curva des cendente. Em que medida sobreviveram as fortunas senhoriais aos efeitos da tempestade? Por outras palavras, terá a dim inuido dos seus ren dimentos conduzido os senhores a vender o todo ou parte dos seus dominios para viver, e, portanto, a consumir ou mesmo a liquidar o capital imobiliário que já náo rendía o suficiente? 1.®— O destino dos organismos senhoriais dependeu largamente da personalidade e das qualidades do chefe. O facto de o senhor, clérigo ou laico, ser um homem poderoso dentro da Igreja ou do Estado, ou simultáneamente no interior de ambas, o facto de, além disso, ser um bom administrador da fortuna da comunidade ou da familia, teve grande influencia, a despeito de todas as catástrofes. 2.9 — Os senhorios das igrejas e os das grandes familias suportaram melhor do que os outros o peso dos reveses, como a redu?áo da produtividade. Raros foram os temporais eclesiásticos que reduziram o número de monges, de bispos ou de cónegos: «Os processos de gestáo menos desordenados, os arquivos melhor conservados, uma vontade mais firme de preservar a integridade do patrimonio e de, a todo o custo, voltar ao estado antigo, fortificavam os senhorios da Igreja contra a desorganizado» (G. Duby). Apenas as instituicdes de pequeña amplitude se viram na obrigacáo de liquidar uma 354
Capítulo principal de Estrasburgo: recursos em géneros e rendas em espécies (1 tonelada — cerca de 139 litros)
Trigo duro (Em to neladas)
1352
Trigo duro (Em to neladas)
1437
2116 medidas de cevada
3175
591 medidas de cevada
887
1431 alqueires de centeio
1288
490 alqueires de cen teio ..........................
432
778 marcos de Lubeque de renda, legal ...........
3114
271 marcos de Lubeque de renda ...................
1086
16 alqueires de aveia ...
14 alqueires de aveia
1 carneiro ......................
0 cameiros ...................
57 frangos ......................
32
21 frangos ................... 1 tonelada e meia de manteiga .................
1 tonelada e meia de manteiga ..................... Total avaliado em tone ladas de trigo duro ...
16
7609
Total avaliado em to neladas de trigo duro
2421
parte do temporal para viver. As grandes fortunas eclesiásticas nao sofreram uma verdadeira redu?áo. As linhagens da alta aristocracia laica também conseguiram manter intacto o patrimonio ancestral. Em Inglaterra (G.-A. Holmes), as grandes familias reduziram-se em número, concentrando deste modo as suas fortunas e o seu poder. Pelo contrário, estes poderosos patrimónios aumentaram continua mente: os nobres de alta estirpe obtiveram, nos séculos XIV e XV, enormes somas, através dos seus parentescos com os reís ou através do seu poder político, e empregaram esses capitais mobiliários em térras. No continente, cometa a notar-se que o «declínio da nobreza» e a «ascensáo da burguesía» náo se verificam. Assim, na Ile-de-France, as grandes fortunas laicas suportaram bem o choque dos reveses da época, porque os seus detentores viviam sobretudo dos altos oficios reais, civis ou militares, e náo esperavam ansiosa mente a chegada do dinheiro proveniente dos seus senhorios. Nestas condifóes, por que teriam liquidado o património? No entanto, o movimento de concentrado, bem nítido em Inglaterra, náo parece ter sido táo poderoso do outro lado da Mancha. 355
3.° — Seria sobretudo «ao nivel médio das fortunas senhoriais que os indicios mais aparentes de dificuldades» se teriam manifestado (’)No entanto, é preciso analisar cuidadosamente as variantes desta hipótese. É verdade que, ao contrário daquele que detinha quinze ou vinte dominios, um senhor que apenas possuía tres ou quatro podia já náo extrair deles com que sustentar convenientemente a familia. Nestas condifóes, por que náo teria ele liquidado uma parte do seu capital, que se tornara insuficientemente produtivo, e náo passara a viver desse capital, tomado mobiliário? É certo que exis4em provas numerosas da realidade deste raciocinio nos documentos da época, mas a resistencia destes patrimonios médios náo pode ser subestimada, embora tenha variado de uma regiáo para a outra. Com efeito, ñas provincias onde ficava a sede de um poder político, real ou principesco, os senhores de estirpe média tinham bastantes ocasióes de entrar para o exército ou para a adm inistrado. A partir do momento em que o nobre passa a receber salário (acrescido de vantagens de toda a espécie e mais ou menos lícitas...), os rendi mentos dos senhorios tornam-se apenas um complemento. O resul tado é claro: excepto em Itália (cf. infra, p. 370), náo se verifica ainda uma verdadeira invasáo da fortuna burguesa no campo. Resta o caso dos «nobres mais humildes, mais ligados á vida camponesa». Sem grande esperanza de alugarem os seus servidos, excepto a espada em tempo de guerra, náo tinham outra solugáo que náo fosse «agarrar-se» aos seus magros bens senhoriais. Mantendo-se neles, puderam provavelmente gerir os seus bens em condi?oes menos desagradáveis do que os grandes senhores: durante as suas ausencias, os parentes tomavam as coisas a seu cargo. Frequentemente, acentua-se a alteragáo de mentalidade que se teria revelado no mundo senhorial. Sem acreditarmos na transfor m a d o dos senhores em «arrendadores do solo» (Marc Bloch), devemos ser sensíveis ás novas condigoes que, em muitos casos, afastaram o senhor dos seus foreiros e das suas térras. «Um grande número de nobres, de religiosos, de dignitários da Igreja espa?aram, nesta época, as suas estadas ñas residencias rurais» (G. Duby). Por qué? Mesmo quando as contingencias da política ou da guerra náo fizeram com que os nobres perdessem os seus bens — por algum tempo ou para sempre — pelo menos quase todos os nobres «foram forjados a afastamentos prolongados». Titulares de cargos militares ou civis em muito mais casos do que anteriormente, os nobres habitavam agora mais fácilmente do que antes na cidade. No caso dos
O É a opiniáo de G. Duby e de L. Genicot. N o caso da Inglaterra, M.-M. Postan pensa, pelo contrário, que as maiores fortunas fundiárias foram mais duramente atingidas.
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clérigos, os progressos da centralizado, a todos os níveis, da Igreja impediram-nos de dedicar tantos cuidados como antes aos seus senhorios. «A gestao (da reserva), as relagSes entre senhores e cam poneses, a lealdade dos foreiros (rudemente posta á prova pelas guerras e pelas insurreigóes), a fidelidade dos administradores (e dos rendeiros) podem ter sofrido com estas tongas ausencias e com a chegada de novos senhores desconhecidos (por exemplo, na Normandia ocupada), muitas vezes ávidos e que nenhuma afeigáo hereditária ligava á térra e aos homens» (G. Duby). Terá o afastamento, o éxodo dos senhores para os recintos urbanos, transformado as condigóes psicológicas e determinado «profundas modificagSes nos processos de explorado e na circulado dos produtos da térra»? A resposta está longe de ser completamente afirmativa. As difi culdades de todo o género (incluindo o peso acrescido do fisco real, principesco ou pontifical) tiveram carácter passageiro e nem sempre se reflectiram verdaderamente sobre a mentalidade senhorial. De pois de 1300 ou 1350, tal como anteriormente, «as tradigóes, as con veniencias, o seu gosto mais profundo convidaram... os... proprietários fundiários... a ver amadurecer as suas searas e aumentar os seus rebanhos, a beber o vinho das suas vinhas» (G. Duby). Náo houve um afastamento grave da térra, que se possa considerar generalizado. As «resisténcias psicológicas» foram «um poderoso factor de estabilidade, um obstáculo importante, que se opós ás soli c ita re s da conjuntura». É segundo esta óptica prudente que convém langar os olhos sobre as reservas senhoriais, a sua consisténcia e o seu modo de valorizado. 1.* — É certo que, depois de 1300, alguns senhores «procederam mais vivamente ao loteamento das franjas periféricas» das suas reservas e dos terrenos recentemente conquistados ás térras «repul sivas». Numa primeira fase, antes da peste negra, talvez se tenha tratado de responder á pressao demográfica e á procura dos cam poneses mais mal providos de térras. Mas depois dos anos 1300, fo ram sobretudo as considerares económicas (baixo prego dos cereais, aumento dos salários agrícolas) que levaram aos loteamentos — limi tados— de um número bastante grande de reservas. Em Inglaterra, essa «retracdo dos campos» senhoriais parece aliás um movimento regular, iniciado no tempo da prosperidade do século X III e prosseguido sem muitos incidentes. Esse «movimento de amplitude muito longa» detecta-se bastante bem em oito herdades do bispo de Winchester, onde a superficie dos campos desceu 37% na se gunda metade do século XIII, 24% durante a primeira metade do século seguinte e 20% na segunda. Pelo menos, notou-se uma certa acelerado do processo entre 1320 e 1340, por exemplo, ñas herda des inglesas da abadia normanda do Bec ou ñas possessóes de Ely. Este «primeiro e violento impulso» (G. Duby) deveu-se evidente mente á distordo do prego dos cereais e outros, e ainda ao aumento 357
dos salários, devido á redufáo do proletariado rural em Inglaterra. Mas, depois de 1340, a superficie das reservas eclesiásticas de Ingla terra estabilizou frequentemente. Em Franga, as coisas náo se passaram exactamente do mesmo modo. Assim, na regiáo parisiense, onde o alto prego do vinho contrabalangou em grande medida a fraqueza dos presos cerealíferos depois de 1316, náo se verificaram, salvo excepgóes, loteamentos de alguns campos da reserva, entre 1320 e 1340. Pelo contrário, a partir de 1346 e até meados do século XV, o capítulo principal de Notre-Dame e as grandes abadías concederam em foro campos divididos em diversos lotes. Isto verificou-se, aliás, principalmente na planicie de Franga, onde náo se cultivava a vinha. Nos sectores vitícolas, as pequeñas parcelas loteadas tinham de ser, segundo os termos dos contratos, convertidas em vinha. Aqui, a ligeira redugáo das reservas foi em grande parte uma consequéncia da Guerra dos Cem Anos. E esta fragmentagáo prosseguiu no pe ríodo de restauragáo parcial dos campos (por volta de 1365-1370, por volta de 1410). Embora orgulhosos dos seus belos cerrados de vinha explorados directamente, os monges de Saint-Denis, por exem plo em Argenteuil, destacaram algumas pequeñas parcelas que arrendaram perpetuamente. Tratou-se, no entanto, de um movimento limitado, na maior parte dos casos, e, por volta de 1450 tal como por volta de 1300, náo faltavam no Ocidente as grandes reservas senhoriais. Em Inglaterra, em Cuxham, num terreno de cerca de 380 acres ( = cerca de 150 hectares), a reserva era de 250 acres ( = 100 ha), por volta de 1400 e ainda de perto de 200 por volta de 1450. O mesmo acontecía no continente. A Ile-de-France possuía um número elevado de gran jas que se estendiam por 100, 200 e mesmo 300 arpentos. Raras foram as «cortes» inteiramente loteadas. Apenas as encontramos em alguns sectores, tal como o Brandeburgo da segunda metade do século XIV. 2." — A partir de meados do século XIV, o faire-valoir directo recuou mais depressa do que até entáo, em algumas regióes, e o movimento acelerou-se ainda por volta de 1380. Isto aconteceu por vezes em favor do arrendamento vitalicio, como ñas térras da aba día de Ramsey. Na maior parte dos casos, verificou-se em proveito do fermage, que progrediu sobretudo ñas regiSes setentrionais, e do métayage, que, sob o nome de facherie ou de mégerie, se instalou mais firmemente da Aquitánia e da Solonha á Provenga. É certo que o faire-valoir directo e o sistema dos administradores náo desapareceram de modo algum e mantiveram a preferencia dos senhores de pequeña ou média envergadura em quase todo o Oci dente. Mas em Inglaterra, a partir da segunda metade do século XIV, os arrendamentos multiplicaram-se em todas as regioes 358
onde os lordes possuíam sólidas reservas. Por vezes, o lorde alugava um bloco sem habitado, outras — como no continente — partilhava-o entre diversos locatários. A amplitude deste movimento é in discutível. Entre 1380 e 1420, 40 dominios do arcebispado de Canterbury foram alugados com os seus moinhos, os seus prados, os seus «parks» e os seus brejos. Resta conhecer as causas dos novos progressos do arrendamento. Escreveu-se que a adopfáo do contrato de arrendamento «corres ponde a uma mentalidade que recua perante as preocupagoes e os riscos da gestáo directa e do arrendamento a meias temporário e que prefere um rendimento fixo a um rendimento contingente, ainda que este seja elevado» (R. Boutruche). Os senhores náo recuaram de modo algum perante as preocupagSes, bem pesadas, que lhes provocava em Franca a devastado das suas térras, e náo hesitaram em regressar ao sistema de adm inistrado, quando náo era possível encontrar um rendeiro, ou quando este náo cumpria. É preciso, portanto, evitar encarar o arrendamento como uma solugáo desesperada, um abandono sem grande controlo nem opgáo de do minios em bom e em mau estado. No temporal da igreja de Canterbury, o arrendamento fazia-se com conhecimento de causa e cada aluguer era fruto de longas transacgoes, inclusive quanto á sua du rad o , que variava entre cinco e doze anos. Verifica-se, por outro lado, um acordo reflectido entre o arcebispo e os rendeiros para melhorar o equipamento. As causas invocadas para explicar o progresso do arrendamento no século XIII, e que parecem manter o seu valor para os séculos XIV e XV (pp. 230-231), é preciso acrescentar outras. Em consequéncia do alijamento da densidade camponesa, o grupo de foreiros remediados teve possibilidade de aumentar as suas exploragóes. Estes homens gozavam entáo de mais possibilidades financeiras e podiam, mais fácilmente do que outrora, colocar-se á frente de uma grande explorado senhorial. Por outro lado, o alijamento da populado global dos campos rarificou a máo-de-obra assalariada e fez portanto subir, conforme sabemos, os salários. «É significativo o facto de as regides da Europa onde a explorado directa continuava a ser mais vigorosa, a Alemanha Oriental, algumas regiSes germánicas do Sudoeste, a Itália do Norte, serem precisamente aquelas onde as autoridades principescas ou urbanas tinham tomado medidas bastante enérgicas para manter as condigóes de emprego favoráveis aos senhores.» Conclui-se, portanto, que a difusáo do arrendamento e também do sistema de meias, náo se pode incluir entre as causas ou as consequéncias do enfraquecimento do senhorio rural, enfraquecimento cujo carácter geralmente limitado, e mesmo provisório, é preciso frisar. 359
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A prosperidade dos senhorios meridionais e alemáes de leste A Alemanha Oriental, principal país novo do Ocidente, sofreu profundas perturbafSes ligadas á queda demográfica, da qual os senhores se aproveitaram largamente para criar vastas exploragóes nos terrenos abandonados pelos camponeses. É este o caso do Brandeburgo. Ainda por volta de 1375, a térra concentrada ñas máos dos fidalgos rurais era menos extensa do que aquela de que dispunham os camponeses. Estes náo eram obrigados a corveias e as reservas eram trabalhadas por operários agrícolas livres. No decorrer do último quartel do século XIV, na sequencia do declínio demo gráfico e da extensáo acelerada das térras abandonadas, os senhores viram a possibilidade de anexar ás suas reservas os campos abando nados. Mas essa possibilidade era contrariada pela ra re fa c to da máo-de-obra assalariada. Felizmente para os fidalgos rurais, o poder político encontrava-se em dissolu^ao. Como acontecerá no Oeste, nos tempos da decadencia carolíngia, os príncipes deixaram os no bres apoderar-se dos direitos realengos. Estes últimos obrigaram mesmo os camponeses a obedecer a uma espécie de novo direito de ban reconhecido tanto aos senhores laicos como aos clérigos. O campesinato da Alemanha Oriental, um dos mais livres de todo o Ocidente, viu-se agregado á gleba e obrigado a pesados servidos em trabalho ñas reservas consideravelmente ampliadas. As «vastas empresas agrícolas», assim criadas e bastante bem trabalhadas, iriam prosperar durante séculos com o contributo de novos colonos, vindos do Oeste. Também o senhorio do Sul da Europa surge vigoroso e próspero. O seu progresso e o das reservas decorre de outros factores. Na Itália do Norte e na Toscánia, o senhorio náo sofreu perturba?5es sérias. Ñas montanhas da regiáo de Nice e da Ligúria, a explorado senhorial de tipo antigo, na qual se recorría, portanto, ás corveias, manteve-se bem provavelmente porque se tratava de «regiSes fe chadas e atrasadas». Ñas colinas e na planicie, pelo contrário, a prosperidade dos senhorios foi mantida pela «persistencia da ten dencia expansiva», a despeito das perdas demográficas, e também pela riqueza das cidades. As rela?oes entre a cidade e o campo, já mais estreitas do que noutras regiSes no século XIII, intensificaram-se depois de 1300 ou 1350. Os senhores da Toscánia eram geralmente citadinos, nobres que se tinham deslocado para a cidade ou burgueses compradores de térras, e procederam a uma verdadeira «urbanizad® dos campos» do contado, fornecendo capitais, solufSes e formas de contrato (aos camponeses) mais flexíveis. Resta saber se os homens das cidades aplicaram á gestáo das suas térras o espirito de empresa que os caracterizava ñas questSes de negócios, ou, por outras palavras, se eles apoiaram a expansao, conservando a sua mentalidade «urbana», ou se adquiriram ou conservaram as 360
formas de pensamento e de ac$áo da velha aristocracia. £m todo o caso, as reservas rendiam tanto ou mais do que outrora, o mesmo acontecendo com as «rendas». No comego do século XIV, mais de 75% dos contratos concluidos nos campos da regiáo de Sena eram contratos do tipo da mezzadria. Entre 1325 e 1350, tanto na Lombardia como na Toscánia, os meeiros, designados por massarii ou partiarii, tornaram-se cada vez mais numerosos, ao mesmo tempo que no Midi francés onde as condigóes eram, no entanto, diferentes. Numa grande parte da Península Ibérica, tal como na Itália do Sul e ñas ilhas, a forga do grande dominio era ainda mais forte. A partir do fim do século X III e mais ainda nos séculos seguintes, os grandes latifundi, possessóes imensas ñas máos de uma única familia senhorial, comegaram por se formar para depois se afirmarem. Isto aconteceu principalmente devido á necessidade em que se viram os soberanos, quando das querelas dinásticas e das guerras internas, de contar com partidários devotados, aos quais era pre ciso recompensar ricamente. Assim, em Castela, na Andaluzia e na Estremadura, reforgaram-se constantemente verdadeiras oligarquías fundiárias, sobretudo na segunda metade do século XIV. Uma vez acalmadas a ag itad o e as guerras, estes ricos proprietários, aos quais se comega a chamar los Grandes de Castilla, aumentaram ainda mais os seus dominios já imensos. Na ausencia de uma bur guesía influente e numerosa, os reís nao conseguiram resistir ás suas pressdes. Os fabulosos dominiones eram enormes exploragóes de um único foreiro, completadas por direitos consideráveis sobre os camponeses. Com as suas térras, Albuquerque controlava a Penín sula desde Aragáo até Portugal, enquanto o conde de Haro era o verdadeiro senhor de toda a Rioja. De notar, no entanto, que as circunstancias políticas e sociais náo bastam para explicar comple tamente este progresso do senhorio ibérico. É preciso ter em conta, além délas, a profunda evolugáo da economia rural, que entáo se voltou decididamente para a criagáo de gado. Em resumo, apesar de, noutras regióes, a evolugáo dos pregos cerealíferos poder levar á redugáo em superficie das reservas senhoriais, o progresso da cria d o de gado conduzia a um movimento inverso, sobretudo quando se tratava, como em Espanha, de c ria d o em regime de transumáncia. Na Itália do Sul, ou seja, na Sicilia e no reino de Nápoles, foi a luta entre Angevinos e Aragoneses que provocou a concentrado dos senhorios devido ao desaparecimento dos pequeños vassalos. Os abusos dos novos «bardes» que exploraram duramente os cam poneses, cortando-lhes o acesso ás florestas e impondo-lhes pesados encargos com base no direito de ban, iriam, a partir de antes de 1450, provocar insurreigóes e o éxodo rural. Mas, mais uma vez, a política de c ria d o de gado dos grandes senhores tem a ver com a
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extensáo territorial dos senhorios e das suas reservas. Além disso, a fo rm ado de latijundi comefara muito cedo, aliada á reconquista sobre os Mugulmanos, no século XI. No fundo, a reconquista sobre os infiéis no Sul da Europa, tal como a colonizado alema em detrimento dos Eslavos, durante muito tempo pagaos, tinham criado e conservado por bastante tempo condifóes particularmente favoráveis ao progresso ou á manutenfáo de imensos senhorios. A comercializagáo dos produtos agrícolas A redufáo das superficies em cultura e da populado, as desordens internas e as guerras náo favoreceram o comércio dos produtos do sector primário. Dever-se-á, no entanto, ceder ao pessimismo pro fundo decorrente das fontes? Tal como G. Duby, respondemos de uma forma flexivel, mas sobretudo negativa. Em primeiro lugar, nao desprezamos o «aguilhao das dificuldades». Este século e meio foi também um «período de reajustamento benéfico», aliás ainda bastante mal conhecido. Apesar de nao ser certo que, um pouco por toda a parte, «as características mais nítidas que hoje apresentam os campos da Europa lhes foram (entáo) imprimidas», a verdade é que os solos repulsivos foram aliviados da sua populado dema siado densa e entregues aos bosques ou aos animais. Deste modo, foi corrigida a excessiva extensáo das culturas, no século XIII. As culturas principáis concentraram-se nos solos mais ricos. É isto que explica o aumento de rendimento das herdades inglesas, no decorrer do século XIV e na primeira metade do século seguinte. Verifica-se, portanto, um nítido saneamento do sector primário, que nem sempre surgiu sem alguns progressos técnicos, desde entáo melhor difundidos. Depois de 1300, as rotafoes sáo melhor organi zadas e o equipamento das pequeñas explorares parece ter tirado partido, em certa medida, de uma maior difusáo dos instrumentos de ferro, através da m ultiplicado dos artesáos rurais. O equilibrio culturas-criado de gado, mais do que amentado no século XIII, restabeleceu-se nalguns casos e a cria d o de gado progrediu, tanto em quantidade como em qualidade. Isto verificou-se grabas á in fluencia das especulafoes urbanas. Na Flandres, por exemplo, apesar de algumas culturas se terem instalado ñas térras em pousio (ervilhas, nabos), esse movimento seria, a curto prazo, menos importante do que a associado dos camponeses com os carniceiros da cidade vizinha, para a cria d o de gado durante alguns anos, nos campos ceifados. Mas é preciso ter também em conta os níveis de vida. Os pro dutos nobres, como o vinho, tiveram sempre compradores ricos, aristócratas, clérigos ou burgueses. E os outros? No conjunto, tem-se «a impressáo de uma recessáo geral de todos os tráficos 362
rurais». Mas trata-se de recessáo e náo de desaparecimento. «A economia dos produtos agrícolas continuava... largamente aberta», quer se tratasse de explorares senhoriais quer camponesas. Vejamos o exemplo dos cereais. É certo que o seu pre?o diminuiu muitas vezes. Mas o senhor tem, mais do que nunca, necessidade de numerário. Por seu turno, o camponés precisa ainda mais dele, visto que o fisco real ou principesco se alarga e torna mais pesado. Um e outro tém a garantia de poder vender os seus exce dentes de cereais. A proximidade de um grande aglomerado, com a sua rede de pequeñas cidades e aldeias satélites, constituí um mer cado sempre aberto e que compra a qualquer prcfo, em caso de fome ou de semibloqueio. Apresentamos dois exemplos da importancia das vendas de cereais para os grandes senhores. Em 1448, 86% dos rendimentos líquidos em cereais foram consagrados á venda na reserva de uma herdade de que era proprietário um grande senhor do Wiltshire. Apesar das severas perdas, os monges de Saint-Denis conseguiram vender cereais por 226 Lb. p., em 1374-1375, por mais de 436 Lb. p., dois anos mais tarde, e por perto de 1000 Lb. p., em 1403-1404, o que representa grandes quantidades, porque o sesteiro ( = 2,33hl) valia entáo em média apenas 12 s. p., em Saint-Denis. A evolufáo do arrendamento de duas peagens do Sena, um pouco a jusante de París, prova a queda, mas também a permanencia, dos tráficos agrícolas, mesmo numa zona muito devastada: «Porto» de Nevilly
1301 .......................... 250 Lb. p. 1340 .......................... 200 1376-1377 ......... ....... 248 1403-1404 ......... ....... 330 1409-1410 ......... ....... 320 1425 ....... 36 1426 ........48 1427 ........66 1428 ........80 1430 .................. ........48 1444 .................. ........26 1451-1452 .................133 1466-1467 .................160
«Porto» de Argenteuil
25 Lb. p. 40 16 42
16 40
Raras foram as pequeñas feiras locáis ou regionais das provincias mais atingidas que tiveram de suspender as suas actividades, ainda que só por um ano. A despeito de todas as contingencias da conjuntura, a partir do século XIV, assiste-se á «vulgarizado continua» de géneros que até entáo eram mais ou menos reservados aos citadinos ricos ou reme 363
diados. Trata-se, sobretudo, do vinho e da carne, cujo consumo aumenta, a despeito da diminuifáo da populado das cidades C). Isto justifica a plantafáo de vides em antigos campos de cereais, em Guyenne ou na Ile-de-France. Explica também o progresso da criafáo de gado e das explorares pastorais. Esse progresso, tal como o desenvolvimento das vinhas, iria prosseguir e refor^ar-se depois de 1450. Convalescen$a e reconversao agrícolas (de m eados do século XV aos comeaos do século XVI)
A convalescenga agrícola em Franca Em datas variáveis de um local para outro, de uma regiáo para outra, mas frequentemente ñas proximidades dos anos 1450, o Oci dente viu surgir uma nova fase de colonizado do solo, uma «convalescenca agrária», como disse um clérigo parisiense. Limitar-nos-emos ao caso da Franca, caso quase limite, dado que o reino era o sector do Ocidente mais esgotado pelas guerras e pela anarquía, assinalando que algumas regides náo chegariam á reconstruyo (P°r exemplo o Limousin). Os factores de renascimento rural O primeiro factor foi a continuidade da vida rural. Em lado algum se partiu do «zero», nem mesmo ñas provincias mais devas tadas: a Normandia, a Ile-de-France, a Champagne, a Guyenne ou a regiáo de Toulouse. Terá o grupo dos administradores alterado a sua composi?áo ou o seu espirito? Por outras palavras, continuarao os senhores a ser homens da velha nobreza ou teráo sido frequentemente suplantados por burgueses? Trata-se de um problema de história social, mas que também importa para a história económica, poís é costume opor as qualidades mediocres de administradores dos nobres ás, ao mesmo tempo superiores e diferentes, qualidades dos burgueses ricos. Comecemos por dizer que essa oposifáo nunca foi bem demons trada e que talvez náo tenha sido táo acentuada como se pretende afirmar. Depois, é preciso recordar que o «fosso» entre burgueses e nobres náo era táo profundo como muitas vezes se escreveu. No
(’) A m ultiplicado dos cabarets em Paris demonstra a «democratizafao» do consumo das bebidas e a importancia, que se mantém, da procura das cidades flamengas recorda que nada é mais sólido do que uma corrente de abastecimento várias vezes secular.
