H I S T Ó RI A DA T E O L O G I A CRISTÃ 2 0 0 0 A N O S DE T R A D I Ç Ã O E R E F O R M A S 0
ROGER OLSON
História da teologia cristã 2.0 0 0 anos de tradição e reformas
Tradução G ordo n Chown
4 a impressão
&
Vida
ACA Ot MICA
te / VMa
o 1999, de Roger E. Olson Título original T heStoryof Christian Theology Edição publicada por In t e r V a r s it y P r e s s
(Downers Grove, Illinois, EUA)
Todm os direitos em !íngua portuguesa reservados por Editora Vida P r o ib id a
a r e p r o d u z o p o r q u a is q u e r m e io s ,
SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTfc.
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Coordenação editorial: Fabiani Medeiros Edição: Denise Avalone Revisão: Aldo Menezes Revisão técnica: Davi Gomes e Rogério Portella Diagramação: Imprensa da Fé Capa: Douglas !,ucas
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (C1P) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
OUon, Roger E. HisttSria da teologia cristi: 2 000 anos de tradição c reformas / Roger E. O isont; t raduçâo Gordon Chown. — São Paulo: Editora Vida, 2001. Título original: The S torj o f CJ>nstian Theviogjr Bibliografia ISBN 85-7367-766-x I . Teologia dogmática 2. Teologia dogmitica - História I. Tímio.
01*3740 índices para catálogo sistcmitico I. Teologia cristá : História 230.09
Dedicado a N iels C . Nielsen, meu D o k to rv a te r e amigo
Sumário A breviaturas e inform ações gerais ao leitor Prefácio In trodução: A teologia cristã co m o história P
r im e ir a
P arte
P rim e iro ato: Visões cristãs conflitantes no século u 1. 2. 3. 4.
9 11 13
C rítico s e sectários provocam confusão O s pais apostólicos explicam o cam in h o O s apologistas defen d em a fé Iren eu desm ascara heresias
25 27 39 53 67
S eg u n d a P arte
A tra m a se com plica: Tensões e transformações do século m 5. 6. 7. 8.
Pensadores norte-africanos exam inam a filosofia O ríg en es de A lexandria deixa u m legado p ertu rb ad o r C ip rian o de C artago prom ove a unidade O cristianism o se organiza
T ERCEiRA P a r t e U m a g ran d e crise abala a igreja: A controvérsia a respeito da Trindade 9. 10. 11. 12. Q
uarta
O s alexandrinos d iscutem a respeito d o F ilho de D eus A igreja resp o n d e n o C o n cílio de N icéia A tanásio sustenta irred u tiv elm en te a fé O s pais capadócios resolvem a questão
Q
u in t a
As escolas de A ntioquia e de A lexandria divergem sobre C risto N e stó rio e C irilo levam a controvérsia a u m a decisão C alcedônia protege o m istério C o n tin u a m os efeitos d o conflito
141 145 155 165 177
201 205 215 227 241
P arte
A saga de duas igrejas: A Grande Tradição divide-se entre o Oriente e o Ocidente 17. 18. 19. 20.
85 101 117 129
P arte
O u tra crise abala a igreja: O conflito sobre a pessoa de Cristo 13. 14. 15. 16.
79
A gostinho confessa a glória de D eus e a depravação h u m an a A igreja ocidental to rn a-se C atólica R om ana A igreja oriental to rn a-se O rto d o x a O rien tal O G ran d e C ism a transform a um a tradição em duas
255 259 283 295 309
S exta P
arte
A saga da ra in h a das ciências: O s escolásticos reavivam e entronizam a teologia 21.
A nselm o e A belardo especulam sobre os cam inhos de D eus Tom ás de A quino resu m e a verdade cristã O s nom inalistas, os reform adores e os hum anistas desafiam a síntese escolástica
22. 23.
S é t im a P
L utero redescobre o evangelho e divide a igreja Z u ín g lio e C alvino organizam o pen sam en to protestan te O s anabatistas voltam às raízes d o cristianism o R om a e C an tuária seguem cam inhos separados, mas paralelos
26. 27.
O
itava
P
O s arm inianos ten tam reform ar a teologia reform ada O s pietistas pro cu ram renovar a teologia luterana O s p u ritan o s e os m etodistas esforçam -se para reavivar a teologia inglesa O s deístas ten tam transform ar a teologia p rotestante
31. N
ona
P
34. 35.
379 385 407 425 441
463 465 485 505 531
arte
A tra m a geral se divide: Os liberais e os conservadores respondem positivamente à modernidade 32. 33.
357
arte
O c e n tro d o en re d o se frag m en ta: Os protestantes seguem caminhos diferentes 28. 29. 30.
323 339
arte
U m a nova g u in ad a n a n arrativ a: A igreja ocidental é reformada e dividida 24. 25.
317
A teologia liberal ajusta-se à cu ltu ra m o d ern a A teologia conservadora consolida as categorias tradicionais A neo -o rto d oxia transcende a divisão A teologia contem p o rân ea enfrenta a diversidade
C onclusão: O fu tu ro de u m a história inacabada N o tas ín d ice rem issivo
547 553 569 585 607 629 633 661
Abreviaturas e informações gerais ao leitor ■LN os p rim eiro s capítulos deste livro são freq ü en tes as referências aos escritos dos p rim eiros pais da igreja, co n fo rm e contidos nas seguintes coleções: The atite-Nicene fathers: translations o f the writings o f thefathers down toA .D . 325, ed., A lexander R oberts e Jam es D on ald so n , 10 vols., G ran d Rapids, E erdm ans, 1988; A select library o f the Nicene and post-Nicene fathers o f the Christian Church, ed., P hilip Schaff, 14 vols., G ran d R apids, E erdm ans, 1984; c A select librar) ׳o f Nicene and post-Nicenefathers o f the Christian Church, segunda série, ed., P hilip S chaff e H e n ry Wace, 14 vols. G rand Rapids, E erdm ans, 1984 (coletâneas idênticas tam b ém são publicadas pela editora H en d rick so n , de Peabody, M assachussets.). Essas coleções estão geralm ente à dis posição nas bibliotecas de sem inários e universidades. A docu m en tação nas notas no fim do vo lu m e fará referência a essas coletâneas m ediante o em p reg o das iniciais e dos n ú m ero s dos volum es. a n i ; refere-se à série de Ante-Nicenefathers, n p n í : refere-se à série Nicene and post-Nicenefathers ofthe Christian Church e a segunda série de Nicene and post-Nicene fathers o f the Christian Church será designada p o r n c p f 2 . Essas abreviaturas serão seguidas pelo n ú m e ro do volum e. Todas as datas deste livro são d .C ., exceto q u a n d o especificadas pelo c o n trá rio, a.C . N a m aioria dos casos, os anos do n asc im e n to e da m o rte de u m a pessoa são registrados u m a única vez e n tre parênteses logo após a primeira menção d o seu n o m e. O s anos e n tre parênteses após o n o m e de g o v ern an tes e papas referem -se ao p erío d o de rein ad o e não ao tem p o de vida. O s te rm o s técnicos teológicos e filosóficos em geral são d efin id o s q u a n d o aparecem pela p rim eira vez. U se o índice para localizar a p rim eira aparição e definição de q u a lq u e r te rm o q u e lhe pareça estran h o .
Prefácio J A s pessoas vivem das histórias q u e m oldam suas identidades. A queles d en tre nós que se cham am de cristãos são m oldados pela história cristã. A história cristã, no en tan to , inclui m ais d o q u e apenas a narrativa bíblica. A narrativa e cada um a de suas histórias, salm os, cartas e outras peças literárias que ajudam a com unicá-la tem certa prim azia para a m aioria dos cristãos. E nossa m etanarrativa, a história abrangente dos cam in hos de D eus com o seu povo na criação e redenção. C ristão é to d o aquele q u e se identifica com essa história e procura viver seg u n d o a visão da realidade q ue ela expressa. Infelizm ente, m u ito s ignoram quase q u e to talm en te a co ntinuação da narrativa secundária da obra de D eus com o seu povo — o corpo de C risto — após o té rm in o da narrativa bíblica. Este livro é u m a tentativa de p re e n ch er a lacuna n o co n h e cim en to de m u ito s cristãos sobre essa história. A lacuna com eça com o fim d o N o v o T estam ento e a conclusão da vida e m inistério dos apóstolos e vai até o cristianism o con tem p o rân eo . O q u e D eus fez d u ra n te dois m il anos para levar seu povo ao e n te n d im e n to da verdade? A teologia é exatam ente isso: a fé buscan d o o en te n d im e n to da verdade de D eus. A fé buscando o en ten d im en to : há dois m il anos os cristãos se esforçam nessa tarefa e p ro cu ram cu m pri-la. A narrativa dessa busca da verdade d en tro da igreja é praticam ente desconhecida de m u ito s cristãos con tem p o rân eo s, ainda q u e sua his tória pessoal de cren te em Jesu s C risto seja p ro fu n d am en te afetada p o r ela. Estam os na m esm a situação q u e a das pessoas q u e nada sabem sobre suas origens — de on d e vieram e q u em eram seus parentes. Só q u e o nosso caso é ainda m ais grave. E sem elhante ao dos indivíduos q u e q u erem ser b ons cidadãos, m as po u co o u nada sabem sobre a história de sua nação, inclusive de seu desco b rim en to , guerras, h e róis, princípios e governantes. Viver com o seguidor pleno e operante de Jesu s C risto é com o ser u m bom cidadão de um a nação. E preciso co n h ecer a história das pessoas q u e procuraram seguir a C risto e ser discípulos dele nas diversas culturas e períodos da história. Ao co n tar aos leitores pelo m enos um a parte dessa história — a história das crenças
12
História
da
teologia
cristã
cristãs — espero estar c o n trib u in d o para seu discipulado cristão, bem com o para a co m preensão de si m esm os. T am bém espero e oro para que ela fortaleça a igreja universal de Jesu s C risto, q u e precisa u rg e n te m en te recu p erar seu senso de parti cipação na grande história da obra de D eus com o seu povo no d ec o rre r de ce n te nas de anos. A idéia deste livro surgiu a partir do curso Pais e reformadores da igreja: a história da teologia cristã q u e ad m in istrei p o r q u in z e anos na F aculdade B ethel (St. Paul, M innesota). E n co n trei livros excelentes a respeito da história d o pen sam en to cris tão, m as n e n h u m satisfez co m pletam ente a m im ou a m eus alunos. U sam os os livros disponíveis, m as sem pre sentim os a necessidade de algum a coisa diferente. C o n v ersan d o com am igos, colegas e com R odney C lapp, então redator-chefe da InterVarsity Press, a idéia geral e o esboço deste livro foi g anhando form a e final m en te d eu seu fruto. O s capítulos baseiam -se nas aulas que m inistrei repetidas vezes, m as acrescen tei-lhes m uitas pesquisas antes e d u ran te m in h a licença sabática n o o u to n o de 1997, concedida tão gen ero sam ente pelos curadores da faculdade B ethel. G ostaria de agradecer a m eu am igo e co -au to r Stanley G. G re n z pelo seu enco rajam en to e orientação d u ra n te a concepção deste livro e o início d o trabalho. G ostaria tam bém de expressar o grande apreço p o r m eu editor, R odney C lapp, q u e m e d eu toda liberdade, além de seu apoio e conselhos. A Associação dos E x-A lunos da faculda de B ethel pro v id en cio u um a doação generosa para a co m p ra da coleção com pleta das escrituras dos pais da igreja, q u e foi de valor inestim ável para as pesquisas e o desenvolvim ento dos prim eiros capítulos deste livro. A gradeço à Associação pelo apoio. M in h a querid a esposa, Becky, e nossas filhas, A m anda e Sonja, ofereceram m e seu am o r e co m p re en são nos m eses q u e fiquei trab a lh an d o p ra tic am en te acorrentado à m esa do co m p u tad o r em m eu escritório dom éstico. Elas m e deram o espaço e o en co rajam ento de q u e precisava para co n tin u a r sem pre em frente. Acima de tudo, gostaria de agradecer ao h om em que m e orientou d u ran te os anos de d o u to ram en to na U niversidade Rice, em Iio u sto n , Texas. M eu conselheiro e presidente do D epartam ento de E studos Religiosos, o dr. N iels C . N ielsen. M esm o depois de eu estar form ado e ele, aposentado, não deixou de ser m entor, exem plo e am igo para m im . R espeito-o com o a u m pai. Ele é, sem dúvida algum a, o h om em mais q u erid o e im portante de m inha vida e, em grande parte, o responsável p o r tu d o que ten h o realizado de bom e positivo com o acadêm ico cristão.
Introdução A teologia cristã como história X in q u a n to a história é considerada co m o ossos secos p o r m u ito s leitores m o d er nos, u m a “peq u en a h istória” é sem pre acolhida com ân im o e interesse. M as, afinal das contas, a história é feita de “pequenas histórias”. N esse sentido, história não significa ficção o u fábula, m as “narrativa”. C o n ta r a história é n arrar cronologica m en te as histórias, as narrativas q u e relatam (com tanta exatidão q u an to possível, segundo esperam os) os eventos, m ovim entos, idéias e vidas de pessoas q u e cria ram culturas, religiões e nações. A história da teologia cristã pode, e deve, ser contada co m o se fosse u m a histó ria. Está repleta de tram as com plexas, fatos em ocionantes, pessoas interessantes e idéias fascinantes. Este livro é fru to do esforço de co n tar bem essa história e de tratar com im parcialidade cada u m a das suas tram as secundárias. Existe u m d e n o m in a d o r c o m u m q u e p e rc o rre to d a a h istó ria da teologia cristã e u n e as p eq u e n as h istó rias em u m a ú n ica e g ra n d e n arrativ a d o d e s e n v o lv im e n to d o p e n s a m e n to cristão. E o in tere sse q u e to d o s os teó lo g o s cristão s (p ro fissio n ais e leigos) têm pela salvação: o gesto re d e n to r de D e u s de p e rd o a r e tra n s fo rm a r os p ecad o res. Sem d ú v id a, o u tra s p re o cu p aç õ es e n tra m em jo g o n o d e c u rso da h istó ria, m as, a p a re n te m e n te , o in tere sse em c o m p re e n d e r e explicar a d e q u a d a m e n te a salvação subjaz a qu ase to d o s os o u tro s. U m h is to riad o r c o n te m p o râ n e o da teo lo g ia a firm o u com razão q u e “g e ra lm e n te , o te ó logo e n c o n tra n o s p ro b le m a s da so terio lo g ia [a d o u trin a da salvação] o alicerce so b re o qual edifica to das as suas o p in iõ e s d o u trin á ria s ”. 1 A h istó ria da teologia cristã, p o rta n to , é a h istó ria da reflexão cristã so b re a salvação. In e v ita v e lm e n te, ta m b ém en v o lv e reflexão so b re a n atu re za de D e u s e da revelação q u e ele fez de si m esm o , na pessoa de J e su s C risto , e so b re m u ita s o u tra s cren ças liga das à salvação. N a realid ad e, p o ré m , tu d o se re su m e na salvação: o q u e é, co m o aco n tece e qu ais os papéis a ser d e se m p e n h a d o s p o r D e u s e p elo h o m e m para q u e ela se co n c retize .
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História
da
teologia
cristã
Essa preo cu p ação com a salvação ficou ev id en te p rin cip a lm en te nas etapas form ativas e reform ativas do desenvolvim ento da d o u trin a cristã. O s grandes d e bates sobre o que se deveria crer em relação a D eus, Jesus C risto, ao pecado e à graça q ue con su m iam a atenção dos prim eiros pais da igreja, entre aproxim ada m en te 3(H) e 500, basicam ente visavam resguardar e proteger o evangelho da salva ção. As divisões q u e o correram d en tro da cristandade e na sua teologia d u ran te o século xvi e q ue levaram às reform as protestante c católica na E uropa deveram -se, em grande parte, às diferentes interpretações d o evangelho. Em o u tro s períodos, a questão da salvação, de tu d o o q u e está ligado a ela e de com o se deve guardá-la e protegê-la, ficou relegada ao seg u n d o plano, en q u a n to os líderes e teólogos da igreja debatiam outras questões e se esforçavam para descobrir as respostas de o u tras perguntas. M esm o nessas ocasiões, 110 en tan to , o eco da preocupação com a salvação propaga-se através das reflexões e controvérsias teológicas. N ão seria ju s to im p o r u m tem a rígido de “preocupação com a salvação” para cada teólogo e p eríodo da história da teologia, de m o d o que, em certos m o m en to s, esse tem a será o grande destaque desta narrativa e, em outros, será praticam ente im perceptível. M as e q u an to à teologia? Assim com 110 caso da história, m u ito s leitores m o d er nos estão convencidos de que ela é necessariam ente enfadonha, desinteressante, im praticável e extrem am ente distante da vida cotidiana — e m esm o do viver cris tão. S tanleyJ. G re n z e eu, em livro anterior, tentam o s corrigir essa im pressão e rrô nea. A teologia é inevitável na m edida em q u e o cristão (ou q u alq u er o utra pessoa) procura pensar de m o d o coerente e inteligente a respeito de D eus. E não som ente é inevitável e universal, co m o tam bém valiosa e necessária. Sem a reflexão form al a respeito d o significado do evangelho da salvação q u e é parte da teologia, ele se degeneraria rapidam ente para a condição de m era religião folclórica e perderia toda a sua convicção da verdade e sua influência sobre a igreja e a sociedade. Aos leitores q u e não acreditam na im portância e 110 valor da teologia, recom endo m eu livro an terio r Quem precisa de teologia? Um convite ao estudo acerca de Deus e de sua relação com 0 ser humano (São Paulo: Vida, 2001). 1 lá m u ito s livros sobre a história do pensam ento e teologia cristãos escritos em diversos níveis. H istórias d o cristianism o tam bém são num erosas e facilm ente dis poníveis. O presente vo lum e não tem o propósito de su b stitu ir n e n h u m deles, mas antes fazer nova contribuição à coleção. Sem q u e re r atrib u ir a este livro a qualida de de exclusivo, diria que são poucos os livros sobre o assunto q u e podem ser lidos por pessoas co m u n s — aquelas q u e têm pouco 011 n e n h u m co n h ecim en to da his tória e d o desenvolvim ento da teologia cristã. Este livro foi escrito para leigos e estudantes cristãos, sem q u alq u er noção teológica, e tam bém para pastores cristãos interessados em um a “recapitulação” da teologia histórica. N ã o tem a pretensão de ser acadêm ico e de oferecer visões inovadoras baseadas em pesquisa original ou de
Introdução
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apresentar novas propostas para o debate acadêm ico. É u m panoram a m o d esto dos po ntos de especial interesse da teologia histórica cristã, para leitores que talvez não ten h am o m e n o r co n h e cim en to o u noção dessa história fascinante. D e n tro das lim itações de u m livro q u e trata da teologia histórica, p rocurei, p o r tanto, to rn ar este vo lu m e sim pático ao leitor. Ele é quase q u e to talm en te d estituído de jargões técnicos de teologia e, nos poucos casos em q u e não se pôde evitar o uso, os term os são d efin id o s com clareza d en tro do contexto em q u e são usados. E m bora consista basicam ente de idéias (crenças, doutrinas, teorias), este livro procura vinculá-las a eventos concretos e pessoas reais, e explicar do m o d o m ais claro pos sível p o r que elas eram relevantes e co m o surgiram . E m geral, nasciam de c o n tro vérsias e conflitos a respeito das crenças e da espiritualidade cristãs. N ã o existe n e n h u m a d o u trin a d o cristianism o q u e tenha surgido do nada. C ada crença, q u er considerada “o rto d o x a” (teologicam ente co rreta) o u “h erética” (teologicam ente incorreta), nasceu de u m desafio. O desafio pode ter sido um a distorção do evan gelho com m ensagem p reten sam en te cristã o u u m a crença po p u lar o u prática es piritual considerada não-bíblica o u antitética à fé cristã autentica. Pode tam bém ter sido um a filosofia ou crença cultural não-cristã q u e desafiava os pensadores cris tãos a resp o n d er com um a alternativa m e lh o r com base em fontes cristãs. De q u alq u er form a, a história da teologia cristã não é um a história de p ensado res profissionais em to rre de m arfim inventando d o u trin as obscuras e especulativas a fim de c o n fu n d ir os fiéis cristãos sim ples. Sem negar q u e algo assim possa ter acontecido de tem p o s em tem pos na história d o cristianism o, q u ero refutar essa im agem po p u lar d em o n stran d o aqui q u e toda crença cristã relevante surgiu por razões u rgentes e práticas. M esm o um a pergunta aparen tem en te estranha, com o: “Q u a n to s anjos conseguem dançar na cabeça de u m alfinete?”, não era debatida pelos pensadores cristãos 110 passado apenas para m atar o tem po, n em para dar a im pressão de serem eruditos. A questão era explorar a natureza de seres espirituais n ão -h u m an o s, co m o os anjos, e refutar a idéia de que seriam seres m ateriais que ocupam espaços. Existe um a lenda fam osa (ou infam e) da história da teologia cris tã que conta q u e os bispos e teólogos da tradição ortodoxa oriental estavam deba ten d o essa m esm a questão 11 a grande catedral de C o n sta n tin o p la (B izâncio) e n q u an to os invasores sarracenos irrom piam pelos portões da cidade e d estru íam os últim o s vestígios d o im pério cristão antes tão poderoso. A veracidade ou não dessa lenda é irrelevante para o q u e ten cio n o provar, q u e é sim plesm ente q u e todas as questões debatidas, e todas as crenças que foram desenvolvidas, não aconteciam à toa, m as tin h am sua razão de ser. R eco nhecidam ente, algum as razões para o debate e d esenvolvim ento teológi cos são m elh o res do q u e outras, m as não im agine, p o r favor, q u e só p o rq u e um a idéia nessa história parece, de início, especulativa ou im praticável, ten h a surgido
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História
da
teologia
cristã
do nada. Boa parte da história narrada aqui p reten d e explicar as tensões, conflitos e controvérsias q u e subjaziam às idéias aparen tem en te especulativas, co m o a n a tu re za trina e una de D eus (a T rindade) e a união hipostática (h u m anidade e divindade) de C risto. N e n h u m a dessas duas crenças é claram ente articulada na Bíblia. A lém disso, en q u a n to estavam sendo desenvolvidas pelos principais pensadores da igre ja prim itiva (séculos iv e v), o cânon das E scrituras C ristãs era identificado e for m alizado.2 Por q u e foram desenvolvidas essas d o u trin as cristãs q u e pareciam ser técnicas m as que são to talm en te cruciais? C ertam e n te não p o rq u e os bispos e os dem ais líderes não tivessem m ais o q u e fazer. A razão é sim p lesm en te p o r q u e idéias subversoras do evangelho a respeito de D eus e de Jesu s C risto estavam su rgindo rapidam ente e co n q u istan d o popularidade, e se fossem aceitas p o r m u ito s criariam u m “evangelho d iferen te”, um a religião diferente da ensinada pelos apóstolos e difundida nos prim eiros séculos da igreja. Em quase todos os casos, as doutrinas foram propostas e desenvolvidas p o rq u e alguém percebeu q u e o p ró p rio evange lho estava em jo go. A tualm ente, tem os as d o u trin as da Trindade e das duas naturezas de Jesu s C ris to, e a m aioria das ram ificações do cristianism o, hoje dividido, as aceita sem m uita relutância. Aliás, são am plam ente aceitas co m o verdadeiras, m esm o q u an d o não são b em -en ten d id as. N o en tan to , a m aioria das crenças falsas que surgiram na igreja prim itiva e q u e foram a causa do desenvolvim ento dessas d o u trin as ainda se en co n tra hoje em p leno vigor, ora d en tro das ram ificações do cristianism o que oficialm ente confessam a crença na d o u trin a da T rindade e na da h u m an id ad e e divindade de Jesu s C risto, ora nas seitas e en tre os liberais e livres-pensadores às m argens do cristianism o. E n ten d e r com o e p o r que essas e outras crenças cruciais do cristianism o foram desenvolvidas e definidas com tanta exatidão ajuda a im pe d ir q u e sejam negligenciadas n o presente a p o n to de chegarem m esm o a se perder. E b o m que o leitor conheça os pressupostos básicos deste livro. O p rim eiro deles é o de que as crenças têm im portância. A esta altura, isso já deve estar claro. O que as pessoas acreditam afeta o m o d o com o vivem . N e n h u m discipulado cristão que seja vital, d inâm ico e fiel se encontra com p letam en te desprovido de e n te n d i m en to d o u trin ário . N u n c a houve n em n u n ca haverá. N in g u é m consegue servir fielm ente a D eus sem saber algum a coisa a respeito da natureza e vontade divinas. D u ran te boa parte da história do cristianism o, as crenças eram m ais im p o rtan tes d o q u e hoje o são para m u ito s cristãos contem porâneos. Ler e c o m p re en d er a história da teologia cristã re q u er a consciência prévia de q u e os cristãos das eras passadas que se debatiam com as questões dou trin árias realm ente se preocupavam em crer as coisas certas a respeito de D eus. Este era o caso não so m en te dos bispos e teólogos profissionais, m as tam b ém dos leigos d en tro das igrejas.
Introdução
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N o século iv, o grande pai capadócio da igreja, G regório de N issa, queixava-se de não po d er ir a n e n h u m lugar e n em fazer q u alq u er coisa em C o n stan tin o p la — a nova capital do Im p ério R om ano — sem ser envolvido pelos cidadãos em deba tes a respeito da T rindade. E m sua obra sem inal sobre a T rindade, Da divindade do Filho e do Espírito Santo, escreveu: “Se a gente p ed ir um trocado, alguém irá filosofar sobre o G erad o e o N ão-gerado. Se p erg u n tar o preço do pão, dirão: ‘O Pai é m aior e o F ilho é in ferio r’. Se perguntar: ‘O b an h o está p ro n to ?’, dirão: ‘O Filho foi criado do nada”’.3 G reg ó rio de N issa certam ente não estava reclam ando do env o lv im en to de cris tãos co m u n s nas disputas teológicas. Se seu co m en tário tem to m de queixa é p o r que a m aioria dos leigos naqueles tem pos parecia sim patizar com a posição oposta: a heresia ariana o u sem i-ariana q u e rejeitava a igualdade total e n tre Jesus o Filho e D eus Pai. C o m o em m uitas outras controvérsias doutrinárias antes e depois da quela, tan to leigos co m o líderes eclesiásticos e teólogos profissionais en c o n tram se ativam ente envolvidos no debate sobre as crenças cristãs corretas. As crenças tin h am im portância naquela época e devem c o n tin u ar ten d o agora. O segundo pressuposto é o de que, às vezes, as crenças adquirem im portância demais! N o d ecorrer de dois m il anos de teologia cristã, houve m uitos debates, co n flitos e até m ortes, tu d o com pletam ente desnecessário no tocante a diversas questões realm ente secundárias da doutrina cristã. Sem querer, de m odo algum , aviltar os reform adores protestantes na sua grande obra da reform a 110 século xvi, diria q u e a falta de união devida em grande parte à falta de consenso sobre a presença de C risto na C eia do S en h o r é u m escândalo e um a m ancha 11 a história da teologia protestante. É claro que Lutero, Z uínglio, C alvino c o utros reform adores tam bém discordavam a respeito de outras coisas, m as essa questão doutrinária parece ter sido o grande divisor de águas que tu d o destruía e im pedia a união dos protestantes. E não há desculpa para se queim ar, afogar e decapitar pessoas por serem consideradas hereges. Às vezes, o acerto d o u trin ário e teológico tem im portado dem ais. N o s nossos dias, p o rém , parece q u e o p ên d u lo já chegou à extrem idade oposta, já q u e m u ito s cristãos sabem p o u co ou nada a respeito das d o u trin as cristãs o u de co m o e p o r que se desenvolveram . O cristianism o está c o rren d o o risco de se to rn ar um a religião folclórica de cu lto terapêutico e sen tim en to s pessoais. O terceiro pressu p osto é o de q u e as crenças cristãs válidas — as q u e são consi deradas verdadeiras — não têm o m esm o grau de im portância. A lgum as são dogm as e m erecem ser defendidas séria e até m esm o calorosam ente. A credito q u e a T rin dade e a encarnação p erten çam a essa categoria. P or essa razão, considero Atanásio, bispo e teólogo egípcio do século iv, u m grande herói. Ele foi exilado de Alexandria, sua cidade natal e diocese cinco vezes, por ser intransigente em relação a essas crenças (sua história e contada 110 capítulo onze).
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História
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teologia
cristã
H á outras crenças q u e são verdadeiras e não são tão cruciais para o evangelho ou para a identidade do cristianism o e de sua m ensagem . M as têm sua im p o rtân cia. C h am o -as d o u trin as em contraposição aos dogm as.4 T ratam -se de crenças que poucos o u talvez n e n h u m grande g rupo cristão im põe com o essenciais para um a pessoa ser considerada cristã, m as q u e p o r alguns são consideradas testes de c o m u nhão. Isto é, para p erten cer a determ inada tradição, denom inação o u igreja, a pes soa deve confessá-las ou, pelo m enos, não negá-las. P or exem plo, os batistas — os da m in h a tradição, q u e se orig in o u 110 século xvn — insistem q u e o batism o dos crentes (tam bém cham ado batism o de adultos), n o rm alm en te m ediante a im ersão na água, é o m o d o n o rm ativo d o batism o. N o entanto, os batistas não negam o cristianism o autên tico das pessoas q u e acreditam n o batism o de bebês e o prati cam. Para os batistas, p ortan to , o batism o p o r im ersão dos crentes é um a d o u trin a m as não u m dogm a. F inalm ente, há u m a terceira categoria de crenças q u e cham o opiniões teológi cas ou interpretações individuais. D u ran te a R eform a, alguns líderes p rotestantes classificaram essa categoria de adiájora, palavra q u e provém de u m term o em latim que significa “coisas que não são m u ito im p o rtan tes” o u “q uestões de indiferença”. Pelo que en ten d o , u m exem plo disso seriam os p o rm en o res das crenças a respeito da natureza exata dos anjos e os detalhes dos eventos associados à segunda vinda de C risto. Em grande parte da história eclesiástica, essas e outras q uestões bem m ais insignificantes foram debatidas, m as sem m u ito entusiasm o. E m bora não aprove a perseguição de um a pessoa por causa das suas crenças (sen do batista, creio firm em ente na liberdade de consciência), realm ente acredito q ue os dogm as genuínos foram defendidos da m elhor m aneira — às vezes até à m orte — pelos pais da igreja c pelos reform adores. Esta é um a história que poucos cristãos conhecem e contá-la é u m dos propósitos deste livro. N ã o fosse pelo querido Atanásio — o “santo da teim osia” do século rv — , os dogm as da plena e verdadeira divin dade de C risto e a natureza trina e una de D eus teriam sido provavelm ente engolfados n u m pântano de m eios-term os políticos d en tro do im pério e da igreja. Em bora o grande cronista da queda de Rom a, Edw ard G ibbon, achasse que a união d o Im pério R om ano foi destruída indevidam ente pela recusa obstinada em ceder, para m im , o que estava em jo g o era a integridade do próprio evangelho. O q u arto p ressuposto im p o rtan te deste livro é o de q u e realm ente existe um a linha de pensadores cristãos e idéias influentes q u e vem desde o N o v o T estam en to até os dias de hoje e que, em b o ra esteja aberta ao debate, à correção e à revisão, não se trata de u m b ando de “h o m en s brancos m o rto s” reconhecidos p o r um a elite poderosa d en tro da igreja q u e visa apoiar a d o m in ân cia de d eterm in a d o g ru po de líderes. Essa q u estão pode ser pouco conhecida p o r alguns leitores. M as os professores e estudiosos de religião e teologia saberão de q u e se trata. Existe um a
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ten dência crescente nos círculos acadêm icos de rejeitar a idéia de u m a coleção restrita de clássicos de u m a certa área de estu d o em benefício de algo m ais in clu sivo e q u e m e lh o r rep resen te m inorias e m u lh eres. Esse m o v im e n to tem sua cota de razão. C ertam e n te , o cânon tradicional de clássicos culturais, heróis e ícones precisa ser am pliado. M as isso não significa q u e a influência legítim a não vá d eter m in ar quais escritores e pensadores do passado devem ser estudados. E u gostaria m u ito de en c o n trar registros de teólogas influentes da igreja prim itiva, da era m e dieval e da R eform a. M as em b o ra as m u lh ere s certam en te estivessem p resentes e ten h am in flu íd o na vida espiritual do cristianism o d u ra n te toda a sua história, antes dos tem p o s m o d ern o s, n e n h u m a conseguiu influ en ciar m arcadam ente o ru m o e a ten d ên cia da teologia da igreja. Para alguns críticos, a falta de m ães da igreja5 é um a prova do preconceito dos teólogos m asculinos 011 da inevitável natureza patriarcal do p ró p rio cristianism o. A credito q u e seja u m a prova da natureza patriarcal da cu ltu ra ocidental em geral (da qual o cristianism o faz parte) e de um a acom odação cultural da igreja cristã e das suas instituições. D everiam ter havido m ães da igreja paralelam ente aos pais da igreja. O fato de isso não ter acontecido c u m escândalo para a igreja, m as não é m otivo para as histórias revisionistas que as inventam . As m inorias étnicas, com o são cham adas p o p u larm e n te nos Estados U n id o s hoje em dia, estavam bem representadas na igreja prim itiva e na sua teologia. Por exem plo, o herói já m encionado, A tanásio, era cham ado p o r seus co n tem p o rân e os, sem ofensa, de “o anão n eg ro ” p o r causa de sua altura e co r da pele. Era africa no, assim com o m u ito s o u tro s grandes pensadores da igreja prim itiva. Vários eram sem itas — de descendência e identidade árabe ou judaica. Aliás, poderia ser levan tado o forte arg u m e n to de q u e os pensadores m ais form ativos e influentes d o cris tianism o prim itiv o — tanto heréticos q u an to ortodoxos — m oravam e trabalha vam no Egito e em ou tras partes da África do N o rte . C e rta m e n te eles não p o d eri am ser cham ados “h o m en s brancos m o rto s”! E m boa parte da década de 80, u m m o v im en to q u e visava negar a existência de q u alq u er tipo de linha principal de pensadores e idéias in flu en tes g anhou po p u la ridade e causou m u ita controvérsia. Sem rejeitar a legitim idade dos apelos pela am pliação e m aior abrangência das listas de pensadores influentes, creio q u e existe u m a lista objetivam ente identificável de pensadores cristãos influentes à qual m e concentrei neste livro a fim de oferecer aos leitores um a base para q u e co m p re en dam a história da teologia cristã. Por exem plo, se alguém q u iser e n te n d e r co m o os cristãos chegaram a crer 110 dogm a da T rindade, seria desonesto da m inha parte negar que O ríg en es, Atanásio e os três pais capadócios foram os protagonistas des se dram a. O u tro s p o d em ter desem p en h ad o papéis secundários m as, sem dúvida, esses h o m en s foram os atores principais.
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H istória
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teologia
cristã
A lguns leitores talvez q u estio n em essa linha principal de pensadores cristãos m ais in fluentes sob u m p o n to de vista bastante d iferente: “Por q u e ler sobre pesso as das quais nu n ca ouvi falar? C o m o p o d em ser tão im p o rtan tes se m eu pastor nun ca as m en cio n o u ?”. C o m o resposta, apelo à m in h a “teoria do efeito em cascata”.6 M esm o qu em n un ca ouviu falar de Atanásio, p o r exem plo, pode estar p ro fu n d am en te in flu en ci ado p o r ele. E n tre outras coisas, Atanásio escreveu u m p eq u e n o tratado sobre a divindade de Jesu s C risto in titu lad o De incarnatione ou Da encarnação do Verbo, no qual ap resen to u u m arg u m en to sólido em favor da divindade de Jesu s C risto em pé de igualdade com a própria divindade do Pai e, com isso, ajudou a estabelecer o dogm a da T rindade co n tra a crescente onda de sim patia por u m tipo de crença sem elhante à das T estem unhas de Jeová que enxerga C risto co m o u m a grandiosa criatu ra de D eu s. U m a longa lin h ag em de p en sa d o res cristãos, in c lu in d o os reform adores protestantes, considerava a obra de Atanásio conclusiva e decisiva. Além disso, Atanásio com pilou a prim eira lista autorizada de 66 livros inspirados da Bíblia cristã na sua carta da Páscoa, dissem inada e n tre os bispos cristãos em 367. Identificou um a lista de livros secundários q u e p o sterio rm e n te surgiriam na igreja ocidental (latina, católica rom ana) com o os apócrifos inspirados. F inalm ente, Ata násio tam b ém visitou os erem itas cristãos q u e habitavam em cavernas n o deserto do Egito e escreveu u m a hagiografia (biografia de u m santo) a respeito de um deles, A ntão, o E rm itão. A vida de santo Antão chegou à E uropa p o r in term éd io do exílio de Atanásio e to rn o u -se um a base im portante para a ascensão do m onasticism o e dos m osteiros q ue, p o r sua vez, influenciaram p ro fu n d am en te o cristianism o ocidental p or m u ito s séculos. Levando tu d o em consideração, portan to , Atanásio é u m bo m exem plo da m i nha teoria do efeito em cascata q u e explica p o r q u e os cristãos da atualidade devem estu d ar e co m p re en d er os pensadores cristãos do passado distante, de nom es que n u n ca ouviram falar. A pesar de os atuais cristãos d esconhecerem esses teólogos, foram eles q u e influenciaram o cristianism o q u e os n u triu espiritualm ente e lhes deu identidade. Eles fazem parte da “grande nu v em de testem u n h as” de todos os cristãos (I lb 12.1). São nossos antepassados espirituais e teológicos. A p render sua história e o papel q u e desem penhavam na grande história da teologia é u m exercí cio de e n te n d im e n to de si m esm o. E o m esm o q u e co n h e cer as raízes da própria família. M as para que estu dar os hereges, co m o A rio, cujas idéias foram condenadas com o distorções graves d o evangelho e rejeitadas p o r grandes pensadores com o Atanásio? N ão seria m e lh o r co n cen trar a atenção so m en te nos da nu v em de teste m u n h as q u e contavam a verdade? Essa história da teologia cristã incluirá m uitos debates sobre os q u e negavam a ortodoxia, os m estres teologicam ente incorretos
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da igreja, q u e freq ü en tem en te prom oviam falsos evangelhos o u versões distorcidas do evangelho de Jesu s C risto. Q u al é o valor de tal estudo? U m a concepção p o p u lar errô n ea — talvez u m a lenda urb an a do cristianism o — é a de que o Serviço Secreto dos Estados U n id o s n u n ca m ostra aos funcionários dos bancos as cédulas falsificadas q u an d o q u erem ensiná-los a identificar d in h eiro falso. D iz a lenda que os agentes que adm inistram o trein a m e n to só m o stram aos bancários exem plares verdadeiros de d in h eiro e, assim , q u an d o o d in h eiro falsifi cado aparecer diante deles, reconhecerão co m o é diferente. A m oral da história é que o cristão deve estu dar so m en te a verdade e n u n ca heresias. N a p rim eira vez em q u e ouvi essa história em u m serm ão, percebi q u e era falsa. Ao verificar com o agente d o Serviço S ecreto d o D e p artam en to do T esouro de M inneapolis, encarregado de trein a r os bancários a identificar o d in h eiro falsifica do, foi confirm ada a m inha suspeita. Ele ridicularizou a h istória e achou estranho que alguém a tivesse in ventado e q u e o u tro s tivessem acreditado nela. A tendendo a u m pedido m eu , en v io u -m e um a carta co n firm an d o q u e o Serviço S ecreto na verdade m ostra aos bancários exem plares de d in h e iro falsificado. C reio q ue é im portante e valioso para os cristãos conhecer não som ente a d o u tri na teológica correta (a ortodoxia) m as tam bém as idéias dos que são considerados hereges d en tro da história da igreja. U m a razão para tanto é que é quase impossível apreciar o significado da ortodoxia sem en ten d er as heresias que a forçaram a se definir. O que agora conhecem os por ortodoxia (não a “O rtodoxia O rie n ta l”, mas a ortodoxia com o “d o u trin a teológica correta”) não nasceu de repente na igreja com o Atena saiu da cabeça de Z eu s na m itologia grega. Ela foi crescendo com o resultado dos desafios que a heresia im pôs. A fim de com preender corretam ente o dogm a ortodoxo da Trindade, é necessário en ten d er os ensinos de Ario de Alexandria, que desafiou seriam ente, n o com eço do século rv, a crença na eterna trindade de D eus. O u tro b om m otivo para estu d ar as heresias e os hereges é q u e nu n ca se sabe q u an d o D eu s pode golpear v io len tam en te com um a vara torta. A linguagem figu rada de L u tero nessa expressão inculca a lição de q u e até m esm o u m herege pode c o n trib u ir de algum a form a para o en te n d im e n to cristão apropriado da verdade. Q uase todos os pensadores cristãos tradicionais a partir do século xvi concordam com Jo ão C alvino e com o conselho da cidade de G en eb ra em relação a M iguel Scrveto ser u m herege seg u n d o os padrões da ortodoxia protestante. Ele negava a divindade de C risto e da T rindade (assim co m o A rio no século iv), b em com o m u ito s o u tro s itens da crença cristã tradicional. M as seu desafio profético contra a do m in ân cia p re p o n d eran te da cidade pelo R eform ador Jo ão C alvino conquistaria forte apoio da m aioria dos am antes da liberdade hoje em dia. M uitos dos considerados hereges nos tem pos de L utero e C alvino defendiam a liberdade da alm a e a religiosa. N a realidade, entre os tem pos do prim eiro im perador
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História
da
teologia
cristã
rom ano cristão, C o n stantino, no século iv, e os m ovim entos do século x v iii em favor da tolerância religiosa na G rã-B retanha e nos Estados U n id o s, os cham ados hereges eram uns dos poucos que argum entavam em favor da liberdade religiosa. O q u in to e ú ltim o pressuposto q u e subjaz esse relato da história da teologia cristã é que D eus opera de m odos m isteriosos para estabelecer o seu povo na ver dade e para refo rm ar a teologia q u an d o necessário. N ã o uso n e n h u m pretexto do historicism o — o p ressuposto m etodológico de q u e todas as idéias podem ser re duzidas a seus contextos histórico-culturais e p o r eles explicadas. C o m o cristão convicto e dedicado, creio na orientação (e não necessariam ente no controle) p ro videncial de D eus para todos os eventos. A história da teologia cristã é, segundo acredito, mais do q ue um a história hum ana. Ela faz parte da história da interação de D eus com seu povo, o corpo de C risto. Assim co m o o teólogo co n tem p o rân eo H ans Küng, creio que D eus m an tém a igreja na verdade, m as não na evolução tranqüila da sua descoberta progressiva. D eus opera através de agentes hu m an o s cuja m en te e coração são anuviados pelo pecado. H á períodos na história da igreja e de sua teologia nos quais perceber a m ão de D eus m an ten d o -a na verdade é p u ro ato de fé. Existem o u tro s períodos ou capítulos da história q u e não exigem m uita fé para perceber D eus o perando na restauração da verdade. A questão é sim p lesm ente q u e este livro não deve ser lido co m o um a descrição histórico-científica e n eu tra da evolução da teologia cristã. O u tro ssim , tam bém não deve ser lido com o o tipo de relato altam ente preco n ceitu o so q u e existe em algum as das histórias eclesiásticas m ais fam osas o u infam es. A prim eiríssim a his tória eclesiástica a ocu par u m livro inteiro foi escrita pelo bispo E usébio n o século iv e tinha a clara intenção de d em o n strar a m ão de D eus p o r detrás da ascensão ao po d er d o im p erad o r C o n sta n tin o — o p rim eiro im p erad o r ro m an o q u e aceitou o cristianism o. E sforcei-m e ao m áxim o aqui para ser fiel aos fatos e para apresentar a história da teologia cristã com o m ín im o de distorção possível. Ao m esm o tem po, não consigo o cu ltar o fato de que creio q u e D eus nunca esteve ausente da igreja, m esm o nas eras de trevas d u ra n te as quais a luz da verdade tinha po u co brilho. Se há algum “h eró i” nesta história, não é C o n sta n tin o n em A tanásio, p o r m ais grandi osos ou influentes q u e ten h am sido, m as o p ró p rio D eus, a q u em pertence toda a h o n ra e glória. A história da teologia cristã exige, inevitavelm ente, certa consideração sobre a filosofia e as influências filosóficas. A partir do século ii, q uando com eça a nossa história, a filosofia torna-se a principal interlocutora da teologia. As vezes, ela parece ser m ais do que sim ples interlocutora. Ela faz parte da história — o papel da filosofia no desenvolvim ento das crenças cristãs formais. O teólogo cristão nortc-africano, Tertuliano, perg u n to u retoricam ente: “O que Atenas tem que ver com Jerusalém ?”. Q u eria protestar contra o uso crescente da filosofia grega (Atenas) pelos pensadores
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cristãos que deveriam ter se fundam entado exclusivam ente nas Escrituras e em fon tes cristãs (Jerusalém ). O pai da igreja e apologista (defensor da fé) Ju stin o M ártir referiu-se ao cristianism o co m o a “filosofia verdadeira”, ao passo q u e o m estre cris tão do século ui, C lem en te de Alexandria, identificou o pensador grego Sócrates com o u m “cristão antes de C risto ”. O m aior de todos os pensadores católicos da Idade M édia, Tomás de A quino (século x iii ), freqüentem ente apelava ao “Filósofo”, referindo-se ao filósofo pré-cristão Aristóteles, lado a lado com os pais da igreja, ou até m esm o no lugar deles, para resolver questões polêm icas. P osteriorm ente, o p en sador católico, Blaise Pascal (século x v ii ) asseverou que “o deus dos filósofos não é o D eus de Abraão, de Isaque e de Jacó!”. O relacio n am en to en tre a reflexão cristã e a filosofia constitui um a parte m u ito im p o rtan te da história da teologia cristã. F ornece algum as das tensões m ais em o ci on antes dessa história. M as seu estu d o às vezes pode parecer bastante técnico e confuso. P ro curarei sim plificá-lo, m as sem deixar de lado seu significado. Peço paciência, tan to aos estudantes iniciantes e aos leitores em geral, q u an to aos cole gas professores e acadêm icos. O s prim eiros po d em achar esse aspecto da narrativa com plicado, en q u an to q u e os últim os talvez o considerem excessivam ente sim plista. A história da teologia cristã com eça n o século n, cerca de cem anos depois da m o rte e ressurreição de C risto , com o início da confusão en tre os cristãos n o Im pério R om ano, tan to d en tro q u an to fora da igreja. O s desafios in tern o s principais eram sem elhantes à cacofonia de vozes que m u ito s cristãos em nossos dias cham a riam “seitas”, ao passo q u e os desafios externos eram sem elhantes às vozes que m u ito s hoje cham ariam “céticos”. E dessas vozes desafiadoras q u e surgiu a neces sidade e os p rim ó rd io s da ortodoxia — um a declaração definitiva daquilo que é teologicam ente correto. A única opção era a confusão total. Q u e a história com ece...
P r im e ir a P a r t e P r im e ir o ato: Visões cristãs conflitantes no século n
A história da teologia não se inicia n o com eço. Isto é: a teologia cristã com eçou m u ito tem p o depois de Jesus C risto ter cam inhado na terra com seus discípulos e m esm o depois de ter m o rrid o o ú ltim o discípulo e apóstolo. A teologia é a reflexão da igreja a respeito da salvação trazida p o r C risto e a respeito d o evangelho da salvação proclam ada e explicada pelos apóstolos do século i.1 O ú ltim o apóstolo de Jesu s a m o rre r foi Jo ão “o A m ado”, o m ais jo v e m deles, que m o rre u p o r volta de 90, em b o ra a data exata seja incerta. U m a tradição fide digna, deixada pelos próprios discípulos de João no século n, diz q u e ele m o rre u em Efeso e q ue foi bispo (episkopos, “su p e rin te n d e n te ”) de todos os cristãos e de todas as igrejas cristãs daquela região na Ásia M e n o r (m o d ern a T urquia). Jo ão é o pivô da história da teologia cristã, porque sua m o rte m arcou u m m o m e n to decisi vo. Pelo q u e sabem os, n e n h u m apóstolo reconhecido o u am p lam en te aceito so breviveu a João. C o m a sua m orte, o cristianism o e n tro u n u m a nova era, para a qual não estava in teiram en te preparado. Já não seria possível solucionar debates do u trin ário s, o u q u aisq u er que fossem , apelando para u m apóstolo. O s apóstolos eram h o m en s e m u lh ere s de grande prestígio e autoridade 110 cristianism o primitivo.. E ram testem u n h as oculares de Jesus, o u pelo m enos pes soas in tim am en te ligadas ao seu m inistério, o u aos m inistérios de seus discípulos.2 E n q u an to viviam , não havia necessidade da teologia n o m esm o sen tid o q u e depois de sua m orte. A teologia nasceu à m edida q u e os herdeiros dos apóstolos com eça ram a refletir sobre os en sin am en to s de Jesu s e deles a fim de explicá-los em novos contextos e situações e resolver controvérsias q u an to à crença e co n d u ta cristãs. E claro q ue os apóstolos deixaram obras escritas. João, por exem plo, deixou um Evangelho de Jesus C risto, algum as cartas e a visão que recebeu q u an d o estava exila do na ilha de Patm os.3 Esses escritos apostólicos não foram , porém , encadernados com capas de co u ro estam padas com o título “Bíblia Sagrada” e, no ano 100, ainda não havia surgido a idéia de um “N o v o T estam ento” [ n t ] co m o cânon das Escrituras
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História
da
teologia
cristã
cristãs. N ão querem os dizer com isso que n e n h u m cristão pensava nos escritos dos apóstolos com o as Escrituras. A m aioria dos cristãos daquele tem po provavelm ente considerava os escritos autênticos dos apóstolos m u ito especiais em certo sentido e, ocasionalm ente, os pais da igreja no século 11 realm ente os citavam com o Escrituras. O problem a é que n en h u m a igreja ou região do cristianism o, com o R om a, Efeso ou o Egito, tinha um a coletânea com pleta dos escritos apostólicos e havia falta de co n senso geral sobre que livros e cartas tinham sido realm ente escritos pelos apóstolos. C o m o tem po, a necessidade de um registro e interpretação escritos dos ensinos de Jesus e dos apóstolos to rn o u -se tão urgente que igrejas independentes, grupos de igrejas e, finalm ente, todos os líderes cristãos reuniram , traçaram e definiram os escritos dos apóstolos e das pessoas estreitam ente ligadas a eles. P ortanto, a Bíblia cristã, ou o cânon das Escrituras, evolveu lenta e dolorosam ente depois de m uitas controvérsias. N o século n, no entanto, esse processo estava apenas com eçando. O s prim eiro s teólogos cristãos foram os bispos e o u tro s m in istro s e líderes de congregações cristãs no Im pério R om ano. C h egaram a ser conhecidos p o r pais apostólicos p orque, su postam ente, conheceram u m o u m ais dos apóstolos, mas não eram apóstolos. Sua contribuição para a história da teologia cristã será contada nesta seção. A seção term inará ao estudarm os Iren eu , o bispo d o final do século n que, provavelm ente, foi o p rim eiro cristão a apresentar um relato co m p leto da teologia cristã. A lguns co n sid eram -n o o p rim eiro teólogo sistem ático cristão. E n tre as considerações sobre os pais apostólicos e Iren eu aparecerá o tratam en to de u m g ru p o de pensadores cristãos d o século n geralm ente agrupados sob o n o m e de apologistas. F oram h o m en s que se esforçaram para d efen d er o cristianism o, no início de sua existência, co n tra m al-en ten d id o s e perseguições e, ao fazerem isso, freq ü en tem en te atrib u íam -lh e u m a perspectiva filosófica grega. A teologia em si, co m o a busca da ortodoxia (a d o u trin a teológica correta), su r giu dos desafios im postos aos en sin am en to s cristãos p o r sectários q u e se apresen tavam diante da igreja e d o m u n d o pagão co m o cristãos m ais g enuínos o u im p o r tantes do q u e os principais h erdeiros dos apóstolos. Esses desafios à m ensagem apostólica e à autoridade dos sucessores nom eados pelos apóstolos tiveram tanto sucesso em criar caos e confusão q u e se to rn o u im prescindível o desenvolvim ento de u m a reflexão teológica form al para com batê-los. O s bispos, q u e n o segundo século d o cristianism o eram sim ples supervisores de u m g ru p o de igrejas em um a cidade o u territó rio , resp o n d eram aos críticos e sectários lem brando o q u e os após tolos tin h am ensinado, re u n in d o , preservando e in terp re tan d o os legados escritos e escrevendo cartas e opúsculos para circular e n tre as igrejas. N o d eco rrer desse processo nasceu a teologia cristã. C o m os pais apostólicos, a teologia co n tin u o u sua infância e, so m en te m ais tarde, depois do século 11, com Iren eu e os pais da igreja, com eço u a cam inhar ru m o à m aturidade.
Críticos e sectários provocam confusão
U s g randes p e rtu rb a d o re s d o cristian ism o ap ostólico n o sécu lo li fo ram os gnósticos, M o n tan o e os m ontanistas e o o ra d o r anticristão C elso. O u tro s desafia ram o fluxo de en sin am en to s e práticas dos apóstolos p o r m eio de bispos p o r eles nom eados m as, aos olhos dos bispos, aqueles eram os principais o p o n en tes a ser com batidos e vencidos. O gnosticism o é u m ró tu lo genérico aplicado a u m a grande variedade de m es tres e escolas cristãs que existiam às m argens da igreja prim itiva e q u e chegaram a se to rn ar u m grande p roblem a para os líderes cristãos n o século li. O n o m e p ro vém da palavra grega gnosis, q u e significa “c o n h e c im e n to ” ou “sabedoria”.
O gnosticismo C erta tradição d o século 11 descreve o em bate e n tre o discípulo Jo ão e u m e m in e n te m estre gnóstico de Éfeso p o r volta de 90 a.C . C e rin to talvez ten h a sido u m dos prim eiros m estres gnósticos e p ertu rb ad o res do cristianism o do final d o século i. C o n fo rm e a tradição, Jo ão foi ao balneário público de Éfeso com alguns dos seus discípulos e, ao entrar, percebeu q u e C e rin to estava ali. E ntão saiu apressado de lá, sem se banhar, exclam ando: “Saiam os depressa para q u e ao m enos o balneário não desabe sobre nós, pois C e rin to , o inim igo da verdade, ali se e n c o n tra ”.1 A antipatia de Jo ão pelo m estre gnóstico C e rin to p erp etu o u -se com os líderes cristãos nos séculos 11 e ui. Por quê? Q u e m foram os gnósticos e p o r q u e Jo ão e os sucessores dos apóstolos na igreja prim itiva consideravam -nos os principais “ini m igos da verd ad e”? Farei u m a descrição breve do gnosticism o do século n e de alguns de seus h erd eiros m o d ern o s e, no fim do capítulo, retornarei a u m estudo m ais p o rm en o rizad o dos ensinos d o gnosticism o. O s gnósticos não tin h am organização unificada e discordavam en tre si a respei to de m u ito s assuntos, m as todos acreditavam possuir u m co n h e cim en to ou sabe doria espiritual su p erio r à q u e possuíam e ensinavam os bispos e o u tro s líderes
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eclesiásticos do século n. Em resu m o , acreditavam ser a m atéria, in clu in d o o cor po, um a prisão in ere n tem en te lim itante ou até m esm o u m obstáculo m aligno para a boa alm a ou espírito do ser h u m an o e q u e o espírito, essencialm ente divino, um a “centelha de D e u s”, habitava o tú m u lo d o corpo. Para todos os gnósticos, a salva ção significava alcançar u m tipo especial de c o n h e cim en to q u e não seria geralm en te co n h ecid o pelos cristãos co m u n s n em sequer estaria à sua disposição. T algnosis o u conhecimento, im plicava reconhecer a verdadeira origem celestial do espírito, sua natureza divina essencial, co m o u m a parte do p ró p rio ser de D eus, e C risto com o o m e n s a g e iro e s p iritu a l im a te ria l e n v ia d o p o r esse D e u s d e s c o n h e c id o e incognoscível para buscar e resgatar as centelhas dispersas de seu ser, agora aprisi onadas em corpos m ateriais. Todos os gnósticos acreditavam q u e C risto não havia encarnado em Jesu s na realidade, m as q u e sim plesm ente tinha a aparência de um ser hu m an o . Esse é u m sim ples esboço do gnosticism o d o século n. P osterio rm en te, ele será descrito com m ais detalhes. P or en q u a n to basta dizer q u e essa form a esotérica de cristianism o era encarada pelos cristãos prim itivos com o u m a m ensagem especial para as pessoas da elite e co m o u m evangelho secreto de Jesu s, m ais verdadeiro e sublim e, tran sm itid o o ralm en te p o r u m g ru p o de discípulos m ais ín tim o . E certo que os cristãos po d eriam e n c o n trar leves ecos e vestígios da m ensagem gnóstica no q u e ouviam de seus bispos e pastores sobre o en sin o apostólico e nas epístolas apostólicas q u e circulavam em seu m eio. M as o evangelho gnóstico extrapolava os en sin am en to s dos apóstolos no tocante ao conflito e n tre a “carn e” e o “e sp írito ”. M uitos cristãos do século n foram atraídos para o gnosticism o p o r ele se m os trar co m o um a form a especial da verdade cristã, m ais sublim e, m elh o r e m ais espi ritual d o q ue a q u e os bispos ensinavam às massas incultas e im puras. O gnosticism o apelava para e estim ulava o elitism o espiritual, o sigilo e a divisão d en tro da jo v em igreja cristã que com eçava a desabrochar. N o século xx, diversos grupos e indivíduos q u e se p roclam am “cristãos da N ova E ra” ressuscitaram a m ensagem gnóstica do século n. N a realidade, os ecos do gnosticism o nas igrejas cristãs atravessaram os séculos, m as foram silenciados pela supressão oficial dos im peradores cristãos e das igrejas estatais. C o m o pluralism o m o d ern o e a tolerância a opiniões conflitantes e, ainda, com a separação en tre a igreja e o estado, o gnosticism o volto u a levantar a cabeça para desafiar o evangelho apostólico da salvação. Raras vezes é identificado co m o “gnosticism o”. E apresen tado freq ü en tem en te p o r cristãos q u e se au to -in titu la m esotéricos com o um a for m a m ais pu ra do cristianism o para pessoas g en u in am en te espirituais q u e toleram o do gm atism o sufocante e a institucionalização das igrejas oficialm ente ortodoxas. Q u a n d o o cham ad o m o v im en to da N ova Era ganhava força na G rã-B retan h a e nos Estados U n id o s nas décadas de 70 e 80, dois de seus partidários decidiram
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fu n d ir o p en sam en to da N ova Era e o cristianism o gnóstico: G eorge Trevelyan e Elizabeth C lare P rophet. Sir G eorge Trevelyan, co m u m en te conhecido por “o pai do m ovim ento da N ova Era britânica”, escreveu livros populares c o m o /l vision o f the Aquarian Age: ati emerging spiritual world view [Uma visão da Era Aquariana: a visão de um mundo espiritual emergente] na tentativa de prom over o despertar e a renovação do gnosticism o. Ele escreveu: U m a mudança notável está acontecendo no am biente intelectual dos nossos tem pos. A cosinovisão holística está tom ando nossa consciência e substituin do o m aterialism o racional que certam ente está se m ostrando inadequado ao explicar o n osso universo fantástico. R ealm ente estam os recuperando o que era cham ado Sabedoria Eterna dos M istérios da Antigüidade, que sabia que o U niverso é M ente e não m ecanism o, que a Terra é uma criatura com senti m entos e não apenas m ineral m orto, que o ser hum ano é, cm essência, espi ritual, uma gotícula da D eidade abrigado no tem plo do corpo. Essa visão, uma vez captada, rem ove da nossa cultura eivada pela m orte o m edo prim iti vo da morte. O corpo pode ser destruído, mas a alm a/espírito ein cada um de nós é imortal e eterna.2
Assim co m o os gnósticos do século n, Trevelyan não fu n d o u u m a denom inação nem um a igreja. P referiu apenas ser professor dessa sabedoria su p erio r da divinda de da alm a hum ana. Elizabeth C lare P ro phet, conhecida pelos seus seguidores “G u ru M a ”, fu n d o u seu m o v im en to religioso distinto conhecido pelo no m e de Igreja U niversal e T riu n fante. Sua m ensagem de u m cristianism o da N ova Era form a paralelos quase exa tos com o gnosticism o cristão da A ntigüidade. Ela pesquisou p ro fu n d am en te os escritos gnósticos conhecidos p o r biblioteca de N a g H am m ad i, descoberta no d e serto do Egito em 1945 e en c o n tro u neles basicam ente a m esm a m ensagem que alega ter-lh e sido revelada pelos “m estres ascensos” com o Jesu s e Saint G erm ain. Em Reincarnation: the missing link in Christianity [Reencantação: o elo perdido do cristia nismo], P ro p h et arg u m enta q u e os gnósticos eram os cristãos verdadeiros q u e h er daram e passaram aos seus seguidores os en sin am en to s m ais sublim es e m ais espi rituais de Jesu s e dos apóstolos, co m o a reencarnação e a identidade da alm a com D eus.3 O relato q u e P ro p h et apresenta do cristianism o prim itivo é o inverso da quele contado pela m aioria dos historiadores eclesiásticos e teólogos históricos. Para ela, os verdadeiros heróis e m ártires da igreja prim itiva foram gnósticos co m o C erin to , V alentino e Basílides, ao passo q u e os vilões hereges foram os bispos e pais da igreja que os criticaram e q u e acabaram c o n trib u in d o para a sua supressão.4 Trevelyan, P ro p h et e m uitos o u tro s que apóiam várias form as do cristianism o esotérico — freq ü en tem en te ligadas de algum m o d o ao cham ado m o v im en to da
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N ova Era — estão m o stran d o q u e o gnosticism o está vivo e forte no cristianism o hodierno. M as ele tam bém aparece em m anifestações m enos descaradas. S em pre q ue as pessoas depreciam a existência m aterial e física em no m e da “espiritualidade” ou, pela m esm a razão, elevam a alm a o u espírito h u m an o à condição de divindade, a heresia do gnosticism o volta a invadir a m ensagem apostólica e a co n tam in ar o cristianism o.
O montanismo E m bora os líderes eclesiásticos do século 11, h erd eiro s e sucessores dos apóstolos, vissem no gnosticism o o m aior perigo, eram tam bém co n frontados por u m m ovi m en to fanático en tre os seus seguidores, q u e parecia ter surgido do nada. Seus partidários o cham avam N ova Revelação c N ova Profecia e seus o p o n en tes o cha m avam m o n tan ism o , p o r causa d o n o m e do fu n d ad o r e principal profeta: M ontano. M o n tan o foi u m sacerdote pagão da região da Ásia M en o r cham ada Frigia que se converteu ao cristianism o em m eados do século n. N ão se enco n tro u n en h u m a bi blioteca dos seus escritos com o a deixada pelos gnósticos. A m aior parte do que se sabe a respeito do m o vim ento e dos seus ensinam entos nos foi transm itida pelos pais da igreja do século n q ue contra eles escreveram e de Eusébio, que escreveu no século rv um a história da igreja cristã. M o ntano rejeitava a crescente fé na autoridade espe cial dos bispos (com o herdeiros dos apóstolos) e dos escritos apostólicos. C onsidera va as igrejas e seus líderes espiritualm ente m ortos e reivindicava um a “nova profecia” com todos os sinais e m ilagres dos dias ideais da igreja prim itiva no Pentecostes. Para os bispos e líderes das igrejas o p roblem a não era tanto a crítica feita por M o n tan o à falta de vida espiritual e seus apelos em prol d o reavivam ento, m as sua auto-identificação co m o o porta-voz incom parável de D eus. M o n tan o referia-se a si m esm o com o “P orta-voz d o E spírito S anto” e acusava os líderes oficiais da igreja de p re n d er o E spírito Santo d en tro de um livro, ao ten tar lim itar a inspiração divi na aos escritos apostólicos. O p u n h a -se energicam ente a q u alq u er lim itação o u res trição desse tipo e parecia enfatizar o p o d er c o n tín u o e a realidade de vozes inspi radas co m o a dele. M o n tan o re u n iu à sua volta u m grupo de seguidores em Papuza e co n stru iu ali um a co m unidade. D uas m u lh eres, Priscila e M axim ila, u n iram -se a ele, e o trio passou a profetizar o breve re to rn o de C risto à sua co m u n id ad e e a co n d en ar os bispos e líderes das principais sés m etropolitanas (áreas dirigidas p o r bispos) com o destituídos de vida, co rru p to s e até m esm o apóstatas. M o n tan o e as duas profetisas entravam em transe c frenesi espirituais, falando na prim eira pessoa co m o se D eus, o E spírito Santo, falasse diretam en te através deles. Em certa ocasião, o E spírito Santo su p o stam en te falou através de M o n tan o a respeito dele próprio: “Eis q u e o h o m em [M o n tan o ] é sem elhante a um a lira e eu toco as cordas co m o u m plectro.
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O h o m em d o rm e e eu vigio. Vejam! É o S en h o r q u e m ove o coração do h o m e m ”. E m seus discursos, M o n tan o , o u o E spírito d en tro dele, dizia a seus seguidores: “Eu sou o S en h o r D eus, nascido e n tre os hom ens. N ã o sou anjo, n e m sacerdote. Sou D eus Pai, vin d o até vocês”.5 D u ra n te décadas a igreja m o stro u -se ex trem am ente desconfiada q u an to a p ro fetas autoproclam ados, tem en d o q u e talvez p retendessem su b stitu ir os apóstolos com o autoridades especiais suscitadas p o r D eus, à parte das estru tu ras da igreja. As igrejas principais d o Im p ério R om ano e seus bispos, a fim de preservar a união em um a estru tu ra visível e nos ensinos, decidiram adotar u m conceito de “sucessão apostólica” sem elh an te ao p o sterio rm e n te criado. Se u m bispo pudesse d e m o n s trar q u e sua linhagem de ordenação, p o r assim dizer, rem ontava a u m dos apósto los do século i, então seria um bispo digno e legítim o. C aso contrário, não seria considerado legítim o. M as, en tre os cristãos da m etade do século 11, ainda havia profetas carism áticos itinerantes e estacionários. E, p o r vezes, podiam ser bem p roblem áticos, com o revela u m dos escritos pós-apostólicos m ais antigos, o Didaquê. Esse texto an ô n i m o do com eço d o século li oferece conselhos conflitantes aos cristãos sobre com o lidar com tais profetas aventureiros q u e falavam em n o m e de D eus. A d u ra resposta dos líderes eclesiásticos a M o n tan o não foi tan to p o rq u e ele e suas co m p a n h e ira s p ro clam av am palavras da p arte de D e u s o u d e fe n d ia m o ascetism o rigoroso (proibição do casam ento e das relações sexuais, je ju n s severos), mas sim p o rq u e rejeitavam os h erdeiros dos apóstolos e reivindicavam inspiração e autoridade especiais para as próprias m ensagens. Q u a n d o os seguidores de M o n tan o com eçaram a fu n d ar congregações separadas q u e rivalizavam com bispos de todas as partes do Im p ério R om ano, estes reagiram com rapidez e severidade. Talvez até com severidade dem ais. Alguns diriam que se trata de um caso clássico de jo g ar o bebê fora ju n to com a água suja do banho. C o m o não tinham o apoio do estado (o Im pério R om ano) e tam bém corriam o perigo de serem perseguidos, um grupo de bispos das proxim ida des da região o n d e m orava M o n tan o reuniu-se secretam ente c lavrou u m d o cu m en to excom ungando-o, assim com o às duas m ulheres e a todos os seus seguidores. Talvez esse ten h a sido o p rim eiro cism a, o u divisão organizacional, real d en tro do cristianism o. D esde o ano de 160, em m uitas cidades d o Im p ério R om ano, havia duas congregações cristãs distintas: u m a seguia a liderança de u m bispo na sucessão apostólica e o u tra seguia a N ova Profecia de M o n tan o . N u m a reação co n tra os excessos e as reivindicações exclusivistas de M o n tan o e de seus seguidores, os líderes da igreja procuraram se apoiar cada vez m enos em m anifestações verbais sobrenaturais, co m o línguas, profecias e o u tro s dons, sinais e m ilagres so b renaturais do Espírito. F inalm ente, tais m anifestações carism áticas
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passaram a ser, in ju stam ente, tão identificadas com M o n tan o e o cism a m ontanista q u e quase se extinguiram sob a pressão de bispos tem erosos e dos im peradores cristãos posteriores. Estaria o m ontanism o, ou algo sem elhante, ainda em pleno vigor na era m oderna? A m atéria de capa da edição de 14 de agosto de 1991 da revista Christianity Today era sobre u m m o v im e n to , sem elh a n te ao dos m o n tan ista s, ch am ad o Kansas C ity Fellowship [Irm andade da C idade de Kansas].6Esse m ovim ento em particular, que é dirigido por u m grupo carism ático de profetas autoproclam ados, tinha m uitas das características do m o ntanism o do cristianism o prim itivo, m as sem alguns dos exces sos. A essência do m ovim ento, assim com o de m uitas seitas carismáticas sem elhan tes, era um a profecia pessoal feita por profetas especiais a fim de orientar a vida dos indivíduos e predizer o fu tu ro do m u n d o . Sem rejeitar a Bíblia, esses profetas consi deravam -se capacitados para falar em nom e de D eus com palavras de igual peso e im portância. U m deles se auto-intitulou “sucessor de Paulo” (referindo-se ao após tolo Paulo). O u tro s m ovim entos carism áticos recentes enfatizam u m a suposta diferença entre logos e rlietua, dois term o s gregos q u e significam “palavra”, de tal m aneira que as m ensagens de D eus através das profecias nos dias m o d ern o s (rhetna) po d em su plantar e até m esm o corrigir escritos proféticos q u e eram verdadeiros e relevantes n o século i. (logos). S em pre e o n d e q u e r q u e a profecia for elevada a um a posição igual, ou superior, às Escrituras, lá estará o m o n tan ism o em ação. Assim com o o gnosticism o, o m o n tan ism o desafiou a igreja prim itiva e desafia a igreja m o d ern a a pensar e reagir teologicam ente para im p ed ir q u e o cristianism o se transform e em tu d o e nada e, p o rtan to , em um a coisa qualquer.
Celso O gnosticism o e o m o n tan ism o constituíam duas am eaças internas à igreja e à sua m ensagem apostólica, o u seja, à união c à integridade do cristianism o prim itivo. U m desafio extern o de grande peso surgiu de escritores e oradores ju d e u s e pa gãos, co m o F ro n to , T ácito, Luciano, P orfírio e especialm ente C elso.7 O m ais fam oso desses polêm icos opositores d o cristianism o foi o filósofo pagão C elso que, p o r volta de 175 o u 180, escreveu u m livro contra essa fé in titu la d o /I verdadeira doutrina: um discurso contra os cristãos. O co n teú d o do livro foi preservado, na íntegra, para a posteridade pelo filósofo e teólogo cristão O rígenes de Alexandria, que d eu sua resposta em Contra Celsum [Contra Celso], Pouca coisa se sabe a respeito de C elso. T endo p o r base as poucas inform ações que os estudiosos p u d eram ju n ta r, C elso foi u m cidadão ro m an o culto e au to intitu lad o o rad o r filosófico que talvez tenha sido criado em u m lar cristão e que, na vida adulta, d ed ico u -se à filosofia grega. O im p o rtan te é o desafio de C elso à igreja
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do século li. N o p erío d o cm q u e aum entavam os boatos e as falsas acusações contra os cristãos e em q u e eram extensivam ente perseguidos e considerados ignorantes e supersticiosos, senão até desleais, tanto pelos im peradores q u an to pelos plebeus, C elso fez um a crítica extrem am en te brilh an te e articulada co n tra a fé cristã. Em vez de se envolver em boatos, sim plesm ente destacou o que pareciam ser as in co n sistências e os elem en tos supersticiosos da d o u trin a cristã do p o n to de vista de um h o m em co m p ro m etid o com um a com binação eclética da filosofia grega, “a d o u trina v erdadeira”. U m a coisa era os cristãos refutar boatos obviam ente falsos, com o o de se envolver em rituais de sangue nos quais assavam e com iam criancinhas (um boato popular en tre os rom anos a respeito dos “sacrifícios” cristãos, que na realidade eram cerim ô nias eucarísticas, inocentes porém reservadas). O u tra coisa bem diferente era res p o n d er racional e até filosoficam ente a um orador rom ano culto e bem -articulado. M as era preciso resp o n d er pois, ao que parece. C elso tinha a atenção do im perador. M arco Aurélio, im perador rom ano do final do século 11, era filósofo e opositor do cristianism o. R efutar C elso era um a m aneira de acalm ar a ira do im perador contra o cristianism o, que em grande m edida se baseava na suposição, possivelm ente alim en tada p or Celso, de que os cristãos eram um a ralé ignorante que acreditava em tolices e superstições e eram u m perigo para o iinpério. O ataque de C elso ao cristianism o é rico em inform ações sobre a vida e a fé cristã do século n. A despeito de distorções óbvias e descrições equivocadas, A doutrina verdadeira ajuda os historiadores eclesiásticos a e n te n d e r n o q u e os cristãos acreditavam e co m o essa crença era vista pelos não-cristãos. P or exem plo: C elso deixou abso lu tam en te claro que os cristãos de sua época criam cm Jesu s C risto e adoravam esse h o m em co m o u m D eus: Ora, sc os cristãos adorassem um único D eus, poderiam ter a razão a seu lado. M as a pura verdade é que adoram um h om em que apareceu não faz m uito tem po. N ã o consideram que aquilo que fazem é uma violação do m onoteísm o; pelo contrário, acham perfeitamente consistente adorar ao grande D eu s e também adorar com o D eu s o servo deste. E a adoração deles por esse Jesus c ainda mais ultrajante porque se recusam a escutar qualquer conversa a respeito de D eu s, o pai de todos, a não ser que se faça referência a Jesus — basta dizer que Jesus, o autor da insurreição cristã, não era filho de D eu s e eles não vão querer escutar. E quando cham am Jesus Filho de D eu s, não estão realm ente prestando hom enagem a D eus; pelo contrário, estão tentan do exaltar Jesus até às alturas.8
Em resposta à adoração dos cristãos p o r Jesu s, C elso escreveu q u e “é im possí vel q u e D eus ten h a descido à terra pois, se o fizesse, teria de m u d a r sua n a tu re
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za”.‘J Foi esse o desafio de C elso. P ortanto, a principal “c o n trib u iç ã o ” de C elso ao cristian ism o foi o desafio de pensar cu id ad o sam en te sobre duas declarações apa re n te m en te co n flitan tes e, de algum a form a, torná-las coerentes. O s cristãos ale gavam ser m o n oteístas, crentes n u m só D eus, da m esm a fo rm a q u e os ju d e u s e a m aioria dos cidadãos ro m an o s cultos. C elso era m o n o teísta, em b o ra sua idéia de D eu s fosse bem d iferen te daquela dos ju d e u s o u dos cristãos e se baseasse m ais na “fo rm a d o b e m ” de Platão. O s cristãos tam b ém declaravam q u e Jesu s era D eus, o u pelo m en o s o Logos (Palavra, Sabedoria) de D eus, sem elh an te ao Pai celestial, criador de todas as coisas. N essa dupla declaração, C elso só enxergava c o n tra d i ção p aten te e ofensa co n tra a perfeição da natu reza im utável de D eus. C elso atacou os en sin am en to s cristãos com essa e outras aparentes contradições e inconsistências. Ele ten to u m o strar q u e a cosm ovisão cristã era tola e infinita m en te inferio r à filosofia espiritual genérica e eclética de u m só D eus acim a de todos, co n fo rm e ensinavam os filósofos platônicos. O s cristãos se viram diante de u m dilem a: ou ignoravam C elso e o u tro s críticos sem elhantes a ele e retraíam -se em u m a religião folclórica sem ap resentar u m a defesa lógica o u enfrentavam o desafio e criavam d o u trin as coerentes q u e reconciliariam crenças ap arentem ente contraditórias co m o o m o n o teísm o e a divindade de Jesu s C risto. O m esm o desafio e dilem a co n fro n tam os cristãos m o dernos. U m “C elso ” do século xx foi o filósofo britânico B ertrand R ussell (1872-1970), q u e criticou o cristianism o com base na visão de sua filosofia, m ais bem descrita co m o um a for m a de h u m an ism o secular. A ssim com o C elso, seu equivalente d o século 11, Russell, escreveu o livro Porque não sou cristão, ten tan d o expor o cristianism o com o inculto e supersticioso. E n q u an to C elso considerava a filosofia geral platônica “a d o u trin a verdadeira” e o cristianism o, p o r sua vez supersticioso, R ussell reconhecia a v erda de do h u m an ism o secular co m o a d o u trin a verdadeira para as pessoas cultas do século xx. Talvez n en h u m a outra polêm ica anticristã sozinha foi tão influente quanto a de Russell, e n u m ero so s apologistas cristãos pro cu ram refutá-la. Ao fazerem -no, seguem os passos dos escritores cristãos do século n conhecidos p o r apologistas. O s cristãos en fren taram o desafio apresentado p o r C elso. Suas respostas a o p o nentes pagãos com o C elso, fanáticos co m o M o n tan o e hereges co m o os gnósticos deram origem à teologia cristã. M as p o r quê? P or q u e os líderes cristãos do século li (sobre os quais você lerá m ais 110 restante deste capítulo) optam p o r desenvolver respostas teológicas a sectários e críticos? A resposta é sim ples: p o r am o r à salva ção. N ã o p o r o rg ulho, sede de poder o u u m im pulso qualquer, m as para preservar a integridade do evangelho e pelo bem do evangelism o, responderam teologica m ente. A teologia nasceu para resp o n d er perguntas, satisfazer as necessidades de m en tes indagadoras tanto de d en tro q u an to de fora da igreja. As alternativas eram a total falta de u n ião 11 a fé (cism as provocados p o r heresias) o u o total fideísm o —
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do qual C elso acusou os cristãos — q u e se recusava a resp o n d er e se baseava em um a fé cega, d estituída de racionalidade. O s cristãos decidiram co n q u istar sectári os e críticos pela persuasão com arg u m en to s sensatos, d em o n stran d o a lógica in terna e a coerência da m ensagem legada pelos apóstolos. M o n tan o e sua N ova Profecia apresentaram séria am eaça à união da igreja e a igreja resp o n d eu co m severidade — talvez excessiva, co n sid eran d o -se a súbita extinção dos d ons espirituais, sinais e m ilagres do cristianism o. C elso e seus ataques céticos e filosóficos representaram grave ameaça à credibilidade do cristianism o em um período em q u e o im perador, q u e era intelectual, freq ü en tem en te julgava in d i víduos e grupos no seu im pério segundo sua capacidade intelectual e suas crenças. A igreja respondeu desenvolvendo um a cosm ovisão coerente, tão intelectualm ente efetiva com o a de C elso 011 a do im perador. M ais tarde, conform e verem os, a igreja absorverá, talvez até dem ais, o espírito da filosofia grega em sua cosm ovisão para torná-la respeitável aos olhos dos rom anos cultos. M as a m aior am eaça de todas foi o gnosticism o e, portan to, term inarem os o capítulo com u m a abordagem m ais d e talhada e pro fu n d a desse m ovim ento e da resposta teológica q u e a igreja lhe deu.
A teologia gnóstica U m estudioso co n tem p o rân eo declarou q u e o gnosticism o era “a prim eira, e m ais perigosa, heresia e n tre os cristãos p rim itivos”.1" O s líderes e pensadores cristãos do século 11 d esp en d eram m uita energia para estu d á-lo e refutá-lo e, nesse processo, com eçaram a desenvolver doutrinas cristãs ortodoxas que serviriam de co n trap o n to e alternativa aos ensinos gnósticos. E m outras palavras, o q u e cham am os “o rto d o xia” nasceu do co nflito en tre os h erdeiros nom eados pelos apóstolos e os gnósticos que alegavam ser transm issores de um a tradição secreta de d o u trin a proveniente dos m esm os apóstolos. U m capítulo p o sterio r tratará de Iren eu d e Lião, q u e apre sen to u a p rim eira refutação integral escrita do gnosticism o sob a perspectiva cristã ortodoxa. N o m o m en to , v erem os o q u e era o gnosticism o e p o r q u e era considera do um a am eaça tão grave pelos bispos e o u tro s líderes dos cristãos n o século 1 ! em todo o Im p ério R om ano. A crença básica de todos os gnósticos era de q u e “este cosm o é incurável e deve ser re je ita d o ”." A lém de u m a explicação da m ald ad e in e re n te da criação , o gnosticism o oferecia u m a solução espiritual para o indivíduo, u m m eio de se salvar desse am biente in cu ravelm ente m aligno (in clu in d o -se o corpo) e voltar para o verdadeiro lar da alm a. O s gnósticos d o século 11 discordavam m u ito a respeito dos po rm en ores, m as todos concordavam com as cinco fam ílias de sem elhanças q u e os caracterizavam co m o gnósticos apesar dos desacordos.12 P rim eiram en te, criam em u m só D eus, co m p letam en te tran scen d en te, espiri tual e há m u ito afastado d o universo caído e m aterial, o qual não criou. O universo
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teria sido criado p o r u m deus m enor, m aligno ou d em en te (u m “d e m iu rg o ”). Segunda, os seres h u m an o s são centelhas (ou gotículas) da m esm a substância espiritual da qual D eu s é feito e foram de algum a m aneira aprisionados em corpos físicos, que são co m o tú m u lo s dos quais se deve escapar. Terceira, todos os gnósticos concordavam que a “q u ed a” que levou ao pecado e à iniqüidade é idêntica à queda para d en tro da m atéria. A C riação e a Q u e d a são a m esm a coisa. E n q u an to os espíritos perm an ecerem presos nos corpos físicos e na m aterialidade, estarão sujeitos ao pecado, que é causado pela ignorância da sua verdadeira n atureza c habitação. A quarta característica co m u m da crença gnóstica era o conceito da salvação. Todos os gnósticos concordavam q u e a salvação é escapar da escravidão à existência m aterial e viajar de volta ao lar de on d e caíram as alm as/espíritos. A possibilidade é iniciada pelo grande E spírito, D eus, que deseja atrair de volta para si todos os peda cinhos perdidos. D eus envia u m a em anação, u m re d en to r espiritual q u e desce do p u ro espírito, através de incontáveis cam adas de realidade, para a m atéria densa e procura ensin ar a algum as das centelhas divinas d o E spírito a sua verdadeira id en tidade e sua habitação. U m a vez acordadas, são capazes de com eçar sua viagem de volta. A salvação acontece pelo co n h e cim en to o u auto co n h ecim en to . F inalm ente, todos os gnósticos (pelo q u e sabem os hoje) consideravam -se cris tãos e acreditavam q u e Jesu s era o veículo h u m a n o desse m ensageiro celestial, “C risto ”. T odos rejeitavam a idéia de D eus encarnar, m o rre r e ressuscitar fisica m ente. Esse tipo de crença era considerada antiespiritual e contrária à sabedoria verdadeira, p o rq u e co n fu n d e o espírito com a m atéria. M esm o assim , a m aioria dos gnósticos no século n considerava Jesu s especial pois era o veículo adotado e usado pelo C risto enviado p o r D eus. M as para a m aioria dos gnósticos pelo m e nos, o re d en to r celestial q u e e n tro u em Jesu s no seu batism o p o r Jo ão n o rio Jordão d eix o u -o antes q ue m orresse na cruz. O s gnósticos do século 11 dividiam -se em várias “escolas” (m ovim entos) que seguiam m estres diferentes. Ircneu estudou vinte delas e definiu detalhadam ente as sem elhanças e diferenças. M uitas das diferenças tin h am que ver com p o rm e n o res da m itologia a respeito de co m o os bons espíritos (centelhas do divino) caíram e foram aprisionados em corpos m ateriais. N o decurso do século, essas histórias to rn aram -se cada vez m ais com plexas, com explicações bastante diferentes sobre as diferentes em anações e divisões da plerotua (plenitude divina) que finalm ente leva ram a este m u n d o caído e m au e ao aprisionam ento dos espíritos d en tro dele. O u tras variedades d en tro d o gnosticism o surgiram devido a interpretações diferentes da viagem de volta da alm a pelos níveis de realidade en tre o plano físico e o espiri tual. A lguns gnósticos tentaram dar nom es às m ultidões de seres q u e supostam ente guardavam os vários níveis através dos quais as alm as deveriam passar. C o n h e c e r
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os nom es desses “é o n s” e “arco n tes” (com o anjos b ons e m aus e dem ônios) era encarado com o parte da gnose p o r alguns gnósticos. O u tro s gnósticos m an tin h am as coisas m ais sim ples e apenas enfatizavam a m editação e o ascetism o co m o prepa ro para a libertação do corpo na m orte. O u tro p o n to de discórdia en tre os gnósticos era a cristologia, a crença a respeito de C risto. T odos concordavam q u e C risto é u m re d en to r celestial e espiritual que não se to rn o u carne e sangue e nem ressuscitou fisicam ente da m orte. Alguns ensinavam que esse C risto apareceu na pessoa de Jesus, m as que Jesus nunca foi realm ente u m ser h u m an o físico. Esse tipo de cristologia é conhecido por docetism o, da palavra grega dokeô que significa “aparecer” ou “parecer”. Portanto, para esses gnósticos, Jesus apenas parecia u m ser hum ano. Toda a sua existência na terra foi um a farsa na qual fingiu ser carne e sangue pelo bem dos discípulos. O u tro s gnósticos ensinavam um a cristologia dualista na qual “C risto ” en tro u em Jesu s no batism o e o ab andonou po u co antes de sua m orte. Por exem plo, ele usou as cordas vocais de Jesu s para en sin ar os discípulos, m as n u n ca foi realm ente u m ser h u m an o . O gnosticism o era um a form a d iferente de evangelho de salvação, com um a idéia diferen te da condição hu m an a, para a qual a salvação é a solução, e um a idéia diferente da p rópria solução. O perío d o de su rg im en to desse evangelho alternativo na história é m u ito controverso. A lguns estudiosos acreditam q u e ele já existia antes do cristianism o en tre os ju d e u s no Egito, p o r exem plo. N o en tan to , n e n h u m registro do gnosticism o não-cristão foi descoberto, ao passo q u e m u ito s d o c u m e n tos do gnosticism o d o século n foram encontrados, in clu in d o evangelhos gnósticos com o o Evangelho segundo Tomé. 13 É m ais provável q u e o gnosticism o ten h a surgido en tre os cristãos n o Egito em fins d o século i. e 110 início do século 11, m as o gnosticism o certam en te teve p re cu r sores. Indícios e ecos d o gnosticism o podem ser facilm ente identificados em al guns dos escritos dos apóstolos. As epístolas de João, por exem plo, ressaltam que C risto veio na carne: “D e fato, m u ito s enganadores têm saído pelo m u n d o , os quais não confessam q ue Jesus C risto veio em corpo. Tal é o enganador e o anticristo” (2 Jo 7). E quase q u e certo que Jo ão já com batia o protognosticism o nas congrega ções cristãs n o século 1. C o m o e p o r q u e o gnosticism o surgiu en tre os cristãos são q uestões extrem a m en te polêm icas. N ão existem respostas concretas. A lguns estudiosos sugerem as influências das religiões da índia sobre os cristãos egípcios. O u tro s ressaltam o sincretism o en tre o cristianism o e várias religiões de m istério n o Im pério R om a no. A lguns vêem no g n osticism o u m a form a intensa das tendências já latentes d e n tro da filosofia e cu ltu ra gregas de m o d o geral, posto q u e rejeitavam a existência m aterial c exaltavam a realidade espiritual. Talvez as respostas definitivas a tais p er guntas n u n ca surjam .
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A resposta do cristianismo primitivo ao gnosticismo O s líd eres e e sc rito re s cristão s d o sé c u lo n re s p o n d e ra m v ig o ro sa m e n te ao gnosticism o. A m edida que essa heresia crescia em lugares com o R om a — prova velm ente m ed ian te im portação d o Egito — m estres cristãos co m o J u s tin o M ártir, escreveram contestações contra o evangelho gnóstico. E m bora ten h a-se perdido, o livro de Ju stin o Sintagma, ou Compêndio contra todas as heresias, foi provavelm ente escrito em R om a p o r volta de 150. P rovavelm ente foi a prim eira obra polêm ica antignóstica im p o rtan te escrita p o r u m cristão católico o rto d o x o .14 O u tro s pais da igreja do século n escreveram contra os gnósticos, contra o u tro s hereges, com o M arcião de R om a (q u e tin h a sem elh a n ças m arc an tes co m o g n o stic ism o ) e M o n tan o , e co ntra o u tro s falsos m estres de m e n o r influência. N o entanto, foi o gnosticism o o principal adversário d o cristianism o ortodoxo, apostólico e católico d u ran te to d o o século n e “a história da igreja prim itiva foi p ro fu n d am en te influ enciada [...] pela luta contra os gnósticos”. 15 Graças aos conflitos com essas e outras heresias e críticos, o cristianism o do século ii com eçou a form alizar e institucionalizar sua vida e fé. E fácil criticar al guns aspectos desse processo de form alização. A lguns diriam q u e com ele o cristi anism o p erd eu boa parte de sua vida. Talvez seja verdade. N o en tan to , q u an d o se co m p reen d e realm en te a am eaça que o gnosticism o, C elso e M o n tan o rep resen ta ram ao evangelho, fica m ais difícil criticar as respostas dos pais da igreja. Se exage raram ao p ad ronizar a crença, vida e o culto cristão, fizeram -n o p o r um a boa causa. A o u tra possibilidade era a confusão e o caos d en tro de um a religião folclórica sem q u alq u er estru tu ra definitiva. O prim eiro grupo de pais da igreja que com eçaram a responder aos hereges foi o dos pais apostólicos. Alguns chegaram a conhecer pessoalm ente os apóstolos. O u tros eram sim plesm ente contem porâneos deles. Eles form aram elos im portantes com os apóstolos no período de transição do fim do século i e início do século li quando os cristãos ficaram sem os apóstolos c ainda sem o retorno de C risto. Agora, passe m os para a história da vida pessoal e em co m u m desses pais apostólicos.
2 Os pais apostólicos explicam o caminho
X _Jm a pessoa co m o Policarpo era m u ito im p o rtan te para os cristãos n o século 11 . Era bispo dos cristãos em E sm irna, na costa oeste da Ásia M enor, p erto de Éfeso, on d e foi preso pelas autoridades rom anas e pu b licam en te executado por volta de 155. O que o to rn o u tão im portante, no en tan to , foi sua ligação com u m dos discí pulos do S enhor: João. C o m o disse an teriorm ente, João foi o últim o dos apóstolos de Jesus a m o rre r e com ele findou-se a classe de líderes cristãos prim itivos cham ados apóstolos. Policarpo fora instruído na fé p or João e, portanto, era considerado u m vínculo vivo com os discípulos de Jesus e os apóstolos. N a ausência de um a Bíblia cristã (além da Bíblia hebraica, q u e os cristãos viriam a cham ar Antigo Testam ento [a t ]), h om ens com o Policarpo eram considerados as m elhores e m ais confiáveis fontes de inform ação a respeito do q ue os apóstolos ensinavam e de com o dirigiam as igrejas. A aura de autoridade especial de Policarpo atingiu os próprios discípulos dele, h o m en s co m o Iren eu q u e p o r ele foram treinados na fé cristã. Ele tran sm itiu -lh es as tradições dos apóstolos e, até o n t ser identificado e aceito pelos cristãos no século rv, essa tradição oral e a autoridade da sucessão apostólica revelaram -se de valor incalculável na luta dos cristãos co n tra as heresias e cism as d en tro da igreja. A lgum as vezes, p o rém , essa aura especial de autoridade podia apresentar p ro b le m as para o cristianism o à m edida q u e alguns dos sucessores dos apóstolos in tro d u ziam idéias próprias na co rren te da teologia prim itiva. C o n fo rm e verem os, ocasio nalm ente, esses pais da geração q u e se seguiu aos apóstolos deram ao evangelho interpretação própria, o q u e com eçou a distanciá-lo dos grandes tem as da graça e fé tão m arcadam ente enfatizados p o r Paulo e o u tro s apóstolos e a aproxim á-lo do evangelho de u m a “nova lei” de co n d u ta e co m p o rta m e n to agradável a D eus. Ju sto G onzález não despreza a im portância e o valor dos pais apostólicos q u a n do ap ropriadam ente diz q u e “não so m en te no seu m o d o de e n te n d e r o batism o, m as tam b ém em toda a visão teológica, é possível perceber certa distância en tre o
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cristianism o d o N o v o T estam ento, especialm ente o de Paulo, e o dos pais apostó licos. As referências a Paulo c aos dem ais apóstolos são freqüentes; m as apesar disso, a nova fé tran sform a-se cada vez m ais em um a nova lei e a d o u trin a da justificação graciosa da parte de D eus transform a-se em u m a d o u trin a de graça que nos ajuda a viver com retid ão ”.1 O b v iam en te, essa m u dança foi sutil e não radical. Foi u m desvio suave, porém perceptível, dos escritos cristãos d o século n em direção ao legalism o o u o que m ais bem poderia ser classificado co m o “m oralism o cristão”. E m bora os pais apos tólicos citassem Paulo m ais do q u e Tiago, era o espírito deste q u e falava m ais alto. Talvez p o r causa da visível indolência e degradação m oral e espiritual e n tre os cris tãos, ten h am enfatizado m ais a necessidade de evitar o pecado, obedecer aos líde res c se esforçar para agradar a D eus, do q u e a necessidade de se libertar da escravi dão à lei. A despeito dessa m udança sutil que especialm ente os p rotestantes costum am ressaltar e lam entar, os pais apostólicos devem ser adm irados e louvados pela vigo rosa defesa q u e fizeram da encarnação de D eus em Jesu s C risto contra as negações dos gnósticos. Alguns m o rreram co m o m ártires nas m ãos das autoridades rom anas e, portan to , devem ser m u ito respeitados p o r confessar sob risco de m o rte a crença em C risto e !10 evangelho, m esm o sob perseguição. Sem dúvida, sua grande rele vância aqui é terem sido os p rim eiro s teólogos do cristianism o. A categoria de “pais apostólicos” consiste em pessoas e d o cu m en to s q u e in terpretaram c pregaram a m ensagem apostólica na prim eira geração depois dos apóstolos, q u e foi cercada de falsos evangelhos e ataques de céticos pagãos. Q u e m foram os pais apostólicos? A partir do século xv!, os historiadores in clu em nessa categoria en tre oito e dez autores e d o cu m en to s anônim os. (O s historia dores tradicionalm ente referem -se a certos d o cu m en to s anônim os co m o “pais apos tólicos”.) E n tre os aceitos p o r todos estão C lem en te, Inácio, Policarpo, o Didaquê [O ensino dos doze apóstolos], Epistola de Barnabé c O pastor de Hermas. O u tro s c o m u m en tc citados e descritos co m o pais apostólicos são a cham ada Segunda epís tola de Clemente, de au to r desconhecido, a Epístola a Diogneto e fragm entos de escri tos de Papias. N ossa atenção se voltará apenas àqueles praticam ente aceitos p o r todos os estudiosos co m o pertencentes aos escritos dos cristãos na prim eira gera ção depois da m o rte dos apóstolos. A ntes de passar ao estu d o de cada pai apostólico, é bom n o tar q u e os autores de alguns desses escritos são desconhecidos. Q u a n d o se ouve o títu lo de “pai apostó lico” é natural su p o r que se trate de u m a pessoa. O bv iam en te, esses d o cu m en to s tin h am u m au to r (ou m ais), m as há casos em q u e os estudiosos não fazem a m en o r idéia de q u em seja o autor. O Didaquê, p o r exem plo, é u m d o cu m en to descrito co m o u m dos pais apostólicos porque, em b o ra o au to r seja desconhecido, contém
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características da vida e do p en sam en to cristão do início do p erío d o pós-apostólico e foi preservado pelas igrejas p o r sua idade e relevância na instrução das igrejas qu an d o já não havia m ais apóstolos. O s estudiosos são u n ân im es em afirm ar q u e o apóstolo B arnabé, co m p an h eiro de Paulo em suas viagens, não escreveu a Epístola de Barnabc. E quase certo q u e ela tenha sido escrita p o r u m cristão do com eço do século li q ue q u eria q u e sua obra tivesse autoridade apostólica. E m bora hoje atri b u ir u m d o cu m en to ao n o m e de o u tro seja considerado im postura, isso não acon tecia naquela época. A Epístola de Barnabé não foi preservada p o rq u e u m apóstolo a escreveu, m as p o rq u e n in g u ém sabia com certeza q u em era o autor. O s conselhos e en sin am en to s que nela se en co n tram foram considerados valiosos pelos cristãos do século li e nela en co n traram ecos dos ensinos dos apóstolos. O u tra q uestão q u e vale n o tar antes de exam inar ind iv id u alm en te os pais apos tólicos é q u e m u ito s (talvez a m aioria) dos escritos dessa categoria eram tratados com o E scritura ju n to aos evangelhos e epístolas dos apóstolos p o r algum as igrejas cristãs n o século li. N a verdade, um a m aneira de en te n d e r essa categoria é co m o a de livros q u e foram ju lg ad o s ortodoxos m as que, p o r pouco, não foram considera dos escritos canônicos inspirados q u an d o se definia o cânon cristão. P or outras palavras, esses livros quase foram co n fu n d id o s com os escritos apostólicos por alguns cristãos do Im p ério R om ano, m as acabaram sendo excluídos p o rq u e não receberam apoio universal co m o E scritura e p orque foram ju lg ad o s co m o não apos tólicos, n em m esm o ten d o q u alq u er relação com eles, da m esm a form a q u e o Evan gelho de Lucas, os A tos dos A póstolos e a Epístola aos H ebreus.
Clemente de Roma F elizm ente sabem os a identidade de alguns dos pais apostólicos. C le m e n te foi bis po de R om a — su p erin ten d e n te das igrejas nas casas em R om a — na ú ltim a década do século i. Sua carta escrita da igreja em R om a para a igreja cm C o rin to , que é co m u m en te cham ada 1Clemente (para distingui-la da Segunda epístola de Clemente), é provavelm ente o p rim eiro d o c u m e n to cristão escrito q u e foi preservado, fora o que hoje ch am am os n t . Ela foi escrita p o r volta d o ano de 95. A lguns cristãos do século ii no Egito co nsideravam -na parte das Escrituras, assim co m o m u ito s dos pais apostólicos. R ealm ente, seu co n teú d o é m u ito sem elhante às cartas de Paulo aos coríntios. A lguns estudiosos acreditam , ten d o p o r base as evidências internas desta carta, que C lem en te deve ter co nhecido Paulo pessoalm ente e im itado o seu estilo e m ensagem . C lem en te escreveu aos cristãos de C o rin to tam bém por m uitas das razões por que Paulo lhes escreveu. Além de conclam á-los a perm anecer fortes e leais à fé diante da perseguição, o rd en ou-lhes que rejeitassem a divisão e a contenda, co m o u m só corpo de crentes em C risto. Segundo parece, a igreja estava tão cheia de discórdia
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com o em m eados do século i q uando Paulo interveio com as suas cartas. M as a solução de C lem en te para tais atitudes e ações de cism a foi m ais enfática do que a de Paulo. E n q u an to Paulo tinha dado ênfase para sua união n u m só Espírito e n u m só batism o m ediante a fé em C risto, C lem en te o rd e n o u que obedecessem ao bispo que D eus nom eara com o seu superior. Essa m esm a solução à dissensão e divisão den tro das igrejas aparece em o utros pais apostólicos com o Inácio. Ao que parece, havia irrom pido um a rebelião aberta contra a liderança nas co n gregações cristãs em C orinto. Está claro que, q uando C lem ente lhes escreveu de Rom a, havia m ais de um a congregação cristã e u m único líder havia em ergido sobre todas — um a espécie de “superpastor” a q uem se chamava “bispo”. Alguns cristãos mais jo v en s da cidade rejeitaram a autoridade do bispo e até m esm o tentaram depôlo. Inicialm ente, C lem en te fez u m apelo ao respeito e à honra: “R espeitem os os que nos lideram ; ho n rem o s os anciãos; instruam os os jovens com conhecim entos que ensinem o tem o r a D eu s”.2 P osteriorm ente, porém , repreendeu-lhes p o r desobedi ência ao bispo e aos dem ais líderes, cujo m inistério, disse ele, “fora honrado p o r eles de form a irrepreensível”.3 F inalm ente, C lem en te d efin iu u m princípio de lideran ça e discipulado cristão: “P ortanto, é ju s to que nós, ten d o estudado tantos exem plos grandiosos, baixem os a cabeça e, em atitude de obediência, su b m etam o -n o s aos q ue são líderes da nossa alm a para que, cessando essa dissensão fútil, atinjam os, livres de toda culpa, o verdadeiro alvo q u e é colocado diante de n ó s”.4 N ad a há que seja p articu larm en te novo o u digno de nota para a teologia cristã em 1Clemente. Boa parte da epístola reitera escritos apostólicos co m o as epístolas de Paulo no n t . C ertam e n te ela co n trib u iu , 110 en tan to , para um a m udança sutil e geral ru m o ao m o ralism o cristão, 110 cristianism o d o século 11, q u e associava o discipulado à total obediência aos líderes devidam ente nom eados e à prática de um a vida m o ralm en te correta. U m aspecto interessante dessa epístola é o estran h o apelo de C lem en te ao m ito da fênix para reforçar a crença na ressurreição. A parentem ente, alguns m em bros da igreja em C o rin to ainda não aceitavam p len am en te a crença na ressurreição corpórea — um a q u estão q u e Paulo tratou cm IC o rín tio s 15. C lem en te arg u m e n to u q ue a ressurreição da ave cham ada fênix era u m sinal da esperança c prom essa da ressurreição do co rp o.5 As palavras q u e usa nesse arg u m en to deixam claro que ele aceitava v erdadeiram ente o m ito da fênix e q u e achava q u e era u m sinal dado por D eus para indicar a ressurreição fu tu ra dos crentes. Se essa carta tivesse sido incluída 110 n t , o s cristãos m o d ern o s certam ente teriam ficado constrangidos com esse aspecto supersticioso. Por que C lem en te escreveu de m odo tão autoritário aos cristãos de C o rin to , se ele era apenas um bispo de R om a? Parece que to m o u consciência de u m a responsa bilidade e autoridade especiais talvez provenientes da idéia de sucessão apostólica.
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T in h a ouvido falar das divisões contínuas e até m esm o da rebelião aberta dos cris tãos em C o rin to . Q u e m m elh o r para o rd en ar q u e se aquietassem c obedecessem aos líderes d o q u e o bispo de R om a, o sucessor de P edro e Paulo q u e haviam m o rrid o com o m ártires naquela cidade poucas décadas antes? O s q ue p o sterio rm en te desenvolveram e defenderam a teoria da suprem acia do papa usariam a p resunção de C le m e n te co m o prova para sustentá-la. A epístola p ro p riam en te dita, no entanto, não indica n e n h u m a crença sem elhante p o r parte de C lem en te. Só p o rq u e este se sentia obrigado pelo dever a in terv ir p o rq u e se via, em certo sentido, co m o um sucessor de Paulo, não significa q u e ele, n em qu alq u er o u tro bispo cristão p rim itivo de R om a, acreditava na suprem acia sobre todos os cristãos cm todos os lugares.
O Didaquê O Didaquê, tam bém conhecido por O ensino dos doze apóstolos, é dificilm ente com pa rável à 1Clemente, apesar de ter sido escrito na m esm a época. O s estudiosos soube ram da existência desse d o cu m en to por alusões em escritos cristãos prim itivos m u i to antes de ser descoberto em 1873. N ada se sabe a respeito do autor, m as a m aioria dos estudiosos conclui com base nas evidências internas que foi escrito na form a de um a carta circular às igrejas cristãs na província rom ana da Síria (que incluía a Pales tina), perto da virada do século (101). Alguns estudiosos sugerem um a data m ais antiga que faria da obra o prim eiro escrito cristão até hoje existente além do n t . O Didaquê parece ter sido escrito com o intuito de reforçar a m oralidade cristã e instru ir os cristãos a respeito de com o tratar os profetas que os procurassem alegando falar cm nom e do Senhor. C o n tém , ainda, conselhos e instruções porm enorizados para a vida, espiritualidade e adoração diárias dos cristãos. O livro com eça com um a visão dualista dos “dois cam inhos” que os h om ens seguem : o cam inho da vida e o cam inho de m orte. O cam inho da vida é claram ente o cam inho do am o r a D eus e ao próxim o e da rigorosa observância às regras m orais. Boa parte das descrições dos dois m odos de viver é tirada dos escritos dos Evangelhos e do a t . Assim com o no caso de outros pais apostólicos, o Didaquê quase não m enciona a graça, a fé, o perdão, a ju s ti ficação ou q u alquer outra das notas distintivas das cartas de Paulo e de seu evangelho da salvação. O cam inho da salvação nele descrito ensina um estilo de vida de fideli dade e obediência aos m andam entos de D eus e aos m inistros cristãos. Especificam ente, o Didaquê adm oesta seus leitores cristãos a ser h um ildes, a aceitar co m o b o m tu d o o q u e acontece, “sabendo q u e nada transpira à parte de D eu s”, a apreciar e h o n ra r o q u e prega a Palavra de D eus “co m o se fosse o S e n h o r” e “a se m an ter rig orosam ente separados da carne sacrificada aos ídolos”.6 E in teres sante n otar a diferença en tre o ú ltim o conselho relativo à pureza m oral do a t e a aprovação condicional d o p ró p rio Paulo em IC o rín tio s no tocante a co m er a carne
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sacrificada aos ídolos. O Didaquê, assim co m o o u tro s pais apostólicos, coloca d ian te dos cristãos m ais u m a m oralidade rigorosa e um a visão u m tanto legalista do que u m evangelho da liberdade cristã sem a escravidão à lei. Incluídas 110 Didaquê, há instruções bastante porm enorizadas a respeito do ba tism o e da ceia do Senhor. U m a seção significativa desse d o c u m e n to relativam ente breve consiste em in struções interessantes e u m p o u co estranhas sobre co m o aco lher, testar e tratar au toproclam ados profetas de D eus. Eles devem ser bem recebi dos co n tan to que en sin em o q u e está 110 Didaquê. O s leitores certam en te devem ter ficado u m po u co confusos com os conselhos conflitantes. D e u m lado, dizia q u e os profetas não deviam ser testados ou avalia dos e, de o u tro , q u e sua co n d u ta devia ser analisada e julgada: N ão submetam à prova nem julguem a todo profeta que fala em espírito, porque todo pecado será perdoado, mas esse pecado não se perdoará. Aliás, nem todo o que fala em espírito é profeta, mas som ente o que tenha os m odos do Senhor. Assim, pelo procedim ento serão reconhecidos o falso e o verdadeiro profeta [... ] Todo que vier em nom e do Senhor seja recebido. Mas depois, exam inando-o, o conhecerão, porque vocês têm entendim ento do certo e do errado.7
U m dos sinais de falso profeta era q u e eles perm aneciam n o lugar p o r m ais do q u e dois o u três dias, pediam d in h eiro e refeições “no esp írito ”, o q u e provavel m en te significava exigir com ida em troca das profecias. Todavia, o Didaquê ordena q u e os cristãos dêem aos profetas os dízim os de seus ganhos, “pois são os sum os sacerdotes de vocês”! C o m base nesse p eq u en o livro, seria m u ito difícil d ed u z ir o m o d o co erente de testar e lidar com os autoproclam ados profetas cristãos. M ais ao fim do Didaquê, os leitores são exortados: “Escolham , então, para vocês m esm os bispos e diáconos dignos do S enhor, h o m en s m ansos e não am antes de d in h eiro , verdadeiros e aprovados, p o rq u e tam bém eles m in istram para vocês os serviços dos profetas e m estres”.8 A parentem ente, p o rtan to , esses profetas e m es tres carism áticos errantes eram u m tan to raros e talvez fossem considerados mais com o u m p roblem a d o que com o algo que m erecesse atenção. E m bora o au to r do Didaquê não quisesse rejeitar to talm en te o m in istério deles e quisesse até m esm o preservar a h o n ra e o respeito dos m elhores e n tre eles, tam b ém q ueria q u e os cristãos não se fiassem m u ito neles. Seu conselho era su b stitu í-lo s p o r m inistros mais p erm an en tes que supervisionassem a congregação.
Inácio de Antioquia E m bora o Didaquê esteja repleto de inform ações fascinantes e confusas sobre a vida das congregações cristãs na Síria p erto do fim do século 1 , pouca coisa oferece à guisa de teologia. M u ito m ais coerentes e teológicas são as cartas de u m terceiro pai
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apostólico, Inácio de Antioquia, que escreveu sete cartas às congregações cristãs e n q u an to estava a cam in h o da m o rte em R om a. Inácio foi bispo dos cristãos em A ntioquia, um a cidade m u ito im portante do Im pério R om ano na Síria, além de ser um a cidade im portantíssim a para os cristãos. Foi ali que receberam , pela prim eira vez, o n om e de cristãos e foi a partir dali que Paulo iniciou as prim eiras viagens missionárias. Inácio sofreu m artírio em Rom a cerca de 110 ou 115 e, portanto, quase certam ente conheceu alguns dos apóstolos ou ao m enos seus sucessores im ediatos. Foi extrem am ente reverenciado e respeitado pelos cristãos no início do século i! e talvez por isso as autoridades rom anas o tenham prendido e executado publicam ente. Inácio escreveu cartas aos cristãos em Efeso, M agnésia, Trália, R om a, Filadélfia e Esm irna. Escreveu, tam bém , um a carta a Policarpo que, poucas décadas depois, seguiria seus passos ao m artírio. E n q u an to viajava para R om a sob vigilância, Inácio ouviu falar de u m a conspiração de certos cristãos para livrá-lo. N a carta, instou que não o livrassem : “E u lhes im ploro: não m e ofereçam ‘bon d ad e fora de h o ra’. D eix em -m e ser alim en to para as feras, p o r in term éd io das quais poderei chegar a D eus. Sou trigo de D eus e estou para ser m oído pelos d en tes das feras, a fim de revelar ser pão p u ro ”.9 P ouco antes de escrever essas palavras, Inácio tam b ém es creveu q u e “o cristianism o é m ais grandioso q u an d o é odiado pelo m u n d o ”. E m b o ra alguns críticos ten h am acusado Inácio e o u tro s cristãos prim itivos de m asoquistas pelo desejo do m artírio, parece q u e ele m esm o considerava seu m ar tírio im in en te co m o u m do m e u m sinal. O u tro s cristãos tiveram atitudes sem e lhantes. C erca de cem anos depois, o teólogo cristão n o rte-afric an o T ertuliano escreveu que “o sangue dos m ártires é a sem ente [da igreja]”. Em outras palavras, qu an to m ais os ro m an o s perseguiam e m atavam os cristãos, m ais a igreja crescia. Inácio deve ter pensado da m esm a form a. Inácio tratou de todo tipo de questões em suas cartas e talvez seja ju sto dizer que elas contêm a prim eira teologia, propriam ente dita, d o cristianismo. As definições, explicações e interpretações nelas contidas vão m uito além do que se pode achar nos escritos dos próprios apóstolos. N ão há m otivo, no entanto, para pensar que Inácio acreditava estar no m esm o nível que os apóstolos originais, recebendo novas revela ções de D eus. Pelo contrário, acreditava que estava sim plesm ente interpretando e apli cando o cristianism o apostólico às necessidades dos leitores em situações específicas. Inácio enfatizava v ee m e n tem en te a obediência cristã aos bispos. Suas cartas freq ü en tem en te in sinuam esta o rdem : N ada façam sem o bispo e co n sid erem -n o com o o p ró p rio S enhor, pois “o bispo é nada m enos d o q u e o representante de D eus diante da congregação”.10 Aos cristãos em M agnésia, escreveu: “Assim com o o S en h o r nada fazia sem o Pai, seja pessoalm ente, seja p o r m eio dos apóstolos (pois estava u n id o a ele), tam bém vocês nada devem fazer sem o bispo e os presbíteros [anciãos]”.11 Aos efésios, escreveu: “E óbvio, p o rtan to , q u e devem os considerar o
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bispo com o o p ró p rio S e n h o r”.12 A lguns com entaristas vêem nessas declarações o início do q u e se ch am o u “episcopado m o n árq u ic o ”, a tendência n o cristianism o po sterio r de elevar o bispo (episkopos) a um a posição espiritual privilegiada de p o der e de autoridade. C ertam e n te o sen tim en to de Inácio a respeito dos bispos e um salto q u ân tico para além do q u e se pode achar nos escritos dos próprios apóstolos e, decerto, surgiu de u m a necessidade im in en te de m an ter a o rd em em um cristi anism o cada vez m ais diverso e desgovernado. Inácio tam bém co n d e n o u a cristologia doceta d o gnosticism o, sem en tra r em debate co ntra o gnosticism o com um todo. A firm ou m u ito enfaticam ente a verda deira divindade e h u m an id ad e de Jesu s C risto co m o D eus aparecendo em form a hum ana. Q u a n to à verdadeira hu m an id ad e física de Jesus, escreveu aos trálios: “M as se, co n fo rm e dizem alguns ateus (ou seja, incrédulos), ele sofreu apenas na aparência (ao passo q u e eles existem so m en te em aparência!), p o r q u e estou em cadeias? E p or que q u ero lutar com feras? Se este for o caso, estou para m o rre r sem m otivo; p io r d o q u e isso, estou co n tan d o m entiras a respeito do S e n h o r”.13 Ao afirm ar o so frim en to g en u ín o de Jesus, Inácio rep u d io u a cristologia dos gnósticos, especialm ente sua versão doceta. A lguns cristãos prim itivos, no en tan to , q u estio navam a genuína divindade de Jesu s C risto , sua igualdade com D eus. O c asio n alm en te, críticos das d o u trin a s o rtodoxas q u estio n am se a crença na verdadeira div in d ad e e h u m an id ad e de Jesu s existia e n tre os cristãos antes dos concílios e credos do século iv. Inácio põe fim a essa questão. E m b o ra afirm asse aos trálios a g en u ín a h u m an id ad e de Jesu s C risto , afirm o u in eq u iv o ca m e n te aos efésios a d iv in d ad e g en u ín a de Jesu s C risto q u a n d o escreveu q u e “D eu s apare ceu em fo rm a h u m an a a fim de traz er a novidade da vida e te rn a ”.14 Sem d efin ir em p o rm e n o re s técnicos o dogm a p len am e n te d esenvolvido da pessoa de C risto , Inácio claram en te o antevê com essas duas afirm ações em co n ju n to . N ã o deve restar m u ita dúvida de q u e os cristãos, im ed iatam en te depois da era apostólica, acreditavam em Jesu s C risto tan to co m o v erd ad eiro D eus q u a n to co m o v erd a d eiro h o m em . Finalm ente, Inácio parece ter inventado u m te rm o teologicam ente rico para a ceia do S enhor: a eucaristia 011 cerim ônia da co m u n h ão . Para ele, participar da refeição eucarística con stituía-se n u m aspecto im p o rtan te do processo da salvação. C o m o um a pessoa é salva e passa a viver para sem pre com Jesu s C risto? Ao “ro m per um só pão, que é 0 remédio da imortalidade”.15 Inácio claram ente concebia a Eucaristia (a refeição da c o m u n h ão ) co m o sacram ento, m eio de graça q u e tran s form a a pessoa q u e dela participa. Ele não elaborou um a teoria a respeito, m as queria en fatizar q u e, ao participar d o pão e d o v in h o da refeição d o S enhor, a pessoa ganha u m a participação 11 a im ortalidade divina q u e sobrepuja a m aldição da m o rte trazida pelo pecado. O s cristãos posteriores, tanto da tradição ortodoxa
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oriental q u a n to da católica rom ana, em pregavam a descrição q u e Inácio fez da E ucaristia co m o “rem éd io da im o rtalid ad e” para ju stific ar a crença na salvação co m o u m processo sacram ental de tlteosis — “d ivinização” o u “deificação”. M ed i ante os sacram entos, os cristãos grad u alm en te recebem participação lim itada da natureza divina e to rn am -se m ais d o q u e m eram en te h u m anos. Inácio, assim co m o o u tro s pais apostólicos, deixou u m legado útil e p e rtu rb ad o r com o qual o cristianism o teria de lidar. Para os cristãos q u e dão m u ito valor à hierarquia da liderança da igreja e têm u m conceito altam ente sacram ental da sal vação — a graça q u e transform a pessoas m ediante os ritos sacram entais — , Inácio é u m herói e u m a com provação de que essa interpretação da igreja e d o evangelho é antiga e autêntica. O s protestantes com u m a visão m enos m o nárquica da igreja, que dão valor ao governo eclesiástico sim ples e congregacional e q u e consideram o batism o e a ceia d o S en h o r co m o “rituais” m ais do q u e sacram entos, não se e n tu siasm am com o legado de Inácio. N o en tan to , todos os cristãos devem concordar qu e Inácio legou com autoridade u m a cristologia da encarnação q u e afirm ava J e sus C risto co m o verd adeiram ente D eus e verdadeiram ente h u m a n o e q u e, com isso, ajudou a preparar o cam in h o para a plena afirm ação do dogm a da Trindade. Ele co n trib u iu tam b ém para a união dos cristãos e para a luta contra as heresias, especialm ente o gnosticism o, e m o rre u com coragem pela causa de C risto.
Policarpo Inácio escreveu às igrejas a m aioria das suas cartas, m as um a foi dirigida ao seu colega m ais jo v em , Policarpo de E sm irna. A conselhou a Policarpo: “Se você am ar bo n s discípulos, não é crédito para você; pelo contrário, com m ansidão, leve os m ais problem áticos à subm issão”.16 Policarpo m o rre u de m o d o sem elhante a Inácio, na cidade de E sm irna, p o r volta de 155. O casionalm ente, o d o c u m e n to conhecido p o r Martírio de Policarpo — u m a descrição de sua m o rte escrita com detalhes aterra dores p o r um a testem u n h a ocular — aparece en tre os pais apostólicos. Além da sua possível influência sobre o crescente “culto aos m ártires” pelos cristãos (isto é, a tendência de ven erar os m ártires co m o “santos”), esse d o c u m e n to não tem rele vância teológica. O p ró p rio Policarpo, no en tan to , escreveu pelo m en o s um a carta — aos cristãos em Filipos. E conhecida p o r Carta de Policarpo aosftlipenses e é usual m en te incluída en tre os pais apostólicos. N o en tan to , tam b ém lhe falta sofisticação teológica ou relevância para a história da teologia.
