ISBN 978-85-225-1337-6 Direitos desta edição reservados à EDITORA FGV Rua Jornalista Orlando Dantas, 37 22231-010 — Rio de Janeiro, RJ — Brasil Tels.: 0800-021-7777 — (21) 3799-4427 Fax: (21) 3799-4430
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[email protected] www.fgv.br/editora É vedada a reprodução total ou parcial desta obra Copyright © Angela de Castro Gomes 1a edição — 1996; Edição digital — 2013 Copidesque: Maria Lucia Leão Velloso de Magalhães Editoração eletrônica: Denilza da Silva Oliveira, Eliane da Silva Torres, Marilza Azevedo Barboza, Jayr Ferreira Vaz e Simone Ranna Revisão: Aleidis de Beltran e Fatima Caroni Produção gráfica: Helio Lourenço Netto Capa: Tira linhas studio Gomes, Angela Maria de Castro, 1948História e historiador es/Angela de Castro Gomes. — Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996. 220p. Inclui bibliografia. 1. Historiografia. 2. Brasil. — Historiogra-
fia. 3. Historiadores brasileiros. 4. Pesquisa histórica — Brasil. I. Fundação Getulio Vargas. II. Título. CDD – 981.0072 Sumário Apresentação 9 Capítulo 1
De volta para o futuro 15 Capítulo 2
Os historiadores de Autores e Livros 27 utores e livros 27 Intelectuais, geração e sociabilidade 37 O “pequeno mundo” dos historiadores 43 Capítulo 3
Os historiadores e seu métier 75 Os estudos históricos 75 Os desbravadores da história do Brasil 78 Capistrano de Abreu e o “faro da verdade” 89 erudição: entre a fazenda e o boulevard 98 Por uma “filosofia sobre” a história do Brasil 106 Das formas de fazer história 118 Capítulo 4
O Estado Novo e a recuperação do passado brasileiro 125 Cultura Política: “um espelho do Brasil” 125 Ordem política e evolução social: o “lugar”dos intelectuais 132
política cultural de recuperação do passado 140 Capítulo 5
A história do Brasil de Cultura Política 157 “cultura histórica” de Cultura Política 157 “alma” do povo brasileiro 164 Uma história literária do cotidiano 172 Vultos e documentos: os “maiores” de nossa história 180 Essa é a história... 186 Essa é a história de um povo mestiço... 191 Essa é a história de um povo pacífico que sempre soube lutar... 196 Essa é a história de um povo republicano... 200 Capítulo 6
Essa histór ia continua... 207 Referências bibliográficas 211 “A história da História não se deve preocupar apenas com a rodução histórica profissional, mas com todo um conjunto de fenômenos que constituem a cultura histórica ou, melhor, a mentalidade histórica de uma época.” Jacques Le Goff Apresentação
COMO todos os trabalhos este também tem sua história. O desejo de trabalhar com historiadores e com a história da História do Brasil
nasceu durante o período em que eu levantava material para minha tese de doutorado. Lidando com a revista Cultura Política, visualizei a riqueza desta fonte para um outro tipo de reflexão, distinta da que fazia no momento. Sua última seção, “Brasil social, intelectual e artístico”, era como uma mina capaz de alimentar variados interesses, dentre os quais aqueles voltados para um exercício historiogr áfico. Além disso, ficava cada vez mais claro para mim o quanto o Estado Novo era um período estratégico de nossa história e, em particular, de nossa história cultural. Por outro lado, a carência de trabalhos historiográficos também era nítida e não me parece que venha a se alterar rapidamente. Portanto, quando terminei meu doutorado, iniciei o levantamento dos dados que me interessa-vam, aliando-os a uma leitura mais sistemática sobre história de intelectuais. As obrigações na universidade, de cursos e orientação, e as dificuldades por que passou o CPDOC em inícios dos anos 90 for çaram-me a desvios de percurso e a outros compromissos. O levantamento se interrompia e o projeto não se realizava. A decisão de me afastar do CPDOC e de enfrentar o concurso de titular em história do Brasil na UFF trouxe o desafio de voltar às fontes e de, correndo muitos riscos, escrever em cinco meses e não em cinco anos, como no 10 História e Historiadores doutorado, o texto que se segue. Normas de concurso são, com frequência, perversas e injustas para as áreas das ciências humanas, que requerem a sedi-mentação de ideias e o trato cuidadoso das palavras. Mas normas de concurso são também inflexíveis: nada se pode fazer além do trabalho que deve ser feito. Embora tal assertiva soe basicamente como um misto de lamento e esclarecimento, ela se destina a situar o alcance e as características deste texto. Trata-se de um exercício historiográfico cujo principal objetivo é procurar compreender o processo de constituição do saber e da disciplina da história do Brasil em nosso país. Nesse sentido, meu desejo é integrar os “pensadores da história” numa categoria mais ampla de intelectuais do
pensamento social brasileiro, que, tendo atuado desde fins do século XIX até a virada dos anos 30, vêm sendo objeto de estudos mais frequentes e profundos, tanto na área das ciências sociais quanto da literatura. Ou seja, a meu juízo, os historiadores ainda se encontram como que afastados do campo intelectual e dos debates desses cerca de 60 anos estra-tégicos para a formação de um diagnóstico sobre as características e os problemas magnos do país, com a decorr ente elaboração de propostas de possíveis áreas de intervenção política. Minha intenção é demonstrar que eles participaram ativamente dos dilemas mais gerais que envolveram literatos, “sociólogos”, médicos, engenheiros etc. — com as r essalvas que cada uma dessas categorias deve assumir —, contribuindo de forma específica para desenhar as questões e soluções que a todos mobilizavam. Em o fazendo, espero igualmente ressaltar como, especialmente ao longo das primeiras décadas do século XX, a prática historiográfica cresceu e especializou-se no Brasil, não devendo ser obscurecida pelo boom da escrita literária — com o advento do movimento modernista — e também da escrita sociológica — com clássicos como Alberto Tor res, Euclides da Cunha e Oliveira Viana, entre outros. Contudo, minha estratégia para lidar com o trabalho historio gráfico (seus nomes, títulos e temas) foi, o que pode parecer estranho, não tomar diretamente a produção histórica profissional, e sim, conforme o dizer de Jacques Le Goff, examinar o que constituiria a “cultura histórica” de uma época. Esta escolha se deveu a várias r azões, sendo a primeira de ordem bem pragmática. Desejo desde já declarar que tenho insuficiente conhecimento, e seria impossível adquiri-lo em curto espaço de tempo, sobre os autores e obras que conformam essa produção histórica profissional. Sendo assim, o caminho para aproximar-me desse acervo foi realizar uma análise do tratamento a ele conferido num período estratégico de nossa própria história, quando a construção de uma versão da história do Brasil tornou-se objeto de políticas públicas na área da cultura. A hipótese que apresentação 11
presidiu este esforço de análise foi, por tanto, a de que a proposta de história do Brasil construída durante o Estado Novo marcou a cultura histórica de nosso país durante muito tempo, sendo seus ecos sentidos até hoje. Dessa forma, o texto que se segue procura delinear as interpretações de história do Brasil que for am elaboradas e divulgadas nesse período, detendo-se tanto nos agentes e instrumentos mobilizados, quanto na observação dos conteúdos propostos como informações e valor es de uma cultura histórica nacional. Foram privilegiados, dessa forma, os pontos fortes e de convergência detectados ao longo da análise, mas, como ser ia de esperar, existe, na construção estado-novista, uma série de fissuras, tensões e oposições. Em íntima conexão com esta primeir a opção, procurei, como fontes prioritárias, não os textos voltados para um público específico abarcado pela política educacional formal do Estado. Além disso, os livros didáticos e mesmo os livros “não didáticos” dos historiadores, de alguma forma, embora ainda incipiente, têm sido contemplados com estudos recentes. Escolhi então trabalhar com textos destinados a um gr ande e heterogêneo público — daí os periódicos —, que excediam o escopo da educação formal e caracterizavam o escopo da política estado-novista no campo da história, que também envolvia iniciativas como a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), só para dar um exemplo de sua amplitude e vinculações. A seleção das fontes é, por conseguinte, modesta numericamente, procurando-se compensá-la com um tratamento cuidadoso quantitativa e qualitativamente. Elas são o suplemento literário do jornal A Manhã, Autores e Livros, e a r evista mensal de estudos brasileiros, publicada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), Cultura Política, ambos circulando entre 1941 e 1945. A estrutura do texto compõe-se de seis capítulos, sendo o primeir o de introdução e destinado a situar a linha interpretativa de toda a análise, e o último de finalização, tão somente para elencar e destacar pontos mencionados ao longo da exposição. São capítulos curtos, estando o trabalho concentrado nos outros quatro capítulos, distribuídos como em duas partes. Na primeira parte, em que trabalho com o material do suplemento
literário Autores e Livros, o objetivo é refletir sobre quem, nos anos 40, estava sendo definido como historiador e, em decorrência, sobre o que estava sendo entendido e postulado como saber histórico e ofício de historiador. Esclarecendo mais uma vez a estratégia metodológica utilizada nos capítulos 2 e 3, não se trata de trabalhar diretamente com os autores e livros elencados pelo suplemento como os que constituíam a galeria de nomes 12 História e Historiadores e títulos sobre o que se deve ler para conhecer a tradição historiográfica brasileira. Trata-se de examinar o texto dos comentaristas que escrevem sobre essa tradição — conformando-a assim —, e que foram, por sua vez, selecionados pelo diretor do suplemento, o acadêmico Múcio Leão. Tal opção acarreta perdas, como francamente admito, já que não discuto a obra dos historiadores, reservando-me tão somente a refletir sobre como e por que a análise dos comentaristas assumiu uma ou outra característica, quando recuperava a contribuição de um desses autores. Mas, de qualquer forma e apesar desses limites, fica ressaltado como houve um intenso debate historiográfico nas décadas iniciais do século XX, momento no qual a história lutava para demarcar sua especificidade, distinguindo-se e aproximando-se, ao mesmo tempo, da literatura e dos ensaios político-sociais. Por outro lado, fica também clara a heterog eneidade e riqueza dessa tradição, o que tem sido minimizado pelo postulado de uma historiografia “positivista”, tão profícua em infor mações minuciosas e inúteis, quanto par-ca em interpretações abrangentes e interessantes. É contra essa generalização e esse empobrecimento que gostaria de chamar atenção, desde já, nesta apresentação. A segunda parte do trabalho, composta pelos capítulos 4 e 5, concentra-se no material de Cultura Política, em especial em algumas de suas seções dedicadas ao que então se chamava de a “recuperação do passado
brasileiro”. Nesse caso, o objetivo foi entender o que significava esse passado e como estava sendo proposta sua recuperação. Em outras palavras, o exame dos artigos da revista permite uma reflexão sobre que “lugar” a história ocupava no discurso estado-novista e, particularmente, que história do Brasil estava sendo reescrita. As duas partes do texto lidam, portanto, com materiais cujo teor é distinto em termos de possibilidades analíticas, razão pela qual sua articu-lação se faz por referência à montagem de um passado comum ao Estado nacional, passado este que devia ser o produto de uma tradição e pr ecisava ser o objeto de uma política de divulgação de largo espectro. Por isso, o texto se inicia com o tratamento da questão do que é ser historiador e do que é fazer história para, em seguida, dedicar-se à reflexão dos conteúdos substantivos que a disciplina deveria veicular, segundo a ótica da política cultural implementada pelo Estado. Perpassando as duas partes estão questões como a das relações dos intelectuais com o Estado; a dos vínculos da história do Brasil com outras disciplinas que então também procuravam melhor demarcar suas fronteiras; apresentação 13 a das estratégias de produção cultural, envolvendo escritores, editores e instituições acadêmicas e não acadêmicas, dentre outras que poderiam ser arroladas. Ao final, a pretensão é poder contribuir para a reflexão de uma cultura histórica que foi delineada durante os anos do Estado Novo, engr ossando o esforço que reúne pesquisadores de antropologia e sociologia, além de história, e que busca o conhecimento da historicidade de suas disciplinas como forma eficaz para a compreensão dos dilemas que enfrentam atualmente. A pretensão não é pequena, mas a tentativa sim, na medida em que é explícito o reconhecimento de que muito ainda pode e deve ser feito. Embora este tenha sido um esforço particularmente solitário, contei com o precioso auxílio de Janaína Monteiro Sant’Anna, na primeira fase do levantamento das fontes, e de Paulo César de Araujo, para concluí-lo,
á em 1995. Muitos amigos da UFF e do CPDOC tiveram palavras de estímulo e confiança em minha capacidade de realizar esta empreitada em tão pouco tempo. A todos eles eu agr adeço com sinceridade e emoção. A banca examinadora por ocasião do concurso para professor titular, composta por Ronaldo Vainfas, Helga Piccolo, Maria Odila Leite da Silva Dias, Joana Pedro e Gilberto Velho, honrou-me com suas sugestões e críticas, incorporadas em sua maioria. A eles um agr adecimento muito especial pelo respeito e gentileza com que me contemplaram. Minha inabilidade “tecnológica”, que seria cômica não fosse trágica, tornou Marília do Amparo, que digitou o texto para mim, uma “secretária” insubstituível e muito estimada. Anos e anos de CPDOC tornaram-me consciente da impor tância do trabalho de um copidesque profissional, capaz de nos tranquilizar — ave! —, ao menos quanto à forma do que se escreve. Dora Rocha é sinônimo, mais do que de competência, de excelência. Meu marido e minhas filhas foram compreensivos e carinhosos comigo durante esses meses de trabalho. Mas desta feita, gostaria de dedicar este trabalho a todos os professores que me ensinaram a amar a história. 1 De volta para o futuro “Em suma, para os propósitos da análise, o nacionalismo vem antes das nações. As nações não formam os Estados e os nacionalismos, e sim o oposto...” Eric Hobsbawm EM 1838 era criado no Brasil o Instituto Histórico e Geogr áfico Brasi-
leiro. Sob os auspícios do imperador e a inspiração de Francisco Adolfo Varnhagen, o instituto deveria dedicar-se à escrita da história do país, num processo simultâneo de construção dessa história e de afirmação do papel do Estado como criador e garantidor de nossa nacionalidade. Essa verdadeira simbiose entre historiografia e Estado, já assinalada pela literatura acadêmica,1 só faria crescer nas décadas seguintes com a consolidação do poder monárquico. Dando cumprimento imediato a seus propósitos, o instituto organiza, em 1840, um concurso que consagraria o melhor plano para se narr ar a história do Brasil. O vencedor é o trabalho do naturalista bávaro Carl Friedrich von Martius intitulado Como se deve escrever a história do Brasil, que é publicado em 1845. Para Martius, era fundamental que o historiador fosse capaz de encantar o leitor estrangeiro com os aspectos or iginais de nossa evolução — marcada pela presença de índios, negros e brancos — e, sobretudo, de despertar no leitor brasileiro a consciência de amor à pátria. Um século após esses acontecimentos, no início de 1941, Getúlio Vargas, então chefe do Estado Novo, toma algumas iniciativas paradigmáticas. Dando 1 Sobre o assunto, ver Guimarães (1988:5-27); e Schwarcz (1989). 16 História e Historiadores prosseguimento a um projeto de propaganda governamental mais nitidamente confor mado pela criação, em 1939, do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), define uma das prioridades do órgão: a publicação de um periódico que teria como objetivo básico divulgar a proposta política do novo regime. A revistaCultura Política, cujo primeiro número cir culou em março de 1941, seria, no dizer de seu diretor, Almir Bonfim de Andrade, “um espelho do Brasil” em tempo de renovação (Andrade, 1941:8). A revista, que era mensal e vendida em bancas de jornal de todo o país por um “preço meramente simbólico”,2 contava com colaboradores bem pagos para o mercado de trabalho da época e dividia-se em várias seções, a fim de abarcar as diversas dimensões de uma política cultural que se queria sofisticada e de grande alcance em termos de público leitor. Ou seja, como o periódico se propunha “definir e esclarecer” o sentido das profundas transformações por que vinha passando o país em todos os domínios — na política, na economia, nas técnicas, nas artes, letras e ciências —, era preciso que sua estrutura manti-vesse simetria com tão amplos e diversos objetivos. Não por acaso dá-se grande ênfase à divulgação dos feitos
governamentais, mas há também toda uma preocupação com o “debate e a difusão” de informações e valores considerados essenciais para o desenvolvimento do Estado-nação, e que transcendiam aspectos políticos mais imediatos (Andrade, 1941:5). Isso explica a presença de duas seções em particular: “Textos e documentos históricos” e “Brasil social, intelectual e artístico”. Embora sob censura durante o Estado Novo, a imprensa, mesmo antes de 1937, nunca fora favorável ou mesmo simpática a Vargas, o que justifica uma outra iniciativa, não casualmente da mesma época: a montagem de um jor nal destinado a ser o porta-voz do r egime. O superintendente das Empresas Incorporadas ao Patrimônio da União, coronel Luís Carlos da Costa Neto, fica encarr egado de tomar as providências necessárias, como a indicação de nomes para ocupar a função de diretor. A escolha acaba recaindo em Cassiano Ricardo, que é convidado em maio de 1941 para a nova investida do governo. A Manhã, jornal carioca diário e matutino, começa a cir cular em agosto, firmando uma postura francamente doutrinária e assumindo caráter didático na exposição das ideias do presidente e dos feitos do regime. Nada mais compreensível, uma vez que se tratava, desta feita, de um jornal de 2 Segundo Almir de Andrade, era vendida por Cr$3,00, quando seu custo gir ava em torno de Cr$10,00. Depoimento de Almir de Andrade (1985:23). de Volta para o Futuro 17 grande circulação, destinado a um público muito maio r e mais diversificado do que o de uma revista, ainda que esta buscasse formas inovadoras de penetração junto aos leitores.3 Além dessa preocupação política central, o jornal, como a revista Cultura Política, possuía também uma proposta cultural, que tomava corpo, sobretudo, nos suplementos literários semanais a ele agregados. Um desses suplementos é particularmente interessante no que diz respeito a esclarecer os conteúdos da proposta cultural estado-novista. Dirigido por Múcio Leão, jornalista nordestino radicado no Rio desde 1918 e membro da Academia Brasileira de Letras, o suplemento literário Autores e Livros deveria constituir uma autêntica galeria dos vultos mais
eminentes de nossa história intelectual, aí compreendidos poetas, romancistas, artistas plásticos, teatrólogos, ensaístas e cientistas. Tal galeria dispunha-se a divulgar, entre um grande público leitor, as características da vida e da obra desses autênticos construtores da nacionalidade brasileira. Verdadeiros heróis pátrios, como os estadistas e militares, os intelectuais selecionados eram exemplos de virtudes morais e cívicas a serem conhecidas, admiradas e seguidas. Contudo, tanto no caso de Cultura Política, como no de Autores e Livros, não se tratava fundamentalmente de um esforço “pioneiro” de definir um sentido para o Estado-nação e de traçar seus vínculos com a criação cultural em geral e com a escrita da história em particular. Como D. Pedro II, Getúlio Vargas animava-se do mesmo desejo legitimador e assumia as mesmas funções de mecenato, mas partia de uma situação em que já havia todo um conjunto de realizações acumulado ao longo de um “tempo”, definido pela memór ia coletiva como “vida nacional”. Dessa forma, tratava-se estrategicamente de recriar essa tradição, relendo-a com a perspectiva futura do regime então vigente. Este não era, portanto, um esforço menos criador, mas tinha outros parâmetros e, sobretudo, outro alcance político e cultural. A chamada “questão nacional” tem sido, nas últimas décadas, um tema constantemente investigado pela literatura das áreas de história e ciências sociais. A citação que encabeça este capítulo, de um dos maiores historiadores que se dedicaram ao estudo dos conceitos de nação e nacionalismo, bem como de suas intrínsecas e complexas relações com o Estado, contribui de forma adequada 3 Participam da redação de A Manhã: Barros Vidal, como secretário, Jorge Lacerda, Cecília Meireles, Ribeiro Couto e Leopoldo Aires. Colaboram com o ornal, por exemplo, Afonso Arinos de Mello Franco, José Lins do Rego, Alceu Amoroso Lima, Oliveira Viana, Vinícius de Morais e Manuel Bandeira. Ver Beloch & Abreu (1984, v. 3:2.070). 18 História e Historiadores para precisar a ideia que norteia este texto, cujo principal objetivo é refletir sobre a história da História do Brasil durante o Estado Novo. Nação e nacionalismo são fenômenos políticos que se desenvolvem de forma específica a partir de finais do século XVIII, estando vinculados à chamada emergência da moderna sociedade de massas. Falar, portanto, em nação é falar de uma “comunidade política imaginada” (Anderson, 1989),
criada pela ação de aparelhos de Estado cada vez mais envolvidos com a governabilidade da sociedade e, por isso mesmo, preocupados com seu grau de legitimidade junto ao povo/soberano. As nações e os nacionalismos “modernos” são, nessa perspectiva, sofisticadas construções políticas estatais, para as quais concorrem de for ma fundamental os componentes culturais. Isso por que a própria “estratégia operacional” de produção da nação é construir uma “área de igualdade” para além das diversidades de um Estado pensado territorialmente.4 O “tamanho do grupo”, como variável sociológica, é certamente um elemento complicador nessa operação, uma vez que exige a formulação de elementos integradores (internamente) e diferenciadores (externamente), isto é, com capacidade de contraste em r elação a outras comunidades nacionais. A língua falada e escrita avulta entre tais componentes, sendo definida e vivenciada como a verdadeira fr onteira “natural” de uma nação. Consciência étnica, tradições religiosas e também um passado histórico comum — todos resultantes de cuidadosos investimentos de políticas públicas — constituem outros fatores culturais essenciais para a for mação de nacionalidades. Como Hobsbawm destaca, a afirmação da língua e da cultura identifica-se com a afirmação da autonomia do Estado-nação, tanto no sentido político (a conquista da independência), quanto no econômico (a luta pelo desenvolvimento) e no cultural (a negação da dependência de “outros” e a busca da singularidade). Além disso, partindo da premissa de que a “consciência nacional” se desenvolve desigualmente através do tempo e entre “gr upos e regiões sociais de um país”, Hobsbawm, citando outro historiador — Miroslav Hroch —, assume uma periodização para o que se pode entender como a “história dos nacionalismos”.5 No caso, os autores estão refletindo sobre a história ocor rida na Europa a partir do século XIX, e que comportaria basicamente três 4 O conceito de “área de igualdade” é de Pizzorno (1976). 5 Hobsbawm (1990:21). O livro de Hroch citado é Social preconditions of national revival in Europe
(Cambridge, 1985). de Volta para o Futuro 19 fases. A primeir a seria puramente cultural, literár ia e folclórica, sem implicações políticas particulares ou mesmo sem desdobramentos “nacionais”. A segunda estaria marcada pela ação de pioneiro s e militantes da “ideia nacional”, entendidos como uma minorité agissante, e que se dedicam a campanhas políticas em prol da expansão dessa ideia. E a terceira, finalmente, teria início quando “programas nacionalistas” começam a adquirir alguma sustentação de massa. Como os autores salientam, a transição da segunda para a terceir a fase é um momento crucial dessa cronologia, sendo ainda pouco numerosos os estudos que lhe dedicam atenção específica. Complementando a ideia da periodização, Hobsbawm, em outra passagem de seu livro,6 enfatiza os elos que unem a emergência dos nacionalismos com as questões técnico-administrativas da implementação de um “governo estatal”; ou seja, de um governo que precisa investir em uma máquina de agentes operantes e — mais complexo ainda — que necessita da identificação e da lealdade da “população do país”. Essas transformações profundas estariam ligadas inequivocamente aos fenômenos de “modernização” dos aparelhos de Estado e de “democratização”, ou melhor dizendo, de “eleitorização” da política, tornando cr escente a participação dos “homens comuns”, transformados por tais mecanismos em cidadãos. Seria, em princípio, nesses contextos que a produção de uma “nova” legitimidade se imporia aos “novos Estados”, na medida em que se trataria de garantir, em escala ampliada, a identificação do “povo” com a “nação”, representada pelo Estado. Naturalmente, essa produção de uma “consciência nacional” materializar-se-ia em uma “engenharia social ideológica consciente e deliberada” por parte do Estado, que usaria predominantemente toda uma moderna “maquinaria de comunicação”, com destaque para as escolas pr imárias e secundárias e, sem dúvida, com o passar do tempo, para os variados meios de comunicação de massa. Trabalhando livremente com essas reflexões, a pro posta mais geral
deste texto é investigar quando, como e por meio de que agentes as ideias nacionalistas ligadas à produção de um passado comum passaram a ganhar uma sustentação de massas no Brasil ou, visto por outro ângulo, tornaram-se objeto de políticas públicas mais consistentes. Importa assim acompanhar e analisar “a engenharia social ideológica” utilizada pelo Estado para que as campanhas já desenvolvidas por uma minorité agissante ultrapassassem um círculo mais restrito e seleto de receptores e se transfor massem em r eferên-6 Refiro-me, especialmente, ao capítulo III, intitulado “A perspectiva governamental” (1990). 20 História e Historiadores cias compartilhadas por um público muito mais amplo, leal e identificado com os valores e a história do Estado-nação. Como já ficou claro, nossa hipótese é que, no Brasil, esse momento estratégico de transição teria ocorrido durante o Estado Novo, mais especificamente em inícios dos anos 40, quando o aparelho de Estado, marcado por clara “modernização” (basta aqui mencionar o Departamento de Administração do Serviço Público — Dasp), vislumbrava a próxima “eleitorização” da política, que a Segunda Guerra Mundial e o alinhamento com os EUA apontavam com segurança (Gomes, 1994). É nesse sentido específico que se procurará distinguir as iniciativas de Vargas das de D. Pedro II ou de qualquer político que o tenha antecedido no esforço permanente de construção-legitimação de uma consciência nacional no país.7 É também com essa perspectiva que se procurará precisar melhor o significado do que a literatura especializada tem considerado a “política cultural” do Estado Novo, defendendo-se a ideia de que a lógica central a presidir e unificar as inúmeras iniciativas então implementadas era a da produção de um apoio de massas para o nacionalismo estatal, transitando-se da segunda para a terceira fase do que Hroch chama de “história dos nacionalismos”. Nos estudos sobre identidade nacional no Brasil, já se tor nou um ponto praticamente consensual assinalar os anos do pós-Primeira Guerra Mundial como um período de intenso nacionalismo militante.8 Essa experiência, expressa na formação de
ligas ou de organizações congêneres (Liga da Defesa Nacional, Liga Pró-Saneamento, Liga contra o Analfabetismo etc.) e nos inúmeros congr essos e viagens r ealizados pela vanguarda cultural do país, é testemunha eloquente das campanhas em prol da expansão da consciência nacional em nosso país. Consideramos, a despeito disso, que, até os anos 30, esse conjunto significativo de ações político-culturais não pôde lançar mão de mecanismos de pro pagação mais amplos, o que não implica, de forma alguma, minimizar sua importância e impacto. O que ocorre, a partir de então, distingue-se por duas razões. Primeiro, por que traduz um imenso envolvimento direto do Estado, apenas 7 A orientação deste texto, como de outros que já produzi, é de que o processo de construção do Estado nacional é contínuo, refazendo-se através do tempo. Cabe ao investigador discutir as singularidades e alterações que caracterizam “um” certo momento do processo, momento este, ele mesmo, uma criação analítica e arbitrária do pró prio autor. Sobre essa questão teórica destaco os artigos de Elisa Pereira Reis (1985, 1988 e 1991). 8 Vários textos podem ser citados, entre eles Skidmore (1976), Sevcenko (1983), Ortiz (1985), Oliveira (1990a). de Volta para o Futuro 21 comparável ao mecenato do Segundo Império. Segundo, por que os agentes desse esforço, ligados à burocracia do Estado, podiam contar com recursos tecnológicos e financeiros de alcance muito maior. Entretanto, é pr eciso não confundir, como Hobsbawm e outros autores advertem, a postulação do engajamento consciente de parcelas da burocracia estatal nesse empreendimento com um simplista e maquiavélico exercício de “manipulação de massas”. Os elementos simbólicos avocados e os sentimentos mobilizados por uma política cultural estatal não são escolhas arbitrárias, estando vinculados a tradições cujas raízes se encontram no passado de comunidades com identidades que têm que ser levadas em conta. Se há um processo de seleção e r ecriação de símbolos, a legitimidade buscada fundamenta-se em valor es preexistentes, que devem ser observados e respeitados, para então serem tratados pela propaganda oficial. É nesse difícil equilíbrio que a diversidade social e intelectual pode se transformar em homogeneidade política, que inclui áreas significativas de unidade cultural. Neste último espaço, avulta a definição e a divulgação de uma história nacional, capaz de identificar uma “origem” comum e, a partir dela, refletir sobr e o presente e o futuro do Estado-nação.
Para além de tais considerações, cabe igualmente observar que as criações produzidas por qualquer política cultural, de resto por qualquer política, geram os chamados efeitos não previsíveis, os quais, por sua vez, podem ser entendidos pela dialética entre produção e recepção da mensagem. É o que nos permite compreender não só os motivos que orientam as políticas, como as variadas for mas pelas quais uma política cultural pode ser apreendida pelos gr upos diferenciados que integram uma comunidade nacional. Assumimos, portanto, uma perspectiva teórica que lida com o conceito de cultura como uma trama de significados compartilháveis e, por isso, comunicáveis entre os membros de gr upos maior es ou menor es. Contudo, esse conjunto de significados simbólicos, intrínseco à ação humana, não foi tomado como um todo homogêneo e sistemático que guarda, a priori, “um” sentido estrutural passível de ser apreendido pelo pesquisador. A política cultural do Estado Novo será tratada como um conjunto que guarda significados, mas que possui pluralidade de pontos de vista, “funcionando” de forma contraditória e aberta e podendo ser apreendida de múltiplas maneiras. Assim, o que se tentará realizar neste texto é uma interpretação desses significados a partir da ótica dos produtores da mensagem, todos intelectuais, e de forma mais dir eta ou mesmo muito indireta, vinculados à nova burocracia estatal. Não se considerará, portanto, a pluralidade de pontos de vista com que o amplo público receptor irá “ressignificar” a 22 História e Historiadores mensagem veiculada, mas é preciso deixar claro , desde o início, que essa multiplicidade e fluidez estão no horizonte deste trabalho. 9 Devido a sua amplitude e complexidade, seria muito difícil, se não praticamente impossível, um exame da política cultural do Estado Novo. Assim, foi imperioso r ealizar escolhas que definissem objetivos precisos e operacionais. Como o que nos interessa é compreender essa “engenharia social ideológica”, desvendando seu instrumental, seus agentes e alguns dos conteúdos de suas mensagens, elegemos uma área específica de trabalho, que é ao mesmo tempo consistente e exemplar. Dessa forma, a escolha recaiu sobre a cons-
trução que nesse momento se fez da história do Brasil, tomada como uma dimensão fundamental e homogeneizadora da consciência nacional. Como acentua a literatura sobre processos de formação de Estados nacionais, é justamente nos momentos de grande esforço de implementação de grandes projetos políticos que a atenção daqueles que dirigem o Estado volta-se para o passado, buscando construir seu “lugar na história” e, dessa forma, relendo e reescrevendo os fatos e as interpretações do calendário cívico de um país. Os anos do Estado Novo são, indubitavelmente, não só um período fundamental de nossa história política e econômica, por suas marcantes realizações, como também um período crucial de nossa história intelectual, pela efetiva e consistente política cultural implementada. É assim que compreendemos o processo de produção-divulgação de uma história da História do Brasil durante o Estado Novo — como um capítulo dessa política cultural mais abrangente e, principalmente, como um investimento intelectual que se justifica pelo momento-chave que o processo de constituição do Estado nacional no Brasil atravessava. Projetar o Estado nacional significa construir uma “nova” nação, o que se faz através de um “novo” modelo técnico-administrativo de Estado. É exatamente nesses períodos que a atenção dos que dirigem o aparelho de Estado busca uma “nova” legitimidade, voltando-se para a mobilização de recursos simbólicos considerados essenciais, e de forma alguma secundários ou reflexos da realização de seus projetos, sobretudo quando estes assumem uma perspectiva de longo prazo. Era o que ocorr ia no Estado Novo, que, buscando demarcar “seu” lugar na história, 9 Três autores são fundamentais para essa orientação teórica, a saber: Clifford Gertz (1978), Giovanni Levi (1992) e Roger Chartier (1990). Os trabalhos de Robert Darnton (1986 e 1987) e Carlo Ginzburg (1987) também estão sendo “apropriados” com frequência na pesquisa.
de Volta para o Futuro 23 precisava refazer o próprio “sentido” da história do país. Para tanto, tornava-se imprescindível a ação de especialistas capazes de recuperá-la e divulgá-la, não só através do sistema de educação formal, que então se ampliava enormemente para os parâmetros da época,10 como também através de uma política cultural destinada a um público muito mais amplo, e em princípio fora do alcance desse sistema escolar. Projetar um novo Estado era, assim, investir na produção de lealdade-legitimidade, que englobaria os futuros cidadãos e, sem dúvida, aqueles já definidos (ou ao menos potencialmente definidos) como tais. O futuro não se faz sem o passado, e este é um ato humano de rememoração. Seria básica a realização de um processo de “narr ação” da história, que identificasse os acontecimentos, os personagens e “os sentidos” de seus atos. Postulamos que o Estado Novo foi um momento particularmente rico para a delimitação de uma construção intelectual da história do Brasil, o qual, por sua competência e pelo volume de recursos investidos, foi capaz de deixar marcas profundas em nossa tradição historiográfica. Procurar “reconstruir” essa interpretação da história produzida e difundida pelos setores especializados da burocracia do Estado de então é o objetivo específico deste trabalho. Contudo, estaremos basicamente interessados nas iniciativas e nos agentes que se encarregaram de fazê-lo para um público-alvo que se situava teoricamente for a do sistema educacional for mal, obviamente também mobilizado por esse esforço. Por isso, nossa estratégia será examinar alguns loci da imprensa criados especificamente para propagar a doutrina estado-novista. Daí nossa escolha ter r ecaído no jornal A Manhã e na revista Cultura Políti-ca, inclusive porque neles podemos identificar espaços especializados para o tratamento da questão historiográfica, o que por si só é revelador de sua importância. Nesse sentido, estaremos testando a postulação de que o Estado Novo deslanchou o processo de produção de um nacionalismo com base na
massa e, ao mesmo tempo, de que a constituição de uma narrativa da história do Brasil era parte integrante e crucial dessa “nova” consciência cívica. A nosso ver, uma das razões de tal centralidade é a capacidade de construção de homogeneidade política que a história nacional de um país pode produzir, transcendendo as diversidades culturais, sejam elas classificadas como geográficas, folclóricas etc. É através da história que o Estado pode mobili-10 Sobre essa questão, ver Schwartzman, Bomeny & Costa (1984). 24 História e Historiadores zar um povo-nação que compartilha um único passado, ainda que este sofr a variações locais. Nada, entretanto, que impossibilite uma unidade, em que o “tempo” e o “terr itório” — estes “atores” fundamentais — têm função-chave. No caso, a unidade é a própria saga de nossa história: ela é o objetivo do Estado; ela é a glór ia do “ser” brasileiro. Nesse sentido, uma das reflexões a serem realizadas na pesquisa diz respeito à própria construção da noção de tempo e de seus vínculos com a noção de território.11 De um tempo histórico no qual e pelo qual os historiador es, e também aqueles que estão reescrevendo a história da História do Brasil, ordenam e selecionam os acontecimentos que irão integrar o calendário cívico do país, com as hierarquias e ambiguidades que lhes são próprias. Esses acontecimentos, portanto, têm lugar em um espaço “geográfico”, ele mesmo criado através da ação dos atores nomeados pela narrativa histórica. A ideia da nação brasileir a como uma “porção de espaço” — como “território” com for te conotação cartogr áfica — é uma característica central desta narrativa a ser examinada e “problematizada”. Assim, a constatação (amplamente apontada pela literatura que trata da questão nacional no Brasil) da for ça e da persistência do uso de metáforas geográficas no discurso construtor da nacionalidade será tratada tanto como uma deli-
mitação de fronteiras entre a história e a geografia, quanto como a busca do estabelecimento de relações complementares entre elas.12 Isto porque, seguindo uma sugestão de Foucault, a ideia de território estará r emetida, antes de tudo, a uma noção jurídico-política: como “aquilo que é controlado por um certo tipo de poder”, seja em nível nacional, regional ou local (Foucault, 1979:157-61). Dessa forma, do ponto de vista da pesquisa que analisa os discursos que estão sendo veiculados, falar em termos de espaço não é falar contra o tempo, ou contra a história. Se os discursos da nacionalidade têm a marca da conquista do terr itório e da luta por sua manutenção como eixo essencial, este fato precisa 11 A noção de tempo e a multiplicidade de significados que ela pode assumir em diferentes espaços sociais vêm sendo cada vez mais tratadas pelos historiadores: um tempo “linear” do calendário; um tempo “histórico”, radicalmente distinto de um tempo “vivido”; tempos que regulam atividades sociais diferenciadas em grupos também diversos etc. Sobre o tema ver, por exemplo, Le Goff (1990). 12 Como exemplos dessa abordagem, pode-se citar o artigo de Velloso (1993), que discute a ideia no âmbito do debate modernista, e os textos de Oliveira (1990) e Moraes (1991). de Volta para o Futuro 25 ser examinado sob a ótica da recriação de um processo histórico de afirmação do poder, que é basicamente, mas não exclusivamente, do Estado. Dessa forma, o discurso “geográfico” de estabelecimento de fronteiras é um discurso “histórico”, fruto de um longo e cuidadoso trabalho historiográfico, que pode assumir variadas formas de relacionamento entre a história e a geografia, de conotações do conceito de tempo e de demarcação e caracterização do que se entende por território. É através dessa dinâmica, própria das técnicas argumentativas dos historiadores, que os personagens vão sendo conduzidos através do tempo e do espaço, ambos dotados de sentido e integrados pela ideia de naciona-
lidade. 2 Os historiadores de Autores e Livros “Nunca se lutou tanto, no Brasil, como nesse tempo em que se pretendia dar corpo ao Brasil, construir o Brasil, fazer o Brasil de fato e de direito. Fazer o Brasil ser no tempo o que ele já era no espaço, já era no coração dos brasileiros.” Odorico Costa, 1944 Autores e Livros O JORNAL A Manhã começou a circular em agosto de 1941 como porta-voz do Estado Novo. Para dirigi-lo foi convidado Cassiano Ricardo, intelectual paulista que, nos modernistas anos 20, integrara o chamado grupo Verde Amarelo, do qual também participavam Menotti del Picchia e Plínio Salgado, entre outros (Velloso, 1993). O convite dirigido a Cassiano Ricardo tinha sólidas raízes, pois, além de seu indiscutível prestígio como escritor, dera inúmeras indicações de que suas ideias políticas afinavam-se com as do novo r egime. Autor de Martim Cererê (1926), acabara de lançar um novo livro, Brasil no original (1937), em que defendia a ideia de uma democracia social para o país. Nada, portanto, mais opor tuno e adequado para o momento.13 Além de uma explícita intenção doutrinária, o jor nal possuía também uma clara proposta cultural, obviamente articulada ao conjunto de iniciativas maior es que já vinham sendo desenvolvidas pelo regime e que envolviam vários ministérios, com destaque para o da Educação 13 Sobre a construção da noção de democracia social no Estado Novo, ver Gomes (1994, cap. VI). 28 História e Historiadores e Saúde e o do Trabalho, Indústria e Comércio, e também órgãos como o
DIP. Para materializar a proposta cultural de A Manhã, seu corpo editorial previu a criação de quatro suplementos, dos quais dois não chegariam a ser lançados: o suplemento infantil, que teria a direção da poetisa Cecília Meireles, e outro, que se intitularia Crítica de Ideias, sob a responsabilidade de Euríalo Canabrava. Mas dois suplementos foram efetivamente criados: o Pensamento da América, sob o controle de Ribeiro Couto, um dos mais sérios e prestigiosos nomes da literatura na época, e o suplemento literário Autores e Livros, organizado por Múcio Leão. Homem de imprensa, com contatos no meio intelectual e político, o responsável por Autores e Livros apresentava-se no cabeçalho do suplemento como “membro da Academia Brasileira de Letras”, menção significativa, como se verá. Com seu primeiro número também lançado em agosto de 1941, o suplemento dominical permanece sob o controle de Múcio Leão até fevereiro de 1945, quando este se afasta por discordar da promulgação do ato governamental (Lei Constitucional no 9) que fixava o prazo de 90 dias para que fossem marcadas as eleições e determinava a elaboração de uma lei eleitoral para o país. É preciso situar, ainda que muito brevemente, o intenso clima político desse momento. Em 22 de fevereiro, José Américo de Almeida concedera, pela manhã, sua famosa entrevista ao Correio da Manhã — seguida de o utra, à tarde, a O Globo —, na qual o nome de Eduar do Gomes era anun-ciado como o candidato da oposição. Foi sem dúvida a essa “precipitação” que a Lei Constitucional no 9, de 28 de fevereiro, pretendeu responder. Argumentando contra o que chamava de um ato arbitrário de Vargas e denunciando as pressões que vinha sofrendo por parte da direção das Empresas Incorporadas, Múcio Leão abandona o suplemento por considerá-lo inviável. Em 3 de março, Francisco Campos, o autor da Constituição de 1937, concede uma entrevista a O Jornal, que se torna famosa por caracterizar o Estado Novo como uma ditadura personalista, explicitando sua adesão aos
opositores de Vargas. Nesse contexto, articulava-se a União Democrática Nacional (UDN), selando-se o destino do processo eleitoral. Recuando um pouco mais no tempo, é interessante registrar que desde 1943, mais particularmente após o Manifesto dos Mineiros (em outubro), a situação política no A Manhã se alterara, ocorrendo uma série de incidentes reveladores da tensão que, em boa parte, presidia a delicada convivência entre intelectuais e setores da burocracia estado-novista. os Historiador es de autores e liVros 29 É nesse momento que abandonam o jor nal figuras como Afonso Arinos de Mello Franco, Manuel Bandeira e outros. Com a aceleração e a maior explicitação da inevitável “abertura” do regime, o que se dá durante todo o ano de 1944 e explode em inícios de 1945, essa tensão assume, para alguns, níveis não mais suportáveis. Na verdade, pode-se dizer que, a partir de fevereiro de 1945, A Manhã tem apenas uma sobrevida, embora continue a existir até 1953. Mas em agosto de 1941 o contexto era outro, e Autores e Livro s começa a circular com um alentado número de páginas — cerca de 15 ou 20 —, propondo-se ser um instrumento coordenador de toda a vida intelectual do país. Grosso modo, pode-se entender que o suplemento dividia-se em duas partes, sendo a primeira a mais impor tante, como seria óbvio. Nela, a cada domingo homenageava-se um autor considerado relevante na trajetória cultural do país, compondo-se, dessa forma, ao longo do tempo, uma galeria de nomes e de obras indicativas “do que se deveria ler para conhecer o Brasil”. A segunda parte não tinha uma estrutura tão nítida. Sua intenção dominante, contudo, pode ser descrita como a divulgação de novos talentos. Assim, em muitos números, encontra-se a seção “Página dos autores novos”, que no dia 6 de fevereiro de 1944, por exemplo, é dedicada à jovem escritora Lígia Fagundes Teles. No mesmo espírito, o suplemento publica uma antolo-gia da literatura brasileira contemporânea, organizada em duas séries, uma dedicada aos poetas e outra aos prosadores. Numa “nota” divulgada em 1o de agosto de 1943, o jor nal anuncia alguns nomes a serem compilados: Au-
gusto Frederico Schmidt, Onestaldo de Penafort, Abgar Renault, Maria Eugênia Celso, Mário Quintana, Ascenso Ferr eira, Augusto Meyer e Alphonsus de Guimaraens Filho.14 Como exemplo de número dedicado aos prosadores, temos o de 16 de abril de 1944, em que os textos compilados são de Barbosa Lima Sobrinho, um dos colaboradores do jornal. Além dessa seção mais substancial, a segunda parte do suplemento também apresentava resenhas de livros, notícias de lançamentos recentes e comunicados da Academia Brasileira de Letras (ABL). Vale aqui observar a presença marcante dessa instituição nas páginas de Autores e Livros. Embora nesta pesquisa não tenhamos feito um levantamento com esse objetivo específico, não é infundado imaginar que a grande maioria dos homenageados fosse for mada ou de patronos de cadeiras ou de membros 14 Autores e Livros, 1-8-1943:54. 30 História e Historiadores da ABL e que muitos dos novos talentos já integrassem seus quadros ou pretendessem fazê-lo. Os discursos pronunciados no recinto dessa instituição, sobretudo quando da recepção de um novo membro — o que implica o elogio ao patrono da cadeira e aos antecessores do novo ocupante —, são com frequência usados para compor o perfil do autor escolhido como homenageado. Por fim, a Revista da Academia é uma fonte permanente de matérias do suplemento. Num certo sentido, poder-se-ia considerar “natural” tal incidência, em face da presença de um acadêmico na direção do suplemento. No entanto, para além desse fato, o que se quer aqui ressaltar é o “lugar” nitidamente prestigioso que a ABL ocupava no período, o que não é de for ma alguma “natural”. Criada em 1898 por um grupo de intelectuais que se
reunia em torno da Revista Brasileira e dirigida por José Veríssimo, a academia nasce com a auréola do nome de Machado de Assis e é reconhecida pela intelectualidade da virada do século como instância inequívoca de consagração cultural. É claro que sempre houve incidentes em sua história, um dos primeiros e mais graves envolvendo o afastamento do próprio Veríssimo.15 Contudo, até inícios dos anos 20, nada que se assemelhasse aos ataques movidos pela vanguarda paulista-modernista, que situa a ABL como a representação máxima do “atraso” cultural do Rio de Janeiro, et pour cause, do Brasil. O prestígio da ABL não era, portanto, um manto protetor indiscutível, muito pelo contrário. Os intelectuais “jovens” de inícios dos anos 40 eram, em boa parte, fruto do clima do debate modernista, ainda que não tivessem nele se envolvido ou se posicionado “contra” a ABL. O trabalho de Múcio Leão em Autores e Livros pode, por conseguinte, ser entendido como de recriação e revitalização da própria instituição, a qual não pode nem deve ser associada ao Estado Novo. Ela tem suas próprias origens, anteriores e independentes — segundo sua história de fundação — de qualquer regime político. O que pretendemos dizer com essas observações é que Múcio Leão associa seu trabalho de construção de uma galeria de vultos de nossa história intelectual ao perfil da própria ABL, levando-a, mais 15 José Veríssimo afastouse da ABL quando da entrada de Lauro Müller, político que nunca havia escrito um livro. O episódio é mencionado em vários textos, entre os quais Ventura (1991). os Historiador es de autores e liVros 31 uma vez, a assumir o papel simbólico para o qual fora criada.16 O seu próprio pertencimento à ABL, como o de muitos daqueles envolvidos diretamente com o jornal A Manhã, é sugestivo da heterogeneidade política do campo intelectual em praticamente qualquer época, bem como das possibilidades de aproximação e distanciamento sucessivos de um regime político, conforme os movimentos curtos da conjuntura que é vivida.
Voltando a percorrer a estrutura organizacional da primeira parte de Autores e Livros, temos algumas observações úteis. Primeiro, a lógica da escolha do nome do homenageado era presidida por dois critérios básicos: ou se tratava de uma data especialmente relacionada com o autor, geralmente o dia em que se comemorava seu nascimento ou sua mor te, ou então os nomes eram agrupados em sér ies, que se apresentavam como “volumes” em que o suplemento literário era montado. A página de rosto seguia sempre um mesmo formato. No alto, à direita, uma ilustração da figura do homenageado, que podia ser um desenho ou uma foto de seu rosto.17 Abaixo da ilustração está o “sumário” do número, sendo que de 10 em 10 números era organizada uma edição especial em que eram relacionados, por tema e por autor, todos o s artigos já publicados. Tal cuidado é revelador da intenção consciente do suplemento de ser colecionado pelos leitores, formando uma espécie de dicionário com os adequados instrumentos de remissão para a consulta. De fato, isso deve ter acontecido, uma vez que o jor nal recebe cartas mencionando como os números eram recebidos e relacionando essa recepção a transformações mais amplas do mercado editorial brasileiro. A matéria enviada por Hebert Parentes Fortes, publicada em Autores e Livros em 1944, é exemplar. O leitor destaca inicialmente que o país 16 O círculo de sociabilidade que envolve os intelectuais pode ser sentido no depoimento de Manuel Bandeira: “Em 1940, aberta uma vaga na Academia de Letras (...), fui visitado por três amigos acadêmicos — Ribeiro Couto, Múcio Leão e Cassiano Ricardo —, que vinham me convidar a que me apresentasse candidato. (...) Só que pedi dois dias para tomar uma decisão. De fato não havia em mim preconceito antiacadêmico. Sempre me pareceu que os que atacam a Academia exageram enormemente o que possa haver de força conservadora numa academia. (...) Que poderia eu ter contra a Academia que em 38 premiara Cecília Meireles pelo seu livro Viagem, tão fora dos cânones acadêmicos (...). Os reacionários da Academia são uns velhinhos amáveis que não fazem mal a ninguém: querem é sossego. Como eu” (Bandeira, 1983:66-7).
17 Embora não se tenha feito levantamento exaustivo, na amostra consultada são frequentes os nomes dos desenhistas Pacheco e Jerônimo Ribeiro. 32 História e Historiadores atravessa “fase de intensa febricidade editorial”, mas que os editores ainda se mostram pouco corajosos para compensar nosso “incrível atraso” nessa matéria. Muitos permanecem ainda explorando “as piores fraquezas dos leitores”, recusando-se a aceitar que “o nosso público ledor cresce vertiginosamente e aprimora-se em suas exigências de modo assombroso”. Para evidenciar o acerto de suas observações, registra: “De nossa parte nos contentaríamos de lembrar a quem o afirmasse o assombroso milagre destes ‘Suplementos’ — talvez as páginas mais gostosamente lidas, estudadas e colecionadas em todo o Brasil. Porque aqui se respeita e estima o leitor brasileiro comum . Estes ‘Suplementos’ são realmente filhos de um ato de fé no bom gosto e no senso crítico dos leitores do Brasil.” 18 No lado esquerdo da primeira página ficavam as seções “Notícia” e “Bibliografia”, que, em vários casos, estendiam-se a outra parte do suplemento. Na “Notícia” figuravam os dados biográficos do autor: família, estudos, atividades profissionais, relacionamentos no campo pessoal e intelectual, e posicionamento político. A trajetória de vida do homenageado é, assim, claramente apontada como elemento-chave para a compreensão de sua obra e, especialmente, para um segundo “desenho”: o de seu perfil psicológico, que era apresentado em consonância com sua aparência física. A essas informações agr egava-se aquela mais específica, que dizia respeito a sua obra e traduzia-se
numa listagem, a mais completa possível, de sua produção: livros, artigos de destaque, discursos políticos ou não, traduções etc. Todo o material vinha com indicações de casa e local de edição, e de qualquer outro dado considerado pertinente. O que se homenageava em Autores e Livros, portanto, não era apenas a figura de qualidade intelectual, mas igualmente o “homem” em sua dimensão ética: seu caráter e sua honra, defendidos ao preço da própria vida, como nos casos do suicida Raul Pompeia ou do assassinado Euclides 18 Fortes, Hebert Parentes. Coleção Presença. Autores e Livros, 9-1-1944:28 (destaque do autor). O autor do artigo quer elogiar o diretor da Coleção Presença, da Estela Editora, que seguia o exemplo de Múcio Leão. os Historiador es de autores e liVros 33 da Cunha. Essa proposta ficava ainda mais destacada pela utilização de uma farta ilustração para os padrões da época. Cada homenageado, quando possível, era apresentado em fotos de várias fases de sua vida, além de fotos de sua casa ou de situações de convivência com amigos e companheiros de trabalho. Fazia-se também a reprodução de cartas, inclusive sobre questões familiares, recebidas ou enviadas, destacando-se sempre, neste último caso, o “autógrafo” do autor. Tais práticas eram complementadas pelo recurso à caricatura e pela reprodução do fac-símile de um frontispício de livro do autor. As páginas internas do suplemento literário compunham-se de textos do próprio autor ou de textos escritos sobre ele e sua obra por diversos intelectuais, em diversas circunstâncias ao longo do tempo. No caso dos textos do autor, procurava-se caracterizá-lo “dentro” do que se estava considerando sua contribuição cultural mais relevante. Mas, como os intelectuais selecionados não apresentavam um perfil monocórdio, o que ocorria, no mais das vezes, era a apresentação de vários tipos
de textos: poesias, extratos de prosa, estudos, discursos etc. As fontes mais frequentes eram os próprios livros citados na bibliogr afia, artigos de revistas (com destaque para a da ABL e a do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) e artigos de jor nais. Os textos do autor completavam-se com a seção “Correspondência”, em que eram tratados os temas mais variados e r eveladores de dimensões da vida privada do homenageado. Alguns exemplos podem ser ilustrativos, como a carta de Tristão da Cunha a Graça Aranha, comunicando o nascimento de seu filho: “Meu querido Graça (...), há longas semanas esperava aquele varão que será ilustre e ali estava. Esperava Messias. O Salvador, de quê? De minha energia.”19 Outro, com o mesmo caráter, mas indicativo de trama política secreta, é a carta de Francisco Glicério a Quintino Bocaiuva sobre os pr ocedimentos a serem tomados tendo em vista os preparativos da República: 19 Carta de Tristão da Cunha a Graça Aranha. Autores e Livros, 13-12-1942:275. 34 História e Historiadores “Você agora deve dirigir qualquer movimento militar no nosso sentido e dar um golpe decisivo (...). O resto é a sorte, e da sorte da República eu não tenho medo. Tens companheiros?” 20 A esse conjunto, agregava-se um segundo, igualmente fundamental: eram os textos produzidos sobre o autor e sua obra. No primeir o caso estavam os materiais de tipo confessional, ou seja, os depoimentos daqueles que haviam conhecido o homenageado e que, glória maior, haviam priva-
do de sua convivência pessoal. São, portanto, textos íntimos, emocionados, saudosos. Indicadores, particularmente quando associados às cartas e às fotos, de um círculo íntimo de amigos, do compartilhamento de uma cumplicidade e afetividade intelectuais. Pode-se desenhar toda uma rede de sociabilidade pelas múltiplas inter-r elações que se revelam por meio desses contatos sustentados e transmitidos ao longo do tempo.21 Nesse contexto, vê-se a centralidade e a força articuladora entre vida e obra que é dada pela dimensão da “casa” e dos vínculos familiares do autor. É assim, por exemplo, que Afonso Arinos inicia seu artigo sobre o amigo Eduardo Prado e a fazenda onde se abrigou no fim da vida: “A morada que Eduardo amou, o seu verdadeiro home , a casa onde eu o conheci e por onde, aplicando a citação sentença de Machado de Assis, eu pude ulgá-lo (...)” 22 Um artigo de Humberto de Campos sobre Oliveira Lima, escrito quando do recebimento da notícia de seu falecimento, em 28 de março de 1928, é também particularmente exemplar do que Autores e Livros procurava realizar em termos de vida-obra, privado-público e físico-psicológico: “ As letras e a figura de Oliveira Lima estabeleciam na realidade um contraste intrigante com o cavalheiro que ele pessoalmente era. Imperioso nas investidas, inclemente no ataque áspero, no estilete ademais, quase 20 Carta de Francisco Glicério a Quintino Bocaiuva. Autores e Livros, 24-11943:53. 21 Sobre o conceito de sociabilidade intelectual e suas dimensões afetivas e or ganizacionais, ver Sirinelli (1986); e Trebisch (1992). 22 Arinos, Afonso. A casa de Eduardo Prado. Autores e Livros, 28-8-1941:34. os Historiador es de autores e liVros 35 monstruoso no físico, não se podia imaginar o que era ele na agilidade dos movimentos e na simplicidade do trato”.23 Além desse tipo de material, havia uma parte substancial do su-
plemento dedicada aos “estudos” sobr e a obra do autor. Eram extraídos, grosso modo, de uma literatura voltada para a “crítica literária” e composta de compêndios ou de introduções a edições ou r eedições de trabalhos do homenageado. Contudo, muitos textos desse tipo provinham de jornais, do Rio e de São Paulo sobretudo, e constituíam-se de resenhas de livros escritas durante as décadas de 10, 20 e 30. Autores e Livros possuía, assim, uma estrutura muito bem-cuidada, que praticamente se manteve de agosto de 1941 a fevereiro de 1945, enquanto Múcio Leão foi seu diretor. Um dos elementos fundamentais de tal estrutura era a organização por volumes, isto é, o exercício de agrupar autores “qualificando-os” de uma forma específica. O 5o volume, iniciado em unho de 1943, foi dedicado aos poetas.24 Já o 6o volume, dedicado à Escola de Recife, inclui homenagens a Tobias Barr eto, Sílvio Romero, Martins Junior, Souza Bandeira e Artur Orlando.25 Mas a série que constitui o núcleo de reflexão desta pesquisa é aquela dedicada aos “Historiador es”, o 6o volume, publicado entre 9 de janeiro e 16 de abril de 1944. Trata-se de um conjunto de 12 nomes, qualificados por sua produção na área da história, não se incorporando, como veremos com vagar a seguir, qualquer tipo de avaliação quantitativa de suas respectivas obras. A esse núcleo somar am-se mais alguns nomes, que, embora não integrando a série, for am classificados explicitamente pelo jornal como tendo contribuído para os estudos históricos. São mais oito nomes, completando um total de 20 figuras de “historiadores”. É com essa “amostra” que iremos basicamente trabalhar (ver quadro ao fim deste capítulo). Esses historiadores compõem um universo bem heterogêneo, e o esforço para tratá-los privilegiará, certamente, apenas algumas dentre muitas possibilidades. Nesse sentido, estamos interessados em destacar como o su-23 Campos, Humberto de. Página de um diário. Autores e Livros, 12-3-1944:138. 24 Compuseram o volume: Junqueira Freire, Luís Guimarães Junior, Gonçalves de Magalhães, Dutra
e Melo, Porto Alegre, Pedro Luiz, Francisco Otaviano, Teixeira de Melo, Gonçalves Crespo, Teófilo Dias, Adelino Fontoura, Afonso Celso, Guimarães Passos, Augusto de Lima, Emílio de Menezes, Hermes Fontes, Martins Fontes, Goulart de Andrade e Rodrigues de Abreu. Um total de 18 nomes, segundo a nota publicada em 1o de agosto de 1943 na página 54 de Autores e Livros. 25 Essa série foi publicada de 23 de abril a 4 de maio de 1944. 36 História e Historiadores plemento constrói a trajetória de vida de um “historiador” e a vincula às características de sua obra, o que implicará um recorte com realces e omissões. Estamos também preocupados em distinguir, através dos textos dos comentaristas, as transformações apontadas no trabalho historiográfico ao longo de um período que se estende de meados do século XIX às primeiras décadas do século XX, abarcando, portanto, uma produção bem anterior àquela própria do Estado Novo. Além disso, consideramos menos importante analisar os conteúdos substantivos dos trabalhos dos historiadores homenageados do que nos fixarmos nos procedimentos responsáveis por sua realização e nos temas de fundo que orientavam os debates e pesquisas de um dado período. É justamente esse enfoque que explica a maior atenção dispensada aos artigos dos analistas, em detrimento dos textos — artigos de jornal e revista, trechos de capítulos de livros etc. — dos próprios autores. Por essa razão, gostaríamos de chamar atenção para a emergência de outro conjunto de nomes nas páginas do suplemento: aquela dos “comentaristas” dos trabalhos de história, composta, em parte, por historiadores (inclusive pelos homenageados) ou por “escritores” que se dedicam a uma literatura de análise da sociedade brasileira. A par dos 20 “historiadores”, esses comentaristas como que completam o elenco de autores do suplemento que será aqui analisado. Uma última observação diz respeito a duas ausências que merecem comentários. A primeira é a de Euclides da Cunha, elevado, no período do Estado Novo, a um dos símbolos máximos da produção cultural brasileir a. Ele figura na galeria de Autores e Livro s, que tem dois números sucessivos dedicados à comemoração dos 40 anos de publicação de Os sertões.26 Contudo, não é incluído na série
“Historiadores”, sendo qualificado por seus comentaristas mais impor tantes ou como “poeta da palavra ou da ação” (João Ribeiro) ou fundamentalmente como “sociólogo” (Araripe Júnior). Nesse campo do saber, para Afrânio Peixoto, Euclides teria aberto caminho para a linhagem de Alberto Torres, Oliveira Viana, Delgado de Carvalho e Gilberto Freire. Embora o jornal faça uma breve menção ao “historiador da Guerra de Canudos”, o livro Os sertões é tratado basicamente como obra literária de acuidade psicológica e sociológica. A segunda ausência é a de Alberto Torres, esta sim curiosa, pois o autor não figur a no elenco dos homenageados do suplemento, apesar de ter seu nome citado por comentaristas aqui e acolá. A razão de tal fato é 26 Autores e Livros, 16-8-1942. os Historiador es de autores e liVros 37 difícil de avaliar, sendo compreensível apenas sua não inclusão na categor ia “historiador”. Enfim, fica o registro. Intelectuais, geração e sociabilidade Realizar uma reflexão sobre o perfil da amostra intitulada Historiadores não é tarefa simples. Mas, ao assumirmos que comporiam esse universo apenas aqueles designados pela própria fonte como tal, nosso obetivo foi justamente buscar compreender o que estava sendo identificado como trabalho historiográfico e, portanto, quem eram esses autores e quais as obras que integravam uma bibliografia “clássica” de história no Brasil até meados dos anos 40. Compreender a lógica de qualificação do suplemento é não só preencher a categoria “historiador” com atributos que a aproximam das características mais gerais de um “intelectual”, como distinguir nela especificidades capazes de recortar um lugar próprio, que vai se construindo e afirmando como um ofício no período coberto pela própria seleção realizada. Cabem aqui algumas observações pr eliminares. Todos os autores esco-
lhidos são brasileiros e estão mortos. O exemplo de Alcântara Machado é interessante, pois seu falecimento ocorre em abril de 1941, logo, pouco antes de ter início a publicação de Autores e Livros. Ele seria homenageado em 1944, juntamente com outros historiadores, a maioria nascida no último terço do século XIX e desaparecida nas décadas de 20 e 30. Homens, por conseguinte, cuja maturidade intelectual foi alcançada no mo mento da virada do século. Trata-se, assim, de examinar uma produção sobre o Brasil realizada por brasileiros a partir de uma “ótica” interna, nacional. Não se deseja fixar o olhar do “outro”, nem incluí-lo numa galeria de grandes vultos que deveria ser reservada exclusivamente para os aqui nascidos. Por outro lado, o fato de estarem todos mortos dá bem uma dimensão de obra acabada, passível de ser avaliada em sua integridade, integridade que é também a da vida do homenageado. Para os vivos, aqueles que ainda têm com que contribuir e sobre os quais não se pode chegar a qualquer conclusão mais definitiva, o suplemento dedica um grande espaço em sua segunda parte, como já o bservamos. São historiador es, em tese, todos aqueles que produziram na área dos “estudos históricos”, havendo um esforço de distinção tanto da filosofia e da literatura lato sensu, quanto do que se chama de “estudos político-sociais”. Não se avalia essa produção historio gráfica, contudo, por um cri-38 História e Historiadores tério quantitativo, havendo autores com uma vasta obra e outros com uma ou duas contribuições consideradas suficientemente significativas para garantir sua inclusão. O fato de o suplemento realizar tal classificação não impede, igualmente, que os autores acumulem outras “especialidades”, sobretudo por ser o campo intelectual ainda pouco compartimentado institucional e profissionalmente. Assim, os historiador es são com frequência poetas, romancistas, uristas e, praticamente todos, jornalistas militantes. Também não há um tipo rígido de texto considerado histórico, ou uma for ma de contribuição particularmente valiosa nesse sentido específico. São enquadrados como trabalho de historiador tanto a narrativa que resulta da pesquisa documental, quanto o trabalho de tradução e prefaciamento
de livros estrangeiros, de localização e edição de documentos e ensaios his-tóricos, de redação de compêndios voltados para um público escolar, e até mesmo a elaboração dos verdadeiros e bons romances históricos. Obras com finalidades distintas — a pesquisa, o ensino e a divulgação mais ampla — constituem um conjunto no qual não se sente hierarquizações maiores. Os historiadores possuem, dessa forma, um perfil bem diferenciado em termos de contribuições, e nossa estratégia foi, antes de mais nada, procurar examiná-los enquanto intelectuais de seu tempo. Estamos levando em conta, assim, a própria lógica do suplemento, que, em primeiro lugar, apresenta ao leitor a trajetória de vida do homenageado, desejando que tais infor mações presidam a apreciação de sua obra. O conjunto de historiadores não é gr ande — apenas 20 —, e seu perfil não poderia ter marcas muito especiais, até porque não havia distinções disciplinares mais nítidas no Brasil até os anos 30, inclusive pelo fato de não existirem faculdades dedicadas à for mação de profissionais nessa área do saber. O ofício de historiador era executado por uma categor ia mais abrangente de intelectuais: a dos “homens de letras”. Assim sendo, julgamos conveniente iniciar a reflexão sobre quem são os historiadores pelo exame de algumas noções que integrarão nossa análise. Em primeiro lugar, a noção de intelectual, ela mesma de contornos flui-dos, algo que se transforma com o tempo, indicando dificuldades que se tra-duzem na impossibilidade de uma definição r ígida.27 A opção, nesse caso, foi adotar uma concepção mais r estrita de intelectual, que privilegiasse a ideia do produtor de bens simbólicos envolvido direta ou indiretamente na arena 27 Ver Sirinelli (1988). os Historiador es de autores e liVros 39 política. Esse “pequeno mundo”, no dizer de Jean-Paul Sartre, é composto por especialistas no processo de criação e transmissão cultural, que despertam a atenção dos envolvidos com o “círculo do poder político” por suas capacidades de interpretar a realidade social e produzir “visões de mundo”. Para Autores e Livros, todos o s homenageados integrariam essa categoria especial de homens e, em função desse fato, materializariam a pró pria história cultural do país.