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seio dos grandes organismos de Estado, os oficiáis, cujos sentimentos e interesses geravam a unidade, eram recrutados ao mesmo tempo entre cavaleiros e grandes burgueses. Formou-se assim um novo agrupamento, o dos notáveis, que possuíam os mais belos senhorios laicos. Acostumados aos negócios, dotados de poderosos apoios, remediados ou muito ricos, estes homens, nobres ou grandes burgueses, estavam bem colocados para imprimir um rápido im pulso á reconstruyo. Isto significa que foram as regioes melhor enquadradas pela adm inistrado real, e em primeiro lugar a Ile-de-France visto que é ali que se sitúa a capital, a beneficiar de condicóes especialmente favoráveis. No entanto, dois problemas chamam a aten?áo: 1.®— Durante muito tempo, pensou-se que o deplorável recrutamento das casas religiosas a partir de Carlos VII, e mais ainda de Luís XI, teria tido consequéncias financeiras desastrosas para os temporais e, portanto, para os campos em geral. Mas a história das grandes abadias parisienses mostra que as delapidafóes de alguns abades foram limitadas. Aliás, os verdadeiros administradores dos temporais eram juristas «pensionários» que eram recrutados entre as familias dos notáveis. Por seu turno, os bispos e os cónegos pertenciam ás linhagens de notáveis, hábeis e competentes, mesmo quando eram demasiado interessados. Os notáveis, laicos ou cléri gos, foram bons «empreendedores do arroteamento» e, salvo excep?5es, o dinheiro náo faltou nos campos. 2.° — Houve ou nao uma renovado dos proprietários laicos? Os patrimónios nobres, já ameafados antes de 1450, teráo entrado numa fase de decadencia acelerada, em proveito dos burgueses? Na Ile-de-France ou na regiáo de Liáo, alguns pequeños «togados» (os das jurisdifoes secundárias) comefaram a adquirir térras, que eram vendidas por cavaleiros que náo tinham cargos. Foi um movimento bastante lento e náo profundo. O mundo dos senhores náo sofreu geralmente p ertu rb ares de envergadura e isto explica em parte que a reconstrudo, bem conduzida, se tenha revestido de um carácter conservador. A maior parte dos senhores nao estavam desprovidos dos capitais necessários. Estes permitiram os investimentos destinados a fazer arrancar a restaurado e a levá-la a bom termo. Os laicos, notáveis ou náo, nao tinham falta de numerario. Por outro lado, as contas provam que os tesouros dos clérigos raramente tinham sido reduzidos pela guerra, ao mesmo tempo que a fonte dos donativos e esmolas nao se esgotava. Eram, portanto, possíveis exercícios financeiros deficitários (frequentes nos comeaos da recuperado dos se nhorios), visto que os capitais, congelados ou náo, permitiam «tapar os buracos». Os capitais senhoriais náo se destinavam no total ás reservas dominiais e muitos senhores emprestaram dinheiro aos seus foreiros para lhes permitir recuperar os bens. Felizmente, visto 365
que, á excepcao destes adiantamentos, os camponeses náo conseguiam obter dinheiro a náo ser junto dos usurários, que cobravam taxas ruinosas. Outro factor da reconstruyo, e náo o menor, foi a máo-de-obra. Em Franca, como em muitos sectores do Ocidente, o «arranque» significativo do renascimento demográfico ocorreu na segunda me tade do século XV. O ponto de partida pode variar, mas em quase toda a parte situa-se no terceiro quartel deste século. Quais foram as causas da inversáo da tendéncia demográfica? Terá sido provo cada apenas pelo termo das guerras e das fomes (se houve ainda algumas antes de 1500, foram breves e pouco acentuadas) e, por tanto, pela dim inuido local da mortalidade e pelo excedente de nascimentos de autóctones? Ou terá havido movimentos da popu la d o , uma imigrafáo para algumas provincias? Um primeiro ponto está fora de discussáo: o número de enancas por casal, tal como surge nos diversos tipos de documentos (contratos, foros, vendas, partilhas, cartas de remissao...), é frequentemente bastante elevado (trés ou quatro no mínimo). Mas este aumento natural náo explica tudo, tanto mais que, em alguns locáis como Neuburgo, o aumento da natalidade foi mediocre. No entanto, precisamente na regiáo de Neuburgo, o repovoamento efectuou-se apenas a partir das familias locáis: 55 % dos patronímicos mencionados numa conta de 1462 figuravam já numa outra de 1397, sendo os restantes nomes de familia os dos aldeáos dos burgos ou dos cantdes limí trofes. Existiram, portanto, regióes onde náo houve imigrafáo. No caso oposto, outras regides como o Gátinais ou o Entre-Deux-Mers tiveram a sua populado largamente renovada por imigrantes vindos de bastante longe. No Entre-Deux-Mers (R. Boutruche), foi a ini ciativa senhorial que desempenhou um papel preponderante. A pro paganda no exterior e as promessas atraíram uma numerosa popu la d o estranha á regiáo. Em quinze anos, o abade de La Sauve-Majeure instalou ñas suas térras 200 comunidades familiares do Oeste e do Centro-Oeste. O conde da Provenga apelou aos colonos italianos, os senhores de Angoumois aos do Limousin e aos de Berrichon, os do Sénonais aos Bretdes, aos de Tourange e aos de Limousin. Algumas aldeias do Gátinais ou da Picardía foram com pletamente repovoadas.
Novos arroteamentos e exploragdes camponesas A partir de uma muito volumosa docum entado, essencialmente composta por contratos de foro, censos, contas, pode seguir-se a 366
evolufáo do renascimento agrícola, o repovoamento e a evolu?áo em número e em superficie das explora?5es camponesas. Contudo. sao ainda bastante poucas as regióes da Franca que tenham sido objecto de um estudo fundamentado para este tempo. Recordemos de novo a oposifáo fundamental entre cantóes ricos e cantóes «marginais». Os esfor?os dos homens incidiram de pre ferencia — o que era lógico — sobre os sectores outrora ricos e que nao estavam completamente desertos nem vazios de homens, e a renascenfa dos outros sectores só iria comegar mais tarde, pelo que é preciso distinguir duas etapas na obra empreendida. Seria mesmo melhor dizer dois renascimentos agrícolas. No decurso dos anos 1440-1475, aproximadamente, quando da primeira etapa ou da primeira restaurando rural, as energías e os capitais concentraram-se nos antigos terrenos ricos. Este renasci mento, cedo iniciado, depressa termina. Entre 1441 (data em que as tropas de Carlos VII terminaram a «limpeza» da Ile-de-France) e 1465, concluiu-se a maioria das atribuigoes em foro, nos sectores parisienses favorecidos, com excep?ao de alguns cantóes particular mente devastados (proximidades de Saint-Denis ou de Argenteuil...). Assim, em Bagneux, dos 60 contratos concluidos entre 1442 e 1506, 37 situam-se entre 1442 e 1465; em Sucy-en-Brie, 18 em 32... In clusivamente, muitos deles datam de 1442 e dos anos ¡mediatamente seguintes, o que significa que náo houve solu?áo de continuidade entre as tentativas aparentemente desesperadas dos anos 1415-1440 e as do pós-guerra. De notar que algumas destas aldeias nao tinham sofrido muito, uma vez que os bens a reatribuir em foro (casas, prados, campos, vinhas) náo eram muito numerosos nem muito consideráveis. Por outro lado, os contemporáneos, como os seus antepassados dos anos 1370-1410, concentraram os seus esforgos prioritariamente sobre a vinha, precedendo a convaIescen?a desta última a dos campos. A restaurado dos terrenos ricos concluiu-se entre 1480 e 1490, o mais tardar. A massa dos casebres e dos bens fundiários oferecidos era, sobretudo de inicio, muito superior á procura, encontrando-se além disso em mau estado, pelo que a queda das rendas em rela^ao ao período anterior á guerra ou aos anos 1400 foi frequentemente acentuada e as rendas em géneros substituidas por outras em nume rario. O champart recuou bastante, visto que náo conduzia a um arroteamento rápido, como as taxas em dinheiro. O montante das rendas estabilizou finalmente ao nivel mais baixo, em cada terreno. Os montantes nomináis dos encargos só retomaram uma marcha ascendente por volta de 1500, isto é, num período em que a popu la d o camponesa preenchera quase todos os vazios nos cantóes parisienses mais desfavorecidos. A segunda etapa dos arroteamentos desenrolou-se principalmente nos sectores «marginais», salvo em raras regióes, como a Alta Pro367
venfa, definitivamente abandonadas. Iniciada a partir de 1475, por vezes um pouco antes, esta etapa era difícil porque muitos terrenos se encontravam verdaderamente «em deserto», por exemplo em Brie ou em Sologne (I. Guérin). Foi uma obra de longo alcance que, por exemplo no Hurepoix, se prolongou até 1540. Evidente mente que as rendas foram ainda mais reduzidas nos terrenos «re pulsivos». Em que medida voltaram os locáis anteriormente habita dos a encontrar habitantes? As parcelas situadas nos solos mais pobres parecem só ter voltado a ser ocupadas por volta de 1500 ou 1520, mas algumas desapareceram definitivamente. Isto significa que, apesar de, por volta de 1500, se concentrarem de novo nos solos mais propicios á cultura, os homens continuavam a deixar ao abandono urna parte dos solos pobres. O empreendimento de renovado agrária teve efeitos favoráveis sobre o nivel de vida camponés. Muitos senhores fizeram sacrificios além da redufáo do valor dos foros, como o resgate das banali dades por somas módicas. E, onde os contratos feitos com os cam poneses náo eram de longa d u rad o , procedeu-se ao seu prolongamento. Passaram a ser perpétuos ou, pelo menos, por duas ou tres vidas, como os colloques do Quercy ou os baillées á trois tétes do Maine. O velho contrato de enfiteuse á romana' difundiu-se na Pro venga e no Languedoc. A sua d u ra d o aumentou e, de 9 a 27 anos, tomou-se perpétua. Deverá concluir-se daqui ter-se verificado um novo desmoronar do poder senhorial? De modo algum. Apesar de reduzidos por necessidade, os direitos sáo agora cobrados de forma mais exacta e os que náo cumprem sáo perseguidos. Aliás, existem direitos, caídos por vezes em desuso durante a guerra, tal como a talha, e que os senhores ressuscitaram. Trata-se de uma reconstru y o conservadora e também de uma reac?áo senhorial, que se nota, por exemplo, numa melhor e mais minuciosa administrado. Mas, ao cabo de alguns anos, a condido camponesa e a extensáo das exploragdes rurais náo tinham evoluído num bom sentido. O fisco real ou principesco era cada vez mais pesado. Ñas zonas prósperas, a populado acabou por voltar a ser táo densa como por volta de 1300. Cerca de 1500-1520, anuncia-se uma nova era de pauperizado rural, pelo menos nos sectores atractivos. O renascimento das granjas e os rendimentos dos senhores Os grandes proprietários tinham imediatamente concentrado uma parte dos esfor?os na recuperado das suas granjas, que Ihes fomeciam o essencial dos recursos. O trabalho era considerável, visto que as reservas, ponto de mira dos gatunos, tinham sido mais gravemente danificadas do que as exploragdes camponesas. Para encontrar mais fácilmente rendeiros — nobres, mercadores e, mais 368
frequentemente, lavradores—, os senhores, que outrora arrendavam em bloco grandes senhorios, passaram, embora por vezes apenas durante algum tempo, a dividi-los entre diversos locatários. Note-se que os contratos de aluguer comportavam, mais do que outrora, entregas de cereais. Os senhores náo se distanciaram de modo algum das suas térras e sempre desejaram consumir os géneros por elas produzidos, vendendo o excedente. O sistema da herdade arren dada conquistou mais terreno, por exemplo na Alta Normandia e na regiáo de Bordéus. Qual foi, portanto, o resultado final da convalescenga agrícola para os senhores? Comparados com os rendimentos de 1430 ou de 1440, os seus recursos tinham aumentado bastante, mas mantinham-se, no entanto, muito aquém do nivel dos anos 1300 ou 1340. Os foros e rendas proporcionavam menos lucros, tal como a maior parte dos direitos senhoriais (as taxas de mutagáo, por exemplo, ligadas ao mercado imobiliário, que se mantém quase táo pouco activo como antes de 1400), e as reservas rendiam menos numerário ou géneros. Assim, em 1519-1520, as receitas em dinheiro do mosteiro de Saint-Denis atingiam apenas 20 000 Lb. p.: era mais do que cerca de 1400 (menos de 15 000 Lb. p.), mas muito menos do que antes da guerra, altura em que se aproximavam das 30 000 Lb. p. E, no entanto, náo se tratava de Lb. «constantes». No comego do século XVI, a térra náo tinha voltado a ser um investimento táo bom como se pensa. Talvez seja este o motivo por que a burguesía do negócio investiu afinal táo poucos capitais em bens de raiz rurais, no reino de Franga. Esta situagao é segu ramente muito diferente da que se verifica noutros sectores do Ocidente. Mas, nesses sectores, os campos quase nunca tinham sido táo profundamente atingidos.
A s transformagoes da economia rural Em certas provincias, foi sensível uma certa reconversáo rura!, aqui muito nítida, além embrionária, aue, sendo uma realidade dos grandes dominios, náo foi desconhecida pelas térras camponesas. Tratava-se, no entanto, segundo diversos pontos de vista, de um aspecto da reacgao senhorial. Camponeses e senhores tinham aca bado por se aperceber de que qualquer outra produgao era mais frutuosa do que a dos cereais. Em 1438, uma libra de carpas valia tanto como 66 libras de centeio, na Baviera, e, em 1496, um camponés, que viera vender em Mayence a sua colheita de cerejas, recebera 30 florins, ou seja, o valor de 7000 kg de centeio, ou seja 369
ainda, o equivalente da produfáo de um senhorio médio (W. Abel). Mas os senhores tinham motivos suplementares para desejar uma certa reconversáo. O aumento relativo dos salários agrícolas reduzia ainda mais a margem de lucro dos produtores de cereais e os direitos senhoriais eram difíceis de cobrar. Nestas coAdifSes, por que motivo náo reduzir as térras semeadas e encorajar as deser?5es das aldeias? Esta reacfáo senhorial foi acompanhada por uma mais forte influéncia dos burgueses nos campos mediterránicos. Por exemplo, a supremacía política e militar das comunas da Itália do Norte e do Centro sobre o contado foi reforjada e acompanhada por uma completa supremacía dos burgueses sobre a economía dos campos, através do controlo dos mercados e das trocas e ainda através da aquisifáo, em detrimento das casas de religiáo e dos nobres, de grandes dominios, numa escala mais vasta do que outrora. Em toda a Península Ibérica, como na maior parte de Itália, verificou-se uma interferencia ou mesmo proibifáo do comércio rural, exigindo-se por vezes que as transac?5es se fizessem apenas nos mercados citadinos. Com a preocupafáo de melhor garantir o abastecimento urbano e, em primeiro lugar, o da sua própria familia, o homem de negócios comefou a investigar todas as possibilidades de adquirir térra e dominios. Náo se tratou de um declínio ¡lo espirito de empresa. Muito pelo contrário, visto que, em oposi?áo ao que se passava em Franca (cf. supra, pp. 368-369), os bens fundiários representavam, no século XV, um dos melhores investimentos possíveis. A térra proporcionava lucros médios de 4 a 6 % , taxa igual á de um aluguer normal em dinheiro (era isto o que pagava a Casa di San Giorgio), e alguns lucros fundiários podiam atingir os 25 ou 30% , montante que os negócios financeiros ou mercantis já náo garantiam (P.-J. Jones). Os homens de negócios náo foram os únicos a comprar lugares ao sol e muitos burgueses, mesmo bastante modestos, come^aram, pelo menos em Itália, a lanzar a máo aos bens rurais. O espirito segundo o qual eram conduzidas as ex p lo rares modificou-se desde o inicio do século XV, e mais ainda na segunda metade deste século. Como se vé, tudo isto é muito diferente do que se passava em Franca, na mesma época.
O progresso da criagao de gado Este progresso explica-se em grande parte através de um maior consumo da carne e dos produtos derivados do leite e através de uma maior procura de coiros ñas cidades. Mas é preciso também ter em conta o descongestionamento demográfico dos campos. Por outro lado, a lá tomou-se cada vez mais cara, sendo, portanto, a sua produ?áo mais compensadora. De 1462 a 1486, a lá inglesa aumentou um terco relativamente a 1450-1461 (P.-J. Bowden). 370
O seu pre^o de transporte era cerca de 50 vezes mais baixo do que o dos cereais, o que permitiu o progresso da cria?áo de gado ovino, bastante longe dos centros téxteis. O impulso da economia pastoril apresenta um aspecto geral. Em toda a parte, mas sobretudo ñas proximidades das cidades, a cria?áo intensificou-se, frequentemente devido ao impulso dos carniceiros, como em Toulouse, onde estes últimos cederam rebanhos aos camponeses em gazaille (G. Sicard). No entanto, a cria?áo de gado fez-se segundo normas novas, das quais apresentamos os principáis exemplos: 1.a — Desde há séculos, a criafáo do carneiro figurava no primeiro lugar das riquezas da Inglaterra. Come?ou a provocar uma verdadeira mutagao agrária, antes do fim da Idade Média, destruindo campos e aldeias e conduzindo á extensáo continua das pastagens. Entre os séculos XIV e XIX, as paisagens inglesas transformaram-se geralmente, de openfield (*) de economia cerealífera, em paisagens de cerrados, onde predomina a criafáo de gado. O século XV representou um momento de viva acelerado deste processo. Por si mesma, a aldeia camponesa evoluía já neste sentido e os camponeses tinham come?ado a vedar os seus próprios campos e a partilhar as térras comunais, porque desenvolviam a cria?áo de gado. Desde o fim do século XIV, em algumas herdades, metade dos lucros obtidos pelos camponeses provinham da actividade pas toral. Mas estes cerrados nao provocavam a deser?ao do terreno. Pelo contrário, os cerrados senhoriais tiveram geralmente por resul tado incluir num único bloco todo o terreno, campos e térras baldias. Isto provocou o abandono da aldeia, visto que a erva cobria tudo. Para explicar o grande sucesso dos cerrados senhoriais, os historiadores ingleses (M.-W. Beresford, R.-H. Hilton) invocam o declínio da coesáo aldea. Os proprietários de herdades puderam «asfixiar» os camponeses, agambarcando as térras comuns e arren dando depois a reserva, deste modo aumentada e inteiramente transformada em pastagens, a um mercador de lá ou a um carniceiro. A pouco e pouco, os foreiros, privados do direito de pastagem, tiveram de abandonar as térras, e as pastagens interiores foram substituidas por um único cerrado que englobava a herdade. A geografía e a cronología dos cerrados ingleses permitem compreender melhor as suas causas. M.-W. Beres ford distinguiu diversas zonas. Os limites norte, oeste e sul da Inglaterra tiveram poucos cerrados e lost villages. No extremo oriental (Yorkshire e cantóes próximos), pelo contrário, os dois fenómenos, precoces, haviam chegado (*) Openfield — terreno sem vedagoes composto por várias faixas justapostas e que corresponde a uma antiga organizacao da cultura regulamentada em comum. {N. do E.)
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ao seu termo antes de 1485. Nos Midlands (sobretudo o Middlesex, o Berkshire, o Derbyshire e o Hampshire), o processo situou-se entre 1450 e 1520. No Nordeste (Northumberland...), o movimento foi mais tardio. Diz-se que este movimento seguiu o mesmo impulso e o mesmo caminho que a procura de la e é certo que as aldeias perdidas e os cerrados se situam frequentemente ñas proximidades de uma cidade textil ou de um porto de exportado. O facto de o Leste do país ter sido o primeiro a conhecer os síntomas do processo explica-se porque, entáo, os portos da costa oriental expediam a lá para a Flandres. No século XV, o movimento intensificou-se principalmente no Sul da ilha, porque entáo a Inglaterra vendía de preferencia a sua lá através de Londres e de Southampton, para as regioes mediterránicas. É preciso, no entanto, náo omitir uma causa que náo pode ser negligenciada, pelo menos até cerca de 1450, o declínio demográfico. 2.* — Toda a história rural das regioes mediterránicas foi assinalada por uma luta entre os agricultores sedentários e os pastores transumantes, seminómadas. Déla resulta a veda^áo dos campos e uma severa regulamenta^áo da passagem dos rebanhos. Mas, neste conflito, quem perde sáo os agricultores, cada vez que a coesáo da aldeia se reduz. Os grandes rebanhos devastam ós campos e expulsam os agricultores. É isto que se verifica, no fim da Idade Média, nos Pirenéus, na Provenga e, mais ainda, em Espanha e no Mezzogiorno italiano. Enquanto, na Toscánia, f»or exemplo, a invasáo dos rebanhos transumantes náo conduziu ao reforjo dos grandes dominios, em contrapartida, na Península Ibérica e na Itália do Sul, a supremacía dos vastos senhorios aumentou depois de 1450. O poder dos grandes exploradores deveu-se em parte ao facto de estes se terem frequentemente associado em importantes com panhias, para impor a sua vontade em todos os terrenos do percurso dos seus ¡mensos rebanhos. Estas sociedades foram particularmente poderosas em Espanha (J. Klein), onde agora triunfavam os merinos e onde os rebanhos de transumáncia tinham passado de um milháo e meio de caberas, por volta de 1350, para perto de tres milhoes em 1467. Uma associa?áo cada vez mais poderosa, a Mesta, agrupou vários milhares de criadores de gado, desde homens pobres aos maiores senhores, nobres e clérigos, que possuíam de 10 000 a 40 000 animais (por exemplo, o duque de Béjar ou o convento do Escorial) e dominavam evidentemente a companhia. Os rebanhos de los her manos de la Mesta, isto é, dos proprietários de animais confiados a pastores comuns, eram reunidos na Primavera e no Outono em vastos terrenos de feira, depois transumavam através de Castela, por caminhos de percurso — as cañadas—, das pastagens estivais do Norte, ás regioes do Sul, os estremos. Os grupos de pastores que os conduziam arrancavam aos agricultores as pastagens e os 372
terrenos que ficavam no percurso. Assim, a Mesta conseguiu impor a primazia da cria d o de gado. As aldeias despovoaram-se e foram transformadas em cortijos, grandes explorafóes dominiais. A Mesta foi a organizado mais forte, mas náo a única. Em Aragáo, a Veintana de Saragofa tinha o direito de mandar pastar os rebanhos em todos os montes e em todas as pradarias do reino (porque recebiam a sua conta, os soberanos, inclusive o papa, apoiaram geral mente os nómadas transumantes contra os agricultores sedentários). Esta organizado conseguiu também opor-se aos foreiros, proibindo-os de proteger as suas culturas e indo ao ponto de mandar demolir diversas aldeias, que foram substituidas por vastos dominios de c ria d o de gado. A luta vitoriosa dos pastores contra os agricultores e os novos progressos dos latifundi, na segunda metade do século XV, carac terizaran! também a Itália do Sul, a Sicilia e a Sardenha. É certo que náo parece que as associa^óes de ricos proprietários de rebanhos tenham sido táo poderosas como em Espanha. O resultado final do progresso pastoral foi, no entanto, o mesmo. O habitat rural desagregou-se e o despovoamento dos campos, por exemplo ñas proximidades de Roma, recomegou no fim do século para prosseguir nos tempos modernos.
A especializagao das culturas Alguns terrenos, bastante numerosos em diversas regióes, especializaram-se e desenvolveram culturas ligadas sobretudo á acti vidade do negocio e á supremacía das cidades sobre o campo. Este foi principalmente o caso da Itália do Norte e do Centro — que decididamente se opóe, e se oporá cada vez mais, ao resto da penín sula. A a c d o dos burgueses, iniciada desde o século X III ou mesmo mais cedo, aumentou no fim da Idade Média. Esta a c d o modificou as paisagens e a economia rural e fez-se sentir no dominio da propriedade da térra — visto que os patricios construiram belas resi dencias e desenvolveram incessantemente as suas explorares, em superficie e em rendim ento—, muitas vezes atribuida em livello, que entretanto se tornara vitalicio e depois hereditário, já náo limi tado a 29 anos (embora ainda subsistam algumas pequeñas explo r a r e s a meias). As térras baixas do vale do Pó sáo benfeitorizadas e drenadas, obra que fora iniciada no século X III e que se encontrava quase concluida no século XV. Alguns terrenos sáo especia lizados ñas culturas industriáis, téxteis, mas sobretudo tinturiais, como o pastel de Alexandria ou o agafráo de diversos sectores toscanos. A coltura promiscua, ou cultura mista, progride vivamente ñas regióes de colinas como a Toscánia ou os contrafortes alpinos: 373
entre as jeiras de cereais, plantam-se pés de vinha (muitas vezes em latada), oliveiras, árvores de fruto ou amoreiras. Depois do progresso pastoral, a especializado vitícola é provavelmente o acontecimento mais importante em beneficio dos cam pos. A ofensiva dos vinhos fortes (R. Dion) foi causa e consequéncia, através da evoludo do gosto, do desenvolvimento de diversos vinhedos, fortemente ajudados pelos capitais dos burgueses e, por vezes, também da aristocracia. Até aos anos 1400, os únicos vinhos licorosos, ou quase, que eram objecto de um comércio de longa distancia eram os vinhos do Oriente, em particular os gregos. A perda progressiva dos mercados do Oriente, no decorrer do século XV, levou os homens de negócios do Mediterráneo ocidental a desenvolver os vinhedos de Itália, da Provenga e da Península Ibérica. Enquanto o rei René favorecia o desenvolvimento das vinhas moscatéis na Provenga, os mercadores italianos transformavam-se em promotores do progresso do vinhedo ligúrico, do da Lombardia ou dos «vinhos gregos» de Nápoles. E foram os homens de negócios de Génova e Florenga que «lan^aram» os célebres vinhos do Jerez, a partir da sua base operacional em Sevilha. Em geral, tal como em Franca desde há muito tempo, os vinhedos italianos ou ibéricos coabitavam com os campos de cereais. Detectaram-se, no entanto, alguns vestigios de monocultura na Riviera di Ponante, a oeste de Génova: pouco depois de 1500, os inquiridores fiscais de Génova veráo que, em muitas aldeias, se prftduziam apenas cereais e castanhas suficientes para alimentar os habitantes durante metade ou um terco do ano, porque a cultura da vinha — e a da oliveira — ocupava demasiadas térras. A despeito de todos os males que a atingiram, a Franca beneficiou dos progressos da especializado. No que diz respeito á viti cultura, a Franca manteve fácilmente o seu a vaneo na medida em que um novo grande vinhedo, o de Borgonha, cujos produtos eram aliás reputados desde o século XIII, progredira brilhantemente. Por outro lado, as culturas industriáis, téxteis e tintureiras, sofreram um novo impulso, mas apenas a partir de 1475, quando a actividade artesanal e comercial do reino suplantou as sequelas da guerra: o linho sobretudo do Norte, o cánhamo no Oeste, o pastel-dos-tintureiros no Languedoc e na Picardia... O último exemplo de reconversáo parcial da economia rural no fim da Idade Média foi o de algumas zonas alemas. Além da cultura do lúpulo, em grande progresso tal como a produdo de cerveja, referiremos a das plantas téxteis (o linho no vale do Mosela, prin cipalmente) e das plantas tinturiais: a ruiva-dos-tintureiros e, mais ainda, o pastel, no sector de Erfurt. Náo parece, no entanto, que ó sucesso do pastel tenha sido táo devastador como na Lombardia# onde conseguiu arruinar a economia cerealífera e concentrar o habí" tat. Citamos finalmente os grandes progressos da cultura da vinhá 374
e das árvores de fruto, associadas como em Itália. Até entáo, os únicos vinhedos alemáes tinham sido os do Mosela e do Reno, cuja produfáo náo pudera, na auséncia de bons locáis suficientes, ser muito aumentada. No século XV, surgem e desenvolvem-se novos vinhedos na Alemanha do Norte e de Leste: ñas proximidades de Gottingen e de Brunswick, no Schelswig e no Holstein, e mesmo nos vales do Óder e do Vístula ou até na Prússia. Esta especializado maior náo teria assumido tanta importancia, em detrimento das culturas alimentares tradicionais, sem uma meIhoria do nivel de vida, sem uma transform ado do gosto e também — há por vezes tendencia a esquecé-la — sem uma dim inuido da populado total do Ocidente, que, por volta de 1500, se mantinha muito abaixo do seu nivel dos anos 1300, embora tivesse aumentado na última parte do século XV.
As industrias rurais A despeito do despovoamento dos campos, estas actividades acessórias beneficiaram de um nítido progresso em muitas provin cias. Porqué? Em primeiro lugar, nem todos os camponeses sobreviventes e que se tinham mantido ñas suas térras, ou vindo de outros locáis, tinham tirado partido das térras desocupadas. Uma grande parte destas térras tinham sido absorvidas por uma minoría de agricultores e a maioria continuava a ter falta de novas térras sufi cientes, principalmente ñas regióes ricas. Perante os veomen ou os husbandmen, que possuíam 50, 100 ou mesmo mais acres, nos dominios do arcebispado de Canterbury situados no Kent ou no Sussex, e que constituíam quando muito 15 % da populado rural, um quarto dos aldeáos das mesmas herdades tinham apenas 2 acres de térra ou mesmo menos, e 41 % entre 2 e 10 acres — o que era ainda insuficiente—, em 1447. Por outro lado, os mercadores pro curaran!, ainda mais do que outrora, empregar a máo-de-obra rural, pouco exigente e náo agrupada em oficios. Finalmente, algumas técnicas novas ou que provocavam o progresso de algumas produfoes (metalúrgica, papel...) exigiam uma máo-de-obra que vivesse no campo. Seguramente mais importante, e mais ainda do que anterior mente, foi a indústria textil. A procura de tecidos ligeiros, ligada á evolufáo dos mercados externos, e o desejo de escapar aos regulamentos rígidos das cidades desenvolveram, nos Países Baixos, uma tecelagem rural, que se distingue bastante mal da das cidades muito pequeñas, e uma indústria do linho, ligada ao maior uso de roupa interior. Esta última actividade desenvolve-se também na Borgonha, no Bugey, na Sabóia, em torno do lago Constancia, na Suévia e no Hesse, na Alemanha do Norte, na Irlanda..., em suma, 375
ñas regioes favorecidas pelos cursos de água adequados á mace ra d o . A tecelagem é, por vezes, a principal industria rural, mesmo fora dos Países Baixos. As aldeias próximas dos cursos de água atraem-na porque nelas existe a possibilidade de instalar pisdes. A técnica desempenhou evidentemente um papel importante na dispersao da produfáo de tecidos de lá. A própria Solonha, afastada das grandes correntes comerciáis, desenvolve a tecelagem rural. A Inglaterra fabrica, na regiáo de Bristol, pecas de boa qualidade. A tecelagem de Castela saiu em parte de cidades como Toledo ou Sevilha para se dispersar pelos campos durante o século XV. A despeito da presenta crescente dos merinos, trata-se aliás de tecidos de qualidade mediocre (frequentemente enviados para Aragáo ou para Navarra para os últimos acabamentos), mas cuja clientela era numerosa em toda a Península.
Capítulo 15
AS TRANSFORMALES DO SECTOR SECUNDARIO
Apesar de, em alguns aspectos, parecer relativamente paralisado, noutros, o sector secundário beneficiará de grandes progressos, que iráo dar origem a um pré-capitalismo industrial, ainda bastante tímido.