A Epístola de Bãrnabé A Epístola de Barnabé foi provavelm ente escrita em A lexandria, n o Egito, e n tre os anos 70 e 135. A ú ltim a data é m ais provável do q u e a prim eira. N ada se sabe de seu au to r a não ser q u e provavelm ente conhecia u m o u m ais apóstolos com o Apoio
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(que é m en cio n ad o n o livro de Atos dos A póstolos n o n t ) na sua ju v e n tu d e . N ã o se sabe p o r que decidiu apresentar sua epístola com o se fosse escrita pelo apóstolo Barnabé. A epístola co n tém interpretações alegóricas de textos do a t e procura dem o n strar q u e a igreja cristã substitui os h ebreus co m o povo de D eus. Antes q u e a Epístola de Barnabé fosse escrita, estudiosos ju d e u s de A lexandria, no Egito, já tin h am in terp retado alegoricam ente a Bíblia hebraica. Filo de A lexandria foi co n tem p o rân eo de Jesu s e provavelm ente o estudioso bíblico e teólogo ju d aico m ais in flu en te da diáspora ju d aica antiga. P ro cu ro u d e m o n strar a h arm onia entre os ensinos de M oisés (com o a t em geral) e a filosofia grega, especialm ente a de Platão e de seus seguidores. O s cristãos de A lexandria c arredores foram p ro fu n d a m en te influenciados pelo m éto d o não-literal q u e Filo em p reg o u ao in terp retar o a t . A Epístola de Barnabé é u m exem plo notável disso. Barnabé diz que q u an d o M oisés proibiu a ingestão da carne de porco, queria na realidade dizer: “Vocês não devem associar-se [...] com h o m en s q u e são sem elhantes a p orcos”.17 H o je em dia som os tentados a ridicularizar sem elhantes interpretações alegóri cas achando-as côm icas, m as os leitores m o d ern o s devem saber q u e eram extre m am en te co m u n s no m u n d o antigo, especialm ente em culturas p ro fu n d am en te influenciadas pela filosofia grega. Em geral, os cristãos prim itivos não rejeitavam o significado literal ou h istórico das Escrituras, m as freq ü en tem en te buscavam nelas duas ou três categorias de significado. O “significado esp iritu al”, que dificilm ente os leitores m o d ern o s e n te n d e m da m esm a form a que se enten d ia naquela época, era considerado m ais v erdadeiro e p ro fu n d o q u e o significado literal, histórico ou ético. A Epístola de Barnabé é só u m exem plo desse m éto d o de h erm en êu tica b íbli ca. O s estudiosos e teólogos cristãos posteriores em A lexandria basearam -se espe cialm ente nela e a levaram adiante. Assim co m o o u tro s pais apostólicos, a Epístola de Barnabé retrata o cam in h o da salvação basicam ente em term o s m oralistas. Sem negar a salvação pela graça com o dádiva im erecida, Barnabé enfatiza um a vida legalista cheia de “c e rto ” e “e rrad o ” com o parte das regras para se receber a salvação final: “É bom , portan to , depois de ap ren d er todos os m an d am en to s do S en h o r q u e estão escritos aqui, andar neles. Pois o q u e faz essas coisas será glorificado no reino de D eus; o q u e o p tar pelas coisas inversas perecerá ju n ta m e n te com as suas obras. E p o r isso q u e há um a ressurreição, é p o r isso que há um a reco m p en sa”.18
O pastor de Hermas O ú ltim o pai apostólico a ser co n sid erad o aqui é u m d o c u m e n to cham ado O pastor de Hertnas, cujo au to r pode ter sido irm ão de Pio, o bispo de R om a p o r volta de 140 a 145. Hermas é especialm ente im p o rtan te em nossa h istória p o rq u e , de todos os escritos cristãos q u e estiveram a p o n to de e n tra r para o n t m as não
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en traram , en q u a n to o cânon das E scrituras estava sendo d eterm in ad o , este foi o q u e m ais se aproxim ou. Várias propostas d o século n c m su g eriram -n o com u m dos livros inspirados ou com o parte integrante de u m g rupo secundário de livros a ser usados com o leitura cristã inspiradora. O grande pai da igreja, Iren eu de Lião, aceitou Hertnas co m o Escritura, assim co m o os pais do século m, C le m e n te de Alexandria e O rígenes. Até m esm o o grande Atanásio 110 século iv aceito u -o de início, em b o ra m ais tarde o ten h a excluído da lista na sua carta de Páscoa em 367. S em d ú v id a, O pastor de Hcrmas e x e rc e u m u ita in flu ê n c ia so b re os cristão s subapostólicos em várias partes do Im p ério R om ano, po rém , é praticam ente des con h ecido pela m aioria dos cristãos atualm ente. Hertnas co n tém um a série de visões e suas explicações são dadas p o r u m anjo ao próprio H erm as. M uitas das interpretações são em form a de parábola e são en tre m eadas com m andam entos, instruções e obrigações do viver cristão. C o n fo rm e diz certo com entarista m o derno, Hermas é “u m dos docum entos m ais enigm áticos que sobreviveu ao período pós-apostólico [...] [M as] consta com o testem unha im por tante do estado do cristianism o em R om a em m eados do século n”.|( ׳O anjo que aparece com o um pastor faz m uitas revelações a I Ierm es em linguagem figurada com o o sim bolism o apocalíptico do livro do Apocalipse 110 n t . Boa parte dessa lin guagem é difícil, o u até m esm o impossível, de ser entendida hoje. O significado geral parece ser um a advertência e preparação para a perseguição e conflito im inentes entre os cristãos e as forças das trevas. O q u e atrai a atenção do leitor, po rém , são as exortações e instruções q u e Hertnas dirige aos cristãos e às igrejas cristãs. Assim co m o em o u tro s pais apostólicos, o tom é m oralista, senão legalista. S em negar e n em ignorar co m p letam en te os tem as do gracioso perdão divino, Hermas parece m ais preo cupado em advertir os cristãos a respeito do pecado presunçoso. Aliás, o livro adverte q u e a pessoa será perdoada um a só vez depois do batism o.20 A m ensagem de Hermas é q u e a m isericórdia de D eus é bastante lim itada. D eus perdoará, m as não in term inavelm ente. A lém disso, o perdão está condicionado ao respeito aos m an d am en to s de D eus. O Pastor diz a M erm as que “haverá perdão para seus pecados an teriores se você guardar os m eu s m an d am en to s; na verdade, haverá perdão para todos, se guardarem os m eus m an d am en to s e andarem nessa *1 91 pureza . A crença de q u e podia haver u m só perdão pelos pecados após o batism o c o n tri bu iu para o co stu m e cada vez m aior en tre os convertidos cristãos de esperar para ser batizado apenas q u an d o a m o rte estivesse próxim a. N a tu ralm en te, isso nunca se to rn o u prática universal, nem era encorajado pelos líderes eclesiásticos, m as é fácil e n ten d e r co m o alguns convertidos cristãos “m ais fracos” desejariam adiar o p ró p rio batism o p o r tanto tem p o q u an to possível.
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Hermas tam bém apresenta regulam entos e exortações a respeito d o casam ento e do divórcio, das riquezas e do din h eiro , da cidadania e d o teste para profetas, bem com o m uitas outras questões urgentes para os cristãos no Im pério R om ano. O livro proíbe rigorosam ente u m novo casam ento depois do divórcio p o r q u alq u er m otivo que seja e sugere v eem en tem en te q u e o m elh o r para os cristãos, casados ou não, é abster-se totalm ente d o sexo. Ao todo, Hermas aponta para u m m o d o de vida rigoro so, p u ritano, q ue quase chega ao asceticism o. O evangelho que proclam a é quase irreconhecível com o cristão, pois ressalta que o cam inho da salvação é de luta, m edo e abnegação. O grande prestígio desse livro provavelm ente co n trib u iu para o ideal cada vez m ais m oralista e ascético para o cristão q u e vivia nos séculos iu e IV. A declaração m ais nítida e sucinta da versão do evangelho em Hermas aparece logo no início, q u an d o o Pastor (anjo) aparece pela prim eira vez a H erm as e lhe ordena q u e escreva: Em prim eiro lugar, creia que D eu s c um só, que criou todas as coisas e as colocou ein ordem , c fez daquilo que não existe tudo quanto existe, e que contém todas as coisas, mas som en te ele não está contido. Creia nele, portan to, e tem a-o e, tem en d o-o, m antenha o d om ín io próprio. O bserve essas co i sas e manterá longe de si o mal, e se revestirá de todas as virtudes da justiça e viverá para D eus, se guardar este m andam ento.22
Esse apanhado do evangelho não so m en te serve a Hermas, m as tam b ém resum e m u ito bem o sen tim en to geral dos pais apostólicos. E m bora todos m en cio n em a m isericórdia de D eus em resposta ao verdadeiro a rrep e n d im en to e ocasionalm en te expressem a necessidade da graça de D eus m ediante a cruz de C risto , parecem m ais preocupados com a prom oção da v irtude e obediência cristãs instilando o m edo do castigo pelo fracasso m oral. Eles tam b ém ressaltam ;1 a e n ç a certa a res peito de D eus, da criação, de C risto , da igreja e de outras questões. U m a ú ltim a consideração 110 tocante à relevância de Hermas refere-se à sua cristologia im plícita. D u ra n te o século 11, a igreja estava apenas com eçando a se esforçar para e n te n d e r co rretam en te a natureza e a pessoa de Jesu s C risto. E m bora todos os pais apostólicos q u e tocassem 110 assunto rejeitassem o docetism o e o d ualism o gnóstico, divergiam en tre si sobre com o expressar o relacionam ento e n tre a divindade e a h u m an id ad e de Jesu s C risto. Hermas parece acreditar q u e Jesus era a encarnação do E spírito Santo — teoria que é conhecida na história da teologia por “cristologia do E spírito”. S egundo os padrões d o u trin ário s posteriores, isso seria considerado heresia e talvez essa fosse um a das razões pelas quais Atanásio finalm ente rejeitou O pastor de Hermas do cânon en q u a n to orientava a igreja para solucionar essa q uestão polêm ica. Hermas explica q u e Jesus C risto é D eus na carne porque
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D eus fez com que o Espírito Santo preexistente, que criou a totalidade da criação, habitasse na cartie por ele determinada. Assim , essa carne na qual habitou o Espírito serviu -lhe bem , vivend o cm santidade e pureza, sem profaná-lo de m odo algum. Visto, portanto, que [a carne/hum anidade de C risto] vivera com honra c castidade e cooperara com o Espírito, em tudo atuando em seu favor, com portando-se com força c coragem, escolheu-a com o uma aliada do Espírito Santo, pois a conduta dessa carne agradou ao Senhor.23
O bviam ente, falta um a com preensão integral da Trindade e especialm ente do conceito da segunda pessoa da Trindade, o Filho ou Verbo (Logos), que se encarnou com o Jesus C risto assum indo a natureza hum ana. M as esperar que a doutrina (ou dogm a) posterior, das duas naturezas na única pessoa de C risto o u da Trindade fosse descrita ou m esm o entendida é esperar dem ais de um pai da igreja n o século li. M esm o assim, essa cristologia im plícita do Espírito parece confusa e, sem dúvida, contribuiu para retardar a plena concordância c a definição da ortodoxia no tocante à pessoa de C risto e à Trindade.
A relevância dos pais apostólicos Até aqui alguns leitores po d em estar em dúvida q u an to à razão de esses pais apos tólicos, ou pelo m enos de alguns deles, estar incluídos na história da teologia cristã com o heróis da ortodoxia. Por q u e não considerá-los hereges? C ertam e n te , c o m paradas ao evangelho da graça, suas m ensagens parecem ex trem am en te m oralistas, preocupadas com a co n d u ta em vez da m isericórdia e salvação co m o um esforço e não um a dádiva. M as é im p o rtan te lem brar que eles estavam ten tan d o refrear o crescente an tin o m ism o (rejeição da lei e dos m andam entos) q u e se propagava en tre os cristãos. A atitu d e q u e os perm eia brota da m esm a solicitude revelada na epístola de Tiago n o n t : “A fé sem obras está m o rta”. E ntretan to , o an tíd o to que prescrevem para o v en en o do an tin o m ism o parece tão ruim , o u até m esm o pior, q ue o p ró p rio veneno. Seria um erro desprezar os pais apostólicos ou rejeitá-los co m o ind iretam en te hereges apenas p o rq u e não en ten d iam de form a plena, n em com unicavam da for ma correta, os dogm as da igreja q u e só foram burilados m u ito m ais tarde. Eles m erecem confiança pela resistência ao gnosticism o e a outras perversões da fé a despeito das próprias falhas em m uitas questões. O papel dos pais apostólicos na história da teologia cristã é am bíguo. Especial m en te am bivalente será a atitude dos cristãos protestantes para com seu papel e contribuição. Por u m lado, os pais apostólicos fo rneceram um a p onte e n tre os apóstolos e o cristianism o católico o rtodoxo e ajudaram a preservar e a estabelecer um a igreja relativam ente unificada e teologicam ente sadia. Por o u tro lado, em m e
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n o r ou m aior grau, falharam em tran sm itir em suas tradições o evangelho p u ro da salvação com o um a dádiva q u e não vem das obras m as un icam en te da graça. Paulo escreveu aos filipenses: “P onham em ação a salvação de vocês com te m o r e trem or, pois é D eus que efetua em vocês tanto o q u e re r q u an to o realizar, de acordo com a boa vontade dele” (2.12-13). O s pais apostólicos enfatizavam a prim eira parte da m ensagem e m ais freq ü en tem en te negligenciavam a segunda. A proxim adam ente no m esm o período em que m u ito s dos pais apostólicos esta vam escrevendo para in stru ir os cristãos na crença e co n d u ta certas, o u tro g rupo de cristãos no Im p ério R om ano escrevia cartas aos críticos pagãos e às autoridades rom anas para d efen d er a integridade do cristianism o co n tra m al-en ten d id o s e p er seguições. Esses escritores são conhecidos p o r apologistas e o papel deles na histó ria da teologia cristã vem a seguir.
3 Os apologistas defendem a fé
-A. história da teologia cristã é p ro fu n d am en te influenciada pela filosofia —
espe cialm ente pela filosofia grega (helenística). Esse fato é um a surpresa e, freq ü en tem en te, um ch o q u e para os cristãos q u e su p õ em q u e o cristianism o e a filosofia se opõem . Essa suposição não é em nada in co m u m e, na verdade, pode ser e n c o n tra da bem n o início da história da teologia cristã. U m dos m ais in flu en tes pais da igreja, T ertuliano, ficou chocado ao constatar até q u e p o n to alguns dos seus c o n tem porâneos usavam as filosofias gregas co m o o platonism o e o estoicism o para explicar idéias cristãs às audiências pagãs. C o n fo rm e já foi citado, T ertuliano per g u n to u , com indignação retórica: “O q u e Atenas tem realm ente q u e ver com J e r u salém ? Q u e concordância existe en tre a A cadem ia [Platônica] e a Igreja? E entre hereges e cristãos?”.1 U m a fenda q u e divide toda a teologia cristã desde o início é a que existe en tre os pensadores cristãos q u e q u erem en fren tar seus críticos n o p ró prio terren o deles e d ebater a fé de form a coeren te e m esm o filosófica e os q u e consideram esse esforço u m a acom odação perigosa aos inim igos da fé. T ertuliano representa essa ú ltim a abordagem . O s apologistas eram escritores cristãos d o século a que procuravam d efen d er o cristianism o co n tra o p o n en tes pagãos co m o C elso. E m bora poucos, co m o T ertu liano, rejeitassem a abordagem filosófica, a m aioria deles te n to u d e m o n strar sem e lhanças en tre a m ensagem e cosm ovisão cristãs e o q u e havia de m e lh o r na filosofia grega. A lguns chegavam até a considerar o cristianism o a “verdadeira filosofia” e tentavam d em o n strar sua superioridade, com o filosofia, ao p en sam en to helenístico. N a tu ralm en te, para tanto, tin h am de co m parar e contrastar os dois de u m a form a q u e deixava su b en ten d id a a sua m ensurabilidade. O u seja, não podiam ser tão d i feren tes q u a n to T ertu lian o pensava. E m b o ra essa idéia fosse escandalosa para T ertuliano e para o u tro s pensadores cristãos prim itivos, foi am p lam en te aceita em partes d o cristianism o, especialm ente Alexandria e R om a, os dois centros culturais m ais im portantes d o Im p ério R om ano.
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O e m p re en d im en to dos apologistas de exam inar e d efen d er o cristianism o à luz da filosofia grega não era in teiram en te novo. U m século antes, ou m ais, o estudioso ju d e u Filo u n ir o ju d a ísm o e a filosofia grega em A lexandria, n o Egito. Sua grande influencia tanto sobre ju d e u s q u an to sobre gentios provavelm ente ex plica p o r q u e os cristãos em A lexandria nos séculos n e ui foram m ais receptivos a essa tentativa de explicar filo so ficam en te a B íblia e as crenças cristãs. A lguns apologistas seguiram o exem plo da avaliação positiva q u e Filo fez dos filósofos gregos. Filo, p o r exem plo, en sin o u que a filosofia de Platão e os en sin am en to s de M oisés baseavam -se na revelação divina e que, n o âm ago, eram sem elhantes 011 idênticos. Para fazer esse sistem a funcionar, foi levado a in terp re tar de m o d o ale górico as Escrituras hebraicas. C o m esse m étodo, conseguiu co m b in ar os pensa m en to s grego e hebraico a respeito de D eus, da criação e da hum anidade. A abor dagem de Filo ao p en sam en to ju d a ic o já era am p lam en te aceita (porém não sem controvérsia) en tre os ju d e u s da diáspora. O s apologistas cristãos do século 11 usa ram esse alicerce para d em o n strar um a consistência sem elhante en tre o m elh o r do p en sam en to helenístico e suas versões bastante sofisticadas da m ensagem cristã. N a tu ralm en te, os apologistas tam bém podiam citar Paulo co m o p recu rso r e m odelo. Atos 17 relata a história do en c o n tro de Paulo com filósofos gregos em Atenas, n o qual ele cita alguns poetas deles na tentativa de e n c o n trar u m p o n to de apoio para a sua m ensagem de q u e eles cressem em u m “D eus d esc o n h ecid o ”. A tentativa de Paulo em Atenas talvez seja um su p o rte m u ito fraco para o que alguns dos apologistas cristãos d o século 11 tentaram fazer, m as pelo m enos o diálogo entre u m apóstolo e os pensadores gregos no qual ele cita as autoridades destes, em p res tou certa credibilidade ao q u e os apologistas estavam ten tan d o fazer.
A filosofia grega A ntes de co n siderar q u em eram os apologistas e com o co n trib u íram para a história da teologia cristã, é bo m analisar resu m id am en te os principais c o n to rn o s da filoso fia grega que m u ito s deles enxergavam co m o um a aliada da teologia cristã. Q u a n d o os defensores da fé cristã do século 11 olharam ao seu red o r 110 Im pério R o m ano e tentaram d escobrir form as de pen sam en to q u e os ajudassem a se c o m u nicar com pagãos atenciosos e sérios co m o o im perador ro m an o M arco A urélio, viram todo tipo de possibilidade q u e sim plesm ente tinha de ser rejeitada. Por exem plo, o im pério estava eivado de religiões de m istério — cultos de iniciação cheios de m itos elaborados sobre deuses q u e m o rriam e renasciam , e cam inhos para a im ortalidade m ediante cerim ônias secretas de iniciação q u e envolviam coisas do tipo batism os com sangue de um to u ro abatido. H avia, ainda, filosofias so b ren atu rais de vários m ágicos co m o A polônio de Tiana e Pitágoras, cujos seguidores se reuniam secretam ente para por em prática seus poderes paranorm ais e estu d ar os
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significados esotéricos dos n ú m e ro s e corpos celestes. Existiam , tam b ém , diversas cerim ônias e m itos de tem plos sobre panteões gregos e rom anos de deuses e d e u sas do O lim p o co m o Z eu s, A poio e D iana. O s apologistas cristãos do século li decidiram , então, d efen d er a veracidade do cristianism o com base nas filosofias d o platonism o e do estoicism o, ou n u m a m is tura das duas, q ue eram n o rm alm en te aceitas co m o superiores às m encionadas. C elso, p o r exem plo, sim plesm ente adm itia q u e todas as pessoas cultas, corretas e realm ente sérias do im pério en ten d iam e acreditavam na “verdadeira d o u trin a ”, que en tendia co m o um a filosofia híbrida q u e com binava elem en to s do platonism o, estoicism o e epicurism o. E m bora os apologistas ten h am dado p o u co valor ao in g red ien te ep icu reu da receita, en c o n trara m m uitas sem elhanças e n tre a vida e cosm ovisão cristãs e a m istura genérica de platonism o e estoicism o q u e criou a filosofia grega co m u m de boa parte d o Im p ério R om ano no século n.2 A filosofia grega rejeitava o politeísm o das religiões populares, bem com o os m i tos e cerim ônias de iniciação das religiões de m istério. N ão se q u er dizer com isso que todos os cidadãos rom anos cultos e sérios que acreditavam na filosofia grega evitassem totalm ente o envolvim ento com os rituais dos tem plos e as iniciações da religião pagã. Tendiam , 110 entanto, a dem itizá-los e a considerar essas seitas com o organizações fraternais para a diversão e confraternização (ou para satisfação sensu al). Assim com o C elso, a m aioria das pessoas cultas e sérias do im pério considerava que a “verdadeira d o u trin a” incluía a crença nu m a única divindade cuja identidade exata está além do en ten d im en to hum ano, m as que form ou o universo e reina sobre ele com o um a espécie de déspota benevolente e ju sto . O s que tendiam m ais para o estoicism o do que o platonism o costum avam identificar o divino com a natureza e com a ordem natural das coisas. Seja com o for, a filosofia grega era, até certo ponto, m onoteísta, e não politeísta, e defendia v eem entem ente a natureza espiritual supre m a da realidade por trás das coisas visíveis. Afirmava, tam bém , a im ortalidade da alm a e a im portância de se ter lim a “vida virtuosa” e ética que busque o equilíbrio entre os extrem os e evite a pura sensualidade e o egocentrism o. O deus da filosofia grega era considerado a arché, o u fonte e origem últim a, de todas as coisas, em b o ra não tenha criado o universo ex niliilo (do nada). Pelo c o n trário, era considerado a fonte da qual fluem todas as coisas d o universo pela em a nação, co m o os raios solares, e com o a origem da o rd em e do desígnio de tudo. D eus é substância pura, co m p letam en te livre do corpo, m em b ro s ou paixões, é im utável e eterno. Ele é tu d o q u an to a criação finita não é: o ep íto m e da perfeição m etafísica e m oral, intocada pela finitude, lim itação, dependência, em oção, paixão, m udança o u decadência. Fica evidente a influência q u e tal teologia filosófica teve sobre Filo 110 ju d a ísm o do século i. Ele e o u tro s “filósofos ju d aico s [do m u n d o helenístico] estavam m u ito
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desejosos de explicar as idéias do A ntigo T estam ento em relação aos níveis m ais altos da teologia grega, notavelm ente o platonism o m é d io ”.3 Filo enxergava m uitas sem elhanças en tre o deus da filosofia grega, q u e era u m só, m etafísica e m oral m en te perfeito, criador e ju iz de todas as alm as e o Iavé da tradição hebraica, que era o criador, legislador c ju iz de todos. M oisés e Platão se encaixam bem na versão que Filo ofereceu d o platonism o m édio ju d aico . Esse foi o precedente ju d a ic o para a tarefa dos apologistas cristãos de tran sm itir as idéias cristãs aos rom anos cultos e pensadores. Estavam sim plesm ente se apoiando em Filo e criando um a supra-estru tu ra helenístico-cristã sobre sua base helenístico-judaica.
A classificação dos apologistas Q u e m eram esses apologistas cristãos e co m o exatam ente co n trib u íram para a his tória do p en sam en to cristão? Q u al foi o valor dessa contribuição? Assim com o 110 caso dos pais apostólicos, não há concordância universal a res peito do g ru p o dos apologistas. A própria classificação é, n atu ralm en te, u m a in venção po sterio r dos historiadores e teólogos da igreja. As listas de apologistas va riam e boa parte da diversidade surge das tentativas de in clu ir ou excluir o au to r da obra an ô n im a Epístola a Diogneto, bem com o O ríg en es e Tertuliano. Esses ú ltim o s viveram e trabalharam n o século 11 ! e de m uitas m aneiras desta cam -se do dem ais apologistas por apresentar abordagens e co n tribuições teológi cas m ais b em desenvolvidas e sofisticadas. P or terem escrito teologias cristãs es sencialm ente especulativas e originais (especialm ente O rígenes) e obras an ti-h e ré ticas (especialm ente T ertuliano) e p o r causa das suas p ro duções literárias m aciças, são fre q ü e n te m e n te classificados m ais co m o “m estres da igreja” d o q u e com o apologistas. E n tretan to , os dois realm ente escreveram apologias (defesas da fé cris tã). O ríg en es e T ertuliano receberão tratam en to diferenciado dos apologistas no presente relato da história da teologia cristã, a despeito de serem n o rm alm en te classificados nessa categoria. A Epístola a Diogneto é geralm ente alistada com os pais apostólicos. Pelo fato de o au to r ser co m p letam en te desconhecido e o p ropósito e co n teú d o serem clara m en te apologéticos, aqui será incluída com os apologistas, em b o ra sua natureza não seja m u ito filosófica. O s apologistas eram escritores cristãos d o século 11 que procuravam influenciar im peradores m ais preocupados com a condição h u m ana, com o M arco A urélio e A ntonino, o Piedoso (Pio), para levarem o cristianism o a sério, senão aceitarem -no co m o verdade. A m aioria deles escreveu cartas abertas a esses e a o u tro s im perado res, nas quais procuravam explicar a verdade a respeito da crença e co m p o rtam en to cristãos, freq ü en tem en te de m aneira filosófica. O historiador eclesiástico R obert G ra n t explica b em o p ropósito c as co ntribuições deles: “Esses escritores eram
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co n tem p orân eo s dos gnósticos [e dos pais apostólicos], m as seguiram um cam inho bem diferente. Em lugar do espiritualism o esotérico, os apologistas em pregavam com confiança a razão filosófica e, em b o ra atacassem os filósofos, em pregavam a m esm a linguagem deles sem pre que podiam . Assim, criaram o m éto d o básico da teologia cristã tradicional”.4 A afirm ação de G ran t sobre o “m éto d o básico” da teolo gia cristã tradicional talvez seja controversa. C ertam en te, ela é inteiram ente tão filo sófica com o m u ito s dos escritos dos apologistas. N o decurso da história da teologia cristã, o em prego da filosofia tem sido calorosam ente debatido e m u ito s culpam os apologistas de irem longe dem ais ao p erm itirem que idéias gregas m oldem seu m odo de pensar a respeito de D eus. M as G ra n t tem razão ao dizer q u e “os principais apologistas, bem ou m al, deram ao cristianism o um a teologia associada à filosofia”.5 Além da Epístola a Diogneto, os apologistas cristãos d o século 11 foram : A ristides, Ju s tin o M ártir, M elitão de Sardes, A tenágoras de A tenas, Taciano e Teófilo de A ntioquia. E m b o ra sejam freq ü en tem en te desconhecidas as datas exatas de nasci m en to e m o rte e o u tro s p o rm en o res de suas vidas, é bem provável q u e todos te nham vivido 110 século 11 e d en tro das fronteiras do Im p ério R om ano. A lguns fo ram bispos e o u tro s, leigos. A lguns m o rre ram co m o m ártires e o u tro s não se sabe com o m o rreram . Todos, in dividualm ente e ju n to s , m oldaram a história do cristia n ism o so b retu d o ao im p ed irem q u e a forte crítica não relegasse o cristianism o a um a existência m arginal, a ser apenas m ais um a religião de m istério. Eles c o n tri buíram para tran sfo rm ar o p en sam ento cristão em um a teologia p ro p riam en te dita: um a análise e apologia racional e coerente da m ensagem cristã. D en tre os apologistas, três destacam -se co m o os principais personagens da his tória da teologia cristã em v irtu d e da natureza altam ente elaborada de seu pensa m en to em relação a D eus e da influência que exerceram sobre pensadores cristãos posteriores co m o Iren eu , O rígenes e até m esm o Atanásio. São eles: J u s tin o M ártir, Atenágoras e Teófilo.
Justino Mártir Sem dúvida algum a, Ju stin o M ártir m erece a reputação de “o apologista m ais im portante do século 11” 6 p o r causa das idéias criativas a respeito de C risto co m o Logos cósm ico e de o cristianism o ser a filosofia verdadeira. M u ito s pensadores cristãos posteriores sim p lesm en te aceitaram a veracidade das sugestões e arg u m en to s de Ju stin o nessas áreas e os aproveitaram para desenvolver as próprias teologias. Ju stin o nasceu em um a fam ília grega na Palestina na prim eira m etade do século 11. M u ito pouco se sabe a respeito da sua vida pré-cristã, a não ser q u e se to rn o u filósofo da escola platônica e m ais tarde deixou-a para seguir o cristianism o, após ter conversa d o com u m m isterioso h o m em idoso. A tradição (registrada em E usébio) diz que Ju stin o c o n tin u o u a usar sua toga o u túnica filosófica depois de converter-se ao
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cristianism o — sem dúvida, m otivo de alguns com entários e controvérsias en tre os cristãos de R om a q u an d o Ju stin o chegou ali e co m eço u a ensinar o cristianism o por volta de 150. Fica claro ao ler os escritos de Ju s tin o q u e ele se considerava u m filósofo cristão — u m filósofo de C risto — assim co m o fora u m filósofo de Platão. E evidente, tam bém , q u e considerava os dois com patíveis em m u ito s aspectos. Referia-se a Sócrates, m estre de Platão, com o u m “cristão antes de C risto ”. Pode ter sido co ntra Ju stin o que T ertuliano c u n h o u sua fam osa pergunta retórica: “O q u e Atenas tem q u e ver com Jeru salém ?”. A lguns dos escritos de Ju stin o foram perdidos, m as três obras apologéticas bas tante breves, em b o ra p rofundas, subsistiram . A Primeira apologia deJustino (Apologia /) foi provavelm ente escrita em 155 na ocasião do m artírio de Policarpo. E dirigida, com linguagem co n tu n d en te e corajosa, ao im perador A n to n in o Pio, conclam andoo a um tratam en to m ais ju s to dos cristãos. J u s tin o desm ascarou a injusta prática iníqua de perseguir cristãos m eram en te p o r causa da afiliação religiosa à parte de qu alquer exam e do com portam ento. C ontradisse os boatos que então corriam contra os cristãos, arg u m en tan d o q u e são b ons cidadãos, em b o ra ocasionalm ente achem necessário praticar a desobediência cívica, que adoram a D eus com discrição. Ju stin o con clam o u o im p erad o r a revogar os decretos de perseguição co n tra os cristãos, ainda que, escreveu: “A creditam os que n e n h u m m al poderá nos ser feito, a m enos que sejam os sentenciados co m o m alfeitores o u co m p ro v ad am en te iníquos; e tu podes até nos m atar, m as não nos ferir”.7 C o n tid as em suas petições p o r ju stiça, havia exposições das crenças cristãs e defesas. Ele argum entava q u e Platão — quase certam en te o filósofo predileto do im p erad o r — devia agradecer a M oisés! Explicava a adoração cristã, os sacram en tos e p o r q u e os cristãos rejeitam os ídolos. N o fim da Primeira apologia, Ju stin o corajosam ente dirigiu-se ao im perador: “Se essas coisas lhe parecerem razoáveis e verdadeiras, honre-as; m as se parecem in sensatez, despreze-as co m o tal e não decrete a m o rte dos q u e n e n h u m mal fize ram , co n fo rm e faria co ntra os seus inim igos. N ós, pois, advertim os de q u e não escapará ao ju íz o divino v in d o u ro , se co n tin u ares com essa injustiça; e nós m es m os o convidam os a fazer o que é agradável a D e u s”.8 Por m otivos desconhecidos, o p ró p rio Ju stin o foi executado em R om a pelas autoridades rom anas em 162. S u a s Apologias revelam alguns indícios de que previa tal destin o para si — pelo m enos, com o possibilidade m u ito real. E discutível se os im peradores realm en te liam suas cartas abertas, m as é quase certeza q u e foram lidas p o r alguns oficiais rom anos. E m b o ra a ousadia dogm ática possa ter c o n trib u ído para sua m o rte, é bem provável q u e as Apologias te n h a m dado aos cristãos m ais coragem para c o n tin u ar pressionando as autoridades rom anas, q u e se considera vam razoáveis e ju stas, p ed in d o justiça.
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A Segunda apologia (Apologia //) de Ju stin o foi dirigida ao senado rom ano por volta de 16(). Seu tom m ostra u m certo desespero q uando Ju stin o cita exem plos do trata m en to injusto e irracional dispensado aos cristãos pelo im perador e p o r o utros ofici ais rom anos. N ela, o apologista usou toda a sua retórica e arg u m en to u q u e o trata m ento dos cristãos pelos rom anos era fruto da ignorância e do preconceito e que era apenas por am or aos cristãos que D eus ainda não havia destruído o m u n d o inteiro. C o m p aro u C risto favoravelm ente com Sócrates (um grande herói da m aioria dos senadores rom anos e de outros rom anos cultos da classe alta) e concluiu dizendo, a respeito dos cristãos, que “nossas doutrinas não são vergonhosas, de acordo com o bom senso, m as são m u ito mais sublim es do que toda a filosofia h u m an a” e dizendo aos seus leitores rom anos que se apressassem a julgar com bons olhos essa devoção e filosofia “para o seu próprio b e m ”.''Ju stin o provavelm ente quis dizer que o ju íz o divino era im inente p o rque eles perseguiam os cristãos. A terceira e ú ltim a obra de Ju stin o que sobreviveu é o Diálogo cotn ojudeu Trifão. Ela co n tém reflexões autobiográficas a respeito de sua jo rn a d a filosófica, de sua conversão ao p latonism o e, m ais tarde, ao cristianism o e explicações teológicas de com o a crença cristã na encarnação, q u e o filósofo ju d e u Trifao considerava absur da, é com patível com o m onoteísm o. E m seus escritos, Ju stin o explorou e explicou o conceito de C risto co m o o Logos de D eus a fim de esclarecer as crenças cristãs. Para ele, essa idéia — arraiga da tan to 110 p en sam en to grego co m o 110 hebraico — era a chave para desvendar os m istérios do evangelho cristão. N a sua explicação da d o u trin a, o Logos é o E spírito preexistente de D eus — u m seg u n d o D eus — que en carn o u em Jesu s C risto. Ju stin o foi um dos p rim eiro s cristãos a explicar o conceito d o Logos e do E spírito em relação ao Pai p o r m eio da analogia do fogo. Ele disse a Trifao q u e a geração do Filho (do Logos) do Pai não d im in u i o Pai de m o d o algum , po rq u e, assim com o fogo q ue se propaga, “o q u e inflam a m u ito s corações, não é m enor, m as p e rm a n e ce o m esm o ”.10 E m b o ra Ju stin o não tenha explicado de form a clara n em definitiva a distinção en tre o Logos e o E spírito co m o duas entidades da T rindade — tarefa esta q u e seria cu m p rid a pelos teólogos cristãos posteriores — , estava com eçando o processo de reflexão trinitária em resposta à acusação de Trifao: “Vocês se esforçam para provar algo inacreditável e quase im possível: q u e D eus se d eu ao trabalho de nascer e se to rn ar u m h o m e m ”.11 Ju stin o identificou Jesu s C risto com o “Logos có sm ico ”, q u e é o re b en to e agente de D eu s na C riação. Ele estava claram en te in te rp re ta n d o os p rim eiro s versículos do evangelho seg u n d o João, além de aproveitar idéias helenísticas a res peito d o Logos. Q u a se todas as filosofias gregas — além da teologia ju d a ic o helenística de Filo — tinham um a função para u m ser cham ado o Logos. Em todos os casos, o Logos era considerado u m m ediador en tre o D eus ú n ico e a criação.
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Ju stin o estava dizendo: “É a ele que nós, cristãos, nos referim os ao falarm os em C risto, é ele o Logos cósm ico co n hecido dos gregos”. Esse Logos (C risto) estava no m u n d o antes de Jesus C risto . Falava tanto através dos profetas ju d e u s co m o através dos filósofos gregos. Ju s tin o c h a m o u -o Logos spermatikos, a “sem ente d o Logos” presente em cada ser h u m an o e a fonte de toda a verdade q u an d o é co m preendida e enunciada. U m a das passagens m ais fam osas na literatura cristã prim itiva está na Apologia u de Ju stin o e expressa sua visão do Logos universal e cósm ico q ue é C risto: C onfesso que m e orgulho e que, com todas as minhas forças, procuro ser co n siderado cristão; não porque os ensinos de Platão sejam diferentes dos de C ris to, mas porque não são sem elhantes em todos os aspectos, assim com o tam bém não o são os de outros, estóicos, poetas e historiadores. Pois cada um falou bem conform e a participação que tinha na palavra cspcrmática [ logos spermatikos], dc acordo com o que se relacionava a ela. [...] Tudo o que já se disse de correto entre todos os hom ens é de autoria nossa, dos cristãos. Pois além dc D eus, adoramos c am amos ao Verbo que provém do D eu s ingenito e inefável, posto que também se tornou hom em por amor a nós, para que, tornando-se partici pante dc nossos sofrim entos, também nos trouxesse a cura.12
Foi assim que Ju stin o em p reg o u o conceito do Logos cósm ico para explicar por q u e os cristãos p o d em abraçar toda a verdade co m o a verdade dc D eus — seja qual for a sua origem h u m an a — e p o r q u e os cristãos podem crer em Jesu s C risto e adorá-lo co m o D eus (um “segundo D e u s”) sem rejeitar o m o n o teísm o . C risto, com o o Logos universal, preexistiu a Jesu s co m o Filho de D eus, assim co m o o fogo q u e se propaga, u m p o u co m enos d o q u e o p ró p rio D eus, m as feito da m esm a n atureza e substância. O m esm o C risto , com o o Logos universal, é a fonte de toda a verdade, beleza c b ondade. Ju stin o , 110 en tan to , arg u m e n to u q u e so m en te os cristãos conhecem plenam ente o Logos, porque este se to rn o u carne em Jesus C risto. D essa m aneira, Ju stin o estabeleceu um a tradição cristã da cristologia d o Logos que su b stitu iu a cristologia do E spírito e se desenvolveu até chegar à d o u trin a da T rin dade, expressando ao m esm o tem p o um a apreciação cristã da filosofia e cultura p o r se arraigar na atividade do Logos antes q u e este encarnasse co m o Jesu s C risto.
Atenágoras de Atenas Assim co m o Ju stin o , A tenágoras, o ateniense, era tanto filósofo co m o cristão. E n tre o u tro s d o cu m en to s, escreveu Petição a favor dos cristãos em form a de carta aberta ao im p erad o r M arco A urélio q u an d o este estava para visitar Atenas. T am bém com o Ju stin o e o u tro s apologistas, p ro c u ro u persuadir o im perador a parar de perseguir os cristãos e um a dc suas estratégias principais foi refu tar as falsas acusações e
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boatos m ais co m u n s a respeito deles. M ais p ertin en tes para a história da teologia cristã, po rém , são as reflexões de A tenágoras sobre a crença cristã em D eus e no seu Filho, Jesu s C risto. Ao q ue parece, A tenágoras acreditava q u e o im perador pararia de perseguir os cristãos se co m p reen d esse q u e eles acreditavam em u m D eus m u ito sem elhante àquele em q u e o p ró p rio im p erad o r cria. M arco A urélio foi u m filósofo m u ito influenciado pelo estoicism o, cujo deus era praticam ente equiparado com a o rd em im utável e perfeita d o universo. C ertam e n te os estóicos afirm avam existir u m só deus e rejeitavam o politeísm o, em b o ra quase abraçassem u m conceito panteísta de deus e do m u n d o . Seja com o for, as partes m ais relevantes da Petição de Atenágoras se relacionam com a d o u trin a cristã de D eus. P rim e ira m e n te , A tenágoras cito u vários poetas e filósofos gregos a fim de relem b rar ao im p erad or que o m e lh o r do p en sam ento h elenístico era m onoteísta. Passou, depois, a garantir ao im perador q u e os cristãos não eram “ateus” com o alegava u m sofism a popular: Q u e não som os ateus, portanto, visto que reconhecem os um só D eu s, não criado, eterno, invisível, im passível, incom preensível, ilim itado, que é apre endido som ente pelo en ten dim en to c pela razão, abarcada de luz, e beleza, e espírito, e poder inefável, por quem o universo foi criado m ediante o seu Logos, e estabelecido na ordem , e m antido cm existência, já o dem onstrei de m odo su ficiente.'3
E interessante n o tar a form a co m o A tenágoras descreveu o D eus em q u e os cristãos crêem . E m bora não haja dúvida a respeito da base bíblica de atributos divinos co m o “não criado” e “e te rn o ” e poucos duvidariam q u e D eu s seja “invisí vel” (à parte da encarnação em Jesus C risto ), m u ito s estudiosos cristãos p e rg u n tam -se se A tenágoras foi indevidam ente influenciado pelas idéias gregas da divin dade q u an d o caracterizou D eu s c o m o “im passível” (incapaz de sofrer o u ter senti m en to s em ocionais) e “in com preensível” (além d o e n te n d im e n to h u m an o ). Espe cialm ente q u an d o afirm a q u e o D eus em q u e os cristãos crêem é “ap reen d id o so m en te pelo e n te n d im e n to e pela razão”, surgem dúvidas a respeito do relativo peso do p en sam en to hebraico contra o grego na sua d o u trin a de D eus. Atenágoras descreveu D eus basicam ente com atributos negativos. Isto é, expli cou o q ue D eus não é em vez do q u e ele é. Teólogos cristãos posteriores rotularam essa abordagem de “teologia apofática”, q u e se to rn o u parte im p o rtan te da história da teologia cristã. Ao que parece, A tenágoras e pensadores apofáticos posteriores adm itiam q u e a perfeição de D eus significa ser diferente de q u alq u er coisa criada. D eus, p o rtan to , só poderia ser descrito pelo q u e não é em vez d o q u e é. Ele não é im perfeito e passar p or m udança o u sofrer ou até m esm o ser co m p re en d id o pela
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m en te h u m an a é ser m anchado pela im perfeição das criaturas. O resultado foi, é claro, um a d im in u ição paulatina da natureza pessoal de D eus na Bíblia. É claro que nem Atenágoras nem q u alq u er o u tro pensador cristão rejeitava a existência de D eus com o personalidade, m as a form a co m o com eçaram a descrever D eus assem elha va-se mais à origem transcendente e fu n d a m e n to de todas as coisas (arché) da filo sofia grega, que é bastante abstrata, do q u e ao D eus bastante concreto, pessoal e interativo da Bíblia hebraica e dos escritos apostólicos. P rosseguindo em sua Petição, A tenágoras responde ao im p erad o r à acusação dc que é ridícula a idéia de D eus ter u m Filho. Esse era um tem a co m u m para ridicu larizar a crença cristã. O s cristãos falavam com freqüência e em tom de adoração a respeito do Filho de D eus, Jesu s C risto. Por q u e pagãos cultos c contem plativos, com o C elso e M arco A urélio, achariam isso ofensivo e um a m ostra de ignorância e superstição? Em p rim eiro lugar, a d o u trin a cristã plena da T rindade ainda não havia sido desenvolvida. Estava apenas latente o u incipiente d en tro do pensam ento cristão. Aos pagãos parecia q u e os cristãos estavam apenas se co n trad izen d o ao afirm arem q u e D eus é u m só e q u e tem um F ilho que deve ser adorado. A idéia dc D eus ter gerado u m Filho parecia, tam bém , conferir-lhe algum a im perfeição. C o m o se tornara pai? D eus pode “se to rn a r” algum a coisa? C o m o alguém pode ser pai de 11111 filho etern am en te? Essas perguntas e m uitas outras ficavam, na m aioria, sem resposta pelos cristãos da época em que A tenágoras e o u tro s apologistas escreve ram . Para m u ito s o p o n en tes pagãos d o cristianism o, a idéia inteira dc D eus dar à luz ou ter u m F ilho soava m itológica. Atenágoras apresentou um a das prim eiras explicações teológicas da doutrina da Trindade a fim de esclarecer a má interpretação e a oposição à crença cristã: “Reco nhecem os u m D eus, e um Filho que é seu Logos, e u m Espírito Santo, unidos em essência: o Pai, o Filho, o Espírito, porque o Filho é a Inteligência, Razão e Sabedoria do Pai e o Espírito é um a em anação, com o a luz e do fogo”.14 Essa talvez seja a prim eira declaração relativam ente clara da dou trin a da Trindade na teologia cristã. N esse m esm o contexto, Atenágoras afirm ou tam bém que o Logos é o “p rim eiro re b en to ” de D eus, em bora não tenha sido trazido à existência, pois sem pre existiu em D eus com o seu Logos. Atenágoras não se aprofundou na questão polêm ica de com o o Logos (Filho de D eus) é encarnado em Jesus C risto. Ele sim plesm ente su pôs que o im perador e outros leitores soubessem que esse Logos é exatam ente o m esm o C risto adorado pelos cristãos, que crêem que ele está eternam ente n o Pai e que m esm o assim “procede” dele. O s porm enores são deixados sem solução formal. Tanto Ju stin o q u an to A tenágoras aproveitaram um a idéia grega conhecida que tam bém pode ser encontrada nos escritos apostólicos, o Logos, para solucionar certos problem as inerentes da fé e do culto cristãos. Suas intenções eram boas. A lgum as das co n seqüências involuntárias são in q u ietan tes. P ensadores cristãos
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posteriores, dos séculos m e rv d ebateram -se com questões da relação e n tre Logos e D eus Pai. E n tretan to , os pais apostólicos não po dem ser criticados por usar a idéia com o p o n te ligando o en sin am en to cristão a respeito de D eus com a teologia filosófica grega.
Teófilo de Antioquia O ú ltim o apologista a ser considerado aqui é Teófilo de A ntioquia q u e escreveu três livros A Autólico p o r volta de 180. P ouco se sabe a respeito de Teófilo além de que foi bispo dos cristãos em A ntioquia, um a das cidades m ais im portantes do im pério para os pagãos assim com o os cristãos. S ucedeu co m o bispo ao h o m em qu e sucedeu a Inácio no seu m artírio em 115, provavelm ente o ano em q u e Teófilo nasceu. Teófilo m o rre u , de causa não historiada, na década de 180. A utólico foi u m am igo pagão de Teófilo e este escreveu três livros a fim de resp o n d er aos co m en tários depreciativos q u e o am igo fizera em relação ao cristia nism o. O trad u to r m o d ern o de Teófilo diz a respeito dos seus livros apologéticos que “o tratado inteiro é b em apropriado para levar u m pagão inteligente à aceitação cordial do cristian ism o ”.15O s escritos apologéticos de Teófilo são m en o s filosófi cos do q u e os de Ju stin o o u A tenágoras. Ele até criticou a literatura e a filosofia grega. Ele p ró p rio parece te r sido in flu en ciad o p rin c ip a lm e n te pelo ju d a ísm o helenístico, m as sem o m éto d o fo rtem en te alegorista de in terp re tar as Escrituras. Teófilo representa m u ito b em a abordagem an tioquena à interpretação bíblica, que tendia a ser m ais histórica e literal do q u e o m éto d o alegórico alexandrino. Teófilo é notado na história da teologia cristã p o r in tro d u z ir pela prim eira vez o conceito de creatio ex nihilo: a criação do nada. N ã o q u erem o s dizer com isso que outros pais da igreja, até m esm o de tem pos anteriores, não acreditavam nisso. Teófilo, no en tan to , contradisse explicitam ente a tendência grega de considerar o universo co m o eterno. D epois de citar os prim eiros versículos de G ênesis, declarou que “isso, segundo as Sagradas E scrituras nos ensinam logo n o princípio, é para d e m o n strar q u e a m atéria, da qual D eus fez e fo rm o u o m u n d o , foi de algum a form a criada, sendo p ro d u zid a p o r D e u s”.16 A despeito da influência d o pen sam en to grego sobre os apologistas em geral, Teófilo, neste ú n ico aspecto, conseguiu dirigir o pen sam en to cristão para longe do consenso grego. Afinal, até q u e p o n to é perfeito u m D eus q u e tem parceira finita com o a m atéria com a qual terá de lutar p o r toda a eternidade? A m atéria eterna lim itaria D eus. Se D eus é realm ente infinito e perfeito, então o u niverso deve ser criado livrem ente e a p artir de absolutam ente nada. Assim co m o os dem ais apologistas, Teófilo em pregava o conceito do Logos para explicar o relacio n am ento de D eus com o m u n d o . O Logos é o agente de D eus na criação e ao falar através dos profetas. Ele está etern am en te d en tro de D eu s e é
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em itid o (literalm ente: “expelido”) à existência pelo Pai para que o Pai perfeito, D eus, possa se relacionar com o m u n d o do tem p o e da criação e falar pelo Logos através dos profetas: D eu s, portanto, tendo seu Verbo interno em suas entranhas, gerou-o, en iitind o-o com sua sabedoria antes de todas as coisas. Tinha esse Verbo com o auxiliador nas coisas que foram criadas por ele e por m eio dele criou todas as coisas. Ele é cham ado ,‘princípio governante” [arché], porque governa e é o Senhor dc todas as coisas que criou. Ele, pois, sendo Espírito dc D eu s, c o princípio governante, e a sabedoria, e o poder do altíssim o, desceu sobre os profetas, e atraves dclcs falou da criação do m un do c dc todas as outras coisas. Porque os profetas não existiam quando o m un do foi criado, mas, sim , a sabedoria dc D eu s que estava nele c seu santo Verbo que sem pre esteve pre sente com e le.'7
O pen sam en to de Teófílo a respeito da T rindade era u m pouco confuso. Ele não conseguiu fazer distinção clara do Verbo (Logos) de D eus e do E spírito de D eus. O u tro s teólogos cristãos prim itivos sim plesm ente consertaram isso, dc m o d o que o E spírito de D eu s é sua eterna Sabedoria e o F ilho é seu Verbo (Logos) eterno. E interessante notar, n o entanto, q u e Tcófilo claram ente interpretava o Filho de D eus (Verbo, Logos) co m o etern o em D eus. A ortodoxia posterior, po rém , rejeitou a idéia de q u e D eus o tenha “e m itid o ” im ediatam ente antes da C riação, p o rq u e isso significaria um a m ud ança tan to em D eus Pai co m o n o seu Verbo. Teófílo tin h a p o u co o u nada a dizer a respeito de Jesu s C risto. Assim com o o u tro s apologistas do século 11 , ele se interessava m ais pelo estado do Logos que ficou encarn ad o em Jesu s C risto do q u e pelo p ró p rio h o m em histórico Jesus. E com preensível, visto q u e todos os apologistas estavam ten tan d o resp o n d er a per guntas e preocupações postuladas pelos pagãos gregos e rom anos, e suas preocupa ções m ais p rem en tes n o tocante à teologia cristã tratavam da condição de C risto em relação a D eus. A solução en co n tra-se no Logos celestial preexistente e não na vida histórica do h o m em Jesus.
O legado ambíguo dos apologistas Q ual foi a contribuição de apologistas com o Justino, Atenágoras e Teófílo à história da teologia cristã? Foi m esm o m u ito grande. M as, assim com o os pais apostólicos, eles deixaram um legado am bíguo. N ã o fossem os apologistas e a sua obra, o cristia nism o poderia facilm ente ter sido reduzido a um a religião esotérica de m istério ou, talvez, a um a m era religião folclórica sem qualquer influência na esfera pública mais am pla da cultura. O s apologistas levaram a m ensagem cristã a público c defenderam na, com vigor e rigor, dos m al-entendidos e das falsas acusações. C o m isso, coloca
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ram a teologia cristã além das pequenas e sim ples reflexões dos pais apostólicos, em u m novo plano de pensam ento form al e racional a respeito das im plicações da m e n sagem apostólica para a crença cristã de D eus, de C risto, da salvação e de outras crenças im portantes. Além disso, esforçaram -se para correlacionar e com unicar es sas idéias ao m u n d o m ais am plo da cultura pagã — de m odo m u ito sem elhante ao esforço de Paulo em Atenas. C o m os apologistas, a teologia cristã oficial se tornaria pública e não apenas u m sistem a particular de crença para poucos iniciados. O s apologistas tam b ém co n trib u íram m u ito para a história da teologia cristã na form a de um a reflexão inicial sobre as crenças m ais im p o rtan tes a respeito de D eus e de Jesu s C risto e, ao fazerem isso, com eçaram a criar a base para a d o u trin a plen am en te desenvolvida da T rindade, q u e ainda seria construída. Infelizm ente, a m aioria tin h a p o u co a d izer a respeito d o Jesu s histórico, que todos acreditavam ser a encarnação n o tem p o e na existência m aterial d o etern o Filho de D eus. Sua preocupação principal, n o en tan to , era explicar o significado da crença cristã em Jesu s C risto co m o D eus encarnado. Para explicarem isso aos gregos e rom anos não-cristãos, apelaram para o conceito bem co n hecido d o Logos cósm ico — um m e d ia d o r e s p iritu a l e n tr e o m u n d o d iv in o e o m u n d o m a te ria l. E m b o ra freq ü en tem en te co n fu ndissem o Logos preexistente com o E spírito Santo — ou pelo m enos deixassem de fazer u m a distinção apropriada deles — , os apologistas explicaram o m o n o teísm o cristão co m o a crença n u m só D eus, o Pai de todos, sua em anação, o Logos (Filho de D eus), q u e é etern o nele e q u e dele sai para o m u n d o e o Espírito Santo, que é a Sabedoria e P oder do Pai. O uso da filosofia grega pelos apologistas tem sido calorosam ente debatido e n tre os cristãos. O pen sador cristão francês d o século xvii, Blaise Pascal, declarou: “O D eus dos filósofos não é o D eus de Abraão, Isaque e Jacó!”. M uitos críticos acusam os apologistas de criarem , in co n scien tem en te, um a m istura d o p en sa m e n to hebraico e cristão a respeito de D eus com as idéias gregas, especialm ente platô nicas, de deidade. O in fluente historiador eclesiástico protestante, A d o lf H arnack, ch am o u -a “helenização d o cristianism o” e traçou o seu curso desde os apologistas até os pais p o steriores da igreja. O u tro s historiadores eclesiásticos d efen d em -n o s e às suas teologias co n tra sem elhantes acusações. R o b ert G ra n t é, talvez, q u em chega m ais p erto da avaliação exata dos apologistas q u an d o escreve q u e “a despeito da teologia sem ifilosófica inadequada, os apologistas realm en te m antiveram boa parte da d o u trin a bíblica”.18 Sua tendência de enfatizar dem asiadam ente a infinidade e perfeição de D eus — definidas em term o s filosóficos gregos — co n trib u iu para a dificuldade de os cristãos, p o sterio rm en te, e n ten d e rem e explicarem a encarnação — D eus na carne hu m ana, ex p erim en tan d o os sofrim entos, as lim itações e até a m orte. Apesar disso, d escobrim os nos seus escritos m uitas jóias da verdade cristã e tam b ém p ro fu n d o e n te n d im e n to do viver cristão.
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Até a ú ltim a q u arta parte do século n, o cristianism o não tin h a n e n h u m grande do u trin ad o r. N e n h u m pai apostólico o u apologista é su p erio r aos dem ais. N e n h u m foi u m grande pensador sistem ático que re u n iu a crença cristã n u m c o n ju n to c o e re n te q u e fosse v e rd a d e ira m e n te b íb lic o e in telig ív el às m e n te s pagãs indagadoras. O p rim eiro grande teólogo sistem ático da história da teologia cristã foi Iren eu , bispo de Lião. Sua co n trib u ição para essa história é descrita a seguir.
Ireneu desmascara heresias
W s prim eiro s teólogos do cristianism o foram os pais apostólicos; eles escreviam basicam ente para exortar, encorajar e instruir as igrejas cristãs no p eríodo transicional que se seguiu à m o rte dos apóstolos. Suas cartas eram breves e abordavam p ro b le m as específicos. A lguns, com o Inácio de A ntioquia, com eçaram a refletir sobre o significado das crenças e práticas cristãs e a acrescentar suas palavras às dos apósto los. N e n h u m apóstolo cristão jam ais ch am o u a ceia do S en h o r de “rem éd io da im o rta lid a d e ”. Esse foi o início, não m u ito p ro m isso r, da teologia cristã. O s apologistas acrescentaram suas vozes ao coral da teologia cristã q u an d o escreveram às autoridades não cristãs a fim de explicar as crenças e práticas d o cristianism o. N essas ocasiões, freq ü en tem en te interpretavam -nas u sando a filosofia não cristã. Da m esm a form a que os pais apostólicos, 110 en tan to , os apologistas foram pouco além da superfície na exploração e explicação da fé cristã co m o u m todo. O s pais apostólicos e os apologistas criaram o alicerce da teologia cristã, m as não a d esen volveram . Iren eu co n stru iu pelo m enos o p rim eiro andar de um a su p erestru tu ra sobre esse alicerce.
A vida e o ministério de Ireneu Iren eu nasceu em E sm irna, o u p erto dali, na Ásia M e n o r p o r volta de 120. N a ju v e n tu d e , foi in stru íd o na fé cristã pelo grande bispo Policarpo de E sm irna, com q u em ap ren d eu as tradições do apóstolo João, discípulo de Jesu s. Em m eados des se século, Iren eu foi enviado à o u tra extrem idade d o Im p ério R om ano para ser presbítero (ancião) en tre os em igrantes desde a Ásia M e n o r até a G ália (França). Iren eu estabeleceu-se n o rio R ódano, em Lião, ao sul da Gália e rapidam ente subiu de posição co m o u m jo v e m líder notável e n tre os cristãos dessa região. E m 177, o im p erad o r M arco A urélio iniciou terrível perseguição aos cristãos do vale d o R ódano. O bispo P otino foi m o rto , ju n to com centenas, o u talvez até m i lhares, de leigos e p resbíteros cristãos. O s relatos dessa perseguição específica são
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aterrorizantes. Parece que a população local desenvolveu m étodos engenhosos e cruéis de m atar os cristãos. U m m éto d o po p u lar era am o n to ar cristãos em p eq u e nos q u artos sem janelas e fechar as portas para q u e fossem sufocados lentam ente. O u tro m éto d o de execução era costurá-los em peles frescas de anim ais e colocálos ao sol q u en te para m o rre rem len tam en te p o r asfixia. Iren eu escapou da m o rte d u ra n te o ataque violento anticristão na Gália p orque tin h a sido enviado a R om a a fim de contestar as heresias q u e de lá chegavam até a região o n d e era dom iciliado. D epois de várias viagens a R om a, co n q u isto u en tre os cristãos a reputação de ser u m h o m em versado em diplom acia c m ediação. Q u a n do estava em R om a na época da grande perseguição, en c o n tro u u m antigo discípu lo de Policarpo q u e havia se co nvertido d o cristianism o apostólico para um a das seitas gnósticas de m aior efervescência: a escola de Valentino. Iren eu ficou abalado na ocasião e m u ito m ais q u an d o voltou à própria co m u n id ad e cristã na G ália e descobriu q ue o tipo de gnosticism o de V alentino, b em co m o outros, estavam te n d o boa aceitação en tre os cristãos dali. Iren eu to rn o u -se bispo dos cristãos de Lião e arredores e dedicou boa parte de seu tem p o e energia lu tan d o contra a influência crescente do gnosticism o. Escre veu cinco volum es co nhecidos pelo n o m e Adversus haereses — títu lo em latim que significa Contra heresias. E m bora escrevesse em grego, p o rq u e ele e seus co m p a n h eiro s cristãos de Lião pro v in h am prin cip alm en te da Ásia M enor, so m en te as traduções em latim dos escritos de Iren eu sobreviveram . O títu lo m ais longo de Contra heresias é Refutação e destruição do que é falsamente chamado conhecimento. Foi o p rim eiro exam e crítico e refutação válida do gnosticism o feita p o r u m líder cristão in fluente e, graças à ligação de Ireneu com Policarpo e João, foi am plam ente aceita com o obra p o rtadora de autoridade e co n trib u iu significativam ente para o p o steri o r declínio do gnosticism o en tre os cristãos. Ao desm ascarar os gnósticos, Ireneu tam bém desenvolveu um a interpretação cristã da redenção q u e in fluenciou p ro fu n d am en te o curso e a direção de toda a teologia cristã, especialm ente nas regiões orientais da igreja cristã on d e o grego era o idiom a principal. A lguns teólogos o rto doxos orientais afirm am q u e a totalidade da teologia não passa de um a série de notas de rodapé a Ireneu. Seja co m o for, seria difícil su p erestim ar a influência dele. Iren eu tam b ém escreveu u m p eq u en o m anual de d o u trin a cristã cham ado D e monstração da pregação apostólica, tam bém co n hecido p o r Epideixis, que é u m resum o de sua obra m ais com plexa Contra heresias. A prática de fazer breve in trodução à d o u trin a e teologia cristãs para os leigos q u e pudessem ter dificuldade para ler e e n ten d e r os livros de m aior peso, to rn o u -se co m u m nos séculos vindouros. Em latim , esse tipo de livro era cham ado enchiridion, te rm o q u e podia significar tanto “m an u al” co m o “p u n h a l”. Esses peq u en o s livros de en sin am en to s cristãos eram considerados arm as de guerra espiritual.
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Iren eu m o rre u em Lião d u ra n te u m m assacre de cristãos em 202. N ad a se sabe com certeza a respeito da m aneira co m o m o rre u , m as foi considerado m ártir e santo tan to pelos cristãos de língua grega do lado oriental do Im p ério R om ano com o pelos cristãos de língua latina d o lado ocidental. C au so u m aior im pacto teo lógico, no en tan to , no O rie n te o n d e havia nascido. Iren eu é personagem crucial na história da teologia cristã p o rq u e foi u m agente que co n trib u iu para a d errota do gnosticism o e p o rq u e foi o p rim eiro pensador cristão q u e elaborou teorias com preensivas do pecado original e da redenção. E n tretan to , estava longe de ser u m pensador especulativo. E m A lexandria, no Egito, os co n tem p o rân eo s m ais jo v en s de Iren eu logo com eçariam a desenvolver teologias especulativas q u e tentavam dar respostas cristãs para todos os m istérios da reali dade. Iren eu não foi u m teólogo filosófico, em b o ra tenha ido além das próprias palavras dos apóstolos para fo rn ecer u m a explicação apostólica com preensiva e coerente do pecado e da redenção que fosse u m a alternativa poderosa ao gnosticism o. U m dos principais in térpretes m o d ern o s de Iren eu escreveu, com razão: A ssim com o os outros autores cristãos da sua época, Ireneu não escreve unicam cntc por se interessar pelos problem as da teologia. Sua obra é, no sentido mais rigoroso, ocasional, motivada pela solicitude pastoral e não por preocu pações puram ente intelectuais. C onseqü en tem en te, o que tem a dizer e a forma de d izê-lo dependem da situação concreta com a qual lida.1
A “situação co n creta” foi o gnosticism o e seu crescim ento en tre os cristãos por todo o Im p ério R om ano. Iren eu considerava-o um a am eaça gen u ín a ao evangelho e à sobrevivência do cristianism o autêntico. M as sua explicação da verdade foi m oldada pela necessidade de refu tar o falso evangelho do gnosticism o. Isso não significa q u e o cristianism o foi infectado o u c o rro m p id o p o r ele. É apenas u m sinal de que, com o g eralm ente acontece, a heresia contestada in d iretam en te m o ld o u a form a, senão todo o c o n teú d o , da ortodoxia q u e estava sendo g rad u alm en te d ese n volvida co m o alternativa. P ortanto, se a teologia da redenção, segundo Iren eu a definia, parece às vezes u m pouco especulativa, não é p o rq u e ele tinha a intenção de escrever um a teologia abstrata e especulativa, m as p o rq u e sentia a necessidade de oferecer aos cristãos atraídos pelo gnosticism o um a versão d o cristianism o apos tólico q u e satisfizesse sua busca de respostas a perguntas específicas sobre a origem do pecado e do m al e sobre a esperança da redenção.
O ataque de Ireneu ao gnosticismo O ataque de Iren eu ao gnosticism o não teve nada da abordagem fria e racional que as pessoas da atualidade esperariam de u m bispo o u teólogo. Ele considerava o
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gnosticism o estu lto e sinistro e queria desm ascará-lo de um a vez p o r todas com o u m a co rru p ção co m pleta d o evangelho disfarçado em “sabedoria su p erio r para pessoas espirituais”. Para tanto, Iren eu passou m eses e anos estu d an d o pelo m enos vinte m estres gnósticos distintos e suas respectivas escolas. D escobriu q u e o m ais in flu en te era o gnosticism o valentiniano, q u e se to rn a po p u lar e n tre os cristãos de R om a m ed ian te os ensinos de u m líder gnóstico cham ado P to lo m eu . Por isso, co n cen tro u sua atenção em expor esse g ru p o co m o ridículo e falso na esperança de que todos os o u tro s fossem esm agados com o peso dessa queda. A abordagem de Ireneu na crítica ao gnosticism o em Contra heresias foi tripla. E m p rim eiro lugar, p ro c u ro u re d u zir ao ab surdo a cosm ovisão gnóstica, ao d e m o n strar q u e boa parte dela era um a m itologia sem q u alq u er fu n d a m e n to a não ser a im aginação. Essa prim eira estratégia preten d ia desm ascarar as contradições internas do gnosticism o e sua incoerência básica. As verdades q u e pregava eram conflitantes en tre si. Em segundo lugar, te n to u d em o n strar q u e a reivindicação dos gnósticos de ter um a autoridade q u e rem ontava a Jesu s e aos apóstolos era sim ples m en te falsa. F inalm ente, en tro u em debate com a interpretação gnóstica das Escri turas e d e m o n stro u que era irracional e até m esm o im possível. H á várias suposições q u e explicam a polêm ica tentativa de Iren eu de desm asca rar o gnosticism o. O b viam ente, ele acreditava q u e exercia u m papel e u m a posição especiais, p o r ter sido in stru íd o no cristianism o p o r Policarpo que, p o r sua vez, teve Jo ão com o m estre. M u ito s gnósticos alegavam q u e Jo ão fazia parte de u m g rupo seleto de discípulos de Jesu s que receberam d o Salvador “ensinos secretos" não revelados à m aio ria dos cristãos p o r não estarem esp iritu a lm e n te aptos a enten d ê-lo s. E m b o ra pudessem enxergar indícios da própria cosm ovisão e evan gelho nos escritos apostólicos, tin h am de confiar em um a tradição oral secreta com o a fonte principal de sua autoridade. Iren eu d ed u z iu que, se tivessem existido tais ensinos, Policarpo teria to m ad o co n h e cim en to deles e lhe contado. O fato de n e n h u m dos bispos dos cristãos reco n h ecerem nem aceitarem esses ensinos aca bo u com as reivindicações dos gnósticos. O u tra suposição básica que subjazia à crítica ao gnosticism o era a de q u e os gnósticos seriam os responsáveis p o r ro m p e r a unidade da igreja. E ram eles os cism áticos. Iren eu atribuía grande valor à unidade visível da igreja, q u e consistia na co m u n h ão dos bispos nom eados pelos apóstolos. O s gnósticos estavam fora dela e agiam com o parasitas. Para Iren eu e m u ito s dos seus leitores, esse era u m argu m en to forte co n tra eles. U m a dificuldade q ue freq ü en tem en te se acha na leitura de Contra heresias é o e n o rm e v o lu m e da descrição das crenças dos gnósticos feita p o r Ireneu. E fácil se atrapalhar com ela e desistir da leitura. Por exem plo, Iren eu explicou o en sin o de V alentino a respeito da origem do m u n d o da seguinte form a:
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Ele sustentou que existe certa Díada (um ser de duplo aspecto), que não pode ser expressa por nenhum nome, da qual uma parte deve ser chamada Arreto (inefável) e outra, Sige (silêncio). Mas dessa Díada foi produzida outra, da qual uma parte ele chama Pater e outra Aletéia. Dessa Tétrade, novamente, surgiram Logos e Zoe, Antropos e Eclésia. Eles constituem a Ogdóade básica. [...] Existe outra, que é um mestre de renome entre eles que, na tentativa de alcançar algo mais sublime e um tipo de conhecimento superior, explicou a Tétrade básica da seguinte forma: Há [diz ele] um certo Proarqué que existia antes de todas as coisas, que está além de toda a compreensão e de qualquer palavra ou nome, a quem chamo Monotés (união). Junto com esse Monotés existe um poder, o qual chamo Henotés (unidade). Henotés e Monotés, sen do um, produziram, embora não no sentido de trazer à existência [...] o iní cio de todas as coisas, um ser inteligente, não-gerado e invisível, que a lingua gem de iniciante chama “Mônada”. Na Mônada coexiste um poder de mes ma essência, que chamo H en (U m ). Esses poderes, portanto, Monotés, Henotés, Monas e Hen, produziram os demais membros do Eon.2 Iren eu in terro m p e u a essas alturas sua exposição laboriosa da m etafísica gnóstica e resp o n d eu , com paixão, com um a paródia dessa visão dita cristã da criação com base em u m c o n h e cim en to e sabedoria su p o stam en te superiores: Oh! Nossa! Podemos muito bem fazer essas exclamações trágicas diante de tamanha audácia em criar nomes que ele apresentou sem enrubescer, em ar quitetar uma nomenclatura para seu sistema de falsidades. Pois quando decla ra: “Há um certo Proarqué que existia antes de todas as coisas, que está além de toda a compreensão, a quem chamo Monotés; e com esse Monotés coexiste um poder, o qual chamo Henotés” está mais do que evidente que ele confessa que as coisas que acabou de dizer são invenções suas e que ele próprio atribuiu nomes a esse conjunto de coisas jamais sugeridos por qualquer outra pessoa. Está claro também que foi ele mesmo quem teve audácia suficiente para criar esses nomes; de modo que, se ele não tivesse aparecido no mundo, a verdade seria desprovida de nome. Mas, nesse caso, nada impede que qualquer outro, ao tratar do mesmo assunto, atribua nomes de uma forma semelhante à se guinte: Existe certo Proarqué, real, que está além de toda a compreensão, um poder que existia antes de qualquer matéria e se estendia no espaço em todas as direções. Mas junto com ele existe um poder que chamo Abóbora׳, e junto dela existe um poder que chamo Vazio Total. A Abóbora e o Vazio Total, sendo um, produziram (porém não produziram simplesmente no sentido de existir sepa radamente deles) uma fruta, visível em todos os lugares, comestível e deliciosa, que a linguagem das frutas chama Pepino. Junto com o Pepino existe um poder da mesma essência, que chamo Melão. Esses poderes, a Abóbora, o Vazio Total, o Pepino e o Melão, produziram o restante da multidão dos melões delirantes
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de Valentino. [...] Se qualquer um pode atribuir nom es a seu bel-prazer, o que nos impedirá de adotar esses nom es, por serem m uito mais críveis [do que os outros], além de serem de uso geral e com preendidos por todos? 3
Se o leitor m o d ern o de Ireneu perseverar pelas m uitas páginas de explicação dos sistem as e term inologia gnóstica, sua recom pensa será o prazer ocasional da ironia e do sarcasm o q u e revelam u m pouco da personalidade de Iren eu e de seu rep ú d io à cosm ovisão ev id en tem en te absurda d o gnosticism o. Todas as principais seitas e escolas do gnosticism o desprezavam a criação física e negavam sua origem no D eus suprem o da bondade e da luz. A m aioria, incluindo-se a escola de Valentino, apresentava níveis de em anações do D eus de p u ro espírito e luz que gradualm ente se desviavam e, de algum a form a, acabavam criando o univer so m aterial, inclusive os corpos hum anos nos quais as centelhas do divino (almas, espíritos) se encontram enredadas e presas. Para rebater essa teoria da criação, Ireneu afirm ou a doutrina cristã de D eus com o criador e re d en to r da existência m aterial e da espiritual. C o n tra os gnósticos, citou João 1.3 e outras passagens d o a t e dos apóstolos (que posteriorm ente seriam incluídos no n t ) que tratam de D eus co m o o criador de todas as coisas m ediante o seu Verbo e o seu Espírito e desacreditou as interpretações q ue fizeram das referências bíblicas aos anjos, aos poderes espirituais e aos principados, atribuindo-lhes u m caráter fantasioso e absurdo.
A teoria de Ireneu sobre a redenção E m b o ra a crítica de Iren eu ao gnosticism o desem penhasse u m papel relevante na história da teologia cristã, ao desm ascarar esse sistem a de crenças co m o herético segundo os padrões bíblicos e apostólicos, sua real contribuição à história da teo lo gia en co n tra-se na cosm ovisão alternativa ao gnosticism o. O s teólogos históricos ro tu laram a co n trib u ição de Iren eu de “teoria da recapitulação”, p roveniente do term o latino capitus, q u e significa “cabeça”. Sem dúvida, o p ró p rio Iren eu usava o term o grego anakephataiosis, q u e provém da raiz kephalé, que significa “cabeça”. Anakephalaiosis e recapulatio significam , literalm ente, “re-en cab eçar” ou “fornecer um a nova cabeça”. E óbvio q u e Ireneu não estava pensando, de m o d o algum , na cabeça n o sen tid o literal, a parte su p erio r do corpo, m as na “cabeça” co m o a fonte ou origem de algum a coisa, com o a cabeça de u m rio o u córrego. Em Contra here sias e em Demonstração da pregação apostólica, Iren eu expôs o que acreditava ser o .ensino apostólico cristão a respeito da obra de C risto na redenção de prover um a nova “cabeça” para a h u m anidade, a recapitulação. O s gnósticos pensavam na obra de C risto sob um prism a p u ra m e n te espiritual e negavam a encarnação. Para eles, C risto, o re d en to r celestial, n u n ca teve um a exis tência em u m co rp o h u m an o . Ele veio pelos níveis dos éons e arcontes e apareceu
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na form a h u m an a sem assum ir a natureza física o u e n tro u n o corpo de u m ser h u m an o cham ado Jesu s de N azaré a fim de usá-lo co m o in stru m e n to para falar a respeito da o rig em espiritual da alm a h u m ana. E m q u a lq u e r dessas versões da cristologia gnóstica, a obra de C risto nâo requeria a encarnação. Sua m issão era sim p lesm en te revelar u m a m ensagem aos espíritos. A d im en são m aterial e física não se relacionava com isso e, q u an d o Jesus foi crucificado, C risto não estava nele, n em com ele. A vida e a m o rte d o h o m em Jesus, p o rtan to , não d ese m p e n h o u n e n h u m papel na redenção. O s gnósticos excluíam da sua soteriologia (d o u trin a da salvação) a vida e a m o rte histórica e física de Jesus. Iren eu p ro cu ro u d em o n strar q u e o evangelho da salvação ensinado pelos após tolos e tran sm itid o p o r eles centralizava-se na encarnação, a existência h u m an a do Verbo, o Filho de D eus, em carne e osso. Por isso, enfatizava todos os aspectos da vida de Jesu s co m o necessários para a salvação. A obra de C risto em nosso favor foi m u ito além de seus en sin am en to s e esten d eu -se à própria encarnação. Para Ireneu (e para a m aioria dos pais da igreja depois dele) a própria encarnação é red en to ra e não m eram en te u m passo necessário em direção aos ensinos de C risto o u ao even to da cruz. Pelo co n trário, a hum anização do Filho de D eus — o Verbo (Logos) etern o de D eus ex p erim en tan d o a existência h u m an a — é o q u e red im e e restaura a hum an id ad e caída se ela se perm itir. Essa idéia ficou conhecida co m o a encarnação salvífica e foi crucial para o curso de toda a teologia depois de Ireneu. E p o r isso q ue, sem pre q u e surgia um a teologia que de algum a form a am eaçava a encarnação de D eu s em Jesu s, os pais da igreja reagiam tão fo rtem en te. Q u a lq u e r am eaça à encarnação, p o r m e n o r q u e fosse, era vista co m o u m a am eaça à salvação. Se Jesus C risto não fosse v erdadeiram ente h u m an o bem co m o v erd ad eiram en te divino, a salvação seria in com pleta e im possível. A redenção, na sua inteireza, repousa na realidade do n ascim ento de C risto em carne e osso, de sua vida, seu so frim en to e sua ressurreição, além d o seu etern o p o d er e divindade. Para Iren eu , p o rtan to, a encarnação era a chave da história inteira da redenção e da salvação pessoal. A encarnação era, em si, transform adora. Ela iniciou o proces so de in verter a co rru p ção do pecado que causa a alienação de D eu s e a m orte. A anakephalaiosis, o u recapitulação, era a expressão teológica de Iren eu que define o m o d o com o a encarnação física d o Verbo em Jesu s C risto opera para tran sfo rm ar a h u m an id ad e. E stritam en te falando, a raça h u m an a in teira “nasce de n o v o ” na encarnação. Ela recebe um a nova “cabeça”, u m a nova fonte, origem o u base de existência, q u e não é caída, m as p u ra e saudável, vitoriosa e im ortal. Está “plena m en te viva”, tan to física q u an to espiritualm ente. O s gnósticos não ofereceram esperança algum a para a raça hu m an a co m o u m to d o e n em para os seres h um anos individualm ente. S om ente os espíritos — e assim m esm o, poucos — tinham algum a esperança de serem transform ados e som ente
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m ediante a gnosis (co n hecim ento). Iren eu im p lan to u p ro fu n d am en te na con sciên cia cristã a crença e esperança em Jesu s C risto co m o tran sfo rm ad o r de toda a raça h u m an a m ediante sua fusão com a hu m an id ad e na encarnação. C o m o exatam ente funciona a teoria antignóstica proposta p o r Ireneu, a recapi tulação? Q u e r dizer, qual é o m ecanism o pelo qual a própria encarnação transfor m a e salva a h u m anidade? E m p rim eiro lugar, deve ficar claro q u e Iren eu acredita va na solidariedade da h u m an id ad e tanto no pecado co m o na redenção. Essa su p o sição é desconhecida de m u ito s cristãos m o dernos, q u e ten d em a pensar e a viver de m o d o m u ito m ais individualista, senão atom ista. Iren eu e seus colegas da igreja prim itiva não eram cristãos d o tipo “Jesu s e e u ”. Ele cria e ensinava que o q u e Adão fez no Jard im do É d en (G n 3) e o que Jesu s C risto fez d u ra n te sua vida inteira (até m esm o na m o rte) afetou au to m aticam en te os o u tro s seres h u m an o s p o rq u e Adão e Jesu s C risto (o “seg u ndo A dão”) não são sim plesm ente indivíduos, m as nascen tes da hum anidade. P or trás dessa idéia, n atu ralm en te, estão as reflexões de Paulo sobre Adão e C risto em R om anos 5. Se não co m p re en d erm o s essa passagem bíblica tão im p o r tante, fica im possível en te n d e r o que Iren eu está ensinando. Sua teoria da recapi tulação era u m a interpretação extensa e sistem ática de R om anos 5. C risto , n o sen tido estritam en te literal, é o segundo A dão da raça h u m an a e nele “D eu s recapitu lou em si a form ação antiga do h o m em [Adão], para q u e pudesse elim in ar o peca do, d estitu ir o p o d er da m o rte e vivificar o h o m em , e, portan to , todas as suas obras são verdadeiras”.4 Q u a n d o Iren eu escreveu que em Jesu s C risto D eus “recapitulou em si a fo rm a ção antiga do h o m e m ”, queria dizer que, na encarnação, o Verbo (Logos) assum iu o p ró p rio “pro to p lasta” (fonte física) da hu m an id ad e — o co rp o d e A dão — e viveu o inverso do curso da vida de A dão q u e resu lto u na corrupção. Toda a h u m a nidade descende desse protoplasta, o p rim eiro Adão. Portanto, para inverter a Q ueda e renovar a raça q u e caiu p o r causa de Adão, o Verbo teve q u e viver nela para tran sfo rm ar tan to ela co m o sua posteridade. A p artir de M aria, então, o Verbo assum iu “exatam ente a m esm a form ação” q u e Adão e não apenas um a form a se m elhante. Adão, de algum a m aneira m isteriosa, renasceu de M aria na hu m an id ad e de Jesu s C risto. S egundo Ireneu, para o h om em ser salvo, é preciso que o prim eiro h om em , Adão, seja trazido de volta à vida, e não sim plesm ente que um novo e perfeito hom em , sem nenhum a relação com Adão, apareça na Terra. D eu s, que tem vida, precisa permitir que sua vida entre em “A dão”, o h om em que realm ente sente fom e e sede, com e e bebe, fica cansado e precisa de repouso, que con h ece a ansie dade, a tristeza e a alegria, e que sente dor quando é confrontado com o fato da morte. 5
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Essa é a “com provação” q u e Iren eu oferece da encarnação co n tra os gnósticos q u e a negavam . Sem a encarnação, C risto não poderia ter invertido a q u ed a de Adão, e a redenção não seria levada a efeito. O pecado e a m o rte con tin u ariam sendo, para sem pre, características básicas da condição hum ana. Para Iren eu , Jesu s C risto proveu a redenção passando pelo escopo in teiro da vida h u m an a e, em cada co n ju n tu ra , in v erten d o a desobediência de Adão. E n q u an to o p rim eiro Adão desobedeceu a D eus e caiu, in tro d u zin d o na existência hu m an a a co rru p ção e a m orte, o seg u n d o A dão o bedeceu a D eus e elevou a h u m a nidade a u m estado m ais sublim e d o q u e o p ró p rio Adão tinha ex perim entado antes da Q ueda. O p o n to crucial da redenção de C risto aconteceu no m o m e n to da tentação de Satanás no deserto. Q u a n d o Satanás abordou Eva e Adão, eles foram conquistados e caíram . Q u a n d o Satanás aproxim ou-se de Adão, de novo, em C risto , Satanás foi vencido e abatido, e a h u m anidade m ediante aliança com C risto c o n q u isto u um a grande vitória e recu p ero u a vida. Se a tentação foi o p o n to crucial, a cruz c a ressurreição foram o p o n to c u lm i nante da obra de C risto na recapitulação. Ao m o rre r em obediência a D eu s, Jesu s C risto fez o sacrifício su p re m o e co n q u isto u a m orte. O q u e participa v o lu n taria m en te da nova h u m an id ad e de C risto escolhendo ele, e não ao p rim eiro Adão, co m o sua “cabeça”, pelo arrep e n d im en to , pela fé e pelos sacram entos, recebe a transform ação q ue se to rn o u possível pela encarnação d o F ilho de D eus. Ele entra para um a nova h u m an id ad e — de um a nova raça — com a esperança de co m p arti lhar da própria n atureza divina e im ortal de D eus. Para Iren eu , p o rtan to , a redenção foi um a restauração da criação, e não um a evasão da criação, co m o na soteriologia dos gnósticos. Foi o processo de inversão da co rru p ção q u e invadiu a criação por m eio da queda de Adão e “o fim desse processo é a en trada do h o m em em um a vida não m ais sujeita às lim itações da existência gerada; u m a vida na qual, de fato, as responsabilidades da condição de c ria tu ra são so b re p u ja d as pela graça d e D e u s. Essa vida é ca rac te rizad a pela incorruptibilidade originada e causada pela visão de D eus e pelo reflexo da glória de D eus n o p ró p rio h o m e m ”.6 Iren eu claram ente concebia a salvação co m o a tran s form ação dos seres h u m an o s em participantes da natureza divina (2Pe 1.4). Essa idéia da redenção — conhecida pelos pais posteriores da igreja co m o “divinização” ou “deificação” (theosis) — en co n tra-se na base da visão de Iren eu da obra de C risto co m o um a recapitulação. O p ro p ó sito e objetivo de D eus na redenção é inverter o pecado, a co rru p ção e a m o rte in tro d u zid o s na h u m anidade p o r A dão e levar a h u m an id ad e à vida e à im ortalidade. A encarnação oferece essa possibilidade ao fu n d ir a hu m an id ad e com a divindade. O s seres h u m an o s po d em ser “divinizados” pela solidariedade com
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C risto , sem deixarem de ser h u m an o s e sem se to rn arem o p ró p rio D eus. A e stru tura básica dessa idéia de salvação é aceita pela m aioria dos pais posteriores da igreja. D u ran te a R eform a do século xvi, n o en tan to , a m aioria dos teólogos p ro tes tantes rejeitaram -na o u negligenciaram -na em favor d o conceito m ais forense (ju rídico) e individualista da salvação de u m a reconciliação pessoal com D eus. N o fim do século n, a história da teologia cristã havia feito grandes progressos desde seu início e ainda tin h a u m longo cam in h o a percorrer. A teoria de Iren eu da redenção co m o recapitulação re p resen to u u m salto q u ân tico da reflexão in te lectual para além do m o ralism o sim ples dos pais apostólicos. M esm o assim , d ei xou m uitas perg u n tas sem resposta n o tocante ao relacio n am en to en tre o Verbo e D eus Pai, ao E sp írito S anto e à unidade dos três. T am bém não explicou co m o a redenção é aplicada aos indivíduos e p o r q u e alguns são incluídos na nova h u m a nidade de C risto e o u tro s não. Essas e m uitas outras p erguntas passaram a ocupar u m lugar de d estaque e forneceram m atéria para debates e controvérsias teológi cas posteriores. N o fim do século u e início do século m (200/201), o gnosticism o e o m ontanism o com eçaram a p erd er sua im portância e influência. Estavam surg in d o novas heresi as que seriam enfrentadas p o r T ertuliano, C ip rian o e o u tro s pais eclesiásticos do século ui. O s bispos na sucessão apostólica estavam co n seguindo o m o n o p ó lio na autoridade das igrejas, de m o d o q u e cada vez m ais pessoas, de d en tro e de fora das igrejas, reconheciam u m a igreja ortodoxa e católica de C risto , relativam ente unida, representada pelos bispos. Isso to rn o u m u ito fácil d erro tar as várias heresias em er gentes, em bora, co n fo rm e verem os, essa luta não deixasse de rep resen tar u m desa fio. A idéia da salvação sendo recebida p rim ariam en te p o r m eio dos sacram entos, inclu in d o -se o batism o infantil e o da eucaristia, estava se to rn an d o norm ativa, em b o ra algum as vozes se levantassem em protesto. A igreja e sua e stru tu ra e teolo gia estavam p au latin am ente se form alizando e padronizando. U m a certa linha de ortodoxia, representada especialm ente p o r Inácio, J u stin o M ártir e Iren eu , estava sen d o am p lam en te reconhecida e aceita. Q u a n d o o século li chegou ao fim e o século m com eçou a despontar, havia ainda um a im p o rtan te perg u n ta sem resposta n o horizonte. Q u a l era exatam ente a relação en tre a filosofia grega e o pen sam en to cristão? O s apologistas não tin h am resolvido esse com plexo problem a. N a verdade, tin h am co n trib u íd o para com plicálo. P erto do início d o século m, dois grandes pais da igreja, provenientes da África do N o rte , surgiram na história da teologia cristã para resolver essa e outras q u es tões correlatas. A m bos criaram as bases para a reflexão teológica p o sterio r cm suas regiões da África do N o rte . C lem en te de Alexandria fu ndou a “Escola de Alexandria” no Egito, o n d e se falava grego, e influenciou p ro fu n d am en te toda a região oriental do cristianism o n o Im p ério R om ano. T ertuliano, de C artago, e n c am in h o u a região
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ocidental d o cristianism o, on d e se falava latim , para o u tra direção. As diferenças en tre eles ajudam a explicar p o r q u e a G rande Igreja, tan to o rtodoxa co m o católica, acabou se div id in d o e seguindo cam inhos diferentes até a Igreja O rto d o x a O rie n tal e a Igreja C atólica R om ana.
S e g u n d a P arte A t r a m a se c o m p lic a : Tensões e transformações do século m
U século li testem u n h o u grandes m udanças 110 pensam ento cristão a respeito de D eus e da salvação. Elas podem ser consideradas u m desvio e digressão da m ensagem de Jesus e dos apóstolos o u com o u m desdobrar e desenvolvim ento do significado dessa m ensagem em novos contextos. Talvez o m elhor seja ver a tendência global da teologia cristã n o decurso do século com o um a m istura de digressão e desenvolvi m ento. O s prim eiros teólogos cristãos foram os pais apostólicos e, em bora tenham procurado m an ter algum a sem elhança e união na igreja e com eçado a luta contra heresias com o o gnosticism o, tam bém apresentavam o evangelho cristão com o um a m ensagem de m oralidade. Alguns introduziram idéias a respeito dos bispos e dos sacram entos que m uitos cristãos consideram bastante estranhas ao espírito do n t . O seg u n d o g ru p o de teólogos cristãos foram os apologistas. Esses escritores voltaram sua atenção ao m u n d o hostil fora da igreja e tentaram explicar a cosm ovisão e o estilo de vida cristãos aos sofisticados e poderosos líderes do Im p ério R om ano de m aneira inteligível e atraente. Ao fazerem isso, im pediram q u e o cristianism o se tornasse apenas m ais um a religião de m istério secreta d o im pério, abriram espaço para o p en sam en to cristão de m o d o b em d istin to da teologia e adoração judaicas e associaram a fé cristã ao universo m ais am plo da filosofia grega. A lguns deles co m eçaram a fazer especulações sobre a m isteriosa crença cristã na trin d ad e de u m só D eus e a sua com patibilidade com o m o n o teísm o d o ju d a ísm o e d o platonism o. Por isso, criaram e desenvolveram o conceito do Logos e, em bora ten h am re sp o n d ido a algum as questões a respeito da relação d o Salvador Jesu s C risto com D eus, deixaram m uitas ou tras perguntas sem resposta e u m legado u m tanto confuso. O s apologistas tam b ém costum avam adotar o m o d o grego de pensar e de falar a res peito de D eus e de sua relação com o m u n d o q u e a eles parecia se encaixar m u ito bem nos ensinos bíblicos e apostólicos. A lguns pensadores cristãos d o século ui e séculos posteriores, n o entanto, protestariam contra essa am álgam a de p en sam en tos bíblicos e gregos, acusando-a de sin cretism o ilegítim o — a m istura de elem e n tos estranhos em u m co m p o sto instável.
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F inalm ente, o fim do século n te ste m u n h o u a ascensão da verdadeira teologia construtiva com o grande Ireneu. Ele criou o p rim eiro sistem a de en sin o d o u trin á rio cristão em m eio ao calor de controvérsias com heresias, especialm ente as várias escolas gnósticas. Seu conceito da salvação vista co m o recapitulação foi u m passo além de q u alq u er coisa claram ente delineada nas E scrituras o u nos escritos dos apóstolos, q u an d o a intenção era ser nada m ais d o que sua interpretação. As idéias de Ireneu a respeito da encarnação salvífica, da solidariedade da hu m an id ad e cm Adão e em C risto e da obra de C risto co m o a inversão da desobediência de Adão to rn aram -se u m padrão do pensam ento, pregação e ensino cristãos tan to das igre jas orientais com o das ocidentais nas eras seguintes. D e m uitas m aneiras, a in ter pretação básica do evangelho feita p o r Iren eu estabeleceu u m a espécie de base na teologia ortodoxa. Foi so m en te com a R eform a p rotestante d o século xvi q u e o pen sam en to de Iren eu se to rn o u u m tanto co ntrovertido, q u an d o os reform adores e os seus h erd eiro s exam inaram a história da teologia cristã para e n c o n trar os des vios d o que consideravam a verdadeira base e autoridade absoluta: a Bíblia Sagra da. H avia conceitos de Iren eu q u e pareciam alheios das E scrituras e alguns pensa dores protestantes acusaram a teoria da recapitulação de ser um a idéia “excessiva m en te fisiológica” da salvação q u e se desviava da ênfase de Paulo ao perdão e à reconciliação. Q u a n d o o século n chegava ao fim , surgia um a nova era na história da teologia. A localização central geográfica e cultural da história m u d o u -se para a África do N o rte . A filosofia grega e sua relação com o evangelho cristão e os ensinos apostó licos to rn aram -se grandes tem as de discussão en tre os pensadores cristãos dessa região. D as cidades da África do N o rte , com o A lexandria e C artago (na região hoje cham ada Tunísia) surgiram os grandes defensores, intérpretes e organizadores do pen sam en to e da vida cristãos do século m. M uitos cristãos ocidentais da atualidade su rp re en d em -se ao descobrir q u e foi a África, e não a E uropa, que p ro d u z iu a m aioria dos grandes pensadores e líderes cristãos dos prim eiro s séculos. U m m elh o r en te n d im e n to do Im p ério R om ano, no en tanto , explicaria p o r que isso era verdadeiro e natural. A lexandria, no Egito, era a segunda m aior cidade do im pério e, de m uitas m aneiras, o ce n tro cultural e intelectual. A cidade q ue recebeu o n o m e de A lexandre, o G ran d e era u m cadinho de filosofias, religiões e tradições étnicas q u e co n trib u íam para o am biente co sm o polita. O grande filósofo e com entarista bíblico ju d e u Filo viveu e trabalhou ali nos tem pos de Jesu s e deixou sua m arca 110 ju d a ísm o helenístico, q u e p o r sua vez influ en cio u o p en sam en to cristão dessa cidade. U m a rica tradição de platonism o floresceu em A lexandria nos p rim eiro s séculos d o cristianism o e in fluenciou ine vitavelm ente o m o d o q u e os cristãos pensavam e ensinavam a respeito de D eus e da espiritualidade, co n fo rm e verem os especialm ente no caso de C le m e n te e de
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O ríg e n e s, os d o is m aio re s p e n sa d o re s cristão s alex a n d rin o s d o sécu lo m. O gnosticism o exibia presença poderosa em Alexandria e arredores, assim com o m uitas outras religiões de m istério. F inalm ente, em issários de religiões e espiritualidades orientais, co m o várias form as do h in d u ísm o , estavam atu an d o em Alexandria. O gnosticism o e algum as religiões orientais costum avam enfatizar o aspecto esp iritu al m ais do que o físico, e consideravam a existência n o corpo co m o um a espécie de encarceram ento. T am bém costum avam enfatizar o aspecto etern o (intem poral) mais do que o histórico, e consideravam o tem p o e a história fatores lim itantes, ou até m esm o ilusórios. A lguns críticos diriam q u e eles “pensavam tan to n o céu q u e de nada prestavam na terra”, em b o ra talvez isso seja u m exagero. Seja co m o for, a presença in flu en te dos gnósticos e dos m issionários das religiões o rien tais em Alexandria ajuda a explicar o sabor especial d o p en sam ento cristão alexandrino, com ênfase para os significados espirituais ocultos nas E scrituras hebraicas e nos escritos apostólicos e a especulação a respeito da natureza da alm a, da vida além da m o rte e d o m u n d o espiritual. Ajuda, tam bém , a explicar p o r q u e surgiu naquele am biente cu ltu ral a tradição ascética cristã da espiritualidade m ediante o repúdio aos confortos, desejos e prazeres. Já no fim do século n e início do século ui, o cristianism o florescia em Alexandria e im ediações. U m a das prim eiras escolas catequéticas cristãs (sem elhante a u m sem inário) foi fundada ali naquela época e dela surgiu um a série de grandes pensa dores e teólogos especulativos cristãos que foram influenciados pela cu ltu ra da quela cidade e religião e que, p o r sua vez, ten taram influenciá-las. C o n fo rm e nota o h isto riad o r da igreja prim itiva, H . K raft, em seu e stu d o da escola cristã de A lexandria: “Em A lexandria as diferentes religiões e filosofias estavam dispostas a en trar em co ntato m ú tu o para ap ren d erem um as com as outras e exercerem influ ência m útua. M as ju n to com tal sincretism o, en co n tram o s tam b ém um a m issão e apologética; isso significa q u e cada co n ju n to de convicções procurava se estabele cer com o su p erio r aos dem ais”.1 Essa era a dupla m issão dos grandes m estres cris tãos alexandrinos, C lem en te e O rígenes: d em o n strar a com patibilidade básica do m elh o r do p en sam en to grego com as crenças cristãs e d em o n strar a superioridade do cristianism o, co m o o pináculo da verdade acim a d o p en sam en to grego e de todas as dem ais filosofias e cosm ovisões alternativas. A tarefa deles era m u ito se m elhante à dos apologistas de o u tro ra e p o r vezes aparecem e n tre os apologistas nas listas dos teólogos da igreja prim itiva. U m a grande diferença, n o entanto, en contra-se n o fato de q u e escreviam , em geral, aos o u tro s cristãos e em favor deles, e não aos filósofos gregos e aos líderes d o im pério. U m a abordagem co m p letam en te d iferente do p en sam en to c vida cristãos desenvolveu-se a várias centenas de q u ilô m e tro s da África d o N o rte , na cidade de C artago e arredores. C artago ficava no lado d o m ar M ed iterrân eo oposto a R om a e
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vivia de u m intercâm bio ativo com ercial e cultural com a capital do im pério. E m bora a filosofia dificilm ente ficasse ausente de seu am biente, a atm osfera cultural de C artago e daquela parte da África do N o rte era m u ito m ais pragm ática do que especulativa. C artago tinha um a rica tradição no d ireito e na v irtu d e cívica, bem co m o n o com ércio. O platonism o e outras filosofias especulativas e espirituais não eram desconhecidos, m as o estoicism o — u m a filosofia grega q u e enfatizava a m o ralid ad e e a ju s tiç a — costum ava ch a m a r a aten ção e p o v o ar a m en te dos cartagineses. O s cristãos em C artago estavam interessados em desenvolver u m sis tem a sadio de vida eclesiástica que resistisse às tem pestades vindouras do im pério e fornecesse um a base para a c o m u n h ão e vida m oral cristãs. C ertam e n te , interes savam -se tam b ém pelas questões doutrinárias e pesquisavam p ro fu n d am en te as controvérsias que surgiam en tre os vários m estres cristãos em R om a, p o r exem plo; m as, de m o d o geral, a sua atenção voltava-se m ais para a vida prática e judicial da igreja do q u e para as especulações a respeito das realidades espirituais e invisíveis além da vida cotidiana das pessoas com uns. E m b o ra seja reco n hecidam ente um a generalização, não seria errad o dizer q u e a cu ltu ra e o cristianism o alexandrinos costum avam fixar sua atenção no m u n d o espiritual, en q u a n to a cu ltu ra e o cristianism o cartagineses fixavam sua atenção m ais nesse m u n d o . São considerações dificeis de serem explicadas e defendidas, mas u m estu d o cuidadoso dos principais pensadores das duas regiões da África do N o rte revela um a sutil diferença en tre ênfase e atenção. N a sua m aioria, os cristãos de C artago tin h am profundas reservas em relação à m entalidade especulativa dos alexandrinos. O s alexandrinos, se prestassem q u alq u er atenção em seus irm ãos de fé de C artago, certam ente devolveriam essa observação em sen tid o inverso, consi deran d o a falta de interesse dos cartagineses pela especulação filosófica u m a m an i festação de anti-in telectualism o cristão. O s principais pensadores cristãos da parte ocidental da África do N o rte (a re gião que tin h a C artago n o centro) foram T ertuliano c C ipriano. N e n h u m o u tro líder o u pensador cristão de R om a ou de q u alq u er o utra parte da E uropa destacase desses dois em igual pro fu n d id ad e de p en sam en to e influência nesse período transicional e transform ativo da teologia cristã prim itiva. A m bos eram lidos e d e batidos em grande escala em R om a e em outras partes do im pério, e seu im pacto era sentido em todos os lugares en tre os cristãos, especialm ente na m etade o cid en tal do im pério o n d e se falava o latim. D u ra n te o século m, a teologia cristã avançou a passos largos, m as tam bém sofreu grandes reveses. A perseguição na escala do im p ério in teiro paralisou por várias décadas a reflexão e interações cristãs. O s pensadores e líderes cristãos tive ram de fugir tem en d o p o r suas vidas; seus livros foram recolhidos e queim ados. Isso aco n teceu esp ecialm ente na segunda m etade d o século q u an d o , então, os
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im peradores D écio e D iocleciano in stitu íram perseguições aos cristãos p o r to d o o im pério q ue os forçaram a viver na proscrição e silenciaram m uitas das principais vozes cristãs. S urgiram diversas heresias q u e foram refutadas pelos líderes cristãos, m as que conseguiram subsistir vigorosam ente. Vários cism as im portantes co n ti nuaram ou surgiram no século m. O m o n tan ism o floresceu em C artago — longe do local de origem na Ásia M enor. A lguns cristãos na liderança, in clu in d o -se o p ró p rio T ertuliano, desviaram -se para ele algum as vezes. O u tra s seitas cristãs su r giram d u ran te o século ui. E m R om a, o cism a novaciano provocou u m ro m p im e n to na igreja e, na África d o N o rte , os donatistas, d u ra n te algum tem po, to rn aram se m ais n u m ero so s do q u e os adeptos da própria G rande Igreja2 (católica e o rto d o xa). A despeito das grandes perseguições e dos m artírios de grandes líderes cristãos com o C ip rian o , a igreja cresceu e floresceu. T ertuliano escreveu asperam ente c o n tra a perseguição dos im peradores, m as ao m esm o tem p o en corajou-os com a d e claração de q u e “o sangue dos m ártires é a sem ente [da igreja]”. Isso parecia ser verdade. Q u a n to m ais os líderes rom anos tentavam rep rim ir a “seita” do cristianis m o, m ais ele crescia em n ú m e ro e determ inação. D u ran te o século m, as prim eiras construções eclesiásticas — cham adas “basílicas” — foram levantadas para a adoração cristã. O cânon das E scrituras cristãs foi prati cam ente solidificado, em b o ra seu re co n h ec im e n to oficial e sua aceitação universal ten h am v in d o apenas quase u m século m ais tarde. A organização institucional do cristianism o desenvolveu-se nos m oldes da o rd em im perial de R om a, com os bis pos paulatin am en te to rn an d o -se arcebispos das “sés” m etropolitanas, os grandes cen tro s urb an o s q u e form avam os eixos d o com ércio e da cultura. Sem total liber dade de m o v im en to e de com unicação, to d o esse desenvolvim ento aconteceu em breves m o m en to s isolados e sofreu sérios reveses em determ inadas ocasiões. N o en tan to , no fim do século (300), a igreja ortodoxa e católica cristã do Im p ério R om ano — a única igreja cristã da qual se sabe algum a coisa nessa época — estava fo rtem en te en trin ch eirad a em quase todas as cidades e regiões e em condições de se to rn ar a força religiosa d o m in an te nos cem anos que se seguiriam . Isso se deve, em grande m edida, aos esforços de h o m en s co m o C le m e n te e O rígenes n o O rie n te e T ertuliano e C ip rian o no O cid en te.
5 Fêhsadores norte-africanos examinam a filosofia
.A. relação entre a filosofia e a teologia cristã tem
sido um a questão extrem am ente co n tro v ertid a d o p en sa m e n to cristão n o d ecu rso de sua história. C le m e n te de Alexandria e T ertuliano de C artago representam extrem idades opostas do espectro cristão a respeito dessa questão. E m bora m uitos pensadores cristãos posteriores te nham procurado m ediar entre esses dois pólos, sem pre surgiram pessoas que se ali nharam a u m o u outro. C lem en te seguiu os passos de Ju stin o , o grande apologista e m ártir do século n, e considerava o cristianism o a verdadeira filosofia q u e não co n tradiz nem anula a filosofia grega, m as a com pleta. Ele enxergava o m elh o r do pensa m ento grego, com o as filosofias de Sócrates e de Platão, com o preparação para o evangelho e com o ferram enta útil nas m ãos de pensadores cristãos habilidosos. Por causa desse grande apreço e do uso construtivo do pensam ento não-cristão, C le m ente é rotulado p o r alguns de “quase o p rotótipo de u m teólogo liberal”.1 T ertuliano (quase co n tem p o rân eo d e C lem en te) ad o to u a atitu d e oposta em relação à filosofia pagã e sua relação com o p en sam en to cristão. E m b o ra não se saiba se ele se referia à teologia de C lem en te, é quase certo q u e pensava nessa abordagem da filosofia e da teologia q u an d o p erg u n to u exasperado: “O q u e A tenas tem que ver com Jeru salém ?”. P orém , a verdade dessa q uestão é q u e n e m C le m e n te n em T ertuliano eram tão extrem os nessa questão q u an to m u ito s têm sugerido. C lem en te certam en te não te n to u re d u zir o cristianism o a um a filosofia grega genérica revestida d o evangelho para to rn á-lo m ais agradável e aceitável às m entes alexandrinas sofisticadas. Ele não te n to u resolver todos os conflitos en tre eles c o n ciliando-os em u m a síntese. Esse fato fica claro em sua rejeição à idéia grega de que o universo é etern o e de q u e sua criação foi m eram en te o plasm ar e m oldar da m atéria p o r u m d em iu rg o ou sem ideus. Ele insistia na d o u trin a da creatio ex nihilo (criação a p artir do nada) co m o o conceito cristão de D eu s e d o m u n d o , em bora ela fosse u m a afronta a todos os grandes pensadores e sistem as de p en sam ento gregos. A pesar disso, C lem en te realm ente fez de tu d o para e n c o n trar e d e m o n strar
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todas as possíveis sem elhanças en tre a filosofia de Platão (por exem plo) e os ensi nos dos apóstolos. Tertuliano, em sua teologia, não evitou in teiram en te a influência da filosofia grega. E m bora procurasse apresentar u m co n ju n to de d o u trin as p u ram en te bíblicas e apostólicas, p erm itiu q u e determ inadas idéias estóicas, co m o a natureza essenci alm ente m aterial de toda a existência, se insinuassem sem serem notadas. Para T ertuliano, assim com o para os estóicos, até o “esp írito ” não passava de um a form a refinada de m atéria. E tradicional enfatizar, n o e n ta n to , a ex trem a polaridade e n tre C le m e n te e T ertuliano nesse aspecto e os leitores devem saber q u e eles realm ente estabelece ram trajetórias opostas do pen sam en to cristão q u e ainda hoje existem . C lem en te é o p ro tó tip o d o teólogo cristão intelectual e filosófico liberal, q u e procura fazer, na m edida do possível, um a síntese e n tre a fé cristã e a cultura. U m “C le m e n te ” do século xx seria Paul Tillich (1886-1965), teólogo e filósofo alem ão q u e ten to u har m o n izar as várias filosofias com a revelação divina usando u m “m éto d o de correla ção”. U m “T ertu lian o ” do século xx seria o teólogo suíço Karl B arth (1886-1968), q u e não conseguiu, apesar de todos os esforços, evitar inteiram en te q u alq u er in d í cio de filosofia até m esm o em sua teologia m adura. B arth, assim co m o T ertuliano, ten to u criar u m sistem a de crenças p u ra m e n te cristão sem q u alq u er influência dos m odos pagãos ou seculares de pensar. N o decurso dos séculos da teologia cristã, o papel da filosofia n o p en sam en to cristão to rn o u -se u m grande p o m o de discórdia e assim p erm anece até hoje.
A vida e a carreira de Clemente O s p o rm e n o re s da vida de C le m e n te da A lexandria são cercad o s d e m isté rio . T u d o o q u e se sabe é q u e se to rn o u chefe da escola cristã d e ca te q u ese de A lexandria q u a n d o seu fu n d a d o r, P an ten o , m o rre u p o r volta d e 200 e q u e fu giu de A lexandria para evitar a p erseg u ição e o possível m artírio em 202. M o rreu em algum a data e n tre 211 e 216. Sua ligação com a hierarquia form al da igreja de Alexandria é u m a incógnita. N ã o parece ter sido o rd en ad o com o m in istro ou sa cerdote e seus escritos rejeitam n o to riam en te as considerações sobre a co m u n id a de dos cristãos e, em vez disso, evidenciam a espiritualidade e a vida intelectual do crente. Sem dúvida algum a, estava co n tam in ad o pelo platonism o m éd io q u e for mava a filosofia genérica da m aioria dos alexandrinos cultos e pode ter co n trib u íd o para o s u rg im e n to de u m n o v o tip o d e filo so fia p la tô n ic a c o n h e c id o co m o neoplatonism o. N ã o existe nada de co n creto sobre a vida, educação o u co n trib u i ção de C lem en te, afora os poucos m anuscritos q u e sobreviveram até hoje. M as é válido dizer q u e foi fo rte m e n te influenciado p o r Ju stin o M ártir. D e m uitas for m as, sua filosofia cristã parece ser u m a extensão da de Ju stin o .
Pensadores norte-africanos exam inam a filosofia
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C in co livros de C le m e n te existem ainda hoje: Exortações aos pagãos, O instrutor, Stromata, Quem é o rico que será salvo? e Seleções de Teodócio. E m u ito provável que todas essas obras ten h am sido escritas q u an d o C lem en te era d ire to r da escola cristã em Alexandria e visavam a instrução de h o m en s (e talvez de algum as m ulheres) jo v en s q u e p reten d iam se to rn ar líderes cristãos. Exortação aos pagãos é u m a polêm ica contra o paganism o, especialm ente contra as crenças e cultos considerados supersticiosos e idólatras p o r C lem en te. O livro apresenta u m q u ad ro m ais positivo da filosofia grega, especialm ente em relação ao que era co n sistente com a verdade cristã. P orém , m esm o assim . C le m e n te sugere v eem en tem en te q ue, se existe q u alq u er verdade na filosofia grega — e ele e n c o n tro u m uitas verdades ali — é p o rq u e os gregos em p restaram -n a de outras culturas e religiões co m o as d o Egito, da B abilônia e do povo hebreu. T udo o que gregos com o Sócrates e Platão falaram de verdade tiraram de fontes div in am en te inspira das co m o M oisés ou receberam d ireta m e n te pela inspiração de D eu s e do seu Verbo (Logos). O instrutor, tam b ém co n hecido pelo títu lo grego Paidagogos, trata d o divino Ver bo de D eus, o Logos. N esse p eq u en o livro C le m e n te faz considerações sobre Jesus co m o o Verbo cósm ico e a Sabedoria de D eus cujo papel principal na salvação é en sin ar pela exortação a vencer as paixões desnaturais e ter u m a vida p u ra m e n te espiritual de obediência, de contem plação e de ação racional. Acim a de tu d o , C le m en te ressalta q u e a vida cristã de obediência é um a vida consistente com a razão: “Pois a vida dos cristãos, na qual agora som os treinados, é u m sistem a de ações coerentes — ou seja, das coisas ensinadas pela Palavra — , u m a energia inesgotável que cham am os fé”.2 Stromata, tam bém cham ado Miscelâneas, é u m a tentativa de C lem en te de criar um a filosofia cristã abrangente. N essa obra, encontram os um a filosofia eclética e pouco sistem ática na qual C lem en te m istura m uitas fontes e tira inspiração de m u i tos poços. O autor expressa bem a abordagem : “N osso livro não hesitará em tirar proveito do que há de m elhor na filosofia e em outras instruções preparatórias”.3
Clemente e a filosofia grega Mais do q u e q u alq u er o u tro escritor cristão antigo, C lem en te de A lexandria dava valor à integração da fé cristã com a m elh o r cu ltu ra dos seus dias. Seu lem a era: “toda a verdade é a verdade de D eus, venha de onde v ie r”. E ele p ro c u ro u re u n ir os raios de verdade divina q u e e n c o n tro u que, seg u n d o acreditava, encontravam -se espalhados em diversos sistem as filosóficos e religiosos e su b m etê-lo s à autoridade suprem a das E scrituras hebraicas (interpretadas alegoricam ente, é claro) e da tra dição apostólica. C erto teólogo e histo riad o r co n tem p o rân eo resu m e o alvo global de C lem en te da seguinte m aneira:
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com base na Bíblia c com a ajuda de m étodos científicos para levantar um edifício de pensam ento especulativo que pudesse resistir à crítica, tanto com o uma interpretação da Bíblia quanto com o filosofia. [...] N ã o é exagero dizer que C lem ente foi o prim eiro que, de fato e não apenas de intenção, estabele ceu uma estreita relação entre a filosofia e a teologia.''
Q u an d o C lem ente escreveu sobre a filosofia c a em pregou, referia-se à filosofia grega genérica conhecida por platonism o tão difundida e influente em Alexandria, em Atenas e cm todo o Im pério Rom ano. Seus pensam entos estavam 110 limite entre o cham ado platonism o m édio e o neoplatonism o e provavelm ente tendiam para o últi mo. C lem ente tratou especificamente da questão da atitude negativa do apóstolo para com a filosofia nas suas Epístolas e argum entou que Paulo tinha em m ente apenas alguns sistemas específicos de pensam ento, com o o epicurism o e parte do estoicismo, mas não a filosofia em geral. C lem ente acreditava que o tipo certo de filosofia — aquele que é exemplificado em Sócrates e Platão e seus herdeiros em seu próprio tem po — era, de certa forma, “um a obra da Providência D ivina”.5 Ele considerava-a o m odo de D eus preparar os gregos para C risto, assim com o a Lei de M oisés era o m odo de D eus preparar o povo hebreu para a vinda de C risto com o o Messias. F reqüentem ente, fazia referências a “Platão, o amigo da verdade” cm seus escritos e chamava-o im itador de Moisés. O que C lem ente enxergava 110 platonism o de tão extraordinariam ente conducente ao en ten d im en to e à transm issão da verdade cristã? E ntre outras coisas, o platonism o rejeitava o panteão im oral e caprichoso dos deuses e deusas dos gregos e rom anos e focalizava um a única realidade espiritual ulterior, da qual derivavam a existência e a virtude de todas as coisas. C lem en te rejeitava a idéia da criação do platonism o com o um processo impessoal e eterno de origem divina e insistia na d ou trin a de um a cria ção tem poral “a partir do nada” pelo D eus das Escrituras. E ntretanto, com parado aos deuses e deusas da m itologia grega, que eram arbitrários e destituídos de ética e m oralidade, e às superstições das religiões de m istério, o platonism o parecia um aliado viável para o cristianism o do m u n d o pagão. Além disso, ele tinha um conceito da vida além da m orte e de um a dim ensão espiritual para tu d o e desviava a atenção das pessoas dos prazeres físicos e corporais para as realidades espirituais e superiores. Por tu d o isso, e m u ito mais, C lem en te en co n tro u reflexos e paralelism os da verdade cristã no m elh o r da filosofia grega. C lem en te acreditava q u e a filosofia ajudaria na luta d o cristianism o contra as heresias. O s falsos en sinos freq ü en tem en te surgem do m au e n te n d im e n to ; a filo sofia pro cu ra ser lógica e em prega a dialética (o exam e crucial) para testar as alega ções da verdade e as crenças. Se a revelação de D eus for inteligível, então o e m p re go da lógica e da dialética para estudar suas interpretações certam en te produzirá
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u m co n ju n to de crenças e m orais m ais saudável do q u e a ignorância. A respeito desse papel da filosofia, C lem en te escreveu: “A perspicuidade, p o rtan to , serve para a transm issão da verdade e a lógica serve para im p ed ir q u e caiam os nas heresias q u e nos assolam ”.6 Isso é irônico, ten d o em vista a censura de T ertuliano à filosofia com o a causa das heresias en tre os cristãos! Para C lem en te, a filosofia poderia ser vir de ctira para essas heresias.
O “gnosticismo verdadeiro” U m a das áreas m ais co ntrovertidas da teologia de C le m e n te é o seu ideal d o cristão com o “o verdadeiro gnóstico” ou “o gnóstico p erfeito ”. Por se en c o n trar suaves reflexos d o g n o sticism o nos escrito s de C le m e n te (assim c o m o o c o rre m no neo p latonism o), há q u em acredite q u e C lem en te era aliado dos gnósticos do sécu lo li e dos rem an escen tes n o século m. Isso é pouco provável. Por “v erdadeiro gn óstico”, C lem en te referia-se a u m a pessoa de sabedoria, q u e vive da m en te e rep u d ia a vida m ais m u n d an a, de busca dos desejos e prazeres da carne. Essa pes soa, seg u n d o o conceito de C lem en te, era um q espécie de Sócrates o u Platão, um a pessoa q u e resiste à tendência geral de “ir com a m aré” da turba confusa q u e se deleita nas bebedeiras e na busca do ganho m aterial. Ela q u e r d o m in ar todos os tipos de sabedoria, ficar acim a das paixões carnais e se to rn ar sem elhante a D eus em v irtu d e e sabedoria. C lem en te chegou a p o n to de declarar q u e o verdadeiro gnóstico cristão pode “se to rn ar D e u s” nesta vida, d esp in d o -se do “desejo” e to r nan d o -se “im passível, livre da ira”.7 O bviam ente, ele deixou claro q u e não queria dizer q ue o verdadeiro gnóstico realm ente se to rn a perfeito da m esm a form a que D eus é perfeito. Pelo contrário, queria dizer q u e essa pessoa se reveste da im agem de D eu s e se to rn a realm ente boa, em bora so m en te sob a form a de u m ser criado e d ep en d en te de D eus. Ele tinha em m en te a idéia da divinização, a idéia de q u e o alvo da salvação é co m partilhar da natureza divina refletindo a im agem de D eu s e alcançando a im ortalidade. Para C lem en te, q u alq u er realização da perfeição era obra de D eu s, levada a efeito pela pessoa h u m an a q u e se entrega a D eus ao re p u d iar a vida m ais m u n d an a da carne e ao buscar a vida m ais elevada da m en te pela contem plação e pelo estudo. O “m estre” no d ecurso desse processo in teiro é o p ró p rio Jesu s C risto , o V erbo do Pai q ue “cura as paixões desnaturadas da alm a p o r m eio de exortações”.8 C lem en te enxergava Jesu s C risto não apenas com o u m h o m e m q u e ensinava coisas boas e que teve a m o rte de u m m ártir co m o Sócrates, m as co m o a encarnação da Sabedo ria divina e, de certo m odo, o p ró p rio D eus. Se alguém afirm ar q u e n e n h u m cris tão antes do século iv pensava em Jesu s C risto co m o D eu s, é p o rq u e não leu C le m ente. Q u a n d o escreveu sobre C risto co m o nosso in stru to r, certam en te não quis dizer apenas que ele era u m “g rande m estre h u m a n o ”. N ão , seg u n d o C lem en te,
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Jesu s C risto era o Logos divino, o E spírito cósm ico da Sabedoria e da Verdade que e m an o u d o Pai e assum iu a form a hu m an a de Jesu s C risto . Ele era o co m p lem en to de todas as verdades parciais anteriores q u e apontavam para ele e ensina seu povo p o r diversos m eios. A alta cristologia de C le m e n te é expressa claram ente em O instrutor: Prestem atenção, m eus filhos, o n osso instrutor é co m o D eu s, seu Pai, de quem é Filho, im pecável, inculpável e com a alma destituída de paixões; D eu s na forma de h om em , im aculado, o m inistro da vontade de seu Pai, o Verbo que é D eu s, que está no Pai, que está à direita do Pai e que, tendo a forma de D eu s, é D e u s.9
A influência da filosofia grega sobre o pen sam en to de C lem en te m anifestou-se de várias m aneiras. E m p rim eiro lugar, ele tratava o corpo e a m atéria co m o um a “natureza in ferio r” e os contrastava n itid am en te co m a natureza “su p erio r e m e lh o r” da alm a, q u e descrevia co m o a parte racional do indivíduo. N esse p o n to ele difere d o gnosticism o, pois nega expressam ente que a m atéria o u o corpo são in í quos. São apenas inferiores ao espírito e à alm a. Essa idéia da h u m an id ad e e da criação é, n atu ralm en te, m ais platônica do q u e bíblica. Platão e seus herdeiros enfatizavam o lado espiritual da pessoa co m o su p erio r e m e lh o r do q u e o lado físico e eq u ip arav am -n o com a razão. E m b o ra talvez possam os e n c o n trar reflexos de sem elhante d u alism o nos ensinos bíblicos, a Bíblia não ensina, em lugar algum , que a alm a ou espírito é a parte racional da pessoa o u q u e o corpo é “a natureza in ferio r”. A tendência de C lem en te de equiparar a salvação com a perfeição sem e lhante à de D eus alcançada pela contem plação racional e pelo abandono de todos os desejos e paixões do corpo é u m verdadeiro grito: “Filosofia grega!”. Finalm ente, as idéias de C lem en te a respeito de D eus e da im agem de D eus no ser h u m an o revelam sua instrução grega. R epetidas vezes, C lem en te reitera a opi nião de que D eus não tem paixões e que é assim que o verdadeiro gnóstico deve ser. “Im itar a D eu s” pela “instrução do Verbo” (Jesus C risto) significa esforçar-se para atingir u m estado perfeitam ente livre de paixões por m eio do autocontrole. As pai xões e os desejos são lim itantes por natureza e D eus, de acordo com C lem en te e com a filosofia grega pred o m inante naquele tem po, é livre por natureza de todas as lim i tações das criaturas, inclusive de paixões (desejos e em oções). O D eus de C lem en te era sem elhante ao deus da filosofia grega, um a unidade sim ples sem partes n em paixões, que não pode nem m esm o ser descrita a não ser p o r com paração e q u e só se relaciona com o m u n d o da natureza e da história p o r interm édio de u m ser in term e diário cham ado Logos. A pessoa ideal de C lem en te — o verdadeiro gnóstico — é um ser h u m an o tão sem elhante a D eus quanto possível: controlado, sereno, inalterável e
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impassível, racional e calmo. É difícil não pensar nos “reis-filósofos” de Platão des critos no livro A república. A d o u trin a de C lem en te sobre D eus é u m reflexo e reform ulação no século ui dos ensinos de Atenágoras, apologista do século 11. Am bos pertencem à linha do pensam ento cristão q u e inteligentem ente fo rm u lo u u m con ceito cristão de D eus com patível com a especulação filosófica grega. U m a p ergunta óbvia para a interpretação de C lem en te a respeito da natureza divina é: co m o se explica a ira de lavé? Se D eu s não tem partes n em paixões, p o r que as E scrituras hebraicas descrev em -n o co m o irado, zangado e vingativo? C le m en te resp o n d eu : “A n tro p o m o rfism o s!”. Isto é, ele considerava as referências bíblicas à ira e vingança de D eus m eras figuras de linguagem o u form as co m o os seres h u m an o s percebiam e sentiam D eus. E co m o se explica a ira de Jesu s no tem p lo ao ver diante de si os cam bistas ladrões? E seu clam or de m ed o e agonia d u ran te a “paixão”? C lem en te não respondeu expressam ente a esses desafios ao seu conceito, inspirado pelo pen sam en to grego, de D eus e da pessoa perfeita. Po dem os so m en te d ed u z ir q u e ele diria q u e essas experiências e sen tim en to s faziam parte da h u m an id ad e d o F ilho de D eus e q u e não eram próprios de sua divindade. Essa é certam en te a resposta dada pelos teólogos posteriores q u e aceitaram o q u a d ro q u e C lem en te p in to u da natureza essencial de D eus. Toda narrativa bíblica que descresse D eus o u Jesu s C risto de m o d o im p ró p rio ao ser divino, C lem en te interpretava co m o u m a alegoria ou linguagem an tro p o m ó rfica o u relegava-a ao lado h u m an o do Filho de D eus na sua encarnação de Jesu s C risto.