A segunda opção foi utilizar a noção de geração para procurar agrupar os nomes listados, tentando estabelecer relações horizontais e verticais entre eles. Em outras palavras, o uso da categor ia geração foi considerado operacional para uma abordagem que pretende destacar as características das trajetórias de vida dos autores, r elacionando-as entre si através de vínculos pessoais privados e profissionais/públicos ao longo do tempo. Para tanto, é necessário precisar o sentido da categoria geração neste texto, uma vez que ela vem sendo não só utilizada como criticada na área da literatura, da história (a das mentalidades, em especial) e também das ciências sociais. De forma breve, o ponto de partida de todas as críticas destaca que a versão “moderna” da ideia de geração nasce no século XIX e incorpora até hoje um fo rte acento positivista. Uma geração é em geral compreendida como um agrupamento de homens de uma mesma “classe de idade”, o que os leva a compartilhar um certo sistema de gostos e valor es: uma visão de mundo. As gerações, nessa perspectiva, suceder-se-iam sistematicamente, “renovando-se” com o passar linear do tempo. A sucessão de gerações está, assim, ligada à sucessão de transfor mações sociais: a “renovação” dos homens advindo de uma “natural renovação” de ideias, tendo tal processo regularidade e direção progressiva. As objeções a essa noção de geração são contundentes. Chama-se a atenção para a falácia de identificar um grupo e supor sua homogeneidade interna utilizando-se um critério cronológico, que deriva de um tempo “exterior” — um tempo social datado. Trata-se tanto de questionar a suposição de que a “consciência” dos homens derive automática e mecanicamente dos “fatos marcantes de uma conjuntura”, quanto de assinalar a diversidade de vivências possíveis para homens de uma mesma “classe de idade”, ainda que numa mesma conjuntura. Trata-se também de denunciar a ilusão dos ritmos, bem ao gosto evolucionista, que assume o progresso
como direção irr eversível, acreditando no “poder determinante das ideias”. É sugestiva a observação de Raoul Gir ardet de que a emergência e o uso da 40 História e Historiadores ideia moderna de geração estão ligados a duas outras noções do vocabulário político-ideológico: a de juventude e a de crise (Girardet, 1983:257-70). A fluidez e os riscos do uso da noção são, portanto, muito gr andes, mas o próprio fato de a literatura vir apontando seus inconvenientes e fraquezas tem permitido r eflexões que revisitam a categoria, algumas inclusive propondo o seu abandono e a adoção de certos substitutivos mais adequados.28 No caso deste estudo, manteremos a noção e procuraremos seguir as sugestões de Claudine Attias-Donfut, porque nos parecem teoricamente instigantes e metodologicamente operacionais para o que se deseja aqui realizar.29 Para a autora, o discurso “de” ou “sobre” uma geração evoca sempre um “tempo”, que remete à memória comum de um grupo e à história que lhe é contemporânea. A noção, por conseguinte, situa-se na junção de memória e história, sendo fundamental explicitar que a referência é a uma memória “comum”, entendida enquanto testemunho de como um conjunto de homens experimentou um certo “tempo”. Falar de geração nessa perspectiva é falar de r elações entre “pessoas” de um mesmo grupo (que podem ou não ter a mesma classe de idade) e é falar também de relações entre gerações, pois há uma nítida dinâmica contrastiva nesse processo. Em qualquer das dimensões, a indicação é dar um tratamento “social” ao tempo, tratamento esse que os approaches estruturalistas abafaram. Dessa forma, a noção de geração permanece ligada à ação do que
se pode chamar de “eventos fundadores” ou “acontecimentos marcantes”, mas não se esgota neles, na medida em que uma geração não está “datada” pela coincidência com a ocorrência de fenômenos sociais e históricos específicos, mesmo porque eles podem ser vivenciados de múltiplas maneiras. A noção de geração deve, portanto, transcender a manifestações “externas”, resultando de um trabalho de memória comum de grupo, que identifica sua vivência e a transmite aos seus sucessores que não a compartilharam. Com esse tratamento, a nosso ver, a noção de geração incorpora tanto a ideia de um tempo “exterior” — o dos movimentos de conjuntura e eventos da his-28 O próprio Girardet é um exemplo. No artigo citado propõe o uso da noção de “sentimento de contemporaneidade”, construído em um espaço social vivido coletiva e cotidia-namente por um grupo. 29 O artigo de Claudine Attias-Donfut, La notion de génération: usages sociaux et concept sociologique (1988:36-50), foi básico para o tratamento dado neste estudo, mas outros para tanto também colaboraram: Sirinelli (1991); Levi (1989:1.325-36); Pendariers (1991:51-63). os Historiador es de autores e liVros 41 tória de um país, região ou grupo local — quanto de um tempo “interior”, expresso pela forma como tais acontecimentos foram experimentados por um grupo, construindo-se um sentido de união, de pertencimento. Tal sentimento de integrar um grupo, de compartilhar realizações e valor es, não tem contudo existência autônoma. Ou seja, uma geração só ganha significado próprio quando remetida a relações com outras gerações. Uma das características da categoria, no sentido em que está sendo tomada, é o fato de ela conter uma perspectiva identitária que se realiza por contraste através do tempo, o que é situado e defendido como projeto daquele grupo ante seus antecessores ou contemporâneos. Falar de gerações é falar não só de relações entre pares, como de relações de filiação e negação entre experiências geracio-nais. Ambas as coo rdenadas — sincrônica e diacrônica — constituem a noção e permitem a tomada de consciência de uma temporalidade própria. Por todo esse encaminhamento, a conformação social de um gr upo geracional pode ser traduzida por uma dimensão simbólica e por uma di-
mensão or ganizacional, ambas materializadas numa rede de relações que é, ao mesmo tempo, pública e privada. A noção de geração, por essa via, integra-se e complementa-se com a noção de sociabilidade, esta também considerada possuidora de uma feição subjetiva — marcada pela afetividade, pela competição e pela cumplicidade — e de uma feição objetiva, quer institucional-for mal, quer voluntária e extremamente informal e anti-institucional. A noção de sociabilidade moderna,30 que vem igualmente sendo discutida, em particular por uma literatura dedicada à “história dos intelectuais”, acoplada à ideia de geração, permite um interessante tratamento da amostra de historiadores. Isso porque trabalhar com o meio intelectual é, em grande parte, mapear um espaço social que ambas as noções cobrem no duplo sentido há pouco mencionado. O primeiro, or ganizacional, contido no delineamento de uma rede de relações que materializa intercâmbios sociais durante certo período e segundo várias formas. Os “lugares” de sociabilidade de uma geração — escolas, associações intelectuais, revistas, salões etc. — podem ser indicadores valiosos para a análise de movimentos de produção e circulação de ideias. Quais são esses lugares? Como se formam e com base em que elementos e projetos se estruturam? Todas essas questões, quando esclarecidas, 30 Já trabalhei com essa categor ia analítica no texto Essa gente do Rio... Os intelectuais cariocas e o modernismo (1993). A referência principal é Agulhon (1968). 42 História e Historiadores podem elucidar aspectos da constituição de uma formulação intelectual, de sua vitalidade e continuidade através do tempo. O segundo sentido é simbólico e está como que oculto nessa rede de relações que se constrói. Ele é constituído por aquilo que a literatura chama de “microclimas” e que dá vida a esses pequenos mundos intelectuais. Ou seja, se o espaço de sociabilidade é “geográfico”, ele é também “afetivo”, demarcando vínculos de amizade e de hostilidade e, principalmente, criando uma certa sensibilidade e visão de mundo. Nesse sentido, geração e sociabilidade podem se tornar instrumentos analíticos operacionais para se pensar a estrutura de relações sociais de um “domínio intermediário ” situado entre um macrog rupo (a nação, por exemplo) e o grupo familiar e congêneres. Por fim, essas noções se completam com uma utilização muito livre do conceito de campo intelectual de Bourdieu.31 De um lado, a própria ideia de “campo”, como um sistema de relações entre posições que confere particularidade a cada posição e ao conjunto por elas formado, que é sempre dinâmico e mar cado por lutas. De outro, a noção de campo intelectual, que se “autonomiza” pari passu à elevação de status dos produtores de bens
simbólicos e à sua especialização, o que, no caso do Brasil, começa a ocor rer no período sob exame. Os historiadores de Autores e Livros, dessa forma, serão tratados como integrantes de um sistema de posições, que lhes for am “oferecidas” por uma certa configuração do campo intelectual de uma época, campo que se “autonomiza”, mas que mantém sempre r elações com o campo de poder, alimentado pelos bens simbólicos produzidos por seus “especialistas”. Ainda seguindo Bourdieu, vale destacar a importância crescente que esses produtos culturais adquirem no processo de legitimação do poder, que, quanto mais “moderno”, menos se volta para o uso de um instrumental coercitivo e mais valor iza o trabalho intelectual e nele procura investir. Dessa for ma, entendemos que a utilização da noção de gerações, que se “operacionaliza” pelo r ecurso à categoria de sociabilidade, converge para a ideia de campo intelectual, onde se movimentam os atores-autores, demarcando suas posições e possibilitando uma simbologia social do tempo. Nessa perspectiva, a análise estará sempre buscando traçar vínculos que transcendam a uma certa “classe de idade” stricto sensu, e remetendo a relações de aliança, disputa, filiação e ruptura de orientações intelectuais. 31 Entre os vários textos de Pierre Bourdieu, pode-se citar: Campo de poder, campo intelectual e habitus de classe (1974:183-202), e Esprit d’État: génèse et structure du champ burocr atique (1993:4962). os Historiador es de autores e liVros 43 Ou seja, a análise recor rerá ainda a um outro conceito, o de tradições intelectuais, ele mesmo inscrito nos mecanismos identitários das gerações. Do mesmo modo que as gerações não se “sucedem” num sentido evolucionista, as tradições intelectuais não são contínuas no tempo, variando conforme a área cultural e a disciplina, convivendo e se superpondo. Uma tradição tem seus temas, procedimentos, referências organizacionais e simbólicas e suas figuras-chave. As tradições podem se fundir ou, ao inverso, multiplicar-se em dado momento, para o que é preciso considerar a situação do “pequeno mundo intelectual”, além da conjuntura política maior. As tradições intelectuais marcam o perfil de gerações, que nelas e por elas
procuram se demarcar. As tradições exigem suportes “materiais”, que a noção de lugar de sociabilidade nos ajuda a mapear e a dotar de um sentido subjetivo, uma “convivência” que a memória comum ir á registrar.32 O “pequeno mundo” dos historiadores Autores e Livros, qualquer que seja o tratamento escolhido pelo analista, apresenta como primeira dificuldade o fato de ser constituído por uma multiplicidade de tempos. Há o “tempo” dos homenageados, o “tempo” dos que comentam o trabalho desses autores, sejam seus contemporâneos ou não, produzindo, no segundo caso, um tipo de avaliação mais distanciada e menos marcada por relações pessoais, e ainda há o “tempo” em que o suplemento está sendo or ganizado, através do olhar de Múcio Leão. É claro que “o” tempo dos homenageados e “o” de seus comentaristas não é um tempo único. A observação ganha relevo sobretudo no caso dos autores, pois há tanto homens nascidos e falecidos durante o século XIX ou ainda na virada deste século, quanto homens que, nascidos dur ante o último terço do XIX, vivem e produzem até os anos 30. Lançando um primeiro olhar ao quadro construído com os dados oferecidos pelo suplemento33 e munidos das observações anteriores sobre as noções com que desejamos trabalhar, procuraremos destacar uma 32 Para o conceito de tradição, recorremos a dois textos básicos: Eisenstadt (1972) e Shils (1972). 33 A elaboração do quadro recorrendo exclusivamente aos dados fornecidos pelo jornal foi uma escolha metodológica, na medida em que se desejava ressaltar os elementos selecionados pela fonte, isto é, sua lógica no traçado do perfil dos autores. Informações advindas de outras origens só foram incorporadas no texto do trabalho. 44 História e Historiadores série de características que marcam a trajetória desses autores e, princi-
palmente, recompor uma teia de relações que os une entre si, atravessando inclusive vários dos “tempos” já mencionados. Esse procedimento possibilita a for mação de subgrupos na amostra, todos analiticamente arbitrários, mas funcionais quando o que se deseja é demonstrar a existência de um espaço — físico e cronológico — onde os intelectuais examinados constroem relações organizacionais e simbólicas por meio de suas trajetórias individuais. Dessa for ma, para além das especificidades de cada percurso, o que se deseja ressaltar nesse momento é a r ecorrência de uma série de “fatos”, o que se vincula, sem dúvida, a estarmos nos movendo sempre no interior de um “pequeno mundo”. Em busca de um perfil sociológico, o primeiro aspecto a observar é que estamos lidando com um conjunto de homens em sua maior ia bem-nascidos e bem-educados. Nenhuma surpresa, portanto. Apenas algumas considerações suplementares. A maior ia desses homens pertence à alta aristocracia brasileira, muito mais no sentido político do que no sentido estrito da riqueza econômica. Percebe-se de imediato o grande número de homens do Nordeste, o número relativamente pequeno de or iundos de São Paulo e a “ausência” de nomes do Sul. O Império (e a República) das Letras é setentrional e, naturalmente, tem o Rio de Janeiro como sua Meca. Algum desconto para Minas Gerais, o que está claramente associado ao “ouro” da terra, das revoltas e da Escola de Minas. Há algumas exceções no quadro que, conforme o dito, confirmam a regra. A maior e mais ilustrativa é Rocha Pombo, que, a despei-to de ser r econhecido por uma ampla obra de caráter pedagógico, viveu no “subúrbio” do Rio e morreu quase na miséria sem conseguir tomar posse na ABL, apesar de muito ter lutado para ser eleito. Em outros casos, em que o homenageado não é tão bem contemplado por suas origens, existem as amizades de infância e da juventude, além dos contatos políticos. A quase totalidade dos autores fez estudos superiores regulares: os mais
velhos na Europa, mas a maioria no Brasil, nas tradicionais escolas de dir eito, medicina e engenharia do Rio, Recife, São Paulo, Salvador e Ouro Preto. Muitos desses homens tiveram sua vida ligada ao prestigioso Colégio Pedro II, quer como alunos, quer como professores. Tão ou talvez mais importante do que uma escola superior, o Pedro II é um lugar vital na sociabilidade intelectual dos que vivem no Rio da virada do século XIX para o XX. Dessa forma, o espaço para o autodidatismo é mínimo, e desaparece com rapidez no início do século XX. A formação, além de ser um momento de contatos fundamentais, tem os Historiador es de autores e liVros 45 desdobramentos no tipo de contribuição dos homenageados, não só co m relação à temática escolhida, como também no tratamento a ela dispensado. Dessa forma, não é casual que Pandiá Calógeras, especialista nos estudos de minas de ouro e ferro no curso de engenharia de Ouro Preto, tenha como uma de suas grandes contribuições o livro As minas no Brasil e sua legislação. Do mesmo modo, como Levy Carneiro assinala, o magnífico trabalho de Alcântara Machado — Vida e morte do bandeirante — é revelador de sua sólida for mação jurídica, sendo impossível sem ela. Só como “advogado-historiador” pôde ele examinar os inventários e testamentos dos séculos XVI e XVII, abarcando cerca de 20 volumes do Arquivo Público de São Paulo e trazendo à tona aspectos da vida dos colonos até então nunca considerados.34 Um último exemplo é o do louvado saber do barão do Rio Branco nos campos da história militar e da história da geografia do Brasil, acumulado e exercido em sua função diplomática. As correlações poderiam multiplicar-se, mas convém não imaginar qualquer tipo de determinação mais r ígida entre for mação e obra do autor, sobretudo na produção histórica, que, mesmo guardando relação com uma trajetória profissional, pode se constituir numa espécie de ponto de chegada, de culminância alcançada por uma escolha de fim de vida. É como se o trabalho historiográfico exigisse um acúmulo de erudição, uma disponibilidade de tempo e uma “paz” interior, acabando por se tornar a opção final e definitiva de um homem de letras. Nesse sentido, esse trabalho está longe de ser caracterizado como um hobby de aristocratas decadentes ou desocupados. Não se faz história sem esforço e investimento pessoais.
Outro aspecto central é a importância da atividade jornalística durante todo o longo período examinado. Os intelectuais em geral, aí incluídos os historiadores, de origem aristocrática ou não, são homens ligados ao jornalismo num duplo sentido. De um lado, porque os jornais e também as revistas constituem os “novos e amplos” salões, exibindo os homens de letras a um público inusitado, e permitindo uma nada desprezível fonte de renda. Os jor nais representavam, assim, uma forma de ingresso no mercado de trabalho intelectual, uma profissionalização que expandia contatos, sendo em alguns casos um passaporte para mundos políticos e sociais maiores. No caso daqueles que vinham para o Rio de Janeiro, trabalhar em um jornal era praticamente vital: uma espécie de bilhete de entrada no espetáculo do qual se esperava participar. Ter integrado a r edação de um periódico em outro local do país podia ajudar, mas os contatos e posições políticas facilitavam muito. 34 Carneiro, Levy. Conferência na ABL. Autor es e Livros, 20-2-1944. 46 História e Historiadores Já quando observamos os exemplos de homens bem-posicionados e ricos, vemos que o jornal torna-se um empreendimento financeiro e um veículo de divulgação de ideias muito valor izado. Eduardo Prado escreve no jornal de sua família em São Paulo e são inúmeros os intelectuais, nem tão afortunados, que fundam jornais ao longo de suas vidas. O jornal é um “emprego” e uma tribuna; o local do início da carr eira e também um palco de consagração e de veiculação sistemática da produção intelectual, nela incluída a produção historiográfica. Vale recordar que a publicação de livros era fato ainda raro no país, que só começaria a contar com um número maior de casas editoriais nos anos 30 (Cândido, 1984). Até então, muitas das obras que circulavam no Brasil eram impressas na Europa e, em não raros casos, à custa do próprio autor.35 Oliveira Lima talvez seja um caso limite do que se está tentando caracterizar, uma vez que, por sua con-dição de diplomata, tinha
maior es facilidades para imprimir seus livros em editoras de Leipzig, Paris e Londres. Mas outros intelectuais, que de forma alguma têm o seu perfil, também são forçados a buscar editoras na Europa, ou a usar sua influência na burocracia, ou ainda a buscar patrocinadores, numa clara demonstração das carências vividas pelo país. Além disso, o jornalismo cumpria, ou melhor, devia cumprir, de forma reconhecida pelo “pequeno mundo intelectual”, a tarefa de formador da opinião pública, sendo percebido como uma dimensão paralela e essencial da atividade política. Aliás, muitas das críticas que se articulam, desde meados do século XIX até as vésperas da Revolução de 30, a respeito da ausência de opinião pública no Brasil responsabilizam os ornalistas “oportunistas” que não cumpriam sua função básica. A “opinião pública”, existente na Europa e nos Estados Unidos, explicaria em larga medida o bom funcionamento do sistema representativo, pelo peso que exerceria no processo de tomada de decisões. No Brasil, tal não ocorria, a despeito dos esforços de vários intelectuais para tornar seus ornais centros de defesa e combate de ideias. Atuar em jornais e participar de núcleos menores e mais seletos, como o das revistas, era fundamental, não só porque fazia parte de qualquer estratégia de ascensão intelectual (o que não ocorria sem suportes políticosociais), mas também porque os periódicos eram a base da circulação de ideias da época. Aliás, a luta de ideias, que integra a dinâmica de um campo 35 Gar cia Jr. (1993:2033). O autor trabalha com o exemplo de Alberto Torres, mostrando que alguns de seus textos foram impressos em francês e que seus cinco livros foram editados pela Imprensa Nacional e distribuídos aos amigos. os Historiador es de autores e liVros 47 intelectual, até a virada do século XIX para o XX assumiu uma forma explícita e contundente, que recorria ao jornal como locus de manifestação e am-plificação. Era a polêmica, gênero literário agressivo que destacava questões centrais em dado momento, reordenando posições já estabelecidas, tanto no caso dos atores diretamente envolvidos, quanto no daqueles mais distantes e que nela procuravam se envolver em busca de projeção.36
Projetando escritores, hierarquizando temas no campo intelectual, as polêmicas se arr astavam por anos nas páginas dos jor nais e revistas, chegan-do a tomar, em certos casos, a forma de livros. Como Roberto Ventura assinala em seu livro sobre as polêmicas de Sílvio Romero, a proximidade entre os oponentes desenvolvia um “padrão reflexivo dual” de debates que, com frequência, a despeito de procurar enfatizar as oposições, acabava por revelar as convergências entre os adversários, no que se referia a questões teóricas e ideológ icas. Ressalve-se, contudo, como o próprio autor o faz, que tal congruência não contradita a constatação de diferenças significativas entre os membros de uma mesma geração e que, por conseguinte, a diversidade convive com matrizes intelectuais de fundo (Ventura, 1991:78-80 e cap. 7). O aspecto que se deseja enfatizar aqui é o da atividade jornalística dos intelectuais, importando pouco sua extração social ou posicionamento político. Autores e Livros, através da seção “Notícia” e de inúmeras outras matérias, r essalta a importância do envolvimento com jor nais: lista e data a participação dos intelectuais em vários periódicos e destaca suas iniciativas de for mação de novos títulos. Tal postura fica clar amente associada ao engajamento político-social do homenageado, sendo a primeira vitrine de suas qualidades literárias. Além disso, a atuação em jor nais, ao contrário de outras for mas de expressão cultural, está muito mais disseminada pelo país, permitindo a construção de carreiras nas províncias/estados, que poderiam ou não completar-se com um deslocamento para a capital do país. O jornal e a revista, que se expandem vertiginosamente no início do século, são os principais canais de divulgação, não só de notícias, mas de estilos como a crônica e o ensaio, envolvendo textos de conteúdo literário, histórico, antropológico etc. É nesse período também que se populariza um tipo de jornalis-mo crítico do cotidiano, muito voltado para o estudo dos problemas brasileiros. Numa época em que a institucionalização dos saberes na área das humanidades 36 Um exemplo bem ilustrativo é Assis Chateaubriand e sua tentativa de participar da polêmica entre Sílvio Romero e José Veríssimo, narr ada em Morais (1994). 48 História e Historiadores caminhava ainda lentamente, os autores-historiadores são louvados como pu-
blicistas e polemistas, sendo destacada a harmonia de todas essas manifestações. O exemplo de João Francisco Lisboa talvez seja o mais expressivo. Jor nalista e criador de jornais, ele escolhe como formato para a veiculação de sua obra uma publicação intitulada Jornal de Timon, organizada por números e reunida em três volumes (1852:v. 1 e 2; 1858:v. 3). Outros historiadores, como Alfredo de Carvalho, Rocha Pombo e João Ribeiro, tiveram como referências básicas de sociabilidade grupos de jornalistas famosos, como Jo sé do Patrocínio e Alcindo Guanabara. Por fim, é digno de nota o caso de Capistrano de Abreu, que durante anos publica seus estudos históricos em jornais, sendo que estes só iriam ser reunidos em volume — Ensaios e estudos — após sua mor te. A formação de redes, que passam pelos jornais, articula produtores culturais de várias áreas, extrapolando sua for mação acadêmicatout court e estendendo-se pelo país. Era possível e interessante escrever para jornais de diferentes cidades, construindo, a partir deles, uma trajetória intelectual de reconhecimento nacional. As imprensas do Recife e de Fortaleza destacam-se no circuito da amostra que está sendo examinada, sendo que no Rio e em São Paulo os jornais mais frequentados são os da nova “grande” imprensa:Jornal do Commercio, O Globo, Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo e outros. Mas é bom lembrar também a impor tância de folhas menores e de vida curta, que se formavam exatamente para combater certas ideias e que reuniam homens mais estreitamente ligados. Quanto às r evistas e a outros lugares de sociabilidade que emergem do universo delineado, duas referências merecem destaque especial: a Revista Brasileira e a Academia Brasileira de Letras (ABL). A Revista Brasileira foi o núcleo organizacional do gr upo de intelectuais que, no início da estabilização política da República — em 1898 — decide criar a ABL. Feitas a Abolição e a República, e ultrapassados os anos entrópicos37 do militarismo e do jacobinismo, tratava-se de rearticular o campo intelectual em novas bases, mais afastadas dos engajamentos políticos e das questões culturais que assolaram as décadas de 70 e 80 do século XIX. A segunda metade dos anos 1890 inaugurava um outro tempo, não sendo casual o sucesso do projeto intelectual que orientou o grupo da revista. Tratava-se de fundar uma associação — no conhecido modelo das academias —, cujo objetivo precípuo seria afirmar “profissionalmente” o intelectual, “afastando-o” da política (a di-37 A ideia feliz de caracterizar os anos iniciais da República com a noção de entropia é de Lessa (1988). os Historiador es de autores e liVros 49
mensão partidária é clara) e propiciando a valorização de “um ponto de vista mais realista”, isto é, mais “neutro” e portanto mais competente. É interessante associar o impacto produzido pelo momento inicial da experiência republicana no Brasil, abalando prognósticos e estimulando dúvidas e ceticismo, com o desenvolvimento de um pro jeto cuja marca política é a postulação de um maior distanciamento — o que pode ser lido como especialização — dos intelectuais do campo do poder. No caso dos historiadores, guardadas as enormes proporções, talvez se possa destacar a congr uência desse momento com a ideia de elaboração de um outro tipo de “história” que marca o campo intelectual europeu, francês em especial, após a Revolução. Uma concepção de história cujo critério de “verdade” não fosse nitidamente ético-políti-co e que permitisse novas bases de convivência entre pares, não mais cindidos por questões partidárias, religiosas etc. A ideia era uma associação que reunis-se produtores de bens culturais, sem exigências de engajamento, o que de forma alguma deve ser confundido com uma postura de “marginalidade social”. A Revista Brasileira, dirigida por José Veríssimo desde 1895 e com sede na agitada rua do Ouvidor, torna-se a base geográfica e simbólica da ABL, cuja figura exponencial é Machado de Assis. Em torno desses dois referenciais reúnem-se figuras como Araripe Júnior, Rui Barbosa, Lúcio de Mendonça, José do Patrocínio, Coelho Neto, Medeiros de Albuquerque, Graça Aranha, e os “historiadores” Eduardo Prado, Oliveira Lima, Joaquim Nabuco, barão do Rio Branco, João Ribeiro e visconde de Taunay. Quando da mor te deste último, Veríssimo discursa, relembrando esse “tempo das origens”: “Abeiro-me deste túmulo malfechado para dizer em nome da Revista Brasileira e de seus colaboradores, especialmente daqueles que num doce convívio diário dos quatro últimos anos mais de perto o trataram e o conheceram, o nosso último adeus ao ilustre colaborador, ao confrade eminente e ao amigo querido, que Ele acaba de, para sempre, separar de nós. O visconde de Taunay deixa na nossa história contemporânea um nome de que nós, seus
colaboradores, seus confrades e amigos nos desvanecemos.” 38 38 Veríssimo, José. Adeus a Taunay. Autores e Livros, 12-4-1942:189. Taunay morre em 1899. 50 História e Historiadores O reconhecimento do homem público que foi Taunay e de sua contribuição para a resolução de problemas do país não está ausente do discur-so. Mas o que avulta de seu conteúdo e dá o toque emotivo à despedida é o reconhecimento do companheiro e o clima que envolvia os intelectuais da revista, numa convivência indissoluvelmente pessoal e profissional. Construindo-se diferentemente do projeto intelectual da geração de 1870, embora contasse com a participação de indivíduos que o haviam esposado, o grupo da Revista Brasileira/ ABL formava uma nova geração intelectual e, em nome dela, expressava-se e demarcava posições. Justamente por isso fala-se “contra” o grupo, o que constitui outro indicador de reconhecimento no campo intelectual. É o que a polêmica entre Sílvio Romero e Machado de Assis pode ilustrar, já que nela estão presentes dois referenciais fundamentais da intelectualidade da época. Romero, ao investir contra Machado, ataca o que chama de “grupo fluminense” e suas ideias “francesas”. A polêmica traduz, assim, um confronto mais amplo de posições, o que fica ainda mais patente com a resposta de Carlos de Laet (Machado não se envolve por decisão explícita), ironizando a “escola teuto-sergipana”.39 A Revista Brasileira, a ABL e, em menor grau, a polêmica menciona-da ilustram o reordenamento do campo intelectual, onde um certo modelo de produtor cultural começa a ser trocado por outro, o que se associa à formação de novos lugares de sociabilidade e a novas redes relacionais,
envolvendo, através de novos projetos, intelectuais já consagrados ou não. Republicanos ou monarquistas, católicos fervorosos ou agnósticos, os homens que compunham o “grupo fluminense” estariam transitando de uma tradição intelectual para outra e, com isso, demarcando espaços para o aparecimento de uma nova tradição. Para os objetivos deste estudo, é de crucial importância o que ocorre nesta última década do século XIX; e nela, a r eferência à ABL não pode deixar de ser feita. Isto porque a maioria absoluta dos historiadores listados não pode ser incluída tout court no que a história literária chama de “geração de 1870”, nem ser associada aos que se autodenominam “geração do centenário”: aquela que não viveu os anos da Abolição e da República e que, nos anos 20, aplicou-se à crítica ao liberalismo, identificado com a experiência política da República sugestivamente “Velha”. 39 Sobre essa polêmica, ver Ventura (1991, cap. 3). os Historiador es de autores e liVros 51 Ainda são poucos os trabalhos que se concentram nesse “tempo” de transformações, mais fr equentemente caracterizado ou pela desilusão dos intelectuais, ou por um beletrismo considerado sem maior valor cultural. Como este estudo não se concentra nos literatos em particular, torna-se imperioso flexibilizar essa visão, já muito ar raigada. É justamente no período que vai da estabilização da República aos anos do pós-guerr a que a maior ia dos historiador es selecionados por Autores e Livros produz boa parte de seus melhores e mais comentados trabalhos. É nesse momento, portanto, que essa área do saber ganha, na ótica que se está recompondo, visibilidade, especificidade e reconhecimento no “pequeno mundo intelectual” e na sociedade em geral.40 Não deve constituir, pois, nenhuma surpresa o fato de os “historiadores” pertencerem à ABL, uma vez que este foi um período heroico de sua existência e também um dos que mais gozaram de prestígio intelectual. Todos queriam entrar para a academia, e o exemplo de Capistrano de Abreu torna-se folclórico por isso mesmo. Ele é praticamente a única figura que, insistentemente convidada a integrar a
ABL, recusa a honra, o que passa a ser interpretado como sinal de sua imensa modéstia e desapego a coisas “materiais”. Quando Capistrano morre, em 1927, tendo determinado um enterro sem nenhuma pompa, a nata da intelectualidade que comparece ao acontecimento insiste na imagem da grandeza do homem e do absoluto despojamento de sua vida. Uma característica que só faria crescer o mito de sua presença intelectual. Além disso, os anos 10, especialmente no Rio e em São Paulo, abrigam uma afluência de nacionalismo militante, não mais marcado pelas questões do final do século XIX, mas ainda envolvido com os temas político-culturais que lhe deram suporte: a questão r acial e a constituição de um Brasil “moderno”. Durante esse período, os intelectuais discutiram e gradativamente abandonaram algumas das premissas que orientaram a visão de mundo dominante em finais do século XIX, dedicando-se a produzir “teorias” de inter-40 Alceu Amoroso Lima, no texto clássico “Política e letras”, publicado no livro organizado por Vicente Licínio Cardoso, À margem da história da República (Lima, 1981:72), procura caracterizar este período citando trecho de Olavo Bilac de 1907. Vale a pena a reprodução: “Era até então a sociedade que fechava as suas portas aos homens de letras; eram agora os homens de letras que se afastavam dessas portas, com um belo mas estulto gesto de pouco caso... Destruir essa estultice e esse equívoco, criados e alimentados pelas gerações (?) que precederam a nossa, tal foi, meus companheiros, o nosso maior trabalho e a nossa maior glória... Transformamos o que era então um passatempo, um divertimento, naquilo que é hoje uma profissão, um culto, um sacerdócio...; tomamos o lugar que nos era devido no seio da sociedade...” (Últimas conferências e discursos. Rio de Janeiro, 1924. p. 69 e segs.). 52 História e Historiadores pretação da realidade brasileir a que combinavam antigas e novas linguagens e abordagens. Se a trajetória de vida dos autores-historiadores não se enquadra bem em um perfil de minorité agissante que se vê, mais uma vez, como vanguarda de campanhas voltadas para as “novas chagas” do país — a falta de educação e saúde —, eles também estão lo nge de uma conduta desinteressada e descomprometida com os rumos de nosso desenvolvimento. Fazer história do Brasil nunca deixou de ser uma for ma de projetar suas possibilidades, alterando-se apenas as temáticas e os procedimentos para fazê-lo e os r ecursos organizacionais envolvidos mais
diretamente no empreendimento. Nesse sentido, outros periódicos são apontados como r eferências para o grupo de historiadores, entre eles A Revista do Brasil, criada em 1916 e dirigida por Monteiro Lobato, e a Kosmos, centrada na figura de Olavo Bilac. Ambas são espaços de publicação de “estudos históricos”, e mais ainda de comentários sobre esses estudos. Como estamos tratando de homens nascidos no século XIX e dedicados à história, seria mais do que razoável encontrá-los também reunidos no Instituto Histórico e Geográfico Brasileir o (IHGB) e publicando em sua revista. O IHGB é a associação mais antiga e especificamente voltada para esse campo do saber. Digno de nota é que o IHGB parece ter uma posição menos significativa do que a ABL para boa parte da amostra. Isso fica patente pelo fato de muitos dos historiadores serem fundadores da ABL, ou de estarem presentes nesse momento original como patronos de cadeiras, construindo laços intergeracionais. A ABL surge assim como a grande realização dessa geração intelectual, na qual os historiadores têm posição reconhecida e de destaque. Já o IHGB é uma instituição com tradição assentada. Tradição que sempre cultivou laços diretos de mecenato com o poder político central — imperial o u republicano —, o que a ABL pretendeu explicitamente evitar. O IHGB guardou por razoável tempo um aroma monarquista, estando, em fins do século, com seus quadros ocupados. Para ser bem específica, para os homens da geração de 1890, era mais difícil entrar no IHGB do que na “sua” ABL. Mas se o projeto da ABL era procurar distinguir o espaço da produção de bens simbólicos do espaço do poder político, o exame da traetória de vida dos historiador es de Autores e Livros mostra que, como indivíduos, eles ocupavam com destaque cargos públicos no aparelho de Estado. Na verdade, grande parte deles tem alentada carreira política, o que é destacado e elogiado pelo jor nal. Os historiadores “fazem história” ocupando ministérios ( José de Alencar, Rio Branco e Pandiá Calóger as), governos provinciais (Barbosa Lima), secretarias de governo ( João Franos Historiador es de autores e liVros 53
cisco Lisboa e Pedro Lessa) e cadeiras parlamentares em vário s níveis de representação. No Império ou na República, ou no Império e também na República, o serviço de Estado é uma constante, mesmo porque estamos falando também de profissionais do corpo diplomático e da alta burocracia civil. A ideia que o suplemento deseja passar é justamente a da compatibilidade entre esses desempenhos, sem prejuízo para nenhum deles, especialmente sem mácula para a condição de intelectual. É João Ribeiro que, no número dedicado a José de Alencar, faz algumas observações instigantes sobre os estreitos vínculos entre arte e política no mundo da intelectualidade brasileira.41 Vale a pena acompanhá-lo. Primeiro, João Ribeiro menciona um “outro tempo” — o de Francisco Otaviano e Luiz Delfino —, em que os homens de “grande talento”, quando tinham ambição política, não ousavam contaminar-se com a “peste literária”. Era “evidente” a incompatibilidade entre o homem público e o literato, e aqueles, quando escreviam, utilizavam-se sempre de pseudônimos. Só os que nada tinham a ganhar ou a perder junto às esferas do poder — como ocor reu com Machado de Assis — assumiam “as responsabilidades perigosas” do exercício das letras. Mas, segundo ele, esse “outro tempo” ia longe, porque, no Brasil, ficava cada vez mais claro o papel catalisador da “política”. Em suas palavras, e em r eferência ao mais popular e lido de nossos romancistas: “No Brasil, dominam em qualquer sentido os políticos e dominam em todas as coisas sem excetuar o canhestro e solitário recanto da literatura. Só há um meio de ser gente, ou de subir na estima pública: é o de subir os degraus do poder.” O confronto dessa matéria com outra, também publicada no número dedicado a Alencar, é instrutivo das apreensões que marcam o campo
intelectual durante longo espaço de tempo. Trata-se justamente do discurso de Machado de Assis, quando da inauguração da estátua de Alencar no Rio. Para começar, o grande elogio: 41 Ribeiro, João. O dia de Alencar. O Estado de S. Paulo, 7-5-1929; Autores e Livros, 11-10-1942. 54 História e Historiadores “Nenhum escritor teve, em mais alto grau, a alma brasileira. E não só porque houvesse tratado assuntos nossos. Há um modo de ver e de sentir, que dá a nota íntima da nacionalidade, independente da face externa das coisas.” E, para concluir, a observação ao ministro da Justiça do gabinete Itaboraí: “A política era incompatível com ele, alma solitária. disciplina dos partidos e a natural sujeição dos homens às necessidades e a interesses comuns não odiam ser aceitas a um espírito que, em outra esfera (...), dispunha da soberania e da liberdade.”42 Ou seja, ambos os comentadores convergem ao assinalarem a brasilidade de Alencar. Mas Machado de Assis, reforçando sua própria posição, acentua a antítese entre a “liberdade” do criador cultural e a “disciplina” inerente à atuação no campo da política. João Ribeiro, ele mesmo, não foi político, mas frequentou um dos loci de sociabilidade mais poderosos de então: o “círculo” diplomático do barão do Rio Branco, homem sem dúvida capaz de dar fama e também de impor obstáculos à sua obtenção. O exame da trajetória “profissional” da amostra de historiadores
aponta para a presença da ocupação diplomática, com importância talvez só comparável ao envolvimento com a atuação ornalística. São diplomatas Varnhagen, Gonçalves de Magalhães, Eduardo Prado, Joaquim Nabuco, Oliveira Lima e João Ribeiro, por exemplo. Mas “circula” em torno do Ministério das Relações Exteriores um número muito maior de intelectuais, entre os quais se destaca Graça Aranha. A diplomacia e, num sentido mais lato, a realização de viagens para o exterior possuíam valor estratégico para aqueles que produziam na área da história. A razão mais evidente era o acesso à documentação que se encontrava em arquivos, em especial os de Portugal e da Espanha, mas também contava o fato de que, com o “afastamento” físico, ganhava-se uma nova sensibilidade/proximidade afetiva com o país. 42 Assis, Machado de. Autores e Livr os, 11-10-1942:8. os Historiador es de autores e liVros 55 A par da atividade diplomática pode-se assinalar igualmente a função do magistério em faculdades, e em especial no Colégio Pedro II. Aí lecionam José Veríssimo, Arar ipe Júnior, Capistrano de Abreu, João Ribeiro e Carlos de Laet, que seria o diretor da casa, após sua reintegração no governo Venceslau Brás. O autor-historiador do suplemento literário é assim um erudito familiarizado com arquivos, um professor e também um homem de ação, com postos múltiplos na carreira política e/ou diplomática. Homem de ornal e de revistas, frequentador da ABL e do IHGB. Homem do mundo, espírito cosmopolita por viagens, leituras e pesquisas, tinha, contudo, suas raízes na terra e nos problemas brasileiros. Múltiplo em termos de perfil profissional e político, o autor-historiador é homenageado pelo suplemento por sua contribuição básica ao
país na área da história. É a “definição” dessa contribuição — seus temas, processos de elaboração e formas de divulgação — que o torna historiador. 56 História e Historiadores Trajetória Nome Família e estudos Trajetória política profissional 1. Francisco Varnhagen
Filho de sargento alemão que vem Luta ao lado de Pedro I em Porpara o Brasil em 1810 para trabatugal. (S.L. 9-1-1944) lhar em siderurgia. Em 1842 inicia carreira diplomática 1816-78 (62 anos) Vai para Por tugal com oito anos e de grande sucesso. Natural de São Paulo lá se forma engenheiro militar em Barão e visconde de Porto Seguro 1840. Volta para o Brasil em 1844. 2. João Francisco Lisboa
Filho de família pobre. É jor nalista, publicista e polemista. Filiado ao Partido Liberal. (S.L. 16-1-1944) Faz estudos com o prof. Sotero Funda e atua em vários jor nais do Deputado provincial por duas ledos Reis. Maranhão: O Brasileiro, Farol Ma- gislaturas. 1812-63 (51 anos) ranhense, Eco do Norte, Crônica Como autodidata torna-se advoSecretário de governo no MaraNatural do Maranhão do Norte. gado bem-sucedido. nhão. Morre em Por tugal Logo após chegar ao Rio segue É homem de província. Acusado de simpatias pela Bapara Portugal como comissionado laiada, retira-se temporariamente Vem para o Rio em 1855. do governo para realizar pesquisas da política. em arquivos e coletar documentos. 3. Barão do Rio Branco
Filho do visconde do Rio Branco, Tem passagem pelo jornalismo É iniciado pelo pai na política e na grande político e diplomata do quando dirige A Nação, em 1875, diplomacia. José Maria da Silva Paranhos Jr.
Império. com 30 anos. Tem longa e bem-sucedida carrei(S.L. 23-1-1944) Estuda no Colégio Pedro II. É professor do Pedro II: cadeira de ra, ligada às questões patrióticas 1845-1912 (67 anos) corografia e história do Brasil. do Amapá e Palmas. Faz estudos de direito em São Natural do Rio de Janeiro Paulo e no Recife, onde se forma Com a República, em 1891, substiem 1866. tui o conselheiro Antônio Prado no cargo de superintendente-geral na Europa da emigração para o Brasil. Ministro das Relações Exteriores de 1901 a 1912. 4. João Capistrano de Abreu
Filho de major. Nomeado oficial da Biblioteca Nacional (1875-80). (S.L. 6-2-1944) Faz estudos no Colégio dos Edu-
candos, Ateneu Cearense e Semi- Atua em vários jornais, no Ceará, 1853-1927 (67 anos) nário de Fortaleza. no Recife e no Rio ( O Globo, Jornal Natural do Ceará do Commercio); escreve para a reNo Ateneu, torna-se amigo de vista Kosmos. Guilherme Studart, futuro barão. É professor do Pedro II em 1883 Vai para o Recife em 1869, época na cadeira de corografia e história de glór ia de Tobias Barreto e Sílvio do Brasil. Romero. Fica cinco anos na cidade. Conhece a língua alemã. Vem para o Rio em 1875 com 22 anos. os Historiador es de autores e liVros 57 Referências Principais Referências co mo Obras destacadas institucionais e grupos comentadores historiador e outras
Em Portugal escreve na revista História geral do Brasil (reeditada João Ribeiro.
Usa a carreira diplomática para Panorama com Alexandre Hercula- pela Melhoramentos em 1927, pesquisas em arquivos portugueOliveira Lima (discurso na ABL). no e Oliveira Martins. 1933, com notas de Capistrano de ses e espanhóis. Abreu e do organizador Rodolfo É um dos criadores do IHGB. É o “criador ” da história pátria. Garcia). É patrono da cadeira de Oliveira É o segundo de nossos historiaLima na ABL. dores. É amigo do imperador Pedro II. Polemiza com João Francisco Lisboa. Em Lisboa torna-se amigo de Jornal de Timon (1852, 1o e 2ov.; João Ribeiro e Sílvio Romero. Obras históricas mais destacadas Alexandre Herculano. 1858, 3ov.). são os Apontamentos para a hisOliveira Lima.
tória do Maranhão e a Revolta de É patrono da cadeira no 18 da ABL, Vida do padre Anchieta (editada Ronald de Carvalho. Beckman, que integram o Jornal cujo primeiro ocupante foi José postumamente). de Timon. Veríssimo. Sua obra é reeditada, em 1864/65, Faz história regional que é estudo Em 1918 é homenageado com es- por Luís Carlos Pereira de Castro de costumes políticos; uma espétátua em São Luís pela Academia e Antônio Henriques Leal no Macie de Montaigne. Maranhense. ranhão. Polemiza com Varnhagen sobre a questão indígena. Membro do salão de Eduardo História do Brasil (preparado por João Ribeiro. Grande saber sobre a história Prado em Paris. seu sobrinho e por Max Fleiuss militar do Brasil e a história da Eduardo Prado. como livro escolar, por ser síntese geografia.
É a figur a nuclear do Itamaraty exemplar). Domício da Gama. desde inícios do século. Símbolo de saber e patriotismo. Efemérides brasileiras (livro de eruÉ presidente do IHGB. Pesquisador erudito que faz copiar dição e consulta). arquivos. Não é fundador da ABL por estar Verbete para a Grande Encyclofora do Brasil. Em 1900 é o 2o nome Na ABL é sucedido por Lauro édie. a ser eleito, na vaga de Pereira da Müller. Silva. Monumental memória sobre a Questão das Missões (1895, 6v.) e sobre a Questão do Amapá (1900, 7v.). Membro da “Academia Francesa” Descobrimento do Brasil (tese de João Ribeiro. Considerado o maior historiador do Ceará, com Araripe Jr. e Rocha concurso, 1883; memória no livro brasileiro. Humberto de Campos.
Lima. do Centenário, 1900). Estudioso do século XVI e escritor João Pandiá Calógeras. Membro do grupo da Revista Bra- História pátria (artigos de Kosmos, de capítulos e dissertações. sileira. Rio, 1905). Referência a Tancredo de Barr os Obra que cobre biologia, etnologia, Paiva, Bibliografia capistraneana, Recusa-se a participar da ABL, Ensaios e estudos: crítica e história, geografia, além de história. São Paulo, 1931. tendo sido convidado em 1896 por Rio, 1932 (1a e 2a séries) e 1938 Agnóstico. Machado de Assis. (3a série). Homem despido de vaidades e É sócio do IHGB. cheio de esquisitices. Após sua morte forma-se a Sociedade Capistrano de Abreu para divulgar sua obra. 58 História e Historiadores Trajetória Nome
Família e estudos Trajetória política profissional 5. Eduardo Prado
Filho de rica e aristocrática família Em 1880, escreve para o Correio Retorna ao Brasil após a Repúbli-paulista. Paulistano, jornal de seu ir mão ca para combatê-la como escritor (S.L. 13-2-1944) Caio. e jornalista. Forma-se em direito pela Faculda1860-1901 (41 anos) de de São Paulo em 1881. Escreve para a Gazeta de Notícias Natural de São Paulo do Rio (livro de crônicas de 1886: Viaja pelo mundo após for mado e Morre precocemente de febre Viagens). fixa residência em Paris. amarela em sua fazenda em São É diretor do Jornal do Comércio de Paulo São Paulo. 6. José de Alcântara Machado Filho do barão Brasílio Machado, Em 1895 é lente da faculdade; em
Faz carreira como vereador de Oliveira
professor da Faculdade de Direito 1925, professor catedrático; em (1911-16); deputado estadual de São Paulo. 1931-35, seu diretor. (1915-24); senador estadual (S.L. 20-2-1955) (1924-30). Forma-se nessa faculdade em Escreve impor tantes textos jurídi1875-1941 (66 anos) 1890. cos, entre os quais o Código Crimi- Em 1933 é eleito deputado consNatural de São Paulo nal Brasileiro. tituinte por São Paulo, sendo líder da bancada da Chapa Única. É definido como jurista. Em 1935 é eleito senador federal. 7. José Francisco da Rocha
Oriundo de família simples da Vila Em 1886 redige para a Gazeta É filiado ao Partido Conservador. Pombo
de Morretes. Paranaense, órgão do Partido De 1916 a 1918 exerce mandato Conservador. (S.L. 20-2-1944) Não há referências a estudos repolítico no estado do Paraná. gulares.
No Rio é professor da Escola 1857-1933 (76 anos) Normal. Em 1880 vai para Curitiba e em Natural do Paraná 1897 para o Rio. No Rio for ma-se bacharel em ciências jurídicas e sociais. 8. Oliveira Lima
Filho de cidadão português, aos É professor da Universidade Católi- Faz carr eira diplomática na Euro-oito anos vai viver em Lisboa. ca de Washington, par a a qual doa pa e nos EUA, mas indispõe-se (S.L. 12-3-1944) sua biblioteca. com Rio Branco. É aluno de Oliveira Martins, a 1865-1928 (63 anos) quem considera seu mestre. Conferencista e colaborador de Sua carreira político-parlamenNatural de Pernambuco muitos jor nais durante toda a vida. tar é bloqueada por Pinheiro Faz curso de diplomacia na Torre Morre em Washington Machado. do Tombo. Em 1909 apoia Rui Barbosa e
Com a morte do pai, em 1890, acaba aposentado da carr eira vem ao Rio e ingressa na carreira diplomática. diplomática. Em 1896 fora convidado por Casa-se com culta senhora perBarbosa Lima, governador de nambucana, que se tor na sua Pernambuco, a integrar sua secretária. equipe, mas r ecusou. Visita periodicamente Pernambuco, mas fixa residência em Washington. os Historiador es de autores e liVros 59 Referências Principais Referências co mo Obras destacadas institucionais e grupos comentadores historiador e outras
A casa de E. Prado em Paris é salão Fastos da ditadura militar (artigos Carlos de Laet. Monarquista e crítico da República.
para Eça de Queirós, Ramalho Or- escritos para a Revista de Portu- Pedro Lessa. Católico fervoroso. tigão, Oliveira Martins, Rio Branco, gal em 1890), cuja 1a edição é Olavo Bilac e Afonso Arinos. apreendida. Múcio Leão. Jornalista liberal e patriota. Membro do grupo da Revista Bra- A ilusão americana (1a ed.: 1895; 3a Vicente de Carvalho. Amigo de Machado de Assis. sileira. ed.: 1902 e 4a ed.: 1917). Ronald de Carvalho. Em 1896 toma parte nas ComemoÉ fundador da ABL, cadeira no 40, rações Anchietanas. cujo patrono é o visconde do Rio Branco. Sócio do IHGB, pouco antes de morrer. Correspondente do IHGB. Vida e morte do bandeirante (1a Levy Carneiro. Vocação de historiador que é atraíed.: 1929; 2a ed.: 1930; 3a ed.: do pela vida comum dos homens e Membro da ABL (1931) e da AcaAfrânio Peixoto.
1943). Livro que lhe dá ingresso não pelos grandes episódios. demia Paulista de Letras, onde na ABL. Getúlio Vargas. ocupava a cadeira no 1, criada por Especialista no período colonial da seu pai e cujo patrono er a seu avô. Outros livros: Biografia do rio Tietê. vida paulista. Membro da Sociedade Capistrano Católico (converte-se). de Abreu. Presidente do Conselho da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. Candidato por três vezes à ABL, é História do Brasil, 10v., Rio, 1915- Gustavo Barroso. Obra de extraordinário mérito pela eleito por intercessão de Laudelino 17. abrangência. Rodolfo Garcia. Freire para a vaga de Alberto de História da América, Rio, 1900. Autor trabalha com materiais puFaria, cadeira no 39, cujo patrono blicados por outros pesquisadores. é Varnhagen. História de São Paulo, Rio, 1918.