As transíorm agóes do arte san a to
A propósito de Gand, H. Van Werveke assinalou: «Por uma coincidencia trágica, os oficios só foram chamados ao poder, a fim de assegurar uma melhor repartifáo dos bens materiais, justamente quando a grande fonte da prosperidade cometa va a esgotar-se.» As dificuldades e muta?5es económicas provocaram, com efeito, «uma expansao da organizado corporativa», ao mesmo tempo que os oficios faziam algumas tentativas de participado no govemo das cidades fora de Itália (na Península, estas tentativas ocorreram fre quentemente antes do século XIV — cf. supra, p. 265). Este facto conduziu os oficios e as cidades a um proteccionismo exacerbado. O primeiro ponto a ter em atenfáo é a expansao dos oficios bem estruturados. Sabe-se que, pelo menos em quase todas as grandes cidades flamengas, diversos oficios téxteis só se organizaram devidamente a partir dos anos 1300 e na sequéncia de conflitos políticos e sociais. Esta expansao e o florescimento de estatutos artesanais explicam-se também, em muitas regioes, devido ao facto de, no fim da Idade Média, esses oficios terem acabado de ser conquistados pela «industria». Foi o caso das regioes eslavas e de várias provincias da Alemanha, onde, no decorrer dos séculos XIV e XV, nasceram muitos oficios «regulamentados»; os seus costumes, de inicio oráis, foram depois codificados e reconhecidos pela autoridade pública. O mesmo se passou com os jovens centros téxteis dos Países Baixos, 377
do Brabante, por exemplo, e, mais tardíamente (segunda metade do século XV), com os da Normandia. Por fim, esta expansáo foi motivada por imperativos de ordem técnica: a divisao do trabalho realizou novos progressos; frequentemente, os ferreiros cindiram-se em dois grupos, o dos armeiros e o dos ferradores; por sua vez, os armeiros dividiram-se em vários oficios e comefou a fazer-se a distingo entre fabricantes de espadas, de balestras e de coura?as. Foi especialmente nos principados dos Países Baixos que, depois de violentas lutas, os artesáos (sobretudo os teceloes) de Bruges, Gand, Liége e de outros lugares conseguiram que lhes fosse reser vado um lugar no governo das cidades. Assim, em Gand, depois da batalha de Courtrai (1302), a cidade reconheceu um «regime dos oficios» que iria durar até ao reinado de Carlos V (1540); o governo dos mercadores foi substituido por tres «membros» que partilhavam almotafaria: os burgueses ou poorters (que viviam das suas térras e já náo do comércio de panos), os teceloes e os «pequeños oficios» (á volta de cinquenta, entre os quais os talhantes, os fabricantes de cerveja, os vendedores de peixe...). No Imperio, a situado era me nos nítida. Os Aemter, Innungen, Gilden ou Gewerke agrupavam a maior parte da populacho urbana — 62% em Hamburgo, em 1379. No século XIU, alguns conflitos esporádicos opuseram os artesaos aos patricios. Estes conflitos generalizaram-se na segunda me tade do século XIV e viriam a intensificar-se no tempo da Reforma. Entretanto, os oficios só alcan?aram completo si^esso em Colonia e Magdeburgo. As revoltas náo conseguiram enfraquecer por muito tempo o patriciado das cidades da Hansa (Ph. Dollinger): ao fim de alguns anos no poder, um pouco por toda a Alemanha, o homem comum teve de se contentar com uma mesquinha parcela de poder; o patriciado acolheu um pequeño número de representantes dos oficios nos conselhos, ou permitiu a cria d o de uma «assembleia de comuns» privada de influencia preponderante. A situado foi muito semelhante em Espanha, onde os sucessos dos artesáos foram reduzidos e comedida a sua participado no governo das ci dades. Em Franca e na Inglaterra, salvo em épocas de violencia, o artesanato náo conseguiu impor os seus pontos de vista, devido á hostilidade do poder real. Isto náo impede que, em quase todo o lado, qualquer que fosse a participado dos artesáos na sua direcfáo, a «política» económica das cidades apresentasse, no fim da Idade Média, muitos pontos em comum. Esta semelhanfa de reflexos explica-se por motivos evidentes. A peste negra e as suas recorréncias tinham reduzido o número de habitantes. A depressáo demográfica provocou, a partir de meados do século XIV, uma crise de máo-de-obra ñas cidades e fortes subidas de salários, facto contra o qual os poderes públicos tentaram reagir, especialmente em Franca e em Inglaterra. O Esta tuto dos Trabalhadores, aprovado em 1351 pelo Parlamento inglés 378
e excepcionalmente draconiano, proibia os patroes de pagarem aos operários salários superiores aos que se praticavam antes da epi demia. A este máximo de salário vinha juntar-se um máximo dos prefos. Além disso, cada assalariado tinha um lugar fixo, o que o impedia de se dirigir a outros patroes que lhe pudessem oferecer salários mais altos. No mesmo ano, em Fevereiro de 1351, Joáo o Bom editou uma ordenanza limitando a subida dos salários a um ter^o de nivel de 1347 apenas no viscondado e prebostado de Paris. Esta medida, aparentemente menos rude do que a inglesa, era-o igualmente porquanto no intervalo se registara um enfraquecimento da moeda. E, sempre no mesmo ano, até ao reí de Castela, náo houve quem náo tomasse medidas semelhantes. Os resultados náo foram brilhantes. Em Franca, a orde nanza náo passou de letra-morta. Em Inglaterra, onde juízes especiáis foram encarregados da sua aplica?áo, a eficácia do «Estatuto» continuou a ser duvidosa. No fundo, estas disposifóes só tém interesse pelo seu significado: pela primeira vez, os produtores viraram-se para o Estado e pediram-lhe que interviesse. Mas, em Inglaterra, náo houve trabalho forjado nem máxima. Do mesmo modo, náo surtiram efeito certas medidas «liberáis» tomadas por Joáo o Bom, como as facilidades concedidas aos «feirantes» de se instalarem em Paris, a possibilidade de os mestres recrutarem tantos aprendizes quantos desejassem, o prolongamento do dia de trabalho e a autoriza?áo para trabalhar «á luz da vela», ou seja, depois de o Sol se pór. As cidades que, por dificuldades materiais anteriores á segunda metade do século XIV, tinham já uma menor resistencia, como é o caso de algumas cidades da Flandres, foram as mais atingidas por estas medidas, acentuando o seu proteccionismo contra a perigosa concorréncia dos novos centros. Poder-se-ia mesmo falar de um exclusivismo urbano. Agora que os oficios tinham uma palavra a dizer sobre o regime económico, cada vez mais se afirmava um estado de espirito em reacgao a todas as dificuldades existentes. Esquecendo provisoriamente a oposifáo entre os seus interesses, todos os grupos de oficios entraram em acordo «para reforjar ao máximo o monopólio de que usufruía cada um deles e esmagar qualquer veleidade e qualquer possibilidade de concorréncia» (H. Pirenne). Daqui em diante, o produtor vai ao ponto de sacrificar com pletamente o consumidor. «Para os operários... a subida de salários, para os artesáos... o aumento ou pelo menos a estabilidade dos pre sos, constituem o objectivo a atingir. Nada entrevendo para além do círculo das muralhas da comuna, todos pensam que, para assegurar a sua prosperidade, bastará fechá-la a qualquer intervengo exterior. O particularismo torna-se exacerbado; nunca a concepfáo que faz de cada profissáo o dominio exclusivo de um corpo privi legiado se revelou com tanto exagero. O que os membros do oficio 379
entendem por liberdade é, com efeito, o privilegio que garante a sua situado. Aos seus olhos náo existe qualquer direito, além do direito adquirido. Para cada grupo, a n o d o de bem comum dá lugar á do seu bem particular» (H. Pirenne). Daqui resultam, um pouco por toda a parte, as restribes á aquisigáo do direito de burguesía (cuja taxa aumenta e náo só na Alemanha) e a hostilidade reforjada contra os feirantes que poderiam partilhar as «vantagens» de que usufruíam os antigos cidadáos dos oficios. E esta tendencia’ de «criar o vazio industrial em volta dos •muros da cidade» para melhor defender a sua preponderancia económica é cada vez mais firme. As escaramuzas ou o pagamento de grandes somas levam o conde da Flandres e depois o duque da Borgonha a proibir a abertura de qualquer loja ou oficina fora dos recintos das cidades ou a venda de produtos náo fabricados na ci dade, fora dos períodos de feira. Uma auténtica raiva levanta as cidades dos Países Baixos — cujos belos tecidos se vendem pior a partir do século XIV — contra a concorréncia das pequeñas cidades e das regióes rurais. O caso de Gand é particularmente significativo. A partir de 1314, a cidade proibe o fabrico de tecidos num raio de cinco milhas em redor das muralhas. Esta proibifáo é im posta pela violéncia: durante todo o século XIV, grupos de expedido percorrem os campos e as aldeiaS’* destruindo ou confiscando as térras e as tinas de pisoeiro que descobriam. A nostalgia de um passado mais brilhante e as dificuldades do tempo presente lancpavam as cidades contra as oficinas rurais. Estas últimas já náo constituíam novidade no século XIV, mas as dificuldades urbanas aliadas ás ambifóes políticas levaram as principáis cidades á violéncia. Os habi tantes de Bruges e Ypres, em 1322, e os de Saint-Omer. em 1327, come?aram também a devastar os campos. Os centros secundários, antigos ou recentes, foram suas vítimas, tal como as zonas rurais. A tecelagem de Termonde foi arruinada por Gand, e mais tarde, no fim do século XIV, chegou a vez de Poperinge, destruida por Ypres. A fim de se desembarazaren! da concorréncia das pequeñas cidades cuja forga exageravam, as grandes cidades téxteis arrogaram-se u direito de proibir ás suas vizinhas o fabrico dos tecidos com maior procura. Acusavam-nas de «falsificado», evocando «pretensos privilégios, que nunca ninguém vira, mas cuja existencia lhes (bastava) afirmar (H. Pirenne). Quando do processo intentado por Poparinge contra Ypres, em 1373, perante o tribunal da corte da Flandres, os habitantes de Ypres evocaram o «direito urbano», justificando o seu monopólio perante os tecelóes de Poperinge, que invocavam «o direito natural que permite a cada um ganhar a sua vida». Todos estes conflitos entre os grandes centros de um lado, e as pequeñas cidades e aldeias próximas do outro, viriam posteriormente a alastrar: Lille continuará a desencadear hostilidades durante todo o século XVII! 380
A atitude dos oficios relativamente aos empresários téxteis foi ainda mais desconfiada do que antes e, nos Países Baixos especial mente, os artesaos marcaram pontos. Os grandes mercadores foram frequentemente obrigados a inscrever-se no oficio de tecelóes e tentou-se reduzi-los «ao papel de simples chefes de oficinas». Neste aspecto, a estrutura da indústria textil limitou o sucesso dos tece lóes que poderia ter conduzido á catástrofe económica. De qualquer forma, isso levou a uma maior esclerose da actividade «textil», tanto mais que os oficios mantiveram cada vez mais firmemente os pro cessos técnicos tradicionais. Qualquer m odificado parecia um atentado aos «privilégios». A esclerose foi, no entanto, menos notória, uma vez que, desde o século XIV, os mercadores feirantes — italianos e hanseáticos —, os homens que se colocaram ao ser vido das companhias italianas, substituíram os «patróes» da cidade como importadores de lá e exportadores de tecidos, em todas as cidades flamengas. Na Flandres, contudo, e depois por vezes até no Brabante, o mal-estar económico foi suficientemente forte para levar uma parte da máo-de-obra a emigrar para Florenfa e depois para Inglaterra (para onde os atraíam salários mais elevados). Em Itália, a situ ad o era melhor. Apesar das epidemias, cidades como F lo rería mantiveram-se florescentes. No entanto, um pouco por todo o lado, o estado de espirito modificara-se a partir do século XIII. A imagem clássica de uma sociedade «inteiramente domi nada por imperativos religiosos», parcialmente válida outrora, a partir de 1300 deixa de ser adequada, e é já muito difícil falar de «economia subordinada». Os monopolios que se erguem contra os feirantes e os controlos de presos já quase nada tém em comum com a doutrina do justo pre?o, que condenava todo e qualquer espirito de com petido, com o objectivo de, em nome da moral natural e crista, nivelar as condifóes e os lucros. Werner Sombart enganou-se ao afirmar que, durante toda a Idade Média, ninguém procurara acumular riquezas mas apenas atingir lucros razoáveis e manter o seu lugar na sociedade. De facto, o exclusivismo urbano náo foi acapitalista, mas antes anticapitalista. Contudo, este exclu sivismo dos oficios náo era forzosamente aprovado pela Igreja. R. De Roover demonstrou que a Igreja náo aplaudiu de modo algum os monopólios criados pelas corpora?5es dos oficios. Pelo contrário, acusou-os de manter presos de compra de matérias-primas demasiado baixos, em favor dos mestres, e prefos de venda dema siado elevados para os produtos acabados. A Igreja náo era táo hostil, como se afirmou, ao espirito de com petido, ou mesmo de concorréncia, e á livre iniciativa. O justo pre?o continuava, para ela, ligado mais ás necessidades do mercado do que aos custos de produdo. Só em caso de escassez dos produtos de primeira necessidade, e portanto principalmente dos géneros alimenticios, a Igreja 381
obrigava as autoridades a debrugarem-se sobre os presos e a fixarem um máximo. O que ficou dito aplica-se aos oficios «de vitualhas», que atraíram uma menor aten^ao por parte dos historiadores do que os ligados á «grande industria». Verificava-se aqui o mesmo exclusi vismo e o mesmo desdém pelos interesses do consumidor. Pelo me nos, a sua situ ad o era frequentemente melhor porque a alimentagao dos citadinos se tornara, em período normal, mais refinada e de qualidade superior. O papel de primeiro plano que os talhantes passaram a representar ñas cidades (cf. em Paris) prova formal mente que diversos oficios ligados á alim entado tém daqui em diante um maior peso na política urbana. Todos os estatutos de oficios traduzem «as novas condi^Ses no seio das quais os artesáos tentam conservar as situ a re s adquiridas» (Ph. Wolff). Tivessem ou náo diminuido os expedientes, era preciso fazer tudo para impedir os mais hábeis ou os mais competentes de eliminar os seus colegas com pouca sorte ou menos dotados. O número de criados ou aprendizes empregados por cada mestre teve, portanto, de ser limitado, e a matéria-prima foi autoritariamente repartida entre os mestres... Sobretudo, a maior parte dos oficios fecha-se pela cúpula e, no fim do século XIV, o acesso ao grau de mestre está regulamentado de modo frequentemente draconiano. O aprendiz já nao se pode tornar mestre, sem ter efectuado um estágio como companheiro. Depois, é ainda obrigacfó a apresentar, perante os ajuramentados do oficio, uma obra-prima, cuja dificuldade, tempo indispensável á execu?áo e valor das matérias-primas necessárias aumentam incessantemente. Esta obriga?ao surge a partir de 1313 para os ferreiros de Stettin, em 1360 para os ourives de Riga, e em 1370 para os sapateiros de Lubeque. Em principio, este «exame» justificava-se perfeitamente: o futuro mestre devia dar mostras de capacidades técnicas suficientes. Sob esta aparéncia, escondiam-se, no entanto, segundas inten?5es: pretendia-se desfavorecer os operá rios que náo eram filhos de mestres. Mas imaginaram-se outros meios: o aumento considerável da taxa de entrada para o grau de mestre, o pagamento de uma cau?áo... tudo coisas que, em geral, os companheiros ou criados nao podiam cumprir. A esta descri?áo há que acrescentar muitas varia?6es. O exemplo dos tanoeiros de Bruges prova que uma minoría privilegiada nem sempre, nem em todo o lado, conseguiu reservar para si o grau de mestre e a direc?áo do oficio. A consulta dos estatutos e regulamentos diz-nos que o acesso ao grau de mestre é um privilégio hereditário. O filho de um mestre paga apenas um irrisorio direito de fran quía, enquanto o simples subordinado tem de pagar quase vinte vezes mais e, em 1478, até cinquenta e seis vezes mais! De facto, este oficio praticou uma política de estabilidade: o número de novos aprendizes admitidos, como o de novos 382
mestres, variou pouco de um ano para o outro. Mas, se nos reportarmos ao registo de inscri?6es anuais, conservado a partir de 1375, apercebemo-nos de que os filhos dos mestres francos raramente representaram 50% ou mais das inscriCÓes anuais no grau de mestre. Contudo, é nítido que o caso mais vulgar foi o da hereditariedade do grau de mestre. Na origem deste facto, está o sentimento de inseguran?a. No inicio do século XIV, havia em Gand uma centena de talhantes e outros tantos vendedores de peixe, provenien tes de outras tantas familias diferentes. Em 1794 — a here ditariedade manteve-se sólidamente até ao fim dos tempos modernos—, «apenas se encontra meia dúzia de nomes de familias de talhantes, e dos 83 vendedores de peixe, 79 chamavam-se Van Loo» (H. Van Werveke). De 1420 a 1449, em 280 mestres fabricantes de cerveja, havia apenas 213 filhos de mestres. De 1480 a 1509, estes eram 175 em 183, e, entre 1510 e 1539, todos os novos mestres eram filhos de mestres. Gand representa talvez um caso extremo, mas náo deixa por isso de ser sintomático. Daqui resultou um novo agrupamento do exclusivismo urbano, um desprezo ainda maior pelos interesses dos compradores e dos consumidores e, o que interessa em especial á história económica, uma estagnafáo agravada do trabalho artesanal. Frequentemente privados da esperanza de atingir o grau de mestre, e deste modo cada vez mais afastados do mundo dos mestres, os companheiros nao podiam deixar de se lhes opor, agora mais vivamente do que nunca. Este facto foi evidente, sobretudo no Império, onde faltava um poder central capaz de travar os «terrores», embora o fenómeno se tenha estendido a quase todo o Ocidente. Numa primeira fase, os assalariados de um mesmo oficio formaram «coligafóes tempora rias» para lutar por aumentos de salários. Depois, verificou-se uma reacfáo rápida e geral. Em caso de necessidade, os estatutos eram completados por cláusulas que fixavam imperativamente os salários e reservavam aos ajuramentados o direito de resolver qualquer conflito entre mestres e operarios (a menos que as autoridades urbanas, quase sempre desfavoráveis a estes últimos, tivessem decidido julgar tais conflitos). Bem raras foram as cidades onde, como em Estras burgo desde 1363, se criaram verdadeiras «comissSes paritárias», destinadas a salvaguardar os interesses operarios contra os abusos dos mestres. Como, salvo raras excep?5es, náo encontravam protecfáo junto das instancias superiores dos oficios ou da cidade, os companheiros formaram posteriormente os seus próprios agrupamentos permanentes. Estas associa?oes de companheiros, prudente mente camufladas de confrarias religiosas ou de caridade, obrigavam todos os companheiros a aderir ao grupo e impunham-lhes uma 383
forte disciplina, duas condifóes indispensáveis se se quería discutir em forfa com os mestres. E, evidentemente, cada associado de companheiros criou uma caixa. Foram lógicamente os companhei ros em maior número, os dos oficios mais importantes em número e em influencia económica, como os assalariados das tecelagens, que mais frequentemente obtiveram melhores resultados, ou seja, o direito de eleger os seus chefes e o de exercer um poder disciplinar sobre todos os membros. Por vezes, com a preocupadlo de manter a ordem, as autoridades urbanas forfaram os mestres a fazer concessoes. Em Basileia, por volta de 1400, os mestres foram proibidos de se entenderem entre si para impor as mesmas taxas de pagamento a todos os assalariados. Mas, em geral, os resultados foram duvidosos, ainda que, aqui e ali, se revele uma certa melhoria do destino dos operários, cujas consequéncias sáo aliás bem difíceis de avaliar. Formadas inicialmente a nivel local, as associafoes de compa nheiros atingiram, pouco a pouco, num número crescente de casos, um raio de acgáo regional e até inter-regional. Isto explica que os movimentos sociais, com as suas im plicares económicas, tenham alastrado como uma nódoa de gordura. De facto, nos séculos XIV e XV, náo houve apenas uma «guerrilha feita de greves, de coli g a r e s e de despedimentos, entre mestres e criados» (Ph. Wolff). Houve também levantamentos sangrentos e curiosamente sincroni zados em Franca, em Inglaterra e em Itália, sobretudo de 1378 a 1382. Desejaríamos poder medir as incidencias eqpnómicas destas inúmeras agitafóes sociais. Frequentemente provocadas pela recessao, que encorajara os patroes a comprimir os presos de custo, a baixar os salários, ou, pelo menos, a bloqueá-los, tais agitagSes ape nas podiam manter e prolongar a depressáo.
As actividades téxteis
Os processos técnicos Sabe-se (cf. supra, pp. 256 ss.) quanto era delicada e complicada a produ?áo de tecidos de lá. Sabe-se ainda que certos aperfeifoamentos técnicos, introduzidos antes de 1300, tiveram bastante dificuldade em impor-se. Recordamos ainda, citando J. Schumpeter, até que ponto podia ser grande o desfasamento entre a invenfáo e aquilo a que os Anglo-Saxoes chamam «¡novado», ou seja, a difusáo e aplicado desta in v en d o nos tempos anteriores ao século XIX. O caso da roda de fiar assim o testemunha. Nascida na segunda metade do século XIII, permitía, através de meios mecánicos, uma fia d o mais rápida. Mas só no século XIV o seu uso se difundiu. E muitos regulamentos urbanos reduziram o seu emprego ao fio 384
de trama, sendo o fio de cadeia reservado á roca e ao fuso. O completo sucesso só no século XV foi assegurado, com uma roda de fiar mais aperfeigoada, munida de pequeñas asas e que podia bobinar o fio automáticamente. A parte a difusáo da roda de fiar, depois de 1300 houve poucas novidades no trabalho da la. Mas o fim da Idade Média caracteriza-se. pelo menos em Itália, por um vivo progresso do trabalho da seda, cujas operagoes preliminares apelavam sobretudo á mecánica. Depois de amolecidos em água quente, os casulos eram dobados por mulheres. Nesta operado de extracgáo dobavam-se vários casulos simultáneamente de modo a obter um fio mais sólido. Este fio era em seguida torcido por uma máquina de fiar e torcer muito aperfeigoada e movida pela forga hidráulica. Este moinho de dobar a seda teria apare cido em Bolonha, a partir de fináis do século XIII. Conhecido por torcitorio ou filatorio, este moinho tinha capacidade para accionar várias centenas de fusos, em Lucques a partir do século XIV e em Florenga, do século XV. Obtinham-se entáo pequeñas meadas cuja goma era preciso fazer desaparecer. A seda era cozida em alguidares, onde fervia durante várias horas em água com detergente. Depois, num moinho accionado mecánicamente, preparava-se a ca deia para a urdidura. Seguia-se a tecelagem, feita num tear mais aperfeigoado do que os destinados ao fabrico de tecidos de lá. Era um trabalho mais delicado e mais difícil do que o dos panos, já que os tecidos de seda eram bem mais variados, desde as imitagoes das sumptuosas sedas orientáis e os brocados, até ás sedas simples, como os tafetás e os cetins. Havia, portanto, teares especiáis, de grande valor e cujo segredo era cuidadosamente guardado por cada cidade especializada. Certas sedas requeriam fios de trama ou de cadeia de várias qualidades, como por exemplo os veludos. Sendo os fios de seda mais frágeis do que os de lá, náo podiam ser utilizados na tintura das sedas os mesmos corantes. Os corantes utili zados ñas sedas eram produtos orientáis, logo de elevado prego, como a cochinilha da Arménia, o Índigo, o pan-brasil... É inútil sublinhar que o progresso da indústria da seda está ligado ao progresso do luxo da aristocracia e da grande burguesía. A geografía das indústrias téxteis A primeira observado a fazer é que o quase monopólio da tece lagem flamenga pertence já ao dominio do passado. Náo houve, como se pensara, uma «crise da tecelagem» mas uma «multiplicidade nova das concorréncias». Ao contrário da Flandres, os países vizinhos do Hainaut, Brabante, Holanda e Liége multiplicaran! os seus centros, sobretudo na parte Norte, Louvain, Bruxelas, Malines, Bois-le-Duc, Maastricht e até Leyde, fazendo decair as cidades do 385
O S TLC1D OS NOS PA ISES BAIXOS NO SEC U LO XIV
Segundo Ph. W olíl Histoire genérale du truvail. t. II: -L'ájie de l'a rtis a n a t-. Nouvelle Lihrairíc de I-ranee. Puris. p. IN4
Sul como Saint-Omer, Ypres, Lille, Douai, Arras. Algumas destas cidades «meridionais» teriam mesmo entrado em decadéncia se náo tivessem encontrado actividades de substituido, como o cftmbio em Lille, a tapetaría em Arras e o grande comércio dos produtos ali mentares um pQiico por toda a parte. A política de baixos salários e as repetidas desvalorizacdes náo foram suficientes para acabar com a concorréncia estrangeira e com o éxodo — aliás limitado — da máo-de-obra flamenga para Inglaterra e Itália. Em Inglaterra, a tecelagem rural tomou-se de primeira importáncia, como aliás a das cidades. Em Bristol, no século XV, havia bairros de tecel5es e pisoeiros, o mesmo acontecendo em Salisbúria e em Winchester. Um pouco por todo o lado, no resto do Ocidente, nasceram oficinas que tentaram, náo sem sucesso, obter pelo menos clientelas regionais. Depois da Guerra dos Cem Anos, a tecelagem desenvolveu-se na Normandia, na Champagne e no Languedoc... No Império, mercado habitual dos tecidos flamengos e, mais tarde» ingleses, a tecelagem surgiu em várias cidades, como por exemplo Fríburgo, onde, por volta de 1450, ocupava mais de metade da populado. O mesmo se passava em Espanha, onde o merino tez crescer, na segunda metade do século XIV, a tecelagem catalá e aragonesa. Por seu tum o, os Italianos já náo se contentam em tingir
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e acabar os tecidos do Norte. A tecelagem italiana, nascida antes de 1300, conheceu um grande progresso. Segundo Villani, duzentas lojas florentinas produziam, entre 1335-1340, de 70 a 80 000 pegas de tecidos por ano. Depois das dificuldades da segunda metade do século XIV (devidas á peste negra e ás p ertu rb ares sociais) a Arte della Lana atraiu os desempregados flamengos e trabalhou as las inglesas e espanholas. Ao mesmo tempo, desenvolveram-se outras industrias téxteis, por vezes concorrentes das anteriores. A indústria da seda está, pois, em plena prosperidade ñas cidades de Itália: Florenga, Lucques, Sena, Génova, Veneza ou Miláo. Numa primeira tentativa de dotar a Franca de uma indústria da seda, Luís XI introduzi-la-ia, princi palmente em Tours. Mas o seu sucesso foi entáo reduzido. Os teci dos de linho e de cánhamo foram fabricados em massa e em mais centros. Dado que a m acerado requer a utilizado de cursos de água de corrente muito lenta, o linho concentrou-se parcialmente na Flandres, em redor de Courtrai, no Hainaut, nos arredores de Ath, no Brabante, próximo de Nivelles, nao mencionando já as velhas regióes como a Lorena, a Champagne, o Oeste francés, onde era cultivado e trabalhado há muito tempo. Nos mercados alemáes e ingleses, os tecidos destas velhas regióes sofreram a dura con corréncia dos provenientes dos novos centros. O cánhamo, cuja história ainda náo foi feita, era produzido e tratado sobretudo no Oeste da Franqa. As telas de cánhamo normandas vendiam-se bem na Inglaterra, enquanto os tecidos de Vitré, de Locronan na Bretanha e de Olonne em Poitou adquiriam boa clientela na Penín sula Ibérica. O algodao, vindo do Oriente em barcos venezianos, foi inicialmente trabalhado no Norte da Itália e em especial pelos artesáos de fustoes de Cremona. Partindo daí, esta indústria ultrapassou o Brenner e instalou-se em diversas cidades da Alemanha do Sul, no século XV, sob a influencia dos italianos ao servido de grandes empresarios alemáes como Georg Fugger. Mas a tecelagem da Flandres náo mergulhou na decadencia total, como por vezes se disse, e foi alvo de uma reconversáo. É certo que a produfáo das grandes cidades entrou em declínio no século XIV. Contudo, Ypres, a mais precocemente atingida (século XIII) mantém ainda um lugar de honra. Em principios do século XV, este centro manifesta até uma boa recuperado, mantendo sempre a tradicional alta qualidade de fabrico. Por seu tumo, entre 1331 e 1342, Arras passou a utilizar novos (para ela) processos técnicos e orientou-se no sentido de uma produpáo barata. Tournai, Valenciennes e Douai parecem, com algumas variantes, ter seguido a mesma política. Por outro lado, há a assinalar que a clássica oposicáo entre tecelagem urbana e tecelagem rural se torna nestes termos muito brutal. Como decidir se um pequeño centro é uma cidade ou uma aldeia? Para Courtrai e as suas vizi-
nhas do vale do Lys, em constante ascensáo até 1420-1422, a hesi ta d o náo é possível: eram mesmo cidades. Sé-lo-iam também Hondschoote, Werwicq ou Langhemark em desenvolvimento até ao inicio dó século XV? Aqui, a hesitado é legitima. De qualquer modo, alguns centros secundários de tecelagem prosperaram, du rante todo o século XIV, e nos mercados longlnquos, de Itália e outros, as suas vendas, sobretudo as de tecidos de qualidade média, foram de grande import&ncia. O desenvolvimento dos centros de amplitude média está ligado ás transforma?5es da produdo, ou seja, das técnicas. É certo que náo se renunciou á bela lá inglesa (a etapa de Calais, estabelecida pelos ingleses em 1363, foi de imediato muito frequentada) e que as las inferiores eram sempre reservadas, em principio, aos tecidos baratos. Mas talvez se tenha simplificado a tecelagem e abreviaram-se seguramente as diversas opera?5es de acabamentos.