A vida e a carreira de Tertuliano Tertuliano ficou horrorizado com toda a abordagem de C lem en te à teologia cristã. D edicou boa parte das energias com batendo-a. Esta, porém , não foi sua única con tribuição à teologia cristã. Tertuliano tam bém lutou contra várias heresias a respeito de D eus e de Jesus C risto que pouco ou nada se relacionavam com a filosofia grega, em bora ele acreditasse que sem pre se poderia encontrar essa influência m aligna agindo secretam ente em algum lugar com o a causa de todas as heresias. T ertuliano nasceu p o r volta de 150 d.C . em C artago, e provavelm ente passou toda a sua vida ali, em b ora tenha visitado R om a com freqüência. A lguns estudiosos acreditam q u e m orasse em R om a d u ra n te algum tem po. P or profissão, era advoga do. Q u a n d o se co n v erteu ao cristianism o p o r volta de 190, ded ico u seus co n h e ci m en to s e habilidades ju ríd icas ao esclarecim ento e defesa da fé cristã ortodoxa. N u n c a foi o rd en ad o ao sacerdócio, n em chegou a ser canonizado pela igreja cató lica e ortodoxa, a qual aban d o n o u p o r volta de 207, poucos anos antes da sua m o r te. E provável q u e ten ha m o rrid o de causas naturais por volta de 212. U m a das grandes controvérsias a respeito da vida de T ertuliano e a deserção, se é q ue foi deserção, da G ran d e Igreja dos bispos na sucessão apostólica. A tradição
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diz q u e se afiliou à igreja m ontanista da “N ova Profecia” em C artago devido à insatisfação com o declínio da forte igreja para a decadência m oral e teológica. N ão há provas disso, m as é um a tradição bem atestada q u e ajudaria a explicar p o r que esse grande escritor da igreja prim itiva, q u e era tão o rtodoxo na m aioria dos aspec tos, nu n ca foi canonizado. O s escritos de Tertuliano têm um espírito diferente dos de C lem en te e dos de toda a escola cristã de Alexandria. R ealm ente, ao com pará-los e contrastá-los, é ad mirável que essas duas abordagens à teologia cristã pudessem coexistir na m esm a igreja unida. N o entanto, depois d o lapso de Tertuliano para o m ontanism o, seu legado d en tro da igreja católica do O cidente co n tin u o u vivo nos pensadores cristãos que seguiram a abordagem de contrastar a revelação divina com a especulação h u m a na. C lem en te e seus seguidores no O rien te (especialm ente seu aluno O rígenes) cos tum avam procurar correlações entre a revelação e a especulação hum ana. A atitude e m entalidade teológicas de Tertuliano podem ser descritas com o m ais intolerantes diante da possibilidade de existir verdades genuinam ente úteis para a vida e o pensa m en to cristãos além da revelação divina. E m bora não rejeitasse a idéia, extrem am en te crucial para o em p reen d im en to de C lem ente, de q u e toda a verdade era a verdade de D eus, en co n tro u poucas verdades úteis ao cristianism o, exceto a revelação bíblica que D eus d eu a Israel e aos apóstolos que considerava inspirada e incom parável. E m bora os term os liberal e conservador descrevam os tipos m o d ern o s e não anti gos10 de teologia, talvez não seja com pletam ente inadequado dizer que Tertuliano é o pro tó tip o do pensador cristão conservador, o u até m esm o fundam entalista, ao passo que C lem en te é o p rotótipo do pensador cristão liberal. A m bos concordariam que toda a verdade é a verdade de D eus, onde ser que se encontre, m as C lem en te era m u ito m ais otim ista a respeito da capacidade da m en te h u m an a de colocar-se acim a das alegações aparentem ente conflitantes a respeito da verdade e descobrir um a síntese da verdade q u e transcendesse o pensam ento bíblico tradicional e o p en sam ento grego. Tertuliano era pessim ista a respeito da capacidade da m ente hum ana de evitar a idolatria e o sincretism o perigoso de tal esforço e advertia os cristãos a se guardarem d o estudo dem asiado da filosofia para não serem seduzidos pela heresia. O legado escrito de T ertuliano q u e ainda existe inclui cerca de trinta obras. N a m aioria, são tratados an ti-h erético s q u e visam desm ascarar os erros de vários m es tres cristãos de R om a. Contra Marcião, sua obra m aior que, em m u ito s aspectos, é a m ais im p o rtan te, consiste em cinco tom os. M arcião foi u m m estre en tre os cris tãos de R om a n o século 11 que ten to u forçar um a separação p erm a n en te en tre o cristianism o e tu d o q u an to era hebraico, inclusive o D eus de Israel (Iavé) e o Pai de Jesu s C risto. M arcião tam bém ten to u definir u m cânon de E scrituras cristãs, lim i tado a escritos gentios. A lguns dos seus pen sam en to s a respeito da hu m an id ad e e da criação tin h am um a pitada de gnosticism o e T ertuliano nada p o u p o u 110 seu
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ataque fu lm in an te co ntra os ensinos de M arcião. Ao fazer isso, T ertuliano expôs de m aneira nova m uitas crenças cristãs fundam entais, investigando a fu n d o os v erd a deiros significados e traçando as im plicações. O u tro objeto da ira anti-h erética de T ertuliano foi o m estre cristão ro m an o Práxeas. A crítica m aciça Contra Práxeas foi escrita depois de T ertuliano passou para o m o n tan ism o , m as sua influência em todas as igrejas cristãs ocidentais foi “im ed i ata e p erm a n en te”.11 Práxeas foi, talvez, o p rim eiro teólogo cristão que te n to u explicar a d o u trin a da Trindade com detalhes sistem áticos. Ao fazê-lo, po rém , parece q u e o b litero u com suas explicações a verdade ontológica da trindade das pessoas Divinas. Isto é, Práxeas negou q ue os cristãos cressem em três identidades, o u até m esm o relações, d en tro do ú n ico ser d iv in o . A teo ria de Práxeas p o s te rio rm e n te v eio a ser cham ada “m o dalism o” e foi revivificada p o r o u tro m estre posterior do cristianism o em R om a cham ado Sabélio. Por isso, o m odalism o é tam b ém conhecido, às vezes, pelo n om e de sabelianism o. T ertuliano percebeu que essa explicação m odalista da T rindade e u n idade de D eus era um a heresia perigosa e declarou isso de m o d o característico: “Práxeas serviu ao diabo em R om a de dois m odos: expulsando a profecia e in tro d u z in d o a heresia, expulsando ao E spírito [Santo] e crucificando ao Pai”.12 S egundo parece, Práxeas era an tim o n tan ista e p o r isso T ertuliano acusou-o de expulsar a profecia. A heresia que Práxeas é acusado de im p o rtar é o m odalism o. Se o m odalism o está correto, o E spírito Santo não é um a pessoa distinta d en tro da D eidade, m as sim plesm ente o u tro n o m e d o Pai e F ilho ou o u tra m anifestação dele e, além disso, não so m en te o Filho de D eus foi crucificado, m as tam bém o Pai.
A teologia de Tertuliano T ertuliano elaborou p o rm en o res m inuciosos da d o u trin a da T rindade por co n tras te com a heresia de Práxeas. Talvez p o r se desviar para o m o n tan ism o , a c o n trib u i ção de T ertuliano nessa área foi deixada de lado ou foi quase toda esquecida. O s cristãos orientais p o steriores tiveram que cam inhar lentam ente na m esm a direção p o r conta própria, em ignorância quase total da realização de T ertuliano. O resulta do final da d o u trin a form al da T rindade nos concílios e pelos credos dos séculos rv e v chegaram m u ito p erto das form ulações q u e T ertuliano havia feito quase 100 ou 150 anos antes. C o n fo rm e observa certo historiador: “O tratado de T ertuliano Contra Práxeas é significativo p o rq u e algum as de suas frases e term inologias parecem p re n u n ciar as fórm ulas q u e viriam a ser am plam ente aceitas séculos m ais tarde. Isso acontece na d o u trin a trinitária da m esm a form a q u e na cristologia”.13 Em certo sentido, portan to , T ertuliano foi o pai das doutrinas ortodoxas da Trindade e pessoa de Jesu s C risto, em bora ten h a m o rrid o fora da G rande Igreja católica e ortodoxa.
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Além de Contra Marcião e Contra Práxeas, T ertuliano tam bém escreveu um a,4/)o־ logia p or volta de 200 e u m tratado sistem á tico sobre a fé cristã, cham ado Prescrição contra os hereges, de data incerta. T ertuliano, às vezes, é citado en tre os apologistas por causa de sua Apologia que é dirigida aos “g overnantes do Im p ério R o m an o ” e co n tém arg u m en to s de linguagem extrem am en te ju ríd ic a contra os perseguidores d o cristianism o e em favor da inocência do cristianism o. E n tretan to , além de d e n u n ciar a injustiça do tratam en to dos oficiais rom anos aos cristãos, aApologia tam bém explica a vida, adoração e crença cristãs de u m a form a que, p o r vezes, vai m u ito além de tu d o já q u e havia sido escrito p o r o u tro s e q u e antecipava a o rto d o xia po sterio r co n fo rm e foi proposta pelos grandes concílios cristãos. Tertuliano esforçou-se para explicar por que os cristãos adoram a Jesus C risto e não a C ésar ou a q u alquer o u tro suposto deus e, ao m esm o tem po, insistem que D eus seja único e celestial. Para tanto, apelou ao conceito freqüentem ente usado do Logos de D eus e apropriou-se de um a analogia que viria a se tornar um a das predile tas dos pensadores cristãos que debateram essa questão. O Logos, conform e Tertuliano explicou cuidadosam ente, é tanto D eus com o o rebento de D eus m ediante o qual ele se relaciona com a criação. Esse Logos, obviam ente, é C risto, o Filho do Pai. Tertuliano usou o sol com o analogia para explicar essa relação: “Este raio de D eus, portanto, com o sem pre foi profetizado nos tem pos antigos, que desceu em determ inada vir gem e fez carne cm seu útero, é por nascim ento D eus e o h om em unidos em u m ”.14 E em Prescrição contra os hereges que a atitude negativa de T ertuliano para com a filosofia aparece pela prim eira vez. Sua “prescrição” contra todos os tipos de h e re sia q u e apareciam em R om a e arredores era q u e os cristãos deviam evitar te rm i n an tem en te a tentativa de racionalizar as crenças cristãs pelo uso de categorias e conceitos filosóficos gregos estranhos à verdade bíblica. A m aioria dos estudiosos concorda que a intenção dele era advertir contra o tipo de abordagem à teologia e à filosofia adotada an terio rm en te por Ju stin o M ártir, e p o r C lem en te de Alexandria em sua época. Sua fam osa (ou infam e) pergunta retórica aparece n o capítulo sete: “O que Atenas tem de fato q u e v er com Jeru sa lém ?”. '3Atenas refere-se à A cadem ia Platônica e, p o r extensão, a toda a filosofia grcga.Jeriisalém refere-se aos ensinos de Jesu s e dos apóstolos. E m bora T ertuliano não condenasse q u estio n am en to s e b u s cas dentro da fé e crença cristãs, isto é, d en tro dos lim ites da sucessão apostólica e da “regra da fé apostólica”, rejeitava, sem dúvida, q u alq u er estudo de fontes não bíblicas e não apostólicas para com plem entar, ou até m esm o interpretar, o te ste m u n h o da verdade q ue transcende toda a pesquisa e investigação hum anas. Algum as declarações de T ertuliano a respeito da fé e crença cristãs sem base filosófica parecem bastante extrem adas. Ele escreveu, p o r exem plo: “N ã o saber nada q u e se o p o n h a à regra (da fé) é saber todas as coisas”.16 A parentem ente, pelo m enos, essa declaração faz pouco o u talvez n e n h u m sentido. N o contexto global
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da Prescrição, no en tan to, T ertuliano u sou um a hipérbole para reforçar sua tese de q ue o co n h ecim en to m ais im p o rtan te é o que é consistente e q u e está em confor m idade com a m ensagem apostólica. M ais controversa é sua observação a respeito da crença cristã na encarnação e m o rte d o F ilho de D eus. C o n trad ize n d o as ten ta tivas de o u tro s teólogos de explicá-la de m o d o especulativo e filosófico, T ertuliano irro m p eu com “Ela deve ser crida exatam ente p o rq u e é absurda!” e “O fato está correto p o rq u e é im possível”.17 A despeito dessas explosões de fideísm o (crença pela fé cega), T ertuliano não era to talm en te antiintelectual e, sem dúvida, não acreditava nas coisas pela fé cega, sem n e n h u m a consideração o u exam e. O teólogo e histo riad o r J u s to G onzález tem razão ao abrandar a d u ra crítica d o pai latino da África do N o rte: Mas a verdade é que Tertuliano não é partidário do irracionalism o cego. Mas ele crê que existem coisas que são sim plesm ente maravilhosas dem ais para serem com preendidas, com o a crucificação ou o poder d o batism o. M as não se trata de uma declaração genérica de que a fé precisa se basear na im possibi lidade racional. N a realidade, ele crê que a especulação desenfreada pode co n duzir para fora do cam inho e que o que realm ente im porta para o cristão é a verdadeira revelação de D e u s.1“
O utrossim , Tertuliano rejeitaria veem entem ente o ideal do cristão m aduro com o o “verdadeiro gnóstico” exposto por seu contem porâneo, C lem ente de Alexandria. Para Tertuliano, o cristão m aduro era um a pessoa que não tinha o m en o r interesse na espe culação m ental além das Escrituras, dos ensinos dos apóstolos e da regra da fé da igreja (a tradição na transm issão dos ensinos dos apóstolos). Ele é im une a heresias, porque todas nascem da m era curiosidade intelectual além do que a igreja ensina e os cristãos sem pre creram . Além disso, o cristão m aduro tem um a vida m oralm ente rígida. T ertuliano tam b ém é acusado de ser o p rim eiro p u ritan o cristão devido aos seus volum osos escritos sobre a m oralidade, a obediência e o rigor n o co m p o rtam en to , d en tre os quais no vestir e na aparência apropriados. Aceitava a idéia prom ulgada em O pastor de Hermas, livro q u e p articularm ente gostava m u ito e pelo qual foi influenciado, de que aos cristãos são perdoados so m en te p o r u m pecado grave e deliberado depois do batism o. Por esse m otivo, argum entava com veem ência q u e o batism o devia ser adiado até q u an d o o crente tivesse certeza de po ssu ir forças para não m ais pecar.19
Tertuliano a respeito da Trindade E m b o ra T ertuliano fosse m ais co n hecido p o r sua rejeição da teologia instruída pela filosofia, sua co n tribuição m ais im p o rtan te ao p en sam en to cristão acha-se na
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descrição cuidadosa e bastante exata da d o u trin a da T rindade contra a de Práxeas. C o m poucas exceções, as exposições por T ertuliano tan to da d o u trin a da Trindade co m o da h u m an id ad e e divindade de C risto fo rm aram os alicerces da ortodoxia eclesiástica oficial n o O rie n te e no O cid en te. N ã o se sabe até q u e p o n to e com o seu p en sam en to influ enciou os líderes eclesiásticos e os teólogos em data p o steri or, m as os paralelos co n c eitu ais são fantásticos. N ã o seria exagero d iz e r q u e T ertuliano parece ter resolvido essas d o u trin as séculos antes que o restante da igre ja as solucio-nasse, e se os líderes eclesiásticos e teólogos posteriores tivessem dado ao m en o s u m pouco m ais de atenção a T ertuliano, m uitas disputas e controvérsias teológicas p o d eriam ter sido evitadas. N o O c id e n te latino, as form ulações de T ertuliano talvez ten h am sido negligenciadas p o r causa de sua deserção para o m o n tan ism o . E as igrejas orientais po d em ter ficado sim plesm ente inconscientes da existência dos escritos de T ertuliano p orque ele escrevia em latim , um idiom a cada vez m e n o s e s tu d a d o 110 O rie n te , e p o rq u e ele era tão v e e m e n te m e n te antifilosófico, ao passo q u e a m aioria das principais vozes da teologia oriental atri buíam grande valor à filosofia co m o ferram enta conceituai para a teologia. As d o u trin as de T ertuliano a respeito da T rindade e da pessoa de C risto foram forjadas no calor da controvérsia com Práxeas, que, segundo T ertuliano, “sustenta q u e existe um só S enhor, o T odo-P oderoso criador do m u n d o , apenas para poder elaborar um a heresia com a d o u trin a da unidade. Ele afirm a q u e o p ró p rio Pai desceu para d en tro da V irgem , q u e ele m esm o nasceu dela, q u e ele m esm o sofreu e que, realm en te, era o p ró p rio Jesu s C risto ”.20 T ertuliano c u n h o u o ró tu lo de patripassianismo para essa heresia, que significa “o so frim en to (e a m orte) d o Pai”. Essa palavra se to rn o u p o r fim sin ô n im o teológico para a teoria m odalista da T rin dade, proposta p or Práxeas e p o r Sabélio n o d ec o rre r das eras da história da igreja. Segundo parece, Práxeas ensinava que existe u m a só identidade pessoal em D eus e que essa identidade singular podia ser m anifestada co m o o Pai, o u co m o o Filho, ou co m o o E spírito Santo. M odalistas posteriores em pregariam as figuras e a lin guagem do teatro grego e ro m an o para ilustrar sua idéia da d o u trin a cristã correta da Trindade: u m ú n ico ator ou atriz podia d ese m p e n h ar três papéis na m esm a peça de teatro, ao vestir m áscaras diferentes. A palavra usada para designar a m áscara das peças de teatro é a m esm a freq ü en tem en te usada para “pessoa”. A ssim os m odalistas podiam dizer que, q u an d o os cristãos confessaram a fé em “u m só D eus em três pessoas” (ou linguagem sem elhante) não estavam violando o m o n o teísm o ju d aico e grego p o rq u e as “três pessoas” são apenas m áscaras q u e o ún ico D eus usa no “palco” da história. T ertuliano foi o p rim eiro teólogo cristão a co n fro n tar e rejeitar com grande vigor e clareza intelectual essa visão ap aren tem en te singela da trindade e unidade de D eus. Ele declarou que se esse conceito fosse verdade, então o Pai tinha m o rrid o
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na cruz e isso, além de ser im p ró p rio para o Pai, é absurdo. O teste m u n h o apostó lico diz claram ente q u e so m en te o F ilho m o rre u na cruz. C o n tra o m odalism o de P ráxeas, T e rtu lia n o d e se n v o lv e u o c o n c e ito u m p o u c o m ais c o m p le x o d o “m o n o teísm o o rgânico”, isto é, a “u nicidade” de D eus não im pede n em exclui q u alq u er tipo de m ultiplicidade, assim co m o os organism os biológicos podem ser “u m ” e, ao m esm o tem po, consistir em partes interligadas e m útuas. E m Contra Práxeas T e rtu lia n o fo rn e c e u u m a d eclaração b astan te clara d o m o n o teísm o orgânico: Todos [os três: o Pai, o Filho e o Espírito Santo] provém de U m , pela unida de (procedente) da substância; mas o m istério da dispensação ainda deve ser guardado, que distribui a U nidade cm uma Trindade, colocando na devida ordem as três Pessoas: o Pai, o Filho, c o Espírito Santo; três, porém , não em condição mas em grau, não na substância, mas na forma, não n o poder, mas no aspecto e, não obstante, de uma só substância, uma só condição e um só poder.21
Em outras palavras, de acordo com T ertuliano, o D eus n o qual os cristãos acre ditam está em uma só substância e três pessoas (una substantia, tres personae), sendo que p o r substância ele se referia à existência ontológica fun d am en tal q u e faz com que um a coisa seja o q u e é e p o r pessoa se referia à identidade de ação q u e fornece a qualidade de ser distinto. A idéia básica subjacente é a “distinção sem divisão". T ertuliano não m edia esforços para dem onstrar, com base nas Escrituras, q u e as três pessoas divinas são distintas en tre si. N essa dem onstração p o rm enorizada, fica claro q ue T ertuliano aceitava co m o inspirados e autorizados a m aioria dos livros q u e p o sterio rm en te vieram a se to rn ar o n t cristão c q u e pelo m en o s alguns dos seus o p o n en tes co n sid eravam -nos da m esm a form a. S egundo argum entava T ertuliano, em bora o Pai fosse de certo m o d o “m a io r” do que o Filho e o E spírito, ele n u n ca existiu sem eles. O Verbo e o E spírito existi am em D eus Pai antes d o m u n d o passar a existir e “su rg iram ” dele sem de form a algum a ficarem perdidos o u separados da origem da sua existência em D eus Pai. Eles são inseparáveis, indivisos e, n o entanto, pessoas distintas do Pai, q u e p erm a nece o “m o n arca” sobre tudo. Assim com o o u tro s pais da igreja prim itiva, T ertuliano gostava de em pregar analogias tiradas da criação a fim de ilustrar idéias e princípios teológicos abstratos: Ora, o Espírito é realm ente o terceiro a partir de D eu s e do Filho; assim com o a fruta da árvore é terceira a partir da raiz, o afluente d o rio é o terceiro a partir da nascente e o vértice do raio é terceiro a partir d o sol. N ada, porém , é diferente da fonte original de onde deriva suas propriedades específicas. D a
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m esm a forma, a Trindade, que flui do Pai em passos entrelaçados e conexos, não perturba, de m odo algum, a m onarquia [do Pai], ao passo que ao m esm o tem po guarda o estado da econom ia [da criação].22
Por “o estado da eco n o m ia” T ertuliano referia-se à trin d ad e da atividade de D eus na história da salvação. O Pai fala n o céu; o F ilho está n o rio sendo batizado; o E spírito, em form a de pom ba, desce do céu sobre Jesus. Jesu s exclam a ao Pai: “N ão seja feita a m in h a vontade, m as a tu a ” e, m ais tarde, oferece o seu espírito ao Pai na subm issão da m o rte solitária. O E spírito é “enviado” pelo F ilho para a igreja co m o “o u tro co n so lad o r (P aracleto)”. M as, de m o d o co n trá rio à alegação dos m odalistas, essa ênfase sobre a distinção das pessoas não d im in u i, de m o d o algum , a “m o n arq u ia” do m o n o teísm o , em q u e há um a só fonte divina su p rem a da totali dade da existência: D eus Pai. D e acordo com T ertuliano, o Pai co n tin u a sendo a fonte su p rem a e governante sobre tu d o , em bora sem pre tenha consigo o Verbo e o E spírito e os envie para o m u n d o co m o seus agentes, sem p erdê-los pela divisão ou separação. Eles co n tin u am sendo da m esm a substância divina. Q u a n d o T ertuliano com eçou a explicar a hu m an id ad e e a divindade de C risto, em p reg o u os m esm os conceitos básicos da substância e da pessoa: Jesu s C risto era tan to substância divina co m o substância h u m an a (que T ertuliano às vezes confusa m en te cham a “esp írito ” e “c arn e”), m as sendo tam bém u m a só pessoa e não duas pessoas ou duas identidades. E interessante notar q ue um a das razões de ele enfatizar a distinção en tre as duas naturezas ou substâncias de Jesu s C risto é que seria im p ró p rio para D eus sofrer. D eus é im passível, incapaz de sofrer.23 Logo, para Jesus C risto sofrer e ser divino, precisava ter duas naturezas ou substâncias distintas, e so m en te um a delas, a h u m ana, poderia ter sofrido e m o rrid o . T ertuliano afirm ou que as duas naturezas de C risto “agiam d istin tam e n te” e, em bora as duas naturezas sejam “u n id as” em Jesus, não devem ser confundidas de m o d o q u e as duas sejam capazes das m esm as atividades e experiências. O b tem o s, portan to , o retrato de um ser d u p lo de C risto , u m a conclusão a q u e os teólogos e concílios cristãos p o sterio res d em o rariam a chegar. O raciocínio p o r trás disso é garantir q u e a divindade em Jesu s C risto não ex p erim ente o q u e é im p ró p rio para o ser divino: a lim itação, a im perfeição e o sofrim ento. Isso é m u ito irônico, é claro. D epois de levantar objeções furiosas contra a es peculação filosófica da teologia, T ertuliano acabou ad o tan d o um a idéia filosófica bastante grega a respeito da existência divina, m u ito sem elhante à de C lem en te de Alexandria! N a realidade, seus conceitos básicos da natureza de D eu s com o singe la, im utável e im passível são m arcan tcm en te sem elhantes e derivam m ais da cu ltu ra grega e da teologia filosófica do que dos ensinos hebreus o u apostólicos a respei to de D eus. O D eu s de Israel, sem dúvida, tinha paixões. E se D eus não sofreu de
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algum a m aneira em Jesu s C risto, a própria encarnação seria qu im era, m era ilusão ou charada. Isso n ão significa que d efendem os o patripassianism o; estam os apenas observando que algumas suposições e arg u m en to s de T ertuliano parecem ter se fu n d am en tad o m ais na filosofia grega do que na revelação divina. N e m C lem en te n em T ertuliano deram m uita atenção à salvação. Estavam m ais preocupados em d esco brir a relação apropriada en tre filosofia e teologia e em des crever a natureza de D eus e do seu relacionam ento com o m u n d o . O que se pode dizer com razoável grau de certeza, po rém , é q u e am bos acreditavam n o livrearbítrio e na capacidade h u m an a de cooperar com a graça de D eus na salvação.24 A salvação proposta p o r C lem en te girava em to rn o da idéia de se to m a r um “verda deiro g nóstico”, um a pessoa h u m an a m adura e divinizada, na qual a im agem de D eus é restaurada, e q u e leva um a vida de serenidade, m oralidade e racionalidade. A salvação apresentada p o r T ertuliano girava em to rn o da idéia d o batism o, q u e ele consid ero u u m sacram ento legítim o, em b o ra não tenha defin id o com detalhes a sua função, e de se ter um a vida de rigorosa obediência à vontade de D eus. A visão que T ertuliano tin h a da salvação re to m o u o fio da m eada q u e os pais apostólicos tin h am deixado e esten d eu a influência d o seu rigorism o m oral para a África do N o rte e para o cristianism o latino centralizado em R om a. A visão da salvação ado tada p o r C lem en te recom eçou do p o n to em q u e os apologistas tin h am parado e esten d eu seu in telectualism o para o cristianism o o rtodoxo grego. O grande m érito de C lem en te na história da teologia cristã foi sua influência sobre O ríg en es, o m aior pai da igreja em A lexandria e teólogo especulativo da igreja prim itiva. O grande m érito de T ertuliano foi sua influência sobre C ipriano, o bispo n o rte-african o m ais in flu en te d o século m, q u e deixou sua m arca indelével sobre a tradição latina do cristianism o.
6 Orígenes de Alexandria deixa um legado perturbador
O r í g e n e s de A lexandria é o p rim eiro pai da igreja prim itiva e teólogo cuja bio grafia é am p lam en te conhecida. O s p o rm en o res da vida dos pais anteriores a ele e até m esm o dos co n tem p o rân eo s de O rígenes estão envoltos em m istério, ao passo que a vida de O ríg en es é quase tão controversa q u an to o seu sistem a de p en sam en to. C o m o seu m en to r, C le m e n te de A lexandria, ele apreciava m u ito a especulação e su p ero u C lem en te na tentativa de co n stru ir um a síntese da filosofia grega e da sabedoria bíblica em u m grandioso sistem a de p en sam en to cristão. Foi u m grande gênio e estu d io so de re n o m e q u e p ro d u z iu aproxim adam ente oitocentos tratados d u ran te a carreira e atraiu até m esm o aristocratas e estudiosos pagãos da filosofia para sua escola cristã de catequese. D a m esm a form a q u e T ertuliano, foi u m dissi d en te q u e desafiou os líderes eclesiásticos e, em b o ra exaltasse a grande tradição dos en sin o s proféticos e apostólicos co m o a m edida para toda a verdade, foi acusa do de separar-se da igreja de A lexandria e de desviar-se dos ensinos ortodoxos geralm ente aceitos. E m bora seja co n siderado u m dos teólogos m ais im portantes da história do cris tianism o, O ríg en es n u n ca foi canonizado e sua m em ória, em todas as principais ram ificações d o cristianism o, é m aculada p o r suspeitas de heresia e pela co n d en a ção pó stu m a p o r u m concílio geral da igreja em 553. Foi acusado de en sin ar q u e a alm a existia antes de assum ir u m co rp o e é quase certo q u e fosse culpado disso. O s m o d ern o s adeptos do m o v im e n to da N ova Era e d o cristianism o esotérico acredi tam q ue O ríg en es pregava a reencarnação, m as d ificilm ente isso é verdade. Eles estão indevidam ente extrapolando o en sin o de O ríg en es a respeito da preexistência das almas. Ele acreditava em u m a única existência corpórea m ortal para cada alm a e acreditava firm em en te na ressurreição corpórea dos m o rto s para a vida im ortal, e assim ensinava. O ríg en es tam b ém foi acusado de ensinar a d o u trin a da apokatastasis, a reconciliação u lterio r e universal com D eus de toda a criação, incluindo-se Satanás. C ertam e n te ofereceu a esperança de algum tipo de salvação universal de todas as
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criaturas, m as é m u ito questionável se ele incluía Satanás nessa esperança. Final m en te, foi acusado de ser o responsável e causador de m u ito s tipos de heresias posteriores. O s teólogos que alegavam ser seus seguidores, os origenistas, real m en te caíram em m uitas heresias depois da m o rte de O rígenes c, no fim , pratica m en te todas as heresias condenadas pela igreja católica ortodoxa acabaram sendo atribuídas a O ríg en es, q u er tivessem algum a conexão com ele o u não. Ao co n d en ar O rígenes, a igreja esqueceu-se de que não so m en te os hereges, m as tam b ém m u ito s dos grandes heróis da ortodoxia tin h am sido p ro fu n d am en te influenciados p o r O ríg enes c seus ensinos e lhe deviam m uita coisa. O firm e d e fensor da d o u trin a da Trindade, A tanásio (século iv), era tão origenista q u an to q u al q u er herege. O s pais capadócios Basílio e os dois G regórios (tam bém do século iv) foram , de m uitas m aneiras, os h erdeiros teológicos de O rígenes, assim com o o foram m u ito s o u tro s grandes pensadores do O rie n te . As igrejas latinas ocidentais, 110 entanto, não ficaram tão im pressionadas com O rígenes, nem se deixaram influen ciar tanto p o r ele p or razões óbvias. Ele escrevia so m en te em grego e era u m p e n sador especulativo, co m o Ju stin o M ártir e C le m e n te de A lexandria. T ertuliano foi um “O ríg en es para o O c id e n te ” e O ríg en es foi u m “T ertuliano para o O rie n te ”.
A vida e a carreira de Orígenes O ríg en es nasceu em 185 ou 186 em A lexandria, no Egito. M o rre u em 254 o u 255 em C esaréia, na Palestina, on d e passou boa parte da vida. Seu pai foi m artirizado pelas autoridades rom anas n u m m assacre contra os cristãos. A tradição conta que, q u an d o o pai de O ríg en es estava 11 a cadeia, aguardando a execução, o filho quis se entreg ar às autoridades e m o rre r ju n to com ele. Alega-se q u e a m ãe de O rígenes esco n d eu as roupas do m oço de 16 anos de idade para q u e não pudesse sair da casa e com isso salvou a vida do filho. Talvez O rígenes tivesse vontade de m o rre r por C risto , o q u e os cristãos posteriores cham ariam “d o m do m artírio ”, e sentiu-se fru strad o p o r não m o rre r ju n to com o pai. Leu nos evangelhos as palavras de Jesu s a respeito de alguns h o m en s se to rn arem “eu n u co s p o r causa do R eino do céu s” e castrou-se ain d ajo v em . Tal ato era altam ente co n tro v ertid o , m esm o naqueles te m pos, e foi usado com o m otivo pelo bispo de A lexandria para não o rd en ar O rígenes ao m inistério. O ríg en es foi alu n o da escola catequética de A lexandria e, provavelm ente, aluno de C lem en te de Alexandria. Existe certa especulação q u an to a ele tam b ém ter estu dado na escola pagã de filosofia platônica dessa cidade c ter convivido com os p rin cipais fu n dadores da filosofia neoplatônica q u e co m eçou a se to rn a r popular na quela época. A lguns estudiosos sugerem até m esm o q u e o p ró p rio O ríg en es tenha sido u m dos fu n d ad o res do n eo p lato n ism o . E m b o ra seja altam en te im provável, é possível q u e ele te n h a co n h e cid o e estu d ad o com A m ó n io Sacas e P orfírio,
O ríg en es de A lexandria deixa u m legado p ertu rb ad o r
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professores de P lo tin o ; m as foi atrib u íd o a P lo tin o o créd ito de ter tran sfo rm ad o o n eo p lato n ism o em u m a filosofia respeitada e p ro fu n d a m e n te in flu e n te d o final d o Im p ério R om ano. O ríg en es d em o n stro u tanto b rilh an tism o desde jo v em q u e, q u an d o C lem en te fugiu de A lexandria sob perseguição e a escola cristã precisou d e u m novo diretor, ele foi convidado a assum ir esse im p o rtan te cargo aos dezoito anos de idade. E n q u an to dirigia a escola, O rígenes tam b ém iniciou a carreira prolífica de escritor q u e in clu iu obras intelectuais e eruditas de todos os tipos. E nfrentou o filósofo rom ano C elso, que estava atacando o cristianism o acusand o -o de ignorante e supersticioso, com u m a resposta devastadora à Da verdadeira doutrina intitulada Contra Celso. M ais do que qualquer o utra apologia cristã, essa obra de O rígenes d erro to u u m Golias da oposição ao cristianism o e in tro d u ziu a jo v em religião em um a nova era de respeitabilidade, a despeito da co ntínua perseguição. O objetivo de O ríg enes em sua carreira de escritor era “fo rn ecer respostas aos cristãos que levantam questões intelectuais em conform idade com as Escrituras, para que não as b u sq u em nas grandes seitas gnósticas”.1 Ao q u e parece, foi m u ito bem -sucedido. U m h o m e m de posses cham ado A m brósio, q u e se co n v erteu do gnosticism o v alentiniano para o cristianism o o rtodoxo, ficou tão im pressionado com o trabalho de O ríg en es q u e lhe ofereceu u m a casa, secretário, sete estenógrafos e copistas e calígrafos, e pagou a publicação de seus m anuscritos. Esse patrocí nio d eu a O ríg en es condições para escrever aproxim adam ente oitocentos m an u s critos. S eg u n d o u m historiador, O rígenes pode te r sido o escritor m ais prolífico do m u n d o antigo.2 T o rn o u-se tão fam oso co m o filósofo q u e Jú lia M am ea, m ãe do im p erad o r ro m an o A lexandre Severo, p ed iu -lh e q u e fosse seu professor particu lar. O bv iam en te, ela não era cristã, m as n em p o r isso deixou de p ro c u rar o grande O ríg en es p o rq u e tin h a ouvido falar de sua capacidade intelectual e de sua habilida de didática. Apesar da grande p opularidade e fama, o u talvez p o r causa delas, O ríg en es e n tro u em conflito com seu bispo, D e m é trio de A lexandria. O ríg en es q ueria ser o r denado ao sacerdócio pleno, m as D em étrio não p erm itiu por causa da autocastração. Essa, pelo m enos, foi um a das desculpas apresentadas pelo bispo. A verdadeira razão pode ter sido ciú m e profissional e m edo de que, se O ríg en es fosse ordenado, iria se to rn ar u m rival na h ierarquia cristã de A lexandria. F inalm ente, O rígenes perd eu a paciência e p ed iu q u e o bispo de C esaréia na Palestina o ordenasse e este não hesito u em fazê-lo. O incidente provocou o ro m p im e n to com o bispo de sua cidade natal e O ríg en es n u n ca m ais v oltou a A lexandria. M u d o u o cen tro de en si no s e de escrito s para C esaréia em 233. Ali, O ríg e n e s tra n s fo rm o u a escola catequética em u m “tipo de escola m issionária voltada aos jo v en s pagãos q u e d e m o n strav am in teresse p elo cristian ism o , m as q u e ainda não estavam p ro n to s
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[...] para pedir o b atism o”. O rígenes, portan to , apresentava-lhes a d o u trin a cristã em u m curso de filosofia inspirado principalm ente 110 plato n ism o m éd io do qual lhes oferecia um a versão cristã”.3 O ríg en es, afinal, realizou o desejo de m o rre r co m o m ártir. D u ra n te a grande perseguição deciana dos cristãos em todas as partes do im pério em m eados do século 111, O ríg en es foi preso e to rtu rad o pelas autoridades rom anas. M o rre u em conseqüência da to rtu ra. D eixou u m legado am b íg u o de grandeza intelectual e de confusão, q ue os pensadores cristãos de tem pos posteriores tiveram q u e pesquisar. P or u m lado, seus arg u m en to s p ro fu n d o s e suas idéias deram às classes cultas do Im p ério R o m ano u m conceito d o cristianism o diferente d o desenvolvido p o r C e l so. Elas com eçaram a considerar o cristianism o um a alternativa filosófica e religi osa viável às nu m ero sas visões conco rren tes da realidade e da espiritualidade do im pério. Por o u tro lado, as explicações de O ríg en es para d o u trin as cristãs co m o a Trindade e a pessoa de Jesu s C risto m o n taram o palco para as grandes co n tro v érsi as que surgiriam u m século depois da sua m orte. As obras teológicas m ais im p o rtan tes de O ríg e n es foram Contra Celso e De principiis ou Dos princípiosfundamentais. A ú ltim a co n tém o grande sistem a da filoso fia cristã de O ríg en es, n o qual expôs as reflexões teológicas sobre a natureza de D eus e do seu Logos, sobre a criação e sobre m u ito s o u tro s assuntos. O bviam ente, O ríg en es escreveu m u ito s o u tro s tratados, m as Dos princípiosfundamentais é u m dos grandes clássicos do p en sam en to cristão q u e afetou p ro fu n d am en te o curso da teologia posterio rm en te. E a O rígenes que devem os o texto da polêm ica de C elso contra o cristianism o. Em Contra Celso, O rígenes citou o livro de C elso Da verdadeira doutrina quase inteiro e refu to u -o po n to p or ponto. O rígenes cham ou de “levianas e totalm ente desprezí veis”4 as objeções de C elso ao cristianism o e p rocurou dem onstrar a superio-ridade da sabedoria das Escrituras em relação à filosofia grega. C o n tra C elso, O rígenes asse verou q ue “para os que têm olhos para contem plar o caráter venerável das Escrituras, os escritos sagrados dos profetas contêm coisas m u ito mais dignas de reverência do que as citações de Platão que C elso adm ira”.5 N aturalm ente, assim com o C lem ente, O rígenes en co n tro u m uita coisa de valor na filosofia grega e tam bém adm irava a filosofia de Platão. E n tretanto, especialm ente q u an d o arg u m en to u contra C elso, O rígenes quis enfatizar que a filosofia grega e Platão eram apenas prenúncios da verdade m aior e mais plena q u e se encontra na revelação divina. S egundo O rígenes, a filosofia é incapaz de p ro d u z ir u m c o n h e cim en to salvífico de D eus, p o rq u e “nela a falsidade está inextricavelm ente m isturada à v erd ad e”.6 Apesar disso, co n co rd ou q u e a própria teologia cristã é u m tipo de “filosofia divi n a ” q u e supera e su bstitui todas as dem ais filosofias c q u e pode usá-las co m o servas da tarefa de levar às pessoas u m co n h e cim en to verdadeiro de D eus e da salvação.
O ríg en es de A lexandria deixa u m legado p ertu rb ad o r
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O ríg en es em p reg o u um a analogia do a t para ilustrar a atitu d e cristã correta diante da filosofia grega. C o m o o povo h eb reu q u e levou consigo bens dos egípci os no Êxodo, o povo de D eus sem pre teve perm issão de usar os “despojos egípci os”, to m an d o em prestada a verdade de fontes pagãs, q u an d o era útil para esclarecer o significado das E scrituras e tran sm itir o evangelho a pagãos interessados. D esde O ríg en es, “d espojar os egípcios” to rn o u -se lu g ar-co m u m na teologia para o e m prego cristão de idéias pagãs ou seculares. C o n tra C elso, p o rtan to , O ríg en es alegava q u e a verdade cristã não está em c o n flito total com a filosofia grega em todos os aspectos, m as vai m u ito além dela nos seus conceitos e especialm ente na sua capacidade de identificar um a m anifestação histórica específica da b ondade divina: Jesu s C risto. U m exem plo típico da refuta ção de O ríg en es é a resposta à alegação de C elso de q u e Jesu s C risto era apenas u m m ágico, co m o m u ito s o u tro s, e não D eus, co m o os cristãos alegavam. A C elso, O ríg en es respondeu: Haveria realm ente uma sem elhança entre eles, se Jesus, co m o os praticantes das artes mágicas, tivesse realizado suas obras apenas para se mostrar; mas não existe um ú nico prestidigitador que, em seus procedim entos, convida os espectadores a mudar seu com portam ento, que treina n o tem or a D eu s os que ficam atônitos diante do que vêem ou que procura persuadi-los a viver com o h om en s justificados por D e u s.7
E m sua ú ltim a análise, co m o prova da verdade d o cristianism o, O ríg en es ape lou ao fato h istórico da ressurreição de Jesus, à vida e à m o rte dos apóstolos e, acim a de tu d o , à “m anifestação d o E spírito e d o p o d e r” em toda a história do povo de D eus. Fica evidente q u e para O ríg en es não havia um a prova o u arg u m e n to que so zin h o pudesse v encer as objeções e o ceticism o de C elso. M as havia u m a série de idéias e fatos q ue, entrem eados, se constituía n u m arg u m e n to sólido em favor da veracidade d o cristianism o e da sua superioridade em relação às filosofias e m ito lo gias gregas e rom anas. N o fim de Contra Ceiso, ficam os com a im pressão de que O ríg en es, 110 m ín im o , elevou o cristianism o a u m nível intelectual co n fro n tan d o a “verdadeira d o u trin a ” (filosofia grega) de C elso e to rn o u im possível, a partir de então, a q u alq u er pessoa declarar o cristianism o u m a religião folclórica q u e só servia para os ignorantes e supersticiosos.
Orígenes trata da fé e da razão O ríg e n e s é, f r e q ü e n te m e n te , in te rp re ta d o e r r o n e a m e n te c o m o u m c ristã o racionalista ou intelectual q u e colocou a razão e a filosofia antes da fé. Esperam os já ter escrito o suficiente aqui para dissipar essa falsa noção. O ríg en es pode ter sido u m intelectual, m as q u an d o se tratava da teologia, enfatizava os papéis da revelação
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divina e da fé pelo m enos tanto q u an to os papéis da filosofia e da razão. Para o cristão, o arrazo am en to a respeito de D eus e da salvação deve o c o rrer d en tro do co m p ro m isso de fé e isso inclui a aceitação da veracidade da tradição da igreja e prin cip alm en te dos ensinos dos apóstolos. C o m o C lem en te, O rígenes reconhecia e aceitava verdades fora das Escrituras, m as rejeitava a possibilidade de que um a verdade entrasse em conflito com a revelação divina. C o m o T ertuliano e quase todos os teólogos da igreja prim itiva, in co n scien tem en te, acabou aceitando e en si nan d o algum as idéias q u e parecem m ais consistentes com a filosofia e cu ltu ra pa gãs do q ue com os ensinos de M oisés e de o u tro s profetas e de Paulo e de o u tro s apóstolos. A igreja com o u m todo, p o sterio rm en te, ju lg o u que esse era realm ente o caso e co n d e n o u O rígenes co m o herege. E n tretan to , em sua descrição p ro p ria m en te dita da “filosofia divina” da teologia cristã, O ríg en es prom ovia rigorosa leal dade às E scrituras e à tradição apostólica e argum entava q u e a especulação além delas só é p erm itida q u an d o m an tém a consistência com elas. O p ro b lem a é q u e O rígenes estava p ro fu n d am en te envolvido em especulações q ue, p o r vezes, o levaram a conclusões ab ertam en te antibíblicas. Por exem plo, O ríg en es especulou p o r q u e Paulo escreveu em R om anos q u e D eu s “odiava Esaií” antes de este ter nascido o u feito q u alq u er coisa boa o u má. Em vez de o ptar p o r explicá-lo em term o s de preordenação e eleição divina (O rígenes acreditava firm e m en te n o livre-arbítrio), apelou para a idéia grega da preexistência da alm a.8 D c acordo com O rígenes, todas as alm as vêm para o m u n d o a partir de u m estado espiritual preexistente no qual fizeram escolhas livres de obediência o u desobedi ência a D eus. S om ente a alm a h u m an a de Jesu s sobreviveu com inocência a esse período preexistente de provação e p o r isso o Jesu s h u m an o na terra foi im pecável: não p o rq u e era divino, m as p o rq u e não pecou na sua preexistência. Esaú deve ter co m etid o u m pecado especialm ente grave e essa falha antes de seu nascim ento explica p o r que D eu s o “odiava” antes que nascesse ou fizesse q u alq u er coisa boa o u má. A conseqüência natural é, logicam ente, q u e Jacó deve ter vivido virtuosa m en te e o b edecido a D eus antes d o nascim ento. S egundo O rígenes, tal provação p ré-in o rtal e espiritual explica p o r que os seres h u m an o s vêm ao m u n d o em c o n dições tão desiguais. E a visão dele para o que algum as religiões orientais cham am de “carm a”. Essa especulação parecia inocente e até m esm o útil a O rígenes, m as ela explica p o r q u e alguns cristãos o consideravam herege. A m esm a tendência para a especulação além da revelação aparece na grande esperança de O ríg en es na apokatastasis (reconciliação final). C o m o sem pre, ele co m eço u a explicação e defesa de sua idéia fazendo um a referência às Escrituras. N e ste caso, estava te n tan d o explorar e explicar o q u e Paulo quis dizer q u an d o escreveu, em IC o rín tio s, q u e n o fim D eus será “tu d o em to d o s” (15.28). In flu e n ciado em parte pelas idéias filosóficas gregas da existência e da unidade co m o coisas
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inseparáveis, O ríg en es in terp re to u essa afirm ação com o im plicação da perfeição e bem -av en tu ran ça final de toda a criação, q u e repousará em D eus sem o m en o r indício do pecado, d o m al ou até m esm o da tentação. E m bora não chegasse ao panteísm o escatológico (a criação unificada ao p ró p rio D eus), O ríg en es confir m o u a u n ião de D eu s com toda a criação na consum ação do plano de D eus. N ão está to talm en te claro se Satanás estaria incluído nela. D u ra n te séculos, os críticos arg u m en tam q u e O ríg en es acreditava na salvação d o p ró p rio Satanás e dos d e m ô nios e na inclusão deles na grande restauração e assim ensinava. E n tretan to , alguns estudiosos asseveram q u e o p ró p rio O rígenes, em algum as de suas cartas, negou ser dessa opinião e declarou q u e se tratava de u m boato espalhado contra ele p o r seus inim igos.9 Seja qual for a verdade no tocante à esperança de O ríg en es em favor de Satanás, parece que ele realm ente aceitava e ensinava u m universalism o da salvação das “alm as racionais” hum anas no fim d o m u n d o . N u m a declaração clás sica dessa grande esperança, O ríg en es escreveu que, n o fim da história, D eu s será “tu d o”, porque já não haverá mais distinção entre o bem c o mal, posto que o mal não existe em nen hu m lugar; pois D eu s é todas as coisas e dele o mal não se aproxima. Também não haverá nenhum desejo de com er da árvore do con h ecim en to do bem e do mal por parte daquele que sem pre está de posse do bem e para quem D eu s é tudo. Q uando, portanto, o fim for restaurado ao princípio, será restabelecida a condição das coisas na qual foi colocada a natureza racional, quando não havia necessidade de com er da ár vore do con h ecim en to do bem e do mal; de m odo que, quando todo senti m en to de iniqüidade for elim inado e o indivíduo for purificado e ficar lim po, aquele que é, som ente ele, o ú nico D eu s bom se torna para ele “tu d o”, e não se trata de alguns indivíduos ou de vários, mas ele m esm o é “o to d o ”. E quan do a m orte já não existir em nenhum lugar, nem o aguilhão da m orte, nem qualquer mal, então verdadeiram ente D eu s será “o to d o”.'0
A qui, com o em tu d o o m ais, O ríg en es baseou a sua interpretação tanto na espe culação tirada da filosofia grega co m o na exegese bíblica. O neoplatonism o, por exem plo, enfatizava a unicidade da existência, de m o d o q u e o ser ú ltim o — D eus — teria de ser o U n o absolutam ente indiferenciado. Parece q u e O rígenes acredita va q ue, para q u e D eu s fosse D eus, ele precisava reconciliar tu d o em si. N ã o p o d e ria haver u m d u alism o u lterio r da realidade — o bem e o m al. Seria u m desafio etern o à existência de D eu s co m o criador e unificador de tudo. Essa lógica parecia im p u lsio n ar O ríg en es para a salvação até m esm o de Satanás, em b o ra talvez não tenha afirm ado isso realm ente. As reflexões teológicas de O ríg en es com eçaram com os papéis apropriados da fé e da filosofia q ue, co m o já foi visto, seg u n d o ele, estariam in tim am e n te ligados,
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em b o ra a revelação divina e a fé tivessem a prim azia. Pelo m enos era essa a in te n ção e o m éto d o de O rígenes. Q u a n d o se volto u às E scrituras e à interpretação delas, O rígenes d em o n strou suas verdadeiras características alexandrinas ao enfatizar o significado espiritual de boa parte delas e o m éto d o alegórico da sua in terp reta ção. Sem im itar cegam ente Filo o u Platão, O ríg en es recriou fielm ente as aborda gens herm en êu ticas deles e d eu pouco valor ao significado literal histórico do at em b o ra ten h a en co n trad o ali riquezas de verdades evangélicas ocultas em sím b o los e alegorias.
A interpretação alegórica das Escrituras segundo Orígenes Assim co m o Filo, seu antecessor, O ríg en es identificou três níveis de significado nas E scrituras e três m aneiras de com preendê-las e de interpretá-las. O s três níveis co rresp o n d em aos três aspectos da pessoa hum ana: d o corpo (físico), da alm a (ra cional e ético) e do espírito (relacionado à salvação no sentido m ais sublim e). O significado co rp ó reo de u m texto é sua referência literal e O ríg en es adm itia que existiam coisas úteis nesse nível. Por exem plo, u m a parte da legislação dada por D eus por interm édio dos profetas é instrutiva e útil para os cristãos. U m exem plo disso, logicam ente, são os D ez M andam entos. O significado da alm a de u m texto é a sua relevância m oral. O ríg en es arg u m e n tava q ue, em m u ito s casos, a história bíblica oferece u m p rincípio ético e m oral subjacente ao significado literal e histórico. As proibições n o a t de c o m er d eterm i nados alim entos realm ente se referem à prática m oral de não se associar a pessoas m alignas. F inalm ente, para O rígenes, o nível m ais im p o rtan te de significado das E scritu ras é o do espírito, q u e tam b ém é m ístico e quase sem pre se refere, de m o d o enig m ático, a C risto e ao relacionam ento d o cristão com D eus. O significado m ístico espiritual está sem p re presente, ainda que não seja explorado e reconhecido, e a tarefa do exegeta cristão é esforçar-se para descobri-lo. N a m aioria das vezes, ele revela algum a coisa a respeito da theosis, o u divinização, com o o alvo final da salva ção e d o viver cristão. U m dos propósitos de O rígenes na interpretação alegórica era aliviar a pressão insuportável im posta aos cristãos por céticos co m o o escrito r pagão C elso, que ridicularizou m uitas histórias do a t p o r considerá-las absurdas e im próprias de D eus. As qualidades e especialm ente a ira de D eus retratadas de m aneira sem e lhante às dos seres h u m an o s foram fo rtem en te criticadas e ironizadas. M u ito te m po antes de O ríg en es, o u até m esm o d e C lem en te, é claro, o estudioso ju d a ic o Filo já tin h a estabelecido a tendência em A lexandria de aliviar essa pressão. As passa gens desse tipo, q u e pareciam descrever D eus em term o s im p ró p rio s ao Ser D ivi no, não devem ser en tendidas literalm ente. São, p o r exem plo, an tro p o m o rfism o s
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nos quais D eu s é descrito, em figuras de linguagem hum anas, co m o ten d o m ãos e pés. O u são alegorias nas quais D eus é descrito em linguagem figurada co m o te n do certas em oções h u m anas q u e os gregos consideravam to talm en te contrárias à apátheia (serenidade e auto-suficiência divinas). O ríg en es ju n to u -se a C elso ao ri dicularizar e co n sid erar absurdas e im possíveis as interpretações literais de m uitas passagens desse tipo. U m exem plo da interpretação figurada usada p o r O ríg en es para aliviar a tensão relacionada à d o u trin a cristã de D eus en co n tra-se no seu trata m e n to de linguagem bíblica a respeito da ira divina. C elso e o u tro s críticos gregos de tradição bíblica (judaica e cristã) arg u m entaram q u e a ira é im própria ao ser divino, visto que a divindade é absoluta e não pode ser forçada, pelas criaturas, a ter explosões em oci onais. S em elhante deidade seria p o r dem ais sem elhante aos deuses do O lim p o , caprichosos, im previsíveis e cheios de defeitos hu m an o s. O ríg en es co n co rd o u . E m Contra Celso escreveu: “Falam os, de fato, da ‘ira’ de D eus. N ã o asseveram os, p o rém , q u e isso indica algum a ‘paixão’ da parte dele, m as que é algum a coisa ado tada a fim de disciplinar p o r m eios severos os pecadores q u e co m eteram pecados n u m ero so s e graves”.11 Ele co n tin u a, co m p aran d o declarações bíblicas a respeito de narrativas q u e retratam a ira de D eus com a linguagem bíblica sobre D eus d o r m indo. Se um a é figurativa, por q u e a o u tra não seria? S egundo O rígenes, então, q u alq u er declaração bíblica q u e entrasse em conflito com o que é apropriado para D eus deveria ser in terpretada figuradam ente e (caso fossem narrativas) alegoricam ente. Se D eu s não pode realm ente dorm ir, tam b ém não pode ex p erim en tar pai xões com o a ira. Esse p re ssu p o sto parecia óbvio para O ríg e n es e só p o d eria ser assim p o rq u e, co m o a m aioria dos d em ais pais da igreja e teólogos do Im p é rio R o m an o , ele foi in d ev id am en te in flu en c ia d o pelo teísm o filosófico grego da tradição platônica q u e tentava re m o v e r da d eidade tu d o q u e fosse co n sid erad o im p erfe ito o u p ró p rio das criaturas. E m m u itas q u estõ es, O ríg e n es q u eria to m a r u m a posição fir m e co n tra a c u ltu ra e a filosofia gregas,12 m as na d o u trin a dos atrib u to s parecia capitular p ro n ta m e n te às suposições m etafísicas gregas a respeito da em oção com o prova da im perfeição. A pesar de u m m éto d o de interpretação bíblica que hoje m u ito s considerariam u m tratam en to leviano das E scrituras, O ríg en es realm ente tinha n o m ais alto c o n ceito os escritos proféticos e apostólicos. E m bora quase certam en te não acreditasse na “in errân cia” das E scrituras e em b o ra as interpretasse livre e figuradam ente, tam bém afirm ou ineq u iv ocam ente q u e D eus é o au to r das E scrituras e até m esm o tratava os autores h u m an o s co m o porta-vozes ou secretários do E spírito Santo. Ele consid ero u sua p rópria interpretação alegórica d o ATjustificada devido ao em prego pelos apóstolos da Bíblia hebraica. Paulo, p o r exem plo, in terp re to u a proibição no
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P entateuco de am ordaçar os bois en q u a n to trilhavam os grãos com o um a re feren cia à própria liberdade para receber dádivas e ofertas para o su sten to d o seu m in is tério. Além disso, em Gálatas, Paulo in terp reto u a história de Abraão, Sara e H agar de m o d o alegórico. O rígenes não tin h a a m e n o r intenção de tratar as Escrituras co m o algo q u e não fosse totalm ente confiável. Sua preocupação era apenas re m o ver, p o r m eio da interpretação alegórica ou figurada, o q u e considerava u m falso obstáculo colocado no cam in h o dos pagãos cultos pela interpretação literalista.
A doutrina de Deus segundo Orígenes A d o u trin a de D eu s segundo O rígenes é u m a das m ais p len am en te desenvolvidas e com plexas da história da teologia cristã. E tão p ro fu n d a q u an to desconcertante. C o m o nas Escrituras, D eus era o estopim das controvérsias en tre intelectuais cris tãos, com o O ríg en es, e intelectuais gregos e rom anos, co m o C elso. Este e m u ito s o u tro s consideravam os ensinos cristãos a respeito da deidade irrem ediavelm ente prim itivos e co n traditórios. P erguntaram co m o alguém podia acreditar q u e o ú n i co D eus d o universo, q u e criou e sustenta todas as coisas, nasceu bebê. Q u e m dirigiu o universo d u ra n te a infância de D eus? E claro q u e O ríg en es não foi o p rim eiro a ten tar dar um a resposta. Foi, po rém , u m dos p rim eiro s a oferecer um a explicação sistem ática da crença cristã a respeito de D eus e de Jesu s C risto e do relacionam ento en tre eles, com o propósito de d erro tar tais objeções. N esse p ro cesso, tu rv o u e clareou as águas da d o u trin a cristã tanto que, décadas após a sua m o rte, seu legado p e rtu rb ad o r nessa área irro m p eu na m aior controvérsia da his tória da teologia cristã. M uitas coisas parecem óbvias e resolvidas para os cristãos dezesseis o u dezessete séculos depois da era de O rígenes. Ficam os tentados a p erg u n tar com o era possível q u e tantas idéias lum inosas e tantos sinais confusos a respeito de D eus e de Jesus C risto em anassem da m esm a m ente. U m ou dois séculos após a m o rte de O rígenes, tanto os arqui-hereges q u an to os cam peões da ortodoxia apelaram a ele com o m en to r e en co n traram nos seus escritos declarações em seu favor. Por m ais rigoroso e sistem ático que fosse a sua form a de tratar dos tem as d o u trin ário s, O ríg en es c o n seguia, às vezes, cair em contradições tão frustrantes, q u e só nos resta sacudir a cabeça, desnorteados. Por u m lado, O rígenes nu n ca se cansou de afirm ar e asseve rar, em term o s bem claros, a divindade absoluta d o Logos q u e se to rn o u Jesus C risto com o etern a e igual à do D eus Pai. Por o u tro lado, ele rep etid am en te tam bém caiu na arm adilha do subordinacionism o, a tendência de re d u zir o Logos a algo inferio r ao Pai. O E spírito Santo foi negligenciado, e quase q u e totalm ente desconsiderado, nas cogitações trinitárias de O rígenes. O p o n to de partida para ten tar co m p re en d er a d o u trin a de D eu s proposta por O ríg en es e p o r q u e ela se to rn o u u m legado p ertu rb ad o r para a igreja são suas
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opiniões a respeito da natureza e dos atrib u to s de D eus. Para ele, D eus é E spírito e M en te, sim ples (d estituído de partes), incorpóreo, im utável e incom preensível. D eus é “substância sim ples”: sem corpo, partes o u paixões.13 O bviam ente, O rígenes tin h a m u ito m ais para dizer a respeito de D eus, m as essa declaração é suficiente para m o strar a influência d o platonism o m édio o u até m esm o do neoplatonism o sobre seu m o d o de pensar. U m d o s p rin cip a is a rg u m e n to s de C elso c o n tra o c ristia n ism o era q u e a encarnação necessariam ente atribuiria a im perfeição a D eus. Se D eus “veio” aos seres h u m an o s, então necessariam ente m u d o u , para pior! M as D eu s não pode pas sar p o r n en h u m a transform ação, seja para m e lh o r o u para pior, de acordo com C elso e com todos os dem ais pensadores gregos (especialm ente os platônicos). O ríg en es recu so u -se a abrir m ão das duas afirm ações cruciais da d o u trin a cristã: q u e D eus é u n o e p erfeito de todas as m aneiras (e O ríg en es até m esm o reforçou essa declaração usan d o a filosofia platônica) e q u e Jesu s C risto é D eus. O s poucos in térp retes incultos de O rígenes que alegam q u e ele não ensinava a plena e verda deira divindade d o Filho, Jesu s C risto , sim p lesm en te estão errados. O rígenes, em todas as obras, freq ü en tem en te se referia a Jesu s C risto co m o o “Verbo D ivino, que é D e u s”. O q u e poderia ser m ais claro do q u e esta declaração em Dos princípios fundamentais: “O q u e faz parte da natureza da deidade é c o m u m ao Pai e ao F ilho”.14 E ntão, com o ele resp o ndeu às perguntas e acusações de C elso e da sua laia?
O conceito do Logos segundo Orígenes E m p rim eiro lugar, O ríg en es p ro c u ro u solucionar os enigm as das d o u trin as de D eus e da encarnação explorando ao m áxim o o conceito d o Logos. Em segundo lugar, O ríg en es rejeitou q u alq u er m u dança ontológica real na deidade, e até m es m o no Logos, no processo da encarnação: “Pois, p erm an ecen d o im utável em es sência, ele co n d escen de aos assuntos h u m an o s pela econom ia da providência”.15 As duas afirm ações to rn aram -se p atrim ô n io do p en sam en to cristão, especialm ente n o O rie n te , a p artir de então. P orém , ao m esm o tem p o , am bas foram expressas por O ríg en es de um a form a q u e gerou interpretações m u ito diferentes e até m esm o heresias e cismas. Para O rígenes, o Logos era a chave para to rn ar inteligível a crença cristã em D eus e, ao m esm o tem po, a crença na encarnação de D eus na form a hum ana de Jesus C risto. O Logos é o “espelho im aculado” (a im agem perfeita) de D eus e seu “reb en to ” (com o u m raio do sol), que sem pre esteve com o Pai e 110 Pai com o seu Verbo (expressão). O Logos é eternam ente gerado ou criado pelo Pai e, segundo O rígenes, não existe absolutam ente n en h u m a dessem elhança entre o Pai e o Verbo. O ríg en es n u n ca se cansou de enfatizar q u e o Logos/Vcrbo é o p ró p rio Filho de D eu s e q u e ele não foi, de m o d o algum , criado o u gerado n o tem po. Isso é irônico
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visto q ue Ário, o arq u iinim igo da d o u trin a da T rindade n o século iv, atrib u iu a O ríg en es a origem da sua idéia de su b o rd in acio n ism o do Filho na qual declarou que “havia tem p o q u an d o o F ilho não existia”. Q u a lq u e r pessoa q u e leia com cu i dado os escritos de O rígenes não pode deixar de n o tar suas declarações c o n tu n d en tes a respeito da eternidade d o Logos, o Filho, com o Pai. R eferindo-se à “gera ção” ou “criação” d o F ilho pelo Pai, escreveu q u e o F ilho é igual a D eus Pai p o rq u e “essa geração é tão eterna e perpétua q u an to o b rilho q u e é p ro d u z id o pelo sol. N ão é, pois, pelo sopro de vida q u e ele é feito Filho, n em p o r q u alq u er ato externo, m as p o r sua própria n atu reza”.16 E O ríg en es declarou a respeito d o Logos q u e “não havia [tem po] q u an d o ele (o Filho) não existia”.'7 N o tocante à T rindade inteira e a todas as três pessoas q u e ela contém , O ríg en es escreveu q u e “nada na T rindade pode ser cham ado m aior o u m enor, posto q u e a fonte da deidade, p o r si só, contém todas as coisas pelo seu verbo e razão, e pelo E spírito da sua boca santifica todas as coisas que são dignas de santificação”.18 O u tro ssim , O ríg en es viu u m propósito im p o rtan te em explorar e esclarecer a idéia do Logos p o rq u e servia para d em o n strar co m o D eus, q u e transcende o m u n do, podia se relacionar ao tem p o e à história pela encarnação. Pois q u e o Logos, em b o ra etern o e igualm ente divino, deve de algum a m aneira estar su b o rd in ad o a D eus Pai. O ríg en es atrib u iu forte caráter de subordinação à segunda e terceira pessoas da T rindade, até m esm o na “T rindade im a n e n te ” antes da criação, afirm an do q u e o Pai é a fonte de toda a deidade c q u e eles derivam d o Pai toda a sua existência e virtudes divinas. U m ó tim o exem plo dessa subordinação etern a do Logos e d o E spírito aparece q u an d o O rígenes disse: “D izem os q u e o Salvador e o E spírito Santo su peram todas as criaturas incom paravelm ente, de um a m aneira totalm en te tran scen d ente, m as que são superados pelo Pai da m esm a form a ou ainda m ais do q u e su peram os o u tro s seres”. 19 S egundo parece, so m en te o Logos, e não o Pai, podia se to rn ar encarnado, por que em b o ra de certa form a seja apropriado ao Logos e n tra r n o tem p o e na história, não o é para o Pai. E n tretanto, nem m esm o o Logos sofreu um a transform ação real ao se to rn ar h u m an o em Jesus C risto. Parte da solução de O rígenes para essa q u es tão en co n tra-se na especulação a respeito da alm a h u m an a preexistente de Jesus. E m b o ra seja m u ito difícil in terp retar O ríg en es nessa questão, ao q u e parece, ele acreditava q u e D eus p reparou um a substância-alm a que se en co n tra en tre a deida de e a carne h um ana, e co n feriu -lh e o Logos antes do nascim ento de Jesu s em B elém , de m o d o q u e a “encarnação” realm ente com eçou na preexistência. A razão e o propósito dessa especulação é explicar co m o u m ser divino, m esm o q u e esti vesse de algum a m aneira su b o rd in ad o a D eus, era capaz de se u n ir à carne e ao sangue sem ser m aculado pela im perfeição. A in tro d u ção de realidades in te rm e d i árias preexistentes servia para to rn ar essa idéia inteligível d en tro d o arcabouço do
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pen sam en to grego. O Logos u n iu -se à alm a h u m ana, am bos cresceram n o estado preexistente e, então, essa união se to rn o u o D e u s-h o m e m em Jesu s C risto através da virgem M aria: Essa substância da alma, então, tornando-sc intermediária entre D eu s c a car ne — visto que era im possível para a natureza de D eu s misturar-se a um corpo sem um instrum ento interm ediário — , o D eu s-h o m em nasce, com o dissem os, na substância sendo um interm ediário cuja natureza não era co n trária à tomar para si um corpo.20
O “in stru m en to in term ed iário ” q u e en carn o u , portan to , era a realidade c o m posta pelo Logos divino (um a coisa o u pessoa eterna m as, de certa form a, inferior ao D eus Pai) e pela alm a racional e preexistente de Jesus. A alm a preexistente de Jesu s era tão u n ida ao Logos q u an to o ferro à brasa. Era divinizada, em b o ra criatura e, p or esse m otivo, o in stru m e n to perfeito para a vinda do Verbo sem m u dança à existência hum ana. A segunda consideração de O rígenes é que, até m esm o na encarnação — d u rante toda a existência h u m an a terrestre de Jesu s C risto — , o Logos divino em si nun ca ex p erim en to u um a alteração real. S om ente o corpo e a alm a h u m an a de Jesu s sofreram e m o rreram . O Logos divino assum iu a existência h u m ana, m as não foi m aculado pela im perfeição da criatura. O ríg en es disse a respeito de Jesus C risto: “N ó s o co n sideram os u m h o m em distinto de todos os o u tro s p o r sua co m u n h ão íntim a com o Verbo E te rn o ”.2' M uitas perguntas surgem n o tocante à teologia de O rígenes. U m a das m ais im portantes é: ele realm ente trato u a encarnação adequadam ente? Jesu s C risto é tratado com o “v erdadeiro D eus e verdadeiro h o m e m ” na teologia de O rígenes? Por u m lado, não há dúvida de que O ríg en es considerava divino o Logos, o Filho de D eus, que en carn o u em Jesu s C risto , m esm o q u e de certa form a sub o rd in ad o ao Pai desde a eternidade. Por o u tro lado, não está claro se, e até q u e po n to , ele realm ente considerava q u e Jesu s C risto era “D e u s” na sua existência terrestre. Era um h o m em em “c o m u n h ão ín tim a com o Verbo E tern o [L ogos]”, m as era D eus? O q u e parece ter im p ed id o O ríg e n es de afirm ar absoluta e in eq u iv o cad am en te a d ivindade de Jesu s C risto foi seu c o m p ro m isso a n te rio r à idéia grega de a n a tu reza divina ser sim ples, im utável, im passível e im p ertu rb á v el p elo te m p o o u pela em oção (apátheia). Essa idéia de D e u s p ro p ag o u -se e p ra tic am en te to rn o u -s e u m sin ô n im o d o “teísm o cristão ” n o cristian ism o o rto d o x o e católico, m as as so lu ções específicas de O ríg e n es para to rn á -la inteligível b em co m o a afirm ação da encarn ação (da d iv in d ad e de Je su s) foram rejeitadas. Isso parece u m p o u co in ju s to . U m pai da igreja p o sterio r, q u e pesso alm en te tin h a p o u co a o ferecer no
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q u e se refere a explicações co e ren tes de crenças cristãs, acusou O ríg e n es de ser a o rig em de p raticam ente todas as heresias q u e apareceram para a to rm e n ta r a igre ja nos séculos t v e V . U m dos defen so res m o d e rn o s de O ríg e n es observa q u e “foi o p ro g resso da teologia q u e fez O ríg e n es parecer u m h e re g e ”, p o rq u e ele não foi capaz de p rev er as heresias q u e su rg iram e n em de resp o n d ê-las a n tec ip ad am en te e p o rq u e in g en u am e n te u so u algum as expressões às quais, p o ste rio rm e n te , os teólogos d ariam u m sen tid o h erético .22
A salvação segundo Orígenes e o seu legado Até o m o m en to , pouco se disse a respeito da d o u trin a da salvação de O rígenes e isso p o rq u e nela não aparece nada de especificam ente novo. Assim co m o o utros pais eclesiásticos de seu tem po, O rígenes enfatizava a salvação co m o u m processo de transform ação na im agem de D eus e, finalm ente, na participação parcial da p rópria natureza de D eus, cham ada theosis, 0 11 divinização. T am bém de m o d o se m elhante a todos os dem ais pais da igreja e teólogos de sua época e de antes, O rígenes considerava esse processo sinérgico. Isto é, enfatizava a livre participação da pessoa h u m an a e também a total necessidade da graça de D e u s, fosse q ual fosse sua predestinação o u as decisões de sua livre-escolha. Toda a ala oriental da cristandade tendia a seguir a descrição da salvação ofereci da p o r O ríg en es, aceitando o sinergism o e a divinização co m o conceitos fu n d a m entais da sua soteriologia. N a teologia ortodoxa o riental, a graça de D eus perm ite ao ser h u m an o dar um a resposta, m as esta deve ser espontânea e não coagida. Além disso, a salvação é considerada u m processo vitalício de transform ação gradual, no qual a vontade e a energia h um anas cooperam livrem ente com a graça divina na esperança de q u e u m dia a pessoa reflita a glória c participe da natureza im ortal de D eus. N a história da teologia cristã, O rígenes é vilão o u herói? N a realidade, há bem poucas personagens tão bem resolutas q u an to ele. A m aioria dos participantes é m ais apagada; e d eterm in a r exatam ente seu papel d ep en d e m u ito da percepção e do ju lg am en to teológico. O sim ples fato de O rígenes ter sido con d en ad o com o herege p o r u m concílio no século vi, envolvido em todos os tipos de rixas político-teológicas, po u co ou nada diz a respeito da verdadeira ortodoxia cristã d o p ró p rio O rígenes. O s p ro tes tantes, em especial, devem evitar rejeitá-lo u n icam en te p o r essa razão. M u ito s h e róis protestantes foram condenados com o hereges em vida e depois da m orte. A co n tribuição de O rígenes, assim co m o a de tantos o u tro s nessa história, é u m a m istu ra de características positivas e negativas. Em term o s de influência em geral, ele vem depois de Ireneu e antes de A gostinho. Foi, de m uitas form as, o m o d elo de u m grande intelectual cristão e sacrificou sua vida a serviço da fé. Em
O ríg en es de A lexandria deixa u m legado p ertu rb ad o r
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contraposição, seus ensinos am bíguos a respeito de D eus, da T rindade e de Jesu s C risto deixaram u m legado p ertu rb ad o r q u e acabou irro m p e n d o n u m a guerra ci vil d en tro da igreja. E m bora não deva ser culpado p o r isso, é passível de crítica por não ter enxergado as inconsistências evidentes de seu sistem a, causadas em grande parte pela aceitação cega das idéias gregas sobre a existência divina e a im perfeição das criaturas.
Cipriano de Cartago promove a unidade
V ^ u c m é C ipriano? M u ito s leitores, até certo p o n to fam iliarizados com a história da teologia cristã, p o d em m u ito bem estar se p erg u n tan d o p o r q u e u m capítulo inteiro da versão desta história está sendo dedicado a u m a pessoa geralm ente igno rada ou apenas citada rapidam ente nos estudos da história eclesiástica e da teologia histórica. E m bora C ip rian o de C artago não tenha sido u m dos grandes pensadores originais da teologia cristã e n em u m gênio da teologia especulativa o u polêm ica — e p o r isso não se pode com pará-lo com O ríg en es o u T ertuliano — , seu papel no desen v o lv im en to d o cristianism o organizado é m arcante. C ipriano viveu, trabalhou e escreveu nu m m om ento crucial da vida do cristianis mo. Sua contribuição encontra-se não em um a idéia ou síntese da filosofia e da revela ção divina com pletam ente nova, mas em suas idéias a respeito da liderança e em sua própria liderança na igreja em u m período de grande perseguição, rixas, cisma e heresia dentro do cristianismo. Em u m período no qual os líderes cristãos em geral procura vam não se colocar em evidência a fim de ·evitar a perseguição e quando os hereges e cismáticos dividiram a igreja, C ipriano subiu ao palco e exerceu e ensinou u m estilo de liderança cristã que se to m o u norm ativo na igreja católica e ortodoxa por m il anos e que continua sendo a visão básica da estrutura e liderança eclesiásticas n o ram o católico rom ano do cristianismo, em bora a maioria dos protestantes a rejeite.
A relevância de Cipriano Em linhas gerais, C ip rian o pad ro n izo u o papel d o bispo d en tro da G ran d e Igreja e to rn o u -o abso lu tam en te essencial para a eclesiologia (d o u trin a e vida da igreja) do cristianism o católico e ortodoxo. A vida e o p en sam en to de C ip rian o é, de m uitas m aneiras, a resposta à p erg u n ta freq ü en tem en te feita: “C o m o a igreja cristã to r n o u -se católica?”. O u seja, as idéias de C ip rian o a respeito do cargo de bispo c o n trib u íram g ran d em en te para fazer do cristianism o, tanto o oriental com o o o cid en tal, u m a hierarquia espiritual altam ente estruturada.
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O bviam ente, com o já foi dito, C ipriano não inventou essa eclesiologia (que seria m ais bem descrita com o episcopal, segundo a palavra grega episkopos, que significa “bispo” ou “su p erin ten d en te”). Ela foi desenvolvida m u ito tem po antes de C ipriano ter aparecido em cena. Aliás, C ipriano tem sido freq ü en tem en te cham ado “o Inácio do O c id e n te” p o r causa de sua ênfase em relação aos bispos e à obediência dos cristãos a eles. O que existe de relativam ente novo em C ip rian o é a real equiparação da igreja em si com a com unidade dos bispos. Para ele, q u alq u er pessoa q u e tentasse viver, adorar ou ensinar com o cristão sem a sanção de u m bispo devidam ente o rd e nado na sucessão apostólica estaria criando o p ró p rio cism a e deixando para trás a igreja de Jesu s C risto. E, para C ip rian o e todos quantos com ele concordassem , isso seria gravíssim o porque, com o ele nunca se cansava de dizer: “Q u e m não tem a igreja com o m ãe não pode ter D eus com o pai” e “fora da igreja não existe salvação”. A relevância de C ip rian o na história da teologia encontra-se, p ortanto, no vín culo inovador q u e estabeleceu en tre a eclesiologia e a soteriologia — e n tre a d o u trina da igreja e a d o u trin a da salvação. Esse vínculo girava inteiram en te em to rn o d o ofício do bispo. Já nas décadas posteriores d o século n e nas prim eiras décadas d o século ui, o oficio de bispo foi crucial para a vida das congregações cristãs em geral de todo o Im p ério R om ano. O s p rim eiro s bispos cristãos eram apenas pasto res oficiais das congregações cristãs. O term o episkopos, q u e geralm ente é traduzido p o r “bispo”, significa “s u p e rin te n d e n te ”. O s p rim eiro s bispos foram ho m en s se m elh an tes a T im ó teo , nom eados pelos apóstolos ou pelas congregações cristãs para fo rnecerem um a liderança espiritual. Q u a n d o irro m p iam conflitos nas c o m u n id a des cristãs em C o rin to e em outras cidades rom anas, os bispos tidos em alta esti m a, co m o C lem en te de R om a e Inácio de A ntioquia, escreviam cartas conclam ando os cristãos leigos a respeitar e obedecer aos bispos. N o d eco rrer século n, n o en ta n to, o cargo de bispo p aulatinam ente to rn o u -se u m cargo adm inistrativo no qual o m in istro cristão supervisionava as necessidades espirituais e adm inistrativas de c o n gregações em d eterm in ada área rural ou adm inistrativa. F reqüentem ente, essas “sés” (p o sterio rm en te cham adas “dioceses”) ficavam nos territó rio s civis rom anos e, por isso, em cada província ou cidade, u m bispo cristão supervisionava as igrejas assim com o u m g o v ernador ou procônsul ro m an o supervisiona a burocracia secular e im p u n h a a paz e a o rd em . Especialm ente d u ran te o século m, surgiram problem as que precisavam de solu ções urgentes. O que aconteceria se u m bispo caísse em heresia? E se abusasse de sua autoridade? E se dois hom ens alegassem ser bispos do m esm o grupo de congrega ções cristãs e de seus respectivos m inistros? Q u e m decidiria q uem era o bispo legíti m o e sob quais critérios? N a m ente da m aioria dos cristãos do Im pério R om ano no século ui, era tão inviável ter m ais de um bispo reconhecido em um a única região para u m grupo de igrejas com o ter dois governadores rom anos com petindo para
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governar a m esm a província. A união do im pério com a igreja parecia natural para m uitos líderes cristãos — m u ito antes de se pensar em u m im perador cristão. C o n sta n tin o , o p rim eiro im perador ro m an o a se considerar cristão, era algo inim aginável no século ui. Ao contrário, em geral, os im peradores rom anos eram ex trem am en te hostis ao cristianism o e dois em especial — D écio e D iocleciano — perseguiram os cristãos im placavelm ente. A pesar disso, a un ião das igrejas era um ideal tão inquestionável q u an to a união do im pério. N e m seq u er passava pela ca beça dos cristãos a idéia de q u e as congregações ou aos pastores cristãos pudessem “cuidar dos pró p rio s assu n to s”. O q u e tornava a situação preocupante e exigia um a solução radical era que m uitos líderes cristãos e congregações q u e os seguiam estavam co m eçando a cuidar dos próprios assuntos. E m grande parte p o r causa da perseguição a m an d o de D écio em to d o o Im p ério R o m ano na m etade d o século m, alguns cristãos de R om a e da África do N o rte agiram com o se os bispos fossem dispensáveis e co m o se certos ho m en s e m u lh eres espirituais (“confessores da fé”) q u e tin h am sofrido persegui ção e até m esm o to rtu ra sem negarem a C risto pudessem sim p lesm en te absolver ou tro s cristãos de seus pecados e readm iti-los à c o m u n h ã o plena sem q u alq u er perm issão de u m bispo. O u tro s cristãos alegavam q u e os bispos e sacerdotes q u e se “desviaram ” (que negaram C risto sob to rtu ra o u am eaça da m o rte) não eram líde res cristãos legítim os e q u e seus ritos sacram entais da ordenação e d o batism o eram inválidos. O casionalm ente, sacerdotes ordenados p o r bispos q ue se desviaram , eram rejeitados pelas congregações p o r essa sim ples razão. A perseguição e a co n se q ü en te confusão am eaçaram p ro d u z ir o caos total n o cristianism o. C ip rian o en tro u em cena para acabar com a confusão e fo rn ecer u m co n ju n to de diretrizes q u e unisse todas as congregações, m inistros e cada cren te cristão em volta dos bispos. O resultado foi a form ação da eclesiologia católica. Essa m esm a eclesiologia é aceita pela Igreja O rto d o x a O rien tal. E a eclesiologia básica da cris tandade, co m u m desde os tem pos de C ip rian o até à R eform a pro testan te do século xvi. O histo riad o r eclesiástico H an s von C am p en h a u se n resu m e a relevância de C ip rian o nesse respeito: “C o m C ipriano, com eçou a linhagem de bispos ‘curiais’ que tentavam d esem p en h ar seu cargo eclesiástico no estilo m agisterial dos c ô n su les e pro cô n su les [do im p ério ], com q u em não se im portava em ser co m p arad o ".1
A vida e o ministério de Cipriano C ip rian o nasceu com o n o m e de T ácio C ip rian o em u m a fam ília rica de C artago por volta do ano 200. R ecebeu a m elh o r educação possível e alcançou um a classe m ais alta na sociedade da África d o N o rte . N ã o se sabe exatam ente qual era a sua profissão antes da sua conversão, m as é bem provável q u e tenha passado boa parte de seu tem p o ad m in istran d o as vastas propriedades da fam ília e aproveitando a boa
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vida da classe alta. Sob a influência de u m presbítero (sacerdote) cristão cham ado C ecílio, C ip rian o co n v erteu -se ao cristianism o e aban d o n o u as crenças e práticas religiosas pagãs tradicionais de sua família. Essa conversão aconteceu q u an d o esta va com quaren ta e seis anos de idade e T ácio im ediatam ente m u d o u seu n o m e para C ecílio. A pesar disso, ficou m arcado nos anais da história eclesiástica p o r seu no m e de família, C ipriano. P ouco depois da conversão, C ip rian o com eçou a d istrib u ir suas riquezas aos pobres — o q u e o to rn o u q u erid o das m assas oprim idas de cristãos perseguidos em C artago e arredores. S egundo Pôncio, o D iácono (que escreveu um a hagiografia de C ip rian o com o título A vida e a paixão de Cipriano logo após a m o rte do bispo), depois q u e C ip rian o se converteu, abriu sua casa a todos os visitantes. N en h u m a viúva saía de lá sem receber presentes, nenhum cego ficava sem um com panheiro que o guiasse, ninguém que mancasse ficava sem uma bengala, ninguém que fosse desamparado pelos poderosos deixava de encontrar um defensor que o protegesse. Essas coisas, costumava dizer Cipriano, eram um dever de todo aquele que quisesse agradar a D eus. E assim, seguindo o exem plo de qualquer bom hom em e sempre im i tando os mais virtuosos, tornou-se também digno de imitação.2
A lém disso, p o u co depois da conversão de C ip rian o , o povo cristão de C artago pediu a sua ordenação ao sacerdócio e, p o sterio rm en te, sua elevação à posição de bispo das igrejas da região. C ip rian o serviu co m o bispo de C artago de 248 até a sua execução pública pelas autoridades rom anas em 258. Essa foi um a década tu rb u len ta na vida das igrejas de todas as partes do Im pério R om ano, especialm ente na África do N o rte e na região de C artago onde a perse guição era intensa. E m geral, as perseguições visavam aos líderes das com unidades cristãs. Assim , para evitar um a m o rte intem pestiva c m an ter a liderança à distância, C ip rian o refugiou-se no deserto da África d o N o rte p o r algum tem po. E m bora alguns cristãos te n h a m -n o criticado p o r isso, o u tro s d efen d eram -n o ju stific an d o seu “afastam ento” tem p o rário co m o um a form a de não deixar os cristãos sem lide rança q u an d o a perseguição acabasse. D u ra n te o exílio, C ip rian o com unicava-se in v ariav elm en te co m suas congregações e sacerd o tes p o r m eio de cartas q u e secretam ente entravam e saíam C artago p o r u m fluxo c o n tín u o de m ensageiros. Foi tam bém d u ra n te o exílio q u e C ip rian o escreveu n u m erosas epístolas a bispos de todas as partes d o im pério e trabalhou incansavelm ente para m an ter unidas as igrejas e incitar a fidelidade e a perseverança sob grande tribulação. Q u a n d o pareceu te r passado a pio r parte da perseguição ordenada pelo im pera d o r D écio, C ip rian o v oltou a C artago e reassum iu a função pública de líder dos
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cristãos daquela im p o rtan te cidade e região. C o n v id o u o u tro s bispos a freq ü en ta rem sínodos (concílios) em C artago para d irim irem discussões sérias envolvendo a alegação dos confessores de terem o poder de perdoar pecados e as questões d o u tri nárias com respeito a pessoa de C risto. E m p en h o u -se ativam ente em u m a corres pondência tratando dessas c de outras controvérsias e gradualm ente assum iu a p o sição de u m im p o rtan te m estre dos cristãos em todas as partes do im pério. C ipriano era tão h o n rad o e respeitado q u e os bispos de R om a se sentiam am eaçados p o r ele e, ocasionalm ente, criticavam -no o u até m esm o cortavam relações com ele. Surgiu um a disputa pública entre C ipriano e Estevão, bispo de R om a, q ue m uitos historiadores consideram o p rim eiro papa, pro p riam en te dito. O arg u m e n to q u es tionava se u m bispo deve ser destacado co m o su p re m o sobre todos os dem ais. U m cism a form al en tre ele e C ip rian o to rn o u -se im in en te qu an d o , então, u m a nova perseguição paralisou a controvérsia. F inalm ente, m o rreram tan to Estação q u an to C ip rian o , e a q uestão teve de ser adiada. Além das nu m ero sas epístolas de C ipriano, duas de suas m aiores obras desta cam -se p o r sua im p o rtância especial: Dos desviados e Da unidade da igreja. A p rim eira trata da questão dos cristãos que tin h am negado a C risto de algum a m aneira d u rante a perseguição, q u estio n an d o se devem ser adm itidos de volta à co m u n h ão com a igreja e, caso afirm ativo, de que m aneira. Essa era um a questão extrem a m en te delicada e com plexa, e C ip rian o trata precisam ente d o p o n to central dessa grande controvérsia. Da unidade da igreja trata da crença v eem en te de C ip rian o de q u e a união visível en tre os cristãos — especialm ente e n tre os bispos — e a verdade e a salvação são coisas inseparáveis. N u m período em que a igreja de Jesu s C risto estava sob am eaça de extinção, ou pelo m enos de dissolução com pleta pela perse guição, e p o r causa da discórdia e da dissensão, C ip rian o arg u m e n to u v ee m e n te m en te que, sem um a u n ião m anifesta, a igreja não existe e a salvação não é possível. E m bora seus arg u m en tos talvez pareçam forçados e um p o u co estranhos para as m en tes m o d ern as c individualistas, fizeram m u ito sen tid o naquele tem p o e ajuda ram a criar o sen tim en to de que a salvação está ligada inextricavelm ente à união da igreja e a u n ião da igreja é inseparável da c o m u n h ão dos bispos. S egundo seu biógrafo, C ip rian o teve um a visão da própria m o rte, po u co antes de ser d etid o pelas autoridades rom anas. A fuga de C ip rian o foi planejada p o r seus seguidores devotos, m as assim co m o Sócrates da A tenas antiga e Inácio a cam in h o de R om a para m o rrer, o bispo não quis cooperar com eles e m o rre u de m o d o no b re nas m ãos de u m espadachim , em plena vista dos pagãos e dos cristãos igual m ente. Foi im ediatam ente aclam ado m ártir pelos cristãos de toda a África do N o r te e acabou reverenciado co m o um grande santo em todas as igrejas do im pério. N a tu ra lm e n te , C ip ria n o teve seus críticos d u ra n te a vida e tam b ém depois da m o rte. O bispo E stêvão de R om a vivia às tu rra s com C ip ria n o p o rq u e este se
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recusava a re co n h ec er sua suprem acia. M u ito s dos confessores sen tiam grande aversão a C ip ria n o p o rq u e ele criticava sev eram en te a prática deles de declarar perd o ad o s os cristãos relapsos e de re ad m iti-lo s à plena c o m u n h ã o sem c o n su l tar q u a lq u e r bispo da igreja e n e m seq u e r u m sacerdote. N a co n tro v érsia a res p eito da q u estão dos relapsos, alguns consideravam C ip ria n o p o r d em ais b ra n d o e o u tro s, severo d em ais nas suas exigências de p enitência. N o e n ta n to , de m o d o geral, a au to rid a d e e in flu ên cia de C ip ria n o foi praticam ente sem igual e n tre os cristãos n o d ec u rso do século in.
A doutrina da salvação, segundo Cipriano U m dos aspectos m ais interessantes e influentes da teologia de C ip rian o é a sua d o u trin a da salvação. C ip ria n o não era u m p en sa d o r esp ecu lativ o d o tip o de O rígenes. E screveu b em pouco a respeito da T rindade im an en te e das relações en tre as três pessoas o u de sua unidade. Sua atenção voltava-se para o lado prático da teologia cristã e trab alhou incansavelm ente para vincular a salvação à igreja — a soteriologia e a eclesiologia. Para ele, a salvação é u m processo que com eça n o seio da igreja, com a conversão n o batism o, e co n tin u a na igreja até à m orte. C ip rian o foi u m dos prim eiros pais da igreja a afirm ar, de m o d o claro e in eq u í voco, a regeneração batism al, a idéia de q u e a salvação o co rre na ocasião e p o r m eio do batism o na água, q u an d o é devidam ente ad m inistrado p o r u m bispo ordenado ou p o r seu agente autorizado, o sacerdote. O teste m u n h o de sua conversão torna claro que considerava o batism o o ato q u e o despiu da sua vida antiga e lhe trouxe nova vida em C risto . E m bora atribuísse à graça de D eus toda a energia salvífica, considerava a “lavagem da água salvífica” o in stru m e n to de D eu s q u e o to rn o u “renascido” para q u e recebesse u m a nova vida e se livrasse d o q u e tinha sido antes. A “água do ren ascim en to ” a n im o u -o para a nova vida com o E spírito da santidade que nela opera.3 N u m a epístola sobre o batism o infantil, C ip rian o afirm ou enfaticam ente que todos nascem culpados d o pecado de Adão e q u e a culpa é lim pa so m en te com a água do batism o. A rgum entava co n tra seus co n tem p o rân eo s q u e ainda rejeitavam o batism o das crianças. As crianças, ele dizia, “co n traíram o contágio da m orte antiga, já no n ascim en to ”, e pelo batism o “recebem a rem issão, não dos próprios pecados, m as dos pecados de o u tro [A dão]”.4 N u m a epístola a respeito de batism os co n d u zid o s p o r hereges e cism áticos, C ip rian o declarou q u e o sacerdote q u e batiza tran sm ite à pessoa batizada a “rem is são dos pecados” e o revestim ento d o E spírito Santo, m as q ue, se o sacerdote que batizar for herege, o efeito d o batism o fica esp iritu alm en te nulo: “C o m o poderia, portan to , alguém q u e é batizado p o r eles [hereges] o b ter a rem issão dos pecados e a graça da m isericórdia divina, pela fé, se não possui a verdade da própria fé?”.5 A
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lógica do co nceito q u e C ip rian o tinha da regeneração batism al é fornecida de m o d o resu m id o na m esm a carta: Mas fica manifesto onde e por quem a remissão dos pecados pode ser conce dida; a saber, cia é dada no batismo. Pois em primeiro lugar, o Senhor outor gou a Pedro esse poder, cie sobre quem edificou a Igreja e a partir de quem determ inou c dem onstrou a origem da unidade — exatamente o poder que libertava 110 céu tudo quanto Pedro libertava na terra. E depois da ressurrei ção, também, ele fala aos apóstolos, dizendo: “Assim como o Pai me enviou, cu também vos envio. E, havendo dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo. Se de alguns perdoardes os pecados, são-lhes per doados; se lhos retiverdes, são retidos”. Percebemos, daí, que somente aque les que são colocados sobre a Igreja e firmados na lei do Evangelho, e na ordenança do Senhor, são autorizados a batizar e a dar remissão dos pecados; mas que sem isso, nada pode ser preso ou libertado, quando não há ninguém que tenha poder para amarrar ou soltar coisa alguma.6 As ou tras reflexões de C ip ria n o a resp eito da salvação deixam claro q u e ele a considerava u m pro cesso vitalício q u e apenas com eça na ocasião d o batism o. M ed ian te o b atism o , os pecados são perd o ad o s e o E spírito S an to é o u to rg ad o . A p artir daí, o cren te reg en erad o deve p erm a n ece r firm e 110 c a m in h o da fidelidade à única igreja verd ad eira e às suas d o u trin a s, n u m a vida d e a rre p e n d im e n to q u e se to rn a visível co m os atos de pen itên cia, de d ar esm olas aos p o b res e de je ju m . A idéia de C ip rian o sobre a salvação é a de rigorosa obediência aos m an d am e n to s d e C ris to . A im o rta lid a d e — o g ra n d e o b je tiv o da salvação — d e p e n d e do au to co n tro le e da abnegação: “C o m o p o d em o s alcançar a im o rtalid ad e, senão g u ard an d o os m a n d a m e n to s de C risto m ed ian te os quais a m o rte é subjugada e vencida, se ele m esm o nos adverte, d izen d o : “Se quiseres e n tra r na vida, guarda os m an d am e n to s?”.7 E specialm ente para o caso de o crente co m eter u m pecado grave, C ip rian o p re ceituava penitências severas antes da restauração à plena c o m u n h ão da igreja e dos sacram entos. D ife ren tem en te dos q u e seriam dem asiadam ente brandos, p ro p u n h a períodos de je ju m e oração e a distribuição dos bens aos pobres para receber o perdão e a restauração. D ife ren tem en te dos q u e seriam dem asiadam ente rigoro sos, preceituava a m isericórdia e a renovação da co m u n h ão , m as so m en te depois que o pecador provasse a rrep e n d im en to e transform ação in terio r e m udasse de vida. N a teologia de C ip rian o q u an to à salvação, vem os o início de u m “sistem a penitencial” p len am en te form ado. Séculos m ais tarde, m anuais inteiros de peni tência q ue detalhavam atos específicos de penitência para to d o tipo de pecado pas sariam a ser padronizados d en tro das igrejas ocidentais (católicas rom anas).
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O q u e está abso lu tam ente claro na definição de C ip rian o sobre a salvação é que, se o pecador alcança a visão celestial e a im ortalidade, é un icam en te pela m isericór dia e graça de D eus. O s seres hu m an o s não po d em obrigar a D eus, n em exigir que sua graça opere d en tro deles o u em seu benefício. A despeito da polêm ica posterior dos p ro testan tes co n tra o sistem a penitencial q u e se desenvolveu a p artir da teo lo gia de C ip rian o , o p ró p rio C ip rian o não pode ser acusado de en sin ar a ju stiç a se gu n d o as obras, n em a salvação m ediante o p ró p rio esforço hu m an o . Em n e n h u m m o m en to , ele sugere q u e um a pessoa pode m erecer a salvação co m o recom pensa pelas boas obras; apenas enfatiza q u e o pecador realm en te arrep en d id o , que está sendo salvo pela graça de D eus, necessariam ente d em o n strará o verdadeiro arre pen d im en to p or m eio de seus atos. A recusa de praticá-los levaria à apostasia — a perda da graça. A cooperação com a graça de D eus no processo da salvação é, para C ipriano, sim plesm ente o “cristianism o prático” q u e evita a heresia do antinom ism o, que rejeita toda a lei e o viver com m oralidade, favorece a licenciosidade e tira proveito da liberdade da graça. O u tro ssim , a suspeita de q u e C ipriano, inv o lu n tariam en te, c o n trib u iu para a tendência crescente da igreja para o m oralism o c a ju stiç a segundo as obras, não é totalm en te infundada. E m bora atribuísse à m isericórdia e à graça de D eus toda a eficácia da salvação, vinculava to talm en te a sua preservação à fidelidade ao cam i n h o da perfeição: “C o n q u ista r algum a coisa não é nada; o difícil é m an ter o q u e se co n q u isto u ; assim co m o a própria fé e o n ascim ento salvífico vivificam , não por serem recebidos, m as p o r serem preservados. N a verdade, não é o recebim ento, m as o aperfeiçoam ento, q u e preserva o h o m em para D e u s”.״ Sc esse conceito da salvação su b en ten d e necessariam ente nada m en o s d o q u e a graça co m o u m d om g ratuito e a correção pelas obras, é questão de discórdia entre os protestantes e as igrejas antigas d o O rie n te e d o O cid en te, q u e ten d em a seguir a linha de C ip rian o , em m e n o r o u m aior grau. O s protestantes d o século xvi e os q u e vieram p o sterio rm en te chegaram a co n d en ar q u alq u er sinergism o (esforço de cooperação) desse tipo na salvação e arg u m en tam que fazer a preservação da ju s ti ficação declarada p o r D eus d ep e n d er em “conservar a fé” em term o s m oralistas é igual ao legalism o, e nega a salvação so m en te pela graça. O s q u e d efendem a teo lo gia de C ip rian o arg u m entam q u e q u alq u er o u tra opinião q u e não seja a dele, leva ao an tin o m ism o e à “graça barata”.
O conceito de Cipriano sobre a unidade da igreja C o n fo rm e foi m en cio nado an terio rm en te, um a das contribuições m ais notáveis de C ip rian o en co n tra-se na ligação inabalável que faz en tre a salvação e a unidade da igreja. C o m o en ten dia q u e a igreja era a “indispensável arca da salvação’"' e o “v en tre m atern o ” sem o qual n in g u ém pode viver e respirar esp iritu alm en te”, 10
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p ro c u ro u estabelecer u m a igreja unificada e visível co m o a base da salvação. Q u a l q u er pessoa q u e deixa a igreja, o u a divide, não pode ser salva, pois “não pode ter as vestes de C risto aquele q u e separa e divide a igreja de C risto ” e “não pode te r D eus com o Pai aquele q ue não tem a igreja co m o m ãe”.11 Para C ip rian o , a un idade da igreja e, p o rtan to , a própria possibilidade da salva ção reside n o cargo do bispo. Assim com o Pedro recebeu de C risto o poder de red im ir pecados e passou-o para seus sucessores na ordenação da sucessão apostó lica, tam bém recebeu a autoridade para ser o p rim eiro bispo e para m an ter a igreja unida, pois sem ela não há verdade, n em salvação: “D esde então, com as m udanças dos tem pos e das sucessões, a ordenação dos bispos e o plano da igreja co n tin u am pro g redindo, para q u e a igreja seja edificada com os bispos e cada ato dela seja controlado p o r esses m esm os governantes”.12 Segundo C ipriano, o verdadeiro bispo é aquele que assim é reconhecido pela m ai oria ou totalidade dos demais bispos da cristandade na sucessão apostólica e q ue ensina a verdade fielm ente. N ão existe bispo autoproclam ado. Q ualquer u m que se separe, de m odo cismático, da com unhão e da fraternidade de outros bispos, será u m falso bispo. Ao m esm o tem p o , po rém , C ip rian o recu so u -se a reconhecer ou aceitar qual q u er bispo individual co m o o líder de todos. O casionalm ente, reconhecia, com certa relutância, q u e o bispo de R om a poderia ser o “o p rim eiro e n tre iguais”, m as para ele isso não passava de u m títu lo honorífico. Q u a n d o Estevão, bispo de R om a, ten to u cancelar as decisões de u m sínodo de bispos convocado p o r C ip rian o em C artago, C ip rian o sim plesm ente recusou-se a reco n h ecer sua proclam ação. A opinião do p ró p rio C ip rian o é o q u e G onzález se refere co m o “u m conceito federativo do episcopado”.13 Isto é, cada bispo funciona em h arm o n ia com todos os dem ais e não existe u m q u e esteja acim a dos outros. São in terd e p en d en tes e toda decisão deve ser tom ada n o consenso. N a tu ralm en te, em b o ra isso tenha fu n cionado relativam ente bem d u ra n te a vida de C ipriano, n o O c id e n te Latino a tra dição católica ro m an a acabou elevando o bispo de R om a à autoridade suprem a e po sterio rm en te p ro clam o u -o infalível. A igreja oriental, n o en tan to , ad o to u o epis copado confederado. G onzález re su m e bem a opinião m antida p o r C ip rian o e p e las Igrejas O rto d o x as a respeito da o rd em e do governo da igreja:
A unidade da igreja está no episcopado, do qual todos os bispos partilham com o se fosse um bem com um . Essa unidade não é algo que deva ser acrescentado à verdade, mas, pelo contrário, é uma parte essencial da verdade cristã, de m odo que, onde não há unidade, não há verdade tampouco. Sem a unidade, não há salvação. Sem ela, não existe batismo, nem eucaristia, nem martírio genuíno. N o entanto, essa unidade não consiste da sujeição a um “bispo dos bispos”, mas da fé, do amor e da com unhão entre todos os bispos.14
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Isso significava em term o s práticos que, segundo o m odelo de C ip rian o , n e n h u m a pessoa podia realizar de form a eficaz q u alq u er ato salvífico sem a au to rid a de de u m bispo legítim o. O s “atos salvíficos” incluem o batism o, a eucaristia (a ceia do S enhor), o perdão e a restauração à igreja e outras cerim ônias e proclam a ções im po rtan tes para a salvação eterna de u m indivíduo. Q u e m ten tar restaurar um a pessoa à plena c o m u n h ão na igreja sem a aprovação (direta o u indireta) de u m bispo, estará co m eten d o um ato contra o bispo, e a restauração c anulada. Assim declarou u m sínodo sob a liderança de C ip rian o em C artago p o u co antes da sua m orte. O s confessores já não podiam agir sem os bispos. Foi um a grande vitória para C ip rian o e para a unidade hierárquica da igreja visível, e um a d errota terrível para o sacerdócio de todos os crentes. E m bora a eclesiologia de C ipriano, e sua vinculação com a salvação, tenha so frido m uitas substituições e m odificações em todos os ram os da cristandade — e ten h a sido in teiram en te rejeitada p o r alguns — , ela existe até hoje. E n q u an to este capítulo estava sendo escrito, foi publicada a notícia de q u e os cristãos luteranos e episcopais nos Estados U n id o s não conseguiram e n c o n trar um a fórm ula de c o n córdia que perm itisse a seus m inistros aten d er paróquias de o u tra denom inação, o q u e traria m ais u n ião en tre eles em m u ito s aspectos. O p roblem a se relacionava basicam ente com a exigência dos episcopais de q u e os bispos na sucessão apostóli ca fossem im ediatam ente envolvidos nas ordenações luteranas e em outras fu n ções eclesiásticas im p o rta n te s. A m aioria dos lu te ra n o s q u e v o tara m sobre a concordata rejeitou essa eclesiologia p o r ser m u ito católica. Para eles, o q u e está em jo g o é o princípio p rotestante d o “sacerdócio de todos os cren tes”. E m bora os episcopais afirm em esse m esm o princípio, os luteranos tem em q u e a eclesiologia que realm en te praticam subverta-o. As raízes dessa eclesiologia datam de C ipriano.
O legado de Cipriano Q ual é a relevância de C ip rian o na história da teologia cristã? A firm ando em p o u cas palavras, ele aju d o u a criar a eclesiologia episcopal ortodoxo-católica q u e gira em to rn o dos bispos. E um a eclesiologia aceita pelas igrejas ortodoxas orientais e tam bém p o r algum as igrejas protestantes. Ela ajudou a unificar a igreja n u m perí od o de grande tribulação e cism a, m as, ao m esm o tem po, aju d o u a d esvirtuar o relacionam ento d ireto do cren te co m u m com D eus e sua capacidade de divergir e falar profeticam ente com a hierarquia da igreja. C o m C ipriano, o ofício de bispo na cristandade se tornaria tanto um a m aldição com o um a bênção. A bênção está no p o d er de unificar c a m aldição, no poder de subjugar a iniciativa individual de divergir d en tro da igreja. O legado de C ip riano ainda é co n trovertido en tre os cristãos. A lguns historiado res e teólogos cristãos m o dernos sustentam que o tipo de eclesiologia hierárquica
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que aju do u a levar a efeito, e que defendia em seus escritos, era necessário. Sem ele, o cristianism o corria o perigo de se dissolver em “c onventículos de caráter mais o u m en o s sin cretista”.15 E m outras palavras, heresias, cism as, fanatism os, bem com o crenças e práticas estranhas ao cristianism o apostólico, predom inavam de tal form a n o cristianism o apostólico, q u e era necessário estabelecer a o rd em a fim de evitar o caos e a confusão com pleta. Até m esm o alguns dos críticos de C ipriano dizem q u e é m ais fácil criticar o q u e aconteceu p o r causa da influência dele d o que explicar o teria acontecido de o u tra form a. Sem a autoridade d o m in an te dos bis pos, e sem seus sínodos (reuniões oficiais) para d irim ir disputas, a religião cristã teria p erd id o a identidade. O u tro s historiadores e teólogos cristãos m o d ern o s arg u m e n tam q u e a solução oferecida p o r C ip rian o para unificar a igreja foi extrem a dem ais e q u e o resultado foi algo que d ificilm ente se reconheceria co m o o cristianism o apostólico. U m des ses críticos diz: “N o âm ago desse pen sam en to oficial [a eclesiologia de C ip rian o ] a igreja se en co n tra co m o u m a totalidade sacro-social, um a co m u n id ad e de idéias cristãs e d o m o d o de vida cristão, q u e im põe a seus líderes u m padrão de co nduta ‘eclesiástico’ e quase político.”16 Por outras palavras, a igreja to rn o u -se fo rtem en te institucionalizada seg u ndo os padrões d o Im p ério R om ano. N esse processo, não im porta o q u an to ten ha sido necessário, a igreja m u d o u para o pior. P erd eu -se a idéia do sacerdócio dos crentes, o papel dos profetas e a liberdade e a esp ontaneida de na adoração e na vida religiosa em geral. A verdadeira igreja q u e era o local onde o Espírito está, to rn o u -se onde o bispo está. N essa transição, p o rém , pelo m enos sur giu u m co rp o identificável de ensinos e práticas inextricavelm ente vinculado ao cristianism o e deixou de ser grande o perigo de o cristianism o se to rn ar com patível com toda e q u alq u er coisa, o q u e lhe teria abstraído to d o o sentido.
O cristianismo se organiza
v J m episódio im p o rtan te na história da teologia cristã é a transform ação da reli g ião c ris tã , d e u m a s e ita r e la tiv a m e n te d e s u n id a , p n e u m á tic o - e s p ir itu a l (carism ática), p raticam ente clandestina d o Im pério R om ano, em u m a instituição altam ente organizada, hierárquica e visível que, no fim do século m, era u m objeto q u e já fazia parte da paisagem do im pério. E logo se tornaria a religião oficial do im pério. A transform ação aconteceu quase q u e inteiram en te no século iu, em bora cada um a de suas etapas tenha raízes m ais antigas. C o m o e p o r q u e a tran sfo rm a ção aconteceu é o q u e irem os tratar agora. Três aco n tecim entos im portantes, ju n to s , foram responsáveis pela tran sfo rm a ção do cristianism o prim itivo: a form alização da e stru tu ra organizacional hierár quica centralizada nos bispos, a form ulação dos credos q u e re su m e m os princípios do que se deve crer para ser cristão e a identificação de u m cânon de E scrituras cristãs. N e n h u m desses acontecim entos com eçou e te rm in o u n o século ui, mas foi nessa era q u e os resultados finais se tornaram praticam ente inevitáveis, não em todos os p o rm en o res, m as na form a e em linhas gerais. As razões desses três acontecim entos e da transform ação geral da igreja já fo ram aludidas. Agora, exam inarem os a questão com m ais detalhes. Em prim eiro lugar, o d esaparecim ento dos apóstolos levou a igreja a um a crise de autoridade. Todos os cristãos concordavam q u e os apóstolos tin h am posição e autoridade es peciais para ensinar, co rrigir e d irim ir disputas. Até m esm o os gnósticos apelaram a um a tradição secreta transm itida p o r u m g ru p o seleto de discípulos de Jesus. A igreja precisava e n c o n trar u m a form a de se governar sem os apóstolos. Essa neces sidade surgiu especialm ente p o r causa do su rg im en to de heresias e seitas cism áticas d en tro do cristianism o do século 11 . N a falta de um a e stru tu ra organizacional, q ual q u er pessoa podia co rro m p e r os ensinos da igreja pela persuasão e carism a. O gnosticism o, em especial, foi um a am eaça às d o u trin as do cristianism o e forçou os cristãos do século li a p ro c u rar líderes poderosos para abafá-lo.
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Em segundo lugar, a perseguição forçou a igreja a lidar com algum as questões que exigiam liderança forte. Q u e m falaria em n o m e dos cristãos em cada região? Q u e m negociaria com o p rocônsul ro m an o em cada território? Q u a n d o a perse guição term inasse, q u e m decidiria quais cristãos teriam licença para voltar aos car gos de liderança, co m o m inistros c professores, e quais seriam excluídos p o r terem se to rn ad o traidores da fé ao negarem a C risto o u colaborado com as autoridades pagãs? Seriam os cham ados confessores q u e tin h am passado p o r cadeias e to rtu ras? O u u m a autoridade m ais form al, os bispos? Em terceiro e ú ltim o lugar, p o r causa do problem a dos bispos q u e caíram em erro, a igreja foi forçada a criar um a hierarquia forte, credos e confissões de fé e u m cânon de E scrituras cristãs. Se o bispo representa e dirige a igreja, e se m u ita a u to ridade espiritual está investida nesse cargo, o q u e se deve fazer com u m bispo que com ete u m pecado vil o u um a heresia e q u e se torna traid o r d u ra n te a perseguição? Esse p roblem a, em especial, o brigou a igreja do século m a fortalecer a co m u n id ad e de bispos e levou a u m governo eclesiástico regido p o r sínodos, o u reu n iõ es ofici ais de bispos. Por essas e outras razões, a igreja cristã d o Im p ério R o m an o “o rg an izo u -se” no sentido de estru tu rar-se form alm ente. O p rim eiro e, de m uitas m aneiras, o m ais im p o rtan te passo nesse sentido foi o fortalecim ento da autoridade dos bispos e as reuniões de bispos cham adas “sín o d o s”.
O papel dos bispos N o início da história cristã (fim d o século 1 até o início do século n), cada co n g re gação tin h a u m p resb ítero o u g rupo de presbíteros e dirigia os pró p rio s assuntos sob a sua liderança. P osteriorm ente, mas ainda n o início da história da igreja, a m aior das igrejas selecionava u m só presbítero para servir co m o bispo — um a espécie de “su p erp resb ítero ” — e o rien tar e dirigir os presbíteros sob sua autorida de. O s bispos foram co n q u istan d o cada vez m ais autoridade e co n tro le à m edida que as congregações individuais davam origem a novas igrejas e, em m u ito s casos, o bispo da igreja-m ãe perm anecia o bispo delas tam bém . N o final d o século m, a cidade de R om a possuía q uarenta congregações individuais, divididas em p aró q u i as, todas dirigidas p o r um único b isp o .1Já vim os na teologia de C ip rian o a ju s tifi cação teórica dessa teologia episcopal e alguns dos seus resultados. O s bispos ad qu iriam p aulatinam ente um a posição espiritual especial m ediante a qual som ente eles eram capacitados a declarar q u em pertencia verdadeiram ente à igreja cristã católica e ortodoxa — a G ran d e Igreja — e q u em era herege ou pecador e ficava fora do alcance do perdão. Assim , os bispos ganharam realm ente o p o d er de exco m u n g ar pessoas da igreja. A aquisição e m o n o p ó lio do p o d er pelos bispos n o sécu lo iíi rep resen taram u m avanço q u ântico na eclesiologia form al e hierárquica.
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Essa evolução, às vezes, é cham ada “clericalização da vida eclesiástica”2 e teve grandes conseqüências, além de m era m en te estabelecer u m fluxogram a para a ad m inistração eclesiástica. N o nível m ais alto da escalada hierárquica, estava o bispo e, “um a vez eleito, sua autoridade era praticam ente incontestável. Ele era o su m o sacerdote, [...] d escen d en te dos apóstolos e investido de poderes apostólicos”.3 Abaixo do bispo, vinham clérigos de vários tipos, dispostos n u m a teia com plexa de relacionam entos de au toridade e poder, todos governados p o r u m c o n ju n to cres cente de “leis canônicas”. Elas form avam u m d o c u m e n to escrito, oficial, de regras e regulam entos eclesiásticos. M u ito s bispos tin h am dep artam en to s inteiros traba lhando sob suas o rd en s, na supervisão dos assuntos diocesanos. O bisp '"o rn élio de R om a, que se au to p ro clam o u papa em m eados d o século m, tinha 155 clérigos trabalhando sob suas o rdens em R om a.4 A lguns deles eram presbíteros (idênticos aos anciãos) e serviam co m o m inistros e sacerdotes das congregações e com o ser vidores do bispo na adm inistração. O s diáconos tam bém eram clérigos ordenados, m as, em vez de serv irem c o m o sac erd o tes sac ram en tais, trab a lh av am c o m o supervisores das obras de caridade e tam bém realizavam tarefas adm inistrativas para o bispo. A lguns clérigos eram sim plesm ente adm inistradores q u e trabalha vam para o bispo cu id an d o da correspondência, tran sm itin d o m ensagens para o u tros bispos e m an ten d o a organização da sé ou diocese. A m edida q u e a igreja se to rn o u m ais clerical, o papel dos leigos co m eçou a d im in u ir. N o início do século m, era co m u m q u e cristãos leigos — crentes co m u n s q u e não tin h am n e n h u m a função oficial de m in istro — oficiassem os batis m os e dirigissem os cultos, inclusive a ceia do S enhor. M uitas congregações cristãs perm itiam algum a participação espontânea dos leigos. O s crentes leigos q u e sofre ram p or am o r a C risto d u ra n te a perseguição eram geralm ente considerados capa citados a declarar perdoados os pecados dos o u tro s, após a penitência apropriada. T udo isso m u d o u no processo ru m o ao clericalism o: A liturgia tornava-se cada vez mais formal e o sistema penitencial, mais específico. A administração de ambos tornou-se exclusiva dos clérigos. N o início do século [m], os leigos da igreja em Cartago ainda podiam esperar ter algu ma participação direta no culto, “profetizar” 011 cantar alguma coisa de com posição própria. Os leigos também podiam batizar c essa parece ter sido uma tradição também em Roma. Já em meados do século, a situação mudou. Cipriano não fala de leigos realizarem batismos em nenhum a das muitas re ferências ao assunto. A celebração dos mistérios [sacramentos] era prerroga tiva exclusiva dos sacerdotes.5 N o nível m ais alto do clericalism o estava o bispo: o “su p er-sacerd o te” e o p rin cipal ad m in istrad o r e ju iz de todos os cristãos de sua sé. N o rm a lm e n te , u m bispo
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não interferia nos assuntos dos dem ais. P ortanto, n o início do século m, o cristia nism o era um a colcha de retalhos de sés e episcopados espalhados p o r to d o o im pério, sem n en h u m a organização visível m aior. E m bora u m dos bispos — o bispo de R om a — alegasse certa suprem acia sobre os dem ais, n e n h u m o u tro reconhecia a legitim idade dessa reivindicação, o q u e só aconteceria po sterio rm en te. C ipriano argum entava q ue a u n id ad e da igreja estava na c o m u n h ã o dos bispos. M as o q u e se deveria fazer se u m bispo — o oficial m ais alto na adm inistração eclesiástica — com etesse u m pecado vil ou heresia, ou traísse a C risto e à sua igreja d u ra n te a perseguição? Surgiu a necessidade dos sínodos de bispos q u e tom assem decisões im portantes em questões q u e afetassem m ais d o q u e u m a sé e q u e exam inassem as credenciais de bispos sob suspeita de ter com etido pecado, heresia o u traição. O precedente para os bispos interferirem nos assuntos de outros pode ser visto na carta de C lem ente de R om a aos coríntios. Em í Clemente, o bispo de R om a adverte severam ente os m em bros da igreja em C o rin to a cessarem e desistirem da rebelião contra os líderes nom eados. D urante o século n c no início do século m, outros bispos escreveram cartas a bispos e congregações fora de suas sés, na tentativa de corrigi-los no tocante a várias questões. O casionalm ente, os bispos até nom eavam ou tros bispos q u ando os presbíteros de sés vizinhas eram incapazes ou se indispu nham a eleger seus líderes espirituais. U m dos prim eiros sínodos de bispos foi reali zado em m eados do século 11 a fim de exam inar o m ovim ento m ontanista e o resulta do foi a expulsão form al da G rande Igreja de M ontano e de todos os seus seguidores. A p rim eira vez em que u m sínodo de bispos exco m u n g o u u m bispo aconteceu em A ntioquia, n o ano de 268. Pode ter o co rrid o no p rim eiro edifício eclesiástico, o u basílica, já c o n s tru íd o em u m a cidade ro m an a im p o rta n te . A basílica em A ntioquia foi edificada p o r volta de 256. U m g ru p o de bispos de sés vizinhas re u niu-se ali a fim de exam inar os ensinos de u m bispo cham ado Paulo de Sam osata. S egundo parece, Paulo ensinava um a versão da d o u trin a de C risto que veio a ser cham ada “ad o cio n ism o” p o rq u e explica a divindade de Jesus em seu relaciona m en to com D eus Pai a partir do seu batism o no rio Jordão. S egundo o bispo Paulo, os cristãos são m onoteístas rigorosos e não devem n u n ca in sin u ar a existência de m ais de u m D eus. Ele acreditava q u e a d o u trin a da Trindade, ainda ern desenvolvim ento, inclusive a eterna divindade d o Filho, am e açava o m o n o teísm o do cristianism o. Por isso, dizia q u e Jesu s C risto era u m h o m em adotado p or D eus co m o seu filho h u m a n o especial. Jesu s ocupava um a posi ção incom parável no relacionam ento com D eus, sem realm ente se to rn ar D eus. Paulo de Sam osata colocava Jesus acim a dos o u tro s seres h u m an o s devido à sua elevação à condição de filho feita pelo Pai e abaixo de D eus devido à sua h u m a n i dade e à unicidade absoluta de D eus. A conseqüência, é lógico, foi a negação total da T rindade e Jesu s C risto ficou red u zid o a u m grande profeta. O sín o d o dos
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bispos re u n id o em A ntioquia em 268 co n d e n o u o en sin o de Paulo e o depôs de sua condição de bispo de Sam osata, um a província de A ntioquia. O b v iam en te, o sín o do de A ntioquia não tinha “p o d eres” oficiais para fazer va ler as suas decisões. N e n h u m o u tro bispo o u sínodo os tinha. O s cristãos não deixavam de ser u m a m in o ria perseguida, apesar de pro sp erarem , co n stru íre m basílicas e até m esm o planejarem u m a grande catedral p erto d o palácio do im pera dor. S em elhantes sínodos só tin h am a autoridade q u e lhes era outorgada pelos grupos de cristãos. O casionalm ente, um bispo o u u m sínodo apelava às autorida des rom anas para q u e ajudassem a im p o r suas decisões. Era u m a prática co m u m em todos os tipos de sociedade, inclusive nos grupos religiosos. As autoridades rom anas preferiam , na m aioria das vezes, ficar fora das disputas religiosas, a m enos q u e a paz cívica estivesse em jo g o . A pesar disso, em geral, os sínodos tin h am gran de sucesso em p ersu ad ir os cristãos co m u n s e seus m inistros e diáconos a acolher suas decisões. A unidade da igreja estava em jo g o e a m aioria dos cristãos acolhia a autoridade dos bispos e dos sínodos. Paulo de Sam osata foi deposto pelos próprios congregados, na ocasião da declaração de sua condenação pelo sín o d o de 268. Foi um a grande vitória, não so m en te para a ortodoxia, m as tam bém para a catolicidade. Felizm ente, tam b ém foi u m a vitória para o evangelho! Já no fim do século m, a clericalização do cristianism o estava quase com pleta. A igreja, para todos os efeitos, era idêntica à co m u n h ão dos bispos na sucessão apostóli ca. Em bora vários grupos cismáticos, com o os m ontanistas, gnósticos e outros, ainda existissem, a G rande Igreja, tanto ortodoxa com o católica, em ergia de form a cada vez mais evidente. Tudo o q ue faltava para consolidar sua unidade e seu poder hierárqui co e livrá-la para sem pre de hereges e cismas perturbadores era um único bispo su prem o com autoridade absoluta sobre todos os dem ais e u m im perador cristão que apoiaria com o peso da “espada” (força, coerção) os bispos da G rande Igreja. Esses dois avanços aconteceram nos séculos iv e v, de m o do que, já em 455, n o grande C oncílio de Calcedônia, as influências cruciais na decisão quanto a verdadeira d o u tri na e o verdadeiro governo da igreja foram o im perador e o papa — o bispo de Roma.