Morre em extrema pobreza. Morre sem tomar posse. É ligado ao grupo de Eduardo Prado Pernambuco e seu desenvolvimen- João Ribeiro. Conhecido por sua independência em Paris. to histórico, 1894. de vistas e opiniões. Humberto de Campos. Membro do grupo da Revista Bra- D. João VI no Brasil, 2v., Rio, 1909. Escritor erudito, fecundo e infatiGilberto Freire. sileira. gável. História da civilização, S. Paulo, Mário Melo. Um dos fundadores da ABL, na ca- 1921. Autor da melhor história regional deira no 39, cujo patrono é Varnhasobre Pernambuco. Evolução histórica da América Lagen. Toma posse em 1903. tina comparada à América inglesa, 12 conferências feitas nos EUA, Rio, 1914. 60 História e Historiadores
Trajetória Nome Família e estudos Trajetória política profissional 9. Alfredo Ferreira de Carvalho Estuda no Recife e, aos 18 anos, Serve na Escola Militar do Cea-vai
para a Alemanha, onde faz pre- rá e na do Rio, onde, em 1892, (S.L. 19-3-1944) paratórios. envolve-se na revolta da For taleza 1870-1916 (46 anos) de Santa Cruz. Forma-se engenheiro civil nos EUA, Natural de Pernambuco em 1894. Voltando dos EUA, fixa r esidência no Recife e viaja para a Europa. 10. Alexandre José Barbosa Filho de juiz, faz seus primeir os Professor de geometria analítica no
Positivista, republicano e abolicio Lima
estudos em várias cidades do país. Ceará em 1889. nista: é o presidente da Sociedade Abolicionista Republicana. (S.L. 2-4-1944) Em 1879 está no Rio e matricula-se na Escola Militar da Praia
Torna-se chefe republicano em 1862-1931 (69 anos) Vermelha. Fortaleza e secretário de Estado Natural de Pernambuco do 1o governo. Ligado a Benjamin Constant, torna-se positivista. Deputado constituinte pelo Ceará em 1890. Em 1897 forma-se engenheiro militar e bacharel em matemática e Em 1892, governador de Perciências físicas e naturais. nambuco. De 1896 a 1929 foi vár ias vezes deputado e também senador. 11. João Pandiá Calógeras
Neto de professor do Colégio Pedro Em 1891 é nomeado engenheiro Em 1897 é eleito deputado fede-II e filho de engenheiro. do estado de Minas Gerais. ral por Minas. (S.L. 9-4-1944) Estudou alemão em criança. É ministro da Agricultura 1870-1934 (64 anos)
(1914/15). Estudou no Colégio Pedro II, onde Natural do Rio de Janeiro foi aluno de Capistrano de Abreu. É ministro da Fazenda (1915-17). Em 1890 forma-se na Escola de É ministro da Guerra (1919-22). Minas de Ouro Preto, especialiVolta à vida política em 1933, zando-se nos estudos de minas de eleito constituinte. ferro e ouro. 12. João Ribeiro
Fica órfão e vai morar com o avô, Em 1885 presta concurso para a Integra o gr upo abolicionista e espírito liberal e dono de grande Biblioteca Nacional. republicano de Quintino Bocaiuva (S.L. 16-4-1944) biblioteca. e Alcindo Guanabara. Em 1887 faz concurso para o Colé(S.L. 12-7-1942) Estuda no Colégio Ateneu de Araú- gio Pedro II, onde tem a cadeira de É republicano militante após a 1860-1934 (74 anos) o e faz o secundário em Salvador. história universal. Proclamação.
Natural de Sergipe Interessa-se por pintura, música, Foi professor da Escola Dramática literatura e história. do Distrito Federal. Vem para o Rio em 1881 e torna-se Em 1895 vai a Berlim, onde edita a amigo de Sílvio Romero. revista Mundo Novo. Casou-se em 1889 e teve 16 filhos. Escreve para jornal durante toda a vida, com destaque para: O ImEm 1894, forma-se pela Faculdade parcial (1912), O Jornal (1920), de Direito do Rio. Gazeta de Notícias (1923), Jornal do Brasil (1925) e O Estado de S. Paulo. os Historiador es de autores e liVros 61 Referências Principais Referências co mo Obras destacadas institucionais e grupos comentadores historiador e outras
Membro do IHG da Bahia e do Rio Minas de ouro e prata. José Veríssimo. Sabe holandês, o que lhe perGrande do Norte.
mite acesso à documentação venturas e aventureiros, 1910 . Humberto de Campos. do período holandês em PerOliveira Lima. nambuco. É mais cronista que historiador, não tendo meticulosidade de pesquisa, nem cuidado de ideias. É eleito para o IHGB em 1908. “Independência e República”, dis- Oliveira Lima. Republicano radical. curso oficial do IHGB nas comemoPresidente do Instituto Histórico, Barbosa Lima Sobrinho. Acusado e preso por ocasião do rações da Revolução PernambucaGeográfico e Arqueológico de atentado a Prudente de Morais. na de 1817, Rio, 1917. Pernambuco. Toma parte nas lutas contra a Concorre à ABL em 1919, não senvacina no Rio. do eleito.
Converte-se ao catolicismo no fim da vida. s minas do Brasil e sua legislação. Humberto de Campos. Torna-se historiador pelo convívio com Capistrano de Abreu. política exterior no Império. J. Pires do Rio. Sobre o autor: Calógeras na opinião de seus contemporâneos, Gontijo de Carvalho, Roberto Simonsen e F. Sales de Oliveira (orgs.), 1934. É ligado ao grupo da Revista Bra- História do Brasil (cursos primário, Poeta, romancista, filósofo, or-sileira. médio e superior), Rio, 1900. nalista. Não está no Brasil quando da fun- História da civilização, 1a série, Escreve compêndio com Sílvio dação da ABL, sendo o 1o acadêmi- 1932; 2a e 3a séries, 1933. Romero. co eleito, em 1898. s nossas fronteiras, Rio, 1930 Polemiza com Carlos de Laet, em Toma posse no IHGB em 1915. (publicação oficial por encomen1895, no Comércio de São Paulo. da do Itamaraty).
É ligado ao círculo diplomático de É um dos promotores da reforma Rio Branco. ortográfica de 1907. Na ABL é substituído por Paulo Setúbal. 62 História e Historiadores Trajetória Nome Família e estudos Trajetória política profissional 13. José de Alencar
Seu pai foi político na época da Faz carreir a na Secretaria de JusIndependência e tomou par te na tiça e ocupa essa pasta de 1868 (S.L. 11-1-1942) Revolução Pernambucana de 1817. até 1870, no gabinete Itaboraí. 1829-77 (48 anos) Formado pela Faculdade de Direito Natural do Ceará de São Paulo.
14. Joaquim Nabuco
Filho do senador José Tomás Nabu- Em 1871 trabalha no escritório de Em 1876 é nomeado adido de co de Araújo. advocacia do pai. legação nos EUA. (S.L. 1 e 8-2-1942) Estuda no Colégio Pedro II. Após a República escreve para Em 1879 é eleito deputado-geral 1849-1910 (51 anos) ornais, em especial o Jornal do por Pernambuco. Inicia a faculdade de direito em São Natural de Pernambuco Brasil. Paulo e conclui no Recife em 1870. Torna-se abolicionista. Vem para o Rio em 1879. Com a República afasta-se da política, retornando à diplomacia no governo Campos Sales. Torna-se embaixador em Londres em 1905. 15. Alfredo D’Escragnolle
Filho do barão de Taunay, um dos É incorpor ado, como aluno, às tro- Eleito por Goiás, em 1872, para a preceptores do imperador Pedro pas que lutam no Paraguai. Câmara dos Deputados. Taunay
II e diretor da Escola Nacional de É convidado pelo conde D’Eu Em 1880 é reeleito por Santa (S.L. 12-4-1942) Belas-Artes. para secretário de seu Estado- Catarina. 1843-99 (56 anos) Estuda no Colégio Pedro II e faz -Maior, ficando no campo de bata- Com a República, passa a exercer Natural do Rio de Janeiro curso de ciências físicas e mate- lha até o fim da guerra. o jornalismo político em defesa máticas na Escola Militar. Redige o Diário do Exército. da Monarquia. Casou-se com a filha do barão de Torna-se professor da Escola Mi- Escreve no Jornal do Brasil e Vassouras. litar. outros. Em 1889 recebe o título de visconde. 16. Carlos de Laet
Estuda no Colégio Pedro II. Professor do Colégio Pedro II, Eleito deputado, em 1889, por afastado após a Proclamação da Mato Gr osso e Paraíba, não che(S.L. 3-1-1943) Forma-se em engenharia pela Es- República por sua crença monar- ga a tomar posse. cola Politécnica do Rio de Janeiro. 1847-1927 (80 anos) quista (1890).
Com a República afasta-se da Era conde papal. Natural do Rio de Janeiro É reintegrado no governo Vences- política. lau Brás, tornando-se diretor do estabelecimento. Membro do Conselho Superior do Ensino. Professor do Externato São Bento e do Seminário São José. Como jornalista trabalha desde 1876 em várias folhas. os Historiador es de autores e liVros 63 Referências Principais Referências co mo Obras destacadas institucionais e grupos comentadores historiador e outras
Membro do Partido Conservador. s minas de prata, 1a ed., 1877; 2a João Ribeiro. É católico. ed., 1896. É o patrono da cadeira de Macha-
Guerra dos Mascates, 2a ed., 1896. do de Assis na ABL. Integra o grupo da Revista Brasi- Um estadista do Império (3v.), Rio, João Ribeiro. Polemiza com José de Alencar leira, sendo um dos fundadores 1899. sobre o texto O jesuíta (1875). Oliveira Lima. da ABL. O abolicionismo, Londres, 1883. Tristão de Atayde. É ligado ao círculo de Rio Branco no O erro do imperador, Rio, 1886. Itamaraty. É membro do IHGB. É do Partido Conservador. retirada de Laguna, 1872. Joaquim Nabuco. É romancista de grande prestígio e reconhecimento: Inocência e É do grupo da Revista Brasileira Ronald de Carvalho. Mocidade de Trajano. e um dos fundadores da ABL, José Veríssimo. ocupando a cadeira no 13, cujo patrono era Francisco Otaviano.
Membro do grupo da Revista Brasi- A descoberta do Brasil, Rio, 1900. Humberto de Campos. Monarquista e católico. leira e fundador da ABL, ocupando Viriato Correia. Amigo do imperador Pedro II. a cadeira no 32, cujo patrono era Araújo Porto Alegre. Rodrigo Otávio. Foi perseguido por ocasião da Revolta da Armada em 1893. Presidente da ABL de 1919 a 1922. Presidente do Círculo Católico. 64 História e Historiadores Trajetória Nome Família e estudos Trajetória política profissional 17. Paulo Setúbal
Órfão de pai aos quatro anos, em Torna-se jornalista na época da família pobre de nove filhos. campanha civilista: jornal A Tarde. (S.L. 9-5-1943)
Muda-se da cidade de Tatuí para 1893-1937 (44 anos) São Paulo. Natural de São Paulo Faz estudos secundários e é agnóstico. Cursa a Faculdade de Direito de São Paulo. Sofre de tuberculose. 18. Gonçalves de Magalhães
Aluno do Colégio Médico-Cirúrgico Em 1837 volta ao Brasil e é Em 1833 é nomeado adido de 1a da Santa Casa do Rio de Janeiro, nomeado professor do Colégio classe em Paris. (S.L. 1-8-1943) onde se forma em 1832. Pedro II, que acaba de ser inau- Em 1836 afasta-se do cargo. 1811-82 (72 anos) gurado. É amigo de infância de Francisco Em 1842 é secretário de proNatural do Rio de Janeiro Sales Torres Homem. víncia de Caxias no Rio Grande Em 1876 é o visconde de Araguaia. do Sul. Em 1846 é eleito deputado pelo Rio Grande do Sul.
Em 1847 é nomeado cônsul-ger al no Reinado das duas Sicílias. 19. Afonso Celso
Filho do visconde de Ouro Preto. Após o exílio político, volta ao Rio e Em 1882, com 22 anos, é dededica-se ao jor nalismo, à advoca- putado-geral por Minas Gerais. (S.L. 7-11-1943) Em 1880 forma-se na Faculdade de cia e ao ensino. Direito de São Paulo. Torna-se abolicionista e republi1860-1938 (78 anos) É professor da Faculdade de Direito cano na juventude. Era conde papal. Natural de Minas Gerais do Rio de Janeiro por 40 anos. Após a República, afasta-se da vida pública e acompanha o pai no exílio. 20. Pedro Lessa
Seu tio er a amigo de Álvares de Em 1888 é professor concursado Em 1885 é nomeado secretário Azevedo e Bernardo Guimarães. da Faculdade de Direito de São da Relação em São Paulo. (S.L. 30-7 -1944) Paulo. Faz estudos primários e secundáEm 1891 é chefe de Polícia do
1859-1921 (62 anos) rios na cidade do Serro. Em 1907 é nomeado ministro do estado e deputado constituinte. Natural de Minas Gerais Supremo Tribunal Federal. Vai para São Paulo e forma-se em Integrou a Liga da Defesa Nadireito em 1883. cional. É colega e amigo de Júlio de Mesquita na faculdade. os Historiador es de autores e liVros 65 Referências Principais Referências co mo Obras destacadas institucionais e grupos comentadores historiador e outras
Ligado ao grupo do padre Leonel Os romances históricos: A marque- Humberto de Campos. Muito católico e também poeta. Franca. sa de Santos, O ouro de Cuiabá, Os João Ribeiro. irmãos Leme. Sucede João Ribeiro na ABL em
Cassiano Ricardo. 1934. Alcântara Machado. Valdomiro da Silveira. Membro do grupo da revista Redução da província do Mara- Sérgio Buarque de Holanda. É amigo do imperador Pedro II. Niterói, organizada em Paris por nhão, IHGB, 1848 . Ronald de Carvalho. Autor de Suspiros poéticos e sauPorto Alegre, Torres Homem e A Confederação dos Tamoios, Rio, dades, texto precursor do romanoutros (1836). Alcântara Machado. 1856. tismo. Era do Partido Liberal. O imperador no exílio, Rio, 1893. Múcio Leão. Foi o primeiro a receber o título de professor emérito da Universidade Era do gr upo da Revista Brasileira Porque me ufano de meu país, Rio, João Ribeiro. do Rio de Janeiro. e foi fundador da ABL, ocupando Laemmert, 1901. João do Rio. a cadeira no 36, cujo patrono era
Muito Muito católico católico,, torna-se monarmo narTese ao Concurso da História NaTeófilo Dias, Dias, poeta e seu amigo em quista. cional de 1914, 1914, IHGB. São Paulo. Foi presidente perpétuo do IHGB em substituiç substituição ão ao barão do Rio Branco. Era membro da ABL, na vaga de Introdução à Histór à História ia da civil ci vilização ização João Luís Alves. Lúcio de Mendonça (1910). da Inglaterra, Inglaterra, de Buckle, tradução Humberto de Campos. de Adolfo Melchert (1900). Era membro membr o do IHGB. IHGB. José Maria Belo. Estudos sobre Varnhagen e João Francisco Lisboa.
Primeir a página do do suplemento suplemento literár io Autor Autores es e Livro Livros, s, dedicado a Var Varnhagen, nhagen, 4, 9-1-1944. (Biblioteca Nacional)
Folha de rosto da História geral do Brasil, em sua 3a edição. (Autor es e Livros, 9-1-1944:23.) (Biblioteca Nacional) Foto de João Francisco Lisboa. (Autor es e Livros, 16-1-1944:37.) (Biblioteca Nacional)
Rio Branco em uma caricatura instantânea feita pelo inglês A. S. Forrest, quando este artista veio ao Brasil. (Autor es e Livros, 23-1-1944:56.) (Biblioteca Nacional)
Rio Branco aos cinco anos de idade e aos 30 anos, quando redator de A Nação. (Autor es e Livros, 23-1-1944:60.) (Biblioteca Nacional) À esquerda, Rio Branco aos 38 anos, quando cônsul-geral do Brasil em Londres; e à dir eita, o último instantâneo do barão tirado na avenida Central, que hoje tem o seu nome. (Autor es e Livros, 23-1-1944:60.) (Biblioteca Nacional)
Capistrano de Abreu em uma caricatura de José Cândido. Rio de Janeiro, 1926. (Autor es e Livros, 6-2-1944:71.) (Biblioteca Nacional) Foto da casa em que morou Capistrano de Abreu, hoje sede da sociedade que tem o seu nome. (Autores e Livros, 6-2-1944:73.) (Biblioteca Nacional)
anha. De pé, da al. aça Ar uco e Gr gel do Amar a Lima, tendo a seu lado Nab veir da, estão Domício da Gama e Gur , Oli , 12-3-1944:137.) vros
a a esquer es e Li eita, sentado eita par lioteca Nacional) utor À dir dir (A (Bib
Um grupo de acadêmicos. Em primeiro plano, Oliveira Lima (ao centro) e Salvador de Mendonça (à direita). Veem-se ao fundo, em ordem, Carlos de Laet, Silva Ramos, Sousa Bandeira, Afrânio Peixoto, Alberto de Oliveira, Lafayette Pereira, Afonso Celso, Coelho Neto, Pedro Lessa e Augusto de Lima. (Autor es e Livros, 12-3-1944:139.) (Biblioteca Nacional)
Reprodução de folha de rosto da revista dirigida por João Ribeiro, quando de sua estada na Europa, em 1896. (Autores e Livros, 16-4-1944:205.) (Biblioteca Nacional) Casa em que nasceu João Ribeiro, em Laranjeiras, Sergipe. (Autores e Livros, 16-4-1944:206.) (Biblioteca Nacional) 3 Os historiadores e seu métier “Um historiador precisa reunir as qualidades de filósofo, de escritor e de erudito.” José Veríssimo Os estudos históricos SERIA uma constatação trivial dizer que o que torna um autor historiador é a produção de textos históricos. Entretanto, pode-se partir dela como se parte de um problema, na medida em que se estabeleça como questão para a investigação o que está sendo chamado de “texto histórico”. Assim se poderá delinear o tipo de concepção de trabalho historiográfico que se desenvolve nas páginas de Autores e Livros. Ou seja, o exame do que as matérias do suplemento apontam como qualidades e
insuficiências do métier do historiador e a própria seleção de autores e livros classificados como vinculados à história nos permitirão refletir sobre o que — teór ica e metodologicamente — está sendo delineado, durante o Estado Novo, como a tradição da historiografia brasileira. A dificuldade para especificar o que constitui a contribuição histor iográfica acumulada até inícios dos anos 40 não é pequena, já que as distinções disciplinares não eram claras, sendo elas mesmas produto quer de interseções, quer da busca do estabelecimento de fronteiras. No Brasil, e este pode ser um dos r esultados da análise do suplemento, as décadas iniciais do sécu-lo XX parecem ter sido cruciais para o desenvolvimento desse processo no campo das chamadas humanidades. Os historiadores são um bom exemplo de produtores culturais em um amplo espaço do conhecimento, envolvendo biologia, etnologia, folclore, linguística e geografia, além da história. Eles 76 História e Historiadores escrevem sobre história da geografia ou geografia da história, produzem textos sobre flora e fauna brasileiras, estudam línguas indígenas e “olham” etnogr aficamente festas religiosas e populares, além de serem filósofos e literatos. Mas são esses mesmos homens, em sua polivalência, que estimulam a divisão e a especialização dos campos do conhecimento, apontando, inclusive, a necessidade de reformular cadeiras de ensino que reuniam assuntos de grande diversidade na área das humanidades, em geral, e da história, em particular. A complexidade que marca, nesse aspecto, as décadas iniciais do século XX é esti-mulante para se pensar os caminhos da história da História “no” e “do” Brasil. Não se tentará aqui, por conseguinte, fazer uma análise do conteúdo das obras dos autores selecionados, tarefa imensa e impossível, já que envolveria o estudo de um grande elenco de textos produzidos ao longo da trajetória intelectual de cada um deles. A estratégia escolhida, que procura impor limites ao trabalho realizado, é trabalhar com o conjunto de matérias produzidas pelos principais comentaristas de cada homenageado, todos eles, naturalmente, selecionados por Múcio Leão e sua equipe. Esses textos possibilitam traçar um “perfil de historiador”, pois os comentaristas procuram justamente caracterizar os valores e também as insuficiências da produção por eles definida como “de” história. Por isso, acreditamos ser esta uma possibilidade de aproximação frutífera, ainda que bem específica, dos caminhos que a historiografia brasileira percorreu durante determinado período de tempo e que o suplemento estava recuperando, construindo e divulgando.
Um bom ponto de partida, por ser simples, é observar “quando” e “em que” circunstâncias os textos históricos são produzidos. Em boa parte dos casos, eles são resultado de um longo processo, cuja origem pode ser tanto um cuidadoso planejamento, quanto o estímulo de fatos imprevistos. Em ambos os casos, contudo, o autor já atingiu sua maturidade profissional e intelectual; são políticos e diplomatas famosos, pro fessores e jornalistas reconhecidos que vão escrever sobre a história do Brasil. Observa-se também que os “historiador es” são como que impelidos ao métier por imperativos ético-políticos, associados, em maior ou menor grau, a um gosto apaixonado pela pesquisa em arquivos e bibliotecas. São homens, sempre generalizando, marcados pela ação e pelo combate de ideias, mas são também “eruditos”, palavra-chave para uma distinção primeira e capital. As humanidades, e em especial a história, como já foi observado, estão longe de ser umhobby de aristocratas decadentes ou políticos frustrados, pela razão básica que exigiam investimento anterior e nunca se desvincula-vam das questões políticas de fundo que assinalavam a trajetória do autor. os Historiadores e seu Métier 77 Muitas vezes os estudos históricos tinham estrita relação com a atividade profissional de seu produtor, sendo elaborados com objetivos “práticos” de municiar o exercício de sua atuação política no país (como é o caso de Calógeras), ou no exterior (como é o caso de Rio Branco). Outras vezes, as atividades política e jornalística, exercidas paralela e complementarmente, “instigavam” e “conduziam” a preocupações com a vida do país que se situavam em outro plano, “mais elevado e pro fundo”, como o dos “estudos históricos”. A observação de Ronald de Carvalho sobre João Francisco Lisboa é ilustrativa: “(...) na política e no jornalismo teve ocasião de sondar a alma popular e de ver o organismo social de sua terr a, de lhe seguir, portanto, a marcha evolutiva como parte integrante dela”.43 Dessa for ma, o suplemento apresenta o métier do historiador como um verdadeiro coroamento da trajetória intelectual de um autor, mantendo com ela uma relação de cumplicidade de extrema fertilidade. No caso da atividade política, muitos
comentaristas sugerem não só que os conhecimentos históricos tor nam a prática política mais eficiente e bem-sucedida, como também que a intimidade com a prática política é capaz de propiciar argúcia e clareza nas análises históricas. A política fora e podia continuar sendo um conduto para conhecer melhor o país, embora os mesmos comentaristas reconhecessem que a maior especialização do métier e as exigências crescentes da política produziam um afastamento inevitável e até necessário entre ambas. É evidente a congruência dessa postulação com a orientação de um regime que investe em um projeto cultural ambicioso e requintado, e cujo modelo de intelectual é o do homem engajado com as lutas de seu tempo, importando pouco a posição específica por ele assumida. É também evidente, por outro lado, a tensão entre esse elogio ao engajamento e o perfil de intelectual que o “grupo da Revista Brasileira” procurava afirmar, através da liderança de Machado de Assis e da criação da ABL. Considerando-se que um bom número de historiadores do suplemento integrava esse grupo, cujo ethos era o do “afastamento” de embates políticos em nome de uma postura intelectual mais profissional, é preciso ponderar com cuidado não só até que ponto o projeto da ABL foi mais ideal do que real, como até que ponto os escritores nele envolvidos conseguiram desenvolver estratégias para “separar” convenientemente seus espaços de atuação, de forma a fazer a política “das” letras e não permitir a política “nas” letras. 43 Carvalho, Ronald de. Opinião sobre João Francisco Lisboa, Autores e Livro s, 16-1-1944:44. 78 História e Historiadores É nesse sentido, pelo menos, que estamos interpretando o projeto do “grupo da Revista Brasileira”, que passa a constituir, sem dúvida, a vanguar da da intelectualidade no período que se estende de fins do século XIX a 1920. Só então, uma nova geração começa a emergir com força e, não por acaso, a investir exatamente contra o modelo da ABL, materializando nela e na produção de seus integrantes todos os males e atrasos da cultura do país. Ou seja, nos 30 anos que se seguem à virada do século, torna-se uma postura “política” — defensiva e protetora — para a intelectualidade excluir de seu seio clivagens que pudessem limitar ou obstaculizar sua crescente profissionalização. O momento era estratégico, já que o mercado de trabalho se expandia justamente quando o mercado político via-se impactado pelos desdobramentos
das grandes transformações trazidas pela Abolição e pela República. Procurar tratar essa convivência ambígua entre o manifesto “projeto apolítico” de uma geração que reúne nomes centrais da historiografia brasileira e o próprio projeto explicitamente político de Autores e Livros constitui um desafio instigante. O que estamos desde agor a sugerindo, a despeito do paradoxo inicial, é que, nos dois momentos, estamos envolvidos com uma intelectualidade que quer afir mar sua esfera de competência específica, para o que necessita de certa liberdade em relação ao campo do poder político, mas que não pode se afastar completamente desse campo por inúmeras e diferenciadas razões, que vão desde as relações de mecenato até a própria inserção política de seus componentes. Nesse sentido, acreditamos que, procurando determinar as “características” que, ao longo do tempo, vieram definindo a produção de um texto histórico, poderemos ajudar a esclarecer a dinâmica de aproximação e distanciamento entre trabalho político e trabalho intelectual e, principalmente, o que demarca o métier do historiador e o distingue de produtores de outros tipos de textos político-sociais. Os desbravadores da história do Brasil Não é casual que, quando Autores e Livros inicia a publicação de sua série sobre os historiadores, escolha como primeiro s homenageados os nomes de Varnhagen e João Francisco Lisboa. Eles têm precedência no tempo e são unanimemente reconhecidos como grandes figuras. O interessante é que, sendo contemporâneos, as trajetórias de vida desses dois homens e a análise que é feita no jornal sobr e sua produção historiográfica coloquem-nos como verdadeiros antípodas. os Historiadores e seu Métier 79 Varnhagen é um homem do mundo. Vivendo e estudando em Portugal desde os oito anos, quando volta ao Brasil, já formado em engenharia,
é reconhecido como intelectual consagr ado. Afinal, escrevia na r evista Panorama, que reunia o melhor da historiografia portuguesa do século XIX: Alexandre Herculano e Oliveira Martins.44 Embora não tendo origem aristocrática, termina seus dias com os títulos de barão e visconde de Porto Seguro. É diplomata muito bem-sucedido e homem de letras que, segundo seus comentadores, preza mais o segundo ofício que o primeiro. Segundo Oliveira Lima, Varnhagen capitaliza sua posição profissional — em especial no que ela permitia de acesso a arquivos — para realizar o que seria sua verdadeira vocação, ou seja, o trabalho historiográfico: “(...) a carreir a diplomática (...) ofereceu-lhe principalmente ensejo para indagações as mais valiosas em arquivos e livrarias”. Ou ainda, como se exprimia João Ribeiro: “Raras vezes um diplomata brasileiro aproveitou mais utilmente o seu tempo. Em Madri ou em Viena enchia os seus lazeres servindo altos interesses da pátria (...). Aqui ou ali, ditava ou anotava os livros mais valiosos, raros ou difíceis: Garcia da Orta, Montoya, Vespúcio, que tudo era o Brasil na sua imagem ou seus reflexos”.45 Já João Francisco Lisboa é o “homem de província, como já não existe mais”. Autodidata sem estudos regulares, fez-se jornalista e político nas lutas de sua terra natal, e seu trabalho como historiador é a rara e harmoniosa combinação de moral com política. A comparação do perfil e da pro dução dos dois autores que emerge das páginas do suplemento é, assim, muito reveladora. No caso de Varnhagen, iremos trabalhar com três artigos de João Ribeiro e com um estudo realizado por ele e por Sílvio Romero,46 e também com um texto de Oliveira Lima — o discur so de homenagem ao patrono de sua cadeira.47 Como o trabalho de historiadores de meados do século XIX é analisado por historiadores, 44 Falcon (1988:79-99). Na “Notícia sobre João Ribeiro” há referência à impor tância de um trabalho de Varnhagen aparecido na Panorama e lido pelo ainda muito jovem autor, que imagina escrever um poema: “Brasileida”. Autores e Livros, 16-4-1944:197. 45 Lima, Oliveira. Síntese de Varnhagen; e Ribeiro, João. Estudos sobre Varnhagen: primeiro artigo. Jornal do Brasil, 7-12-1927, Autores e Livros, 9-1-1944, respectivamente às páginas 24-5 e 22. 46 Os artigos de João Ribeiro, além do já citado, foram publicados no Jornal do Brasil em 20-111930 e 20-1-1932. O estudo com Sílvio Romero está no Compêndio de história da literatura brasileira, transcrito em Autores e Livros, 9-1-1944:26. 47 O discurso de Oliveira Lima, realizado na ABL em 1903, já foi citado e será aqui utilizado inúmeras vezes, sem repetição da referência, sempre a mesma.
80 História e Historiadores eles mesmos também homenageados e integrantes de uma geração distinta e ao mesmo tempo herdeira de seus antecessores? De forma geral, há um consenso de fundo quanto ao imenso valor de Varnhagen, embora, como seria razoável, o discurso de Oliveira Lima seja o mais pomposo. Afinal, tratava-se de “prestar uma das mais merecidas homenagens que reclamam os fundadores do nosso patrimônio intelectual”. Reconhecido, em primeir o lugar, como um dos responsáveis pela fundação do IHGB, Varnhagen é considerado “o mais notável dos nossos historiadores, portanto (...) o mais valente trabalhador da história nacional”. Nossa suspeição é de que a chave do elog io de Oliveira Lima esteja na palavra “trabalhador” e no sentido que ela vai ganhando ao longo do discurso. Como ele mesmo esclarece, não era lugar ou momento de criticar predecessores, em especial como Varnhagen, diplomata e historiador. O discurso tem, portanto, um enorme sabor autobiogr áfico, sobretudo quando Oliveira Lima acentua a preferência de Varnhagen pelo universo das letras, situando-a como a escolha mais difícil e justa. “Porque, ao passo que a literatura se torna cada vez mais árdua pela soma de conhecimentos que requer, a diplomacia torna-se cada vez mais fácil, pela soma de predicados que dispensa. Não é maldizer da diplomacia lembrar que (...) ela deixou de ser uma arte, ara tornar-se uma profissão.” Não deixando dúvidas quanto a suas próprias desilusões com a car-
reira, na qual se confronta com Rio Branco, e vendo-se compelido a optar pelo isolamento do próprio país, o novo acadêmico arremata, comparando “o” tempo de Varnhagen com o “seu” próprio tempo: “Os diplomatas dependem agora tão de perto e descansam tanto sobre o chefe da sua corporação, gozam assim de tão pouca iniciativa e autonomia, que já foram tratados de meros tocadores de certo instrumento antimusical que Rossini tinha em horror, e que a gravidade acadêmica me dissuade de mencionar.” Percurso inverso ocorrera com a carreira intelectual, especialmente a do historiador “moderno” que, a partir do século XIX, tinha que combinar a “circunspecção do pesquisador à habilidade do narrador”. Ao contrário os Historiadores e seu Métier 81 do diplomata, “(...) o historiador moderno carece de ser, além de um erudi-to, um artista: de descobrir ele mesmo as fontes, analisar-lhes o valor, saber aproveitar o manancial que delas brota (...)”. Mas caberia Varnhagen dentro desse perfil de historiador “moderno”? A sutil r esposta de Oliveira Lima é não. Se ele foi, sem contestação, “o cr iador da história pátria”, não foi o elaborador de “sínteses luminosas”, não foi o erudito e o narrador. Varnhagen não possuía o “dom admirável de comunicar vibrações às turbas desaparecidas” de um Michelet, ou a “extrema habilidade de reconstruir com um aglomerado de pormenores um caráter humano ou dele deduzir uma lei da evolução”, de um Taine. Faltava-lhe, para tanto, mais do que uma faculdade psicológica aguçada por sólida e moderna preparação científica; faltava-lhe uma obra coletiva em que se amparar. Na verdade, no Brasil, apenas naquele momento (inícios do século XX) os historiadores começavam a contar com um certo acúmulo de produção e com o necessário r espaldo ins-
titucional que a expansão do IHGB por alguns estados oferecia.48 O trabalho historiográfico é apresentado como indissociável de um esforço coletivo, pois essa é a for ma de afirmar uma “concepção particular do desenvolvimento pátrio”. Varnhagen não possuía, assim, as virtudes dos grandes historiador es: não era escritor de talento, não tinha sólida formação para ser arqueólogo ou etnólogo, o que se relacionaria ao fato de ser o único, em sua geração, a não revelar qualquer simpatia pelos indígenas. Paradoxalmente, entretanto, a criação da seção etnológica do IHGB estava ligada a seus esforços. João Ribeiro, isoladamente ou no texto com Sílvio Romero, reforça a apreciação de Oliveira Lima, propiciando uma visão melhor do que se entendia por métier do historiador. Com uma obra prolífica — mais de 100 publicações —, Varnhagen é considerado um autor secundário nos campos da história da literatura ( Florilégio da poesia brasileira e Épicos brasileiros) e da etnologia e linguística americanas.49 Seus trabalhos de maior merecimento estariam na área da “história geográfica da América”, onde oferecia contribuições importantes para a cartografia; na área da literatura por tuguesa da Idade Média, em que fazia estudos sobre o cancioneiro medieval; e sobretudo na área da história 48 Oliveira Lima cita o IHG de Pernambuco, Ceará, Bahia e São Paulo como iniciativas básicas para o incremento da produção historiográfica no Brasil. 49 O Florilégio da poesia brasileira (1850) tem uma importância bem maior para José Veríssimo, qu o considera a fonte de nossa história literária, tendo exercido influência sobre as análises “sociológicas” de Sílvio Romero. Essa valorização de Varnhagen está no cerne da polêmica entre Veríssimo e Romero, ocor rida entre 1906 e 1909. Ver Ventura (1991, cap. 4). 82 História e Historiadores do Brasil, onde avultava sua grande História geral do Brasil, e também suas História das lutas com os holandeses e História da Independência. Ele foi um “pioneiro” da pesquisa documental. Foi dessa forma que marcou seu ofício em um momento em que o “romance histórico” ainda dominava as literaturas portuguesa e brasileira. Por isso era definido como “o segundo em mérito de nossos historiadores”, sendo o primeiro, não cita-
do, Capistrano de Abreu. Os estudos de João Ribeiro sobre a História geral do Brasil, escrita “lenta e sucessivamente de modo quase definitivo”, feita e refeita em duas edições esgotadas já em inícios do século, demonstram que a sanção máxima aos méritos de Varnhagen foi dada não por ele ou por Oliveira Lima, mas pelo próprio Capistrano. Em 1906, o maior de nossos historiadores iniciara um trabalho de reprodução e anotação do texto original que, infelizmente, fora interr ompido por um incêndio nas oficinas da Laemmert, que só deixara a salvo um volume já impresso. Não são esclarecidas as razões pelas quais o empr eendimento não fora retomado por Capistrano, mas, no Jornal do Brasil de 7-12-1927, João Ribeiro saúda o fato de, 21 anos depois, a Casa Weiszflog (Companhia Melhoramentos de São Paulo) ter iniciado a reimpressão da antiga e gr ande obra, segundo ele ainda não excedida. Varnhagen era um “sábio”, a quem faltavam, contudo, a elegância de expressão e o r itmo, que tornam agradável a leitura. Mas o comentarista enfatiza que não se tratava de cobrar elo-quência, que aliás estragava muitas obras nacionais. Considerava o historiador pesado, “sem a graça ou a sutileza dos pensamentos”. Esse “pecado original”, por conseguinte, não podia desaparecer nessa terceira edição de sua obra. Mas ela possuía o grande mérito de incorporar as notas originais de Capistrano e as novas notas de Rodolfo Garcia, a quem caberia maior responsabilidade pelo trabalho que continuaria, em 1930, com o lançamento do segundo volume, e, em 1932, com o lançamento do terceiro. Ambos os anotadores são vistos como “arqueólogos da história”, sendo a eru-dição de Rodolfo Garcia considerada digna de seu pr edecessor. Além das notas, João Ribeiro destaca a inclusão no primeiro volume de “papéis inéditos de importância”, de alguns retratos e fac-símiles, num belíssimo trabalho tipográfico. O ano de 1927, aliás, como o lançamento da História geral do Brasil ates-tava, parecia ter sido dos melhores para a história nacional. Ele então elenca: a publicação dos trabalhos de Alberto de Faria, Tobias Monteiro e Pandiá Calógeras; a reedição recente da primeira Visitação do Santo Ofício pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça; e, por fim, a preciosa coleção patrocinada por Paulo Prado, que imprimir a o Diário de Pero Lopes com as anotações de Eugêos Historiadores e seu Métier 83
nio de Castro.50 Para mais de uma dessas iniciativas Rodolfo Garcia havia contribuído, o que seria suficiente para consagr á-lo como er udito, quanto mais não fosse pelas palavras de recomendação do “colega Afonso Celso”. Portanto, tomando-se os principais textos dos comentaristas-historiadores do suplemento, fica evidente que se reconhece em Varnhagen o homem que lança as bases do conhecimento histórico no Brasil e que a História geral do Brasil era a sua obra máxima, ainda não suplantada — até os anos 30 — em sua abrangência. Pelo que dizia respeito à nossa história colonial, a que se somava o texto da História da Independência, podia-se ter uma ideia da amplitude do trabalho de Varnhagen. Por outro lado, como historiador, ele se caracterizava pela “paixão da investigação”, vale dizer, pelo esforço na localização, no trato e na divulgação de documentos. Possuía fortemente as qualidades de um “arquivista”, mas faltava-lhe a capacidade de comunicar e de reconstituir. Oliveira Lima vai além, situando Varnhagen na categoria de historiadores que os alemães incluem no que chamam de “escola prag mática”. Ou seja, uma escola que vai além da simples exposição dos fatos, sendo capaz de produzir reflexões sobre eles, mas que não se dispõe a ser uma “história filosófica”, em que dos acontecimentos são deduzidas leis que dão inteligibilidade à marcha das sociedades humanas. Varnhagen, por essas avaliações, era “classificado” como um historiador a quem não se podia atribuir filiação a qualquer “filosofia da história”, fosse ela idealista, naturalista ou evolucionista: não era um Taine, para quem os fatores naturais (o meio em destaque) explicavam o estado moral de cada povo e de cada época. Contudo, em meados do século XIX, as teorias evolucionistas já exerciam g rande influência no campo intelectual brasileir o e Varnhagen esteve relacionado com o debate da tese da fusão das raças, através, por exemplo, da sua polêmica com Lisboa. Não há comentários nos estudos publicados sobre esse importante aspecto de sua obra, embora se mencione um parco conhecimento etnológico e, em especial, uma posição ímpar de desamor aos índios. Nada, entretanto, que se refir a à sua franca preferência por uma história branca e portuguesa. Talvez se possa entender a exclusão de Varnhagen de um tratamento “filosófico” da história, a partir das críticas que lhe são feitas quanto ao estilo, pesado, gr ave, desagradável mesmo. E, mais ainda, das críticas quanto à mo-déstia de suas sínteses/interpretações. Sendo um precursor do trabalho cien-50 No artigo escrito para o Jornal do Brasil, João Ribeiro atribui a primeira Visitação a Fernão Cardim, então reitor do Colégio Jesuítico da Bahia, e não a Heitor Furtado de Mendonça. Essa reedição é de 1925, havendo uma outra em 1932, realizada pela Sociedade Capistrano de Abreu. Agradeço a Ronaldo Vainfas esta correção e infor mação suplementar. 84 História e Historiadores tífico de consulta à documentação histórica — um mestre r econhecido pelo
próprio Capistrano —, Varnhagen não se enquadrava no modelo mais corrente de “filósofo da história”. Por outro lado, pela forma como usava a documentação e pelos resultados que dela obtinha, também não era um historiador “moderno”, como sustentava Oliveira Viana. Assim, embor a reconhecido por seu trabalho fundado em pesquisa documental, não possuía as características estilísticas e críticas do que estava definido como um historiador “completo”. Inequivocamente, o que o perfil de Varnhagen deixa claro é que falar de história e de historiador é, em primeiro lugar, falar de documentos e, nesse caso específico, de documentos escritos existentes em ar quivos europeus, os únicos capazes de, nessa época, oferecerem bases sólidas ao trabalho historio gráfico. Também fica claro por que, a partir de meados dos anos 20, há um revival de Varnhagen e do interesse pela história do Brasil. Além do aparecimento da 3a edição da História geral do Brasil, o suplemento indica como fonte bibliográfica importante para o conhecimento do autor dois números da Revista da Academia (81 e 83), onde são publicados textos sobre a vida e a obra do historiador, um deles de autoria de Basílio Magalhães. Reunidos, em 1928, formaram o volume Varnhagen, título também de outro texto, desta feita de Rodolfo Garcia, editado no mesmo ano.51 João Francisco Lisboa é bem uma espécie de antítese funcional de Varnhagen. Vivendo na mesma época, os autores se correspondem e chegam a polemizar sobre a questão dos índios e sua contribuição.52 O interessante, ao se analisar o material publicado na série “Historiadores”, é poder produzir uma visão contrastante dos dois, com o objetivo de ressaltar como se estava lendo o trabalho historiográfico produzido em meados do século XIX e as características apontadas como necessárias ao métier. Os estudos mais impor tantes do suplemento dedicados a Lisboa são os de João Ribeiro e Sílvio Romero (do mesmo Compêndio de história da literatura brasileira, bastante utilizado, como se vê), Ronald de Carvalho (texto de sua Pequena história da literatura brasileira), José Veríssimo (ensaio a propósito da 51 Bibliografia de Varnhagen. Autores e Livros, 9-1-1944:1. 52 Lisboa critica as ideias de Varnhagen sobre a desimportância dos índios no volume 3 do Jornal de Timon, e Varnhagen, numa estada em Lima, já em 1867, responde com o opúsculo Os índios bravos e o sr. Lisboa. Gama, A. C. Chichor ro da. Revista de Língua Portuguesa (24), em Autores e Livros, 161-1944:41. Lisboa, ao longo de seus escritos, modificara suas próprias posições sobre o tema, passando tanto a criticar a escravização dos índios, quanto a fugir de um indianismo romântico. Sobre este e outros aspectos da obra do autor, ver Janotti (1980/81:197-210).
os Historiadores e seu Métier 85 conferência de Pedro Lessa sobre Lisboa, proferida na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo, em 1918), Luís Carlos Pereira de Castro (discurso em louvor a Lisboa),53 e Oliveira Lima (artigo de 1918, em O Estado de S. Paulo) . Diversamente de Varnhagen, a produção de Lisboa se concentra em alguns poucos livros. O mais importante é o Jornal de Timon, publicado em três volumes e conhecido como uma contribuição à área dos “estudos e discursos político-sociais”.54 O título da obra é intrigante e vale a pena observar a explicação do autor, embora longa: “O leitor perguntará agora naturalmente a que propósito este nome de Timon. Que sei eu? Esse nome, ilustrado por um dos mais belos talentos da literatura moderna, ertenceu na antiguidade a um homem singular e estranho que, azedado pela injustiça e ingratidão (...), votou um ódio tão entranhável ao gênero humano e de maneira o reputava entregue aos crimes e aos vícios, que se pagava mais do desprezo que da estima dos homens. De mim o digo que, sem aspirar ao renome e glória do espirituoso Timon arisiense (...), espero, ao menos, não ser acusado da feroz misantropia do ateniense... Timon vai escrever sem pretensões de qualidade alguma, não um livro, mas um simples jornal, e todo o seu empenho será expor com singeleza e lisura o que a observação
e a experiência, ajudadas de alguns poucos e interrompidos estudos, lhe têm podido ensinar.” 55 53 Luís Carlos Pereira de Castro e Antônio Henriques Leal haviam reeditado, em 1864/65, no Maranhão, a obra completa de Lisboa, em quatro volumes. O discurso referido foi publicado na Revista da Academia (81):63. Também o discurso de Pedro Lessa, comentado por Veríssimo, foi publicado na Revista da Academia (10). Como se observa, o ano de 1918 representa uma referência importante para os textos sobre Lisboa, pois é quando se inaugura em São Luís uma estátua em sua homenagem, gerando maior número de apreciações sobre o autor. 54 O Jornal de Timon ganhou uma bela reedição em 1995 da Editora Companhia das Letras, com organização e introdução de José Murilo de Carvalho. 55 Gama, citando Lisboa, em Revista de Língua Portuguesa (24). Autores e Livros, 16-1-1944. 86 História e Historiadores Estilo jornalístico, como convinha a Lisboa, cheio de ironia e ceticismo, o texto se anunciava como fruto da experiência e não da erudição. Uma feroz crítica de costumes, composta por dois volumes que saem em 1852 no Maranhão, e por um terceiro volume, de 1858, no qual se estuda a revolta de Beckman, que é publicado em Portugal. Integrando essa obra estariam seus “estudos históricos”, particularmente os Apontamentos para a história do Maranhão. Além deste, a obra deixada inédita sobre a Vida do padre Antônio Vieira. O curioso é que parece ter-se desenvolvido uma certa disputa entre os comentaristas sobre que parte do trabalho de Lisboa seria mais valiosa. Enquanto Veríssimo, citando e acompanhando Gonçalves Dias (romântico e maranhen-se), defende a singularidade e acuidade da crítica político-social de Timon, João Ribeiro, Pedro Lessa e Oliveira Lima insistem no pioneirismo e no valor dos “estudos históricos”, representados pelos Apontamentos. Contudo, a discordância acaba por enfatizar algumas convergências exemplares entre as avaliações. Lisboa é considerado um publicista e político por excelência. Ligado ao Partido Liberal e conduzido para as letras após farta experimentação na política de sua província, sacudida violentamente por disputas partidárias, ele chegara a ser acusado em 1840 de envolvimento com a Balaiada. É, pois, “ralado de desgostos”, sem escola e já maduro que se torna escritor-
-historiador, segue para o Rio e para Portugal, onde, como comissionado do governo e substituindo Gonçalves Dias, é “incumbido oficialmente de coligir documentos para a história do Brasil”. Sua produção, por tanto, até a ida para Portugal, não deriva de um investimento básico em documentação histórica, embora se r essalte que ele consultou todos os papéis disponíveis no Maranhão. Como o próprio Lisboa sanciona, ao assumir-se como Timon, suas reflexões nascem principalmente da experiência e da observação dos homens e povos de sua terra. O que a disputa esclarece, para a ótica deste trabalho, é o critério que distingue o que se vem chamando de “estudos históricos” e de “estudos político-sociais”. Ronald de Carvalho, José Veríssimo e Pedro Lessa, por exemplo, consideram o Jornal de Timon um estudo de “psicologia política”, com a finura e a ar gúcia do escritor que sabe sondar a alma popular. Veríssimo destaca que, entre os literatos da primeira geração romântica, onde situa Lisboa, era comum a inspiração religiosa e mor al, mas não o “moralismo” político combativo, em que se constrói uma “ficção meio r omanesca, meio política”. Ronald de Carvalho chega mesmo a compará-lo , guardadas as proporções, a um Montaigne. Além disso, todos esses analistas os Historiadores e seu Métier 87 são unânimes em ressaltar que Lisboa produz obra que nunca foi usada para “cavações”. Mas são as apreciações de João Ribeiro com Sílvio Romero, e as de Oliveira Lima, que explicitam o “maior” valor dos “estudos históricos”. Inovando na perspectiva historiográfica de sua época em vários aspectos, Apontamentos sobre uma história do Maranhão constituíram bem mais do que uma crônica de costumes políticos de uma “corte de aldeia”. Escrevendo sobre a história de sua província, Lisboa revelava erudição, ironia, malícia, atenção a problemas etnogr áficos e poder de síntese próprios dos g randes historiadores. Ele falava, de fato, de
todo o Brasil, e sua dedicação à pesquisa documental, ainda no Maranhão, tornava a obra bem mais do que um “discurso político”. Essa vocação, aliás, iria se confirmar em Portugal com a redação da Vida do padre Antônio Vieira, confirmando seu gr ande talento. Para Oliveira Lima, Lisboa sabia enxergar nos arquivos do passado nacional mais do que “uma série de sucessos militares ou um rol de capitães-generais e vice-reis, descobrindo e aprofundando os aspectos sociais e econômicos”. Lisboa, por conseguinte, não tinha a grandeza de Varnhagen, mas possuía méritos estilísticos e analíticos que este não alcançava. Ambos eram “desbravadores”, e se Varnhagen destacava-se por seu trabalho na construção institucional dessa área do saber, ligando-se à fundação do IHGB (do qual Lisboa é sócio), e dominando a historiografia de sua época, não consegue deixar de ser classificado como um “colecionador de fatos”, com escasso talento de narrador. Já Lisboa, cuja obra era mais valiosa que extensa ou marcada por vínculos político-institucionais de destaque (ele vem para o Rio muito tar-diamente), produz reflexos tão argutos quanto renovadores e cativantes. É exatamente por isso que Oliveira Lima o considera “(...) um precursor da moderna escola científica da história, sem verbosidades ocas, sem chinesices ridículas e sem gongor ismos filosóficos”. Lisboa, como Varnhagen, não se vincularia à vertente da “filosofia da história”, olhada com desconfiança pelas análises produzidas no período posterior à Primeira Guerra e divulgada por Autores e Livros nos anos 40. Pode-se dizer, inclusive, que, do ponto de vista teórico, Lisboa é até mais valorizado que Varnhagen, por anunciar um enfoque que, sem deixar de se centrar no político, era capaz de dar atenção aos aspectos socioeconômicos e, sem deixar de privilegiar os atores políticos — o Estado e a classe política —, conseguia incluir “o povo comum”. Varnhagen, contudo, era imbatível no aspecto do rigor da pesquisa e da divulgação documental, que definiam o núcleo do métier do historiador. 88 História e Historiadores E era através desse trabalho que a história se distinguia da produção de ficção literária e de um ensaísmo político-social muito difundido e apreciado. Não incluídos na série “Historiadores”, mas compartilhando com Varnhagen e Lisboa o fato de pertencerem à “primeira geração romântica
brasileira”, estão os nomes de Go nçalves de Magalhães e José de Alencar, considerados por Autores e Livros como tendo contribuído para os estudos históricos. Carioca, o primeiro, e cearense, o segundo, eram ambos homens de respeitada carreira política, conservadores por formação e católicos fervorosos. Os números do suplemento a eles dedicados, como seria de esperar, concentram-se no papel marcante que desempenharam no romantismo. No caso de Gonçalves de Magalhães, os artigos do jor nal informam sobre a existência de divergências a respeito de um r eal pioneirismo do autor no movimento. Em um trecho do estudo de Sérgio Buarque de Holanda sobre ele, enfatiza-se que seu prestígio intelectual deveu-se mais à sua influência na administração do país e à sua amizade com o imperador do que à qualidade de sua obra. Os seusSuspiros poéticos (1836), embora trazendo os temas românticos pela primeir a vez para o país, seriam um marco insuficiente para assinalar o início do romantismo no Brasil.56 Alcântara Machado, outro comentarista, segue a mesma linha e considera-o um “clássico retardatário”, fazendo-lhe muitos reparos.57 A imagem de Magalhães que as páginas do suplemento fixam é, portanto, a de um literato que foi superestimado por seus vínculos políticos. Mas, a par dessa imagem está também a do “político-historiador” que, na qualidade de secretário do então presidente da província do Maranhão — Caxias —, escreveu um trabalho sobre a Balaiada, movimento que presenciou. Ou seja, na mesma trilha de Lisboa, mas dele muito se distanciando enquanto pesquisador e analista de nossa vida política, Magalhães produz um texto memorável na trajetória de nossa historiografia.58 Alencar, ao contrário, é consenso como figura fundamental do romantismo brasileir o, movimento considerado um marco intelectual de todas as formas de criação cultural verdadeiramente nacionais.