P R IN C IP A IS C E N T R O S D E IN D Ú S T R IA T E X T IL N O N O R T E D E IT Á L IA N O S S É C U L O S X I I I E X IV
Segundo Ph. Wolff, Histotre Genérale du truvait. i. II: -L 'ágede Taitisanat-, op cit.. p. 185.
No século XV, o quadro altera-se um pouco. As antigas indústrias — as dos tecidos mais bonitos — estáo na ruina em Gand, Bruges e até em Ypres, apesar de corajosas tentativas. Mas estas
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cidades viraram-se (principalmente Bruges) para a indústria de saietas (saietas sao tecidos de lá mais leves e geralmente de qualidade inferior) (’). E as cidades de língua romana lutaram de modo parti cularmente eficaz, especialmente Arras, cujas saietas foram imita das por Saint-Omer, Lille e Amiens. Nos Países Baixos, as produfdes «caras» estáo longe de ter desaparecido por completo, no século XV, mas o primeiro lugar é ocupado pelo fabrico de tecidos ligeiros. Os aspectos específicamente financeiros da industria textil, em especial o seu rendimento, eram impossíveis de esclarecer relati vamente aos séculos XI, X II e XIII. Em contrapartida, grafas ás fontes numéricas, foi possível lanzar algumas luzes sobre este problema primordial aos olhos dos economistas, relativamente ao fim da Idade Média. A contabilidade das companhias de lanificios controladas por um grande comerciante de Prato, cidade próxima de Florenfa, foi, em tempos, minuciosamente estudada (F. Melis). Francesco di Marco Datini empregou os seus capitais, entre 1383 e 1401, em quatro sociedades de lanificios, que eram dirigidas por comerciantes estabelecidos em Florenfa, Pisa, Génova e noutros grandes centros mediterránicos (Avinháo e Barcelona). Datini náo era propriamente um comerciante de tecidos, mas um simples financiador que contribuía com o capital: os empreendimentos por ele controlados eram do tipo do grande negocio industrial dominado por um comerciante capitalista. A sua vasta correspondencia comer cial e os seus livros de contas foram conservados. Verifica-se, me diante a sua consulta, que os resultados financeiros eram nítida mente mais fracos do que os das companhias especificamente comer ciáis da altura: o lucro líquido andava á volta dos 5 %, náo ultrapassando nunca os 7 % , contra um rendimento médio de 20 % das outras. A reparti$áo dos encargos e despesas é esclarecedora: Preso total de custo = 100% repartindo-se do seguinte modo: — Pre^o de compra da lá bruta — 37,96 % (para o conjunto de qualidades de lás, inglesa, das Baleares, do Levante espanhol, da Pro venga, da Romagne e do Norte de África). — Custo total dos trabalhos de fabrico dos tecidos: 56,44%, dos quais: — para as opera?oes preliminares: 15,83 % (eram os trabalhos que sobrecarregavam mais o pre?o de custo ainda que fossem confiados a mulheres,
(') Depois de, por vezes, terem passado por um estadio intermediario, o da nova tecelagem ou biffe, feita com a lá da regiáo, por exemplo em Maubeuge (J. Godard), a partir de fins do século XIII. Mas o seu sucesso foi efémero.
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muito mal pagas, e requeressem pouco material e poucos produtos, todos eles baratos) —-para a tintura: 9,59% — para a fiagáo: 9,48 % — para a tecelagem: 8,03 % — para as ourelas: 3,69 % — para a pisoagem e preparos: 9,82 % — Despesas gerais (administrado): 5,60% A lá era, portanto, uma matéria-prima muito cara, uma vez que atingia mais de um tercio do prego do custo. Em contrapartida, as despesas gerais eram insignificantes, sinal de um aparente bom rendimento do empreendimento. Re lativamente ás diversas operagoes de fabrico dos tecidos, nada tem de espantoso o facto de representarem mais de metade do prego de custo. Onde residía entáo a fraqueza do rendimento financeiro? Em parte, sem dúvida, na estagnagáo da procura e nos pregos. É provável que, para conservar os mercados e talvez para ganhar outros, tenha sido preciso diminuir os pregos de venda. Mas o facto de as quatro companhias controladas por Francesco di Marco Datini obterem um lucro táo reduzido devia-se muito mais á estrutura do artesanato medieval do que á conjuntura económica. O ritmo da produgáo era variável, mas sempre muito lento. Com efeito, o fabricante de tecidos apenas produzia em simul taneo um escasso número de pegas; duas, na maioria dos casos. É certo que os tempos mortos, no processo de fabrico, eram reduzidos ao mínimo, uma vez que cada operagáo era em geral prepa rada quando a anterior atingia a sua fase final. Era possível encetar, para um mesmo lote de lá, dois trabalhos, por vezes tres, simul táneamente. Mas o ritmo, alias variável, dependía náo só das necessidades do mercado mas também das possibilidades da máo-de-obra, visto que nem todos os operarios trabalhavam na indústria textil ao longo de todo o ano. Assim, em Florenga, os trabalhadores da lá, os ciompi, contratados principalmente para a fiagáo, dedicavam-se no Veráo a trabalhos nos campos e ñas vinhas. Portanto, os fabricantes de tecidos só os podiam empregar fora da estagáo agrícola. A racionalizacáo era, portanto, bem mais incompleta do que poderia parecer, através do exame dos ¡números estádios da fabricagáo. Finalmente, o rendimento do artesanato textil era ainda limitado pelas demoras e dificuldades da sua colocagáo no mercado. Com efeito, para uma só pega, a venda «por grosso» prolongava-se por vários meses, um ano, ou mais. Que dizer entáo da venda «a granel»!!! Os retalhos, ainda que de comprimento reduzido, exigiam meses para se esgotarem. Contudo, vendiam-se mais depressa do que as pegas inteiras.
Novos processos, novas técnicas, novas proflssdes
Oficio muito antigo, a vidraria beneficiou de melhoramentos técnicos. Na verdade, náo se tratou de novos processos mas da difusao de técnicas anteriormente elaboradas. Os segredos de fabrico de Murano de Veneza expandiram-se e chegaram longe: várias regioes, e á frente délas a Boémia, aumentaram consideravelmente a produ?áo vidreira, em quantidade e em qualidade. De facto, a aplicado do vidro multiplicara-se na vida quotidiana. Em meados do século XV, as janelas de metade das h a b itares de Viena já eram de vidro. Os utensilios domésticos em vidro eram cada vez mais utilizados. Nos Países Baixos, tinham surgido as estufas — em vidro, evidentemente — destinadas ás culturas delicadas. Em contra partida, o espelho era ainda, antes de 1500, considerado um objecto de luxo. As técnicas que chamam mais a atenfáo sáo as da metalurgia, muito «modernizadas», e as de impressáo, totalmente novas. Os progressos na extracfáo de minerais foram consideráveis, mas constituem o exemplo-tipo da estreita ligado entre as novas técnicas e o pré-capitalismo «industrial». Mais adiante referir-nos-emos a esta questáo; de momento, debru?amo-nos apenas sobre a metalurgia. As novas técnicas aplicadas á metalurgia relacionaram-se inicialmente com a produfáo de metáis preciosos, sobretudo de dinheiro. Mais tarde, foram aplicadas á producto de metáis «comuns». No fim da Idade Média, aumentou o consumo de metáis. Salvo algumas excepfóes, como os utensilios de guerra, esses metáis náo se destinavam ao fabrico de utensilios agrícolas e artesanais. Além das armaduras, cujo fabrico se iniciara havia já muitos séculos, era agora preciso fabricar pe?as de artilharia e balas, uma vez que as armas de fogo já haviam sido introduzidas no Ocidente. Tentara-se com sucesso obter metal em maiores quantidades e com menos perdas. As forjas foram aumentadas: a forja catalá, nos Pirenéus, chegou a fornecer mais de 50 Kg de ferro em fusáo, ou seja, urnas quinze toneladas por ano. Foi entretanto na Europa Central que surgiram as maiores forjas, com uma capacidade de produ?ao tripla da forja catalá. Até entáo, o ferro era produzido numa única operado. Mas a novidade mais rica em consequéncias, para o futuro próximo e longínquo, residiu na divisáo do trabalho em duas operafóes, o que permitiu a invenfáo do alto-forno. No inicio, o forno tinha uns 4 metros de altura, sendo o acesso á sua abertura superior, por onde se laneava o minério, feito através de um plano inclinado. Entretanto, surgiu a ideia de acrescentar calcário ás camadas alternadas de carváo e minério, com vista a facilitar a fusáo já favore cida por grandes foles. Na base, sobre areia, escoava-se o ferro fundido, através de calhas. Num segundo tempo, os 391
moldes de ferro fundido eram levados á forja, refundidos, transformados em ferro, com a ajuda de grandes martelos accionados hidráulicamente. Este ferro era produzido como amigamente, mas sem dúvida em muito maior quantidade e destinava-se a utensilios e «máquinas». Do ferro fundido, faziam-se canhóes, balas, etc.... O processo indirecto de fabrico do ferro, que anunciava um futuro brilhante, tinha pois nascido. A Alemanha Cen tral foi quem o utilizou primeiro, sendo depois seguida pelo resto do país e, por fim, por regióes cada vez mais numerosas (J. U. Nef). Liége possuiu altos-fornos provavelmente a partir de 1400. E, em 1500, raras eram as provincias do Ocidente que os nao tinham. Mas estes altos-fornos eram «sorvedouros de madeira» (eram precisos 25 esteres para 50 Kg de ferro), o que deu origem a protestos e a grande inquietado, nos tempos em que as florestas eram de primeira importancia na vida de todos os días. Daí que a utilizado do carváo mineral, conhecido há muito, tenha sofrido alguns progressos, especialmente ñas regióes do Mosa, em redor de Liége. Enquanto a metalurgia nasceu antes da história, a imprensa data de fins da Idade Média. Este novo ramo do trabalho artesanal deve-se a dois factores: a necessidade de «tiragens» cada vez maiores dos livros que os escribas tinham, daí em diante, de recopiar, chegando o seu número a atingir as centenas de exemplares, e a substituido —■parcial — do pergaminho pelo papel. O papel era conhecido havia longos séculos, mas durante muito tempo mantivera um custo muito elevado, além de ser frágil e demasiado espesso. Ora, a partir do século XIV, a difusáo crescente das roupas interiores em tecidos de linho e cánhamo fornecia «trapos» cada vez mais abundantes, adequados á transform ad0 em papel, mais delgado e mais sólido. No século XIV, os moinhos de papel — trata-se de um novo aperfeigoamento técnico da utilizad0 da forga hidráulica — espalharam-se por toda a Itália, Avinháo, Bacia de Paris... A imprensa podia nascer. O seu sustentáculo estava pronto, quanto á qualidade, quantidade e baixo prego, resultando este último dos progressos técnicos e do aumento da produgáo. A imprensa nao proveio da xilografía (estampas talhadas em geral na madeira e já reproduzidas por «impressao»), mas das artes do metal. Por volta de 1450, o problema do fabrico dos caracteres movéis em metal estava resolvido, gragas a uma boa técnica de fundigáo e a um melhor conhecimento dos metáis e das ligas, depois dos pacientes esforgos de alguns homens, dos quais o mais célebre foi evidentemente o ourives de Mogúncia, Johann Gutenberg. No fim do século XV, esta nova indústria estava já em vias de expansáo, apesar de ter nascido há táo pouco tempo. Este novo ramo do sector secundário anuncia, mais do que qualquer outro, as indústrias modernas. De facto, o compositor teve de adquirir imediatamente um automatismo que prefigura já o estado 392
de espirito do moderno taylorismo. E, como cada compositor podia ser levado a trabalhar em diversas oficinas, os primeiros tipógrafos viram-se muito cedo na obrigafáo de estandardizar os caracteres, uniformizando os seus tipos, dimensóes e repartido. Mas tudo isto será obra do século XVI, mais do que do século XV. Por volta de 1500, a nova imprensa ainda náo desenvolverá as suas ampias consequéncias, quer no dominio económico quer nos dominios social, político e religioso.
A lé m d o a r t e s a n a t o : e m d i r e c $ á o a u m p r é - c a p i t a l i s m o I n d u s t r i a l
Em fins do século XIII, ainda náo é possível falar de pré-capi talismo industrial. O mundo artesanal estava apenas «matizado», no sector textil, de um pré-capitalismo industrial e financeiro. Havia muitas concentrares de trabalhadores afectos a uma mesma acti vidade, por exemplo nos grandes estaleiros de construgáo das cida des. Mas estas concentragoes de operarios mantinham-se provisorias e com objectivos náo capitalistas. Só, talvez, os estaleiros navais de alguns grandes portos poderiam passar rigorosamente, antes de 1300, por empreendimentos capitalistas. Com o fim da Idade Média, o quadro altera-se, inicialmente de modo quase insensível, mais Tapidamente a partir dos anos 1450. Ao lado dos vastos estaleiros de constru?6es urbanas da rica Itália, ao lado dos do continente e de Inglaterra, a actividade redobra nos estaleiros navais e nos portos do Mediterráneo (os de Veneza, dirigidos pelo Estado, reuniam vários milhares de operários) e ainda nos da Hansa, de Inglaterra, da Bretanha, da Normandia (mas apenas depois de 1450). Noutros sectores, novos «empreendi mentos» ganham forma, já sem carácter artesanal. Um espirito de individualismo e até de concorréncia (ainda tímida) desponta em certos ramos da produfáo. Este espirito foi encorajado na Flandres, por exemplo, pela fixa?áo de empresas fora das cidades, logo subtraídas aos regulamentos artesanais. Aliás, a vidraria, a metalurgia e a imprensa empregam mais pessoal do que as tradicionais oficinas e tém necessidade de um material mais aperfei?oado e mais caro. Um bom exemplo é o dos moinhos da regiáo de Toulouse (G. Sicard). As enchentes do Garona danificavam muitas vezes os grupos de moinhos: moinhos de farinha, de triturar casca de carvalho, e também os moinhos de papel. A fim de melhor se defenderem, as associa?oes de proprietários de moinhos transformaram-se em sociedades, prefigurando nitidamente as actuais sociedades anónimas. As partes de moinhos foram declaradas negociáveis e tornaram-se objecto de especula?óes análogas, em diversos aspectos, ás nossas especulacóes da bolsa. Pouco a pouco, os artesáos que os utilizavam vendiam as suas partes 393
A METALURGIA E AS MINAS NA EUROPA NO FIM DA IDADE MÉDIA
a financeiros e transformavam-se em empregados de sociedades por accSes. Foi, contudo, ñas minas que as sociedades capitalistas mais se desenvolveram. Durante rr.uito tempo, as técnicas de extracfáo medievais mantiveram-se primitivas, mais primitivas ainda do que no Imperio Romano. Escavavam-se buracos, próximos uns dos outros, que se exploravam em céu aberto e se abandonavam, a partir do momento em que a água os invadía. Só muito tarde se arriscou a escavanes de pocos ligados por galerías. Os baldes que continham o minério eram ¡fados com a ajuda de um sarilho de máo, ou passando-os de máo em máo, através de uma galería em plano inclinado. Só no final do século XIII se come?aram a utilizar sarilhos mais potentes, movidos por animais ou pela for^a das águas. Até esta altura, a extracfáo de minérios nao passara de um trabalho complementar dos camponeses. Especialmente a do carvao mineral, que náo sofreu qualquer grande progresso até ao fim da Idade Média (salvo em Liége, onde o trabalho era muito concentrado, favorecido por espessos veios que afloravam a super ficie, perto do Mosa). Em contrapartida, a explorado de outros minérios experimentou, no fim da Idade Média, transformacóes aos níveis da técnica propriamente dita e do financiamento. Excluindo diversas provincias francesas, onde a pros p e c to foi reservada aos membros de associacoes ou a «profissoes» bem definidas (Alta Normandia, regiSes de Perche e Alencon), a actividade mineira estava e perma necía aberta a todos. Qualquer pessoa podia pedir uma concessáo ao rei ou ao principe, com o encargo único de reservar para quem lha concedesse uma parte da produfao, em geral de 10'%. Por vezes, como no caso das velhas minas de estanho da Cornualha inglesa, o soberano reservava-se o direito de preempcao sobre o excedente, a um preco inferior ao do mercado. Além da renda devida aos poderes públicos, era preciso prever a indemnizado ao senhor proprietário do solo, que forneceria a madeira, a forca hidráu lica, o alojamento para os mineiros... enquanto o agente do rei partilhava com o concessionário a vigilancia, a adminis tra d o e a justifa dos negócios da mina. Tudo isto era feito de acordo com os ajuramentados das comunidades de minei ros. Isto explica que o destino dos mineiros. apesar da sua dura profissáo, fosse mais invejável do que o de membros de outras profissSes. Iniciado por volta de 1200, o progresso da produdo mineira náo diminuiu antes de meados do século XIV. Estabilizou entáo, em relacáo ao ferro e á prata, apesar da crescente procura dos armeiros (a guerra arrasava varias regioes) e das oficinas monetárias (uma vez que o stock monetário continuava muito fraco' Esta estabilizado explica-se pela guerra, que destruirá certas instalacoes mineiras e pelo esgotamento dos filSes superficiais. A pressáo 395
da procura incitou a novas prospecgoes e ás escavagoes em profundidade. Este esforgo só era possível pelo financiamento de melhoramentos técnicos. Era também necessário obter uma maior rendibilidade, o que, por volta de 1450, permitiu o melhoramento das condigoes gerais, o regresso á paz em diversas provincias, o renascimento dos negócios e um aumento da procura. Conseguiu-se entáo comegar a escavar pogos mais pro fundos que davam acesso a vários andares de galerías, agora consolidadas por vigas, e cuja ventilado foi melhorada. As minas foram drenadas com a ajuda de poderosos aparelhos: ñas minas de Schemnitz (Cárpatos da Hungría), aproximadamente cem cavalos accionavam rodas que faziam andar as bombas. O tratamento dos minérios foi tam bém melhorado, reduzindo os custos de produgáo. «Entre 1460 e 1530, assistiu-se a uma súbita prosperidade da actividade mineira» (Ph. Wolff). Quer relativamente á prata, cuja produgáo se tornou, na Europa Central, cinco vezes maior, atingindo as 85 toneladas anuais (número que só em 1850 será ultrapassado), quer relativamente ao minério de ferro, que sofreu um aumento de produgáo na ordem dos 400% , quer ainda em relagáo ao cobre. Depois de meados do século XV, apa rece ram novas minas, como as de alúmen (mordente indispensável aos téxteis e que até ai se ia buscar ao Oriente mugulmano), em Tolfa, nos Estados pontificáis. Ainda antes da Renascenga, a actividade mineira e a metalurgia ocupavam no Ocidente dezenas de milhares de homens. Os oficios de mineiros, cedo num beco sem saída e crivados de dividas, foram progressivamente transformados em sociedades anó nimas constituidas com o objectivo de comprar exploragoes em actividade ou de criar outras, após obtengáo de novas concessóes. O seu capital era constituido por participagoes subscritas por toda a espécie de pessoas — comerciantes, clero, nobres — e até por cida des. Estes subscritores ignoravam completamente os problemas mineiros. Como ñas actuais sociedades anónimas, os «fundadores» — verdadeiros accionistas, segundo o nosso actual direito das socie dades— reuniam-se raramente e deviam confiar a condugáo dos negócios a directores pagos para o efeito, que formavam eles próprios o brain-trust (*) dos técnicos. Os mineiros tornaram-se simples assalariados. A separagáo do capital e do trabalho era agora com pleta. Daqui resultam as reacgñes forgosas, tais como a formagáo de «agrupamentos» de mineiros, auténticos sindicatos operários desti
(*) Brain-trust — (palavra inglesa) grupo restrito de técnicos, de peritos, etc., encarregados da elaboracao de projectos ou de planos para um director, um ministro, etc. {N. do E.)
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nados a defender os interesses dos seus membros, se necessário pela greve, face ás exigencias do «patronato». Este último soube, hábil mente, é preciso que se diga, pagar salários bastante elevados, ao mesmo tempo que impunha as duras condifoes de trabalho. Por exemplo, ñas minas de cobre da regiáo de Liáo, que Carlos V confiscou a Jacques Coeur e onde fez instalar operários alemáes, os melhores mineiros de todo o Ocidente (M. Mollat). Naturalmente, no fim do século XV, ainda subsistiam minas de tamanho reduzido, onde o pré-capitalismo «industrial» ainda náo se impusera. Mas, quanto ao essencial, a indústria mineira tornaru-se uma «indústria de tipo capitalista». Assim, o individualismo e o espirito de concorréncia come^am a ganhar lugar no sector secundário, em detrimento do espirito monopolista dos oficios, e a fazer recuar o velho estado de espirito conservador, hostil ás novidades técnicas. É certo que a grande maioria das cidades estreitaram o progresso deste novo pré-capi talismo: em Veneza, os tecelóes de seda conseguiram conservar o monopólio do fabrico das sedas e, por vezes, as cidades iam ao ponto de criar, com o mesmo objectivo, empreendimentos (moinhos, depó sitos de sal...). Isto porque os grandes comerciantes dominavam ainda inúmeras cidades e um pré-capitalismo «industrial» teria cons tituido uma ameaga séria para os capitalistas das finanzas e do comércio, que de modo algum estavam seguros de conseguir dominá-lo. Entretanto, a história de Barcelona, no século XV, serve para demonstrar que o espirito novo já ganhara terreno e náo só a longo prazo: as indústrias novas (sedas, tipografías), já concen tradas, escaparam a todas as regulamentafoes e, depois da guerra civil de 1462-1472, o Conselho urbano decidiu mesmo quebrar os monopolios dos oficios, a fim de atrair os capitais do exterior. Tal como o pré-capitalismo financeiro e comercial, o pré-capitalismo industrial come?ou a tornar-se cada vez mais «internacio nal». Por outras palavras, certos problemas do capital — e portanto também do trabalho — tiveram tendencia para ultrapassar os quadros urbanos: há uma tendencia evidente das economías para assumirem dimensdes inter-regionais. Certos oficios tomaram consciencia desse facto, sobretudo os que se compunham de trabalhadores ambulantes que, num Império politicamente partido, constituíram organizagóes que tomaram o nome de Kreis (círculo): o Kreis dos canteiros de Estrasburgo, presidido pelo mestre-de-obras da catedral, estendeu-se do Mosela ao Alto Danúbio. Muitas vezes pressionados pelas autoridades urbanas, os chefes de um oficio unificaram os seus regulamentos: as cidades renanas e as da Alemanha Central agiram ambas deste modo. E certos príncipes do Império seguiram igualmente esta via. Fora do Imperio, foram os soberanos que se preocuparam com os problemas industriáis, sobretudo depois de 1450, em Inglaterra e em Franca, mais tarde, no fim do século, 397
em Espanha. O caso de Luis XI é bem conhecido. É certo que, tal como a outros reis e príncipes, lhe faltou experiencia em matéria económica e as suas segundas intengoes eram sobretudo de natureza fiscal, ainda que ele tivesse o desejo de fazer da economia um instrumento de dominagao ao servido da monarquia. Regulamentou as minas e, em 1479, fez uma ordenanza sobre a tecelagem, abrangendo todo o país, e introduziu uma indústria de seda em Tour e Liáo. Demonstrou assim, ainda que de uma forma um tanto desor denada, que para lutar contra um pré-capitalismo financeiro estrangeiro (quase todas as sociedades financeiras em Franca eram italia nas) se podia suscitar o nascimento de um pré-capitalismo industrial ñas maos de pessoas do reino, pré-capitalismo cujas rédeas o Estado tentava, ao mesmo tempo, segurar. Pode mesmo perguntar-se se a ideia veneziana de um pré-capitalismo de Estado náo terá aflorado o espirito de Luís XI, grande admirador de tudo o que era italiano.
Capítulo 16
OS PROGRESSOS DO SECTOR TERCIARIO
Entre o ano 1000 e o século X lli, o sector primário fora o sector motor da economia. Nos séculos XIV e XV, a hierarquia modifica-se e o sector terciário passa a ser o mais importante. Este período duas vezes secular tem, pelo menos para o volume dos produtos comerciados, falta de unidade, uma vez que, ñas últi mas décadas do século XV, o desenvolvimento quantitativo do nego cio se seguiría a uma coníracfáo relativa mas longa. No entanto, no que diz respeito ás técnicas, os aperfeifoamentos processar-se-iam bastante regularmente no decorrer dos dois séculos. De tal modo que essas técnicas tém já um carácter moderno muito antes de 1500.
A s té c n ic a s m e r c a n tis e f ln a n c e ira s
Os transportes Nos transportes por térra náo houve inovagoes de envergadura. Os carros de duas e de quatro rodas, puxados por cavalos ou bois, náo parecem ter aumentado muito a sua capacidade de carga e continuam a ser utilizados preferencialmente para os transportes a curta ou média distancia, ñas planicies e nos vales. Para os percursos de longa distancia e de trajecto acidentado, recorreu-se ás caravanas de animais de carga (em particular as muías). Cada animal podia carregar cerca de 250 kg, quando transportava duas «cargas» ao mesmo tempo. Os almocreves eram frequentemente originários das provincias pobres e montanhosas e faziam paragens em hospedarías, que tinham sido edificadas mesmo em pequeños burgos. Raramente eram eles os compradores da mercadoria que transportavam, vendendo-a depois em seu proveito. Ligados por um contrato de «frete» a um ou mais clientes, e trabalhando por conta 399
destes, os almocreves recebiam á partida uma parte do salário global combinado, para cobrir as primeiras despesas. Tanto quanto possível, este modo de transporte continuava a ser reservado ás mercadorias caras. Mas na ausencia de cursos de água, era preciso utilizar as estradas para outros produtos, como por exemplo o vinho. Vejamos alguns cálculos de despesas para esta mercadoria (o vinho comprado para o solar dos condes de Hainaut [G. Sivéry]): — Custo líquido total do «vinho de Franca» levado a Qu'/snoy, a Maubeuge ou a Valenciennes (1334-1335): — prego de compra: 38,5 % — despesas de transporte: 40,9% (e, no entanto, uma parte do transporte era feita por barco) — taxas diversas: 20,6% — Custo líquido total do vinho do «Laonnois» (1390-1391): — prego de compra: 50,4% — despesas de transporte: 37,5 % (trajecto nítida mente menos longo, mas sempre por estrada) — taxas: 12,1% — Custo líquido total dos vinhos de Beaune — vinhos mais caros na compra, trajecto mais longo do que para as duas categorías anteriores — (1414-1415): — prego de compra: 28 % — despesas de transporte: 61 % — despesas diversas: 11 % — Custo líquido total do vinho de Malvoisie, comprado em Damme — vinho muito caro na compra no porto; trajecto menos longo, a partir de Damme, do que para o vinho proveniente de Beaune — (1399-1400): — prego de compra em Damme: 87,5% (incluindo o prego de transporte entre o Oriente e Damme) — despesas de transporte (a partir de Damme): 9,5 % — despesas diversas: 3 %. No Hainaut como noutros locáis, os transportadores eram nume rosos e existia entre eles uma dura concorréncia, que náo bastou para fazer descer estas elevadas taxas. Daqui resultou o recurso aos rios e também ao curso inferior, ou mesmo médio, de ríos secundários, como acontecerá no passado. Excepto em caso de perigo extremo de guerra, as grandes cidades continuaran) a manter cuidadosamente e a aperfeigoar a navegabilidade. Os barcos fluviais, cujas tonelagem e características variavam certamente entre um rio e outro, foram ainda pouco estudados. Vejamos, no entanto, aquilo que se sabe sobre os que navegavam na bacia do Sena médio, no comego do século XV. Em Paris, chamava-se «grande batel» a uma «cha lupa» de 70 a 100 toneladas (1 tonelada de Paris = 8041) e esta categoría era muito corrente no Sena, tanto a mon ta n ^ como a ¡usante da capital. Os tasches da Borgonha, utilizados no Sena, a montante de Paris e nos seus afluentes 400
do curso superior (Yonne...), tinham evidentemente uma tonelagem menor (50 toneladas em média). Esta embarcadlo era naturalmente inferior á dos aleaumets, utilizados no Oise e no Sena, a jusante da capital (80 toneladas em mé dia). As naves do Marne transportavam apenas cerca de 30 toneladas. Mas no grande rio náo faltavam as em barcares mais pequeñas, como as barcadas e as canoas (10 toneladas ou menos). A jusante da regiáo parisiense, as tonelagens médias dos diversos tipos de barcos náo eram mais elevadas: entre 1451 e 1475, 57% dos navios normandos que passavam em frente a Meulan transportavam entre 40 e 80 tone ladas. Alguns barcos em servido no Sena médio e inferior podiam navegar na Mancha, o que evitava transbordos e perdas de tempo. De qualquer modo, os navios fluviais eram navios importantes e era frequente diversos mercadores associarem-se para comprar um ou dois (’). Embora no que se refere aos séculos XIV e XV nem sempre se possa, por falta de pré-estatísticas sérias, avaliar quantitativamente o tráfico realizado nos mares que banham o Ocidente, este era considerável. A despeito das condifóes gerais frequentemente desfavoráveis (guerras de corsários, pilhagens, obriga?áo de com prar salvos-condutos, empréstimos forjados e mal reembolsados, efectuados pelos soberanos...), os riscos por mar eram menores do que por térra e menos frequentes as extorsoes que agravam natu ralmente os custos líquidos das mercadorias. Foram portanto raros, no espado e no tempo, os indicios de declínio acentuado ou mesmo de estagnafáo do comércio marítimo, excepto numa parte das costas francesas. Os navios de mar continuavam a ser de diversos tipos, embora estes tenham variado. Esta diversidade explica-se menos pelas condifóes da navegagáo (pesca, cabotagem ou, cada vez mais, viagens pelo alto mar) do que pelos imperativos de ordem económica: a natureza das mercadorias, ponderosas ou náo, deterioráveis ou náo, de valor médio ou elevado..., obrigava ao recurso a navios muito diferentes uns dos outros. É preciso náo esquecer também as tradi?5es dos homens do mar, que variavam de uma provincia para a outra, de um porto para outro. Devem considerar-se especialmente duas categorías de navios: os que se destinam ao tráfico inter-regioes e os que se destinam ás viagens de longo curso. A primeira cafeeoria incluí os navios aue atingem no máximo uma centena de toneladas (1 tonelada de Bor déus = 9001). Nela estáo incluidas as «barcas» da Catalunha, da Provenca ou da costa da Liguria, algumas do Atlántico, as da Man cha e de uma parte do mar do Norte, os barcos ingleses ou «fran ceses» (barcos, bordaleses, bretóes ou normandos). (>) C f. o s R e g is to s d o P a r la to r io a o s B u r g u e s e s d e P aris, p o r n ó s u tiliz a d o s e m C a m p a g n e s d e la r é g io n p a risie n n e .