As regras da fé Q u a n d o os bispos julgavam , individualm ente ou em sínodos, o que era teologica m en te correto, q u e padrões o u critérios em pregavam ? C o n fo rm e foi observado, até essa época ainda não havia n e n h u m a Bíblia cristã aceita p o r unanim idade. A decisão de que os ensinos de Paulo de Sam osata a respeito de C risto eram heréticos não foi um a sim ples questão de conferir as principais passagens das E scrituras e com provar co m o eles as violavam . N ã o estam os dizen d o com isso que os bispos no século li e m nun ca apelavam às Escrituras. C ertam e n te o faziam . Apelavam à Bíblia hebraica — n o rm alm en te in terpretada de form a u m tan to sim bólica e alegórica —
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e a vários d o cu m en to s e m anuscritos considerados apostólicos em algum sentido. E n tretan to , o que u m bispo considerava co m o a E scritura inspirada não era neces sariam ente a m esm a coisa q u e o u tro considerava. N a ausência de u m cânon for m alm en te re co n h ecid o co m o E scritura cristã, os bispos apelavam à “trad ição ” am orfa. U m teólogo p o sterio r definiu a tradição co m o “aquilo q u e todas as pesso as, de todos os lugares, de todos os tem pos acreditam ”.6 N atu ralm en te, não há nada “q ue todas as pessoas, de todos os lugares, de todos os tem pos acred itam ”! A regra cm si deve ser aplicada so m en te aos verdadeiros crentes em C risto . Eles são “todas as pessoas”. M as a regra, o u “câ n o n ”, tem várias falhas en o rm es, inclusive a dificuldade de identificar exatam ente q u em é u m “ver dadeiro cristão”, q u e é exatam ente a questão q u e ela deveria ajudar a solucionar. U sar essa regra para so lucionar o problem a re q u er m uita circularidade. N o en ta n to, os bispos e dem ais líderes e teólogos d o cristianism o no século iu tin h am um a idéia de tradição apostólica e p ro cu raram identificá-la e form alizá-la em u m credo que pudesse servir a todas as igrejas em todos os lugares. O s fu n d a m e n to s para esse resu m o oficial, em form a de credo, da d o u trin a apostólica achavam -se em um a fórm ula batism al antiga usada nas igrejas de Rom a. E m algum m o m e n to do final d o século 11 o u início do século iu, alguém fo rm u lou a p artir dessas declarações cristãs rom anas o que veio a ser co n h ecid o p o r Credo dos apóstolos. A n terio rm en te, foi cham ado Antigo credo romano. U m a de suas versões diz o seguinte: Creio cm Deus, Pai onipotente, criador do ccu e da terra. Creio cm Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor. Ele foi concebido pelo poder do Espírito Santo e nasceu da Virgem Maria. Padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado. Desceu aos mortos. Ressuscitou no terceiro dia. Subiu ao ccu, e está sentado ao lado do Pai. Voltará para julgar os vivos e os mortos. Creio no Espírito Santo, na santa Igreja católica, na comunhão dos santos, no perdão dos pecados, na ressurreição do corpo, e na vida eterna. Amém.7
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É desconhecida a linhagem exata desse credo. E m b o ra suas raízes re m o n te m à igreja de R om a no século n, sua form ulação plena e sua aceitação oficial co m o o “sím b o lo ” o u “regra de fé” (credo) unificadora só surgiu m u ito m ais tarde. U m a form a ru d im en tar en co n tra-se na obra de T ertuliano O uso do véu petas virgens, de cerca de 200, e o líder e escritor eclesiástico de R om a, H ip ó lito , in clu iu -o , sob a form a de perg u n tas e respostas, em Tradição apostólica aproxim adam ente na m esm a época. R ufino, trad u to r de O rígenes para o latim q u e tam bém era teólogo, incluiu um texto quase co m p leto desse credo p o r volta de 404. A íntegra desse cred o e sua aceitação oficial veio sob a autoridade d o im perador C arlos M agno d o Sacro Im p é rio R o m an o (ou o R eino Latino dos Francos) cerca de 813. A lguns estudiosos elevaram -no à condição de credo autorizado para todos os cristãos de todos os lugares m u ito m ais tarde, em 1014.8 A história da aceitação oficial de um credo, n o en tan to , não deveria desviar a nossa atenção. O fato é q u e algum a form a d o Credo dos apóstolos o u d o Símbolo romano antigo foi am p lam ente aceita co m o o resu m o autorizado da tradição apostó lica no século ui. Seu p ropósito era fornecer u m critério de afiliação na igreja cató lica e ortodoxa. Sua linguagem excluiu deliberadam ente os gnósticos e o u tro s h e reges. A longo prazo, no en tan to , esse credo ficou dem asiadam ente p eq u e n o para seu propósito. N o século iv, co n fo rm e verem os, os bispos acharam necessário for m ular e pro m u lg ar o u tro credo q u e preenchesse com m ais p o rm en o res o arcabouço oferecido pelo Credo dos apóstolos. O Credo de Nicéia, ou niceno-constantinopolitano, (325 e 381), deixou claras as interpretações corretas de certas passagens am bíguas no Credo dos apóstolos e enfatizou a d o u trin a trinitária im plícita ali. Ju n to s, o Credo dos apóstolos e o Credo de Nicéia form am as declarações autorizadas unificantes gê m eas da fé apostólica para boa parte da cristandade. M esm o d u ra n te a R eform a pro testante do século xvi, a m aioria das ram ificações do pro testan tism o e dos seus líderes (L utero, Z u ín g lio , C alvino) abraçava-os e até m esm o considerava hereges qu aisq u er reform adores q u e não quisessem adotá-los. E interessante n otar que essas “regras da fé”, ou credos, são de data anterior ao acordo final e oficial a respeito d o cânon das Escrituras cristãs. O fato é que, em certo sentido, nunca houve concordância universal no tocante ao cânon cristão! A questão em pauta aqui, no entanto, é que a existência de algum a form a do Credo dos apóstolos reconhecida pela m aioria das igrejas cristãs no Im pério R om ano rem onta, com qua se certeza, a um a data anterior ao “fecham ento do cânon” nas suas várias form as aqui e ali. As igrejas O rtodoxa O riental e Católica R om ana — que reivindicam ser as form as m odernas da G rande Igreja indivisa do Im pério R om ano — ainda enfatizam a autoridade da tradição acim a da autoridade do cânon. Isto é, acreditam que o cânon das Escrituras — sua identificação exata com o u m determ inado co n ju n to de escritos inspirados e santos — é u m p ro d u to da tradição apostólica q u e anteriorm ente dera
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origem à eclesiologia episcopal da igreja e das regras da fé. Isto não significa que su b o rd in am a verdade das E scrituras a o utra coisa q u e não seja o p ró p rio D eus. Pelo contrário, nas suas teologias, a tradição q u e p rovinha dos próprios apóstolos tem prioridade histórica e eclesiástica sobre o cânon. E a tradição viva incorporada na co m u n h ão dos bispos e expressa nas regras da fé q u e acabou d an d o origem ao reconhecimento de certos escritos co m o inspirados. C o n fo rm e verem os nos capítulos a respeito da R eform a protestante, os protestantes, de m o d o geral, tratam a questão de m o d o diferente. C o locam o texto inspirado acim a da tradição oral. E m certo sentido, tan to a ortodoxia oriental co m o o catolicism o ro m an o fazem o inverso.
O desenvolvimento do cânon cristão C o m o , então, o cânon cristão das E scrituras — a Bíblia cristã — surgiu? Essa his tória é ex trem am en te com plicada e não poderá ser narrada com m u ito s p o rm e n o res aqui. E, na verdade, um a história controvertida e discutível. Q u a lq u e r tentativa de recontá-la será forçosam ente alvo de críticas de pessoas co m p ro m etid as com um a versão diferente. A pesar disso, o esboço e os acontecim entos básicos dessa história serão o tópico do restante do presente capítulo. O s próprios apóstolos usavam a Bíblia hebraica e certam en te consideravam -na autorizada. E m bora m uitos escritos ju d aico s existissem nos tem pos de Jesu s e dos apóstolos, o cânon das E scrituras hebraicas era relativam ente fixo e claro. O parti do dos fariseus dom inava as sinagogas judaicas e, depois da destruição d o tem plo em Jeru salém em 70, p ro c u ro u refo rm ar o ju d a ísm o de m o d o q u e pudesse existir p o r tem p o ilim itado na diáspora (110 exílio da Palestina) sem u m tem plo. U m a parte desse processo foi a definição form al das E scrituras inspiradas d o ju d aísm o . E m bora exista certa divergência n o tocante ao C o n cílio de Jâm nia, onde os rabinos se en co n traram em 90, parece que foram dados ali alguns passos im portantes em direção ao processo oficial da canonização. A Bíblia hebraica ficou definida com vinte e dois livros inspirados: desde o P entateuco até aos Profetas M enores. N as Bíblias cristãs posteriores, alguns livros d o cânon ju d a ic o foram subdivididos, per fazendo u m total de trin ta e nove livros individuais. A versão grega das Escrituras hebraicas, que é cham ada Septuaginta, ou ucx, co n tin h a todos eles, bem co m o al guns livros escritos depois de M alaquias, q u e são p rin cip alm en te de relevância histórica. Estes inclu em os livros dos M acabeus e o u tro s livros cham ados (pelos cristãos) de interbíblicos ou apócrifos. A m aioria dos prim eiros pais da igreja no século 11 em pregava a Septuaginta, assim co m o Paulo e o u tro s apóstolos. M as, para fazer suas citações, quase sem pre usavam os vinte e dois livros canônicos e rara m en te os livros históricos e apócrifos posteriores. D e m o d o geral, portanto, podem os dizer com segurança q u e a m aioria dos p ri m eiros pais da igreja nos séculos 11 e 111 aceitavam a decisão dos líderes ju d aico s de
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am pliar o co n teú d o das E scrituras inspiradas para além do P entateuco (G ênesis até D eu te ro n ô m io ) e restrin g i-lo aos vinte e dois (ou trin ta e nove) livros da Lei e dos Profetas. Esta, p o rtan to , era “a B íblia” das prim eiras igrejas cristãs depois dos após tolos.9 N a época de C le m e n te de R om a e dos dem ais pais apostólicos, as cartas dos apóstolos e os Evangelhos considerados de autoria dos apóstolos, ou de seus cole gas m ais íntim os, foram reu n id o s e cham ados “A póstolos”, ju sta p o n d o -o s com os “Profetas” da Bíblia hebraica. S endo assim , já antes d o ano 200, vários pais e bispos da igreja estavam se referin d o a um a coletânea de escritos inspirados e autorizados conhecidos p or “os Profetas e os A póstolos” e tratando essa m assa am orfa com o u m critério e n o rm a de verdade para a fé e prática cristãs. N o en tan to , ainda não existia n e n h u m equivalente cristão da Bíblia hebraica q u e tivesse o re co n h ec im e n to oficial o u fosse u n an im em en te aceito. O s estudiosos em geral co n cordam , mais u m a vez, q u e a igreja deve m u ita coisa a um herege. S egundo u m grande h isto riad o r eclesiástico: “A idéia e a realidade de um a Bíblia cristã foram obra de M arcião e a Igreja, que rejeitou a sua obra, longe de estar adiante dele nesse cam po, do p o n to de vista form al, sim plesm ente seguiu o seu ex em p lo ”.10 M arcião foi u m m estre cristão de grande influência em R om a em m eados d o século n. A pesar da longa distância que os separava geograficam en te, M arcião e M o n tan o eram co n tem p o rân eo s e tin h am certas características cm co m u m . E m bora a teologia de M arcião estivesse m ais próxim a a algum as form as do gnosticism o, ele, da m esm a form a q u e M o n tan o , considerava q u e a igreja n e cessitava u rg e n te m en te de um a reform a e pôs m ãos à obra para reform á-la, ten tan do redescobrir e p ro m o v er o q u e considerava o en sin o verdadeiro e original de Jesus. Para tan to (segundo M arcião acreditava), seria necessário re m o v er do cristi anism o todos os vestígios d o ju d a ísm o , inclusive a Bíblia hebraica e seu D eus, Iavé. Para ele, o a t não tin h a a m ín im a validade para os cristãos c o D eu s descrito nele era u m sem ideus tribal sanguinário q u e não m erecia a adoração o u culto dos cris tãos. As sem elhanças en tre M arcião c o gnosticism o aparecem na sua idéia de que o D eus do at criou, erradam ente, a m atéria, e q u e a m atéria é a origem d o m al. Para M arcião, o Iavé d o a t era m ais dem o n íaco do q u e divino. M arcião foi, talvez, o p rim eiro cristão q u e te n to u d efin ir u m cânon cristão das E scrituras inspiradas e quis lim itá-lo exclusivam ente aos escritos dos apóstolos que considerava livres de q u alq u er vestígio d o ju d a ísm o . A Bíblia de M arcião co n s tituía-se de duas partes: um a versão editada d o evangelho seg u n d o Lucas e dez epístolas de Paulo. Até m esm o o “apóstolo” foi editado p o r M arcião para livrar as dez epístolas de todos dos “elem en to s ju d a iz a n te s”. M arcião e sua versão antijudaica das Escrituras cristãs tiveram rápida aceitação en tre alguns cristãos, e igrejas m arcionitas foram su rg in d o de repente em R om a, C artago, e em outras cidades. O s pais e bispos principais da igreja atacaram com
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severidade M arcião e seus seguidores. A obra de T ertuliano Contra Marcião é um excelente exem plo da polêm ica cristã antim arcionita na época da virada d o século (201). Iren eu , tam bém , criticou M arcião e os seus ensinos, em Contra heresias, e o u tro s pais da igreja dos séculos 11 e m fizeram o m esm o. A lguns cristãos da anti güidade claram ente consideravam M arcião co m o o arqui-herege e principal ini m igo do cristianism o o rto d o x o e católico. A pesar disso, igrejas m arcionitas sobre viveram em cidades de todas as partes d o im pério, até serem fechadas pelos p ri m eiros im peradores cristãos. U m a das reações ao cânon das E scrituras cristãs tru n ca d o p o r M arcião foi criar o cânon co rreto e a prim eira tentativa sem i-oficial aconteceu em R om a. Por volta de 170, a igreja cristã de R om a criou o Cânon muratório para rebater o de M arcião e fo rn ecer aos cristãos u m a lista com pleta de “Profetas e A póstolos” autorizados. O Cânon muratório alistava os q u atro evangelhos, Atos e os dem ais livros contidos no n t (co n fo rm e a definição q u e existe ainda hoje), à exceção de H e b reu s, Tiago e 1 e 2Pedro. Incluía, ainda, A sabedoria de Salomão, m as no tav elm en te excluía o sem p re p o p u lar c in flu en te O pastor de Hertnas. O Cânon muratório representa u m passo crucial no d esen v o lv im en to da vida organizacional oficial da igreja cristã: foi a p rim eira tentativa de identificar u m a lista definitiva de escritos cristãos com o m esm o nível da Bíblia hebraica. E m bora essa lista não seja a da versão definitiva, certam en te c o n trib u iu para o p en sa m e n to cristão ficar to m ad o pela idéia de um a Bíblia cristã e deixou claro q u e não excluiria as E scrituras hebraicas, n em estaria aberta para inclu ir toda e q u alq u er nova profecia o u escrito su p o stam en te inspira do. O s critérios exatos usados pelos q u e co m p u seram o Cânon muratório não são conh ecid o s com clareza. N a verdade, sem pre houve debates a respeito dos p rin cipais critérios nos quais a igreja p o d eria se basear para re co n h ec er certos escritos co m o auto rizad o s e inspirados. O h isto riad o r eclesiástico von C am p en h a u se n está m ais p erto da verdade ao cham ar o critério principal de “p rin cíp io p ro fético ap ostólico”.11 Essa não é u m a regra rígida, m as u m a m edida flexível m ed ian te a qual os escritos eram ju lg ad o s pelos cristãos prim itivos envolvidos nesse pro ces so. O p rin cíp io p ro fético -ap o stó lico significa sim p le sm e n te q u e os livros e as cartas precisavam ser am p lam en te reconhecidos p o r todas as igrejas cristãs co m o um a reflexão da au to ridade apostólica (se não tiverem sido escritos p o r u m após tolo) e co m o um a apresentação de verdades im p o rtan tes para a salvação e o viver cristão. Isto é, q u a lq u e r obra q u e entrasse n o cânon, tin h a de ser p ro d u to do “cristian ism o p rim itiv o ” e ser am p lam en te usada co m o guia útil para en sin ar c viver o cristianism o. O s pais da igreja, co m o Iren eu , T ertuliano e O rígenes, criaram suas listas de E scrituras cristãs q ue, de certa form a, variavam u m pouco d o Cânon muratório e
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en tre si. Iren eu alistou os q u atro evangelhos e a m aioria das epístolas posterior m en te canonizadas, q ue tratava claram ente co m o E scrituras inspiradas e autoriza das. R ejeitou os evangelhos dos gnósticos e o cânon tru n ca d o de M arcião. P ouco depois de Iren eu , T ertuliano seguiu os m esm os m oldes, assim co in o O rígenes. Tanto T ertuliano co m o O ríg en es consideravam certos escritos cristãos verb alm en te inspirados co m o as E scrituras hebraicas e usavam -nos para d irim ir co n tro v érsi as doutrinárias. N o s escritos deles, vem os o conceito im plícito de u m n t ao lado das E scrituras hebraicas — o a t — na form a de tratarem os escritos q u e considera vam profético-apostólicos e autorizados. Existia, n o en tan to , u m a certa diferença en tre eles, pois T ertuliano tratava o cânon de form a categórica, e n q u a n to O rígenes reconhecia u m co n ju n to de escritos cristãos co m o duvidosos, p o rém úteis. D e acordo com von C am p en h au sen : “E inegável que, tanto o A ntigo Testa m en to co m o o N o v o , já tin h am em essência chegado à sua form a e ao seu p ro p ó sito finais p o r volta d o ano 200”.12 Essa declaração talvez pareça u m p o u co otim ista diante das discrepâncias en tre as listas de E scrituras cristãs fornecidas p o r T ertuliano e O ríg en es, escritas aproxim adam ente naquela data e pouco depois. E ntretanto, não deixa de ser verdade a afirm ação de von C am p en h a u se n , m o rm e n te em rela ção aos q u e relegariam a um a data m u ito p o sterio r toda a idéia de um n t e Bíblia cristãos. N ã o se pode ler Iren eu , T ertuliano o u O ríg en es sem n o tar sua devoção e subm issão aos escritos q u e consideravam especialm ente inspirados e autorizados para os cristãos. E, apesar de algum as diferenças, as listas apresentavam m uitas coincidências. O s principais debates a respeito de quais escritas deviam ser incluídas n o cânon cristão das E scrituras giravam em to rn o de H e b reu s, 1 e 2P edro, Ju d as, 3João, Apocalipse, Tiago e o Didaquê, O pastor de Hérnias e a Epístola de Barnabé. A lguns pais da igreja prim itiva, b em co m o algum as congregações, tratavam até m esm o lC lemente com o parte das Escrituras. P aulatinam ente, n o entanto, foi-se chegando ao consenso de q ue todos os escritos da prim eira lista — de H e b reu s a T iago — devi am ser incluídos p o r causa do seu am plo uso em todas as igrejas cristãs (em bora alguns fossem to talm en te desconhecidos em algum as igrejas) e p o r causa da sua ligação com os apóstolos. Ju d as foi aceito finalm ente, seg u n d o parece, so m en te por causa da tradição am p lam en te aceita de que o au to r era irm ão de Jesus. As obras da segunda lista m encionada (de Didaquê à Epístola de Barnabé) foram rejeita das, a despeito de algum as igrejas e pais da igreja q u e as consideravam inspiradas, p o rq u e careciam da qualidade profético-apostólica essencial e de ligação com o cristianism o prim itivo. O s passos finais do processo form al de canonização e criação d o n t foram da dos, p o sterio rm en te, n o século iv. A prim eira lista c o n te n d o so m en te os vinte e sete livros, de M ateus ao A pocalipse, e m ais n e n h u m a foi criada p o r Atanásio,
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bispo de A lexandria e principal d efensor da ortodoxia, na sua carta pascal às c o n gregações cristãs do Egito em 367. O texto de Atanásio não dá a m e n o r im pressão de que apresentava q u alq u er idéia nova. Pelo contrário, parece q u e re r estabelecer a tradição n o rm alm en te aceita. D ois sínodos foram convocados na África do N o rte , em H ip o n a e em C artago, em 393 c 397 respectivam ente. O s dois declararam a lista de Atanásio co m o definitiva e autorizada. A partir de então, a questão d o n t estava resolvida. E m parte porque, n aturalm ente, os sínodos recebiam o apoio im perial e p o rq u e a igreja do fim d o século iv tinha o p o d er d o im p erad o r para rep ri m ir dissensões e im p o r a conform idade. N ão obstante, o n t , co n fo rm e foi id en ti ficado e oficializado nos sínodos, resistiu às vicissitudes do tem p o e é acolhido com jú b ilo co m o definitivo e final p o r todas as ram ificações d o cristianism o desde então. A única grande controvérsia gira em to rn o do a t e de se ele deve in clu ir os apócrifos e, nesse caso, q u e autoridade os livros ali incluídos devem ter para os cristãos. A igreja cristã “o rg anizou-se” por volta d o ano 300. N aquela época, já existia um a catedral cristã próxim a ao palácio im perial em N icom édia e a paisagem do im pério estava m arcada por basílicas. O s bispos governavam com autoridade sobre as igrejas, a liturgia cristã padronizava-se, existia um credo para avaliar a ortodoxia e, para todos os fins práticos, a igreja tinha sua Bíblia autorizada. Sínodos de bispos reuniam -se ocasionalm ente para d irim ir disputas. U m sistem a penitencial estava sendo desenvolvido para d eterm in ar co m o deveria ser avaliado o arrep en d im en to de cristãos desobedientes. A G rande Igreja estava crescendo, altam ente estruturada e form alizada. Só lhe faltava poder político para im p o r sua ortodoxia aos cism áticos que alegavam ser cristãos, m as que não seguiam o cristianism o católico e ortodoxo. Esse po d er não dem oraria a aparecer, na pessoa d o im perador C on stan tin o , o G ra n de, que se “co n v erteu ” ao cristianism o católico em R om a en tre os anos de 311 e 313. E n tretan to , a m aior am eaça à unidade cristã e talvez ao p ró p rio evangelho viria, não da parte das seitas heréticas e cism áticas, nem dos inim igos fora da G rande Igreja, m as de dentro da própria igreja. O cristianism o su p o rto u m uitas tem pesta des nos dois séculos após a m o rte do ú ltim o dos apóstolos, m as ainda estava para en fren tar o m aior furacão d o u trin ário de todos.
T e r c e ir a P a r t e U m a g r a n d e c rise a b a la a ig re ja : A controvérsia a respeito da Trindade
A história da teologia cristã sofreu m uitas reviravoltas su rp reen d en tes d u ra n te o século iv. Talvez n e n h u m evento na história da teologia cristã ten h a sido m ais sur preen d en te e in flu en te do q u e a “conversão” do Im pério R o m an o ao cristianis m o. A p artir desse ev ento m o m en to so , o relacionam ento en tre a teologia cristã e a política secular to rn o u -se íntim o. B em o u m al, as duas perm an eceram inextricavelm ente ligadas por, pelo m enos, m il anos. A história da teologia n o século rv é inseparável da história d o Im p ério R om ano. A m edida q u e esta história se d esdo bra, fica cada vez m ais claro qu ão su rp re en d en te e significante é esse fato. N o fim do século ui e início do século rv — cerca de 301 — a perseguição dos cristãos, q u e tin h a com eçado em escala im perial sob as o rd e n s de D écio em m ea dos do século ui e co n tin u ad o p o sterio rm e n te com D iocleciano, co m eço u a d im i nuir. O cristianism o sobreviveu às perseguições e execuções em m assa e conseguiu edificar tem plos, desenvolver um a eclesiologia hierárquica, consolidar suas cre n ças e alcançar todas as cidades im portantes n o im pério inteiro. N in g u é m sabe di zer exatam ente q u an to s cidadãos e súditos d o im p ério eram cristãos já naqueles tem pos, m as u m a estim ativa razoável giraria em to rn o de 5%. Essa devia ser a situação especialm ente nas principais cidades e arredores. A presença cristã foi significativa e p erm a n en te em R om a, C artago, A lexandria, A ntioquia e Lião na Gália. M esm o assim , os cristãos viviam sob suspeita. U m im perador após o u tro ten to u erradicar do im pério a religião cristã, prin cip alm en te da casa im perial, dos tribunais, do exército e das burocracias. P or volta de 310, o cristianism o era forte, a despeito da perseguição, m as n in g u ém esperava o q u e aconteceria em seguida e o m o d o q u e a igreja reagiu só pode ser e n ten d id o à luz da terrível perseguição san grenta de m ais de m eio século q u e acabara de sofrer. E m o u tu b ro de 312, u m d estacad o general d o ex ército ro m a n o , ch a m a d o C o n stan tin o , atacou R om a para d ep o r M axêncio, o h o m em q u e alegava ser o im perador, e to m ar o tro n o d o im pério. C o n sta n tin o foi o g en eral-co m an d an te das
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legiões rom anas na B retanha e na E uropa ao n o rte dos Alpes d u ra n te vários anos e acreditava ter m ais direito de ser im perador do q u e q u alq u er de seus rivais. Prova velm ente, tin h a bons con h ecim en to s do cristianism o, m as não existem provas de sua conversão à fé, n em m esm o de um a forte sim patia por ela antes de sitiar R om a cm 312. S egundo seu biógrafo, o bispo cristão E usébio, C o n sta n tin o fez u m apelo a q u alq u er deu s que pudesse ajudá-lo a d erro tar seu rival e teve a visão de um sím bolo cristão com as palavras “Sob este sím bolo vencerás”. S egundo se declara, en tro u na batalha no dia seguinte com o sím bolo de C risto exibido em suas b an deiras e escudos de g uerra e seu inim igo M axêncio foi jo g ad o da P onte M ílvia (perto da periferia de R om a) 110 rio Pó, on d e se afogou. E usébio, que considerava C o n sta n tin o u m grande herói, co m p aro u M axêncio com Faraó e C o n sta n tin o com M oisés e declarou q u e a vitória foi um a intervenção divina. D epois de se to rn ar im perador, C o n sta n tin o p ro m u lg o u o Édito de Milão, que declarou oficialm ente a tolerância im perial d o cristianism o (313). A partir de e n tão, p ro m u lg o u um a série de éditos q u e restauravam aos cristãos os seus bens e, paulatinam ente, com eçou a favorecer os cristãos e o cristianism o m ais d o q u e as dem ais religiões. N o en tan to , n u n ca chegou a fazer do cristianism o a religião ofi cial do im p ério e p erm aneceu o pontifex maximus, o u su m o sacerdote, da religião pagã oficial do im pério, até ser batizado pouco antes de sua m o rte cm 337. D u ran te to d o o seu reinado, o relacionam ento e n tre C o n sta n tin o e os líderes cristãos foi tem pestuoso. C h eg o u a se considerar o “bispo de todos os bispos” c o “d écim o terceiro ap óstolo” em bora fosse pagão c recusasse o batism o até chegar praticam ente n o leito de m orte. A parentem ente, a unificação da igreja foi um a de suas obsessões e o d o m ín io da liderança eclesiástica, o m eio de atingir o seu obje tivo. As igrejas cristãs do im pério estavam seriam ente divididas 11 a ocasião da sua ascensão c C o n sta n tin o q ueria usar o cristianism o co m o um a “cola” para reunificar o im pério. Para tanto, precisava extirpar os cism as, as heresias e as dissensões onde q u er q u e estivessem . N a ocasião da sua m o rte, C o n sta n tin o não tin h a resolvido to talm en te esse assunto e m u ito s historiadores eclesiásticos argum entariam que, na realidade, ele apoiava tanto as heresias com o a ortodoxia. N o reinado de C o n sta n tin o aconteceram vários eventos im portantes para o cris tianism o e para a teologia. E m p rim eiro lugar, co n fo rm e já foi observado, a perse guição oficial dissipou-se e ser cristão, pelo m enos de nom e, passou a ser popular e p ru d en te. H o rd as de pagãos não convertidos en traram co m o um a inundação para as igrejas cristãs sim plesm ente para ganhar posição aos olhos da corte im p e rial e da burocracia dirigida p o r C on stan tin o . E m segundo lugar, C o n sta n tin o saiu de R om a e edificou u m a “N ova R o m a” no O rie n te com o a nova capital im perial. E scolheu a cidade de B izâncio (hoje cham a da Istam bul, na Turquia) e d eu -lh e u m novo n o m e em hom enagem a si m esm o:
U m a grande crise abala a Igreja
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C on stan tin o p la. E m vida, um dos seus principais em p re en d im en to s foi edificar a m ais bela cidade que o m u n d o já vira e colocar no cen tro dela seu e n o rm e palácio e catedral. E m terceiro lugar, o cism a m ais divisor q u e a igreja cristã já havia experim enta do oco rreu no rein ad o de C o n sta n tin o . C o m e ç o u em A lexandria e se propagou p o r to d o o im pério, causando m aior im pacto na m etade q u e falava grego. Ficou con h ecido p o r controvérsia ariana e passou p o r várias etapas d u ra n te quase to d o o século. C o n sta n tin o e seus herdeiros envolveram -se nessa controvérsia e tom aram partidos d iferentes em ocasiões diferentes. E m q u arto lugar, a igreja celebrou seu p rim eiro concílio ec u m ên ico (universal) a fim de d irim ir conflitos d o u trin ário s e eclesiásticos: o C o n cílio de N icéia em 325. Foi C o n sta n tin o q u em o convocou c o presidiu. A d o u trin a form al e oficial ortodoxa da T rindade foi elaborada, em m eio a fortes críticas, e expressa no credo n o rm alm en te co n h ecido Credo de Nicéia, m as oficialm ente cham ado Credo nicenoconstantinopolitano (sua versão definitiva foi escrita no C o n cílio de C o n stan tin o p la em 381). A cabou se to rn an d o a declaração universal da fé da cristandade e assim perm anece para a m aio r parte dos ram os do cristianism o. N estes capítulos, concentrarem os a nossa atenção no desenvolvim ento do dogm a cristão form al e oficial da T rindade no século iv. As cenas iniciais da história se passam em A lexandria, n o Egito. O pano de fu n d o é o legado p e rtu rb a d o r de O ríg e n e s , q u e foi tr a ta d o n a P a rte n. As c e n a s s e g u in te s a c o n te c e m em C o n stan tin o p la e na cidade vizinha, N icéia, o n d e o im p erad o r m orava e adorava ao longo do p ro jeto da construção da nova capital. D epois, a história nos leva de volta a A lexandria e, a p artir daí, para todas as partes do im pério. Surge u m herói identificável, Atanásio, o jo v e m bispo de A lexandria e d efensor da d o u trin a o rto doxa trinitária de N icéia. O s episódios finais dessa parte da história da teologia cristã se passa na Ásia M e n o r (m o d ern a T urquia) e arredores e especialm ente em C o n stan tin o p la, o n d e três am igos (dois deles eram irm ãos) conhecidos p o r “pais capadócios” trabalharam com grande em p en h o para explicar a T rindade d e um a m aneira q u e a m aioria dos líderes cristãos pudesse aceitar e endossar n u m a fo rm u lação final do grande credo da G ran d e Igreja n o segundo concílio ecum ênico. Já no fim do século (400), o cristianism o o rto d o x o nicen o (trinitário) se tornaria a religião oficial do Im p ério R o m an o e com eçaria a p erseguir os rivais, especialm en te os q u e se cham avam cristãos e e n tre tan to rejeitavam a teologia e eclesiologia oficiais do im p erad o r e dos bispos da G rande Igreja.
9 Os alexandrinos discutem a respeito do Filho de Deus
T -J m a coisa realm en te espantosa aconteceu em A lexandria em 318. C ristãos saí ram às ruas em p ro testo p o r causa de um a questão teológica. T udo co m eço u com um a discussão e n tre o bispo A lexandre e u m presbítero po p u lar e am bicioso ch a m ado Ario. O s bispos de A lexandria eram usu alm en te eleitos pelos presbíteros da cidade e um a m aneira de se to rn ar bispo era p ro m over-se e n tre eles co m o u m d efen so r da verdade e da retidão. N ã o estão claros os m otivos exatos de Ario para desafiar a au toridade d o bispo A lexandre, m as podem estar relacionados ao desejo de su ced er-lh e co m o bispo na ocasião de sua m o rte o u até m esm o antes. Seja co m o for, Ario liderou um a pequena rebelião de cristãos contra o bispo depois de o u v i-lo p re g a r u m s e rm ã o q u e c o n s id e ra v a m u ito p ró x im o à h e re s ia d o sabelianism o. Q u e r dizer, A rio pensava ter detectado na teologia do bispo u m p e q u e n o vestígio da antiga heresia m odalista de Práxeas e Sabélio q u e reduzia o Pai, o Filho e o E spírito Santo a m eros no m es ou aspectos de um a única pessoa divina: D eus. A rio com eço u a pregar serm ões, dar preleções e escrever cartas criticando a teologia e a liderança de A lexandre e, paulatinam ente, o conflito e n tre os dois líderes cristãos tran sfo rm o u -se n u m a guerra cam pal teológica e eclesiástica en tre seus seguidores devotos.
Ário de Alexandria O s p o rm en o res da vida de A rio são desconhecidos. Talvez ten h a nascido na re gião da África do N o rte o n d e atu alm en te está a Líbia. C e rta m e n te e stu d o u teo lo gia na escola catequética cristã cm A ntioquia e foi alu n o d o teólogo in flu en te L uciano de A n tio q u ia (m o rto em 312) q ue, p o r sua vez, tin h a sido influenciado pelo bispo h erético Paulo de Sam osata. E m bora n e n h u m de seus escritos ten h a sobrevivido, m u ito s estudiosos m o d ern o s co n sid eram L uciano fonte de n u m e ro sas heresias na igreja prim itiva. Assim co m o m u ito s em A ntioquia, ele tendia a enfatizar a h u m an id ad e de Jesu s C risto m ais do q u e a divindade e esforçou-se
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para e n c o n trar urna m aneira de explicar a encarnação de D eus em C risto sem fazer de Jesu s o p ró p rio D eus e sem recair na heresia adocionista de Paulo de Sam osata. E n q u an to Ario era alu n o de L uciano em A ntioquia, to rn o u -se am igo ín tim o de o u tro alu n o de teologia de Luciano, u m h o m e m cham ado E usébio de N icom édia, que p o sterio rm en te se tornaria um bispo im p o rtan te e influente. O s dois c o n tin u aram am igos c colegas d u ra n te a vida inteira e pensavam da m esm a m aneira a res peito da pessoa de Jesu s C risto , da salvação e da natureza de D eus. E quase certo que suas crenças e form ulações teológicas derivavam do m e n to r q u e tin h am em co m u m , L uciano. C o m o ele, A rio e E u séb io odiavam e tem iam a h eresia do sabelianism o (m odalism o) m ais do q u e a heresia do adocionism o, q u e talvez não parecesse tão perigosa q u an to a idéia im plícita n o sabelianism o de q u e D eus Pai foi literalm ente crucificado e m o rre u na cruz p o rq u e Jesu s C risto (segundo o m odo m odalista de pensar) realm ente era o Pai encarnado! N a tu ralm en te, n em Luciano, nem Ario, n em E usébio podiam aceitar e ensinar abertam en te o adocionism o. Essa d o u trin a já tin h a sido declarada herética pelo S ínodo de A ntioquia em 268. Após a conversão de C o n sta n tin o , sem elhantes d e clarações p o r grupos grandes de bispos tin h am força ju ríd ic a e q u alq u er pessoa que ousasse alegar q u e Jesu s C risto não era, de form a algum a, D eus, m as u m sim ples profeta h u m an o adotado p o r D eus em u m relacionam ento especial correria o risco de p erd er a sua posição na igreja e possivelm ente até m esm o de ser exilado pelo im perador. E p o u co provável que q u alq u er an tio q u en o , inclusive Luciano e seus alunos, acreditasse, m esm o q u e secretam ente, na heresia adocionista, m as certam en te m u ito s deles devem te r chegado a pensar cm Jesu s C risto co m o a encarnação, não de D eus, m as de um a grandiosa criatura de D eus, o Logos, que tin h a u m com eço n o tem p o e perm anecia para sem pre su b o rd in ad o ao Pai, não so m en te q u an to à função, m as tam bém q u an to ao p ró p rio ser. A lem disso, p o r trás dos ensinos de Ario estava O ríg en es, q u e provavelm ente tin h a in fluenciado Luciano. N o com eço d o século rv, O ríg en es ainda era co n sid e rado p o r m u ito s cristãos o m aior m estre da igreja. A inda não era considerado herege p o r todos. Isso aconteceria so m en te n o século vi, em parte p o r causa da suposta influência sobre hereges co m o Luciano, A rio e outros. C o n fo rm e já vi m os na história de O rígenes, ele tin h a duas opiniões n o tocante à natureza do Logos: q u e era o F ilho de D eus e q u e se to rn o u h u m a n o em Jesu s C risto. P or u m lado, O ríg en es afirm ava enfaticam ente a igualdade e n tre o Logos e D eus Pai. Sem dúvida algum a, acreditava q u e o Logos era a em anação eterna de D eus, q u e partia dele com o u m raio solar e co m p artilh an d o e tern am en te de sua natureza gloriosa. Por o u tro lado, O ríg enes tam b ém afirm ava a subordinação do Logos ao Pai para explicar sua posição de m ed iad o r en tre a natureza divina e im utável de D eus e o
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m u n d o co rru p to da n atureza e da história. O Logos, seg u n d o O ríg en es, era de algum m o d o in ferio r ao Pai, m as ele n u n ca explicou exatam ente o q u e queria dizer com isso. O s cristãos treinados na erudição bíblica e na teologia em A lexandria ten d iam a ressaltar u m dos lados da cristologia de O rígenes: a eterna igualdade en tre o Logos e o Pai (talvez p o r m ed o d o m o n tan ism o , o E spírito Santo seja negligenciado nes sas considerações, em bora não haja dúvida de que todas as partes acreditavam no E spírito Santo). O s alexandrinos alegavam q u e O ríg en es era u m deles, em bora tivesse saído de Alexandria e ensinado, d u ran te a parte fmal da sua vida, em Cesaréia, na Palestina. D eclaravam que conheciam O ríg en es co m o n in g u ém e eram peritos em descobrir nos seus escritos as passagens q u e ressaltavam Jesu s co m o o etern o Filho de D eus. O s an tio q u en o s tam b ém estudavam a teologia de O ríg en es e e n co n traram ali a ênfase sobre a “m o n arq u ia d o Pai” bem co m o a h u m an id ad e de Jesu s C risto e o Logos com o u m ser in term ed iário en tre D eu s e a criação. E n co n traram um a ênfase à su bordinação do Logos ao Pai e frases enigm áticas q u e pareci am se referir a ele co m o um a criatura q u e era de algum m o d o in ferio r ao Pai. T am bém p o r trás do conflito en tre Ario e A lexandre a respeito d o Logos estava a filosofia grega. Era algo q u e am bos tin h am em co m u m , em b o ra a interpretassem e aplicassem de m o d o diferente. As duas partes do conflito sim plesm ente acredita vam q u e a deidade é o ntologicam ente perfeita de tal m o d o q u e seria im possível para ela sofrer q u alq u er m udança e, assim , im p ró p rio atrib u ir-lh e tal coisa. Por isso, D eus, sen d o divino e, p o rtan to , absolutam ente perfeito, não poderia experi m en tar u m a m udança, pois m u d ar im plica sem pre n u m a alteração para o m elh o r o u o p ior e, em q u alq u er dessas hipóteses, D eus não seria D eus. A perfeição absoluta e estática — inclusive apátheia, o u im passibilidade (não ser sujeito a paixões) — é a natureza de D eus segundo o p en sam en to grego, idéia com a qual quase todos os teólogos cristãos tendiam a concordar. N a tu ra lm e n te , e n con traram nas E scrituras várias passagens q u e negavam a m utabilidade e variabili dade de D eus. A im utabilidade e im passibilidade, portan to , to rn aram -se os p rin ci pais atrib u to s de D eu s na teologia cristã. A ssim , A rio e seus seguidores exploraram o arg u m en to de que, se Jesu s C risto é a encarnação do Logos e se o Logos é divino no m esm o sen tid o q u e D eus Pai é divino, a natureza de D eus seria alterada pela vida h u m an a de Jesu s n o tem p o e D eus teria sofrido através dele. M as isso era im possível. P ortanto, o Logos que en carn o u em Jesu s C risto não era to talm en te divino, m as u m a criatura grandiosa e glorificada. O s o p o n en tes de A rio tam bém acreditavam q u e o ser divino não pode sofrer n e n h u m tipo de m u d ança, p o r isso, não foi fácil re sp o n d er ao seu argum ento. S ustentaram com tenacidade a crença cristã tradicional de q u e o Logos é divino e com partilha da p rópria natureza de D eus p o r toda a eternidade, m as não souberam
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explicar exatam ente a encarnação do Logos na hum anidade. Ário forçou a igreja a fazê-lo d en tro dos lim ites da com preensão hum ana. Talvez o conflito en tre A rio e o bispo alexandrino A lexandre fosse inevitável p o rq u e A rio tinha sido trein ad o cm A ntioquia antes de chegar na cidade egípcia para ser o rd en ad o sacerdote em 311. U m dos seus deveres co m o presbítero foi dirigir a escola exegética, q u e era u m a escola de interpretação bíblica para sacerdo tes e leigos cristãos q u e quisessem ensinar. A parentem ente, A rio era um a pessoa carism ática e atraiu tantos seguidores devotos que, q u an d o desafiou abertam ente o bispo A lexandre a respeito da sua teologia sobre C risto e a Trindade, m u ito s cris tãos alexandrinos tom aram o seu partido. A rio acusou A lexandre de negar a verda deira h u m an id ad e de Jesu s C risto e de p ro m o v er a heresia sabeliana. Levando a questão m ais adiante, com eçou a en sin ar aos cristãos alexandrinos q u e o Logos (ou F ilho de D eus) era u m a criatura e não u m ser igual ao Pai. D isse q u e a diferença en tre o Filho c o Pai estava 110 fato de q u e este era e te rn o e im utável e aquele — o Logos — fora criado antes do m u n d o e era passível de m udança e de sofrim ento. Ele apelou às passagens bíblicas nos Profetas e A póstolos q u e dizem q u e o Verbo de D eus (Logos) está sujeito a D eus e q u e Jesu s C risto é subm isso ao Pai.
Alexandre de Alexandria O bispo A lexandre era, segundo tu d o q u e se relata a seu respeito, u m bispo m eigo e tolerante que não tinha prazer nos conflitos, m as que finalm ente resolveu responder às críticas de Ario e de seus ensinos a respeito de D eus e de Jesus C risto, tentando corrigi-lo p o r m eio de correspondências e de serm ões e, q uando essas soluções mais brandas não surtiram efeito, convocando u m sínodo de bispos em Alexandria a fim de exam inar as opiniões de A rio e de tom ar um a decisão sobre sua ortodoxia ou a falta dela. Antes de o sínodo poder reunir-se, porém , Ario convocou seus seguidores cristãos e ju n to s com eçaram a m archar pelas ruas de Alexandria, passando pela gran de igreja e pela casa do bispo, levando cartazes e entoando lemas com o: “Tem po houve em q ue o Filho não existia”. E conform e no to u certo historiador: “A dissem i nação das idéias de Ario entre as classes operárias [de Alexandria] foi estim ulada pela com posição de cânticos populares ‘para o m ar, para o m o in h o c para a estrada’, m usicados de m o d o apropriado”.1O grupo de seguidores de Ario foi m otivado pelos cânticos e lemas, bem com o pela personalidade de Ario, em bora essas pessoas não com preendessem plenam ente as questões teológicas que estavam em jogo. Por fim , houve alguns m otins nas ruas da cidade. O s que apoiavam A lexandre m archaram contra Ario e os dois grupos se encontraram na frente da catedral. Q u a n d o o sín o d o convocado p o r A lexandre re u n iu -se em 318, cerca de cem bispos de várias sés do lado oriental d o im pério com pareceram e ouviram a crítica q u e A lexandre fez à teologia de Ario. A lexandre acusou A rio de e n sin ar q u e o
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Logos era caído da m esm a form a q u e Satanás. A lém disso, acusou Ário de rep etir a heresia adocionista de Paulo de Sam osata de form a u m po u co m ais sofisticada. A cristologia de Paulo foi condenada em um sínodo em 268 p o rq u e negava a divin dade de Jesu s C risto e rejeitava a Trindade. A cristologia de A rio fazia o m esm o, em b o ra afirm asse a preexistência do Logos com o um grandioso ser celestial, coisa qu e o bispo de Sam osata não afirm ava. S egundo A lexandre, a diferença era pouca. N as duas hipóteses, D eus em si não havia se u n id o à h u m an id ad e e, p o rtan to , não fom os salvos (divinizados) pela união. A lexandre arg u m e n to u q u e a nossa salvação estava em jo go.
O arianismo A ironia é que Ario e seus seguidores responderam no m esm o to m , isto é, que nossa salvação estava em jo g o c q u e se prevalecesse a opinião de A lexandre, Jesus C risto não poderia ter sido realm ente h u m an o (posto q u e a h u m an id ad e e a d iv in dade são coisas to talm en te diferentes p o r natureza) e, p o rtan to , seu ato de salvação em nosso favor não era um a vitória gen u ín a da qual podíam os participar. Para A rio e seus seguidores, a salvação significava seguir espontaneam ente o exem plo de C risto de subm issão a D eus. Se C risto não op to u , de m o d o h u m an o , p o r seguir a vontade de D eus, seu exem plo não tinha utilidade. P ortanto, a diferença e n tre A rio e A lexandre a respeito da natureza de Jesus C risto , e d o Logos q u e en carn o u nele, relacionava-se com a soteriologia, a d o u tri na da salvação. A lexandre adotava o conceito o rtodoxo da salvação q u e existia des de Iren eu ; A rio adotava u m conceito da salvação q u e enfatizava a conform idade voluntária com os padrões m orais de D eus. P ortanto, u m a diferença im p o rtan te entre os dois alexandrinos era que “a salvação, para a ortodoxia, é levada a efeito pela identidade essencial d o F ilho com o Pai — o q u e associa D eus e C risto à criação é a pressuposição da natureza divina da carne. A salvação para o arianism o é levada a efeito pela identificação d o F ilho com as criaturas — o q u e liga C risto e as criaturas a D eus é a conform idade da v o n tad e”.2 O s cen to e tantos bispos reu n id o s 110 sínodo em A lexandria em 318 co n d e n a ram A rio e seus ensin o s a respeito de C risto com o heréticos e o depuseram de sua condição de presbítero. Ele foi obrigado a deixar a cidade. A lexandre, com seu conceito tradicional d o Logos p len am en te divino, foi vindicado tem p o rariam en te. Ario, p o rém , não co n siderou o assunto encerrado. F ugiu para o e n c o n tro de seu antigo am igo E usébio de N ico m éd ia, q u e a essa altura já era u m bispo im p o rtan te e foi aceito p o r ele. Ario e E usébio com eçaram , em N ico m éd ia, um a cam panha de escrever cartas aos bispos q u e não com pareceram ao sínodo de A lexandria. As únicas obras escritas de Ario q u e se conhece são essas e o u tras cartas poste riores e u m livro cham ado lltaleia, q u e significa “b a n q u e te ”. Todas se p erderam e
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a única m aneira de re co n stru ir uns fragm entos das obras de Á rio é aproveitar cita ções q ue se en c o n tram nos escritos dos seus op o n en tes. U m a das suas declarações típicas a respeito do relacionam ento en tre o F ilho e o Pai é a seguinte: E Cristo não é o vero Deus, mas por participação [...] até ele foi feito Deus. [...] O Filho não conhece o Pai com exatidão e o Logos não vê o Pai com perfeição, e ele não percebe o Pai com exatidão e nem o Logos o compreende; isso porque ele não é o verdadeiro e único Logos do Pai, mas somente cm nome ele é chamado Logos e Sabedoria, e pela graça é chamado Filho e Poder.3 Ário tam bém explorava a palavra apostólica gerado (em gr., gennetos) usada para descrever Jesu s C risto co m o F ilho de D eus. Se, portan to , o F ilho de D eus q u e veio a ser Jesu s C risto foi “g erado”, deve ter tido um início no tem p o e, um a vez q u e é da essência de D eus ser etern o — sem com eço n em fim — , o F ilho de D eu s deve, portan to , ser u m a criatura grandiosa, m as não o p ró p rio D eus. Foi essa distinção — en tre D eus não-gerado (agennetos) e o F ilho de D eus (Logos, Jesu s C risto ) gera do — q u e Á rio en fatizou na sua profissão de fé escrita em 320 n o exílio, sob a proteção e patrocínio do seu am igo, E usébio de N icom édia. A carta foi assinada po r dois bispos, seis sacerdotes e seis diáconos e enviada a A lexandre, b em co m o a vários o u tro s o p o n en tes destacados de Ário. N ela, Á rio escreveu: Reconhecemos um só Deus, sendo somente ele não-gerado, somente ele eter no, somente ele sem princípio, somente ele verdadeiro, somente ele imortal, somente ele sábio, somente ele bom, somente ele cheio de poder; é ele quem julga todos, quem controla todas as coisas, quem provê todas as coisas; e ele não está sujeito a nenhum a mudança ou alteração; ele é justo e bom; ele é o Deus da Lei e dos Profetas e da Nova Aliança. Esse único Deus, antes de todo o tempo, gerou seu Filho unigénito, por meio de quem fez as eras e o univer so. Ele o gerou, não apenas na aparência, mas de fato; por vontade própria fez subsistir seu Filho e o tornou imutável e inalterável. Sendo a criatura perfeita de Deus, ele é diferente de qualquer outra criatura; gerado, sim, mas incom parável no modo de ser gerado [...]. Mas dizemos que foi criado pela vontade de Deus, antes de todas as eras; do Pai recebeu existência e vida e, ao criá-lo, o Pai conferiu-lhe a própria glória. O Pai, porém, ao entregar todas as coisas cm seu poder, não se despojou delas: o Pai contém todas as coisas em si mes mo de modo não gerado, pois ele é a fonte de todas as coisas. Existem, por tanto, três substâncias (hipóstases).4 Por isso, Á rio e seus colegas — os arianos — afirm aram u m tipo de Trindade com posta de três seres “divinos” (o Pai, o F ilho e o E spírito Santo), sendo que so m en te u m deles é v erdadeiram ente D eus. C o n tin u o u , na sua profissão de fé, a
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afirm ar de m o d o inequívoco q u e so m en te o Pai é “sem p rin cíp io ” e q u e o Filho, em b o ra seja um a criatura grandiosa q u e com partilha de m u ito s dos atributos de D eus, não existia antes de ser gerado pelo Pai. O p en sam en to de A rio a respeito de D eus e do Logos tem dois elem entos fu n dam entais. Em p rim eiro lugar, D eus, pela própria natureza, é isento das caracterís ticas da criatura e, se o Logos se h u m a n o u em Jesu s C risto , ele é necessariam ente um a criatura. E m seg u ndo lugar, a salvação é u m processo de união com D eus m ediante a graça e o livre-arbítrio e, se Jesus nos com unica a salvação, isso é neces sariam ente algo q u e ele realizou m ediante a graça e o livre-arbítrio, de m o d o que pudéssem os seguir seu exem plo. Se Jesus fosse D eus, a salvação não seria algo que ele poderia levar a cabo. Sob essas duas pressões conceptuais, A rio e seus seguido res separavam cada vez m ais a relação e n tre D eus Pai e Jesu s C risto , de m o d o que, para m u ito s dos seus o ponentes, pareceu q u e negavam q u alq u er sen tid o real da divindade de C risto e rejeitavam to talm en te a Trindade.
A resposta de Alexandre ao arianismo A lexandre resp o n d eu à cam panha de co rrespondência de A rio com um a obra que enviou a n u m ero so s bispos c líderes eclesiásticos. Trata-se da Deposição de Ario e, co n fo rm e o títu lo deixa su b en ten d id o , foi um a tentativa de explicar a condenação e deposição de A rio em A lexandria. N essa carta encíclica, o arcebispo de A lexandria faz um resu m o su cin to da heresia de Ario e dos arianos a respeito de D eus e do Filho de D eus e pede q ue seus colegas, bispos e m in istro s do im pério, não acolham os hereges, n em aceitem o pedido do bispo E usébio para tratá-los bem , “pois nos convém , a nós q u e som os cristãos, repudiar todos os q u e falarem o u pensarem q u alq u er coisa co n tra C risto, co m o a inim igos de D eus e d estru id o res de alm as e nem seq u er saúda-los, para não nos to rn arm o s participantes dos pecados deles, con fo rm e o b en d ito Jo ão nos tem ex ortado”.5 O re su m o feito p o r A lexandre da heresia ariana soa co m o um a descrição da principal d o u trin a distintiva da Socieda de Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, m ais p o p u larm e n te conhecida p o r Teste m u n h as de Jeová:6 E as novidades que inventaram e publicaram contra as Escrituras são as se guintes: — Deus não foi sempre Pai, mas houve tempo em que Deus não foi Pai. O Verbo de Deus não existiu sempre, mas se originou de coisas que não existiam; porque o Deus que existe, fez aquele que não existia, a partir daqui lo que não existia; portanto, houve tempo quando ele não existia; pois o Filho é uma criatura e uma obra. Ele não é igual ao Pai em essência, não é o verda deiro e natural Logos do Pai e nem é a sua verdadeira Sabedoria; mas ele é uma das coisas feitas e criadas e é chamado Verbo e Sabedoria por um abuso de termos, pois ele mesmo originou-se do verdadeiro Verbo de Deus, e pela
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Sabedoria que existe em Deus, mediante a qual Deus, não apenas criou todas as coisas, mas ele também. Portanto, ele é, por natureza, sujeito a mudanças c variações, assim como o são todas as criaturas racionais.7 N o te o m o d o de arg u m en to dc A lexandre nessa declaração resum ida. Em bora seja apresentada co m o u m re su m o singelo dos ensinos de Ario, sua form a contém u m arg u m en to p o lêm ico sutil co n tra eles. U m a das acusações principais dc A rio e dos seus seguidores contra a crença na igualdade do F ilho e d o Pai era que ela subverte a im utabilidade dc D eus. Se o F ilho de D eus é verdadeiram ente D eus, logo, D eus não pode ser im utável, co n fo rm e todos crêem q u e ele é, p o rq u e o Filho passou p or m udanças ao e n tra r na história e sofrer na carne de Jesu s C risto. Ale xandre v iro u a m esa co ntra Ario e acusou-o de negar, com efeito, a im utabilidade do Pai ao declarar q ue ele nem sem pre foi Pai, m as so m en te se to rn o u Pai com a criação de u m filho. Após a publicação da carta, esse arg u m e n to to rn o u -se um a das arm as principais dos bispos ortodoxos contra o arianism o em todas as suas form as: se o arianism o está certo, o Pai nem sem pre teria sido Pai, m as passado a sê-lo ao gerar (criar) o Verbo e isso contradiz a im utabilidade dc D eus. A lexandre acrescentou à sua resum ida declaração da heresia de A rio u m a exegese bastante detalhada do p rim eiro capítulo do E vangelho segundo João, o n d e é decla rado que o Logos estava “com D eu s 110 p rin cíp io ” e foi o agente de D eus em toda a criação. M en cio n o u , tam bém , outras passagens apostólicas que se referem à igual dade do F ilho e do Pai, m as cu rio sam en te esqueceu-se de m en cio n a r a afirm ação extrem am en te im p o rtan te de João 1.1 de q u e “o Verbo era D e u s”. A lexandre e n cerra a carta encíclica com a sua assinatura e a de n u m ero so s presbíteros e diáconos, m en cio n an d o q u e A rio e seus ensinos já tin h am sido condenados p o r u m sínodo com m ais de cem bispos. O im p erad o r C o n sta n tin o ficou sabendo da controvérsia. Seu capelão pessoal, o bispo O sio , in fo rin o u -o a respeito e relatou q u e os bispos d o O rie n te estavam se d iv idindo p o r causa da rixa en tre A rio e A lexandre. M u ito provavelm ente, a m aio ria dos bispos d o im p ério não co m preendia do que essa controvérsia tratava. R ece beram um a carta de efeito m oral d o bispo E usébio de N icom édia, d efensor de Ario, q u e ex p unha os ensinos dc A rio sob o m elh o r aspecto. E bem possível que quase todos os bispos acreditaram em algum tipo de subordinação do F ilho ao Pai, o u seja, na m o n arq u ia do Pai. O u tro ssim , receberam a carta encíclica co m ovente e com estilo oficial d o bispo A lexandre. O bispo m ediano ficava, sem dúvida, bas tante confuso. A m aioria dos bispos, sem dúvida, ficou bastante perplexa. U m cism a form al am eaçava dividir a igreja e poucos, o u talvez n in g u ém , queria isso. C o n sta n tin o seria o ú ltim o a desejar tal coisa. T in h a a esperança de q u e o cristia nism o pudesse ser o “e lo ” religioso ex trem am en te necessário que m anteria firm e o
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seu im pério instável e não lhe agradou descobrir q u e os líderes cristãos estavam envolvidos em u m a disputa, aparen tem en te esotérica, sobre a m etafísica divina. Verem os, à m edida q u e nossa história continuar, q u e o im perador C o n sta n tin o to m o u u m a atitu d e extrem a ao o rd e n ar q u e todos os bispos cristãos, de todas as partes d o im pério, com parecessem a um a reu n ião convocada para d irim ir essa dis puta d o u trin ária e d ecidir exatam ente o q u e os cristãos deveriam crer para serem considerados cristãos autênticos. O q u e aconteceu no p rim eiro concílio ecum ênico de N icéia em 325 será relatado com m ais detalhes, m as, prim eiro, farem os um a breve pausa para co n siderar até q u e p o n to a controvérsia en tre A rio e A lexandre realm ente foi im portante. P or que A lexandre, seus presbíteros e o u tro s reagiram com tanta veem ência contra os ensinos de Ário? A resposta é q u e sim plesm ente eles p erceberam que isso am eaçava a salvação em si. O s cristãos da atualidade ten d em a separar a salva ção, co m o perdão e “u m relacionam ento pessoal com D e u s”, da crença d o u trin á ria. Essa diferenciação ficou co m p letam en te desconhecida da m aioria dos cristãos da história da igreja. O q u e a pessoa acreditava tin h a m uita im portância. Heresia era ter um a crença e d o u trin a a respeito de D eus, de Jesu s C risto e da salvação que ameaçasse disto rcer a m ensagem do evangelho e a vida cristã de m o d o tão sério q u e pudesse se to rn ar u m “evangelho” e religião diferente dos ensinados pelos apóstolos. A posição de Jesu s C risto em relação a D eus sem pre foi u m a certeza en tre os líderes e pensadores cristãos. Jesu s C risto é, em certo sentido, D eus e é isso que distingue o cristianism o e seu evangelho das outras religiões m onoteísticas, co m o o ju d aísm o , e das filosofias m onoteísticas, co m o o p latonism o e o estoicism o. Ale xandre ficou ex trem am en te chocado ao descobrir q u e u m presbítero e m estre cris tão de d estaq u e , b em na vista d o p ró p rio bispo, negava q u a lq u e r id en tid ad e ontológica (igualdade de existência) en tre Jesu s C risto e D eus. Tal conceito já fora rejeitado co m o heresia pelo S ínodo de A ntioquia q u e havia co n d en ad o Paulo de Sam osata e seus ensinos — pelo m en o s assim pensava A lexandre. M as o arianism o, ao co n trário d o adocionism o, era um a form a m ais sutil de negar a divindade de Jesus. Afirm ava um a preexistência do F ilho de D eu s e o colocava n u m a posição su p erio r a q u alq u er o u tra criatura. Jesu s C risto , p o rtan to , não era u m h o m em elevado à divindade — co m o Paulo de Sam osata ensinava — m as u m “ser d iv in o ” en carnado em u m ser h u m an o . M esm o assim , o “ser div in o ” em Jesu s C risto não era igual a D eu s Pai. Alexandre tin h a toda razão de ficar chocado e alarm ado, especialm ente p o rq u e os en sin o s de A rio haviam se to rn a d o m u ito a tra en tes às m assas de cristão s alexandrinos. E m bora a organização das T estem unhas de Jeová e seus ensinos ain da não existissem n o século iv, a situação era com o se ela estivesse a p o n to de se
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to rn ar a crença da totalidade da igreja cristã. A conseqüência, co n fo rm e co rreta m en te su p u n h a A lexandre, seria o fim do evangelho segundo o co n h ecem o s e nele crem os. Pois, só serem os salvos se Jesu s C risto for D eus. A lexandre in tu itiv am en te co m p reen d eu isso. Seu jo v e m assistente, A tanásio, se tornaria a pessoa a expor esse fato e co n vencer toda a igreja, inclusive os principais im peradores e bispos, da veracidade dessa d o u trin a da salvação. M esm o antes de existir u m n t ao qual se pudesse reco rrer co m o autoridade escrita da fé e da prática cristãs, a fé apostólica im plícita do cristianism o girava em to rn o d o escândalo da divindade de C risto. A razão p o r q u e os cristão s a d e fe n d ia m co m ta n ta te n a c id a d e , e n fre n ta n d o a ridicularização dos pagãos, a perseguição dos rom anos e todos os tipos de ten tati vas de d iluí-la é q u e ela era o eixo central d o evangelho. Se fosse rem ovida de um a o u de o u tra m aneira, a esperança da participação eterna na vida d o p ró p rio D eus e do seu perdão e da nossa restauração à im agem de D eus deixaria de existir. O evangelho em si estaria destruído. C o m Ario e seu desafio, a igreja chegou em um a encruzilhada. N ão poderia ha ver um a questão mais im portante para a teologia cristã solucionar. N essa questão, não poderia haver a tolerância do pluralism o. Até m esm o hoje, com a ascensão da teologia liberal e do pluralism o doutrinário, o C o n selh o M undial de Igrejas — a organização m undial para a cooperação cristã globalizada — exige que todas as den o m inações afiliadas confessem : “Jesus C risto é D eus e Salvador”. Essa tam bém era a crença dos cristãos prim itivos. Alexandre estava com a razão ao estabelecer u m lim ite e realm ente exigir q ue outros bispos recusassem abrigo e ajuda a Ario. M as co m o faria valer aquela exigência? N ã o tin h a poderes sobre os dem ais bis pos. Só podia apelar a eles p o r m eio de cartas. E n q u an to isso, o u tro s bispos, com o E usébio de N ico m éd ia, apoiavam Ario. S om ente um a autoridade su p erio r poderia in tervir e resolver qual evangelho se tornaria d o u trin a cristã oficial do im pério. Q u e m p o d eria d irim ir a co n tro v érsia senão o p ró p rio im p erad o r, o p o d ero so C o n stan tin o ? N o en tan to , a intervenção dele nesse debate de su p rem a im p o rtân cia crio u tantos problem as q u an to soluções.
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O im p erad o r C o n sta n tin o viveu e adorou em vários locais d u ra n te a construção da nova capital. U m de seus locais prediletos de residência e de governo era a pequena cidade de N icéia, p erto de C onstan tin o p la. Ali, o im perador, sua corte e capelão ad m inistraram os assuntos da igreja e do im pério no O rie n te . Q u a n d o estava no O cid en te, C o n sta n tin o m o ro u em M ilão, n o n o rte da Itália. R om a ficou praticam ente abandonada pela corte im perial na época de C o n sta n tin o . Foi em N icéia, p o rtan to , q u e C o n sta n tin o convocou todos os bispos da igreja para resol ver o debate a respeito da pessoa de C risto e da Trindade. O bispo de N icéia, Teogno, era ariano, pois apoiou E usébio de N ico m éd ia e Ario alegando que a forte ênfase q u e A lexandre dava à unicidade ontológica d o Pai e do Filho na D eidade levaria inevitavelm ente ao sabelianism o. O u tro s bispos c o n cordaram . O p rim eiro concílio ecum ênico, m esm o antes de ser oficialm ente in au gurado, estava fadado a ser divisor.
O Concílio de Nicéia Para e n te n d e rm o s a relevância d o C o n c ílio de N icéia, é preciso fazer u m a pausa e relem b rar a situação em q u e a igreja cristã se en co n trav a p o u co antes de 325. Bispos e o u tro s líderes cristãos foram perseg u id o s co m ferocidade e, p o r vezes, executados pelas au to rid ad es rom anas. O s tem p lo s das igrejas foram confiscados e tran sfo rm ad o s em tem p lo s de deuses e deusas ou locais de adoração ao im p era dor. A igreja cristã era, em geral, considerada u m a seita religiosa estran h a e u m a am eaça em p otencial ao im p ério p o r estar cheia de subversivos q u e se recusavam a h o n ra r o im p era d o r v e n e ra n d o seu “g ê n io ”. D e re p en te, tu d o m u d o u . O m u n do p areceu sim p lesm en te v irar de cabeça para baixo. A gora, u m im p era d o r ro m an o , u m dos m ais fo rtes q u e já havia aparecido depois de m u ito s anos, o rd e n a va q u e todos os bispos cristãos co m p arecessem para d elib erar em u m a reu n ião q u e ele presidiria.
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Alguns cristãos p erceberam a am eaça in eren te da prepotência im perial 110 lugar da perseguição im perial. A m aioria, não. O im p erad o r convocou os bispos, e p ro m eteu q u e pagaria as despesas e forneceria proteção. A m aioria dos bispos do O ri en te com pareceu. As condições im próprias para a viagem e as dificuldades com o idiom a im pediram o co m p arecim en to de m u ito s bispos do O c id en te. M esm o as sim , os ram os O rie n ta l e O cidental do cristianism o — O rto d o x o e C atólico — vieram a reco n h ecer essa reu n ião em N iceia em 325 co m o o p rim eiro concílio ecu m ên ico da igreja. O u tro s se seguiriam , mas n e n h u m seria tão im portante. T rezentos e d ezoito bispos estavam presentes nas cerim ônias da abertura. Infe lizm ente, não sobreviveram registros co n tem p o rân eo s das sessões do concílio em si. O biógrafo de C o n sta n tin o , o bispo E usébio de C esaréia, fez u m relato do c o n cílio, m as as atas p ro p riam en te ditas e os relatórios testem u n h ais detalhados não se en co n tram à disposição. Ao q u e parece, C o n sta n tin o sen to u -se n u m tro n o que ficava acim a da sala de reuniões on d e os bispos ficaram . O im p erad o r tinha ao seu lado O sio , q u e freq ü en tem en te sussurrava em seus ouvidos e servia de m ediador e m ensageiro en tre o im p erad o r e os principais participantes. A lguns dos bispos re u nidos ten taram levantar objeções contra essa co n d u ta im perial, m as o im p erad o r e seus guardas os silenciaram . C o n sta n tin o deixou absolutam ente claro nas suas o b servações p relim in ares q u e pretendia agir co m o o “bispo dos bispos” e guiar e orien tar as deliberações até que chegassem a um a conclusão satisfatória. O concílio d u ro u dois m eses e tratou de m uitas q uestões que confrontavam a igreja. A p roxim adam ente vinte “cânones” ou decretos distintos foram pro m u lg a dos pelo im p erad o r e pelos bispos a respeito de assuntos q u e variavam desde a deposição de bispos relapsos até à ordenação de eunucos. N o tocante a essa últim a questão, ficou estabelecido q u e eu n u co s poderiam ser o rd enados ao sacerdócio, se sua castração não fosse voluntária. A lém disso, o bispo de A lexandria foi declarado “patriarca” dos bispos das regiões da África do N o rte e arredores e o bispo de R om a, o legítim o líder em érito dos bispos do O cid en te. O concílio ofereceu a o p o rtu n id ad e de esclarecer m uitas dúvidas q u e atorm entavam as igrejas, inclusive a m aneira exata de fixar a data da Páscoa e a situação de bispos q u e se m udavam de um a sé para outra. Todos esses assuntos, 110 entanto, eram de im portância sec u n dária à razão principal do concílio. O im p erad o r conclam ara o concílio para d iri m ir a controvérsia ariana e era a respeito dela q u e os bispos m ais qu eriam falar. D o s 3 1 8 b is p o s p r e s e n te s n a a b e r tu r a d o c o n c ílio , s o m e n te 28 e ra m declaradam ente arianos desde o início. O p ró p rio Á rio não teve licença para parti cipar do concílio p o r não ser bispo. Foi representado p o r E usébio de N ico m éd ia e Tcogno de N icéia. A lexandre de A lexandria dirigiu o processo ju ríd ic o contra Ário e o arianism o e foi auxiliado p o r seu jo v e m assistente Atanásio, q u e viria a sucedelo 110 bispado de A lexandria poucos anos depois. G ran d e parte dos bispos, talvez a
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m aioria, p o u co en ten d ia das questões envolvidas na controvérsia. C o n fo rm e o b serva o h isto riad o r eclesiástico Ju sto G onzálcz: A vasta maioria [dos bispos] parece não ter entendido a importância da ques tão cm pauta e o receio do sabelianismo deixou todos relutantes para conde narem o subordinacionismo de forma contundente. Alem disso, o impera dor, que se interessava mais pela unidade do Império do que pela unidade de Deus, mostrou-se disposto a encontrar uma fórmula que fosse aceitável ao maior núm ero possível de bispos.1 O m odalism o n u n ca fora oficialm ente con d en ad o e ainda pairava co m o um a grande am eaça à d o u trin a ortodoxa a respeito da Trindade. R eduzia o Pai, o F ilho e o E spírito Santo a três m odos ou aspectos de D eus e sugeria o patripassianism o — a idéia de que o Pai sofreu na cruz. Para a m aioria dos bispos, essa crença popular era u m a heresia viva en tre o povo e os sacerdotes e precisava de correção enérgica e cuidadosa. Se o su b o rd in acio n ism o ariano era um an tíd o to útil contra o ven en o d o m odalism o, m u ito s dos bispos hesitariam em co n dená-lo. C o n d en aria m p ro n tam en te o adocionism o, m as o subo rd in acio n ism o sutil do F ilho de D eus nos e n sinos de Ario era m ais difícil de definir em term o s específicos. O s 28 bispos aria nos acreditavam q u e tin h am boas possibilidades de convencer a m aioria e, q uem sabe, até m esm o o im perador da razão de sua posição. C o n fo rm e u m relato, logo após a abertura d o sínodo, alguém solicitou a leitura da posição ariana para q u e todos pudessem saber exatam ente o q u e seria debatido. N esse m o m en to , os arianos, ou pelo m en o s alguns deles, co m eteram u m grave erro estratégico. A lexandre e seus bispos devem ter ficado m u ito satisfeitos. O bispo E usébio de N ico m éd ia levantou-se diante do concílio e leu um a negação clara e direta da divindade do Filho de D eus, enfatizando q u e ele era u m a criatura e de n e n h u m m o d o igual ao Pai. A declaração deve ter sido sem elhante à citação da carta de A rio apresentada do capítulo anterior. A ntes q u e E usébio term inasse a leitura, alguns bispos já tam pavam os ouvidos com as m ãos e gritavam para que alguém pusesse fim às blasfêm ias. U m bispo q u e estava p erto de E usébio d eu u m passo à frente, arran co u-lhe o m an u scrito das m ãos, jo g o u -o no chão e pisoteou-o. H o u v e com oção en tre os bispos q u e só foi in terro m p id a p o r o rd em do im perador. A parentem ente, a despeito das cartas circulares escritas p o r A rio e A lexandre antes do concílio, a m aioria dos bispos não fazia idéia de quão decisiva a questão realm ente era. T in h am com parecido ao concílio na esperança de o u v ir palavras m oderadas, um a posição m ediadora en tre as duas posições contrárias. Q u a n d o um bispo com o eles expressou o lado ariano de form a tão aberta, deixando claro que considerava o F ilho de D eus m era criatura, ficaram convencidos de q u e se tratava
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de heresia, ainda q u e a forte oposição de A lexandre não fosse a única saída. D epois que a balbúrdia d im in u iu u m pouco e o im perador restau ro u a o rd em , o concílio vo lto u a atenção na busca de um a solução.
O Credo de Nicéia P aulatinam ente, a ideia de escrever u m credo unificante e co m p u lsó rio que resu m isse “a fé antiga da igreja” em tão poucas palavras q u an to possível foi su rgindo e ganhando popularidade. O im p erad o r foi a favor dessa idéia e pediu q u e seu cape lão, O sio, com eçasse a elaborar os p o rm en o res com vários bispos. O s arianos e seus sim patizantes arg um entaram v ee m e n tem en te em favor do em prego exclusivo de linguagem bíblica. A lexandre e seu assistente Atanásio perceberam que isso não passava de ardil. O s arianos haviam se to rn ad o hábeis em “to rcer as E scrituras” de m o d o que q u alq u er term inologia bíblica pudesse ser interpretada em favor deles. A única m aneira de encerrar o debate e esclarecer de u m a vez p o r todas q u e o su b o rd in acio n ism o ariano era herético era em pregar um a term inologia extra-bíblica q u e definisse claram ente a unidade de Pai e F ilho co m o iguais d en tro da D eidade. D epois de algum as discussões e pouca concordância, o p ró p rio C o n sta n tin o pro p ô s que o novo credo incluísse a afirm ação de q u e o F ilho é homoousios — consubstanciai — com o Pai. £ possível q u e O sio tivesse reco m en d ad o essa lin guagem e q u e tivesse sido influenciado nesse sentido p o r A lexandre e Atanásio. O u tra origem possível era o bispo E usébio de C esaréia. Seja co m o for, a palavra com posta homoousios — p ro d u to de duas palavras gregas q u e significam “u m a ” e “substância” — foi aceita pela m aioria dos bispos para descrever o relacionam ento en tre o Filho de D eu s e o Pai. São “um a só substância” o u “u m só se r”. A lingua gem relem bra a frase latina an terio r de Tertuliano: u m substantia. O s arianos ficaram horrorizados. Alguns não-arianos ficaram perplexos e preocu pados. O s trinitários anti-arianos, Alexandre, Atanásio e seus amigos, ficaram jubilosos. O s bispos arianos e seus sim patizantes ressaltaram que, um a vez que a palavra grega ousia podia significar u m a coisa subsistente individual, co m o um a pessoa, dizer q ue o Pai e o Filho são homoousios podia ser in terp retad o co m o u m a declara ção de q u e eram idênticos em todos os sentidos, inclusive de serem a m esm a pes soa em disfarces d iferen tes. E assim estaria de aco rd o com o m o d alism o e o sabelianism o. O significado m ais c o m u m de ousia, n o en tan to , era “substância” ou “existência” e afirm ar q u e o Pai e o Filho são homoousios sim plesm ente significava para a m aioria dos bispos q u e todos co m p artilh am dos m esm os atrib u to s essenci ais da deidade. Se o Pai é etern o , assim tam b ém o é o Filho. Se o F ilho é o n ip o te n te, assim tam b ém o é o Pai e assim p o r diante. O im perador e a m aioria dos bispos não se preocuparam m u ito em definir nesse m o m e n to as suas distinções.
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P o sterio rm en te, alguns bispos indecisos, q u e relutaram em co n d e n ar o aria nism o, se lem brariam de q u e u m dos p ro p o n en tes principais da fó rm u la homoousios foi o bispo M arcelo de A ncira — u m cripto-sabeliano de ren o m e. Isto é, ele acre ditava secretam ente na heresia m odalista. Ser u m m odalista não era necessaria m en te “ilegal”, m as era preciso to m ar cuidado ao declarar essa opinião. O apoio de M arcelo à fó rm u la acabou trazendo obstáculos a ela p o sterio rm en te. M esm o antes do en cerram en to do C oncílio de N icéia, m u ito s bispos estavam receosos de q u e ele estivesse, inadvertidam ente, to rn an d o o sabelianism o o rto d o x o e católico. M ar celo sentia-se triu n fan te. A lexandre e seus seguidores p erm an eceram im passíveis. Para eles, o sabelianism o era um a heresia m u ito m en o s perigosa q u e o arianism o. A intenção deles era tratar disso m ais tarde. Finalm ente, o im perador n o m eo u um a com issão de bispos para redigir o texto do credo q ue seria assinado p or todos os bispos, inclusive os que não conseguiram com parecer ao concílio. O resultado foi o prim eiro Credo de Nicéia, que não incluiu o terceiro artigo, a respeito do Espírito Santo e da igreja. O referido artigo seria acres centado posteriorm ente pelo segundo concílio ecum ênico de C onstantinopla, em 381. O Credo de Nicéia (tam bém conhecido sim plesm ente p o r “N icéia”) seguiu o m odelo do Credo dos apóstolos, m as seu texto deixava claro q u e o arianism o era errado: Cremos em um só Deus Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis; em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado de seu Pai, unigénito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, luz de luz, Deus verda deiro do verdadeiro Deus, gerado, não feito, consubstanciai [homoousios] com o Pai, por quem todas as coisas vieram a existir, tanto no céu como na terra, que por nós homens e pela nossa salvação desceu e encarnou, tornou-se hu mano, padeceu e ao terceiro dia ressuscitou e subiu ao céu e virá para julgar os vivos e os mortos; e no Espírito Santo.2 A frase “gerado, não feito” é u m exem plo excelente da linguagem extra-bíblica que, seg u n d o insistia A lexandre, era necessária para excluir o arianism o. Gerado é um a palavra bíblica a respeito d o F ilho de D eus. O E vangelho seg u n d o Jo ão em prega-a freq ü en tem en te. M as nãofeito n u n ca apareceu nas E scrituras com o atrib u to d o Filho de D eus. A distinção, n o entanto, é da m áxim a im portância. Se o Filho de D eus é “feito ” ou “c riado”, não é verdadeiram ente D eus. As E scrituras afirm am que ele é divino e q ue, para a salvação, é necessário q u e ele seja divino. O s bispos reu n id o s em N icéia reconheciam q u e estavam afirm ando u in p ro fu n d o m istério, m as estavam m ais dispostos a afirm ar u m m istério do q u e a p erm itir u m a heresia. T am bém se en c o n tra n o m eio d o cred o a frase “consubstanciai com o Pai” para descrever o Filho de D eus q u e se to rn o u Jesu s C risto. A palavra “consubstanciai” é um a tradução de homoousios e é sim plesm ente um a versão atualizada da palavra
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inglesa arcaica consubstanciai, encontrada nas versões inglesas do credo. D e m odo geral, o credo estabeleceu a ortodoxia da G rande Igreja c o n tra o arianism o, em bora tivesse deixado a porta aberta para o sabelianism o. Foi acrescentado ao fim d o p ró p rio credo u m “anátem a”, um a breve declaração da heresia que estava sendo repudiada: “M as q u a n to aos q u e dizem : H o u v e [um tem p o ] em que ele [o Filho de D eus] não existia, que, antes de nascer, não existia, q u e veio a existir a p artir do nada o u que asseveram q u e o Filho de D eus é de hipóstase o u substância d iferente, o u q u e é criado, ou q u e é sujeito a alteração ou m udança, esses a Igreja C atólica anatem atiza”.3 O im p erad o r deixou ab so lu tam en te claro que isso significava q u e Á rio estava deposto e co n d en ad o co m o herege. Ele devia ser exilado ju n to com os bispos q u e o apoiavam . Pela prim eira vez, u m h ere ge cristão foi co n d en ad o c castigado p o r u m governante secular sim plesm ente por crer e ensin ar a d o u trin a errada. O im perad o r exigiu q u e todos os bispos assinassem o novo credo, sob a pena de serem depostos das suas sés e m andados ao exílio. Vários bispos arianos assinaram no com relutância. S o m ente dois se recusaram a assiná-lo: E usébio de N icom édia e Teogno de N icéia. Sua recusa foi um a grande perda para o im perador e os dem ais bispos, pois eram considerados extrem am en te influentes e todos sabiam que, a não ser q u e assinassem o credo, a questão não seria resolvida tão facilm ente. Q u a n d o o concílio se en cerro u , o assunto ficou sem resolução. Fora escrito u m credo que claram ente condenava co m o herética a d o u trin a sustentada p o r dois dos principais b isp o s d o O rie n te . A lém d isso , a p o rta ficava a b e rta p ara o u tra h e re sia , o sabelianism o, que tin h a com o u m dos defensores u m bispo q u e realm ente su sten tava essa heresia. U m governante pagão tinha conclam ado, presidido e fornecido o co n teú d o teológico a bispos cristãos, o rd en an d o q u e assinassem u m d o cu m en to teológico altam ente am bíguo. G onzález tem razão em dizer que Havia muita ambigüidade na fórmula dc Nicéia. O credo, cujo propósito principal era afirmar a divindade do Filho, podia também ser interpretado como uma afirmação da unidade divina. Esse fato, juntam ente com o fato de que a fórmula de Nicéia se omitia a respeito da distinção entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, não demorou a tornar esse credo suspeito por fazer con cessão ao sabelianismo. E por isso, a despeito da condenação do arianismo em Nicéia, a condenação não foi suficiente para expulsá-lo da igreja e por mais de cinqüenta anos a controvérsia continuou até a igreja, finalmente, conde nar de forma definitiva o arianismo.4 A condenação final e definitiva do arianism o q u e realm ente “fu n cio n o u ” aconte ceu no C oncílio de C onstantinopla em 381. Ao longo do m eio-século interveniente, vários bispos e im peradores arianos e sem i-arianos ajudaram o subordinacionism o
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a se recuperar e, p or vezes, a igreja cristã inteira parecia estar a p o n to de rejeitar totalm ente a Trindade e de estabelecer com o doutrina ortodoxa algo sem elhante ao que as Testem unhas de Jeová acreditam em nossos dias. A história de com o isso foi im p ed id o e de q u e co m o a d o u trin a da T rindade foi fin alm en te in terp retad a e estabelecida, ocupará os dois capítulos a seguir.
Concílios ecumênicos Vejamos rapidam ente o conceito e a natureza dos concílios ecum ênicos, dos quais N icéia foi o prim eiro. N a ocasião do C oncílio de N icéia, não estava m u ito clara a distinção en tre u m sínodo local de bispos e u m concílio ecum ênico. N o entanto, q u an d o a G ran d e Igreja re le m b ro u esse concílio de um a perspectiva posterior, a diferença saltava aos olhos, devido a dois fatores principais. P rim eiro, o C oncílio de N icéia foi convocado e presidido p o r u m im perador. H avia u m a autoridade central, revestida de poderes reais, que presidia as sessões. O s concílios (sínodos) anteriores tin h am sido convocados p o r u m bispo, e a única autoridade q u e suas declarações respeitavam era a autoridade da persuasão. E m segundo lugar, o C o n cílio de N icéia foi u m concílio universal n o sentido de que todos os dem ais bispos na sucessão apostólica e em c o m u n h ão com os dem ais bispos da G ran d e Igreja foram convidados a participar. O fato de q u e so m en te 318 de aproxim adam ente 500 bispos com pareceram não invalidava a universalidade do concílio. Todos eram bem -v in d o s e o im p erador lhes garantiu despesas pagas e proteção. R elem brando, pois, nessa reu n ião pioneira, os ram os principais da C ristandade, u m , dois e treze séculos depois, todos reconheceram u m avanço q uântico da autoridade eclesiástica desde o concílio o u sín odo local de bispos até esse concílio universal e ecum ênico. N o s cin q ü en ta anos q u e se seguiram ao C o n cílio de N icéia, m ais alguns concí lios ecum ênicos foram convocados pelos im peradores, m as p o sterio rm e n te foram repudiados p o r im peradores e líderes eclesiásticos igualm ente, p o rq u e eram , de m o d o geral, antitrinitários. E m outras palavras, resolver quais concílios eram par tes autênticas da G ran de Tradição da igreja passou a ser, p o r si só, um a questão teológica. Foi só em 451 q u e u m concílio universal em C alcedônia resolveu, de m o d o decisivo, q u e o C o n cílio de N icéia e o C o n cílio de C o n sta n tin o p la (381) foram , na realidade, os dois prim eiros concílios verd ad eiram en te ecum ênicos da igreja, de m o d o q u e os vários o u tro s estavam excluídos. T am bém declarou um concílio de todos os bispos, p o u co tem p o antes de C alcedônia, co m o u m “S ínodo de L adrões” e não u m concílio genuíno. O C o n cílio de C alcedônia decidiu q u e era o q u arto concílio ecu m ên ico e declarou a versão do Credo de Nicéia escrita n o se g u n d o concílio ecu m ênico, em C o n stan tin o p la, autorizado e obrigatório para to dos os clérigos n o im pério inteiro. E m bora seja co m u m e n te cham ado Credo de Nitéia, é m ais exatam ente o Credo nkeno-constantinopolitano. C o n fo rm e verem os, o
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terceiro concílio ecu m ênico acabou sendo o realizado cm Éfeso em 431. N ã o ch e gou a p ro m u lg ar u m credo, m as to m o u algum as decisões im p o rtan tes a respeito de heresias sobre a pessoa de Jesu s C risto. A G ran d e Igreja chegou à conclusão de q u e foram realizados q u atro concílios ecu m ên ico s da igreja prim itiva e q u e suas decisões e ações deviam ser consideradas obrigatórias para todos os clérigos cristãos. G eralm ente, os im peradores faziam vigorar essa decisão com os conselhos e a orientação dos principais bispos das sés m aiores cham ados “patriarcas”. Esse processo inteiro de governar a igreja no as su n to da d o u trin a era, n a tu ra lm e n te , u m a ex ten são lógica da eclesiologia de C ipriano. C ip rian o tin ha vislum brado sínodos de bispos governando os assuntos da igreja, mas assim q ue u m im perador cristão assum iu o poder, coisa q u e C ip rian o jam ais havia im aginado, era lógico que os bispos cristãos esperassem q u e o im pera d o r fizesse valer as decisões tom adas nos concílios ecum ênicos. O s q u atro concíli os ecum ênicos q ue até m esm o os p rotestantes consideram dotados de autoridade especial para a d o u trin a cristã são: N icéia i (325), C o n sta n tin o p la i (381), Éfeso i (431) e C alcedônia (451). O processo de convocar concílios ecum ênicos para to m ar decisões teológicas im p o rtan tes c o n tin u o u depois de C alcedônia, m as há po u co acordo bilateral na cristandade a respeito dos concílios posteriores. As igrejas O rto d o x as O rientais reco n h ecem sete concílios ecum ênicos, em b o ra haja certa polêm ica en tre seus lí deres a respeito d o sétim o. A Igreja C atólica R om ana reconhece vinte e u m concí lios ecum ênicos, sen d o q u e o m ais recente é o Vaticano n, realizado nos anos de 1962 a 1965. As deno m inações protestantes m agisteriais, co m o as principais d e n o m inações luteranas, reform adas e anglicanas (Igreja da Inglaterra, Episcopal) reco nh ecem q u e so m en te os q u atro prim eiros são dotados de certa autoridade especial e m esm o esses são considerados inferiores às Escrituras. M uitas deno m in ações e tradições p rotestantes não m agisteriais prestam bem pouca, ou n e n h u m a, atenção aos concílios ecum ênicos. N u m ero sas d en o m in a ções sem credos a não ser a “Bíblia so m e n te ”, rejeitam co m p letam en te a idéia de concílios ecu m ên ico s convocados e presididos por im peradores, co nsiderando-os u m sintom a do co n stantinism o, a doença de p erm itir que governantes seculares e pagãos d o m in em a vida da igreja e se in tro m etam na interpretação bíblica e teoló gica. Essas d en om inações, inclusive m uitas batistas, pentecostais, m enonitas, Igre jas de C risto e m uitas outras da cham ada tradição das igrejas livres, consideram qu e a igreja se desviou de sua verdadeira natureza em algum m o m e n to dos p rim ei ros séculos depois dos apóstolos. Para elas, a deferência m ostrada ao im perador pagão, C o n stan tin o , p o r bispos cristãos n o século iv foi a gota d ’água n o processo de involução da cristandade, que, de cristianism o apostólico, passou a ser um a religião rom ana quase paganizada. Essa atitude para com a G rande Igreja no reinado
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de C o n sta n tin o e p o sterio rm en te aparece de diversas form as e expressões, m as, de m o d o geral, os protestantes das igrejas livres desconsideram os concílios e credos do século iv e séculos posteriores e d efen d em o princípio de “volta à B íblia” e da separação da igreja e d o estado. P odem os visualizar as atitudes para com os grandes concílios ecum ênicos m o n tadas ao longo de u m espectro, ten d o a ortodoxia oriental n u m a extrem idade e a m aioria dos pentecostais na outra. A atitude da m aioria dos cristãos encontra-se em algum p o n to en tre as duas extrem idades, em b o ra os pentecostais não sejam os únicos que desconsideram o u rejeitam a autoridade especial dos concílios e suas decisões. M u ito s batistas, Igrejas de C risto , igrejas H olincss (m o v im en to de santi dade), anabatistas e o u tros ficam ju n to s na m esm a extrem idade d o espectro q u e os pentecostais. O s bispos ortodoxos orientais consideram sua fam ília de igrejas um a continuação, no m u n d o m o d ern o , da G rande Igreja do Im pério R om ano governa d o p o r C o n stan tin o . A creditam , tam bém , que a G ran d e Igreja sob a direção de C o n sta n tin o era a co n tinuação autêntica n o século iv da igreja dos apóstolos no século i. Para os bispos ortodoxos orientais, todos os dem ais ram os da cristandade são cism áticos. Até m esm o a Igreja C atólica R om ana é u m cism a da ortodoxia, cism a este q u e foi oficializado em 1054. O s ortod oxos consideram q u e os sete concílios ecu m ên ico s têm verdadeiram ente a m esm a autoridade q u e as próprias Escrituras. T anto as E scrituras q u an to os concílios fazem parte da “Tradição”, que é a revelação autorizada q u e D eus d eu ao seu povo na história. N a o u tra extrem idade do espectro de posições em relação aos concílios e credos ecum ênicos, os pentecostais e algum as outras igrejas livres ten d em a considerá-los com o desprovidos de q u alq u er autoridade sobre os cristãos p o r estarem m u ito dis tantes da igreja do n t , tanto na cronologia com o na cultura. N ã o estam os dizendo, com isso, que os pentecostais e o u tro s cristãos das igrejas livres rejeitam todas as do u trin as dos concílios c os seus credos. Longe disso. M u ito s deles concordam sinceram ente com a d o u trin a da Trindade, m as argum entam que, co m o ela pode ser achada nas Escrituras, não é necessário confessar a linguagem m etafísica dos credos. Para os que rejeitam a d o u trin a da Trindade, as igrejas livres apelam sim plesm ente ao n t e à experiência do Pai, Filho e E spírito Santo na vida cristã. N a tu ralm ente, a m aioria das igrejas livres (inclusive as pentecostais) acha necessário for m u lar suas declarações de fé q u e resum am as doutrinas essenciais do n t para se guardar contra heresias. Em geral, elas contêm as doutrinas do Credo de Nicéia. M esm o assim, os protestantes das igrejas livres argum entam que todas as declarações de fé elaboradas p o r seres h um anos podem ser revisadas à luz das E scrituras e que não possuem n en h u m a autoridade em si m esm as, à parte das Escrituras. Poucas d e n o m inações e tradições das igrejas livres se recusam a aceitar q u alq u er declaração for m al de fé. O resultado m uitas vezes é, obviam ente, confusão c caos doutrinários.
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Q u a n to às posições da Igreja O rto d o x a O rien tal e dos protestantes das igrejas livres para com os concílios e credos da igreja prim itiva, há diversas variações e graduações. M u ito s cristãos evangélicos da era m o d ern a chegaram a considerar os q u a tro p rim eiro s concílios e o Credo de Nicéia (niceno-constantinopolitano) com o m arcos da verdade cristã, q u e devem ser respeitados, m as não venerados co m o se possuíssem a m esm a autoridade das Escrituras. Até m esm o m u ito s teólogos evan gélicos das igrejas livres expressam grande apreço e respeito pelo Credo de Nicéia e pelas decisões m arcantes dos q u atro prim eiros concílios, com parando-as com as decisões do S u p rem o Tribunal da U n ião — interpretações autorizadas da co n sti tuição. Aos olhos deles, a Bíblia é um a espécie de C o n stitu ição da R epública. O s prim eiro s concílios e especialm ente o Credo de Nicéia recebem das E scrituras sua autoridade. U san d o o u tra analogia, eles são com o a luz da lua q u e reflete a do sol, m as não deixa de te r sua utilidade na noite escura da ignorância e do erro. Seja co m o for, o im p erad o r C o n sta n tin o presidiu u m concílio ecu m ên ico e to rn o u obrigatórias as suas decisões doutrinárias. M as isso foi apenas o início da grande controvérsia a respeito do F ilho de D eus e da Trindade. Seu propósito era te rm in a r a co n tro v érsia ariana, m as, ao co n trá rio , serviu re alm en te co m o u m catalisador dela. A explosão aconteceu depois de os bispos deixarem o concílio em 325. Eles com eçaram a refletir sobre o q u e se realizara ali e a se co rresp o n d er falando a respeito. N ã o d em oraram a descobrir que a linguagem d o credo que pro m u lg aram era am bígua e, assim co m o as próprias Escrituras, podia ser in ter pretada de vários m odos, sendo alguns deles heréticos. C o n sta n tin o estava convic to de q u e o concílio não tinha co n clu íd o a sua obra e q u e, na realidade, tinha acrescentado o co n teú d o errado ao credo. Q u e ria re to m a r tu d o e reescrevê-lo. M as u m h o m em se colocou em seu cam inho. Por algum tem po, era A tanásio c o n tra o m u n d o .
Atanásio sustenta irredutivelmente a fé
liando A lexandre, bispo de A lexandria, foi ao C oncílio de N icéia para d efen d er a causa trinitária contra A rio e os seus seguidores, levou consigo u m jo v em assistente cham ado Atanásio, q u e tin h a apenas vinte e poucos anos, m as prom etia m u ito co m o teólogo. E im provável q u e Atanásio tenha d esem p en h ad o q u alq u er papel relevante 110 concílio, m as p o sterio rm e n te foi preparado p o r A lexandre para ser seu h erd eiro na liderança da sé de A lexandria. Q u a n d o A lexandre m o rre u em 328, Atanásio, co m trin ta anos de idade, su ced eu -lh e nesse estratégico cargo ecle siástico. Sem dúvida, m u ito s críticos desprezavam sua ju v e n tu d e e auvidavam que o “A não N e g ro ”, com era conhecido, daria conta de ser patriarca da igreja em idade de tenra ju v e n tu d e . P ouco depois, n o en tan to , até m esm o seus inim igos tiveram de adm irar sua grande perspicácia, sabedoria e coragem .
A vida e a carreira de Atanásio Atanásio atu o u co m o arcebispo e patriarca de A lexandria d u ra n te q u aren ta e cinco anos, até sua m o rte em 373. Passou aproxim adam ente u m terço desse perío d o em exílio forçado, p o r causa da defesa resoluta da term inologia essencial d o Credo de Nicéia diante da oposição im perial. C o m toda razão, passou a ser co n hecido p o r o “santo da teim osia” p o r causa de sua oposição resoluta a q u alq u er coisa q u e tivesse o m en o r sinal de arianism o, m esm o q u an d o im peradores am eaçaram sua vida. Talvez não seja u m exagero m u ito grande dizer q u e a teologia das T estem unhas de Jeová só não é a “orto d oxia” da m aior parte da cristandade graças a Atanásio. “Ele é realm ente u m dos grandes heróis da fé, m as, assim co m o O ríg en es antes dele, deixou u m legado perturbador. D ife ren tem en te de O ríg en es, a reputação de Ata násio é tida co m o im aculada em todos os ram os principais da cristandade. E m bora algum as de suas idéias acabaram sendo consideradas co m o heréticas seg u n d o os padrões da ortodoxia, ele n u n ca foi co n d en ad o e nem seq u er d u ra m e n te criticado. E considerado u m santo pelas igrejas ortodoxas orientais, b em co m o pela tradição
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católica rom ana. O s protestantes, em geral, tam b ém o consideram u m dos grandes m estres da igreja prim itiva. G onzález expressa o consenso da m aioria dos teólogos cristãos ao dizer: “Atanásio foi, sem dúvida algum a, o bispo m ais notável que ch e gou a ocupar a antiga se de A lexandria e [...] foi tam bém o m aior teólogo de seu te m p o ”.1 N o seu século, e d u ran te toda sua vida, Atanásio foi extrem am ente controverso. M u ito s bispos e im peradores consideravam -no u m controversista inflexível que se recusava a ceder teologicam ente em prol da unidade eclesiástica. U m historiador eclesiástico m o d ern o de destaque que escreveu a respeito de Atanásio fala que “no seu episcopado de quarenta e cinco anos (328-373), ele provocou u m grau de o p o sição in co m u m nas mais variadas fontes. Pior do q u e isso, parecia deleitar-se na controvérsia. D ificilm ente poupava u m oponente. C o m o panfletista, superou o p ró prio im perador Ju lia n o ”.2 O u tro historiador eclesiástico m o d ern o registra que Ata násio “tendia a ser tirano e atos violentos foram com etidos em seu n o m e ” m as, ao m esm o tem po, coloca-o em u m pedestal co m o “o pilar da igreja; ele lim pou o tem plo, a exem plo de C risto, não com chicotes, m as com argum entos persuasivos”.3 A fim de até m esm o com eçarm os a c o m p re en d er Atanásio e a controvérsia nele centralizada, é preciso co n h ecer do contexto da igreja e do estado o n d e ele vivia e trabalhava. “D u ra n te as décadas de m eados desse século, de 340 a 380, a história da do u trin a parece m ais a história das intrigas da corte e da igreja e da agitação soci al”.4 C ada im p erad o r q u e assum ia o tro n o m udava d o arianism o para a ortodoxia, para o sem i-arian ism o e de volta à ortodoxia. U m deles, Ju lian o , co n v erteu -se do cristianism o para o paganism o e p ro cu ro u , sem sucesso, levar o im pério de volta às suas raízes pagãs. M as para Atanásio, Ju lia n o era um a am eaça m e n o r do que os im peradores q u e falavam, sem c o n h e cim en to de causa, a respeito da d o u trin a da Trindade e tentavam estabelecer u m co m p ro m isso com os arianos, tratados por ele com o forças do anticristo. Atanásio nos faz im aginar u m M artin h o L utero da an ti güidade. C o m o o refo rm ad o r protestante do século xvi, ele avançou na direção contrária aos conflitos e tu m u lto s sociais e to m o u um a posição firm e cm favor da verdade. O axiom a de Lutero: “Paz, se for possível, m as verdade, a q u alq u er cus to!” poderia tam b ém ter sido o de Atanásio. Q u a n d o Atanásio sucedeu A lexandre n o bispado com a tenra idade de trin ta anos, os problem as com eçavam a surgir na igreja e n o im pério. D epois d o C oncílio de N icéia, o bispo sabeliano M arcelo de A ncira proclam ou q u e o concílio e seu credo, foram u m grande triu n fo para o m odalism o. Ele e seus colegas sabelianos declararam q ue o term o homoousios (consubstanciai) identificava o Pai e o F ilho tão in tim am en te q u e deveriam ser considerados u m e a m esm a substância ou id en ti dade pessoal. A única diferença en tre eles estava na aparência ou m anifestação. O credo c o concílio tin h am deixado de explicar a distinção correta e n tre o Pai e o
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Filho e tin h am negligenciado quase to talm en te o E spírito Santo. Esse fato conce deu um a vantagem tanto aos sabelianos co m o aos arianos. O s sabelianos podiam declarar q u e o evento inteiro tinha sido um a vitória para a interpretação deles so bre a T rindade e os arianos podiam dizer q u e servia para co n d en ar o sabelianism o. E n tre os anos de 325 e 332, exatam ente q u an d o A tanásio estava assu m in d o seus deveres co m o bispo de A lexandria, o im p erad o r C o n sta n tin o co m eçou a m u d a r de partido no assunto, sob a pressão de bispos e conselheiros q u e secretam ente sim patizavam com A rio e dos dois bispos q u e o apoiaram e foram depostos e exilados. A força da anim osidade que se seguiu ao concílio foi intensa. As discussões e o tu m u lto não tin h am cessado. A lguns q u e tin h am assinado o cred o e os anátem as co ntra os arianos ficaram h o rrorizados com a interpretação sabeliana distorcida aplicada ao credo p o r M arcelo e outros. C o n seg u iram co n q u istar a confiança do im perador e este com eçou p aulatinam ente a pensar em m u d a r o cred o e até m es m o a restaurar A rio e os bispos de N ico m éd ia e N icéia. Em 332, C o n stan tin o declarou Ario restaurado com o presbítero em Alexandria e ord en o u que o novo bispo o aceitasse de volta à co m u n h ão da igreja naquele local. Atanásio recusou-se, a não ser que A rio afirmasse homoousios com o descrição do rela cionam ento entre o Pai e o Filho. A rio não quis. Atanásio rejeitou-o e desconsiderou as exortações e ameaças do im perador. C o m o resultado, C o n stan tin o exilou Ataná sio para o posto avançado m ais afastado do Im pério R om ano no O cidente: a cidade alemã de Tréveris. Seu exílio com eçou em novem bro de 335 e d u ro u até à m orte de C o n stan tin o em 337. D urante esse período de ausência da sua sé, no entanto, A taná sio perm aneceu com o o único bispo reconhecido de Alexandria. O s bispos d o Egito, os presbíteros e o povo de Alexandria recusaram -se a substituí-lo e Atanásio conti n u o u sendo o bispo am ado deles, m esm o no exílio. N as viagens de ida e volta para Tréveris, Atanásio fez m u ito s contatos com líde res cristãos no O c id e n te que passaram a sim patizar com ele. Afinal, C o n sta n tin o não era u n iv ersalm en te considerado u m herói n o O c id e n te Latino p o r ter transfe rido a sede d o im pério m ais para o O rie n te , para C onstan tin o p la. N ã o era só p o r q u e Atanásio estava sendo exilado pelo im p erad o r q u e eles iriam repudiá-lo. Foi recebido de braços abertos por m u ito s bispos ocidentais e sua influência sobre eles em favor da ortodoxia trinitária (a fórm ula de N icéia) foi profunda. Atanásio tam bém lhes ap resen to u o fe n ô m en o dos m onges erem itas cristãos nos desertos do Egito. U m dos heróis pessoais de A tanásio era A ntão, o E rm itão, u m dos prim eiros ascetas d o deserto q u e op ero u m ilagres. Atanásio escreveu u m livro intitulado A vida de Antão e essa obra to rn o u -se a base para a aceitação do m onasticism o en tre cristãos de todas as partes do im pério. E n q u an to A tanásio estava n o exílio em Tréveris, A rio m o rre u , na véspera d o dia em q u e seria restaurado co m o u m presbítero cristão n u m a cerim ônia especial em
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C o n stan tin o p la. A lguns estudiosos especulam q u e ten h a sido envenenado pelos seus inim igos. Seja com o for, sua m o rte em 336 oco rreu poucos m eses antes da m o rte d o p ró p rio C o n sta n tin o em 22 de m aio de 337. C o n sta n tin o viveu com o pagão e m o rre u co m o ariano. S em elhante cu rrícu lo para “o p rim eiro im perador cristão ” não é m u ito adm irável! M esm o assim , a sua m o rte foi o térm in o de u m grandioso capítulo na história cristã. A partir de então, com apenas u m a breve exceção, os im peradores ro m an o s se considerariam cristãos em certo sentido e interfeririam co n stan tem en te nas questões eclesiásticas e teológicas. O sucessor de C o n sta n tin o foi seu filho C o n sta n d o , q u e p erm itiu q u e Ataná sio retornasse à sua sé em A lexandria. P orém , sua restauração não seria p e rm a n e n te. O relacionam ento en tre Atanásio e o im p erad o r C o n stâ n cio era tem pestuoso. O im perador, que governou até a sua m o rte em 362, co n stan te m e n te acossava o bispo, que parecia ser o ú ltim o e principal baluarte d e resistência da ortodoxia trinitária ante o arianism o e o sem i-arianism o. O im perador queria paz e a uniform idade era o cam inho para ela. C hegou a achar que o term o homoousios, ironicam ente, sugerido e im posto por seu pai, C onstantino, deveria ser substituído no Credo de Nicéia por homoiousios, que significa “de substância sem elhante” e era aceitável para os sem i-arianos e até m esm o para m uitos trinitários. A nova term inologia teria tornado ortodoxa, se aceita, a crença de q u e o Pai e o Filho com partilham de “substância sem elhante” ou de “existência sem elhante” em vez de se crer que são da m esm a substância ou existência. O s que faziam pressão em favor dessa m udança são geralm ente considerados “sem i-arianos” e suas estrelas brilharam na igreja e n o im pério por volta de 360, qu ando C onstâncio passou a apóia-los. A m udança teria excluído a interpretação sabeliana da Trindade, deixando claro que o Filho e o Pai não são idênticos. M as tam bém teria aberto a porta para u m a interpretação ariana subordinacionista ao su ben ten d er q ue talvez o Filho não seja D eus da m esm a m aneira que o Pai é D eus. Atanásio resistiu com teim osia à m udança e até m esm o a co n d e n o u co m o h e re sia e eq u ip aro u com o anticristo os q u e a apoiavam . C o n fo rm e v erem os, sua p re o cupação não era sim p lesm ente d efen d er u m a linguagem sacrossanta, m as d efen d er o p ró p rio evangelho. Para Atanásio e seus partidários, a própria salvação depende de o F ilho de D eu s ser o p ró p rio D eus e não m era m en te u m a grandiosa criatura “sem elh an te a D e u s”. Para ele, “a questão fundam ental é q u e so m en te o verdadei ro D eus pode u n ir u m a criatura a D e u s ”5 e “a salvação não é [...] possível m ediante um a co rren te hierárquica, do Pai através de u m F ilho in term ed iário até às cria tu ras. U m in term ed iário , portan to , tanto separa co m o u n e as criaturas com o Pai”.6 P o r m ais q u e re p u d ia s se o sa b e lia n ism o , A tan ásio re p u d ia v a ain d a m ais o su b o rd in acio n ism o ariano, bem co m o o “m e io -te rm o ” sem i-ariano (que não n e cessariam ente explicitava q u e “tem p o houve em q u e o F ilho não existia”), q u e lhe
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era inaceitável p o rq u e o evangelho inteiro dependia de Jesu s C risto ser verdadeiro D eus bem co m o verdadeiro h om em . C erto crítico m o d ern o da ortodoxia cristã prim itiva concluiu q u e Atanásio d e sem p en h o u algum papel na queda do Im pério R om ano por causa da sua obstinação qu an to a um a letra m inúscula em grego, que não passa de um a m arca diacrítica sobre um a vogal. Edw ard G ibbon argum entou que Iwmoousios e homoiousios são tão próxi m os, tanto na aparência co m o no significado, que Atanásio deveria ter aceitado esta últim a form a em vez de provocar tanta contenda e dissensão qu an to à diferença. Em resposta a essa opinião, o teólogo evangélico, M illard Erickson, relata a história (de exatidão não confirm ada) de um a senhora rica da era vitoriana que, em viagem para a Europa, achou um colar caríssim o de pedras preciosas, q u e queria com prar. Para obter o co n sen tim en to do m arido (lá nos tem pos vitorianos!), telegrafou para ele e lhe co n to u o preço. O recado do m arido de volta para ela provocou o ro m p im en to do casam ento. Escrevera: “N ão! é m u ito caro”, m as, por om issão do po n to de excla m ação pelo operador do telégrafo, ficou: “N ão é m u ito caro”. A esposa gastou o dinheiro, causando a ruína financeira da família e o fim do casam ento. E m bora seja reco n h ecid am en te um a parábola e não u m fato histórico, essa his tória ensina a lição de que, em m u ito s casos, u m a única letra m inúscula o u sinal de pontuação pode provocar um a grande diferença no significado de u m a m ensagem . C o n traria n d o G ib b o n e o Im perador C on stân cio , a diferença en tre homoousios e homoiousios é a diferença en tre a D ivindade e a criatura. O p rim eiro diz q u e o Filho é D eus. O seg u n d o diz que o F ilho é semelhante a D eus. Se u m ser é D eus, dizer q ue é sem elhan te a D eus está to talm en te errado. Se u m ser é apenas semelhante a D eus, declarar q u e ele é D eus seria u m a heresia o u até m esm o u m a blasfêm ia. Atanásio percebeu isso e resistiu à sedução de ceder. Por causa de sua recusa em ceder, acusações falsas a seu respeito foram feitas 110 tribunal de Alexandria e ele teve de fugir para R om a em 339. P o sterio rm en te, foi in ocentado das acusações de desonestidade financeira e de abuso do p o d er e teve perm issão para voltar a A lexandria. E m o u tro episódio d o conflito, o im perador chegou a A lexandria em negócios de estado e decidiu passar d efro n te à casa de Atanásio sem cu m p rim en tá-lo . Este, segundo se conta, saiu reso lu tam en te da casa e c o n fro n to u o im p erad o r seg urando o freio d o cavalo im perial na procissão e preg an d o -lh e a teologia certa. Esta história pode ser lendária. Em o u tro episódio bem testem u n h ad o , n o entanto, Atanásio foi pu b licam en te atacado p o r guardas rom anos en q u a n to dirigia o cu lto na catedral em A lexandria. Q u a n d o as tropas irro m p eram na igreja, com a óbvia intenção de p re n d er e possivelm ente m atar Atanásio, a congregação aglom erou-se a re d o r dele e o protegeu. C o n seg u iu sair despercebido da cidade e conviveu com os m onges n o d eserto d u ra n te cinco ou seis anos, até a situação se acalm ar na cidade.
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Ao todo, Atanásio e n fre n to u cinco exílios: “D ezessete dos seus q u arenta e seis anos de bispado, Atanásio passou n o exílio. A política e a teologia sem pre se m istu raram . Assim viveu Atanásio, d efen d en d o seu m o d o de e n te n d e r a fé católica, com o declarou em N icéia”.7 N o m eio de tu d o isso, Atanásio conseguiu convocar u m concílio em Alexandria. N e m todos os bispos com pareceram , natu ralm en te, p o rtan to , não é considerado u m concílio ecu m ên ico. N ã o teve o apoio, n em do im perador, nem de m uitos bispos de destaque na igreja. M esm o assim , p reparou o cam in h o para o segundo concílio ecu m ên ico , o C o n cílio de C o n stan tin o p la, q u e seria realizado depois da m o rte de Atanásio e, em grande m edida, co m o resultado da obra deste. Seu sínodo em A lexandria re u n iu -se em 362. O s bispos ali re u n id o s reafirm aram homoousios com o a única descrição apropriada do relacionam ento en tre o F ilho e o Pai e rejei taram ex p licitam en te c o m o h eresias ta n to o Iwmoiousios se m i-a ria n o co m o o sabelianism o. O sínodo deu um passo novo que seria crucial para o sucesso da doutrina nicena da Trindade 110 C oncílio de C onstantinopla em 381. C o m a ajuda dos seus amigos, os pais capadócios (Basílio e os dois G regórios), Atanásio propôs, c o sínodo aceitou, um a declaração explicativa no sentido de o Pai, o Filho e o Espírito Santo serem três hypostases distintos, m as não separados, do único D eus. Esse avanço conceituai, total m ente crucial, só pode ser com preendido 110 contexto das contribuições teológicas dos três pais capadócios que serão exam inadas no próxim o capítulo. Basta dizer, por enquanto, que hypostasis (da qual hypostases é o plural) é um a palavra grega que pode significar ou “subsistência individual” (com o um a pessoa) ou “substância c o m u m ” (com o a natureza hum ana). Em outras palavras, podia ser sinônim o de ousia (subs tância) ou não. Se não, geralm ente significava um a coisa específica ou um exem plar (subsistência) individual de um a substância ou espécie cm com um . Esse era clara m ente o significado p retendido no sínodo de Atanásio em Alexandria em 362. O pro p ó sito de p ro p o r essa nova idéia era con trad izer o m odalism o sabeliano ao to rn ar claro que o Pai, o F ilho e o E spírito Santo, em b o ra sejam de substância una (homoousios), não eram a m esm a pessoa o u subsistência idêntica. São três pes soas (hypostases) distintas e não m eram en te três m áscaras o u m anifestações ou as pectos do ú n ico D eus pessoal — sendo isso o q u e o sabelianism o asseverava. Pare ce que no sínodo de A tanásio em A lexandria, ele e os bispos trinitários ali reunidos tin h am fin alm ente reto rn ad o à fórm ula trinitária latina de T ertuliano, apresentada contra Práxeas u m século e m eio antes — una suhstantia, tres personae. M as em 362, ela estava longe de ser universalm ente aceita. O s tratados teológicos principais de Atanásio in clu em D e incarnatione, traduzido com o Da encarnação do Verbo, e Quatro discursos contra os arianos. E óbvio q u e tam bém escreveu nu m ero sas cartas, panfletos teológicos e livros pequenos. M as essas são as
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obras principais a respeito da D ivindade e da salvação. E ntre outras obras de m e n o r im portância está A vida de Antão e Contra os pagãos. Da encarnação do Verbo co n tin u a sendo u m grande clássico cristão e ainda é p u blicado dezessete séculos m ais tarde. E u m a obra clássica da teologia construtiva cristã prim itiva. E provável q u e Atanásio a tenha escrito no p rim eiro exílio em Tréveris. E u m livro a respeito da necessidade de um a encarnação gen u ín a de D eus na h u m an id ad e, para a salvação dos h u m an o s e ressalta a divindade de Jesu s C ris to. Ele adm ite o m o d elo tradicional da salvação de deificação ou divinização, que rem onta, no m ín im o , a Iren eu o u talvez até a um m o m e n to an terio r da história da teologia. M as o livro tam bém co n tém reflexões exegéticas sobre passagens bíblicas que se relacionam com Jesus C risto e sua divindade e p ro fu n d o s esforços m entais no tocante ao relacio n am ento e n tre o Pai, o Filho e o E spírito Santo. U m dos alvos principais de Atanásio nesse livro era deixar claro q u e o F ilho é gerado, m as não feito. A cristologia do livro relem bra nitid am en te a de O ríg en es e, de fato, Atanásio tem sido freq ü en tem en te considerado co m o u m “O ríg en es da ala d ireita” p o r es tudiosos da teologia histórica. Isto é, sua interpretação de O ríg en es é tradicional e conservadora, ao passo q u e a dos arianos era radical e “da ala esq u erd a”. Contra os arianos é a obra m ais polêm ica de Atanásio, e é dirigida contra os aria nos e sem i-arianos. Foi escrita en tre 356 e 36() q u an d o , então, a heresia ariana, na form a do sem i-arianism o, estava para se to rn ar a ortodoxia obrigatória da igreja inteira. A m ensagem é a m esm a contida em Da encarnação do Verbo, m as é expressa de m o d o negativo, ao d esm o n tar o su b o rd in acio n ism o radical. A m ensagem p rin cipal é q u e “o Logos não é u m a criatura, m as um a só substância com o Pai, [...] po rq u e é so m en te assim que a nossa salvação é plen am en te realizada e garantida”.8 Atanásio m o rreu em 373 em Alexandria. Passou os últim os sete anos de vida na sua cidade natal com o seu bispo, em relativa paz e quietude. O im perador era Valen te, que tinha fortes inclinações para o arianism o mas, depois de forçar Atanásio um a vez para o exílio, teve com paixão dele e perm itiu que voltasse para casa. O próprio Valente m o rreu pouco depois e o im perador seguinte, Teodósio, apoiava fortem ente a fé ortodoxa e trinitária da qual Atanásio e seus am igos capadócios eram defensores. Foi Teodósio q u em convocou o segundo concílio ecum ênico em C onstantinopla onde o C red o de N icéia foi fortalecido e finalm ente adotado com o o credo universal obrigatório para todos os cristãos. Foi tam bém Teodósio que declarou o cristianism o ortodoxo e católico a religião oficial única e exclusiva d o Im pério R om ano. Atanásio não viveu até ver esse fruto da obra da sua vida.
A teologia de Atanásio E m todas as suas obras teológicas principais, Atanásio seguiu três linhas de raciocí nio teológico n o tocante ao relacionam ento en tre o F ilho de D eus e o Pai. Todas as
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três têm a intenção de apoiar e até m esm o co m p ro v ar a unidade ontológica da substância (homoousios) do Pai e d o Filho. Em algum as poucas ocasiões, Atanásio inclu iu explicitam ente o E spírito Santo nessa unidade, m as sua preocupação p rin cipal era refu tar o arianism o e, assim , co n c en tro u a sua atenção na pessoa de C risto c na q uestão da sua condição diante d o Pai. Seus am igos capadócios defenderiam a causa do E spírito Santo. A prim eira linha de raciocínio q u e A tanásio em p reg o u a fim de apoiar a igual dade do Filho com o Pai e m etafísica. O âm ago do arg u m en to é q u e se o Pai é D eus, o F ilho deve fo rçosam ente tam b ém ser D eus, pois de o utra form a, o Pai teria passado p o r u m a m udança ao se to rn ar Pai. Se houve u m tem p o em q u e o Filho não existia, c o n se q ü en tem en te houve u m tem p o em q u e o Pai não era pai. Para ele, o F ilho faz parte da definição de D eus co m o Pai e “o F ilho de D eus é etern o , pois a sua n atureza é sem pre perfeita. [...] N ã o se pode deixar de dizer que, ao susten tarem q u e “houve tem p o em q u e o Filho não existia’, despojam , com o assaltantes, D eus do seu Verbo e abertam ente dizem a respeito de D eus q u e houve tem p o em que não tinha seu Verbo e Sabedoria e q u e a Luz em tem pos passados não irradiava luz e q u e a F onte tin h a sido estéril e seca”.9 Para Atanásio, negar a divindade eterna do Filho de D eus era u m ultraje grave contra o Pai: “Esse ataque co n tra o Filho faz a blasfêm ia recair contra o Pai”.10 Atanásio com partilhava com os arianos e quase todos os q u e se cham avam cris tãos um a forte crença na im utabilidade de D eus e a explorava contra o su b o rd inacionism o radical. Se D eus “se to rn o u ” Pai, passou p o r um a m odificação e altera ção. Se o Filho de D eus é a im agem expressa do Pai e de sua radiância e luz, sendo q u e as E scrituras en sin am claram ente todas essas coisas, então ele sem pre existiu com o Pai, m esm o q u e tenha sido “gerado” dele: “M as D eus não é co m o o h o m em , co n fo rm e a E scritura tem dito; m as é existente e é etern o ; p o r isso, tam bém o seu Verbo é existente e etern o com o Pai co m o a radiância da luz. [...] P ortanto, ele tam b ém é D eus, p or ser a Im agem de D eus, pois ‘o Verbo era D e u s,’ diz a E scritu ra”.11 Esse arg u m en to m etafísico da igualdade e n tre o F ilho de D eus e o p ró p rio D eus ap resen to u u m p roblem a para Atanásio q u an d o passou a descrever a natureza da h u m an id ad e e divindade de Jesu s C risto em Da encarnação do Verbo. Afinal, se a divindade é rig orosam ente im utável, co m o poderia unir-se, de form a genuína, à existência h um ana? A solução ariana e sem i-ariana foi dizer que o Logos, o u Filho de D eus, não é verd ad eiram ente divino. Atanásio recorreria a O rígenes e o u tro s teólogos an teriores ao seu tem p o em busca de um a solução. Para ele, o Filho de D eus não m u d o u ao en tra r na existência h u m an a cm Jesu s C risto. Até q u e po n to isso é com patível com a encarnação genuína é contestável, m as foi a solução que Atanásio ofereceu.