56 Holanda, Sérgio Buarque de. Gonçalves de Magalhães e o romantismo brasileiro. Autores e Livros, 1-8-1943:54. 57 Machado, Alcântara. Gonçalves de Magalhães em nosso romantismo. Autores e Livros, 1-81943:56. 58 Sobre esse aspecto da obra do autor, ver Alencastro (1989). os Historiadores e seu Métier 89 O que explica a inclusão dos dois como autores que contribuíram para os “estudos históricos” é um tipo de pro dução muito pontual na carreira de ambos. No caso de Gonçalves de Magalhães, definido basicamente como poeta e teatrólogo, dois textos são comentados. O primeiro é a “Revolução da província do Maranhão”, publicado na Revista do IHGB em 1848, e o segundo, A Confederação dos Tamoios, em edição imperial de 1856. Este acabou por tornar-se mais famoso, justamente porque seus críticos de época o consideravam unanimemente “medíocre e enfadonho”, o que produziu uma polêmica que envolveu diretamente, em defesa de Magalhães, o próprio imperador Pedro II. No caso de José de Alencar, o livro que explica sua inclusão é o romance histórico As minas de prata, publicado em primeira edição de seis volumes em 1877. Gênero muit frequentado, no século XIX, o romance histórico tem ampla aceitação entre o público leitor da época e, como se verá, continuará tendo sucesso no Brasil das primeiras décadas do século XX. Quando João Ribeiro, em 1933, escreve um artigo comentando esse trabalho de Alencar, o que ele busca caracterizar são justamente as fronteiras entre um “gêne-ro literário” e o trabalho do historiador, que não deveriam ser confundidas. Em tom muito cuidadoso, o articulista insiste justamente na questão central que demarcava as contribuições de Varnhagen e Lisboa, diferindo-os daquela dos ficcionistas: “O historiador exige documentos, mas o romancista contenta-se apenas com o estímulo inicial de qualquer história”.59 Capistrano de Abreu e o “faro da verdade” “Antes de Capistrano, havia monografias históricas, crônicas mais ou menos interessantes, memórias e anais
sem grande nexo e com escassa crítica, nem sempre objetiva, sem o devido aproveitamento do material existente.” Este pequeno trecho de artigo de Pandiá Calógeras publicado no número do suplemento em homenagem a Capistrano de Abreu60 dá bem a dimensão do lugar por ele ocupado nas avaliações que lhe são dedicadas. 59 Ribeiro, João. Três estudos: II — As minas de prata. Autor es e Livros, 11-1-1942:2. 60 Calógeras, João Pandiá. Capistrano de Abreu. Autores e Livros, 6-2-1944:76. 90 História e Historiadores A historiografia brasileira, mas não só ela, como se verá, divide-se em dois tempos: antes e depois de Capistrano. Nesse sentido, existem os seus antecessores, entre os quais está incluído Varnhagen, e os sucessores do gr ande mestre que formou toda uma “nova” geração, que poderia ser chamada, com precisão, de historiadores. O primeiro aspecto que a leitura dos textos do suplemento deixa claro, por tanto, é que, com Capistrano, nasce o saber histórico no Brasil e que sua figura é que conclui ou conforma de modo acabado a distinção entre o “homem de letras” e o pesquisador da ciência da história, embora ambos os papéis pudessem estar reunidos, ainda, em um mesmo indivíduo. Sendo Capistrano nitidamente identificado como “o” marco de afir mação de um saber histórico, podemos considerar também o período em que produz seus textos — 1880 a 1920 — como crucial para se pensar as características pelas quais esse saber foi sendo definido. A data de sua morte e a imediata formação da Sociedade Capistrano de Abreu, destinada a reunir e publicar as obras de seu patrono, seriam como que eventos simbólicos de uma espécie de cronologia da história da História do Brasil. Falar de história a partir dos anos 20 é, por isso, falar de um saber delimitado num campo intelectual maior, que estabeleceu suas fronteiras tanto em relação à pr osa de
ficção quanto aos chamados “estudos ou ensaios político-sociais”. Esse saber passa a ter profissionais “especializados”, que, além da ABL e do IHGB com suas respectivas revistas, possuía uma associação alternativa e bem específica: a Sociedade Capistrano de Abreu. Vale ressaltar que o ponto que queremos caracterizar aqui é a constituição da história como um campo de estudos — com um método “científico”, um objeto e uma escritura próprios — e uma disciplina, mas que ainda terá que per correr outros caminhos para se transformar plenamente em matéria escolar.61 Isso porque praticamente inexiste ensino secundário mais ampliado no país e ainda não se for maram as faculdades de filosofia, que datam da reforma de Francisco Campos em 1931. O exame das avaliações produzidas sobre o trabalho de Capistrano pode se constituir num excelente indicador de como a “autonomização” do saber histórico foi vivenciada por seus contemporâneos, tornando-se uma estratégia valiosa para uma discussão historiográfica. Essas avaliações têm início com o traçado do perfil físico, psicológico e profissional do “maior historiador brasi-61 O processo de constituição da história como “disciplina”, como um campo de estudos autônomo e como matéria “ensinável” na França é examinado por Furet (s.d.:109-35). os Historiadores e seu Métier 91 leiro”, aspectos que são relacionados às características de sua própria produção, seja ela histórica ou ultrapasse essa classificação.62 Assim, o segundo aspecto interessante a assinalar, considerando o conjunto do suplemento, é que o “herói” da historiografia brasileira aparece também com suas “fraquezas”, elas mesmas explicadas e associadas aos pontos fortes de seu trabalho intelectual. Capistrano de Abreu — homem sem vaidades, míope, versátil e volúvel — era um intelectual que gostava de estudar, aprender e pesquisar. Vivia em bibliotecas e, na ver dade, não se interessava tanto em escrever e ensinar. Embora sua obra fo sse numerosíssima,63 era em grande parte composta por prefácios, traduções, reedições, excursos e alguns capítulos e dissertações. Ou seja, Capistrano produziu pouco e de forma muito fr agmentada. Seu reconhecido “grande saber”, para João Ribeiro, não se traduzira em nenhuma história geral, como se poderia esperar. Por isso mesmo ele resolvera anotar o texto de Varnhagen, de muito maior fôlego. Segundo ainda o mesmo comentarista, Capistrano não er a um conhecedor de nossa história: não “gostava” de Tiradentes ou da Guerr a Holandesa; o século XIX era, para ele, “um livro fechado a sete selos”; não se interessava pelos dois reinados, pela Guerra do Paraguai e muito menos ainda pela República. Capistrano era “um estudioso do século XVI”. Citando João Ribeiro:
“Era pois um arqueólogo de nossa história: índios, capitanias, jesuítas, primeiros governadores, rimeiro povoamento e primeiras migrações constituíam o melhor das suas preocupações.” 64 Capistrano, nessa ótica, era um escritor que escolhia temas e assuntos e os esclarecia com er udição, o que por si só não o distinguia tanto de seus “antecessores”. O que o tornava então tão excepcional aos olhos desses comentaristas, a ponto de só ser equiparado a Machado de Assis, no campo literário: definitivo, universal e referente organizacional? 62 Três estudiosos, principalmente, contribuem com farta matéria para esse número: João Ribeiro, com quatro estudos escritos para o Jornal do Brasil (14-8-1927; 18-12-1927; 1-1-1930; 1-11-1933); João Pandiá Calógeras, no ar tigo já mencionado, e Humberto de Campos, com “Capistrano de Abreu”, 6-2-1944:74-5. Este último é muito útil par a o que se deseja discutir nesse item e será usado amplamente. 63 O suplemento indica: Paiva, Tancredo de Barros. Bibliografia capistraneana. São Paulo, Tip. do Diário Oficial, 1931 (é uma separata do tomo 4 dos Anais do Museu Paulista) . 64 Ribeiro, João. O descobrimento do Brasil. Jornal do Brasil, 1-1-1930, quando de sua reedição pela Sociedade Capistrano de Abreu, Autores e Livros, 6-2-1944:70. 92 História e Historiadores A grandeza do Capistrano-historiador aparece situada, a nosso ver, em duas dimensões, que, na terminologia de Humberto de Campos, são definidas como “o faro da verdade” e “o processo de convencer”. É valioso seguir esse comentarista e as imagens que ele elabora sobre o métier do historiador, refletindo acerca do trabalho de Capistrano de Abreu. O ponto de partida, em congruência com inúmeros textos já referidos neste capítulo, é a identificação do paciente e minucioso trabalho nos arquivos. É o convívio com os documentos que afasta o historiador do ficcionista e do pesquisador imaginoso. A “verdade” histórica — que existia objetivamente e podia ser descoberta — assentava-se nessa base
material que vinha sendo construída por outros infatigáveis “investigadores” desde o século XIX, levantando e copiando uma série de in folios em arquivos europeus e brasileiros. Capistrano, aliás, segundo João Ribeiro, muito se dedicou a essa tarefa, preparando um imenso material para a nova produção da história que se faria depois dele. O que o distinguia dos demais era o fato de possuir um certo “faro” para a “verdade” histórica, que o tornava capaz de, percorrendo e manuseando os mesmos documentos e arquivos já frequentados por gerações de pesquisadores, descobrir, por exemplo, a História do Brasil, de frei Vicente do Salvador (1887), ou identificar o Princípio e origem dos índios, de Fernão Cardim (1881). Capistrano possuía uma “acuidade” para confrontar e analisar documentos de acordo com a época em que foram escritos que o tornava único no trato arquivístico e no esclarecimento de inúmeras questões controversas de nossa história. São reveladoras as metáforas do comentarista. A pesquisa histórica era, para Capistrano, como a flor esta em que o índio americano se em-brenha “ouvindo” os r umores da natureza. Ou ainda, como os mares navegados por Colombo, direcionada por sua “previsão”. Isto é, Capistrano trabalhaorientado por um instrumental que lhe permitia “rastrear” a “verdade” contida nos documentos, mas que nenhum de seus antecessores ou contemporâneos “adivinhava” como ele. Como exemplo Humberto de Campos cita o texto de O descobrimento do Brasil, sua tese de concurso (1883), que a Sociedade reeditara: “o pr estígio da lógica e a for ça, ou melhor, a fr aqueza dos documentos existentes” permitem a Capistrano r esolver a questão obscura e decisiva de a quem devia caber a glória oficial do descobrimento do Brasil. O “faro” da verdade — fruto de inteligência e de treinamento — não era tudo em Capistrano, embor a já fosse o suficiente. Completava-se com um “processo de convencer”, uma for ma de escrita que devia ser analisada com cuidado. É sugestivo que seja feita uma comparação com os chamados “antecessores” para melhor destacar a singularidade de Capistrano nessa dimensão os Historiadores e seu Métier 93 ainda mais inovadora. A questão era que, enquanto todos os demais entravam nas demonstrações com ideias preconcebidas, só apresentando documentos para confirmar um ponto preestabelecido e conhecido pelo leitor, Capistrano tudo analisava e cotejava, expondo vários pontos de vista conflitantes com o mesmo cuidado, zelo e até paixão. Sua demonstração da “verdade” construía-
-se ao termo de muitas “viagens”, onde ele exibia e destruía, passo a passo, várias possibilidades, até chegar “à verdade” que sustentava e exibia ao leitor. Como nossa no ssa própr ia estr estr atégia atégia de exposição dos comentários de Humberto de Campos já deixou claro, estamos enfatizando que as “virtudes” identificadas em Capistrano destacam destacam o uso que ele faz do do mét m étodo odo crítico e da narrat narr ativa, iva, própr io de uma concepção “moderna” “moder na” de história.65 história.65 O método método críti-co — núcleo da chamada escola metódica francesa, também chamada de “positivista” — sustenta um novo critério de verdade que, por estar fundado em prova documental consistente consistente (escrita, contempor contemporânea ânea ao evento, evento, passível passível de confrontaç confr ontação), ão), permite per mite o esclarecimento esclarecimento dos “fatos”. A “verdade dos do s fatos” — aquela que Capistrano estaria estabelecendo — exigia procediment pr ocedimentos os capazes capazes de gar antir antir objetividade objetividade e neutr neutr alidade por parte par te do do historiador. histor iador. Assim, Assim, ele não poderia assumir preconceitos que conduzissem conduzissem sua pesquisa pesquisa para a confirmação co nfirmação de ideias e valores valor es que esposasse e desejasse defender, ainda que com finalidades morais louváveis. A histór história, ia, como ciência, não não pro curaria curar ia nem produziria uma “verdade ética”, francamente engajada com o posicionamento intelectual (político, religio reli gioso so etc. etc.)) do pesquisador. pesquisador. Daí o método crítico exigir a exposição neutra neutra das alternativa alternativass dos vários vári os atores ator es em conflito. É essa essa dimensão dimensão met m etodol odológ ógica ica que celebra celebra a concep co ncepção ção de uma “verdade positiva” — presente nos fatos e que pode ser apreend apr eendida ida de forma for ma neutr neutr a — que distinguiria distinguiria o saber histórico históri co de Capistrano. Capistrano. Mas, Ma s, para além dessa pr pr imeira imeir a etapa etapa do do trabalho historiog histor iográfico ráfico,, situava-se a da interpretação do sentido desses “fatos” estabelecidos. Essa segunda dimensão dimensão se explicitaria explicitaria na for ma pela qual qual o historiador histor iador narra narr a o que aconteceu, aconteceu, segundo segundo um plano onde ele seleciona, or dena e relaciona 65 Ricardo Benzaquem de Araújo possui um estudo sobre Capistrano de Abreu em que, trabalhando com dois textos textos de O descobrimento descobrimento do Brasil (o de 1883 e o de 1900), 1900), mostra como co mo o histor historiador iador produziu pro duziu,, no primeir pr imeiro, o, um tratado de crítica documental documental e, no segundo, uma síntese síntese narrativ narr ativaa sociologicamente orientada. Ver Estudos Ver Estudos Históricos. Histór icos. São Paulo, Vértice, 1
(1):28-54, 1988. É interessante assinalar que Humberto de Campos, de forma inteiramente diversa, faz, a nosso ver, a mesma análise. 94 História e Historiadores vários vário s “fatos” “fatos” entre si, dando um sentido sentido ao “tempo” “tempo” em que eles se pro duziram: recortando reco rtando o “tempo” “tempo” cronol cr onológ ógica ica e espacialmente espacialmente.. É o que CaCapistr pistr ano faz com a histór ia do Brasil Br asil no século XVI. XVI. Outros pesquisadores, entre os quais avulta Varnhagen, já vinham tratando a documentação histórica com cuidados que anunciavam esse método crítico, crí tico, razão pela qual Oliveira Lima o considera int i ntegr egrant antee de uma “escola pragmática”, isto é, interessada na determinação da “verdade dos fatos”. Contudo, Varnhagen não interpretava os fatos. Ele é classificado como um “colecionador “colecio nador de fatos”, fatos”, alinhados alinhados ao longo lo ngo do tempo e, portan por tanto, to, despro desprovidos vidos de um sentido sentido especial para o leitor. Justament Justamentee por tent tentar ar r ealizar essa operação oper ação — de integr integrar ar “fatos” “fatos” econôeconô micos e culturais culturais a “fatos” políticos — é que Lisboa Lisboa é considerado co nsiderado por Oliveira Oliveir a Lima um exemplo exemplo mais aproximado apro ximado de histor historiador iador “moderno”. “moderno ”. Ma Mass tratava-se tratava-se de um precursor, precurso r, pois a “verdade” produzida pela nar nar rativa de Lisboa Lisboa não era er a propriamente pro priamente a “verdade dos fatos”. O que o interessava era produzir um relato que justificasse a “verdade ética” que desejava sustentar. Ele assumiu um posicionamento político claro e engajado em seus Apontamentos seus Apontamentos sobre a história do Maranhão. do Maranhão. Era um crítico da elite política de seu tempo, produzindo um texto convincente convincente e esclarecedor, mas em que todos os o s fatos selecionados e considerados co nsiderados ori o rient entavam-se avam-se pelo objet o bjetivo ivo preest pr eestabelec abelecido ido por po r suas convicções. convicções. Sua classificação classificação como “moralista “mor alista”, ”, o que não não é feito de for ma alguma em tom pejor ativo ativo ou o u acusat acusatór ório, io, é um bom indica i ndicador dor do quão distandistante ele se encontrava de Capistrano. Lisboa não é um histor historiador iador “moderno”, “moder no”, justament justamentee por dar um sentido ético-pedagógico à sua atividade, o que se traduz em seu método de uso do material do cumental cumental — que que não é crítico cr ítico —, e em sua for ma de
narrar, narr ar, comprometid compro metidaa com seus valores valor es e orient or ientada ada por por demandas demandas políticas do present pr esente. e. Ele Ele está preocupado preocupado com a questão questão da r epresentação epresentação e com co m os os abusos do poder que geram r evoltas, nesses nesses casos justas justas e compreensíveis. com preensíveis. É nessa ótica, e com a observação o bservação da Balaiada Balaiada e da Praieir a, que Timon Timon vai escrever. É um crítico crí tico de costumes, donde donde sua aproximação com Montaigne, um dos exemplos de concepção “clássica” de histór história. ia. Nem Nem Lisboa, bom exemplo do uso da história como co mo um “espaço “espaço de experi experiências” ências”,, nem Varnhagen, Varnhagen, que, segundo segundo o próprio pró prio Capistrano, Capistrano, não formulava for mulava teor teorias ias e não “compr eendia” eendia” os fatos, embor a pudesse pudesse “estabe“estabelecê-los”, deram um sentido sentido “moderno”, “mo derno”, isto é, científico à história. histór ia. Esta Esta é a inovação de Capistrano, Capistrano, que pode ser ainda melhor analisada analisada pelas observações do estudo de Humber Humber to de Campos. os Histor Historiador iadores es e seu seu Métier 95 Mét ier 95 Estando Estando claro o aspecto aspecto met m etodol odológ ógico ico do trabalho de Capist Capistrr ano, o comentarista pr pr ocurava esclarecer suas contri contribuições buições como int i ntérpr érpret etee do sentido sentido de nossa história histór ia colonial. col onial. Para tanto, tanto, utiliza utiliza seu estudo estudo sobre sobr e o desbr desbr avamento avamento e o povoamento de nossa terr a,66 no no qual Capist Capistrr ano demonstraria trar ia suas ideias ideias inovadoras em r elação às teor teorias ias evolucionistas muito muito em voga vog a na vir virada ada do do século XIX XIX para o XX. XX. Esse Esse ponto pode po de ser extremamente impor tant tantee para pensar a questão questão da história históri a da História História do Brasil, por que nos nos permite per mite uma dupla dupla perspectiva de análise do trabalho de Capistrano e, portanto, também de seus “sucessores”: uma perspectiva mais metodológica — de investigação crítica cr ítica documental documental —, marcada pelo positivismo e sua concepção de “verdade” —, e uma perspectiva mais teórica — o que se está chamando de “interpretação” —, que, a nosso ver, estaria justamente se afastando e recusando um determinismo evolucionista, seja ele de Buckle, Comte, Spenc Spencer er ou out o utro ro autor autor influente influente no período.67 per íodo.67 Nesse sentido, é sugestivo observar que o que Humberto de Campos
aponta aponta como pioneirismo pioneir ismo na análise análise de Capist Capistrr ano é o fato fato de ela inaugurar inaugur ar um tipo de visão de nossa história que combinaria combinari a fatores naturais naturais e sociais, pro duzindo duzindo uma espécie de “ponto “ponto de equilíbrio” o u de relação dialética dialética que não não se confor ma nem com as matrizes evolucionistas — do meio e da raça —, mais em voga, nem com perspectivas voluntaristas/idealistas.68 Só compreendendo o contexto em que Capistrano produz esses textos, o período que vai de 1880 a 1920, é que se pode avaliar o “feito” que o comentarista aponta quando escreve: 66 Como já j á mencionamos, Humberto de Campos utiliza utiliza a r eedição eedição de O descobrimento do Brasil, realizada em 1929 pela Sociedade Capistrano de Abreu. Ela reúne tanto a tese de concurso de 1883, quanto o texto de 1900 publicado no livro do Centenário e que tem como subtítulo: “Povoamento do solo; evolução social”. No artigo de Ricardo Benzaquem, já citado, trabalha-se exatamente distinguindo distinguindo essas duas duas produções pro duções par par a caracteri caracterizar zar Capistr Capistr ano como “investigador “investigador histór ico” e “narrador”. “narr ador”. Seguindo Seguindo as sugestões de Ricardo Ricardo e refletindo sobre sobr e os coment com entário árioss de Humberto Humberto de Campos, procuraremos destacar um outro aspecto envolvido na reflexão da historiografia brasileira. 67 François Furet (s.d. (s.d.)) destaca destaca no artigo citado citado a r elação entr entr e o “método cr ítico” da histór história ia e os ideais positivistas lato sensu do século XIX. Bourdé e Martin (1989, cap. 8) assinalam como a “escola histór histórico-metódica” ico-metódica” fr ancesa ancesa (1870-1930) (1870-1930) é abusivamente chamada de positivista. po sitivista. Chamam Chamam a atenção então então para par a o fato fato de os “historiador “histor iadores es positivistas” positivistas” dessa escola escola r ecusarem ecusarem toda especulaç especulação ão filosófica, filo sófica, construindo sua identidade identidade em oposição às tradições providencialist pr ovidencialistas as e de evolucionismo r acionalista, acionalista, sendo clarament clar amente, e, mas não assumidament assumidamente, e, influenciados influenciados pelo histor historicismo icismo alemão. 68 Sobre a importância dos “cientificismos” na virada do século XIX para o XX, ver Ventura (1991) e também Ortiz (1985). 96 História e Historiadores “Ele foi, pode-se dizer, o primeiro a tomar em consideração os fatores naturais para explicação dos fenômenos sociais e os fenômenos sociais como fatores de limites geográficos.” A “moderna” história de Capistrano desenvolvia-se no “tempo”(não era um “espaço de experiências”, experiências”, um um laborat labor atór ório io para par a demonstr demonstr ação de ideias e/ou valores), valor es), definido definido cronol cr onológ ógica ica e espacialment espacialmente. e. A “geografia” “geog rafia” e a “histór “história” ia” só poderiam poder iam ser distinguidas analiticamente nessa perspectiva.
Capistrano Capistrano interpreta interpr etava va a evolução social so cial do Brasil no século XVI XVI como que “situand “situando” o” aconteciment acontecimentos os em “lugar es”, tudo tudo transcor r endo numa dimensão tempor temporal. al. A própria pró pria “cronolo “cr onolo gia” era, er a, portanto, portanto, inseparável da ideia de “espaço”, mas — e este é o ponto essencial — a própria ideia de es-paço não era “natural”. O espaço espaço não era er a produt pro dutoo exclusivo exclusivo da “natureza”, “natureza”, mas, como ela, sofria a conformação do social.69 Por essa razão, inclusive, Capistrano era considerado por Calógeras um importan impor tante te nome para o desenvolvimento desenvolvimento da própria pró pria “geogr “geo grafia” afia” como ciência no Brasil. Tendo Tendo traduzido traduzido “grande “gr andess livros livr os alemães”,70 alemães”,70 havia divulgado divulgado um conhecimento conhecimento novo e “melhor que o dos ori o riginais”. ginais”. Com ele, “a literatur literatur a geográfica” geog ráfica” deixara de ser ser um amont amo ntoado oado de números e nomes, convertendo-se convertendo-se num manancial manancial de elementos para se compr eender eender “a ativiatividade biológica biológ ica e humana ligada ao quadro quadro materi material al da criação”. cr iação”. Capist Capistrr ano era um “antr “antr opogeóg opog eógrafo rafo”, ”, antes antes mesmo desta desta designação designação ter sido criada. A essa visão expandida, acresciam-se ainda seus estudos no campo etnoló etnológico gico,, que que inspirariam inspirari am — dos métodos métodos aos ao s resultados resultados — os trabalhos que se realizariam realizar iam posterio rment rm entee no Museu Nacional. Nacional. O que importa assinalar e discutir, neste último aspecto, não é tanto o fato de Capist Capistrano rano ser ou o u não um nome r ealmente ealmente impor tant tantee para a constituição tituição de um um campo do saber geogr geo gráfico áfico no Brasil, e sim o fato de os argumentos usados usados na defesa defesa dessa dessa proposição proposi ção convergir converg irem em para os mesmos mesmo s 69 Bourdé e Martin (1989, cap. 4), ao comentarem o trabalho de Bodin, sugerem que ele trataria a geogr geo grafia afia como uma “memór ia artificial” da história, história, já que permi permitiria tiria situar situar os o s aconteciment acontecimentos os em “lugares”. “lugar es”. Bodin não não limitaria li mitaria a histór história ia a uma cronolog cro nolog ia, vendo-a vendo-a como série de eventos eventos que se manifestam manifestam no espaço. espaço. É sugestiva sugestiva a aproximação apro ximação que se pode fazer com co m a noção no ção de “lugar de memória” de Pierre Nora, compreendida como uma metodologia. 70 Os livros a que Calógeras se referia eram: Wappeus, J. F. A F. A geografia geografi a física fí sica no Brasil. Brasil . ed. cond. Rio de Janeiro, Janeir o, 1884; e Sellin, Selli n, A. W. Geografia Geografia geral do Brasil. Rio de Janeiro, Janeiro , 1889. 1889.
os Historiadores e seu Métier 97 pontos daqueles relacionados à história: a ruptura com uma tradição de “colecionadores” (de números, de nomes, de acontecimentos), e a relação bilateral de influências entre natureza e sociedade. Do ponto de vista da historiografia, Capistrano estaria inaugurando uma “nova” geração, expressa na existência de “seguidores” e da própria associação que levava seu nome, cujo trabalho reunia, a nosso ver, a postura metodológica própria da tradição positivista e a postura “teórica” própria da tradição historicista, conhecida por exemplos alemães e pela escola histórica francesa. Responsável pela pesquisa “científica” garantida pelo “método crítico”, e afastando-se de qualquer especulação “filosófica”, essa escola não só demarcara o campo do saber histórico na França, como fora responsável por sua transfor mação em disciplina “ensinável” nos vários níveis de escolarização. De certo modo, o que se está sugerindo nesta análise das avaliações da contribuição de Capistrano de Abreu é que ele estaria exercendo, no Brasil, um papel funcional equiparável, guardando-se as proporções, ao de Gabriel Monod, “gr ande referencial” da escola histórica. Isso porque coube a Monod uma espécie de “magnetismo moral” em relação à profissão de historiador na França (Bourdé & Martin, 1989:185-8), embora não fosse ele o principal responsável pela institucionalização da disciplina nas escolas, e sim outros historiadores como E. Lavisse e C. Seignobos. Capistrano, como se viu, apesar de professor do Colégio Pedro II, “não gostava de ensinar”, e sim de pesquisar. Além disso, sua produção — em volume e diversidade de assuntos tratados — estaria muito aquém do que seu talento podia oferecer. O que seu gênio trouxe para a historiografia no Brasil não fo i, portanto, uma contribuição em termos de conheci-
mentos “substantivos”. Ele é até mesmo criticado pela parcialidade de suas escolhas “temáticas” e por seu trabalho fragmentado, embora coerente. Bons exemplos de como Capistrano produzia eram seus textos jornalísticos, reunidos em dois volumes, publicados com o título Ensaios e estudos (crítica e história), no Rio, em 1932 e 1938. O primeiro, apresentado à ABL pelo conde Afonso Celso como dos mais interessantes da coleção que se editava, reunia textos sobre Caxias; Antônio José, o Judeu; o centenário da abertura dos portos e outros.71 Mas em quaisquer dos campos em que 71 Sobre os “trabalhos avulsos” do primeiro volume de Ensaios e estudos, ver Ribeiro, João. Os ensaios e estudos. Jornal do Brasil, 1-11-1933, em Autor es e Livros, 6-2-1944:70. 98 História e Historiadores Capistrano se aplicou — história, geogr afia, linguística —, seus analistas do suplemento reconhecem um mesmo rigo r metodológico e uma mesma concepção interpretativa de objeto de estudo que — é isso que destacam — não se encaixava nos “cientificismos” deterministas cor rentes. É preciso, portanto, como Ricardo Benzaquem de Araújo apontou, distinguir essas duas faces de Capistrano e, como estamos sugerindo, ver nelas tanto o “empiricismo” metodológico que marca a produção histórica em nível internacional, quanto uma concepção de organização da sociedade que, no caso do Brasil, teria sua especificidade na recusa dos determinismos rígidos do meio e da raça que inferiorizavam o país. A “nova” história científica de Capistrano de Abreu enfrentava o mesmo universo de questões com que a produção intelectual de sua época se debatia. Para produzir sua resposta, recortou um objeto próprio — a história da nacionalidade brasileira —, consagrou-lhe um método que era universal e postulou uma interpretação que era original. A história do Brasil era produto de fenômenos físicos e sociais: o homem sendo limitado e ao mesmo
tempo limitando a natureza, o que impedia qualquer noção determinista de futuro ou ideia de passado “mítico” não comprovável por documentação confiável. Se, nessa concepção, a “história” e a “geografia” fazem parte de uma mesma totalidade é porque os próprios conceitos de tempo e de espaço são construções humanas. A história da “terra” brasileira, a história nacional, é a história do descobrimento, do desbravamento e do povoamento, sem determinismos geográficos ou raciais e sem voluntarismos da ação humana. A erudição: entre a fazenda e o boulevard Varnhagen foi um “trabalhador” da história pátria; Lisboa foi um precursor de temas e estilos, capaz de interpretações instigantes; Capistrano foi o historiador “moderno”, rigor oso no método e competente na narrativa, vale dizer, na atribuição de sentido aos fatos. Além disso, e por causa disso, Capistrano tornou-se figura referencial, razão pela qual, após sua morte, formou-se uma associação com seu nome, destinada a divulgar seus trabalhos, ou seja, a divulgar um novo “modelo” de fazer história. Capistrano, que não quis ser fundador da ABL porque não gostava de pompas, deu origem a uma sociedade “alternativa” ao IHGB. Uma sociedade que se propunha renovar a prática historiográfica e a fazer “seguidores”. Mas as “esquisitices” do historiador nunca o afastaram da convivência do “grupo da Revista Brasileira” e dos intelectuais de sua geração. Seus os Historiadores e seu Métier 99 contemporâneos, pares e interlocutores eram os homens que produziriam cultura — história, inclusive — “ao lado” de Capistrano. Observando com atenção as páginas do suplemento, pelo menos no que se refere aos historiadores, talvez se possa sugerir que a categoria mais usada para defini-los seja a de “eruditos”. Não sendo “profissionais” da história — são por ofício diplomatas, professores, ornalistas —, dedicam-se a esse campo do conhecimento de forma sistemática e apaixonada, acumulando um grande saber, cuja principal fonte de legitimidade é o trabalho de pesquisa documental: o trabalho de consultar, reunir, criticar e “copiar e fazer copiar documentos
manuscritos”. Esse tipo de erudição é assim uma for ma de acumulação de conhecimentos que não deriva de estudos formais e que exige esforço longo, regular e direcionado.72 O que distinguiria fundamentalmente o trabalho historiográfico daquele realizado por outros intelectuais seria essa relação da pesquisa, da crítica e da interpretação de fontes, que exigia a identificação, a classificação e o uso dos documentos. O historiador, como José Veríssimo advertia, era também um “escritor” — precisava dominar a língua e possuir estilo — e um “filósofo” — tinha que dar sentido às fontes reunidas e tratadas por sua pesquisa. Mas essas duas qualidades eram exigências que se aplicavam a qualquer produtor cultural, enquanto a “erudição” era própria dos estudos históricos, apontando para sua especificidade em relação aos estudos sociopolíticos e aos ensaios em geral, nos quais o intelectual exercia a crítica e a interpretação sem recorr er à pesquisa documental. A história, citando ainda uma vez Veríssimo, era “desenterrada do pó dos arquivos”, não sendo apenas fruto do pensamento. Mas não se devia entendê-la como uma obra de “colecionador de fatos”, donde as exigências e os debates sobre as qualidades de “filósofo” que o historiador precisava igualmente possuir. O erudito precisa, como de ar, da pesquisa documental, e por isso é com fr equência um homem cosmopolita, que viaja e se estabelece no exterior para recolher fontes. Só que seu trabalho primordial é a produção da história pátria, a busca dessa identidade, o que dá bem a medida de seus vínculos com sua terra e com os problemas que ela enfrenta e enfrentou. Enfim, o “erudito”, como diz Tristão de Atayde de Eduardo Prado, era o homem que estava entre a fazenda e o boulevard. 73 72 Sobre as “qualidades do historiador”, remetemos ao texto de José Veríssimo, “Um historiador político: o sr. Joaquim Nabuco” (in: 1976a:99-114). 73 Atayde, Tristão de. Eduardo Prado, sempre vivo. Autores e Livros, 31-8-1941:37. 100 História e Historiadores É esse espaço simbólico que boa parte dos pares de Capistrano irá
povoar, ainda que sem o cientificismo da escola metódica, por alguns chama-da positivista, e sem as regras da narrativa historiográfica “moderna”. Um certo número deles — aqueles com que iremos trabalhar agor a — terá suas vidas e obras impactadas pelo advento da República, o que os levará à atividade de escritor, movidos pelo desejo do combate político por uma causa. Seus textos voltam-se para o passado, como os de Lisboa, com uma nítida perspectiva “presentista”, e com o sentido da defesa de uma “verdade-ética”. Contudo, eles não são mais “historiador es” de meados do século XIX, o que implica novas exigências para a consecução desse objetivo político. Ou seja, os intelectuais que produzem estudos classificados como históricos nesse período estão convivendo, por um lado, com uma situação particular de crise profunda no campo do poder, cuja marca é a incerteza política. Esse fato tem, como se verá, desdobramentos no que se refere aos critérios de “verdade” histórica. Por outro lado, eles integram o gr upo dos que participam do processo de aprimoramento da especificação do que seja produção da história no campo intelectual maior. Por isso, “atenderão” a essas demandas de forma muito variada, possuindo as qualidades de erudito, escritor e de filósofo em graus muito diferenciados. O paradigma, no caso, seria a postura e o trabalho de Capistrano, que estaria sistematizando e divulgando uma prática historiográfica que combinava de forma nova e exemplar tais qualidades. Serão esses mesmos intelectuais-historiadores, na maioria acumulando ainda as designações de poeta, romancista ou crítico literário, que formarão a ABL — sua referência or ganizacional básica —, ocupando suas primeir as cadeiras e escolhendo patronos que assegurem vínculos com seus antecessores, segundo a feliz ideia de Joaquim Nabuco. O grupo de autores aqui reunidos possui assim um franco engaamento político, que transborda para as páginas de seus textos. O que pode tornar interessante, do ponto de vista da análise historiográfica, sua abordagem é observar que tipos de comentários são feitos sobre tais trabalhos — considerados “clássicos” dos estudos históricos —, produzidos
com a intenção política clara de defender uma forma de governo. Isso porque, embora no período do Estado Novo o comprometimento político do autor seja até louvado, é justamente na época em que essas obras são produzidas que começa a se postular, de forma nítida, a exigência da “neutralidade” do texto histórico, o que está associado às virtudes da erudição. Nesse sentido, as obras de autores como Eduardo Prado, Joaquim Nabuco, Carlos de Laet, Taunay e Afonso Celso estarão marcadas pela tenos Historiadores e seu Métier 101 são, de difícil equilíbrio, entre o historiador e o político. Portanto, a questão em foco no suplemento não é a crítica a uma “literatura monarquista” e às preocupações de um autor com a defesa de valores que lhe são caros. Ela é bem mais delicada, situando-se na “forma” historiográfica de expressão do engajamento político, que não pode resvalar para a pro dução de “panfletos”, descuidados e apaixonados. O historiador, aceito pelo suplemento como um homem que não é politicamente indiferente, precisaria encontrar procedimentos capazes de controlar sua “simpatia”, de forma que sua análise não fosse deformada e sua escrita não fosse pr econceituosa. De modo ger al, todos os autores citados teriam cumprido essa exigência, embora de forma muito diferenciada entre si. Seus textos, que precisam ser sempre situados no contexto muito particular em que foram produzidos, além de associados a suas próprias trajetórias de vida, conseguiram trazer contribuições aos estudos históricos, até mesmo porque não escamotearam simpatias. Sem dúvida, os dois autores mais reconhecidos eram Eduardo Prado e Joaquim Nabuco, ambos de famílias aristocráticas, dedicando-se aos estudos históricos após a Proclamação da República e como forma de rejeitá-la.
Prado, nesse sentido, fora um radical. Residindo em Paris, na famosa rue de Rivoli, reagiu imediatamente ao acontecimento político escrevendo uma série de artigos publicados na Revista de Portugal (de dezembro de 1889 a junho de 1890), sob o pseudônimo de Frederico S. Causando sensação e curiosidade no Brasil, esses textos foram r eunidos em Fastos da ditadura militar no Brasil, cuja primeira edição foi apreendida.74 Praticamente na mesma ocasião, ele escreveu seu mais famoso trabalho, A ilusão americana (de 1893), onde condenava a forma republicana “copiada” dos Estados Unidos, denunciando o “expansionismo yankee” frente aos países latino-americanos. Mais pela crítica à República do que pela denúncia da política externa norte-americana, o livro também foi confiscado pelo governo. A atuação política de Eduardo Prado, o conteúdo de seus livros e o contexto inicial do período republicano são analisados de forma conjunta pelos articulistas que escrevem sobre este homenageado. O ponto de convergência é o retorno do autor ao país para o exercício de um combate mais eficiente de ideias, seu desligamento da vida boêmia e da imagem de dandy e 74 A segunda edição é de 1902, quando Eduardo Prado já havia falecido e Campos Sales estava no poder. 102 História e Historiadores seu engajamento decisivo, que culmina com sua doença e morte em fazenda no interior de São Paulo: sua verdadeira “casa”. Seus textos são avaliados como exemplos da for ça, coragem e argúcia de quem rapidamente percebeu os riscos a que o Brasil ficou exposto log o após a Proclamação, sem um poder centralizado forte e capaz de garantir a unidade política.75 Eduardo Prado era um europeu — um anglófilo —, cujo sentimento monarquista era perfeitamente compreensível, dadas suas origens aristocráticas e os desmantelos iniciais da República. O próprio Múcio Leão, embora criticando o apego de Prado aos “modelos tradicionais” e qualificando de “exótico” seu ataque aos Estados Unidos em nome da Monarquia, considera-o sobretudo um patriota, julgando que, se não tivesse morrido
precocemente, teria se transformado numa grande figura da República.76 Hipótese que, nos anos 40, não era de forma alguma insensata, como as trajetórias de Joaquim Nabuco e do barão do Rio Branco demonstravam. Já para Ronald de Carvalho, A ilusão americana podia ser vista como uma perspectiva pioneira de pensar as relações entre os Estados Unidos e a América Latina, perspectiva que teria ampla aceitação numa linhagem de escritores, entre os quais se poderia citar Rodó e Ingenieros.77 Ou seja, Eduardo Prado não era um “reacionário”, mas um homem que nas lutas do seu tempo conseguiu diagnosticar o s riscos que o Brasil cor ria tanto em termos de política interna (os excessos federalistas), quanto em termos de política externa (a carência de soberania). Em relação à sua catolicidade, como a de todos os demais autores que se vinculam à crítica histórico-política da República, ninguém melhor do que Tristão de Atayde para ressaltar a coragem de tal posição no ambiente laico e povoado de dogmas positivistas dos anos 90 do século XIX.78 A obra de Eduardo Prado é, portanto, recuperada no sentido da congruência que pode manter com as orientações centralistas e espiritualistas do Estado Novo e com a dimensão engajada de seu modelo de intelectual. O tratamento dado a Taunay e a Joaquim Nabuco segue, até certo ponto, o mesmo tipo de lógica. 75 Os artigos de Ronald de Carvalho e Vicente de Carvalho que destacam esses pontos estão em Autor es e Livros, 13-2-1944:89 e 91-2, respectivamente. 76 Leão, Múcio. A vida dos livros. As três imagens de Eduardo Prado. Autores e Livros, 31-81941:36. 77 Carvalho, Ronald de. Autores e Livros, 13-2-1944:89. 78 Atayde, Tristão de. Eduardo Prado, sempre vivo. Autores e Livros, 31-8-1941. os Historiadores e seu Métier 103 Taunay, o visconde, era apresentado como romancista e historiador de muitos méritos, sendo que, mesmo quando fazia ficção, construía uma narrativa minuciosa e criativa a respeito dos assuntos políticos e dos costumes de nossas gentes.
Excedia, dessa forma, as descrições rápidas e pouco argutas de vários cronistas, demonstrando sua erudição.79 Mas a grandeza da fé monarquista do autor e a singularidade de seu patriotismo como escritor advinham de sua experiência militar na Guerra do Paraguai, origem de sua contribuição historiogr áfica: o livro A retirada de Laguna. Sua obra de “propaganda” política se fazia, assim, de forma menos direta do que a de Eduardo Prado e recorrendo a uma vivência que dava ao gênero da história militar o maior interesse. Taunay escrevia um livro como testemunha e historiador, fazendo uso da observação, da experiência e da documentação. Mas o melhor exemplo de historiador é Joaquim Nabuco. Sua trajetória também é a do aristocrata que, forçado a afastar-se da política, e sem desejar figurar entre os adesistas do regime, dedica-se inteiramente às letras. É nessa condição que se “encerra” durante seis anos em um “arquivo” para escrever Um estadista do Império, cujo primeiro volume sai em 1898. Durante essa nova fase de suas atividades intelectuais, Nabuco se dedicará preferen-cialmente aos estudos históricos, produzindo vários textos ( Balmaceda, Intervenção estrangeira) que não são comentados pelo suplemento. É interessante inclusive observar que Nabuco não está incluído na série “Historiadores”, talvez porque a ele já tivessem sido dedicados dois números de Autores e Livros, em fevereiro de 1942. Também pela mesma razão, esses números não ressaltam tanto sua feição de historiador, compondo um perfil bem polivalente, com destaque para sua figura de político e de abolicionista.80 Por isso, consideramos razoável recorrer ao artigo de José Veríssimo que comenta os trabalhos históricos de Nabuco, em especial Um estadista do Império, uma vez que suas observações er am, com frequência, transcri-tas pelo suplemento (Veríssimo, 1976a). O que nos interessa particularmente qualificar é a apreciação de Nabuco quanto à pesquisa documental desenvolvida para o livro. O artigo de Veríssimo r esponde a esse objetivo, uma vez que, para ele, esta era, se não a melhor, uma das melhores contribuições de Nabuco à nossa história. 79 Sobre Taunay, destaca-se no suplemento o discurso de Joaquim Nabuco no IHGB por ocasião de sua morte e um artigo de Ronald de Carvalho. Autores e Livros, 12-4-1942. 80 Sobre Nabuco, os artigos mais interessantes são os de João Ribeiro, Ronald de Carvalho e Oliveira Viana. Autores e Livros, 1 e 8-2-1942.
104 História e Historiadores Paradoxalmente, contudo, isso não se devia tanto às qualidades de “erudito” de Nabuco e sim ao tipo de “arquivo” que ele frequentara, composto pelos documentos pessoais de seu pai e biografado. Ou seja, embora Veríssimo faça restrições ao trabalho de crítica, comparação e uso de fontes realizado por Nabuco, ressaltando a for ça da reflexão do político sobre a do historiador, destaca a importância e a inovação que constitui, para nossa história, o uso de documentação não oficial. Correspondência, papéis íntimos e toda sorte de materiais ignorados por nossos historiadores, além das lembranças do próprio autor, davam vida ao texto, que constituía bem mais do que a biografia de um político: era o painel de uma época, “quase uma história do Segundo Reinado”. A história realizada com recurso exclusivo a documentos oficiais, “impessoais e incaracterísticos” por natureza, não permitia uma narr ativa vívida e penetrante: “Daí a insipidez geral da nossa história, que tem a secura e o incolorido de um relatório” (Veríssimo, 1976a:99). Com isso, Nabuco rompia, inovando no recurso a outro tipo de fonte. Contudo, é preciso não esquecer que o gosto e a virtude do texto histórico capaz de “retratar” costumes de uma época, de trazer para as páginas do livro grandes personagens e também homens do povo, já fora observado em Lisboa, ele também muito pouco “erudito”, sobr etudo quando contraposto a Varnhagen. Do mesmo modo, a presença do narrador como testemunha e observador dos fatos era uma razoável constante, encontrando-se em vários historiadores, particularmente naqueles mais claramente engajados.
Nesse sentido mais específico, Taunay e Nabuco se aproximavam, com nítida vantagem do segundo sobre o primeiro. Compondo perfil político semelhante, mas podendo talvez estar mais associado a Eduardo Prado, encontra-se a figura do conde Afonso Celso. Republicano e abolicionista que, por solidariedade ao pai — o visconde de Ouro Preto —, acaba sendo identificado e identificando-se à causa monárquica, membro do grupo da Revista Brasileira, um dos fundadores da ABL e presidente perpétuo do IHGB em substituição ao barão do Rio Branco, o conde Afonso Celso também não foi incluído na série “Historiadores”, talvez porque já tivesse igualmente sido homenageado pelo suplemento, no número de 7 de novembro de 1943. Homem de notável importância no campo intelectual, pelas origens, contatos e posições de poder que detinha, suas contribuições mencionadas são os textos Tese ao Congresso de História Nacional de 1914 (poder pessoal do imperador, inversão das os Historiadores e seu Métier 105 situações políticas, programas dos partidos, agitação democrática), sobre a monarquia no Brasil; e Porque me ufano de meu país, escrito para crianças por ocasião das comemor ações do V Centenário do Descobrimento. Do ponto de vista que estamos procurando destacar nesta análise, vale observar que seu livro mais famoso e popular (com sucessivas reedições) não chega a levantar as questões que vinham sendo discutidas pelos comentaristas a respeito dos textos históricos: o tipo de pesquisa documental, a forma de narrar os fatos. Porque me ufano era situada como obra de divulgação, podendo-se inferir daí que dela não se exigiam os atributos do trabalho erudito, própr ios da pesquisa histórica, e nem mesmo as qualidades de síntese de um livro escolar em termos mais estritos. Aliás, o perfil intelectual do conde Afonso Celso que o suplemento constrói é muito mais o do poeta e do contista, a despeito da explícita menção a seus vínculos com a história. Por outro lado, esse desenho poderia ter justificado um novo número, dedicado a uma outra feição do autor,
como ocorr eu nos casos de Eduardo Prado e João Ribeiro. Mas isso não aconteceu. Finalmente, seria conveniente tratar ainda, nesse contexto, do barão do Rio Branco. Não porque, como os demais, tenha exercido “militância monarquista”, embora esta tenha tido muitas gradações e formas de manifestação em textos históricos. A razão básica é que Rio Branco foi certamente a figura de político-intelectual mais poderosa de sua época. Dominando, por uma década, o Itamaraty e todos os r ecursos de poder que dele advinham, Rio Branco também integrou o grupo luso-brasileiro que frequentava o salão de Eduardo Prado em Paris, sendo o segundo a ser eleito para a ABL (o primeiro foi João Ribeiro). Contudo, a despeito de tudo isso, a figura de Rio Branco que emerge do suplemento — e é bom fr isar que ele integra a série “Historiadores” — é a do intelectual e, especificamente, a do historiador erudito. Sua posição estratégica no campo político e intelectual, mais incisiva do que a de Afonso Celso o u a de Carlos de Laet, é tratada em consonância com sua produção cultural, não chegando a se sobrepor a ela. João Ribeiro, em seus dois estudos sobre o barão, e Eduardo Prado, em um artigo, são categóricos quanto à profundidade do saber de Rio Branco, que lia tudo o que se escrevia sobr e o Brasil e dedicava-se como poucos à coleta e à classificação de documentos de interesse histórico. As efemérides brasileiras, livro editado e preparado por Basílio de Magalhães, são definidas como uma obra de “utilidade prática e de consulta”. Não era 106 História e Historiadores livro para ser lido, tornando-se até difícil de entender como um homem de ação havia-se entregado ao “fatigante mosaico de datas e fatos” que consti-tuía o manuscrito.81 Além
disso, uma das maiores virtudes de Rio Branco, desdobramento de sua grande cultura, era seu poder de síntese, capaz de condensar conhecimentos de história política, militar, geográfica e outros, todos em um mesmo texto. Dois exemplos materializariam essa capacidade. O verbete sobre o Brasil, escrito em 1889 para a Grande Encyclopédie, que trazia benefícios enor mes em termos de divulgação da imagem do país no exterior, e a Esquisse d’Histoire du Brésil, escrita em apenas 15 dias, e que até os anos 30 não havia sido publicada em português. Segundo João Ribeiro, a essa tarefa dedicavam-se Max Fleuiss, do IHGB, e o sobrinho do autor, adaptando a Esquisse a um for mato de livro didático.82 Rio Branco r eunia o saber erudito e sua utilização prática. Era um historiador que sabia examinar e usar documentos, possuindo uma biblioteca e coleções de fac-símiles oriundas de 30 anos de acumulação. Essa combinação r ara revelava-se especialmente em seus trabalhos de Memórias — sobre a Questão das Missões e sobr e a Questão do Amapá —, ambos exemplares em termos de história política, militar e geográfica do Brasil. Seus textos históricos, porém, ao que tudo indica, tiveram um papel muito mais impor tante na construção da imagem do país no exterior do que propriamente no debate historiográfico que se travou no país. Por uma “filosofia sobre” a história do Brasil Embora não sendo exigência nova para a produção de estudos históricos, a qualidade da “erudição” ganha, nos anos da virada do século XIX para o XX, características metodológicas muito mais bem-definidas. Passa assim a qualificar uma certa parte da produção cultural de um grupo de intelectuais que começa a se “profissionalizar” no campo dos “estudos históricos”, antes que as universidades — formadas apenas nos anos 30 — começassem a criar “especialistas” nas áreas da história, da geografia, da antropologia, da sociologia etc. 81 Ribeiro, João. As efemérides brasileiras.O Imparcial, 9-12-1929; Autores e Livros, 23-1-1944:54. 82 Ribeiro, João. A história do Brasil. Jornal do Brasil, 16-10-1930; Autores e Livros, 23-1-1944:54. A bibliogr afia de Rio Branco é tão vasta que o suplemento r emete o leitor para uma obr a muito elogiada e citada em outros números: o Dicionário biobibliográfico brasileiro, de Argeu Guimarães. os Historiadores e seu Métier 107
Alguns desses eruditos/historiadores tiveram a aproximá-los a circunstância de terem sua vida e obra marcadas, se não pelo combate aberto à República, ao menos por uma franca e assumida simpatia pelo r egime monárquico. Enfrentaram, por isso, de for ma muito mais evidente, a questão da neutralidade do historiador em face das fontes. Mas a produção historiográfica da “geração de 1890”, se conseguiu escapar do signo dos combates “políticos” da Abolição e da República, associou-se ao debate das questões “científicas” que uma nova concepção de história trazia para o Brasil. Autores e Livros não nos parece a melhor fonte para uma abordagem mais aprofundada de tais debates, que certamente povoaram o campo do saber histórico nas três décadas iniciais do século XX. Contudo, o perfil traçado de alguns autores homenageados permite, mesmo que parcialmente, a identificação de certas questões relevantes e o acompanhamento de propostas que indicavam alterações no que se entendia ser o métier do historiador. O mais importante deles é, sem dúvida, João Ribeiro, cuja presença nas páginas do suplemento é significativa como homenageado e mais ainda como comentarista. Para se ter uma ideia de sua assiduidade, basta mencionar que, na amostra com que trabalhamos, dos 19 nomes listados (excetuando-se o do autor), ele escreveu estudos sobre 11. Artigos de João Ribeiro publicados em Autores e Livros Autor homenageado Textos e artigos de João Ribeiro
1. Varnhagen Três estudos: Jornal do Brasil (1927, 1930, 1932) Texto com Sílvio Romer o: Compêndio de história da literatura brasileira 2. João Francisco Lisboa
Texto com Sílvio Romer o: Compêndio de história da literatura brasileira 3. Capistrano de Abreu Quatro estudos: Jornal do Brasil (dois em 1927, 1930, 1933) 4. Oliveira Lima Cinco estudos: Imparcial (1917, 1922); O Estado de S. Paulo (1928), Jornal do Brasil (1927, 1934) Correspondência 5. Barão do Rio Branco Dois estudos: Imparcial (1919), Jornal do Brasil (1930) 6. Conde Afonso Celso Artigo: “Um jubileu” 7. Pandiá Calógeras Três notas 8. Joaquim Nabuco Dois estudos: Imparcial (1919), Jornal do Brasil (1930) 9. Paulo Setúbal Quatro estudos: Jornal do Brasil 10. José de Alencar Estudo: O Estado de S. Paulo (1929) 11. Gonçalves de Magalhães Texto com Sílvio Romer o: Compêndio da história da literatura brasileira 108 História e Historiadores A análise do material produzido por João Ribeiro torna-se, assim, um caminho estratégico para a r ecuperação das questões que nos têm interessado mais de perto e uma forma de tratar da produção de outros historiadores. João Ribeiro é múltiplo e considerado um g rande vulto, tanto como poeta e romancista quanto como crítico literário e historiador. Uma das
principais fontes utilizadas pelo jor nal para a extração de comentários aos seus homenageados, como á mencionamos, era o Compêndio de história da literatura brasileira, escrito com Sílvio Romero. A amizade com este último, estabelecida logo que ele chega ao Rio em inícios da década de 80 do século XIX, é, obviamente, um dos fatores de seu rápido ingr esso no cír culo dos intelectuais cariocas da época. Mas Sílvio Romero e a literatura não for am os únicos passaportes de João Ribeiro, que, também homem de jornal, integra-se ao gr upo abolicionis-ta e republicano de Quintino Bocaiuva e Alcindo Guanabara. É, nesses termos, um autor que faria “literatura republicana”, no dizer de Veríssimo, desde cedo. Acumulando inserções, faz concurso para o Colégio Pedro II em 1887, onde lecionará história universal.83 Quando se forma em direito, no Rio, em 1894, já é figura co nhecida e respeitada, tanto que seria indicado pelo próprio José Ve-ríssimo para a primeira eleição da ABL, na vaga de Luís Guimarães.84 Interessado em pintura, viaja para Berlim, onde tem contato com a “erudição” alemã. Após esta estada, luta para estabelecer-se na Europa, através de contatos com elementos do círculo de Rio Branco, Joaquim Nabuco em especial. A Primeir a Guerra acaba por frustrar suas expectativas, e ele retorna em 1914. É nesse momento, aos 55 anos, que entra para o IHGB, onde pronuncia um discurso que é, ao mesmo tempo, peça exemplar do que entende ser o saber histórico e de como se pode usá-lo para r esponder à questão do sentido mais profundo de nossa identidade nacional, indagação que sempre mobilizara as atenções de nossos intelectuais.85 O discurso pode ser dividido em três partes. Na primeira, João Ribeiro se apresenta como um intelectual que há 30 anos vem ensinando e escrevendo sobre assuntos nacionais, o que certamente motivou a escolha de que foi objeto. Mas a história é feita “do” e “pelo” tempo, não sendo matéria acabada, e sim uma “contínua substituição de ideias e de fatos”. Os 83 Em 1901 João Ribeiro escreve as Memórias históricas do Colégio Pedro II. 84 O discurso de recepção a João Ribeiro está em Veríssimo (1976a:127-34. 1a série). 85 Ribeiro, João. A história do Brasil: discurso de posse no Instituto Histórico, em 20 de abril de 1915. Autor es e Livr os, 16-4-1944:198.
os Historiadores e seu Métier 109 longos anos de trabalho como historiador o conduziram, portanto, à reflexão sobre a permanente transformação dos materiais do passado segundo a ótica do presente: “O presente é quem governa o passado e é quem fabrica e compõe nos arquivos a genealogia que lhe convém. A verdade corrente, hoje, sabe buscar, onde os há verossímeis, os seus fantasmas prediletos de antanho.” O historiador é fazedor desse passado e dessa “verdade”, rigorosa sim, mas desprovida de sentido imutável e sempre orientada por conteúdos éticos do presente. Dando exemplos, João Ribeiro menciona: “Hoje elevamos estátuas a Tiradentes, porque o nosso ideal de agor a determinou esse culto”. Mas essa perspectiva não significa o abandono da ideia de “verdade”, porque ela não significa nem falsificar, nem deturpar, nem mentir. Nesse sentido, a “verdade” existe e está identificada aos fatos rigorosamente documentados. O que ocorr e, contudo, é que o próprio trabalho historiográfico de pesquisa nas fontes sofre o impacto da ótica do presente. O historiador está comprometido com essa ética, não podendo pretender uma imparcialidade que, esta sim, afigura-se para ele irreal e imoral. João Ribeiro, que, como muitos dos outros autores já citados, forma nas fileiras da “erudição” como fundamento do saber histórico, não está se referindo aqui aos procedimentos que devem orientar a coleta, a crítica e a classificação documental — dimensão primeira e primordial do métier. Ele está se voltando para um outro atributo do historiador, o de “filósofo”, que na sua postulação toma a forma de um consciente comprometimento com o presente. Tal comprometimento se traduz tanto na constatação de ser o “passado” um objeto construído pelo tempo presente, quanto na constatação de haver sempre um conteúdo “ético” no trabalho do historiador. Não mais, pelo que é lícito observar em sua exposição, uma ideia de “ética” como aquela dos trabalhos de Lisboa, definido como um historiador “moralista”, isto é, que recorr e às experiências históricas
fundamentalmente para demonstrar sua tese de combate, tomando a história “material” para “estudos político-sociais”. Há uma diferença profunda entre “recuar” no tempo para a comprovação de uma tese — usando os “exemplos históricos” como meios — e trabalhar com o “tempo” como uma noção que se conforma segundo o olhar do historiador. Nesse sentido, há uma dupla dimensão nesse olhar: ele precisa compreender 110 História e Historiadores os valores e ideais presentes na época e na sociedade que estuda e saber que está inevitavelmente inserido no contexto de sua própria época. Deixando claro, embor a de forma implícita, essa ambiguidade, João Ribeiro conclui o que se pode demarcar como a primeira parte de seu discurso. É uma narrativa capaz de situar seus 30 anos de trabalho como historiador e encaminhar a questão que presidiu todo o seu esforço nesse longo percurso: “Com esta filosofia, ou antes, com este pragmatismo, é que tenho meditado sobre a nossa história. Por vezes, tenho procurado surpreender o caráter ou a expressão mais geral de nossa vida. O caráter de um povo, ou, o que é o mesmo, o fato mais assíduo e frequente de sua História, ode talvez esclarecer-nos a sua vocação ou o seu destino.” A resposta que o autor dá, e que compõe a segunda parte de sua exposição, é que o sentido profundo e essencial de nossa história é o “conservantis-mo exagerado” de nosso povo: “o seu senso profundo e demorado das oportunidades”. Para demonstrar seu diagnóstico, passa a examinar fatos cruciais de nossa história: a luta pelo “mar fechado”, a adoção das capitanias hereditárias, a escravidão interminável, a Monarquia duradoura e a República arredia. Em todas as nossas experiências históricas, desde os primeiros passos, fomos “lentos, tardios e precavidos”. Como fecho, João Ribeiro lembra que nossas terr as são
o hábitat único de um curioso animal, a preguiça, que tem nome de vício e de pecado mor tal. E agrega: “mas a natureza não tem vícios e estou que a preguiça sabe muito bem por que é lenta e vagarosa”. Passa assim à terceira parte de sua fala unindo as duas anteriores, ou seja, como a história é obra de erudição e de filosofia, interpreta fatos passados, dando-lhes um sentido sempre vinculado às perspectivas do presente. O Brasil é este país “vagaroso” por força mesmo de sua grandeza material, que dispersa energias e exige imenso esforço de coordenação. Há uma base geogr áficobiológica na imagem, mas é muito pouco ver nela apenas essa face, uma vez que o autor quer fixar um movimento político-cultural que mar-caria a identidade do povo brasileiro. Para tanto, ele r etorna aos mesmos fatos os Historiadores e seu Métier 111 cruciais de nossa história e lhes dá um “outro” sentido. O anacrônico “mar fechado” dos portugueses garantiu nosso terr itório colonial contra a cobiça internacional; as capitanias, tradição arcaica e feudal, constituíram-se no fundamento dos sentimentos federativos; a escravidão de “perseverança” inacei-tável — fomos os últimos no universo a vencê-la — evitou a guerra civil; a Monarquia, sem qualquer eco na América, livrou-nos dos pronunciamentos. A celeridade nem sempre, portanto, seria uma vantagem, e a lentidão do nosso processo histórico podia esconder mistérios e grandezas. Esta seria a descoberta do trabalho do historiador : “Quanto à nossa história, que parece vaga e tediosa como a paz, e monótona como o trabalho quotidiano, cumpre mostrarmos como ela é fecunda, honesta e bela!” Vários outros textos de João Ribeiro, a maioria publicados em jor nais do Rio e São Paulo ao longo da década de 20, enfatizam o ponto fundamental defendido em seu discurso: o trabalho de construtivismo r ealizado pelo historiador, que implicava a seleção de fatos e a atribuição de sentido ao “tempo”. No artigo “Notas marginais”,86 ele destaca as “lacunas” de nossa história, que surpreende fatos e heróis e os abandona ao longo do tempo: “Lendo-a, temos a impr essão que é iluminada a relâmpago s”.