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Os barges (embarcagóes chatas de vela quadrada) de 100 toneladas eram entáo pouco numerosos nos portos frequentados pelos Bretóes da segunda metade do século XIV: 6 em 54 navios, em Vannes, em 1359-1362; 3 em 24, em Bor déus, em 1372. A barge do duque da Bretanha, que transportava 300 toneladas, parecia um monstro. Em resumo, a maior parte das criagoes bretás, as barges, escaffes, vessels, crayers, pinasses, transportam entre 20 e 100 toneladas. Al guns barcos mais pequeños náo renunciam á navegagáo alta, dedicando-se sobretudo á pesca, á cabotagem e ás ligagóes através da Mancha. Por volta de 1400, verifica-se uma ten dencia para a estagnagáo, ou mesmo para a redufáo da tonelagem, náo apenas na Bretanha, mas também na Nor mandia e no Oeste da Inglaterra. Catorze marinheiros e 2 mercadores representam o máximo, nos maiores navios. E náo foram conservados contratos de afretamento suficien tes para se poder saber o que explicaría o progresso da raarinha bretá, por volta de 1380. Ofereceriam os Bretóes condi?5es mais vantajosas para os mercadores, ou beneficiariam sobretudo de vantagens políticas, enquanto a Franga e a Inglaterra se defrontavam? (H. Touchard). Por volta de 1500, surgem algumas novidades. Em pri meiro lugar, apesar de as em barcares de fraca tonelagem continuarem a ser muito numerosas, as de entre 100 e 160 toneladas deixam de ser raras, e algumas sáo mesmo maio res. Entre 1461 e 1493, a tonelagem média anual dos navios bretóes que obtiveram salvos-condutos ingleses, era, na maior parte dos casos, de entre 80 e 110 toneladas ('). Em segundo lugar, há a considerar a rápida afirmagáo do sucesso de um novo tipo, a caravela, surgida em 1458. barco mercantil náo utilizado para a pesca. Transporta entre 50 e 80 toneladas e náo é provavelmente uma embarcafáo redonda e pesada como as outras. Excepto no nome, parece nada ter a ver com a caravela ibérica (H. Touchard). De notar que, por motivos que náo sáo sempre, nem exclusi vamente, de seguranza, estes navios que se dedicavam ao comércio regional e inter-regional viajavam frequentemente em comboios. Em contrapartida, os Hanseáticos e os Italianos utilizam embarca?5es de maior tonelagem no grande comercio. Em especial a Hansa, que transporta principalmente produtos de valor médio e pesados (madeira, cereais, sal...), continua a utilizar durante muito tempo os poderosos navios que lhe tinham conferido a sua reputafáo, as Kogges. No entanto, no século XIV, surge um novo tipo, que triunfará no século seguinte: a urca (Holk). Inicialmente, era um barco de transporte de dimensóes modestas, de fundo chato e mais ventrudo do que a Kogge. Depois, as suas dimensóes aumentaram progressivamente e a sua superior capacidade de carga permitiu-lhe eliminar (') Entrava ñas médias a tonelagem de numerosos pequeños navios de cabo tagem, o que as reduzia bastante.
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completamente a Kogge, no decurso do sáculo XV, em especial porque retirara desta última diversos elementos, enire os quais a forma da quilha. No século XV, a urca pode transportar 150 lasts ( = 300 tonela das métricas) ou mesmo mais. É dotada de superstruturas cada vez mais importantes, de castelos de popa e de proa com um ou mais andares (Ph. Dollinger). A partir de 1450, surge uma embarcafáo ainda maior, a caravela (Krawel), sem dúvida de origem ibérica atlántica. Caracterizam-na os seus tres mastros (os outros navios tém apenas um), assim como o casco liso, feito de pranchas unidas e já nao sobrepostas. Alia a rapidez a uma capacidade de carga maior, que pode ultrapassar as 400 toneladas métricas. A Hansa caractenza-se, portanto, por um número excepcional de grandes embarcafóes, construidas principalmente nos estaleiros navais de Lubeque e de Danzigue, ñas proximidades das vastas flores tas que forneciam madeira e pez para a calafetagem. A tonelagem de conjunto da frota hanseática está avallada em 60 000 toneladas, relativamente ao fim do século XV. No Mediterráneo, verit'ica-se o mesmo crescimento dos navios. A antiga «galé» foi suplantada pela galé da mércalo, que navegava sobre tudo á vela e transportava entre 200 e 300 toneladas métricas. Para os produtos pesados (vinho, trigo, sal, óleo, sabáo, alúmen, pez...), os Venezianos e sobretudo os Genoveses utilizam cada vez mais o casco, ñau ou carraque, de tonelagem muito superior á dos navios da Hansa. Em Génova, por volta de 1460, esta embarcagáo transporta fácilmente até 1000 toneladas métricas. Galés ou naus eram evidentemente de um custo líquido elevado, que contribuiu para dar forma capitalista á actividade comercial, em Itália. Tratou-se de um pré-capitalismo de Estado em Veneza, e de um pré-capitalismo privado em Génova e nos portos da Toscánia. Nos portos italianos, tal como nos estaleiros hanseátiCos, sao precisas enormes quantidades de madeira, material que constituiu, aliás, um dos principáis tráficos da época. Veneza recebe a madeira dos Dolomitas através do Ádige, e a dos Apeninos chega aos portos toscanos pelo Arno. Mas Génova, cujas montanhas próximas eram cobertas apenas por pequeños arbustos, tem de mandar vir o material da regiáo de Nice, do Delfinado (pelo Ródano) e até da Córsega e da Turquia. No entanto, os fretes sao cada vez mais baixos: o transporte representa apenas 0,5 % do custo líquido relativamente á seda, me nos de 2 % relativamente á maior parte das especiadas. Entre a Sicilia e Génova, 10 e 14% para o trigo; entre Chio e a Flandres, 16% para o alúmen (J. Heers). Tal facto deve-se á melhoria do ritmo da navegafáo, sobretudo evidente em Génova e nos portos 403
da Toscánia. Enquanto em Veneza, cujos barcos continuam a parar durante a noite, o tempo de navegafáo efectiva representa apenas cerca de um terfo do tempo total, para as galés florentinas, capazes de se deslocar em apenas 32 días de Southampton a Porto-Pisano, esse tempo é de 70 % do tempo total. Se pretendem os comparar a industria dos transportes com ‘a dos téxteis, vemos que a rendibilidade da primeira nao tinha medida comum com a da segunda (cf. supra, pp. 388-390). Em Italia, mais do que noutros países, existe um «divorcio entre o homem de negocios e o marinheiro». Os marinheiros artesáos, em muitos casos bascos ou portugueses, que comandara navios mais pequeños (de 200 a 300 toneladas no máximo), alugam os seus ser vidos para a cabotagem e o tráfico regional. Os grandes portos dedicam-se apenas ao comércio de longo curso. Mas, num caso e no outro, o patrao do navio é apenas um assaiariado, que faz o seu trabalho por conta de urna sociedade de capitalistas, que investiu capitais e que pretende obter lucros considera veis. Por outro lado, nomeadamente no que respeita as grandes embarca?óes destinadas a viagens de longo curso, cada navio estava por vezes dividido em partes, fácilmente negociáveis, que se encontram ñas máos de ho mens de negocios. Assim, o papel do capital é de primeira ordem na actividade dos transportes de Itália, o que se justifica em parte através da maior capacidade dos navios da Península. As técnicas propriamente financeiras: escritas, cámbio e banca, moedas Pelo menos nos sectores mais activos e mais abertos do Ocidente, instaurou-se a pouco e pouco, no decurso dos séculos XIV-XV, urna mentalidade nova. Em primeiro lugar, a utilizafáo das escritas — no sentido mais comum do termo — aumentara bastante. As le tras bancárias tornaram-se prática corrente entre os grandes mercadores e os seus correspondentes, corretores ou caixeiros, conforme testemunha a volumosa correspondencia, que foi conservada, de Francesco di Marco Datini, o «mercador de Prato». Para poder dirigir bem, e á distancia, os seus negocios, o patráo tinha de dispor de uma informafáo vasta e bastante regular sobre o prego de todas as coisas, o estado presente da conjuntura e o sentido provável das suas próximas variagóes, conhecer tudo sobre a economía e também sobre a política, visto que as guerras, os tratados... tém repercussoes evidentes sobre a actividade mercantil. A partir de 1300, a actividade comercial tem pois um novo carácter, evidente mente capitalista, dado que as preocupagóes de especulado se en contram na raiz deste desejo de saber tudo, tanto sobre o presente como sobre o futuro próximo, em todas as grandes pravas do Oci404
dente. Outro dado é a utilizafáo em extensáo das escritas, no sen tido contabilístico. cada vez mais volumosas e cada vez mais aperfei?oadas. Toda a contabilidade assenta, ao mesmo tempo, sobre tres elementos: o registo dos movimentos de valores em uni dades monetárias, a classificafáo por categorías (as receitas sao distinguidas das despesas; as despesas, tal como as re ceitas, eram distribuidas em diferentes rubricas) e a verifica?ao (a diferenfa entre receitas e despesas, quando é posi tiva, tem de se encontrar em numerario na caixa do nego ciante). Se faltar um destes tres elementos, nao há contabi lidade mas apenas nota, memorando, auxiliar de memoria. Em contrapartida, a contabilidade mais aperfeifoada apenas p5e em jogo estes tres elementos e nada mais. As escritas podem ser aperfei?oadas, obtendo-se assim resultados sempre mais engenhosos e mais precisos, mas os tres objectivos continuam sempre a ser os mesmos: auxiliar de memória, classificafáo. controlo da caixa. De uma maneira aproximativa, dir-se-á que a contabi lidade simples é uma contabilidade que regista cronológica mente as receitas e as despesas resultantes dos movimentos de fundos, sendo as receitas e despesas classificadas á parte em duas páginas, lado a lado ou em duas colunas separadas. Nao se trata de um processo forzosamente primitivo e, actualmente ainda, o ornamento de Estado em Franca é estabelecido segundo este processo de contabilidade que, a partir dos últimos séculos medievais, beneficiou de grandes aperfeipoamentos. Os tres factores de progresso da conta bilidade simples e do aparecimento da contabilidade por par tidas dobradas foram o crédito a favor de terceiros, a forma?ao de sociedades comerciáis e a procura?ao passada por um terceiro, para a gestao dos seus bens. a um homem de negocios (R. de Roover). Uma das causas do nascimento da contabilidade comer cial fora a necessidade sentida pelos mercadores de registar os seus créditos e débitos e, portanto, de conhecer a sua situafáo em relapáo a terceiros. O mercador individual, cujos negócios nao eram muito vastos, podia contentar-se com uma contabilidade simples. O mesmo nao acontecía com as sociedades compostas por diversos individuos que tinham colocado os seus capitais em comum. Neste caso, era preciso conhecer a situafáo de conjunto dos negócios a todo o momento. Caso contrário, nao se poderia repartir periódicamente os lucros numa base séria, reembolsar um associado desejoso de se retirar antes da dissolu?áo do negocio, proceder á sua liquidadlo por antecipacao ou nao. Tentou-se uma fusáo entre ornamento e contabilidade e a contabilidade por partidas dobradas surgiu no termo de quatro fases: 1.® o registo das opera?5es de crédito a tercei ros foi confiada ao guarda-livros, que criou assim as contas individuáis; a conta de cada cliente ou assQciado cobre duas páginas do registo: á esquerda. o deve, onde sao lanzados os débitos, somas devidas pelo titular da conta; á direita, o haver, onde sao lanzados os créditos, somas devidas ao titular; 2." o aperfeifoamento da conta tradicional de caixa 405
para a por de acordo com a técnica das contas-correntes individuáis; 3° a presenta, na contabilidade, de contas de terceiros conduziu á elaborado de contas que descrevem a totalidade dos negocios da sociedade, as contas de valores; 4.- finalmente, estas novas con tas só podiam ser conciliadas pela interposifáo de urna conta também de natureza nova, o registo de lucros e perdas. No fim da evolugáo, a conta única de caixa da contabilidade simples dá lugar a tres séries de contas: as individuáis, as de valores e as dos lucros e perdas. Estas tres séries de contas sao unidas entre si pela aplicagáo da regra da escrita por partidas dobradas, devendo cada operagáo ser objecto de duas escritas, de sinais evi dentemente contrários. Ainda no século XX, estes tres sistemas e esta regra formam a contabilidade por partidas dobradas, invengáo medieval. Desde 1339, em Genova, o novo sistema contabilístico dispunha dos seus elementos constituintes, conforme tesíemunha o mais antigo de urna serie de livros que incluem as contas dos massari (intenden tes municipais que geriam as finanzas da cidade), o qual é ainda prova da sua utilizagáo também na contabilidade pública. Como os registos mais antigos tinham ardido nesse ano de 1339, nao é possível conhecer a data do aparecimento em Génova da contabilidade por partidas dobradas, embora se possa presumir que ela é sensivelmente anterior. Por volta de 1400, o sistema surge na sua maturidade, tanto no banco de San Giorgio, em Génova, como nos registos do «mercador de Prato», e encontra-se difundido por quase toda a Itália (e ñas instituifoes italianas disseminadas pelo Ocidente). Surgido provavelmente em Veneza (em Florenga, fazer as contas alia veneziana significava fazer as contas por partidas dobradas). este novo método contabilístico nao foi, no entanto, utilizado por todos os grandes homens de negocios do século XV. Os Médicis só o utilizaram no século XVI, o que recorda um facto evidente: as técnicas financeiras mais aperfeigoadas nao sao táo indispensáveis aos negocios de grande envergadura, como por vezes se pretende dizer. Cámbio e banca Ñas regióes setentrionais, os bancos privados foram criados por cambistas manuais. Em Bruges, só podiam ser cambistas os bur gueses da cidade, burgueses de nascimento ou por adopgáo (houve alguns italianos entre eles) ('). (’) N o entanto, as mulheres eram admitidas: o cámbio era urna das bastante numerosas profissóes em que nao existia qualquer discriminacüo em rela?áo ao sexo dito fraco.
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De entre 17 e 20 por volta de 1300, o número de cambistas diminuiu muito a partir do fim do século XIV. O movimento acelerou-se ao ponto de, no fim do século seguinte, apenas subsistirem os «quatro cambistas enfeudados», que recebiam os seus cargos em feudo hereditário do conde da Flandres. Quando eram bem sucedi dos nos negocios, os cambistas de Bruges eram admitidos na poorterie (aristocracia burguesa). Estabelecidos na ponte Saint-Pierre e sob as arcadas da vizinha Halle de l’Eau, edificada na Grand’Place, em pleno centro do bairro dos negocios, os cambistas estavam, portanto, agrupados como em Toulouse, em Veneza (Pont du Rialto), em Génova (Piazza Banchi), em Florencia (Mercato Vecchio, Mercato Nuovo e proximidades de Or San Michele), ou em Paris (Pont au Change). Mas eles sao mais conhecidos gragas aos quadros da escola flamenga. que imortalizaram as pequeñas tendas onde exerciam a sua profissáo: a pega essencial do mobiliário era realmente o banco, chamado toblc de change em francés e wisselbank em flamengo. Por volta de 1340-1350, a actividade principal dos cambistas de Bruges passou a ser mais bancária do que de cámbio. A partir de entao, passa a falar-se de banke ende wissele (banco e cámbio) e de wisselaers ende banchouders (cambistas e banqueiros). Como nenhum cambista trabalhava sem capitais confiados por terceiros, o seu mais grave problema consistia em encontrar investimentos adequados para os fundos em depósito. Era ao mesmo tempo difícil e arriscado. Em resumo, a banca medieval foi prejudicada pela falta de papel negociável, pela ausencia de um banco central e pela dificuldade de investir em negocios, dividindo os riscos. Tanto em Bru ges como em Lille. as faléncias destes bancos privados foram talvez menos frequentes do que em Génova (a palavra bancarrota, banca rotta, é genovesa). Mas, na Flandres, as quedas repetidas de bancas de cámbio nao conduziram nunca á criacao de bancos públicos ou semipúblicos, como em Barcelona (1401), Génova (1408) e em di versas cidades do Império, como Estrasburgo e Francoforte do Meno, todos eles bancos cujos prototipos remontavam, pelo menos em Itália, ao século XIV. Originalmente, os bancos públicos eram associagóes de credores da cidade, que tinham subscrito empréstimos mais ou menos forja dos e que eram conhecidos por m ontes, m a o n es. .. Estas associagoes fundiram-se numa instituigáo, como o «Monte» de Florenga, a banca de San Ambrogio de Miláo... Segundo este exemplo, surgiram os /aulas das duas grandes cidades espanholas, Barcelona e Valenga. A mais conhecida, por ser a mais importante, foi a Casa d i San G iorgio de Génova que, depois de 1407, reuniu a
maior parte de portadores da divida pública e que, a pouco e pouco, absorveu todos os outros m aones. O Estado cedeu407
-lhe a explorafáo de colonias e a cobranza dos impostos indirectos, com cujas receitas devia reembolsar a divida pública. E foi também a esta Casa que o municipio passou a dirigir-se para contrair empréstanos. Para desempenhar estas funfóes, a Casa criara, no ano de 1408, o Banco di San Giorgio, organismo ao qual foram confiadas «tarefas de Estado». Mas como as partes da divida eram transmissíveis, foi controlado por pessoas privadas, em geral homens de negócios. Tratava-se, portanto, de facto «da explorado do Estado pelos seus credores» (Y. Renouard). Ao mesmo tempo, os mercadores que dirigiam esta imensa empresa lanfaram-na em todas as operafóes de depósito, de crédito e de cambio. Era realmente um banco público, mas encontrava-se á discrifáo dos grandes interesses privados que afirmaram a sua tutela sobre o Estado. No Ocidente nao mediterránico, incluindo a Alemanha do Sul, os banqueiros deixavam aos mercadores o cambio internacional efectuado por letras. Pelo contrário, nos grandes centros do Midi, os banqueiros eram ao mesmo tempo homens de negócios, que exerciam sem qualquer excepfáo todas as actividades relacionadas com o tráfico de dinheiro. De qualquer modo, os bancos, privados ou públicos, exerciam uma tripla funfáo: os depósitos, os empréstimos e as transferencias de dividas de um credor para outro. A transferencia de uma soma em dinheiro de um cliente em proveito de um outro exigia apenas duas escritas no livro do banqueiro 0 ). De tal modo que esta foi a principal razáo de ser dos banchi di scritta da pra^a de Rialto, em Veneza. Difundida mesmo fora do mundo dos negócios, esta prática evitava quase totalmente a manipulafáo da moeda. Eram também praticadas as transferéncias exter nas de banco para banco, que podiam mesmo nao ser da mesma cidade ou do mesmo país. Para este efeito, recorria-se predominan temente a algumas unidades monetárias ligadas ao valor do ouro, como o florim de Floren?a, o ducado de Veneza, a lira de Génova, o escudo de Sabóia para as feiras de Genebra, o florim húngaro para os Alemáes. Tratava-se de «moedas de reserva», que serviam de padráo.
Moedas metálicas e papel-moeda Sabe-se que o fim da Idade Média foi um período de frequente instabilidade monetária. Em todos os negocios, dos mais importantes aos mais insignificantes, as mutafóes tornavam aleatorias e de difícil regulamentacáo os empréstimos. as vendas a crédito ou a prazo e.
0 ) Tratava-se neste caso de uma transferencia interna (de uma conta para outra, num mesmo banco).
de uma maneira geral, todas as operafóes financeiras, inclusive o pagamento das letras de cámbio. Daqui resultaram inúmeras contestacoes e processos, por exemplo em París, em particular para o reembolso de dividas, o pagamento de salários, os alugueres, as ren das perpétuas ou fixadas para um periodo longo. Toda a opiniáo pública reagia muito mais vivamente do que outrora. Por seu tum o, os homens de negócios reagiram menos violenta mente mas com maior eficácia. O ouro pareceu uma moeda-refúgio e eles tentaram impó-lo ñas transaccdes de grande envergadura, segundo tres processos: 1.a— Uniformizando as diversas categorías de moedas de ouro, para que estas pudessem ser intercambiáveis. Alinharam-se, portante, as divisas das quatro maiores pravas de Itália (Miláo, Génova, Veneza e Florenga). Por seu tum o, as cidades-vendas da Hansa formaram uma uniáo monetária. Daqui resultou a nítida simplificado dos negó cios do cámbio. 2? — Criando uma segunda moeda de conta, ligada de forma estável a uma moeda de ouro, e representando cada unidade um peso de ouro imutável, o que náo era o caso da moeda de conta-corrente (aliás, ligada á prata e de forma variável). Mas este novo sistema de moeda de conta náo substituía o antigo a náo ser nos principáis centros e quase únicamente em Itália. 3.° — Estabelecendo os presos já náo em moeda de conta-corrente, portante instável, mas em moedas de ouro. Trata-se de um indicio de inquietafáo, ou mesmo de pánico, que desencadeou desvalorizares que, no entanto, se pretendiam evitar. Evidentemente que as autoridades monetárias eram hostis a este sinal de desconfianza na sua moeda de conta e, em geral, proibiram esta nova prática. U M P E R ÍO D O D E IN FL A C Á O EM FR A N C A O V A L O R D O M A R C O D E P R A T A B R A N C A E M PA R IS (1348-1364)
1 3 4 8 1 3 4 9 1 3 5 0 1351
1 3 5 2 1 3 5 3 1 3 5 4 1355 1 3 5 6 1 3 5 7 1 3 5 8 I3 5 S 1360
1361
1362 1 3 6 3 1364
Segundo Guy Fourquin. Les Campagnes de la región parisiense a la fin du Moyen Age. op. eit., p. 256.
Como anteriormente, os homens de negócios exigiam, de acordo com a opiniáo pública, uma moeda forte e portante estável. O Es tado tentava, na medida do possível, aceder a este desejo, que
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coincidia com o seu próprio interesse. Mas nao era uma tarefa fácil, dado que tanto os homens do povo como os negociantes aceitavam todas as moedas estrangeiras. Bastava, portanto, que um único país tivesse uma moeda fraca (contendo menos metal fino do que a moeda forte de outros países, para o mesmo valor fixado), para que, em virtude da lei dita de Gresham, a moeda forte estrangeira fosse retida nesse país, enquanto a moeda fraca local era exportada. Estes movimentos atingiam sobretudo as moedas de prata, que eram, ao mesmo tempo, fonte de grandes lucros para os mercadores e de desorganizado para a actividade do negocio. É certo que, paralelamente ao cambio oficial, existia um cambio real para cada moeda. A lenta subida do cam bio real era indicio de uma fase A de expansáo mais ou menos breve, e a descida ou mesmo a estabilidade aproximativa dos cambios era indicio de uma fase B de contracgáo. C. Cipolla demonstrou uma periodicidade bastante notoria destes ciclos curtos relativamente á Itália. Os mercadores capitalistas exigiam, portanto, dos seus correspondentes as mais rápidas indicagóes sobre estas flutua?5es de duragáo breve, frequentemente previsíveis e ligadas á larghezza (abundancia do mercado em espécies) e á strettezza (escassez de numerário e contracgáo forjada do crédito). A taxa de juro, que se reflectia ñas tarifas de cambio, era eviden temente mais baixa no primeiro caso do que no segundo e os homens de negócios estabeleciam as concessóes e contrac?5es de empréstimos em conformidade. R. De Roover descreveu bem os efeitos da abundancia e da escassez, segundo as cartas dos mercadores-banqueiros italianos de Bruges para as sucursais de Francesco di Marco Datini em Barce lona e em Génova, em 1399-1401. Esta correspondencia ilus tra também a incapacidade das autoridades monetárias flamengas, que nao pareciam ter compreendido bem este me canismo duplo e que subestimavam o seu próprio poder. De qualquer modo, o volume dos signos monetários metálicos era insuficiente, facto de que resultou o desenvolvimento do papelmoeda, utilizado a partir do cometo do século XIV, ou mesmo mais cedo, em Itália (cf. supra, para o contrato de cambio, pp. 279-283). Como aconteceu com todas as técnicas financeiras «moder nas», a sua difusáo fora da península foi nítidamente mais tardía, muito lenta e geográficamente muito incompleta. O papel-moeda tinha uma tripla justificado: aumentar o volume dos signos monetários, facilitar as transacgóes e aumentar o número das oportunidades de lucro. Ha vía dois tipos de papel-moeda: a letra de cambio e o cheque. Definitivamente isenta do contrato de cambio, na maior parte das cidades de Itália, antes de 1400, a letra de cámbio conheceu uma difusáo incomparável, no fim da Idade Média. Vejamos um exemplo (J. Heers): 410
Verso: Enrico de Boldo, alemáo, em G énova. R ecto: E m nom e de D eus, G énova, 30 de M ar$o de 1458. Caro irmao, por esta prim eira letra, queira pagar na p róxim a feira da Páscoa, a M artin o Illum inato, 125 escudos de Sabóia, que sao pelo valor aquí recebido de B artolom eo Illu m in a to á razáo de 42 soldos por escudo. Vosso Batista de Sessino.
Esta carta «é redigida em Génova pelo sacador Batista de Ses sino; este recebera 5250 soldos genoveses, ou 262 Lb. e meia, de Bartolomeo Illuminato. Á razáo de 42 soldos genoveses por escudo de Sabóia, dá 125 escudos pagos pelo sacado, Enrico de Boldo, ao beneficiário, Martino Illuminato». A letra podia ser endossada: o beneficiário escrevia ñas costas ou no fundo do papel que desejava que a soma fosse paga nao a ele próprio mas a um outra pessoa. Pensa-se que o endossamento data «pelo menos de meados do século XV». De notar que a cedéncia de créditos, inclusive sob a forma de letras de cambio, podia ser feita sem endossamento, através de uma simples transferencia de conta, nos registos dos banqueiros e dos mercadores: o beneficiário indicava entáo oralmente ao sacado que inscrevesse a soma nao em seu crédito, mas em crédito de outra pessoa. Em resumo, a letra de cambio era já um cheque, mas um cheque sacado numa prafa estrangeira, redigido numa moeda diferente da moeda de origem e relacionando pelo menos tres pessoas e, por vezes, quatro. O cheque é uma ordem escrita de pagamento de uma carta soma a um terceiro. Vejamos um exemplo (J. Heers): G iovanni Piccamiglio, queira pagar a L uigi Doria 48 Lb. 6 d., das quais jico devedor. T om m aso Piccamiglio
«Aqui temos tres pessoas: o sacador (Tommaso Piccamiglio), que redige o cheque» — sempre num único exemplar, ao contrário da letra de cámbio —, «o cobrador (Luigi Doria), que deve receber a soma, e o sacado (Giovanni Piccamiglio), a quem é apresentado o cheque e que de ve pagar. O cheque... nao comporta enderezo no verso.» No caso de o cheque ser endossado, pode intervir uma quarta pessoa. O papel do cheque nao foi, no entanto, táo importante como o da letra de cámbio.