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N a realidade, Atanásio foi m u ito longe nessa direção. A fim de preservar a ver dadeira divindade do Filho com igualdade ao Pai, achava q u e precisava salvaguardálo de q u alq u er m ácula d e criatura na encarnação. F re q ü e n te m e n te se referia à encarnação co m o o emprego pelo Logos dc u m corpo h u m an o . E m Da encarnação do Verbo, disse q u e até m esm o d u ra n te a vida terrestre de Jesu s C risto , o Logos (ou F ilho de D eu s) “não estava preso ao seu corpo m as, sim , ele m esm o fazia uso dele, dc m o d o q u e não so m en te estava nele, co m o realm ente estava em todas as coisas e, em bora fosse externo ao universo, perm anecia som ente no seu Pai”.12 C ristológicos heréticos posteriores apelariam à teologia de Atanásio nessa exata questão e a igreja teria q u e deixar despercebido o fato de q u e o venerável bispo de A lexandria parecia desvincular a divindade de C risto da sua hum anidade. A segunda linha de raciocínio q u e A tanásio usou para d efen d er a plena divinda de de C risto era soteriológica. Para ele, toda a razão de ser da teologia era proteger o evangelho e o evangelho diz respeito à salvação. O âm ago do raciocínio atanasiano é que se o Filho de D eus não é “verdadeiram ente D e u s” n o m esm o sen tid o q u e o Pai, fica im possível a salvação co m o um a nova criação. S om ente D eus pode desfa zer o pecado e fazer com q u e u m a criatura co m p artilh e da natureza divina: Pois se, sendo criatura, ele [o Verboj se tornou homem, o homem teria per manecido exatamente o que era antes, não ligado a Deus; pois como uma obra teria se ligado ao Criador por uma obra? O u qual socorro teria vindo dc um semelhante para outro, quando tanto um deles como outro precisava de socorro? E como teria o Verbo poder, sc fosse uma criatura, para desfazer a sentença de Deus e remir o pecado, em contraste com o que está escrito nos Profetas, que essa é obra de Deus?13 N o fu n d o desse p en sam en to e arg u m e n to de Atanásio estava a idéia tradicional da salvação co m o deificação (theosis), em b o ra seu m o d o de raciocínio não d ep e n desse necessariam ente dela. Para ele, da m esm a m aneira que para Ireneu e O rígenes e o u tro s teólogos cristãos prim itivos, o problem a h u m a n o era a m o rte p o r causa do pecado e a solução era a deificação por m eio da união en tre a h u m an id ad e e a divindade na encarnação. Foi A tanásio q u e criou a expressão m ais fam osa dessa “m aravilhosa tro ca” da teoria da salvação: “Pois ele foi feito h o m em a fim de que nós fôssem os feitos D eus; e ele se m anifestou p o r m eio de u m corpo, a fim de q u e nós recebêssem os a idéia do Pai q u e não é visto; e ele su p o rto u a insolência dos h o m en s a fim de q ue nós herdássem os a im ortalidade”.14 Ireneu tin h a desenvolvido e explorado o conceito da salvação com o deificação (participação parcial da própria energia e vida im ortal de D eus) a fim de c o m p ro var, co ntra os gnósticos, a necessidade da hu m an id ad e de C risto. Atanásio explo ro u a idéia a fim dc co m provar a divindade de C risto , em debate co n tra os arianos
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e sem i-arianos. Iren eu , Atanásio e m u ito s teólogos cristãos, a partir de então, c o m partilham de um a idéia co m u m : a não ser q u e Jesu s C risto fosse tan to “verdadeira m en te D e u s” co m o “verdadeiram ente h o m e m ”, a salvação sim plesm ente não p o deria ocorrer. Fica claro q u e Atanásio tam bém exam inou p ro fu n d am en te as Escri turas a fim de refu tar as interpretações dos arianos e de o u tro s subordinacionistas c de co m p ro v ar com textos tirados dos escritos dos pró p rio s apóstolos q u e eles consideravam q u e Jesu s C risto era tan to divino co m o h u m an o . M as A tanásio tam bém sabia m u ito bem q u e as E scrituras podiam significar m uitas coisas. O argu m en to final devia voltar até à realidade d o p ró p rio evangelho. O evangelho diz respeito à salvação m ediante Jesus C risto e, se Jesu s C risto não fosse tanto D eus como h u m an o , não poderia u n ir D eus e os ho m en s. A salvação acabaria, então, sen d o reduzida a ter u m a vida m oral virtuosa (o m oralism o cristão), a o b ter algum co n h ecim en to secreto (gnosticism o) o u a m era m en te receber o perdão dos peca dos, m as ser deixado na m esm a condição caída e co rru p ta de antes. Agora, vejam os algum as citações d o g ran d e tex to clássico de A tanásio Da encarnação do Verbo a fim de ilustrar seu conceito da conexão en tre a salvação e a encarnação: Ele [o Logos] teve pena de nossa raça, compaixão de nossa enfermidade e condescendência com a nossa corrupção c, incapaz de conceber que a morte tivesse supremacia — para que a criatura não perecesse e a obra do Pai entre os homens não fosse em vão — , tomou para si um corpo, um corpo igual ao nosso. [...] E assim, assumindo dentre os corpos um de mesma natureza, porque todos estávamos sob o jugo da corrupção da morte, entregou-se à morte cm favor de todos c ofereceu-se ao Pai, fazendo isso, ademais, por suprema bondade, a fim de que, primeiramente, todos sendo considerados mortos nele, a lei que determinava a ruína dos homens pudesse ser desfeita (já que o poder dela tinha se esgotado totalmente no corpo do Senhor e não tinha mais provas contra os homens, seus semelhantes) c a fim de que, cm segundo lugar, embora os homens tivessem se voltado para a corrupção, ele lhes resgatasse a incorruptibilidade e os ressuscitasse da morte mediante a apropriação do seu corpo e a graça da Ressurreição, banindo deles a morte, assim como a palha é arrancada do fogo.'5 Por u m lado, essa bela descrição teológica da obra de C risto em nosso favor ilustra bem p or q ue Atanásio considerava tão essencial q u e o Salvador fosse divino, além de h u m an o . Se ele não fosse verdadeiram ente D eus, sua vida dificilm ente poderia b an ir a m o rte do nosso corpo m ortal. P or o u tro lado, a declaração tam bém ilustra um p roblem a na cristologia de Atanásio. D eixa sem resposta um a pergunta e nela se en co n tra o “legado p e rtu rb a d o r” que A tanásio deixou para os teólogos
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posteriores debaterem . A pergunta é: co m o Jesu s C risto podia realizar a obra da salvação se so m en te seu corpo, o u carne, era verdadeiram ente h u m a n o e o Logos divino — o Filho de D eus — perm anecia im utável e até m esm o fora do corpo d u ran te a vida e m o rte de Jesus? Era, pois, um a encarnação genuína? O F ilho de D eus realm en te ex p erim en to u o nascim ento, o so frim en to e a m orte? A resposta de Atanásio é q u e ele so m en te ex p erim en to u tais coisas, próprias da criatura, m e diante o co rp o h u m an o q u e assum iu. O Filho de D eus não ficou, de m o d o algum , d im in u íd o , im pedido ou sujeito à m udança o u ao so frim en to através da encarnação. “Q u e tipo de ‘encarnação’ é essa?”, alguém poderia p erg u n ta r com toda razão. N a m esm a época em q u e Atanásio era vivo, o u tro teólogo, cham ado A polinário, en sin o u u m co n ceito da pessoa de Jesu s C risto quase idêntico ao de Atanásio, conceito esse q u e foi declarado herético no C o n cílio dc C o n sta n tin o p la em 381. Parece q u e Atanásio, p o r m ais grandioso que fosse, era u m “apolinarista antes de A polinário”.16 A terceira linha de raciocínio que Atanásio adotou a fim de defender a plena e verdadeira divindade do Filho de D eus era relativa à revelação. Para Jesus C risto ser a verdadeira revelação de D eus, e não m eram ente um a im agem ou profeta, confor m e tantos já tinham sido, precisava ser D eus. O raciocínio de Atanásio, no caso, é que som ente D eus pode realm ente revelar D eus: “Se o Filho não é D eus da m esm a form a que o Pai é D eus, não pode revelar o Pai de m odo verdadeiro e g en u ín o ”.17 M uitos eventos e pessoas já tinham revelado m ensagens a respeito dc D eus e da parte dele, mas Jesus C risto é a auto-revelação de D eus e não m eram ente o u tro m ensagei ro. Até os arianos e sem i-arianos concordavam com isso. Atanásio baseou seu argu m en to nesse d en o m in ador com um . Se Jesus C risto não é D eus na carne hum ana, D eus não é verdadeiram ente revelado nele: “Porque D eus já não deseja, com o dese java antigam ente, ser conhecido por algum a im agem e som bra da sabedoria que se ja m das criaturas, mas fez com que a verdadeira c própria sabedoria se revestisse de carne, to rn ando-se h o m em , e sofresse a m orte na cruz; para que, a partir de então, m ediante a fé nele, todos os que cressem obtivessem a salvação”.18 Portanto, segundo o argum ento de Atanásio, se o Filho de D eus q u e veio a ser Jesus C risto não fosse realm ente D eus da m esm a form a que o Pai é D eus, nós, hum anos, não seríam os salvos por ele e pela nossa ligação a ele e ele não nos revelaria verdadeiram ente o Pai. Além disso, o Pai sofreria um a m udança ao gerar u m filho, m as a m udança é im própria da natureza divina. Tudo isso serve para fundam entar a acusação de que o arianism o e o sem i-arianism o constituem u m “o u tro evangelho” que não é, de m o d o algum , o cristianism o autêntico. O cristianism o baseia-se em Jesus C risto com o a genuína encarnação de D eus na natureza hum ana. N as suas reflexões trinitárias, Atanásio agarrou-se a u m vestígio de su b o rd in acionism o ao afirm ar a “m o n arq u ia do Pai”. C o m isso revelou verdadeira influência
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de O rígenes. O Filho de D eus é gerado pelo Pai, em b o ra não seja criado n o tem po, afirm ou Atanásio. S o m ente o Pai é com p letam en te não-gerado e sem n e n h u m a origem ou fonte em o u tro ser. M as a condição de gerado, aplicada ao Filho, é um a geração etern a da parte do Pai, assim co m o a radiância do sol. Para Atanásio, p o r tanto, o Pai era o p rin cípio da unidade de toda a T rindade. Ele era a fonte e origem de toda a divindade e tan to o F ilho co m o o E spírito Santo fluíam dele e a ele deviam sua existência c condição divinas. O Pai em si não devia nada a ninguém . Atanásio, no en tan to , não considerava essa m o n arq u ia d o Pai u m tipo de concessão ao arianism o, n em seq u er adm itia q u e ela fosse cham ada algum subordinacionism o. T udo q u an to o Pai tin ha de atributo, pertencia tam bém ao Filho, p o r essência. A única diferença é q u e a essência divina d o Pai não seria causada, m as a d o F ilho e do E spírito seriam etern am en te provindas d o Pai e, p o rtan to , em certo sentido, causadas pelo Pai m ediante u m processo de “geração e te rn a ”. Deve ficar claro, p o rtan to , p o r que Atanásio se recusava term in an tem e n te acei tar a term inologia do relacionam ento d o F ilho com o Pai. “O q u e está em jo g o não é apenas u m a teoria teológica, m as a salvação das pessoas”.1‘' Homoiousios significava que Jesu s C risto não era verdadeiram ente D eus e, nesse caso, ao confessar o term o co m o o m o d o co rreto de expressar o relacionam ento d o F ilho com o Pai, estaría m os rejeitando a salvação e en sin an d o u m falso evangelho. N o en tan to , a fo rm u la ção plena da d o u trin a da T rindade, in clu in d o o papel d o E spírito Santo, a natureza das três pessoas e sua unidade na D ivindade, não foi feita por Atanásio. Ele lançou o alicerce e o u tro s — a saber, os pais capadócios — desenvolveram -na.
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P a r a todos os efeitos, a grande controvérsia trinitária em to rn o das heresias ariana e sa b e lia n a q u e d u r o u b o a p a r te d o s é c u lo iv t e r m i n o u n o C o n c ílio d e C o n stan tin o p la cm 381. Este se to rn o u o segundo concílio ec u m ê n ico da igreja cristã e ficou m arcado p o r ter dado os retoques finais no Credo de Nicéia, ter anatem a tizado (condenado e excluído) várias heresias e ter estabelecido a d o u trin a form al da T rindade elaborada p o r Atanásio e seus am igos, os pais capadócios, com o o dogm a orto d o x o e católico obrigatório para todos os clérigos da G ran d e Igreja. D esse concílio em diante, negar a d o u trin a ortodoxa da T rindade co n fo rm e d efin i da no Credo de Nicéia passou a ser considerado por todos os ram os principais do cristianism o (inclusive a m aioria dos protestantes) com o heresia e, às vezes, apostasia (a perda da condição dc cristão ou a perda d o estado de graça). U m engano c o m u m da era m o d ern a a respeito d o processo pelo qual a d o u trin a da Trindade foi definida e a respeito da fórm ula da d o u trin a em si é q u e tu d o isso representa u m tipo de especulação teórica de teólogos profissionais q u e não ti nh am nada m elh o r para fazer e que sim plesm ente queriam desconsiderar o m isté rio e racionalizar a crença cristã. N ada poderia estar m ais longe da verdade. N a realidade, o cristão co m u m im portava-se p ro fu n d am en te com essas questões e co n stan tem en te envolvia-se nos debates e discussões a respeito do q u e era teologi cam ente correto. U m dos pais capadócios, G regório de N issa, escreveu que, em C o n stan tin o p la, na época do segundo concílio ecum ênico, “se a gente p ed ir um trocado, alguém irá filosofar sobre o G erado e o N ão-gerado. Se p erg u n tar o preço do pão, dirão: ‘O Pai é m aior e o Filho é in ferio r’. Se p erguntar: ‘O ban h o está p ro n to ?’, dirão: ‘O Filho foi criado do nada’”.1 O s bispos e teólogos da igreja prim itiva estavam p ro fu n d am en te preocupados com o consenso e o co n sen tim en to d o fiel povo de D eus. Boa parte da teologia era fundada em serm ões e levava em conta a reação d o povo. Ao m esm o tem po, é claro, teólogos treinados na filosofia e na interpretação bíblica realizavam conferências e
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se correspondiam em u m nível de debate m ais filosófico. M as estavam preocupa dos com as crenças, adoração e vida cristã dos leigos, m as os leigos interessados nos debates dos teólogos. A situação m u d o u co m p letam en te 110 cristianism o m o d er no, para seu em p o b re cim en to c prejuízo. A im pressão de q ue os teólogos do século iv, co m o Atanásio c os pais capadócios, tentavam racionalizar os m istérios de D eus, tam b ém é totalm ente errada. N a rea lidade, tentavam p ro teg er o evangelho e o seu D eus, da falsa racionalização. O em prego de linguagem extrabíblica e u m p o u co filosófica do tipo de hotnoousios não m uda em nada esse fato. Para eles, honwousios e o u tro s term o s sem elhantes são expressões de m istério, e não racionalizações q u e m enosprezam do m istério da D ivindade. E ram os arianos, sabelianos e o u tro s hereges q u e tentavam to rn ar a fé cristã sim ples dem ais e inteligível para o raciocínio h u m an o , ao rejeitarem o m isté rio de D eu s com o u m a só substância (existência) e três subsistências (pessoas) distintas. Exatam ente co m o isso acontece não pode ser co m p letam en te apreendido pela m en te h u m an a e, assim , as heresias red u ziram o m istério a um a coisa co rri queira e com preensível. Ao fazerem isso, d estitu íram -n o de sua m ajestade e glória. O s defensores ortodoxos da d o u trin a da T rindade sabiam que estavam na presença de u m m istério q u an d o exam inaram o D eus trê s-e m -u m e a igualdade de Jesus C risto com o Pai. Se, p o r vezes, usaram fórm ulas e term inologia com plexas e de difícil e n te n d im e n to foi apenas para preservar o m istério.
A contribuição dos capadócios O C o n cílio de C o n stan tin o p la, com o apoio total da d o u trin a nicena da T rindade e a condenação das heresias irm ãs, p o rém diferentes, do arianism o e do sabelianism o, não aconteceria sem a obra dos três grandes pais capadócios: Basílio de Cesaréia, G regório N azian zen o e G regório de N issa. Eles são conhecidos p o r pais capadócios po rq u e vieram da região da C apadócia na Ásia M en o r central (Turquia) e ali exer ceram seus cargos eclesiásticos. Essa região foi u m a fortaleza do cristianism o desde o início do cristianism o gentílico. Todos eram am igos íntim os de A tanásio e d esen volveram seu p en sam en to teológico. N a realidade, co n fo rm e nota certo teólogo de história: “Sem ele, a obra dos capadócios seria im possível. Sem os capadócios, sua obra não teria chegado à realização final”.2 Q u a n d o A tanásio m o rre u em 373, u m im p era d o r ariano ocupava o tro n o e várias form as de arian ism o — algum as m oderadas e o u tras extrem adas — goza vam de in flu ên cia e n tre os bispos. Pelo m en o s doze credos d iferen tes q u e expres savam vários tipos de arianism o foram escritos e p ro m u lg ad o s desde o C o n cílio de N icéia, desde q u an d o C o n sta n tin o deixou de executá-lo. N e n h u m dos credos rivais prevaleceu m as, sem os arg u m en to s e explicações dos pais capadócios, é possível q ue, n o fim , u m cred o ariano o u sem i-arian o fosse aceito pela m aioria
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dos bispos e p o r u m im p era d o r p o d ero so c o cristian ism o fosse u m a religião diferen te do q u e atu alm en te é. A obra dos três grandes pais capadócios, pois, “consistiu em esclarecer, d efin ir e defen d er a d o u trin a trinitária”3 c em “sistem atizar a fé da igreja e fazer dela um a exposição com a m aior clareza lógica possível”4 de m o d o q u e as heresias pudessem ser desm ascaradas e a igreja inteira pudesse c o m p re en d er e aceitar a fé ortodoxa e se u n ir cm to rn o dela. U m a form a especialm ente violenta e agressiva de arianism o, cham ada e u n o m ism o (segundo o n o m e do principal p ro p o n en te, E u n ô m io ) g an h o u terren o a partir de m eados d o século iv. A despeito dos esforços heróicos de A tanásio, e de suas pro fu n d as explicações teológicas, o eu n o m ism o afirm ou, com certo sucesso de persuasão, q u e o trin itarism o plen o negava a unidade c im utabilidade de D eus e era u m a form a disfarçada dc paganism o — os m esm os arg u m en to s das T estem u nhas de Jeová atualm ente. O sabelianism o p erm aneceu vivo e ativo d u ra n te boa parte dos tem pos dos capadócios (década de 370) e m u ito s bispos e o u tro s cristãos não conseguiam d istin g u ir o m odalism o d o trin itarism o niceno ortodoxo. A tarefa e a realização dos capadócios foi explicar a T rindade de u m a m aneira que a d istin guia co m p letam en te dessas heresias e preservava o m istério de sua essência, sem deixá-la sim p lesm en te com o u m a contradição. O u tra m aneira dc exprim ir a tarefa que tin h am em co m u m é q u e “a teologia capadócia é um a tentativa de in terp retar o term o central hotnootisios insistindo na plena divindade do Filho e na sua eterna distinção do Pai”.5 Seus esforços nesse sen tid o divergiam em detalhes, m as convergiam na questão essencial e central: D eus é um a só ousia e três hypostases. O significado dessa fórm ula e das duas pala vras gregas será revelado neste capítulo. Elas to rn aram -se a essência da crença trinitária da G ran d e Igreja a p artir o C o n cílio de C onstan tin o p la.
Basílio de Cesaréia Q u e m eram esses pais capadócios? Basílio nasceu p o r volta de 330 — apenas cinco anos depois do C o n cílio de N icéia — , n um a fam ília cristã abastada da C apadócia. Foi educado prin cip alm ente p o r sua avó piedosa, M acrina, cujo n o m e tam b ém foi dado à sua irm ã in flu ente. Essa irm ã de Basílio, M acrina, ad o to u , desde jo v em , a vida m onástica e ex o rtou Basílio e seu irm ão m ais jo v em , G regório, a to m ar os votos m onásticos. Tanto Basílio co m o G regório atribuíram à irm ã m u ito crédito pela influência espiritual q u e ela tinha sobre eles. A ntes de en trar no m osteiro, po rém , Basílio freq ü en to u a m elh o r escola de cul tura e filosofia gregas que existia n o m u n d o , em Atenas. Ali co n heceu e to rn o u -se etern o am igo de G regório N azianzeno, q u e era da m esm a idade q u e ele e tam bém vinha de um a fam ília abastada da C apadócia. C o m eles, na academ ia platônica,
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havia u m fu tu ro im perador, Ju lian o , q u e virou as costas ao cristianism o c, d u ran te seu breve reinado (361-363) te n to u reco n d u zir o im pério ao paganism o. Basílio foi batizado e ordenado em 357 e, pouco depois, com eçou a visitar os m onges e freiras erem itas nas cavernas c pequenos m osteiros do erm o da Capadócia. Influenciado pela irm ã, renunciou à riqueza da família e à herança a que tinha direito com o p rim o g ên ito e fundou o próprio m osteiro. A vida de ascetism o extrem o co n tribuiu tanto para sua fraca saúde quanto para sua reputação pela grandeza espiritual. Em 370, o grande bispo E usébio de C esaréia (na Capadócia) m o rreu e Basílio foi nom eado seu sucessor. Cesaréia era um centro im portante da vida eclesiástica do im pério oriental, de m odo que Basílio se to rn o u arcebispo de várias sés m enores. U m a de suas principais preocupações co m o bispo era frustrar as influências do arianism o — especialm ente sua form a eunom ianista — e do sabelianism o. Antes m esm o de se to rn ar arcebispo, Basílio escreveu um a obra im portante de crítica ao arianism o, em cinco volum es, intitulada Contra Eunôniio. Além dos esforços teológi cos em favor da ortodoxia nicena, Basílio conquistou um a grande reputação de ad m inistrador eclesiástico, líder m onástico e conselheiro espiritual capaz. Viajou gran des distâncias no im pério do oriente e escreveu num erosas epístolas a bispos, im pe radores e presbíteros de igrejas, tentando persuadi-los, ou até m esm o coagi-los, a rejeitarem a heresia e aceitarem a ortodoxia conform e ele a entendia. Trabalhou in cansavelm ente a fim de levar a efeito u m novo concílio ecum ênico que ratificasse os atos de N icéia e colocasse u m po n to final na heresia ariana e nas rixas q ue ela causara. C o m esse propósito, n o m eo u bispos de sua confiança para ajudarem -no. D ois do convocados para esse serviço foram seu am igo, G regório N azianzeno, c seu próprio irm ão caçula, G regório de Nissa. N e n h u m deles se distinguiu co m o u m grande bispo da m esm a form a que Basílio, mas am bos ajudaram a influenciar a cristandade em direção à adoção final e form al da ortodoxia trinitária. U m a das obras teológicas mais im portantes de Basílio é Do Espírito Santo, que es creveu p or volta de 375. Foi o prim eiro tratado inteiro sobre a pessoa do Espírito Santo escrito por um líder ou teólogo cristão e influenciou grandem ente a posterior revisão do Credo de Nicéia para incluir mais a respeito da terceira pessoa da Trindade. Basílio estava preocupado porque, em toda a controvérsia a respeito do relaciona m en to d o Filho de D eus com o Pai, o Espírito Santo foi desconsiderado, ou m esm o esquecido, pelos teólogos e bispos envolvidos nos debates a respeito da Trindade. Além disso, certos bispos adotaram um ensino a respeito do Espírito Santo cham ado pn eum atom aquism o que negava ao Espírito a igualdade com o Pai e o Filho. Era um tipo de subordinacionism o do Espírito e resultou n u m a “d uidade”6 em vez de um a Trindade, para os que o adotaram . Eles adoravam o Pai e o Filho, m as rejeitavam a adoração do Espírito com o D eus. Para eles, o Espírito Santo era sim plesm ente um a força criada, ou po d er do D eus Pai, enviado ao m u n d o p o r m eio do Filho. Para
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resp o n d er aos pn eu m atôm acos, Basílio estu d o u a fundo as Escrituras e a adoração para estabelecer a terceira pessoa distinta (ou hypostasis) da D ivindade com o “verda deiram ente D eu s” e tendo igualdade com o Pai c o Filho. Por causa do labor em favor do E spírito Santo, Basílio passou a ser conhecido na igreja p or “teólogo d o E spírito S an to ” e p o r causa do teor de suas obras em vida, veio a ser cham ado, na história eclesiástica, de Basílio, o G rande. M o rre u em 377 ou 379. D a m esm a form a q u e Atanásio, no en tan to , não viveu para ver o fru to de seus esforços n o grande C o n cílio de C o n sta n tin o p la em 381. M u ito provavelm en te p rev iu -o q u an d o o im perador Teodósio sucedeu a Valente. A inda q u e Teodósio não fosse n e n h u m m odelo da v irtu d e cristã, favorecia ab ertam ente a ortodoxia nicena e se o p u n h a ao arianism o.
Gregório Nazianzeno G regório N azian zen o não era parente de Basílio, m as tin h a a m esm a idade e era seu m elh o r am igo. N asceu em 329 ou 330 e m o rre u b em depois de Basílio, por volta de 391. Assim com o os o utros am igos, Basílio e G regório de N issa, N azianzeno cresceu n u m a família cristã próspera da C apadócia. Seu pai era bispo de N azianzo e sua m ãe, N o n a , in flu en cio u -o na sua conversão ao cristianism o. D epois dos es tu d o s em A tenas com Basílio, G regório foi o rd en ad o ao sacerdócio em 364. A desp eito da in sistên cia de B asílio e até d e algum as tentativas de m an ip u lá-lo , G regório resistiu ao apelo d o m onasticism o — possivelm ente p o r causa de algum a atração rom ântica, em bora não se saiba se chegou a casar-se. N aq u ela época e lugar da história da igreja, os sacerdotes e bispos podiam casar-se; os m onges, não. Essa co n tin u a sen d o a regra n o cristianism o o rtodoxo oriental. N o fim , Basílio co nseguiu persuadir G regório a aceitar o cargo de bispo na pequena sé de Sásima, na C apadócia, sob suas ordens. Esse relacionam ento quase arru in o u a am izade e n tre eles, p o rq u e G regório não gostava dos trabalhos ad m i nistrativos exigidos de u m bispo e ansiava pela vida m ais singela de sacerdote de um a paróquia local e p o r estu d ar e escrever. Era co m p letam en te ascético, em b o ra nu n ca tivesse to m ad o os votos m onásticos e quase tivesse m o rrid o p o r negligenci ar as necessidades do corpo de alim ento, exercícios e repouso. A pesar de tudo, G regório N a zian zen o co n q u isto u a reputação de grande defen so r e explanador da ortodoxia trinitária co ntra todos os tipos de heresias, p o r causa dc escritos com o Discursos teológicos. Esses foram pregados pela prim eira vez em form a de serm ão na Igreja da R essurreição em C o n stan tin o p la, depois de o novo im perador, Teodósio, enviar G reg ó rio para lá em 380. S egundo u m historiador, os serm ões co n stitu íam se em “u m resu m o b rilh an te à congregação na cidade da ortodoxia trinitária q u e estava com eçan d o a ser aceita. Essas declarações foram o auge da realização de G reg ó rio ”.7 O s serm ões, e cinco livros baseados neles, argum entavam contra os
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arianos e abriram cam inho para o C o n cílio de C o n stan tin o p la, q u e estava para acontecer. Q u a n d o o im p era d o r T eodósio con v o co u fo rm a lm e n te o seg u n d o concílio e c u m ên ico de C o n stan tin o p la em 381, n o m eo u G regório N azian zen o o patriarca da cidade — um a das posições m ais altas de toda a igreja e praticam ente igual, em honra, ao bispo dc R om a — e pediu q u e presidisse o p ró p rio concílio. Essas h o n rarias im ediatam ente lançaram G regório, q u e era relativam ente acanhado e h u m il de, a um a posição de destaque q u e não desejava e com a qual não soube lidar. D epois de um a breve tentativa de servir da m e lh o r m aneira possível, G regório pediu dem issão dos dois cargos e retiro u -se para sua cidade natal, N azianzo, onde perm an eceu na obscuridade até a m orte. N ão se conhece a causa de sua aposenta doria precoce e inesperada, m as provavelm ente teve q u e ver com as grandes rixas políticas p o r causa da sua nom eação para o patriarcado de C o n sta n tin o p la e para a presidência d o concílio ecum ênico. E possível q u e sua vida tenha sido am eaçada. E certo que bispos arianos e o u tro s op o n en tes da ortodoxia acusaram -no falsam ente de atos ilegais e dc im propriedades. U m eclesiástico m en o s sensível poderia ter resistido p acien tem en te. G regório en co lh eu -se sob as críticas até desvanecer. Por causa da obra Discursos teológicos e de suas co n trib u içõ es ao C o n cílio dc C o n stan tin o p la, G reg ório N azian zen o to rn o u -se co n h ecid o na história da igreja sim p lesm en te p o r “O Teólogo”. C e rto com entarista refere-se a esse título, co m e n tando sobre os serm ões q u e G regório pregou: “Em poucas páginas e poucas horas, G regório resu m iu e en c erro u a controvérsia de u m século in teiro ”.8 M esm o assim, ele não é considerado o m aior n em o m ais brilh an te dos capadócios. Tam pouco Basílio. Essa reputação é atribuída ao m ais jo v e m e m enos culto dos três am igos: o irm ão de Basílio, G reg ório de N issa.
Gregório de Nissa G regório de N issa foi o terceiro filho dos pais de Basílio e seu irm ão caçula. N ã o se sabe o ano exato de seu nascim ento e n em de sua m orte. Provavelm ente, nascem em 340 e m o rre u em 393. Ao q u e parece, não recebeu os benefícios de um a educa ção grandiosa co m o a q u e Basílio e o am igo co m u m G regório N a zian zen o d esfru taram em Atenas. Ju lian o , colega de escola desses dois, pro ib iu os cristãos de rece berem a m elh o r educação pagã possível d u ra n te seu breve reinado co m o im pera dor, q u e provavelm ente coincidiu com a ju v e n tu d e de G regório de N issa. Por isso, foi en sinado em casa p o r Basílio e p o r M acrina, irm ã deles. N o en tan to “on d e q u er que tenha recebido sua educação, dificilm ente ele foi in ferio r aos dos o u tro s dois [Basílio e G reg ó rio N azianzeno] na habilidade retórica adm irada naquele período, e sua capacidade filosófica era superior à do irm ão e d o am igo”.9 D e certa m aneira. G regório conseguiu acum ular co n h ecim en to s e e n ten d im en to s astronôm icos da
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filosofia grega e to rn o u -se extrem am en te articulado e agudo nas habilidade de ra ciocinar e se com unicar. A lguns estudiosos diriam q u e sua genialidade rivalizou apenas com a de O ríg cncs em toda a história eclesiástica prim itiva. G regório tinha um a forte inclinação m ística e sonhos, visões e experiências es pirituais q u e transcendiam a explicação intelectual. U m a dessas visões ou sonhos levou-o à conversão e batism o em tenra idade; depois disso, decidiu retirar-se da vida ativa do m u n d o e seguir um a vida ascética e m onástica com M acrina e Basílio. G regório dedicou boa parte de seu tem po à leitura e ao estu d o das Escrituras, bem com o dos escritos dos platonistas e neoplatonistas — filósofos pagãos m ísticos cujas crenças pareciam m u ito com patíveis com o cristianism o na opinião de m u ito s pais da igreja nos séculos iv e v. G regório absorveu a m ensagem deles a respeito da unidade, espiritualidade e transcendência absolutas de D eus e p ro c u ro u co m binar o m elh o r dela com reflexões cristãs sobre a T rindade e os atributos de D eus. E m 372, Basílio tin ha precedência sobre seu irm ão m ais jo v e m para se to rn ar bispo da problem ática sé de N issa, na C apadócia. Essa é a origem da sua identifica ção com o “G reg ó rio de N issa” na história eclesiástica. Sua vida de bispo foi m u ito infeliz e ele foi co n stan te m e n te envolvido em conflitos e controvérsias, sofrendo um a série de perseguições p o r sua perseverança ao d efen d er a ortodoxia trinitária. Q u a n d o Basílio m o rre u em 379, G regório assum iu seu m an to teológico de líder vivo da causa antiariana e atraiu a atenção do im perador Teodósio, q u e adm irava m u ito a inclinação m ística de G regório, bem co m o seu pen sam en to teológico. Ele participou do C o n cílio de C on stan tin o p la, fez o discurso inaugural e in flu en cio u a conclusão final em favor da ortodoxia trinitária. Q u a n d o Placídia, esposa do im p e rador, m o rreu , G reg ó rio de N issa foi convidado a fazer a oração fúnebre. N ã o se conhece com detalhes os anos finais da sua vida. O s escritos teológicos de G regório de N issa fazem m ais uso da filosofia grega e de form a m ais profunda do que o fazem os outros dois pais capadócios. Eles dem o n s tram um pouco do espírito especulativo de O rígenes, m as sem os devaneios finais em assuntos digressivos, com o a preexistência das almas e a apokatastasis (reconcilia ção universal). Assim com o O rígenes, G regório considerava D eus totalm ente in com preensível e inefável p o r essência — estando além da com preensão hum ana, a não ser pela experiência mística. Ao m esm o tem po, porem , G regório, assim com o O rígenes, não hesitou cm aproveitar a metafísica grega (“despojando os egípcios”) para ajudar a explicar a unidade da existência de D eus em harm onia com a trindade das pessoas. Para ele, a “natureza” (ousia) era com o a “form a” platônica, um a p ro p o sição universal genuína que une m uitas coisas diferentes. A natureza o u essência de D eus, portanto, era sem elhante à form a da natureza hum ana, e a form a da natureza hum ana, sem elhante à substância do próprio D eus. M uitos indivíduos hum anos têm qualidades distintas, em bora com partilhem da coisa m ais im portante que têm
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em com um : um a natureza, ou essência, universal. S endo assim, o Pai, o Filho e o Espírito Santo têm um a ousia em com um , em bora sejam pessoas distintas, m as não separadas. A base para a explicação de N issa contra os hereges encontra-se na filoso fia platônica, com a ênfase para a realidade das proposições universais. G regório de N issa escreveu m uitos livros e cartas c realizou m uitos serm ões e orações, m as três escritos seus foram especialm ente im portantes para o resultado da grande controvérsia trinitária: Da santa Trindade, não três deuses e Contra Eunômio. Em todos os escritos, a preocupação foi a m esm a de Basílio e de N azianzeno: fornecer um a base sólida e um a explicação inteligível para o m istério da Trindade que acabas se totalm ente com as objeções de seus inim igos e m antivesse o m istério de sua essên cia. Isso ele fez, com sucesso sem paralelos.
A teologia de Basílio, o Grande T udo q u an to acham os de notável na teologia de u m pai capadócio tem a probabili dade de tam b ém se rep etir nos dem ais. Fica claro q u e cooperavam m u ito en tre si e aproveitavam a m esm a fonte de inspiração: as Escrituras, Platão, O ríg en es e A taná sio. Suas m ensagens e seus propósitos eram u m só: estabelecer definitivam ente o grande m istério da trin dade e un id ad e de D eus na ortodoxia cristã. M ais especifi cam ente, a m issão e alvo q u e tin h am em co m u m era d e stru ir o arianism o e o sabelianism o c estabelecer a fé ortodoxa de que D eus é um a essência (ousia) única, infinita e incom preensível, com partilhada igualm ente p o r três identidades ou pes soas (liypostases) distintas m as inseparáveis. N o in tu ito de alcançar essa m eta co m u m , os três capadócios traçaram ênfases um pouco distintas e, p o r vezes, saíram p o r tangentes que afinal se revelaram im portantes. N o sso m éto d o será considerar u m dos pais de cada vez, na o rd e m em q u e se apresentaram , descrever suas p rin ci pais idéias teológicas e, ao m esm o tem po, identificar sem elhanças e diferenças em suas idéias. N a conclusão, considerarem os a realização co n ju n ta dos três e o gran de C o n cílio de C o n stan tin o p la q u e a coroou. O s principais o p o n e n te s dc B asílio de C esaréia foram os e u n o m ia n o s e os pn eu m atô m aco s, dois grupos dc subordinacionistas radicais. O s eu n o m ian o s su bordinavam o Filho de D eu s ao Pai c argum entavam que a própria essência do Pai é a condição de “n ão -g erad o ”. Por ser gerado, o Filho não poderia ser equiparado ao Pai e n e m c o n sid e ra d o D eu s. O s e u n o m ia n o s e ra m arian o s radicais. O s pneum atôm acos (tam bém cham ados m acedonianos) subordinavam o E spírito San to ao Pai e ao Filho e argum entavam q u e o E spírito é u m ser criado, u m a força de D eus enviada pelo Pai por m eio d o Filho, Jesu s C risto. D ife ren tem en te dos dois tipos de subo rd in acio n ism o, Basílio tentava dem onstrar, com base nas Escrituras e na razão, q u e D eu s pode ser, e de fato é, u m ún ico ser u n o , e não três deuses, etern am en te interligado a três pessoas distintas.
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A principal asseveração dos eu n o m ian o s contra a T rindade era q u e a essência de D eus é não-gerada e p o r isso o Filho não poderia ser homoousios com o Pai p o rq u e ele era gerado. E m Contra Eunômio, Basílio de C esaréia resp o n d eu com q u atro arg u m en to s principais. Em p rim eiro lugar, desprezou a alegação de E u n ô m io no sen tid o de este ter captado a própria essência de D eus. Basílio declarou q u e a es sência de D eu s é incom preensível, p o rq u e D eus é santo e seus cam in h o s não são os nossos cam inhos e os seus pensam entos não são os nossos pensam entos. N esse po n to , Basílio baseou-se tan to das E scrituras com o na filosofia grega, pois esta ú ltim a enfatizava a incapacidade da m en te h u m an a de co n h ecer a divindade com o ela conhece a si m esm a. Basílio acusou os eu n o m ian o s (e, p o r extensão, todos os arianos) de arrogância, o u seja, de o rg u lh o das próprias capacidades. Alegar c o n h e cer a essência de D eu s co m o não-gerado é a ep íto m e da soberba pecam inosa, assim arg u m e n to u Basílio. P odem os co n h ecer o ser de D eus e suas propriedades, segun do a revelação q u e ele fez, m as sua essência infinita e eterna está além da nossa com p reen são finita. Esse conceito da essência incom preensível de D e u s en c o n trase tam bém nos dois G regórios e to rn o u -se u m axiom a teológico im p o rtan te para o pen sam en to cristão oriental. O seg u n d o arg u m en to que Basílio ap resen to u contra E u n ô m io foi q u e este negou a analogia sub o rd inacionista en tre o gerar divino e o gerar h u m an o . Isto é, o fato de que o gerar h u m a n o sem pre existe 110 tem p o e 110 espaço e sem pre su b e n ten d e u m tipo de inferioridade do gerado diante de q u em o gerou (do filho em relação ao pai) não é m otivo para co n clu ir q u e D eus gerar u m F ilho im plica neces sariam ente inferioridade d o Filho em relação ao Pai. Essa declaração leva d iretam en te à terceira linha de argum entação de Basílio, q u e era refu tar a alegação de E u n ô m io de q u e a “qualidade de n ão -g erad o ” sem pre acom panha a “e tern id ad e” de tal m aneira q u e ser gerado equivale a ser tem poral, e não eterno. Basílio não p o u p o u esforços para d e m o n strar logicam ente q u e um a geração (o processo de ser gerado) pode ser eterna, e para isso apelou para analogi as co m o os raios solares — um a das analogias prediletas dos pais trinitários da igreja. O s raios d o sol são tão antigos q u an to o p ró p rio sol. N u n c a houve um tem p o em q u e o sol tivesse existido sem seus raios (radiância). S em pre o sol gerou a sua radiância. Assim tam bém o Pai gera etern am en te o Filho de D eus, e o Filho de D eu s é etern am en te gerado pelo Pai. Basílio apelou expressam ente a essa analogia n u m a carta ao seu irm ão G regório, na qual explicou a u n id ad e-em -d istin ção en tre o Pai e o Filho, m ediante a figura d o sol e do brilho: Pois assim como a claridade é emitida pela chama, e não vem depois dela, mas no exato momento em que ela reluz e a luz brilha com intensidade,
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tambéni o apóstolo quer que consideremos que o Filho obteve existência do Pai, sem que o Unigénito fosse separado da existência do Pai por qualquer extensão interveniente 110 espaço, mas que o causado fosse concebido junto com a causa.10 F inalm ente, Basílio arg u m e n to u que se o F ilho de D eus é m era m en te um a criatura, co n fo rm e alegava E u n ô m io , a hu m an id ad e co n tin u a destituída de um a revelação gen u ín a da divindade. N o caso de u m ser pessoal, co m o D eus, som ente ele p ró p rio pode se revelar. Se Jesu s C risto não c D eus, então D eus ainda não se auto-revelou. Se Jesu s C risto é m eram en te u m a criatura, p o r m ais exaltado que seja, a h u m an id ad e ainda não presenciou a verdadeira revelação da face de D eus. A pesar disso, E u n ô m io e todos os subordinacionistas cristãos declaravam q u e J e sus C risto é o Salvador do m u n d o e a revelação genuína de D eus. Basílio d e m o n s tro u o absu rd o dessa alegação, pois se Jesu s C risto nada m ais era do q u e um a grandiosa criatura (sem elhante a u m arcanjo), estava m ais para u m profeta d o que para o D eu s auto-revelado para nós. A principal obra de Basílio contra os p n eu m atôm acos, ou m acedonianos, que negavam a divindade e a personalidade do E spírito Santo, é Do Espírito Santo. Basí lio explicou a heresia deles: “N ã o é possível, asseveram , que o E spírito Santo seja considerado da m esm a form a que o Pai e o Filho, devido à diferença de sua n a tu reza e à inferioridade de sua d ignidade”.11 C o n tra esse arg u m en to Basílio apelou às Escrituras, especialm ente à o rd em dc C risto sobre a prática d o batism o, 110 fim do Evangelho seg u n d o M ateus: “Se [...] o E spírito está associado ao Pai e ao Filho, e nin g u ém pode h o n estam en te afirm ar o contrário, então não po d em nos culpar p or seguirm os as palavras das E scrituras”.12 A pelou, tam b ém , a exem plos em Atos dos A póstolos o n d e é declarado q u e so m en te o E spírito Santo co nhece as coisas de D eus (At 5.9). Ressaltou que até m esm o os p n eu m atôm acos adoravam o Espírito Santo nas suas liturgias divinas ju n to com o Pai e o Filho, o q u e seria blasfêm ia se o E spírito Santo não fosse D eus. D e m o d o exclusivo, Basílio apelou à experiência cristã da salvação e arg u m e n to u co n tra os subordinacionistas do E spírito que, co m o o E spírito Santo opera a nossa salvação, ele só pode ser D eus, e nada m enos. S om ente D eus pode salvar: Pelo Espírito Santo vem a restauração ao paraíso, a ascensão ao reino do céu, a volta à adoção como filhos, a liberdade de chamar Deus de Pai, sermos feitos participantes da graça de Cristo, sermos chamados filhos da luz, com partilharmos da glória eterna e, ein poucas palavras, sermos levados a um estado de toda a “plenitude da bênção”, tanto neste m undo como no m undo do porvir.13
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Em todas as coisas, pois, o E spírito Santo não é passível de ser separado d o Pai e do Filho. E o E spírito q u em aplica à nossa vida a salvação de D eus. C o m o se pode co ncebê-lo co m o um a criatura e não co m o o p ró p rio D eus? N a tu ra lm e n te , Basílio estava m ais d o q ue disposto a reconhecer certo tipo de su b o rd in acio n ism o d o Es pírito diante do Pai, pois o Pai é a fonte eterna de toda a divindade, sendo dele que o Filho é gerado e que o E spírito procede. A analogia fala d o sol, da sua luz e do seu calor. A luz e o calor têm sua origem no sol, m as não são inferiores ou “posterio res” a ele. Assim tam b ém o F ilho de D eus c o E spírito de D eus são partes iguais e eternas de D eus e co m partilham de sua essência e glória, em b o ra estejam su b o rd i nados (q u an to à posição, m as não q u an to à essência) a D eus Pai. Basílio considerava apóstatas os p n eu m atôm acos p orque rejeitavam a divinda de do E spírito, da m esm a form a q u e considerava apóstatas os eu n o m ian o s e o u tro s arianos p o rq u e rejeitavam a divindade do F ilho de D eus. Em Do Espírito Santo declarou guerra teológica contra os q u e de algum a form a negavam o Espírito: “N ós, p o rém , não serem os relapsos na defesa da verdade. N ão abandonarem os covarde m en te a causa. O S en h o r nos en treg o u com o d o u trin a necessária e salvífica que o E spírito Santo deve ser colocado na m esm a categoria com o Pai”.14 Por q u e a d ivin dade do E spírito Santo era tão im p o rtan te para Basílio? M u ito s cristãos da atuali dade recusam -se a aceitar o E spírito Santo co m o u m a pessoa distinta do D eus Pai e do Filho ou com o sem elhante a eles. A esses cristãos, bem co m o aos seus in im i gos na antigüidade, Basílio diria q u e negar a divindade do E spírito é lançar em dúvida a divindade do Pai e do Filho. N as Escrituras, bem co m o na adoração e na experiência cristã pessoal, o E spírito Santo está sem pre associado a eles, co m p arti lhando da m esm a ho n ra e dignidade, sendo que a igualdade na h o n ra e dignidade im p o rtam na igualdade de natureza. N e n h u m m e m b ro da T rindade p o d e ser on to logicam ente su b o rd in ad o aos o u tro s sem esse fato in fringir a honra, dignida de e glória de todas as pessoas da D ivindade. U m a das acusações feitas pelos op o n en tes era q u e o conceito trin itário de D eus que Basílio defendia su b en ten d e, necessariam ente, o triteísm o — a crença cm três deuses. O s subordinacionistas c os sabelianos argum entavam q u e toda a idéia de três pessoas iguais (hypostases) im plicava, necessariam ente, três naturezas ou su b s tâncias (ousia) diferentes. Em resposta a tu d o isso, Basílio declarou: “C o n tra os que nos acusam de triteístas, resp o n d em o s que confessam os u m só D eus, não q u an to ao n ú m ero , m as q u an to à n atu re za”.15 A explicação oferecida p o r Basílio se reflete nos escritos dos dois G regórios c nin g u ém sabe ao certo qual pai capadócio influenciou os dem ais. A lguns estu d io sos arg u m en tam q u e foi Basílio q u em p rim eira m e n te expressou a distinção, de m agna im portância, en tre ousia (substância) e hypostasis (subsistência, pessoa) nu m a carta ao seu irm ão G regório de Nissa. O u tro s estudiosos sustentam q u e a carta foi
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na verdade escrita p o r G regório e que, de algum a m aneira, acabou sendo atribuída a Basílio. A verdade parece ser que tanto Basílio co m o G regório, p o r volta de 375, estavam estu d an d o sim u ltan eam en te essa distinção a fim de corrigir a im pressão de q u e a ortodoxia trinitária nicena su b en ten d ia três deuses. Seja co m o for, Basílio arg u m e n to u contra seus acusadores, d izendo q u e exis tem dois tipos de substantivos q u e predicam : geral e lim itado. O s substantivos gerais indicam “a n atureza c o m u m ” dc m ais de um a coisa. E m relação aos debates teológicos e filosóficos posteriores, Basílio tem em m en te proposições universais, com o “natureza h u m an a”, “circularidade”, “verm elhidão” e “bon d ad e”. O s substan tivos lim itados d en o tam peculiaridades de coisas específicas, co m o “alto”, “alon gado”, “escu ro ” e “o m e n o r de dois m ales”. T endo p o r base a distinção en tre os substantivos gerais e lim itados, Basílio pas sou a refu tar a acusação d o triteísm o na d o u trin a trinitária. Assim fez ao em pregar duas palavras q ue em grego eram freq ü en tem en te usadas co m o sinônim os, m as que podiam ser diferentes: ousia e hypostasis. Dcclaro, portanto, o seguinte: o que é referido de modo especial e peculiar é indicado pelo nom e de hipóstase. [...] Essa, portanto, e a hipóstase, ou “subqualidade”; não o conceito indefinido da essência ou da substância (ousia ], que, sendo geral no seu significado, não encontra nenhuma “qualidade”, mas o conceito que, por meio das peculiaridades expressas, confere qualidade c cir cunscrição ao geral e ao não-circunscrito.16 Sem dúvida, trata-se de um a declaração p rofunda. Basílio em p reg o u duas ana logias para ajudar a trad u z ir o sentido. P rim eiram en te ilu stro u a distinção entre ousia e hypostasis — substância e subsistência — ao referir-se à qualidade hum ana de três h o m en s hipotéticos distintos: Pedro, Tiago e João. Todos os três são seres h u m an o s e co m p artilham da m esm a natureza universal, o u essência (ousia), da hum anidade. Ao m esm o tem po, cada u m apresenta características peculiares. Pedro é m ais alto q ue Tiago e João. Isso nada tem que ver com um a desigualdade essen cial da sua qualidade h um ana. O m esm o acontece com as hypostasis do Pai, do Filho e do E spírito Santo: o Pai é não-gerado, o F ilho é gerado e o E spírito é procedente do Pai. A diferença não deprecia de m o d o algum sua participação igualitária na substância divina, arg u m en to u Basílio. O u tra analogia que ofereceu ao seu irm ão (e, p o r extensão, a q u alq u er u m que lesse a carta) é a do arco-íris: “As propriedades peculiares das hipóstases [da T rin dade], assim co m o as cores vistas no arco-íris, refletem seu b rilh o em cada um a das pessoas que, seg u n do crem os, existem na Santíssim a Trindade; m as q u an to à p rópria natureza, não se pode conceber n e n h u m a diferença en tre u m a ou outra,
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sendo que as características peculiares b rilham , na co m u n id ad e da essência, em cada um a delas”.17E m outras palavras, so m en te u m tolo diria que o arco-íris é feito de várias coisas ou substâncias diferentes. T am bém , so m en te u m tolo diria que não há distinção e n tre as cores d o arco-íris. As cores não são partes iguais q u e podem ser tiradas separadam ente deixando o arco-íris intacto. D a m esm a form a, D eus é u m ú n ico ser o u substância divina, form ado de três subsistências distintas, porém inseparáveis. O s o u tro s pais capadócios ofereceram analogias diferentes, m as to dos defendiam o m esm o arg u m en to básico. D uas coisas precisam ser ditas a respeito da distinção feita p o r Basílio en tre ousia e hypostasis n o q u e se refere à d o u trin a cristã da Trindade. A p rim eira é q u e até m esm o Basílio e os dem ais pais capadócios sabiam que ela tinha problem as in ere n tes. E ntre outros, os dois term os podiam ser entendidos co m o sinônim os. Hypostasis era usada, às vezes, no lugar de ousia na cu ltu ra grega para significar “substância”. Foi p o r isso q u e Basílio e os G regórios tom aram o m áxim o cuidado ao explicar o q u e q u eriam d izer com hypostasis. O u tro problem a era q u e a única m aneira de usar essa distinção para reforçar o arg u m e n to deles seria fazer todos pensarem co m o eles, co m o platonistas. Para eles, a substância era u m tipo de form a platônica — um a proposição universal verdadeira que, em certo sentido, estava “acim a” das coisas individuais. O “v e rm e lh o ” co m o form a platônica o u proposição universal de “v erm e lh o ”, p o r exem plo, era concebido co m o verdadeiro c, em certo sentido, “su p erio r” e “m ais im p o rtan te” q u e cada coisa verm elha. Basílio e os dois G regórios pensavam nesses term o s a respeito da ousia, o u substância. A natureza h u m an a é u m a coisa real — um a proposição universal real da qual participam as pessoas h u m an as reais e é isso q u e as torna hum anas. Pai, F ilho e E spírito Santo, além de não serem três deuses (triteísm o) ao se levar em conta sua substância co m u m — a divindade — , são, de algum a m aneira, m ais reais e “sup erio res” a cada um a de suas pessoas consideradas individualm ente. N e m todos con co rd am com a teoria platô nica das form as. M as, naquela época, os capadócios concluíram q u e fazia sentido para a m aioria das pessoas. A segunda coisa q u e precisa ser dita a respeito da distinção feita p o r Basílio en tre a substância e a subsistência, o u “pessoa” (hypostasis), é q u e as pessoas atual m en te precisam e n te n d e r q u e n em Basílio nem os dois G regórios pensavam a respeito desse ú ltim o conceito de form a individualista. Esse dado é m u ito im p o r tante. Se u m leitor m o d e rn o abordar essa distinção com a m entalidade m o d ern a e ocidental de que u m a “pessoa” é u m “s e r” individual n o sen tid o de q u e ela se percebe em oposição a outras pessoas, não poderá evitar as im plicações triteístas. E m b o ra a palavra pessoa em p o rtu g u ê s seja n o rm a lm e n te usada para tra d u z ir hypostasis nesse contexto, não é u m a tradução exata, p o r causa do contexto cultural q u e traz consigo. Para os antigos, assim com o para m uitas pessoas de culturas não-
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ocidentais de hoje, pessoa não significava “núcleo individual e autoconsciente de livre-arbítrio e atividade v o lu n tária”. A pessoa tin h a u m significado individual, m as sem p re fazia parte da co m unidade. Q u a n d o Basílio se referia ao Pai, F ilho e Espí rito Santo co m o “três pessoas” (três hypostases), era no sentido de estarem ligadas em um a única D ivindade que é u m ser infinito, tran scen d en te e p erfeitam ente singelo (uno). A sua co m u n id ad e é considerada, de certo m odo, m ais real d o que sua individualidade. Essa linha de raciocínio é g eralm ente in co m u m para os oci dentais m o d ern o s q u e ten d em a colocar a individualidade acim a da com unidade. Para Basílio, p o rtan to, Pai, Filho e E spírito Santo não são três deuses, p orque co m partilham igualm ente da substância divina e essa substância é m ais real do que suas individualidades, sem em nada d im in u ir das suas características distintivas. Para Basílio (assim co m o para os G rcgórios), as hypostases, o u pessoas de D eus, são inseparáveis e indivisíveis, m as não idênticas em todos os aspectos. A diferença principal está na origem . O Pai não tem origem . O F ilho e o E spírito en co n tram , de várias form as, a sua origem 110 Pai.
A teologia dos dois Gregórios A grandiosa obra de Basílio foi retom ada p o r G regório N azian zen o e G regório de N issa, sendo q u e cada u m acrescentou a sua interpretação particular.18 A explica ção oferecida p or G reg ório N azian zen o a respeito da trindade e unidade dc D eus segue a m esm a linha de Basílio. Assim co m o esse pai capadócio, N azianzeno opôsse fo rtem en te a todas as heresias q u e negavam ou distorciam a unidade essencial ou trin d ad e pessoal do Pai, do F ilho e do E spírito Santo: o subordinacionism o (ariano, sem i-ariano, eu n o m ian o , pn eu m atô m aco ), o triteísm o e o sabelianism o. Da m esm a form a que Basílio, arg u m e n to u q u e a própria salvação depende de h a ver um a só essência o u substância (ousia) divina e três participantes dela, distintos mas iguais en tre si (hypostases). R essaltou zelosam ente, m ais do que Basílio, a idéia de que u m ser é sem pre D eus o u criatura; não pode haver estágios in term ediários já q u e D eus crio u todas as coisas d o nada. A lém disso, se u m ser é eterno, deve ser divino (D eus). Todo ser q u e tem u m início n o tem p o é criatura e, nesse caso, dife rente das ou tras criaturas so m en te no grau. P ortanto, se o Filho ou o E spírito co m eçou a existir 110 tem po, é do tipo criatura; p o rtan to , en co n tra-se na m esm a “ca tegoria” dos seres h u m an o s (m esm o existindo antes deles) e, p o r isso m esm o, é incapaz de salvar, pois “se ele está na m esm a categoria q u e e u ”, p erg u n to u G regório, “com o pode m e to rn ar D eus ou m e u n ir à D ivindade?”.19 Gregório Nazianzeno. J u n to com Basílio, G regório N azian zen o explicou a q u ali dade trina e una de D eus m ediante o em p reg o dos conceitos ousia (substância) e hypostasis (s u b s is tê n c ia o u p e sso a ). E m b o ra to d a s as trê s hypostases sejam consubstanciais (Itoinoousios), não são idênticas. G regório em p reg o u um a analogia
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social para explicar esse fato: assim com o Adão, Eva e Sete (os três prim eiros seres hu m an o s) eram um a só família h u m an a q u e com partilhava da m esm a natureza, sem deixar de ser três identidades distintas, tam b ém o Pai, o F ilho e o Espírito Santo co n stitu em u m a só fam ília divina, q u e co m p artilh am da m esm a glória e essência, m as são pessoas distintas en tre si. G regório term in o u essa ilustração de serm ão assim: “Pois b em , aqui tem os u m fato reconhecido de q u e pessoas d iferen tes po d em ter a m esm a substância”.20 O bv iam en te, essa analogia social — q u e Ba sílio e G reg ó rio de N issa tam bém em pregaram cada um à sua m aneira — é severa m en te criticada igualm ente p o r hereges e teólogos ortodoxos. O s teólogos o cid en tais (católicos e protestantes) em especial tendem a recuar diante dela. O s capadócios responderiam q ue, afinal de contas, não passa de u m a analogia e tam b ém ressalta riam q ue, a sua validez conceituai dep en d e de u m m o d o platônico de e n te n d e r a realidade de proposições universais co m o “h u m an id ad e” e “d ivindade”. M as a verdadeira contribuição de G regório N azianzeno ao pensam ento trinitário acha-se, não na analogia social, nem no uso de ousia e hypostases, m as na in terp reta ção da ú ltim a palavra, u sualm ente traduzida p o r “pessoas”, co m o relacionam ento. D e n tro da própria Trindade, explicou G regório, não existem “três seres” m as “três relacio n am en to s” e os relacionam entos não são n em substâncias (seres) n em m e ram en te ações (m odos de atividade). O s e u n o m ia n o s e o u tro s hereges colocaram o seg u in te d ilem a d ian te dos trinitários: a realidade é um a substância (u m ser) o u u m a ação (evento, m o d o de atividade). Se os três em D eus são substâncias, o triteísm o está certo; se os três em D eus são ações, o sabelianism o está certo. O s capadócios rejeitaram esse dilem a e especialm ente G reg ó rio N azian zen o p ro c u ro u fornecer um a saída ten tan d o expli car q ue a hypostasis (substância, pessoa) não é necessariam ente um a substância, n em m eram en te u m a atividade. E m D eus, designa u m relacionam ento. D essa m aneira, G regório atribuiu um a condição ontológica aos relacionam entos. A identidade única do Pai d en tro do ser u n o divino está na relação de gerador q u e ele possui com o Filho e na relação de fonte de procedência q u e possui com o E spírito Santo. A identidade única d o F ilho é a de q u em é etern am en te gerado pelo Pai, co m o sua im agem expressa e seu agente. A identidade única do E spírito S anto é a de q u em procede etern am en te do Pai com o sua sabedoria e poder. Aos o p o n en tes q u e objetaram alegando q u e esses relacionam entos não eram p len am en te co m p reen síveis, G reg ó rio re sp o n d eu , exasperado: “E ntão o q u e é processão? Se vocês m e disserem o q u e significa a qualidade de não-gerado d o Pai, explicarei a fisiologia da geração do F ilho e da processão do E spírito e, então, sere m os castigados p o r nos in tro m eterm o s nos m istérios de D e u s!”.21 E m outras pala vras, G reg ó rio estava dizendo: “E u m m istério, seu tolo!”. E estava d an d o a e n te n d er q u e n em seq u er os hereges podiam explicar todos os m istérios de D eus, por
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isso, não deviam culpar a ele, o u aos dem ais trinitários, p o r não conseguirem expli car exatam ente os relacionam entos existentes na D ivindade. O co nceito de G regório, q u e definia hypostasis co m o u m relacionam ento, pas sou a fazer parte da bagagem co m u m de idéias da teologia da T rindade na Igreja O rie n ta l e tam b ém aparecia ocasionalm ente n o o cid en te latino. E m bora talvez não seja possível con ceb er p len am en te u m relacionam ento co m o u m a realidade no m esm o nível q ue u m ser (substância) ou até m esm o q u e um a ação (evento), a grande co n trib u ição de G regório foi in tro d u z ir na co rren te d o p en sam en to cristão exatam ente essa idéia: a realidade ontológica dos relacionam entos. As três pessoas de D eus, portan to , não devem ser entendidas c o m o w i individuais, co m o núcleos indep en d en tes de consciência e vontade (o q u e levaria à “analogia d o c o m itê”), m as com o verdadeiros relacionam entos in terd e p en d en tes d en tro de u m a única co m u n id ad e de existência e substância. P ortanto, para G regório, “a característica do Pai é a de não ser gerado; [...] a do F ilho é a de ser gerado; [...] c a do E spírito é a de processão. [...] C o m esses term os, G regório acrescenta u m novo sentido à fórm ula característica dos três capadócios: um a ousia e três hypostases"P O u tra im p o rtan te contribuição de G regório N azian ze n o à teologia encontra-se na oposição aos novos ensinos a respeito de Jesu s C risto apresentados p o r o u tro teólogo trinitário, cham ado A polinário. A polinário, q u e era bispo de Laodicéia, foi ex trem am en te in fluenciado p o r Atanásio e, assim com o ele, rejeitou v ee m e n te m en te todas as form as de su b o rdinacionism o, especialm ente d o Filho. P ro cu ro u traçar todas as form as de arianism o desde a heresia an tio q u en a do adocionism o e, p o r com paração, p ro c u ro u enfatizar a verdadeira divindade de Jesu s C risto e do Filho de D eus q u e nele se en carn o u . A polinário te n to u explicar a seus co n tem p o râneos, p o u co depois d o C o n cílio de C o n stan tin o p la, co m o Jesu s C risto podia ser, ao m esm o tem p o , verdadeiramente humano e verdadeiramente divino: consubstanciai (homoousios) tan to com D eus co m o com os seres h u m anos. Sua explicação baseouse in ten sam en te na obra de Atanásio Da encarnação do Verbo e evocou-a m uito. O s o p o n en tes de A polinário, com o G regório N azianzeno, ao q u e parece, não perce beram essa ligação. A opinião de A polinário a respeito da encarnação do F ilho de D eu s em Jesus C risto é cham ada apolinarism o, m as tam b ém poderia ser cham ada atanasianism o. P rovavelm ente ten h a surgido de fato na cristologia de O rígenes. A idéia básica é qu e os seres h u m an o s são com postos de três aspectos distintos e separáveis: o cor po, a alm a e a alm a racional, o u espírito. Essa com posição tripartite da hu m an id ad e é basicam ente um a idéia em prestada da filosofia platônica e não das Escrituras, em b o ra o n t realm en te faça referência aos três aspectos. A natureza especialm ente platônica da antropologia de A polinário aparece na iden tificação do corpo, o u natureza física, com o natureza inferior e na identificação da
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alma racional, ou espírito, co m o natureza superior. A alm a é a força vital anim adora existente nas criaturas não-hum anas e nos seres hum anos. Faz parte da natureza inferior. S egundo A polinário, Jesus C risto era divino neste sentido: o Logos eterno — o Filho de D eus — assum iu o lugar da alm a racional de Jesus. Seu corpo e sua alm a anim adora (força vital) eram hum anos, m as seu espírito (m ente, consciência) não o era. O bviam ente, a im pressão que se tem dessa cristologia é de “D eus em um co rp o ”, u m ser onisciente que habita u m corpo de criatura, usando-o com o um veículo, sem realm ente se tornar h u m an o e nem experim entar as lim itações e sofri m entos hum anos. R ealm ente, essa era um a das m otivações de Apolinário: m ostrar que Jesu s C risto podia ser D eus (im utável, impassível, onisciente) e h u m an o (lim i tado, finito, passível dc sofrim ento, m ortal) ao m esm o tem po. Ele não im aginava, no entanto, que estava criando um a idéia nova. S im plesm ente pensou estar agrupando as cristologias de O ríg enes e de Atanásio de um a form a m elhor. Talvez tivesse razão. Seja co m o for, a cristologia dc A polinário estava g anhando popularidade, tanto en tre os trin itário s co m o en tre hereges de todos os tipos. Podia “fu n c io n a r” se a pessoa acreditasse q u e o F ilho de D eus q u e habitava em Jesus C risto com sua alm a racional era o D eu s etern o o u u m sem ideus criado. G regório N a zian zen o fez um a cam panha de cartas e serm ões co n tra A polinário c a d o u trin a apolinariana. P reten dia que fosse co n denada co m o heresia no C o n cílio de C o n sta n tin o p la e conseguiu o q ue queria. A razão de se o p o r a ela com tanto vigor e determ inação foi achar que ela su b v ertia a salvação. G re g ó rio fre q ü e n te m e n te em pregava o te rm o íheosis (divinização o u deificação) em relação ao processo da salvação e, co m o Atanásio, considerava a salvação o cam inho da graça q u e transform ava os seres h u m an o s em p a rtic ip a n te s p arciais da n a tu re z a d iv in a atrav és d a “tro c a m a ra v ilh o sa ” da encarnação. E m outras palavras, para G regório, o F ilho de D eus veio “para q u e eu tam bém fosse feito D eus, assim co m o ele foi feito h o m e m ”.23 N a tu ralm en te, co n fo rm e foi explicado an terio rm en te, a idéia da salvação com o theosis, o u divinização, n o p en sam en to cristão oriental n u n ca significou q u e os se res h u m an o s p udessem realm ente atravessar o abism o e n tre o divino e as criaturas. N e m seq u er G reg ó rio pensava q u e os seres h u m an o s possam realm ente “se to rn ar D e u s” exatam ente co m o o Logos (ou Filho de D eus) é D eus. N o en tan to , parece m esm o q u e acreditava q u e o g ra n d e o b jetiv o da nossa salvação, e a razão da encarnação, é trazer os seres h u m an o s à m esm a condição de humanidade de Jesu s C risto . A sua h u m a n id a d e , c o n fo rm e Ire n e u explicou m u ito te m p o antes de G regório, é exatam ente igual à h u m an id ad e de A dão q u e refletia a im agem de D eus e era destinada a com partilhar, co m o criatura, da glória de D eus. C risto res tau ro u esse potencial perdido e é isso o q u e as E scrituras q u e re m dizer q u an d o o descrevem co m o o “p rim o g ên ito en tre m u ito s irm ão s” e o nosso exem plo e q u a n d o Paulo explica em IC o rín tio s 15 q u e serem os iguais a ele na ressurreição.
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Para G regório, p o rtan to , se a hu m an id ad e de Jesu s C risto não era com pleta, então a nossa natureza h u m an a não será totalm ente salva através dela. Para expres sar esse conceito, G regório usou a seguinte fórm ula: “O q u e não foi assum ido não foi sanado”.24 E m outras palavras, se a h u m an id ad e de Jesu s não tivesse u m a n a tu reza h u m an a co m pleta — corpo, alm a e espírito — , a “troca m aravilhosa” não funcionaria. A natureza divina d o divino Filho de D eus teria de se u n ir à natureza h u m an a com pleta — tu d o o q u e era essencial ao ser h u m a n o — a fim de curá-la ou restaurá-la. A parte q u e não fosse h u m an a nele, não seria curada em nós. Para G regório, pois, o apolinarism o subvertia a própria salvação e tinha de ser rejeitado. O que não percebeu, ao q u e parece, é que, ao rejeitá-lo, estaria im plicitam ente rejeitando a cristologia de Atanásio. A cristologia de G regório venceu, n o C o n cílio de C on stan tin o p la, a opinião apolinariana. A opinião ortodoxa é bem expressa p o r N a zian zen o no Quarto sermão teológico: Assim, ele [Jesus Cristo] é chamado homem, não somente para que, medi ante seu corpo, possa ser apreendido por criaturas corporificadas, pois de outra forma, isso seria impossível dada a sua incompreensível natureza, mas também para que ele, por si só, possa santificar a humanidade e ser, por assim dizer, como levedura para toda a massa; e ao unir-se com o que era condena do, possa livrar toda a condenação e se tornar para todos os homens aquilo que somos, à exceção do pecado — corpo, alma, mente e tudo o que a morte alcança — e assim se tornar homem, que é a combinação de tudo isso.25 A fim de salvar a h um an id ad e, portan to , Jesu s C risto tin h a de ser verdadeira m en te h u m an o e po ssuir todos os aspectos essenciais de um ser h u m an o , inclusive um a m en te h u m an a e um a alm a h u m ana, e tam b ém de ser verdadeiram ente divi no e possu ir um a natureza divina sem elhante à própria existência d o D eus Pai. Até m esm o os cristãos q u e não aceitam o conceito da divinização na salvação o u o conceito da “troca m aravilhosa” na encarnação (ou seja, a m aioria dos p ro testan tes) sim patizam com a afirm ação co n tu n d e n te de G regório da com pleta h u m a n i dade e verdadeira divindade de Jesus. D e q u e o utra m aneira poderia sacrificar-se pelos pecados e, ao m esm o tem po, ser nosso exem plo na identificação conosco? Gregório de Nissa. A teologia de G regório de N issa é toda perm eada p o r um a n o ção m ística da total incom prcensibilidade de D eus. M ais do que qualquer o u tro pai capadócio, G regório ficou cativado pela m ajestade e pela qualidade sobrenatural da essência divina. Alguns estudiosos vêem nessa ênfase certa influência do neopla tonism o, a filosofia popular e altam ente abstrata q ue partiu da Alexandria e ressaltava a unicidade absoluta e insondabilidade infinita da fonte e origem divina e eterna de todas as coisas.
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Essa influência do neo p lato n ism o aparece em vários dos ensinos diferentes de G regório. Por exem plo, G regório arg u m e n to u q u e a essência de D eus é tão tran s cen d en te e incom preensível q u e a única m aneira de os seres h u m an o s tentarem descrevê-la é de form a negativa, declarando o que ela não é, pois a natureza ou essência de D eus é to talm en te m isteriosa, e pelo m enos descrevê-la elim inando todas as características im próprias, p ertencentes às criaturas. D esse m o d o , a essên cia de D eus é infinita (ilim itada), im passível (im u n e ao so frim en to ), in co m p re en sível (im possível de ser definida). N a história da teologia, tal conceito é cham ado “teologia negativa” e chegou a exercer considerável influência sobre os teólogos posteriores, tan to do O rie n te co m o do O cid en te. O s m ísticos, em especial, costum avam celebrá-la. O s outros, em geral, não a apreciavam , p o rq u e parecia in sin u ar u m D eus distante com q uem seria difícil ter u m bo m relacionam ento. Para co n h ecer realm ente D eu s, a pessoa teria de passar pela experiência m ística. G regório, n o en tan to , não rejeitava o argu m en to racional a respeito de D eus fu n d a m e n tad o na revelação, co n tan to q u e ele não acabasse com o m istério. O u tro aspecto da teologia de Gregório que talvez reflita a influência do neoplatonism o é a explicação do mal com o a privação de todo o bem . Segundo G regório e a filosofia neoplatônica, a origem de todo o mal do in u n d o não é D eus (ou, no neoplatonism o, “o U m ”), mas o abuso que os seres hum anos fazem do livre-arbítrio ao se desviarem das coisas espirituais e buscarem as materiais. Mas o mal não é um a substância, nem sequer é matéria. E a ausência ou falta da bondade, sendo esta um aspecto da própria existên cia. D eus é a plenitude da existência e, por isso, perfeitam ente bom . D eus é perfeita m en te bom e, portan to, a p len itu d e da existência. A existência e a b ondade são inseparáveis. Para Gregório, o mal era sim plesm ente o “nada”, a com pleta ausência da existência e do bem do lugar cm que deveriam estar. O mal está para o bem , assim com o a escuridão está para a luz. A influência do neoplatonism o sobre esse conceito do mal fica bastante clara quando G regório com eça a associar a ausência do bem com a atração para a materialidade e o conseqüente distanciam ento da espiritualidade e com o obstáculo que a matéria, a m ultiplicidade, a m udança e o tem po im põem contra a ascensão do espírito em direção a D eus, que é o inverso de todas essas coisas. G regório, no entanto, absteve-se de acom panhar o neoplatonism o integralm ente. O s neoplatonistas pagãos, com o P lotino c seus seguidores, enxergavam a totalida de do m u n d o físico, inclusive os corpos, co m o em anações inconscientes do U m (o conceito que tin h am de D eus) q u e se afastavam tan to de sua origem q u e se transform avam em prisões para o espírito. G regório não tinha um a idéia tão nega tiva da realidade física ou dos corpos h um anos. A co n trib u ição de G reg ó rio de N issa ao p en sa m e n to trin itá rio está na te n ta ti va de re fu tar a acusação de trite ísm o feita p o r seus in im ig o s — tan to arianos
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(c o m o E u n ô m io ) c o m o sa b e lia n o s. D o m e s m o m o d o B asílio e G re g ó rio N azian zen o , G reg ó rio de N issa u so u o exem plo das coisas físicas q u e co m p arti lham da m esm a n atu reza para ilustrar o m istério da T rindade. U m a de suas ana logias n ão parece aju d ar m u ito sua causa. T rata-se do fam oso (ou infam e) exem plo das m oedas de o u ro . N o seu livro Não três deuses: para Ablábio, G regório pede ao leitor q u e im agine u m a pilha de m oedas de ouro. Todas as m oedas co m p artilh am da m esm a substân cia, m as d iferem en tre si em u m ún ico aspecto: são representações diferentes (coi sas subsistentes) dessa substância. “Assim co m o são m u ito s os estáteres [um tipo de m oeda] de ou ro , m as um só o o u ro , tam b ém são m u ito s os que se exibem para nós in d ividualm ente na natureza h u m an a, co m o Pedro, Tiago e João, m as u m só o h o m em [h u m an id ad e] neles.”26 E m seguida, G regório define a verdade a respeito de D eus segundo o exem plo das m oedas: “O Pai é D eus, o F ilho é D eus; porém , pela m esm a proclam ação, D eus é U m , p o rq u e n e n h u m a diferença de natureza ou fu n cio n am en to é con tem plada na D iv in d ad e”.27 G re g ó rio , n o e n ta n to , era su fic ie n te m e n te p e rcep tiv o para sab e r q u e seu in q u irid o r, u m h o m em cham ado A blábio q u e entrevia o triteísm o na d o u trin a trinitária ortodoxa, levantaria objeções contra essa representação e interpretação. G regório m en cio n o u claram ente a objeção e vale a pena citá-la por extenso aqui, para q u e os leitores saibam exatam ente o tipo de perg u n ta q u e G regório tentava responder: O argumento que você [Ablábio] apresenta é mais ou menos o seguinte: — Pedro, Tiago e João, pertencendo a uma só natureza humana, são chamados três homens, e não é nenhum absurdo descrever os que estão unidos pela natureza, se forem mais de um, pelo núm ero plural do nome derivado de sua natureza. Sc, portanto, 110 caso supra, o costume admite tal coisa [...] como é que 110 caso das nossas declarações a respeito dos mistérios da fé, embora confessemos as Três Pessoas e não reconheçamos nenhum a diferença de na tureza entre elas, estaríamos de alguma forma em conflito com a nossa con fissão, quando dizemos que a Divindade do Pai e do Filho e do Espírito Santo é uma só, mas não permitimos que os homens digam “há três deuses?”. A questão, como já disse, é muito difícil.28 A resposta de G reg ó rio tam bém depende, pelo m enos em parte, da conceituação neoplatônica da unicidade sobre a natureza da existência. N ã o so m en te a existên cia é boa, e a b o n dade é existência, co m o tam b ém a existência é a unicidade de operação e atividade. Se D eus é um a só existência — um a só substância — e não três deuses, as três pessoas (hypostases) devem sem pre agir ju n ta s em todas as coisas e, para G regório, é nessa idéia q u e se en co n tra a chave para a d o u trin a da Trindade.
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S egundo G regório, três seres h u m an o s com partilham da m esm a natureza, ou essência, m as, ao m esm o tem po, são geralm ente considerados três seres por causa de suas operações o u ações separadas. Pedro, Tiago e Jo ão são três seres diferentes, não p o rq u e u m seja m ais h u m a n o do q u e o o u tro (a h u m an id ad e deles tem a m esm a form a platônica), m as p o rq u e cada u m age de m o d o d istin to e in d ep en dente. Em D eus, p o rém , toda a atividade é um a só. G regório d efiniu a regra ou m áxim a que a teologia trinitária ortodoxa deve seguir para não cair no triteísm o: toda operação é co m u m às três pessoas da D ivindade. N o caso da natureza divina, não somos informados que, de m odo semelhan te, o Pai faça alguma coisa por conta própria sem que o Filho opere conjunta mente, nem, tampouco, que o Filho tenha qualquer operação especial à parte do Espírito Santo; pelo contrário, toda operação que se estenda de Deus até a criação e que receba um nome conforme a idéia que fazemos dela, tem a sua origem no Pai, prossegue pelo Filho e é aperfeiçoada no Espírito Santo.29 Portanto, já que toda atividade o u operação de D eus é co m u m a todas as três pessoas, não pod em o s cham ar de três deuses esse “poder divino e su p erin ten d e n te”. A regra de G reg ó rio tem sido adotada pela m aioria dos teólogos ortodoxos da igreja antiga e m edieval e recebeu a tradução em latim de opera trinitatis ad extra indivisa sunt (as operações externas da T rindade são indivisíveis). G regório reco nh eceu que os m odos exatos da operação po d em diferir. A ssim , so m en te o Filho de D eus, a segunda pessoa da Trindade, verdadeiram ente assum iu corpo e n a tu re za h u m an o s na encarnação, m as nessa operação não era, de m o d o algum , in d ep en den te o u separado do Pai e do E spírito Santo. O s três sem pre agem ju n to s e nunca de m o d o in d ep en d en te. E p o r isso q u e não são três deuses, a despeito de serem três pessoas distintas. Assim co m o G regório N azianzeno, N issa enfatizava as pessoas co m o relaciona mentos d en tro da co m u n id ad e de existência que h o n ram o s e adoram os co m o D eus. E aqui que entra em jo g o a distinção (e não a diferença o u a separação) en tre os três. E m bora não sejam três deuses, são três relacionam entos distintos en tre si. O Pai é a causa, o fu n d am en to e a origem eterna d o F ilho e do E spírito Santo. O Filho é aquele que é etern am en te gerado pelo Pai e o E spírito procede etern am en te d o Pai.
O legado dos capadócios E m b o ra as idéias básicas dos pais capadócios ten h am ajudado a vencer as várias heresias antitrinitárias, form ado a ortodoxia (pelo m en o s sem i-oficial) adotada pela m aior parte da igreja e exercido grande influência 110 C o n cílio de C o n stan tin o p la em 381, tam b ém levantaram m uitas perguntas e provocaram algum as controvérsi-
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as até m esm o en tre os crentes ortodoxos. Por exem plo, no O c id e n te latino não se reconhecia n e n h u m a distinção en tre ousia e hypostasis — as duas palavras eram traduzidas p o r “substância” n o latim . Para m u ito s no O cid en te, portan to , pareceu q u e os teólogos e bispos orientais se deleitavam n u m a contradição q u an d o afirm a vam u m a ousia e três hypostases. O significado e a explicação cuidadosas dos term os e sua tradução flexível tin h am de acontecer antes de a m etade d o im pério que falava latim po d er aceitar a contribuição dos capadócios. Q u a n d o se to rn o u claro para os bispos e teólogos em R om a e C artago que, p o r exem plo, os orientais esta vam dizen d o basicam ente a m esm a coisa q u e T ertuliano dissera m u ito tem po an tes, ficaram m ais propensos e dispostos a aceitá-la. U m o u tro p roblem a com a teologia trinitária dos capadócios é de c u n h o m ais geral. N o d ecurso de séculos de teologia, m u ito s críticos acharam -na m u ito am bí gua para ser aceita sem esclarecim entos adicionais. Q u a n d o exam inada m ais de p erto, fica a im pressão de q u e os capadócios afirm avam a unicidade de deus a p o n to de excluir a verdadeira triplicidade, ou, senão, q u e afirm avam a triplicidade de D eus a po n to de excluir a verdadeira unicidade. Suas analogias p rocuram enfatizar a triplicidade. Por isso, são freq ü en tem en te tratados co m o a origem da m oderna “analogia social” da T rindade q u e às vezes parece se aproxim ar do triteísm o. Em contraposição, suas explicações abstratas pro cu ram enfatizar a unicidade. C o m o o Pai, o Filho e o E spírito Santo podem ser pessoas verdadeiram ente distintas se não é possível distin g u ir suas operações e atividades? O s teólogos posteriores q u e se g uem a linha de p en sam en to dos capadócios p ro cu ram m elh o rar u m pouco a q u es tão, ap resentando da idéia de “atribuições”, de m o d o q u e nós, seres hu m an o s, pos sam os atrib u ir co rretam en te certas operações a um a pessoa m ais do q u e a outra. Isto, no en tan to , dificilm ente soluciona o problem a. A crítica principal feita co n tra os capadócios, especialm ente pelos teólogos cris tãos da atualidade, é q u e eles se p ren d eram dem ais às especulações a respeito da T rindade im an en te (os relacionam entos intratrinitários na eternidade), ao passo q u e o n t se restringe à T rindade econôm ica (as três pessoas ativas na história da salvação). H á u m a certa verdade nessa acusação, m as o en fo q u e exclusivo na T rin dade econôm ica pode tam b ém ser u m problem a. D eixa sem resposta a im p o rtan te questão dos antecedentes divinos na eternidade dessa atividade salvífica das três pessoas divinas. A m u dança da reflexão sobre a T rindade econôm ica para a T rinda de im anente, com algum a especulação a respeito, é justificada so m en te se se m a n tiver a ligação en tre as duas e finalm ente voltar à atividade tríplice de D eus no tem p o e na história com o relevante tanto para D eus e para os seres hum anos. O q u e significa tu d o isso? A d o u trin a da T rindade, da form a confusa e espe culativa q u e foi desenvolvida n o d ec u rso d o século iv e declarada no C o n c ílio de C o n sta n tin o p la , po d e se to rn a r de algum a m an eira inteligível para as pessoas
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c o m u n s e leigas? Sim . A idéia básica é fazer um a distinção en tre “algo” e “alguém ” — substância e pessoa — , m as evitar com todo cuidado as distorcidas idéias c u ltu rais e do b o m senso a respeito do assunto. N o seu estu d o dos pais capadócios, A n th o n y M ered ith expõe o caso da seguinte form a: “U m a paráfrase grosseira des sa expressão elegante [a d o u trin a capadócia da T rindade] poderia ser: em C risto há dois “algo” e u m “alg u ém ”; em D eus há três “algo” e u m “alg u ém ””.30 E m outras palavras, a chave q u e fornece acesso ao m istério, sem d estru í-lo , da T rindade e da pessoa de Jesu s C risto é a distinção en tre “algo” e “alguém ”. Três “alg u ém ” podem ser u m ú n ico “algo”, se forem inseparáveis e agirem ju n to s . D ois “algo” podem existir em u m ú n ico “alguém ” (Jesus C risto ), se estiverem in tim am e n te u nidos a ele, de m aneira co m pleta e inseparável. M as isso já é assunto para a Parte iv.
O Concílio de Constantinopla O C o n cílio de C o n stan tin o p la co ro o u os esforços de Atanásio e dos capadócios de um a vez p o r todas ao co n d en ar todos os tipos de su b o rd in acio n ism o e sabelianism o (m odalism o) e ao reescrever o Credo de Nicéia a fim de incluir u m “terceiro artigo” a respeito d o E spírito Santo e da igreja. O Credo niceno-constantinopolitano, co n h eci d o sim p lesm en te p o r Credo de Nicéia, diz: Creio cm um só Deus Pai, todo-poderoso, Criador do céu e da terra, dc iodas as coisas visíveis e invisíveis. Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho unigénito de Deus, gerado do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; gerado, não criado, consubstanciai ao Pai. Por ele todas as coisas foram feitas. E por nós, homens, e para nossa salvação, desceu dos céus: e se encarnou pelo Espírito Santo, no seio da virgem Maria, e sc fez homem. Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado. Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras,
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e subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai. E de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e seu reino terá fim. Creio no Espírito Santo, Senhor, que dá a vida, e procede do Pai (e do Filho)■, e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: ele que falou pelos Profetas. Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica. Professo um só batismo para remissão dos pecados. E espero a ressurreição dos mortos e a vida do m undo que há de vir. Amém.31 O Credo de Nicéia to rn o u -se a declaração universal de fé, obrigatória para todos os clérigos cristãos seg u n d o o decreto d o im p erad o r Teodósio e foi reafirm ado pelo q u arto concílio ecu m ên ico em C alcedônia, em 451. O u tro s credos e profis sões de fé foram escritos p o sterio rm en te, nas tradições ortodoxas, católicas e p ro testantes — m as todos co n stitu em elaborações e interpretações desse. É o credo universal da cristandade.
Q uarta P arte Outra c rise a b a la a ig re ja : O conflito sobre a pessoa de Cristo
U C o n cílio dc C o n sta n tin o p la declarou em 381 que a verdadeira ortodoxia cris tã necessariam ente inclui a crença de q u e Jesu s C risto era e é verdadeiram ente D eus tan to q u an to verdadeiram ente h u m a n o — consubstanciai com D cus-Pai e com os seres hu m an o s. Para todos os fins, o debate a respeito da T rindade te rm i no u ali. D epois desse concílio ecum ênico, esperava-se q u e todos os cristãos cres sem cm D eus e o professassem co m o um ún ico ser divino existente etern am en te co m o três subsistências o u pessoas distintas. E m b o ra vários tipos de arianos e sabelianos p erm an eceriam às m argens da cristandade p o r m u ito tem p o ainda, a G ran d e Igreja católica e ortodoxa considerou a questão encerrada. Q u e m ousasse qu estio n ar a dignidade e a glória divina iguais das três pessoas co m o u m ú n ico ser não teria a m en o r possibilidade de se to rn ar líder eclesiástico o u m esm o sacerdote ou diácono d en tro de sua hierarquia. Vários m issionários arianos viajaram para as tribos cham adas bárbaras da E uropa central e os evangelizaram para o cristianism o ariano e q u an d o algum as dessas tribos co n trib u íra m para a queda d o Im p ério R o m ano, o arianism o reapareceu nos centros de governo, especialm ente em R om a e em o u tro s locais d o O cid en te. N o en tan to , os bárbaros vitoriosos acabaram se co n v erten d o ao cristianism o o rtodoxo e católico e o arianism o desapareceu até reaparecer nos tem p o s m odernos. A solução do grande debate trinitária e a confirm ação da igualdade das três pessoas não resolveram , n o en tan to , certas outras q uestões e problem as d o u trin á rios. C o n fo rm e vim os 110 capítulo anterior, m esm o no C o n cílio de C o n stan tin o p la havia ru m o re s de u m a nova controvérsia q u e surgia en tre bispos e teólogos de destaque nas igrejas orientais. O en sin o de A polinário a respeito da encarnação foi co n d en ad o , em b o ra ele claram ente acreditasse na T rindade e m u ito s cristãos d e n tro da esfera de influência de A lexandria achassem injusta a sua condenação. N a s cido e criado em A lexandria, o pai do bispo de Laodicéia considerava q u e tinha fortes raízes na cidade, em bora o p ró p rio A polinário m orasse p erto de A ntioquia e ensinasse teologia naquela cidade. M u ito s em A ntioquia ficaram tão h o rrorizados
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com o m o d o de ele explicar a encarnação que com eçaram a investigar os teólogos alexandrinos para ver se o u tro s acreditavam e ensinavam de m o d o sem elhante. O s alexandrinos, p or sua vez, com eçaram a vigiar e a escutar os teólogos antioquenos a fim de verificar se a antiga heresia do adocionism o ensinada p o r Paulo de Sam osata em m eados do século ui estava ressurgindo. N ão d em o ro u m u ito para q u e os bispos e teólogos de A lexandria e A ntioquia, e seus seguidores de todas as partes do Im pério, com eçassem n u m a discussão teoló gica a respeito da n atureza do D e u s-h o m e m , Jesu s C risto. Todos concordavam que Jesu s C risto era D eus encarnado. N ã o estava em debate a profissão p ro p ria m en te dita. D epois do C o n cílio de C o n stan tin o p la, a questão passou a ser: com o os cristãos devem explicar e expressar a h u m an id ad e e a divindade de C risto? Exis te algum a form a de explicá-las que seja herética p o r realm ente subverter a verda de? E m outras palavras, o problem a nesse m istério era u m pouco sem elhante ao problem a no m istério da T rindade, sendo q u e os sabelianos, p o r exem plo, alega vam crer na Trindade, m as expressavam essa crença p o r m eio da linguagem figura da do m odalism o. A igreja resolveu que não bastava apenas a pessoa dizer q u e acre ditava na Trindade, se a form a de a explicar à congregação o u aos alunos era e q u i valesse à sua negação. H oje em dia, nos p erg u n tam o s por q u e os líderes do cristianism o em fins do século iv e no início de século v não pararam e recuaram q u an d o se viram à beira de um a guerra teológica e por q u e sim plesm ente não p erm itiram q u e cada lado expli casse à sua m aneira o m istério da h u m an id ad e e divindade de Jesus. M as a dificul dade de resp o n d er a essa pergunta e à crítica im plícita nela era q u e um a das m an ei ras de até m esm o os m ais im p o rtan tes bispos e patriarcas explicarem a encarnação de D eus em C risto era negando o m istério. M ais u m a vez, assim co m o aconteceu com os principais defensores e p ro m o to res da d o u trin a ortodoxa da Trindade, os grandes bispos e teólogos ortodoxos envolvidos na controvérsia cristológica esta vam preocupados em proteger e preservar o m istério da pessoa de Jesu s C risto e evitavam explicações q u e o racionalizassem dem ais e o esclarecessem . O s d efenso res da d o u trin a cham ada “un ião hipostática”, q u e se to rn o u a d o u trin a ortodoxa da pessoa de C risto no C o n cílio de C alcedônia em 451, eram a favor d o m istério e não racionalistas que tentavam perscrutar m istérios q u e deveriam ser deixados fora do nosso alcance para desvendá-los e to rn á-lo s inteligíveis ao p en sam en to h u m a no. Seria tran sfo rm á-lo nu m a caricatura po p u lar e estaria totalm ente errado. Em certas ocasiões, a grande controvérsia sobre a pessoa de Jesu s C risto real m en te se to rn o u extrem am ente técnica e m inuciosa. Era inevitável, considerando a com plexidade do problem a. Será m ais fácil ter paciência com a term inologia e os conceitos da discussão se nos lem brarm os de que, na verdade, tu d o dizia respeito à salvação. C o m o n o caso da grande controvérsia trinitária, todos en ten d iam q u e o
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q u e estava em jo g o era a própria salvação dos seres hu m an o s. Se Jesu s C risto não era verdadeiram ente D eus (igual ao Pai) e tam bém verdadeiram ente h u m a n o (igual a nós), co m o poderia nos salvar? C o m o alguém que não fosse divino, e d iferente dos seres h u m an o s, poderia fechar o abism o e n tre os dois lados e u n i-lo s na re co n ciliação e na união salvífica? Essa era a m aior preocupação de todos os pais envol vidos nessa controvérsia. As vezes, suas form ulações e arg u m en to s pareciam m u i to obscuros c especulativos, até m esm o com discussões detalhistas sobre sem ân ti ca, m as suas intenções eram louváveis e sadias. Q u e riam explicar às m en tes h u m a nas, d en tro do possível, o q u e os cristãos q u erem dizer ao confessarem q u e o h o m em Jesu s é, ao m esm o tem po, tan to D eus q u an to h u m an o , a fim de protegerem o evangelho da salvação. O que é lastim ável nesse grande conflito e controvérsia é q u e p o r vezes ele re su lto u em intrigas desonestas, com espionagem e n tre bispos, am eaças e n tre m onges e fofocas e m entiras en tre eclesiásticos. O aspecto realm en te p ertu rb ad o r desse episódio da história da teologia não é a agudeza. P odem os ap ren d er a convi ver com a am bigüidade e com a linguagem abstrata. Difícil é aceitar q u e bispos e teólogos cristãos usassem a teologia co m o m eio de m anobra n o jo g o de p o d er e influência, em p reg an d o m eios antiéticos. N e m todos os envolvidos na co n tro v ér sia cristológica foram responsáveis p o r isso, m as talvez, pela prim eira vez, todas as partes envolvidas tivessem u m pouco de culpa. Política e teologia m istu raram -se de u m a form a n u n ca antes vista e nem sequer im aginada. D eus, po rém , opera por cam inhos m isteriosos e a m aioria dos cristãos, de todas as classes, acredita q u e o resultado final da controvérsia foi u m a vitória da verdade, em b o ra ela m antivesse um certo m istério. C o m o na controvérsia trinitária, a controvérsia cristológica teve dois concílios ecu m ênicos d elim itan d o -a cronologicam ente: u m m arcando seu início e o u tro o térm in o . “M as, d iferen tem en te da o u tra controvérsia, essa teve, ainda, u m terceiro concílio ecu m ên ico no m eio tem po. Três grandes concílios ecum ênicos constam com o transições nessa parte da nossa história: o C oncílio de C o n sta n tin o p la em 381, o n d e com eço u esse episódio, o C oncílio de Efeso em 431 (o terceiro concílio ecu m ên ico ), o n d e o episódio sofreu um a reviravolta, e o C o n cílio de C alcedônia em 451, o n d e ele chegou à conclusão final. C alcedônia é considerada o q u arto concílio ecu m ên ico da C ristan d ad e e p ro du ziu um a “definição” d o u trin ária — às vezes considerada co m o o u tro credo — qu e declarou o dogm a oficial da pessoa de Jesus C risto. Esse dogm a é cham ado “união hipostática”. Este capítulo é a história de co m o a igreja chegou a lavrar e a declarar esse dogm a e co m o a D efinição de C alcedônia o declarou obrigatório para todos os cristãos. N o fim desta seção, verem os que, em b o ra a G rande Igreja consi derasse a questão encerrada em C alcedônia em 451, vários grupos de cristãos se
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recusaram a aceitar essa solução e co n tin u aram a protestar e arg u m en tar contra ela. A resposta da igreja católica e ortodoxa para esse p ro testo arrastou-a cada vez m ais para as especulações teológicas a respeito da pessoa de C risto e, em bora m uitos p ro te s ta n te s p o ssam seg u ir, e re a lm e n te sigam , o p e n s a m e n to da igreja até C alcedônia e sua d o u trin a da união hipostática, ali eles se d etêm e não consideram obrigatórios os p ro n u n c ia m en to s feitos depois dela. Isto é, q u an d o até m esm o os protestantes conservadores relem bram os processos q u e definiram a verdadeira d o u trin a nos p rim eiros séculos do cristianism o, a m aioria não se espanta com o qu e foi cham ado de ortodoxo depois de C alcedônia. V erem os p o r q u e é assim no fim desta seção e na seção seguinte. C o m o acontece com todos os grandes conflitos e controvérsias, é m u ito difícil en c o n trar as raízes e causas exatas da controvérsia cristológica 110 final d o século rv e início do século v. P odem os c o n tin u ar ap o n tan d o causas e influências no passa do, em u m a regressão quase infinita. A fim de explicá-las, terem os sim plesm ente que “to m ar o b o n d e an d a n d o ” e com eçar com um fator im portante: longas e p ro fundas diferenças teológicas en tre duas grandes cidades do cristianism o oriental e teólogos q u e as enxergavam co m o fontes de sabedoria. Trata-se de A lexandria e A ntioquia. A p rim eira parte do presente episódio da teologia cristã com eçará com a rivalidade e n tre essas cidades e d em o n strará co m o ela crio u a base para o debate cristológico.
13 As escolas de Antioquia e de Alexandria divergem sobre Cristo
T * a n to A ntioquia com o A lexandria eram cen tro s antigos e veneráveis da cultura grega e rom ana, bem co m o da teologia e da vida eclesiástica cristã. A lexandria rece beu seu n om e em h o m enagem a A lexandre, o G rande e, nos tem p o s de C risto , foi u m p róspero cen tro cosm opolita de educação, cultura, negócios e com ércio. Suas reservas de o u ro e de cereais eram m aiores do q u e as de R om a e sua grandiosa biblioteca e m u seu serviam de núcleo para um a universidade da A ntigüidade, o n d e conviviam filósofos e estudiosos religiosos provenientes dos confins m ais d istan tes do m u n d o . Alexandria era invejada p o r m uitas outras cidades e, por sua vez, invejava C o n stan tin o p la, a nova capital d o im pério de C o n sta n tin o e seus h erd ei ros. A lexandria q u eria d o m in ar C on stan tin o p la, p o rq u e foi ali q u e o im p erad o r e sua corte se instalaram . Fosse q u em fosse o bispo de C o n sta n tin o p la (às vezes conhecida pelo n o m e antigo, B izâncio), au to m aticam en te teria influência especial sobre o restante da cristandade em v irtu d e da proxim idade com a corte im perial. O s líderes alexandrinos sabiam q u e seus rivais na o u tra im p o rtan te cidade oriental, A ntioquia, q u eriam d o m in ar a igreja de C onstan tin o p la. M u ito tem p o antes de a controvérsia cristológica chegar a u m em bate en tre os líderes cristãos das duas cidades, eles já se olhavam com desconfiança p o r razões políticas. A ntioquia, n o plano geral, estava longe de ter o tam an h o o u a influência de Alexandria. E n treta n to , tam b ém tinha um a tradição antiga e venerável, tan to c u l tural com o teológica. Foi fundada p o r u m dos generais de A lexandre, A ntíoco E pifãnio, e nos tem p o s de C risto e dos apóstolos foi u m grande ce n tro de negó cios e de com ércio. O g o v ernador ro m an o de A ntioquia governava a totalidade da Síria, o territó rio ro m an o q u e incluía a Palestina. Foi em A ntioquia q u e os cristãos receberam essa d en o m in ação e, d e n tro da co m u n id ad e cristã prim itiva, se d eu início e p ro sseg u im en to à m issão de P aulo aos gentios. Para os cristãos do século i, A ntioquia era m u ito m ais im p o rtan te d o q u e A lexandria. O foco de b rilh an tism o e criatividade teológica passou para a o u tra cidade nos séculos n e m. A ntioquia
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tam bém enxergava na nova cidade im perial de C onstantinopla, a “nova R om a”, um lugar no qual poderia reconquistar influência e poder. C onstantinopla não tinha n en h u m a tradição antiga im portante e sua igreja cristã era relativam ente nova e fraca antes de C o n stan tin o com eçar a trazer líderes cristãos para lá n o século IV. E m certo sentido, representava u m “cam po m issionário” para outras igrejas, não tanto em term os do evangelism o, m as em term os de u m vácuo no p o d er a ser preenchido. Pode ser grosseira a form a de expressar a situação, m as não há com o ignorar o fa to d e q u e ta n to A n tio q u ia c o m o A le x a n d ria o lh a v a m c o m c o b iç a p ara C o n stan tin o p la e procuravam fazer com q u e seus “filhos p red ileto s” subissem a altos cargos, co m o capelães, presbíteros, diáconos o u até m esm o a bispo, o patriar ca de C o n stan tin o p la, a fim de m elh o rar a reputação c am pliar a influência da cidade e de p ro m o v er seu estilo de teologia. E os dois tipos de teologia diferiam significativam ente.
Hermenêuticas bíblicas diferentes U m a das principais diferenças en tre as teologias alexandrina e an tioquena girava cm to rn o da h erm en êu tica (interpretação bíblica). O padrão alexandrino foi esta belecido nos tem p o s de C risto por Filo, o teólogo c estudioso bíblico ju d aico , que acreditava q u e as referências literais e históricas das E scrituras hebraicas tin h am pouca im portância. P ro cu ro u descobrir e explicar o significado alegórico o u espi ritual das narrativas bíblicas. Em outras palavras, m u ito s trechos da Bíblia hebraica pareciam tratar de um a coisa, m as, para Filo, tratavam de outra. C o m o tentava integrar a religião hebraica com a filosofia grega (especialm ente a platônica), Filo não podia in terp retar co n fo rm e à letra boa parte d o q u e lia nos Profetas. Acreditava q ue, m ediante a interpretação alegórica, poderia d em o n strar a união subjacente en tre o p en sam en to ético e filosófico grego e a religião hebraica. M uitos pensado res cristãos prim itivos aproveitaram as estratégias h erm enêuticas de Filo e foi na própria A lexandria o n d e isso m ais aconteceu. T anto C lem en te co m o O ríg cn es re m exeram nos diversos níveis de significado da Bíblia a fim de descobrir as precio sidades de verdade espiritual ocultas nas narrativas e retratos históricos reais. Q u a n d o os estudiosos cristãos alexandrinos q u e m oravam em A lexandria ou o u tro lugar leram os Profetas e os A póstolos, p ro cu raram e n c o n trar em todos os lugares referências ocultas ao Logos e à existência celestial e espiritual. Justificaram esse m éto d o de interpretação apelando ao p ró p rio apóstolo Paulo. Paulo e m p re gou interpretação alegórica em Gálatas ao falar da lei e d o evangelho (G1 4.21-31). Hagar, escrava de Abraão, é equiparada com a outorga da lei 110 m o n te Sião e com o ju d a ísm o sob o d o m ín io dessa lei. O evangelho aos gentios é equiparado com Sara, esposa de A braão — e um a m u lh e r livre — q u e lhe d eu u m filho (Isaque) co n fo rm e a prom essa. A form a de Paulo descrever tu d o isso é claram ente alegóri-
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ca. U m a personagem do a t co rresp o n d e a um a realidade espiritual e teológica de m o d o bastante d ireto , sendo q u e ficam os com a im pressão de que tal c o rresp o n dência, c a verdade q u e ela revela, é o grande p ropósito da história no AT. O s estu diosos bíblicos alexandrinos, tanto ju d aico s co m o cristãos, ap ro fu n d aram -se em sem elhantes m éto d o s de interpretação. A ntioquia destacou-se p o r ter u m m éto d o h e rm e n êu tico m ais literal e histó ri co. N a tu ralm en te, os teólogos e estudiosos bíblicos da A ntioquia tam b ém reco nheciam na alegoria u m a m aneira legítim a de co m u n icar a verdade, m as p ro c u ra ram não buscar significados espirituais, alegando q u e as história bíblicas não eram alegorias, a não ser q u an d o havia u m bo m m otivo para sê-lo. U m exem plo notável desse m éto d o h e rm e n êu tico an tio q u en o é o grande estudioso cristão T eodoro de M opsuéstia (m o rreu em 428), q u e foi o principal com entarista bíblico e teólogo de A ntioquia. T eodoro escreveu m u ito s com entários sobre as E scrituras e sem pre evi to u a interpretação alegórica, exceto q u an d o evidências claras n o p ró p rio texto o dirigissem a ela. Até m esm o o livro hebraico C ân tico dos C ânticos (p o p u larm en te co n h ecid o co m o C ân tico de Salom ão), q u e é freq ü en tem en te tratado co m o um a alegoria do am o r de C risto pela igreja tam b ém p o r protestantes conservadores m o dernos, foi co nsiderado p o r T eodoro co m o verdadeira poesia de am or. N ão se viu n e n h u m m otivo para in terp retá-lo alegoricam ente. T eodoro reco n h eceu q u e m u i tas personagens e eventos no AT podiam ser interpretados pelos cristãos co m o tipos de C risto e da igreja, tuas recu so u -se a im p o r significados do n t ou da filosofia grega com o principais referências sobre narrativas que claram ente descreviam even tos históricos. Assim , as teologias de A lexandria e de A ntioquia divergiam na própria raiz: a interpretação bíblica. O m éto d o an tio q u en o histórico-literal-gram atical é o m ais influente no cristianism o m o d ern o e ocidental, ao passo q u e o m éto d o alexandrino alegórico-espiritual d o m in o u boa parte do pen sam en to cristão prim itivo e co n ti n u o u um a influência poderosa d u ra n te a Idade M édia, tan to no O rie n te co m o no O cid en te. As linhas de raciocínio diferentes n o tocante às E scrituras e ao seu signi ficado arm aram o palco para o conflito cristológico, co n fo rm e verem os. A lexandria enfatizava a divindade de Jesu s co m o u m a jó ia espiritual oculta p o r trás d o véu de sua hum anidade. O docetism o, a negação da verdadeira h u m an id ad e de C risto, espreitava p o r trás da teologia alexandrina e era um perigo constante de seu estudo bíblico e cristologia. As dim ensões físicas, históricas e relativas à criatura das Escri turas e da encarnação escandalizavam m u ito s alexandrinos, p o r isso, eles p ro cu ra ram m inim izá-las, sem as dem o n izar da m aneira q u e os gnósticos tin h am feito. O s an tio q u en o s en fren taram seus perigos. Ficaram tão cativados pelas realida des históricas e literais, das E scrituras e da pessoa de Jesu s C risto , q u e não conse guiram tratar co m o devido respeito a divindade de am bas. E lógico q u e confessaram
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a inspiração divina das E scrituras e a divindade de C risto . M as m inim izaram os aspectos espirituais e divinos desses m istérios, sem os negar, co m o tinha feito P au lo de Sam osata. A influência q u e a abordagem da interpretação bíblica de cada um a dessas cidades teve sobre as diferentes cristologias ficará m ais claro q u an d o explo rarm os o assunto de m o d o m ais direto.
Soteriologias divergentes U m a segunda diferença en tre as teologias alexandrina e an tioquena tinha q u e ver com a soteriologia, a idéia da salvação. A soteriologia alexandrina apegava-se espe cialm ente ao conceito oriental tradicional da deificação n o decurso da salvação e no seu alvo fin al. N ã o q u e os a n tio q u e n o s o re je ita sse m , m as os teó lo g o s alexandrinos colocavam esse conceito em p rim eiro plano e no ce n tro de todas as m editações teológicas. Sua abordagem básica à pessoa de Jesu s C risto era afetada p o r esse co m p ro m isso prévio, co n fo rm e já vim os nos casos de O rígcnes e de Atanásio. Segundo u m destacado estudioso m o d ern o do pensam ento alexandrino: “Seu p en sam en to fu n d am en tal, à m edida q u e suas idéias sobre a soteriologia são tran s portadas para a cristologia, é que se a nossa natureza deve ser tom ada pela vida divina, o Logos divino deve então u n ir-se a ela e tom á-la para si, pois nele acontece a verdadeira unificação [...] entre a D ivindade e a h u m an id ad e”.1 D esse m odo, o pen sam en to alexandrino a respeito da salvação enfatizava a necessidade da união íntim a en tre o divino e o h u m an o em C risto, para q u e a natureza h u m an a seja transform ada pela natureza divina. Ao m esm o tem po, a ênfase alexandrina sobre a tra n s c e n d ê n c ia (q u a lid a d e s o b re n a tu ra l) d e D e u s, e e s p e c ia lm e n te a sua im utabilidade e im passibilidade, exigia q u e essa união e n tre divindade e h u m a n i dade não transm itissem para a natureza divina as corrupções próprias das criaturas. E nesse p o n to q ue se encontrava o problem a. A abordagem típica alexandrina c o n sistia em d izer q u e em Jesu s C risto o co rreu “um a troca m aravilhosa” pela qual a nossa natureza divina pecadora foi curada pela natureza divina perfeita d o Logos sem q u e a natureza divina do Logos fosse tocada pelas lim itações o u im perfeições das criaturas. A abordagem an tio quena da soteriologia não era to talm en te diferente da abor dagem alexandrina. A m bas concordavam que u m dos grandes aspectos da salvação envolve a deificação ou divinização: cu rar a natureza h u m an a para q u e ela com par tilhe alguns aspectos ou características divinas, com o a im ortalidade. C o n c o rd a vam tam b ém sobre a diferença essencial e n tre as naturezas h u m an a e divina. Tanto os alexandrinos co m o os an tio q u en o s rejeitavam v eem en tem en te a idéia de um a “m etam o rfo se” do h u m an o para o divino ou d o divino para o h u m an o . E ntretanto, os an tio qu en o s estavam m u ito m ais preocupados que os alexandrinos com o papel h u m an o da salvação. E n q u an to os alexandrinos afirm avam q u e a pessoa precisa
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receber o p o d er terapêutico de D eus através dos sacram entos p o r sua livre-escolha, os an tio q u en o s traçavam até à própria encarnação esse papel tão im p o rtan te do livre-arbítrio h u m an o . A h u m an id ad e de Jesu s precisava ter livre atuação m oral para conseguir a nossa salvação. U m a m aneira de descrever essa diferença é dizer que a soteriologia alexandrina era mais m etafísica e a soteriologia an tioquena m ais m oral e ética. C ada um a delas fez valer u m a dessas ênfases, m as tam b ém se to rn o u obsessiva com a própria dis tinção e acusou a o u tra escola de teologia de ignorá-la. O s alexandrinos viam na salvação u m m istério m etafísico m aravilhoso levado a efeito pelo Logos m ediante a união com a h u m an id ad e em Jesu s C risto. O s an tio q u en o s viam na salvação um a realização m oral e ética m aravilhosa levada a efeito p o r u m ser h u m a n o em nosso favor, ao u n ir sua vontade à do Logos divino. E claro que, pelo m en o s depois do adocionism o de Paulo de Sam osata ter sido declarado herético, todos os antioquenos afirm ariam com to d o vigor q u e a própria realização da nossa salvação era obra do F ilho de D eus no h o m em Jesu s e através dele. M as queriam deixar claro especial m en te q u e isso não poderia ter acontecido se a vontade e a m en te do h o m e m não fossem p len am en te h u m anas e exercessem u m papel nesse processo. A h u m an id a de de Jesu s C risto não podia ser concebida co m o u m in stru m e n to passivo, arg u m entavam os antioquenos. Se fosse realm ente u m in stru m en to passivo, nossa m ente e vontade h u m anas não teriam u m m odelo para nos m o strar co m o agradar a D eus e en tra r na u n ião salvífica com ele pela qual som os curados.
Duas variantes cristológicas Esses dois m odos de pensar a respeito das Escrituras e da salvação p ro d u ziram form as extrem am en te diferentes de co nceber a pessoa de Jesu s C risto. Já vim os co m o Atanásio en ten d ia a divindade e a hu m an id ad e de C risto. Para ele, assim co m o para m u ito s o u tro s alexandrinos, a natureza (ousia, pltysis) h u m an a de C risto era passiva e im pessoal. Era u m veículo, pouco m ais do q u e u m invólucro, p o r assim dizer, para o uso do Filho de D eus. Precisava ser real, m as não precisava ter seu n ú cleo de consciência e de vontade d istin to d o Filho de D eus. O m o d o típico de Atanásio e de o u tro s alexandrinos falarem a respeito da encarnação e da união en tre D eus c a h u m an id ad e cm C risto é cham ado, às vezes, cristologia da Palavracarne. Isto é, o Logos (Palavra/Verbo) de D eus assum iu a carne h u m an a sem real m en te en tra r na existência h u m an a em toda a sua plenitude. A hu m an id ad e de Jesu s C risto era a “carne”: corpo e alm a. A polinário colocou os reto q u es finais nessa cristologia ao negar q u e Jesu s C risto possuísse q u alq u er intelecto o u vontade hu m an a ativos. O s an tio q u en o s ficaram h o rro rizad o s com a cristologia da Palavra-carne de A lexandria c co n sid eraram -n a um a heresia tão grave q u an to o adocionism o de
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Paulo de Sam osata, q u e já tinha sido co m p letam en te condenado. O s principais teólogos an tio q u en o s, co n tem p o rân eo s de Atanásio e A polinário, eram E ustáquio de A ntioquia, D io d o ro de Tarso e T eodoro de M opsuéstia. O s três enfatizavam a h u m an id ad e de Jesu s C risto e acusavam os alexandrinos de truncá-la. C o n tra a cristologia alexandrina da Palavra-carne, desenvolveram a cristologia que se to r n o u conhecida co m o a cristologia da P alavra-hom em , na qual a h u m an id ad e de Jesu s C risto não era passiva, m as ativa, com o um a pessoa integral e com pleta. Em vez de e n fatizare m a u n iã o e n tre o d iv in o e o h u m a n o em J e s u s C risto , os an tio q u en o s enfatizavam a distinção en tre as duas naturezas (physeis) nele. C o m isso visavam tan to p ro teger a sobrenaturalidade santa da natureza divina d o Logos co n tra tu d o o pertencesse à natureza das criaturas, co m o enfatizar a integridade da natureza hu m an a, que tinha a capacidade de obedecer a D eus ativam ente, e não passivam ente com o m ero in stru m en to . D io d o ro de Tarso chegou a falar em Jesus C risto co m o “dois filhos”: o Filho de D eus e o F ilho de D avi.2 O s alexandrinos ficaram chocados com a cristologia de D io d o ro po rq u e, para eles, era b astan te sem elh a n te à antiga heresia ad ocionista q u e se espalhou em A ntioquia m u ito s anos antes. Parecia u m a franca negação da união real e ontológica en tre D eus e a raça h u m an a em Jesus C risto. C o m o seríam os salvos se as naturezas h u m an a e divina n ão se to rn assem u m a só n atu reza nele?, qu estio n av am . O s an tio q u en o s retrucavam d izen d o que, se Jesu s C risto tin h a u m a só natureza e não duas, co m o poderia ser “verdadeiram ente d iv in o ” e “verdadeiram ente h u m a n o ”, consubstanciai tan to com D eu s co m o com a hum anidade? A existência de D eus Pai é u m assunto à parte, co m p letam en te diferente de q u alq u er ser criado. E eterna e não tem poral. Im utável e não sujeita a alterações. O ser h u m an o é u m a form a de existência criada. M esm o depois de redim ido, não é divino. C o m p artilh a da d ivin dade ao se to rn ar im ortal. A ferida m ortal do pecado e da m orte é curada, m as até m esm o os santos co m p letam en te redim idos n o céu co n tin u am sendo criaturas e não D eus. P ortanto, argum entavam os antioquenos, co m o a hu m an id ad e e a d i vindade poderiam se to rn ar “um a só n atu re za”? Isso não so m en te seria um m isté rio, m as tam bém a negação das crenças cristãs fu ndam entais a respeito de D eus e da salvação. N a base dessa divergência a respeito das cristologias da Palavra-carne versus da Palavra-hom em havia idéias diferentes a respeito da salvação. S egundo o conceito alexandrino, a salvação plena dependia de u m a encarnação genuína, m as não de um a natureza plena e genuína exatam ente co m o a nossa. A cim a de tu d o , não preci sava ter seu cen tro in d ep en d en te de intelecto, de ação e de vontade. A hum anidade de Jesu s C risto podia ser, e era, um a natureza h u m an a im pessoal. S egundo o c o n ceito antio q u en o , a salvação plena dependia de u m a encarnação genuína, m as não de um a união íntim a en tre a hu m an id ad e e a divindade q u e am eaçaria a verdadeira
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distinção en tre elas, e a encarnação verdadeira devia incluir u m a natureza hu m an a to talm en te individual. Jesu s C risto tinha de ser u m h o m em exatam ente igual a q u alq u er o u tro h o m em — exatam ente co m o Adão! — em b o ra sem pecado. Apolinário e Cirilo, que consideraremos representantes da escola alexandrina de pensamento e que sustentam que a salvação do homem equivale à sua deificação, entendem que somente o próprio Deus pode salvar os pecadores e, conseqüentemente, enfatizam a confissão cristã de que cm Jesus Cristo o Logos divino uniu a natureza humana a si mesmo e se apropriou dela: Jesus Cristo, portanto, é uma só pessoa, o próprio Logos no seu estado encarnado. Os antioquenos entendem a mensagem do Evangelho de outro ponto de vis ta. Entendem que se é para o homem ser renovado naquele estado de obedi ência à vontade de Deus que é envolvido na sua salvação, o Logos divino deve unir-se à humanidade [de Cristo] que, embora tentado até o fim, vencerá onde o primeiro Adão fracassou.3
A heresia de Apolinário: “Deus em um corpo” U m exem plo excelente da antiga cristologia alexandrina da Palavra-carne é o de A polinário de Laodicéia, o infeliz bispo e teólogo cristão am plam ente criticado e co n d en ad o p o r G reg ó rio N azian zen o e pelo C oncílio de C on stan tin o p la. Seu ú n i co erro , segundo os alexandrinos ortodoxos e até m esm o o p ró p rio G regório, foi negar a alm a racional (nous) h u m an a de Jesus C risto e su b stitu í-la pelo Logos. C o n tra a opinião an tioquena, co m o a q u e era sustentada p o r D io d o ro de Tarso, A polinário “buscava garantir um a encarnação verdadeira, co n trarian d o a idéia de um a m era conexão en tre o Logos e o h o m em Je su s”. O p roblem a foi q u e “garantiu essa união orgânica e n tre o h u m an o e o divino so m en te pela m utilação da parte h u m an a”.4 A razão pela qual A polinário “m u tilo u ” a parte h u m an a em Jesu s C risto era soteriológica, é claro. Para ele, assim com o para a m aioria dos alexandrinos, a salvação co m o deificação é possível so m en te se C risto for to talm en te co ntrolado pela vontade e po d er divinos. Se ele tivesse um a alm a, ou m ente/espírito, racional, poderia ter pecado e resistido ao cham ado d o Logos em sua vida, e isso im plicaria qu e a encarnação não teria acontecido. Além disso, se sua alm a fosse racional, ou m en te/espírito, haveria dois cen tro s de consciência, de ação e de vontade em Jesus C risto: u m divino e o u tro h u m an o , e essa seria um a união falsa o u incom pleta da divindade e da hum an idade. S om ente um a verdadeira união natural — duas n a tu rezas reunidas em u m a só pessoa fo rm an d o um a única natureza — pode equivaler a um a encarnação na qual o divino perm eia e cura o h u m an o . A cristologia de A polinário foi condenada n o C o n cílio de C o n sta n tin o p la, não po rq u e incluía a idéia de “u m a só natureza d o D e u s-h o m e m depois da u n ião ” — um a idéia alexandrina c o m u m — m as p o rq u e negava a h u m an id ad e integral e
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c o m p le ta d o Salvador. G re g ó rio N a z ia n z e n o sim p atizav a co m a ab o rd ag em alexandrina, m as não podia p erm itir que fosse levada ao extrem o ao qual A polinário a levou. P ortanto, na fam osa passagem contra A polinário, G regório escreveu: Quem que acredita que ele [Jesus] é um homem sem uma mente humana, realmente não tem uma mente e é totalmente indigno da salvação. Pois tudo aquilo que ele não assumiu, não curou; mas o que se unir à sua divindade tam bém será salvo. Se somente a metade de Adão pecou, então o que Cristo assume e salva também pode ser a metade; mas se toda a sua natureza pecou, precisa se unir à natureza integral do que foi criado e, assim, ser salva na sua integridade.5 O C o n c ílio de C o n s ta n tin o p la c o n d e n o u c o m o h e ré tic a a cristo lo g ia de A polinário, sem solucionar o problem a q u e ela levantou. D epois desse concílio, foi necessário q ue os cristãos concordassem com o conceito an tio q u en o de que Jesu s C risto tin h a u m a natureza hu m an a integral — corpo, alm a e espírito — e até m esm o um a m en te hu m ana. O s an tio q u en o s (com o T eodoro de M opsuéstia) c o n sideraram a decisão um a grande vitória e os alexandrinos, u m a derrota. M an tiv eram -se aten to s a C o n s ta n tin o p la , o b serv an d o e e sp e ra n d o q u e os teólogos an tio q u en o s repetissem a heresia de Paulo de Sam osata para surpreendê-los.