Não há preocupação dos historiador es com “coisas” que não sejam “tidas e havidas por mais impor tantes”. Dessa forma, ele critica o “método cronológi-co”, que, embora indispensável, se esquece da “psicologia e da história” dos indivíduos, o que de fato daria colorido e vida aos acontecimentos. Em “As ideias na história nacional”, artigo escrito anteriormente, já apontara para a insuficiência de um “modelo de história comum dos fatos”, sem homens reais, sem ideias, em que além da narração dos acontecimentos nada resta a averiguar.87 Ora, os leitores não se contentariam apenas com o r elato desses fatos principais, cuja periodização obedeceria às necessidades didáticas dos próprios historiador es.88 Os próprios fatos precisariam ser entendidos como vinculados às ideias e aos pensamentos que povoam “a alma dos heróis e homens de 86 Ribeiro, João. Notas marginais. Jornal do Brasil, 6-4-1927; Autor es e Livros, 16-4-1944:206. 87 Ribeiro, João. As ideias na história nacional, 1-9-1923; Autores e Livros, 16-4-1944:204. 88 Sobre a questão da periodização, ver A história universal e suas divisões. Jornal do Brasil, 27-71929; Autores e Livros, 16-4-1944:203. 112 História e Historiadores ação”. Em um longo texto, intitulado “Espírito de autonomia”, onde estuda a Conspiração Mineira, João Ribeiro como que exemplifica as sugestões que fizera aos historiadores quanto às insuficiências de nosso trabalho historiográfico.89 O seu ponto de partida é compreender o “espírito de autonomia” no Brasil, para em seguida trabalhar com a Conjuração e Tiradentes. Não tendo sentido acompanhar sua reflexão, cabe destacar um ponto particularmente esclarecedor da “filosofia da história” que o autor defendia. Situando que o “espírito de autonomia” é o da defesa dos direitos do homem do século XVIII, ele destaca como, no Brasil, devido à descoberta do ouro, ele fora obstruído pela metrópole e acordara sob a forma de radical reação. Essa reação estava intrinsecamente ligada à formação de uma “nova raça”, uma “raça nacional” formada por cruzamentos e que se constituiria na “base física da revolução”. Esse processo er a compartilhado por toda a América Latina, onde as revoluções “vestem as formas liberais e cosmopolitas, mas são no fundo
exclusivamente étnicas, patrióticas e nativistas (...)”. Não podíamos, pois, pensar conforme as teses de Hacckel, para quem o homem de cor é a “pes-te da cultura americana”; nem de Martius, que acreditava que a imigração branca iria finalmente suplantar “o caráter das camadas primitivas”. Era ustamente dessa “raça mestiça” que advinha nosso espírito de reação — destrutivo sim, mas necessário — ao absolutismo colonial. Mas, “felizmente”, sempre houve “um escol intelectual e moral” de homens nessas raças capaz de dirigi-las. Este foi o caso da Conjuração Mineira e também de outras sublevações, em que fatos, ideias e heróis eram reunidos de modo a se poder entender como se formou nossa nacionalidade. A presença clara desta que era a grande questão da história pátria — seu verdadeiro cerne — e principalmente o tratamento historiográfico a ela conferido vão aproximá-lo de forma particular de Oliveira Lima, Pedro Lessa e Alcântara Machado. Oliveira Lima é o mais importante dos três e sobre ele João Ribeiro escreve cinco estudos (1917, 1922, 1927, 1928 e 1934), todos publicados no suplemento.90 Vários pontos são relevantes em seus comentários. Um deles deve-se ao fato de Oliveira Lima ter escrito, em inícios dos anos 20, uma 89 Ribeiro, João. Espírito de autonomia. Autores e Livros, 16-4-1944:200-1. 90 Os estudos de João Ribeiro publicados em Autores e Livros saíram inicialmente nos seguintes ornais: O Imparcial (13-8-1917 e 14-3-1922), O Estado de S. Paulo (mar. 1928, por ocasião da morte de Oliveira Lima) e Jornal do Brasil (7-12-1927 e 22-2-1934). os Historiadores e seu Métier 113 História da civilização, como compêndio escolar.91 A dimensão do ensino da história no Brasil, que começa a assumir uma for te feição disciplinar, une os dois historiadores. Na verdade, o grande trabalho de João Ribeiro como historiador foi ustamente seus compêndios escolares, escritos com o aval da cátedra do Colégio Pedro II: sua História do Brasil, publicada em 1900 — logo, por ocasião do IV Centenário do Descobrimento — e que continuaria sendo
editada e revista pelo autor até sua morte; e sua História universal, publicada em 1919 e que teria também outras edições.92 Não estamos mais falando aqui de livros como Porque me ufano..., do conde Afonso Celso, escrito para crianças. Trata-se de um investimento didático crescente, que se traduz, por exemplo, na transformação da síntese do barão do Rio Branco sobre a história do Brasil ( Esquisse) em livro escolar, já em fins dos anos 20. João Ribeiro é, aliás, um crítico da primeira reforma do ensino secundário, realizada em 1925.93 Ela era sem dúvida necessária, segundo ele, pois há cerca de 30 anos só se adotava no Brasil os livros de Seignobos e Grojais. Foi esta reforma que introduziu a cadeira de história da civilização, a que o compêndio de Oliveira Lima respondia. A crítica feita por João Ribeiro à r eforma dizia respeito à ideia de uma história exaustiva de todos os povos. Ela de nada adiantaria, em particular porque se exigia o abandono da “história descritiva”, em proveito de “generalizações”, que, sem base anterior, são ineficientes. Ou seja, o mesmo autor que escrevia criticando os historiadores por realizarem uma “história comum dos fatos”, sem homens e ideias — sem sentido —, advertia que não era proveitoso sacrificar o estudo e a análise dos fatos às generalizações, que era o que julgava iria acontecer com a reforma do ensino referida. Por isso, elogia o texto de Oliveira Lima, que tinha o grande mérito de tratar da história contemporânea, sobretudo da história da América, mas o considera mais adequado como “livro de leitura complementar” do que como livro escolar básico. Mas essa objeção e outras, como a das simpatias sutis que nutria pelo Império, não o impediam de reconhecer 91 Ver, por exemplo, Ribeiro, João. O ensino da história. Jornal do Brasil, 29-11-1920; Autor es e Livr os, 16-4-1944:202. 92 A História do Brasil seria revista pelo autor até a 11a edição e alcançaria 15 edições (a última de 1954), sendo as últimas fruto do trabalho de seu filho Joaquim Ribeiro. 93 Em 1925, a Lei Rocha Vaz completa reforma anterior (a Reforma Maximiliano, de 1915), que ampliara a competência do governo federal em matéria educacional. Nela é criado o Departamento Nacional de Ensino, integrado à pasta da Justiça e Negócios Interiores. 114 História e Historiadores virtudes maiores. Por exemplo, para João Ribeiro, Oliveira Lima era o autor da melhor história da formação da nacionalidade brasileira, com o seu
D. João VI no Brasil, em dois volumes, publicados em 1908, certamente não por acaso o ano do centenário da abertura dos portos do Brasil. Observando com mais atenção os comentários feitos sobre essa obra, pode-se qualificar melhor as virtudes que estavam sendo definidas como próprias de um bom texto historiográfico: a “erudição”, expressa no trabalho de consulta e crítica das fontes, inclusive na apresentação de documentação inédita; e o “pensamento filosófico”, capaz de “aproveitar” este trabalho, ultrapassando a comum enumeração de fatos, que tudo abraçava, tornando o saber histórico enfadonho e sem sentido.94 D. João VI no Brasil era, como Um estadista no Império, de Nabuco, muito mais do que a biogr afia de um personagem: era uma das melhores, se não a melhor história que se escreveu sobre o período de 1808 a 1821. Oliveira Lima, com seu senso crítico de historiador e seu estilo de escritor, explorara uma vasta documentação composta de papéis oficiais e privados, narrativas de viagens, correspondências e também pinturas e quadros, existentes em inúmeros arquivos do Brasil e do exterior. Vários dos documentos apresentados estavam sendo tratados pela primeira vez e, devido ao número e diversidade das fontes, Oliveira Lima traçava um quadro do que fora o governo de D. João e do que era o Rio de Janeiro no início do século XIX: da vida que aqui se vivia e das transformações ocorr idas com a chegada da Corte. Mas o que animava o trabalho do historiador eram os debates que travava com outros escritores e o sentido que norteava seu livro. Em primeiro lugar, sua tese de que a vinda de D. João para o Brasil não fora ato intempestivo e de vergonha. Ao contrário, estabelecia, pela documentação apresentada, que havia muito se pensava nessa possibilidade no governo português. Em segundo lugar, a maneira de tratar D. João VI, que, desprovido das qualidades excepcionais de qualquer herói político, teve o mérito — o que não é pouco — de enfrentar as cir cunstâncias que se lhe apresentaram realizando uma série de obras que sal-varam sua dinastia e fundaram as bases da nacionalidade brasileir a. Como João Ribeiro assinalava, uma história de homens, de ideias e de circunstâncias, em que as escolhas do que é possível fazer dirigem o olhar do historiador. Nesse sentido, ainda que se pudesse dizer que D. João VI não tinha qualquer qualidade maior, ele for a um grande soberano, o que permitia a 94 Além dos textos de João Ribeiro, recorremos ao artigo de Veríssimo (1976b:79-87). os Historiadores e seu Métier 115 conclusão final de que seu período de governo havia sido um dos mais im-
portantes para a for mação da nacionalidade brasileira, sendo ele o r eal fundador do Império e responsável por nossa independência. 1822 surgia do livro de Oliveira Lima como mais um episódio, dos muitos, que D. João VI produzira vindo para o Brasil e tornando-o um Estado capaz de governar-se. A arquitetura da obr a lembrava, como se pode perceber, a do livro de Nabuco, que lhe era anterior (1898), mas suplantava este no r igor da erudição, embora fosse equiparável na fecundidade da interpretação. Outro texto do mesmo valor, voltado para a questão da evolução de nossa nacionalidade, é o Formation historique de la nationalité brésilienne, conjunto de conferências realizadas na Sorbonne em 1911 e que a União Franco Paulista tomara a decisão de editar em 1914. O volume tinha prefácio do professor Ernest Martinenché, e a citação de um de seus parágrafos tanto resume os objetivos de Oliveira Lima quanto elucida o tipo de demanda que se fazia de um historiador. “Ver-se-á no livro do sr. Oliveira Lima como o clima e a extensão impunham ao Brasil dificuldades quase insuportáveis e em que condições se operou seu desenvolvimento. Ter conseguido resolver pela assimilação e não pela destruição o problema das raças e preservar a unidade real na diversidade das províncias federadas, haver se elevado desde as antigas capitanias até a ideia realizada de uma nação independente e capaz de uma cultura largamente humana — há de fato nessa evolução, tão rápida malgrado sua lentidão, e tão sabiamente rogressiva, com que se permitirem e justificarem todas as esperanças.” 95 Certas obras permitiriam, por tanto, uma aproximação mais precisa
com o ideal do trabalho historiográfico. Outro magistral exemplo, segundo os comentaristas do suplemento, seria o livro de Alcântara Machado: Vida e morte do bandeirante. 95 Oliveira Lima: prefácio do professor Martinenché ao volume de conferências do senhor Oliveira Lima. Autores e Livros, 12-3-1944:138. 116 História e Historiadores Trabalho de erudito, de historiador -jurista, como Levy Carneiro situa, o livro fora feito com recurso a exaustiva pesquisa em inventários e testamentos, dos quais nasce uma narrativa colorida de como viviam, pensavam e agiam o s homens em São Paulo na segunda metade do século XVI e no século XVII. Nesse trabalho o autor é inovador, pois demonstra o quão falsa era a imagem de uma sociedade colonial paulista mergulhada em riquezas. Mais do que a figura do bandeirante, Alcântara Machado fixara um tempo e a ele dera sentido e vida, esca-pando dos “relatórios minuciosos e glaciais” e também das ideias generalizantes.96 João Ribeiro, Oliveira Lima, Alcântara Machado, como outros historiadores voltados para a reflexão sobre a questão da nossa nacionalidade, estão inscritos no campo intelectual de sua época, que pensa a questão da identidade do país discutindo uma literatura que vai de Comte, Spencer, Taine e Martius às “modernas” influências da historiografia francesa, alemã e portuguesa. É verdade que, no tocante à produção historiográfica stricto sensu, não se sabe muito sobre as leituras r ealizadas e a for ma de apropriação que essa literatura sofria. O suplemento, através das apreciações que transcreve das obras de alguns historiadores, permite apenas uma certa aproximação do tema, que é vasto e complexo.97 As menções já feitas às posições de João Ribeiro e Oliveira Lima, e também à de Capistrano de Abreu, ainda na década de 1880, indicam tanto a for ça dos referenciais quanto a consciência da necessidade de um distanciamento, como ocorr ia de modo geral com todos os intelectuais do período. Nesse sentido, a importância do fator geográfico é um ponto de partida indiscutível: o terr itório é vasto, o clima e a natureza são “excessivos”, obstaculizando a integração e a ação do homem. Os historiadores são geógrafos que contribuem para a cartografia e para uma geografia histórica, como os exemplos de Capistrano de Abreu e do barão do Rio Branco não deixam dúvidas. Mas não se trata de uma “geografização” de nossa evolução humana, que se anteponha ao saber históri-co de for ma a minimizá-lo e subor diná-lo. Ao contrário , o que se pode ver em inúmeros casos é justamente como o conhecimento geográfico atua de forma
integrada, explicando e sendo explicado pela vontade do homem, sem r igidez 96 Carneiro, Levy. Alcântara Machado, historiador e professor. Autores e Livros, 20-2-1944:105. 97 Sobre a presença da literatura “cientificista” no Brasil, já dispomos de bons trabalhos: Ventura (1991); Schwarcz (1993); Ortiz (1985); Barros (1973), entre outros. No entanto, esses trabalhos contemplam essa influência e a apropriação r ealizada por intelectuais brasileiros em outras áreas do saber (direito, medicina, crítica literária) que não a da produção historiográfica. os Historiadores e seu Métier 117 de determinação física e sem obscurecimento do saber histórico. Os temas das entradas e bandeiras, a história diplomática e militar deixam isso claro. Quanto à questão racial, ela é tão ou talvez mais presente no campo da historiografia do que a do meio. A descoberta de uma “raça de mestiços”, como signo das or igens de um sentimento nativista e como possibilidade de evolução sem traumatismos político-sociais radicais, dá bem a medida da potencialidade explicativa da categoria. Os vários estudos que se fazem sobre “revoltas” ocorridas no Brasil desde fins do século XVIII, com destaque para a Conjuração Mineira e a Revolução de 1817, frisarão a associação entre uma “raça histórica” e as bases de nossa nacionalidade. A questão, portanto, não se coloca como um “problema etnológico” — de um “tipo biológico brasileiro” —, mas como um “problema sociopolítico” — de um “tipo histórico” com bases etnicoculturais, que se subleva contra os “outros”: estrangeiros, metropolitanos, contrários à independência da nação. No campo da produção historiográfica, miscigenação e tropicalismo — como Ventura denomina aquela corrente que prior iza a impor tância da ação do meio na produção de nossa singularidade — associavam-se de forma muito forte. A figura do bandeirante seria a melhor imagem dessa síntese e talvez, por isso mesmo, uma das melhores imagens da nacionalidade, que também possui outras, muito diversas, como D. João VI, os jesuítas, Tiradentes etc. O debate sobre o que era história e o que era fazer história do Brasil remetia, portanto, diretamente a tais questões. Pedro Lessa, um jurista por excelência, membro da ABL e do IHGB, dá um bom exemplo disso, quando escreve a introdução do famoso livro de Buckle — História da civilização na Inglaterra —, traduzido e publicado no Brasil em 1900.98
Nessa introdução, Pedro Lessa debate duas ideias centrais do autor, aceitando uma e r ejeitando outra. Aceita a da interpretação dos fenômenos históricos, seguindo a “escola do determinismo psicológico”, que fugiria tanto da postulação do livre-arbítrio — que tornaria vã qualquer pretensão de estudar cientificamente os fatos históricos —, quanto de um determinismo rígido, que subordinaria a vontade humana a “causas superiores” maiores. Para Pedro Lessa, o acerto de Buckle estaria em apontar que os fatos históricos dependem da vontade dos homens, mas que esta atende a uma série de r azões/forças externas e internas. 98 O livro de Henry Tomas Buckle foi dos mais influentes no Brasil, juntamente com a História natural do homem, de Buffon, e os textos de Humboldt e Martius. Pedro Lessa realiza estudos sobre Varnhagen e João Francisco Lisboa e é proposto para o lHGB em 1901 com a monografia: “É a história uma ciência?”. 118 História e Historiadores A ideia que recusa é sua “filosofia da história” baseada na grande divisão da civilização em europeia e não europeia, da qual deduz que a tendência da história na Europa é a de subordinar a natureza ao homem e, fora da Europa, a de subordinar o homem à natureza. Pedro Lessa discute essa tese mostrando, primeir o, que a civilização não nasceu na Europa, o que nega fundamento ao argumento geral. Em segundo lugar, ele discute a própria possibilidade de uma filosofia da história, uma vez que não se pode conhecer todos os fatos da história da humanidade, sendo falaciosa qualquer generalização e previsão do futuro segundo acontecimentos passados. Fixando seu conceito de história, cita Mommsen e Fustel de Coulanges, para os quais ela tem a “missão” de ser muito mais do que “a narr ação de fatos”, ou a fornecedora de “materiais metodicamente dispostos para induções sociológicas”.99 Dessa forma, segundo seu comentarista, seria mais conveniente dizer que, para Pedro Lessa, há uma filosofia sobre a história e não uma filosofia da história. Poucos autores homenageados pelo suplemento permitem, como
Pedro Lessa, uma aproximação tão direta do debate historiográfico travado em inícios do século XX, o que significa que a seleção, no caso, privile-giou essa feição como sua contribuição especial. Mas isso não significa que o métier do historiador e a proposta de uma história pátria não estivessem igualmente em pauta ao se compor uma espécie de elenco de autores e obras exemplares em termos de erudição e compreensão do sentido de nossa nacionalidade. Capistrano de Abreu possuía companheiros de jornada, seguidores e admiradores: eram os seus amigos, como João Ribeiro, Nabuco e Oliveira Lima; os seus alunos, como Calógeras; e os membros da Sociedade Capistrano de Abreu, como Alcântara Machado. Das formas de fazer história O conjunto de autores reunidos por Autores e Livros como aqueles que contribuíram para os estudos históricos no Brasil é, no sentido sociológi-co das trajetórias de vida, razoavelmente homogêneo. Mas, no que se refere à for ma de cada um se inserir no campo do saber histórico, o que se encontra 99 Alves, João Luiz. O conceito de história, para Pedro Lessa. Outro texto importante é O determinismo e a história, do próprio Pedro Lessa, ambos em Autores e Livros, 23-7-1944:56 e 54-5, respectivamente. os Historiadores e seu Métier 119 é uma grande heterogeneidade. Ao lado de nomes cujo papel é unanimemente reconhecido como primordial, ainda que através de poucos ou até de um único “gr ande” texto, encontram-se autores cuja avaliação do próprio suplemento não é tão elogiosa em termos de produção historiográfica. Torna-se inclusive interessante especular sobre as razões de certas inclusões, já que, após a leitura dos comentaristas, vê-se que há uma convergência acerca do que seriam as deficiências intelectuais do autor. As ustificativas que podem ser aventadas, nesses casos, são as que remetem ao tratamento de algum tema específico, ou as que se prendem ao papel referencial do autor no campo do poder político. Entre os historiador es ainda não comentados, alguns exemplificam o
que estamos querendo caracterizar e, por isso, merecerão algumas menções para que se possa situá-los. Os pernambucanos Alfredo de Carvalho e Alexandre Barbosa Lima são bons exemplos. O primeiro, sem or igens aristocráticas e sem ingr esso na ABL, é avaliado como um escritor “legível”, mas par-co de ideias. Para José Veríssimo, muito mais um “cronista”, interessado em episódios pitorescos, do que na grande história. Para Humberto de Campos, muito mais um “colecionador de documentos”, que não controla o exercício da “crítica”, nem sabe como “narrar” um acontecimento.100 Por que então sua presença nessa galeria de gr andes vultos? Talvez pelo fato de, tendo estudado na Europa e nos Estados Unidos, ser dos poucos brasileiros a saber holandês e com isso poder ter acesso à documentação sobre o pe-ríodo holandês de nossa história. Sua produção — de artigos, sobretudo — não é pequena, mas considerada extremamente local. As objeções não se prendem ao fato do interesse pela história r egional, que é até louvado, mas à forma de fazê-la, não explorando os elos com a história do Brasil. Barbosa Lima é seu inverso em termos de importância social e política. Republicano de primeira hora, jacobino, construiria uma carreira política sólida, inaugurando uma tradição intelectual que teria continuador na figura de seu sobrinho. Também trabalhando com a história regional de Pernambuco — das mais contempladas, pois contava também com a participação de Oliveira Lima —, Barbosa Lima dedicara-se ao estudo da Revolução de 1817.101 100 Campos, Humberto de. Aventuras e aventureiros; Veríssimo, José. Um estudioso pernambucano. Autor es e Livros, 19-3-1944:155, 156 e 157. 101 Sobre Barbosa Lima, ver Autores e Livros, 1-4-1944, especialmente Lima, Oliveira. “Barbosa Lima” (trechos de estudos), e a conferência do homenageado, pronunciada no Instituto Histórico, por ocasião da comemoração do movimento de 1817. 120 História e Historiadores Contudo, era muito mais um “político-historiador ” do que, como Nabuco, um “historiador-político”, capaz de, fazendo a biogr afia do pai, retratar o espírito de uma região e de
uma época. Outro nome interessante é o de Paulo Setúbal, paulista de or igens simples e elogiado como muito católico. Não sendo classificado como historiador tout court, Setúbal é bastante valorizado por seus comentaristas — João Ribeiro, Humberto de Campos e Cassiano Ricardo —, por sua contribuição à “divulgação” da história. Ele é definido como um autor de “romances históricos”, gênero que tivera amplo sucesso e adeptos no século XIX, mas que vinha se inferiorizando e deteriorando. Setúbal era, por tanto, uma exceção. Segundo João Ribeiro, ele era o mais lido e popular de nossos romancistas históricos, conseguindo construir uma ficção que não prejudicava a história “no que ela tinha de essencial”. Prestava, dessa forma, um serviço aos estudos históricos, r ealizando com maestria uma das for mas mais eficientes de divulgá-los. Sua te-mática, como não é de surpreender, era a das bandeiras e bandeirantes, sendo que seu romance A marquesa de Santos chegara a vender 40 mil exemplares!102 São exemplos bem distintos, indicando o último deles uma preocupação maior com um acesso mais amplo do público ao conhecimento histórico. O gênero do romance, os artigos escritos para jor nais de ampla circulação — textos de crítica literária e resenhas de livros — e também os livros para crianças começam a ganhar, a partir de inícios do século XX, um espaço crescente na atenção dos historiadores. A transformação da Esquisse d’Histoire du Brésil, do barão do Rio Branco, em livro escolar era apenas uma das iniciativas desta espécie que vinham frutificando e indicando tanto uma “disciplinarização” quanto uma popularização desse campo do saber. Pelo menos alguns dos autores citados têm sua inclusão ligada, embora não exclusivamente, a esse novo tipo de preocupação que começa a ocupar escritores e também historiadores em sentido mais estrito. Um deles é Carlos de Laet, monarquista e católico que formava, com Eduardo Prado, Afonso Celso e Nabuco, entre aqueles que militaram, na virada do século XIX para o XX, pela Monarquia. Professor do Colégio Pedro II, Laet dele teria sido afastado por reagir contra a tentativa de alteração de seu 102 Ribeiro, João.Jornal do Brasil de 16-11919 e 24-5-1933, transcrito em Autores e Livros, 9-5-1943:235. Os comentários de Cassiano Ricardo mencionam os seguintes títulos: Príncipe de Nassau, As maluquices do imperador, além de O ouro de Cuiabá e Os irmãos Leme. Todas as referências estão no mesmo número do suplemento. O discurso de saudação de Alcântara Machado na ABL considera o autor o “cantor do que São Paulo tem de mais castiço: o interior, a fazenda, o caboclo”. Idem, p. 233. os Historiadores e seu Métier 121 nome, só sendo reintegrado pelo presidente Venceslau Brás. Chegaria então a dirigir o prestigioso estabelecimento e se tornaria presidente da ABL (1919-22). As duas
referências dão bem a medida do prestígio do homenageado e de sua influência na área do ensino. Não estando incluído na série “Historiadores”, seu livro destacado, mas praticamente pouco comentado, é A descoberta do Brasil, publicado no ano das comemor ações do quarto centenário.103 Outro autor que combinava magistralmente sucesso político — desta feita na “política profissional” — e r econhecimento no campo do saber histórico era Pandiá Calógeras. Tendo sido aluno e amigo de Capistrano de Abreu, sua produção historiográfica era muito grande, sobretudo para quem fora ministro de Estado três vezes, em três pastas diferentes e importantíssimas. Quando de seu falecimento, em 1934, é publicado um volume, Calógeras na opinião de seus contemporâneos, organizado por Francisco Sales de Oliveira, Roberto Simonsen e Gontijo de Carvalho, que elenca nada menos que 68 títulos.104 Mas a produção de Calógeras é ela mesma pouco comentada no suplemento, que o r econhece como um seguidor de Capistrano. Uma verdadeira exceção no conjunto é Rocha Pombo, cuja vida refo rçava a assertiva de João Ribeiro de que só há um meio de ser gente neste país, e não é escrevendo livros de história. Sem berço e sem relações sociopolíticas valiosas, Rocha Pombo não viajou e não pesquisou em arquivos no exterior. Foi professor por toda a vida e nos trabalhos que produziu, muito numerosos, serviu-se dos materiais levantados e publicados por outros historiadores. A “Notícia” de sua vida é cur ta, testemunhando tenacidade não recompensada. Mas é considerado pelos comentaristas como exemplo de historiador que se dedicou a estudar a for mação da nacionalidade, tendo produzido uma das mais vastas obras da literatura histórica. Sua História do Brasil em 10 volumes, publicada de 1915 a 1917, abarcava os temas da conquista da terra, da criação de uma economia interna no país e do desenvolvimento do espírito da nacionalidade da colônia ao período r epublicano. Assuntos e personagens frequentemente tratados: índios, jesuítas, bandeirantes etc., mas não com o fôlego e o alcance da realização de Rocha Pombo. Quem, sobretudo, faz comentários elogiosos ao vasto empreendimento de caráter pedagógico de Rocha Pombo é Rodolfo Garcia, o consagrado historiador que editara a História geral do Brasil, de Varnhagen, com as anotações de Capistrano de Abreu.105
103 De Carlos de Laet, o suplemento publica poesias, corr espondência e pouco material ligado à sua feição de historiador, apesar de assim definido. Autores e Livros, 3-1-1943. 104 De Calógeras, o suplemento publica textos: A política exterior do Império; Os começos da América; A Independência. Autores e Livros, 9-4-1944. 105 Garcia, Rodolfo. Rocha Pombo. Autores e Livros, 5-3-1944:120. 122 História e Historiadores Rocha Pombo é, portanto, um historiador muito reconhecido pelos poucos comentaristas do suplemento, que sugerem a pequena atenção que seus livros suscitaram na época em que foram publicados. A entrada na ABL, às vésperas da morte e após sucessivas tentativas, bem como a morte em extrema pobreza são indicadores do fato. Mas a trajetória de Rocha Pombo nos ajuda também a situar melhor a hierarquia de “virtudes” que eram exigidas da produção historiográfica realizada desde fins do século XIX até os anos 30 do século XX, e que o suplemento recorta ao formar sua galeria de autores e livros. A condição sine qua non para “identificar” o historiador era o trabalho de pesquisa documental: de busca, classificação, divulgação e “aproveitamento” do documento. Os historiadores podiam contribuir para seu campo do saber publicando inéditos ou traduzindo textos de outros autores fundamentais. O trabalho de pesquisa “erudita” não exigia a produção de um texto original do autor, necessitando a história do Brasil de uma longa e difícil acumulação de materiais capazes de permitir sua escritura. Trazer documentos para o país, arranjá-los e publicá-los era tarefa primor dial, para o que um capital de relações sociopolíticas era condição quase que essencial. A historiografia do Brasil, como toda aquela que se conforma no século XIX europeu sob os auspícios da influência historicista, constrói-se no culto ao documento escrito e no rigor do método crítico que assenta o vínculo entre verdade histórica e prova documental. A reconstituição dos fatos do
passado no tempo, através da comprovação minuciosa de tudo o que era afirmado, distanciava o trabalho historiográfico das reflexões socioliterárias e sociopolíticas a que “os historiadores” também podiam se aplicar. Contudo, observando-se os comentários reproduzidos pelo suplemento acerca de alguns livros inequivocamente destacados no conjunto maior de obras, podem-se fazer algumas r eflexões. A primeir a delas diz respeito à presença do próprio historiador como testemunha que toma parte nos acontecimentos que narra: um ator-autor. Os casos de Nabuco e Taunay seriam os mais expressivos, sendo o interessante a notar a valori-zação dessa associação, quando os resultados são considerados produtivos, fugindo de escritos preconceituosos ou vulgarmente panfletários. É claro que o testemunho — a narrativa de quem viu o acontecimento — sempre foi valorado: toda a literatura de viagens e de cr onistas é citada, mas esses “escritores” não são historiadores. O que chama a atenção, nesses exemplos, é o fato de não haver nenhum tipo de objeção metodológica à integração memória-história no texto produzido. os Historiadores e seu Métier 123 Seguindo esse mesmo tipo de questão, vale a pena chamar a atenção para a presença e a valorização, nas obras mais elogiadas, do uso não só de uma grande variedade de documentos escritos oficiais, como de documentos “pessoais”, não oficiais, e também de documentos visuais. Os elogios feitos às obras de Nabuco, Oliveira Lima e Alcântara Machado ressaltam fortemente esse trabalho com fontes, que permitiria ao escritor compor uma narrativa “colorida” e “vívida” de sentimentos e aspectos da vida cotidiana. Um terceiro aspecto a observar, portanto, é que, se a história política (nela incluída a militar, diplomática e geogr áfica) é o centro da produção historiográfica, a “história social” (entendida como tudo o que “excede” a política) é extremamente valorizada. O historiador é um escritor, porque deve ter domínio da língua e estilo próprio, fugindo das adjetivações, dos “gongor ismos” etc. O historiador é umescritor
erudito, porque constrói uma narrativa — ordenando os fatos do passado no tempo — que não é mera cronologia, enumeração de eventos, nem ficção ou generalização “abstrata”. Ele não é um literato tout court, mas de seu texto espera-se o traçado da “vida de uma região” em certa “época”. O Rio de Janeiro quando D. João VI aqui chega em inícios do século XIX está nas páginas de Oliveira Lima, que, aliás, é bem pouco contemplado em termos de méritos literários; São Paulo e seus “homens e mulheres” dos séculos XVI e XVII estão em Alcântara Machado, entre outros que poderiam ser citados. Os historiadores “modernos”, como se começa a qualificá-los, são os que, ainda interessados em “fatos”, sabem a eles dar sentido processual. Sabem, portanto, “aproveitar” os documentos consultados e como que “pintar” um quadro da vida da comunidade (local, r egional, nacional) que estão examinando. Essa demanda é igualmente imperiosa para os livros escolares, que definitivamente devem deixar de ser manuais enfadonhos e ininteligíveis, onde se listam nomes, datas e o que bem se deseja, sem critério de valor. Este fato geral, aliás, é apontado como razão do desprestígio do saber histórico e do desinteresse absoluto que a disciplina suscitava entre os estudantes secundários. O historiador “moderno” era, assim, um escritor erudito que examinava com r igor metodológico toda uma vasta gama de fontes e a ela “dava sentido”. João Ribeiro e Pedro Lessa são os autores que melhor permitem, na amostra examinada, uma qualificação das questões que envolviam o trabalho interpretativo do historiador. É evidente, por um lado, que não se acredita mais nem na “transparência” da fonte que se “revela” ao historiador, nem na possibilidade de “imparcialidade”, definida como o afastamento cultural do historiador 124 História e Historiadores de seu tempo, exatamente por que se aceitava a ideia de uma multiplicidade de tempos.
A “imparcialidade” e o caráter “científico” da história estariam garantidos, como Capistrano de Abreu demonstrara, por procedimentos metodológicos que assegurassem tanto a confiabilidade das fontes quanto o cumprimento de regras que tornassem o olhar do historiador livre de “verdades” dogmáticas ou aprior ísticas. A verdade histórica era, nesses termos, a verdade dos fatos comprovados por um instrumental de que se armava o historiador. Contudo, ainda que tal verdade pudesse ser estabelecida de forma “positiva”, o “passado”, que era seu objeto de conhecimento, não era mais postulado como um “tempo-lugar” fixo: uma “realidade” imutável passível de apreensão definitiva. Sem dúvida, essa é uma temática complexa que, embora apenas apontada pelos artigos do suplemento, é extremamente significativa, considerando-se o momento em que aparece. A ideia de um passado sempre construído pelo presente — vale dizer pelo presente do historiador que o compreende — é clara nos textos de João Ribeiro. Essa ideia, entretanto, não contradiz a crença na necessidade de rigor metodológico: ao contrário, potencializa sua importância. Isso porque não se está falando de “manipulação” do passado ou de “mentira” do historiador, que deformaria “aquilo que aconteceu” com intenções espúrias do ponto de vista político. Quando João Ribeiro destaca o vínculo entre passado e pr esente no trabalho historiográfico, ele está remetendo à problemática historicista das singularidades das “culturas” através do tempo e do espaço. Dizer que não há uma “única” história da civilização, da qual todos os povos participam e que teria um único sentido e finalidade, é dizer que não há um “único” passado ou futuro par a todos os homens e/ou nações, e que ambos são construídos de forma singular, confor me circunstâncias variadas. Não
sendo o “futuro” previsível e rigidamente determinado por qualquer fator causal (Deus, forças naturais etc.), iluminava a centralidade do “presente” e do “passado” em sua produção. Ao historiador se impunha a verdadeira “obrigação mo ral” de ter consciência desse processo, do qual participava enquanto construtor do passado singular de seu povo. Precisava, assim, compreender o tempo-espaço no qual viviam os “homens do passado” que investigava, ciente de que ele próprio o fazia inserido no seu “tempo”. O rigor do método o aparelhava para a operação intelectual, mas ela só era bem-sucedida pelo compartilhamento dessa “filosofia sobre a história”. 4 O Estado Novo e a recuperação do passado brasileiro “A ordem social, a paz, o trabalho, a tolerância política favorecem o desenvolvimento de todas as capacidades criadoras da coletividade. vida popular conquista um mais alto nível de estabilidade. Usos, costumes, artes, literatura, ciências adquirem um impulso novo de verdadeira floração intelectual e estética. Estas páginas refletem esse espetáculo extraordinário de renascimento do Brasil Novo. Elas constituem um depoimento vivo e irretorquível do espírito de paz, de concórdia, de tolerância e de unidade que hoje desfrutamos.” Cultura Política, set. 1941
Cultura Política: “um espelho do Brasil” A CRIAÇÃO da r evista Cultura Política integra um gr ande conjunto de realizações na área da política cultural do Estado Novo, materializadas principalmente pela ação de dois órgãos do aparelho de Estado: o Ministério da Educação e Saúde (MES) e o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Este último, em sua estrutura organizacional, era resultado do Decreto-lei no 1.915, de dezembro de 1939, que alterara o Departamento Nacional de Propaganda (DNP), o qual, por sua vez, nasce-ra de transformações no Departamento de Propaganda e Difusão Cultural 126 História e Historiadores (DPDC), criado em 1934 no contexto das eleições indiretas para a presidência da República pela Assembleia Nacional Constituinte.106 Esta sequência deixa claro que as preocupações de Vargas quanto ao uso de técnicas modernas de propaganda política não datavam do Estado Novo, o que se evidencia ainda mais quando se observa que, de 1934 a 1942, a direção dessa tarefa esteve nas mãos de um mesmo homem: o jornalista Lourival Fontes. Sergipano e integrante da Aliança Liberal, Lourival Fontes aproximou-se de Vargas em 1930, e seu afastamento do DIP foi ocasionado por razões que em nada abalaram seu prestígio político e sua amizade com o então ditador. Certamente devido a seus méritos profissionais de jornalista e a sua fidelidade ao chefe da nação, fora mantido por quase uma década numa das posições que mais claramente traduziam a linha política que o regime liderado por Vargas desejava. O DIP, inclusive, estava diretamente vinculado ao gabinete presidencial, possuindo uma amplitude de ação bem maior que a dos ór gãos que o precederam, o que se revela pela presença de agências filiais em praticamente todos os estados do país (Deips). Vale notar também que a partir de 1939 Lourival Fontes passou a acumular a função de diretor do DIP e a de diretor do Conselho Nacional de Imprensa, cuja tarefa básica era fiscalizar a impr ensa em todo o terr itório nacional. No caso do DIP, seu objetivo tinha como que duas faces opostas e com-
plementares. plementares. Tratava-se Tratava-se de difundir difundir amplamente amplamente a imagem i magem do novo no vo r egime que se instalara instalara em novembro de 1937 1937 e de combater a veiculação de todas as mensagens que lhe fossem contrár ias. Para Para tanto, tanto, o ór gão dever dever ia ser um grande g rande mecanismo de promoção promo ção da figura figur a do chefe de de Estado, Estado, das autoridades que o cercavam e das iniciativas políticas então então implementadas, implementadas, produzindo e divulgando o noticiário oficial e supervisionando todos o s instrumentos instrumentos de comunicação comunicação de massa. O alcance dessa pro proposta posta traduzia-se traduzia-se na estrut estrutura ura do própr pr óprio io órg ó rgão, ão, dividido em cinco cinco seções: propaganda, radiodifusão, cinema e teatro, turismo e imprensa. A centralidade da seção de imprensa nesse conjunto é evidente, á que era era o locus de produção principal pri ncipal dos dos elementos do discurso que dever dever iam ser trabalha tr abalhados dos e transmitidos transmitidos por todos os demais meios de comunicação, segundo suas linguagens particulares particulares e recursos tecnológicos específicos. É justamente como parte integrante dessa seção que é criada a revista Cultura Política, Política, sendo sendo escolhido para dir igi-la, igi-l a, por indicação do pró prio 106 Sobre o DIP DIP ver o verbete do Dicionár do Dicionário io histór hi stóricoico-biográf biográfico ico brasil br asileiro, eiro, 1930-1983 (Beloch & Abreu [coor ds.], ds.], 1984, v. v. 2:1.076-9). o estado estado noVo noVo e a recup r ecuperação eração do passado Brasileir o 127 presidente, o intelectual Almir de Andrade.107 Se a revista nascia como a voz oficial of icial da proposta pro posta estado-novista estado-novista,, precisava ter ter como editor editor uma figu-ra figu-r a que estivesse estivesse perfeitamente perfeitamente afinada afinada não não só com o “espírito do r egime”, como principalmente com o “pensamento” de seu chefe, o que, na prática, significava a mesma coisa. co isa. Almir de Andrade Andrade preenchia como uma luva tal tal demanda. Chamara a atenção de Vargas ao escrever para a Revist a Revistaa do Brasil Brasi l uma crítica crí tica circunstanciada circunstanciada dos cinco primeir pri meiros os volumes vol umes da Nova da Nova política polít ica do Brasil e, em 1940, receber receber a uma proposta pro posta do do DIP DIP para escrever um livro l ivro sobre sobr e a evolução histór histórica ica do Brasil.108 Brasil.108 Força, Força, cultura cul tura e liberdade, liberdade, o resultado desse empreendimento, empreendimento, consolidara consolidar a a confiança do r egime no intelect intelectual ual e assentara assentara as bases do convite realizado em inícios início s de 1941 1941 para a direção dir eção do que dever dever ia ser a mais importante publicação do Estado Novo — “um espelho espelho do Brasil Br asil em tempo tempo de renovação” r enovação” (Andrade, (Andrade, 1941:8 1941:8). ). Por ter ter tal envergadur envergaduraa e gr andeza andeza de per per spectivas, spectivas, o editor esclarecia que a revista não tinha “partidos” e estaria aberta a intelectuais de diferentes cortes políticoideológicos, importando tão somente o mérito das contri contribuições buições que pude pudessem ssem oferecer. ofer ecer. O propósito pr opósito era tão verdad ver dadeir eiroo que ele próprio própr io dividiria a tarefa de seleção de text textos os da publicação publicação com co m
Graciliano Gr aciliano Ramos, nome conhecido conhecido por suas cr cr íticas ao regime, r egime, mas de indiscutível valor valo r intelectual.10 intelectual.1099 Segundo Segundo o próprio pró prio Almir de Andrade, Andrade, no editor editorial ial de abertura, abertura, a r evista evista tinha tinha duas missões fundamenta fundamentais is como com o prestador prestadoraa de serviços ao Brasil. A ela cabia definir definir e esclarecer, para um grande gr ande público, público, o curso das transformações transform ações que se vinham vinham processando pr ocessando na política, na economia, nas artes, nas letras, nas ciências etc., e debater constantemente os valores que orientavam tais mudanças. Nesse Nesse sentido, s entido, Cultura Política propunha-se ser um órgão informativo de amplo espectro, combinando tal tarefa tarefa com co m 107 Almir Almir Bonfim de Andrade Andrade nasceu no Rio de Janeiro , onde estudou estudou ciências jurídicas e so ciais. Nos anos 30 combinou sua atividade atividade de de advogado com co m estudos estudos de filosofia filo sofia e psicolog psicol ogia ia e uma atuação atuação em várias vár ias revist r evistas as literárias. literár ias. Sobr Sobree o autor, autor, ver Oliveira, Oliveir a, Lúcia Lúcia Lippi. Tradição e política: po lítica: o pensament pensamentoo de Almir de Andrade, e sobre sobr e Cultura Política ver Velloso, Monica Pimenta. Pimenta. Cultu Cultura ra e poder político: uma config uração do campo intelect intelectual, ual, ambos in: Oliveir a & Gomes (1982). (1982). 108 Depoi Depoimento mento de Almir Almi r de Andrade ao CPDOC, CPDOC, 1986. fita 1, p. 23. 23. Em Em 1943, Var Vargas gas nomear nom earia ia Almir de Andrade diretor da Agência Agência Nacional, Nacional, também também ór gão do DIP DIP, cujo objet o bjetivo ivo era er a dirigir diri gir a publicidade publicidade geral do governo go verno através da imprensa. 109 Depoimento de Almir de Andrade ao CPDOC, CPDOC, 1986. fita 1, p. 12. 128 História e Historiadores a preocupação explícita explícita de formar for mar consciên co nsciências cias em apoio aos ao s ideais do Estado tado Novo, que eram, em sua ó tica, tica, os ideais da nacionalidade nacionalidade brasileira. brasileir a. Essa pr pr oposta básica definia a forma de or ganização do perió dico, que, como outras publicações do r egime na época, apresent apr esentava ava um cuidado cuidado exemplar. Dividida em seções, cada uma vinha sempre precedida de uma “nota introdutória” trodutóri a” onde se esclarecia o tema tema que seria desenvolvido, desenvolvido, sendo fo r necida necida também também uma bibliografia bibliog rafia do autor autor ou dos autores que assinavam assinavam as matérias. matérias. Acompanhando a publicação de 1941 a 1945, pode-se ver claramente
que ela possui duas fases. De março de 1941, quando é criada, a maio de 1942, quando Lourival Fontes deixa o DIP, ou seja, nos seus primeiros 15 números, apresenta apresenta uma estrutura fixa de seis seções. “Problemas políticos polí ticos e sociais” funcionava funcionava como seção de abertura abertura e de impacto. Visava a situar e debater os mais graves problemas do país, ressaltando o tipo de encaminhamento que a eles vinha sendo dado pelo Estado Estado Novo. Text Textos os densos e consistent consistentes es ficavam a cargo carg o do própr pr óprio io Almir de Andrade Andrade e de intelectu intelectuais ais de gr ande pr pr estígi estígioo na época, como co mo Francisco Campos e Cassiano Ricardo, entre outros. O que se desejava enfatizar aí era tanto a complexidade de nossa situação quanto a possibilidade de enfrentar as questões em nome de um ideal nacional: “Um só pensamento nos une: o Brasil grande gr ande e unido, unido, como com o uma só alma”.1 alma”.110 Era nessa seção, por tant tanto, o, que se construía de for fo r ma mais erudit er uditaa um discurso de legitimação do Estado, Estado, discutindo-se discutindo-se conceitos como nação, povo, Estado, Estado, burocracia buro cracia etc. A seguir vinha a sugestiva seção intitulada “O pensamento político do chefe do governo”, go verno”, sob so b a responsab r esponsabilidade ilidade de Azeve Azevedo do Amaral, a quem se agregar agr egaria ia outro intelect intelectual, ual, Rosár Rosário io Fusco. Como Como a revist r evistaa desejava desejava ser um “espelho do Brasil” e como o principal construtor desse Brasil novo era o próprio presidente, presidente, tor tornava nava-se -se tarefa fundament fundamental al para o periódico perió dico “inter “inter pretar” seu pensament pensamentoo para o público, público, esclarecendo esclarecendo os aspectos aspectos mais relevantes relevantes e complexos, como por exemplo o moderno mo derno conceito de democr democracia acia defend defendido ido por Vargas. A fonte fundamental que alimentava tais textos eram os discursos do presidente, especialmente aqueles reunidos na Nova na Nova polític polí ticaa do Brasil. Brasi l. Como numa dinâmica complementar, complementar, seguia-se a seção seção “A estr estr utura utura jurídico-política jur ídico-política do Brasil”, onde magistrados de renome r enome — membros membro s do Ministério Ministério Público, Público, desembarg desembargador adores, es, ministro ministross do Supremo Tribuna Tr ibunall — esclareciam as caractecaracte-
110 Problemas Pro blemas políticos e sociais. Cultura Política (1):5, mar. 1941. o estado estado noVo noVo e a recup r ecuperação eração do passado Brasileir o 129 rísticas da Constituição de 1937, tão moderna e integrada às correntes internacionais quanto adaptada às tradições brasileiras.111 Ainda na mesma linha estava a quarta seção da r evista intitulada intitulada “Atividade governamental” que, como seu próprio título indicava, desejava informar mensalmente mensalmente as pr pr incipais realizações do governo gover no em quaisquer campos de sua atuação. De forma distinta das seções anteriores, essa possuía uma o rient ri entação ação absolutamente absolutamente pragmática pr agmática e, pela diversidade de temas que potencialmente abarcava, nela escreviam os mais variados membros membro s da burocracia buro cracia civil e militar. Apena Apenass para se ter ter uma ideia da amplitude plitude do que era tratado tratado na seção, no pr imeiro imeir o número númer o da r evista evista faz-se uma recapitulação recapitulação das principais iniciativas iniciativas do go verno nos 10 anos anterio anteriores, res, enumerando-se: a criação do Ministéri Ministérioo da Aeronáut Aero náutica, ica, a política de apoio à agr icultura, icultura, o novo no vo regimento r egimento do Museu Museu Nacional, Nacional, a criação do r egulamento egulamento para par a expedições expedições científicas científicas e artísticas artísticas estrangeiras, estrangeir as, a for-mação for -mação da Comissão Nacional Nacional do Livro Didático Didático e a elabor elaboração ação dos novos dispositivos da Lei do Serviço Militar.112 Finalmente Finalmente,, as duas últimas seções que integr integravam avam este este primeir pr imeiroo perfil da publicação tinham conteúdo e características bem distintos. Eram elas: “Textos “Textos e documentos histórico s” e “Brasil social, intelectual intelectual e artíst ar tístico”. ico”. A primeira prim eira propun pro punha-se ha-se r esgatar esgatar moment mom entos os fundamentais fundamentais de nosso passado, passado, através da publicação de “documentos históricos”; e a segunda constituía-se num amplo espaço, subdividido subdividido em várias vári as partes, onde se encont encontrava rava o núcleo progr pro gramát amático ico básico da publicação publicação no que se referia r eferia à política po lítica cultural cultural do Estado Estado Novo. Por essa razão, a seção er a intr intr oduzida por uma nota editorial, podendo-se encontrar também textos de apresentação para o que a revista chama de “evolução intelectual” intelectual” ou “evolução social”, so cial”, separadamente. separadamente. O responsáv r esponsável el por po r tais tais esclareciment esclar ecimentos, os, bem como pelo formato geral da seção, era Rosário Fusco, como se vê, um dos membros mais ativos ativos de seu corpo editor editorial. ial. Mass essa estrutura Ma estrutura sofrer so frer ia gr andes andes mudanças mudanças durante o ano de
1942, 1942, em função do context contextoo político de alinhamento alinhamento do Brasil com os Estados Estados Unidos Unidos e da posterio r entrada entrada de nosso país na guerra guerr a contra o Eixo. Isso porque é com esse pano de fundo que, durante o mês de julho de 111 A estrutura jurídico-política do Brasil. Cultura Política (1), mar. 1941. No artigo deste primeiro número, por exemplo, o juiz Aloísio Teixeira Teixeira esclarece esclar ece os sentidos sentidos que as palavras palavras “república” e “democracia” ganham no artigo 1o da Constituição. A Constituição de 10 de novembro de 1937 (p. 177). 112 A atividade governamental. Cultura Política (1), mar. m ar. 1941. 1941. 130 História e Historiadores 1942, 1942, eclode uma cr ise política polí tica envolvendo envolvendo algumas das mais important impo rtantes es personalidades do governo: go verno: o chefe de polícia polícia do Distr Distr ito Federal, Federal, Filinto Müller Müller;; o ministro m inistro interino da Justiça, Vasco Vasco Leitão da Cunha; o ministr m inistroo da Guerra, Guerr a, general Dutra, Dutra, e o diretor do DIP DIP, Lourival Font Fo ntes. es. O móvel da crise era banal — a realização de uma passeata antinazista pela União Nacional Nacio nal dos do s Estudantes Estudantes (UNE) (UNE) —, mas seu co mbustível — a disputa entre correntes simpáticas à Alemanha ou aos Estados Unidos dentro do aparelho de Estad Estadoo — era er a explosivo. O acompanhament acompanhamentoo do episódio á foi feito e não vale a pena retomá-lo com co m minúcias (Gomes, 1994, cap. cap. 6). O fundamental, no que diz respeito ao que está sendo examinado, é que entre entre as várias vári as alterações alterações que o confr onto produz pro duz — como a condução condução do então ministro do Trabalho, Marcondes Filho, à chefia da pasta da Justiça — encontra-se o afastamento de Lourival Fontes do DIP, a pedido do próprio general Dutra. Dutra. A escolha do novo dir etor etor r ecai entã entãoo sobre so bre um membro membr o do próprio gabinete do ministro da Guerra, o major Coelho dos Reis. Tal nomeação, nomeação, refor r eforçada çada pela declaração declaração de guerr a em agosto de 1942, teria desdobramentos fundamentais para a revista, que, já no mês
seguinte, saía com outro perfil e com o objetivo primor dial de conscientizar e mobilizar a sociedade brasileir a para o conflito. Portanto, a partir daí,Cultura Política, sem deixar de ser um “espelho do Brasil”, passa a im-plementar uma diretriz que visava basicamente ao desenvolvimento e à difusão de uma “cultura militar”, voltada para a “segurança da pátria” e destinada a garantir a “defesa nacional”. Essa reorientação traduz-se na estrutura organizacional do periódico, que deixa de possuir um número fixo de seções e passa a receber uma acentuada colabor ação de militares e de profissionais com for mação técnica. Apenas para se ter uma ideia da intensidade e da quantidade das mudanças, a revista, entre setembro e novembro de 1942 — log o, em apenas três números —, apresenta um total de 24 novas seções. Algumas delas eram exclusivamente dedicadas à questão da guerra, como “Política internacional”, “O Brasil e a guerra” e “O Brasil no exterior”; outras relacionavam-se diretamente com esse evento no tratamento que davam aos temas que abordavam: “Alimentação”, “Inquéritos e reportagens” etc. Embora essa mudança mais radical só possa ser detectada a partir de setembro de 1942, desde maio, portanto ainda com Lourival Fontes no DIP, já se podia sentir o quanto a guerra impactava a orientação da política cultural do regime. No número de maio inaugurase uma nova seção — “Política militar e defesa nacional” —, com vário s artigos de militares, havendo igualmente uma o estado noVo e a recuperação do passado Brasileir o 131 bibliografia dos melhores livros que podiam ser encontrados sobre o assunto.113 Essa seção, inclusive, seria mantida, dedicando-se ao estudo da política militar do governo e ressaltando o alto grau de desenvolvimento alcançado pelas Forças Armadas, graças aos esfor ços modernizadores do Estado. Além dela, no número de outubro, Cultura Política inaugura outra seção, intitulada “O Brasil na guerra”, cujo objetivo precípuo er a esclarecer o pensamento do presidente no que dizia respeito a questões como fascis-mo, preparação de nosso contingente militar, economia de guerra e outras.