A s sociedades com erciáis
As casas comerciáis constituidas em sociedades, próvidas de sucursais ou de filiáis, chamaram a aten?ao dos historiadores ao 411
ponto de se acabar por esquecer que as companhias poderosas foram a excepfáo e que o número de mercadores mais ou menos itine rantes continuou a ser elevado no Ocidente. Afirmou-se que estes mercadores independentes estavam em desvantagem, por exemplo no tráfico das letras de cambio. Náo exageremos essa desvantagem. Quando tinha uma boa posifáo de crédito, o negociante podia fácilmente estabelecer numerosas relafoes e alargar muito o campo de actividade dos seus negócios. Assim, os mercadores independentes de Bruges, mesmo pouco notáveis, eram bastante conhecidos ñas outras grandes pravas. Contudo, no fim da Idade Média, verificou-se, náo ainda a prolifcragáo, mas pelo menos o aumento do número das sociedades comerciáis. Comecaremos pelas sociedades de envergadura modesta, de longe as mais numerosas e quase únicas na maioria das cidades, tomando como exemplo Toulouse. Dois factos chamam desde logo a atenfáo. Em primeiro lugar, os capitais investidos eram fracos, na maior parte dos casos de menos de 200 Lb.:
Capital social
Número de casos
Percentagem
54 39 16 9 3
39,1% 28,3
— de 0 a 99 Lb.............. ... — de 100 a 199 Lb.......... ... — de 200 a 299 Lb.......... — de 300 a 399 Lb.......... — de 400 a 499 Lb.......... — de 500 a 999 Lb.......... ... — de 1000 a 1999Lb. ... — 2000 Lb. e mais ......
6,5 2,2
10
7,2
3 4
2,2
138 casos
= 67,4 %
11,6
2,9 100 %
Em segundo lugar, estas associafóes eram formadas para um período breve, um ano ou mesmo menos em 56% dos casos, tra?o da mentalidade existente em Itália. — menos de um ano ... — 1 ano .......................... — 2 anos .......................... — 3 anos ......................... — 4 anos ......................... — 5 anos ......................... — 6 anos ......................... — 10 anos ......................
20
23% 33 15 13
15 3
10 2
35 casos 51 23
2
4
= 56%
1,3 2,7
Um facto curioso é que as quatro sociedades concluidas para dez anos eram as que tinham um carácter capitalista menos acentuado, visto que se tratava de agrupamentos de artesáos e de pequeños comerciantes. Mas, na realidade. 412
alguns homens de negocios mantinham-se associados durante mais tempo do que parece anunciar a leitura dos contratos de sociedade: quando esta expirava, renovavam regular mente a sua associafáo a curto prazo (Ph. Wolff). Este mundo de «capitalistas» de Toulouse reunia nobres, clérigos, pequeños artesáos e, evidentemente, negociantes. Os tipos das suas associafoes reduziam-se em geral a dois, precisando-se que abundavam os tipos intermédios. Por um lado, existia a comanda (cf. supra, p. 283) e, por outro, a «sociedade de homens de negócios», para a qual cada membro contribuía com capitais e com o seu trabalho, por exemplo para comprar rebanhos, alugar pastagens, manter os animais, garantir a venda da carne. Alguns dos acordos deste segundo tipo eram verticais, como os que controlavam a com pra da matéria-prima, as diversas fases de fabrico e a venda dos tecidos. Verifica-se uma situafáo bastante análoga no vasto dominio da Hansa alema, onde, no entanto, uma certa timidez perante as formas evoluídas de ussociagoes nao entravou o extraordináiro progresso dos negócios. Existem portanto, como em Toulouse, duas formas de actividade mercantil: a empresa individual (Etgenhandel) e a sociedade comercial de modesta envergadura (Ph. Dollinger). No fim da Idade Média, as sociedades comerciáis eram numerosas ñas cidades hanseáticas. Estas sociedades, que agrupavam geralmente apenas entre dois e quatro associados, para um número restrito de anos e para uma categoría determinada de operafóes, eram em muitos casos de carácter familiar. Assim, Johann Tólner, de Rostock, de quem foi conservado um livro de contas de meados do século XIV, associara-se ao seu pai, ao genro e ao genro deste último. Mais frequentemente, sao apenas dois irmáos que se associam, habitando duas cidades diferentes. Existem tres tipos de sociedades: 1.s a comenda, ou verdadeira Sendeve; 2.' como em Toulouse, o tipo mais corrente é outro: todos os associados contribuem com uma parte do capital e, além disso, um ou dois deles efectuam algumas opera?oes. Os lucros sao repartidos proporcionalmente ao capital investido e, em caso de perdas, cada associado é responsável apenas no correspondente ao capital por si investido; 3.9 a «sociedade integral» ou Vulle mascopei: os associados aplicam em comum a totalidade ou a maior parte dos seus bens. Frequente em Lubeque e em Bergen, este sistema apenas é concebível entre dois irmáos que mantiveram indivisa a heran^a paterna. Os maiores mercadores conseguiam ser maioritários ao mesmo tempo em diversas sociedades. Isto permitiu opera?óes financeiras e comerciáis de enorme envergadura e em sectores geográficos extensos. Assim fizeram, no século XIV, os Gallin, os Warendorp, os Limberg e, no século XV, os Castorp ou os Veckinchusen. 413
Apesar de «esta carencia de grande firma permanente (ser) característica da zona hanseática» (Ph. Dollinger), houve todavía uma excep?áo, a Ordem Teutónica, que se dedicava aos negócios desde pelo menos o fim do século XIII. Dispunha de um capital de 35 000 Lb. e de dois «Grandes Economatos», em Marienburgo e em Koenisgberg, cujos dirigentes, monges ou laicos, eram nomeados e con trolados pelo marechal da Ordem e pelo seu tesoureiro. Deles dependiam os Lieger (representantes nomeados) em Riga, Danzigue, Lubeque, Bruges, Londres e na Escocia. Mais numerosos eram os Wirthe (depositários) independentes da Ordem, que vigiavam as mercadorias depositadas junto deles mas que náo tinham a iniciativa de qualquer operafáo. A liga?áo era feita através dos Diener (caixeiros) que acompanhavam as mercadorias, faziam as compras por conta da Ordem e tinham o direito de realizar operagoes por si mesmos. A Itália continuou a ser a térra de eleigao das grandes socie dades comerciáis. Aqui, elas foram incomparavelmente mais pode rosas e mais numerosas do que noutros locáis. No século XIV, Génova continuava a ser um «antro de individualismo» (Y. Renouard). E Veneza dispersa as suas actividades «por uma infinidade de negócios» (J. Heers), alguns dos quais sao na realidade consideráveis. Apesar de existirem nesta cidade muitas associafoes fami liares, as fraterne, as «ordens do Estado» obrigavam os mercadores e as mercadorias a regras que se tornaram cada vez mais restritas, a partir de meados do século XIV (Y. Renouard). As companhias comerciáis e bancárias mais complexas e mais poderosas situaram-se ñas cidades toscanas. Sena náo recuperou das falencias de 1298; as companhias de Lucques (como a dos Rapondi, poderosa em Paris) tinham uma influencia limitada, porque eram especializadas no fabrico e no comercio das sedas. Mas durante todo o fim da Idade Média e grabas as suas alianzas políticas (sobretudo com o papa), Florencia foi realmente a capital das companhias de raio de acfáo «internacional» de toda a cristandade latina. J. Heers distingue «tres gerafóes» de companhias flo rentinas. A primeira, centrada sobre o Ocidente em geral e as feiras de Champagne em particular, foi a dos Spini, Scali, Frescobaldi..., que náo sobreviveriam á série de falencias ocorridas entre 1302 e 1326. A segunda gerafáo, marcada por sociedades mais fortes e que estendiam as suas actividades ao Oriente, foi a dos Bardi, Peruzzi, Acciaiuoli, cujo apogeu se sitúa por volta de 1330. Estas companhias foram vítimas dos reveses dos anos 1343-1360 (peste e desordens em Floren?a, cometo da Guerra dos Cem Anos...). A terceira gera?áo foi a dos Guardi, dos Strozzi e, sobre tudo, dos Médicis, os quais dominaram a economía e a política florentinas até aos últimos anos do século XV.
As companhias de F lorería tiveram multas vezes uma longa vida: a dos Scali ultrapassou o centenário, as dos Bardi e dos Peruzzi foram septuagenárias. No entanto, cada contrato era ordinariamente concluido apenas por quatro anos. Entre seis e vinte associados contribuíam cada um com uma parte do capital social e a maior parte deles voltavam a encontrar-se numa nova sociedade, quando a precedente expirava. Os associados pertenciam apenas, em geral, a duas ou tres «familias» (no sentido mais vasto), e a companhia tinha o nome da familia preponderante, cujo chefe era nomeado director. Havia, além disso, um ou dois associados que eram admi tidos a título individual em funfáo da sua competencia. Na data prevista de extinfáo, cada associado recuperava o seu capital, aumentado ou diminuido da sua parte proporcional de lucros ou de perdas. A familia dominante formava ¡mediatamente uma nova companhia, que convocava ou eliminava, quando era caso para tal, este ou aquele antigo associado. Mas como o público nao estava ao corrente da estrutura interna, aos seus olhos, a compa nhia dos Bardi ou a dos Médicis continuava «sem a mínima interrupsáo» (Y. Renouard). Os fundos á disposifáo da companhia tinham duas origens. Em primeiro lugar, o corpo ( = capital social) constituido pelos contri butos pessoais dos associados, os quais formavam frequentemente á parte um pequeño capital, cujos dividendos eram distribuidos em esmolas. Em segundo lugar, o sopra corpo, para o qual con tribuíam nomeadamente os depósitos de terceiros, reembolsáveis á vista. Como, na realidade, duravam muito tempo, estas sociedades podiam apelar aos fundos do público e o sopra corpo elevou-se fre quentemente ao décuplo do capital social. O reembolso era feito mediante uma taxa fixa, ordinariamente de 8 % ao ano. Estes depó sitos representavam «um investimento frequente dos fundos dos mineiros, dos nao comerciantes, das instituifóes eclesiásticas. Compreende-se a grande vantagem que decorria, para a obtengo de depósitos de mosteiros ou de capítulos, do facto de se tratar de uma compa nhia utilizada pela Santa Sé», para os seus próprios movimentos de fundos, cujo volume era enorme (Y. Renouard). O papel da companhia consistía, portanto, em investir as somas depositadas em negócios que rendessem mais do que o juro a pagar aos depositantes. Assim se justifica a taxa de lucro média de 36 %, tanto mais que também era preciso cobrir as despesas gerais, cada vez mais elevadas. Ao mesmo tempo que «mergulhava completamente neste meio financeiro (bispos, abades e cónegos investiam nele aquilo de que dispunham e eram frequentemente originários de familias de mercadores), a Igreja considerou que, para além de 15 ou 18%, o lucro deixava de ser legítimo e aproximava-se da usura. Por outro lado, a desproporfáo demasiado grande entre o sopra corpo e o corpo podia, como no nosso actual sistema ban415
cário, constituir uma fraqueza grave. «Em caso de más noticias, o pánico pode apoderar-se dos depositantes e levá-los as caixas» (Ph. Wolff). Foi de facto o que aconteceu quando da falencia dos Peruzzi (1343) e dos Bardi (1346). O rei de Inglaterra, que acabava de sofrer derrotas militares, pedirá emprestados 600 000 florins aos Peruzzi e perto de 900 000 aos Bardi, «somas que valiam um reino», como escreveu Giovanni Villani (a compra de Avinháo pelo papado custou apenas cerca de 80 000 florins). A sua longevidade, os seus imensos recursos permitiam as com panhias da Arte de Calimala conceder grandes empréstimos aos papas e aos soberanos, garantir o servido do seu tesouro, parti cularmente o da cámara apostólica. Permitiam-lhes também manter sucursais permanentes ñas principáis pravas comerciáis e de banca do Ocidente e do Mediterráneo Oriental. Mercadorias, correios e agentes de todas as grandes companhias circulavam constantemente entre uma cidade e outra, entre uma sucursal e outra. De facto, uma grande companhia podia agrupar até 500 pessoas. Os associados (dez ou menos, vinte e cinco no máximo) náo se limitavam a fornecer os capitais e quase todos tomavam parte activa nos negócios da sociedade, o que alijava de certo modo as tarefas con fiadas aos corretores ( = agentes pagos), ou seja, os directores de sucursais, os caixeiros, os tesoureiros, os guarda-livros, os correios. Para os jovens das familias dirigentes, a carreira-tipo consistía em comefar como estagiário em Floren?a, na sede social, e depois passar, como simples factor, para uma sucursal, antes de ser escolhido, depois de ter dado provas de bastantes capacidades, como director de sucursal. O fim de uma bela carreira desenrolava-se em Florenca, na qualidade de associado ou director-geral. Isto significa que cada associado acabava por conhecer um bom número de grandes pravas de negocios da época. Constantemente em viagem, estes homens de negócios — Y. Renouard mostrou-o de uma maneira admirável — conservavam o amor fundamental pela sua cidade. Os próprios banidos o partilhavam «com uma paixáo ma ligna»: expulsa com Dante, a familia dos Portinari — da qual Bea triz fazia parte — foi estabelecer-se em Bruges e, durante dois séculos, forneceu «factores e directores de sucursais a toda uma série de grandes companhias florentinas, dos Bardi aos Médicis» (Y. Renouard). As companhias interessavam-se por todos os ramos da banca, do comercio e da «indústria». Enquanto as sociedades mais importantes eram, como tal, membros da Arte di Ccdimala, muitos dos seus associados pertenciam, a título individual, a outras artes maiores. A sociedade podia, portanto, fazer fácilmente todos os negócios lucrativos que se lhe oferecessem, em qualquer dominio. Eram, por conseguinte, colossos preocupados em suprimir a concorréncia mú416
tua e em estabelecer monopolios. Depois dos Bardi, todas tentaram desenvolver verdadeiros cartéis. Um dos mais célebres diz respeito ao alúmen, mordente indispensável ao artesanato textil. Entre o século X III e a conquista turca, este produto provinha da zona do mar Egeu e os Genoveses tinham garantido o seu monopolio. A queda de Constantinopla foi, portanto, sentida, mesmo deste ponto de vista, como uma catástrofe. Mas a partir de 1451-1462 descobriram-se importantes jazigos em Tolfa, em territorio ponti fical. O papa confiou rápidamente a sua explorado e venda á firma dos Médicis. Todos os príncipes, cidades, particulares tinham que, a partir de entáo e sob pena de excomunháo, comprar apenas o alúmen da companhia e foram fechadas as minas secundárias que podiam existir na cristandade do Ocidente... As mais fortes companhias dispunham de quinze a vinte sucursais na própria Itália, em Avinháo, Paris, Bruges, Londres, Maiorca, Barcelona, Valenfa, bem como na Moreia, em Rodes, em Chipre..., participando numa especie de «economia mundial» (Ph. Wolff), que se estendia do mar do Norte ao Levante e que faz surgir um novo tipo de homem. No intervalo das suas viagens, estes homens de negócios sao homens de escritorio e, para dirigir operafóes táo vastas como diversas, necessitam de «muita ordem, método, uma inform ado vasta e precisa, principios de raciocinio e precisáo comprovados». O seu gosto pela exactidáo explica a raridade dos erros na sua contabilidade, no entanto bastante complexa. Explica tam bém o seu amor pelos números, por todos os números. A tradi cional imprecisao da Idade Media em materia de números, imprecisáo que se exagerou bastante em todos os dominios, deu lugar, grabas a estes mercadores, á preocupado de pré-estatísticas que se pretendem ao mesmo tempo muito seguras e numerosas. Mas estes colossos sao «colossos com pés de barro» (A. Sapori), sobretudo pela massa demasiado grande do sopra corpo, que os coloca á mercé dos pánicos irreflectidos. Sáo-no igualmente por culpa de um determinado director de sucursal. Em principio, desprovidos de toda a iniciativa, os directores nao o sao de facto, e os possíveis reveses de um dos ramos atingem sempre o conjunto da companhia. Existe também o perigo de fazer demasiados empréstimos aos soberanos, frequentemente pobres ou de má-fé. No entanto, os favores dos reis, dos príncipes e do papa sao índispensáveis. Depois da chuva de falencias de meados do século XIV, as companhias tentaram aprender a lid o a partir das desventuras dos seus antepassados. Em caso de pánico ou de crise, seria muito útil ter o poder político, para impor sem vergonha medidas de urgencia, por exemplo uma moratória para as dividas. Portanto, em 1434, Cosme de Médicis apoderou-se de facto do poder em Florenfa, 417
onde, sem reter títulos sonoros, coloca os seus amigos e «devedores» ñas magistraturas essenciais. Por outro lado, os Médicis descentralizaram ao máximo os seus negócios: a sua companhia era uma sociedade com filiáis e náo com sucursais como as outras. Em 1458, por exemplo, Cosme é o principal associado (sénior socius) de dez empreendimentos individualizados, em cujo título o seu nome nem sempre aparece: o banco, duas oficinas de tecidos e um armazém-entreposto de sedas em Fio renga; filiáis em Veneza, Milao, Avinháo, Genebra, Bruges e Londres. Cada filial é dirigida por um associado (júnior socius). Cosme limita-se a controlar o conjunto: a única ligagáo entre as filiáis é a familia Médicis. Foram conservados diversos contratos sucessivos de associafáo referentes á filial de Bruges, a principal com panhia italiana que teve um lugar considerével nesta pra?a (R. De Roover). O de 25 de Julho de 1455 prevé que a sociedade durará quatro anos e será chamada Piero di Cosmio de’ M edid e Gierozzo de’ Pigli e Compagni (art.? l.s). Poderá utilizar a marca dos Médicis, mas, quando da sua dissolugáo, aquela continuará ser propriedade da familia. O corpo é fixado em 3000 Lb., decomposto da seguinte maneira: seniores socii: Piero di Cosmio de’ Medici, seu irmáo Giovanni e seu primo Pier Francesco: 1900 Lb., ou seja, 63,33%. júniores socii: — Gierozzo de’ Pigli, antigo director da filial de Lon dres: 600 Lb., ou seja, 20% ; — Agnolo Tani, que será o director da filial de Bru ges: 500 Lb., ou seja, 16,66%. Os seniores socii receberao 12 s. de cada Lb. de lucro e os júniores 4 s. cada um. (Agnolo Tani, que entrou apenas com um sexto do capital, receberá um quinto dos lucros: o facto de se en contrar em vantagem deve-se a que se pretende remunerá-lo deste modo pelos seus servidos futuros como director.) Diversos artigos delimitam os poderes do director: art. 12: proibifáo de sair da Flandres, excepto para as viagens de negócios a Antuerpia, Berg-op-Zoom, Middelburgo, Calais e Londres. art. 6: proibigao de se envolver, directamente ou nao, em qualquer outro negocio de comércio ou cámbio, sob pena de 50 Lb. por cada contravengo. art. 7: proibigao de jogar as cartas ou aos dados, de ter mulheres por conta nos seus apartamentos, sob pena de 100 Lb. art. 10\ proibigáo de contratar aprendizes (giovanni) ou factores sem autorizagáo dos outros associados. art. 8: uma vez por ano, ou mais frequentemente se lhe for pedido, fechar as contas e enviar uma copia do balando para a sede social de Floren?a. 418
,
j i ; j !
art. 14: obrigafáo de segurar contra todos os riscos as mercadorias expedidas por mar; proibifáo de enviar de uma só vez mercadorias cujo valor exceda 300 Lb. art. 19: na data da expiragáo da sociedade, o director nao poderá sair de Bruges, sem ter procedido á liquidado. art. 9: os imóveis onde está instalada a filial continuarlo a ser propriedade dos Médicis. Após a liquidado, estes receberáo todos os livros e todos os arquivos da filial. Apesar de, em principio, cada filial ter a sua existencia própria, apesar de, ao comerciar entre si, as filiáis actuarem como empresas independentes (pagando umas ás outras comissóes e interesses), os Médicis tratam os outros associados e os directores como simples subordinados. Cosme exige uma obediencia total. Em 1457, vemo-lo amea?ar de encerramento as filiáis de Bruges e de Londres, se estas continuarem a traficar com pessoas de baixa esfera. Mas Lourengo, o Magnífico nao seguirá os passos do pai e do avó. Negligenciou limitar as iniciativas de Tommaso Portinari, entao director da filial de Bruges. Na altura da sua morte, em 1492, as companhias Médicis caminhavam para a ruina. A falencia de 1494 deixou sem recursos pessoais o detentor do poder político, seu filho Pedro, o de Má Sorte, que depressa foi esmagado por uma revolta. Apesar de tudo, o século XV conheceu durante muito tempo a prosperidade deste novo tipo de sociedade, a companhia com filiáis, que, aliás, nem sempre foi florentina. Por volta de 1438, houve uma grande firma milanesa, a dos Borromei. que tinha também uma filial em Bruges. No século XV, surgem ou consolidam-se fora da Toscánia socie dades de grande envergadura. Em Miláo (firma dos Borromei) e em Génova, onde algumas associa?5es sao já sociedades anónimas, muito especializadas, que se dedicam freauentemente á explorado de um monopólio (gabelas, na própria Génova, transporte do sal, mercúrio castelhano, cortina portuguesa, alúmen oriental — antes de 1453—, a?úcar e frutos do reino mouro de Granada...); nenhuma délas é dominada por uma única familia, facto de que resulta uma razáo social anónima, tal como a Sociedade dos alúmens. As ac?5es ( = carates) sao sempre divisíveis e sempre cedíveis a qualquer momento sem a mínima formalidade. Finalmente, fora de Itália, surgem também sociedades impor tantes. É certo que as associafóes de Nuremberga continuam a ser sociedades familiares e que, na grande companhia de Ravensburgo, fundada no século XIV, quatro associados detinham ainda, pouco antes de 1500, mais de dois tercos do capital social. Na Alemanha do Sul, subsistía portanto um certo atraso. Mas Jakob Fugger, burgués e banaueiro de Augsburgo, comegou, a partir do fim do século XV, a firmar bem o seu poder. 419
As grandes feiras Apresemámos claras reservas quanto á sedentanzafáo do comer cio a partir de aproximadamente 1300. As próprias grandes socie dades italianas náo langavam frequentemente pelas estradas os seus associados e empregados, apesar das suas filiáis e dos seus corres pondentes? Havia sedentanzafáo, mas apenas do director-geral, dos directores de sucursais e de factores. Mais ainda! Náo há, portanto, a contradigo que por vezes se julga existir entre a manu ten g o das feiras e a ascensáo das grandes sociedades. Em 1426, a companhia Médicis criou uma filial em Genebra, onde as feiras tinham atingido, havia pouco, um brilhante progresso. Esta filial foi transferida para Liáo, quando, grabas a Luís XI, as jovens feiras desta cidade se desenvolveram por seu turno. «Mais numerosas, menos estáveis talvez, (as grandes feiras) marcam ainda profundamente a carta económica da Europa» (J. Heers). As feiras sao local de transacgoes comerciáis e finance iras que, pela sua importancia, permitem a comparafáo com as outras grandes pravas. Aliás, ao contrario do que acontecerá com as de Champagne, estas feiras nasceram em cidades que eram já centros económicos de grande raio de acgáo (excepto Chalon-sur-Saóne e algumas outras). «As mais activas situani-se nos itine rarios que váo do Mediterráneo as cidades da Flandres, ocupando em resumo o espago que pertencera ás feiras de Champagne. Mas a sua geografía e as suas características sao diferentes. A Guerra dos Cem Anos, a inseguranga crónica e a queda de alguns comércios afastaram os mercadores do itinerario francés» (J. Heers). As novas feiras instalam-se portanto nos limites internos e extemos do reino, em Chalón, Genebra, Liáo; a norte, em Bruges, Antuérpia, Berg-op-Zoom; no Imperio, em Francoforte do Meno, Leipzig, Nordlingen. Muitas eram feiras antigas, que beneficiaram de um vigor táo novo quanto progressivo. É o caso de Chalon-sur-Saóne, dotada de uma feira desde pelo menos o fim do século XII. O seu primeiro período de actividade real data dos anos 1280 e deveu-se á relativa proximidade das feiras de Champagne, ás quais se encontrava ligada, e também á protecgáo dos duques de Borgonha. Desde 1244, havia ali um mercado de tecidos, por onde está assinalada a passagem, em número considerável, de mercadores da Bacia Pa risiense, da Picardia, dos Países Baixos; do Sul, eles vinham da Provenga, da Lombardia, de Génova, de Lucques... No século XIV, o número das cidades do Norte e do Sul representadas pelos seuS negociantes aumentou nítidamente. As transacfóes incidiam essen* cialmente sobre os tecidos dos Países Baixos, as sedas mediterránicas, os coiros e os retrases de Paris... A asfixia destas feiras* devida á inseguranga, data de 1430 (H. Dubois).
4?ñ
No cometo do século XV, verifica-se o pleno progresso das feiras de Genebra, cujo desenvolvimento se acelerara no século anterior (J.-F. Bergier). No seu apogeu, as feiras de Genebra realizavam-se quatro vezes por ano, nos Reis, na Páscoa, em Agosto e no Dia de Todos os Santos, e até elas vinham pessoas de toda a Fran?a, dos Países Baixos, da Renánia, da Itália do Norte e do Centro, de Espanha. Situadas nao longe das gargantas dos Alpes, estas feiras de Genebra beneficiavam de vantagens políticas (es tando a regiáo ao abrigo de lutas sangrentas), económicas (o mercado de metáis preciosos de Genebra era excepcionalmente seguro) e comerciáis: os mercados franceses eram substituidos por novas saídas para Leste (Boémia, Hungría, Polónia...). Cerca de 1420, as grandes companhias estrangeiras comecaram a instalar na cidade correspondentes, factores, sucursais ou filiáis permanentes. A partir da segunda metade do século XV, comega a concorréncia das feiras de Liño, dotadas, em 1420, de todos os privilégios de que tinham beneficiado as de Champagne. A cidade decide ¡me diatamente que a feira da Primavera se realizará na margem direita do Sona, portanto do lado francés, e que a do Outono terá lugar na outra margem, margem imperial. De come?o, a proximidade das feiras de Genebra facilita o progresso. Um dos indicios do desenvolvimento lionés é o facto de, em 1454, os magistrados de Liáo terem pedido a Carlos VII que fixasse as datas das suas feiras, de forma a que estas nao prejudicassem as do Lendit e do Languedoc. Mas, depois dos reveses da guerra, em 1463, Luís XI decide novas normas, numa atitude característica do inter vencionismo e do mercantilismo ascendente de um Estado que se pretende «centralizado» C). Imediatamente, o rei «proíbe a todos os mercadores do reino que frequentem as feiras de Genebra, sob pena de confiscado de pessoas e bens». Genebra respondeu retendo os mercadores alemaes, lombardos e florentinos que passavam pelo seu territorio a caminho de Liáo. Os Lioneses contra-atacam e contratam guardas para controlar as estradas do Delfinado. Em 1467, verifica-se o armisticio, e náo a paz, que nunca chegará: a estrada de Espanha continua fechada aos mercadores de Genebra. Por seu turno, os mercadores de Troyes, Paris, Tours, Orleáes e Montpellier fazem campanha contra as feiras de Liáo e, em 1484, os seus estados-maiores conseguem a sua deslocado para Bourges. Trata-se de uma medida sem futuro e as feiras fazem de Liáo, no cometo do século XVI, uma das maiores pravas da finanfa e do comercio do Ocidente, depois de Genebra e antes de Antuérpia.
C) A té entao todas as feiras do Ocidente tinham surgido mais ou menos espontáneamente.
421
«Decalcadas a partir do modelo de Genebra» (J. Imbert), estas feiras realizam-se ñas mesmas datas, e o mer cado dos cambios, animado na origem pelos Italianos, como á beira do Léman, é constituido em bases idénticas. Estes mesmos meios foram empregues pelo mesmo Luís XI em Caen (1470), depois em Ruáo (1477), para evitar que os seus súbditos frequentassem as feiras de Bruges ou de Antuérpia. O saneamento da moeda francesa, come?ado por Carlos VII e prosseguido pelo seu filho (criafáo, em 1475, de uma moeda forte, o «escudo do sol» que valia 33 s. t.), desempenha também um papel no progresso lionés. Mas este último deveu-se ainda sem dúvida ao facto de Liáo pertencer a um grande Estado territorial: o apoio de um país extenso toma-se, no fim da Idade Média, necessário aos negócios (cf. supra, pp. 308-309). As feiras de Champagne tinham sido sucessivamente feiras de tecidos e depois o grande mercado do cámbio. As de Genebra e de Liáo sao ao mesmo tempo feiras téxteis (mas a seda substituiu os tecidos de lá) e pra?as financeiras. «Liáo e Genebra sáo sobretudo feiras da seda» (J. Heers) que, até Génova, «dáo o ritmo á actividade dos tecelóes e tintureiros», sendo os contratos feitos em fun?áo das feiras, para a data de partida das caravanas. Daqui resulta o recurso ao crédito, ás letras de cámbio e á finanfa italiana. «Ponto de encontro de banqueiros, elas sáo já feiras de cámbios, as futuras grandes pra?as bancárias do Ocidente.»
H ierarq u ia dos produtos, das correntes e dos polos com erciáis
Devido á auséncia de pré-estatísticas de conjunto, náo se sabe bem se o volume dos produtos comerciados declinou ou aumentou entre 1300 e 1500 relativamente ao século XIII, nem qual foi a amplitude da evolufáo no decurso dos dois últimos séculos da Idade Média. É, no entanto, certo que, a despeito da persisténcia de algumas constantes, diversas perturba?5es afectaram a hierar quia das mercadorias e a carta das correntes comerciáis. E a segunda metade do século XV foi seguramente um período de progresso quantitativo.