A cristologia dualista de Teodoro de Mopsuéstia O m aior d efen so r na antigüidade da cristologia an tio q u en a d o D e u s-h o m e m foi T eodoro de M opsuéstia. Ele tam bém foi co n d en ad o com o herege, m as som ente depois do século vi e p o rq u e foi considerado p recu rso r de o u tra heresia. Seu des tin o foi sem elh an te ao de O rígenes. Em vida, foi saudado co m o grande estudioso bíblico e teólogo ortodoxo, especialm ente em A ntioquia e arredores. M as, p o r seu pen sam en to ter dado m argem a um a heresia, foi co n d en ad o co m o herege p o r um concílio m ais de cem anos depois de sua m orte. A c ris to lo g ia d e T e o d o ro era d o m in a d a p o r trê s q u e s tõ e s p rin c ip a is : a im u tab ilid ad e d o Logos, o liv re-a rb ítrio de Je su s C ris to e a realidade da vida h u m an a de Jesu s de lutas e de realizações. Se o Logos é v erd ad eira m e n te D eus — co m o en sin a a o rto d o x ia e c o n fo rm e afirm a ram os co n cílio s de N icé ia e de C o n sta n tin o p la — , en tão a sua un ião a u m ser h u m a n o deve provocar u m a m u dança n o h u m a n o e não n o Filho de D eus. N ã o pode ser u m a “un ião n a tu ra l” (um a única n atu reza) p o rq u e nesse caso o F ilho de D eu s teria m u d ad o ju n to com a n atu reza h u m an a para fo rm a r u m a “terceira coisa”. A lém disso, se a h u m an id ad e de Jesu s C risto não incluía u m a m en te e v o n tad e (ttotis) h u m an as, e n tão ele não tin h a liv re-arb ítrio e a co n su m ação de sua un ião à D eu s não seria nada sem elh an te à nossa — seria u m a coisa estática, autom ática e, p o rta n to , não seria u m a co nsum ação. F in alm en te, se não fosse u m a pessoa to ta lm e n te h u m an a, não
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poderia id en tificar-se com nossas lutas e nem se se n tir ten tad o , co m o o b v iam en te aco n teceu . Para T eodoro, tu d o isso resulta em u m fo rte a rg u m e n to em favor da cristologia D e u s-h o m e m ou P alavra-hom em : Ele [Cristo] não é exclusivamente Deus, nem exclusivamente homem, mas verdadeiramente ambos por natureza, ou seja, Deus e homem: Deus, o Ver bo, que assumiu e o homem que foi assumido. O que assumiu não é igual ao que foi assumido, nem o que foi assumido é igual ao que assumiu, mas quem assumiu é Deus, ao passo que quem foi assumido é homem. Q uem assumiu é por natureza aquilo que Deus-Pai é por natureza [...] ao passo que quem foi assumido é por natureza aquilo que Davi e Abraão, cujo filho e descendente ele e, são por natureza. Essa é a razão pela qual ele é tanto Senhor como Filho de Davi: Filho de Davi por causa da sua natureza e Senhor por causa da vene ração a ele. E ele está muito acima de Davi, seu pai, por causa da natureza que o assum iu/’ Para T eodoro, p ortanto, devem os fazer distinção e n tre o “h o m em com q u e D eus se v estiu” na encarnação e o Logos q u e se revestiu do h o m em . A encarnação é o processo de o Logos assum ir u m a pessoa h u m an a e a recíproca obediência da pes soa h u m an a ao Logos. E um a união de “ap razim en to ” e “disposição de v o n tad e”, não de n atureza o u conseqüência. T eodoro p ro lo n g o u -se m u ito para enfatizar a intim idade dessa união, arg u m e n tan d o q u e não se poderia co n ceb er u m a união m ais ín tim a do q u e a encarnação. E m pregou até m esm o a expressão uma so pessoa (prosopon) para descrever a união. O Filho de D eus e a pessoa cooperam tan to entre si, q ue sua atividade co n ju n ta em Jesu s C risto não pode de fato ser separada. N a tu ralm en te, os alexandrinos acharam q u e a explicação da encarnação o fere cida p o r T eodoro era sem elhante ao adocionisino. Falava da divindade de C risto com o um a “habitação” do Logos !10 h o m em e da liberdade do ser h u m a n o co m o um a pessoa integral em relação ao Logos. D ife re n te m e n te de seu an tecesso r D iodoro, T eodoro não falava cm “dois filhos”, m as realm en te parecia conceber Jesus C risto co m o um a espécie de pessoa com posta. O s alexandrinos arg u m e n ta ram q u e a única diferença en tre essa cristologia e a de Paulo de Sam osata era que este en ten d ia q u e o ser h u m an o , Jesus, foi assum ido co m o F ilho n u m relaciona m en to especial com D eus Pai, na ocasião de seu batism o. T eodoro sim plesm ente acreditava q u e a u n ião en tre a pessoa h u m an a e a divina com eçava na concepção de Jesu s e aum entava n o d ecurso da vida. E m am bos os casos, segundo os alexandrinos arg u m en taram , a encarnação era a adoção de u m ser h u m a n o por D eus e não um a pessoa divina q u e realm ente “se tornava carn e”. Q u a n d o o C o n cílio de C o n sta n tin o p la en c erro u as atividades e os bispos re gressaram para as respectivas sés, as diferenças e os ressen tim en to s e n tre A lexandria
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e A ntioquia estavam apenas no início. U m herói alexandrino, A polinário, fora c o n denado, m as a cristologia básica da Palavra-carne, não. N ã o se sabia co m o ela seria desenvolvida sem cair na heresia de A polinário, de “D eus em u m co rp o ”, m as cm breve alguns alexandrinos fariam um a tentativa. T eodoro tin h a se estabelecido fir m em en te co m o u m grande teólogo p erto de A ntioquia, m as sua cristologia da Pa lavra-hom em era silenciosam ente subvertida e atacada pelos alexandrinos com o adocionism o m ascarado. O C oncílio de C onstantinopla oficializou o em prego de term os com o natureza e pessoa a fim de explicar a Trindade. Tanto os alexandrinos com o os antioquenos esta vam d isp o sto s a em p re g ar esses co n c eito s e te rm o s em suas cristologias. O s alexandrinos argum entavam com cada vez mais veem ência que, assim com o a Trin dade é um a só substância, ou natureza, e três pessoas, tam bém Jesus C risto é um a só natureza e um a só pessoa. N ele, a natureza de D eus e a natureza hum ana u nem -se tão com pletam ente que form am um com posto ou u m híbrido. O s antioquenos argu m entavam que Jesus C risto é duas naturezas e duas pessoas (em bora o próprio Teodoro nunca fosse tão longe) que tam bém podem ser consideradas um a só pessoa, assim com o m uitas com unidades ou sociedades com mais de um a pessoa são consideradas pessoas jurídicas aos olhos da lei. C o m respeito à individualidade, os antioquenos afirmavam q ue as duas podiam se tornar um a enq u an to perm aneciam duas. O palco estava m o n tad o para um a guerra teológica. O s alexandrinos estavam ressentidos p o r A polinário ter sido condenado. A chavam q u e tal decisão poderia acabar resultando cm críticas o u até m esm o na condenação de seu grande herói, Atanásio. O s an tio q u en os estavam confiantes e dispostos a to m ar o p o d er eclesiás tico de C o n stan tin o p la. A lém disso, confiavam to talm en te na segurança de seu m aio r teólogo, T eodoro de M opsuéstia, e em sua cristologia d o D e u s-h o m em . M as m an tin h am os olhos abertos e atentos em A lexandria. A guerra teológica aconteceu em 428. O patriarca o rto d o x o de C onstantinopla, u m h o m em de A ntioquia cham ado N e stó rio , subiu os degraus d o grande púlpito da catedral e pregou u m serm ão contra o títu lo de Theotokos atrib u íd o a M aria. Isso d eu início a um a das m aiores controvérsias teológicas e conflitos da história do cristianism o.
14 Nestório e Cirilo levam a controvérsia a uma decisão
A ״participarem
da liturgia (adoração) divina de um a igreja ortodoxa oriental celebrada em seu idiom a, algum as pessoas ficam surpresas e perplexas ao lerem e ouvirem palavras cm grego. U m a palavra grega freq ü en tem en te pron u n ciad a em toda a liturgia de todas as igrejas ortodoxas orientais é Theotokos e obviam ente refe re-se a u m títu lo da V irgem M aria. O q u e ela significa e p o r q u e não é traduzida nas igrejas ortodoxas q u e p ro cu ram se adaptar às culturas não gregas? Theotokos é a relíquia altam ente sim bólica de u m debate do cristianism o antigo e da fó rm u la d o u trin ária q u e dele resultou. Seu uso co n tin u ad o , m il e q u in h e n to s anos depois do debate ter co n su m id o a atenção e as energias de cristãos de todas as partes do Im p ério R om ano, lem bra os cristãos ortodoxos de q u e C risto é D eus. O títu lo em si significa “portadora de D e u s”. As vezes, Theotokos é traduzida com o “m ãe de D e u s”, m as essa não é a tradução preferida. E m bora as duas tradições (a ortodoxa oriental e a católica rom ana) prestem grande reverência a M aria, o título Theotokos na verdade serve co m o indicador da verdadeira divindade de Jesus. Q u a n do M aria d eu à luz o seu Filho, d eu à luz D eus. E sse tip o de ex p ressão a re sp e ito d e M aria e J e s u s era lu g a r-c o m u m em C o n stan tin o p la n o início d o século v. O povo devoto da cidade freq ü en tem en te se referia a M aria co m o Theotokos nos hinos e nas orações. Por isso, foi u m a grande surpresa para m u ito s deles q u an d o o re cém -n o m ea d o patriarca N e stó rio se colo cou de pé na catedral e o rd e n o u q u e cessasse esse uso popular. O s cristãos da cidade ficaram surpresos e preocupados e os espiões alexandrinos, chocados e c o n tentes ao m esm o tem po. Ali estava a o p o rtu n id ad e de pagar a A ntioquia na m esm a m oeda p o r ter ajudado na condenação de A polinário. Fariam N e stó rio pagar por todos os pecados de A ntioquia! Pouco se sabe a respeito da vida de N e stó rio , só que nasceu em A ntioquia ou arredores 110 fim d o século iv e m o rre u exilado no deserto da África d o N o rte p o r volta de 450. Foi provavelm ente aluno do grande teólogo an tio q u en o , T eodoro de
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M opsuéstia. N o m ín im o , foi influenciado p o r ele. E m 428, o im p erad o r Teodósio li, q u e defendia a teologia antio q u en a e era contra a alexandrina, elevou N estó rio ao cargo cobiçado de bispo de C o n stan tin o p la, o q u e au to m aticam en te o to rn o u patriarca da região e papa em érito do O rie n te (assim co m o o bispo de R om a era ho n rad o , em m u ito s círculos, com o papa d o O c id e n te ). A nom eação de N e stó rio foi u m grande golpe para os sonhos alexandrinos de dom ín io . A lém disso, tanto o im perador com o o patriarca perseguiram todo e q u alq u er cristão em C onstantinopla que favorecesse a teologia alexandrina. Tratavam os clérigos e teólogos alexandrinos co m o se fo ssem ap o lin aristas sec reto s q u e esperavam u m a o p o rtu n id a d e de revivificar essa heresia. Talvez houvesse m o tivo para tanto. Todos os alexandrinos insistiam em preser var e p ro m o v er a fórm ula apolinária de Jesus C risto co m o “um a só natureza [tuia physis] depois da u n ião ”. Isto é, os alexandrinos p ro n tam e n te reconheciam q u e o F ilho de D eus era u m tipo de ser, divino, diferente do h o m em Jesu s C risto q u e era hu m ano. M as insistiam que, pela encarnação, desde a concepção no v entre de M aria, a u n ião do F ilho de D eus com a h u m an id ad e resultava na criação de u m D eu sh o m em com u m a só natureza. R econheciam , com relutância, q u e ele tin h a m ente e alm a h u m anas m as não davam m uita im portância a isso, preferin d o enfatizar que ele era o Logos na carne hum ana. A cristologia an tio q u en a estava em alta em 428 q u an d o o filho p redileto de A ntioquia, N e stó rio , o cu p o u a posição eclesiástica m ais poderosa d o lado oriental do Im p ério R om ano. Em A lexandria, o bispo, tam bém um patriarca dada a im por tância da cidade, era u m h o m em cham ado C irilo. P ouco se sabe sobre seu nasci m en to ou sua ju v e n tu d e , m as to rn o u -se bispo da cidade egípcia em 412 e presidiu as igrejas cristãs dali e de todo o Egito até a m o rte, em 444. C irilo não é considera d o u m dos grandes santos da história cristã, em bora tam p o u co tenha sido co n d e nado. Sua reputação é m aculada p o r dois fatores. P rim eiro, p o rq u e quase certa m en te enviou espiões a C o n stan tin o p la para espreitarem a grande catedral e apa n h arem N e stó rio (e q u alq u er o u tro eclesiástico p roveniente de A ntioquia) em al gum a heresia. Estava com os olhos fixos no cen tro de p o d er ocupado pelo teólogo an tio q u en o . Segundo, p o rq u e suspeita-se q u e C irilo serviu de p o n te para duas heresias, em b o ra sua cristologia em si fosse basicam ente confiável e tivesse recebi do a sanção de dois grandes concílios ecum ênicos. As duas heresias às quais C irilo serviu de p o n te são: o apolinarism o, q u e veio antes de sua época, e o m onofisism o, que veio depois. Essa últim a heresia surgiu depois da m o rte de C irilo e apresentou um a versão radical e inflexível de sua teologia, especialm ente da fórm ula de C risto co m o “um a só n atu reza”. N a m an h ã de N atal de 428, pouco depois da sua chegada em C onstan tin o p la, N e stó rio p regou seu serm ão infam e q u e condenava o títu lo de M aria: Theotokos.
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D isse à congregação, q u e incluía m u ito s clérigos visitantes e m em b ro s da corte im perial, q u e os cristãos não deviam se referir a M aria co m o “portadora de D e u s ”, p o rq u e é errado dar o n o m e de “D e u s” a q u em tem dois o u três m eses de idade. A veneração a M aria não era o problem a. O problem a era, seg u n d o N e stó rio , a c o n fusão en tre as naturezas d iferentes de Jesu s C risto. S eguindo fielm ente a cristologia dualista de T eodoro de M opsuéstia até sua conclusão lógica, N e stó rio arg u m e n to u q u e a n atureza divina não pode nascer, da m esm a m aneira q u e não pode m orrer. A natureza divina é im utável, im passível, perfeita e incorruptível. P ortanto, em b o ra a natureza h u m an a de Jesus tenha nascido de M aria, isso não se aplica à natureza divina. N e stó rio d eu à congregação licença para cham ar M aria de Christotokos, que significa “p o rtadora de C risto ”. E m bora seja teologicante co rreto dizer que “C risto nasceu de um a m u lh e r”, não é o rtodoxo, co n fo rm e declarou N e stó rio , dizer que “D eus nasceu de u m a m u lh e r”. E im p o rtan te e n te n d e r precisam ente o q u e N e stó rio quis dizer. Ele não estava negando a d ivindade do F ilho de D eus. N ã o era, de fo rm a algum a, ariano ou subordinacionista. C o n cordava sinceram ente com a teologia trinitária nicena da igual divindade e glória do Pai, d o Filho e d o E spírito Santo. O p roblem a é q u e ele acreditava tão en faticam ente na divindade d o Logos, o u F ilho de D eus, q u e negava q u alq u er atribuição a ele de características o u experiências próprias à criatura. (Ario teria pulado de alegria e gritado: “Vejam! Eu sabia q u e isso aconteceria ao negar a condição de criatura d o Logos!”.) N e stó rio tam b ém não estava negando o nasci m en to virginal de Jesu s C risto. Para N e stó rio , a V irgem M aria d eu à luz o h o m em Jesus C risto q ue, desde o m o m e n to da sua concepção, estava in tim am e n te u n id o ao etern o Logos de D eus. Pelo m enos n o início, ele estava sim p lesm en te in terp re tan d o e aplicando a clássica cristologia an tio q u en a de seu m en to r, T eodoro de M opsuéstia. Parece q u e N e stó rio , q u e tam bém não foi u m dos cristãos m ais am ados da história, estava u san d o o títu lo Theotokos a fim de castigar os alexandrinos em C o n stan tin o p la. Estes, em especial, am avam o título. M as N e stó rio o considerava cripto-apolinarista. N a m en te de N e stó rio , u m ún ico ser não pode ser p len am en te h u m an o e ao m esm o tem p o plen am en te divino. D a m esm a form a que m u ito s an tio q u en o s, ele achava q u e essas realidades eram m u tu a m e n te exclusivas e q u e Jesu s C risto sem dúvida era e tin h a de ser co m p letam en te h u m an o . P ortanto, d i zer q u e M aria d eu à luz D eus é negar q u e Jesu s C risto era u m ser h u m an o , assim com o nós som os seres h u m anos. O s m otivos de N e stó rio para co n d e n ar o título eram p ro v a v elm en te tão co m p lex o s q u a n to os de C irilo ao e n v ia r espiões a C o n stan tin o p la para ap anhá-lo em heresia. P rovavelm ente, am bos tin h am convic ção de q u e as abordagens das suas respectivas cidades à d o u trin a de C risto estavam corretas e q u e faziam parte do p ró p rio evangelho. Para eles e para seus seguidores,
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tratava-se de um a batalha em defesa d o evangelho e da d o u trin a verdadeira de Jesu s C risto. M as talvez os dois se sentissem culpados de m istu rar u m m otivo p u ra m e n te teológico com m otivos políticos im puros. N e stó rio queria desarraigar de C o n sta n tin o p la todos os vestígios e lem branças da influência alexandrina. C irilo qu eria vindicar a teologia alexandrina d esferindo u m golpe ao prestígio an tio q u en o tão forte q u an to o golpe q u e a reputação da sua cidade sofreu q u an d o A polinário foi condenado. N estó rio escreveu seus arg u m en to s contra Theotokos na sua encíclica pascal em 429. Assim, to rn o u oficiais suas declarações. O patriarca de C o n stan tin o p la agora considerava um a heresia a referência de Theotokos a M aria. A som bra do im perador p o r detrás de N e stó rio to rn o u essa definição especialm ente am eaçadora para os alexandrinos e para o u tro s, e C irilo viu sua o p o rtu n id ad e de “desferir o golpe”. D uas coisas com eçaram a acontecer nesse sentido. Prim eira, alguns alexandrinos em C o n stan tin o p la com eçaram a pregar cartazes an ô n im o s em diferentes partes da cidade e p erto das igrejas, colocando lado a lado frases de N e stó rio co m ditos d o herege an tio q u en a Paulo de Sam osata, cuja h e re sia adocionista fora condenada quase d u zen to s anos antes. C irilo considerava a cristologia de N e stó rio um a form a sofisticada de adocionism o, assim com o N estório considerava a cristologia de A lexandria u m a form a sofisticada de apolinarism o. O s cartazes cham aram atenção e os habitantes de C o n sta n tin o p la com eçavam a co m en tar a respeito da ortodoxia falha de N estório. A segunda coisa que aconteceu foi um a troca de correspondência vigorosa entre C irilo e N estó rio e o u tros bispos do Im pério R om ano. C irilo escreveu várias cartas a N estó rio , e ele respondia, explicando incisivam ente sua abordagem antioquena à pessoa de Jesus C risto. As cartas de C irilo a N e stó rio eram mais cautelosas e evita vam cuidadosam ente expressões radicais da cristologia apolinariana. C irilo reconhe cia a existência de um a alm a hum ana racional em Jesus C risto, m as, ao m esm o tem po, continuava a afirm ar e defender a união entre D eus e a hum anidade em C risto com o “um a só natureza”. N estó rio insistia q u e a união tinha “duas naturezas”. N e m C irilo n em N e stó rio p ro d u ziram grandes clássicos da teologia cristã. A m aior parte dos escritos deles consistia em longas epístolas e sua linguagem escrita e seus arg u m en to s são bastante confusos. Suas form ulações estão eivadas de am b i güidade e os estudiosos dessa disputa não cansam de debater o q u e cada u m quis dizer com palavras-chave o u se, na realidade, estavam d izen d o a m esm a coisa com palavras e locuções diferentes. Tratava-se apenas de u m grande equívoco? D e um a rixa sem ântica? Sem dúvida, havia u m p o u co disso. N e stó rio e C irilo poderiam ter chegado a u m acordo em suas idéias se lhes fosse dado tem p o suficiente, em bora seus seguidores provavelm ente fossem m ais extrem ados. A d o u trin a oficial o rto doxa da pessoa de C risto é u m tipo de m eio -term o e n tre os conceitos deles e ela foi
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lavrada depois da m o rte desses antagonistas. N ã o se pode, n o en tan to , negar que pensavam de m o d o d iferente a respeito de certos aspectos absolutam ente cruciais da encarnação. A diferença e n tre eles não é passível de ser reduzida in teiram en te a um a confusão nas palavras. O que com plica a interpretação de C irilo e de N e stó rio é o fato de q u e o m odo de pensar de cada u m foi desenvolvendo e m u d an d o com o tem po. O ún ico livro co nhecido de N estó rio — O livro de Heráclides — era u m a defesa da sua teologia, escrita depois de ele ter sido deposto e exilado. Ao que parece, algum as de suas opiniões foram alteradas a fim de colocá-las de form a m ais favorável. A lguns estu diosos arg u m en tam q u e o livro com prova que, na verdade, ele n em sequer su sten tava o u ensinava a heresia q u e recebeu o seu no m e — o nestorianism o. O mais provável é que ten h a alterado a sua posição a fim de reconquistar sua reputação. As obras principais de C irilo no tocante à cristologia consistem nas cartas dirigidas a N estó rio e, nelas, pode-se perceber certa m udança e desenvolvim ento. P or isso, é difícil estabelecer exatam ente o q u e cada um desses patriarcas acreditava e ensina va. A pesar disso, e a despeito de toda incerteza e am bigüidade, existem certos tem as geralm ente reco n h ecid os q u e po d em ser taxados co m o típicos de C irilo o u de N estó rio . N eles co n cen trarem os a atenção, sem nos d eter na discussão de detalhes. A cristologia de N e stó rio pode ser m ais bem considerada co m o um a tentativa de levar a cristologia de T eodoro de M opsuéstia a um a conclusão lógica. A partir de Paulo de Samosata e do mais ortodoxo Luciano de A ntioquia, os teólogos antioquenos enfatizaram a hu m an id ade de Jesus C risto e, ao m esm o tem po, tentaram dar tam bém o devido valor à sua divindade. N estó rio tin h a diante de si o desafio de C irilo e seus seguidores: “C o m o vocês po d em dizer que Jesus C risto é consubstanciai (homoousios) com D eus e com os seres h u m anos, se declararam que ele era com ple tam ente h u m an o ?”. O desafio que o próprio N estó rio fez a C irilo e aos alexandrinos foi: “C o m o vocês podem dizer que Jesus C risto é verdadeiram ente D eus e verda deiram ente h o m em , se vocês negam q u e ele era um a união de duas naturezas dife rentes?”. N e stó rio p ro cu ro u elaborar um a m aneira de explicar a verdadeira h u m a nidade de Jesus e sua verdadeira divindade que preservasse a integridade natural das duas realidades na sua pessoa. N ão podia conceber um a natureza (physis) hum ana sem u m a pessoa (prosopon) ligada a ela. U m axiom a básico d o p e n sa m e n to de N estó rio era q ue a verdadeira h u m anidade não pode existir de m o d o algum sem um a pessoa h u m an a individual que seja o centro da natureza hum ana. Prosopon (pessoa) e physis (natureza) estão ju n to s , tanto na h u m anidade com o na divindade. Isto significava, n atu ralm en te, q u e N e stó rio tin h a de afirm ar q u e Jesu s C risto era duas pessoas. T eodoro não chegou a esse po n to , em b o ra sua conceituação su gerisse isso. T endo co m o p o n to de partida a idéia de T eodoro de q u e a encarnação é o Logos “assu m in d o u m h o m e m ” e u m h o m em sendo “assum ido pelo Logos”,
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N estó rio arg u m en to u q u e a encarnação é a habitação m ú tu a de duas pessoas, um a na outra: o etern o Filho de D eus e o ser h u m an o m ortal, Jesus. A essa união a trib u ím os o n o m e de Jesu s C risto , o u sim plesm ente Jesus, e consideram os a própria u n ião um a “pessoa” n o sentido co m p o sto o u coletivo. P ortanto, para N estó rio , “em Jesu s C risto , D eu s u n iu o prosopon divino com u m a natureza h u m ana, m as isso n ão d c s tró i, d e m o d o a lg u m , as d u a s prosopa [p e sso a s] n a tu ra is , q u e co rresp o n d em a cada um a das duas “naturezas com pletas” o u Uypostases q u e estão unidas em C risto ”.1 C o m o duas pessoas p o d em ser um a só? Esse era o d ilem a q u e N e stó rio tin h a dian te de si. A fim de evitar o ad o c io n ism o (n o qual o h o m e m Jesu s C risto é m era m en te “u m o b jeto de ap ro v eitam en to d iv in o ”), N e stó rio teve q u e explicar a verd ad eira u n ião e n tre o div in o e o h u m a n o em Je su s C risto . T in h a de haver u m a m an eira de d izer q u e, em b o ra J e su s C risto fosse h u m a n o , tam b ém era v er d ad e iram en te divino. A solução de N e stó rio foi p o stu lar u m tipo especial de u n ião q u e ch a m o u de synapheia. E m latim , a palavra é trad u zid a p o r conjunctio e, p o r isso, a idéia de N e stó rio é trad ic io n a lm e n te cham ada de “c o n ju n ç ã o ”. Jesu s C risto era u m a co n ju n çã o da natu reza-p esso a divina com a natu reza-p esso a h u m ana: o Logos d iv in o e te rn o e a pessoa h u m a n a de Je su s em ín tim a união. D e acordo com N e stó rio , essa co n ju n çã o p o d e ser tão ín tim a e fo rte a p o n to de fo rm ar um n o v o tip o de en tid ad e, assim co m o a totalidade q u e é m aio r do q u e a som a de suas partes. S eg u n d o ele, “a u n id ad e de prosopon baseia-se 110 fato de q u e o prosopon d o Logos faz uso d o prosopon da h u m a n id a d e de C risto co m o u m in s tru m e n to , u m organon. A totalidade é a u n ião das duas naturezas, de u m e le m e n to visível e o u tro invisível”.2 N e stó rio co m eço u a en c o n trar problem as qu an d o , re sp o n d en d o a algum as das perguntas de C irilo, p ro c u ro u aprofundar-se na explicação da idéia da conjunção na encarnação. C irilo sabia que, se pudesse fazer N e stó rio c o n tin u ar sua explica ção, este acabaria revelando do q u e se tratava: um a form a sofisticada de adocionism o. A única diferença estava 11 a pessoa q u e tinha adotado o h o m em e n o m o m e n to da adoção. A sem elhança principal era o fato de que, tan to 110 adocionism o co m o no nesto rian ism o , o F ilho de D eus n u n ca realm ente entrava na existência h u m ana. A pessoa h u m an a na co njunção nestoriana perm anece não apenas d istinta em sua natureza, mas tam b ém u m a pessoa diferente d o F ilho de D eus. N e stó rio provou ter essa op in ião q u an d o (segundo C irilo) em p reg o u a analogia do casam ento. A pa ren tem en te, ele a rg u m e n to u que, assim co m o n o casam ento duas pessoas in d e p en d e n te s se ju n ta m em um a un ião q u e tran scen d e as diferenças, tam b ém na encarnação o Filho de D eus e o Filho de Davi form am urna un ião (sob a iniciativa do Filho de D eu s) q u e tran scen d e as naturezas diferentes. Essa união é u m v ín cu lo de co m p an h eirism o e de cooperação de vontades, m ais forte d o q u e q u alq u er
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am izade ou casam ento hu m an o s. Esses laços fo rn ecem apenas um a vaga idéia do q u e significa essa união. N estó rio tam bém caiu na arm adilha de C irilo q u an d o chegou a negar um dos princípios cristológicos m ais queridos de C irilo: a comnnmicatio idiomatiim ou “co m unicação de atrib u to s”. S egundo C irilo, se Jesus C risto era realm ente o Verbo encarnado — D eus na carne — , seria teologicam ente correto atribuir a ele toda a glória, m ajestade e poder da divindade e, ao m esm o tem po, atribuir ao Filho de D eus que se to rn o u h u m an o toda a fraqueza e m ortalidade e sofrim ento da hum anidade. N e stó rio rejeitou fero zm en te esse conceito. Para ele, essa era u m a das vanta gens principais da sua idéia de co n junção na encarnação. Ela p erm itia dizer que Jesus C risto é tan to v erdadeiram ente D eus q u an to verdadeiram ente h u m an o , sem m istu rar os dois. Ele q ueria p o d er dizer q u e a pessoa divina da u nião operava os m ilagres e q u e a pessoa sofria. A divindade não pode sofrer e a h u m an id ad e é incapaz de alterar o d ecurso da natureza. O bviam ente, duas pessoas diferentes exis tiam nele e faziam essas coisas. M as sem pre as faziam ju n ta s. Ele ficou h o rro rizad o com a idéia da communicatio idiomatum de C irilo e a u to m aticam ente rejeitou-a com o apolinariana. C irilo q ueria d izer q u e o F ilho de D eus sofreu e m o rre u (p o r causa da união com a natureza h u m an a) e q u e o h o m em Jesu s an d o u sobre as águas e leu os p ensam entos das pessoas (por causa da d iv in dade). Para N e stó rio , esse co n ceito provava q u e C irilo não distinguia co rreta m en te o h u m a n o d o divino, u m a heresia q u e, seg u n d o ele, co rro m p ia toda a cosm ovisão cristã. D evem os ten tar sim patizar com N e stó rio até certo ponto. Afinal, a G rande Igreja tinha acabado de definir, m eio-século antes, que a T rindade significava u m a só substância e três pessoas e aceitado a opinião de G regório de N issa de q u e as três pessoas, em b o ra fossem distintas, nunca estavam separadas e faziam tu d o em co m u m . P or que o m esm o sistem a de conceitos não podia ser aplicado à encarnação? A opinião de N e stó rio parece coerente, pelo m eno s superficialm ente, te n d o em vista a d o u trin a ortodoxa da Trindade. A diferença, p o rém , é q u e as hypostases (pes soas) da T rindade co m p artilh am de um a ousia (natureza) cm co m u m , ao passo que as duas physeis (naturezas) do C risto nestoriano têm diferentes prosopa (pessoas) ligadas a elas. Esse fato faz u m a grande diferença na equação. N o caso da união contida em C risto , o lado divino é etern o e o n ip o ten te, ao passo q u e o lado h u m a no é m ortal e fraco. A “u n iã o ” não poderia ser tão forte co m o a das pessoas da D ivindade. N ão há dúvida de q u e a intenção de N e stó rio era boa. Ele queria preservar a integridade da natureza de D eus e da natureza h u m an a, m esm o na encarnação, po stu lan d o um a “u n ião de naturezas”. Q u eria, tam b ém , dar o devido valor à h u m anidade de Jesu s C risto e im p ed ir que ela fosse absorvida na divindade, truncada
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ou de algum a form a diferenciada da nossa. Afinal, N e stó rio argum entaria, as p ró prias E scrituras não dizem q u e Jesu s C risto “ia crescendo em sabedoria, estatura e graça diante de D eus e dos h o m e n s” (Lc 2.52)? N o en tan to , apesar de suas in te n ções louváveis — m uitas das quais eram com partilhadas p o r cristãos m ais o rto d o xos — , N e stó rio não conseguiu explicar a unidade de C risto. N o fim , a despeito de sua tentativa heróica de explicar co m o a conjunção de duas pessoas equivalia a um a única pessoa (prosopon), seu C risto to rn o u -se dois indivíduos e não um . O Filho de D eu s não ex p erim en to u verdadeiram ente a existência h u m an a “na carne” m as so m en te “através da associação com o h o m e m ”. C irilo tinha razão ao criticar a cristologia de N e stó rio com o u m adocionism o revestido e disfarçado.
A cristologia de Cirilo de Alexandria O q u e se pode d izer a respeito da cristologia de C irilo? E correta a acusação de N e stó rio de que ela é u m apolinarism o revestido e disfarçado? E difícil dizer. Todo estudioso q u e pesquisa a cristologia de C irilo e escreve a respeito, chega à m esm a conclusão: ela é am bígua. N ad a m ais podem os fazer senão explicar seu co n teú d o co n fo rm e a igreja trad icionalm ente o tem in terp retad o e ressaltar q u e m uitos estu diosos identificam tensões e conflitos nos escritos de C irilo. D e m o d o geral, seg undo consta, a contribuição original de C irilo à cristologia é a d o u trin a da união hipostática — o u pelo m enos suas idéias básicas. Ela to rn o u -se o alicerce da G ran d e Igreja na explicação e interpretação do m istério da encarnação de D eus em C risto. E m poucas palavras, ela significa q u e o sujeito da vida de Jesu s C risto era o Filho de D eu s q u e assum iu u m a natureza e existência hum ana, sem deixar de ser v erd ad eiram en te divino. P or outras palavras, segundo C irilo, não havia n e n h u m sujeito pessoal h u m a n o na encarnação. A hypostasis (subsistência pessoal) de Jesu s C risto era o etern o Filho de D eus que co ndescendeu em assum ir a carne h u m an a através de M aria. S egundo o arg u m en to de C irilo, M aria deu à luz a D eu s em carne. Essa é a essência da encarnação. C o m o isso difere do apolinarism o? E aqui q u e aparece a am bigüidade d o p e n sam en to de C irilo. P or u m lado, C irilo e seus colegas alexandrinos adm itiam a existência da alm a h u m an a d e je s u s. D ife ren tem en te do apolinarism o, a cristologia deles reconhece a psicologia h u m an a d e je s u s , de m o d o q u e este realm ente cres ceu em sabedoria e graça diante de D eus e dos seres h u m an o s e não so m en te em “estatu ra” (corpo): “O C irilo da controvérsia nestoriana reconhece um a psicologia h u m an a real em Jesu s C risto. O so frim en to é transferido à alm a, b em co m o ao corpo e, acim a de tu do, vê-se a relevância da obediência h u m an a e d o ato sacrificial de C risto. Para os alexandrinos tam bém , a alm a de C risto to rn a-se u m fator teo ló gico”.3 N o en tan to , para não “dividir a pessoa” do m o d o n estoriano, C irilo tam bém enfatizou a u n id ade do sujeito ou pessoa em C risto , de m o d o que so m en te o
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Logos divino é verd ad eiram ente pessoal e ativo nele. O resultado é q u e para C irilo, ou C risto não tinha u m ce n tro pessoal h u m a n o de consciência e de vontade ou este era inativo. O que é um a alm a racional sem u m a personalidade livre? Esse é o dilem a e n frentado pela cristologia de C irilo. Para ele, o Filho de D eus fo rm o u a p ersonalida de de Jesu s C risto . Ele era essa personalidade. A hu m an id ad e aparece anhypostasia — im pessoal. M as ela é m ais do que u m m ero corpo e força anim al vital. A n a tu re za h u m an a de Jesu s C risto incluía todos os aspectos da verdadeira hum anidade: corpo, alm a, espírito, m ente, vontade. Só q u e não tinha n e n h u m a existência pes soal in d ep en d en te do Logos. A fó rm u la predileta de C irilo para expressar a encarnação era: “D eus, o Logos, não e n tro u em u m h o m em , m as ele ‘v erd ad eiram en te’ to rn o u -se h o m e m sem deixar de ser D e u s”.4 Ele rejeitou to talm en te a idéia de “co n ju n çã o ” da união e su b stitu iu -a pela u n ião hipostática, a u nião de duas realidades em u m a só hypostasis ou sujeito pessoal: o Logos. Para ele, a idéia da conjunção nestoriana se resum ia em nada m ais do q u e a cooperação en tre duas pessoas, u m a h u m an a e o u tra divina. Trata-se de u m tipo de adocionism o. O m esm o podia-se dizer a respeito de q ual q u e r profeta. S egundo C irilo, a união e n tre a hu m an id ad e e a divindade na única hypostasis do Logos era tão forte q u e devíam os falar de “u m a só natureza depois da un ião ”. E m ou tras palavras, em b o ra seja possível falar co n ceitu alm en te da h u m a nidade e divindade de C risto co m o duas physeis ou naturezas divinas, na realidade, a união na encarnação torna-as “um a só natu reza”. Por Jesu s C risto ser o D e u s-h o m e m de um a só natureza, C irilo podia ju stificar seu p rin cíp io de communicatio idiomatum para falar a respeito da encarnação. Por m eio da encarnação, o ún ico sujeito pessoal do Filho de D eus era tan to divino q u an to h u m an o (em bora a natureza h u m an a não fosse pessoal); p o rtan to , é co rre to dizer q u e o Filho de D eus nasceu, cresceu, sofreu e m o rre u e q u e o ser h u m an o , Jesus, o p ero u m ilagres, p erd o o u pecados e d erro to u a m orte. Eles são u m a única pessoa com dois m odos de ser. N a tu ralm en te, os nestorianos e o u tro s an tio q u en o s não conseguiam ver nisso nada m ais d o q u e um a m istu ra da divindade com a h u m anidade e até o p ró p rio C irilo negou q u e isso significava q u e D eus havia sofrido realm ente. Ele sofreu apenas p o r m eio da h u m an id ad e q u e to m o u para si com o um in stru m en to na encarnação. A m bíguo. C irilo escreveu várias cartas a N estó rio , co n clam ando-o a perceber o erro dos seus pensam entos e m u d ar sua cristologia. N e stó rio recusou-se. Suas respostas só serviram para au m en tar as divergências. Em conseqüência disso, C irilo apelou ao bispo de R om a — para a m aior alegria deste! — e pediu um concílio ecum ênico plenário para d irim ir a controvérsia. O bispo de R om a investigou o caso e escreveu um a resposta a C irilo, co n d en an d o N e stó rio c sua heresia e re co m en d an d o q u e ele
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fosse deposto de seu cargo de patriarca de C onstan tin o p la. C irilo im ediatam ente usou a carta do papa para pressionar o im p era d o r a convocar u m concílio para investigar e co n d en ar N estó rio . O im perador hesitou m as co n co rd o u p o rq u e ti n h a certeza de q u e sem elh a n te concílio v indicaria N e stó rio e toda a tradição antioquena. O concílio devia reu n ir-se em Éfeso em 413, tão logo todos os bispos chegassem .
O Concílio de Efeso C irilo e seus leais bispos foram os p rim eiro s a chegar e tiveram de esperar alguns dias. Q u a n d o n in g u ém m ais apareceu, C irilo, o ún ico patriarca presente, abriu a sessão do concílio e deu início aos trabalhos na ausência de N e stó rio o u de qual q u e r o u tro bispo leal a A ntioquia. P rim eiram en te, os bispos re u n id o s leram em voz alta o Credo niceno de C o n stan tin o p la i e o reafirm aram , declarando que era suficiente com o credo e que co n tin h a a verdade essencial da cristologia ortodoxa. Em seguida, foi lida a segunda carta de C irilo a N estó rio . C o n tin h a suas declara ções a respeito do Filho de D eus co m o o sujeito da vida h u m an a d e je s u s C risto e criticava severam ente o d u alism o cristológico de N estó rio . O s bispos votaram em favor dela co m o a interpretação verdadeira e autorizada do Credo niceno no que dizia respeito à pessoa d e je s u s C risto. F inalm ente, o concílio co n d e n o u N e stó rio e su a c ris to lo g ia c o m o h e re sia . A d e c la ra ç ã o o fic ia l c o n tra o p a tria rc a de C o n stan tin o p la dizia: O Santo Sínodo que, pela graça de Deus, em conformidade com a ordenança [...] dos nossos reis piedosos que amam a Cristo, está reunido em Éfeso, por causa de Nestório, o novojudas! Saiba que, por causa de seus ensinos ímpios [...] e desobediência aos cânones, de acordo com o decreto dos estatutos da igreja, no dia 22 do mês de junho, está condenado pelo Santo Sínodo e desti tuído de qualquer dignidade na igreja.5 O C o n cílio de Éfeso, em geral considerado o terceiro concílio ec u m ên ico da C ristandade, não p ro m u lg o u q u alq u er credo novo, m as en d o sso u u m a crença e a declarou obrigatória para todos os cristãos. É um a fó rm u la dogm ática tirada quase que palavra p o r palavra das cartas de C irilo a N estó rio : “O etern o F ilho do Pai é u m e exatam ente a m esm a pessoa q u e o F ilho da V irgem M aria, nascido n o tem po e na carne; p o r isso, ela pode ser co rretam en te cham ada M ãe de D e u s ”.6 P ouco depois de o C oncílio de Éfeso, dirigido p o r C irilo , ter com pletado os seus trabalhos, o bispo de A ntioquia chegou com os seus colegas. Im ediatam ente, separaram -se dos bispos já reu n id o s e fizeram u m C o n cílio rival de Éfeso. C o m e çaram a co n d en ar C irilo e suas fórm ulas e a co n firm ar N e stó rio co m o patriarca de C o n stan tin o p la. A ntes de acabarem , os bispos do O c id e n te e os delegados papais
N e stó rio e C irilo levam a controvérsia a u m a decisão
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chegaram de R om a e se re u n iram com C irilo e seu concílio, q u e p ro n tam e n te ratificou os atos anteriores, de co n d e n ar e d ep o r N estó rio . T udo foi m u ito confuso e, em últim a análise, dependia de um a decisão do im perador. D e m o d o típico, o im perador não gostou d o cism a e pressio n o u todas as partes a chegarem a u m acordo. N o e n tan to , apoiou a decisão d o co n cílio d e d ep o r N e stó rio e este foi m an dado ao exílio depois q u e João, bispo de A ntioquia, concor d o u com a solução sob a condição de C irilo co n co rd ar em afirm ar a fó rm u la das duas n atu rezas para a cristologia orto d o x a. C irilo c o n c o rd o u re lu ta n te m e n te , co n tan to q u e as duas naturezas de C risto não fossem divididas. Para ele: “U m a distinção en tre as naturezas é necessária, u m a divisão é repreensível. Falar de duo physeis (duas naturezas) é fazer u m a distinção, m as em si não significa dividir; só terá este efeito se a intenção repreensível de dividir for associada a ela”.7 Sabia-se q u e C irilo preferia a fó rm u la de “u m a só n atu re za depois da u n iã o ” e m u ito s dos seus colegas e seguidores alexandrinos ficaram su rp reso s com esse acordo. A charam q u e ele tin h a traído a causa, p o r assim dizer, ao p e rm itir q u a l q u e r arg u m e n to de duas naturezas em C risto . Afinal, d isseram , duas n aturezas não su b e n te n d e m duas pessoas? C irilo d efen d eu seu acordo com A n tio q u ia em u m d o c u m e n to co n h e cid o na h istó ria da igreja p o r F ó rm u la de R eu n ião (433), no qual insiste q u e as duas naturezas são distintas so m en te 110 p en sa m e n to e não de fato. E altam en te im provável q u e os a n tio q u e n o s co n co rd assem com isso. Para eles, a distin ção e n tre as duas n aturezas de C risto era ontológica e não m e ra m e n te m ental. A F ó rm u la de R eunião de 433 foi assinada p o r C irilo de A lexandria e p o r João de A ntioquia e ratificada pelo im perador. Ela evitou o cism a total das duas grandes cidades. C ada lado obteve u m pouco do q u e queria. A lexandria conseguiu que N e stó rio fosse con d en ado, deposto e m andado ao exílio, de o n d e n u n ca v oltou, a d e sp e ito dos vários esfo rço s feitos em seu favor. A n tio q u ia c o n s e g u iu fazer A lexandria re c o n h e c e r na e n c arn a ção a u n iã o de d u as n atu re zas, e m b o ra os alexandrinos secretam ente rejeitassem a idéia. O bv iam en te, C irilo não quis dizer com isso nada do q u e m u ito s an tio q u en o s pretendiam . P orém , vários dos próprios seguidores de C irilo ficaram ressentidos p o r ele ter feito esse acordo e esperavam ter um a o p o rtu n id ad e de rep u d iá-lo e de reafirm ar a fó rm u la de u m a só natureza, que tan to prezavam . E n q u an to C irilo estivesse vivo, isso seria im possível. D epois do C o n cílio de Efeso e da F ó rm u la de R eunião, ficou claro q u e não havia se decidido m u ita coisa positiva. D uas grandes heresias cristológicas tin h am sido anatem atizadas (condenadas): o apolinarism o e o nestorianism o. Se alguém quisesse ser m em b ro da G rande Igreja católica e ortodoxa, não poderia negar a h u m an idad e da alm a racional de C risto e n em dividir as suas duas naturezas em duas pessoas. Isso significava que, em 440, para ser u m cristão católico e o rtodoxo
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era necessário crer q u e o Salvador tinha u m a m en te h u m an a e um a m en te divina, m as q u e não era duas pessoas! N ã o é de adm irar q u e m uitas pessoas continuassem confusas e q u e a controvérsia fosse ressurgir em nova form a e precisar de m ais u m concílio ecu m ên ico para solucionar o caso definitivam ente.
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0 s cristãos q u e viveram em 450 e q u e conseguiram se lem brar dos eventos da controvérsia ariana q u e levou ao C o n cílio de C o n stan tin o p la em 381 devem ter sen tid o um a espécie de déjà vu. O bv iam en te, não restaram m u ito s deles. M as, sem dúvida, alguns dos m onges, sacerdotes e leigos cristãos m ais velhos de C o n sta n tinopla podiam lem b rar do rancor e das rixas que aconteceram setenta anos antes, qu an d o os ú ltim o s vestígios da heresia m ais d aninha foram erradicados das listas de d o u trin as oficiais da igreja. Agora, em m eados d o século v, tu d o parecia estar se rep etin d o só que, dessa vez, as partes envolvidas na disputa concordavam em um a coisa: a d o u trin a da Trindade. Essa divergência, tão intensa e divisora q u an to a o utra, dizia respeito à natureza do D eu s-h o m em , Jesu s C risto. C o m o sem pre, essa questão era apenas u m a facha da. Por trás dela, d iscu tin d o sobre a term inologia apropriada para descrever a pes soa e existência de Jesus, encontravam -se idéias in teiram en te diferentes sobre a salvação. A im portância d e je s u s C risto era co m o Salvador do m u n d o . Todos c o n cordavam q ue, a fim de levar a efeito a salvação, Jesu s tin h a q u e ser verdadeira m en te D eus e v erd ad eira m e n te h o m em . O s rep resen tan tes de A n tio q u ia e de Alexandria achavam que a o u tra parte estava c o n tin u an d o a expressar a d o u trin a da encarnação de m o d o q u e subvertia o u até m esm o destruía su tilm en te a capacidade d e je s u s C risto de salvar. A convicção era q u e se a d o u trin a errada fosse estabelecida e se tornasse universal, o p ró p rio evangelho seria alterado. Por exem plo, em bora o nestorianism o m anifesto tivesse sido condenado em Efeso 1em 431, os teólogos antioquenos em C onstantinopla e em outros lugares co ntinua vam a enfatizar as duas naturezas de C risto de um a m aneira que transform ava sua hum anidade em um a individualidade distinta e separada de sua natureza divina. N a sua form a mais extrem a, essa cristologia antioquena cripto-nestoriana poderia facil m ente dar a im pressão de que Jesus C risto levou a efeito a salvação por ser um a pessoa hum ana piedosa e cooperar perfeitam ente com o Logos divino que o assum iu.
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U m herege d o O c id e n te cham ado Pelágio, q u e será descrito com m ais detalhes p o sterio rm en te nesta história, recebeu abrigo dos an tio q u en o s da Síria e da Pales tina p o u co antes do C o n cílio de Efeso. Pelágio acreditava que a salvação era, pelo m en o s em parte, um a q uestão de realização h u m an a, c não inteiram en te da graça, ou pelo m enos assim alegaram seus inim igos. O s inim igos alexandrinos de A ntioquia apresentaram essa situação aos seus aliados ocidentais em R om a e argum entaram qu e a sim patia dos an tio q u en o s por Pelágio com provava q u e a cristologia deles estava in tim am en te ligada a u m falso evangelho da salvação m ediante as boas obras. Por outras palavras, a suspeita era de q u e os an tio q u en o s, ao enfatizarem a h u m a nidade au tô n o m a d o Salvador, estavam su tilm en te re tratan d o -o co m o nosso exem plo h u m an o em vez de nosso salvador divino. S upostam ente, Pelágio reconheceu essa sem elhança en tre seus ensinos e a cristologia an tio q u en a e p o r isso buscou abrigo e o recebeu dos teólogos daquela parte. O s alexandrinos se questionaram p o r q u e os cristãos an tio q u en o s ofereceriam refúgio a u m herege com o Pelágio se não sim patizassem , pelo m enos, com suas opiniões sobre a salvação. O refúgio que Pelágio en c o n tro u en tre os an tio q u en o s no O rie n te foi prejudicial tanto para um com o para o u tro . Serviu para A lexandria convencer R om a e os bispos ocidentais de q u e a cristologia de A ntioquia estava n o ca m in h o errado. N o C o n c ílio de E feso em 431, u m a das co n d içõ es q u e R om a e os bispos do O c id e n te im p u seram para serem aliados de A lexandria (q u a n d o os alexandrinos fin alm en te ch egaram ) foi q u e o concílio deveria c o n d e n a r Pelágio. E m troca, R om a p ro m e te u v o tar em favor da co n denação de N e stó rio e de sua deposição do cargo de bispo de C o n sta n tin o p la. C irilo co n c o rd o u p ro n ta m e n te e na fase final do co ncílio tan to Pelágio co m o N e stó rio foram co n d en ad o s co m o hereges e exilados em u m a região desértica. S egundo o m o d o de e n te n d e r dos alexandrinos, eles se m ereciam p o rq u e suas heresias estavam relacionadas. A m bos enfatizavam tan to o papel h u m a n o na salvação q u e a graça se tornava um a reco m p en sa c o n tin g en te da realização h u m an a. O n esto rian ism o e o pelagianism o (a ju stiç a se g u n d o as obras) ficaram p e rp e tu a m e n te ligados nas m e n te s dos teólogos cristãos orto d o x o s e católicos. A cristologia alexandrina m anifestava u m a idéia subjacente diferen te da salva ção. Jesu s C risto era o Salvador divino co m o o Logos de D eus e não co m o pessoa hum ana. D ecerto , tinha de possuir tan to a divindade q u a n to a hu m an id ad e a fim de realizar a salvação co m o o m ediador das duas. M as a operação salvífica nele e por m eio dele era um a ação d o Logos de cu rar as feridas do pecado e da m o rte na hum an id ad e q u e passa a ser a nova h u m an id ad e para todos os q u e participam dele pela fé e pelos sacram entos. A ênfase soteriológica alexandrina recaía na graça m ais do que na realização hu m ana. Esse fato não deve, po rém , ser e n ten d id o erro n ea m en te sob a ótica dos debates teológicos posteriores.
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Todas as partes da grande controvérsia cristológica acreditavam no papel do livrearbítrio dos pecadores que se beneficiavam da obra salvífica de C risto. A questão de se o próprio Jesus C risto tinha o livre-arbítrio humano, no entanto, ainda não estava resolvida. Para a m aioria dos alexandrinos, e até para C irilo, ele não tinha. Em bora C irilo tivesse feito relutantem ente u m acordo com os antioquenos depois de Efeso i na F órm ula de R eunião e perm itido que se falasse em duas naturezas de C risto, con tin u o u a defender a fórm ula de “u m a só natureza depois da união” e estava claro para todos que essa natureza única de Jesus C risto era mais divina do que hum ana. Essa foi a única explicação que C irilo e seus seguidores alexandrinos conseguiram encontrar para preservar a pura graciosidade da salvação com o obra de D eus em C risto. E um “trato” da encarnação. Tudo o que nós, seres hum anos, precisam os fazer é aceitá-la, sendo fiéis e leais seguidores de C risto pelo arrependim ento c pelos sacram entos.
A controvérsia continua depois de Efeso O C o n cílio de Efeso e a F ó rm u la de R eunião foram soluções tem porárias. C ada parte conseguiu um pouco d o que queria. R om a conseguiu a condenação de Pelágio p o r u m concílio ecu m ênico e co n q u isto u certo prestígio n o O rie n te q u a n d o C irilo apelou ao bispo de R om a à revelia do im perador. C irilo e A lexandria conseguiram a condenação de N e stó rio c de sua cristologia an tio q u en a extrem ada e tam b ém a canonização, com o d o u trin a verdadeira, da explicação da encarnação proposta p o r C irilo co ntra o n estorianism o. A ntioquia conseguiu q u e sua bem -am ada fórm ula das duas naturezas fosse aceita co m o ortodoxa p o r C irilo, com o devido apoio do im perador. M as as questões estavam longe de serem resolvidas. D e m uitas form as, o q ue aconteceu en tre N icéia i em 325 e C o n stan tin o p la i em 381 parecia se repetir. O concílio q u e su p o stam ente resolveria a disputa e estabeleceria a ortodoxia u n i versal a respeito da trin dade e unidade de D eus iniciou um conflito m aior e o b ri gou a convocação de m ais u m concílio para encerrar o assunto. D epois d o C o n cílio de Efeso e da F órm ula de R eunião, os teólogos antioquenos com eçaram a ad m itir q u e o conceito de Jesus C risto com duas naturezas era a única fórm ula ortodoxa. A p arentem ente, acreditavam q u e C irilo tinha dado u m salto quântico na cristologia alexandrina e que, doravante, sem pre se falaria e se escreve ria que Jesus C risto tinha duas naturezas — divina e h u m an a — depois da união. Além disso, A ntioquia ficou sabendo pelo C oncílio de Efeso e depois p o r troca de correspondência q ue R om a, e boa parte d o O cidente, considerava q u e Jesu s C risto consistia em duas substâncias. E m bora não houvesse um a tradução exata dos ter m os gregos e latinos, um a com paração podia indicar q u e a fórm ula latina a respeito de C risto desde T ertuliano era de m uitas m aneiras m ais parecida com a fórm ula de A ntioquia do q ue de A lexandria. O s líderes an tio q u en o s sim plesm ente com eçaram a agir co m o se a antiga fórm ula alexandrina “um a só natureza depois da u n ião ”
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tivesse sido banida para o deserto ju n to com N estó rio . Ele e a fórm ula eram c o n siderados extrem os iguais e opostos q u e m ereciam u m ao outro. Está claro, 110 en tanto, q u e os líderes alexandrinos não enxergavam as coisas dessa form a. C irilo achava q u e tinha apenas p erm itid o q u e os cristãos falassem que C risto possuía duas naturezas, co n tan to q u e não as dividissem . Ele c o n tin u o u , tran q ü ilam en te , a pregar e e n sin ar “a única natureza encarnada do V erbo” em Alexandria e nun ca chegou a explicar o u a resolver a am bigüidade im plícita na sua cristologia, on d e C risto aparece co m o verdadeiram ente h u m an o e verdadeiram ente divino, em b o ra ten h a um a só natureza. C irilo m o rre u em 444, em plena c o m u n h ão com os bispos de A ntioquia, R om a e C o n stan tin o p la. A G ran d e Igreja parecia estar em paz, apesar das tensões a u m e n tarem pouco abaixo da superfície. C irilo estava disposto a conviver com o m istério e a am bigüidade p o r am o r à paz. O m esm o pensava João, bispo de A ntioquia. R om a tinha ou tras coisas com q u e se preocupar, co m o os invasores bárbaros que vin h am da E u ro p a C en tral para a Itália. M as havia um a pessoa q u e não estava disposta a deixar as coisas co m o estavam. O sucessor de C irilo co m o bispo e patriarca de A lexandria era u m m au-caráter cham ado D ióscoro. Poucos h o m en s na história da igreja foram tão m enosprezados e escarnecidos co m o essa pessoa. Logo depois de se to rn ar o principal eclesiástico de A lexandria, trato u de desfazer a paz q u e C irilo tinha ajudado a estabelecer com A ntioquia. U m histo riador eclesiástico de ren o m e relata que a política do sucessor de Cirilo, Dióscoro, que estava disposto a acabar com a moderação, era destruir radicalmente a doutrina das “duas naturezas” e pro clamar à cristandade que o caminho da crença verdadeira encontrava-se na aceitação da doutrina alexandrina de “uma só natureza”, conforme proposta pelos pais e pelo próprio Cirilo, antes de sua infeliz decisão de entrar cm com unhão com os orientais [antioquenos] com base no form ulário “nestoriante" do ano 433.1 D ióscoro não é con hecido por n e n h u m a o u tra contribuição à história da teolo gia cristã, senão a de renovar a guerra d o u trin ária e n tre A lexandria e A ntioquia. E bem provável q u e suas m otivações fossem elim in ar a influência an tio q u en a sobre C o n stan tin o p la de m o d o p erm an en te e descobrir e d efen d er a verdade. N as q u es tões teológicas, ele era u m ciriliano radical. Isto é, da m esm a form a q u e rejeitava a cristologia apolinariana e afirmava um a alm a e m en te h u m ana para C risto, D ióscoro tam b ém rejeitava to talm ente a idéia de duas naturezas de C risto co m o inevitavel m en te nestoriana e insistia nas fórm ulas “u m a só natureza encarnada d o Logos d iv in o ” e “depois da união, um a só n atu reza”.2
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A pessoa na m esm a posição de D ióscoro em A ntioquia era u m teólogo cham a do T eodoreto de C iro , o filho p redileto da cidade e u m provável candidato a se to rn ar o pró x im o patriarca de C onstan tin o p la. T eodoreto estava en tre os eclesiás ticos q u e adm itiam q u e a F ó rm u la de R eunião em 433 significava um a vitória so m en te para A ntioquia e tratou a d o u trin a das duas naturezas de C risto com o ortodoxa para im p ed ir q u alq u er m enção a u m a só natureza depois da união. Está claro q u e D ióscoro e T eodoreto seguiriam direções q u e resultariam em u m c o n fronto. Bastava um a p eq u en a centelha para com eçar um a grande conflagração teo lógica. E ela apareceu na pessoa de u m h u m ild e m onge de C o n sta n tin o p la cham a do Eutiqucs.
Eutiques e a controvérsia eutiquiana E utiques era u m velho m onge de C onstantinopla, pouco inteligente m as influente. Assim com o 110 caso de tantas outras personagens da história da igreja antiga, E utiques apareceu em cena, d esem p en h o u seu papel no dram a e retiro u -se do palco e nunca mais se ouviu falar dele. Q uase nada se sabe de sua vida, a não ser esse episódio du ran te o qual, p o r u m breve período, o cupou o cen tro do palco. E utiques apoiava fervorosam ente a causa de A lexandria e, depois da m orte de C irilo, to m o u o partido de D ióscoro n o tocante à única natureza de C risto. E m bora seja difícil averiguar exatam ente qual era o ensino de E utiques a respeito de C risto, não há dúvida de que foi u m passo além da linguagem de C irilo e, sobre o processo da encarnação, afir m o u que se tratava de “duas naturezas antes da união (de D eus com a hum anidade), m as um a só natureza depois o u com o resultado da u n ião ”. Por si só, essa fórm ula não despertaria m u ita atenção, já que o p ró p rio C irilo poderia ter dito o m esm o e a m aioria dos alexandrinos a aprovava. C ertam en te, ela se encaixava na cristologia de Alexandria. O q u e provocou ira contra E u tiq u es e to rn o u -o alvo de um a rajada de fogo foi sua recusa a afirm ar q u e C risto era consubstanciai conosco, os seres h u m a nos, e para os an tio q u enos isso pareceu um a nítida rejeição da fé de N icéia, que declarava que'Jesus C risto era v erdadeiram ente h u m an o e verdadeiram ente divino. A resposta dos an tio q u en o s foi: “Vejam! N ó s bem q u e avisam os q u e a cristologia alexandrina iria resultar nisso, na rejeição da própria h u m an id ad e de C risto ”. Parecia m esm o q u e E u tiq u es rejeitava a plena e verdadeira hu m an id ad e de Jesus C risto. E m bora não repetisse exatam ente a heresia de A polinário, certam en te re d u ziu a h u m an id ad e de C risto a u m a “gota de v in h o n o oceano de sua divindade”. C o n fo rm e alguns teólogos historiadores, “provavelm ente o q u e E u tiq u es ensinava era que, p o r causa da encarnação, o corpo de C risto foi deificado de tal m aneira que já n ão era ‘co n su b stan ciai c o n o sc o ’”.3 P arece q u e E u tiq u e s levou o p rin c íp io cristológico de C irilo, communicatio idiomatum, ao extrem o de form a parcial. E m b o ra p erm itisse o re c o n h e c im e n to de q u e as características e a trib u to s d iv in o s
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perm eavam e transform avam a h u m anidade de C risto , não perm itiria o reco n h eci m en to d o processo inverso. S egundo a teologia de E utiques, a realidade hu m an a de Jesu s não fazia d iferença ao Logos e até m esm o era absorvida na u n ião da encarnação. E realm ente difícil enxergar co m o o Jesu s da teologia de E utiques po d e ser real ou v erd adeiram ente h u m an o . O espectro d o docetism o descarado av u lto u -se em C o n stan tin o p la q u an d o ele en sin o u a essa cristologia. Assim co m o N e stó rio e seus ensinos a respeito de C risto tin h am confirm ado os piores tem o res dos alexandrinos a respeito da teologia an tio q u en a, tam bém E utiq u es e seus ensinos confirm aram os piores tem ores dos an tio q u en o s a respeito da teologia alexandrina. N e stó rio era im plicitam ente culpado de d efen d er u m tipo de adocionism o, em b o ra essa não fosse sua intenção. Sua linguagem , conceitos e expressões figuradas a respeito d e je s u s C risto avançavam inexoravelm ente nessa direção, re m o n ta n d o à antiga heresia de P aulo de Sam osata. Era p o r isso q u e N estó rio e sua d o u trin a da pessoa d e je su s C risto tinham sido condenados. Eutiques, p o rém , era im p licitam ente culpado de algo m u ito próxim o ao apolinarism o, senão do d o cetism o absoluto, em b o ra essa não fosse sua intenção. Ele foi m u ito além da idéia de C irilo , da união hipostática da encarnação de D eus em C risto , e chegou a negar a verdadeira h u m an id ad e de C risto q u an d o rejeitou a consubstancialidade dele conosco. Para E u tiques, C risto não tin h a um a personalidade h u m an a o u exis tência h u m an a individual e nem sequer um a natureza h u m an a co m o a nossa. Talvez a cristologia de E utiques não fosse tão inaceitável para m uitas pessoas teologicam ente neutras, q u e não pendiam n em para Alexandria nem para A ntioquia, se E utiq u es e seus seguidores tivessem apenas declarado q u e a h u m an id ad e de C risto to rn o u -se divinizada, assim com o a nossa se tornará se receberm os sua gra ça. M as, seg u n d o parece, não era isso que E utiques ensinava. Pelo contrário, ele ensinava q ue, desde o m o m e n to da concepção em M aria, Jesu s C risto era u m ser híb rid o en tre a h u m an id ad e e a divindade — u m a única natureza div in a-h u m an a — , q u e ju n tav a e m isturava as duas naturezas de tal m aneira q u e a natureza h u m a na era subjugada e absorvida pela divina. “Se isso era a verdade, co m o ele podia realm ente ser o nosso m ediador?”, q u estionaram os críticos. C o m o Jesu s C risto poderia passar pelo processo de desfazer a queda de Adão e de recapitular a raça hu m an a, a respeito do qual Iren eu falava com tanta eloqüência? C o m o a sua m orte na cru z poderia rep resentar a hum anidade? Essas perguntas soteriológicas surgi ram de vários lugares diferentes tão logo q u e os ensinos de E u tiq u es se tornaram am p lam en te conhecidos.
O Sínodo dos Ladrões O m aquiavélico D ióscoro entra em cena pelo o u tro lado. Em 448, D ióscoro m an i p u lo u u m sínodo de bispos em C o n stan tin o p la para co n d e n ar E utiques. O s m éto -
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dos de D ióscoro d em o n stram o significado do fam igerado adjetivo bizantino q u e é freq ü en tem en te usado para descrever a m anipulação política m aquiavélica, ardilo sa e secreta. Q u a n d o um a pessoa no p o d er d em o n stra apoiar u m partido, m as na verdade p ertence ao p artido contrário, e tenta o p o rtu n a m e n te tirar vantagem de seus inim igos políticos m ediante tram as sutis e com plicadas, isso é cham ado co m p o rta m e n to b izan tin o . B izâncio, co m o se sabe, era o an tig o n o m e da cidade q u e passou a ser cham ada C o n sta n tin o p la n o reinado de C o n sta n tin o e p erm a n e ceu u m term o co m u m para designar a cidade e to d o o Im p ério O rie n ta l até a Idade M édia. D ióscoro era a personificação d o co m p o rta m e n to bizantino. O m otivo de ter causado a condenação de E u tiq u es era oferecer ao m onge de C o n stan tin o p la refúgio e c o m u n h ão com A lexandria e depois usar sua condenação e subseqüente c o m u n h ão para forçar u m a confrontação com os líderes de A ntioquia e até m esm o com o p ró p rio patriarca de C onstantinopla. N o s m eses en tre sua condenação no sínodo em C o n sta n tin o p la e o concílio ecu m ên ico q u e seria realizado em Efeso em 449, E u tiq u es apelou a Leão, bispo de R om a, p ed in d o apoio e ajuda. E n trem en tes, D ióscoro estava m u ito ocupado, e m pregando as riquezas de A lexandria para atrair o im perador inclinado para o seu lado. O patriarca de C o n stan tin o p la, u m h o m em cham ado Flaviano, foi apanhado n o m eio da intriga. V iu-se obrigado a apoiar o sínodo q u e co n d e n o u E u tiq u es e seus ensinos, já que foi realizado em sua sé e sob sua supervisão. M ensageiros correram apressados de lugar para o u tro , en tre R om a, A lexandria, C on stan tin o p la, A ntioquia e Éfeso antes de o q u arto concílio ecum ênico, já m arcado, reu n ir-se cm 449. P erto de iniciar o concílio, D ióscoro já tinha tu d o planejado. M as, só para garantir, levou para a reunião u m bando de capangas, que p o r acaso eram m onges egípcios. C aso as m anobras políticas não conseguissem influenciar o concílio, tal vez as am eaças de violência surtissem efeito! O q u e aconteceu n o suposto concílio levou à sua p o sterio r condenação e cance lam ento. O q u e era para ser o q u arto concílio ecu m ên ico da C ristan d ad e ficou con h ecid o p o r S ín o d o dos Ladrões. D ióscoro chegou com sua q u adrilha de m o n ges pesadam ente arm ados e rapidam ente assum iu o controle d o concílio inteiro. A fórm ula de E utiq u es de “duas naturezas antes da união; u m a só natureza depois da u n iã o ” foi ap ro v ad a c o m o o rto d o x a e o p rin cip al re p re s e n ta n te a n tio q u e n o , T eodoreto de C iro , e os cham ados nestorianos foram condenados co m o “o p o n e n tes de D e u s” e depostos de seus cargos de líderes eclesiásticos. Algus alexandrinos e m u ito s m o nges presentes exigiram q u e fossem queim ados. P io r do q u e isso, talvez ten h a sido o patriarca Flaviano de C o n sta n tin o p la q u e chegou n o concílio levando consigo u m d o c u m e n to da parte do bispo Leão de R om a contra E utiques. Essa epístola ficou conhecida, na história da igreja, p o r Tomo de Leão e p o sterio r m en te d esem p en h o u u m papel m u ito im p o rtan te na solução e pacificação desse
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conflito d o u trin ário bastante lastim ável. O papa Leão i — talvez o p rim eiro bispo de R om a q u e realm ente fu n c io n o u co m o papa n o sentido de sim plesm ente gover n ar boa parte da Itália e toda a igreja ocidental — enviou u m a epístola d outrinária a Flaviano, co n d en ad o E utiques e d elineando a cristologia ortodoxa. Flaviano te n to u ler a carta do papa no sínodo, m as os m onges de D ióscoro atacaram -no e esp an caram -n o tão v io lentam ente q u e acabou m o rre n d o pouco tem p o depois. N o fim do Sínodo dos Ladrões em Efeso, “o bispo de Alexandria tinha todos os m otivos para se sentir satisfeito com os resultados do seu ataque contra a d outrina da escola de A ntioquia”.■10 im perador Teodósio n, que tinha deixado de apoiar A ntioquia para apoiar Alexandria, concordou totalm ente com os atos do sínodo. Por algum tem po, o sínodo constou com o o quarto concílio ecum ênico — Efeso n. A vitória alexandrina parecia com pleta. Triunfara o eutiquism o. A d ou trin a ortodoxa e católi ca oficial da pessoa de Jesus C risto dizia que ele era o “D e u s-h o m em de um a só natureza” cuja hum anidade tinha sido absorvida pela divindade. N ão se podia culpar ninguém que dissesse que essa era um a vitória para o docetism o pois, se alguém tentasse im aginar esse conceito, naturalm ente veria Jesus C risto com o o eterno Fi lho de D eus fingindo ser u m hom em . A F órm ula de R eunião de 433, que até m esm o C irilo tinha assinado e apoiado, foi desfeita. Pior do que isso, 110 entanto, era que a própria fé de N icéia estava em jogo. E utiques negou a consubstancialidade d e je s u s C risto conosco e conseguiu oficializar sua idéia. Pouco depois do en cerram en to d o Sínodo dos Ladrões, as vítim as com eçaram a apelar ao im perador e ao bispo de R om a. O papa Leão ficou horrorizado com as notícias q ue recebeu e m an d o u um a carta ao im perador em C onstantinopla, exigin do que fossem revogadas as decisões do concílio, q u e E utiques fosse condenado e Teodoreto de C iro reco n d u zid o ao cargo de líder da igreja em A ntioquia. Leão tam bém pro testo u contra a m o rte de Flaviano e pediu q u e o papa o vingasse e prendesse seus assassinos. Teodósio finalm ente respondeu ao apelo de Leão em 450. R ecusou todas as exigências de Leão e, em especial, recusou-se a convocar um novo concílio para su b stitu ir o Sínodo dos Ladrões p o r u m qu arto concílio ecum ênico. A reação de Leão foi com eçar o processo de convocar u m concílio ecum ênico q u e se reu n iria n o O c id e n te sem o apoio do im perador. Já a essa altura, as duas m etades d o Im p ério R om ano estavam tão divididas, q u e o bispo de R om a no O c i d en te nem sequer precisou se preo cu p ar m u ito com o im perador ro m an o , que perm aneceu no O rie n te e p erm itiu q u e as várias tribos bárbaras invadissem o im pério do O cid en te. O s bispos de R om a, a partir de Leão 1, foram paulatinam ente o cu p an d o o vácuo político e cultural 110 O c id e n te Latino e assum iram o tro n o im perial na tentativa de m an ter algum a sem elhança com a antiga o rd em rom ana. E m ju lh o de 450, a igreja estava a po n to de dividir-se, da m esm a form a q u e o p ró p rio im pério se desfazia. O bispo de R om a — o papa — am eaçava convocar um
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concílio ecu m ên ico sem a aprovação d o im perador e o im perador defendia os atos de u m sínodo v io lento q u e ratificara a heresia co m o se fosse ortodoxia. Assim com o a igreja quase to rn o u o rtodoxo o arianism o em m eados d o século iv, em m eados do século v, ela quase to rn o u o rtodoxo o docctism o. E ntão D eus interveio. Em 28 de ju lh o de 450, o im perador T eodósio li m o rre u em u m acidente to talm en te inesperado. Foi jo g ad o d o seu cavalo. O p o d er principal q u e protegia a heresia e im pedia a u n ião foi rapidam ente rem ovido e a sucessora passou a ser sua irm ã, P ulquéria, ao lado de seu consorte, M arciano, q u e favorecia a total independência de C o n stan tin o p la, livre do d o m ín io de A lexandria ou de A ntioquia. P ulquéria e M arciano com eçaram o processo de desfazer os atos terríveis do Sínodo dos Ladrões cm 449. M andaram trazer o cadáver de Flaviano de Efeso para C o n stan tin o p la, on d e foi sepultado com honrarias plenas na grande catedral da “Santa Sabedoria” q u e ficava n o cen tro da capital. U m novo concílio para substituir Efeso ii com o quarto concílio ecum ênico foi convocado para reunir-se em C alcedônia em m aio de 451. Todos os bispos de G rande Igreja da cristandade foram convoca dos a com parecer e o Tomo de Leão foi distribuído en tre eles antes da reunião. O próprio Leão inventou um a desculpa para não com parecer ao C oncílio de C alcedônia p o rq u e estava desgostoso p o r não ser realizado n o O c id e n te o q u arto concílio ecum ênico. M esm o assim enviou delegados para representá-lo. D ióscoro foi c o n vocado a com parecer e, d u ran te sua viagem ao novo concílio, enviou u m a carta que excom ungava Leão de Rom a: “E m bora soubesse m u ito bem o q u e estava reservado para ele, a luta tinha de seguir até ao fim , assim entendia o bispo de A lexandria”.5
O Concílio de Calcedônia e a Definição de Calcedônia O grande C o n cílio ecu m ên ico de C alcedônia foi aberto com u m p o m poso ceri m onial cm 8 de o u tu b ro de 451, com a presença de q u in h e n to s bispos, dezoito oficiais de estado d o alto escalão, inclusive o casal im perial. O s seguidores de Leão e dos an tio q u en o s sen taram -se de u m lado do grande salão e D ióscoro e seus se guidores do o u tro . S o m ente o poder im perial era capaz de colocá-los n o m esm o recinto e m an tê-lo s ju n to s. U m dos prim eiros eventos da prim eira sessão d o c o n cílio foi a en trada de T eodoreto de C iro , q u e tin h a sido con d en ad o , d eposto c quase q u eim ad o pelo S ínodo dos Ladrões. I louve o p rincípio de u m tu m u lto , m as a im peratriz e seus guardas im p u seram a o rd em e n tre os bispos e T eodoreto foi co n d u zid o a u m assento de honra. D epois, as atas d o S ínodo dos Ladrões em Efeso foram lidas em voz alta e debatidas. P aulatinam ente, os partidários de D ióscoro ab an d o n aram -n o e ao S ínodo dos Ladrões e expressaram rem o rso pela participa ção na perseguição de T eodoreto a na m o rte de Flaviano. S om ente D ióscoro sus ten to u , em atitu d e de desafio, a validez d o q u e havia acontecido em Efeso cm 449 e d efen d eu suas ações. Ao cair da noite, os bispos votaram em favor de d ep o r
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D ióscoro do seu cargo de patriarca de A lexandria e de exilá-lo, ju n to com os líde res d o infam e S ínodo de Efeso. A im peratriz e o im perador ratificaram a decisão. D ióscoro foi im ediatam ente exilado para o deserto. Todos os participantes do C oncílio de C alcedônia sabiam que a G rande Igreja precisava de um a nova declaração da crença ortodoxa a respeito da pessoa de Jesus C risto e que, de algum a m aneira, essa declaração teria de elim inar o abism o entre os cristãos sinceros e fiéis de Alexandria e de Antioquia. As verdades que existiam em am bos os lados teriam de ser preservadas e expressas, ao passo que os exageros teriam de ser evitados e até m esm o abolidos. A im peratriz, o im perador e seus com issários ordenaram aos bispos que ainda estavam em boas condições que passassem dois dias refletindo individualm ente a respeito das suas crenças em C risto c, em 10 de o u tu bro, se reunissem para resolverem de um a vez por todas qual seria a “fé correta”: Os bispos foram orientados a lavrar cada um a sua declaração de fé, sem temor e tendo somente Deus em mente. Para ajudá-los nessa tarefa, foi ressaltado que o imperador apoiava os decretos de Nicéia e de Constantinopla, alem dos escritos dos santos pais, Gregório, Basílio, Hilário, Ambrósio c duas cartas de Cirilo que foram aprovadas 110 primeiro Sínodo de Éfeso. Foi ressaltado, tam bém, que os bispos agora possuíam a carta que Leão escrevera a Flaviano, de santa memória, contra o erro de Eutiques. “N ós a lemos”, responderam.6 Q u a n d o os bispos voltaram a se en contrar em 10 de o u tu b ro , o Tomo de Leão foi lido diante deles e debatido durante várias sessões. D epois de m uita controvérsia, chegou-se a u m acordo sobre a nova fórm ula da fé, que aproveitava consideravel m en te a linguagem e os conceitos do Tomo de Leão e das cartas de C irilo a N estó rio e a João de A ntioquia. O s escritos de T ertuliano sobre a pessoa de C risto serviram de pano de fu n d o do debate e da nova declaração de fé. O s bispos queriam deixar abso lutam ente claro q ue a nova Fónmila de Calcedônia (tam bém conhecida p o r Definição de Calcedônia) não era um credo novo, m as sim , um a interpretação e elaboração do Credo de Nicéia de 381. Foi finalm ente aprovada e assinada pelo im perador e pelos bispos em 25 de o u tu b ro de 451. A parte principal da declaração diz: Em concordância, portanto, com os santos pais, todos nós ensinamos unani memente que devemos confessar que nosso Senhor Jesus Cristo é um só mesmo Filho, igualmente perfeito 11 a Divindade e igualmente perfeito na humanidade, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, que consis te de alma e corpo racionais, consubstanciai com o Pai na Divindade e igual mente consubstanciai conosco 11a humanidade, semelhante a nós em todas as coisas, à exceção do pecado, gerado pelo Pai antes de todos os séculos no tocante à sua Divindade e assim também nestes últimos dias por nós e por
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nossa salvação, foi gerado pela Virgem Maria, Theotokos, !10 que diz respeito à sua humanidade; um só c o mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigénito, revela do cm duas naturezas sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separa ção; a diferença de naturezas não pode ser eliminada de modo algum por causa da união, mas as propriedades de cada natureza são preservadas e reuni das cm uma só pessoa (prosopon) e uma só hypostasis, não separada ou dividida cm duas pessoas, mas um só e o mesmo Filho, Unigénito, Verbo divino, o Senhor Jesus Cristo, conforme os profetas do passado e o própriojesus Cris to nos ensinaram a seu respeito c o credo dos nossos pais nos foi transmitiu.7 O s bispos passaram , então, a co n d en ar tanto N e stó rio (que já estava m orto) com o E utiques. O tom do C oncílio de C alcedônia foi decididam ente antialexandrino e, q u an d o chegou ao fim , as pretensões e sonhos de d o m ín io acalentados p o r aque la sé tin h am sofrido u m grave golpe. O concílio tam bém elevou o títu lo de patriar ca de C o n stan tin o p la à m esm a im portância de R om a para q u e os dois grandes patriarcados ficassem 110 m esm o nível sobre os dem ais. N o entanto, prejudicou o bispo de R om a, inutilizando o títu lo de “p rim eiro entre os iguais” conferido ao cargo. Q u a n d o Leão 1 soube disso, rejeitou a declaração p o r com pleto e c o n tin u o u a arg u m en tar em favor da preem inência de R om a sobre todos os bispos cristãos. N o en c erram en to do concílio em 7 de fevereiro de 452, a im p eratriz e seu con sorte decretaram q u e n e n h u m a controvérsia adicional a respeito das “q uestões de fé” seria p erm itida e q u e doravante todos os cristãos teriam de adotar os ensinos de N icéia, C o n stan tin o p la e C alcedônia. Leão de R om a aceitou a essência do c o n cílio — a Definição de Calcedônia — pois expressava basicam ente o que ele m esm o escrevera em seu Tomo. A fé antiga de T ertuliano foi aceita no O rien te; Jesu s C risto era u m a só pessoa co m duas n atu re zas o u substâncias. A ssim co m o N icé ia e C o n stan tin o p la declararam q u e D eus era três “algu ém ” e u m ún ico “algo”, tam bém C alcedônia declarou q u e Jesu s C risto era u m ún ico “a lg u ém ” e dois “algo”. M uitos teólogos an tio q uenos, consideraram a Definição de Calcedônia um a vitória para a cristologia alexandrina, p o rq u e afirm ava categoricam ente um só Filho e rejei tava q u alq u er separação ou divisão das duas naturezas. O s alexandrinos considera ram q u e era um a vitória para a cristologia antioquena, p o rq u e afirm ava categorica m en te duas naturezas e proibia a confusão o u m u d an ça na sua união. C o n fo rm e verem o s, o resu ltad o do C o n c ílio de C alced ô n ia e da definição cristológica foi um cism a p erm a n en te d en tro da igreja oriental. U m a parte signifi cativa das igrejas da Síria e das regiões ao leste da Síria (Pérsia e Arábia) não qu ise ram aceitar a nova declaração e se separaram da G ran d e Igreja para fo rm ar as igre jas nestorianas. Elas desenvolveram suas tradições e crenças e se isolaram da cris tandade ortodoxa e católica. A m aioria das igrejas do E gito tam b ém se recusou a aceitar a nova declaração de fé e se separou da G ran d e Igreja para fo rm ar as igrejas
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m onofisistas in d ep en d entes (monofisista significa “q u e crê em um a só n atu reza”). A Igreja C o p ta do Egito é o rem anescente m o d ern o desse cisma. A Fórmula de Calcedônia, o u Definição de Calcedônia, to rn o u -se u m dos p o n to s de referência da fé católica e ortodoxa, a despeito dos cism as q u e dele resultaram . A fam ília das igrejas ortodoxas orientais aceita-o, da m esm a form a que a Igreja C a tó lica R om ana. A m aioria das denom inações p rotestantes principais aceita-o em es sência, em b o ra não considere obrigatória sua linguagem . A d o u trin a q u e ele e n cer ra e expressa é a união hipostática, segundo a descrição de C irilo, m as com p eq u e nas alterações. E m n e n h u m m o m e n to é m encionada a communicatio idiomatum de C irilo, em b o ra Leão a ten h a defen d id o e integrado ao Tomo. Em contraposição, em n e n h u m m o m en to tam bém C alcedônia a rejeita o u critica. Talvez a principal razão para não inclu ir a afirm ação da communicatio idiomatum na declaração de fé tenha sido atrair tantos an tio q u en o s q u an to possível. Eles não aceitariam esse princípio. A Definição de Calcedônia talvez soe esotérica o u ex trem am en te abstrata o u filo sófica, m as na realidade é sim plesm ente um a tentativa de expressar c proteger o m istério da encarnação de q u alq u er distorção: Pode-se reconhecer dc imediato que a Definição não é uma explicação do mis tério da encarnação. O próprio fato dc ela não conseguir solucionar o insolú vel é sua melhor recomendação para nossa cuidadosa consideração. Os que elaboraram a Definição não se preocuparam tanto em formular uma teoria como cm salvaguardar a verdade de duas soluções propostas com caráter er rôneo e em preservar para nós a verdade oculta sob esses dois erros.8 U m estudo cuidadoso da redação da Fórmula de Calcedônia revela p o r que ela era tanto u m acordo en tre dois extrem os com o um a tentativa de preservar o m istério da encarnação. Ela afirm a claram ente, seguindo um a teologia antioquena m oderada, a verdadeira hum anidade de Jesus C risto e suas duas naturezas. M as declara q u e as duas naturezas não devem ser divididas nem separadas e q u e cada um a delas, na sua plena integridade, perm anecem ju n ta s em um a só pessoa. A cristologia antioquena está certa 110 q ue afirm a — duas naturezas do D e u s-h o m em — , m as errada 110 que N estó rio negou — a unidade c integridade da pessoa de Jesus C risto. C alcedônia tam bém afirm a com clareza, contra a cristologia alexandrina radical, que as duas naturezas de C risto não devem ser confundidas (ligadas o u m isturadas), n em se deve pensar q u e foram alteradas m ediante a união hipostática n o Logos. A cristologia alexandrina está certa 110 que afirm a — um a só pessoa de C risto, que é o Filho de D eus — , m as errada no que E utiques negou — a plenitude e a integridade das n a tu rezas distintas da h u m anidade e da divindade, m esm o em sua união em Jesus C risto. A verdadeira essência da Definição de Calcedônia é conhecida com o os q u atro li m ites de C alcedônia — “sem confusão, sem m udança, sem divisão, sem separação”.
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Essas q u atro s expressões são “lim ites” em to rn o do m istério da u nião hipostática — as duas naturezas plenas e com pletas de C risto n u m a só pessoa. “Sem confusão, sem m u d an ça” protegem o m istério da heresia do eu tiq u ism o e do m onofisism o, q ue ten tam preservar a unidade da pessoa ao criar u m híb rid o , tertiuni quid (um terceiro algo), com a divindade e a h u m anidade. “Sem divisão, sem separação” protegem o m istério da heresia do nestorianism o, q u e procura enfatizar a distinção en tre a h u m an id ad e e a divindade dividindo-as em duas pessoas diferentes. A D e finição está dizendo: co n tan to q u e não ultrapasse n e n h u m desses lim ites, você pode expressar de várias m aneiras diferentes o m istério da encarnação. T udo o q u e ela realm ente faz é expressar e proteger u m m istério. E não explica coisa n en h u m a. O s dois principais m en to re s da Definição de Calcedônia foram Leão de R om a (que foi fo rte m e n te in fluenciado p o r T ertuliano) e C irilo (que foi fo rte m e n te in fluenciado p o r A tanásio). Ao lerm os com cuidado suas cartas, d escobrim os que am bos concebiam da pessoa de Jesu s C risto com o o Logos e te rn o de D eu s que con descende em assu m ir um a natureza h u m an a q u e não tem n e n h u m a espécie de existência p ró p ria (p o rtan to , não é um a pessoa h u m ana). E u m a natureza h u m an a impessoal. O ce n tro pessoal de consciência, vontade e ação é o Logos, o e tern o F ilho de D eus. A crença católico-ortodoxa, p ortanto, estabelece q u e Jesu s C risto era e é D eus, com u m a n atureza h u m ana, e não u m h o m em elevado a u m relacionam ento espe cial com D eus o u u m h íb rid o de existência divina e hum ana. O m istério está no fato de que esse é o ú n ico caso real em q u e u m ser pessoal individual q u e é h u m a no e divino possui em sua essência todos os atrib u to s necessários às duas n a tu re zas. M u ito s teólogos cristãos ten tam e n c o n trar u m a form a de co nceber tal coisa c explicá-la de form a inteligível. C alcedônia perm ite a especulação, co n tan to que não se ultrapasse os lim ites e caia no nestorianism o o u eu tiq u ism o . Leão e C irilo tam b ém parecem ter considerado a pessoa e natureza divina do Logos não afetadas pela natureza h u m an a q u e ele assum iu na sua existência com o Jesu s C risto . E nesse p o n to q u e m u ito s protestantes, especialm ente os m ais m o dernos (e tam bém não poucos católicos) relutam em aceitar a cristologia calcedônia, já q u e ela reflete o antigo princípio da im utabilidade e im passibilidade do divino. Em sua obra-p rim a, A study in Christology, o teólogo e h isto riad o r britânico M aurice R elton afirm a q u e esse era o calcanhar de A quiles da in terp retação clássica de C alcedônia pelo m enos: “Tanto para Leão co m o para C irilo , o Logos ilim itado é o cerne do D e u s-h o m em . Logo, no C risto encarnado, sua natureza divina, não te n do passado p o r n e n h u m a m udança, é incapaz de sofrer e p erm anece im utável e inalterável n o d ecu rso de todas as experiências pelas quais ele passa em sua vida encarn ad a”.9 S egundo R elton e m u ito s o u tro s teólogos protestantes m o d ern o s que aceitam a fórm ula básica de C alcedônia, esse aspecto da cristologia clássica é m ais
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d o q u e u m m istério, é u m co m p leto disparate. Em outras palavras, qual seria o pro p ó sito de um a encarnação na qual o Filho de D eus é a única pessoa envolvida e q u e tom a para si um a natureza h u m ana plena e com pleta, m as p erm anece inteira e co m p letam en te intocado e im passível em sua h u m anidade? Seria isso realm ente um a encarnação? A vitória da d o u trin a da união hipostática não seria totalm ente nu la se interpretada nesse sentido clássico? P or outras palavras, parece ter restado certa am bigüidade e tensão não resolvi das na p rópria C alcedônia — ou pelo m enos na m aneira co m o seus principais pro p o n en tes e in térp retes a en ten d e ram e explicaram . Q u e m en ten d e q u e o sujei to da u n ião — o Logos divino, o Filho de D eus — não foi afetado pela união com a hum an id ad e, está su b v erten d o a união en tre as duas naturezas o u tratan d o a na tureza h u m an a co m o passiva e abstrata. N ã o há dúvida de q u e Jesu s C risto sofreu tentações e tem o res e q u e teve m uitas experiências m entais c espirituais, e não s o m e n te físicas. S e g u n d o a d o u tr in a da u n iã o h ip o s tá tic a p ro m u lg a d a em C alcedônia, q u em foi tentado? Q u e m ex p erim en to u o m ed o e a agonia m ental e espiritual? O ú n ico sujeito presente é o Logos divino, m as, de acordo com Leão e C irilo e com a m aioria de seus seguidores ortodoxos, a divindade não pode sofrer q u alq u er tipo de m udança. Poderá um a “natureza h u m an a im pessoal” ser tentada, sen tir m edo e agonia? A cristologia clássica de C alcedônia segue o Tomo de Leão e as Cartas de C irilo ao negar qualquer m udança ou sofrim ento por parte do sujeito pessoal da encarnação, o Filho de D eus. M as a própria C alcedônia faz isso? N ão está m u ito claro. D u ran te a Reform a protestante no século xvi, M artin h o Lutero aceitou N icéia e C alcedônia com o pontos de referência respeitados da d outrina cristã e ao m esm o tem po rejeitou a crença na impassibilidade divina e atribuiu experiências de criatura ao Filho de D eus no seu estado encarnado. Para Lutero, não é n en h u m escândalo dizer “D eus nasceu”, “D eus sofreu e m o rre u ” e “D eus foi crucificado”, usando essas palavras no seu sentido real e não com o m eras figuras de linguagem . Lutero deu a communicatio idiomatum um a conclusão lógica, coisa que n em Leão, nem C irilo, n em seus intér pretes ortodoxos e católicos fizeram . Eles continuaram prisioneiros do antiga co n cepção grega da im passibilidade divina. Essa concepção im pediu-os de desvendar o grande m istério da encarnação e fez com que a dou trin a calcedônia de C risto fosse interpretada cada vez m ais em u m sentido nestoriano depois de encerrado o concílio. E m bora a im peratriz e o seu consorte tivessem decretado q u e o C o n cílio de C alcedônia e sua definição cristológica significavam u m ponto-final em todos os debates e controvérsias a respeito de q uestões im p o rtan tes da fé, não dem o raram a irro m p er debates sobre detalhes bastante m inuciosos da interpretação cristológica. O s bispos logo com eçaram a questionar: C risto teria duas vontades o u um a? Ao q u e parece, o q u e era bom para alguns não satisfez a todos.
16 Continuam os efeitos do conflito
E m b o r a o C o n c ílio de C a lc e d ô n ia en c e rra sse a g ra n d e c o n tro v é rsia e n tre A ntioquia e A lexandria a respeito da pessoa de Jesu s C risto , não en c erro u d efin iti vam ente todos os debates e as controvérsias sobre a dou trin a. C o n fo rm e verem os no p resente capítulo, o concílio e sua fó rm u la da crença ortodoxa em C risto cau sou u m longo e paulatino efeito de debates sobre seu significado exato. M ais um a vez, assim co m o antes, os im peradores se envolveram e novos concílios foram convocados para definiç, de um a vez p o r todas, um a crença u n ifo rm e a respeito da encarnação de D eus em C risto. A m aior parte da controvérsia pós-C alcedônia acon tecia n o O rie n te e a igreja ocidental não tom ava c o n h e cim en to a não ser q u an d o era forçava a tan to p o r algum im perador, com o acontecia de tem pos em tem pos. C o n fo rm e observa M aurice R elton: Embora o Ocidente, com seu amor à ortodoxia eclesiástica, estivesse satisfei to em deixar o problema conforme a resolução da Definição de Calcedônia, o espírito especulativo dos teólogos orientais incitou-os a se esforçar mais cm sua tentativa de desvendar o m istério.1 Parte do debate no O rie n te foi realm ente especulativa e, p o r isso, é difícil e n ten d er tu d o o q u e foi incluído o u excluído. O s bispos e teólogos q u e freq ü en tem en te se reu n iam em C o n stan tin o p la, provenientes de todas as partes do Im p é rio O rie n ta l, d iscu tiam in can sav elm en te se a Definição de Calcedônia favorecia A ntioquia ou A lexandria, se exigia a crença em duas o u em u m a vontade de C risto e qual seria a m elh o r m aneira de explicar e expressar o m istério q u e existia no seu âm ago. A am bigüidade da d o u trin a da união hipostática perturbava m u ito s líderes eclesiásticos orientais q u e buscavam com pleta inteligibilidade da teologia o u que defen d iam in teresses particulares ao p ro m o v e r a in terp re taçã o alexandrina ou antioquena.
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A teologia ocidental durante a controvérsia cristológica no Oriente A ntes de nos ap ro fu n d arm o s na controvérsia pós-C alcedônia n o O rie n te , farem os um a pausa para oferecer u m a visão geral do q u e acontecia na teologia no O cid en te d u ra n te esse período. O O c id e n te latino ficou to talm en te ocupado com seus p ró prios problem as teológicos d u ra n te a grande controvérsia cristológica q u e d u ro u ap ro xim adam ente de C o n stan tin o p la i em 381 a C o n sta n tin o p la ui em 680/681. O perío d o m ais inten so dos debates teológicos ocidentais, p o r o u tro lado, foi nas décadas en tre C o n stan tin o p la i e C alcedônia em 451. E n q u an to os bispos e teólo gos d o O rie n te debatiam as delicadas distinções da cristologia, os líderes eclesiásti cos d o O c id e n te se envolveram p ro fu n d am en te na grande controvérsia a respeito da natureza da salvação e, especialm ente, se a pessoa que está sendo salva d esem p e nha algum papel nesse processo o u se a realização é exclusivam ente obra de D eus. C o n fo rm e verem os no próxim o capítulo, esse debate n o O c id e n te foi provocado pelos ensinos d o grande bispo e teólogo da África d o N o rte , A gostinho (354-430), e do seu rival, o m onge britânico, Pelágio (c. 350-418). Ele levou a debates intensos en tre os defensores de A gostinho e os sim patizantes m oderados dc Pelágio, na cham ada C o n tro v érsia sem ipelagiana q u e co n tin u o u d u ra n te parte d o século vi. O bv iam en te, o bispo de R om a, Leão i (Leão, o G rande) envolveu-se na con tro v ér sia oriental a respeito da cristologia m as, para a m aioria dos teólogos ocidentais, o conflito e a controvérsia que no O rie n te co n su m iam todas as atenções eram de pouco interesse. Eles acreditavam q u e T ertuliano tin h a solucionado o p roblem a há m u ito tem p o e ficaram satisfeitos ao verem a igreja oriental reco n h ecer esse fato no C o n cílio de C alcedônia. D a m esm a form a, os bispos e teólogos orientais estavam m en o s preocupados com o grande debate a respeito da graça e do livre-arbítrio n o O c id e n te do que co m suas próprias questões cristológicas. C o n fo rm e já vim os, os dois gru p o s real m en te concordavam em certos aspectos. O herege Pelágio fugiu de R om a para o O rie n te , na esperança de en c o n trar refúgio ali e foi tem p o ra riam en te aceito e p ro tegido na Síria e Palestina. M uitos líderes eclesiásticos orientais achavam q u e seus ensinos sobre o pecado e a salvação não era tão ru in s q u an to A gostinho e o u tro s teólogos ocidentais alegavam . M esm o assim estavam dispostos a sacrificá-lo no C o n cílio de Efeso em 431, a fim de agradar ao bispo de R om a e de o b ter o seu apoio para a condenação de N e stó rio . N o d esen ro lar da história da teologia, o O rie n te e o O c id e n te concordaram q u e tan to N e stó rio co m o Pelágio eram h e re ges e q u e seus ensinos, além de heterodoxos, eram erros execráveis q u e su b v erti am o p ró p rio evangelho. M esm o assim , o O c id e n te n u n ca co n sid ero u N e stó rio e o n esto rian ism o tão prejudiciais q u an to o O rie n te os considerava e o O rie n te nu n ca co n sid ero u Pelágio e o pelagianism o tão nocivos q u an to o O c id e n te os considerava.
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A igreja d o O c id e n te tam bém se envolveu em batalhas p o r causa do cism a co nhecid o p o r don atism o , cujas igrejas eram num erosas e poderosas na África do N o rte no fim do século iv e início do século v. O s donatistas insistiam q u e a G ra n de Igreja católica e ortodoxa representada pelo papa em R om a e pelos patriarcas do O rie n te , vinculada ao p o d er im perial, era apóstata, p o rq u e m u ito s de seus princi pais bispos q u e tin h am sido alvo das perseguições anteriores a C o n sta n tin o e fo ram restaurados n o governo deste. O s donatistas queriam u m a igreja p u ra e sem m áculas, livre de traidores e líderes im orais, inclusive os q u e tin h am se arrep en d i do e sido restaurados m ediante a penitência. O s donatistas eram rigoristas m orais e eclesiásticos q u e existiam desde T ertuliano e C ipriano. Eles tin h am seus p róprios bispos, catedrais e escolas no início do século v e, p o r m ais q u e os bispos d o O c i den te se esforçassem , não conseguiam destru í-lo s e nem trazê-los para d en tro da G rande Igreja sem a ajuda dos im peradores. N o fim , aconteceu o seguinte: A igreja ocidental forçou os donatistas à m arginalidade e m u ito s se to rn aram “guerrilheiros de D eu s” nos desertos da África do N o rte . Por causa deles, as viagens e n tre as cidades se to rn aram ex trem am en te arriscadas para os líderes da G ran d e Igreja. E n q u a n to a igreja d o O rie n te estava to ta lm e n te o cu p a d a na c o n tro v é rsia cristológica, a igreja do O c id e n te ficou absorvida em debates c conflitos a respeito da salvação e da verdadeira natureza da igreja. O s contextos diferentes de conflito co n trib u íram para a p o sterio r separação en tre o O rie n te e o O cid en te. M as surgiu o u tro m o d elo que tam b ém co n trib u iu para a divisão. N o O rie n te , os im peradores rom anos, a p artir de C o n sta n tin o , dom inavam os bispos e patriarcas. Esse m étodo de governo eclesiástico to rn o u -se co n hecido p o r cesaropapism o, o u seja: “C ésar é o papa”. A igreja oriental rejeitou esse ró tu lo e a alegação de que, na realidade, tinha p erm itid o q u e os im peradores se tornassem chefes tanto da igreja co m o do estado. N o en tan to , alguns im peradores de fato dom inavam a igreja e até m esm o a sua teologia. O m o d elo foi estabelecido p o r C o n sta n tin o , q u e se declarou “bispo de todos os bispos” n o C oncílio de N icéia em 325. Ele chegou ao auge na pessoa do im p erad o r Ju stin ia n o , q u e g o vernou C o n sta n tin o p la de 527 até 565 e re in co r po ro u às fronteiras d o Im pério R om ano boa parte do im pério ocidental que tinha sido tom ada pelos reis bárbaros (que viria a ser co n hecido co m o Im p ério B izantino depois da qued a de R om a n o século v). O O c id e n te ficou sem n e n h u m im p erad o r en tre ap ro x im ad am en te 410 até Justin ian o e depois foi dividido entre os reis bárbaros novam ente após um a breve invasão e conquista do O cidente. D u ran te o longo período de declínio e divisão culturais e políticos n o O cid en te latino, o bispo de R om a to m o u a dianteira para p reencher a vaga do poder e fornecer u m a certa idéia união. Esse processo, iniciado p or Leão i p or volta de 410 e m antido com m ais sucesso ainda por papas posteriores com o G regório i (590-604), estabeleceu u m precedente inteiram ente novo para os
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relacionam entos en tre a igreja e o estado n o O cid en te. Esses dois bispos foram registrados nos anais da história eclesiástica sob o títu lo de “M ag n o ” tam bém p o r q u e exerciam p o d er sobre a igreja tanto q u an to sobre o estado. D c m uitas m an ei ras, funcionavam co m o im peradores q u an d o n e n h u m cargo o u pessoa individual se destacava acim a da d esordem das batalhas en tre bárbaros e a dissolução cultural d o O cid en te. C o m o passar d o tem po, os papas se to rn aram tão poderosos que coroaram novos im peradores ocidentais, co m o C arlos M agno em 800. O s em bates en tre os governantes seculares e os papas sem pre ato rm en taram a igreja e o im pério do O cid en te, m as nu n ca os papas ou bispos das grandes sés ocidentais reconhece ram q ue governantes seculares teriam poderes para d eterm in a r a d o u trin a certa. S em pre ten taram afirm ar a independência da igreja e sua superioridade nas q u es tões d o u trin árias eclesiásticas, m esm o q u an d o isso significava perseguição. O s debates cristológicos q u e co n tin u aram n o O rie n te após C alcedônia foram praticam ente desconsiderados pelo O cid en te, que já tin h a q u e lidar com seus p ró prios problem as. O s debates orientais a respeito da natureza de C risto tam bém chegaram a envolver p ro fu n d am en te os im peradores bizantinos, especialm ente o m aior de todos eles: Ju stin ian o . Infelizm ente, m u ito s cristãos ocidentais, tanto ca tólicos ro m an o s co m o protestantes, sabem m u ito p o u co o u nada a respeito das controvérsias cristológicas pós-C alcedônia 110 O rie n te , ao passo q u e os cristãos ortodoxos orientais estão im ersos nos conceitos e na term inologia desses debates. Sem dúvida, poderia ter havido m ais e n te n d im e n to en tre os cristãos ocidentais e orientais se cada lado conhecesse m elh o r a teologia do o u tro . U m a m arca im por tante do p en sam en to cristão o riental é a sua luta contra as am eaças do m onofisism o c do iconoclasm o. O iconoclasm o será considerado em u m capítulo posterior. Agora, exam inarem os a controvérsia m onofisista e os vários debates e as resoluções a esse respeito n o O rien te.
A controvérsia a respeito de Cristo continua no Oriente C e rto h istoriador eclesiástico escreveu que “em vez de solução, C alcedônia provou ser m ais a definição clássica do problem a que exige m ais explicações”.2 Em bora ten h a pro p o sto u m a d o u trin a teologicam ente correta a respeito de Jesu s C risto, e sua fó rm u la sobrevivido ao tem p o , “d o p o n to de vista político, o C o n cílio de C alcedônia foi u m fracasso” porque “tão logo os bispos partiram de C alcedônia, os dissidentes com eçaram a expressar sua indignação”.3 C o n fo rm e já foi dito, alguns alexandrinos (até m esm o fora do Egito) se separaram , negando-se a fingir que apoia vam a Definição de Calcedônia, sendo cham ados “m onofisistas radicais” p o rq u e recu saram q u alq u er tipo de acordo com um a igreja que não declararia que C risto tem “um a só natureza depois da u n ião ”. Eles rejeitaram E utiques e seu erro dc negar que a h u m an id ad e de C risto era consubstanciai com a nossa, m as não queriam
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n e n h u m a aliança co m q u em alegasse q u e C risto tin h a duas naturezas. C erto s antio q u en o s radicais — realm ente nestorianos — tam bém se separaram da G rande Igreja p o rq u e a Definição de Calcedônia anatem atizava q u alq u er divisão das duas naturezas e soava co m o o eu tiq u ism o e o m onofisism o ao enfatizar a única pessoa de C risto {prosopon e hypostasis). M as, p o sterio rm en te, m uitos bispos que tinham assinado a Definição de Calcedônia ficaram inquietos e insatisfeitos. Q u e riam perm an ecer na G ran d e Igreja, ligados ao im p erad o r e os patriarcas, m as achavam que a cristologia de C alcedônia estava sendo in terp retad a erro n eam en te. N a tu ralm en te, os an tio q u en o s acreditavam que sua interpretação favorecia os alexandrinos e vice-versa. A situação ficou bastante sem elhante à q ue surgiu depois do C o n cílio de N icéia em 325. N aq u ela ocasião, os bispos que tinham assinado o Credo de Nicéia reconsideraram a fórm ula honioousios para descrever a igualdade en tre o Pai e o Filho, p o rq u e ela poderia ser interpretada de m o d o sabeliano o u m odalista. D epois de C alcedônia, m u ito s bispos arrep en d e ram -se de assinar a Definição, p o rq u e ela podia ser interpretada de m o d o nestoriano ou eu tiquiano. Receavam q u e seria um a vitória para um a dessas heresias. P ortanto, “seria necessária u m a obra q u e correspondesse à q u e os pais capadócios tin h am feito em favor da teologia nicena para reco m en d ar a Definição de Calcedônia e c o n quistar sua plena aceitação”.4 U m a p erg u n ta q u e ficou sem resposta para m u ito s líderes eclesiásticos era: “O que constitui a varonilidade [hum anidade] com pleta? Q u al é o m ín im o q u e ela precisa ter para ser cham ada de com pleta? Se o Logos to rn o u -se o ego da h u m a n i dade, em que sen tid o se diz q u e a h u m an id ad e m anteve todos os seus aspectos?”.5 Essa p erg u n ta era, n atu ralm en te, a grande preocupação dos bispos q u e tendiam para o lado an tio q u en o com forte ênfase para a dualidade de naturezas e h u m a n i dade genuína do Salvador. O s bispos alexandrinos tin h am um a preocupação dife rente. Estavam satisfeitos com a principal interpretação da Definição de Calcedônia dizer q u e a única pessoa da união hipostática era o divino F ilho de D eu s e queriam im p o r a idéia de q u e a natureza h u m ana era anipostasia — im pessoal. M as sua d ú vida era: co m o a integridade e a unidade da pessoa de C risto com o Logos divino podiam ser preservadas a longo prazo se as duas naturezas se m an tin h am tão c o m pletas e distintas m esm o depois da união. “A creditavam q u e havia um a contradição e u m a brecha para o nestorianism o em um a fórm u la co m o a de C alcedônia que distinguia as duas naturezas, m as, ao m esm o tem po, declarava q u e subsistiam em um a única hipóstase.”6 N a realidade, os bispos e teólogos do O rie n te foram classificados em três g ru pos principais depois de C alcedônia. N o p rim eiro estavam os diofisistas rigorosos (diofisista é q u em acredita que as duas naturezas são radicalm ente distintas e rejei ta o conceito oferecido p o r N e stó rio , de duas pessoas depois da união). Eles eram
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an tio q u en o s m oderados q u e consideravam C alcedônia um a vitória para a antiga cristologia de T eodoro de M opsuéstia, o herói teológico dc A ntioquia. Esperavam q u e C alcedônia se tornasse um a espécie de rep ú d io a C irilo e sua cristologia, m es m o endo ssan d o o p rincípio de “u m a só pessoa e h ipóstase”. O s diofisistas não deixaram a G ran d e Igreja, co m o fizeram os nestorianos radicais. P erm aneceram nela a fim de lutar em favor da interpretação an tio q u en a da união hipostática. Aci m a de tu d o , q ueriam im p ed ir q u e o princípio de C irilo, da communicatio idiomatum, se tornasse a interpretação oficial de C alcedônia. Seu herói depois de C alcedônia era T eodoreto de C iro , q u e tin h a sido vindicado em C alcedônia. N o seg u n d o g ru p o d en tro da G rande Igreja depois de C alcedônia estavam os m onofisistas m oderados, que consideravam C irilo seu grande herói m o rto (em b o ra este tenha co m etid o u m deslize ao p erm itir q u e se falasse em duas naturezas no seu acordo com A ntioquia cm 433) c Severo de A ntioquia seu herói vivo e p rin ci pal teólogo. N e m todos os m onofisistas m oravam em A ntioquia e arredores. O m o n o fisism o invadiu o cen tro da região nestoriana — a própria A ntioquia! Severo e seus aliados m onofisistas (a m aioria concentrava-se nos arredores de Alexandria ou m orava em C on stan tinopla) desejavam p rom over a idéia de C irilo da encarnação com o communicatio idiomatum e até m esm o tentaram rein terp retar C alcedônia de tal m aneira q u e a encarnação pudesse ser considerada “u m a só natureza depois da u n ião ”. N o início, trabalharam secretam ente para conseguir u m a revisão da Defini ção de Calcedônia, assim co m o os sem i-arianos fizeram depois de N icéia para conse g u irem u m a revisão do C re d o N ic e n o de homoousios para Uomoiousios. “O p o n to de p artid a da cristo lo g ia d eles era a co n te m p la ç ã o da id e n tid a d e e n tre o V erbo preexistente e o Verbo encarnado; essa identidade era um a necessidade soteriológica asseverada pelo Credo de Nicéia e p o r C irilo contra N e stó rio . Para os m onofisistas, era expressa com o um a identidade de natureza o u de hipóstase, já q u e esses dois term o s eram sin ô n im o s”.7 U m líder m onofisista cham ado T im ó teo E lu ro decla rou: “se h o u v er duas naturezas [em C risto ], haverá tam bém , necessariam ente, duas pessoas; m as se h o u v e r duas pessoas, haverá ta m b ém dois C ris to s ”.8 M as os m onofisistas m oderados rejeitaram a m istura e n tre a divindade e a hu m an id ad e em C risto e arg u m en taram em favor de “um a só natureza co m p o sta” da divindade e da hum an id ad e m ediante a união hipostática. A distinção en tre as naturezas devia ser m antida, ao m esm o tem p o em que se devia enfatizar a união. Sua teologia não diferia m u ito , talvez m esm o em nada, daquela de C irilo. O terceiro p artid o pós-C alcedônia era o dos neocalcedônios e seu herói e v en cedor era u m h o m em cham ado Leôncio. H á m u ita discussão na história eclesiásti ca a respeito de sua identidade. A lguns consideram q u e L eôncio de B izâncio foi o m esm o q ue excogitou a interpretação oficialm ente aprovada de C alcedônia cha m ada dc p rin cíp io de enipostasia. O u tro s dizem que q u em a fez foi o u tro Leôncio,
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de Jerusalém . A qui, seguirem os a tradição de considerar L eôncio de B izâncio a pessoa q u e co n d u z iu a G rande Igreja em direção à solução n o S egundo C oncílio de C o n stan tin o p la em 553. O s neocalcedônios qu eriam en c o n trar u m acordo para os an tioquenos m oderados (diofisistas) e os alexandrinos m oderados (m onofisistas) e, ao m esm o tem p o , rejeitar as alas radicais dos dois partidos. O cam in h o para a solução dessa controvérsia, ap aren tem en te interm inável, para eles, era reafirm ar a linguagem de C alcedônia co m o se fosse “talhada em p ed ra” e, ao m esm o tem po, in terp retá-la de tal m aneira q u e a natureza h u m an a de C risto fosse encarada com o real e g enuína sem lhe atrib u ir q u alq u er existência in d ep en d e n te d o Logos. E m outras palavras, todas as categorias conhecidas da existência (physis, ousia) e perso nalidade (prosopon, hypostasis) precisavam tran scen d er em u m salto conceituai para um a nova categoria. Todas as partes envolvidas nos grandes debates cristológicos pareciam unidas na crença de q u e a n atureza e a pessoa necessariam ente se co m p lem en tam de tal m aneira q ue, para u m a natureza ser real e com pleta, precisava ter u m a pessoa que lhe desse existência real em oposição à abstrata. Pelo m enos, isso era quase un iv er salm ente aceito sobre os seres h um anos. U m a natureza h u m an a individual sem um a pessoa h u m an a era sim plesm ente inconcebível com o real e com pleta p o r qual q u e r pessoa do debate. Era p o r isso q u e os an tio q u en o s sacrificavam a unicidade da p erso n alid a d e pela d u alid ad e das n a tu re z a s e os a lex a n d rin o s sacrificavam a dualidade das naturezas pela unicidade da personalidade. N e n h u m a das partes c o n seguia enxergar um a n atureza h u m an a co m p letam en te real e realm ente com pleta sem u m a pessoa h u m a n a d istin ta e in d iv id u a l. Esse era u m a ssu n to para os neocalcedônios pensarem e para L eôncio de B izâncio solucionar, assim co m o os pais capadócios tin h am solucionado o dilem a trinitário u m século e m eio antes.
A controvérsia monofisista N o geral, o partido m onofisista provocou m u ito m ais problem as d en tro da igreja e do im pério d o q u e o p artido diofisista o u an tio q u en o m oderado. Esse ú ltim o g ru po de teólogos c bispos acreditava q u e C alcedônia, de m o d o geral, representava um a vitória para o seu lado e que a sua causa poderia ser m e lh o r defendida pela luta co n tra o m onofisism o, que era m u ito forte, política e eclesiasticam ente. O s dois principais m onofisistas no período pós-calcedônio foram Severo de A ntioquia e o bispo de A ntioquia, T im ó teo E luro. Eles e suas coortes conseguiram p ersuadir o im p erad o r Z en ão (476-491) a favorecer o m onofisism o p o r algum tem po. Seve ro escreveu o livro teológico m ais im p o rtan te do m o nofisism o, O amorà verdade, e nele afirm ou com veem ência a verdadeira h u m an id ad e e divindade de C risto e arg u m en to u q u e elas se fu n d e m em u m a única natureza com posta por causa de sua união na pessoa do Verbo o u Filho de D eus:
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Ele, que era eternam ente consubstanciai com aquele que o gerou, é aquele que voluntariam ente veio e tornou-se consubstanciai com essa mãe [Maria]. Portanto, torn ou-se h om em , sendo D eus; ele se tornou o que não era em b o ra, ao m esm o tem po, tenha perm anecido o que era, sem qualquer mudança. N ã o perdeu, portanto, a sua divindade na encarnação c o corpo não perdeu o caráter tangível da sua natureza.9
M as, em b o ra Severo afirm asse as realidades duais da divindade e da h u m an id a de em Jesu s C risto , está claro qual delas dom ina: a divindade na pessoa do Logos d o m in a a h u m an id ad e de Jesus. Severo só m en cio n o u o “caráter tangível” do cor po h u m an o para dar u m exem plo de co m o Jesu s era h u m an o . A polinário poderia ter dito a m esm a coisa. O s principais m onofisistas argum entavam contra a in terp retação clássica de C alcedônia, q u e era cada vez m ais diofisita. C om eçaram a criticar não som ente a interpretação, m as tam bém a própria Definição p o r três m otivos. P rim eiro, porque a Definição excluiu a única fórm ula q u e poderia prevalecer sobre o nestorianism o: “u m a única n atureza encarnada do Logos div in o ”. S egundo p o rq u e ela não m en ci o n o u a u n ião hipostática o u communicatio idiomatum. Terceiro p o rq u e excluiu a c o n fissão “de dois [...] u m só”. F inalm ente, q u an d o falharam suas tentativas m o d era das de influenciar a opinião em direção à sua própria interpretação de C alcedônia, os principais m onofisistas a repudiaram abertam ente e T im ó te o E luro p ro n u n c io u um anátem a contra ela: “Q u a n to a nós, c o n fo rm am o -n o s com a d o u trin a das Es crituras divinas e dos santos d o u to res da igreja. A natem atizam os os q u e falam em duas naturezas o u em duas ottsiai [substâncias] n o tocante a C risto ”.10 E m bora fosse u m a coisa o im perador e os patriarcas principais da C ristandade p erm itir q u e algum as igrejas nestorianas e m onofisistas radicais (eutiquianas) na Síria e n o Egito se separarem da G ran d e Igreja em um cism a, o u tra inteiram ente d iferente era p erm itir q u e o poderoso patriarca de A lexandria e um a parte inteira do co rp o de C risto se afastassem por causa apenas de algum as palavras, q u an d o re p u d ia v a m a b e r ta m e n te to d a s as h e r e s ia s c e s ta v a m a p e n a s p e d in d o a reconsideração de alguns trechos e da interpretação da Definição de Calcedônia. Afi nal, a p rópria Definição não era u m credo co m o a declaração de fé de N icéia. Seus próprios fo rm uladores consideravam -na u m a sim ples interpretação da fé nicena. N a prim eira m etade d o século vi, as forças m onofisistas cresceram d en tro da igreja oriental a p o n to de am eaçarem se to rn ar m ais num erosas e poderosas do q u e os dem ais partidos. Para deixarem claro q u e não eram hereges, proclam aram insis ten tem en te seu desacordo com E utiques e seus seguidores m onofisistas radicais e recapitularam o grande pai C irilo, tão respeitado p o r todos. E m 527, foi c o ro a d o em C o n s ta n tin o p la u m p o d e ro so n o v o im p e ra d o r: Ju stin ia n o i o u Ju stin ia n o , o G rande. Ju stin ia n o é co n h e cid o p o r ter feito m uitas
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reform as e inovações na lei e 110 governo, b em co m o p o r ter co n stru íd o a grande catedral de H agia Sofia q u e atu alm en te en co n tra-se no ce n tro de Istam bul, tran s form ada em m esquita, m as na teologia destaca-se p o r ter resolvido a controvérsia m onofisista. C o m o o p rim eiro im perador bizantino, C o n sta n tin o , considerava que era seu dever m an ter a igreja unida na d o u trin a e n o governo eclesiástico. P ortanto, um a de suas prim eiras m edidas foi exigir q u e todos os bispos cristãos fossem rigo ro sa m e n te leais a C alce d ô n ia . Isso soou c o m o u m golpe, até m esm o para o m o n o fisism o m oderado. N o en tan to , para trazer pelo m enos os m ais m oderados dos m o derados de volta ao redil o rtodoxo e católico da G ran d e Igreja, Ju tin ia n o co n co rd o u em convocar o u tro concílio e esclarecer de um a vez qual era a in terp re tação co rreta de C alcedônia. P ro m eteu q u e os m onofisistas seriam levados em consideração se perm anecessem d en tro da igreja.