Como um desdobramento de “O pensamento político do chefe do governo”, a nova seção também concentrava-se nos discursos de Vargas, só que ca-nalizando-os para a grande questão do momento. Dessa forma, combinava a dimensão programática e de culto à figura do presidente com uma dimensão informativa, também própria da revista. Era em “O Brasil na guerra” que o leitor podia acompanhar, mês a mês, o noticiário so bre a preparação de nos-so Exército e depois sobre seu desempenho nos campos de batalha da Itália. Um ano após a declaração de guerra, em agosto de 1943, a revista lança um número extraordinário, introduzido por um editorial assinado pelo embaixador norteamericano Jefferson Caffery. Essa edição traz inúmeras novas seções e matérias voltadas para os vários aspectos que a guerra impunha à economia e à sociedade brasileiras. Uma delas merece destaque especial na ótica deste trabalho. Encerr ando o volume e sob a r esponsabilidade do historiador Hélio Viana, é apresentada a seção “Outras guerras do Brasil: história, literatura e documentos”. Precedida de um longo ensaio, em que se relembravam todos os conflitos nos quais o Brasil estivera envolvido desde o século XVI, demonstrava como um “povo pacífico” sempre soube se defender, de armas na mão, quando sua soberania se via ameaçada. Essa menção explicita um dos pontos mais sig nificativos da orientação editorial de Cultura Política, que era aliar o tratamento das questões políticas e socioeconômicas mais candentes e atuais à dimensão cultural e histórica da nação, produzindo um discurso integrado e voltado para o objetivo direto da publicação: a propaganda do regime. Certamente o maior responsável por tal resultado tão harmônico era o próprio editor, não sendo absolutamente casual o fato de ter sido ele mantido na direção da revista, independentemente de quem estivesse ocupando a direção do DIP. 113 Política militar e defesa nacional. Cultura Política (15), maio 1942. 132 História e Historiadores
Portanto, se é impossível retomar, após esse momento, um mesmo tipo de tratamento para o periódico, vale ressaltar que as duas últimas seções de seu primeiro perfil continuavam existindo. Dessa forma, “Textos e documentos históricos” é mantida, ainda que com uma frequência muito irregular; e “Brasil social, intelectual e artístico” também permanece, a despeito de sofr er vários tipos de alterações. Como se tratava de um título que englobava um conjunto variado de subseções, o que se observa é uma variedade de procedimentos. Algumas delas são mantidas, embora tendo os títulos alterados. São os casos de “O povo br asileiro através do folclore”, que passa a se chamar simplesmente “Folclore”, e de “Páginas do passado brasileir o”, que se transforma em “Quadros do passado brasileiro”. Outras também são mantidas, mas sofrendo reduções significativas, como “Quadros e costumes regionais”, antes subdividida em partes dedicadas às regiões Norte (Raimundo Pinheiro), Nor deste (Graciliano Ramos) e Centro-Sul (Marques Rebelo), e “Literatura”, também subdividida em “literatura de ideias, histórica, latinoamericana e de ficção”. Nela escreviam intelectuais como Prudente de Morais Neto (Pedro Dantas), seu maior responsável, além de Gilberto Freire e Nelson Werneck Sodré, por exemplo. Há, finalmente, outras seções que, embora mantidas com os mesmos títulos, saem sem perio dicidade regular: “Música”, “Cinema”, “Teatro”, “Rádio”, “Educação” e “Movimento bibliogr áfico brasileiro”. Ordem política e evolução social: o “lugar ” dos intelectuais A revista Cultura Política, seguindo a proposta que orientava sua própria denominação, reservava significativo espaço em suas páginas ao esclarecimento e à difusão da política cultural que caracterizava o novo r egime. A seção “Brasil social, intelectual e artístico”, com suas múltiplas e muito diversificadas subseções, traduzia a importância e o sentido do investimento que o Estado Novo realizava. Portanto, é ela o alvo por excelência das reflexões desta análise. Como se tratasse de uma espécie de seção “guarda-chuva”, nela iria colabor ar um número muito gr ande de intelectuais, havendo tanto aqueles que, por sua própria responsabilidade em relação a uma subseção,
deixam sua marca específica na produção e difusão do discurso estado-novista, quanto aqueles cuja presença varia de uma participação mais assídua até uma meramente bissexta. De qualquer forma, é interessante observar a distância que separa, nesse aspecto, a construção do suplemento literário Autores e Livros e a de Cultura Política. o estado noVo e a recuperação do passado Brasileiro 133 Por se organizar em torno da figura de um homenageado já falecido, o suplemento concentra boa parte da seleção de seus textos na obra do próprio autor e destina o espaço restante à publicação de documentos a ele relacionados (cartas, fotos etc.) e a ar tigos de comentaristas que a ele se referem. Devido a essa lógica, o elenco de nomes que se constrói a partir dessa publicação envolve grandes figuras do mundo intelectual, em boa parte companheiros em vida do autor, também já desaparecidos. O suplemento nos aproxima de uma produção — extratos de livros, artigos de jornais e revistas — elaborada a partir da virada do século XIX para o XX, sendo quantitativamente raras as matérias contemporâneas ao próprio ornal. Estamos, assim, frequentando a rede de relações de sociabilidade da elite intelectual das primeiras décadas republicanas. No caso de Cultura Política, como já ficou claro , há tanto a presença dos gr andes intelectuais/ideólogos do Estado Novo, que atuam em seções específicas e fazem uma discussão pro gramática e sofisticada dessa nova proposta política, quanto a presença de colaboradores “especializados” em determinados assuntos, que podiam ou não ocupar cargos na burocracia dos poderes Executivo e Judiciário. Apenas para se ter uma ideia do número e do tipo de pessoas que a publicação mobilizou, no no 33, de outubro de 1943, é publicada uma listagem de 261 nomes, entre os quais figuram, de for ma relevante, professores primários, secundários e do ensino superior
de diversas instituições do país, profissionais liberais em geral, além dos militares, magistrados e funcionários públicos já mencionados.114 Essa diversidade é particularmente sentida na seção “Brasil social, intelectual e artístico”, devido a suas próprias características de composição, o que se acentua ainda mais após as transfor mações que a revista sofr e em meados de 1942. Assim, ao trabalhar basicamente com esse material, estaremos lidando não só com um grande número de articulistas, como principalmente com textos produzidos para serem publicados em Cultura Política por elementos que, em sua maior ia, não têm maior projeção no mundo intelectual. Enquanto em Autores e Livros é possível fazer uma discussão historiográfica fundada no delineamento “de quem é” o historiador e “do que constitui” o trabalho do historiador, em Cultura Política o caminho mais fr utífero é o que busca compreender “qual o lugar da história” na construção do discurso estado-novista e, como desdobramento, “qual é a história 114 Colaborador es de Cultura Política até o número 30 . Cultura política (33):7-20 , out. 1943. 134 História e Historiadores do Brasil” que se está reescrevendo nesse momento para um público de elite, mas não circunscrito aos círculos da educação formal. Estas duas últimas indagações constituem, portanto, as diretrizes que orientam toda a reflexão que se segue, e que procurar á não abandonar a temática do perfil do historiador, buscando mantê-la por meio de outro tipo de abor dagem. Com tal preocupação, a lista de 261 articulistas de Cultura Política em seus mais de dois anos de funcionamento foi examinada de forma a detec-tar que nomes eram associados ao campo dos estudos históricos, tanto através da designação “profissional” de historiador, quanto através de um vínculo com instituições explicitamente ligadas a esse campo do saber, sobr etudo os institutos históricos e geográficos. Da seleção, resultam 23 figuras, a maioria sem projeção. As exceções, no caso, são: Câmara Cascudo e Basílio de Magalhães, que atuaram como responsáveis pela subseção “Folclore”; Prudente de Morais Neto, o consagrado crítico de “Literatura de ideias”; Hélio Viana, talvez o historiador mais influente de Cultura Política e, a seu lado, João Dornas Filho, Gilberto Freir e, Nelson Werneck Sodré, Severino Sombra e Vicente Tapajós. Mas antes de examinar o conjunto de subseções que, compondo “Brasil social, intelectual e artístico”, permitem uma reflexão sobre o “lugar da história” no discurso
do regime e da revista, é fundamental analisar a série de editoriais escrita por Rosário Fusco, na medida em que, nesses textos, o sentido da seção como um todo bem como sua função específica estão sendo claramente demarcados por seu responsável maior. O primeiro aspecto que chama a atenção é o fato de se poder determinar uma nítida estrutura de argumentação, na qual, para além do tema substantivo tratado, há sempre uma ideia recorrente sendo explicada e repensada. A mensagem por excelência da seção está contida nesses editoriais, no enredo que monta e nos personagens que mobiliza. O tipo de estratégia discursiva inevitavelmente nos remeteu a outro conjunto de discursos, também emitidos no mesmo período, mas voltados para o utro público-alvo, usando outro instrumento de comunicação de massas e envolvendo outro enredo. Trata-se dos discursos do ministro do Trabalho, Alexandre Marcondes Filho, pronunciados no r ádio, mas depois publicados no jornal A Manhã, centrados na grande obra de legislação trabalhista e previdenciária do Estado Novo.115 Assim como as falas de Marcondes constroem uma grande narrativa em torno da elaboração das leis do trabalho no Brasil e nela assentam o pacto 115 Analisei tal discurso no cap. VI de A invenção do trabalhismo (1994). o estado noVo e a recuperação do passado Brasileiro 135 político firmado entre os trabalhadores/cidadãos e o presidente/regime/Estado, os editoriais de Rosário Fusco também seguem lógica estrutural muito semelhante, só que voltando-se para a implementação de uma política cultural e celebrando um acordo entre intelectuais e Estado nacional. O melhor ponto de partida é o próprio editorial de apresentação da seção como um todo, publicado no primeiro número, de março de 1941. O texto tem início com uma afir mação sugestiva do objetivo maior do Estado Novo:
“A ordem social, a paz, o trabalho, a tolerância política favorecem o desenvolvimento de todas as capacidades criadoras da coletividade. Pelo que um povo produz na esfera das letras, das artes e das ciências, dos usos e costumes sociais ode-se avaliar a sua vitalidade...” 116 A linguagem é a da “produção” e do “trabalho” de um povo que se realiza em vários níveis, todos concorrendo para o desenvolvimento da coletividade. Um deles é o nível da “produção cultural”, dependente das condições socioeconômicas e políticas mais globais, envolvendo não só artes e ciência (“cultura erudita”), mas também usos e costumes (“cultura popular”), e sendo colocado como indicador seguro e necessário da “vitalidade” do povo. Há correlação e hierarquia entre níveis, donde a subdivisão expressa nos títulos dos editoriais que se seguirão: “A ordem política e a evolução social”, “A ordem política e a evolução ar tística”, “A ordem política e a evolução intelectual”. A “ordem política” vem primeir o: ela é a instância criadora de qualquer tipo de desenvolvimento, como todo o projeto ideológico estado-novista reafirma sempre. Mas, em relação ao mundo da cultura, ela assume uma função tutelar particularmente estratégica e difícil, que se exprime pelo uso da categor ia de “permissão do político” à evolução intelectual. A “singularidade” dessa “permissão”-relação estaria, a nosso ver, no fato de a política-Estado ter como par complementar os intelectuais, atores e criadores por definição dos bens simbólicos que alimentam a própria mecânica de funcionamento do poder. Além disso, os “produtos” a serem gestados dizem respeito a uma sofisticada gama de bens, não passíveis de redução e de avaliação instrumental. São os atores 116 Editorial, Brasil social, intelectual e artístico. Cultura Política (1):227, mar. 1941. 136 História e Historiadores envolvidos nesse “pacto” e sua própria natureza simbólica que distinguem a operação a ser realizada pelo Estado e merecem a atenção de Cultura Política. Por isso, ainda no primeiro número da revista, no editorial referente a “A ordem política e a evolução social”, procura-se deixar claro que “a vida social progride ou retrocede em função dos elementos que a política lhe confer e”.117 Ou seja, a perspectiva é nitidamente evolucionista, mas não
há uma direção previsível nessa evolução. Se há ideia de processo, não há de progresso garantido por qualquer “mão invisível” ou “lei científica”. O retrocesso não só é possível como, no caso do Brasil, foi experimentado. O “progresso” da coletividade advém da tutela política sobre a or dem sociocultural em todos os tempos, o que se pode efetivar pela pura força da autoridade ou por um “acordo tácito” em que a ordem social não exorbita de suas limitações e a ordem política não se afasta das “fontes de formação do povo”. Nesse acordo entre a “vontade de poder” e o meio sociocultural no qual o poder se exerce está tanto a possibilidade de vitalidade do social quanto a razão da representatividade da política. Esta não “determina” a “fisionomia íntima” do social, que não pode ser alterada por leis e decretos, ainda que orientados por boas intenções. É evidente a crítica subjacente à Primeira República e aos profissionais da política que acreditavam em um Brasil legal desvinculado das características da nacionalidade. As leis, por mais sábias e perfeitas que fossem, como documentos da boa vontade humana jamais conseguiriam modificar o “espírito de uma sociedade”. Esse “espírito” existiria independentemente de fórmulas teóricas, “informando” a sociedade, que agiria em seu nome inconscientemente. A eficácia da política residir ia exatamente em estabelecer um processo de comunicação com essas tradições pro fundas da nacionalidade, comunicação esta garantidora da evolução social e da legitimidade política. O discurso fixa bem, portanto, os limites do construtivismo político que existe e é necessário e desejável, mas que não é arbitrário e desprovido de bases sociais. A grande virtude do Estado Novo estaria em ter consciência desse fato e estar trabalhando com ele de forma exemplar. A supressão dos “intermediários” entre o povo e o regime — evitando que a comunicação se fizesse com os r uídos dos partidos políticos — e o sucesso da ação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, com sua política trabalhista, demonstravam, para os articulistas da revista, que a consciência nacional não era uma “entidade metafísica”. 117 A ordem política e a evolução social. Cultura Política (1):230-1, mar. 1941. o estado noVo e a recuperação do passado Brasileiro 137 Assim como o Estado Novo vinha conseguindo popularidade e bons resultados na área da política social trabalhista, estabelecendo o diálogo entre o povo e o presidente e, por meio dele, criando a paz social e o cr escimento econômico, precisava igualmente fazê-lo em outras áreas fundamentais, avul-tando entre elas a da produção cultural. Isso porque se entendia que o
progresso social de um povo era material, mas também era de “civilização”. E, principalmente, porque se sustentava que o acordo entre a “política” e a “sociedade” não se faria sem a cooperação dos intelectuais; voltava-se para eles, para os que melhor captavam e expressavam essa consciência coletiva mais profunda. Portanto, para “compreender” tal sentimento de nacionalidade era necessário um certo “hábito de pensar” pouco comum; era necessário um “intérprete”, um “erudito”, fosse ele sociólogo, filósofo, literato, historiador ou artista. Neste ponto, é como se a narr ativa de Cultura Política sofresse uma inflexão. Estabelecida a centralidade fecundadora da política, mas também reconhecidos seus limites e a condição de sua eficácia — a cor respondência com o “espírito nacional” —, estava demarcado o “lugar do intelectual”. Se a ordem política era a responsável pelo progresso sociocultural, o próprio curso da política precisava ser or ientado por “profissionais” detentores de capacidades raras e definidas como “hábito de pensar”: os intelectuais. O pacto entre or dens era mediado por outro pacto no nível dos atores coletivos: aquele que envolvia intelectuais e aparelho de Estado. Mais uma vez a própria revista sugere aproximações com o que vinha ocorrendo na ordem econômica, com o término do que chamava de “o longo divórcio entre os trabalhadores brasileiros e o Estado”, por inter-médio da ação de políticas consequentes. Se no caso dos intelectuais não se chegara a ter um divórcio, existia uma inequívoca tradição de “afastamento ostensivo e consciente” entre gerações políticas e intelectuais: “Dir-se-ia que a inteligência era incompatível com as funções públicas ou que os intelectuais (...) relegavam as atividades políticas ara segundo plano.” 118 O editorial escolhe, a seguir, o s exemplos de José de Alencar, que não fugiu à “redução política”, mas preferia ser tratado como homem de letras, e de Machado de Assis, “que fazia questão de proclamar-se indiferente aos interesses políticos”. Alencar, sobretudo, era pedagógico, pois “costumava dizer 118 A ordem política e a evolução intelectual. Cultura Política (1):250, mar. 1941. 138 História e Historiadores
que só não vencia politicamente porque era inteligente demais para ser compreendido por nossos políticos, homens de poucas letras e grande astúcia”.119 O afastamento era antigo e profundo e já fora alvo de explicações como a de Graça Aranha, que “atribuía o fenômeno à falta de vocação para a coisa pública que, a seu ver, caracteriza o intelectual brasileiro”.120 Nesse diagnóstico, portanto, as causas de tão danoso distanciamento radicavam-se nos intelectuais, ciosos de sua inteligência e céticos em relação à política. Mas não seria esta a explicação do editorialista, que, numa operação discursiva semelhante à r ealizada por Marcondes ante o trabalhador brasileiro desvalorizado, ir ia justamente culpar as elites políticas precedentes, especialmente as da Primeir a República. Ante o desprezo com que os governos olhavam as manifestações do “espírito criador brasileiro”, ante a ausência de qualquer iniciativa governamental de apoio às obras da inteligência, ante a incompreensão da função social dos intelectuais, estes respondiam com seu desinteresse e ceticismo. Os intelectuais, não satisfeitos com o Brasil e menos ainda com seus governos, não lhes davam atenção. É verdade, seguindo sempre Rosário Fusco, que a Primeira Guerra abalara tal desencanto, “acordando” os intelectuais para o gosto do conhecimento de nosso passado, de nossa gente e de seu futuro. Mas apenas após a Revolução de 1930 a situação começara a mudar mais radicalmente, iniciando-se uma aproximação necessária em que o regime reconhecia a liberdade do intelectual, amparava-o política e institucionalmente e solicitava sua cooperação na administração pública e em inúmeros outros empreendimentos. O grande agente e condutor dessa verdadeira revolução era o Ministério da Educação e Saúde, que percebia a relação profunda entre “produtos intelectuais” e meio social e garantia condições para que toda a vida cultural girasse em tor no dos pr oblemas da nacionalidade e da busca de suas soluções. Homens como José de Alencar, Machado de Assis e Euclides da Cunha — verdadeiras “expressões da alma brasileira” — não poderiam amais ser sufocados ou subordinados por governos, mais deveriam ser chamados a com eles cooperar com sugestões e realizações. Produtores intelectuais não se impr ovisam, quer à feição dos “homens de letras” de
inícios do século, quer à feição dos especialistas for mados pelas novas universidades. A aceleração do ritmo da produção intelectual de um povo era, 119 A or dem política e a evolução intelectual. Cultura Política (9):387, nov. 1941. 120 Editorial, Brasil social, intelectual e artístico. Cultura Política (1):250, mar. 1941. o estado noVo e a recuperação do passado Brasileiro 139 por isso, indicador valioso do desenvolvimento do país. Era porque os intelectuais comprovavam agora a atenção que o Estado destinava às realizações culturais que eles não se negavam mais a ocupar o s espaços para os quais eram convocados. É bem verdade que essa aproximação tivera antecedentes que podiam ser situados nos anos 20, quando os intelectuais brasileiros viveram momentos de grande fervor criador, sendo os primeiros a “sentir” e a pregar abertamente a revolução que se aproximava, portadores que eram desse “sentido de mistério” a que se referia Machado de Assis.121 Feita a revo-lução, os intelectuais puderam finalmente respirar e trabalhar, tendo sua ação canalizada e aproveitada por uma sábia orientação política. A figura do intelectual emerge dessa construção inteiramente “desresponsabilizada” do afastamento ocorrido em r elação à política e profundamen-te valorizada e solicitada a integrar os quadros administrativos do Estado. O diálogo que se trava com várias gerações intelectuais é esclarecedor e merece ser ressaltado. Se a tradição de afastamento entre política e intelectualidade “nasce” em meados do século XIX — com Alencar —, e conforma uma “atitude mental”, essa atitude se consolida no início da República e se expressa pela geração de 1890, personalizada na figura de Machado de Assis. Mas não há como negar que durante todo esse tempo tivemos intelectuais doublés de políticos, a demonstrar as tensões e seduções permanentes da relação. O discurso de Cultura Política não é contudo acusatório. Ao contrário, ele postula a defesa da liberdade da inteligência e identifica ainda como causa de indiferentismo a insensibilidade política ante o necessário apoio às atitudes culturais. Ao não assumir suas própr ias responsabilidades, o
Estado desvalorizava os intelectuais, como desvalorizava os trabalhadores, pondo-os à mar gem da participação política patriótica. Tratava-se, por conseguinte, de construir uma outra tradição, uma o utra “atitude mental”, sendo a geração modernista a mediador a da transição que se iniciara nos anos 20 e se completava nos anos 40. Os modernistas ade-quavam-se magnificamente bem à tarefa, tanto porque reinstauravam a temática da brasilidade com feições militantes, quanto por que eram os intelectuais disponíveis para o preenchimento dos cargos públicos do Estado Novo. O discurso de Cultura Política é francamente pacificador e mobilizador do campo intelectual. Estabelecidas as bases do “acordo” entre ordem política 121 A ordem política e a evolução intelectual. Cultura Política (5), jul. 1941. 140 História e Historiadores e social, e da necessidade de sua articulação com o verdadeiro “espírito nacional”, cabia ao intelectual a função social estratégica de ser o “intérprete” da brasilidade, tarefa que, por suas aptidões específicas, só ele poderia realizar. Sendo sua cooperação essencial, ela não se faria no vazio de promessas, mas se fundaria numa série de indicadores objetivos, traduzidos nas diversas iniciativas que o Estado Novo passava a assumir no campo da política cultural. A política cultural de recuperação do passado No editorial de Rosário Fusco que apresenta pela primeir a vez a seção “Brasil social, intelectual e artístico”, a promessa era de que as páginas que se seguiriam refletiriam sempre o “espetáculo extraordinário de renascimento” das capacidades criadoras dos brasileiros em todas as esferas.122 Logo a seguir, em outro texto, a razão precípua desse fato é explicada nos seguintes termos: “Hoje, podemos afirmar que existe uma política brasileira que é uma autêntica expressão do nosso espírito nacional. Nesse espírito social ajustaram-se as necessidades do nosso presente às conquistas do nosso
assado, para formarem esta permissão tríplice da política, que nos concede agir, ensar e criar o Brasil...” 123 Nesse sentido, o cerne da reflexão que se vinha encaminhando e sustentando estava contido na adequação entre “política” e “espírito da nacionalidade”, ou seja, conseguirase finalmente delinear/produzir esse “espírito nacional”, o que possibilitava o encontro da harmonia social. Não só nesse como em inúmeros outros artigos, fica claro que tal categoria não devia ser entendida como uma “entidade metafísica” ou alguma forma de “sentimento espontâneo transcendente”, desde sempre existente e “pronto” a r evelar-se aos brasileiros. O “espírito da nacionalidade” era um construto, ao mesmo tempo buscado e criado por nossa intelectualidade. Tanto que o artigo citado inicia-se com uma menção a 122 Editorial, Brasil social, intelectual e artístico. Cultura Política (1):227, mar. 1941. 123 Influência política sobre a evolução social, intelectual e artística do Brasil. Cultura Política (1):228-9, mar. 1941. o estado noVo e a recuperação do passado Brasileiro 141 Joaquim Nabuco e a um de seus escritos à época da campanha abolicionista, diagnosticando justamente a falta do que chamava de “homogeneidade nacional” em nosso país. Modernamente, segundo a revista, essa “homogeneidade” recebia a designação de “espírito” ou “consciência” nacional. A dificuldade de produzir essa consciência no Brasil devia-se, inclusive, ao fato de a “nacionalidade” ter sido reduzida a um simples “grêmio po-lítico” mantido por “contrato de interesses”, concepção utilitária em “completa contradição com o conceito orgânico, racional e cristão” que herdamos de “nossos maiores”.124 Mais uma vez, a crítica ao liberalismo é contundente, sendo a condução das elites políticas a responsável pelo “atraso” vivenciado por nosso país. A concepção equivocada de nacionalidade, que, bem entendido, se desviava de nossa “herança”, respondia pela impossibilidade de produzir uma “consciência coletiva” que pudesse orientar os rumos da política e, em o fazendo, desencadear suas potencialidades estimuladoras. O “espírito nacional” de um país podia muito bem ser encontrado/criado — a ideia é sempre plena dessa ambiguidade constitutiva — nos “costumes da tradição, da religião, da raça, da língua e da memór ia do passado” do povo. O
acordo entre ordem política e social, o equilíbrio entre forças dirigentes e dirigidas que o Estado Novo produzia advinham fundamentalmente dessa adequação cultural profunda, causa e produto de sua legitimidade. Toda a política do pós-37 era uma reação ao “materialismo” anterior, que, segundo os editoriais, romanti-zava o futuro, hipervalorizava o presente e condenava o passado.125 Havia assim um erro “original” por parte de nossas elites políticas no tratamento dos “tempos”, o que estava sendo sanado pelo Estado Novo. Ele enfrentava os problemas do presente, sem idealizações do futuro, mas com a certeza de produzi-lo melhor exatamente porque não se negava a refletir sobre o passado, buscando-o como um “manancial de inspiração”. “Espírito nacional” e “passado” eram, nesse sentido, categorias independentes, devendo ser examinadas com extrema atenção. Em primeiro lugar, salta a ideia de que o Brasil era um país que condenava “seu passado” porque o temia. Alguns intelectuais, como Alberto Tor res por exemplo, são apontados como alimentadores dessa ótica da nacionalidade que divisava apenas relações entre presente e futuro. Não temer o passado transformava-se numa espécie de primeiro mandamento para a política cultural 124 Influência política sobre a evolução social, intelectual e artística do Brasil. Cultura Política (5), jul. 1941. 125 Idem. Cultura Política (5), jul. 1941. 142 História e Historiadores do Estado Novo. Isso se testemunhava nas falas do próprio presidente, que não perdia a oportunidade de reatar passado e presente, mostrando que, “mesmo em plena vigência das lutas internas mais espetaculares”, conseguíamos manter os princípios humanos e cristãos da nacionalidade.
Portanto, “o passado” aparece como uma espécie de fantasma a ser enfrentado, como condição para deixar de assombrar e poluir o “espírito nacional”. As razões desse temor não são explicitamente equacionadas pela revista, mas há indícios de que advinha não só de um real desconhecimento de nossas origens, como de um sentimento de inferior idade que precisava ser definitivamente exorcizado. Em segundo lugar, “o passado” é postulado como um “manancial de inspiração”. Não se trata de acreditar em retorno, nem em uma concepção de passado (história) como “mestre” do presente e do futuro. Essa concepção ficava, aliás, comprometida pela assertiva anterior, que indicava uma tradição bem maior de deméritos que de méritos. É claro que sempre se podia argumentar que se aprende também com err os, com o s maus exemplos, mas não seria este propriamente o objetivo da política cultural do Estado Novo em seu esforço de “recuperação do passado”. A “necessidade” do passado, sua inscrição como “fonte” da nacionalidade e, por conseguinte, como bússola da política advinham muito mais, acreditamos, da or ientação sustentada pelos ideólogos do regime de que não havia governos bons ou maus — não havia modelos universais —, e sim governos adequados ou não a uma realidade singular. Mais uma vez, a clara perspectiva historicista impunha uma valorização do “passado”, única categoria capaz de preencher com respostas verossímeis tal exigência de “adequação”. Também torna-se evidente que essa demanda implicava uma leitura positiva do “passado”, o que igualmente não podia resvalar para excessos idealizadores que a política “realista” do Estado Novo igualmente não comportava. “A nova política do Brasil não inspira outra coisa senão a união da cultura com a vida. Realista, seus postulados se firmam em bases de uma segurança, que, existindo no presente, vai afirmar
seu ponto de apoio nos alicerces do passado.” 126 126 Influência política sobre a evolução social, intelectual e artística do Brasil. Cultura Política (2):237, abr. 1941. o estado noVo e a recuperação do passado Brasileiro 143 A operação intelectual não deixa dúvidas quanto à sua dinâmica conservadora. Trata-se de buscar um “sentido”, de interpretar uma realidade social, mas não pela constatação simples de algo que existe — um destino, um tempo cíclico —, mas por um tipo de aproximação — pelo uso de um método —, que consiste em se “chegar ao real por trás”, a partir de seu “passado”. O presente não é assim o começo do futuro, mas o último momento do passado, numa perspectiva evolucionista, mas não progressivista, como já se acentuou (Mannheim, 1981). Finalmente, em terceiro lugar, essa postulação de “passado” não é unitária. Se o “espírito nacional” está nos costumes, na raça, na língua e na memória, devendo todos ser r ecuperados e valor izados, há duas concepções de passado sendo propostas e convivendo nesse discurso. A de um passado ligado à cultura popular e que, manifestando-se através de um conjunto de tradições, convive com o presente, sendo a-histórico e referindo-se a uma ideia de tempo não datado; e a de um passado histórico, ligado a uma ideia de tempo linear, cronológico, datado e referido à memória de fatos e personagens únicos, existentes numa sucessão à qual é vedado conviver com o presente. Ambos os sentidos de passado, ambas as formas de postular sua relação com o presente e o futuro, como veremos com vagar a seguir, convergem para uma visão mais ampla de totalidade que dele emerge de forma fundamental. É interessante observar que, na seção “Brasil social, intelectual e artístico”, há espaços reservados para cada uma delas — “folclore”
ao lado de “história”, costumes regionais ao lado de páginas do passado. O esfor ço de “recuperação do passado” não distinguia um desses sentidos em detrimento do outro, mas implicava operações específicas em cada caso. Tanto os “conteúdos” vinculados às tradições populares quanto a história do Brasil precisavam ser trabalhados de for ma adequada, sem preconceitos de inferior idade ou de superior idade ufanista, ambos prejudiciais ao “espírito nacional”. A “política” vinha ignorando as duas dimen-sões desse “passado”, afastando-se do povo e de nossos “maiores”.127 127 O Estado Novo investe muito, e de forma diferenciada, numa política de “recuperação do passado”. O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) é uma de suas mais importantes iniciativas e vem sendo objeto de estudos de historiadores e cientistas sociais. Não ignoro os estreitos vínculos entre essas várias faces de uma mesma política cultural, mas não tratarei aqui do Sphan, concentrando-me numa seara menos explor ada até agora. 144 História e Historiadores O “lugar do passado” nessa construção discursiva é, como se vê, crucial e, neste “passado”, o “lugar da história” é extremamente relevante e complexo, como a argumentação de Cultura Política pretende demonstrar e este trabalho procurará reconstruir (Le Goff, 1990:47 e seg.). Com o exame exclusivo dos editoriais que precedem a seção como um todo e as subseções voltadas para a “evolução intelectual”, fica evidente que se trata de “interpretar” nossa história para também nela encontrar um sentido, mais uma vez distante das ideias de utopia, fatalismo ou imobilismo. Esse “sentido”, a nosso juízo, é identificado no processo de centralização política que estaria presente na evolução social do Brasil através do tempo, ini-ciada com Tomé de Sousa e ganhando contornos contemporâneos com Getúlio Vargas. A “vocação” centralizadora que o estudo da história do Brasil vinha traçando confirmava-se em todas as experiências fracassadas de descentralização, quer a das capitanias hereditárias, quer a do hiperfederalismo republicano. Nada surpreendente, portanto, considerando-se a experiência política estado-novista. O que torna essa leitura interessante é, na verdade, a forma pela
qual ela se associa a uma certa concepção de fazer história do Brasil, atacando “outra”, considerada persistente e resistente. Isso porque, para Cultura Política, aqueles que sempre defenderam a descentralização política fizeram-no esgrimindo o forte argumento da extensão geográfica do país, indicador tanto de sua grandeza quanto de suas dificuldades de chegar a integração e harmonia. Uma pequena citação pode ser pedagógica: “Imbuídos das teorias sociológicas da época (...) eles [os partidários da descentralização] queriam (...) fazer tudo derivar dos chamados fatores internos (...). Entretanto, nós sabemos (...), a geografia não é tudo, sendo, antes de mais nada, incapaz de fazer modificar a natureza do homem de uma determinada raça.” 128 Dessa forma, embora o discurso da revista procurasse construir uma história política do Brasil marcada basicamente pela continuidade da centralização, própria do pensamento conservador que valoriza a autoridade, ele não excluía rupturas no processo, responsabilizando uma concepção 128 Influência política sobre a evolução social, intelectual e artística do Brasil. Cultura Política (4):213-5, jun. 1941. o estado noVo e a recuperação do passado Brasileiro 145 mais “espacial” de nossa história por tais desvios. Por conseguinte, o elemento de continuidade com a linha evolutiva tradicional no caso da construção historiográfica, não impedia a afirmação de uma ordenação mais temporal do que espacial dos acontecimentos, antes pelo contrário. Assim, o que os textos dos editoriais parecem indicar é uma espécie de dupla operação. De um lado, r eserva-se o “passado” tradicional da cultura popular para uma concepção espacial dos fatos de nossa cultura, organizada por regiões geogr áficas com seus costumes religiosos, alimen-
tares, musicais etc. Não se tratava de expulsar essa percepção geográfica, tão marcante de nossa evolução social, e sim de circunscrevê-la e/ou, principalmente, de abrir campo para outro tipo de concepção. De outro lado, o passado histórico brasileiro precisava justamente libertar-se dessa preeminência “geográfica”, apontada como aquela que procurava derivar nossa evolução de fatores “naturais”, como se eles fossem capazes de modificar as características dos “homens de uma raça”, de um “povo”. Embora numa primeira leitura a linha de argumentação pareça indicar tão somente uma reatualização do debate entre duas vertentes datadas de fins do século XIX — a que defendia a principalidade do meio/clima e a que insistia na centralidade da questão r acial —, o que ocor ria não era tão simples. Em primeir o lugar, porque os argumentos “geográficos” continuavam coexistindo, de forma muito própria, com os “históricos”; em segundo lugar, porque quando se falava em “raça”, não mais se possuía os mesmos referenciais biológ icos próprios ao pensamento de fins do século XIX e inícios do XX. A palavra “raça” era a mesma, mas, no novo contexto, ela estava sendo preenchida basicamente por conteúdos socioculturais e não étnicos. Por essa razão, talvez, os dois sentidos de passado e de tempo — um eminentemente histórico/cronológico e outro não datado e “vivo” no presente — constituíssem as faces de uma totalidade que precisava ser montada com tanta eficiência e cuidado. Mas, do ponto de vista que nos interessa destacar, se o presente permanece ancorado no passado como tradição, durante os anos do Estado Novo faz-se um esforço consciente e avultado para redescobrir o passado histórico enquanto realidade antecedente e passível de compreensão. Um passado histórico que não podia, como a tradição, coexistir com o presente, mas que era fonte de explicação para o novo. Provavelmente, não é casual o fato de este discurso estar sendo emitido em ar ticulação com uma série de iniciativas públicas, avocadas
pela revista como comprovação de sua tese de “recuperação do passado”. 146 História e Historiadores Antes de mais nada, a Lei Orgânica do Ensino Secundário — Decreto-lei no 4.244, de 9 de abril de 1942 —, que finalmente dera à história do Brasil “o lugar que lhe competia”, separando-a da história geral e retirando-a da situação “lamentável” a que fora relegada pela refor ma Campos de 1931. Era bem verdade que tal situação já vinha sendo revertida desde inícios de 1940, por portaria do ministro Capanema, mas ela só se concluíra dois anos depois com a restauração completa da disciplina. No mesmo ano de 1940, fora criado, em Petrópolis, o Museu Imperial, multiplicando-se pelo país as sedes do Instituto Histórico e Geográfico. Aliás, todos eles estavam na lista das 23 associações históricas subsidiadas pelo governo federal, das quais apenas três não eram entidades desse tipo: a Sociedade Capistrano de Abreu e o Instituto de Geografia e História Militar, ambos no Rio de Janeiro, e a Sociedade Paulista de Estudos Históricos.129 A recuperação do passado histórico passara a integrar também um verdadeiro calendário de comemor ações de centenários de acontecimentos, de nascimento ou morte dos mais notáveis vultos e instituições da história do Brasil. Em 1937, o centenário de fundação do Colégio Pedro II; em 1938, o primeiro século do Arquivo Nacional e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, e a exposição, organizada pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, do centenário de falecimento de José Bonifácio de Andrada e Silva; em 1939, o centenário de nascimento do marechal Floriano Peixoto e os festejos do centenário de restauração do Reino de Portugal; em 1940, o centenário da maioridade de D. Pedro II e o quarto centenário de fundação da Companhia de Jesus; em 1941, os centenários de nascimento de Prudente de Morais e Campos Sales e o da coroação de D. Pedro II, para citar os mais importantes. Em torno desses eventos organizava-se a comunidade dos historiado-
res, pois sua preparação envolvia a organização de exposições, congressos e publicações, alguns de grande porte. As comemorações cumpriam seu papel catalisador, contando com o sistemático comparecimento e apoio do Ministério da Educação e Saúde.130 Uma área de atuação do regime merece, contudo, um cuidado todo especial de Cultura Política, nesse verdadeiro arr olamento de frentes de in-centivo à recuperação da história do Brasil. É o apoio à produção históri129 Viana, Hélio. A história do Brasil no quinquênio 1937-1942. Cultura Política (21):360-2, nov. 1942. 130 Ibidem. Cultura Política (21):355-7, nov. 1942. o estado noVo e a recuperação do passado Brasileiro 147 ca, abarcando tanto as publicações oficiais quanto aquelas resultantes da “cooperação privada”, em especial de algumas editoras. Vale a pena, nesse sentido, fazer um acompanhamento minucioso da cobertura dada por Cultura Política a essas iniciativas, situadas como a maior prova da atenção dispensada pelo regime à evolução cultural do país. Segundo a revista, a quantidade e a qualidade das obras publicadas espelhavam cabalmente a criatividade que se vivenciava nessa esfera da cultura nacional. Dessa forma, á em seu primeiro número, Cultura Política abre uma subseção intitulada “Movimento bibliográfico”, cujo objetivo era realizar o mais preciso levantamento de tudo o que se publicava em terr itório nacional. Sob a responsabilidade de Antônio Simões dos Reis, do Instituto Nacional do Livro — outra obra do regime —, o que se desejava era que autores e editores enviassem seus trabalhos para a revista, a fim de que pudessem ser listados e divulgados.131 Essa subseção permanece até dezembro de 1943, abrindo subitens para elencar uma literatura especialmente interessada em comentar as realizações do Estado nacional, em explicar o pensamento do presidente e também em divulgar o que se escrevia sobre o Brasil no exterior.132 Nessa ampla bibliografia, que cobre o período de 1940 a 1943, foram arr olados 60 títulos vinculados à história do Brasil, dos quais 14 são publicações oficiais (Imprensa Nacional, edições dos governos estaduais, Biblioteca Militar) e 22 são iniciativas de oito impor tantes editoras, algumas das quais com coleções de gr ande porte e prestígio.
Para se ter uma ideia mais clara dessa atuação editorial privada, Hélio Viana fornece dados que complementam os constantes da seção “Movimento bibliográfico”.133 Segundo ele, a Companhia Editora Nacional, que em 1931 iniciara a série Brasiliana da Biblioteca Pedagógica Brasileira, em novembro de 1937 mal havia chegado ao centésimo volume da coleção. Entretanto, dessa data até novembro de 1942, quando redige o artigo de balanço do quinto aniversário do Estado Novo, já alcançara os 230 131 Apesar de a descrição temática da seção variar a cada número, as bibliografias englobam livros sobre esportes, engenharia, direito e legislação, etnografia, sociologia, história geral e do Brasil, ciências econômicas e finanças, ciências médicas, psicologia, ciências ocultas, antropologia, música, educação, militarismo, física e química, além de biogr afias, romances e literatura infantil. 132 Movimento bibliográfico. Cultura Política (19):232, 1942. A “Bibliografia estrangeira sobre o Brasil” foi or ganizada por Carlos Pedrosa. 133 Viana, Hélio. A história do Brasil no quinquênio 1937-1942. Cultura Política (21):360, nov. 1942. 148 História e Historiadores volumes, mais do que duplicando seu movimento. O mesmo vinha acontecendo com outras coleções: a Documentos Brasileir os, da Livraria José Olympio, com 34 obras; a Biblioteca Histórica Brasileira, da Livraria Martins de São Paulo, com 10 livros de autores estrangeiros que escreveram sobre o Brasil; a série de História da Academia Brasileira de Letras, com oito volumes; o s Departamentos Históricos do livreiro-editor Zélio Valverde, com cinco volumes; a Sociedade Capistrano de Abreu, com 11 volumes, sendo sete edições de textos de seu patrono eminente; e a Estante Guairacá, da Editora Guaíra, de Curitiba, que publicara dois volumes. A revista portanto demarcava com clareza não só o imenso crescimento do movimento editorial após 1937 e, nele, do papel direto e indireto do Estado, como o espaço privilegiado que os estudos históricos ocupavam nessa produção e no interesse do público.
No que se refere aos 60 títulos catalogados como de história do Brasil, o que certamente constitui uma amostra razoavelmente aleatória apenas do que era enviado, procuramos atentar para os autores e títulos, de forma a fazer uma aproximação impressionista do perfil do conjunto das publicações. O que se verifica inicialmente é o grande número de autores, sendo muito poucos já conhecidos e r econhecidos, na época, como grandes nomes. Entre estes estão apenas: Afonso de E. Taunay ( Subsídios para a história do tráfico africano no Brasil colonial. Rio de Janeiro, IHGB, Imprensa Nacional, 1941; e Rio de Janeiro de antanho. Impressões de viajantes estrangeiros. São Paulo, Nacional, 1942. Biblioteca Pedagógica Brasileira, Série V; Brasiliana), Gilberto Freire ( O mundo que o português criou: aspectos das relações sociais e de cultura do Brasil com Portugal e as colônias portuguesas. Rio de Janeiro, José Olympio, 1940. Documentos Brasileiros, 28; e Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife. 2 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1942. Documentos Brasileiros, 34), Sérgio Milliet ( Roteiro do café e outros ensaios: contribuição para o estudo da história econômica e social do Brasil. 3 ed. São Paulo, Departamento de Cultura, 1941), Basílio de Magalhães ( História do Brasil. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1942), Alfredo Ellis Junior ( Resumo da história de São Paulo. São Paulo, Tip. Brasil Rothschild Loureiro, 1942) e Cassiano Ricardo ( A marcha para Oes-te: a influência da “Bandeira” na formação social e política do Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1942. Documentos Brasileiros, 25). Quanto ao perfil do conteúdo temático da amostra, observa-se que ela reúne um acentuado número de monografias de caráter histórico-corográfico e de memórias, e que há uma razoável concentração em certos assuntos históricos. Durante os três primeiros anos de publicação da seção (1941-43), o estado noVo e a recuperação do passado Brasileiro 149 os temas mais recorrentes são: pacto colonial, missões religiosas (jesuítas), ação bandeirante, questões de fronteiras e movimentos separatistas. A eles se seguem os livros que debatem o escravismo e a economia cafeeira. Como se pode deduzir desse perfil, a maciça maioria das obras versa sobre o período colonial, havendo um número proporcionalmente pequeno de textos dedicados ao Império e menor ainda ao período republicano. Contudo, se esses dados podem conduzir à percepção de uma pequena atenção dedicada, pela produção histórica e pela revista, ao período republicano, ela é neutralizada por outra seção intitulada “Roteiro bibliográfico da Re-pública”. Diferentemente da anterior, esta não é uma seção sistemática, sendo muito mais uma espécie de pesquisa patrocinada pelo periódico “acerca da
história da República, desde a sua gênese, no final do Segundo Reinado, até os tempos atuais”.134 Entregue ao historiador Sílvio Peixoto, o “Roteiro” será publicado em quatro partes — outubro e novembro de 1943 e janeiro e junho de 1944 —, catalogando um total de 78 obras sobre o período republicano. O material reunido é assim extremamente interessante, pois trata-se de um levantamento muito provavelmente exaustivo feito sobre tudo o que havia sido publicado sobre a República desde a Proclamação, no ano de 1889, até meados de 1944, quando sai o último número da seção. Ele permite uma visão nítida não só dos temas que foram objeto daqueles que escreveram sobre a República — obviamente extrapolando em muito a categor ia “historiador ” —, como também da distribuição desse volume de publicações através do tempo. Em relação a este último aspecto, pode-se construir o seguinte quadro: Período de publicação No de livros
1889-09 33 1910-19 9 1920-29 9 1930-37 7 1938-44 11 Sem data 9 Total geral
78 134 Peixoto, Sílvio. Roteiro bibliográfico da República.Cultura Política (33):245-60, out. 1943; (34):264-73, nov. 1943; (36):297-303, jan. 1994; (41):214-20, jun. 1944. 150 História e Historiadores A observação dos dados deixa evidente a grande concentração de textos no mo mento imediatamente posterior à Proclamação, o que explica, em parte, o fato de, entre os 78 títulos publicados, 26 versarem sobre temas que envolviam a “gênese” da República: os anos finais da Monarquia” (sete obras), o combate à Monarquia e a propaganda republicana (nove obras) e o episódio da Proclamação (10 obras). Além disso, chama a atenção um razoável aumento de interesse (em produzir e publicar) no período posterior ao Estado Novo, já que em seis anos e meio já se havia editado 11 títulos sobre a República. De qualquer forma, o quadro também mostra que este não era um período desprovido de atenção durante toda a Primeira República. Quanto à concentração temática, o maior número de textos ocupa-se de estudos biográficos, com destaque para Floriano Peixoto, Deodoro da Fonseca, Campos Sales e Nilo Peçanha. São 18 obras, seguidas de perto por 17 outras, voltadas para diverso s aspectos da história republicana (economia, política, revoltas etc.). Só dois textos se ocupam do tema República e Revolução de 1930: o de Sertório de Castro, A República que a revolução destruiu (Rio de Janeiro, Oficinas Gráficas Borsoi, 1932), e o de Hastínfilo de Moura, Da Primeira à Segunda República (Rio de Janeiro, Irmãos Pongetti, 1936). Quanto aos autores, grande parte é constituída de atores envolvidos na própria história. Mas há também a presença de “historiadores”, inclusive de vários nomes consagrados por Autores e Livros — Afonso Celso, Eduardo Prado, Pandiá Calógeras, visconde de Taunay —, além de outros, como o próprio Sílvio Peixoto, Dunshee de Abranches e Max Fleiuss, por exemplo.
O “Roteiro” procurava propiciar ao leitor uma orientação segura e crítica, e por isso os livros eram resenhados, até mesmo capítulo por capítulo. As avaliações de Sílvio Peixoto são assim parte integrante dos objetivos da seção e por elas fica evidente que se visava realizar uma defesa do regime republicano, muito embora isso não significasse nem o ataque à Monarquia, nem o elogio da experiência do pré-30. De forma inteiramente distinta de Autores e Livros, onde as obras classificadas como história eram comentadas por historiadores em função de seu valor “erudito” e “interpretativo”, no “Roteiro” deCultura Política, Sílvio Peixoto assumia franca posição política. Suas avaliações acerca dos trabalhos de Eduardo Prado e Afonso Celso são ilustrativas. Resenhando Fastos da ditadura militar no Brasil, considerado um clássico da literatura histórica por Autores e Livros, ele escreve: o estado noVo e a recuperação do passado Brasileiro 151 “Trata-se de um livro excessivamente apaixonado, em que seu autor manifesta incontida animosidade contra tudo quanto diz respeito à República, chegando por vezes ao ataque pessoal, o que nos leva a considerar a obra em questão como desaconselhável em virtude da parcialidade com que foi escrita.” 135 Em relação a Afonso Celso é ainda mais categórico quando critica Vultos e fatos (Rio de Janeiro, Domingos Magalhães, s.d.): “São episódios de nula significação histórica e por conseguinte dispensáveis ara o estudo da história republicana.” 136 Mas, evidentemente, há também os elogios, como quando fala do texto de Hastínfilo de Moura — “escrito com elegância e contendo farto
documentário documentário,, for nece, esse esse volume, apreciável contribuição ao estudo estudo da República no Brasil” —, ou do de José Maria dos Santos ( A ( A política polít ica geral ger al do Brasil. São Paulo, J. Magalhães, 1930): “Embora discordemos, por vezes, da interpretação histórica dada (...) a alguns fatos ocorridos durante o período republicano, republicano, consideramos o (...) volume vol ume indispensável ao estudo est udo daquela época.” 137 Duas outras subseções de Cultura Política integr integram-se am-se a esse esse esforço em demonstrar demonstrar para o público o que se tinha tinha publicado publicado no Brasil, especialmente especialmente a partir de 1930, recor tando tando a área ár ea dos estudos estudos sobre sobr e a história históri a do Brasil. Br asil. Uma Uma delas é “Literatura “Literatura histórica”, histór ica”, que integr integraa a seção “Evolução intelect intelectual”. ual”. Publicada Publicada desde desde o primeir o número, de março mar ço de 1941, 1941, sob a responsabilidade do histor historiador iador Hélio Hélio Viana, ela tem tem periodicidad perio dicidadee regular r egular até julho julho de 1942, 1942, quando quando toda a revist r evistaa se altera. A outra subseção é “Movimento literário”, que integra a seção “Literatura” e será publicada entre setembro de 1943 e maio de 1945. 135 Peixoto, Peixoto, Sílvio. Roteiro bibliográfico bibliog ráfico da República. República.Cultura Cultura Política (33):255, out. 1943. 136 Ibidem, p. 252. 137 Ver ibidem. Cultura Política (33):254 e 253, out. 1943, respectivamente. 152 História e Historiadores O primeir pri meiroo espaço é inteir inteirament amentee reservado reser vado a publicações publicações na área da histór história, ia, estando estando o r esponsável esponsável inter inter essado essado em divulgar todos todo s os “gêne“g êneros”: crônicas, viagens, compêndios, ensaios, biografias, obras sobre geografia gr afia e etnogr etnogr afia do Brasil, traduções de livros de viajantes viajantes estrangeir estrangeir os, reedições r eedições de text textos os e documentos documentos históricos. históri cos. Além disso, disso, o grande g rande interesse interesse é privilegiar privilegi ar o esforço esfor ço do Ministério Ministério da Educação e Saúde, que vinha financiando uma série de periódicos — a Revist a Revistaa do Serviço Servi ço do Patrimônio Patri mônio Histór Histórico, ico, o Anuário do Museu M useu Imperial Imperi al e os Anais os Anais da Bibliot Bi blioteca eca Nacional, Nacional , entre outros —, além alé m das edições ediçõ es do Instituto Instituto Nacion Naci onal al do Livro, Livr o, que reeditava r eeditava impor tant tantes es textos textos e documentos históricos. históri cos. Esse serviço “verdadeiramente patr patr iótico” que as autor autoridade idadess goverg over-
namentais namentais vinham vinham realizan r ealizando do em prol pr ol da “ressurr “r essurreição eição do passado” brasileiro leir o precisav pr ecisavaa ser conhecido, para ser consumido e valor izado.138 izado.138 Do mesmo modo mo do que o “Roteir “Roteiro”, o”, por ser um trabalho de análise da produçã pro duçãoo histórica, histór ica, a subseçã subseçãoo foi fo i entreg entregue ue a um histor historiador, iador, ele mesmo autor autor de um livro considerado impor im porta tant ntee para a disciplina: Formação disciplina: Formação brasileir brasil eiraa (Rio de Janeiro Janeiro,, 1935). De modo geral, g eral, por conseguinte, conseguinte, a literatura literatura histór histórica ica examinada examinada ao longo lo ngo desse ano ano e meio em que a subseção subseção é publicada publicada compõe-se de uma pro dução dução r ecente ecente,, e em parte integr integrant antee de periódicos peri ódicos de instituições instituições culturais culturais da época. Para Para Hélio Hélio Viana, além desse trabalho trabalho ser a “prova “pro va irr efutável” efutável” do prog pr ogrr esso que se instalava instalava na área da investigação investigação histór histórica, ica, era igualment i gualmentee um empreendimento que permitia um mapeamento das abordagens abor dagens que se vinham vinham dando dando a certos acont aco nteciment ecimentos os e períodos perío dos de nossa história. Ainda Ainda seguindo o r esponsável esponsável por “Literatura “Literatura histórica”, históri ca”, observava-se um significat sig nificativo ivo aumento dos “estudos “estudos regionais”, reg ionais”, que passavam passavam a contribuir definitivament definitivamentee para a maturidade de nossa produção historiog histori ográráfica. Tal fato fato podia po dia ser associado, asso ciado, de forma for ma irr ir r efutável, efutável, à mais importa impor tant ntee medida governament gover namental al na área da or ganização institucional institucional no campo do saber histórico: históri co: a modernizaçã moder nizaçãoo do IHGB, IHGB, com sua expansão expansão ter ter ritorial, ri torial, o que se revelava através da produção intelectual. São comentadas, no caso, iniciativas do IHG de Pernambuco, da Bahia, do Rio Grande do Sul — que promove o 3o Congresso Sul-Rio-Grandense de História e Geografia — e 138 Viana, Viana, Hélio. Hélio . Literatur Literaturaa histór ica. Cultura Política (1), mar. m ar. 1941. o estado estado noVo noVo e a recup r ecuperação eração do passado Brasileir o 153 do Rio de Janeiro, que realiza, em 1938, 1938, o 3o Congresso Cong resso de História História Nacional, como um grande evento.139
Outro aspecto aspecto inter inter essante essante é o r econheciment econhecimentoo da importân impor tância cia das biografias, gr afias, romancea ro manceadas das ou não, nessa literatura literatura histórica. históri ca. Para Hélio Viana, Viana, seu valor não era er a bem compreend compr eendido ido no meio intelect intelectual, ual, de forma for ma que um cuidado cuidado compat co mpatível ível com sua presença lhe fosse dedicado. Ele inclusive estimulava aqueles que desejassem se dedicar ao gênero, destacando que sua “boa” execução afetava afetava de forma for ma favorável favor ável ou perniciosa o s estudos estudos históricos. histórico s.140 140 A atenção que Hélio Viana dispensa à produção de biografias, aliada ao grande gr ande número delas (o que pode pode ser sentido no exame já realizado do “Rotei-ro”), “Rotei-ro ”), merece uma contextu contextualização alização em função das refor r eformas mas — Campos, em 1931, 1931, e Capanema, Capanema, em em 1942 — que que reorg reo rganizaram anizaram o ensino da histór história ia ger al e do Brasil. A r eforma efor ma Campos Campos adotara o princípio do ensino em círculos co n-cêntricos, n-cêntricos, sendo a matér matér ia estudada estudada no no curso fundament fundamental al e r evista, evista, em nível mais pr ofundo, no curso complementar. complementar. No exemplo exemplo em questão, questão, a primeir pri meiraa série era dedicada dedicada a uma “histór “história ia biogr biog r áfica e episódica” que apr apr esentasse esentasse a narrat narr ativa iva da vida de grande gr andess nomes ligados lig ados à histór história ia do Brasil e da América, de forma form a a despertar despertar o inter inter esse do aluno aluno e prepará-lo para estudos estudos mais sistemáticos sistemáticos posterio res. Esse Esse princípio de ensino por círculos círculo s concêntri concêntricos, cos, bem como a postulação postulação da utilização utilização de uma “históri “históriaa biogr áfica” como iniciação aos ao s estudos históricos em geral não são rompidos pela reforma Capanema. Autorizando Autorizando o ensino da histór história ia do Brasil e ressalt r essaltando ando seu nítido nítido obo betivo etivo patriótico, a r eforma efor ma de 1942 1942 recomendava a formação for mação da consciência consciência dos alunos do curso secundário, através dos acontecimentos e vultos principais de nosso passado. A admiração pela personalidade humana humana e por seus grande gr andess feitos estava estava na base da compreensão do sentido sentido de nossa histór ia e da construção das noções noçõ es de dignidade e responsabilidade cívicas. Como o ensino, à época, distinguia distinguia as classes por sexo, havia havia o cuidado cuidado em recomendar reco mendar biogr biog r afias de mulheres que destacassem as qualidades da personalidade feminina e sua influência na sociedade e na família br asileiras.141 asileiras.141 139 Os anais anais dos dois doi s congr essos são coment co mentados ados por Hélio Hélio Viana e fica nítido nítido o impacto impacto que esse tipo de publicação publicação procur pr ocurava ava obter, obter, rompendo r ompendo com uma certa “estagnação” “estagnação” e “descrédito” de um tempo anterior ao apoio estado-novista. Ver Cultura Política (10), dez. 1941; (11), jan. 1942; e (12), fev. 1942. 140 Sobr Sobree as biografias, biog rafias, ver Literatura Literatura histórica. históri ca.Cultura Cultura Política (8 e 9), out. 1941.
141 Sobre as refor r eformas mas e os progr pro gramas amas de histór história, ia, ver Hollanda (1957). (1957). 154 História e Historiadores Com a função função de motiv mo tivar ar e de iniciar os alunos do curso cur so secundári secundárioo nos estudos estudos históricos, histór icos, as biogr bio grafias afias — sobret sobr etudo udo a dos vultos vultos nacionais — de-sempenha de-sempenhavam vam um papel-chave papel-chave no sistema educacional, educacional, além de, por tradição, constituírem constituírem um gênero gêner o acessível acessível e agradável ag radável ao grande gr ande público. público. Quando Quando Hélio Viana advertia advertia “seu” meio intelect intelectual ual para uma melhor “compreensã “compr eensão” o” das biografias, biog rafias, cumpria papel papel important impo rtante, e, até até mesmo porque po rque havia registros regi stros das dificuldade dificuldadess que os professor pro fessores es encontravam encontravam em conceber conceber o curso, cur so, quer por falta de preparo, quer por falta de de material didático, compêndios em especial. Um último último aspecto aspecto pode ser assinalado a partir par tir dos comentári comentários os do articulista articulista de “Literatura “Literatura histór ica”. Diz respeito a uma certa transformatransfor mação do tipo de estudo estudo elaborado pelos historiador es, que que estariam estariam fr ancaancamente mente privilegiando privilegi ando monog rafias e ensaios e não mais r ealizando ealizando textos textos de síntese. A razão principal de tal tendência era a dificuldade de realizar pesquisas históricas, que exigiam fontes documentais inéditas ou pouco exploradas, o que demandava demandava muitos recurso s financeir financeiros os e também também or ganizacionais. Daí Daí a produção pr odução passar a ter um car áter áter cada vez vez mais fragfr agmentado e circunscrito a períodos e questões bem específicas, não havendo mais trabalhos como os de Varnhagen e Capistrano de Abreu.142 Hélio Hélio Viana não dá seguimento a essas observações, até mesmo po rque elas ocupam o último número em que a seção aparece. Entretanto, é interessante interessante notar notar que isso fo i escrito escr ito exatament exatamentee quando quando as faculdades faculdades de filosofia filo sofia começavam a formar suas primeiras turmas de professores de 2o grau e de pesquisadores de história. A partir de meados dos anos 40, com a continuidade desse processo, sem dúvida o perfil do historiador e o da produção historiográfica iriam se alterar de forma for ma decisiva, decisiva, sendo sendo o momento que examinamos examinamos o de transição entr entr e um modelo mo delo que datava datava ainda ainda de inícios
do século XX e o de um novo novo profissio pr ofissional, nal, cujos cujos contornos contor nos não eram nítidos. Finalmente, é necessário examinar a subseção “Movimento literár io”, cujo objetivo era r esenhar esenhar romances, r omances, biog biografias, rafias, poesias, peças peças teateatrais e ensaios históricos históri cos e literár ios. Portanto, Portanto, um espaço que não se volta em especial especial para a área ár ea de histór história ia e cuja marca nos pareceu ser o inter inter esse por r eedições de text textos os considerados co nsiderados fundament fundamentais. ais. No período perío do em que é publicado, publicado, “Movimento “Movimento literári l iterário” o” resenh r esenhaa um total total de 19 livros livro s por ele classificados classificados como co mo “estudos “estudos brasileir os de interesse histór histórico”. ico”. A questão, questão, no caso, é verificar os tipos de texto que são 142 Viana, Hélio. Literatura histórica. Cultura Política (17), jul. j ul. 1942. o estado estado noVo noVo e a recup r ecuperação eração do passado Brasileir o 155 destacados e o que deles se diz nas resenhas. De imediato, verifica-se que seis são biografias de vultos vultos da história histór ia do Brasil143 e cinco são r eedições de livros livro s considerados fundament fundamentais. ais. Nest Nestee último caso estão: estão: A A vida e morte mort e do bandeirante, de Alcânt Alcântara ara Machado, achado, com co m introduçã intro duçãoo de Sérgio Sérg io Milliet e ilustrações de Wash Rodrigues (Martins, 1944); Casa grande e senzala, de Gilberto Freire, em 4a edição da José Olympio (1943); Formação (1943); Formação histórica hist órica da nacionalidade brasileira, de Oliveira Lima, com prefácio de Gilberto Freire, Martinenché e José Veríssimo (Leitura, 1944), texto que há 20 anos encontr encontr ava-se esgotado; seu melhor livr o, D o, D.. João VI no Brasil, com prefácio pr efácio de Otávio Otávio Tarquínio de Souza e ilustrações de Luís Jardim, há 30 anos esgotado e r eeditado eeditado pela José Olympio O lympio também em 1944; e, finalmente, finalm ente, Retrat Retratoo do Brasil, de Paulo Paulo Prado, cuja primeir pr imeiraa edição datava datava de 1923, tendo tendo já j á vár ias outras esgota esgo tadas, das, e que fora r eimpresso em 1945. Prado é considerado consider ado o precursor de Sérgio Milliet, Gilberto Freire e Caio Prado Júnior, dentre muitos outros, e o próprio Freire é apontado como o responsável por um novo descobrimento do Brasil. O cuidado na impressão dessas reedições r eedições é evident evidente, e, e os elogio elo gioss com que são saudadas saudadas indicam a impor tância tância atri atribuída buída ao reapareciment r eaparecimentoo comercial comer cial dos livr os. Mas Mas o que pode ser retido de todo esse conjunto conjunto de subseções subseções destinadas destinadas a registrar reg istrar a produçã pro duçãoo cultural cultural do país, especialmenespecialmente na na área da história históri a do Brasil, é o que Cultura Política desejava desejava demonstr demonstr ar. Em primeir o lugar, l ugar, a extrema fertilidade de nossa intelectualidade e a criativ cr iatividade idade com que pôde responder r esponder a uma política po lítica efetiva efetiva de apoio governament go vernamental, al, que se traduzia de for ma evidente evidente e eficiente na primeir a
das questões que mobilizava o pr odutor de bens simbólicos: a gar antia de condições para a ger ação de seu trabalho e sua posterior divulgação, sem o que o esforço inicial se perdia como inútil. Tal transformação Cultura Política conseguia afirmar. O passado “recuperado”, valor izado e não mais temido era o fundamento da nacionalidade que o Estado Novo impulsionaria para o futuro. 143 Os vultos “históricos” objeto de biogr afias foram: Gonçalves Dias, D. Pedro I, Raposo Tavares, Matias de Albuquerque, Quintino Bocaiuva, Diogo Antônio Feijó, Machado de Assis e Álvares de Azevedo. 5 A história do Brasil de Cultura Política “Se o Ocidente prestou especial atenção à história, desenvolvendo (...) a mentalidade histórica e atribuindo um lugar importante à ciência histórica, o fez em função da evolução social e política. Muito cedo, alguns grupos sociais e políticos e os ideólogos dos sistemas políticos tiveram interesse em se pensarem historicamente e em imporem quadros de pensamento histórico.” Jacques Le Goff A “cultura histórica” de Cultura Política A CITAÇÃO de abertura de um texto clássico de Le Goff — “História” (1990:65) — situa de for ma muito precisa a preocupação que orienta todo este trabalho e, mais particularmente ainda, o objetivo deste capítulo. Considerando-se que os homens constroem e reconstroem permanentemente seu passado, e que essa operação mantém íntimas conexões com o processo, também permanente, de for mulação de identidades
nacionais e de montagem de um aparelho de Estado, torna-se fundamental investigar o que especificamente os homens consideram seu passado e que lugar lhe é destinado por uma sociedade em determinado momento. A revista Cultura Política, como se viu, integrava um vasto e diversificado conjunto de iniciativas governamentais destinado a fazer a propaganda do novo regime através da mobilização de recursos culturais. Contudo, pelas características que possuía, ela se distinguia do suplemento Autores e Livros, no que nos interessa de perto, em alguns elementos significativos. A revista, por exemplo, estava aberta a um número bem maior de colaboradores e, mais do que isso, colaboradores cujo status no campo intelectual 158 História e Historiadores não era significativo. Como não se tratava de ressaltar a figura de um gr an-de autor/historiador e de comentar sua obra, avocando, inclusive, um conhecimento e uma autoridade legitimados por relações pessoais, um número bem maior de “escritores” podia participar enviando artigos à revista. No caso do suplemento, dava-se evidente preferência a textos que fossem, eles mesmos, de um tempo “passado”, o que fechava ainda mais seu espaço para investidas desautorizadas pelo tempo e pelo currículo. Por outro lado, como o suplemento visava a delinear a galeria do que se considerava os “pais fundadores” de uma forma de expressão cultural no exemplo que estamos examinando, tratava-se de demarcar por quem, quando e através de que obras a “ciência histórica” foi sendo construída no Brasil. Dessa forma, o “passado” designado pelo suplemento possuía nítida vinculação com uma certa ideia de passado proposta pela disciplina história. O suplemento falava dos historiadores: de sua for mação, de sua personalidade, de sua biblioteca, de suas obras e sistema de trabalho, de sua audiência etc. Cultura Política, por sua concepção, comportava objetivos mais amplos e difusos. É por essa razão que se resolveu adotar neste capítulo a categor ia “cultura histórica”, usada por Le Goff e emprestada por Bernard Guenée, para definir o esforço da revista e o perfil que ela acaba assumindo nesse aspecto específico. Por “cultura histórica” entende-se
“a relação que uma sociedade mantém com seu passado”, o que extrapola os elementos anteriormente mencionados, para abarcar um complexo de fenômenos muito mais amplo, que envolve não só a disciplina histórica, como também outras formas de conhecimento e expressão cultural que tenham como referência “o passado”. Literatura, arte, cultura popular, monumentos e muitas outras manifestações simbólicas que estabeleçam relações com o “tempo” estão presentes na constituição dessa categoria.144 Assim, se os historiadores podem continuar sendo considerados os principais formulador es e intérpretes da “cultura histórica” de uma sociedade em determinado momento, eles não detêm o monopólio desse processo de construção, atuando interativamente com outros agentes, que não são homens do seu métier e que frequentam outras esferas disciplinares ou ocupam outras funções sociais “fora” do campo intelectual. Cultura Política reserva, em suas páginas, um “lugar” bem amplo para a história e, sobretudo, a compreende através de uma multiplicidade de 144 Uma pequena mas substancial reflexão sobre a categoria “cultura histórica” está no texto de Le Goff (1990:45-50). O texto de Bernard Guenée referido é Histoire et culture historique dans l’Occident médiéval (Paris, Aubiver, 1980). Naturalmente, estaremos fazendo leitura e uso muito livres da categoria, que consideramos adequada para nosso esforço interpretativo. a História do Brasil de Cultura PolítiCa 159 formas. Todas, contudo, têm um ponto de converg ência básico: história, na revista, é a história do povo br asileiro, o que inclui os gr andes homens — os heróis —, e também os homens comuns, os anônimos, mas exclui a história de outros povos, que só nos diz r espeito quando muito diretamente ligada a episódios específicos e significativos de nossa própria história. Esse fato deve ser assinalado e entendido como uma escolha dos editores do periódico, uma vez que nos debates que corr iam paralelo quanto ao ensino da história, especialmente devido à reforma Capanema do ensino secundário, ressaltava-se tanto a necessidade de a história do Brasil constituir-se em disciplina isolada quanto à necessidade de ela não perder vínculos com a história universal. Nesse sentido, a orientação de Cultura Política vinha alimentar uma posição crítica da reforma Campos que integrara — e segundo seus opositor es “apagara” — a história do Brasil no ensino da história geral.145 Do ponto de vista da construção de uma ideologia nacionalista e da propaganda do regime, essa orientação ofer ecia muitas vantagens, haven-
do, por tanto, uma convergência de pontos de vista entre historiadores e ideólogos que é interessante observar. Mas de que modo Cultura Política trabalha com a história do povo brasileiro? A estratégia escolhida para procurar responder a essa questão foi a de continuar reconstituindo os procedimentos usados pela revista para comprovar os esforços do Estado Novo, destinados a produzir uma verdadeira “ressurreição do passado” de nosso povo. Nesse sentido, o que se procurará fazer, sob a inspiração de Mannheim, é um certo mapeamento das categorias usadas pelo periódico, atentando para como são utilizadas: a significação que recebem no contexto da “cultura histórica” de Cultura Política. 146 145 A reforma Campos de 1931 (Decreto no 19.890) incorporava a história do Brasil à história da civilização, com a intenção de estabelecer uma estreita articulação entre o estudo do passado brasileiro e do americano. A reforma Capanema de 1942 (Decreto no 4.244) consagr ou a autonomia da história e da geografia do Brasil, justificando sua orientação pelo pro fundo “sentido patriótico” que devia presidir todo o ensino secundário no país. 146 Mannheim (1981:80-1). Nesse clássico estudo sobre o pensamento conservador, Mannheim assinala que quer ver “os pensadores de determinado período como representantes de diferentes estilos de pensamento”, mostrando as “suas maneiras diversas de ver as coisas”. Para tanto, ele se propõe examinar os conceitos usados pelos pensadores, de modo a verificar “se eles não usam termos idênticos com significados diferentes”. Daí a “análise da significação” proporcionar um caminho fecundo para a compreensão das variações de pensamento numa comunidade. 160 História e Historiadores As duas categorias-chave no trabalho de Cultura Política são, sem dúvida, “passado” e “tempo”. Em torno delas giram outras tantas, dentre as quais se pode ressaltar desde já “tradição”, “evolução”, “fonte”, “documen-to” etc. Esse universo conceitual pode, no entanto, ser agrupado em dois conjuntos fundamentais, nos quais as categorias ganham significados próprios e articulados entre si, o que produz, como desdobramento, a distinção de cada um dos conjuntos.147 Essa agregação, que derivou da própria análise do material reunido
pela revista e por ela mesma classificado em seções, não possui nenhuma priori, resultando de um esforço interpretativo que procura seguir a lógica da própria fonte em sua intenção de propor/impor um certo quadro de pensamento histórico, no dizer de Le Goff. Uma primeira significação que Cultura Política atribui à noção de “passado” está firmemente assentada na ideia de um começo germinal do presente: como sua origem, não só por que primeir a, mas também porque absolutamente singular. Nessa concepção, o passado é construído como um antecedente que dá sentido e vida ao presente e, por tanto, é um “passado vivo”, completamente desvinculado de qualquer esforço de periodização, de datação. Essa ideia de passado está assim acoplada a um sentido de “tempo” não cronológico; um tempo que não se remete a um calendário de fatos, de acontecimentos, de eventos. O tempo a que esse passado se refere envolve “experiências” humanas contidas em relatos e em variadas práticas culturais, materiais e simbólicas, que constituem o acervo de uma comunidade. Sugestivamente, esse é o tempo da memória coletiva do grupo e, por sê-lo, é um tempo imemorial: é o “outro” do tempo “datado”. Mas esse passado não é “fixo”, já que não sofre transformações em seu conteúdo. Ao contrário, justamente por ser entendido como um “passado vivo”, referido a um tempo da memór ia, ele “evolui” ganhando novas acepções. A questão está em se compreender que esse processo evolutivo acontece mantendo sempre um núcleo permanente que assegura a identidade, a “fisionomia” do grupo. Ou seja, a ideia de evolução é absolutamente estraté147 Para as r eflexões que se seguem, foi usada toda uma bibliografia que envolve o debate sobre as categorias de tempo, memór ia e história, e também de cultura e tradição eruditaversus popular. Optou-se por não sobrecarregar o texto com essas referências e citar os livros e artigos, muitos dos quais clássicos, conhecidos e, portanto, r econhecíveis, apenas na bibliogr afia final.