Produtos e comércios dominantes Os comércios de produtos alimentares foram evidentemente os mais constantes. A fome «afectava sempre algum local e, por toda a parte, reinava o instinto de guardar o próprio trigo; mas os especuladores desafiavam a opiniáo pública e as barreiras alfande422
gárias». Nos portos mediterránicos, o problema era permanente. Assim o testemunham os manuais comerciáis, que comejam a multiplicar-se. Diversas provincias de produfao habitualmente excedentária expediam os seus excedentes para a Sicilia, para algumas planicies da Itália peninsular, para a África do Norte e para o Languedoc. E a Península Ibérica, em pleno progresso material, incluiu-se entre os maiores, clientes, desviando em seu proveito os cereais de várias provincias da Franga e da Alemanha Oriental, sempre grande exportadora, a despeito (e também devido) do seu relativo despovoamento. Em contrapartida, a partir do fim do século XIV, a Hansa envia menos cereais para Inglaterra e para os Países Baixos. Mas em fináis da Idade Média, o comércio de cereais é provavelmente o mais activo no Mediterráneo Ocidental — onde representa, a partir de entáo, a maior parte do volume do tráfico proveniente da Alemanha ou da regiáo flamenga, através de Bruges ou Middelburgo. É óbvio que, em troca dos cereais, sobretudo bálticos, os mer cadores da Hansa e dos outros países nórdicos vém sempre pro curar — de passagem — o sal de Guérande, da baía de Bourgneuf-en-Retz, de Saintonge e de Portugal, que depois vendem ñas cidades hanseáticas, e também, cada vez mais, nos Paises Baixos. Com efeito, o arenque estava entáo a emigrar das costas da Escandinávia para o mar do Norte e as costas deste mar ficaram mais animadas pela pesca. No entanto, esta é apenas uma das facetas do comércio do sal marinho (M. Mollat, J.-C. Hocquet). O tráfico do vinho continua a ser um dos comercios dominantes, apesar de o consumo da cerveja nos Países Baixos (em Lille, por exemplo) seguir uma curva nítidamente ascendente. Estradas ter restres, rios e mares continuam a ver passar numerosos carregamentos destinados á Europa do Norte. A riqueza dos «vinhateiros» de Arras e as receitas do terrádigo de Damme provam o vigor deste comércio. No entanto, opera-se uma reclassificagáo entre os gran des vinhedos exportadores. A despeito da conquista francesa, Bordéus vende, melhor ou pior, os vinhos gascóes aos Ingleses, embora em quantidades nítidamente inferiores ás anteriores. Os vinhos de La Rochelle e do Poitou continuam a ser largamente consumidos em locáis distantes. Em contrapartida, os «vinhos de Franca» exportam-se menos. Agora, em muitos casos, as preferencias váo para vinhos mais alcoólicos, como os de Beaune, cujo sucesso se torna considerável (com a ajuda da hábil publicidade dos duques de Borgonha). Contudo, os países setentrionais recebem ainda poucos destes vinhos doces, os da Malvósia e da Roménia — que animam um comércio muito activo, controlado pelos armadores italianos, no Mediterráneo. 423
AS EXPORTAQÓES DE LAS INGLESAS (1279-1540] em milhares de sacos
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As contas anuais váo de Sáo Miguel a Sáo Miguel, excepto relativamente ao períod ¡290 em que foram abertas por volta tía Páscoa. Segundo E.M . Carus-WiUon c O. Coleman, England's E xpon Trade. 1275 Clarendon Pres&j Oxford, 1963,pp 122-123.
A S E X P O R T A L E S DE TECIDOS INGLESES (1349-1547 em milhares de pegas de tecido
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No que diz respeito aos téxteis, matérias-primas e produtos fabricados, a principal modificará® provém evidentemente da Ingla terra. A exportado da lá inglesa em bruto, animada pela associagáo «privilegiada» dos mercadores da Etapa, finalmente estabelecida em Calais, reduziu-se, entre meados do século XIV e a segunda metade do século XV, de 35 000 sacos/ano para apenas 5000. No mesmo lapso de tempo, a produgáo e a exportado de tecidos ingleses sofreram uma considerável extensáo. Base do poder dos «Mercadores Aventureiros», os tecidos ligeiros mas de qualidade sólida sao exportados por Londres, Bristol e Southampton para uma grande parte do Ocidente e mesmo para a Rússia, por intermedio dos hanseáticos de Londres. Mesmo em Antuerpia, estes tecidos lutam com sucesso contra a produdo local e fazem concorréncia aos tecidos do Brabante e da Flandres, até á Alemanha. Contudo, aínda resta lá inglesa para a clientela mais distante. Florenga, cujos tecidos opulentos se vendem, a despeito do seu elevado prego, até ao Oriente, continua a comprar lá em Southampton. Mas, a partir dos anos 1400, essa la é de qualidade corrente. Neste mo mento, a lá espanhola difunde-se desde Bruges (onde os mercadores de Burgos vém desafiar os Staplers ingleses de Calais) até á Itália. A 15 dos merinos é «o meio de sobrevivencia» (E. Perroy) — pelo menos um dos meios de sobrevivencia — dos Países Baixos, cuja nova industria alimenta em parte. Esta lá serve de frete de retorno para os navios que ligam Bruges á Espanha e consegue difundir-se até á Alemanha do Centro e de Leste. No que diz respeito as matérias corantes, a sua distribuido conhece modificagoes sensíveis, no fim da Idade Média. Os corantes orientáis (cochonilha, pau-brasil...), raros, muito raros e cujo fornecimento se tornara aleatorio devido á avangada turca, foram a pouco e pouco suplantados por produtos do Ocidente. O agafráo da Franga (Midi e Centro), excelente, era mesmo exportado para Constantinopla. Teve, no entanto, que recuar perante o agafráo dos Abruzzes (Aquila), que era vendido até á Alemanha do Sul para os fustóes, e perante o da Catalunha. O pastel-dos-tintureiros (o mais utilizado dos corantes em consequéncia da grande moda dos tecidos azuis), produzido na Franga do Norte, em Erfurt e na Tosc&nia, alimentava ainda um comércio a média distancia. Mas outras regióes vieram colocar-se á frente desta exportagáo: o Languedoc (Toulouse, Albi), a partir do fim do século XIV, e a planicie do Pó (Alexandria). Para o comércio dos produtos do Oriente, do qual as especiarías sáo apenas uma parte, o Mediterráneo teve de continuar a ser, até meados do século XV, a zona provavelmente mais animada do comércio do Ocidente. Por volta de 1300, este comércio estava organizado parcialmente em fungáo das feitorias italianas insta ladas no mar Negro, onde desembocavam as estradas da Pérsia,
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da india e da longínqua China. Os barcos genoveses transportavam trigo, sal, frutos, cera, peles, peixe, caviar, escravos da Kússia (a escravatura nao tinha desaparecido nos países do Mediterráneo, oriental ou nao), madeira do Cáucaso, especiarias e seda do Ex tremo Oriente, para nao falar do algodáo das escalas do Levante. No fim do século XIV, a queda do império mongol e as devastagoes de Tamerláo arruinaram este tráfico. No cometo do século XV, ressurgem, embora penosamente, os comboios que partem das margens do mar Negro. É através de Damasco e de Alexandria, por tanto, por intermédio dos Mugulmanos, intermediários dispendiosos que voltam a ser necessários, que se faz sobretudo o abastecimento veneziano em especiarias e em seda, os dois pilares da riqueza mer cantil desta cidade. Apenas Génova mantém a sua influencia até 1453, no mar Negro e no norte do mar Egeu. Mas os Genoveses já nao transportam especiarias: compram, na Ásia Menor, e concentram na sua ilha de Chio, o alúmen (até 1468), o añil, a laca, a madeira, os vinhos, o algodáo (o algodáo turco que, na Lombardia, faz concorréncia ao algodáo sirio e egipcio procurado por Veneza). Depois da queda de Constantinopla (1453), o comércio do Ocidente volta-se para o Mediterráneo Ocidental e para o mar Tirreno e precisa procurar mercados de substituido. Assiste-se a tentativas genovesas de colonizado do reino de Granada em declínio e de dirigir a sua produgáo agrícola. A própria Itália, com o alúmen de Tolfa, a cochonilha, o vinho ou a cera da Ligúria e de Nápoles, a seda da Calábria, o agúcar da Sicilia; o reino de Granada com o agúcar e a seda; Málaga com as passas e os figos secos; o Algarve com o agúcar; Valenga com a seda, sao outras tantas regióes que, no fim do século XV, procuram novos mercados de abastecimento, que preencham a caréncia dos mercados orien táis. Sem referir as térras recentemente descobertas no Atlántico: cerca de 1500, ou mesmo um pouco mais cedo, o agúcar da Madeira é vendido na Flandres e em toda a zona do Mediterráneo. Segundo diversos pontos de vista, a perda dos mercados de abastecimento e de escoamento do Oriente foi salutar, por ter obrigado os europeus latinos a produzir ñas suas térras ou a procurar noutros locáis, por vezes bem perto, outras vezes bem longe para Oeste, aquilo que agora só difícilmente se obtinha através do Levante. Novos e antigos polos de desenvolvimento Em Itália, os principáis centros continuam a ser Florenga, Génova e Veneza, que tinham conseguido, sobretudo a primeira, organizar-se em Estados territoriais, ao mesmo tempo para abas tecimento próprio e para escoamento das suas indústrias. Praticamente página após página, acabamos de evocar as dimensóes 427
e as características do seu poder. No Mezzogiorno, em Nápoles e, em menor grau, em Palermo, a presenta de nobrezas poderosas atrai igualmente mercadores e produtos de luxo. Nápoles vive, além disso, «uma nova fortuna», como porto de escala e de expor ta d o dos géneros do seu rico interior e também como centro textil. Toda a Lombardia está em pleno progresso no século XV. Mantua, Placéncia, Cremona exponam tecidos finos, veludos de seda, fustdes. Mas Miláo é realmente a capital económica da Itália do Norte: tem as suas grandes companhias de comércio, rivaliza já com Veneza e com Génova em quase todo o Ocidente e nomeadamente ñas feiras de Francoforte. O comércio flamengo náo está de modo algum em declínio. A fortuna mercantil de Bruges náo foi verdaderamente atingida, antes da segunda metade do século XV, pelo assoreamento do Zwyn, onde foram criados diversos anteportos para as grandes embarcagóes (Damme, o Écluse e mesmo Middelburgo, na ilha de Walcheren). Esta riqueza persistente deve-se a duas espécies de comércio. Em primeiro lugar, á exportagáo das luxuosas tapetarías de Bruges, Gand e Arras, para Espanha e para Itália, á dos tecidos de linho e de lá, sobretudo rurais, da Flandres, do Brabante e do Hainaut, á importagao de cereais e de cerveja alemáes, e também de géneros exóticos. Em segundo lugar, e sobretudo, ao comércio de tránsito: os navios genoveses, venezianos e toscanos trazem todos os produtos em que comerciam as suas metrópoles e que sáo seguidamente redistribuidos na Europa do Norte pelas sucursais ou filiáis das companhias italianas e pela Hansa, que é muito influente em Bruges. Mas na segunda metade do século XV, em particular a partir de 1480, comega o progresso de Antuérpia, que se encontra melhor situada (no Escalda, que é evidentemente acessfvel ás embarcagóes maiores) e que é também mais «liberal». As «na?5es» ita liana, espanhola, inglesa constituíram-se, tanto em Bruges como em Antuérpia, em organismos de defesa e em grupos de pressáo junto dos poderes locáis, tal como os Hanseáticos. Os dois grandes portos véem entáo surgir as primeiras bolsas (em flamengo: beurs), que foram buscar ás feiras algumas das suas características, visto que nelas se operam transacgóes sobre mercadorias ausentes mas cuja entrega é possível numa data a fixar. O apogeu da Hansa situa-se no século XIV. Contudo, no século seguinte ela continua a ser uma muito grande potencia econó mica. Esta liga de mercadores, que só bastante difícilmente obtém a ajuda militar das cidades, reúne mais do que nunca todas as pravas importantes da Renánia e da Alemanha do Norte. Dividida em quatro zonas, vestefaliana (Colónia), vende (Lubeque), saxónica (Brunswick) e prussiana (Danzigue), a Hansa é dominada por Lube428
GÉNOVA NO SÉCULO XV
I . As Compagne em Génova. — 2. Muralha construida em 1155. — 3. Muralha construida em 1320. — 4. M uralha construida em 1346. As letras brancas sobre Tundo negro localizam as Compagne do século XV: A. Borgo San Tomasso. — B. Borgo. — C. Porta Nova. — D. Soziglia. — E. Porta. — F. San Lorenzo. — G. M accagnana. — H. PiazzaLunga. — I. Castro. — J. Borgo Santo Stefano. Os números romanos indicam os m onumentos:!. Porta San Tonunazo. — II. Igreja San Giovanni di Pré. — III. Porta di Vacca. — IV. Castalletto — V. Igreja San Siró. — VI. Igreja Santa M addaiena. — VII. Igreja Nostra Signora delle Vigne. — V41I. Palazzo di San Giorgio. — IX. Igreja San M aneo. — X. Palazzo del Commune. — XI. Catedral San Lorenzo. — XII. Igreja Santa María di Castello. — XIII. Porta Soprana. — XIV. Palazzi Fieschi e Igreja Santa María in Via Lata. — XV. Darsena (Arsenal). Os números árabes indicam as pravas: 1 P. Fossatello. — 2. P. Banchi. — 3. P. Sosiglia. — 4. P. Fontane Maróse. — 5. P. San Lorenzo. — 6. P. San Matteo. — 7. P. dei Commune. — 8. P. Sarzana. Segundo J. Heers. Genes au XVe s'técle: activité économique et problemas sociaux, S.E.V. P .E .N ., París, 1961, pp. 678-679.
que e Hamburgo, situadas de um e outro lado do istmo do Schleswig-Holstein e, portanto, caberas de linha de navegafáo, a primeira no Báltico e a segunda no mar do Norte O. As ligagoes entre os «dois eixos da economía medieval» (E. Perroy), a Itália a sul, a Flandres e a Hansa a norte, sofreram diversas deslocagSes. A partir de 1320-1340, as novas estradas marítimas beneficiam, excepto em caso de pirataria e de guerra, de uma animagáo crescente. Por térra, as modifica?5es de trajecto sao muito claras. A partir de entáo, os negociantes abandonam o reino de Franga a oeste e utilizam as estradas de Simplón e de Gothard, que acabam por escoar a maior parte dos transportes. A segunda desee o vale do Reno por Basileia, a segunda, pelo Jura, serve a feira de Chalón, chegando ao Norte pela Lorena. A deslocagáo das feiras (pp. 420-422) ilustra bem o desvio dos trabados. No século XV, a preeminéncia da Flandres e sobretudo da Hansa, bem como a dos Italianos, comegam a ser seriamente ameagadas pela entrada na liga de novas economías dominantes, da Alemanha do Sul, da Inglaterra, da Holanda e, finalmente, da Península Ibérica. As regioes da Alemanha do Sul devem o seu brilhante progresso em parte á sua situagáo no termo setentrional de algumas estradas alpestres. A actividade local, cada vez mais viva, é alimentada por duas especies de produgdes industriáis: a dos fustóes e dos tecidos de linho, fabricados ñas aldeias, e que dáo origem ao pré-capitalismo, simultáneamente comercial e «industrial», em Constancia e em Saint-Gall, em Augsburgo e Ravensburgo; e, mais ainda, a dos metáis, prata, estanho, cobre, zinco, cuja produgáo aumenta na Turíngia e no Harz, e mais ainda na Boémia e na Hungría. O fabrico de lingotes de prata e a cunhagem de moeda explicam o ascenso financeiro e comercial de Nuremberga, evidente a partir do século XV. Os mercadores da Alemanha do Sul invadem todas as grandes pragas de comércio. Em Veneza, agrupam-se no Fondaco dei Tedeschi. E encontramo-los em grande número na Boé mia e na Polónia, em Lubeque e até na Noruega, numa zona durante muito tempo reservada á Hansa. Antes do fim do século XIV, a Inglaterra eleva-se finalmente á categoría de grande poténcia marítima, grasas á sua indústria téxtil. O seu principal comércio é, a partir de entao, o dos tecidos enviados para todos os países pelos «Mercadores Aventureíros», facto de que resulta o progresso dos portos. Alguns continuam a ser muito frequentados pelos estrangeiros (italianos em Southamp(') O comércio entre os dois mares fazia-se inicialmente por portagem e, depois, após a paz de Stralsund de 1370, pelo estreito de Sund e também pelo canal de comportas do Stecknitz, que, no século XV, ligava adequadamente os dois mares, facto de que resultou uma redu?ao dos fretes.
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tonn, hanseáticos e italianos em Londres). Mas outros sao espe cíficamente ingleses, como Bristol. Com boas ligagoes com o interior através de excelentes cursos de água secundarios, Bristol recebe as las para o seu próprio artesanato, os tecidos (sobretudo os teci dos azuis de Coventry), o ferro e o carváo. Nos seus cais, cons tantemente alargados no século XV, desembarcam peixes, carnes salgadas, manteiga, toucinho, peles e tecidos de linho da Irlanda. E os marinheiros de Bristol langam-se ao assalto de mercados comerciáis mais distantes, até Portugal e ás costas mediterránicas da Espanha. Por seu turno, os pescadores chegam á Islándia e transformam-na quase em colonia, para depois irem procurar ban cos de pesca mais distantes, a norte da Noruega e na Terra Nova. É notorio desde há muito que esta expansao inglesa náo pode ser dissociada da xenofobia cuidadosamente mantida pelos Mer cadores Aventureiros, que tinham inveja dos privilégios de que ainda beneficiavam os Italianos. Esta xenofobia confunde-se por vezes com os elementos primeiros de um mercantilismo que, pelo primeiro Acto de Navegagáo (1381), tenta impor o monopolio do pavilháo inglés nos portos do reino ('). O que sobressai como a mais grave consequéncia é a tenacidade com que os mercadores ingleses, sobretudo desde 1450, tentam atacar o monopolio da Hansa no Báltico. A partir do inicio do século, comegam a frequentar os portos bálticos, levando para lá os seus tecidos, o estanho do Revon e da Cornualha, mas também produtos longínquos (sal atlántico, vinho gascáo, frutos secos de Portugal), comprando madeira em troca. Desencadeia-se uma verdadeira guerra comercial, com pirataria, bloqueios e supressáo dos privilégios hanseáticos em Londres, que póe termo á paz de Utreque (1474) mas que confirma a ruina do monopolio alemáo. O aparecimento da Holanda no grupo principal das nagoes mercantis é também anterior ao fim da Idade Média e apresenta diver sas características idénticas ás do progresso inglés. Inicialmente, verifica-se um desenvolvimento da industria dos tecidos, bastante acentuado a partir de 1400-1420, em diversas cidades onde cometa a manifestar-se o pré-capitalismo, como é o caso de Leyde e de Delft. Uma parte da matéria-prima fornecida por Calais é a partir de entáo adquirida pelas associagoss holandesas, os Calisvairders. E apesar de os tecidos da Holanda serem inicialmente vendidos no exterior, ñas feiras de Bruges e de Antuérpia, depois seráo as feiras do país, as de Berg-op-Zoom e de Delft, que de tal se encarO Por fim, teve de limitar o seu alcance, exigindo simplesmente o paga mento de direitos suplementales aos mercadores feirantes que náo ostentavam o pavilháo inglés. Em 1449, verifica-se outra tentativa, ainda mais extrema: exige-se entáo a destrui
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O COMERCIO HANSEÁTICO NA EUROPA
Linhas regulares de tráfico: I. Linhas principáis estabelecidas antes de 1250. — 2. Linhas principáis estabelecidas de 1250 a 1350. — 3. Linhas principáis estabelecidas de 1350 a 1500. — 4. Cidade hanseática. — 5. Feitoria ou cidade frequemada pelos Hanseáticos. — 6. Lugares de peregrinado. A s quatro cidades em maiúsculas sao as quatro grandes feitonas. Segundo Ph. DoIIinger, LaH anse, Aubier, París, 1964, mapasextrátexto l i e III.
regaráo. Verifica-se, portanto, um progresso urbano e «industrial», mas também, consequentemente, um progresso comercial, uma vez que, no século XV, Amesterdáo e Roterdao passam a figurar entre os grandes portos e enviam os seus navios até ao Báltico. Muito antes de 1500, a Península Ibérica eleva-se á primeira fileira dos países negociantes, minando o outro monopólio tradicio nal, o dos Italianos. A partir do fim do século XIII, estes últimos franquearam o estreito de Gibraltar, inaugurando depois, em 1318-1328, uma rota marítima regular entre o Levante, a Itália e a Flandres. Em sentido inverso, «os Atlánticos fizeram a sua entrada no Mediterráneo». Uns e outros precisavam de escalas, facto de que resulta a entrada em cena dos portos de Portugal e de Espanha. Naturalmente, os Italianos prospectaran! os mercados regionais e, pelo menos a partir de 1400, comefaram a vender em portos distantes os produtos ibéricos (peixe, vinhos, azeite...). Outro facto que teve consequéncias imensas foi a expansao atlántica dos Ibé ricos e as primeiras grandes descobertas de ilhas e de térras. Deste progresso beneficiaran! especialmente o conjunto Sevilha-Cádis, no Sudoeste de Espanha, e Lisboa, em Portugal. Em Cádis, porto de entreposto, e em Sevilha, capital do negócio e da banca já desde o século XIII, parecem ter marcado encontro todos os marinheiros do mundo, dos ingleses aos italianos, dos bascos aos bretSes. Os banqueiros florentinos e genoveses surgem ai em número cada vez maior e mais activos. Os Grimaldi ou os Spinola comanditam o comefo do comércio com aquilo a que se vai chamar as Indias Ocidentais. De momento, a riqueza assenta ñas mercadorias da Andaluzia, o trigo, o vinho do Jerez (severo concorrente dos vinhos gascóes), o azeite, o sabáo, o atum em azeite (que tende a suplantar, no Mediterráneo, os peixes salgados ou secos do mar do Norte e do Báltico). A partir de antes de 1400, vém juntar-se a estes produtos o ouro do Sudáo, os produtos de África e das ilhas descobertas, a urzela (novo produto tinturial), os coiros, a cera, o afúcar. Em Lisboa, os Italianos náo tiveram um papel táo importante e os marinheiros portugueses deram provas de uma maior audácia. Mas a economía portuguesa concedeu aos Genoveses o monopólio da exportafáo da cortina e pediu a sua ajuda para a valorizado do próprio Portugal e das suas primeiras colonias (Madeira, Afo res). Depois, os Portugueses, tal como os Andaluzes, sacudiram progressivamente a tutela italiana e conquistaram o seu lugar nos grandes itinerários. Encontramo-los em grande número no mar Tirreno e mesmo nos portos setentrionais, até á Irlanda. Náo há qualquer dúvida de que, para os Ibéricos, o «século de ouro» comefou antes de Cristóváo Colombo. Se parece termos esquecido a Franga, é de facto porque o grande comércio teve tendéncia para o fazer. Mais do que a costa do 433
A V ID A E C O N O M IC A NA PENINSULA IBERICA NU S h L U L U XV
I Orando cidade mercantil ou bancána — 2. Fe ira - .V Centro de industria textil — 4. Centro de construyóos navuis ou pono por onde passavam os navios ao servido dos estntngeiros— 5. Minas — 6. C’anunhos da Mesta — 7. Kclaqóes comerciáis efectuadas por Castelhanos, Cataláes ou Italianos.— 8 Outras relances marítimas — 9. Salinas — 10 Vinhas, pomares. Segundo J. Heers, L O tcid en i aux X/V* etXV* siéctes: aspeas économiques etsonuu.x, P U F . , P a rís,4 .“ ed 1973.p. 194.
Mediterráneo, a costa francesa da Mancha e do Atlántico sofreu, depois da Guerra dos Cem Anos, um certo ressurgimento. Mas o tráfico limitava-se aqui aos «produtos primários, pouco ficando a dever á industria e aos mercados distantes, exigindo apenas capitais reduzidos e recorrendo a técnicas sempre arcaicas» (J. Heers). No interior, a velha feira de Lendit, em Saint-Denis, que outrora tivera renome «internacional», nao passa de um ponto de encontro entre parisienses e mercadores das provincias limítrofes. Incontestavelmente, a Franca falhou a entrada no mundo econó mico do século XVI. O maior negociante francés, Jacques Coeur, cujas empresas tinham, no entanto, sido concebidas a partir do modelo dos Médicis (comércio, especulares de toda a espécie, divisao dos negócios por uma série de companhias independentes), nao foi o precursor de uma nova prosperidade francesa. Algumas das suas empresas sao típicas da época (prospecfáo mineira no Sudeste, tentativa de arrancar aos Venezianos o monopolio da importafáo de especiarias...). Mas pouco depois de cair em des crédito perante Carlos VII, verificou-se uma falencia que era já certa. Era apenas uma espécie de aventureiro que nada construirá de sólido (M. Mollat). Talvez porque o terreno francés ainda nao estivesse preparado. A prova deste facto é a derrota de Luís XI, quando tentou proibir as mercadorias do Levante que nao tivessem sido transportadas ñas «galés de Franca», ou o s e m i fiasco que representou a organizafáo em Londres, em 1470, de uma «exposifáo de produtos franceses». As ideias engenhosas náo faltaram a alguns franceses, mas os seus compatriotas só raramente as compreenderam. A Franfa do fim da Idade Média náo possuiu o génio do comércio.
Conclusáo
DA IDADE MÉDIA AO RENASCIMENTO: CONTINUIDADE OU DESORDEM ECONÓMICA?
Por volta de 1480, em parte sob a influencia dos trabalhos do geógrafo alemáo Behaim, surgiu mais claramente a ideia de atingir as indias contornando a África. As viagens de Dias e sobretudo de Vasco da Gama realizaram este objectivo (1497-1499). Mas alguns anos antes, Cristóváo Colombo, que esperava chegar ás indias pelo oeste, descobrira as ilhas das Antilhas. A data da sua primeira viagem (1492) é uma das que ge raimen te se escolhem para assinalar a passagem da ldade Média para os tempos moder nos. Colombo era um genovés que cedo se colocara ao servifo dos Portugueses, e depois dos Castelhanos, manifestando desprezo pela sua patria, como acontecía com muitos dos seus compatriotas. Concebeu a ideia de chegar a térras distantes na esperanza de nelas encontrar metáis preciosos, sobretudo ouro. A «fome monetaria» foi uma das causas da descoberta de um mundo novo. A grande viagem de 1492 náo era a primeira aventura transatlántica. Dois séculos antes, os Vivaldi haviam tentado uma, mas em váo. No intervalo, os ventos do Atlántico tinham sido reconhecidos e as técnicas náuticas tinham progredido muito. Esta data «fronteira» de 1492 náo se justifica de modo algum. Os efeitos da descoberta do Novo Mundo demoraram bastante a fazer sentir-se e, como F. Braudel demonstrou de uma maneira admirável, o Mediterráneo do século XVI náo seria de forma alguma um «mar morto». É, no entanto, evidente que, no decorrer do século XVI, as imensas consequéncias das grandes descobertas tiveram um grande peso sobre a Europa. No dominio comercial, a oferta do ultramar sobre os mercados do Ocidente seria de primeira importáncia. O afluxo do ouro e da prata da América iria pór fim á «fome monetária» que se fazia sentir desde há muito tempo, e provocaría uma forte subida dos prefos, caracte rística do século XVI. Mas este movimento para a subida iria 437
apenas reforjar o que já caracterizara as últimas décadas do século XV, que tinham conhecido um primeiro boom mineiro seguido de uma primeira subida geral dos prefos. Poderá falar-se de uma «revolufao económica» no século XVI? Náo será melhor dizer que o Renascimento assistiu á amplificado, á acelerado de fenómenos surgidos antes do fim da Idade Média? A expansáo colonial come?ara no século XV. E se nos voltarmos para os aspectos da vida económica que náo estáo ligados com essa expansáo ultramarina, a continuidade é ainda muito mais evidente. O centro de gravidade do Ocidente já comefara a deslocar-se de leste para oeste. A política já se introduzira na economía. Capi talistas e pré-capitalistas tinham surgido antes do fim do século X III e a proibifáo da usura náo perturbara os seus primeiros passos. Segundo W.-W. Rostow (p. 144), o arranque (l) produziu-se quando «o crescimento se tornou fu n d o normal da economía» e quando «chegou ao poder político um grupo de homens dispostos a considerar a m odernizado da economía como uma questáo polí tica séria da mais alta importancia». Apesar de fortemente ajudada pelos efeitos das grandes descobertas, esta «descolagem» parece, no entanto, ser-lhe anterior em algumas décadas. Foi por volta de 1450 ou 1470 que o desenvolvimento quantitativo da produfáo e do comércio se tornou nítido. E foi de facto entáo que o «arran que» se produziu, no momento em que surgiam os primeiros sín tomas de pré-capitalismo industrial. Tal como a natureza, a historia náo dá «saltos». Isto é válido para a economía dos sectores secundário e terciário, nos quais a passagem da Idade Média para os tempos modernos náo foi uma ponte lanzada sobre um precipicio. Isto é ainda válido para a actividade do sector primário, onde essa passagem foi absolutamente insensivel. A ideia de um hiato entre dois períodos da história em geral e da história económica em particular deve-se menos a um orgulho um pouco íngénuo dos homens do século XVI, que acreditaram tudo ter inventado e tudo ter mudado, do que á dema siado grande especializad 0 dos historiadores. O conhecimento da «modemidade» do século XV e o do carácter «medieval» do século XVI perdem-se, um e outro, nessa especializado. • •
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Os tempos modernos, e mesmo os contemporáneos, tiraram partido, e tiram ainda, tanto ao nivel das realizafóes como ao do pensamento económico, de numerosas inven?5es feitas nos quatro O Esta é a terceira das «cinco etapas do crescimento» distinguidas pelo autor.