Leôncio de Bizâncio e a cristologia ortodoxa D a m esm a form a q u e a im peratriz P u lq u éria e seu consorte e regente, M arciano, distrib u íram o Tomo de Leão a todos os bispos antes do C o n cílio de C alcedônia a fim de garantir um d eterm in ad o resultado ali, tam b ém Ju stin ia n o adotou os escri tos de u m teólogo para serem defendidos en tre os bispos co m o preparação para o novo concílio q u e seria realizado em C o n sta n tin o p la em 553 com o o q u in to c o n cílio ecu m ên ico da C ristandade. O teólogo escolhido foi L eôncio de B izâncio, que tinha u m a presença discreta em Jeru salém e em C o n sta n tin o p la e n tre 529 e 536. Ju stin ia n o en carreg o u -o de convocar e presidir as conferências dos teólogos o rto doxos de destaque, para lavrar u m novo conceito da união hipostática q u e fosse plen am en te co n sistente com a Definição de Calcedônia m as, ao m esm o tem po, p re enchesse a lacuna en tre os m onofisistas m oderados e os diofisitas. N ão se co n h ecem os detalhes da vida de Leôncio. N a realidade, co n fo rm e foi dito antes, alguns estudiosos discutem se a pessoa q u e realizou o evento foi m esm o Leôncio de Bizâncio! Seja com o for, a tradição reza q u e nasceu p o r volta de 485 em Bizâncio, q ue era filho de pais nobres — o q u e explica co m o Ju stin ia n o o conhecia — e q ue m o rre u em 543, provavelm ente em Jeru salém . E possível q u e existisse algum grau de parentesco en tre Ju stin ia n o e Leôncio. A inda jo v e m , L eôncio dei xo u suas riquezas e sua vida confortável em C o n sta n tin o p la e viajou para a Síria, para m o rar em u m m o steiro o n d e recebeu a influência nestoriana. C o n seg u iu li bertar-se dessa heresia e to rn o u -se u m ardoroso defen so r de C alcedônia, m as sob um a interpretação d ecididam ente alexandrina. As p rin cip ais obras ainda ex isten tes de L eôncio d e B izâncio n u n c a fo ram traduzidas. São co m u m en te conhecidas no O cidente p o r seus títulos em latim: Contra nestorianos et eutychianos [Contra nestorianos e eutiquianos], Capita triginta contra Seuerum [Trinta capítulos contra Severo] e Epilysis [Soluções — aos argum entos de S evero]. A lém
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de apresentar arg u m entos p ro fu n d o s contra as várias heresias cristológicas e em favor da cristologia calcedônia, L eôncio conseguiu dar u m salto conceituai que Ju stin ia n o achou ex trem am en te útil para d efen d er C alcedônia de seus críticos: o prin cíp io da enipostasia da natureza h u m an a de C risto no Verbo divino. Essa idéia, q u e será descrita logo a seguir, rep resen to u u m “avanço claro em relação ao que existia antes no p en sam en to cristológico alexandrino”11 e pareceu satisfazer às exi gências dos dois partidos m oderados: os an tio q u en o s e os alexandrinos. O p ro b le m a para o qual enipostasia é a solução en co n tra-se na seguinte pergunta: “Se, c o n form e todos con co rd am , um a natureza deve ter sua [própria] hypostasis [existência pessoal], co m o se pode confessar “duas naturezas em um a única hypostasis”?”.,2 Essa parece ser a essência de to d o o debate: o dilem a não resolvido e ap a ren tem e n te insolúvel, que afastou e separou A ntioquia de A lexandria. Leôncio concordou com os alexandrinos, em p rim eiro lugar, que o Logos/Verbo eterno, o Filho de D eus, é o sujeito da encarnação. Essa única personalidade d e je su s é D eus Filho. M as contra a cristologia alexandrina, rejeitou a idéia da im personalidade da hum anidade de C risto — a anipostasia da natureza, segundo C irilo — porque “um a natureza sem hipóstase seria um a abstração”.13 D uas naturezas não devem , portanto, incluir duas pessoas? N ão! Leôncio argum entou que, em bora u m a n ature za — até m esm o hum ana — não possa existir sem um a hipóstase, não precisa ter sua própria hipóstase. Ela pode ser “hipostatizada” em outra. O u seja, para Leôncio, “a natureza hu m an a de C risto não ficou sem hipóstase, mas se to rn o u hipostática [per sonalizada] na Pessoa d o Logos”.14 A natureza hu m an a de C risto — a natureza h u m ana plena e com pleta — não era anipostática (im pessoal), nem propriam ente pesso al, m as enipostática, que significa “personalizada na pessoa de o u tre m ”. D e acordo com Leôncio, existem três m aneiras nas quais dois seres o u realida des p o d em se unir. P rim eira, eles podem estar ju stap o sto s, lado a lado, e in tim a m en te relacionados u m ao o u tro , co m o na am izade o u n o casam ento. Era assim q u e os n estorianos concebiam da encarnação — a hu m an id ad e e a divindade com o duas naturezas e duas pessoas co operando en tre si. S egunda, eles po d em se fu n d ir em u m “terceiro algo” — u m híb rid o — de m o d o q u e dessa união surja um a nova n a tu re z a q u e seja u m a m istu ra dos dois. Era assim q u e os e u tiq u ia n o s e os m onofisistas radicais concebiam a encarnação — a hu m an id ad e e a divindade em um a só entidade pessoal q u e é um a m istura das duas naturezas, m as n e n h u m a é plena. F inalm ente, “duas coisas podem se u n ir de tal m aneira q u e suas naturezas distintas subsistam em um a única hipóstase”.15 Essa era a idéia de Leôncio sobre a encarnação e ele forneceu ilustrações para reforçá-la. Por exem plo, um a tocha é lenha e cham a — duas naturezas — co m p letam en te unidas pelo fogo. D a m esm a form a, em u m ser h u m an o , o corpo e a alm a são duas naturezas distintas unidas d u ra n te a vida na pessoa do ser h u m an o . C ada natureza nesse terceiro tipo de
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u n iã o pode te r su a p ró p ria e x is tê n c ia in d e p e n d e n te , m as n ão te m . E las se in terp en etram sem fo rm ar u m terceiro algo, p o rq u e estão ju n ta s pela hipóstase ou subsistência de um a delas. Para Leôncio, a encarnação é o terceiro tipo de união. N a un ião hipostática a natureza h u m an a de C risto subsiste, é personalizada e recebe sua existência co n creta, na hipóstase de sua natureza divina. “P ortanto, a hipóstase em C risto é a do Verbo etern o e nela subsistem o divino bem co m o o h u m an o . E p o r isso q u e po d e m os d izer q u e há, em C risto, u m a ‘união enipostática'”.{(' E m outras palavras, para Leôncio a natureza h u m an a de C risto possuía tu d o q u e q u alq u er o u tro ser h u m a n o possui na sua condição nãopecadora (inocência pristina), exceto um a existência pessoal in d ep en d e n te da pessoa d o Verbo divino. Jesu s C risto era e é a eterna se gunda pessoa da T rindade — o Verbo, o Filho de D eus — , com u m a natureza hu m an a e sua p ró p ria natureza divina, e é a “pessoa” das duas naturezas. Por que não pensaram nisso antes? A solução proposta por Leôncio não era um a contribuição para a fé nicena c o n form e interpretada em C alcedônia. T udo o que envolve enipostasia é u m a in terp re tação da cristologia calcedônia q u e ajuda a vencer as fortes objeções levantadas pelos alexandrinos e pelos antioquenos, em b o ra os defensores m ais obstinados dos dois partidos ten h am se recusado a ceder e a aceitá-la. O m ais im p o rtan te é q u e nem Leôncio, n em Ju stin ia n o , n em o S egundo C o n cílio de C o n sta n tin o p la em 553 co n sid ero u q u e essa solução iria além de C alcedônia, em q u alq u er detalhe. Pelo contrário, com o princípio da enhypostasia Leôncio [... ] está apenas levando adiante a obra dos pais calcedônios no esfor ço de formular a fé verdadeira de tal maneira que não sobre espaço para as heresias nestoriana 011 eutiquiana. “D uas naturezas devem ser confessadas, posto que cm Jesus C risto a divindade e a hum anidade estão ligadas cm uma união pessoal. Mas a hum anidade não existe independentem ente, co m o se fosse de ‘outro além do Logos’”. Pelo contrário, tem a sua existência, mas existe na hypostasis do Logos, a quem se uniu. E, co m o cada uma dessas natu rezas perm anece com suas propriedades e qualidades essenciais, e a “diferen ça de existência” é conservada, o con ceito de que em Jesus C risto existe uma só natureza (una substantia) é im possível.17
A C ristologia de Leôncio pode acom odar a comtnunicatio idiomatum de tal m a neira que as características divinas e h um anas po d em ser atribuídas ao Logos divi no q u e form aram o cerne pessoal de Jesu s C risto. C o m o Jesu s C risto , ele — o Verbo — sofreu a m o rte e a subjugou. E ntretan to , nesse esquem a ainda é possível dizer q u e a divindade é incapaz de sofrer (im passível) d izen d o q u e Jesu s C risto só sofreu “na sua h u m an id ad e”. T am bém é possível dizer que a h u m an id ad e é total e
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com pleta e q u e está sendo curada pela encarnação salvífica, p o rq u e a natureza h u m ana de je s u s C risto possuía tu d o o que era essencial para um a natureza hum ana. E m C o n sta n tin o p la n em 553, a in terpretação de L eôncio de B izâncio para C alcedônia foi explicada a todos e todos os bispos tiveram de reafirm ar a Definição de Calcedônia. O im perador lhes disse: “Se essa nova interpretação não acabar total m en te com suas objeções, sejam alexandrinas o u antioquenas, c porque são obstina dos e indignos de serem bispos da G rande Igreja”. Para levar os m onofisistas a rea firm ar C alcedônia com essa nova interpretação, Ju stin ian o e o concílio condenaram p o stu m am en te o herói de A ntioquia, T eodoro de M opsuéstia. A lém de seu propósi to principal, o concílio con d en o u O rígenes — u m alexandrino. O bviam ente, a p rin cipal razão de ser do q u in to concílio ecum ênico, dom inado p o r Ju stin ian o , foi apla car e acom odar os m onofisistas alexandrinos m oderados para m anter e reafirm ar a ortodoxia de C alcedônia. N esse sentido, os antioquenos saíram perdendo. “R esu m indo, a cristologia an tioquena foi condenada em todas as suas form as, ao passo que a cristologia alexandrina foi rejeitada som ente na sua form a m ais extrem a”.18 Q u al é a m oral da história? D epois de tu d o que se disse c fez, 110 q u e o cristão deve crer sobre Jesu s C risto? D eixando de lado os p o rm en o res c in d o d ireto ao assunto, é o seguinte: segundo a d o u trin a da un ião hipostática co n fo rm e in terp re tada e afirm ada pelo q u in to concílio ecum ênico: “em b o ra possam os nos aventurar 110 processo m ental de ver as duas naturezas dc C risto 11 a sua realidade, sem pre devem os voltar à verdade fundam ental de q u e ele é u m a só Pessoa, o Logos q u e se fez h o m em , a q u em p erten cem propriedades tanto divinas co m o hum anas e de q u em são as ações e palavras, divinas e hum anas, relatadas nas E scrituras”.19 C o m m uita paciência, pode-se e n te n d e r a linha de raciocínio da igreja até, e d u ran te, as decisões cristológicas do q u in to concílio cm C o n sta n tin o p la em 553. A p artir dali, pelo m en o s alguns cristãos protestantes m o d ern o s conseguem , feliz m en te e sem gran d e fru stração , avançar com a igreja o rien ta l até as decisões cristológicas do sexto concílio ecum ênico, q u e é co n hecido 11 a história eclesiástica p or C o n stan tin o p la 111 . Ele foi realizado 11 a capital bizantina em 681 para resolver u m a controvérsia de grande im portância para os cristãos ortodoxos orientais, mas praticam ente desconsiderada pelos cristãos ocidentais. A Igreja C atólica R om ana realm ente reco n h ece C o n stan tin o p la 111 co m o u m dos concílios verdadeiram ente ecum ênicos da igreja indivisa, m as poucos católicos prestam atenção aos seus atos ou decisões. E n tre C o n stan tin o p la 11 e 681 surgiu u m en sin o a respeito dc C risto d en tro das classes ortodoxas, q u e preten d ia trazer os m onofisistas cism áticos da S íria e do E g ito de volta ao re d il da G ra n d e Igreja. F icou c o n h e c id o c o m o m o n o telism o , a crença em um a única vontade em C risto. A questão, posterior m en te discutida, era se C risto tinha duas vontades — um a divina, e u m a hu m an a — o u só u m a vontade, divina.
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U m dos grandes heróis da teologia ortodoxa oriental foi o h o m em q u e d e rro tou, quase sem n e n h u m a ajuda, o m onotelism o: M áxim o, o C o n fesso r (580-662). Sua história será contada em u m capítulo posterior. P or causa de sua defesa teoló gica do d u o telism o (a crença cm duas vontades em C risto) e do seu m artírio h eró i co em defesa dessa crença, o sexto concílio ecu m ên ico co n d e n o u o m o n o telism o e im pôs co m o d o u trin a ortodoxa a crença em duas vontades. Essa foi um a d errota terrível para o m onofisism o, q u e se separou p erm a n en tem en te da G ran d e Igreja a p artir de então. Se, no fim desta seção sobre as grandes controvérsias cristológicas e os concílios q u e elas debatiam , alguns leitores ficarem com a im pressão de q u e aconteceu algu m a coisa terriv elm en te errada a cam inho para o q u in to e, especialm ente, para o sexto concílio ecu m ên ico, não serão os únicos. M uitos protestantes, e não poucos católicos m o d ern o s, qu estionam se tu d o isso era realm ente necessário. O evange lho de Jesu s C risto co m o Salvador e S en h o r estava realm ente em jo g o nesses deba tes tão abstratos e, às vezes, detalhistas? Talvez, a m e lh o r resposta seja “sim ” e “n ão ”. O histo riad o r eclesiástico, Ju sto G onzález, resum e m e lh o r a questão: A ssim term inou o lon go processo de d esenvolvim ento e esclarecim ento teo lógicos que havia com eçado pelo m en os três séculos antes. O resultado foi a rejeição de todas as posições extremas, a reafirmação categórica de que Jesus C risto era total e verdadeiram ente hum ano e divino e, ainda, a declaração de q ue essas duas naturezas estavam estritam ente vinculadas em um a única hipóstase. Durante esses debates, o Jesus histórico c am oroso d o n t ficava de lado e o Salvador tornava-se objeto de especulação e de controvérsia; agora era descrito cm term os totalm ente estranhos para o vocabulário d o n t : “hipóstase”, “natureza”, “energia” etc.; tornava-sc o alvo de debates, em vez de ser o Senhor dos crentes e da história. Poderíamos, 110 entanto, perguntar se havia alguma alternativa para a igreja quando os crentes com eçaram a d edi car suas m elhores faculdades intelectuais ao grande m istério da fé cristã. O cam inho tom ado no decurso de seis concílios (...) conseguiu, de certa forma, rejeitar todas as tentativas sim plistas de racionalizar a fé e realm ente levou ao m istério inescrutável da encarnação.20
A co rtina desce no fim desse grande ato do dram a da teologia cristã. Para todos os efeitos, a o rto d o x ia cristã estava co m p leta com o q u in to o u sexto co n cílio ecum ênico. O s cristãos ortodoxos orientais tentarão incluir o sétim o antes de e n cerrar o desen v o lv im ento da d o u trin a ortodoxa. O s cristãos católicos rom anos tal vez ap o n tem para concílios posteriores e decisões papais, m as alguns protestantes, certam ente, arg u m en tarão q ue tu d o isso era desnecessário p o rq u e a ortodoxia cristã tin h a sido to talm en te estabelecida m u ito antes, talvez desde 325 n o C o n cílio de
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N icéia, senão antes, nos escritos dos apóstolos e de alguns dos pais da igreja. N o en tan to , as grandes heresias d o gnosticism o, d o adocionism o, do arianism o, do sabelianism o (m odalism o), d o apolinarism o, d o n esto rian ism o e d o eu tiq u ian ism o (m onofisism o) precisavam ser vencidas e esse foi u m longo e tu m u ltu a d o proces so teológico. Q u e m dera tivesse sido m ais sim ples! A lguns teólogos sistem áticos arg u m en tam q u e quase todas as heresias de dois m il anos de cristianism o podem ser reduzidas a u m a das q u e foram m encionadas acim a. Sc isso for verdade, então a d erro ta delas era essencial, m esm o q u e significasse m u ita confusão, escândalos e debates e fórm ulas d o u trinárias altam ente técnicas. Se algum a das heresias m en ci onadas tivesse vencido e se to rn ad o o consenso en tre os cristãos n o m u n d o inteiro, seria u m a grave perda para o evangelho. D eus opera de form a m isteriosa, até m es m o através de im peradores co m o C iro na era d o AT e C o n sta n tin o e Ju stin ia n o na igreja prim itiva, a fim de preservar a verdade. É hora de v o ltarm os à história dos acontecim entos teológicos n o O c id e n te do m esm o p eríodo que a grande controvérsia cristológica do O rie n te . U m n o m e des taca-se acim a de todos os dem ais pensadores d o cristianism o ocidental. Talvez não seja exagero su gerir q u e A gostinho foi o teólogo cristão ocidental m ais im portante desde os dias dos apóstolos. É à sua história e, depois, a de o u tro s, q u e dedicarem os a nossa atenção.
Q u in t a P a r t e A s a g a d e d u a s ig re ja s: A Grande Tradição divide-se entre o Oriente e o Ocidente
r N este m o m en to , a história da teologia cristã é a história de u m a G ran d e Igreja, católica e ortodoxa, relativam ente unida. Já vim os q u e heresias e cism as tem p o rá rios am eaçaram a u n ião da igreja prim itiva e q u e às vezes a igreja u sou p o d er coercivo para im por, à força, a un ião ou m esm o a uniform idade. A despeito dessas tensões, n o en tan to , a igreja dos bispos em sucessão apostólica conseguiu p erm a necer um a só igreja. Em m eados d o século v, na ocasião d o C o n cílio de C alcedônia (451), os bispos das grandes sés da cristandade ainda estavam em c o m u n h ã o uns com os o u tro s, em b o ra essa c o m u n h ão estivesse sob tensão e a p o n to de term inar. D epois d o concílio, a G ran d e Igreja foi identificada pelos bispos em c o m u n h ão com o im p erad o r e patriarca n o O rie n te e pelo bispo de R om a (tam bém conside rado u m patriarca) n o O cid en te, e os três usu alm en te m antiveram c o m u n h ão e fraternidade en tre si. Já vim os, tam b ém , que a G ran d e Igreja sofreu várias deserções de v ulto nos séculos iv e v. N o O cid en te, o cism a donatista na África do N o rte criou sua p ró pria c o m u n h ão de bispos e congregações e só foi superado pelo p o d er do estado, ao forçar seus seguidores a reto rn ar ao redil da G ran d e Igreja o u ir para o exílio e a ilegalidade. N o O cid en te, os cism as nestorianos e m onofisistas foram m ais per m an en tes nas fím brias d o im pério. N o en tan to , pelo m en o s co m o u m ideal no papel, a G ran d e Igreja e sua G ran d e Tradição de fé e de co m u n h ã o perm aneceram relativam ente intactas. M as isso não duraria para sem pre. Por m uitas razões, as tensões en tre as igrejas d o O cid en te, q u e respeitavam cada vez m ais o bispo de R om a com o patriarca su p re m o de toda a cristandade, e.as do O rie n te , q u e respei tavam C o n stan tin o p la (o im p erad o r e patriarca) co m o o ce n tro da cristandade, agravaram -se cada vez m ais nos séculos que se seguiram ao C oncílio de C alcedônia. O grande cism a en tre o O rie n te e o O c id e n te oficializou-se d efinitivam ente em 1054 q u an d o , então, os patriarcas de R om a e de C o n sta n tin o p la se ex c o m u n garam m u tu am en te. N a verdade, po rém , isso já tin h a acontecido antes. D epois de
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1054, no en tan to , o ro m p im e n to n u n ca foi sanado. D esde então, d u ra n te quase u m m ilênio, houve duas ram ificações principais da C ristandade, sendo q u e cada u m a alegava ser a única igreja apostólica verdadeira, tan to católica q u an to o rto d o xa. M u ito s leitores reconhecerão essas duas grandes tradições pelos seus nom es: ortodoxia oriental e catolicism o rom ano. E n treta n to , cada um a dessas tradições considera-se a co n tinuação da igreja apostólica q u e nasceu n o dia d o Pentecostes (Atos 2). C ada um a considera a o u tra cism ática, q u e se separou da única igreja verdadeira, santa, católica e ortodoxa. U m sinal claro dessa atitude é a recusa da c o m u n h ão eucarística. M em b ro s das igrejas de R om a q u e respeitam o bispo de R om a co m o papa e “vigário de C risto ” não devem participar da eucaristia, ou ceia do S enhor, com m em b ro s da família das igrejas ortodoxas orientais. M em b ro s da fam ília das igrejas ortodoxas orientais (grega, russa, ro m en a etc.) não devem participar dos sacram entos com m em bros da Igreja de R om a. E m bora as partes se reconheçam co m o cristãs, n e n h u m a reco nhece a o u tra co m o a verdadeira igreja dc Jesu s C risto. C ada u m a das igrejas é cism ática aos olhos da rival. C ada um a acusa a o u tra de ter ro m p id o a paz e a união do corpo de C risto , pelo m enos, em 1054 senão antes. O que levou ao ro m p im en to ? C o m o a G ran d e Igreja indivisa dos apóstolos e do Im p ério R o m an o se dividiu dessa m aneira? Por q u e existem duas grandes e antigas famílias de igrejas e cada u m a alega rep resen tar hoje a igreja prim itiva no m u n d o ? E ste capítulo contará essa história em várias etapas. Ele com eça com o teólogo m ais im p o rtan te da tradição ocidental, A gostinho de H ipona, q u e de m u i tas m aneiras é o v erd adeiro pai da abordagem teológica ocidental. E m b o ra seja considerado santo e u m grande in stru to r dos cristãos pelas igrejas orientais, tam bém é tid o co m o aquele q u e separou a igreja e isso de várias m aneiras cruciais. Seu legado incluía vários hábitos de reflexão, p ro fu n d am en te arraigados no O cid en te, qu e os cristãos orientais não podiam aceitar. N o ssa história d o grande cism a en tre o O rie n te e o O c id e n te continuará com a consideração de vários im portantes e destacados teólogos do O rie n te bem co m o d o O cid en te, q u e co n trib u íra m para o ro m p im en to , m as em m e n o r escala q u e A gostinho. T erm inarem os essa parte da história da teologia cristã com a consideração dos fatores im ediatos q u e provoca ram a divisão, co m o a alteração ocidental do C red o de N icéia q u e o O rie n te in ter p reto u co m o heresia. N o fim da seção, os leitores saberão p o r q u e a G ra n d e Igreja e sua G ran d e Tradição se dividiram em duas ram ificações conhecidas hoje co m o a ortodoxia oriental e o catolicism o rom ano. Para co n tar co rretam en te essa parte da história, devem os voltar no tem p o para o fim da Parte tv. E m b o ra as raízes da divisão en tre o O rie n te e o O c id e n te estejam na linguagem e na cultura, o divórcio en tre R om a e C o n sta n tin o p la parece ter se to rn ad o inevitável q u an d o u m certo teólogo se to rn o u o padrão c a n o rm a para o
A saga de duas igrejas
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pen sam en to teológico d o O cid en te. Seu n o m e era A urélio A gostinho e ele não sabia grego. Lia tan to a Bíblia co m o os pais anteriores da igreja em traduções lati nas de baixa qualidade. Estava im pregnado das tradições do p en sam en to latino e passou toda a sua vida sob a esfera da influência de R om a. Por algum m otivo, sua influência p erm e o u o cristianism o ocidental ainda em vida e se to rn o u sem i-oficial poucas décadas após sua m orte. A gostinho pode ser com parado com O rígenes em term o s de genialidade, p ro dutividade e influência. O q u e O rígenes era para o O rie n te (até sua condenação im erecida em 553), A gostinho é para o O cid en te. Até os grandes reform adores protestantes do século xvi consideravam -se seguidores e in térp retes de A gostinho. Seria quase im possível exagerar a influência do pen sam en to desse h o m e m sobre o cristianism o ocidental, tanto católico ro m an o q u an to protestante. A aceitação dele no O rie n te , p o rém , é m enos efusiva. O s teólogos ortodoxos o rientais em geral acreditam q u e as in terpretações da teologia de A gostinho o u m esm o o p ró p rio pen sam en to desse pai n o rte-africano da igreja desviaram as igrejas ocidentais para o cam in h o do cism a e talvez até da heresia. E apropriado, p o rtan to , com eçar nossa história do grande cism a en tre o O rie n te e d o O c id e n te com cuidadosa consideração sobre A gostinho e seu legado. E m bora A gostinho ten h a escrito livros e cartas a respeito de quase toda questão teo ló gica, filo só fica e ética q u e se possa im ag in ar, n o sso e n fo q u e será so b re sua soteriologia. Suas opiniões a respeito d o pecado e da salvação o cupam a posição central de sua co n tro v ertida contribuição à história da teologia. Seus conceitos da T rindade e da pessoa de Jesu s C risto têm aspectos distintos, m as, em geral, ele aceitava o consenso da igreja em N icéia e C o n sta n tin o p la e seus escritos sobre esses assuntos não são em nada conflitantes com a ortodoxia declarada em Éfeso e C alcedônia. M u ita im portância tem sido atribuída ao m odelo psicológico da T rin dade oferecido p o r A gostinho e m u ito s o têm contrastado com o m o d o d o m in an te de pensar sobre a T rindade n o O rie n te . E n treta n to , é certo q u e a teologia global de A gostinho a respeito da T rindade o u da encarnação não era heterodoxa e n e m esta va em desacordo com a linha geral de p en sam en to d o O rie n te . A qui, portanto, focalizarem os os aspectos da teologia agostinista q u e co n trib u íra m m ais d ireta m en te para o cism a en tre o O rie n te e o O c id e n te e que deram form a à teologia d is tin ta d o O c id e n te so b re a salvação q u e os c ristã o s o rie n ta is c o n sid e ra m pertu rb ad o ra.
17 Agostinho confessa a glória de Deus e a depravação humana
.A g o s tin h o , pai da igreja, teólogo e bispo, en c o n tro u -se n u m a encruzilhada im portante da teologia e en c am in h o u todo o O c id e n te para u m a d eterm in ad a direção: A gostinho marca o fim de uma era e o início de outra. E o ú ltim o dos escrito res cristãos da A ntigüidade e o precursor da teologia m edieval. As principais correntes da teologia da Antigüidade convergiram para ele e dele fluíram as correntes, não som ente d o escolasticism o m edieval, mas tam bém da teologia protestante d o século xvi.1
A lguns ro tu laram a co rren te teológica iniciada p o r A gostinho e q u e se e sten d eu d u ra n te os séculos da teologia ocidental de agostinism o e identificaram cor retam en te sua característica principal co m o sen d o “a ênfase na su prem acia abso luta de D eus e a co n se q ü en te fragilidade e depen d ên cia absoluta da alm a da graça de D e u s”.2 Esse p o n to central da teologia de A gostinho, obviam ente, não era u m a idéia co m p letam en te nova apresentada p o r ele. Pais da igreja an terio res a ele tam b ém acreditavam na suprem acia de D eus e na dependência da alm a h u m an a na graça e assim ensinavam . A gostinho, n o en tan to , deu u m novo en fo q u e a essas idéias e reu n iu -as cm u m a nova form a. C o n fo rm e verem os, o agostinism o in tro d u z iu na co rren te do p en sam en to cristão o q u e é cham ado m onergism o: a idéia e a crença de q u e a ag ên cia h u m a n a é in te ira m e n te passiva e a d e D e u s é to ta lm e n te determ in an te, tan to na H istória universal q u an to na salvação individual. M uitas pessoas já co n h ecem parte disso co m o “predestinação” c au to m aticam en te associ am -n a ao refo rm ad o r p rotestante do século xvi Jo ão C alvino. N o entanto, a pers pectiva m ais am pla consiste nas idéias m onergísticas de A gostinho a respeito da providência e da salvação, nas quais D eus é o ú n ico agente e energia ativa, ao passo que os seres h u m an o s, tan to coletiva co m o in dividualm ente, são ferram entas e in stru m en to s da graça o u ira de D eus.
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A teologia cristã antes de A gostinho adm itia o co nceito d o relacionam ento e n tre D eus e o m u n d o cham ado de sinergism o: a idéia e crença de q u e a agência de D eus e a agência h u m an a cooperam m u tu a m e n te de algum m o d o para p ro d u z ir a história e a salvação. O s cristãos ortodoxos sem pre creram , é claro, que o p o d er e a graça de D eu s são su prem os, mas quase todos os teólogos pré-agostinianos ad m i tiam q u e D eus concede aos seres hu m an o s certo grau de liberdade para tom ar determ inadas decisões cruciais. E m bora A gostinho n u n ca rejeitou to talm en te a liberdade hu m an a, o teor global do seu p en sam en to m ilita contra q u alq u er liber dade gen u ín a dos seres h u m an o s de frustrar a vontade perfeita de D eus. D eus sem pre consegue im p o r sua vontade, m esm o q u an d o os seres h u m an o s pecam e realizam ações iníquas. O D eus de A gostinho é a “realidade que tu d o d e te rm in a ”, cujo p o d er é a característica principal: Embora Agostinho faça um esforço enorme para preservar tanto a liberdade humana quanto a bondade de Deus, está claro que o seu Deus é, acima de tudo, o governante imperial do universo e a única coisa que não pode ser sacrificada a nenhum preço é o seu poder absoluto. Essa é a base do pensa mento de Agostinho, que compõe as doutrinas mais associadas ao seu nome.3
A vida e o ministério de Agostinho A vida de A gostinho é a m ais conhecida de todos os pais da igreja prim itiva. N a realidade, sabem os m ais a respeito dele do q u e de quase q u alq u er o u tra pessoa da A ntigüidade. Isso p o rq u e ele escreveu um a das p rim eiras autobiografias razoavel m en te fidedignas c porm enorizadas cham ada Confissões. E m bora esteja escrita em form a de oração para relatar sua jo rn a d a espiritual e dar graças a D eu s, as Confissões de A gostinho revelam m uita coisa a respeito de sua infância, fam ília, ju v e n tu d e , de suas lutas naqueles tem pos, de sua saúde física e m ental, de sua conversão, do seu d esenvolvim ento teológico e da sua vida co m o clérigo de destaque na África do N o rte . A gostinho o m itiu pouca coisa o u quase nada de seus leitores. Fez um a exposição, co m d etalhes ín tim o s, dos seus pecados da infância à vida adulta e enfatizou, cm cada m o m en to , sua própria depravação total bem co m o o p o d er da graça de D eus para cu rar e transform ar. As Confissões revelam q u e A gostinho era u m pessim ista a respeito da hum anidade, inclusive de sua própria, e u m otim ista a respeito da graça. Em 354, A gostinho nasceu com o nom e de A urelius A ugustinus em Tagaste, um a pequena cidade na África do N o rte não m u ito longe de C artago. Sua m ãe, M ônica, era cristã, e nas Confissões A gostinho atribuiu-lhe m u ito crédito por o ter levado ao arrep en d im en to e à fé pelas orações constantes em seu favor. O pai de A gostinho era um funcionário público rom ano de classe m édia, q u e desfrutava de certo respeito na
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com u n id ad e. M as tam b ém era pagão e po u co se interessava pelo cristianism o de M ônica. E m bora tenha sido criado co m o cristão, A gostinho desviou-se da prática da fé na adolescência e, especialm ente, q u an d o jo v em estudante da academ ia de C artago, on d e alternava sua atenção en tre “cu tu car a ferida da concupiscência” e ten tar d esco b rir a significado da vida pelo estu d o da filosofia e da religião. Em C artago, foi in fluenciado p o r um a religião relativam ente nova, um a das seitas da época, cham ada m aniqueísm o. O s m aniqueístas eram seguidores de u m profeta persa cham ado M ani, que tin h a sido m artirizado pelos rom anos de m odo m u ito sem elh an te a Jesu s C risto. A gostinho sentiu-se, p o r algum tem po, atraído p o r eles p o rq u e pareciam intelectuais e ofereciam respostas às questões m ais im portantes da vida, respostas q u e pareciam ao jo v e m estu d an te superiores às respos tas do cristianism o 011 d o paganism o tradicional. P or exem plo, os m aniqueístas acreditavam em duas forças eternas e igualm ente poderosas, d o bem e do mal, engajadas em u m a luta perpétua. A ssim co m o os gnósticos, eles atribuíam o mal à m atéria, q u e teria sido criada pelo princípio d o m al, e o bem ao espírito, criado pelo b o m D eus do céu. Essa parecia ser u m a solução para o enigm a do mal. P oste rio rm en te, A gostinho ficou desiludido com essa teologia e espiritualidade dualista e partiu da África d o N o rte em direção a R om a e a M ilão. V ivendo co m o pagão em M ilão, a sede da corte im perial n o O c id e n te , A gosti n h o foi afetado p o r duas influências q u e transform aram sua vida. E n q u an to ensi nava retórica (oratória) na A cadem ia de A rtes em M ilão, A gostinho com eçou a ler livros sobre o neo p lato nism o. Estes co n v en ceram -n o de q u e podia existir um a realidade espiritual infinita q u e não era m aterial e era exatam ente essa idéia que o tinha im ped id o de aceitar o cristianism o. O neo p lato n ism o tam b ém fo rn eceu -lh e u m esclarecim ento a respeito do m al sem elhante ao q u e o pai capadócio G regório de N issa tin h a d escoberto e ensinado: o m al não é um a substância, m as a ausência do bem . A gostinho chegou a acreditar, antes disso, q u e o cristianism o e a religião bíblica em geral não tin h am resposta para o p roblem a d o m al. Se D eus é o n ip o te n te e perfeitam en te b om , p o r q u e existia tanta m aldade 110 m u n d o que D eus criou a partir do nada? Então, D eus não tin h a de criar o mal? N esse caso, D eu s não é o auto r do mal? O neo p latonism o, u m a filosofia pagã, fo rn ece u -lh e um a das pistas mais im po rtan tes para e n te n d e r a fé religiosa de sua mãe. A gostinho, tam b ém en q u a n to m orava e ensinava em M ilão, com eçou a estudar o estilo retórico d o m aior pregador e bispo cristão da Itália do N o rte : o virtuoso A m brósio. A m brósio ficou fam oso pela grande coragem em co n fro n tar o im pera d o r depois de este ter ord en ad o à m orte de m ilhares de gregos em u m m assacre vingativo e absurdo. T am bém era fam oso p o r suas im pressionantes habilidades hom iléticas e A gostinho escondia-se na parte dos fun dos da catedral cristã de M ilão para ouvi-lo pregar. C o m o tem po, a m ensagem pregada p o r A m brósio co m eçou a
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pen etrar na m en te de A gostinho e a convencê-lo de q u e sua idéia d o cristianism o estava errada. C o n sid e ro u -o precipitadam ente um a religião para pessoas fracas, estultas e sem refinam ento. A m brósio provava q u e era possível ser intelectual, elo q ü en te, corajoso e cristão. Já no início de 386, A gostinho convenceu-se da veracidade da cosm ovisão cris tã, m as ainda não estava disposto a se co nverter à fé de sua m ãe. Sabia q u e o cristia nism o au têntico transcende o aspecto m eram en te intelectual e suas Confissões reve lam a p ro fu n d a relutância em dar o passo do a rrep e n d im en to e da fé em Jesus C risto. U m a das orações irônicas de A gostinho em tem pos passados era: “O D eus, dá-m e o d o m da castidade [...] m as ainda n ão ”. Agora, em M ilão, estava realm ente chegando ao p o n to de to m ar a decisão, m as ainda não co m p letam en te disposto a aban d o n ar seu estilo de vida pecam inoso e egocêntrico. A conversão de A gostinho é um a das m ais fam osas da história da igreja. Essa narrativa é o p o n to alto de suas Confissões e revela q u e o evento significou o ro m p i m e n to radical com seu passado e um a transform ação q u e o deixou com p letam en te d iferen te da pessoa q u e era. C e rto dia, em agosto de 386, A gostinho sen to u -se no ja rd im de u m a q u in ta q u e alugava ju n to com alguns am igos. Sua própria narrativa do q u e aconteceu é a m elh o r descrição da sua conversão. Ele lia, com u m am igo cham ado Alípio, u m p ergam inho da epístola de Paulo aos ro m anos e conversava sobre o evangelho pregado e ensinado pelo apóstolo aos gentios. A gostinho estava cheio de convicção: Q uando essas profundas reflexõi extraíram do mais íntim o do m eu ser toda a m inha miséria e as expuseram pv ante m eu coração, fez-se enorm e tem pes tade desencadeando uma copiosa corrente de lágrimas. Para dar-lhes vazão com espontaneidade, afastei-m e dc A lípio, pois a solidão se apresentava a m im apropriada ao choro. A ssim , retirei-m e o suficiente para que sua pre sença não m e constrangesse. Eis o estado em que m e encontrava e A lípio bem o adivinhou, porque lhe disse, ju lg o eu, qualquer coisa num tom de voz em bargado pelo choro e, então, m e levantei. C om pletam ente atônito, A lípio perm aneceu im óvel no local on de estávamos. Corri, não sei co m o , para d e baixo de uma figueira e dei livre curso às lágrimas, que irromperam com o rios de m eus olh os em um agradável sacrifício a ti. E muitas perguntas te fiz, não com estas m esm as palavras, mas com outras de m esm o teor: “E tu, Se nhor, até quando? Até quando continuarás irritado? N ã o te lembres de n os sas iniqüidades passadas”. Sentia-m e, ainda, prisioneiro delas. E estes tristes lam entos vieram à tona: “Por quanto tem po, por quanto tem po? Amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que m inha torpeza não encontra fim ?”. A ssim falava c chorava, com o coração oprim ido pela mais amarga dor. Eis que, de repente, ouvi uma voz, não sei bem se de m en in o ou m enina, vinda
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de uma casa vizinha, que cantava e repetia continuam ente: “Toma e lê; toma e lê”. Im ediatam ente, m eu sem blante m ud ou e co m ecei a considerar seria m ente se as crianças norm alm ente entoavam essa canção em algum a brinca deira, pois não m e recordava de tê-la ou vido em parte alguma. Então, repri m i o ím peto de m inhas lágrimas e levantei-m e, con ven cid o de que se tratava de uma m ensagem d o céu que m e ordenava a abrir o livro e ler o prim eiro capítulo que encontrasse. [...] Apressado, voltei aonde A lípio estava sentado, pois lá tinha deixado o livro dos apóstolos quando m e levantei. P eguei-o, abri e, em silêncio, li o prim eiro capítulo em que deitei os olhos: “...não em orgias e bebedeiras, não em im oralidade sexual e depravação, não em desa vença e inveja. Ao contrário, revistam -se do Senhor Jesus C risto e não fi quem prem editando co m o satisfazer os desejos da carne [Rm 13. 13- 14]”. N ã o quis ler mais, nem era necessário; pois mal acabara de ler essas palavras e, co m o se uma luz de certeza tom asse m eu coração, todas as trevas da dúvi da se dissiparam .4
P ouco depois da conversão, A gostinho foi batizado pelo bispo A m brósio na igreja católica e o rto d o xa em M ilão. N o início, p ro c u ro u levar a vida de m o n g e ao c o n v erter a q u in ta em m o steiro para a oração, o estu d o e a reflexão. A cabou vo l tan d o ao seu lar na África d o N o rte e estabeleceu u m m o steiro ali. Sua m ãe, q u e tin h a se ju n ta d o a ele em M ilão, m o rre u na viagem de volta. D epois de sua chega da na África do N o rte , A gostinho to rn o u -se fam oso p o r suas grandes habilidades intelectuais e retóricas e n tre os cristãos na área agora con h ecid a co m o Tunísia. A G ra n d e Ig reja ali ain d a estava s e n d o a to rm e n ta d a p elo s c ristã o s d o n a tista s cism áticos q u e co n tin u av am a atrair con v ertid o s q u e abandonavam o cristianis m o católico e o rto d o x o e entravam para suas igrejas. O s m aniqueístas c o n tin u a vam a crescer e a am eaçar o cristianism o. O paganism o p erm an ecia relativam ente forte. A p ró p ria G ra n d e Igreja se via envolvida em m u ito s problem as in tern o s. A despeito de sua p ró p ria vontade, A gostinho não tin h a a possibilidade de levar a vida q u e desejava, a de u m estudioso cristão recluso e reflexivo, im erso na m ed i tação, no estu d o e na oração. Em 391 A gostinho foi praticam ente obrigado a receber ordenação pela congre gação cristã em H ipona. C erto dom ingo, q u an d o estava no culto com eles, literal m en te o pegaram e arrastaram para frente para ser o rdenado pelo bispo, a despeito de suas lágrim as e protestos. D epois, q u an d o o velho bispo de H ip o n a quis m ais u m bispo ao seu lado, A gostinho novam ente foi obrigado a aceitar. C o n tra sua p ró pria vontade, foi consagrado bispo de H ip o n a em 395 e sucedeu ao o u tro bispo q u an d o este m o rre u n o ano seguinte. A gostinho to rn o u -se bispo de u m a sé im por tantíssim a da África do N o rte , aos 42 anos de idade, e p erm aneceu no cargo du ran te m ais de 30 anos, até a sua m orte em 430. D u ra n te o exercício d o cargo, envolveu-se
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p ro fu n d am en te nos negócios da vida e da política da igreja, e c o n q u isto u a rep u ta ção de u m dos líderes m ais sábios da cristandade. A lém disso, e n tro u em debate com os m aniqueístas, e através dos seus escritos, d e m o n stro u q u e se tratava de um a religião baseada em m itos e cheia de contradições. L utou contra a influência crescente do d o n atism o e forneceu u m a teologia da vida eclesiástica e dos sacra m en to s q u e acabou p o n d o fim às objeções deles contra a validez da hierarquia e sacram entos católicos. A inda m ais im p o rtan te para a nossa história, o bispo de H ip o n a o cu p o u -se em um a controvérsia e debate prolongados com u m m onge britânico em R om a, Pelágio, e seus seguidores. U m a biblioteca inteira dos escritos de A gostinho surgiu co m o resultado desses conflitos e controvérsias. S om ente O ríg en es su p ero u -o n o vo lu m e de palavras escritas. U m teólogo espanhol, cha m ado Isidoro de Sevilha, supostam ente colocou na entrada d o escritório o n d e guar dava todas as obras de A gostinho a seguinte inscrição: “A quele q u e alega ter lido tu d o isso é m en tiro so ”.5 A pro d u ção literária de A gostinho foi tão vasta q u e é possível e n c o n trar em seus escritos p raticam ente q u alq u er tem a q u e se im agine. Ele escreveu a respeito de m u ito s assuntos e, não raro, antecipou alguns desd o b ram en to s da filosofia, da psi cologia e da teologia q u e surgiriam em eras posteriores. A lguns com entaristas co n sid eram -n o o p rim eiro psicólogo p o r ter explorado o p lan o subconsciente da m e n te h um ana. Suas reflexões sobre a criação antecipam , em linhas gerais, a evolução já q ue ele rejeitava a interpretação literal dos sete dias da criação e en ten d ia os “dias” da criação com o épocas ou eras de duração indefinida, d u ra n te as quais D eus op ero u na natureza para criar os seres vivos. P ertinente para a nossa história é que, infelizm ente, os escritos de A gostinho co n têm m uitas contradições aparentes. Seus p en sam entos a respeito de m u ito s assuntos teológicos foram se desenvolvendo e alterando no d ecu rso do tem po, portan to , é im p o rtan te n o tar transições d en tro de seu p ensam ento. Por exem plo, em sua teologia inicial, defendia u m a idéia não d eterm in ista da liberdade hum ana, co n tra os m aniqueístas determ inistas. Isto é, A gostinho co m eço u arg u m en tan d o que o pecado e o m al não são, de m o d o algum , d eterm in ad o s p o r D eus, m as são p ro d u to s do m au uso do livre-arbítrio hu m an o . P o s te r io r m e n te , em d e b a te c o m P elág io e os p e la g ia n o s (e os c h a m a d o s sem ipelagianos), m u d o u de opinião e com eçou a in terp retar a liberdade h u m an a co m o a capacidade so m ente de pecar e de praticar a iniqüidade, desconsiderando a graça divina de transform ação. C o lo co u a liberdade e a soberania de D eu s acim a de toda a liberdade h u m an a e qualificou o arbítrio h u m an o , q u an d o deixado p o r c o n ta própria, de iníquo. Tam bém no início de sua carreira teológica, A gostinho c o n siderava que a fé era a contribuição h u m an a à salvação — um a idéia sinergística. P o sterio rm en te, em reação a Pelágio, considerou q u e a fé era u m a dádiva de D eus — u m a idéia m ais com patível com o m onergism o.
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A teologia de A gostinho é m ais evolucionária d o que inconsistente. É preciso ter cuidado para não interpretá-la de m aneira errada. E m bora ten h a deixado tensões não resolvidas em sua teologia, A gostinho sem pre lutou pelo ideal da total consis tência sistem ática. D a m esm a form a que os pais capadócios, reconhecia a existência do m istério. S u p ostam ente, A gostinho c o m en to u q u e a d o u trin a da T rindade era m isterio sa e p erigosa pois “se você negá-la, p erd erá a salvação, m as se te n ta r com p reen d ê-la, perderá a cabeça!”. C laro q u e isso não o im pediu de escrever cen tenas de páginas explorando o m istério e te n tan d o to rn á-lo tão inteligível q u an to possível. M as em sua carreira de bispo e teólogo, A gostinho co n stan tem en te per m itia q ue seus pen sam entos fossem m oldados pelas necessidades d o m o m en to , sob a autoridade da Palavra de D eus. P ortanto, ao ser co n fro n tad o com um a nova heresia, d isp u n h a-se a repensar sua teologia an terio r para com batê-la. R econheceu abertam ente q u e tinha escrito coisas no início da carreira q u e eram inconsistentes com seu p en sam en to m ad u ro p o rq u e Pelágio e o pelagianism o surgiram 110 seu cam inho. Q u a n d o analisou m ais p ro fu n d am en te essa heresia, percebeu q u e algu m as das opiniões q u e expressou na ocasião podiam ser interpretadas de um a form a que a reforçaria e p o r isso as refo rm u lo u . D e fato, co n fo rm e consideraram m uitos cristãos m esm o naquela época, ele passou de u m extrem o ao outro. N o presente, estudarem os apenas algum as partes da teologia global de Agosti n h o e focalizarem os prim ariam ente seu pensam ento m aduro, q u e se desenvolveu paulatinam ente 110 decurso de três etapas im portantes da controvérsia. N a p rim ei ra, seu p en sam en to foi m oldado pela necessidade de com bater o m aniqueísm o. C o n tra essa seita, lan ço u u m ataq u e to ta lm e n te ap o lo g ético , n o qual u so u o neoplatonism o co m o aliado e arm a. O neoplatonism o, por sua vez, fo rm o u seus pensam entos subseq ü entes a respeito de D eus e d o relacionam ento en tre D eus e o m u n d o . N a segunda, A gostinho p ro cu ro u com bater o cism a donatista em sua p ró pria região. C o n tra ele, desenvolveu idéias a respeito da igreja, do sacerdócio e dos sacram entos q u e se to rnaram m arcos da teologia católica. N a terceira e últim a eta pa, A gostinho rebateu as idéias de Pelágio e dc seus sim patizantes e com isso desen volveu suas próprias idéias distintas a respeito da depravação h u m an a e da soberania dc D eus. A Igreja C atólica nunca aceitou co m pletam ente as opiniões de A gostinho, m as rejeitou com firm eza os ensinos de Pelágio c de seus seguidores, em grande parte, graças à influência dele. O s conceitos antipelagianos dc A gostinho to rn aram se um a fonte constante de criatividade bem com o de controvérsia, tanto n o pensa m en to católico co m o no protestante. As igrejas orientais nunca os aceitaram .
Agostinho fala sobre o bem e o mal Q u a n d o A gostinho v o lto u para a África do N o rte co m o cristão, descobriu q u e a religião q ue antes adm irava, o m aniqueísm o, estava em plena atividade. C o m o
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jo v e m bispo, descobriu que essa religião crescia entre a ju v e n tu d e de C artago e em outras áreas urbanas p o r causa d o seu apelo intelectual. Existem m uitos paralelos interessantes entre essa situação e a ascensão das seitas e das novas religiões nas A m é ricas de outras parte do m u n d o atualm ente. M uitas seitas em rápido crescim ento atraem os estudantes universitários p orque alegam fornecer respostas m elhores so bre as grandes questões da vida do que as da “religião organizada tradicional”. E m b o ra o m an iq u eísm o alegasse ser in telectu alm en te sofisticado, deve “ser en ten d id o co m o um a das fantasias m ais estranhas e grotescas q u e a m en te hum ana já co n c eb eu ”.6 Sua cosniovisão assem elha-se, de certa m aneira, ao gnosticism o e seus p rim eiro s co n v ertid o s, p ro v av elm en te, eram gnósticos cristãos. O m an i qu eísm o forneceu um a superabundância de m itos fantásticos sobre a origem do m u n d o físico, com u m pecado original n o início dos tem pos e u m com bate cósm i co en tre as forças do bem e d o mal. A alm a o u espírito do h o m em , segundo decla rava, era um a centelha do p o d er benigno, q u e tinha sido roubada pelas forças m a lignas e aprisionada na m atéria. O m al era p ro d u to de u m a força m aligna eterna q u e tin h a criado a m atéria. Estava perp etu ad o pela existência da realidade física e pela ligação da alm a a ela. O p ró p rio A gostinho havia abandonado a religião m aniqueísta depois de várias tentativas de d esco b rir as respostas que ela oferecia a algum as dúvidas q u e sua cosm ovisão m ítica levantavam, mas não solucionavam . Por exem plo, o m aniqueísm o ensinava que a m atéria é m aligna o u é a origem do mal m as, p o r o u tro lado, não oferecia n e n h u m a idéia do que seria a realidade espiritual, não m aterial. A gostinho achava isso in consistente, posto que essa religião acreditava na existência de u m ún ico D eus 110 céu q ue era totalm ente bom . Q u a n d o finalm ente teve a o p o rtu n i dade de entrevistar o filósofo principal d o m aniqu eísm o, um h o m em cham ado Fausto, A gostinho ab andonou o m o vim ento, revoltado, convicto de q u e não pos suía as respostas que prom etia. E ncontrou-as, 110 entanto, nos “livros dos platonistas” (o n eo p latonism o) e, m ais tarde, n o cristianism o. C o m o bispo, anos depois, usou suas faculdades críticas form idáveis para desm ascarar as falsas reivindicações dos m aniqueístas. O principal livro de A gostinho co n tra os m aniqueístas é Da natureza do bem, q u e escreveu p o r volta de 405. N ele, aproveitou as idéias neoplatônicas a respeito da u n ião ontológica e n tre a existência e o b em e a respeito d o mal co m o a privação de am bos para explicar o conceito cristão de D eus co m o C riad o r, d e m o n stra n d o co m o isso é co n sisten te com a existência do m al. E m o u tras palavras, m o stro u q u e não é preciso postular a existência de duas forças o u prin cíp io s iguais n o u n iv erso (o d u alism o ) — u m a boa e o u tra m á — para explicar o m al. S eg u n d o A gostinho, o mal n ão é um a natureza o u substância, m as a co rru p ção da natureza boa criada p o r D eus:
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Quando, então, se pergunta de onde vem o mal, dcve-sc primeiro indagar o que é o mal e este não é outra coisa senão a corrupção, seja da medida, da forma ou da ordem que pertence à natureza. A natureza que, portanto, foi corrompida é tida como má, porquanto certamente é boa quando não é cor rompida; mas, mesmo corrompida, e boa enquanto natureza e é má enquan to corrompida.7 M as com o a natureza boa criada por D eus pode desviar-se e tornar-se má? A isso, A gostinho respondeu com dois argum entos, u m m etafísico e o u tro m oral. Explicou q u e qu alqu er natureza criada ex niliilo — d o nada — é autom aticam ente inferior a D eus; portanto, não é absoluta e m etafisicam ente perfeita e é passível de corrupção. S om ente a natureza de D eus é absolutam ente incorruptível. A lém disso, a natureza hum an a possui o d o m da liberdade, que pode ser usado erro n eam en te para u m bem m en o r do q ue aquele que D eus pretendia originariam ente. Essa é a verdadeira fonte e origem da corrupção e da ausência do bem , o u seja, d o que cham am os de m al — o m au uso do livre-arbítrio: “O pecado não é a busca da natureza m á, m as o abandono da m elhor, de m o d o q u e o ato em si é m au, m as não a natureza q u e o pecador usa erroneam ente. O m al é, pois, em pregar erro n eam en te o que é b o m ”.8 A conclusão da resposta de A gostinho aos m aniqueístas e do seu argum ento co n tra eles é: a única coisa m á que realm ente existe é o m au arbítrio, q u e não é um a “coisa” de form a alguma. O mal é, na verdade, a falta de algum a coisa. O livre-arbí trio não é o mal. A ocasião para ele pecar não é o mal. O mal é o m au uso do arbítrio que na prática o torna m au. Para isso, não há explicação nem causa. Se houvesse, então, não seria realm ente o mal. Para A gostinho, existe um “m istério da iniqüidade” que não pode ser plenam ente explicado. M as isso não é desculpa para apelar para a irracionalidade ou para “bravatas sacrílegas”, com o cham ava os m itos m aniqueístas. O em prego d o n eo p lato n ism o contra os m aniqueístas é o exem plo clássico de um pai da igreja cristã a “d espojar os egípcios”. Assim co m o os heb reu s levaram consigo no Ê xodo os bens de seus senhores, os teólogos cristãos devem ter a liber dade de fazer u so das idéias pagãs, na m edida em q u e sejam com patíveis com o evangelho e úteis para a sua prom oção, p o rq u e toda verdade é a verdade de D eus. N o v am en te, há um a analogia en tre A gostinho e O rígenes. E m bora O rígenes fosse u m pen sad o r m ais especulativo, A gostinho, co m o ele, en c o n tro u m u ita coisa de valor na filosofia pagã. E m p u n h o u o neo p lato n ism o co m o um a espada contra o m an iq u eísm o , m as o m anejou com m u ito cuidado: Agostinho, portanto, tomou dos neoplatonistas um certo conceito do mal, que ele mesmo modificou e desenvolveu à luz do dogma cristão a fim de provi denciar uma arma eficaz para demolir os argumentos dos maniqueístas. As coisas criadas são boas; pode existir uma hierarquia de coisas criadas, algumas
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m uito boas, outras m enos boas, sem necessariam ente envolver qualquer exis tência do mal. O mal surge da corrupção da natureza que é essencialm ente boa. O que é cham ado mal é o bem corrom pido; se não fosse corrom pido, seria totalm ente bom; mas m esm o corrom pido, e bom no que perm anece uma coisa natural e é mau no que e corrom pido.9
O bv iam en te, A gostinho discordava co m p letam en te d o neo p lato n ism o a n. peito da natureza pessoal de D eu s c da criação d o m u n d o . S egundo a referid. filosofia, a realidade final é um a unidade im pessoal — o U n o — além de toda existência e essência, d o qual fluem todas as coisas p o r em anação de m o d o incons ciente e autom ático. N ã o existe o conceito 110 neo p lato n ism o de u m D eus pessoal, n em da criação deliberada a partir do nada. M esm o assim , A gostinho co n sid cro u o m enos perigoso e m ais útil para o evangelho do q u e o m aniqueísm o. E interessante notar que Agostinho defendeu o livre-arbítrio hum ano na polêm ica contra os maniqueístas. D evem os nos lembrar, no entanto, que nesse caso ele estava apenas procurando refutar a teologia deles a respeito da natureza e da origem do mal. Im putavam a ele um princípio eterno m aligno e a criação da matéria. Essa idéia, por tanto, absolvia os seres hum anos da responsabilidade pelo pecado, limitava D eus e tirava seu m onopólio sobre a criação. Assim, A gostinho concentrou seus argum entos em um plano m aior e mais am plo da natureza hum ana antes da queda pelo pecado. N aquele tem po, segundo Agostinho, os seres hum anos realm ente tinham livre-arbí trio. Eles podiam ter feito o contrário do que fizeram. M as desde a queda do jard im do Éden, o arbítrio h um ano ficou tão corrom pido que a liberdade de não pecar tornou-se impossível. A gostinho só concluiu todos os detalhes da doutrina da depravação hum a na e da impossibilidade do arbítrio em seus debates posteriores com Pelágio. A gostinho d em o n stro u racionalm ente, com a ajuda da filosofia grega, a su p eri oridade do cristianism o em relação ao m aniqueísm o. Ao m esm o tem p o , conse guiu fo rn ecer alguns padrões para o p en sam ento cristão a respeito de D eus, da criação, d o pecado e do m al, que se tornaram p ro fu n d am en te arraigados, a partir de então, pelo m enos 110 pen sam en to cristão ocidental. D eus é infinito, absoluta m en te o n ip o te n te , p erfeitam en te espiritual e livre de to d o e q u a lq u e r defeito m etafísico ou m oral. M as o m al, sendo a privação do bem , é inevitavelm ente um a possibilidade em q u alq u er criação e especialm ente n o universo q u e inclui agentes criados, m o ralm en te livres e responsáveis, co m o os anjos e os seres h um anos. Se g u n d o A gostinho, o pecado e o mal não eram inevitáveis e certam en te não eram necessários, m as eram possíveis e essa possibilidade co n cretizo u -se com o p rim ei ro casal h u m an o e com seres celestiais antes deles. Foi assim q u e A gostinho com eçou a c o m p o r u m qu ad ro inteligível de toda a realidade, a partir de elem entos bíblicos e filosóficos. N esse p o n to , boa parte do
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que ele expôs não é novo nem original. E n co n tram o s as m esm as ideias o u e le m e n tos básicos em O ríg en es, G regório de N issa e em o u tro s pais da igreja oriental anteriores e co n tem p o rân eo s de A gostinho. M as o bispo n o rte-africano p in to u o q u ad ro de u m a form a nova e m ais atraen te q u e aju d o u a anuviar o b rilh o do m an iq u eísm o e atrair m uitas pessoas ao cristianism o.
Agostinho fala sobre a igreja e os sacramentos D epois de co n testar e d erro tar os m aniqueístas, A gostinho volto u sua atenção para o grande p roblem a do donatism o. Era grande p o rq u e, naquela época, tin h a m ais partidários d o q u e a G rande Igreja em algum as partes da África d o N o rte . Q u a n to m ais pressão os im peradores faziam contra o donatism o, m ais ele se tornava vio lento e, d u ra n te algum tem po, quadrilhas de donatistas radicais to rn aram as via gens na África do N o rte quase im possíveis. Assim com o n o m an iq u eísm o , m uitas pessoas consideraram o d o n atism o m e lh o r do q u e o cristianism o católico c o rto doxo. As pessoas q u e se deixavam atrair pelo d o n atism o e p o r suas igrejas, que eram m ais m oralistas do que intelectuais. E ram cristãos p ro fu n d am en te arraigados na tradição de O pastor de Hertttas e de T ertuliano e acreditavam q u e os bispos que tin h am pecado ou cooperado com as autoridades rom anas perseguidoras não eram bispos cristãos legítim os e q u e os h o m en s que eles tin h am o rd en ad o ao sacerdócio não eram sacerdotes cristãos. O cism a tinha com eçado m u ito antes, com as perse guições aos cristãos nos reinados dos im peradores D écio e D iocleciano em fins do século ui. M as ele foi p erpetuado pelos donatistas q u e acreditavam q u e os bispos católicos eram h o m en s im orais e corruptos, sem n e n h u m a autoridade. Eles rejei taram os sacram entos deles, co n sid eran d o -o s inválidos p o r causa de seu estilo de vida e seus antecedentes. Q u a n d o A gostinho fez sua investida contra o d o n atism o na África d o N o rte , três questões im p o rtan tes vieram im ediatam ente à tona, sendo as m ais cruciais da controvérsia: a n atureza da igreja, os sacram entos e sua validade e o relacionam en to en tre a igreja e o estado. A essência da visão donatista q u e os levou ao cism a tratava da pureza da igreja: “Q u al é a natureza da igreja de C risto? S egundo os donatistas, era a congregação dos santos, tanto na terra co m o n o céu, e p o r esse m otivo seria sem p re u m p eq u e n o re m a n esce n te”.10 A gostinho rejeitou com vee m ência essa eclesiologia. A rg u m e n to u em n u m ero sas cartas q u e os donatistas eram os “im p u ro s” p or d estru ir a união da igreja e cair n o pecado d o cism a. “C o n tra esse so n h o donatista da igreja dos santos, A gostinho ofereceu o u tro : a igreja universal, dissem inada pelo m u n d o inteiro e co n ten d o d en tro de si tanto o bem com o o mal até a separação definitiva n o dia final”.11 U m a das m aiores desavenças en tre os donatistas e os católicos dizia respeito aos sacram entos. O s donatistas rejeitavam todos os sacram entos celebrados por
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m in istro s, in d ignos o u dignos, sob a au to rid ad e de bispos indignos. U m líder donatista escreveu: O que estamos procurando e a consciência do doador, dando em santidade, a fim de purificar a consciência do receptor. Porque aquele que consciente mente recebe a fé do ímpio, recebe, não a fé, mas a culpa. Pois tudo consiste cm uma origem e uma raiz c, se não tiver algo como origem, nada é e nada adianta receber um segundo nascimento, a menos que nasça de novo de boa semente.12 F und am en tad o s nessa teologia para o m in istério e os sacram entos, os donatistas rejeitavam o batism o celebrado p o r m in istro s o u bispos que, de algum a form a, consideravam im p u ro s ou heréticos. Isso levantou u m a questão para A gostinho, co m o bispo e teólogo cristão. Q u al é a validade (se houver) de u m batism o cele brado p or u m sacerdote que vive no pecado o u q ue patrocina um a heresia? C ipriano, cuja au toridade era considerada grande pelas duas partes, rejeitou e considerou inválidos sem elhantes batism os e eucaristias. A igreja católica passou a aceitá-los e considera-los válidos, sem um a justificativa teológica aparente. A gostinho refletiu sobre a natureza dos sacram entos e desenvolveu a idéia que acabou sendo adotada pela G rande Igreja, tanto católica q u an to ortodoxa. S egundo o pen sam en to sacram ental de A gostinho, os sacram entos, co m o o batism o e a e u caristia ou a ceia do S enhor, tran sm item graça ex opere operato, q u e é trad u zid o liv rem ente com o “em v irtu d e do p ró p rio ato”. Em outras palavras, o p o d er e a validade do sacram ento baseiam -se na santidade de C risto e o sacerdote q u e o adm inistra é m ero in stru m e n to da graça de C risto: A opinião que Agostinho tinha dos sacramentos baseava-se no seu conceito de Cristo, o sumo sacerdote sem pecado, que é o único doador da graça sacramen tal porque somente a ele pertence o poder de conferi-la, embora a administre através de agentes humanos. O que estes administram é o batismo de Cristo, cuja santidade não pode ser corrompida por ministros indignos, assim como a luz do sol não é corrompida ao brilhar através de um esgoto.13 Sob esse p o n to de vista, p o rtan to , o sacerdote e o bispo p o d em adm inistrar sacram entos q u e são eficazes para ou to rg ar a graça e tran sfo rm ar vidas, co n tan to q u e sejam devidam ente ordenados na sucessão apostólica. O batism o ad m in istra do p o r u m sacerdote au to d en o m in ad o , sem ordenação válida, não era sacram ento. M as o batism o adm in istrado p o r u m sacerdote im oral o u herético com ordenação válida e em c o m u n h ã o com a G rande Igreja era sacram ento legítim o. Esse é o significado de ex opere operato.
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A gostinho tin h a os sacram entos em altíssim o conceito. Identificou explicita m en te co m o sacram entos so m en te o batism o e a eucaristia, m as trato u o u tro s ritos e cerim ônias da igreja com o um a espécie de via e in stru m en to da graça regeneradora e santificadora de D eus. S egundo A gostinho, as crianças nascem culpadas do peca do de A dão e Eva e são corruptas p o r natureza. O batism o é necessário para livrar dessa culpa, cu rar a co rrupção e trazer a pessoa para a vida da salvação d en tro da igreja. Essa crença a respeito d o batism o é conhecida na teologia co m o “regenera ção batism al”. N o seu m anual de d o u trin a, Eiuhiridion, A gostinho escreveu que “m esm o os bebês q u e são batizados em C risto m o rre m para o pecado”.14 Escreveu em o u tro lugar que u m bebê q u e m o rre sem ser batizado está co n d en ad o à p erd i ção, m esm o q u an d o o batism o não é possível: “C o m toda a razão, p o rtan to , em v irtu d e da condenação q u e percorre toda a m assa [h u m an id a d e], ele não é ad m iti do ao rein o d o céu, pois, além de não ser cristão, não teve a possibilidade de se to rn ar u m ”.15 P o sterio rm ente, A gostinho sugere q u e as crianças q u e m o rre m sem ser batizadas vão para u m lugar cham ado “lim b o ”, q u e não é o paraíso n em o hades (inferno) — n em bem -aventurança, n em so frim en to — , m as m eram en te u m lu gar, à m argem do inferno, q u e abriga os não-regenerados sem culpa pessoal. E m bora a idéia de A gostinho sobre o lim bo ten h a se to rn ad o u m a explicação popular, ela n u n ca se to rn o u a d o u trin a oficial de n e n h u m a igreja.
Agostinho fala sobre a graça e o livre-arbítrio D esde sua conversão, A gostinho deu m u ita ênfase à graça e ao p o d er de D eus na salvação. A atuação de D e u s na sua p ró p ria ex p eriên cia de co n v ersão foi tão avassaladora q u e ele não pôde resistir. N ã o foi ele q u em escolheu a D eus, m as D eus q u e o escolheu. Ele acreditava q u e essa idéia se confirm ava nos ensinos do apóstolo Paulo e passagens co m o R om anos 9-11. N as Confissões louvou e agrade ceu a D eu s p o r tê-lo transform ado de m o d o soberano e a trib u iu -lh e toda a glória, reco n h ecen d o sua p rópria incapacidade de praticar q u alq u er b em . E screveu: “Toda a m in h a esperança repousa na tua superlativam ente grande m isericórdia e so m en te nela. D á o que ordenas e ord en a o q u e queres. O rd e n aste de nossa parte a co n ti nência e, q u an d o tom ei co n h e cim en to , co n fo rm e está dito, de q u e n in g u ém pode ser co n tin en te a não ser q u e D eus lho conceda, m esm o isso foi assunto de sabedo ria: saber dc q u em era esse d o m ”.16 Q u a n d o Pelágio, o m onge britânico chegou em R om a, p o r volta de 405, no to u que m u ito s cristãos vivam de m aneira indecente e m u ito s o u tro s pareciam não se preo cu p ar com a crescente indiferença à pureza m oral e obediência na igreja. Ele co m cço u a pesquisar as possíveis causas disso e q u an d o ouviu o u leu a oração de A gostinho acim a, ficou h o rro rizad o e im ediatam ente convencido dc q u e essa era a causa d o problem a. Se os cristãos acreditavam q u e não podiam ser co n tin en tes
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(abstendo-se da im oralidade) a m en o s q u e D eu s lhes desse essa dádiva, era de se esperar q u e praticassem a incontinência. Esse era o arg u m en to de Pelágio. E m seguida, Pelágio escreveu o livro Da natureza, q u e condenava o p o n to de vista de A gostinho e sustentava q u e os seres h u m an o s p o d em ter um a vida sem pecado co m seus “d ons naturais” e que cabe a eles fazer isso. Esse foi o elem en to catalisador q u e deu início à grande controvérsia a respeito do pecado original, d o livre-arbítrio e da graça q u e foi co n su m in d o a igreja ocidental d u ra n te m ais de cem anos e que c o n tin u o u ecoando nos séculos subseqüentes.
Pelágio e a heresia pelagiana Pelágio nasceu na G rã-B retanha p o r volta de 350. Assim co m o tantos o u tro s h ere ges do cristianism o prim itivo, sua vida é cheia de m istérios e m u ito s dos seus escri tos são conhecidos so m en te através das citações e alusões feitas em livros que se op õ em a ele e o co n d enam . C h eg o u em R om a p o r volta de 405 e viajou para a África do N o rte , o n d e poderia ter se en co n trad o com A gostinho, m as não o fez. D epois, c o n tin u o u a viagem até a Palestina e escreveu dois livros sobre o pecado, o livre-arbítrio e a graça: Da natureza e Do livre-arbítrio. Suas opiniões foram violenta m en te criticadas p o r A gostinho e seu am igo, Je rô n im o , tra d u to r e com entarista bíblico, q u e m orava em B elém . Pelágio foi inocentado da acusação de heresia pelo sínodo de D ióspolis na Palestina em 415, m as co n d en ad o com o herege pelo bispo de R om a em 417 e 418, e pelo C oncílio de Efeso em 431. N ã o se sabe o ano exato de sua m o rte, m as, provavelm ente, foi pouco depois de 423. E provável que sua condenação pelo C o n cílio de Efeso tenha sido póstum a. “H erege re lu ta n te” é co m o u m escritor m o d e rn o descreve Pelágio.17 Ele não tin h a a intenção de pregar u m falso evangelho, n em o u tro evangelho senão aquele q u e ap ren d eu em sua ju v e n tu d e na G rã-B retanha. Ele n u n ca chegou a negar q ual q u er d o u trin a ou dogm a da fé cristã, pelo m enos, nada q u e já fosse declarado o rto doxo. Era essencialm ente u m cristão m oralista, um a pessoa q u e se interessava pela prom oção de atitudes e co m p o rta m e n to de alto valor m oral nas igrejas e se o p u n h a a certas crenças e práticas co m u n s dos seus dias. Aceitava o batism o infantil, m as negava a sua eficácia em rem o v er pela lavagem a culpa herdada. Rejeitava co m p le tam en te a idéia d o pecado original. C ertam e n te não era o único. A m aioria dos cristãos orientais tam b ém rejeitava a idéia da culpa original ou herdada. Acreditava fervorosam ente n o livre-arbítrio e na necessidade da graça para a salvação, m as en ten d ia q u e a graça dependia, em parte, de u m atrib u to natural da pessoa, em parte, da revelação da vontade de D eus através da lei. E m bora n em sem pre fosse consistente n o q u e dizia, Pelágio ensinava q u e os seres h u m an o s po d em de fato, sim plesm ente, decidir obedecer a D eus o tem po todo e nun ca pecar deliberada e dolosam ente. Se o pecado, no sen tid o da culpa q u e
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condena, é inevitável, argum entava, co m o p odem os ser responsabilizados p o r isso? E p or q u e não sim p lesm ente relaxar c pecar ainda m ais, já q u e é inevitável? E, se q u alq u er bem q u e possam os fazer é sem pre d o m de D eus, p o r q u e culpar as pesso as p o r pecar en q u a n to esperam receber o d o m da bondade? O s o p o n en tes de Pelágio, sob a liderança de A gostinho, acusaram -no de três heresias. P rim eiro alegaram q u e ele negava o pecado original. D epois acusaram -no de negar q u e a graça de D eus é essencial para a salvação. Por últim o , disseram q u e ele pregava a im pecabilidade operada pelo livre-arbítrio sem a graça. Sem dúvida, há m u ita verdade nas três acusações. P or o u tro lado, a q u estão não é tão sim ples q u an to parece. Ao negar o pecado original, Pelágio estava negando a interpretação de A gostinho a esse respeito, mas não exatam ente o conceito do pecado original q u e predom inava nas igrejas o rien tais. Essa foi u m a das razões de ter en c o n trad o certa aceitação e refúgio n o O rien te. O que, exatam ente, Pelágio ensinava então? E im p o rtan te re sp o n d erm o s a essa p ergunta, d en tro do possível, para en ten d e rm o s a teologia m ais m ad u ra de A gosti n h o em relação ao pecado e à salvação, teologia que, em grande parte, foi desenvol vida em m eio às disputas com Pelágio. Sem dúvida, Pelágio realm ente negou o pecado original n o tocante à culpa h er dada. N ã o acreditava q u e as crianças nasciam responsáveis diante de D eus por causa do pecado de seu ancestral, Adão. Em seu livro Do livre-arbítrio, escreveu que “o mal não nasce conosco e som os procriados sem culpa”.18 Acreditava, sim , que todos nascem os em u m m u n d o co rro m p id o pelo pecado e q u e ten d em o s a pecar por causa dos m aus exem plos dc nossos pais e am igos. P odem os cham ar isso de m odelo in cu b ad o r do pecado original em com paração com os m odelos biológico e ju ríd ic o pro p o sto s p o r A gostinho. Se pecam os, é p o rq u e decidim os deliberada e con scien tem en te fazê-lo e, se som os responsabilizados p o r isso, é sem p re um a questão de livre-arbítrio. Pelágio chega a negar a inevitabilidade do pecado. Se to d o m u n d o d c fa to p e c a , é s im p le s m e n te p o r q u e d e c id e e s p o n tâ n e a e deliberadam ente rep etir o ato de Adão. N ã o existe n e n h u m a tendência o u predis posição inata ao pecado. São os exem plos pecam inosos q u e seduzem as pessoas ao pecado. Em linguagem m etafórica, para Pelágio, o pecado era u m mal social e não u m mal genético. N o q ue se referia à necessidade da graça de D eus, Pelágio foi am bivalente e vago. A firm ou q u e o ser h u m a n o necessitava da ajuda de D eus para fazer q u alq u er coisa boa, m as parece q u e considerava que a lei e a consciência dadas p o r ele eram suficientes. E screveu q u e “D eus nos ajuda m ediante os seus ensinos e sua revela ção, ab rin d o os olhos do nosso coração, in d ican d o -n o s o fu tu ro para q u e não fi q u em o s preocupados apenas com o presente, desvendando para nós as arm adilhas d o d iabo, ilu m in a n d o -n o s c o m a in co m e n su rá v e l e inefável dádiva da graça
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celestial”.19 E m outras palavras, não precisam os de nada além da graça da Palavra de D eus e da nossa p rópria consciência. Basta a q u alq u er cristão batizado sim ples m en te d ecidir seguir a vontade de D eus o tem p o to d o e n u n ca precisará de n e n h u m a o u tra capacitação especial de D eus para viver sem pecado. Pelágio não dizia o m esm o em relação aos não-cristãos. D efendia a necessidade do batism o para esta belecer o relacionam ento correto com D eus. N esse aspecto, parece m esm o haver certa inconsistência em sua teologia. Pelágio afirm o u claram ente q u e u m cristão pode ficar isento d o pecado se assim desejar. U m a criança pode e deve de fato viver de tal m aneira q u e nunca precise im p lo rar p o r perdão a D eus. O perdão existe para o caso de alguém tropeçar e cair no pecado ou m esm o de pecar d eliberadam ente, m as Pelágio considerava-o d esn e cessário para a pessoa q u e vivia com retidão pelo livre-arbítrio, de acordo com a ilum inação fornecida pela Palavra de D eus e pela consciência. Q u a n d o , n o en ta n to, foi pressionado pelos bispos n o S ínodo de D ióspolis em 415, Pelágio afirm ou qu e a possibilidade de viver sem pecado era teórica e não concreta. Isto é, ele decla rou que, em b o ra tal obediência seja u m a realização possível para q u alq u er pessoa, talvez n in g u ém ten h a conseguido esse feito a não ser C risto: Eu disse de fato que um h om em pode ficar isento do pecado e seguir os m andam entos de D eu s, se assim desejar; essa capacidade, pois, lhe foi outor gada por D eus. N o entanto, não declarei que existe um h om em que nunca tenha pecado desde a infância até a velhice, mas que, ao ser convertido de seus pecados, pode perm anecer isento do pecado por seus próprios esforços e pela graça de D eu s, em bora, m esm o assim, seja capaz de mudar no futuro.2"
N o s três casos de acusação de heresia levantados contra ele, é difícil apurar exatam ente o que Pelágio acreditava e ensinava. E m ais fácil ap u rar o q u e ele nega va. Ele negava a culpa herdada e a inevitabilidade d o pecado. N egava a total neces sidade da graça sobrenatural auxiliadora para obedecerm os à lei de D eus e adm itia a capacidade d o livre-arbítrio. N egava q u e a perfeita obediência à lei de D eus é to talm en te im possível para os seres h u m an o s pecadores. M as, m esm o assim , c possível q u e essas negações fossem apenas teóricas e que n in g u ém , senão o próprio Jesu s C risto , realm ente levou a vida até ao fim em perfeita co n fo rm id ad e com a vontade e a lei de D eus. Em outras palavras, ele podia alegar q u e estava apenas dizen d o que a im pecabilidade operada sem a graça auxiliadora especial tinha de ser possível, caso co n trário seria um a injustiça de D eus exigi-la e responsabilizar os seres h u m an o s p o r não conseguirem ser assim . O ren o m ad o filósofo m o d ern o alem ão, Im m an u el Kant, parafraseou a atitude básica de Pelágio n o aforism o: “D e ver significa p o d e r”.
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A resposta de Agostinho a Pelágio R esp o n den d o ao q u e en ten d ia dos ensinos de Pelágio a respeito do pecado, do livre-arbítrio e da graça, A gostinho desenvolveu sua própria teologia da deprava ção h u m an a e da soberania e graça de D eus. Suas principais obras antipelagianas incluem : Do Espírito e da letra (412), Da natureza e da graça (415), Da graça de Cristo e do pecado original (418), Da graça e do lii׳re-arbítrio (427) e Da predestinação dos santos (429). A lém disso, fo rm o u suas próprias opiniões sobre essas relevantes questões em m u ito s o u tro s escritos, in clu in d o O Enchiridion: da fé, da esperança e do amor (421) e sua obra-p rim a, A cidade de Deus, q u e co n c lu iu pouco antes de sua m o rte em 440. A lguns desses livros foram escritos depois de Pelágio ser co n d en ad o pelo papa (418) e m o rre r po u co tem p o depois e não visavam tan to atingi-lo, m as a certos m onges e teólogos q u e defendiam alguns aspectos dos ensinos de Pelágio co n tra o m o n erg ism o desenvolvido pelo p ró p rio A gostinho. Isto é, A gostinho aca b o u ten tan d o refu tar não apenas a suposta heresia de Pelágio da im pecabilidade sem a graça auxiliadora, m as tam b ém todas as form as do sinergism o. N o fim de sua vida e carreira, A gostinho aceitava so m en te seu p ró p rio m o n erg ism o com o fu n d am en to da d o u trin a ortodoxa da salvação. O debate a esse respeito esten d eu se m u ito além de sua época, en tra n d o no século seguinte, e re p ercu tiu em todos os séculos da teologia cristã. Toda a soteriologia de A gostinho d eco rre de duas crenças principais: a absoluta e total depravação dos seres h u m an o s depois da queda e o p o d er e a soberania absoluta e total de D eus. A interpretação q u e A gostinho d eu a essas d o u trin as é u m p ro d u to e u m d eterm in a n te d o debate com Pelágio e com seus defensores m o d e rados, cham ados sem ipelagianos. O conceito de A gostinho n o tocante à deprava ção h u m an a é ex trem am en te drástico. S egundo ele, todos os seres h u m an o s de todas as épocas q u e já nasceram (à exceção d o D e u s-h o m e m , Jesu s C risto ) fazem parte de um a “m assa de perdição” e são to talm en te culpados e co n denados por D eus pelo pecado original de Adão. C o m o os p u ritan o s diziam n o século x v ii : “C o m o Adão pecou, n in g u ém escapou”. O p ró p rio A gostinho explicou a situação com m ais pom pa: Logo, depois do pecado, ele [Adão] foi levado ao exílio e por causa do pecado, toda a raça a qual ele deu origem foi corrompida nele e, assim, submetida à pena de morte. E tanto é assim que todos os descendentes de sua união com a m ulher que o levou ao pecado, que foram condenados ao mesmo tempo com ele — por serem produtos da concupiscência carnal na qual o mesmo castigo de desobediência se inflige — , foram maculados pelo pecado original e levados depois de muitos erros e sofrimentos até o derradeiro e eterno cas tigo que sofrem em comum com os anjos pecadores, seus corruptores, se nhores e co-participantes da condenação.21
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Além disso, “a falha em nossa natureza perm anece tão im pregnada em nossos descendentes que os torna culpados, m esm o q u e a culpa pela m esm a falha seja rem ovida pelos pais através da rem issão dos pecados”.22 P ortanto, para A gostinho, até m esm os os filhos de pais cristãos nascem culpados e to talm en te co rrom pidos p o r causa d o pecado de Adão e da natureza pecadora herdada dele. Ao contrário de Pelágio e da m aioria dos teólogos das igrejas orientais, portanto, A gostinho acreditava q ue todos os seres hum anos, à exceção do p ró p rio C risto, não som ente nascem co rru p tos, já q u e o pecado é inevitável, m as tam bém culpados do pecado de Adão e m erecedores da condenação eterna, a não ser q u an d o são batizados para o b ter a rem issão dos pecados c perm anecem na graça pela fé e pelo am or. Para explicar a culpa universal herdada de sua d o u trin a do pecado original, A gostinho baseou-se em u m texto com p ro b ató rio da epístola de Paulo aos rom anos. O texto grego de R om anos 5.12 diz q u e a m o rte passou a todos os seres h u m an o s “p orque todos pecaram ”. A gostinho, 110 entanto, não lia grego e usou um a tradução pouco versada de R om anos q u e entendia erro n eam en te a citação m encionada co m o m quo omtiespecaverunt o u “em qu em [ou seja, Adão] todos pecaram ”. Em outras palavras, q u an d o A gostinho leu R om anos 5.12, e n ten d e u q u e a m o rte passou a todos os seres h u m an o s p o rq u e todos pecaram p o r in term éd io de Adão. M as não é isso o q u e o versículo diz na língua original. N a tu ralm en te, A gostinho argum entaria que R om anos 5 e toda a epístola aos rom anos e o p ró p rio evangelho ensinam q u e nós, seres hu m an o s, som os todos da raça de Adão e, p o r isso, herdam os sua culpa e sua corrupção. Por qual o u tra razão Jesus C risto teria q u e nascer de um a virgem ? Para A gostinho, a única explicação era p o rq u e a culpa e a corrupção d o pecado são trans m itidas às gerações seguintes pela procriação sexual e a natureza de C risto só estaria livre do pecado se ele não fosse concebido pelo processo natural. A d o u trin a do pecado original ensinada p o r A gostinho pode ser apropriada m en te considerada “identidade sem inal” e n tre o ser h u m an o e seu ancestral Adão. A criança recém -nascida, bem co m o a pessoa de m eia-idade ou ainda de idade avançada, é co rro m p id a e culpada p o r causa da sua relação com Adão. Essa relação pode ser tem porariam ente desfeita pelo batism o, m as é im ediatam ente restabelecida q u an d o a pessoa peca depois disso e p o r isso precisa ser desfeita novam ente pelo arrep en d im en to e pela graça sacram ental. A gostinho acreditava q u e o processo da graça transform adora podia se dar em u m progresso gen u ín o , de tal m aneira q u e a pessoa pudesse de fato finalm ente d esfru tar um a vida de c o m u n h ã o in in te rru p ta com D eus, praticam ente livre da condenação e da corrupção d o pecado original, vida q u e era in teiram ente obra da graça de D eus e de form a algum a p ro d u to do esforço h u m an o ou do livre-arbítrio sem a graça auxiliadora. Além disso, até u m santo com o esse geraria filhos culpados, co rru p to s e d ep en d en tes da graça batism al para desfru tar a co m u n h ão com D eus.
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A gostinho arg u m e n to u que, p o r causa da depravação e da corrupção herdadas pelo pecado, o ser h u m an o não têm liberdade para não pecar: “O livre-arbítrio do h o m e m ”, escreveu co ntra Pelágio, “não serve para nada a não ser para p ecar”.23 A ntes da desobediência, Adão tin h a a capacidade de não pecar. N aq u eles tem pos, ele estava na condição posse non peccare: era possível não pecar. C o m a desobediên cia, Adão e toda sua posteridade, à exceção d e je s u s C risto , passou para a condição liou posse non peccare: é im possível não pecar. A gostinho alertou que duas conclusões não podiam ser tiradas daí. P rim eiro, não se podia dizer que sua teoria su b en ten d ia a necessidade absoluta d o pecado. O pecado e o mal são p ro d u to s d o m au uso da liberdade e não são m etafisicam ente necessários. M as co m o o p rim eiro casal h u m a n o foi desobediente, o pecado se to rn o u inevitável na vida deles e na vida de sua posteridade. A gostinho frisou a distinção en tre necessidade e inevitabilidade. M esm o agora, m u ito tem p o depois da transgressão de Adão, o pecado é inevitável, m as não necessário. O u tra conclusão errônea que A gostinho negava era que sua teoria im plicava na perda total do livre-arbítrio. Ele argum entava que o ser h u m a n o m an tém o livrearbítrio m esm o depois da queda. M as o livre-arbítrio está tão condicionado ao pecado q u e ele sem p re se volta para a desobediência, a não ser q u an d o há in terv en ção da graça de D eu s para m u d ar essa vontade. M esm o ao pecar, o q u e é inevitável, o ser h u m an o nascido da raça de Adão está decid in d o livrem ente. C o m o po d e ser isso? S egundo A gostinho, o livre-arbítrio era sim p lesm en te fazer o q u e se deseja fazer: “R esu m in d o , p o rtan to , sou livre para praticar q u alq u er ação (de acordo com m in h as possibilidades), pois m eu desejo e m in h a decisão de realizá-la são suficientes para sua realização”.24 Q u a n d o a pessoa faz o q u e deseja, a sua ação é “livre”. C ertam e n te , isso não é o m esm o q u e d izer q u e o livre-arbítrio é a “capacidade de fazer dc o u tra fo rm a”, q u e é provavelm ente o q u e Pelágio e seus seguidores sustentavam . S egundo A gostinho, as pessoas são livres para pecar, m as não são livres para não pecar. Isso p o rq u e desejam pecar. A qu ed a co rro m p eu de tal m aneira as suas m otivações e seus desejos q u e pecar é tu d o o q u e elas q u e rem fazer sem a graça in terv en ien te de D eus. P ortanto, estão pecando “liv rem en te”. Pelágio e seus seguidores quase certam en te rejeitariam essa idéia do livrearb ítrio e arg u m en tariam q u e u m a pessoa só é realm ente livre se p u d e r decidir e n tre pecar o u não. Dessa m aneira, chegam os a um a verdadeira encruzilhada na teologia. Q uase todos os teólogos cristãos acreditam 110 livre-arbítrio, m as alguns seguem Agosti n h o ao e n te n d e r q u e ele é com patível com o d eterm in ism o , já q u e ele está presente sem pre fazem os o q u e desejam os fazer, m esm o q u e nossos desejos e vontades se jam pred eterm in ad o s p o r algo q u e está além de nós. O u tro s teólogos cristãos acre ditam que o livre-arbítrio é incom patível com o d eterm in ism o c q u e está presente
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so m en te q u an d o tem os diante de nós alternativas genuínas de decisão e de ação. Ele é a capacidade de fazer algo diferente. P or que A gostinho d efiniu o livre-arbítrio de m o d o tão co n trário à intuição? Ele nos ofereceu u m forte indício em Da Graça e do livre-arbítrio ao tratar da sobera nia de D eus em relação às decisões e ações hum anas: “Pois o [D eus] T odo-P oderoso im pele, nas p ro fundezas d o ser de cada h o m em , a sua vontade, de m o d o que p o r essa agência concretiza tu d o o que deseja operar p o r m eio d eles”.23 Em outras palavras, para A gostinho, D eus é a única realidade, q u e a tu d o determ in a, e tudo q u e acontece, inclusive os pecados hu m an o s, dep en d e necessariam ente de sua so berana vontade e poder. Para q u e o ser h u m an o seja responsável, ele precisa ter livre-arbítrio ao pecar. M as para que D eus seja soberano, todos os eventos preci sam estar sob seu co n trole, pois “se a vontade do ser h u m a n o não dep en d e do po d er de D eus, m as exclusivam ente do indivíduo, en tão é possível q u e D eus fique frustrado. E isso é u m com pleto ab su rd o ”.26 A única solução é dizer q u e livrearbítrio é fazer o q u e se deseja fazer. M as, para A gostinho, D eus é a origem de todos os desejos. A conteça o q u e acontecer, será feita a vontade dele. A graça, p o rtan to , é absolutam ente necessária para q u alq u er decisão o u ação realm ente boa de to d o ser h u m an o caído. A gostinho u sou esse arg u m e n to contra Pelágio e seus seguidores, ju stific an d o -o de várias form as. P rim eiro, os seres h u m anos estão tão co rro m pidos que, se D eus não lhes concedesse o d o m da fé pela graça, nem seq u er pensariam em praticar u m a boa ação. E m suas próprias palavras: “O E spírito da graça, p o rtan to , nos co n d u z à fé para que, com ela e ao o rar por ela, possam os ad q u irir a capacidade de fazer o q u e som os o rd enados a fazer. Por isso, o pró p rio apóstolo co n stan tem en te coloca a fé antes da lei, já q u e não som os capazes de praticar o q u e a lei ordena, a não ser q u an d o ad q u irim o s forças para tanto o ra n d o pela fé”.27 Q u a lq u e r o u tra teoria, argum entava ele, enfraqueceria a crença na nossa depravação e na exclusiva suficiência da graça de D eus, inclusive na m o rte de C risto na cruz. Essa é a segunda razão para insistir q u e a graça é a única causa de q u alq u er ação v erdadeiram ente boa q u e praticam os. Se fosse possível alcançar a retidão so m en te pela natureza e pelo livre-arbítrio, sem o auxílio da graça sobrena tural, C risto teria m o rrid o em vão: “Se, po rém , a m o rte de C risto não foi em vão, a n atureza h u m an a não pode, de m o d o algum , ser justificada e redim ida da ira legítim a de D eu s — ou seja, d o castigo — a não ser pela fé e pelo sacram ento do sangue de C risto ”.28 Se q u alq u er boa ação que os seres h u m an o s conseguem praticar é dádiva de D eus, se to d o desejo da vontade hu m an a é obra de D eus e se D eus é a realidade d eterm in an te de tu do, a única conclusão natural q u e se pode tirar é q u e D eus predestina, de m o d o soberano, tu d o o q u e acontece, inclusive o pecado e o mal de um lado e a salvação e a ju stiç a de outro. A gostinho relutava em atrib u ir a D eus o
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pecado c o m al, m as a lógica in eren te da sua teologia global aponta para essa d ire ção. Em sua d erradeira obra, Da predestinação dos santos, A gostinho afirm ou aquilo que gerações posteriores de teólogos cham ariam de “eleição in co n d icio n al” e “gra ça irresistível”. Isto é, D eus escolhe alguns d o m eio da m assa h u m an a da perdição para receber a dádiva da fé pela graça e deixa o u tro s em sua perdição m erecida. O s q u e são escolhidos p o r ele para receber os d ons da graça não po d em resistir. Por q u e D eus não salva todos? A gostinho disse q u e “a razão pela qual um a pessoa recebe a graça e o u tra não perten ce ao cam po dos ju íz o s insondáveis de D e u s”.2
A doutrina monergística de Agostinho a respeito de Deus e da salvação O bviam ente, tu d o isso leva a questão da bondade de D eus ao extrem o. D eus predes tin o u a queda de Adão e Eva e até m esm o a queda dos anjos q u e se rebelaram contra ele? A gostinho dificilm ente poderia recuar a essas alturas. A sorte estava lançada; ele era obrigado a seguir a lógica. M esm o assim, nunca atribuiu abertam ente a D eus a origem do mal. D eixou o assunto no cam po dos m istérios. “Portanto, ao q u e parece, a resposta para a questão de por que as prim eiras vontades criadas [de Satanás e de Adão] estavam voltadas para o pecado é que foi exatam ente isso o que aconteceu e não houve n en h u m a causa para esse desvio”.31 M as em todos os seus escritos poste riores, A gostinho insistia constantem ente que D eus, e som ente ele, é a causa supre ma de todas as coisas. E elim inou qualquer possibilidade de as criaturas terem auto nom ia para frustrar a vontade de D eus. E m últim a análise, portanto, fica difícil e n xergar um a m aneira pela qual ele poderia “livrar D eus dessa situação em baraçosa”, por assim dizer. Até m esm o a vontade que levou Satanás e Adão e Eva a se rebelar e desobedecer D eus deve ter sido incutida neles. N esse caso, D eus seria m au o u o au to r do m al? A gostinho absteve-se de tocar nesse assunto. Só declarou q u e D eus perm ite o m al e nu n ca atrib u iu o m al em si à causalidade de D eus. Por q u e D eus perm ite o m al? Ele explicou: “E m bora, pois, o mal não seja u m bem à m edida q u e é m al, p o r o u tro lado, é u m b em o fato de existir tan to o mal co m o o b e m ”.32 M as se o fato de o mal existir for u m b em e se D eus for a o rig em d e to d o o b em (o q u e A go stin h o não podia negar), então, inexoravelm ente, D eus não seria a origem da existência do mal? Sim . M as so m en te no sen tid o de q ue ele o consente. O estu d io so agostiniano T. K erm it Scott tem toda a razão ao declarar que, em últim a análise, a chave para co m p re en d erm o s A gostinho está em sua obsessão pelo p o d er absoluto e incondicional de D eus. Já, se A gostinho in ju stam en te to rn o u -se um a vítim a do “m ito im p erial” de criar D eus à im agem de um im p erad o r ro m an o
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p erfeito co m o ele afirm a, é discutível. N o en tan to , não se pode discordar de Scott q u an d o co nclui que “a d o u trin a da onipotência é o âm ago d o m ito im perial de A gostinho e, “no frigir dos ovos”, é essa d o u trin a q u e não pode ficar c o m p ro m e ti da. D eus é o soberano absoluto d o universo que cuja vo n tad e governa tu d o o que acontece na criação. Essa certeza fu n d am en tal não pode ficar restrita de form a algum a, in d ep en d e n tem en te das circunstâncias”.33 Assim, co n clui-se q u e A gostinho afirm ava apenas a b ondade absoluta e irrestrita de D eus, recusando-se a resp o n d er se D eus é a origem e causa da inclinação da vontade para o m al q u e provocou a queda de Satanás e a desobediência de Adão e Eva. Se D eus não é a origem e causa delas, então, há algo no universo q u e está fora do co n tro le de D eus. “C o n s e n tir” a inclinação para o m al não é o m esm o que governá-la e controlá-la. M as se D eus e a origem e causa dessa inclinação, então, ou ela não é de to d o m á (porque serve para u m bem m aior) ou o p ró p rio D eus não é de to d o b om . A gostinho viu-se diante das perguntas suprem as levantadas p o r seu m o n erg ism o e reco rreu ao m istério. S egundo parece, não podia co nceber a autolim itação d o p o d er de D eus, de tal form a q u e ele p erm itiria q u e criaturas livres agissem de form a contrária à vontade divina perfeita. C o n fo rm e verem os 110 próxim o capítulo, o conceito de A gostinho radicalm en te m onergístico da salvação n u n ca foi co m p letam en te aceito pela igreja n o O c i dente. E foi rejeitado pela igreja oriental. O s reform adores protestantes m agisteriais d o século xvi ten d iam a aceitá-lo. A lguns p rotestantes, 110 en tan to , especialm ente os que seguiam a tradição das igrejas independentes, rejeitaram -no. O grande pas to r inglês, J o h n Wesley, rejeito u -o cm favor do sinergism o evangélico que Agosti n h o consideraria sem ipelagiano, na m elh o r das hipóteses. C hegarem os, no devido tem po, a esses episódios da história da teologia. Basta dizer, p o r en q u a n to , q u e a teologia de A gostinho causou u m im pacto p ro fu n d o sobre a teologia cristã o cid en tal ao in tro d u zir a idéia do m onergism o. C o m o ele foi aclam ado p o r quase todos os papas e pelos principais reform adores protestan tes com o o m aior dos pais da igreja, q u em quisesse p ro m o v er o m o n erg ism o bastava apelar à sua autoridade. A gostinho tam b ém escreveu u m m agnífico tratado sobre a Trindade, com o títu lo de De Trinitatis o u Da Trindade. Sua principal co n trib u ição à história da teolo gia foi in tro d u zir o cham ado m o d elo psicológico n o qual a u n idade de D eus é com parada com a un idade da pessoa h u m an a e a trindade de D eus é com parada com três aspectos da personalidade hum ana: a m em ória, o e n te n d im e n to e a v o n tade. Por causa de A gostinho, a teologia ocidental enfatizava a un id ad e da essência de D eus m ais do q u e a trindade, ao passo que a teologia oriental, sob a influência dos pais capadócios, enfatizava a trindade m ais do que a unidade. A grande obra de A gostinho, sua obra-prim a, foi A cidade de Deus, u m livro abrangente a respeito da providência divina e da história hum ana, n o qual A gostinho
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explica que, do p o n to de vista cristão, n en h u m a civilização h u m ana é o reino de D eus. As civilizações hum anas têm sua ascensão e queda, m as o reino de D eus perm anece para sem pre. O reino de D eus é a igreja e, pela graça e poder de D eus, acabará su b stitu in d o os reinos terrestres na cidade celeste na ocasião da segunda vinda de C risto. Até então, é um reino oculto de natureza fu n d am entalm ente espi ritual e existe sem pre e onde q u er q u e a vontade de D eus seja praticada entre as pessoas. Essa interpretação da H istória e das civilizações foi um a grande inspiração e consolo para m u ito s cristãos que assistiram o Im pério R om ano, antes tão grandioso, esfacelar-se e transform ar-se em ruínas. Até m esm o m uitos cristãos chegaram a iden tificar o Im pério R o m ano cristianizado com o reino de D eus e sua d errota para as tribos bárbaras foi um a grande desilusão. A eles, A gostinho disse: “N ã o se preocu pem . O reino de D eus não é afetado pelo declínio do Im pério R om ano, p orque não é deste m u n d o ”. P ouco depois da m o rte de A gostinho, as tribos bárbaras invasoras provenientes da E uropa central realm ente d estru íram os últim o s vestígios do Im p ério R om ano no O cid en te. O bispo de R om a passou cada vez m ais a p re en ch e r o vácuo da au to ridade central e u n ifico u a cu ltu ra q u e foi deixada em seu cam inho. O s m onges e os m osteiros co n v erteram as tribos pagãs ao cristianism o o rto d o x o e católico e preservaram os escritos dos filósofos e pais da igreja, gregos e rom anos, d u ra n te a cham ada Idade das Trevas sub seq ü en te à q u ed a de R om a n o O cid en te. A gostinho to rn o u -se o m o d elo da ortodoxia católica, o grande teólogo católico, cujos ditos e ensinos sem p re tin h am grande autoridade. M as, m esm o n o fim da vida, alguns m onges e teólogos de destaque da região de M arselha, no sul da G ália (França), desafiaram sua autoridade. Essa controvérsia, cham ada sem ipelagiana, afetou p ro fu n d am en te a igreja em R om a e ajudando-a a tornar-se a Igreja C atólica R om ana. Ao exam inarm os a ascensão e d esenvolvim ento dessa tradição d o cristianism o, e n co n trarem o s a resposta para a pergunta: co m o a m etade latina e ocidental da C ris tandade to rn o u -se católica romana?
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C o m o a G ran d e Igreja no O c id e n te to rn o u -se a Igreja C atólica R om ana? D o p o n to de vista católico ro m an o , essa p erg u n ta é descabida. C o n fo rm e o m o d o católico ro m an o de narrar a história da teologia cristã, a G ra n d e Igreja, católica e ortodoxa, existe desde os dias dos apóstolos até hoje 110 O c id e n te e todos os bispos que perm an eceram em c o m u n h ão com o bispo de R om a co n stitu íram sua hierar quia. N ã o houve n e n h u m a divisão, p o r assim dizer, q u e ten h a dado o rigem à Igre ja C atólica R om ana. S egundo essa m aneira de e n te n d e r e contar a história, os bis pos orientais separaram -se da G rande Igreja, gradualm ente, n o decu rso dos sécu los subseq ü en tes a A gostinho e, oficialm ente, em 1054. D a m esm a form a, seg u n do esse p o n to de vista, todas as denom inações p rotestantes não são verdadeiras igrejas de C risto , m as seitas q u e precisam voltar à Santa M adre Igreja em R om a. E ntretanto, co nform e verem os p osteriorm ente, a família ortodoxa oriental de igrejas conta de m o d o d iferente a história da G ran d e Igreja, colocando-se co m o a existên cia co n tín u a da única e verdadeira G ran d e Igreja d e je s u s C risto desde os apósto los até os dias de hoje e considerada a Igreja C atólica R om ana e as várias d en o m i nações p ro testantes seitas cism áticas q u e precisam voltar à c o m u n h ã o com o patri arca de C o n stan tin o p la e com os dem ais bispos e patriarcas orientais. O s protestantes geralm ente in terp retam a história da teologia cristã com o o desaparecim ento paulatino d o cristianism o verdadeiro e apostólico d u ra n te os te m pos de C ip rian o , de C o n sta n tin o e po sterio rm en te. Esse declínio aco m p an h o u a ascensão do sistem a penitencial, a autoridade dos grandes patriarcas cristãos do Im p ério R om ano, e a perda d o evangelho da graça gratuita u n icam e n te pela fé e do sacerdócio de todos os crentes. E m outras palavras, so m en te da perspectiva p ro tes tante, a história da teologia inclui u m episódio de “ascensão do catolicism o ro m a n o ”. G ostaríam os d o relato n eu tro da história, o que não é possível. C ada g rupo conta a história sob d eterm in a d o p o n to de vista. M as isso não significa q u e te n h a m os dc co n tar a história da form a m ais tendenciosa e preconceituosa. Ao usar a
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expressão “ascensão da Igreja C atólica R o m an a”, não estou m e referin d o (com o alguns protestantes) à total apostasia da igreja ocidental. Q u e ro sim plesm ente di zer q u e houve u m novo d esd o b ram en to depois da m o rte de A gostinho e antes do fim do p rim eiro m ilênio, q u e pode ser c o rretam en te descrito co m o o aparecim en to na E uropa do q u e hoje é geralm ente co nhecido p o r tradição e c o m u n h ão de igrejas católicas rom anas. M u ito te m p o an tes d o cism a oficial e n tre R om a e C o n stan tin o p la em 1054, a igreja ocidental adotou algum as características q u e a distinguiram , tan to do O rie n te co m o da igreja prim itiva. Isto equivale a dizer que, neste livro, a Igreja C atólica R om ana é considerada u m a denom inação do cristia nism o, com início a partir dos apóstolos e até m esm o de C o n sta n tin o e de Agosti n h o , em b o ra suas raízes sejam m ais antigas. E n tre A gostinho e a ascensão d o escolasticism o n o século xi, a teologia cristã latina caiu em um a espécie de letargia. Por m ais de seiscentos anos, d u ra n te a cha m ada Idade das Trevas, a igreja ocidental p ro d u z iu poucas inovações teológicas e n e n h u m grade teólogo surgiu. Boa parte dos debates teológicos n o O c id e n te gira va em to rn o de interpretações da teologia de A gostinho e os teólogos latinos conse guiam e n c o n trar justificativas para quase tu d o q u e se encontrava ali, q u an d o não concordavam com as conclusões de suas idéias. E m outras palavras, os sinergistas — defensores do livre-arbítrio — podiam apelar para os prim eiros escritos de Agos tin h o co n tra os m aniqueístas. O s defensores d o m o n erg ism o — a m eticulosa p ro vidência e predestinação — podiam apelar para os escritos posteriores d e Agosti n h o co ntra os sim patizantes de Pelágio. D u ra n te seiscentos anos após a m o rte do grande bispo de H ipona, os papas “batizaram ” sua teologia de sem i-oficial, os teó logos orientais q u estio naram sua ortodoxia e m u ito s, nos dois lados da cristanda de, in terp retaram -n a erro n eam en te. M esm o d u ra n te a Idade M édia, a R enascença e a R eform a, teólogos cristãos de diversas linhas den o m in av am -se agostinianos ou apelavam a seus escritos para d efen d er propostas teológicas.
O semipelagianismo O m aio r debate a respeito da teologia de A gostinho e de suas ram ificações ocorreu no século seguinte a sua m orte. Sua conclusão, assim co m o de tantos o u tro s na história da teologia, foi am bígua. A Igreja C atólica R om ana decidiu em favor de alguns aspectos do agostinism o, contra o u tro s e neutralidade em certas questões. N o fim , d u ra n te o S ín odo de O ran g e (na França atual) em 529, alguns dos m ais fervorosos partidários de A gostinho e de seus opositores perderam suas causas. A igreja adotou um a posição in term ediária e u m tan to inconsistente em relação às grandes questões do pecado, do livre-arbítrio e da graça. A form a de cristianism o conhecida, especialm ente pelos q u e estavam de fora, co m o o catolicism o rom ano foi p ro fu n d am en te influenciada p o r esse debate e seu desfecho. A ironia é que os
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p ro n u n ciam en to s oficiais da igreja nem sem pre foram colocados em prática por alguns dc seus líderes m ais influentes. A igreja sem pre p erm an eceu u m pouco dividida e n tre o agostinism o m od erad o e o sem ipelagianism o. Esta parte da h istó ria da teologia cristã tratará da controvérsia cham ada sem ipelagiana e de seu desfe cho, além de o u tro s fatores im portantes q u e co n trib u íram para a ascensão sim ultâ nea do ram o do cristianism o co n h ecid o co m o catolicism o rom ano. U m a das questões m ais discutidas na história da teologia é sobre o papel, se h o u v er algum , que os seres h u m an o s desem p en h am na própria salvação. Todos os cristãos sem pre atribuíram a salvação à graça de D eus e colocaram C risto e a cruz na posição central do evangelho co m o base d o perdão e da transform ação. E n tre tanto, o debate e n tre A gostinho e Pelágio to rn o u a questão ainda m ais c o n tu n d e n te. C o m o pro p ó sito de preservar a total suficiência da graça, A gostinho acabou tran sfo rm an d o a salvação em obra exclusiva de D eus de tal form a q u e os seres h u m an o s sim p lesm en te não d esem p en h am n e n h u m papel. Se forem salvos, é so m en te p o rq u e D eus os escolheu e lhes d eu o d o m da graça — inclusive a própria fé — sem considerar q u alq u er decisão q u e pudessem to m ar ou ação q u e pudessem praticar. N a tu ralm en te, o p ró p rio A gostinho insistia no batism o co m o in stru m e n to da salvação, m as ensinava q ue, q u an d o alguém é batizado e assim recebe a graça salvífica, é p o rq u e estava predestinado p o r D eus para recebê-la. N u n c a é p o r aca so. T udo é co m p letam en te co ntrolado pela sabedoria, decreto e p o d er etern o s de D eus. Pelágio, p o r o u tro lado, reagiu contra o m o n erg ism o incipiente de Agosti n h o revelado em Confissões e desenvolveu um a d o u trin a de salvação q u e abria as portas para a co n trib u ição h u m an a legítim a para a salvação de tal form a q u e seria desnecessária q u alq u er graça auxiliadora sobrenatural. A igreja co n d e n o u a negação de Pelágio da necessidade e suficiência da graça auxiliadora so brenatural, inicialm ente em 418 e, depois, 110 C o n cílio de Efeso em 431. M as a igreja não decidiu a questão em favor de A gostinho, co m o in terp re ta ram alguns de seus seguidores. E m bora o pelagianism o crasso já não fosse um a opção aceitável para os cristãos católicos e ortodoxos depois de 431, m u ito s teólo gos buscaram posições interm ediárias en tre o m o n erg ism o de A gostinho e as obras de ju stiça defendidas por Pelágio. C ertam e n te , pensavam , há m u ito espaço en tre os dois para lavrar um a d o u trin a de salvação q u e faça ju stiç a tanto à soberania da graça q u an to à livre decisão e atuação do h om em . O líder do partido de teólogos sem ipelagianos era u m m onge de M arselha (Fran ça) cham ado Jo ão C assiano. Ele nasceu por volta de 360 e ingressou ainda jo v em 110 m osteiro de B elém , na Palestina. V isitou m osteiros n o deserto d o Egito e em o u tro s lugares d o Im p ério R om ano d u ran te, pelo m enos, sete anos e, finalm ente, fu n d o u seu p ró p rio m osteiro em M arselha, em 410. Sua fam a na história da igreja é m ais de fu n d ad o r do m onasticism o ocidental do q u e de o principal teólogo da
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controvérsia sem ipelagiana. S egundo o trad u to r de C assiano para a língua inglesa: “E m b o ra sua fama tenha sido ofuscada pelo grande m onge ocidental, São B ento de N ú rsia, C assiano realm ente m erece o crédito p o r te r sido, não exatam ente o fu n dador, m as o p rim eiro organizador e sistem atizador d o m onasticism o ocidental”.1 B ento de N ú rsia, que fo rm u lo u a regra oficial para os m onges ocidentais em A regra de são Bento p o r volta de 600, foi fo rtem en te influenciado p o r C assiano e nele baseou m uitas de suas idéias. Jo ão C assiano m o rre u em 432, apenas dois anos depois de A gostinho, n o auge da grande controvérsia sem ipelagiana. N u n c a foi canonizado pela igreja ocidental (católica rom ana), m as é considerado santo no O rie n te (na ortodoxia oriental). O m osteiro de Jo ão C assiano em M arselha to rn o u -se u m lar para vários estu dantes de teologia, relativam ente brilhantes e p ro d u tiv o s e, com eles, transfor m o u -se no foco de oposição à teoria da salvação fo rte m e n te m onergística d efen d i da p o r A gostinho. D ois m onges teólogos q u e trabalhavam com C assiano a fim de refu tar essa d o u trin a foram V icente de Lérins e Fausto de Riez. O s três, ju n to s , fo rm a ram a base da op o sição católica leal, e sp e cialm en te c o n tra a cren ça na predestinação divina sustentada p o r A gostinho e seus seguidores. As gerações pos teriores ch am aram -n o s de sem ipelagianos. N a época da controvérsia (século v e início do século vi), consideravam -se teólogos c o m p letam en te ortodoxos da G ra n de Igreja, que q u eriam apenas com bater a inovação agostiniana do m onergism o. Sabiam , p o r exem plo, q u e toda a igreja oriental m an tin h a um conceito essencial m en te sinergístico do relacionam ento en tre D eu s e os seres h u m an o s na salvação, no qual a graça exercia o papel de destaque, m as a decisão e esforço h u m anos deviam cooperar com a graça para resultar na salvação. Essa, acreditavam , era a fé antiga da igreja, e estavam quase totalm ente certos. O p roblem a é q u e o sinergism o tradicional n u n ca tinha sido claram ente defini do em contraste com o pelagianism o. E o fato de Pelágio e n c o n trar abrigo n o O ri en te e ser exonerado por u m sínodo de bispos na Palestina, antes de sua p osterior condenação n o terceiro concílio ecu m ên ico , c o n trib u iu para o arg u m e n to dos a g o s tin ia n o s d e q u e o s in e rg is m o era e s s e n c ia lm e n te fa lh o e c o n d u z ia ao pelagianism o. C o u b e a C assiano e seus colegas estabelecer as diferenças sutis entre o sinergism o orto d o x o e o pelagianism o, a fim de apresentar à igreja católica um a alternativa viável para o m o n erg ism o agostiniano. As principais obras teológicas de Jo ão C assiano foram escritas em M arselha e incluem : D a instituição do monasticismo. Discursos espirituais e Da encarnação do Senhor contra Nestório. A lém disso, ele escreveu um a série de Conferências nas quais criou diálogos en tre vários abades dos m o steiro s q u e visitara para tentar, assim , d e m o n strar as falhas e as novidades dos conceitos de A gostinho a respeito da salva ção. C assiano, no en tan to , fez m u ito m ais do q u e indicar os erros das idéias de
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A gostinho. Ele p ro c u ro u elaborar u m a alternativa, tan to para o m o n erg ism o co m o para o pelagianism o, ao desenvolver u!n sinergism o católico o rtodoxo. S eg u n d o a igreja o cidental, ele fracassou. A pesar disso, seu fracasso to rn o u -se a teologia p o p u lar m ais aceita p o r grande parte d o catolicism o ro m an o m edieval. C o m o era o sinergism o sem ipelagiano de Jo ão C assiano? Eles [os sem ipelagianos] acreditavam na doutrina da queda; reconheciam a necessidade da graça real para a restauração do ser hum ano; até m esm o reco nheciam que essa graça deve ser, de alguma maneira, “preveniente” aos atos de vontade que resultaram nas boas obras cristãs. Mas alguns deles acredita vam — e isto constitui o erro cham ado sem ipelagianism o — que a natureza [hum ana], sem auxílio, podia dar o prim eiro passo cm direção à sua recupe ração, ao desejar ser salva pela fé em C risto. Se não houvesse essa possibilida de — se qualquer bem partisse exclusivam ente de um ato divino — , as exor tações seriam inúteis, e a censura [pelos pecados] injusta n o caso daqueles que não haviam se beneficiado desse ato divino e que, até que isso aconteces se, estavam im potentes e, portanto, eram inculpáveis nessa questão. D o par tido que adotou essa posição, C assiano era reconhecidam ente o líder.2
E m ou tras palavras, C assiano e os o u tro s m arselheses ensinavam q u e o ser h u m a n o é salvo exclusivam ente p o r D eu s m ed ian te a graça, m as q u e a salvação partia so m en te da iniciativa da boa vontade n o coração d o h o m e m para com D eus. Essa idéia do p rin cíp io da salvação pode ser re su m id a pela expressão “D eu s ajuda q u e m cedo m ad ru g a” o u “dê o p rim e iro passo em direção a D eu s, ele virá ao seu e n c o n tro ”. Esse era o calcanhar de A quiles da teologia deles e a causa da sua c o n denação n o S ín o d o de O ra n g e em 529. A ig reja ju lg o u q u e essa ênfase na iniciati va h u m a n a estav a m u ito p ró x im a ao p e la g ia n is m o p u ro , e m b o ra to d o s os m arselheses afirm assem a total necessidade da graça auxiliadora para a plena sal vação e justificação. Perm anece, ainda, a dúvida de se foi o p ró p rio Jo ão C assiano q u e realm ente su sten to u o co nceito tão am plam ente vilipendiado d o sem ipelagianism o. N in g u ém questio na se Fausto de Riez o sustentou. Ele arg u m en ta com clareza em Da graça e do livre-arbítrio q u e o initiuni jidei (início da fé) fica a cargo d o lado h u m a n o e não dep en d e da graça. O p ró p rio C assiano, 110 en tan to , apresentou um a versão m ais am bígua em Conferências. Ele poderia ser in terp retad o co m o partidário da teoria do seu colega Fausto ou de um a posição m ais detalhada. As passagens principais apa recem em Terceira conferência do abade Caeretnon. U m dos problem as de q u alq u er diálogo é, n atu ralm en te, d eterm in a r qual das partes su p o stam en te representa o po n to de vista do autor. As crenças de C assiano eram expressas pelo abade C aerem on ou pelo abade C e rm a n o — o parceiro de C aerem o n 110 diálogo? O u C assiano
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preten d ia sim p lesm en te q u e esse diálogo estim ulasse m ais considerações teológi cas ao esclarecer as questões? Seja co m o for, é o A bade C aerem o n que postula a q uestão central de toda a disputa sem ipelagiana: “D eus tem com paixão de nós por q u e d em o n stram o s boa vontade o u a boa vontade é um a conseqüência da com pai xão de D eu s p o r nós?”.3 C aerem o n co n tin u a e responde à pergunta e é p o r isso que m u ito s leitores suspeitam que ele representa a opinião d o p ró p rio C assiano. A resposta d o Abade C aerem o n — q u e talvez seja a resposta de C assiano — é com plexa e difícil de interpretar. C ertam e n te não é tão sim ples co m o a declaração aberta de Fausto de que a iniciativa na salvação pertence à vontade hum ana. Ele com eça declarando q u e devem os e n te n d e r q u e a graça de D eus e o livre-arbítrio não são opostos. E, n o caso, o livre-arbítrio significa, evid en tem en te, a “capacidade de fazer de o u tra fo rm a” em vez de m eram en te “fazer o que se deseja fazer”, c o n form e a postulação de A gostinho. C assiano disse q u e tanto a graça co m o o livrearbítrio são necessários para a salvação e q u e estão em h arm onia en tre si: “porque q u an d o D eu s nos vê desejosos de praticar o bem , ele vem ao nosso en c o n tro , nos orien ta e nos fortalece. [...] Por o u tro lado, se descobre q u e não estam os dispostos ou q u e ficam os indiferentes, ele aquece nosso coração com exortações saudáveis, de tal form a q u e a boa vontade é renovada o u despertada em n ó s”.4 Parece que C assiano q u eria deixar um a porta aberta nos dois lados: a possibilidade da iniciati va divina da graça e a iniciativa do livre-arbítrio assistido pela graça. Esse desejo de dupla face é claram ente expresso na m ais fam osa declaração de C assiano, rebatida p o r seus o p o n en tes agostinianos: “E q u an d o ele [D eus] vê em nós o princípio da boa vontade, im ediatam ente a am plia e fortalece e a incita à salvação, au m en tan d o aquilo que ele m esm o im plantou ou q u e percebeu ter nascido de nossos próprios esforços”.3 Se C assiano tivesse term in ad o a idéia na frase “aquilo que ele m esm o im p la n to u ” (ou seja, a graça), não haveria problem a. Sua afirm ação do livre-arbí trio e sua negação da predestinação não consistiriam em problem a para a m aioria dos cristãos católicos. M as co m o prosseguiu d izen d o “o u q u e percebeu ter nascido de nossos pró p rio s esforços”, d eu aos seus o p o n en tes agostinianos, co m o P róspero de A quitânia, a corda q u e precisavam para enforcá-lo. Tratava-se ev id en tem en te da ab ertu ra para o pelagianism o. Sem ipelagianism o é o n o m e q u e se dá, na história da teologia cristã, à idéia de q u e a natureza e esforço h u m an o s p o r si sós, sem a graça so b ren atu ral auxiliadora, são capazes de provocar a reação de D eu s co nceder a graça salvífica. Talvez essa idéia esteja longe d o pelagianism o em si, m as é a porta do cam in h o q u e segue d iretam en te para lá. Jo ão C assiano parece ter reconhecido que suas palavras podiam ser in terp reta das sob a perspectiva pelagiana e, p o r isso, passou a afirm ar a p reem in ên cia da graça em tudo. M esm o assim , nada pôde fazer em relação aos danos já provocados. Por causa da peq u en a abertura dada à iniciativa h u m an a na salvação, C assiano seria
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lem brado para sem pre co m o o fu n d a d o r do sem ipelagianism o. D evem os, no e n tanto, ler e levar em co nta outras coisas q u e ele escreveu: Mas que ninguém pense que apresentam os esses exem plos na tentativa de alegar que a salvação depende principalm ente da nossa fé, segundo a noção profana de alguns que atribuem tudo ao livre-arbítrio e estipulam que a graça de D eu s depende do m erecim ento de cada h om em . Por isso declaramos com clareza nossa opinião incondicional de que a graça de D eu s é sobeja e m esm o excede o lim ite estreito da falta de fé do h o m e m .6
E nfim , C assiano ratificou o m istério no âm ago da interação d iv in o -h u m an a na salvação. Sem d ar n e n h u m a chance à predestinação, disse q u e os cam in h o s de D eus na salvação são m u ito s e inescrutáveis e q u e “já q u e tu d o pode ser atribuído ao livre-arbítrio, a form a com o D eu s opera todas as coisas em nós não pode ser p len am en te co m p reen dida pela m en te e pelo raciocínio d o h o m e m ”.7 O s defensores de A gostinho resp o n d eram a C assiano e aos dem ais m arselheses com u m ataque à crença na possibilidade da iniciativa h u m an a na salvação e com o arg u m en to de q u e tal conceito nega a necessidade absoluta da graça e a destitui da condição de p u ra dádiva. O s agostinianos, co m o P róspero da A quitânia, a fim de refu tarem o sem ipelagianism o, com pilaram seleções dos ensinos de A gostinho que ignoravam o u desconsideravam a predestinação. A m aioria dos bispos e teólogos católicos só teve co n h ecim en to da soteriologia de A gostinho através das seleções de P róspero e não se d eu ao trabalho de ler toda a sua teologia, p o r isso nunca soube q u e suas obras incluíam um a versão do m o n erg ism o q u e excluía to talm en te o livre-arbítrio co m o a capacidade de fazer de o u tra form a. A controvérsia sem ipelagiana finalm ente term in o u em 529, q u an d o houve um a reu n ião de bispos ocidentais, conhecida co m o o S ínodo de O range. As vezes, é cham ada de C o n cílio de O range, m as não consta dos concílios ecu m ên ico s da igreja, n em pelo O rie n te , n em pelo O cid en te. E m O ran g e, os bispos católicos co n denaram os principais aspectos do sem ipelagianism o, endossaram o conceito q u e A gostinho tin h a da necessidade e total suficiência da graça e con d en aram a crença na predestinação divina para o m al ou para a perdição. C o m o A gostinho n u n ca chegou a afirm ar especificam ente q u e D eus predestina alguém ao pecado o u ao in fern o , seus pró prios ensinos passaram pelo S ínodo de O ra n g e sem serem em nada criticados, m as tam b ém sem serem p len am en te confirm ados. O sínodo não defen d eu a predestinação de n e n h u m a form a. E n treta n to , exigiu a crença de que q u alq u er ato de b o ndade o u retidão dos seres h u m an o s é resultado da graça de D eus q u e opera neles. A teologia católica ortodoxa, a partir de então, incluiria as idéias de que a graça de D eus é a única origem e causa de todos os atos de retidão
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h u m an a e q u e os h o m en s não são capazes de realizar obras m erecedoras da salva ção sem a graça auxiliadora. Todavia, co m o o S ínodo de O ran g e deixou em aberto a q uestão da livre cooperação h u m an a com a graça, a Igreja C atólica passou a in cluir e enfatizar u m sistem a de obras m eritórias q u e são necessárias co m o cred en ciais de graça e isso se reverteu a favor de u m tipo de sinergism o n o qual o livrearbítrio precisa cooperar com a graça para q u e a salvação chegue à consum ação perfeita.8 E m bora o sem ipelagianism o fosse um a heresia desde 529, encontrava-se p ro fu n d a m e n te arra ig a d o em c e rta s cren ça s c c o stu m e s p o p u la re s c o m u n s na espiritualidade ocidental. D u ra n te a Era das Trevas, en tre os séculos vi e xvi, m uitos m o n g e s e s a c e rd o te s da Ig re ja C a tó lic a R o m a n a p ra tic a v a m u m tip o de sem ipelagianism o, em bora, em teoria, a igreja se opusesse a ele. Isto é, im pôs-se u m pesado fardo de esforço e de d esem p en h o religiosos sobre o laicato com o c o n dição para a graça op erar plenam ente em sua vida. O sistem a penitencial que re m onta ao século ui com C ip rian o segue na m esm a direção. D e certa form a, ele é sem ipclagiano em essência. O ensino oficial da igreja, no en tan to , era que, m esm o q u e a pessoa se co n v ertesse pelo b atism o e crescesse co m o cristão através da santificação (penitência, sacram entos etc.), a graça de D eus era de fato a única causa efetiva de todo o processo. N a m elh o r das hipóteses, as decisões e esforços h u m a nos eram m eras causas in strum entais cuja existência seria im possível, não fosse a graça preveniente de D eus a capacitá-los cm p rim eiro lugar. N ã o se sabe quantos cristãos m edievais conheciam essa d ou trin a. E provável q u e poucos a entendessem . Q u a n to s protestantes co m p re en d em as d o u trin as da graça ensinadas pelos grandes reform adores? A falácia de q u e os católicos ro m anos crêem na “ju stiç a pelas obras” e a ensinam , não passa m esm o de um a falácia. N ã o deve ser levada a sério, a não ser com o co m en tário sobre a falta de e n te n d im e n to teológico en tre m u ito s católicos e a falta de co n h ecim en to da teologia católica p o r m u ito s protestantes.