a História do Brasil de Cultura PolítiCa 161 gica, porque é ela que garante o princípio de “continuidade”, expresso tanto na permanência de um cerne/um sentido desse passado, quanto na possibilidade de ele se deslocar no tempo até o presente: de ser passado-presente. A “história” que a recuperação desse passado proporciona remete basicamente ao que se pode delinear como a dimensão sociocultural da vida de uma comunidade, de uma nacionalidade. Trata-se, assim, utilizando a nomenclatura de Cultura Política, de uma “história existencial do povo brasileiro”, onde estão em foco aspectos do cotidiano, das ideias, das festas, das práticas materiais dos homens comuns. Os atores dessa história são, portanto, atores coletivos e, quando um indivíduo dela emerge, é como referência exemplar para ilustrar um conjunto sempre maior. Essa história, com frequência ímpar, busca “lugares geográficos” para localizar sua existência e revitalizar sua memória. Nesse sentido, o passado construído por essa perspectiva assume for te dimensão espacial, o que, no caso examinado, traduz-se por referências regionais.148 A recuperação dessa história se faz através da revitalização das “fontes” que “guardam” esse passado e que são identificadas nas “tradições populares” do país. Isso significa que se estabelece um vínculo, praticamente uma simetria, entre uma certa noção de fonte e um certo tipo de tradição, que é cultural e popular, em distinção a outras tradições classificadas como de “elite” ou de “massa”. Esse sentido de “tradição” atribuído ao passado e desdobrado na ideia de “história do povo” é extremamente convergente com outra categoria insistentemente utilizada pela revista: o “espírito nacional”. Ela também é polifônica, mas um de seus significados mais recorrentes remete à ideia de uma totalidade abrangente e singular que pode estar materializada no ator povo, Estado ou nação, indistintamente. Essa categor ia, própria de um historicismo de tipo romântico,149 adequa-se à postulação da existência de um “sentido” na evolução de um povo, que ao mesmo tempo lhe é abso148 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), órgão de levantamento, de pesquisa e de aconselhamento a respeito dos problemas do território nacional, é criado em 1936, com a tarefa básica de produzir o censo do país. Nesse mesmo contexto, o Brasil é dividido em r egiões geográficas, cujas identidades sofrerão cuidadoso processo de fixação, ao que Cultura Política não é estranha. Sobre o IBGE, ver Memória institucional do IBGE: em busca de um referencial teórico
(Costa, 1992), publicado em comemoração ao cinquentenário da instituição, em 1986. 149 A categoria “espírito nacional” é com frequência citada e discutida nos textos que tratam do historicismo como escola histórica. Entre eles, por exemplo, Cassirer, 1984, cap. 5; Arendt, 1979; e Bobbio et alii, 1994:581-4. 162 História e Historiadores lutamente singular e contínuo, sofrendo transformações que advêm muito mais da cor reção de “desvios” do que de alterações de “curso”. Esse “sentido” não tem, contudo, cunho fatalista e/ou imobilista. Ele atua como diretriz e, por se referir ao fundamental de uma nacionalidade — ao que lhe é pró prio e especial —, é basicamente positivo, conduzindo ao “aperfeiçoamento”, ele mesmo entendido como resultado específico, não redutível a paradigmas de outros tipos de experiências. O “espírito nacional” não é mero produto da constatação de qualquer analista social, e sim construção coletiva, identificada por intérpretes competentes e especializados. Na revista Cultura Política, esta primeir a significação de passado e de história pode ser encontrada em algumas seções de gr ande continuidade, agrupadas sob o título “Evolução social”, que integra o conjunto maior “Brasil social, intelectual e artístico”. A mais impor tante delas é “O povo brasileiro através do folclore” (a seguir, “Folclore”), cujo r esponsável era Basílio de Magalhães e que sugestivamente propunha-se realizar um projeto de “bandeirantismo cultural” através do território desconhecido das tradições populares. Além dela, pode-se situar “Quadros e costumes regionais”, subdividida entre as regiões Norte, Nordeste, Centro e Sul, e destinada a fixar os aspectos particulares com que nossas culturas regionais contribuíam para o sentido da nacionalidade. E, finalmente, realizando uma espécie de leitura híbrida da história de nosso povo, a seção “Páginas (a seguir, ‘Quadros’) do passado brasileiro”, privilegiando relatos que fixassem “imagens” e “vivências” desse passado. O volume de material envolvido nesse conjunto é de 110 artigos,
sendo 50 relativos à seção “Folclor e”, 39 relativos à seção “Quadros e costumes regionais” e 23 relativos a “Páginas do passado brasileiro”. A segunda significação que Cultura Política atribui à noção de “passado” funda-se diretamente na tradição historiográfica e busca afirmar uma concepção cronológica de tempo. O passado, nesse sentido, não coexiste com o presente e não fornece uma essência para o futuro: ele não é um passado “vivo”. Contudo, esse passado não está desligado do presente e do futuro. De um lado, porque há clareza de que “ele é fruto do trabalho da história”, a ciência que reconstrói aquilo que se passou, sob a ótica do historiador que vive no presente. Logo, o passado historiográfico é uma construção interpretativa do presente, que reconstitui o tempo cronológico, periodizando, isto é, demarcando o lugar de eventos e de atores. Essa perspectiva, que vinha sendo afirmada por vários historiadores ao longo dos anos 20 e 30, como se pôde ver em Autores e Livros, ganha maior reforço nas páginas deCultura Política. O tempo, nessa acepção, a História do Brasil de Cultura PolítiCa 163 comporta, sem dúvida, a ideia de sucessão, o que implica uma dimensão de continuidade, mas não exclui rupturas e interr upções que exigem reflexão. Por outro lado, essa ideia de passado mantém vínculos com o presente e o futuro por força de uma questão metodológica. Interessado em compreender o processo de evolução de uma sociedade, o pesquisador utiliza uma abordagem — um método de interpretar — que o aproxima do objeto de sua análise “por trás”, isto é, “via passado”. Ou seja, o passado é um “antecedente” esclarecedor do presente e do futuro, embora não os contenha em germe ou essência. Não há sentido imemor ial nesse passado; mas há sentido “fundador”, se por esta categor ia entendermos a força que as experiências primitivas e acumuladas através do tempo datado e rememor ado podem possuir para a construção de uma cultura histórica. O futuro, portanto, não pode desconhecer a existência desse passado, que também remete a vivências coletivas, e que possui calendário e rituais de encenação, distinguindo-se, contudo, de um passado mítico, por se referir a acontecimentos datados e a atores, em boa parte “individualizados” . A ressurreição de tal passado também era tarefa prior itária para o novo
regime, e ela se faria pela recuperação de “fontes” caracterizadas como “históricas” e identificadas como “documentos”, fundamentalmente escritos, mas que também podiam ser visuais ou de outra natureza. Os especialistas por excelência nesse segundo tipo de “bandeira” eram os historiadores e, no caso, eles se deslocariam no tempo — demarcando-o em períodos dotados de inteligibilidade —, e não no espaço geogr áfico, que passava a funcionar muito mais como um “lugar de memor ização” do que como um “lugar de explicação”. O passado historiográfico reconstituído associava-se a um tempo cronológico datado com e por acontecimentos hierarquizados e dotados de sentido pelo historiador. Por sua dinâmica, essa história privilegiava fatos e indivíduos, assumindo uma dimensão mais política, econômica e intelectual, além de um caráter francamente monumental.150 Três seções de Cultura Política exprimem de forma mais nítida essa concepção de passado e de história. Em primeiro lugar, a própria seção intitulada “História”, que é composta por 48 artigos — todos r eferentes à 150 O caráter monumental da história do Brasil de Cultura Política é certamente alimentado pela conjuntura da Segunda Guerra Mundial, com destaque para a história militar e seus heróis. Contudo, essa história associada à monumentalização certamente não se esgotava nessa situação circunstancial, e sua duração no tempo é bom indicador das sólidas bases que a proposta estado-novista construiu. Agradeço a Gilberto Velho esta observação. 164 História e Historiadores história do Brasil — e conta com amplo número de colaboradores. As duas outras, intituladas “Textos e documentos históricos” — reunindo 54 matérias — e “Intérpretes da vida social brasileira” — integrada pela biografia de 17 vultos nacionais —, completam o perfil que o periódico traçava. Entretanto, é preciso assinalar que essas significações de história, passado, tempo, fontes etc. coexistem no projeto da revista e no projeto do r egime estado-novista. O investimento que pode ser observado nas duas direções de “ressurreição” do passado é bem indicativo do quanto elas er am vistas como complementares. A metáfora de um movimento bandeirante sobre o território cultural, para integrá-lo e dotá-lo de identidade, é mais do que ilustrativa. Se a história do Brasil fora até então marcada por uma narrativa que enfatizava a ocupação do espaço físico, chegara a hora de afir mar que o “meio”, por si só, não marcava a fisionomia profunda das tradições de um povo. Tais tradições — definidas como a história r ealizada por nossos “maiores” e também pelos “homens comuns” — compor tavam outras variáveis essenciais, entre as quais vale a pena atentar para as categorias de tempo/cronologia e de raça/cultura.
A “alma” do povo brasileiro Quando, em março de 1941, o professor catedrático de história do Instituto de Educação do Distrito Federal, Basílio de Magalhães, introduz o primeiro artigo da seção “O povo brasileiro através do folclor e”, a revistaCultura Política assim ustifica o espaço por ela criado: “Espelho vivo do Brasil, das suas realidades, dos seus problemas, das suas tendências sociais e olíticas, da sua vida popular — como procurará ser esta Revista — não poderia faltar nela uma seção de folclore, reflexo profundo da alma e da cultura nacionais, nas suas mais genuínas fontes populares.” 151 A apresentação de Basílio de Magalhães, historiador, autor de mais de 60 obras e membro de inúmeros institutos históricos e geográficos do país, ganhava plena legitimidade, por ser ele, reconhecidamente, um dos 151 O povo brasileiro através do folclore. Cultura Política (1):238, mar. 1941. a História do Brasil de Cultura PolítiCa 165 batalhadores deste gênero de estudos que, pela primeira vez, era amparado por uma iniciativa governamental. O próprio Basílio de Magalhães, ao traçar sua trajetória político-intelectual, remontara aos tempos em que fora diretor da Biblioteca Nacional (1917-19) e deputado federal por Minas Gerais, ocasiões em que procurara sensibilizar em vão os “brasileiros” cultos para a incontestável importância do folclore.152 Finalmente, com o novo r egime e com a iniciativa de Cultura Política, abria-se uma nova vida para uma área do conhecimento que se definia como a “ciência da cultura popular/tradicional”. O objetivo básico desse primeiro artigo consistia ustamente em explicar aos leitores “o que” era folclore e quais eram seus campos de interesse e trabalho. Para o responsável pela seção, o ponto de partida para um claro entendimento residia na distinção entre dois tipos de cultura —
a racionalmente organizada e a meramente tradicional —, expressos em duas formas de linguagem — a erudita e a popular —, cada qual objeto de uma espécie de ciência — “a teoricamente sistematizada e a puramente empírica”. O folclore era, portanto, essa “ciência empírica” destinada ao estudo da cultura tradicional expressa na linguagem popular. Contudo, o entendimento da “cultura popular” só era possível quando referido a uma “substância” pertencente ao passado (Ortiz, 1992). Outra categoria utilizada pelo autor e pela revista (editores e colaboradores diversos) para designar tal tipo de estudos é “demopsicologia”, um termo do italiano Pitrè, corrente no final do século XIX, e que seria abandonado por força da designação folclore. Este segundo neologismo inglês se impõe pela atuação da Folklore Society, criada em 1878 e destinada a estabelecer uma “nova ciência”, marcada pelos parâmetros positivistas e voltada para a cultura popular. Os folcloristas, “novos cientistas do popular”, advogavam uma metodologia de trabalho fundada em procedimentos de observação sistemática e classificação, mas voltavam-se para um objeto situado frequentemente “fora” do universo acadêmico e da cultura erudita. A “demopsicologia” ou folclore, portanto, nasceu no “ambiente cientificista” que dominou a virada do século XIX e que imperou no Brasil no “bando de ideias novas” que aqui chegaram, no dizer de José Veríssimo. Momento extremamente rico para o pensamento social brasileir o e que 152 Basílio de Magalhães era autor de conhecidos compêndios de história e geografia em São Paulo e, durante os anos 10, integrara o grupo de intelectuais que rejeitara os determinismos do meio e da raça, apontando a educação e a modernização agr ícola como soluções para o progresso do país. Ver Skidmore (1976:184-6). 166 História e Historiadores deu partida ao interesse pela cultura popular, mas que, segundo Basílio de Magalhães, não conseguiu ter a continuidade necessária durante toda
a Primeira República. Segundo ele, que em 1928 e em 1937 teria reunido e ampliado um vasto material bibliográfico sobr e o assunto, não havia no país maior sensibilidade para os estudos folclóricos, apesar da contribuição numerosa e valiosa de vários “mitógr afos populares”. É esclarecedor verificar quem é identificado como “mitógrafo” e qual a imagem construída para sua atuação. Eles são chamados pelo autor/ revista de “ressurr eicionistas do bandeirismo”, na medida em que alargam as fronteiras culturais do país, nelas incorpor ando “a vivaz inteligência” de nosso povo. Aliás, essa provavelmente era a razão profunda da falta de atenção, do desprezo mesmo, dedicado ao folclore pelas elites políticas do país. Como se tratava de uma área de estudos voltada/identificada com as tradições populares, e como o povo brasileiro até então encontrava-se completamente desconhecido e abandonado, não era casual dar igual tratamento à mitografia popular. Portanto, a valor ização do folclore era equiparada e justificada como a própria valorização do povo, “magnífico tesouro de energia e afetividade” que precisava ser retirado do analfabetismo e da “hibernação em que vegetou” sempre. A seção, por conseguinte, tinha um título pedagógico: ela desejava dar aos leitores uma visão fiel e elevada do povo brasileiro, o que poderia e deveria ser feito através do folclore, desde que amparado pelo poder público, como o Estado Novo vinha demonstrar. Não faltaram “mitógr afos” em nossa galeria de intelectuais. Ou seja, a responsabilidade pelo desconhecimento do povo cabia às autoridades governamentais, o que, como já foi visto, era precisamente o argumento de Cultura Política para atrair a colaboração do meio científico e artístico. Os nomes citados incorporam historiadores como Afonso Taunay, Alcântara Machado, Pedro Calmon e Alfredo Ellis Jr., entre outros, e há destaque para as figuras de Artur Ramos, João Dornas Filho e Gilberto Freir e. Estes últimos conseguiram r eunir-se no Centro de
Cultura Afro -Brasileira, editando os preciosos Estudos afrobrasileiros, a mais fecunda realização da mitografia brasileira. Isso porque a própria Academia Brasileir a de Letras, embora contando com expoentes nessa área — Afrânio Peixoto, Gustavo Barroso e Osvaldo Orico —, não havia dedicado a ela a atenção merecida. Muitos outros autores são mencionados, mas cabe observar que entre eles não estão nem Sílvio Romer o, nem Nina Rodrigues. As razões para tais ausências são difíceis de imaginar, uma vez que fica muito claro o laço que une os estudos a História do Brasil de Cultura PolítiCa 167 folclóricos e o debate de um dos temas mais caros ao Estado Novo e, por conseguinte, a Cultura Política: a questão racial, que vinha se desdobrando em múltiplas abordagens e for mulações desde fins do século XIX. Ao seu lado, de for ma complementar e indissociável, emergia outra questão-chave — a regional —, já que o folclore objetivava registrar os padrões de pensar e sentir de nosso povo, integrado por três raças e distri-buído nas regiões “geoculturais” do Brasil. O projeto de Basílio de Magalhães para a r evista tinha como que dois pontos básicos de operacionalização. De um lado, ele fixou dois “tipos populares” nas figuras/categorias de sertanejos e praianos. A dicotomia clássica entre sertão e litor al que vem de Euclides da Cunha, outra figura paradigmática na revista, como se verá, é r etomada, para ser acoplada a uma classificação emprestada dos argentinos Rafael Jijena Sánchez e Bruno Jacovella. “Para eles, a mitografia popular apresenta duas feições fundamentais: a em que prepondera a cr iação mental e a em que predominam os fatores étnicos (...).153 Tal definição de objeto e perspectiva de análise esclarece o que se procurava “encontrar” e “resgatar” como povo brasileiro. Perfeitamente ajustado à orientação dos estudos folclór icos em nível internacional, o projeto de Basílio de Magalhães estabelece que o povo brasileiro é basicamente o homem que está “fora” das cidades, de suas “ruas”, quer seja ele o operário — modelo do discur so trabalhista —, quer seja ele o malandro, sua antítese perfeita. Em ambos os casos, o pesquisador estaria entrando em contato com uma realidade “moderna”, inversa à “tradicional” e “perigosa”/tumultuada,
inversa à ideia de “pureza” presente nas raízes originais da nacionalidade. O sertanejo, homem do interior do país, distanciado física e culturalmente das influências maculadoras das cidades, era já uma figur a clássica de “guardião da memória” das tradições nacionais desde inícios do século, com Euclides da Cunha e também com Monteiro Lobato. Ele figurava como uma espécie de substitutivo funcional do camponês europeu em nossa literatura de ensaios político-sociais e de r omances históricos ou 153 Magalhães, Basílio de. O povo brasileiro através do folclore.Cultura Política (1):240, mar. 1941. A classificação é a seguinte: 1. Folclore espiritual: a) estético: literatura popular, música e mímica populares, artes figuradas populares, jogos familiares, linguagem popular; b) teórico-técnico: ciência popular, técnica popular, história popular; c) filosófico: filosofia popular, moral popular; d) místico-religioso: crendices e superstições, teologia popular, devoções populares; e 2. Folclore etnográfico: a) ético: usos e costumes populares, cerimônias tradicionais; b) econômico: ofício, profissões, comércio, transportes. 168 História e Historiadores não.154 O praiano — que empiricamente podia até ser localizado em “cidades”, embora na maior ia das vezes estivesse em aglomerações de pequeno porte — não era um tipo urbano stricto sensu. Certamente não era um membro da classe trabalhadora e menos ainda um vadio/malandro. Ele estava ligado a certas atividades econômicas (como a pesca) e também era um guardião de um tipo de memór ia ancestral de nossas mais longínquas tradições, já que o colonizador ibérico tinha aportado “na praia”. Essas diretrizes, traçadas pelo próprio organizador da seção, permitem uma aproximação com os 50 artigos que a compõem de 1941 a 1945. A seção é a única que aparece em todos os números da revista e que não sofre decréscimo após as transformações ocorridas em 1942: na primeira fase são publicados 17 artigos e na segunda, 33.
Desses 50 textos, 28, logo 60% das matérias, r eferem-se ao que o autor chama de folclore espiritual místico-religioso, tratando de aspectos que envolvem as crendices, superstições e devoções populares. Mais precisamente, a maioria absoluta dessas matérias dedica-se à análise do processo pelo qual a devoção católica foi absorvida pelo “fetichismo” africano e ameríndio, r esultando em um tipo de cultura r eligiosa popular. A quase totalidade desses textos, e de todos os demais, é de autoria do próprio Basílio de Magalhães, sendo o comparecimento de colaboradores na seção um acontecimento bissexto.155 Dessa forma, o que ele realiza é uma espécie de seleção dos principais elementos do folclore místico que estariam vinculados às bagagens culturais das etnias formadoras do povo brasileiro. O que ressalta sobremodo é a presença da contribuição luso-brasileira, expressa principalmente pelos estudos sobre festas religiosas e santos protetores, temas que se interpenetram. Praticamente, são três os santos que merecem destaque: Santo Antônio (o santo casamenteiro), São Benedito (o protetor dos negros) e São João (como o primeiro, ligado a festividades tradicionais). Os artigos procuram demonstrar como uma herança religiosa ibérica é recebida em diversos contextos regionais e étnicos do Brasil e como são produzidas “histórias” e “práticas” devocionais, como romarias, procis-154 Sobre a distinção entre “povo”, “ralé” e classe trabalhadora, bem como sobre a construção da figura do camponês, ver Ortiz (1992); Chartier (1990, especialmente cap. V e VII); e Revel (1989, especialmente cap. II e III). 155 Além de Basílio de Magalhães, escrevem na seção: Câmara Cascudo, Oliveira Martins, Inácio Raposo, Luís Heitor e um ou outro autor não brasileiro. a História do Brasil de Cultura PolítiCa 169 sões, jubileus e festas religiosas. A “localização” desses eventos é geralmente o Nordeste, havendo um deslocamento para o Norte e o Centro quando se trabalha com a “herança ameríndia”. Esta é, sem dúvida, a menos tra-
tada quantitativamente, concentrando-se na descrição de lendas e mitos ligados aos elementos da natureza. Proporcionalmente, é mais r elevante a presença da “herança africana”, expressa nos fenômenos da religião e da língua. Mas, nesse caso, com frequência, o negro não é identificado como um produtor de crenças, e sim de superstições, e o que está em foco nas análises são aspectos como seus objetos e comporta-mentos de culto. Isto é, reconhece-se o peso cultural do negro, mas considera-se que a evolução em curso é a de um sistema primitivo para um sistema civilizado, apontando-se sua persistência cultural e também seu caráter de “sobrevivência”. Os estudos folclóricos, nesse aspecto, aprofundam uma de suas ambiguidades constitutivas. O “povo” em sua ó tica é um verdadeiro tesouro, que encerra riquezas ignoradas que precisam ser conhecidas e preservadas. Por isso, povo e tradição, ou o povo como fonte e arquivo de um passado sem registros, precisam ser r ecuperados e valorizados. Mas esse povo possui contornos que a categor ia tradição identifica como “primitivos”, “rurais” ou “dominados”, corr endo o “risco” de desaparecer. A missão que os folcloristas se atribuem, como a literatura sobre o assunto ressalta, é salvar um certo tipo de passado e mantê-lo em um certo tipo de museu, como parte integrante de um certo tipo de patrimônio histórico. Informados pelo positivismo e, como no caso de Basílio de Magalhães, definindo o folclore como ciência empírica em distinção (mas não em oposição) a uma ciência teórica, os folclor istas desejam a criação de instituições como os museus das tradições populares. Neles, o tempo da memória coletiva seria, depois de classificado, guardado, não mais correndo o perigo de desaparecer. Contudo, se há um tom nostálgico nessa operação de resgate — nesse bandeirantismo cultural —, há igualmente um toque de inevitabilidade progressivista. A perda desse passado, caso não devidamente conservado, descrito e exposto aos olhos públicos, era resultado da própria prevalência dos conteúdos mais civilizados e eruditos de uma cultura. Logo, de sua “evolução”, sendo o desaparecimento dos elementos dominados um sinal positivo, que podia ser saudado e interpretado como a vitória dos melhores elementos de um dado
sistema cultural. Era justamente para essa dinâmica que os textos sobre o folclore místico-religioso do Brasil apontavam: entre as manifestações culturais de grupos social e etnicamente distintos, imperava a herança ibérica, e o que permanecia das demais heranças iria e deveria certamente desaparecer. 170 História e Historiadores Se havia uma dimensão de passado vivo, de passado sempre presente nas manifestações folclóricas, a “evolução” transformava inevitavelmente as formas/contornos dessas manifestações. Se um núcleo permanecia, suas expressões não, e elas pr ecisavam ser resguardadas. A incúria dos intelectuais e especialmente dos políticos estava em não atentar para a existência e o valor desse patrimônio histórico, que na verdade só resistiria perfeitamente ao tempo cronológico nos museus. Se os folcloristas procuravam demarcar um objeto e uma metodologia de trabalho próprios, convergiam para uma preocupação também cara aos historiadores: a montagem de instituições que se destinassem a “guardar” objetos e todo tipo de vestígios de uma cultura e de um tempo “passados”. Os museus históricos e os museus folclóricos, no limite, referiam-se a “passados” que não podiam continuar eternamente vivos. Nos dois casos, no limite e de forma difer enciada, só o r egistro/guarda era real escapatória para o esquecimento e a morte. É claro que as distâncias entre o ofício do historiador e a ação do mitógrafo popular eram enormes, até mesmo porque poucos homens de ciência representam-se no imaginário da sociedade brasileira como tão vinculados à categoria de “erudito” como o historiador. Não deve ter sido casual, certamente, a escolha de Capistrano de Abreu para materializar “a” figura do historiador. Para além de seu imenso saber e de sua obra revolucionária em termos metodológicos, Capistrano é pintado como um “esquisito”, que só se sentia bem em bibliotecas, entre livros e papéis. Um homem que gostava de aprender e não de ensinar: um erudito.
O folclorista, ao contrário, é um homem do trabalho “de campo”, que vai ao povo em busca das manifestações que encerr am a sua “alma”, aquilo que lhe é mais interio r. Ambiguamente, essa “alma” tem claras formas de exteriorização e é, ao mesmo tempo, mortal e imor tal. Em uma sociedade sempre haverá uma cultura popular a ser “cientificamente” conhecida, mas como ela não é sempre a mesma, é nesse espaço de “tempo” que o mitógr afo faz a sua coleta e lança a sua proposta de transformar “sobrevivências” em patrimônio histórico cultural. É bem verdade que, no caso da reconstituição da realidade folclórica, o que se busca sempre destacar são os elementos que, apesar de recriados através do tempo, guardam uma certa essência das origens: possuem uma alma imor tal. Talvez seja oportuno assinalar que o perfil da seção “O povo brasileiro através do folclor e” é justamente o das práticas religiosas, aquelas destinadas a conduzir o homem até Deus ou até o diabo, como algumas lendas indígenas e cultos africanos infor mavam. Os restantes 40% do universo levantado distribuem-se entre: manifestações do fo lclore espiritual a História do Brasil de Cultura PolítiCa 171 estético — música, dança e literatura popular, em especial do Nordeste; manifestações do folclore espiritual teórico-técnico — ciência popular, ou seja, práticas curativas; e muito pouco sobre folclore etnográfico, ilustrado por costumes associados a atividades econômicas. Esse conjunto se completa com alguns artigos que discutem a nova ciência: sua história, seus conteúdos e, sobretudo, a bibliogr afia produzida no Brasil e em outros países, com destaque para Portugal. Também escritos por Basílio de Magalhães, esses artigos deixam transparecer um movimento de grande interesse pelos estudos folclóricos e, ao mesmo tempo, demonstram a extrema heterogeneidade daqueles reunidos pela empreitada. Como todos os que escrevem sobre folclore assinalam, uma de suas dificuldades é a ausência de formação profissional do pesquisador, que, concentrado na coleta de dados como atividade prioritária, não está municiado nem com procedimentos metodológicos, nem com instrumental conceitual. É claro que, especialmente em momento em que os campos disciplinares estavam
em vias de constituição no Brasil, há uma gama muito ampla de indivíduos aos quais o termo “mitógrafo” é aplicado por Basílio de Magalhães. Essa largueza, que compor ta hierarquia, é ela mesma, no entanto, sintomática. Assim, para exemplificar, em um mesmo artigo ele comenta o livro do “erudito lusitanista” Ribeiro Guimarães — Sumário de vária história, em cinco volumes — e a publicação da senhorinha Stela Leonardos da Silva Lima, de apenas 18 anos, intitulada: ...E assim se formou a nos sa raça. Con-cluindo, Basílio de Magalhães escreve: “(...) os meus sinceros aplausos, augurando continue ela a empregar a sua formosa inteligência no burilamento de joias de arte, em verso ou prosa, para enaltecer e erpetuar cada vez mais as tradições que melhor prendem à terra do berço a alma e o coração da boa gente do Brasil.” 156 As dificuldades dos estudos do folclore no Brasil e no mundo têm ampla história e nela é comum assinalar-se como problemática “uma ótica redutora da cultura a sobrevivências do passado”, afora muitas outras 156 Magalhães, Basílio de. O povo brasileiro através do folclore, XII.Cultura Política (12):228-32, fev. 1942. 172 História e Historiadores questões.157 Em nosso país, a evolução desse campo intelectual tem como referência básica os anos 50, com os marcos da criação da Comissão Nacional do Folclore (1947) e, 10 anos depois, da organização da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (1958). Esse teria sido o período de apogeu de tais estudos, o que se expressou pela realização de quatro semanas nacionais do folclore (1948, 1949, 1950 e 1952), cinco congressos brasileiros (1951,1953, dois em 1959 e 1963) e um congresso internacional (1954). Cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Por to Alegre, Salvador, Fortaleza, Maceió e Curitiba abrigaram esses eventos, onde uma interlocução permanente e tensa com a sociologia e a antropologia se realizava, resultando numa marginalização do folclore.
Os gr andes nomes sempre lembrados como referências primordiais na área do folclore nessa década eram Sílvio Romero, Amadeu Amaral e Mário de Andrade, que não têm textos reproduzidos no espaço r eservado para o tema em Cultura Política. Mas a Comissão Nacional do Folclore or ganiza-se imediatamente após a queda do Estado Novo, e é difícil pensar que ela nada tenha a ver com o esforço de “bandeirantismo cultural” por ele promovido. Além disso, seu objetivo de “promover uma ação político-ideológica de construção de um ‘ser nacional’” é por demais sugestiva das diretrizes da política cultural getuliana (Cavalcanti & Vilhena, 1990:76). Contudo, os expoentes da organização do Movimento Folclórico nos anos 50 são homens de um “novo” tipo. Eles têm vínculos com as instituições universitárias criadas nos anos 30 e pertencem aos campos da antropologia e da sociologia, sendo por tanto profissionais especializados e não amadores e militantes da ciência. É bem verdade que Basílio de Magalhães, um professor catedrático, também não se enquadraria nesta última classificação de forma tão simplista. Mas, provavelmente pelo tipo de postulação que fazia dos estudos folclóricos, encontrava-se distante do teor do debate que os anos 50 iriam encaminhar: Florestan Fernandes, Manuel Diegues Jr., Darci Ribeiro e Édison Carneiro, entre outros, passariam ao proscênio. Uma história literária do cotidiano Duas outras seções de Cultura Política mantêm conexões estreitas com “O povo brasileiro através do folclore”. Elas também se voltam para a caracterização desse ator coletivo, através do resgate de suas formas de 157 Sobre os debates em torno dos estudos folclóricos no Brasil dos anos 50, ver Cavalcanti & Vilhena (1990: 75-92). a História do Brasil de Cultura PolítiCa 173 pensar, sentir e agir. “Quadros e costumes regionais” e “Páginas do passado brasileiro” comportam, contudo, algumas especificidades. Mais uma
vez, recorrer à apresentação que a revista faz da primeira dessas seções pode ser pedagógico, embora a citação seja um pouco longa: “Conhecer o Brasil é também fixar-lhe os costumes, as paisagens, as cenas e quadros típicos do interior, do litoral e das capitais. Tudo isso evolui com as transformações políticas e sociais, rolongando através do tempo a linha mais pura e mais genericamente brasileira das nossas tradições populares. A alma do povo desponta or detrás dos seus quadros de costumes: vemos, ali, o povo vivendo a sua verdadeira vida de todos os dias, a grande vida humana que as instituições políticas se destinam a interpretar, defender, amparar, estimular e encarnar nas formas e sistemas de governos. Esse grande e verdadeiro povo do Brasil é que será retratado nessas páginas.” 158 A metáfora do retrato é excelente. O modelo (em qualquer acepção que seja lida a palavra) é o mesmo: o povo. O objetivo fundamental também: ressaltar as virtudes desse modelo. O que muda é o ângulo de visão, proporcionando novas perspectivas, que permitem novas descobertas. O olhar das duas seções que estarão aqui em foco realiza alguns deslocamentos em relação aos estudos científicos das tradições de nossa cultura popular. Em primeir o lugar, trata-se de alargar o hor izonte, nele incluindo o espaço urbano de for ma prioritária. É nesse espaço, em grande parte, que as transformações sociais e políticas que ocor rem no curso da evolução de um povo podem ser rapidamente diagnosticadas. A urbanização e sua “chegada”
ao interior é um fenômeno crucial, por tanto, para esse tipo de olhar. Vinculada a esse ponto, tem-se também uma certa alteração nas relações dialéticas entre passado, presente e futuro. O traçado de uma linha de continuidade na história desse povo, seus vínculos com um passado de tradi-158 Quadros e costumes do Centro-Sul.Cultura Política (1):230, mar. 1941. 174 História e Historiadores ções, permanece inalterado. Mas o olhar do observador está particularmente atento às transformações que acontecem no interior desse movimento, assinalando-as e abarcando-as numa composição harmônica. Não se trata mais de falar em “sobrevivências” e de pensá-las em termos de heranças étnicas. Esse esforço de resgate implica, igualmente, colocar o intelectual em interação com o povo, mas não mais necessariamente através de uma “ida ao campo”, como no exemplo anterior. As fontes por excelência apontadas como capazes de promover tal conhecimento são as fontes literárias: romances, crônicas, folhetins e memór ias. No caso de “Quadros e costumes regionais”, os textos são escritos pelos próprios responsáveis pelas “regiões” — Graciliano Ramos, Raimundo Pinheiro e Marques Rebelo. O aspecto fundamental de todo esse conjunto é, por conseguinte, o caráter testemunhal. Os autores fixam os quadros e costumes da vida do povo com que conviveram. Já em “Páginas do passado brasileiro”, há uma seleção de textos, eles mesmos integrantes de nosso passado intelectual. Como o que se quer fixar são os “quadros e costumes” de um passado datado, as fontes literárias devem ser igualmente datadas: contemporâneas ao que descrevem, assegurando também um caráter testemunhal ao que narram. Finalmente, um aspecto ressalta dessas duas seções, embora ainda mais da primeira. A “personalidade” do povo está sendo apreendida vendo-o
“vivendo a sua verdadeira vida de todos os dias, a grande vida humana” fei-ta de pequenas coisas. Os costumes retratados, por conseguinte, embora possam se referir a festas ou a um ou outro evento extraordinário, fixam-se naquilo que é comum, que se desenvolve no ritmo paciente das décadas e dos séculos, diferentemente do r itmo veloz da política que, no entanto, deve amparar e encarnar tais formas de vida. A seção “Quadros e costumes regionais”, como já foi r eferido, constitui um conjunto de 39 artigos, distribuídos equitativamente entre as três regiões que a integram: 14 referentes ao Nordeste, o mesmo número ao Centro-Sul e 11 ao Norte. A montagem de um pequeno quadro classificatório auxilia a compreensão do teor desses textos.159 159 Todos os artigos que serão mencionados foram publicados na seção entre março de 1941 e maio de 1942, portanto em cerca de mais de um ano. Após essa data, “Quadros e costumes regionais” desaparece da r evista. Optou-se por não fazer referências individuali-zadas às matérias para não sobrecarregar o texto de citações. Os temas foram criados para facilitar a análise e a comparação dos artigos; eles não existem na revista. a História do Brasil de Cultura PolítiCa 175 Quadros e costumes regionais Região Região Região Total de Temática Nordeste Centro-Sul Norte textos
Vida social: costumes e tipos populares/rurais
7 – 6 13 Vida política 3 – 1 4 Vida cultural/social 4 14 4 22 Total de textos 14 14 11 39 A produção de Graciliano Ramos realiza uma verdadeira etnografia da vida sertaneja, descrevendo de forma densa seus costumes e tipos populares: o casamento acordado entre famílias, o interior de uma casa no sertão de Pernambuco, a experiência de um pequeno “grupo dramático”, as aventuras de dois cantadores famosos etc. Algumas figur as encarnam o “espírito da região”, como uma matriarca conhecida que dirigia fazen-
da, marido e agregados, e até conheceu Lampião; um lendário e verídico “malandro” do Nordeste — o Tibório —, que fazia falcatruas até com o vigário. Enfim, os textos de Graciliano primam pelo cuidado expressivo em todos os detalhes e pelo bom humor. São quadros divertidos, ainda quando falam de disputas sangrentas entre facções políticas. Eles fazem um elogio ao sertão e assinalam que mudanças profundas estão ocorrendo, produzindo o desaparecimento de muito do que está sendo narrado, do que está sendo rememorado. Graciliano distribui r azoavelmente seus textos entre o que se está considerando aspectos sociais, políticos e culturais da região. Quando fala de política refere-se basicamente aos chefes e às lutas próprias do período da Primeira República, mas não há nada na narrativa que soe como cr ítica, como desvalor ização do período. Os aspectos culturais são os relativos aos cantadores, ao teatro e à vida intelectual do Nordeste. Embora muito do que ele narre sobre sociedade, política e cultura faça remissões a localidades urbanas, não é a cidade que está sendo descrita etnograficamente. O contraste com a produção de Marques Rebelo é total, já que todos os seus artigos têm como aspecto privilegiado as cidades: o movimento de urbanização que se interioriza com os seus símbolos marcantes, sob o influxo da política estado-novista. Os temas e personagens de seus artigos são, por conseguinte, a vida de Januária, às marg ens do São Francisco, 176 História e Historiadores agora calma pela supressão da velha politicagem; as cidades de Cataguazes, Serro, Itajubá, Montes Claros e Belo Horizonte, em Minas; a sua cidade natal — Monte Castelo —, que ganhava novos ares, jardins e até campo de esporte; e também o cotidiano de uma família no Rio de Janeiro, modelo de cidade moderna. São crônicas do cotidiano das cidades que, em geral, têm o objetivo de associar ur banização e modernização, saudando as transformações que
ocorr em, embora sem perder, em alguns casos, uma certa nostalgia. Já os textos de Raimundo Pinheiro distribuem-se basicamente entre a caracterização de tipos e costumes da região e também de sua vida urbana. As cidades de Manaus, de Santarém, o povoado de Barcelos e sobretudo Belém, onde se realizam a festa do Círio e uma grande comemor ação de Natal. O caboclo do Norte e a dura vida doméstica da mulher da região também são abordados. Nada porém sobre a vida na floresta ou sobre índios. Toda essa literatura assume, assim, a tarefa de r efletir a vida social cotidiana do homem brasileiro e, em o fazendo, resguardá-la do esquecimento. O modelo de “literatura naturalista”, engajada politicamente — embora não de forma simplista, mecânica ou panfletária —, é muito claro. Ou seja, para além da escritura do próprio autor ou de suas posições ideológicas pessoais, como no caso de Graciliano Ramos, o uso que a revista estado-novista faz dos textos e o contexto em que ela os coloca estabelecem a conexão com o projeto do regime. Uma literatura de tradição documental, como Monica Velloso ressaltou, é o parâmetro orientador das crô nicas solicitadas aos responsáveis pela seção.160 Ou seja, o que se deseja ressaltar aqui é o processo de apropriação realizado por Cultura Política, próprio, como já assinalou Chartier, à função do editor. Só que, neste exemplo, tal processo tem raízes profundas e um de seus referenciais básicos talvez possa, sem erro, ser situado na História da literatura brasileira de Sílvio Romero, consistindo em analisar um texto segundo o quanto ele contribui para a formação do caráter nacional, construindo “um critério etnológico-patriótico” para a criação artística. 160 São excelentes as observações da autora sobre a tradição documental da literatura brasileira no texto em que trabalha com Euclides da Cunha e Machado de Assis, usando como fonte o suplemento Autor es e Livr os. Ver Velloso (1988:239-63).
a História do Brasil de Cultura PolítiCa 177 Tal paradigma sofrera, ainda em fins do século XIX, e continuou sofrendo inúmeras contestações, mas manteve potencialidades, que os ideólogos do Estado Novo souberam tratar com competência. Esta reflexão é impor tante para que se possa entender não só o teor da presença de autores como Gr aciliano Ramos e outros em Cultura Políti-ca, como também o sentido diverso de uma análise descontextualizada de seus textos. No caso presente, a ênfase é em uma análise que privilegie sua inserção no projeto da publicação. As virtualidades de uma apropriação “naturalista” de textos literários por Cultura Política poderiam ser iluminadas pelas críticas de um contemporâneo de Sílvio Romero, José Veríssimo. Em seus Estudos de literatura brasileira ele procura distinguir “naturalismo” de “realismo”, criticando e identificando o primeir o a um modelo exclusivamente etnológico e “nacionalístico”: “Nenhuma obra de arte pode viver sem verdade, mas a verdade na Arte não é a cópia trivial da realidade das coisas”.161 Nesse sentido, e justamente porque em nossa história político-intelectual diferentes correntes de pensamento valorizaram e mesmo esgotaram a produção literár ia como instância refletora do mundo social, é possível entender claramente o exercício que iria comandar a seção “Páginas do passado brasileiro”. Tratava-se de selecionar, das páginas de romances de época e de livros de memó rias, “passagens” que fixassem imagens e momentos representativos da vida do homem brasileir o através dos séculos de sua história. A literatura, associada a uma certa percepção simplista da fotografia, poderia conter “instantâneos” do dia a dia do povo no campo e nas cidades, nas festas, em suas casas etc. “Fidelíssimos relatos” era o que se almejava oferecer ao leitor através das páginas de “escritor es de ontem”. O “passado” social redescoberto por essa garimpagem literária cumpria a missão de informar e formar o “sentido” profundo, anterior, da nacionalidade brasileira. Esse sentido, em permanente contato com o presente e o futuro, garantia, na citação de Bergson, um sentimento de “duração de nós mesmos”.162
As “páginas”, depois “quadros”, do passado brasileiro, como a seção anterior, estão concentradas na primeira fase da revista, quando englobam 161 Veríssimo (1976a). A citação é feita por João Alexandre Barbosa na introdução dos Estudos (p. 17). O texto de Roger Chartier especificamente lembrado é “Textos, impressos, leituras” (1990, cap. 4). 162 Páginas do passado brasileir o. Cultura Política (1):245, mar. 1941. 178 História e Historiadores 18 textos. Na segunda fase praticamente desaparecem, pois só sete extratos são publicados, perfazendo-se um total de 25 matérias entre março de 1941 e janeiro de 1944. Um quadro organizando o conjunto por assunto é igualmente ilustrativo.163 Páginas / Quadros do passado brasileiro Temas No de textos Percentagem
Costumes e tradições Cotidiano urbano 7 Cotidiano rural 5 Tradições religiosas 3 Total parcial 15 60
Atores históricos Soldados/guerras 4 Bandeirantes 2 Jesuítas 2 Total parcial 8 32 Outros 2 8 Total geral 25 100 Como se vê, os costumes e tradições dominam a cena, que, mesmo quando destaca atores, não os toma como indivíduos, mas como parte de uma “corporação”. A presença razoável de soldados é facilmente compreensível pelo clima da Segunda Guerra Mundial e pela exaltação das Forças Armadas. Os autores dos textos escolhidos são cronistas, como França Junior e João do Rio, atentos aos aspectos da vida carioca dos séculos XIX e XX: a rua do Ouvidor, os hotéis e o amor no Rio. A citação é de um folhetim do primeiro autor:164 163 O mesmo procedimento utilizado para se trabalhar com “Quadros e costumes regionais” será
aqui aplicado. Na segunda fase da revista, o critério de uso de fonte literária nem sempre é respeitado. 164 Em inícios do século, o livro tinha que ser feito, na maioria das vezes, no exterior, havendo poucas livrarias impor tantes. Praticamente, só o folhetim, por sua associação com a imprensa, conseguia gerar repercussão social e alguma remuneração para o autor. a História do Brasil de Cultura PolítiCa 179 “Sem pretendermos os foros de tenas (...), pode dizer-se que a vida fluminense está na rua do Ouvidor (...) As charutarias são atualmente o que eram as boticas nas priscas eras do gamão e da patriarcal camisola-da-china. Naquele ponto discutem-se questões de praça e diversos pormenores da vida social. O grupo que lá vai compõe-se de corretores e capitalistas. (...) são homens de vistas práticas e incapazes de tramar uma revolução ainda mesmo contra o Jockey-Clube, sociedade de que alguns fazem parte. (...) Mais adiante fica o Hotel Ravot. É onde se hospedam todos os fazendeiros ricos da província: porque os de Minas instalam-se nas ruas de S. Bento e Municipal pelas casas dos correspondentes. O Hotel Ravot, pois, simboliza a nossa primeira riqueza: o café.” 165 Ao lado das páginas dos cronistas estão as dos romancistas, ensaístas
e memorialistas como Manuel Antônio de Almeida, Raul Pompeia, Alfredo E. Taunay, Joaquim Nabuco, Carlos de Laet, Eduardo Prado, Alcântara Machado e Afonso Arinos. Desses autores são selecionados trechos de obras famosas — como Inocência, Minha formação e Vida e morte do bandeirante —, mas também trabalhava-se com textos menos conhecidos. Além da vida cotidiana, destacam-se as festas religiosas católicas, os des-mandos políticos da Primeir a República, a importância econômica das tropas de muares e da estrada de ferro, entre outros. Os sentimentos avocados são os da religiosidade, da vida familiar, do trabalho e da mundanidade urbana. Vários dos autores e livros selecionados estão entre os que formam a galeria de historiadores do suplemento de A Manhã. A literatura e a história tinham um encontro marcado nas “Páginas do passado brasileiro”. 165 Páginas do passado brasileiro, VI. Cultura Política (6):272-3, ago. 1941. 180 História e Historiadores O ponto que permitia o ajuste do encontro era a seleção no interior das obras: o olhar era o de uma “história existencial”, que narrava e que inequivocamente tinha o sabor de rememoração. Vultos e documentos: os “maiores” de nossa história Se o povo brasileir o era um ator fundamental em nossa evolução, possuindo uma “história existencial” que se manifestava na vida cotidiana das cidades e do campo, nas práticas religiosas e artísticas, nos costumes presentes nas atividades econômicas e científicas e no próprio imaginário popular r epleto de lendas e mitos, ele não era cer tamente o único ator que precisava ser resgatado por uma política de ressurreição do passado. Cultura Política divide suas atenções e espaços entre o que hoje poderíamos considerar uma história “social”, onde aspectos econômicos e culturais e também a vida cotidiana de atores coletivos têm destaque, e uma história privilegiadamente “política”, em que “acontecimentos” singulares e personalidades ganham a cena principal. É claro que não se trata de cometer o er ro de anacronismo, atribuindo aos editores da revista uma concepção que nos é contemporânea de história social, política ou das ideias e mentalidades. Trata-se, contudo, de assinalar a perspectiva ampla que o periódico
assume ao delinear o que seria nossa “cultura histórica” e, nessa recuperação, de reunir de for ma harmônica as “contribuições” do povo e das elites; as “dimensões evolutivas” da economia, da política e da sociedade; o trabalho de intelectuais das áreas da literatura, da sociologia, da antropologia e da história. Não há inclusive, como projeto maior da revista, uma diretriz hierarquizada, mas há uma clara distinção, sendo que a seção “História” marcaria por excelência o traçado de uma fronteira. Ao lado dela, que se constituiria no núcleo de uma concepção de passado or ganizado em termos de um tempo datado e povoado por eventos “interpretados” como paradigmáticos na evolução da nacionalidade brasileir a, estariam duas outras do mesmo teor: “Textos e documentos históricos” e “Intérpretes da vida social brasileira”. Ou seja, o que se pode verificar na proposta de ambas é que se ligam à ideia de fornecer subsídios básicos e essenciais à própria construção da história do Brasil, quer em termos da produção de novos textos, quer em termos do ensino da disciplina. O exemplo de “Textos e documentos históricos” é por demais evidente e está articulado a uma série de iniciativas governamentais muito mais a História do Brasil de Cultura PolítiCa 181 ambiciosas, como é o caso das publicações de manuscritos e outras fontes por parte da Biblioteca Nacional. Cultura Política, portanto, nesse pequeno espaço, está se engajando no esfor ço de divulgação documental que ocupa o Estado Novo, e que se desdobra tanto no objetivo de fornecer ao pesquisador um acesso mais fácil à fonte, quanto no de esclarecer o público mais amplo sobre a importância do documento para o “fazer” da história. Ele é o ponto de partida do trabalho historiográfico, sendo a relação do historiador com sua fonte a própria síntese da imagem que se constrói para esse “novo profissional” que as faculdades de filosofia deveriam começar a formar. Uma seção como esta, para Cultura Política, ensinava ao leitor sobretudo o que era um “documento
histórico”. Vale dizer, informava-o sobr e a multiplicidade de materiais que podiam se inscrever sob essa rubrica, bem como sobre a centralidade de sua conservação e divulgação para um real estímulo à produção intelectual nessa área do conhecimento, antiga no país, mas que só com o Estado Novo ganhava contornos específicos. Essa é uma seção autônoma, que tem longa duração, sendo publicada desde o primeiro número, em março de 1941, até o no 40, em maio de 1944. Nesse período, 54 documentos for am escolhidos. Sua reunião em um quadro temático-cronológico oferece a seguinte distribuição: Textos e documentos históricos Períodos / temas No de textos Percentagem
Período colonial 15 27,70 Pacto colonial 4 Jesuítas, missões 4 Invasões, lutas nativistas 3 D. João VI, processo de Independência, D. Pedro 4
Período imperial 24 44,40 Regências 3 2o Reinado: política 17 2o Reinado: economia 2 Abolição, escravidão 2 Período republicano 10 18,50 1a República: política 8 1a República: economia 2 Outros (vultos etc.) 5 9,40 Total geral 54 100,00 182
História e Historiadores A primeir a observação a ser feita é sobre a importância do período imperial, e nele, da política em nossa história. Não se trata, evidentemente, de ignorar uma dimensão política em nossa vida colonial. Ao contrário, como veremos ainda, ela é crucial, por que está marcada — praticamente identificada — aos episódios nos quais os brasileir os lutam por sua “independência” contra os estrangeiros e, a seguir, contra a Metrópole. Mas vida política stricto sensu tivemos a partir do Império, quando a construção do Estado/Nação impôs-se aos brasileiros. Dessa forma, o Império é o momento político por excelência, encarnando-o de maneira evidente o Segundo Reinado. A República — e todos os documentos referem-se ao período até 1930 — também é basicamente política, quase não incorporando questões de natureza sociocultural. Há, é claro, vida econômica nos três períodos, sobretudo na Colônia, que é construída a partir de temáticas que se referem ao comércio exportador, a produtos e mão de obra. De certa forma, não deve causar espécie a falta de textos e documentos referentes a aspectos sociais e intelectuais, uma vez que a seção “Páginas do passado brasileiro” dedicava-se a fixar justamente esses aspectos, r ecorrendo a fontes literárias bem específicas: romances “de época” e memórias, com destaque. Outra questão significativa na análise dessa seção, e que o quadro não mostra, é o tipo de textos e documentos selecionados para publicação e o teor que tais materiais queriam transmitir. Os “textos” extraídos de livros e jor nais não têm o menor peso percentual, reduzindo-se a sete casos. Portanto, praticamente todo o universo era constituído por “documentos” que abarcavam predominantemente: discursos parlamentares, correspondências (cartas e telegramas), cartas régias, cartas de brasão, autos de processo, testamentos, pareceres, memorandos e manifestos. Uma ampla variedade, que era completada com algumas memó-
rias, também inexpressivas numericamente. Quanto à or igem do material, vale destacar a importância da coleção de Francisco Marques dos Santos, de onde são extraídos inúmeros “inéditos”, e também, como seria natural, do acervo da Biblioteca Nacional. Todos esses textos e documentos eram precedidos de uma pequena nota da revista, onde se indicava sua origem e se propunha uma “leitura”, com frequência articulada às questões enfrentadas pelo Estado Novo e às soluções por ele propostas. Isto é, também nessa seção procurava-se demonstrar como o governo Vargas exprimia, historicamente, o sentido da nacionalidade brasileira. Para ilustrar a leitura proposta por Cultura Política, cabe mencionar alguns exemplos. a História do Brasil de Cultura PolítiCa 183 “Em 5 de agosto de 1822, foi assinado no Palácio Rio Negro, pelo Príncipe Regente, um manifesto do Brasil aos governos e nações amigas, justificando nossa atitude contra a preponderância, em nosso aís, da corte portuguesa (...). Sua linguagem, seu estilo e sobretudo seu sentido político representam uma famosa expressão na história de nossa diplomacia (...). Por ele se sente a tendência do nosso espírito nacionalista, que hoje cresce cada vez mais com a nova política do Brasil.” 166 Os ideais nacionalistas eram recorr entemente assinalados em episódios registrados pelos documentos, quer estes se referissem ao período colonial imperial ou republicano. Os autores/atores eram elogiados, sendo a seção uma forma de destacar figuras da história do Brasil, tanto as já tradi-cionalmente conhecidas e reconhecidas — como D. Pedro e José Bonifácio, o redator do manifesto citado —, quanto outras, muito menos destacadas. Este é o caso do discurso parlamentar de Fausto Cardoso, assim apresentado:
“Contra a vizinha estéril, as ovoações demagógicas, os debates inúteis que tanto retardavam as realizações dos governos, ronunciou, na sessão de 9 de junho de 1902, no seio do Congresso Nacional, o seu mais célebre discurso proclamando a ditadura, em resposta a Rui Barbosa, então senador pela Bahia. Idealista, batera-se contra o Império (...) mas [tornou-se] republicano desiludido (...). Já naquela época, através das rivalidades consequentes da autonomia dos Estados, compreendera a força da unidade nacional.” 167 A crítica à experiência da Primeira República era evidente nessa seção, concentrando-se no processo eleitoral e nos procedimentos parlamentares, mas estendendo-se também à administração das finanças. 166 O Manifesto da Independência do Brasil (1822). Cultura Política (2):198-205, abr. 1941. 167 A ditadura no Congresso Nacional em 1902. Cultura Política (4):181-7, jun. 1941. 184 História e Historiadores Nesse sentido, é interessante observar que são publicados dois textos de Alberto Torr es, qualificado de grande pensador fluminense: um denunciando a subordinação política do Brasil e outro criticando a monocultura e o apoio dado pelos governos da Primeira República à agricultura. Portanto, em Cultura Política, o pensamento de Torres é recuperado e integrado a uma seção em que figura como verdadeira “fonte” histórica.168 A política, interna e externa, do Segundo Reinado é muito mais pou-
pada, inclusive porque, sugestivamente, boa parte dos documentos publicados sobre o tema refere-se à vida privada dos membros da família imperial e não à sua atuação no espaço público. A série de 20 cartas escritas por D. Pedro II e seus irmãos a familiares na Europa entre 1831 e 1834 é provavelmente o melhor exemplo.169 Além disso, é preciso r egistrar que, também nessa seção, a partir de setembro de 1942, aparecem documentos sobre o tema da guerra — do Paraguai e de expulsão dos holandeses, por exemplo —, embora no volume geral não cheguem a transformar o tipo de documentação que vinha sendo divulgada. O que ocorre, na verdade, é uma diminuição acentuada da frequência com que a seção passa a figurar na revista, como já assinalado. Finalmente, vale observar a inclusão de um discurso do presidente Getúlio Vargas, pronunciado em Manaus em 10 de outubro de 1940, e considerado, pela revista, uma de suas peças mais notáveis pelo sentido de brasilidade profundo. “O discurso do rio Amazonas” ganhava assim sentido histórico, incorporando-se ao conjunto selecionado.170 Da mesma forma que o projeto político-cultural estado-novista procurava evidenciar o valor do “povo” por suas tradições, usos e costumes, procurava também ressaltar a existência e a impor tância de “personagens históricos” que “resumiam” em si mesmos as qualidades desse “coletivo” e, em o fazendo, as-seguravam tanto a continuidade quanto as transfor mações de nossa sociedade. “Intérpretes da vida brasileira” propunha-se formar uma galeria de “heróis” 168 O primeir o texto mencionado é: A Primeir a República vista por Alberto Torres.Cultura Política (2):193-7, abr. 1941, e refere-se a artigo publicado no Jornal do Commercio em 1912, sob o título “Nação ou colônia?”. Na introdução a ele feita, escreve-se: “Prevendo já as nossas crises e transformações políticas, idealiza para o Brasil um governo capaz de (...) acabar com os privilégios, proteger o proletariado, amparar a produção, preparar o espírito do povo, tal como se vem realizando em nossos dias (...)”. O segundo texto é: A formação brasileira e o desenvolvimento da economia nacional. Cultura Política (7):243-5, set. 1941.