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últimos séculos medievais. O contrato de arrendamento e de arrendamento a meias? Criagóes medievais! A letra de cámbio, o cheque? Criafóes medievais! As formas e as técnicas principáis do crédito e da banca, as sociedades comerciáis com sucursais, com filiáis ou por acfóes? Criagoes medievais! E náo seria difícil prolongar esta lista. Exagerar-se-á ao sublinhar que os homens dos séculos XIV e XV compreenderam melhor do que os historiadores de antes de 1914 os efeitos da inflafáo? Apesar de náo terem sabido que existem ciclos económicos de longa durafáo, mais do que seculares, estes homens compreenderam, em contrapartida, bastante bem alguns mecanismos dos ciclos curtos. No dominio do pensamento económico, a Idade Média náo foi um período de infantilismo doutrinário que, por pouco, se reduziria á banalidade com sentido predeterminado: tudo seria culpa da Igreja e da sua proibifáo da usura. O nosso amigo Jean Meuvret insistiu sobre a continuidade real do pensamento económico do século X III até aos nossos dias. Recordou-se o que foi o pré-mercantilismo medieval (p. 308), mas houve muito mais do que isso, tendo o mercantilismo sido uma forma de pensamento por vezes bastante superficial. Em 1954, Joseph A. Schumpeter juntou-se a Jean Meuvret e afirmou que «mais do que qualquer outro grupo, os escolásticos merecem o título de fundadores da ciencia económica». Já mais perto de nós, R. De Roover demonstrou sem apelo que o desprezo condescendente com que os nossos contemporáneos economistas (cf. os manuais da história do pensa mento económico) e muitos historiadores encaram os escolásticos decorre apenas de preconceitos. O ponto de partida da reflexáo escolástica náo é económico, mas moral, e será preciso esperar 1776 e A Riqueza das Noyóes de Adam Smith para que o mecanismo da produ?á° e das trocas se torne objecto de um conhecimento completamente independente da moral. Pelo menos, a partir do apogeu do pensamento esco lástico, o económico adquiriu «uma existencia definida ou mesmo separada» (Schumpeter). A metodologia medieval e a metodología contemporánea tém alguns pontos em comum. O método dedutivo, baseado em abstracfóes, tem ainda mais aderentes junto dos economistas actuais do que junto dos seus antepassados escolás ticos. Tal como a actual ciencia económica, a escolástica foi espe culativa. Isto nao impediu que os teóricos medievais observassem os factos com mais cuidado e exactidáo do que o fariam os mercantilistas modernos. Enquanto estes últimos se iriam limitar de preferencia aos problemas periféricos, tal como o do comércio externo, os escolásticos souberam levantar as questóes fundamentáis do valor, da formafáo dos presos e mesmo dos salários, apesar de lhes ter faltado «a visáo de um sistema económico que formasse um todo coerente... de tal modo que uma perturbado ocorrida 439
num sector provocasse necessariamente reac?oes nos outros». Sem hesita?5es, os escolásticos deram «um alcance geral» a textos de alcance restrito, extraídos de Aristóteles, da Biblia, dos Padres da Igreja, do direito romano ou do direito canónico. Dos seus numerosos estudos de textos, souberam tirar conclusóes absoluta mente novas e de grande alcance. A partir do século XIII, o ponto de partida da reflexáo econó mica é já o de Adam Smith, ou seja, o problema da divisáo do trabalho. O homem é um animal social que tem necessidade dos outros, pelo que sao precisas as trocas e indispensável a moeda. Quem fala do problema da moeda, fala do problema dos presos, que sao «a medida do valor em termos monetários». A teoría do valor é a pedra angular de todo o sistema económico e os esco lásticos viram a origem deste valor na utilidade, como faráo mais tarde os economistas neoclássicos. Buridan esteve mesmo perto de elaborar a nofáo de utilidade marginal... A determinará 0 dos prefos, sobre a qual desemboca qualquer teoría do valor, foi objecto de controvérsias: o justo prego será o pre?o de mercado, o custo liquido ou o prefo regulamentado pela autoridade pública? Juristas e tomistas, que eram pelo pre?o de mercado, só teráo a causa absolutamente ganha no século XVI. Mas as análises de Acúrsio, de Peñaforte, de Santo Alberto Magno e de Sao Tomás de AqUino — dos dois primeiros sobretudo — poderiam satisfazer «as exigencias mais severas da teoría moderna» (R. De Roover). E Santo Alberto, tal como Sao Tomás, nao se furtaram á questáo da relafáo entre pre?o de mercado e custo de produfao. Lógi camente, a doutrina tomista do justo pre^o foi acompanhada por uma teoría do justo salário. Daqui resulta a desconfianza dos escolásticos — e náo apenas dos tomistas — perante todas as cons pirantes susceptíveis de falsear o livre jogo da concorréncia tanto ao nivel dos presos como dos salários. A reflexáo escolástica sobre estes dois problemas capitais aprofundou-se continuamente a partir do século XIII, visto que nem o Renascimento nem o Século das Luzes conseguiram m atar esta corrente fecunda. Ainda nos séculos XVII e XVIII, a escolástica aprofundou a sua teoría, a despeito dos sarcasmos dos cartesianos, dos jansenistas e depois dos fisiócratas, influenciando mesmo pro fundamente os seus piores difamadores. Um curso ministrado em 1763, em Glasgow, por Adam Smith, conserva ainda em parte o esquema dos tratados escolásticos. Só treze anos mais tarde, O Inquérito sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nagóes repre sentará a completa separado entre filosofía moral e ciencia econó mica, emancipando esta última. Assim, o pensamento económico contemporáneo é filho da escolástica, mesmo quando se a náo reconhece ou se a ignora. 440
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A racionalizado económica parece-nos, a justo título, o critério principal de um sistema económico coerente e eficaz. Sobre este ponto, é usual a referencia a Max Weber, esquecendo-se um pouco que as suas perspectivas variaram desde A Ética Protestante á His toria Económica e á Economía e Sociedade. Para Weber o capita lismo é multiforme, traduz em si uma grande parte daquilo que cons tituí a originalidade da civilizado ocidental, a racionalizado das actividades humanas. A sua obra mais citada, A Ética Protestante e o Espirito do Capitalismo, náo é de modo algum uma teoría da emergéncia do capitalismo a partir do protestantismo e pretendeu apenas mostrar até que ponto a ética protestante é uma forma de racionalizado da leí moral. O protestantismo é apenas uma das correntes que contribuíram para a expansáo do capitalismo e influenciaram alguns dos seus aspectos. Portanto, sem protestan tismo teria havido capitalismo, mas este seria diferente. Se admitirmos esta interpretado, uma parte da controversia suscitada por este ensaio de Max Weber deixa de ter sentido e nada se opóe entáo a que se tente revelar a existencia — como nós fizemos — de um pré-capitalismo anterior a Calvino, partindo de um esforfo medieval no sentido da racionalizad 0 da vida económica. £ indiscutível que banqueiros, mercadores e empresários do fim da Idade Média tenderam para a racionalizado, ñas suas contabilidades, nos seus bancos, ñas suas companhias comerciáis, etc. Aos últimos séculos da Idade Média apenas faltou passar do qualitativo para um verdadeiro quantitativo.
RESUMO BIBLIOGRÁFICO
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Com a ajuda de bibliografías, geralmente ricas e actualizadas, que contém as obras citadas, poder-se-ia fácilmente completar, em vários aspectos, este resumo. Salvo excep?5es, este n3o encerra senáo as obras mais importantes ou as mais recentes. O BRAS G ERAIS PIRENNE (Henri), Histoire économique et sociale du Moyen Age, nova ed. revista por H. Van Werveke, Paris, 1963. CIPOLLA (C. M.) dir. de, The Fontana Economic History of Europe. The Middle Ages, Londres-Glasgow, 1972. Histoire générale des Techniques (dir. G. Daumas), t. I, Paris, 1962. Histoire générale du Travail (dir. L. Parias), t. I, liv. I a III por Ph. WOLFF, Paris, 1960. HODGETT (G.), A Social and Economic History of Medieval Europe, Londres, 1972. IMBERT (Jean) e LEGOHÉREL (H.), Histoire économique des origines á 1789, Paris, 3.* ed., 1979. LE MENÉ (M.), L ’Économie médiévale, Paris, 1977 (exposi?áo abreviada). LYNN WHITE (J.), Technologie médiévale et transformations so ciales, Paris, 1970. The Cambridge Economic History of Europe, vol. 1 a 4, Londres, 1952-1967. Coll. «Nouvelle Clio»: Les Invasions por L. MUSSET, 2 vol., Paris, 1965: Le Haut Moyen Age occidental; économies et sociétés por R. DOEHAERD, id., 1971; Le X III' siécle européen por L. GENICOT, id., 1968; L ’Occident aux X I V et X V ' siécles: aspeets économiques et sociaux por J. HEERS, 4.* ed., id., 1973; L’Expansioneuropéenne du X IIV au X V ' siécle por P. CHAUNU, id., 1969. DE ROOVER (R.), La Pensée économiaue des scolastiques: doc trines et méthodes, Montréal-Paris, 1971. FOURNIAL (E.), Histoire monétaire de l ’Occident médiéval, París, 1970. GUILLAUME (P.) e POUSSOU (J.-P.), Démographie historique, Paris, Armand Colín, 1970. 445
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GLOSSÁRIO SIMPLIFICADO DE TERMOS ECONÓMICOS
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ACAPITALISMO: característica dos oficios, p. 251. AOCÁO: Cf. PARTE. AFOLHAMENTO: def. pp. 164-165. ARRENDAMENTO (AFFERM AG E): origem e coméeos, pp. 230-233, extensáo, pp. 358-359. AUTARQUIA: sistema económico no qual uma unidade econó mica (local, regional ou mais vasta) náo comercia com o exterior. BANCO: estabelecimento de crédito que recebe depósitos e os uti liza para empréstimos ou investimentos. Origem e coméeos, pp. 275-283, 406-408. Cf. CAMBIO, CRÉDITO, SOCIEDADES, etc. BEM ECONÓMICO: qualquer mercadoria, qualquer servido desti nados a satisfazer uma necessidade económica. BIMETALISMO OURO-PRATA: — na Antiguidade e no tempo dos Merovíngios: pp. 51-53; — a partir do século XIII: pp. 191-193. BOLSA DE MERCADORIAS: mercado no qual se negoceiam as mercadorias. Origem: p. 428. Cf. FEIRAS. CAMBIO: pp. 187, 277-278, 282-283, 406-408. Externo: prego de uma moeda expresso em unidades de uma moeda em circulagao num local diferente, pp. 187, 277-278, 406-408. Cf. CAMBIO (CONTRATO, depois LETRA DE). Interno: def. p. 193. CAMBIO (CONTRATO, depois CARTA DE): pp. 279-283, 410-411. CAPITAL: def. p. 52. Cf. BANCO, CAPITALISMO, CRÉDITO, FACTORES DE PRODUCÁO, INVESTIMENTO, SOCIEDADES, etc. CAPITALISMO: def. pp. 299, 441. Económico e financeiro: pp. 299-300, 397, 438. 441 (Pré-capitalismo). Industrial: pp. 300, 393-397, 438, 441 (Pré-capitalismo). Cf. BANCO, CRÉDITO, SOCIEDADES, etc. 453
CARTEL: associafáo de objectivos e duragáo (em geral) limitados de várias empresas ou sociedades com vista a u n interesse comum. CHEQUE: def. p. 411. CICLO ECONÓMICO: período de variagáo dos presos — e por tanto dos rendimentos — caracterizado pela sucessao de quatro fases: prosperidade, crise, depressáo, recuperasáo. Cf. CONJUNTURA, CRISE, etc. C LE A R IN G : sistema «internacional» de compensa?áo das dividas contraídas por ocasiáo do comércio entre mercadores provenien tes de unidades económicas diferentes. COMPANHIAS: cf. SOCIEDADES.; CONJUNTURA: situasáo, num dado momento, das diversas variáveis económicas (presos, rendimentos, emprego, trocas, etc.), ñas suas grandezas e ñas suas relagoes Baixa conjuntura: depressáo. Alta conjuntura: prosperidade. COTA'CÁO (DA MOEDA): def. p. 194. CRÉDITO: transferencia de numerário, durante um dado período, mediante, para aquele que empresta, um reembolso em princi pio acrescido de um juro: pp. 275, 277-283, 406-411. Cf. BANCO, CAMBIO, CÁMBIO (CONTRATO, depois LE TRA DE), MORAL ECONÓMICA, etc. CRESCIMENTO: aumento do rendimento «global» de uma unidade económica no decorrer de um período. Etapas de crescimento: pp. 141-144, 300, 438. CRISE: fase muito curta que denota a inversáo de tendencia e anuncia a depressáo. Cf. CONJUNTURA. Tipo de crise numa economia pré-industrial: pp. 327-330. CULTURA PREPONDERANTE: def. p. 229. d: denário. Denário de prata: pp. 53-54. 188-190, 191. Denário de ouro: p. 192. DEFLA'CÁO: l)conjuntura que se caracteriza pela insuficiencia da procura global em relasáo á oferta global; 2 ) reforso do poder de compra da unidade monetaria devido á conjuntura ou á decisáo da autoridade monetária. Cf. DEPRECIACÁO. DENÁRIO: ver d. DENSIDADE: relasáo da populasáo (total dos individuos ou total dos fogos) com uma dada superficie. DEPÓSITOS: quantias líquidas confiadas a um particular ou a um banco. DEPRECIACÁO: nova avaliasáo da moeda. para mais ou para menos: pp. 190-193. Processos de depreciasáo: pp. 193-197. DESVALORIZACÁO (PROCESSOS MEDIEVAIS DA): cf. DEPRECIACÁO. DIRIGISMO: política urbana, principesca ou real, que tende a mo dificar os presos de mercado e utilizada em particular para limi tar os aumentos de presos de géneros de primeira necessidade e de produtos artesanais. DISPARIDADE: modificasáo da relasáo entre presos, custos e rendimentos. 454
«DUOPÓLIO»: situagáo de uma oferta quando existem apenas dois vendedores, por exemplo duas companhias comerciáis. ECONOMIA DOMINADA: def. p. 287. ECONOMIA DOMINANTE: def. p. 287. ELASTICIDADE: rela?ao entre duas espécies de varia?óes, as da oferta ou as da procura, por um lado, as dos pre?os ou dos rendimentos, por outro. EMPREGO: volume de máo-de-obra. Pleno emprego: ausencia de desemprego. Subemprego: situa?ao na qual nem todos os factores de produ5S0 sao utilizados em pleno, nomeadamente a mao-de-obra. EMPRESARIO: chefe de uma empresa: pp. 258, 381. EMPRÉSTIMO: cf. BANCO, CRÉDITO, MORAL ECONÓMICA, RENDA IMOBILIÁRIA, SOCIEDADES, etc ENTESOURAMENTO: ac?ao de conservar valores em caixa, inac tivos ou congelados, que náo devem, em principio e num futuro próximo, resolver-se em consumo ou em investimento. Ex. pp. 57-58. EQUILIBRIO ECONÓMICO: situa?áo caracterizada por um ajustamento entre a oferta e a procura globais, portanto por uma estabilidade do nivel geral dos pre?os. ESCASSEZ: insuficiencia mais ou menos prolongada dos bens disponíveis em relafáo ás necessidades ou á procura. ESTAT1STICA: método de observado económica baseado ñas séries e nos grandes números. ESTRUTURAS: conjunto das relagSes entre as variáveis econó micas dependentes de um mesmo sistema ou de uma mesma entidade económica. EXPANSÁO: fase de um ciclo económico durante a qual todos os valores sao orientados para a subida. Sin.: alta conjuntura. FÁBRICA: def. p. 256. FACTORES DE PRODUCÁO: pp 31-70, 144-202. FEIRA: local de encontro entre compradores e vendedores, na maior parte dos casos vindos de longe. e geralmente anual 011 bianual. Feira sazonal: pp. 115, 221, 297; cf. MERCADO. Grande feira «internacional»: pp. 87, 124. 268-275, 420-422. FISCHER (FÓRMULA DE): p. 60. FOGO (VALOR DO): pp. 179, 317-321). GRESHAM (LEI DE): def. pp. 194-195. GROS: pp. 189-190, 243. GUILDA: def. p. 244. HANSA: def. p. 244. HERDADE: def. p. 94. INDICE: medida das variagóes de um valor no decorrer de um dado período, a partir de uma base afectada do coeficiente 100 . INFLACÁO: subida dos presos provenientes de um excesso da pro cura global em rela?áo ao produto global, ligada ou nao a ma n ip u lare s monetárias. INOVACÁO: def. pp. 140, 384. INVESTIMENTO: opera?ao que visa aumentar a forma?ao do capital: def. pp. 52, 61-63, 199-200, 365. Cf. BANCO, CAPITALISMO, SOCIEDADES, etc. 455
JURO (mutuum): prego mediante o qual um capital c provisoria mente confiado pelo seu proprietário a uma outra pessoa. Cf. BANCO, CAMBIO, CAMBIO (CONTRATO, depois LE TRA DE). MORAL ECONÓMICA, SOCIEDADES, etc. Lb.: Libra: pp. 59, 189-192. LUCRO: rendimento de uma unidade económica. MANSE: def. e características gerais: pp. 80-86; declínio: pp. 207-209. MERCADO: 1) sentido económico: local de encontro entre a oferta e a procura de um bem. 2 ) sentido geográfico: local de encontro entre compradores e vendedores de um ou de vários bens, provenientes das vizinhangas e reunindo-se frequentemente uma vez por semana: pp. 90, 115, 221-222. Cf. FEIRA, tipos de mercado excepcional. MERCANTILISMO: def. pp. 308-309. M É T A Y A G E : def. pp. 232-233. MOEDA METÁLICA: def. pp. 52-56. Cf. DEFLACÁO, DEPRECIACÁO, INFLACÁO, MOEDA PAPEL, MUTACÓES MONETARIAS. MOEDA PAPEL: pp. 408-411. Cf. CAMBIO (CONTRATO, depois LETRA DE). MONOMETALISMO PRATA: pp. 59-60, 188-192. MONOPÓLIO: situagáo económica na qual a totalidade da oferta de um bem se encontra ñas máos de uma única entidade econó mica. Termo com frequéncia utilizado abusivamente ou num sentido muito vasto, por exemplo para designar uma das carac terísticas de uma entidade económica dominante. MORAL ECONÓMICA: pp. 19-21, 91, 198-199. 267-268. 282-283, 286, 381-382, 439-441. NIVEL DE VIDA: conjunto de bens de que dispoe um grupo social e que está ligado ao grau de satisfago das necessidades deste último Avaliagáo do nivel de vida: pp. 321-322. Exemplos: pp. 340-344, 368-369. NOMINAL (PRECO): prego cujo valor é expresso em moeda. OFERTA: volume de um bem que os vendedores estao dispostos a ceder por um prego determinado. OFICIOS: def. e características origináis, pp. 248-265. OLIGOPÓLIO: situagáo na qual a oferta se encontra ñas máos de apenas um pequeño número de vendedores. ORCAMENTO: previsáo cifrada das receitas e das despesas para um exercício financeiro. portanto anual, futuro. PADRÁO: 1) valor que serve para medir todos os outros valores. 2 ) metal precioso (ouro ou prata) de uma dada aliagem e que serve para a cunhagem de moedas. Cf. BIMETALISMO. MOEDA, MONOMETALISMO, etc. PARTE: título de propriedade de uma sociedade de capitais. A parte (hoje ACCÁO) é ou náo negociável. Cf. SOCIEDADES. PEAGEM: def. p. 106. Papel económico: pp. 138, 171. 176-177, etc. 456
PENÚRIA: insuficiencia momentánea de bens disponíveis em rela?ao ás necessidades ou á procura. PERÍODO ECONÓMICO: durafáo a propósito da qual se efectúa uma análise económica. PÓLO DE DESENVOLVIMENTO: def. p. 287. PORTUS: def. pp. 111-113, 239. POUPANCA: excedente, sob a forma de quantia líquida, do rendimento sobre o consumo. Cf. FACTORES DE PRODUCÁO. PRÉ-CAPITALISMO: Cf. CAPITALISMO. PRECO: valor fixado em moeda para o mercado em virtude da oferta e da procura, ou entáo fixado pelo monopólio ou oligopólio com peso no mercado. PROCURA: quantidade de um bem que um individuo (no caso da procura individual), um grupo ou o conjunto da populadlo de uma unidade económica estío dispostos a comprar a um pre?o determinado. Procura global: conjunto do consumo e dos investimentos. PRODUCÁO: criafáo de utilidades que podem ser negociadas num mercado, inclusive a parte autoconsumida. PRODUTO DOMINANTE: def. p. 287. PROGRESSO ECONÓMICO: aumento de uma satisfafáo oferecida á procura. Cf. CRESCIMENTO. PUBLICIDADE: processos destinados a dar a conhecer um produto, elogiando-o, ou a desenvolver o seu comércio: p. 224. QUILATE: def. p. 194. RECESSÁO: estímulo de uma depressáo económica. Cf. CICLO ECONÓMICO. RENDA: rendimento náo proveniente de um acto produtivo. RENDA IMOBILIÁRIA: def. pp. 236-237. RENDIMENTO: rela?á°, entre os factores de produfáo e os resul tados desta. Cf. SOCIEDADES. Rendimento agrícola: pp. 42-43, 156-157, 166-167, etc. Rendimento financeiro: exemplos, pp. 364, 384-390. RENDIB1LIDADE: em sentido lato: taxa de lucro em fun?áo do capital e do trabalho utilizados num processo de produ?áo. em sentido restrito: taxa de lucro, mas apenas em fun?ao do capital investido. Exemplo: p. 404. Cf. RENDIMENTO. ROTACÁO DAS CULTURAS: def. pp. 164-166. s.: soldo de ouro (antigo e merovíngio): pp. 53, 54. de prata (carolíngio): p. 54. do século XIII: p. 191. SECTOR: conjunto das unidades de produgáo que cobrem neces sidades mais ou menos homogéneas. SENHORIO: 1) fundiário: def. pp. 203-201; 2) banal: def. pp. 211 -213. SER VICO: acto de produ?áo que satisfaz uma necessidade eco nómica sem presta?áo de mercadorias. Ex.: os transportes. SOCIEDADES DE COMERCIO: def. e diversos tipos pp. 281-282, 283-286, 393-396, 411-419. 457
SOLDO: ver s. STOCK: bem ainda náo vendido. SUBDESENVOLVIMENTO: situagáo de uma economía na qual os factores de produgáo náo permitem satisfazer todas as necessidades e na qual o nivel de vida da maioria é muito baixo, estando os rendimentos desigualmente repartidos. TALHA (DA MOEDA): def. pp. 193-194. TAXACÁO: processo pelo qual a cidade ou um príncipe impoe um prego determinado, um máximo (taxagáo em tecto), ou o respeito pelo prego actual para o futuro (bloqueio). TENU RE DE FORO: def. pp. 216-218. TENU RE DE C H AM PART def. pp. 216-220. TERRÁDIGO: def. p. 106. Terrádigo e poder principesco: p. 138. TREND: tendéncia a longo prazo da conjuntura: p. 340. TROCA: troca directa, sem intervengáo da moeda, de mercadorias ou de servigos: p. 53. USURA: Cf. CRÉDITO, MORAL ECONÓMICA, etc. UTILIDADE: propriedade de um bem ou de um servigo de satis fazer uma necessidade económica. VALOR: apreciagáo subjectiva ou objectiva da utilidade de um bem ou de um servigo. VELOCIDADE DE CIRCULACÁO MONETARIA: frequéncia com que uma massa de moeda permite aos seus detentores efec tuar pagamentos no decorrer de um dado período. Cf. FISCHER (FÓRMULA DE). VILLA: 1) clássica: def. pp. 72, 71-91; 2) náo-clássica: pp. 89-94
INDICE
Prefácio á terceira edicáo francesa ............................................
9
Primeira Parte A ECONOMIA DOS TEMPOS OBSCUROS (DO SÉCULO V AO SÉCULO X) Cap. 1 — VISÁO DE CONJUNTO. A ELABORACÁO DUM NOVO ESP ACO ECONÓMICO NO OCIDENTE Fim do mundo antigo .................................................. Primeira re c o n s tru y o ........................................................ Ós Carolíngios e a moral económica ..........................
13 13 17 19
Cap. 2 — FRAQUEZA E DISPERSAO DOS RECURSOS ECONÓMICOS ....................................................................... As fontes escritas .............................................................. Outros tipos de fontes económicas ..........................
23 23 27
Cap. 3 — OS FACTORES DE PRODUCAO NO DECORRER DA PRIM EIRA IDADE MÉDIA .......................... O factor natural e a conquista do meio .................... O factor «instrumental». F orm ado e emprego do capi tal; a moeda e os investim entos................................ O factor humano .............................................................. Cap. 4 — A TERRA E A ECONOMIA RURAL ............... Antes da época carolíngia ............................................ A «villa clássica» da época carolíngia .......................... A dm inistrado e papel económico da «villa» ............... Os dominios nao «clássicos»............................................ Cap. 5 — A ECONOMIA DE TROCA ................................ As grandes migra^&es de meados do século V I I I ......... De meados do século VIII até ao final do século X ... 461
31 32 52 63 71 72 76 86
91 95 96 109
Segunda Parte A ERA DA EXPANSAO (DO SÉCULO XI AO SÉCULO XIII) Cap. 6 — VISA O DE CONJUNTO. O OCIDENTE ANI MA-SE E TORNA-SE CONQUISTADOR ....................
129
Cap. 7 — A EXPANSAO ECONÓMICA E OS FACTORES DA PRODUCÁO .................................................................... Progresso económico e conquista do meio natural ... O dinamismo da dem ografía............................................ A expansao monetária e os investimenfos ... ...............
139 144 179 184
Cap. 8 — 0 SECTOR DE ACTIVIDADE PRIMARIA: A ECONOMIA RURAL ............................................ ......... Aspectos económicos do senhorio ................................ A comercializafáo dos produtos agrícolas.................... As explorares rurais no século X III ..........................
203 203 221 228
Cap. 9 — AS CIDADES E O SECTOR SECUNDARIO ... O desenvolvimento urbano do século X I ao século X III O artesanato e os o ficio s..................................................
239 239 248
Cap. 10 — 0 SECTOR TERCIARIO ...................................... As técnicas comerciáis .................................................. Hierarquia das mercadorias, das correntes e dos polos comerciáis....................................................................... A expansao medieval terá sido pré-capitalista? .........
267 267 286 299
Terceira Parte A ERA DAS MUTACÓES (SÉCULOS XIV E XV) Cap. 11— VISÁO DE CONJUNTO. EXTENSAO OU REGRESSÁO DO OCIDENTE ............................................
303
Cap. 12 — 0 NASCIMENTO DAS PRÉ-ESTATÍSTICAS E OS COMECOS DA HISTORIA DA CONJUNTURA ... As pré-estatísticas e a oferta ...................................... As pré-estatísticas e a procura ...................................... As pré-estatísticas e os presos ......................................
311 312 316 322
Cap. 13 — A GRANDE DEPRESSÁO DO FIM DA IDADE MÉDIA E OS SEUS L IM IT E S ............................................ A crise de 1315 e as suas repercussóes.......................... Epidemias e depressáo dem ográfica................................ O peso das gu erras.............................................................. Durafáo e limites da grande depressáo..........................
327 327 333 337 340
462
I
Cap. 14 — AS DIFICULDADES E AS M O D IF IC A L E S DO SECTOR PRIMARIO .................................................. As dificuldades agrícolas do século XIV (1300-1450) ... Convalescenga e reconversáo agrícolas (de meados do século XV aos comeaos do século XVI) ............... Cap. 15 — AS T R A N SFO R M A L E S DO SECTOR SECUN DARIO ...................................................................................... As transformafóes do artesanato ................................ As actividades té x te is ........................................................ Novos processos, novas técnicas, novas profissSes ... Além do artesanato: em direcfáo a um pré-capitalismo industrial .......................................................................
345 345 364 377 377 384 391 393 399 399
Cap. 16 — OS PROGRESSOS DO SECTOR TERCIARIO As técnicas mercantis e financeiras................................ Hierarquia dos produtos, das correntes e dos pólos co merciáis ..........................................................................
422
Conclusáo — DA IDADE MÉDIA AO RENASCIMENTO: CONTINUIDADE OU DESORDEM ECONÓMICA? ...
437
Resumo bibliográfico ....................................................................
443
Glossário simplificado de termos económ icos..........................
449
463
M ontagem , im pressáo e acabam ento da T IP O G R A F IA L O U S A N E N S E , L D A . para E D ig Ó E S 70, LD A . em M aio de 1997
A
Aplicando na sua análise da Idade Média os conceitos fundamentáis da moderna ciéncia económica, o prof. Fourquin revela-nos, em toda a sua clareza, a continuidade entre a vida material daquela época e a dos tem pos que se seguiram. Pelo rigor da exposigáo, assim como pela massa de informagáo que contém esta obra é tima fonte de consulta obrigatória.