169 Primeiras cartas de D. Pedro II.Cultura Política (14):173-83, abr. 1942. 170 O discurso do rio Amazonas. Cultura Política (8):227-30, out. 1941. a História do Brasil de Cultura PolítiCa 185 em sentido bem amplo: representantes dos princípios formadores do povo brasileiro, que podiam exprimir seus sentimentos, necessidades e aspirações. Eram os homens que traduziam “o que há de melhor e mais expressivo para a avaliação do espírito brasileiro, em sua tarefa construtora”, inclusive porque definia-se “o valor de um povo pelo valor de suas elites (...) artistas de todos os gêneros, estadistas, cientistas, figuras ilustres da vida pública”.171 Não há, assim, qualquer tensão entre atores coletivos e individuais, sendo o “vulto histórico”, na leitura de Cultura Política, um criador e uma criação da sociedade brasileira, unindo passado e presente e assinalando a transcendência de certos valor es próprios ao “espírito nacional”. Daí “intérpretes” para designar a galeria de figur as homenageadas com uma biografia, muito semelhante àquelas organizadas por Autores e Livros na seção “Notícias”. Cada personagem tinha sua trajetória de vida — pública e privada — reconstituída: filiação, local de nascimento, infância, instituições educacionais, ocupações profissionais, amizades e episódios marcantes da vida nacional nos quais tomara parte. Talvez seja útil relembrar, ainda uma vez, que uma das estratégias pedagógicas para o ensino da história, no período, era justamente introduzi-lo a partir de biografias de homens célebres, para em seguida tratar de temas mais amplos. As dificuldades para a execução de tal método eram muitas, entre elas os contemporâneos registravam a falta de textos de referência acessíveis, dos quais os dados biográficos pudessem ser retirados, quer para compor os programas de história da civilização, quer para os de história do Brasil.172 Os “Intérpretes da vida brasileira” podiam assim não só atender aos interesses de um público amplo, socializado com o gênero biográfico, como aos de um público mais específico de professores de história do 171 Intérpretes da vida social brasileira. Cultura Política (1):243-4, mar. 1941.
172 Vale a pena transcrever a orientação do professor Jonathas Serrano ( História da civilização. Rio de Janeiro, 1934. v. 1, p. XV) sobre a montagem de um capítulo/aula: “a) uma rápida vista geral do assunto em menos de 10 linhas; b) uma ou duas biografias sumárias dos vultos mais impor tantes e representativos; c) um quadro cronológico, em que figurem somente as datas mais notáveis relacionadas com o ponto; d) um resumo do que é essencial, na hipótese de ser desenvolvida a matéria além da simples biografia e dos episódios; e) uma, duas ou três leituras curtas e sugestivas, que completem quase sempre as biografias e sirvam para aumentar o interesse do aluno; f ) um vocabulário dos termos empregados capazes de embaraçar os estudantes da primeira série, cujo cabedal de palavras é sabida-mente restrito e não raro confuso”. A citação de J. Serrano está em Hollanda (1957:130). Sobre os livros didáticos de história, ver Reznik (1992). 186 História e Historiadores ensino secundário que iniciavam sua prática didática sob os cânones da reforma Capanema. O conjunto de textos publicados por Cultura Política reuniu 17 biogr afados, cuja classificação é feita pelo próprio periódico. • Políticos: Diogo Antônio Feijó, Evaristo Ferreira da Veiga, Martim Francisco Ribeiro de Andrade, Antônio Carlo s de Andrada e Silva, José Bonifácio de Andrada e Silva, José Maria da Silva Paranhos (visconde do Rio Branco), José Maria da Silva Paranhos Júnior (barão do Rio Branco), José da Silva Lisboa (visconde de Cairu) e Getúlio Dornelles Vargas. • Militares: Luís Alves de Lima e Silva (duque de Caxias), Manoel Luiz Osór io (general Osório) e marechal Deodoro da Fonseca. • Literatos: Manoel Antônio de Almeida, Afonso Henriques da Costa Guimarães (Alphonsus de Guimaraens), Cláudio Manoel da Costa, Inácio José de Alvarenga Peixoto e frei José Mariano da Conceição Veloso. Como se vê, a predominância de políticos é maciça, ainda mais acentuada pelo fato de Caxias e Deodoro poderem ser também identificados como figuras de nossa vida política, e de alguns literatos estarem envolvidos na Inconfidência Mineira. Surpreendentemente, Tiradentes não está citado, embora se possa aventar que a seção sofreu interr upção. O período
histórico privilegiado é também o Império, com destaque para o Segundo Reinado, onde o projeto estatal-nacional tem suas origens mais cultivadas. A relação de vultos privilegiava assim a temática das lutas pela Independência e pela defesa da pátria e, com a mesma ênfase, da luta pela construção de um Estado nacionalista, como queria o Estado Novo. O único personagem vivo, capaz de se ombrear com os demais, era Vargas, síntese das qualidades da elite e do povo brasileiro, como Cultura Política assinalava com frequência e vigor. Essa é a histór ia... Em termos da análise do universo de textos publicados por Cultura Política, e abarcados aqui pelo que se está chamando de uma “cultura histórica”, é sem dúvida a seção “História” aquela que oferece quantitativa e qualitativamente maiores oportunidades para uma reflexão sobre que “versão” da história do Brasil estava sendo configurada no Estado Novo. a História do Brasil de Cultura PolítiCa 187 Ao se fazer esta observação, não se deseja, contudo, dizer que são os “interesses” do Estado/governo Vargas que comandam livremente essa construção, ou que os historiadores e demais intelectuais dela participantes são meros joguetes de um pro jeto cultural que escapava completamente de suas mãos. As duas perspectivas, como o curso do trabalho vem demonstrando, são falsas. Nesse sentido, o que mais uma vez se deseja assinalar é o fato de Cultura Política — seus editores e colaboradores mais importantes — propor uma “leitura” de todo o material que nela se publica. Dessa forma, a “interpretação” específica de cada artigo fica “submetida” à “interpretação” mais global que o periódico encaminha. Como também á ficou claro, trata-se de um discurso nacionalista, vinculado a um Estado “forte” e “democrático”, porque legitimado pelos mais caros valores e de-
mandas socioculturais do povo brasileiro. A seção “História” precisa, por conseguinte, ser observada sob vários ângulos. Em primeir o lugar, ela é publicada em praticamente todos os números, sofr endo, como se verá, de forma significativa os impactos da entrada do Brasil na guerr a. A seção reúne um conjunto de 48 artigos, alguns bem alentados em volume de páginas, e alguns ilustrados por fotos, desenhos etc. Escreve para “História” um razoável número de colaboradores, havendo os que se destacam um pouco mais pela frequência. Entre eles, o grande nome é Hélio Viana, que inclusive se concentra na discussão de certas temáticas, tornando as páginas da revista um veículo de divulgação importante de sua produção intelectual. Além dele, alguns autores merecem ser citados, quer porque também se apresentam com mais assiduidade, quer porque são ou serão reconhecidos como nomes de destaque. No primeir o caso estão: Mário Melo, secretário perpétuo do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco; Oto Prazeres, funcionário do Ministério da Justiça; Mercedes Dantas, da Academia de Letras da Bahia, do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, do Pen Club e presidente da União das Educado-ras; e Odor ico Costa, diretor da Imprensa Oficial de Goiás. No segundo caso estão: José Maria Belo, ex-senador por Pernambuco e procurador da Fazenda do Distrito Federal; Djacir Menezes, professor da Faculdade de Direito do Ceará; Brito Broca, escritor, jornalista e crítico literário; e Vicente Tapajós, das escolas técnicas municipais, por exemplo. De modo ger al, pode-se considerar que não estão escrevendo para “História” os g randes intelectuais da época, historiadores ou não. A grande maioria do elenco de colaboradores é de professores, membros dos ins188 História e Historiadores
titutos históricos e geogr áficos de vários estados e também funcionários de órgãos do aparelho de Estado. Após 1942, o número de militares cresce muito proporcionalmente à fase anterior da revista. Os autores dos artigos publicados são em parte “pesquisadores” e em parte “divulgadores” dos conhecimentos históricos produzidos por intelectuais já consagrados. Por essa razão, é interessante assinalar que muitos textos r ecorrem ao que se chama de “argumento de autoridade” quando da citação de um livro. Nesse sentido, três figuras aparecem de for-ma destacada, constituindo uma espécie de trilogia de referência: Gilberto Freire, com seuCasa grande e senzala e outros; Euclides da Cunha, com Os sertões; e Oliveira Viana, com Populações meridionais e outros. É extremamente significativa a incidência de presenças que, na classificação de Autores e Livros, não compõem o mundo historiográfico stricto sensu. Esse fato demonstra a força com que, no Estado Novo, desenvolvia-se todo um investimento em torno do que tais nomes significavam em termos da “nova” cultura brasileir a. É claro que alguns “historiadores” são também muito citados e cor tejados, entre os quais ressaltam: Alcântara Machado ( Vida e morte do bandeirante) , Pandiá Calógeras ( Formação histórica do Brasil) , A. Taunay ( A retirada de Laguna) , e o editor Paulo Prado ( Primeira visitações do Santo Oficio às partes do Brasil).173 De maneira também reveladora, não há praticamente menção aos textos de Capistrano de Abreu, Varnhagen, Oliveira Lima e outros considerados autênticos “pais fundadores” do saber histórico no Brasil, como se viu anteriormente. Essas diferenças entre Autores e Livros e Cultura Política são sugestivas da dinâmica de produção e divulgação de dado conhecimento disciplinar em certo momento da vida política de uma sociedade. Outra ordem de observações diz respeito a como os artigos aparecem arr anjados na seção, uma vez que, embora de forma maciça classificados como “história”, podiam também aparecer como “história política”, “economia” e, mesmo não explicitamente, como “história militar”. O domínio da história política é evidente, mais ainda se a ela for incorporado o aspecto militardiplomático, que ganha for os de autonomia devido à guerra. Contudo, ainda assim, são numerosos e significativos os artigos que fazem análises econômicas, como o de Oto Prazeres — “O último orçamento
173 Os livros de documentos das Primeiras visitações são os relativos às Denunciações da Bahia, de 1925, com introdução de Capistrano de Abreu, e às Denunciações de Pernambuco, de 1929, com introdução de Rodolfo Garcia. Agradeço a Ronaldo Vainfas esta infor mação suplementar. a História do Brasil de Cultura PolítiCa 189 da Monarquia” —, que destaca como os orçamentos governamentais podem informar sobre a política e a vida de uma sociedade; e os que fazem análises socioculturais, como o de Djacir Menezes — “Retalhos de psicologia da sociedade colonial” —, que cita Alcântara Machado e Roger Bastide, para examinar aspectos íntimos (sexuais) da vida dos colonos brasileiros.174 Vale articular esse tipo de matéria com todo um contexto de debates sobre a produção e o ensino da história que, datando do pré-30, encontra expressão nítida na reforma Campos. Ele constituía uma reação ao predomínio quase exclusivo da história política e, mais particularmente ainda, ao fato de seu ensino reduzir-se a uma infindável citação de nomes, datas, governos, batalhas etc., o que tornava a disciplina insuportável e inútil para qualquer estudante. É nesse sentido que, nas instruções metodológicas de 1931, escrevia-se: “Cumpre conciliarem-se no ensino da história os aspectos econômico, político e ideológico. Colaborando com a geografia, a história ministrará conhecimento das relações existentes entre a organização econômica, a forma de produção, a estrutura social, o Estado, a ordem urídica e as diversas expressões da atividade espiritual, sem sacrificar qualquer desses vários aspectos à consideração exclusiva de um ou mais destes, porém, tratando de cada qual segundo a
importância relativa que tiver na vida do país e na evolução geral da humanidade.” 175 Além disso, atendendo ao espírito e às instruções da reforma de 1942, a “história” de Cultura Política era sobretudo o ensino da história pátria. Artigos sobre história da América ou sobr e aspectos que envolvessem o Brasil e o utros países não ocupavam as preocupações da revista. Esta é uma das constatações que se pode fazer observando o quadro que distribui os textos da seção em períodos e temas, agrupando na categor ia “outros” aqueles que não se adequam à classificação realizada. 174 Os artigos citados estão, respectivamente, em Cultura Política (43):138-51, ago. 1944; Cultura Política (40):144-50 , maio 1944. 175 Apud Hollanda (1957:19). 190 História e Historiadores História Períodos /temas No de textos Percentagem
Período colonial 21 44 Descobrimento do Brasil 2 Jesuítas/índios 7 Expansão territorial
3 Economia e sociedade 2 D. João VI 1 Movimentos nativistas 6 Período imperial 12 25 Primeiro Reinado/Regências 3 2o Reinado 6 Abolição/escravidão 3 Período republicano 9 19 Campanha republicana 3 Primeir a República 6 Outros 6
12 Pré-história brasileira 1 História da América 2 Outros 3 Total geral 48 100 O quadro não surpreende ao evidenciar a predominância de artigos sobre os perío dos colonial e imperial, confor me a tradição que aconselha o distanciamento no tempo como forma de alcançar a objetividade. O que cabe notar, no caso dessa seção, é a nítida concentração de textos sobre a Colônia e o destaque neles dado aos temas “Jesuítas/índios” e “movimentos nativistas”, envolvendo 13 dos 21 textos do total. Isso porque, diferentemente de “Páginas do passado brasileiro” e de “Intérpretes da vida social brasileira”, onde os vultos e os documentos do século XIX são muito presentes, em “História” o que vai assumindo grande visibilidade através da leitura conjunta dos artigos é a preocupação com as raízes históricas de nossa formação social. Quanto ao Império e ao período republicano, a incidência do Segundo Reinado e da Primeir a República é mais do que compreensível. O interessante, como se verá, é que haverá uma dose bem razoável de críticas a História do Brasil de Cultura PolítiCa 191 à Monarquia e um olhar bem mais complacente para a Primeira República, flexibilizando-se uma tendência editorial da revista já observada. Evidentemente, é impossível analisar o conteúdo de todos esses artigos; tentar-se-á, pois, empreender uma leitura que enfatize três diretrizes que podem ser detectadas como orientadoras de um projeto estado-novista de narração da história do Brasil. A primeira retoma uma das mais clássi-
cas questões do pensamento social brasileiro desde a segunda metade do século XIX, estruturadora do trabalho de Martius, já em 1840, no IHGB. Isto é, escrever a história do Brasil é escrever sobre a história de um povo constituído por três raças — “o” índio, “o” negro, “o” branco, todos no “singular” —, ao abrigo de um espaço tropical imenso. As duas outras remetem à situação de um povo colonizado pela Europa, alvo de sua cobiça e de seus tratados e interesses políticos e econômicos. Ou seja, escrever a história do Brasil é escrever sobr e a história de um povo que precisou lutar em várias frentes para defender sua autonomia, que politicamente se chamava República. Portanto, essa é a história de um povo republicano. Em todos os casos, para Cultura Política, esse povo foi um grande vencedor. Essa é a história de um povo mestiço... É trivial constatar que, no Brasil, o enfrentamento da “questão racial” é uma das vias diretoras da reflexão político-intelectual durante mais de um século, e que tantas dificuldades e investimentos certamente não são casuais. Da “solução” dessa questão — paradigmática e simbólica para a construção da identidade brasileira — dependeram, sucessivamente, muitas políticas públicas e também muitos dos valores culturais que assegurariam ou abalariam a coesão de nossa sociedade. Não foi, portanto, coincidência que o autêntico “projeto civilizatório” de Pedro II, em meados do século XIX, estivesse tão vinculado à busca de uma resposta a essa questão e que, naquele momento, tal resposta se traduzisse em uma monogr afia histórica de um naturalista europeu apresentada ao concurso do recém-criado IHGB. Seguindo a mesma lógica, não é de forma alguma coincidência que, um século depois, quando o Estado Novo articula um “novo projeto civilizatório” para o país, essa questão volte a ocupar lugar de honra, especialmente porque ela nunca deixara de
estar na ordem do dia dos estudos político-sociais. Talvez seja interessante, portanto, acompanhar mais de perto algumas das características do empreendimento estado-novista, tendo como 192 História e Historiadores hipótese a centralidade do esforço de difusão então empreendido para traçar uma “resposta acabada” para o verdadeiro problema da síntese da nacionalidade. Ou seja, perceber como o Estado Novo foi um momento estratégico para a construção do mito da democracia racial brasileira e, mais precisamente ainda, de que maneira tal mito se articulou a uma certa versão da história do Brasil.176 Cultura Política fornece subsídios para esta reflexão, que obviamente nela não se esgota. Não há pro priamente na seção “História” um trabalho programático explícito com relação à questão racial. Ela emerge de for ma fragmentada e diluída, quando os autores escrevem sobre vários assuntos e, com mais destaque, sobre certos temas, como os classificados sob os títulos jesuítas/ índios, movimentos nativistas, ou qualquer evento que envolva o negro na Colônia, no Império ou na República. Além disso, o tratamento dado pela revista à questão não pode ser limitado a essa seção, devendo ser articulado com outros textos publicados em outras seções, como “Problemas sociais”, e também com uma série de artigos que aparecem sob as rubricas “Literatura” e “Biografia”. A série tem o título “Euclides da Cunha, o estilizador da nossa história”, e seu autor é Ataíde Miranda.177 Esta referência é indicativa de outro traço do trabalho da revista, que é a valorização, pela seleção e publicação de textos, de autores r eferenciais, entre os quais, no que diz respeito à questão racial, estão exatamente Euclides da Cunha, Gilberto Freire e Oliveira Viana. Além deles, há outros de menor expressão, numa combinação que, sem excluir tensões, gar ante
harmonia e equilíbrio à construção proposta. Um ponto de partida útil para demarcar o discurso da revista — que, nesse caso, está presente de forma geral no discurso estado-novista — é a caracterização do “povo brasileiro” como uma “raça de mestiços”, sendo a esta designação atribuídos conteúdos morais, políticos e sociais extremamente positivos. Não se tratava mais, portanto: a) de transitar no interior de uma “ideologia de branqueamento”, que postulasse a necessidade e a possibilida-de da fusão r acial, com o predomínio do branco, isto é, do “melhor” fator, quer tomado sob o prisma “biológico”, quer tomado sob o prisma “cultural”; e b) de aceitar uma hierarquia de valores entre raças, em que o índio 176 Muito já se escreveu sobre este assunto, mas um texto que se tornou referência básica é Matta (1981:58-85). 177 Cultura Política não for nece dados biográficos sobre o autor, e a série aparece em (42):124-43, ul. 1944; (45):92-101, out. 1944; (46):281-94, nov. 1944; e (50):209-33, mar./maio 1945. a História do Brasil de Cultura PolítiCa 193 e especialmente o negro tivessem posição inferior, fundamento das teorias cientificistas e evolucionistas do século XIX. Aceitavam-se, desse modo, com a designação “raça de mestiços”, os seguintes fatos: a) que o Brasil não seria uma sociedade “branca”; e b) que não haveria inconveniente algum nessa constatação, uma vez que as “teorias rácico-espaciais” eram falsas. Os desdobramentos de tais assertivas emergem na revista como uma conclusão “natural” e não como um trabalho intelectual: a sociedade brasileira era fr uto do “caldeamento” de três raças/culturas, cujo r esultado possível e desejável era uma fusão “quase que perfeita”, expressa no tipo do mestiço. O Brasil, por tanto, por mais múltiplos e complexos que fossem seus elementos formadores, tinha uma face: a cara do país era mestiça, e era una. Este é o ponto. Em uma certa perspectiva, a afirmação parece não conter qualquer novidade. Afinal, Sílvio Romero e outros havia muito falavam da mestiçagem étnica e moral, embora, é bom lembrar, referidos à “ideologia do branqueamento” e resistentes à positividade da “raça negra”. Essas formulações também não se restringiam de forma alguma aos intelectuais brasileiros, povoando igualmente projetos latino-americanos, embora com as variações
compatíveis.178 Nos anos 20, inclusive, tornara-se razoavelmente cor rente a negação do fator étnico como “causa” dos problemas nacionais, mas, ainda que se reconhecessem nossos males na falta de saúde e de educação do país, o horizonte do “branqueamento” não fora inteiramente perdido. A operação estado-novista, por conseguinte, não inventa propriamente algo “novo”. Ela acelera o ritmo e dá direção a um pro cesso que estava em curso, esgrimindo alguns argumentos, refinados por “leituras” de autores que se consagram “no” e “pelo” período. Por essa razão, as próprias “leituras” estado-novistas desses autores transformam-se, elas mesmas, no “pensamento” de tais autores. A afirmação central dessa operação intelectual era a que identificava a ideia de “fusão” racial — de “uma” cara — com a ideia de “democracia” racial. Ou seja, a mestiçagem — fosse étnica ou mor al — “integrava”, no sentido de gerar um resultado em que qualquer dos fatores nele presentes era absorvido numa totalidade sem “conflitos”. A mestiçagem diluía não só a “diversidade”, como também a “desigualdade” entre índios, negros e brancos, gerando uma “área de igualdade” que se traduzia, magnificamente, por uma categoria político-cultural. Investigar as or igens e a dinâmica desse processo de mestiçagem 178 Ver Tenório (1994:123-48). 194 História e Historiadores constituía-se na busca das próprias origens do valor da “igualdade” no Brasil, que tinha uma história diferente daquela vivida pelos países europeus e resul-tava, em decor rência, num tipo de democracia distinta. Para Cultura Política, a incursão nos fundamentos de nossa democr acia racial era, assim, uma outra estratégia para afirmar as especificidades da democracia no Brasil — da democracia “do” Estado Novo —, que não er a política e sim social.179 De modo muito esquemático, mas indo ao núcleo da construção, o que se procurava fixar era um dos traços característicos de nossa “cultura tropical”, da “alma de nosso povo”. Ele recebia, entre outros, o nome de “sentimento de igualdade das raças”, exprimindo-se, de for ma expressiva, nas trocas sexuais e sociais presentes em séculos de nossa
história. Isso significava, em primeiro lugar, não só que a sociedade brasileira tinha um conteúdo democrático que lhe era “intrínseco”, mas também que esse “sentimento” nada devia às teorias liberais europeias e à ideia de cida-dania por elas construída. Aliás, a construção liberal er a acusada de possuir um “preconceito igualitário”, enquanto, no Brasil, a igualdade não tinha raízes “artificiais”, mas muito mais profundas, pois fundadas em contatos humanos físicos e mor ais, materializados na mestiçagem.180 Estava, assim, na história do Brasil a chave para se compreender a dinâmica de tal processo, que “explicava” nossa própria identidade nacional e desafiava as teorias fantasiosas das raças puras, dos climas fr ios e dos conflitos de classe. Alguns de nossos maiores intelectuais haviam salientado esses pontos e “intuído” o papel de destaque da mestiçagem, ao escrever sobre os mais variados episódios de nossa história. Euclides da Cunha fora o primeiro, em ordem cronológica. Cultura Po-lítica iria recuperá-lo com o sentido que o subtítulo dos artigos de Ataíde Miranda propõe: o estilizador de nossa história. Isso significava que Euclides fora um dos que deram à nossa história um “estilo”: uma for ma de pensar e sentir 179 Em meu livro, A invenção do trabalhismo (1994), já discorri longamente sobre a noção de “democracia social”, também trabalhando com a r evista Cultura Política. Não julgo necessário ou procedente repetir tais reflexões, às quais quero agregar uma outra linha de argumentos que a reforçam. Ver especialmente o capítulo 5. 180 Ver, por exemplo, “A igualdade de raças no Brasil: suas raízes históricas”, que é a publicação de um extrato de Lima (1922:29-35), em Textos e documentos históricos. Cultura Política (1):202-6, 1941. E também O’Reilly, Newton. Raça de mestiços, em Problemas sociais.Cultura Política (25):838, jun. 1943. Lilia K. M. Schwarcz (1993) chama a atenção, por outros caminhos, par a o mesmo aspecto que estou aqui assinalando. Ver particularmente suas conclusões. a História do Brasil de Cultura PolítiCa 195 o país “como possível de posse”. Não casualmente ele conferir a lugar especial ao fenômeno da mestiçagem, trabalhando com autores como Taine e Gum-plowicz, mas “ultrapassando-os” ao rejeitar a predominância de quaisquer elementos — clima, r aça, tradição — na formação de nossa nacionalidade. Ele teria descoberto nossa “tendência” à fusão, nossa aptidão para a “domesticação da natureza” e para a religiosidade. A figura do sertanejo como um “forte de espírito” por
excelência era o símbolo de nossa originalidade completa.181 Euclides da Cunha realizara o “pluralismo científico”, r ejeitando o “naturalismo explicativo” exclusivista de sua época. Como ele, outros autores enfrentaram a “condenação” que pairava sobre nós e mostrar am, com uma série de exemplos retirados de nossa história, como conseguíamos construir uma civilização que se afirmava ao longo do tempo, política, econômica e so -cialmente. Oliveira Viana podia e devia ocupar uma posição de impor tância equiparável, ao demonstrar a especificidade de nossa sociedade rural ante a metrópole portuguesa e ante outras experiências europeias e americanas, aí incluída a experiência dos Estados Unidos, por muitos evocada como paradigma. Essa sociedade rural, da qual o autor era o grande estudioso, era o berço da mestiçagem e, sem sua compreensão, não seria possível reconstruir essa “ausência” de preconceito racial que existia entre nós. Essa operação podia ser feita, é claro, apesar do fato de os próprios escritos de Oliveira Viana pautarem-se na “ideologia do branqueamento” que se estava então afastando. Mas a grande referência era, sem dúvida, Gilberto Freir e, lido como a reflexão mais “acabada” da vitória do povo brasileiro sobre a chamada “questão racial”. Vários artigos recorrem a ele, citando-o ou não, quando narram a história do Brasil: os portugueses não eram “brancos”, mas já mestiços, o que não os impediu de obra colonizadora grandiosa; os índios e os jesuítas permitiam a “descoberta” de uma “rebeldia natural” contra a submissão e de um sentimento moral que impregnava a sociedade colonial e deixava suas marcas profundas; os negros não eram tão “servis” quanto se imaginava, e os estudos mais recentes sobre a abolição o demonstravam. Embora, nesse caso, como Freire também advertia, não houvessem sido tão grandes os “maus-tratos” a eles infligidos, o que facilitava ainda mais todo um intercurso social/sexual. Isso explicava, por exemplo, por que a abolição acabara por “vitimizar” os negros, deixados sem qualquer amparo, nem mesmo o do senhor. Medida “demagógica” da princesa regente, 181 Ver série já citada, particularmente o terceiro artigo, de novembro de 1944.
196 História e Historiadores que atingiu a todos e ao país e, especialmente, ao “trabalho”, que vegetou durante toda a Primeira República.182 Como se vê na leitura de Cultura Política, Oliveira Viana e Gilberto Freire não eram incompatíveis, especialmente porque incorporados em um conjunto maior de autores dos quais se extraíam elementos específicos.183 Além disso, como Martius já havia ensinado há um século, não se podia falar do Brasil sem falar sobre índios, negros e brancos, e sobre a “harmonia” de raças que aqui se construiu. Mas seria enganosa uma visão inteiramente sem conflitos de todo esse processo histórico. Por um lado, porque se nele não houve uma tensão binária (luta de classes), e sim “acomodações” ternárias, não deixou de haver tensões, perfeitamente compreensíveis e absorvíveis: resistência de índios, quilombos, fugas de escravos, violências de brancos colonos e senhores etc. Por outro lado, porque não se podia entender o próprio processo de mestiçagem sem extrapolar as relações entre seus três elementos geradores, lançando um olhar mais amplo sobr e a situação “colonial” em que todos eles viviam. Ou seja, havia uma certa gama de conflitos que envolviam o “outro” — definido sempre como aquele que ameaçava a nacionalidade —, e que não podia ser incluído no processo de “caldeamento”, até mesmo reforçado por essas situações dramáticas. Dessa forma, a história do Brasil era também uma história de lutas, mas de um tipo bem preciso. Essa é a história de um povo pacífico que sempre soube lutar... O ano de 1942 é um marco simbólico para um COr9unto de transformações que envolvem as políticas interna e externa brasileir as. O ataque japonês a Pearl Harbour, em dezembro de 1941, mostrara que quaisquer
resistências brasileiras a um clar o alinhamento com os Estados Unidos estavam superadas. A Conferência do Rio de Janeiro, em inícios de 1942, 182 A leitura estado-novista de Gilberto Freir e terá longa duração. Sobre o pensamento do autor, ver Araujo (1994). 183 Howes (1975) destaca a postura não agressiva do racismo de Oliveira Viana e sua adesão aos efeitos favor áveis da miscigenação; posição, aliás, comum ao campo intelectual brasileiro de sua época. Nesse sentido, observa que não haveria tantas dificuldades em aproximá-lo da escola representada por Gilberto Freire, que é justamente o que Cultura Política realiza, lendo os dois autores. a História do Brasil de Cultura PolítiCa 197 sancionou o fato e, no mês de agosto, a entrada do Brasil na guerra era uma “exigência” nacional. Em termos de política interna, ficava também clara a finitude do hor izonte de duração do Estado Novo. Para as elites governamentais, cumpria administrar a transição política para um regime liberal-democr ático que poderia tardar, mas não falharia.184 Em termos de política cultural e, mais especificamente, de propaganda política do Estado Novo, o impacto dessas mudanças não foi pequeno. Na revista Cultura Política, pertencente ao DIP, houve alterações significativas, embora Almir de Andrade não abandonasse sua direção. O “espírito” geral das mudanças ocorr idas pode ser sintetizado em uma nova diretriz que deveria “hegemonizar” as já existentes. A revista passaria a ser o veículo de difusão de uma “cultura militar”, face destacada de nossa “cultura política”. Nada mais congr uente com tal objetivo, que refor çava os vínculos de coesão social na nação, do que alimentar e estimular essa “cultura militar”, abordando-a através da reconstrução de nosso passado “guerreiro”. Ou seja, se o povo br asileiro era, por “índole”, pacífico e disposto à absorção de conflitos, além de plástico e flexível em sua dinâmica de caldeamento físico e cultural, era um povo que sabia lutar. A história desse povo precisava, assim, ser contada para ser conhecida amplamente, num momento em que a mobilização para a guerra se fazia tendo em vista o front de batalha na Europa e também o front de produção no Brasil. Dessa forma, a partir de 1942, Cultura Política investe mais sistemática e
claramente na divulgação de matérias desse teor, e a seção “História” inscreve-se particularmen-te nesse esforço. Exemplar, nesse sentido, é a edição extraordinária da revista lançada em agosto de 1943 em comemor ação ao primeiro aniversário da entrada do Brasil na guerra. Nesse número, organiza-se um dossiê — “Outras guerras do Brasil: história, literatura e documentos” —, onde várias matérias são publicadas. Uma delas é de autoria de Hélio Viana e funciona como uma síntese do que se desejava transmitir como leitura de nossa história político-militar. O autor inicia o texto esclarecendo que, de 1504 a 1942, o Brasil envolvera-se em 23 conflitos internacionais e que em todos eles visara somente “a defesa de sua integridade territorial e de sua honra ultrajada por agressores europeus ou americanos”.185 O Brasil, portanto, nunca empreendera guerras de 184 Examinei esta conjuntura em detalhes em A invenção do trabalhismo (1994, cap. 4 especialmente). 185 Viana, Hélio. História das g uerras brasileiras. Cultura Política (33):293-309, ago. 1943. 198 História e Historiadores conquista ou de agressão, mas, sob regime colonial, imperial ou republicano, sempre soubera pegar em armas para defender sua soberania. Este era o ponto fundamental que traduzia o conteúdo de “pacifismo” do povo brasileiro. Não se tratava de falta de disposição ou de habilidade para a luta e muito menos de um passado carente de experiências guerr eiras. O povo brasileiro era “pacífico” porque só empreendera guerr as de defesa em nome da pátria. O texto de Hélio Viana, assim como outros que tratam de episódios específicos, narr a assim a história de “um povo pacífico que sempre soube lutar em nome de sua independência”. O elenco de “guerras” comentado pelo autor cobria desde as escaramuças com piratas franceses em inícios do século XVI; as lutas para a expulsão de estrangeir os no Norte e no Nordeste no século XVII; os episódios que envolviam a Colônia do Sacramento nos séculos XVIII e XIX; a Guerra do Paraguai, já em fins do século XIX; e finalmente as duas
guerras mundiais. Nem todos os conflitos foram glo-riosos ou tão bem-sucedidos, mas, no balanço geral, os brasileiros sempre demonstraram sua cor agem e sobretudo a legitimidade de suas posições. Contudo, a despeito de tão rico passado, o que Cultura Política insiste em registrar, através de dois artigos distintos e complementares, é que o “tema da guerra” não sensibilizava muito, ou não sensibilizava de forma adequada nem nossos historiadores, nem nossos literatos. Segundo Umberto Peregr ino, um capitão do Exército brasileiro, o que havia sido produzido sob o rótulo de história militar era uma “história medíocr e, mofina, simples descrição de batalhas e feitos hero icos”. Embora muito do que existisse tivesse sido feito com “admirável paciência, tocante amor e até alta compenetração”, não chegara a se constituir em verdadeira história.186 Fazendo um inventário bibliogr áfico, o articulista conclui que eram volumes e volumes de um “primarismo comovedor”: “estudos descritivos a que se seguem apreciações crítico-militares”, numa nítida “confusão” entre história e crônica, com citações de documentos. O que ele não observa, entretanto, é que praticamente todos os “estudos” eram de autoria de militares, versando praticamente sobre a Guerra do Paraguai. As duas exceções por ele apontadas merecem observação. São elas: A retirada de Laguna, de Taunay, um “documento humano” repleto de episódios históricos; e, em especial, Os sertões, de Euclides da Cunha, identificado como um verdadeiro historiador militar. 186 Peregrino, Umberto. A história militar no Brasil. Cultura Política (36):108-13, jan. 1944. a História do Brasil de Cultura PolítiCa 199 Nesse caso, a arquitetura da obra de Euclides é resgatada, não mais para se ressaltar a dialética entre “a terra” e “o homem”, mas para se analisar o capítulo “a luta”. Nele, para o articulista, Euclides mostrava como se podia articular exposição e crítica e, sobretudo, como se podia dar destaque a aspectos como a “topogr afia” e o “abastecimento”, fugindo de uma concentração em batalhas e chefes militares. Euclides da Cunha era, assim, mais uma vez considerado um modelo de historiador, agregando-se à sua cultura sociológica esse saber pouco comum entre nós, que era o
do trato dos episódios militares. Tal especificidade seria igualmente ressaltada por Brito Broca, não mais considerando Euclides como historiador, e sim como um literato. De toda for -ma, o percurso e as conclusões de um artigo — “A literatura de guerr a no Brasil” — são convergentes com as do texto anteriormente citado.187 Excluindo de sua análise as narrativas de “caráter puramente histórico”, o autor fazia uma reflexão sobre o que for a produzido tendo a guerr a como fonte de inspiração direta ou indireta: memórias, diários íntimos, romances e poesia. A primeir a conclusão era que pouco for a produzido, seguida de uma outra: “Evidentemente, a literatura de guerra não há de ser rica num país como o Brasil, que sempre procurou resolver seus conflitos sem luta armada. Somente nos tempos coloniais, quando o nosso destino estava ligado ao de Portugal, tivemos de enfrentar com mais frequência sangrentas campanhas.” 188 A Guerra do Paraguai, “gr ande acontecimento histórico do período romântico”, por exemplo, nada havia inspirado a José de Alencar ou a Machado de Assis, que apenas a situara como pano de fundo para alguns romances, como Iaiá Garcia, Quincas Borba e Memorial de Aires. Alencar chegara a escrever alguns romances históricos, onde o tema da guerra era presente, com destaque para dois: A Guerra dos Mascates e O gaúcho, no qual o herói do livro entrava na Guerra dos Farrapos. Os maiores autores d nossa literatura de guerra eram, assim, Alfredo E. Taunay e Euclides da Cunha, de quem Brito Broca destaca também “A esfinge”, página da obra Contrastes e confrontos. 187 Broca, Brito. A literatura de guerr a no Brasil.Cultura Política (31):310-7, ago. 1943. 188 Ibidem, p. 310. 200 História e Historiadores A “literatura militar”, histórica ou ficcional, era um campo a desco-
berto no Brasil, rico de oportunidades a serem cultivadas, o que Cultura Política desejava estimular. Além disso, pode-se observar também nesses balanços críticos a existência de textos significativos sobre “guerr as” que não se centravam em conflitos internacionais, remetendo a outros tipos de luta, onde o inimigo e o objetivo a ser alcançado precisavam ser mais bem qualificados. Nesses casos, que mantêm pontos de interseção com os primeiros, a ideia-chave passava a ser a manutenção da “unidade nacional”, agor a identificada como “segurança nacional”. Ou seja, a história do Brasil que se narrava era a de um povo pacífico que sempre soubera lutar por sua “independência”/“soberania”, tanto defendendo-se das agr essões dos inimigos externos, que invadiam seu território, quanto das ameaças dos inimigo s internos, que igualmente podiam comprometer a segurança do país com suas propostas separatistas e/ou politicamente “subversivas”. Nesse sentido, integrava-se ao elenco de 23 “conflitos internacionais” outro conjunto de “guerras” travadas em fronts muito diferenciados e por combatentes os mais diversos. A história do Brasil assumia, assim, a perspectiva de uma narrativa épica, que abarcava tanto episódios de ocupação e manutenção do terr itório quanto episódios de resistência à dominação por um poder absoluto, fosse ele o poder metropolitano ou não. O próprio fato de o grande “historiador militar” estar sendo identificado em Euclides da Cunha, simultaneamente tratado como “sociólogo”, aponta para a centralidade desse outro universo de lutas na história de nossa nacionalidade. Nesse enredo, Canudos tem a função pedagógica de associar a luta pela constituição de um povo mestiço com o sentimento de resistência “natural” desse povo quando se percebe oprimido e injustiçado. Como evento paradigmático, Canudos demonstrava a combatividade excepcional de que éramos capazes, o que podia e devia ser ressaltado pela história do Brasil. Euclides da Cunha apontara para “a realização do
impossível”, e mostrara o caminho a ser perseguido por aqueles que o sucederiam. Essa é a história de um povo republicano... Cultura Política, através da seção “História”, faria um cuidadoso investimento na reconstrução de nosso passado, buscando destacar, como á mencionado, três diretrizes que, na verdade, tiveram funções complea História do Brasil de Cultura PolítiCa 201 mentares. Em primeiro lugar, a ideia de que a história do povo brasileiro possuía um conteúdo “democrático profundo e natural”, radicado na dinâmica da mestiçagem, presente no país desde o período colonial. O entendimento das origens históricas e da natureza do conteúdo das “ideias democráticas” no Brasil, situadas fora dos marcos artificiais do liberalismo , como o Estado Novo ajudara a revelar, explicitara esse sentimento democrático até então abafado. Em segundo lugar, a defesa dos ideais de liberda-de e de igualdade, realizada por nosso povo, estava vinculada a um passado de lutas por nossa autonomia política que possuía como melhor forma de tradução a luta pelos ideais republicanos. A história do Brasil que Cultura Política construía por meio de numerosos artigos publicados em suas páginas era a de um povo que, cada vez mais, ao lutar por sua autonomia/independência/soberania, lutava nos marcos de valores cuja realização completa se faria sob o regime republicano. É para essa conexão que é preciso atentar, observando que, segundo a leitura desse importante veículo da política cultural do Estado Novo, mais do que o Império, era a República que guardava as mais autênticas tradições da nacionalidade e, por conseguinte, iluminava as perspectivas de futuro do país. Alguns estudos já fixaram os esforços políticos desenvolvidos, sobretudo durante os primór dios do perío do republicano, para a construção de mitos e símbolos de consagração desse regime.189 O sucesso r elativo da empreitada também tem sido apontado, concorrendo para ele a instabilidade dos primeir os governos e a “modéstia” com que o aparelho de Estado da Primeira República investiu em qualquer tipo de política cultural. Por outro lado, o Estado Novo, por ser um
regime autoritário, centralizador e intervencionista, costuma ser muito mais associado às imagens imperiais e ao elogio a este momento “inaugural” do processo de construção do Estado nacional. O que se deseja destacar aqui é que, sem descurar da “glória” imperial, a história do Brasil proposta pela ótica de Cultura Política é a história de um “povo republicano”, inclusive porque a ideia de República é associada à de democracia. Uma observação atenta de certos artigos pode ilustrar como se realiza essa construção. Uma indicação substantiva é o número de artigos dedicados ao estudo dos chamados mo vimentos nativistas ocorr idos durante os séculos XVIII e XIX, destacando-se neles o “sentimento republicano”. Seis artigos, em boa parte oriundos de colaboradores vinculados ao Instituto Arqueológico, Histórico 189 O mais importante trabalho é Carvalho (1990). Ver também Oliveira (1989:172-89). 202 História e Historiadores e Geográfico de Pernambuco, insistem no vínculo entre nativismo, independência e republicanismo. Mário Melo, secretário perpétuo daquele instituto, explica inclusive que só após a própria Pro clamação começaram os historiadores a olhar com “ simpatia” os elementos republicanos precursores de nossa independência. Até então, segundo ele, a figura de Pedro II, como principal animador dos estudos históricos no país, teria impedido tal resgate, menos por desconhecimento dos profissionais da área, do que por sua atitude de não querer desgostar o imperador. Com a República, a situação se altera, mas a falta de apoio por parte do poder público inibe uma produção historiográfica maior, o que só é finalmente superado com o Estado Novo. Segundo ele, a despeito da “exumação do cadáver de Tiradentes” realizada pela República, a Inconfidência Mineira não havia recebido ainda a atenção que lhe era devida. Com o Estado Novo, contudo, realizava-se uma espécie de “exame de consciência” nos estados, numa busca de seus mártires republicanos e, aí, Pernambuco reclamava não só a precedência — com a Guerra dos Mascates, em 1710 —, como um lugar especialíssimo: for a a sede das revoltas de 1817, 1824 e 1848, todas reações ao “ absolutismo”.190 Numa retrospectiva intitulada “Subsídios para a história da implantação da República no Brasil”,191 outro autor defendia a tese de que a República não surpreendera o povo brasileiro, que havia muito conhecia seus ideais.
Para tanto, r etornava a episódios como: a revolta de Beckman, no Maranhão; os discursos de Bernardo Vieira de Melo, no Recife de 1710; a ação de Felipe dos Santos, na Vila Rica de 1720; a Inconfidência; todas as lutas de reação a Pedro I (especialmente o 7 de abril de 1831), e as lutas do período regencial, com destaque para a Sabinada, na Bahia. Tudo isso conjugava-se com a Guerra do Paraguai e com a atuação do Partido Liberal em Minas e São Paulo, para ser coroado com a propaganda dos clubes e jornais republicanos. Nosso país e nosso povo, portanto, não desconheciam a República e havia muito por ela trabalhavam. Por essa razão, só se surpreenderam verdadeiramente com a República setores da elite política que não a desejavam, embor a mesmo estes já reconhecessem sua inevitabilidade. Essa interpretação se reforçava com artigos que ressaltavam que a Independência não tivera “grande beleza” no Brasil, que já se encontrava 190 Melo, Mário. O primeiro r epublicano do Brasil. Cultura Política (20):121-5, out. 1942; e Rebelião de frades do século XVII. Cultura Política (26):110-3, abr. 1943. 191 Pereira, Altamirano Nunes. Subsídio para a história da implantação da República no Brasil. Cultura Política (32):137-49, set. 1943. a História do Brasil de Cultura PolítiCa 203 de fato liberto de Portugal. Dessa forma, D. Pedro I for a muito mais força-do por acontecimentos e por outros homens, do que movido por vontade própria.192 O 7 de abril de 1831 assumia, nessa leitura, uma importância simbólica comparável ou maior do que o 7 de setembro de 1822. Só em 1831 os brasileiros deram, de fato, um basta a uma Constituição “quase toda calcada na Carta portuguesa” e a um príncipe que se queria absoluto, realizando nossa independência.193 É interessante observar, inclusive, o g rande espaço que recebem as análises que se concentram no momento imediatamente anterior ou posterior à Independência, para realçarem o espírito de luta do povo e seu
conteúdo republicano. Aí, o papel atribuído aos jornalistas e à imprensa é muito grande, sendo esta uma dimensão cr ucial de nossa história política. Nunca, anterior mente, a imprensa teria tido tanto prestígio, tornando-se pioneira de muitas de nossas conquistas. Era uma imprensa “escandalosa” e até “injuriosa”, mas tinha como que um poder “miraculoso”: “Nessa época, é na tribuna e na imprensa que brilham os maiores espíritos brasileiros, os cimentadores da construção da nacionalidade.” 194 Portanto, da independência à maioridade, tratar da reação ao “poder pessoal” — de D. Pedro I ou dos r egentes — era tratar de uma sementeira de jornais esparsos e efêmeros e da trajetória de jornalistas que eram verdadeiros revolucionários. O melhor exemplo, no caso, são os artigos de Hélio Viana195 e de Mercedes Dantas. Desta última, vale destacar um, onde afirma ser Evaristo da Veiga figura maior que D. Pedro I em nossa história de lutas pela Independência: 192 Prazeres, Oto. O Brasil já estava independente.Cultura Política (30):103-13, ago. 1943. 193 Dantas, Mercedes. As ideias democráticas e o artificialismo constitucional do Império. Cultura Política (36):59-68, jan. 1944. 194 Costa, Odorico. Orig em e estabelecimento da imprensa em Goiás.Cultura Política (40):191-200, maio 1944. 195 Viana, Hélio. A pequena imprensa dos últimos meses do 1o Reinado. Cultura Política (30):114-21, ago. 1943; Cipriano Barata e as sentinelas da liberdade.Cultura Política (38):168201, mar. 1944; O repúblico: Antônio Borges da Fonseca (1808-1872). Cultura Po-lítica (40):151-89, maio 1944; O tribuno do povo e das Garrafadas (1831). Cultura Política (42):89-101, jul. 1944. 204 História e Historiadores “Sua Aurora Fluminense é flâmula, é tribuna. Vale um partido. Vale um exército.
O 7 de abril é obra sua.” 196 A imprensa era situada como um dos fronts de luta mais significativos de nossa histór ia, sendo cada ornal — e foram muitos — uma arma de combate contra o absolutismo e pela propaganda das ideias republicanas. Enfim, os jor nais exprimiam nossos ideais “democráticos”, sendo necessário recuperá-los, como dizia a autora, das estantes da Biblioteca Nacional, para se compreender sua linguagem e força de atuação. “Numa Corte sem grandes atrativos; numa cidade com raros aspectos interessantes, embora lhe sobrassem os mais belos recantos panorâmicos; num tempo em que a vida social apenas se ensaiava em saraus, em poucos estágios pelo Passeio Público, ou só se exibia, inteira, nas festas religiosas, com uma sociedade cheia de reconceitos e costumes autenticamente coloniais — um ou outro teatro, uma ou outra visita de liteira, a cavalo ou a carro — os jornais deviam ter um sabor delicioso de sarcasmo, de espontaneidade, de atrevimento. Iam-se os recalques, por certo. Ficava, em troca, o riso largo e satisfeito de quem leu, e gostou.” 197 Os jornais eram parte destacada da vida do Império e, em certo sentido, mais esclarecedores do que os próprios discursos parlamentares, geralmente comprometidos com o provincianismo e com o “falso constitucionalismo”. A experiência política imperial não era poupada de críticas, que abarcam, inclusive, a figura do imperador e da princesa regente. Assim, a Primeira República não sofria apenas ataques nas páginas da revista por seu “artificialismo”
político. Ao contrário, era até recuperada de forma positiva, como quando José Maria Belo analisava as presidências de Venceslau Brás e Nilo Peçanha,198 ou quando Luís Dias Rollemberg — um técnico do Dasp — discutia aspectos 196 Dantas, Mercedes. Processos de propaganda política no século passado. Cultura Política (38):20, mar. 1944. 197 Ibidem, p. 29. 198 Belo, José Maria. Quadriênio Venceslau Brás. Cultura Política (36):75-82, jan. 1944; e Presidência Epitácio Pessoa. Cultura Política (40):48-57, maio 1944. a História do Brasil de Cultura PolítiCa 205 econômico-financeiros do Governo Provisório, em especial a ação do ministro Rui Barbosa e o conhecido Encilhamento.199 A República, na verdade, deveria ter sido um marco luminoso em nossa história, e não um episódio com tão “pálida” expressão política, como acabou sendo. Havia, portanto, todo um “sentido republicano” unindo os movimentos pela independência e soberania do Brasil através do tempo, chegando até 1889, para concluir-se na Revolução de 1930: “(...) o movimento mais feliz dos que se armaram no sentido da verdadeira emancipação das veleidades de um infecundo Império de dois Reinados e dos tabus da República de 89, nos quais vivia emaranhado o Brasil.” 200 Embora a citação possa ressaltar uma ótica nitidamente não ufanista de nosso passado histórico, o que não corresponde à leitura épica de uma trajetória plena de lutas heroicas de um povo realizada pela revista, tem o mérito de destacar dois pontos. Em primeiro lugar, como o Estado Novo “encerraria” um processo de construção política, até então r epleto de impasses, mas que possuía um “sentido”. Em segundo lugar, como ra-
dicavam-se na “política” — “artificial” do Império e “liberal” da Primeira República — as or igens de nossas dificuldades. A recuperação do passado histórico era, sem dúvida, uma tarefa imperiosa, pois só assim tornava-se possível compreender tais dificuldades, apreendendo nossa força e potencialidade, para construir um novo país: uma nova história. 199 Rollemberg, Luís Dias. Aspectos econômico-financeiros dos pr imór dios da República. Cultura Política (35):106-14, dez. 1943. É interessante como o autor minimiza os efeitos “desorganizadores” do Encilhamento, chama a atenção para a falta de apoio financeiro internacional ao Brasil e defende o ministro da Fazenda, Rui Barbosa. 200 Moura, Gomes de. Da independência ao Estado Nacional. Ideias políticas.Cultura Política (36):69-74, jan. 1944 (a citação está na p. 70). 6 Essa história continua... “ ...todo nosso esforço tem de ser dirigido no sentido de educar a mocidade, de prepará-la para o futuro; desde a que vive nas praias, defrontando o mar, que é um educador de energias, àquela que vive no interior lavrando a terra criadora de riquezas, àquela que vive pastoreando o gado e que é descendente dos antigos centauros do Rio Grande; à mocidade das fábricas, das indústrias e do comércio; enfim, a todos aqueles que na juventude veem com os olhos abertos elo deslumbramento da vida que recém-desponta, a essa mocidade que sacode os braços para o alto
como se pretendesse abraçar o Sol. É nela que deposito a minha confiança, é para ela que eu apelo, porque é uma força capaz de consolidar o Estado Nacional.” Getúlio Vargas PARAFRASEANDO Lévi-Strauss, pode-se dizer, com tranquilidade, que o Estado Novo é bom para pensar o Brasil. Poucas vezes em nossa história um período tão curto de tempo concentrou tantos empreendimentos orientados por uma larga visão de longo prazo. Abarcando diversificados campos de nossa vida socioeconômica, as “realizações” estado-novistas possuíam um solo fértil comum: elas deitavam raízes em um esforço de mobilização simbólica que se definia como o da construção de uma “nova” cultura política nacionalista para o país. Muitos textos têm destacado a conexão entre o Estado Novo e o nacionalismo, bem como a centralidade das políticas culturais então desencadeadas. Os objetivos deste trabalho foram, portanto, modestos, procurando muito mais agr egar à reflexão em curso algumas ideias e pontos ainda pouco contemplados. 208 História e Historiadores O primeiro deles refere-se à especificidade do alcance e da natureza da proposta nacionalista desse regime, que, utilizando-se dos mais modernos meios de comunicação de massa de sua época, voltou-se, de for ma clara e sofisticada, para um amplo público. A partir dos anos 40, uma proposta nacionalista passa a ser definida, divulgada e consumida sistematicamente, ultrapassando-se as fronteiras de campanhas, movimentos ou congressos mais restritos e efêmeros. O Brasil, no dizer de muitos dos “escritor es” que surgem das páginas dos perió dicos aqui tratados, passava a ganhar “finalmente” concretude no espaço, no tempo e no coração dos brasileiros. Ou seja, a nação for a “definitivamente” criada, possuindo referências geográficas, históricas e culturais. Obviamente, contudo, o nacionalismo estado-novista não é o mes-
mo dos anos 50 e dos que o seguem; mas também não é muito diferente, como é fácil de constatar pelo teor de várias questões polêmicas que agitam o atual momento político. O investimento cultural realizado e rapidamente articulado a uma fase crucial de “eleitoralização” de nossa vida política, produziu impactos profundos na memória coletiva de gerações de brasileiros. No bojo desse grande esforço, e como segunda e principal preocupação do texto, está a ideia de que, como parte integrante da política cultural do Estado Novo, se construiu uma “mentalidade histórica”: que atribuiu “lugar” de destaque a essa forma de conhecimento do social. A formulação de uma identidade nacional pelo Estado exigiu que se pensasse o país historicamente e conduziu à proposição de uma “cultura histórica” como elemento fundamental de comunicação e coesão da sociedade. O que se procurou realizar, portanto, ao lo ngo dos capítulos precedentes foi um acompanhamento, ainda que parcial, desse processo, destacando-se quem esteve nele envolvido mais de perto, e como ele foi articulado por alguns veículos estratégicos. O “lugar da história” e, especialmente, da história do Brasil em nossa sociedade não mais seria o mesmo após o Estado Novo. Reformando o ensino, produzindo currículos, or ientando a produção de compêndios e propondo/impondo um “modelo” do que era a história e do que era ser historiador, o Estado Novo deixou marcas ainda reconhecíveis. Em relação ao que talvez possa ser designado como uma tentativa de assentar as bases para uma historiografia brasileira, o que se conseguiu extrair da análise do suplemento Autores e Livros é não só um elenco de quem são os “pais fundadores” da disciplina histórica no Brasil, mas também como ela foi sendo construída através de quase um século: suas “dificuldades”, debates, essa História continua... 209
virtudes, temáticas e transfor mações. Nesse sentido, é interessante ressaltar como a figura de Capistrano de Abreu emerge como referência teórica, metodológica e organizacional. E ainda como as observações que envolvem a avaliação de seu “lugar” na historiografia apontam para a utilização de um positivismo/empiricismo metodológico, mas igualmente para uma orientação “teórica” de tipo historicista, que recusava quaisquer filosofias deterministas e generalizadoras. A primeira parte dessa assertiva é, sem dúvida, muito conhecida, e o que se pode acrescentar, como advertência, é a valorização que a incorporação do “método” significou para a disciplina naquele momento, na avaliação dos historiador es brasileir os. Quanto à segunda parte, ela mereceria, sem dúvida, um desenvolvimento bem maior, pois não é frequente se assinalar a presença historicista na produção historiográfica das décadas iniciais do século XX. A observação realizada fica, assim, mais como sugestão para apro-fundamento e teste do que como conclusão acabada. Quanto à atenção dada à história e à história do Brasil em especial, Autores e Livro s e Cultura Política são pródigos em enumerar uma série de evidências que atestam a preocupação do Estado com uma verdadeira “ressurreição” do passado. Entre elas estão os subsídios governamentais a várias instituições — os IHG regionais, por excelência — e também a uma política de publicações, garantidora da difusão do conhecimento. Aliás, era exatamente através desses sinais materiais que o regime concretizava seu apelo dirigido aos intelectuais por uma autêntica participação nos rumos futuros do país, por meio da colaboração no aparelho de Estado. Finalmente, vale a pena ressaltar a versão de história do Brasil que o Estado Novo sanciona e propaga. Tratando-se de um Estado autoritário, centralizador e estranho aos pr ocedimentos eleitorais, nada mais congruente do que uma leitura de nossa história que privilegiasse todos esses aspectos e denunciasse as experiências liberais da Primeir a República ou os arroubos “demagógicos”, ainda que fossem os da princesa Isabel. Nada mais natural também do que uma grande ênfase em nossas tradições de luta — nunca de conquista —, no momento em que o mundo era abalado por uma Segunda Guerra Mundial. Uma história do Brasil semelhante a
uma epopeia, encenada por um povo “bom e pacífico”. O interessante é como essa história tem como ator principal uma “raça mestiça”, ela mesma fonte de resistência e coragem para a luta, e explicação para uma igualdade “despolitizada”, pois realizada no chão da mestiçagem dos corpos e das almas: das cores que matizavam nossa sociedade, tornando-a “democrática”. Democracia, por conseguinte, social e não 210 História e Historiadores política, mas que se realizava por meio de um regime político que era a República. Esta raça mestiça, lutadora e pacífica era, portanto, democráti-ca e republicana. Jesuítas, índios, negros escravos ou não, bandeirantes, soldados, brancos senhores, literatos, imperadores, presidentes e deputados, todos integravam-se no enredo que culminava na grandeza e na unidade da pátria. Esta era uma história gloriosa, sem diversidades e desigualdades, que glorifica-va os heróis e não se esquecia do povo comum. Era, nesse sentido, uma história político-militar e uma história econômica e social, abarcando aspectos até da vida cotidiana dos brasileiros. Mais interessante ainda, entretanto, é refletir sobre como essa história continua. Ela foi solidamente cultivada e ainda hoje não é tarefa fácil narrar uma “outra” história. Uma história onde o Brasil não tenha uma cara, mas muitas, diversas e desiguais. Onde não haja necessariamente “heróis” e o povo não seja “naturalmente” bom. Onde haja lutas bem e malsucedidas, em que o Brasil seja agr edido e também agressor. Onde as elites não sejam intrinsecamente nem corruptas, nem iluminadas etc. Enfim, uma história que, como uma mulher sedutora, tenha múltiplas e contraditórias faces, e que, por isso mesmo, seja capaz de fazer de todos nós, historiadores, seus amantes apaixonados. Referências bibliográficas
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