O papa Gregório, o Grande N a tentativa de resp o n d er à pergunta “c o m o a igreja ocidental se to rn o u católica ro m an a?”, um n o m e se destaca co m o parte essencial de q u alq u er resposta h istó ri ca: G regório i, tam bém co n hecido co m o G regório, o G rande. G regório foi u m dos papas e teólogos m ais im p o rta n te s na h istó ria da trad ição católica ro m an a e, in v o lu n tariam en te, u m dos q u e m ais co n trib u íra m para as divisões en tre essa tra dição e a ortodoxia oriental e o protestantism o. Foi u m papa m u ito in flu en te cm u m m o m e n to crucial da história da igreja ocidental e u m dos m ais im p o rtan tes in térp retes da teologia de A gostinho e p ro m o to r da piedade e estilo de vida m o násticos. G reg ó rio é considerado u m dos q u atro grandes d o u to res da igreja, se g u n d o a tradição católica rom ana. O s o u tro s são: A m brósio de M ilão, J e rô n im o e
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A gostinho. É freq ü en tem en te considerado pelos historiadores eclesiásticos com o o ú ltim o pai da igreja e o p rim eiro papa e teólogo m edieval do O cidente. G regório nasceu em um a família aristocrática de R om a p o r volta de 540 e pas sou a ju v e n tu d e em u m m osteiro, on d e recebeu sua educação espiritual. Viajou m u ito pelo m u n d o m editerrâneo e perm aneceu algum tem p o em C onstantinopla. N o en tanto, rejeitava firm em en te a alegação bizantina de haver igualdade en tre os patriarcas dessa cidade e de R om a e com o bispo de R om a p ro m o v eu a absoluta superioridade e prim azia de sua sé sobre as dem ais. G regório q ueria viver com o um m onge eru d ito e ascético em R om a, m as o povo o convocou para ser papa em 3 de setem bro de 590. Seus dons de erudição, m ediação, adm inistração e aconselham ento espiritual eficaz con q u istaram -lhe esse cargo contra a sua vontade. T o rnou-se papa na época em que R om a e o im pério ocidental estavam em deca dência. O s reis bárbaros não conseguiam se u n ir e estavam sem p re gu errean d o entre si. O im p erad o r bizantino Ju stin ia n o não conseguiu co n cretizar o desejo de reunificar o antigo Im p ério R om ano. O senado ro m an o q u e te n to u voltar ao go vern o dispersou-se e havia grande necessidade de q u e alguém ocupasse a vaga no pod er cultural e político. Assim co m o Leão i antes dele, G reg ó rio forneceu a au to ridade necessária, pelo m enos na Itália e talvez até m esm o em toda a E uropa: N o vácuo deixado pela fuga dos senadores, a igreja tornou-se a força m otriz em Roma e arredores c garantiu suprim entos e distribuição de alim entos aos pobres da m elhor forma que pôde. C o m o faziam os bispos de Rom a desde antes do sécu lo V, a distribuição seguia um padrão estabelecido e era aguarda da pela população local. Mas a falta de assistência da parte de outras autorida des intensificou-se. Foi para o próprio bispo que os rom anos se voltaram em busca de proteção para a cidade e de seu próprio bem -estar.9
D u ran te o cargo de bispo de R om a, o papa G regório i forneceu um a regra (con ju n to de diretrizes) para todos os bispos ocidentais, q u e é resum ida na sua m aior obra existente, Regra pastoral. A lém disso, iniciou u m grande esforço m issionário para co n v erter os povos pagãos da G rã-B retan h a c as tribos bárbaras arianas da Europa ao cristianism o católico. F u n d o u co m u n id ad es m onásticas e d eu -lh e s es crituras de concessão para co n tro larem vastos territó rio s da E uropa, com o p ro p ó sito de estabelecer um a sólida base cristã na região inteira. A lém disso, batizou o m o v im en to m o nástico dc B ento de N ú rsia e sua Regra co m o oficiais e obrigatórios para a igreja ocidental. A partir de G regório, todas as o rd en s m onásticas seguiram a form a do m o nasticism o beneditino. G regório tam b ém p ro c u ro u estabelecer a acom odação das cu ltu ras e religiões pagãs na E uropa pelo bem d o evangelism o. Tam bém aprovou e p ro m o v eu m uitas crenças e práticas espirituais tradicionais dos leigos cristãos n o O c id e n te relacionadas à veneração de santos e às penitências
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sacrificiais e observâncias de dias festivos. Essas crenças e práticas católicas, e m u i tas outras q u e G reg ó rio aprovou, d esem penharam u m papel im p o rtan te na R efor m a p rotestante do século xvi. O s protestantes geralm ente rejeitavam essas práticas p o r serem exem plos d o sincretism o en tre o paganism o e o cristianism o. E, p o r ú ltim o , G re g ó rio c rio u o c o n c e ito h íb rid o da salvação e n tre o m o n e rg ism o agostiniano e o sinergism o de João C assiano e o resultado in flu en cio u p ro fu n d a m en te a teologia católica rom ana a partir de então. G regório era u m escritor prolífico e preferia co m u n ica r suas idéias através de cartas. A tualm ente, co n hece-se cerca de 850 delas. M uitas co n têm explicações fas cinantes de suas idéias a respeito da espiritualidade, da liderança, d o evangelism o e da o rd e m eclesiástica cristãs. Suas cartas revelam u m h o m e m p ro fu n d a m e n te ascético — quase m ístico de certa m aneira — q u e tam b ém era altam ente politizado. Exigiu que seus su b o rdinados eclesiásticos se referissem a ele com o “servo dos servos” em vez de usarem os títulos honoríficos apropriados para o quase governante do q u e restou d o antigo Im p ério R om ano. Todavia, tam b ém p ro m o v eu incansa velm en te a prim azia espiritual e tem poral da sé de R om a sobre as dem ais ordens da igreja e da sociedade. As cartas tam b ém revelam seu grande interesse p o r assuntos práticos do cristianism o e u m a nítida aversão pela especulação filosófica na teolo gia, em b o ra sua própria teologia fosse claram ente influenciada p o r idéias gregas (platônicas). G regório rein o u co m o papa sobre a igreja ocidental e co m o governante de boa parte da Itália d u ran te quatorze anos apenas. M o rre u em 604. A herança q u e d ei xou à cristandade m edieval, no en tan to , é incalculável. D eixou, n o catolicism o rom an o , a m arca indelével de suas preferências espirituais e teológicas q u e d u ro u pelo m en o s u m m ilênio.
Gregório e seu conceito da salvação M ais p ertin e n te para a nossa história da teologia cristã é a soteriologia de G regório. C o m ele, foram reunidas duas co rren tes de p en sam ento, aparen tem en te divergen tes, a respeito da salvação q u e deram origem à teologia católica m edieval. D e u m lado, ele n itid am en te p ro m o v eu A gostinho co m o o m aior de todos os pais da igre ja. D e o u tro , p o r m ais estran h o q u e pareça, leu e in terp re to u A gostinho através de Jo ão C assiano. A in terp re taçã o e aplicação da teologia de A g o stin h o feita p o r G reg ó rio é to talm en te sinergística: A relevância de G regório para a história do pensam ento cristão não é a sua originalidade, bastante parca por sinal, mas a sua influência na teologia m edi eval e n o m odo com o essa teologia interpretou a obra de A gostinho. Seu pensam ento é agostiniano, pelo m enos quanto à fórm ula. Porém , quando se
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lê a obra de G regório depois de ter lido as de A gostinho, é im possível não perceber o abism o que existe entre os d o is.10
O s estudiosos católicos consideraram G regório sem i-agostiniano, ao passo que os protestantes se referem a ele e a soteriologia q u e fo rm u lo u com o sem ipelagianos. A verdade é que G regório não era escravo da coerência, q u e r isso significasse algu m a coisa ou não. Q u a n d o G regório queria enfatizar a soberania de D eus e de sua graça e depreciar o egotism o dos seres hu m an o s pecadores, falava c o m o A gostinho. Q u a n d o queria advertir os cristãos para não acharem q u e a graça estava garantida e conclam á-los a se em p en h a rem m ais para alcançarem a piedade abnegada (que os cristãos m o d ern o s cham am de discipulado), G regório falava com o Pelágio. E m Regra pastoral, ele diz aos bispos q u e a pregação tinha dois propósitos: co n fo rtar os aflitos e afligir os acom odados. A soteriologia de G regório está cheia de tensões p o rq u e às vezes, de u m lado, escrevia para consolar os que achavam q u e jam ais conseguiriam agradar a D eus, p o r m ais boas obras que realizassem , e para enfatizar a total sufici ência da graça com o u m a dádiva de D eus. D e o u tro , G regório escrevia para afligir os que, segundo acreditava, estavam se deleitando na “graça barata” e para enfatizar a absoluta necessidade de cooperação com a graça pelo esforço hum ano. U m a das declarações de G regório se destaca ao revelar de m o d o excepcional a dualidade e tensão de sua soteriologia. D epois de enfatizar a graça até u m p o n to em q u e quase afirm a o m o n erg ism o de A gostinho, G regório escreveu: “M esm o a p ró pria predestinação ao reino etern o é disposta de tal m aneira pelo D eus o n ip o ten te q u e os eleitos a alcançam pelos seus próprios esforços”." Para G regório, “as o ra ções, a penitência, as missas, a intercessão e as boas obras são form as de interm ediação do esforço h u m an o com o d iv in o ”.12 E n tretan to , n in g u ém seria capaz de realizar esses esforços de m o d o salvífico sem a graça auxiliadora. M as q u an d o a vontade e o esforço cooperam com a graça e a pessoa persevera até ao fim e en tra para o rein o etern o , então, pode-se dizer q u e ela estava “predestinada à salvação”. A graça eletiva precisa estar presente. S egundo G regório, ela não era autom ática. O que, p ortanto, a pessoa deve fazer a fim de m erecer a graça e tornar-se u m dos eleitos de D eus? S egundo G regório, é preciso ser crucificado com C risto para ser beneficiado p o r sua cru z e graça: “N a realidade, [...] C risto não cu m p riu tu d o por nós. C ertam en te, ele red im iu a todos na C ru z, m as ainda é necessário que aquele que se esforça para ser red im id o e para reinar com ele seja crucificado tam b ém ”.13 Segundo G regório, ser crucificado com C risto significa o arrep e n d im en to m áxi m o, inclusive com atos de sacrifícios penitenciais, abnegação racional dos prazeres físicos em geral que p rejudicam a espiritualidade, participação ativa na vida sacra m ental da igreja e boas obras de am or, com o dar esm ola aos pobres. A pessoa que realm ente quiser agradar a D eus, garantir a eleição divina e escapar da agonia do
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purg ató rio deve viver com o u m m onge, que é a vida d o “p en iten te perfeito”. Para G regório, o prazer físico, em si, é u m convite ao pecado o u m esm o o p ró p rio peca do. As relações sexuais são pecado até m esm o d en tro do casam ento a não ser q u a n do visam o p ropósito de procriação e, m e s rro assim , se o ato tiver algum a co n cu piscência o u prop o rcio nar prazer carnal, pode im plicar culpa.14 Se a pessoa quiser ser u m “p en iten te p erfeito” e ter a “garantia do p erd ão ” e do céu, terá de se filiar a um a o rd em m onástica c negar ao corpo todos os tipos de prazeres que talvez legal m en te sejam perm itid o s p o r D eus, m as q u e co n têm sem entes da tentação. Por causa da forte ênfase dada p o r G regório ao ascetism o (renuncia) extrem o, aos atos de penitência, às obras de am o r e à livre cooperação com a graça auxiliadora e pela negação da certeza c garantia da salvação (a não ser em casos excepcionais), os protestantes chegaram a considerar G regório sem ipelagiano, em bora ele afir masse a necessidade da graça sobrenatural auxiliadora para a possível obtenção de q u alq u er v irtu d e q u e a pessoa alcançasse. Foi claram ente sinergista, o u até m esm o legalista, em sua abordagem sobre a salvação c a vida cristã. Sua teologia, talvez inv o lu n tariam en te, acabou d estru in d o q u alq u er idéia de certeza ou garantia da sal vação para a m aioria dos cristãos m edievais Q u a n d o L utero se filiou ao m o steiro agostiniano buscando u m D eus gracioso, foi-lhe ensinada a versão do agostinism o ensinada p o r G regório. Ficou p ertu rb ad o co m a idéia d e u m D e u s irad o e im possível d e se agradar. E x p e rim e n to u a autoílagelação para castigar-se pelos próprios pecados e com pletar a obra de C risto em seu favor através do auto-sacrifício. C h eg o u a odiar, m ais do que am ar, a D eus. Foi então que teve sua grande “experiência na to rre ”, percebendo q u e a au to -su fi ciência da graça e a eficácia da fé eram bastantes para se receber o perdão. D eixou dc ten tar ser o p en iten te perfeito dc G regório e confiou na graça, en co n tran d o respaldo na declaração bíblica dc q u e o “ju s to viverá pela fé”. E m grande m edida, a teologia p ro testante de L utero foi um a reação contra a d o u trin a da salvação e n sir da p o r G regório. A igreja oriental não reagiu tanto contra o sinergism o de G regório q u an to c o n tra suas asseverações bastante inflexíveis da superioridade do bispo ro m an o em relação aos bispos orientais c até m esm o ao patriarca de C o n stan tin o p la. A lém disso, levantou objeções co n tra m uitas de suas inovações n o en sin o e na prática cristãs. E m bora, sem dúvida, não tenha sido G regório q u em criou o abism o entre o O rie n te e o O cid en te, ele pouco fez para estreitá-lo e talvez até tenha c o n trib u ído para seu alargam ento. Pelo m enos, a partir do papado de G regório, a igreja ocidental seguiu seu cam inho, sem se in co m o d ar com a existência d o cristianism o oriental e do Im p ério B izantino. As duas partes da cristandade raram en te liam obras escritas pela o u tra e o relacionam ento en tre elas to rn o u -se cada vez m ais frio e distante com o passar das décadas.
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igreja ocidental q u e se to rn o u católica rom ana sem pre se co n sid ero u , tam bém , ortodoxa rom ana. A igreja oriental que se to rn o u o q u e hoje cham am os de o rto d o xa oriental sem pre se co nsiderou, tam bém , católica oriental. Foi p o r m era co n v en ção q u e as pessoas com eçaram a cham ar um a de “C atólica” e a o u tra de “O rto d o xa”. O s m em b ro s da igreja de R om a não adm item , de m o d o algum , q u e a igreja oriental seja m ais ortodoxa do que ela. Em contrapartida, os m em b ro s da igreja ortodoxa oriental tam bém não consideram a igreja de R om a m ais católica d o que ela. D esde de 1054, cada um a se considera a única c verdadeira G ran d e Igreja que é católica e ortodoxa. U m a vê a o u tra co m o g ru p o cism ático q u e não é totalm ente católico n em to talm en te ortodoxo. Já vim os alguns fatores q u e c o n trib u íra m para a lenta separação da igreja oci dental da oriental, de tal m aneira que, já na baixa Idade M édia a ocidental passou a agir p o r conta p rópria co m o se a o riental não existisse. Essa separação não foi, po rém , n em form al n em oficial. Se os bispos da igreja ocidental fossem co n su lta dos, teriam reco n h ecid o os bispos orientais co m o cristãos genuínos, m esm o achan do suas crenças e práticas u m pouco estranhas. O m esm o diriam os bispos o rie n tais, se in q u irid o s a respeito dos ocidentais. E n tretan to , as duas partes da G rande Igreja en fren taram p ro b lem as d istin to s e e n c o n tra ra m m aneiras d iferen tes de resolvê-los. Assim co m o ho u v e personagens e controvérsias im p o rtan tes q u e ajudaram a criar o q u e atu alm en te ch am am o s de catolicism o ro m an o , tam b ém a igreja o rie n tal ex p e rim en to u suas próprias controvérsias e teve seus p ró p rio s pen sad o res sin g u larm e n te b izan tin o s q u e a m o ld aram até fo rm a rem a tradição e a fam ília de igrejas o rtodoxas o rientais. N o O c id e n te , a figura de d estaq u e p o r trás de tu d o e de todos — de certa form a, o protagonista h u m a n o de sua história teológica — foi A g o stinho de I lipona. M esm o q u a n d o suas idéias foram in terp retad as e apli cadas in co rretam en te aos problem as, c o n tin u o u sen d o o teólogo n o qual todos os
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pen sadores cristãos o cidentais se baseavam . A igreja o rien tal tam b ém teve um a personagem q u e se im pôs da m esm a m aneira q u e A gostinho. N ó s já o apresenta m os. Ele se cham ava O rígenes.
A influência permanente de Orígenes A igreja do Im p ério B izantino (desde o im p erad o r Ju stin ia n o até a alta Idade M é dia) teve u m relacio n am ento de am or e ódio com O ríg en es e sua teologia, cham a da origenism o. E m bora O ríg en es e o origenism o fossem condenados pelo q u in to concílio ecu m ên ico em C o n sta n tin o p la em 553, co n tin u aram po d ero sam en te in fluentes no p en sam en to cristão oriental. S egundo um destacado pensador o rto d o xo oriental m o d ern o : “O origenism o [...] p erm an eceu 110 âm ago do pen sam en to teológico do cristianism o oriental depois de C alcedônia e sua influência sobre a espiritualidade e a term inologia teológica não cessou q u an d o o sistema origenista foi co n d en ad o em 553 e co n tin u o u pelo m en o s até a crise iconoclasta do século vm ”.1 E ntre outras coisas, o origenism o m arcou a igreja oriental e sua teologia com u m conceito fo rtem en te sinergístico da salvação, q u e enfatiza o livre-arbítrio cm cooperação co m a graça, e a d o u trin a racional-m ística de D eu s q u e enfatiza a inefabilidadc e im utabilidade de D eus. A soteriologia de O ríg en es co ncentra-se na idéia da encarnação salvífica, na qual o Logos, ao se to rn a r h u m a n o em C risto, transform a a p rópria criação, ven cen d o o pecado e a m o rte. A influência p erm a n en te e p en etran te de O ríg en es n o p en sam en to ocidental não pode ser negada n em ignorada. D uas grandes controvérsias e três grandes teólogos desem penharam papéis cruciais especialm ente n o desenvolvim ento da ortodoxia oriental co m o u m ram o da teolo gia cristã, distinto do catolicism o rom ano. As controvérsias foram a m onotelista e a iconoclasta. Essas disputas e seus desfechos após dois concílios ecum ênicos afeta ram p ro fu n d am en te a crença e adoração cristã do oriente. O s três teólogos foram João C risó sto m o , que recebeu a alcunha de o Boca de O u ro p o r sua grande habili dade hom ilética, M áxim o o C onfessor, q u e foi m artirizad o p o r u m im perador bizantino p o r causa de sua oposição inflexível ao m onotelism o, e João D am asceno, que proveu u m grandioso sum ário da fé ortodoxa e defendeu o uso de ícones (im a gens santas) pela igreja n o culto, contra aqueles que tentavam proibi-los.
Liturgia e tradição E m u ito difícil para os cristãos ocidentais, tanto católicos rom anos co m o p ro tes tantes, co n tar o u co m p re en d er a história da teologia ortodoxa oriental. M entalidades rad icalm en te d iferentes d esenvolveram -se p au latin am en te à m edida q u e o Im p ério R o m an o se dividia ao m eio. A teologia n o O c id e n te depois de A gostinho confiava em autoridades objetivas e docum entadas, co m o a Bíblia, os credos, a lei
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canônica (o código pelo qual a Igreja C atólica R om ana governa a si m esm a) para d irim ir disputas e o rien tar o seu desenvolvim ento. O s cristãos ocidentais cada vez m ais passaram a enxergar a teologia co m o u m tipo de filosofia, apesar de re co n h e cerem o elem en to de m istério n o relacionam ento en tre D eus e o m u n d o . A salva ção era considerada cada vez m ais em term o s ju ríd ico s, co m o a absolvição ou c o n denação divina das almas. E m bora os protestantes ten h am p ro cu rad o refo rm ar o q u e consideravam abusos da teologia e prática católica rom ana desenvolvida d u rante a Idade M édia, h erdaram to talm en te a m entalidade básica da igreja ocidental. Por exem plo, os ram os ocidentais d o cristianism o, em geral, co n sid eram a adora ção u m p ro d u to da reflexão sobre as Escrituras e a teologia. A abordagem oriental é bem diferente. A teologia ortodoxa oriental n u n ca se separa da liturgia divina, ou seja, da ado ração do fiel povo de D eus. D e fato, os principais porta-vozes da tradição oriental arg u m en tam q ue a sua teologia é resultado da tradição de adoração: Enquanto o cristão ocidental geralm ente determinava sua fé pela autoridade externa (o m agistério ou a Bíblia), o cristão bizantino considerava a liturgia fonte e expressão de sua teologia; daí, o conservadorism o exagerado que freq ü en tem en te prevalecia, tanto em B izâ n cio c o m o n os tem p o s p ó sbizantinos, nas questões de tradição c prática litúrgicas. A liturgia m anteve a identidade e continuidade da igreja em m eio a um m undo em transformação.2
A adoração na igreja é considerada pelos cristãos ortodoxos orientais u m (ou o mais) im p o rtan te aspecto da tradição, q u e é a origem e n o rm a suprem a de toda a teologia. As E scrituras tam b ém fazem parte da tradição. O s protestantes, em espe cial, relutam em co m p re en d er e aceitar essa m entalidade divergente no tocante à origem da verdade para a fé e a prática. Para os cristãos orientais, a tradição governa a igreja inteira, bem co m o a vida de cada cristão individualm ente. E o contexto global no qual D eus inclui a vida de cada convertido (inclusive dos bebês converti dos pelo batism o) para que suas histórias de vida se to rn e m parte da grande história da revelação divina, desde o a t e a igreja prim itiva, com seus m ártires, heróis, c o n cílios, credos, até a identificação do cânon das E scrituras e da adoração legítim a. U m a pergunta essencial para qualquer teólogo ortodoxo oriental que se co n fro n ta com um a questão controvertida é: o que a tradição diz a respeito? E a tradição cristã virtualm ente com pletou-se, para os cristãos ortodoxos p o r volta de 787, no sétim o e ú ltim o concílio ecum ênico de N icéia n.3 E p o r isso que a igreja oriental às vezes cham ada Igreja dos Sete C oncílios. N o âm ago da tradição, está a adoração e a regra da teologia ortodoxa oriental é Lex orandi, lex credendi, “a lei da adoração é a lei da crença”. A adoração realm ente se desenvolveu nos prim eiros séculos. N e n h u m
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crente ortodoxo oriental argum entaria q ue a liturgia divina hoje é idêntica à das igre jas cristãs do século i em R om a ou em A ntioquia. A ortodoxia oriental acredita, isto sim , q u e o desenvolvim ento do seu culto durante os séculos, desde C onstantinopla com C o n stan tin o até o Segundo C oncílio de N icéia e especialm ente durante o rei nado do im perador Ju stiniano, foi divinam ente inspirado. A “G rande Igreja” da capi tal oriental — a Hagia Sofia — desem p en h o u u m papel fundam ental nesse processo. “A adoção de um a prática ou tradição litúrgica pela 'G ran d e Igreja’ significava um a aprovação final e, em últim a análise, quase um a garantia da aceitação universal”.4 A teologia ortodoxa oriental é a reflexão sobre a tradição e isso significa a inter pretação da adoração, bem co m o das Escrituras. Ela não assum e a form a de gran des sum ários sistem áticos de proposições doutrinárias co m o os q u e foram d esen volvidos no O cid en te, especialm ente a partir d o perío d o m edieval. Pelo m enos segundo os porta-vozes ortodoxos orientais, sua teologia resiste tan to à especula ção q u e ultrapassa a revelação divina na tradição qu an to à sistem atização racionalista. Ela reconhece o m istério, e até m esm o se deleita nele, e perm ite q u e as crenças sejam declaradas an tinom ias o u paradoxos. M uitas distinções necessárias nas quais insiste estão além da com preensão h u m an a e talvez até pareçam irracionais para o p en sam en to ocidental. Por exem plo, os cristãos ocidentais em geral não fazem distinção en tre a salvação com o a deificação e u m tipo de união panteísta de D eus com toda a criação. M áxim o, o C onfessor, em especial, d efen d eu essa distinção, em bora enfatizasse fo rtem en te a deificação derradeira d o universo inteiro, e não apenas dos seres h u m an o s, através da encarnação. U m a distinção correlata tam bém não aceita pelos ocidentais é a estabelecida en tre a “essência” de D eus e as suas “energias”. Ela é ab so lutam ente crucial para a teologia ortodoxa oriental, m as difi cilm ente pode ser expressa de m aneira racional. Para a m entalidade ocidental, a teologia oriental m uitas vezes parece m ística e até m esm o paradoxal, sem autoridade objetiva e escrita que sirva de referência. É ex trem am en te difícil e n c o n trar u m a obra de teologia sistem ática ortodoxa oriental com o as q ue en ch em as prateleiras das bibliotecas dos sem inários católicos rom a no s e p ro te s ta n te s . O d e sta c a d o te ó lo g o o rto d o x o o rie n ta l m o d e rn o , J o h n M eyendorff, en ten d e q u e essa diferença existe pelo m en o s desde a era bizantina e argum enta q u e a falta de u m a teologia sistem ática do cristianism o oriental não significa [...] que, por trás das questões debatidas pelos teólogos, não havia uma unidade básica de inspiração 011 a idéia de uma única tradição co n sistente de fé. N aturalm ente, o O riente estava m en os disposto a conceituar 011 dogmatizar essa unidade de tradição do que o O cidente. Preferiu manter sua fidelidade à “m ente de C risto” pela liturgia da igreja, pela tradição da santidade, pelagitosis viva da Verdade.3
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João Crisóstomo: o Boca de Ouro Por causa dessa abordagem exclusivam ente oriental à teologia, é bom q u e com ece m os a história de seu desenvolvim ento du ran te a era bizantina com o santo e bispo pre-bizantino altam ente reverenciado pela tradição da igreja ortodoxa oriental. João C risó sto m o tipifica a preferência pela teologia solidam ente arraigada na adoração, inclusive a pregação prática da “m en te de C risto ” conform e expressa na tradição (inclusive nas Escrituras). C risó sto m o foi co n tem porâneo de A gostinho. N asceu em A ntioquia, p o r volta de 349, em um a família relativam ente abastada com certa posição social. Em tenra idade, já era um a grande prom essa com o líder espiritual e ingressou para a co m u n idade m onástica em A ntioquia. T ornou-se notável pregador c m estre das Escrituras e escreveu e pregou num ei osos serm ões e com entários so bre os livros da Bíblia. A abordagem que adotava era tipicam ente antioquina, no sentido de com eçar com o significado histórico-literal das Escrituras e passar para o significado tipológico, m an ten d o u m firm em en te fu n d am en tad o n o ou tro . U m notável estudioso ocidental m o d ern o da igreja prim itiva diz que “os com entários de João C risó sto m o em seus serm ões [...] form am a coletânea m ais im pressionante, e agradável dc se ler, de exposições patrísticas das E scrituras”.6 E m bora as massas gos tassem m u ito de suas pregações e ensinam entos, a reputação de C risó sto m o na elite cultural reinante em A ntioquia nem sem pre foi favorável, p o rq u e m uitos dos seus serm ões atacavam o co n su m ism o exagerado e estilo de vida egoisticam ente afluente desse grupo. M esm o assim, era tão benquisto e respeitado p o r todos que, em o u tu bro de 397, foi n o m eado bispo de C onstantinopla pelo im perador Teodósio i. U m a vez instalado em C o n sta n tin o p la co m o patriarca, Jo ão C risó sto m o ini ciou um a cam panha m aciça para m oralizar e re fo rm ar os clérigos e m onges da cidade. A creditava q u e o favoritism o do im p era d o r e da corte im perial pelo cristi anism o tin h a ocasionado um a letargia m oral e espiritual e q u e ele era cham ado p o r D eus para m o ld ar a igreja e re co n d u zi-la ao ca m in h o certo. C o m e ç o u quase im ed iatam en te a pregar serm ões poderosos na grande catedral c o n tra a p re d o m i nância do im p erad o r sobre a igreja — p red o m in ân cia esta q u e, n o O c id e n te , foi cham ada de cesaropapism o. D eclarou a in d ep en d ên cia dos bispos em relação à corte im perial e à buro cracia dos servidores públicos q u e su rg iu em to rn o da corte e c o n d e n o u a p rosperidade e opulência q u e coexistam com a m ais abjeta indigência em C o n sta n tin o p la. A lém disso, o rd e n o u aos m onges c clérigos traba lhar, cu id ar de seus reb anhos e deixar de viver lu x u o sam en te às custas dos ricos que os patrocinavam . U m excelente exem plo de sua pregação é oferecido p o r seu biógrafo m o d ern o : Q u e insensatez, que loucura esta! A igreja tem tantos pobres a seu redor e, ao m esm o tem po, tantas filhos ricos: no entanto, não é capaz de oferecer alívio a
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um único pobre. “Enquanto um fica com fom e, outro se embriaga” (IC o 11.21); enquanto um h om em defeca em vaso de prata, outro não tem nem sequer uma migalha de pão.7
N e m é necessário dizer que C risó sto m o rapidam ente se to rn o u herói das m as sas indigentes e oprim idas, tanto cristãs q u an to pagãs, q u e corriam para escutá-lo. R ecebeu o co gnom e “Língua de O u r o ” ou “Boca de O u r o ” p o rq u e sua pregação era m u ito doce aos ouvidos. E m várias ocasiões, C risó sto m o teve q u e p ro ib ir com severidade os aplausos em seus serm ões, pois a congregação, cheia de entusiasm o, exigia q u e ele pregasse m ais vezes e p o r m ais tem po. Sua habilidade de pregador foi notada até m esm o p o r u m escritor pagão co n tem p o rân eo , cham ado Z ózim o, que escreveu a seu respeito: “Esse h o m em era ex trem am en te habilidoso ao sujeitar as massas ignorantes com suas palavras”.8 D epois de algum tem po, natu ralm en te, o im perador, a im peratriz e a corte com eçaram a criticar o grande bispo pregador. A ú ltim a gota q u e p artiu a co rcu n d a d o cam elo proverbial foi o serm ão pregado cm 401, n o qual C risó sto m o publicam ente com parou a im peratriz Eudóxia com Jczabel. Parecia disposto a provocar os governantes, com o se fosse u m profeta do a t . A derrocada de C risó sto m o com eçou com os ataques de u m colega, o bispo Epifânio de C h ip re (367-403), q u e co m eçou a cam panha para desacreditá-lo com o “herege origenista”. A cam panha contra C risó sto m o tin h a n o tad am en te m otivação política, visto q u e sua teologia era c o m p letam en te ortodoxa. N a realidade, ela c o n sistia basicam ente de exposições bíblicas c condenações às acom odações culturais ao paganism o p o r parte dos cristãos. Em setem b ro de 403, C risó sto m o foi co n d e nado p o r u m a corte eclesiástica e sua deposição d o cargo de bispo ratificada pelo S ínodo do C arvalho no m esm o ano. Seu exílio de C o n sta n tin o p la foi acom panha do p o r m anifestações públicas nas ruas e d en tro da catedral. O im perador teve de m andar tropas para abafar a rebelião. D epois de um a série de restaurações e voltas tem porárias, nas quais sem pre recom eçava as pregações contra a corrupção do ponto em q ue tinham sido in terrom pidas, C risó sto m o m o rre u em u m a m archa forçada para o exílio, longe de C o n sta n tin o p la em 14 de setem b ro de 406. M o rre u de sub n u trição e fraqueza. Foi claram ente um a execução ordenada pelo im perador A rcádio, que queria o Boca de O u ro fora do seu ca m in h o para sem pre. Jo ão C risó sto m o é lem brado co m o u m dos grandes heróis da ortodoxia o rien tal, em b o ra sua co n trib uição à teologia pro p riam en te dita tenha sido m ínim a. Por sua pregação corajosa, reform as tan to na igreja q u an to n o estado e seu m artírio, é considerado santo e m estre da igreja. M uitas igrejas ortodoxas orientais têm o seu nom e. Por q ue co n tar sua biografia n u m livro de história da teologia cristã? S im p lesm en te p o r oferecer u m retrato da teologia ortodoxa oriental. U m grande e corajoso pregador, reform ador do culto e da vida eclesiástica, guia espiritual e profeta
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para os poderosos, é considerado o paradigm a de u m bo m teólogo, em b o ra nunca ten h a escrito u m livro de teologia sistem ática n em especulado sobre quantos anjos conseguem dançar na cabeça de u m alfinete. S egundo a ortodoxia oriental, o bom teólogo é aquele que ora e prega bem . D ois o u tro s heróis da teologia ortodoxa oriental da era bizantina são M áxim o o C onfessor, e Jo ão D am asceno. Suas histórias estão d iretam en te ligadas às histórias de duas grandes controvérsias q u e atraíram toda a atenção da igreja oriental n aq u e le período. A história de M áxim o está associada à grande controvérsia m onotelista a respeito das vontades de C risto. A história de João D am asceno faz parte da gran de controvérsia iconoclasta a respeito do uso de im agens santas na adoração. Essas histórias estão no âm ago da grande história da teologia o rtodoxa oriental. E m gran de m edida, esse ram o do cristianism o é o q u e é p o r causa dessas controvérsias e dos teólogos q u e ajudaram a dirim i-las.
Máximo, o Confessor e o monotelismo Já fizem os, neste livro, u m estu d o p an o râm ico da co n tro v érsia m o n o fisista da era p ó s-c a lc e d ô n ia . O s m o n o fisista s eram c ristã o s q u e , sob a in flu ê n c ia de A lexandria, acreditavam q u e a D efinição de C alced ô n ia re alm en te violava o esp í rito da d o u trin a da u n ião h ipostática, d efen d id a p o r C irilo de A lexandria. E n te n diam q u e ela favorecia a idéia an tio q u in a de duas n atu rezas e duas pessoas em C risto . E m o u tras palavras, acreditavam q u e não era su ficien te para ex clu ir o n esto rian ism o . V ários im p erad o res em C o n sta n tin o p la p ro c u ra ra m aplacar os m o n ofisistas — m as sem m u ito sucesso. O s m onofisistas c o n tin u a ra m sendo u m a força p o d ero sa a ser levada em co n ta n o Im p é rio B izantino. D u ra n te os séculos v e vi, m u ito s im p era d o res e os p rincipais bispos d o O rie n te esfo rçaram se em p rol da u n ião e n tre os cristãos o rto d o x o s e os m onofisistas. U m a p roposta ap a ren tem e n te atraen te para acabar co m esse hiato foi o monotelismo, a idéia de q u e, em b o ra Je su s C risto fosse u m a só pessoa integral co m duas n atu rezas c o m pletas, p o rém inseparáveis, tin h a u m a única vontade: a divina. O s m o n o telistas e seus sim p atizan tes esperavam q u e esse aco rd o fosse re u n ific ar a igreja, afinal, as partes não estavam ce d en d o tan to assim . M áxim o, assim co m o Jo ão C risó sto m o antes dele, nasceu em um a família de boa reputação. N ão se sabe o ano exato do seu nascim ento em C on stan tin o p la, m as provavelm ente foi p o r volta de 580. N a vida adulta, to rn o u -se u m servidor pú b lico altam en te respeitado e b em -su c e d id o e foi co n v id ad o p elo im p era d o r H eráclio para ser seu secretário de Estado pessoal. D epois de u m breve período no cargo, no en tan to , M áxim o deixou o serviço im perial para tornar-se m o n g e e, d e pois de habitar em vários m osteiros, chegou a C artago em 632. Foi ali q u e ouviu falar, pela prim eira vez, d o m o n o telism o e com eçou sua luta contra ele, q u e d u ro u
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até ao fim de sua vida, executado p o r esse m otivo. Sua luta co n tra o m o n o telism o c cm favor do duotelismo — a crença em duas vontades naturais de C risto — levouo a R om a, o n d e ten to u p ersuadir papas a to m arem um a posição firm e contra os acordos defendidos pelos im peradores bizantinos. Assim co m o Atanásio antes dele, M áxim o acreditava q u e esse p eq u en o acordo d estruiria sozinho toda a edificação da cristologia ortodoxa. Seria com o re to rn ar ao m onofisism o e, p o rtan to , negar as duas naturezas de C risto e a sua verdadeira e plena h u m anidade e divindade. N o fim , segundo M áxim o arg u m en to u , isso tornaria o rtodoxo o apolinarism o ou o eu tiq u ian ism o , p o rq u e se C risto tivesse um a única v ontade, esta teria de ser divina e, se assim fosse, a h u m an id ad e estaria aniquilada. E co n fo rm e declarara G regório N azianzeno: “A quilo que o F ilho de D eus não assum iu, não foi cu rad o ”. E n q u an to estava em R om a, M áxim o foi capturado, ju n to com o papa M artin h o i, p o r soldados bizantinos que invadiam o O c id e n te na tentativa de reunificar o Im p ério R om ano, antes tão grandioso. Levado a C o n sta n tin o p la para ser ju lg ad o em m aio de 655, foi co n d en ad o p o r crim es contra o estado, p o rq u e abertam ente rep u d io u a autoridade d o im perador sobre a igreja e a teologia. M áxim o escreveu: “N ão penso na união ou na divisão dos rom anos e dos gregos, m as não devo m e afastar da fé correta. [...] E a tarefa dos sacerdotes, e não dos im peradores, investi gar e d efin ir os dogm as salutares da igreja católica”.9 D epois de se recusar a retirar suas opiniões duotelistas e a fazer u m acordo com os m onotelistas, M áxim o foi m o rto sob to rtu ra p o r o rd em do im perador cm 13 de agosto de 661. P osterior m ente, foi reco n h ecid o co m o grande d efensor da fé calcedônia p o r im peradores, bispos e leigos igualm ente e recebeu o títu lo honorífico de “o C o n fe sso r”. Seus escritos sobre teologia tam bém foram reabilitados e se tornaram obras padroniza das para o en sin o e a interpretação da fé ortodoxa. U m destacado teólogo ortodoxo oriental m o d ern o diz que M áxim o pode ser considerado o verdadeiro pai da teologia bizantina. So m ente através do sistem a dele, no qual as tradições válidas do passado ocupa ram seu legítim o lugar, é que as idéias de O rígenes, de Evágrio, dos capadócios, de Cirilo e d o P seu d o-D ion ísio foram preservadas n o cristianism o ocidental. [...] C ontinua sendo im possível [...] com preender toda a teologia bizantina sem conhecer a síntese de M áxim o.,u
A pesar dc sua grande im portância para a teologia ortodoxa oriental, a tarefa de in terp retar M áxim o não é fácil, m esm o para os orientais. Ele não forneceu n e n h u m a exposição sistem ática de sua teologia, mas expressou suas idéias em cartas, dis cursos, fragm entos de livros q u e pretendia escrever e em debates escritos contra seus o ponentes. O rg an izar toda a m atéria e sum ariar todo o co n teú d o é um a tarefa
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desafiadora, isso tam b ém p o rq u e m uitas expressões e conceitos q u e usa são enig m áticos e quase m ísticos. O propósito dele ia m u ito além de m eram en te d efen d er a cristologia de C alcedônia contra as am eaças d o m o n o telism o . Essa é apenas a po nta do iceberg. O alvo m aior de M áxim o, n u n ca definido p o r com pleto, era um a cosm ovisão cristã ortodoxa centralizada inteiram en te na encarnação. Para ele, a encarnação de D eus em Jesu s C risto era, e é, o p ropósito su p re m o de tu d o e não sim p lesm en te a m aneira de levar Jesu s à cruz a fim de m o rre r pelos pecados do m u n d o e n em u m m eio de recapitular A dão para reverter os efeitos da queda. Para M áxim o, a encarnação foi exatam ente o ápice da criação e teria acontecido m esm o qu e os seres h u m an o s n u n ca tivessem caído no pecado. A ortodoxia oriental ad m i tiu esses conceitos p o r sua influência.
Máximo e sua visão teândrica da realidade A visão cristã da realidade, a ontologia, de M áxim o com eça com a idéia de que tu d o na criação é, em algum sentido, u m a revelação de D eu s p o rq u e “o m u n d o inteiro é a in d u m en tária do L ogos”.11 P or causa da criação pelo Logos e especial m en te p o r causa da encarnação do Logos na raça h u m ana, “a essência de tu d o neste m u n d o é espiritual. P odem os reco n h ecer a u rd id u ra d o Logos em todos os luga res”.12 O m u n d o foi criado p o r D eus co m o expressão de si m esm o e veículo de sua presença e se u niria a ele através do Logos — a segunda pessoa da Trindade. Essa união aconteceria n u m a progressão natural e chegaria ao auge na encarnação, se os p rim eiros seres h u m an o s não tivessem pecado. N as palavras do p ró p rio M áxim o: A quele que fundou a existência — origem , “g ên ese” — de toda a criação, visível e invisível, por um único ato de sua vontade tom ou, de forma inefável, antes de todas as eras, e antes de qualquer com eço do m u n d o criado, a bom con selho a decisão de que ele m esm o se uniria de m odo inalterável à natureza hum ana pela verdadeira unidade de hipóstases. E u n iu -se inalteravelm ente à natureza humana, para que se tornasse ele próprio um h om em , conform e ele próprio sabe, e para que tornasse o h om em um deus pela união co n sig o.13
Ao pecar, os seres h u m an o s trouxeram ao m u n d o confusão e m o rte, o q u e im pediu a unificação de todas as coisas com D eus pelo Logos. A raça h u m an a o cu p a ria, de form a especial, o cen tro dessa unidade cosm o-divina habitada pelo Logos. M as p o r causa d o pecado e da co n seq ü en te corrupção, a raça h u m an a p erd eu sua ligação com D eus e o cosm o in teiro foi afetado. U m a m aldição, p o r assim dizer, caiu sobre a criação. A encarnação d o Logos, que era o p ropósito e o c u m p rim e n to natural da criação, to rn o u -se , em vez disso, operação de sua salvação. M esm o assim , a encarnação do Logos foi m ais d o q u e u m a operação de salva m ento. S egundo M áxim o, ela tam b ém foi a retom ada do plano e projeto original
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de D eu s dc un ir-se a toda a criação. D c certo m odo, através da encarnação especí fica do Logos em C risto, D eus visava à encarnação universal d o Logos em toda a criação. E p o r causa da encarnação, ele tem um a base, p o r assim dizer, em tu d o e prin cip alm en te na hum anidade. N ad a possui existência verdadeira sem o Logos. Sem ele, é tu d o u m vazio a cam inho do nada. N o cen tro dessa visão da realidade n o processo de ser divinizado p o r D eus, está o ser h u m an o . Para M áxim o, os seres h u m an o s ocupam u m lugar especial na cri ação en tre a natureza e D eus. A tarefa que D eus atrib u iu (e ainda atribui) à raça h u m an a é d esem p en h ar o papel crucial de u n ir e h arm o n izar todos os aspectos diversos da realidade — físicos e espirituais — de m o d o q u e a criação, co m o u m todo, seja u m veículo digno da presença de D eus. Isso não acontece autom atica m ente. A encarnação universal depende da cooperação hum ana. Para o propósito de D eus na criação ser coroado com o sucesso e a perfeição, a criatura hu m an a deve aten d er a D eu s de m o d o apropriado, por sua sujeição v oluntária à vontade de D eus e sua receptividade à presença dele d en tro de si. Para os seres hum anos levarem a efeito seu propósito designado n o plano divino, é necessária a encarnação. M áxim o considerava a encarnação um a carga que renovava a energia da criatura hum ana para que atuasse com D eus na deificação cósmica. Esse recarregam ento e reenergização da hum anidade pelo Logos é o que M áxim o chamava de dim ensão teândrica da encarnação. Isto é, D eus e a hum anidade se pertencem e a encarnação, além de revelar esse fato, o viabiliza. D o ponto de vista de M áximo, “teândrico” designa o relacionam ento totalm ente incomparável e n ovo esta belecido em Jesus C risto, por ser plenam ente hum ano e plenam ente divino: D eu s e o hom em interagindo para o benefício de toda a criação; unidos, mas não misturados entre si; distintos, mas em plena harmonia. [...] M áxim o é um dos prim eiros escritores cristãos a usarem esse term o freqüente e livre m ente. C om ele, introduz toda uma tradição do pensam ento cristão oriental, para a qual a realidade por detrás dele e de suprema importância: a própria vida está tão marcada pela encarnação de D eu s, que sem pre existe uma di m ensão teândrica para ela.14
C o n tu d o , para a d im ensão teândrica funcionar, o ser h u m an o deve cooperar livrem ente com a “cen telh a” da graça divina na encarnação energizante. As p ró p ri as energias divinas de D eus (não a essência de D eus) estão à disposição para habitar e tran sfo rm ar todas as coisas criadas, se o ser h u m a n o d esem p en h ar livrem ente o seu papel, m an ten d o todo p en sam ento sujeito a C risto e, pelos sacram entos e ado ração, ser habitado p o r seu Espírito. Essa visão teândrica da realidade é a base da oposição resoluta de M áxim o ao m onotelism o: “Toda a polêm ica de São M áxim o, o C onfessor, contra os m onotelistas
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pode ser, em rigor, sum ariada na interpretação de q u e a vo n tad e é u m aspecto necessário da n atureza h u m an a e de que, sem a vontade e a liberdade, a natureza hum an a seria in com pleta e esp ú ria”.15 P ortanto, a rg u m e n to u M áxim o, a dim ensão teândrica tão necessária para a consum ação suprem a d o plano d ivino da criação e da redenção não seria possível se C risto não tivesse vontade hu m an a. Sua h u m a n i dade linha de co operar livrem ente com o cham ado divino d o Logos, para q u e a raça h u m an a transcendesse a condição de m era criatura e entrasse na existência deificada. M áxim o, en tre tan to , arg u m e n to u q u e a vontade h u m an a de C risto era um a “v o n tade n atu ra l” e não u m a “vontade adâm ica” voltada co n tra D eus. Em todas as oca siões na vida de C risto , sua vontade h u m an a o p to u livrem ente p o r cooperar com o Logos. As duas vontades eram to talm en te coordenadas de tal form a q u e o Logos m ostrava o cam in h o e a vontade h u m an a livrem ente a obedecia c seguia. U m a tensão possível na cristologia duotelista acha-se na sua definição da vonta de. Por u m lado, assim com o O rígenes e toda a tradição cristã oriental, ele adm itia q u e os seres h u m an o s têm livre-arbítrio 110 sentido de obedecer ou desobedecer a D eus. M antinha, tam bém , u m conceito claram ente sinergístico da salvação, segun do o qual os seres h u m an o s podem cooperar com a graça de D eus ou rejeitá-la. Para M áxim o, assim co m o para a tradição oriental, o livre-arbítrio era a “capacida de de fazer de o utra fo rm a” e não a “liberdade de fazer o q u e se deseja”, co m o dizia A gostinho. N ã o havia n e n h u m a inevitabilidade da queda. E agora os seres h u m a nos deviam escolher livrem ente se queriam participar da redenção. Em contrapartida, ao lidar com a questão de com o um a só pessoa (C risto) podia ter duas vontades, M áxim o red efin iu vontade de tal m aneira q u e não envolve necessariam ente a livreescolha. C ertam e n te não acreditava que C risto poderia pecar. C risto tinha a vo n ta de h u m an a — essencial para a natureza h u m ana — m as não livre-escolha hum ana. Além disso, sua natureza hu m an a, inclusive sua vontade h u m ana, era deificada pela união com o Logos de tal m aneira q u e sem pre optava p o r aderir ao b e m .16 M as, se a livre-escolha (a capacidade de fazer de o u tra form a) é u m a parte es sencial da natureza h u m an a — senão, co m o Adão e Eva p oderiam pecar? — , C ris to não precisaria tê-la para ser plenam ente h u m an o e alcançar a dim ensão teândrica? Precisaria. N o en tan to , M áxim o não estava disposto a afirm ar isso. Até q u e ponto, portan to , a afirm ação de duas vontades em C risto faz sentido, se ela não im plica em dois co n ju n to s de escolhas? N a prática, a cristologia de M áxim o não se reduz a um a só vontade ativa e operante? Parece q u e sim . A saída para esse dilem a, seg u n d o alguns teólogos não ortodoxos orientais, é sugerir q u e a vontade é u m a função da pessoa e não da natureza. P ortanto, para q u e m se fu n d a m e n ta na idéia enhyposta Ha q u e L eôncio de B izâncio tin h a da encarnação, Jesu s C risto tin h a um a só vontade e esta era a do F ilho de D eu s que form ava sua personalidade unificante. Era um a vontade divina sob as condições da
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hu m an id ad e p or causa da encarnação. Era um a vontade q u e estava aberta à ten ta ção (ou m esm o ao pecado) pelo processo de rebaixam ento (kenose) associado à descida d o Filho de D eus para as condições da vida dc criatura. M as isso era o u tra coisa q u e M áxim o e toda a tradição oriental não podiam aceitar. Para M áxim o e para a tradição tão p ro fu n d am en te influenciada p o r ele, o Logos não passou p o r absolutam ente n e n h u m a m ud ança ao encarnar. S ofreu “pela h u m an id ad e” sem passar p o r n e n h u m a alteração o u m udança. P erm aneceu im u tá vel e impassível. E isso q u e m u ito s teólogos cristãos ocidentais, especialm ente os p rotestantes m o d ern o s, acham inaceitável e desnecessário. Eles acreditam q u e m u ito s dilem as da teologia antiga e bizantina seriam esclarecidos se os teólogos se dispusessem a abrandar sua posição em relação à im utabilidade c im passibilidade divinas. M u ito depois do m artírio de M áxim o, sua cristologia foi vindicada pelo sexto concílio ecu m ên ico , convocado pelo im perador C o n sta n tin o iv. C o n h e c id o com o o Terceiro C o n cílio de C on stan tin o p la, ou C o n stan tin o p la ui, ficou re u n id o de 680 a 681 e co n d en o u o m o n o telism o e afirm ou duas vontades naturais em C risto. A partir de então, a reputação de M áxim o de grande herói da O rto d o x ia foi firm e m en te sustentada. Sua visão da redenção cósm ica é, em geral, aceita co m o válida pelos cristãos ortodoxos orientais.
João Damasceno e a iconodastia A história da teologia ortodoxa oriental bizantina chegou ao auge de tensão, confli to e resolução com a grande controvérsia iconoclasta do século viu. O herói o rto doxo desse episódio h istórico é Jo ão D am asceno. A resolução acha-se n u m concí lio ecu m ên ico final, q u e co m p leto u o processo da tradição autoritária da ortodoxia oriental em 787, com a declaração de q u e im agens santas — ícones — não devem ser rejeitadas m as, de fato, usadas no cu lto cristão. O s ícones são sim plesm ente im agens de C risto e dos santos usadas com o pontos centrais de m editação e oração n o culto. N o culto e devoção da igreja ortodoxa oriental, eles d esem penham papel crucial de “janelas para o cé u ” que os fiéis usam com o p o n to de contato ao orar à Trindade ou aos santos. O s santos são considerados sim plesm ente intercessores acessíveis — parte da grande “n uvem dc testem u n h as” no céu — que levam a D eus as petições dos cristãos viventes. O s ícones nunca foram considerados ídolos pelos teólogos ortodoxos orientais ou católicos rom anos. N u n c a foram adorados, pois tal prática sem pre foi rigorosam ente proibida p o r essas tradições. E n tretan to , desde os tem pos antigos, as im agens são usadas para ajudar na oração, no culto e na devoção. Já n o século vi no O rien te, os ícones foram usados com o “livros para os analfabetos”. Sua função didática e m nem ónica era considera da essencia para os que não conseguiam ler as Escrituras ou livros cristãos.
A igreja oriental torna-se O rto d o x a O riental
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N o início d o século vm, C o n stan tin o p la e o u tras cidades cristãs d o Im pério B izantino estavam repletas de ícones. A iconografia era u m a in d ú stria im portante, especialm ente e n tre os m onges. C ada lar e cada igreja possuía diferentes e talvez m u ito s ícones esm erados diante dos quais os fiéis da ortodoxia m editavam e adora vam . A lguns líderes, tanto da igreja q u an to d o estado, tem iam q u e a prática ficasse de co n tro le e u m im p erador em especial, Leão III (717), o rd e n o u a destruição dos ícones em todas as partes do im pério. O conflito gerado d u ro u várias décadas e provocou tu m u lto s e n tre os m onges, o m artírio dos principais defensores o p o n en tes dos ícones e u m estado de desor d em e confusão geral em to d o o im pério e igreja bizantinos. O s iconoclastas argu m entavam q u e im agens de C risto violavam o espírito da proibição bíblica da ido latria e deturpavam a cristologia: Segundo eles, a natureza divina [de C risto] não pode ser limitada. Portanto, se a hum anidade do Salvador for representada pela im agem , obviam ente não incluirá sua divindade e isso necessariam ente resultará na divisão das duas naturezas, m otivo p elo qual o nestorianism o foi condenado. Se, por outro lado, alegamos que, ao representar a hum anidade de C risto, também repre sentam os a sua divindade, estarem os lim itando a divindade e m isturando as duas naturezas, m otivo pelo qual o m on ofisism o foi con d en ado.17
D u ran te algum tem p o no século vm, os iconoclastas estiveram n o p o d er e as igrejas de to d o o im p ério oriental foram destituídas das im agens; m u ito s iconófilos defensores de im agens foram perseguidos. Jo ão de D am asceno é citado na história da teologia p o r várias contribuições, m as acim a de tu d o p o r ter fornecido o fu n d a m e n to lógico e a justificativa teológica para o em p reg o de ícones na adoração. Por seus escritos em favor dos ícones, a igreja oriental en c o n tro u a m aneira de rein stitu í-lo s sem im plicar idolatria. Jo ão nasceu cm D am asco, na Síria, en tre 645 e 675 e m o rre u p o r volta de 750. Passou parte da vida adulta n o m osteiro cham ado São Saba, p erto de Jerusalém . Seus “discursos notáveis em defesa dos santos ícones [sir ] atraíram a atenção geral” de todo o Im p ério B izan tin o .18 Esses discursos ficaram conhecidos co m o Discursos contra os iconoclastas e foram escritos e n tre 726 e 730. N eles, o m onge enfatizou a m udança radical q u e o co rreu , pela encarnação, n o relacionam ento de D eus com o m u n d o visível e físico. D eu s o u to rg o u à existência m aterial um a nova função c dignidade para q u e objetos pudessem refletir seu divino Ser. D e acordo com João, “antes, D eu s, sem corpo o u form a, não podia ser representado de m o d o algum . M as hoje, depois de ter aparecido em carne e habitado en tre os hom ens, ten h o o direito de rep resen tar o aspecto visível de D eus. [...] N ã o venero a m atéria, m as
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ven ero o C riad o r da m atéria, que se to rn o u m atéria p o r am o r a m im , q u e se reves tiu da vida na carne e q ue, através da m atéria, co n su m o u m in h a salvação”.19 Jo ão passou a ju stificar o uso de ícones na adoração ao fazer a distinção sutil, p o rém im p o rtan te, en tre a adoração p ro p riam en te dita de u m a pessoa o u objeto e a m era veneração — u m certo respeito p o r algum a coisa, p o r ser dedicada a D eu s e perm eada p o r sua energia espiritual. A adoração absoluta, q u e Jo ão designou pela palavra grega latria, só pode ser prestada a D eu s, ao passo q u e a proskyttesis, ou reverência, pode ser prestada às santas im agens p o rq u e são canais sacram entais da energia divina. A m aneira de João enxergar os ícones afetou p ro fu n d am en te o Se g u n d o C o n cílio de N icéia em 787, q u e foi o sétim o e ú ltim o concílio ecum ênico, segundo a ortodoxia oriental. O s bispos ali re u n id o s decidiram pela condenação dos iconoclastas: “A nátem a aos q u e não saúdam [veneram ] as im agens santas e veneráveis. A nátem a aos q u e cham am de ídolos as im agens sagradas”.20 Jo ão D am asceno tam bém é co nhecido co m o o ú ltim o dos grandes pais da igreja da tradição ortodoxa oriental. N ã o so m en te d efen d eu os ícones e forneceu sua justificação teológica — u m p o n to crucial para o culto o rtodoxo oriental — m as tam bém escreveu a p rim eira grande sum a da teologia ortodoxa cham ada Exposição da fé ortodoxa. N ela p ro c u ro u re u n ir toda a verdade cristã essencial e expressá-la da form a m ais atem poral possível. E m bora não co n ten h a nada de original, a Exposição co n tin u a sendo u m m anual de teologia o rtodoxa oriental q u e enfatiza a encarnação salvífica, a deificação da h u m an id ad e através de C risto e a essência inefável de D eus, além de toda a com preensão hum ana. E m bora a igreja ocidental, q u e considerava R om a seu centro, reconhecesse e aceitasse o sexto e o sétim o concílios ecum ênicos e considerasse tan to M áxim o q u an to Jo ão D am asceno grandes expositores da fé, no fim do século viu, os dois ram os da grande igreja separaram -se d efinitivam ente p o r causa de diferenças na form a de governo, nos estilos de culto e nos conceitos do credo trinitariano. O episódio final da história da divisão dessas duas grandes igrejas focalizará as ú lti m as e derradeiras causas da separação, especialm ente a grande controvérsia a res peito da cláusulafdioqiie q u e acab ׳ ׳: sendo incluída no Credo de Nicéia no O cidente.
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J á no fim do século viu e n o fim do século ix, as duas m etades da cristandade desenvolveram suas próprias culturas eclesiásticas e teológicas de tal form a q u e se to rn o u quase im possível um a verdadeira com unicação e co m p reen são en tre si. D ecerto, bispos e teólogos viajavam de C o n stan tin o p la para R om a e vice-versa, m as esses in tercâm b io s fre q ü e n te m e n te agravavam os d ese n te n d im e n to s e até m esm o criavam anim osidades. C o m o de co stu m e, a política d e se m p e n h o u papel im p o rtan te nesse ro m p im en to . O s im peradores bizantinos de C o n sta n tin o p la ain da consideravam seu rein o — cada vez m ais red u zid o pela invasão dos m u ç u lm a nos — o ú n ico im p ério cristão verdadeiro. Eles e seus bispos en ten d iam q u e o Im p ério R o m an o C ristão de C o n sta n tin o , T eodósio e Ju stin ia n o ainda existia e devia in clu ir o O cid en te. O s papas de R om a, n o en tan to , confiavam cada vez m ais nas tribos bárbaras cristianizadas, com o os francos da E uropa C en tral, para resta belecer o antigo Im p ério R o m an o no O cid en te. N o N atal de 800, u m papa coroou o rei dos francos, C arlos M agno, co m o im p erad o r do novo e revivificado Sacro Im p ério R om ano. O im perador bizantino, n o m ín im o , ficou consternado. Agora, p o rém , voltarem os nossa atenção para os aspectos teológicos da história do grande cism a en tre o cristianism o ocidental e o o rie n ta l.1 As duas tradições apresentam m uitas diferenças q u e não são especificam ente teológicas. Por exem plo, a igreja oriental sem pre p erm itiu que os sacerdotes se casassem . O celibato clerical é exigido so m en te dos m onges. O s bispos ortodoxos orientais são tradici on alm en te escolhidos d e n tre os m onges, p o rtan to , celibatários. O sacerdote sim ples de paróquia, no en tan to , tem perm issão para se casar antes de ser o rdenado. Se for solteiro na ocasião de sua ordenação, deve p erm an ecer assim . A tradição cató lica ro m an a desenvolveu p aulatinam ente a prática do celibato clerical universal, de m o d o que todos os sacerdotes da igreja devem perm an ecer solteiros e castos. Exis tem , no en tan to , exceções a essa regra. A lei canônica do catolicism o ro m an o ad m ite “dispensações especiais” — exceções à regra — e p o r isso alguns sacerdotes
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são casados. A n o rm a, n o en tan to , é o celibato clerical. Essa não é um a diferença teológica im p o rtan te en tre os dois ram os. Ela d ese m p e n h o u u m papel pouco ou nada relevante n o cism a q u e os separou definitivam ente. D a m esm a form a, exis tem várias outras diferenças, de pouca conseqüência, en tre estilo de culto, in ter pretação c prática dos sacram entos e crença a respeito do cânon das Escrituras, da vida depois da m o rte e dos santos, diferenças com as quais o O rie n te e o O cid en te poderiam ter ap ren d id o a conviver. O s verdadeiros m otivos do cism a achavam -se em o u tro lugar e não nessas diferenças aparentes e bastante superficiais. Talvez a causa fundam ental do cism a fosse a que o historiador eclesiástico Jaroslav Pelikan d e n o m in o u “alienação intelectual”. Isto é, as duas partes sim plesm ente ficaram tão diferentes em atitudes e form as de pensar que o en te n d im e n to se tor n o u im possível. C ada u m a lia e citava so m en te seus pró p rio s pais da igreja. Agos tin h o d o m in o u 110 O cid en te, em bora fosse lido e in terp retad o pela versão bastante distorcida do agostinism o de G regório, o G rande. O O rie n te re co rreu a Ireneu, O ríg en es, Atanásio, aos pais capadócios, C irilo, M áxim o, o C onfessor, e outros pais e teólogos im pregnados com um tipo de teologia m ística e especulativa. O O c id e n te insistiu na soberania exclusiva da graça e ad i.iitiu u m m o n erg ism o m o dificado. O O rie n te insistiu 110 livre-arbítrio e 110 conceito sinergista da salvação. M as, acim a disso, co n fo rm e observa Pelikan: “N ã o so m en te um a o u o u tra idéia grega, m as seu p ró p rio m éto d o de teologizar era estran h o aos latinos”.2 E o m esm o podia se dizer dos gregos em relação às idéias latinas. O padrão grego oriental de teologizar era m ais m ístico e especulativo e enfatizava a autoridade da adoração, da piedade po p u lar e do acú m u lo inform al e verbal da tradição cristã oriental. O pa drão latino ocidental de teologizar era m ais legalístico e prático e enfatizava a au to ridade dos códigos escritos e norm as objetivas. Talvez as causas teológicas im ediatas do cism a p u dessem ser superadas, não fossem as diferenças m ais profundas na cultura, na política e nas m entalidades do O rie n te e do O cid en te. As duas partes, no en tan to , atrib u em o cism a final, n o qual um a excom ungou a outra, a duas controvérsias principais: autoridade papal efilioque. Até o p resente, os bispos da Igreja O rto d o x a O rien tal e os da Igreja C atólica R o m ana não conseguem chegar ao e n te n d im e n to no tocante a essas questões, em bora am bos se refiram duas igrejas com o as “duas m etades da cristandade”. Até a data da escrita d o presen te livro, n o en tan to , ainda não alcançaram a c o m u n h ão eucarística.
A controvérsia a respeito do papado O s cristãos ocidentais dos séculos rx e x olhavam para o O rie n te e viam um im pera d o r governando a igreja. A isso deram o nom e de cesaropapism o: “C ésar é papa”. Acreditavam firm em ente que o bispo de R om a era o sucessor de Pedro, seguindo a sucessão apostólica, porque Pedro tinha sido o prim eiro bispo de Rom a, segundo a
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tradição eclesiástica. C o m o Je s׳is entregou a Pedro as chaves do reino do céu (M t 16.18,19) e p ro m eteu que edificaria sua igreja sobre “esta pedra” (que a igreja de R om a in terpretou com o sendo Pedro), acreditavam que todos os bispos de Rom a teriam prim azia sobre toda a it, . |a de Jesus C risto até seu retorno. O s bispos ociden tais, portanto, resistiram ao poder im perial sobre a igreja e a teologia e insistiram que m esm o os im peradores com o arlos M agno deviam se curvar diante da autoridade do papa em todas as questões ·. spirituais e talvez m esm o nas questões tem porais. O s cristãos orientais dos séculos ix e x olhavam para o O c id e n te e viam o bispo de um a única grande sé da cristandade ten tan d o d o m in ar todas as outras de m o d o ilegítim o. A cusavam os latinos de ten tar forçar toda a cristandade a aceitar a “m o narquia papal” e resistiam às tentativas feitas pelo bispo de R om a de d o m in ar o O rie n te . A p artir de O rígenes, os bispos e teólogos orientais in terp retaram “a p e d ra” da qual Jesu s falou com o a fé de P edro e não u m a referência ao p ró p rio Pedro, m u ito m enos aos bispos de R om a, m esm o q u e P edro tivesse sido o p rim eiro deles. S eg u n d o o teólogo o rto d o x o o riental J o h n M eyendorff: “T odo o debate en tre O rie n te e O c id e n te pode, p o rtan to , ser re d u zid o à questão: a fé dep en d e de Pedro ou Pedro d ep en d e da fé?”. A igreja ocidental considerava to d o bispo ortodoxo, e não apenas o bispo de R om a, verdadeiro sucessor de P edro e as grandes sés da cristandade — R om a, C o n stan tin o p la, A ntioquia, A lexandria e Jeru salém — iguais em dignidade, p o d er e autoridade. O O rie n te estava disposto a reco n h ecer o p atri arca de R om a co m o o “p rim eiro e n tre iguais”, m as considerava esse títu lo p u ra m en te honorífico. O patriarca de R om a rejeitou-o. M ey e n d o rff diz q ue a principal causa d o ro m p im e n to c a razão p o r q u e ele n u n ca pôde ser desfeito está basicam ente nas diferentes posturas em relação ao governo eclesiástico: “O desen v o lv im en to m edieval da prim azia ro m an a co m o referência decisiva nas q uestões d o u trin árias contrastava m arcadam ente com o conceito da igreja q u e prevalecia 110 O rie n te . N ã o poderia, p o rtan to , haver acordo sobre as questões em si e nem na m aneira de solucioná-las, e n q u a n to existisse divergência sobre a idéia de autoridade na igreja”.4 U m exem plo de questão aparen tem en te secundária, mas q u e não podia ser re solvida p o r causa dessa diferença básica n o tocante à autoridade eclesiástica é a disputa das igrejas oriental e ocidental, 110 século ix, a respeito do uso de (pães asm os) 11 a eucaristia. Isso pode parecer u m p o n to insignificante para os cristãos dos tem pos m o d ern o s, especialm ente para os protestantes, m as naquela ocasião, tratava-se de u m assunto sério. As igrejas ocidentais usavam azytnes na c o m u n h ão ou ceia do Senhor, ao passo q u e as igrejas orientais usavam pães levedados. C ada parte considerava a prática da o u tra um a inovação d en tro da tradição cristã. O O cid en te acusava o O rie n te de afastar-se das práticas bíblicas, ao passo q u e o O rie n te acusava o O c id e n te de insistir nos pães asm os p o r estar preso às práticas judaicas e p o r não
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ter descoberto a liberdade da N ova Aliança. As duas partes estavam convictas de q u e essa diferença era su ficien tem en te relevante para necessitar reconciliação, mas o bispo ro m an o insistiu que a decisão seria sua, ao passo q u e os bispos orientais insistiram q ue ele não tinha o direito de lhes im p o r práticas eucarísticas.
A controvérsia filioque Sem dúvida, a grande discussão teológica en tre o O rie n te e o O c id e n te , que c o n trib u iu para a m ú tu a e definitiva exco m u n h ão , dizia respeito à cláusulaJilioque na versão latina do Credo niceno. P raticam ente, todas as pessoas con co rd am que, na versão grega original do Credo de 381, não constava a cláusula “e do F ilho” (filioque) depois do trech o que declara q u e o E spírito Santo procede “do Pai”: C reio no Espírito Santo, Senhor, doador vida, e proccdc do Pai (e do F ilh o )׳, e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: que falou pelos Profetas.
A frase en tre parênteses e o Filho é tradução da palavra latinafilioque e aparece em quase todas as versões ocidentais d o Credo niceno. C o m o ela apareceu ali? Isso n in guém sabe com certeza. E, q u an d o os bispos orientais to m aram co n h e cim en to disso em C o n stan tin o p la p o r volta de 850, quiseram rem over a frase p o r duas ra zões. E m p rim eiro lugar, protestaram dizen d o q u e o O c id e n te não tinha o direito de alterar o credo básico da cristandade sem co n su ltar a igreja oriental. Em segun do lugar, arg u m en taram que essa frase revelava um a p ro fu n d a diferença teológica en tre as idéias orientais da Trindade, q u e consideravam as únicas verdadeiram ente ortodoxas, e as ocidentais, fundam entadas no pen sam en to agostiniano, q u e consi deravam heterodoxas (não ortodoxas e próxim as da heresia). M e y e n d o rff explica a posição oriental, q u e p erm anece a m esm a até hoje: O s bizantinos consideravam a questão do filioque o ponto crítico do desacor do [entre o O riente e o O cid en te]. N a opinião deles, ao aceitar um credo interpolado, a igreja latina estava se op ond o tanto ao texto adotado pelos co n cílios ecum ênicos com o à declaração da fé cristã universal e atribuindo auto ridade dogmática a um con ceito incorreto da Trindade.5
E m toda essa controvérsia do filioque o que realm ente aconteceu, q u an d o , onde e q u em participou p erm anece u m m istério. As origens docu m en tárias históricas não são claras. O s historiadores eclesiásticos orientais contam u m a história dife ren te daquela dos historiadores eclesiásticos ocidentais. A única coisa q u e se pode
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dizer com certeza é q u e a frase foi oficialm ente acrescentada ao credo, na sua tra dução latina, p o r u m sínodo espanhol re u n id o em T oledo em 589. A ntes disso, a frase já era co m u m e n tre os m onges n o O c id e n te e alguns arg u m e n tam q u e o pró p rio A gostinho a prom ovia, o q u e é im provável, em b o ra ele realm ente tenha declarado, em Da Trindade, a processão do E spírito pelo Filho. Seja co m o for, os bizantinos to m aram co n h e cim en to disso pela prim eira vez em Jeru salém quando, então, u m g ru p o de m onges latinos chegou ali da E uropa em rom aria e recitou o credo com a frase interpolada. Já em m eados do século ix, notícias a respeito da m udança da versão ocidental chegaram a C onstan tin o p la e enfureceram igualm ente o im p erad o r e o patriarca dali. E m bora concordassem que, em teologia, é possível dizer q u e o E spírito procede “do Pai pelo F ilh o ”, con d en aram o acréscim o u n ilate ral de ftlioque ao credo feito pelo O c id e n te e argum entaram q u e é heresia dizer que o E spírito procede “d o Pai e do F ilho”. E m 809, u m sín o d o em A achen, na A lem anha, declarou herética a versão grega do C re d o N ic e n o q u e om itia a frase “e do F ilho” e exigiu q u e os cristãos de todos lugares en unciassem essa declaração e a incluíssem ao credo. Até m esm o o papa dessa época rejeitou essa m edida extrem ada e te n to u evitar u m cism a aberto com o O rie n te , ao p ro m o v er o uso do Credo apostólico, o u A ntigo S ím bolo R om ano, em vez do Credo niceno. M as era tarde dem ais para isso. O Credo de Nicéia, com a cláu sula ftlioque, já tin h a se dissem inado no O c id e n te e todos o consideravam o rto d o xo. Em reação à condenação feita pela igreja ocidental à om issão dessa cláusula no credo, os bispos e im peradores do O rie n te com eçaram a acusar de heréticos o papa e os bispos d o O cid en te. N o fim , cada um a das partes declarou q u e a o u tra estava excom ungada da G ran d e Igreja. O patriarca de C o n sta n tin o p la em 1054, M iguel C eru lário , declarou a respeito do bispo de R om a: “O papa é herege!”.6 O s repre sentantes do papa Leão ix em C o n sta n tin o p la en traram na catedral da H agia Sofia, colocaram n o altar-m o r u m a declaração q u e excom ungava o patriarca e todos os bispos em c o m u n h ão com ele e depois saíram . Esse ro m p im e n to n u n ca foi p erd o ado. O q u e estava realm en te em jo g o na co n tro v érsia d o ftlioque? C e rta m e n te havia m u ito re sse n tim e n to n o O rie n te p o r causa da alteração u n ilateral d o cred o feita pelo O c id e n te . E, da parte dos bispos latinos, havia ran co r p o rq u e o O rie n te não estava disp o sto a reco n h ec er q u e o O c id e n te tin h a o d ireito d e ter suas próprias tradições. N o e n tan to , as causas m ais p ro fu n d as d o co n flito re m o n ta m ao âm ago da teologia trinitarian a. P au latin am en te, e quase sem perceber, as duas m etades da cristand ad e d esenvolveram m o d o s d iferen tes de pensar e falar a respeito d o D eu s trino. A abordagem ocidental fundam entava-se na teologia de A gostinho. A aborda gem oriental fund am en tava-se na teologia de O ríg en es e dos pais capadócios. A
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teologia ocidental da T rindade com eçava com a un id ad e divina da substância e, a partir daí, explicava o aspecto tríplice. A ênfase estava no ser ú nico de D eus p o r trás das pessoas do Pai, do Filho e do Espírito Santo. As três pessoas eram freqüentem ente consideradas m anifestações da única subsistência divina q u e todas as três com par tilh am igualm ente. O E spírito S anto era considerado o vínculo de am o r en tre o Pai e o Filho. A gostinho pôde dizer em Da Trindade q u e o E spírito procede do Pai e do F ilho p or causa da função unificante da existência do E spírito. N a eterna D eidade, o E spírito é o p rin cíp io unificante e, assim , em certo sen tid o “procede d o ” Pai para o F ilho e do Filho para o Pai. Seria natural, portan to , dizer q u e o E spírito é enviado ao m u n d o tan to pelo Pai q u an to pelo Filho. Para o O rien te, que se fundam enta na teologia de O i ígenes e dos pais capadócios, o co nceito ocidental da T rindade su b en ten d ia um su b o rd in acio n ism o do Espírito. S egundo eles, era co m o se despersonalizasse o E spírito Santo. Sua própria tradição de p en sam en to trin itário era enfatizar a m o n arq u ia d o Pai, para q u e tan to o Filho co m o o E spírito en c o n trem sua origem , princípio e causa etern am en te nele. A idéia ocidental do E spírito pro ced en d o do Filho, para eles, significava q u e o Espí rito en co n tra sua origem , princípio e causa tanto no F ilho com o 110 Pai. Esse c o n ceito detrai a m o n arq u ia do Pai e su b en ten d e q u e o E spírito é “filho” do Filho de D eus da m esm a m aneira q u e o Filho de D eus é o Filho d o Pai. O resultado seria um a distorção com pleta da o rd em tradicional da co m u n id ad e trina. D o p o n to de vista dos orientais, era u m ultraje tanto para o Pai com o para o E spírito e m isturava o Filho com o Pai. O s bispos e teólogos orientais, p o rtan to , consideraram o acréscim o da cláusula filioque ao Credo niceno 110 O c id e n te u m a evidência da d o u trin a heterodoxa da T rin dade. Para eles, o cred o m anifestava um a visão quase m o d alista da T rin d ad e (sabelianism o) p o rq u e não tratava com ju stiç a a distinção e n tre as três pessoas nos seus relacio n am en to s e procurava identificar a divindade das três pessoas com um a substância abstrata em co m u m , e não com o p ró p rio Pai. A lém disso, ele tam b ém m anifestava u m su b o rd in acio n ism o d o E spírito S anto de tal form a que ficava difícil reco n h ecer o E spírito co m o u m a pessoa distinta, em pé de igualdade com o Filho. O s bispos e teólogos ocidentais, p o r sua vez, consideraram a rejeição da cláusu la filioque do Credo de Nicéia p o r parte do O rie n te u m a evidência da heterodoxia d ou trin ária oriental q u an to à d o u trin a da Trindade. R essaltaram textos 110 N o v o T estam ento q u e claram ente falam que o E spírito foi enviado à igreja por Jesu s e acusaram o O rie n te de su b o rd in ar tan to o F ilho q u a n to o E spírito ao Pai. Alguns teólogos m o dernos, so b retu d o os protestantes, sugerem q u e toda a c o n trovérsia se resum e em alguns m al-en ten d id o s básicos e nas tentativas de p erscru tar exageradam ente a vida in terio r e eterna da T rindade (Trindade im an en te). Eles
O G ran d e ( js m a transform a um a tradição em duas
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sugerem q u e o ftlioque deve ser afirm ado q u an d o os cristãos se referirem à T rinda de econôm ica — a relação das pessoas trinas com o m u n d o na H istória e para a salvação. N esse c o n ju n to de declarações a respeito da T rindade, confessa-se o Es pírito com o enviado pelo Filho, e até a própria Igreja O rto d o x a O rie n ta l afirm a q u e o E spírito procede “do Pai pelo F ilh o ”. M as, dizem os pensadores protestantes m o d ern o s, q u an d o a referência disser respeito à T rindade im an en te — à vida inte rio r da D eidade na etern idade, à parte do m u n d o — talvez seja m elh o r ficar com o texto original do C re d o de N icéia e sim plesm ente dizer q u e o E spírito procede do Pai da m esm a form a q ue o F ilho é etern am en te gerado pelo Pai. P ortanto, o uso da frase e do Filho d ep en d e do contexto do significado. C o m o cism a en tre do O rie n te e o O cid en te, term in a a história dos pais da igreja. A lguns diriam q ue te rm in o u m u ito antes, m as para os propósitos deste es tu d o , ela só chega ao fim agora. P orém , isso não significa q u e história da teologia cristã term in o u . Ela co n tin u a depois de 1054 n o O c id e n te com o ren ascim en to de da teologia criativa cham ada escolasticism o, q u e d u ro u p o r to d o o perío d o m ed ie val. N o en tan to , ela é u m a fase transitória da história da teologia, já q u e a d o u trin a cristã quase não sofreu inovações nesse período. O s teólogos escolásticos não esta vam interessados em p ro m o v er o d esenvolvim ento da teologia católica, m as ape nas em sistem atizá-la e sum ariá-la e d em o n strar co m o ela era consistente com o que havia de m elh o r na filosofia. N o en tan to , o “m elh o r na filosofia”, então, tinha se to rn ad o sin ô n im o do pensador grego A ristóteles — o alu n o de Platão na Atenas antiga. Passarem os para essa fase transicional da história da teologia cristã em nossa viagem até a história dos grandes reform adores da igreja.
S exta P arte A sa g a d a r a in h a d a s c iê n c ia s : O s escolásticos reavivam e entronizam a teologia
.L /e p o is de longa seca na criativ id ad e da teologia cristã, c o m e ç o u u m novo florescim en to da reflexão intelectual a respeito de D eus e da salvação n o O c id e n te n o século xi. A teologia escolástica, com o é n o rm a lm e n te ch am ad o o renas cim en to d o p en sam en to , b ro to u das grandes o rd en s m onásticas reform adoras fu n dadas na E uropa e floresceu nas novas universidades, co m o a de Paris e a de O xford. As universidades eram , de início, sim p le sm e n te grupos de estu d io so s in d e p e n den tes q u e ingressavam nas escolas das grandes catedrais e m osteiros. A lguns eram m onges, m as boa parte dos estudiosos da era m edieval era form ada p o r leigos que tin h am recebido educação clássica nas escolas das catedrais ou nos m o steiro s sem nu n ca, en tre tan to , fazer os votos o u ser ordenados. N o e n tan to , esperava-se que vivessem co m o sacerdotes e m onges. O celibato, assim co m o a castidade, a p o breza e a obediência à igreja, eram n o rm as até m esm o para eles. G ra d u alm en te, p o rém , h o m en s de b o m nível cu ltu ral, de sabedoria e com boa capacidade d id áti ca fo rm aram associações para seu su sten to e se estabeleceram em lugares p ró x i m os para aten d er aos alunos e se desenvolverem cu ltu ra lm en te . Esses gru p o s de estu diosos e alu n o s desenvolveram -se até fo rm arem as universidades da E uropa m edieval. C o m as escolas de catedrais e os m osteiros surgiu um novo tipo de teologia, con h ecido com o escolasticism o. Seus intelectuais e m estres são cham ados esco lásticos. O p ró p rio te rm o é derivado da palavra latina scltola (escola) em latim . N a tu ra lm e n te , é a m esm a palavra q u e dá o rig em a escolástico e escolado. M as o escolasticism o p ro p riam en te dito designa um a abordagem específica da teologia cristã q u e passou p au latinam ente a d o m in ar o O c id e n te , de 1100 ao seu declínio nos séculos xiv e xv. O s historiadores da igreja e os teólogos históricos não são un ân im es a respeito da definição exata do escolasticism o e n em seq u er de suas características universais. M as, na idéia geral, eles são m ais categóricos. A m aioria concordaria em d izer q u e “o escolasticism o foi basicam ente o m o v im e n to que
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p ro c u ro u d em o n strar m etodológica e filosoficam ente q u e a teologia cristã c essen cialm ente racional e co e ren te”1 110 contexto da E uropa m edieval. C o n fo rm e já vi m os, a racionalidade era u m ideal de m u ito s pais da igreja. A gostinho, sem dúvida, pensava dessa form a e esforçou-se para apresentar em seus escritos um a explicação consistente e racional da fé cristã. A teologia escolástica m edieval, no en tan to , deu nova dim ensão à preocupação com a racionalidade na teologia. Para m u ito s teólogos e filósofos escolásticos m edievais, o raciocínio h u m an o podia, com a ajuda da graça de D eus, descobrir as respostas para v irtualm ente to das as perguntas de real im portância q u e se podia im aginar. Sua epistcm ologia (teoria d o co n h e cim en to h u m an o ) era otim ista. A lguns críticos diriam q u e era dem asiadam ente idealista e que, su tilm en te, colocava o intelecto no ce n tro de toda a reflexão teológica, de tal form a q u e a fé, o m istério e até m esm o a revelação divina acabavam ficando de lado o u eram subjugados pela lógica e pela especula ção. Essa crítica não se aplica a todos os escolásticos. A lguns procuraram usar a razão para criticar a ela m esm a e para d e m o n strar q u e a revelação e a fé são neces sárias para en ten d e rm o s D eus, o m u n d o e a salvação plenam ente. N o entanto, co m o generalização, é verdade q u e “ 110 auge do escolasticism o, quase tu d o era considerado acessível à cognição e classificação h u m an as”.2 Todos os grandes p en sadores escolásticos concordavam q u e a razão h u m an a só pode funcio n ar com per feição d en tro do âm bito da fé e ten d o p o r alicerce a revelação divina nas Escrituras e na tradição da igreja. P orém , de form as diferentes, tentaram edificar grandes “catedrais de idéias” — edifícios arquitetônicos de proposições a respeito de D eus, do m u n d o e da salvação — que ocupassem lugar de destaque nos currículos das universidades m edievais. A teologia deveria ser entronizada co m o a R ainha das ciências para q u e todas as disciplinas (scientia) das universidades fossem guiadas ou m esm o determ inadas p o r ela. Três características co m u n s do escolasticism o m edieval destacam -se p o r sua im portância na tentativa de c o n trib u ir para a história da teologia cristã. Em p rim eiro lugar, co n fo rm e já foi notado, ele abraçou com paixão a razão com o o cam inho para o co n h ecim en to , m esm o d en tro da teologia. O lem a da m aioria dos escolásticos era “a fé em busca de e n te n d im e n to ” o u “creio para c o m p re e n d e r”. A gostinho dissera a m esm a coisa, m as os escolásticos m edievais (que tinham alta consideração por A gostinho) ressaltavam e enfatizavam o “c o m p re e n d e r” e in terp retav am -n o com o a atividade racional e intelectual da m en te guiada pelas regras rigorosas da lógica. U m a segunda característica co m u m do escolasticism o m edieval é a grande p re ocupação em d esco b rir a relação correta en tre as filosofias não-cristãs e a revelação divina. N o auge do escolasticism o 110 século x iii, as obras d o antigo filósofo grego, A ristóteles, foram redescobertas e traduzidas para o latim . A m aior parte da teolo gia cristã tin h a u sado Platão e as várias form as d o p lato n ism o co m o principal
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interlocutor. O escolasticism o co n ten d eu m ais com A ristóteles, q ue tinha sido aluno de Platão em Atenas e ro m p id o com seu m e n to r em várias questões filosóficas significativas. A m edida q u e a filosofia de A ristóteles foi redescoberta nas universi dades islâm icas e cristãs da E uropa, os teólogos escolásticos esforçaram -se para d em o n strar a com patibilidade in eren te das idéias dos principais dos filósofos com as verdades do cristianism o. A terceira e ú ltim a característica co m u m da teologia escolástica m edieval era o em p reg o de certo estilo de en sin ar e escrever cujo en fo q u e consistia em grandes com entários sobre teólogos e filósofos do passado, que eram analisados p o r m eio da dialética — o m éto d o de postular u m problem a ou questão e, então, debater seus vários aspectos, inclusive objeções às respostas padronizadas, para depois p ro por a solução. O p rim eiro grande teólogo escolástico, A nselm o de C antuária, es crevia na form a de orações e de diálogos. N as duas form as, incluía m uitas p e rg u n tas — às vezes dirigidas a D eus, outras vezes, a u m in terlo cu to r im aginário — e, em seguida, abria u m a discussão sobre todas as respostas possíveis a fim de desco b rir as soluções verdadeiras red u zin d o as outras ao absurdo lógico. O m aior pensa d o r escolástico de todos, Tom ás de A quino, escrevia apresentando u m a proposição ou p ergunta, p o stu lan d o objeções e respostas tradicionais de autoridades aceitáveis e, em seguida, arg u m e n tan d o em favor da única verdade lógica possível. Todos os escolásticos m edievais atribuíam altíssim o valor à lógica. N e n h u m a afirm ação o u proposição ilógica podia ser considerada verdadeira. A lógica era a ferram enta básica da teologia para se chegar às respostas corretas de todas as per guntas concebíveis e elim in ar as respostas falsas. Todos os escolásticos adm itiam que a lógica era um a dádiva de D eus para a m en te que a conectava ao m u n d o e ao pró p rio D eus. T odos acreditavam q u e seria possível à m en te co n stru ir u m sistem a abrangente e co m p letam en te coerente de proposições sobre toda a realidade — inclu in d o D eu s — q u e fosse cristão no sentido de ser fiel à revelação c à tradição divinas e in telectu alm ente su p erio r a todas as cosm ovisões alternativas e concor rentes. O escolasticism o, então, buscou a grande síntese da verdade para servir de alicerce para a estru tu ra cultural unificada da E uropa católica. E m outras palavras, “o escolasticism o m edieval pretendia d em o n strar a total h arm o n ia da teologia cris tã com os o u tro s p en sam en to s e opiniões hum anas p o r m eio de u m reexam e de todos os aspectos da teologia cristã à luz da filosofia”.3 N ã o dev em o s co n c lu ir q u e o escolasticism o era u m a abordagem m o n o lítica da verdade. O s teólogos escolásticos não concordavam em m uitas questões. Al guns, co m o A n selm o , q u eria m usar exclusivam ente a lógica co m o serva e ferra m en ta da revelação divina ao c o n stru ir provas e sistem as proposicionais das idéias cristãs. Sob a in flu ên cia de noções platônicas e agostinianas d o c o n h e c im e n to e da realidade, A n selm o e o u tro s co m o ele consideravam o m u n d o físico o inim igo
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da realidade espiritual e da busca da verdade su p rem a e suspeitavam dos cinco sen tidos p o r não serem fidedignos e por estarem lim itados ao exam e do m u n d o físico. Tom ás de A quino, p o r sua vez, sob a influência da recém -redescoberta filosofia de A ristóteles, en ten d ia q u e os cinco sentidos funcionavam n o m u n d o físico co m o a “m atéria” básica da filosofia e da teologia. A lógica era útil som ente na interpretação dos dados fornecidos aos cinco sentidos ou à m en te através da revelação divina. Sem dados, a lógica não tem o q u e trabalhar. Para A nselm o, em contrapartida, sem lógica a m en te fica irrem ediavelm ente atolada na confusão dos dados. O u tra área de diversidade n o escolasticism o m edieval era a questão das p ro p o sições universais. As proposições universais são conceitos co m o “v erm elh id ão ” e “h u m an id ad e” q ue transcendem as coisas individuais. A verm elhidão é aquilo que todas as coisas verm elhas têm em co m u m . A hu m an id ad e é a característica que todos os seres h u m an o s partilham . O filósofo grego antigo, Platão, debateu a n atu reza das proposições universais e desenvolveu a teoria das form as, o que sugere q u e as proposições universais têm u m a existência real além das coisas individuais. Para Platão, a verm elh idão é u m a realidade da qual as coisas verm elhas participam . D e q u e o u tra m aneira poderíam os saber se u m a coisa é m ais verm elha ou m enos verm elha? Platão, no en tan to , estava m ais interessado em form as o u ideais co m o a verdade, a beleza e a bondade. O s escolásticos m edievais tam bém tin h am essa preocupação. U m a de suas g ran des preocupações na teologia filosófica era e n c o n trar um a form a de conceber as proposições universais de m o d o cristão. O que é a verdade, a beleza e a bondade? C o m o o cristão deve considerar essas proposições universais? A beleza realm ente está apenas nos olhos do observador? O u é u m a n o rm a verdadeira de algum a coisa fora da m en te h um ana? O u será apenas u m n o m e (term o ) que os seres hu m an o s atrib u em às coisas q u e lhes são agradáveis? O q u e se pode dizer da verdade? Existe algum a n o rm a genuína para a verdade ou ela tam b ém é relativa? As m esm as p er guntas p o d em ser postuladas n o tocante à bondade. Todas essas p erguntas são cruciais para a filosofia e, p ortanto, para a teologia segundo os escolásticos, q u e se recusavam a dividir e separar as duas disciplinas. M as eles não conseguiam en trar em acordo sobre a delicada e controvertida questão da natureza das proposições universais, e esse desacordo acabou co n trib u in d o para a derrocada do escolasticism o co m o m éto d o d o m in an te de reflexão teológica. N e m todos os pensadores cristãos do p erío d o m edieval p o d em autom atica m en te ser cham ados de escolásticos. A lguns m onges e bispos, especialm ente aq u e les q u e ten d iam ao m isticism o, criticavam d u ra m e n te os m éto d o s e interesses escolásticos p o r co n sid erá-lo s d em asiad am en te intelectuais, d esin tere ssan tes e irrelevantes para a vida espiritual. N o fim da era m edieval, q u an d o a R enascença d esp o n to u no século xv (pouco antes da R eform a p rotestante), m u ito s pensadores
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cristãos católicos se in titu la ra m h u m an istas, q u e em geral significava “an tiescolásticos”. O s h um anistas cristãos, com o E rasm o de R oterdã, acreditavam q u e o escolasticism o era u m a abordagem estéril e árida da verdade cristã, m u ito presa à especulação a respeito de questões e perguntas to talm en te im praticáveis. C o n tra o escolasticism o, eles postularam sua própria “filosofia de C risto ” q u e colocava a ética e a espiritualidade n o cen tro da teologia e da filosofia e tin h a os ensinos de C risto co m o m o d elo de reflexão cristã frutífera. A pesar disso, “desde o século xm, todos os debates eclesiásticos relevantes foram realizados de acordo com o estilo escolástico universitário. [...] Até m esm o aqueles q u e podiam se dar ao luxo de rid icu larizar o escolasticism o tiveram de reco n h ec er sua presença intelectual e enfren tá-la d ireta m e n te”.'' E p o r isso q u e o colocam os n o ce n tro desse capítulo transicional da história da teologia cristã. Até M artin h o L utero, q u e gostava de se referir ao escolasticism o m edieval co m o “a grande m ere triz” q u e seduz a teologia cristã para a especulação absurda, foi influenciado p o r ela e teve de levá-la em conta. A co n trib u ição dele e dos dem ais reform adores só pode ser com p reen d id a com o co n h ecim en to e e n te n d im e n to da teologia escolástica m edieval.
21 Anselmo e Abelardo especulam sobre os caminhos de Deus
.A .lg u n s historiadores da teologia cristã considerariam A nselm o e A belardo m e ros precurso res d o escolasticism o genuíno. O u tro s co n sid eram -n o s os prim eiros escolásticos. M as todos concordam q u e foram os p rim eiro s grandes pensadores cristãos do seg u n d o m ilênio da história da teologia cristã. J u s to G onzález escreve: “A nselm o foi, sem dúvida, o m aior teólogo de seu tem po. P reparou o cam in h o para os grandes escolásticos do século x i i i . [...] C o m A nselm o, co m eço u u m a nova era na história d o p en sam en to cristão”.1A fam a de A nselm o na história da filosofia ocidental se deve à form ulação d o cham ado arg u m e n to ontológico da existência de D eus, q u e já foi tem a de m u ito s livros. Esse arg u m e n to é u m exem plo m aravi lhoso do racionalism o escolástico e d o gênio de A nselm o. A teologia cristã, ele ap resen to u u m novo padrão de expiação (o sacrifício de C risto na cruz) e m o stro u co m o ele reconcilia D eus com a h u m anidade. E m b ora essa teoria ten h a vestígios antigos da teologia patrística, a versão de A nselm o, conhecida co m o teoria da expi ação pela com pensação, representa u m salto q u ântico em relação a q u alq u er d o u trina an terio r da obra reconciliadora de C risto cm n o m e de D eus e da h u m an id a de. A nselm o tam b ém é co n hecido p o r sua forte oposição ao co n tro le secular ou leigo da igreja pelos reis. C o m o arcebispo de C antuária, o m ais alto posto da Igreja C atólica na Inglaterra abaixo d o papa, A nselm o passou pelo exílio cm duas ocasi ões p o r recusar a o u to rg ar ao rei n o rm a n d o da Inglaterra autoridade sobre q u es tões eclesiásticas.
A vida e a carreira de Anselmo de Cantuária A nselm o nasceu em 1033 na cidade alpina de Aosta na Itália. Seu zelo p o r D eus e pela religião, desde cedo na vida, talvez ten h a sido resu ltad o da influência de sua piedosa m ãe, E rm en b erg a. N a infância e na ju v e n tu d e , e stu d o u com m onges ben ed itin o s e, em 1056, deixou sua casa para sem pre para ir estu d ar no fam oso m o steiro de Bec na N o rm a n d ia (França). T o rn o u -se m o n g e aos 27 anos e foi
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no m ead o p rio r do m osteiro, em 1063, aos trin ta anos. Por sua reputação de grande pensador, escritor c adm inistrador, A nselm o foi obrigado, contra a sua vontade, a se to rn ar abade do m o steiro de Bec em 1078. E n q u an to ocupava esse cargo, iniciou u m a carreira estelar de escritor, com seus dois grandes livros da teologia filosófica: Monologium (Monólogo ou Solilóquio) e Proslogium (Discurso). Essas obras contêm versões da fam osa prova ontológica da existência de D eus e ainda são publicadas, lidas e debatidas com regularidade nos cursos de filosofia secular. A inda com o abade de Bec, escreveu a Epístola sobre a encarnação cio Verbo. Em 1093, A nselm o foi elevado, contra a vontade, ao cargo m áxim o de arcebispo de C antuária, prim az (clérigo principal) de toda a Inglaterra. A nselm o q ueria recu sar a nom eação, m as foi obrigado a aceitá-la em decorrência de seu voto de o bedi ência com o m onge. O papa quis que ele exercesse esse papel e A nselm o não pôde recusar. Ele não queria ser arcebispo de C antuária p o rq u e os reis da Inglaterra, a partir de G u ilh erm e, o C o nquistador, tentavam co n tro lar a igreja com a nom eação de bispos. A nselm o ten to u im pedir essa “investidura leiga” e viveu em co n tín u o conflito com os governantes seculares do reino. N as duas vezes em que os reis ingleses fo rçaram -n o ao exílio, refugiou-se no m o steiro de Bec e em retiros nos Alpes italianos de sua infância. D u ran te esses exílios, escreveu vários livros, in clu sive a fam osa obra sobre a expiação, C urD eushom o? [Por que Deus se tornou homem?], além de Sobre a concepção virginal e o pecado original e Da processão do Espírito Santo. N o s ú ltim o s anos de vida, de volta a C antuária, A nselm o p ro d u z iu u m a grande obra escolástica, D a concordância entre a presciência, a predestinação e a graça com o livrearbítrio, na qual adota um a posição m u ito sem elhante à de A gostinho. A nselm o, na realidade, sem pre con siderou o grande bispo n o rte-africano u m m e n to r teológico e herói, e sua teologia geral foi fo rtem en te influenciada p o r A gostinho. A nselm o vo lto u a C antuária depois de seu ú ltim o exílio eni 1107. N o s últim os dois anos de vida, esforçou-se para im p o r o celibato clerical e debateu com o arce bispo de York a respeito da prim azia de C antuária. A nselm o m o rre u em 1109. A grande paixão de sua vida era resolver problem as intelectuais. E m b o ra fosse u m líder e ad m in istrad o r eclesiástico talentoso, considerava essas atividades secundá rias. U m trad u to r m o d ern o dos livros de A nselm o ilustra esse fato co n tan d o um a história: Em 1109, quando A nselm o foi inform ado dc que estava m orrendo, expres sou sua subm issão à vontade dc D eu s, mas acrescentou que acolheria com prazer uma prorrogação que lhe desse mais algum tem po de vida, até que pudesse solucionar o problema da origem da alma. Era típico desse hom em que seus últim os pensam entos não se relacionassem com a política ou com a organização da Igreja da Inglaterra, mas com as verdades sobre D eu s, suas m anifestações e seu relacionam ento com as criaturas.2
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O argumento ontológico de Anselmo a favor da existência de Deus A nselm o é m ais co n h ecid o na história intelectual secular pelas form ulações da prova da existência de D eus conhecidas por arg u m e n to ontológico. Existe um a história sobre a origem desse arg u m en to que relata co m o A nselm o o obteve em um a experiência de ilum inação, q u an d o cantava 110 ofício vesp ertin o com os d e mais m onges em Bec em 1076. A lguém lhe pediu q u e fornecesse um a explicação e defesa dos ensin o s básicos da fé cristã e estava co n tem p lan d o a existência de D eus e o m otivo p o r q ue salm ista diz n o Salm o 14: “D iz o insensato n o seu coração: N ão há D e u s”. N ão existiam ateus assum idos na época de A nselm o. A negação aberta da existência de D eu s traria o castigo rápido e severo a q u e m se m anifestasse. A igreja e o estado cooperavam m u tu a m e n te para executar as leis contra a blasfêm ia e o ateísm o era considerado blasfêm ia. N o en tan to , co m o era de seu feitio, A nselm o quis e n te n d e r p o r q u e o ateísm o era tão tolo. E estava curioso para saber se seria possível desenvolver um a prova lógica e irrefutável da realidade de D eus q u e não dependesse, de m o d o algum , da fé na revelação divina. A ilum inação q u e lhe ocorreu deu origem a dois livros cham ados Monologium e Proslogium, escritos em 1076 e 1078 respectivam ente. Esses livros co n stitu em o “p rim eiro tratado sistem ático de ‘Teologia N a tu ra l’ ou o estu d o filosófico de D e u s ” da história da teologia cristã.3 O ún ico p ropósito de A nselm o nesses livros era for necer u m relato e u m a defesa in teiram en te racionais dos fu n d a m e n to s da crença cristã sem n e n h u m apelo à fé o u à revelação divina. Era um novo em p re en d im en to para o pen sam en to cristão. “O que havia de novo e de relevante n o m éto d o desse livro [Monologium] era o esforço de convencer os leitores da veracidade das co n c lu sões q u an to à essência e aos atributos de D eus com argumentos racionais e não usando a au toridade das Sagradas E scrituras”.4 Se q u alq u er o utra pessoa, q u e não o grande abade de Bec, tom asse essa iniciativa racionalista, sofreria m u ito m ais críticas. N o en tan to , A nselm o obteve u m a reação negativa daqueles q u e discordavam tan to de sua m etodologia q u an to da lógica de sua argum entação da existência de D eus. A nselm o evitou m ais críticas ao escrever sua teologia natural em form a de o ra ção. Tanto Monologium q u an to Proslogium são endereçados a D eus 11 a form a de per guntas, reflexões sobre possíveis respostas e louvor p o r sua grande sabedoria e por partilhá-la com os seres h u m an o s m ediante a razão. C o m eles, A nselm o deixou claro, tan to a D eu s co m o aos seus leitores, q u e não estava com dúvidas e nem buscava e n te n d im e n to para p o d e r c re r em D e u s. N a d a disso. E screv eu em Proslogium: “N ã o ten to , ó S enhor, p en etrar 11 a tua sublim idade, pois de m o d o al gu m com paro o m eu e n te n d im e n to com ela; m as anseio para e n te n d e r até certo p o n to a tua verdade, q u e m eu coração crê e am a. N ã o busco, pois, e n te n d e r para crer, m as creio para com preender. Pois nisto tam b ém creio: q u e se não cresse, não
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en ten d eria”.5 O m éto d o teológico básico de A nselm o, portanto, não era racionalism o extrem ado, co n fo rm e alguns consideram , m as um a tentativa de colocar a lógica a serviço da revelação divina para fortalecer a fé. Está claro q ue A nselm o tam bém tinha propósitos específicos. Sua teologia n atu ral visava refutar o ceticism o sutil q u e surgia lentam ente em alguns círculos intelec tuais da Europa, bem com o nas teologias e filosofias alternativas dos ju d e u s e m u çulm anos. N o tem po de A nselm o, havia na Espanha com unidades m uçulm anas e judaicas com suas próprias escolas e com unidades intelectuais. Seus desafios às crenças cristãs com eçavam a ser sentidos em toda a Europa. A nselm o acreditava que tinha chegado a hora de fornecer um a explicação e defesa am plas e sistem áticas da fé cristã que não dependessem exclusivam ente de fontes cristãs. P ortanto, em Monologium e Proslogium A nselm o não apelou em n en h u m m o m en to às Escrituras nem à tradição cristã, m as som ente à luz da razão. P osteriorm ente, seguiu u m m étodo m u ito sem e lhante cm C ur Deus Itotno? [Por que Deus se tomou homem? ], on d e ten to u com provar a do u trin a da encarnação do p o n to de vista da necessidade da salvação e da sua provi são p or Jesus C risto. E m todas as grandes obras teológicas, portanto, A nselm o “es força-se, com fé, para e n ten d e r e, com en ten d im en to , para cre r”.6 E m Monologium e Proslogium, ofereceu pelo m en o s duas versões distintas da explicação da existência de D eus. A prim eira acha-se em Monologium e sustenta que a existência de D eus é necessária por causa dos diferentes graus de b ondade na criação. A m oda essencialm ente platônica, A nselm o ten to u d e m o n strar q u e deve haver o b rigatoriam ente u m ser su p re m o perfeitam ente b o m para q u e os seres h u m anos sejam capazes de discernir e realm ente acreditar em diferentes graus de bondade n o m u n d o q u e os rodeia. Sem o padrão perfeitam ente objetivo de b o n d a de, não haveria m aneira de distinguir en tre o q u e é “m e lh o r” e o q u e é “p io r”: “Existe, p o rtan to , u m ser ún ico que sozinho existe 110 m aior e m ais alto grau. M as o que é o m aior de todos e pelo qual tu d o dc bom o u grandioso existe e, re su m in do, tu d o tem algum a existência, necessariam ente é su p rem am en te bo m e grande e o m ais sublim e dc todos os seres existentes”.7 Em outras palavras, A nselm o partia do pressuposto q u e as pessoas são capazes de distin g u ir o bem m aior do m en o r na vida: “Isto é m elhor, aquilo não é tão b o m ”. São ju lg am en to s universais e, em m u ito s casos, proposições de fatos objetivos e não sim ples expressões de gosto pessoal. S egundo A nselm o, essas afirm ações não poderiam ser fatos objetivos se D eus não existisse. S o m ente u m ser co m o se acredita q u e D eus seja poderia fo rn e cer o padrão ou n o rm a suprem a para m edir as coisas ind iv id u alm en te seg u n d o seu grau de bondade. U m a coisa é boa na m edida em q u e reflete o ser e o caráter dc D eus c cu m p re a razão de sua existência d eterm in ad a p o r D eus. U m a coisa não é tão boa q u an d o não atinge seu propósito de refletir o caráter de D eu s e dc ser o que ele p retendia q u e fosse na o rd e m de sua criação.
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A n selm o n ão fico u in te ira m e n te satisfeito co m sua versão d o a rg u m e n to ontológico da existência de D eus. Por isso, em Proslogium, apresentou um a segunda versão que se estabeleceu co m o o arg u m en to definitivo. Q u a n d o as pessoas m enci onam o arg u m en to ontológico da existência de D eus, referem -se à segunda versão ou a algum a expressão posterior a ela. Ela é u m tanto sutil e, em geral, leva-se algum tem p o para co m p reen d ê-la após a prim eira leitura. A nselm o com eça, de m o d o tipi cam ente escolástico, fazendo a proposição: “R ealm ente D eus existe, em bora o tolo diga em seu coração: não há D e u s”. Ele continua na form a de oração, explicando por q ue a proposição é verdadeira. Ele louva a D eus p o r dar e n ten d im en to à fé e então confessa: “crem os q u e tu és u m ser tão grande, que não se pode conceber nada m aio r”.8 Essa confissão, e a definição de D eus nela contida, é absolutam ente crucial para o todo o arg um ento de A nselm o. Se não concordarm os que D eus, cuja existência A nselm o está ten tan d o com provar, pode ser considerado “u m ser tão grande que não se pode conceber nada m aior”, o argum ento não funcionará. Anselm o, no entanto, sim plesm ente acreditava q u e essa era u m a definição óbvia de D eus. N ão é, natu ralm en te, um a descrição detalhada de D eus, m as, no m ín im o , a palavra Deus deve incluir “u m ser tão grande, q u e não se pode conceber nada m a io r”. A nselm o passou, então, a d istin g u ir a existência u n icam en te n o intelectual da existência real. Ele queria provar q u e existir na realidade além d o e n te n d im e n to (m ente, intelecto) é m e lh o r do q u e existir apenas na m en te co m o u m pensam ento. Ele ilu stro u essa idéia com o exem plo de u m p in to r que, prim eiro, im agina um a p in tu ra e, depois, a executa. A conclusão é q u e a p in tu ra concretizada é m aior do q u e a im agem na m en te do pintor. Em seguida, A nselm o apresenta o argum ento: Assim , até m esm o o tolo [ateu] está convicto de que, pelo m enos intelectual m ente, existe algo tão elevado que não se pode conceber nada maior. Q u an do, pois, ouve esse argum ento, o entende. E tudo o que é inteligível existe no intelecto. E, certam ente, aquilo, que é tão elevado que não se pode conceber nada maior, não pode existir som ente no entendim ento. Pois, se existe apenas no entendim ento, tam bém pode ser con cebido para existir na realidade, que é mais elevada. Portanto, se aquilo, que é tão elevado que não se pode conceber nada maior, existe som en te no intelecto, o ser em si, que é mais elevado do que qualquer coisa que se possa conceber, seria algo do qual seria possível con ce ber uma coisa maior. M as obviam ente isso é im possível. Logo, indubita velm ente, existe um ser que é tão elevado que não se pode conceber nada maior e ele existe tanto 110 intelecto quanto na realidade.9
N o capítulo seguinte de Proslogium, A nselm o co n tin u a explicando o p o n to p rin cipal do argum ento: se D eus é tão grande q u e não se pode co n ceb er nada m aior,
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então não se pode dizer q u e ele não existe. P ortanto, q u em nega a existência de D eu s é u m tolo, p o rq u e está ten tan d o negar o p ró p rio ser cuja existência está c o n tida em sua definição. Se alguém p u d e r co n ceb er u m ser m aior d o q u e q u alq u er o u tro q u e possa ser co ncebido (e q u alq u er pessoa pode), então, terá de ad m itir que esse ser realm ente existe, caso contrário, poderia co nceber u m o u tro ainda m aior e q u e realm ente existisse. M u ito s críticos sugerem q u e A nselm o p erd eu -se em m eio às palavras. Isso não é verdade. Ele estava p reocupado em d em o n strar q u e o D eu s q u e criou toda a realidade, inclusive a m en te hu m an a, to rn o u im possível negar sua existência sem sair do âm bito da lógica. Para A nselm o, a lógica é u m “sinal de transcendência”, u m vínculo en tre os nossos pensam entos e os de D eus. Se fosse logicam ente pos sível negar a existência dele, haveria, segundo A nselm o, u m a im perfeição na boa criação divina. A lógica, na sua m elh o r expressão, aponta para D eus. E p o r isso que a Bíblia declara q ue so m en te o tolo pode negar a existência de D eus. O tolo é irracional. N eg ar a existência de D eus é irracional. E n q u a n to A n selm o vivia, alguns críticos ten taram su b v erte r seu arg u m en to . U m m o n g e ch am ad o G a u n ilo (ou G a u n iló n ) escreveu u m tratado, ch am ado Em favor do tolo, c o n tra o a rg u m e n to de A nselm o. Este, p o r sua vez, re sp o n d eu d e m o n stra n d o as falhas nas objeções de G a u n ilo e a m aioria dos lógicos co n co rd a com A nselm o e não com o crítico, em b o ra não aceite a validade absoluta do seu arg u m e n to onto ló g ico. Teólogos e filósofos p o sterio res deb ateram sobre o arg u m e n to o n to ló g ico em favor da existência de D eus sem chegar a u m co n sen so a respeito da sua força lógica. D e q u a lq u e r form a, parece q u e A n selm o foi o p ri m eiro teólogo cristão q u e te n to u desenvolver u m a exposição das crenças cristãs básicas fu n d am en tad a in teiram en te na lógica, sem n e n h u m apelo à revelação d i vina o u à fé. Essa foi u m a de suas principais c o n trib u iç õ e s para a h istó ria da teologia cristã.
A natureza de Deus segundo Anselmo D epois de apresentar a prova lógica da existência de D eus, A nselm o passou a expli car q u em era esse D eus cuja existência era necessária. Sem apelar às E scrituras ou a q u alq u er o u tra revelação especial, te n to u d em o n strar os atrib u to s q u e tal ser possuía. Ele tin h a de ser “o B em su p re m o ”, arg u m en to u A nselm o, e o B em su p re m o tin ha de ser tan to com passivo co m o im passível (im u n e às paixões). Se D eus não fosse com passivo, não seria su p rem am en te b om , m as se tivesse paixões (e m o ções), seria afetado pelas criaturas e, portanto, d ep en d en te delas, o q u e é im p ró p rio para u m ser q u e é tão grande que não se pode co nceber nada m aior. Assim , em um a passagem fam osa a respeito da natureza e d o caráter de D eus, A nselm o ofere ceu esta solução:
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Mas com o tu podes ser com passivo e, ao m esm o tem po, impassível? Pois, se és im passível, não sentes simpatia; e, se não sentes simpatia, teu coração não se aflige pelos desventurados, visto que isso seria com paixão. Mas se tu não és com passivo, de onde vem tamanho con solo para os desventurados? C o m o , portanto, podes ser com passivo c não com passivo, ó Senhor, a m enos que sejas com passivo em term os da nossa experiência e não da tua existência. C ertam ente, és assim cm term os da nossa experiência, mas não da tua pró pria. Pois, quando contem plas a nossa desventura, nós experim entam os o efeito da compaixão, mas tu não experim entas tal sentim ento. Logo, tu és tanto co m passivo por salvares os desventurados c poupares os que pecam contra ti, quanto impassível por não seres afetado de simpatia pela desventura.10
S eg u n d o A nselm o, D eu s não sente n e n h u m a em oção. A lém disso, não tem pen sam en to s discursivos, idéias q u e lhe “o c o rra m ” pelo processo de ded u ção ou que sejam alcançadas pelo processo de investigação o u pela inform ação. T udo isso im plicaria q u e D eu s é finito e d ep e n d en te. Para A nselm o e para a m aioria dos escolásticos. D eu s era u m a essência o u substância sim ples, atem p o ral, im utável e im passível, sem lim ites, corpo, partes o u paixões. D eu s atua, m as n u n ca sofre u m a ação.
A teoria da expiação pela compensação formulada por Anselmo A segunda grande co n trib u ição de A nselm o à história da teologia cristã acha-se no seu novo m o d elo da expiação. Expiação sim p lesm en te significa “reconciliação” e, na teologia, u su alm en te se refere ao ato de D eus em Jesus C risto o u ao ato de Jesus C risto com o ser h u m an o na cruz pelo qual os seres h u m an o s são reconciliados com D eu s e vice-versa. N o tem p o de A nselm o, a m aioria dos cristãos 110 O c id e n te pensava n o grande sacrifício de C risto na cruz sob a perspectiva da cham ada teoria do resgate. Ela foi definida de form a m ais clara pelo papa G regório, o G rande, por volta de 600, em b o ra m u ito s, antes e depois dele, ten h am acrescentado seus p ró prios retoques. G reg ó rio usou m uitas im agens para explicar o efeito q u e a m orte de C risto na cruz causou na h u m anidade, m as a q u e ele preferia era a da cruz com o “anzol”, 110 qual D eus colocava a “isca” Jesu s C risto , para engodar o D iabo e livrar a hu m an id ad e que ele m an tin h a cativa. S egundo G regório: contrapondo um artifício a outro, C risto livra o ser hum ano fazendo o D iabo exceder sua autoridade. C risto torna-se o “an zol”: sua hum anidade é a isca, sua divindade, o anzol, e Leviatã [Satanás] é fisgado. Porque o D iabo é orgu lhoso, não consegue entender a hum ildade de C risto e, assim, acredita estar tentando e m atando um sim ples hom em . Mas, ao infligir a um h om em in o cente a pena de m orte, o D iabo perde seus direitos sobre o h om em pelo
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“excesso de presunção”, C risto vence o reino d o pecado do D iabo e liberta os cativos da tirania dele. A ordem é restaurada quando o h om em volta a servir a D eu s, seu verdadeiro senhor."
A nselm o considerava essa teoria da expiação — q u e se to rn o u quase universal na pregação da Igreja C atólica R om ana d u ra n te toda a cham ada Idade das Trevas — u m ultraje co n tra D eus. P or ser m aior do q u e q u alq u er ser q u e se possa conce ber, D eus não precisa enganar o D iabo, pois não lhe é devedor. Se o ún ico p ro b le m a fosse q u e a raça h u m an a ficou cativa de Satanás e seu reino, D eus poderia sim p lesm en te invadir e conquistar esse reino e libertar toda a hu m an id ad e do cati veiro. N ão teria de barganhar n em usar tru q u es com Satanás. O u tra versão da teoria da expiação pelo resgate dizia q u e D eu s ofereceu C risto a Satanás com o resgate pela hum an id ade, m as Satanás ignorava que não poderia m an ter C risto no inferno. Q u a lq u e r q u e fosse a versão, A nselm o rejeitou a teoria do resgate por considerá-la im p ró p ria para a grande divindade de D eus, colocando D eus e Sata nás quase no m esm o plano. A nselm o procurava um a explicação para a expiação que respondesse p o r que Jesu s C risto tin h a de ser tanto verdadeiro h o m em q u an to verdadeiro D eus e que fosse tan to racional q u an to plen am en te consistente com as E scrituras e com a tra dição da igreja. O exílio de C antuária em 1098 ofereceu a A nselm o o tem p o neces sário e a o p o rtu n id ad e para escrever C ur Deus Ilorno? ou Por que Deus se tomou hotnem?. O livro foi escrito na form a de diálogo en tre A nselm o e u m am igo cham a do D o m Boso. A p erg u n ta fundam ental q u e debatem 110 livro é: “P or q u e e para q u e D eus se to rn o u h o m em e re d im iu os seres h u m an o s com sua m orte, se podia ter cu m p rid o o m esm o propósito p o r o u tro s m eios?”.12 D e m aneira tipicam ente escolástica, a resposta é revelada de form a gradativa e detalhada, com várias tan gentes e possíveis objeções levantadas ao longo do cam inho. A alternativa que A nselm o ofereceu à teoria d o resgate ficou conhecida p o r teoria da expiação pela com pensação, p o rq u e parte d o conceito m edieval de u m vassalo pagando com um a “com pensação” a u m senhor, q u an d o se d eu a q u eb ra do co n tra to feudal. A nselm o achou nesse co stu m e a analogia perfeita para explicar p o r que D eus enviou seu Filho na form a de h o m em para sofrer a m o rte do pecador, apesar de não ser peca dor. E m essência, a teoria diz q u e C risto pagou a dívida de toda a hu m an id ad e para com D eus p or causa da desobediência. A ju stiç a divina exige co m o pagam ento a com pensação, para q ue a o rd em do universo não seja quebrada. A com pensação necessária é um a espécie de dívida q u e a hu m an id ad e tem com a h o n ra divina, m as q u e é incapaz de pagar sem sofrer a perda total n o inferno. D eus, em sua m iseri córdia, oferece u m sacrifício perfeito em troca, q u e satisfaz sua própria h o n ra e que preserva a o rd em m oral do universo.
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N o fim de C ur Deus Hotno?, p o r m eio das palavras de Boso, A nselm o faz um resu m o da teoria da expiação pela com pensação: O âmago da questão era: por que D eu s se to m o u h om em para salvar os seres hum anos com sua m orte, quando poderia fazer isso de outra maneira. Ao responder a essa pergunta, você m ostrou, por m uitos argum entos con clusi vos, que a restauração da natureza humana não deve ser esquecida e que não aconteceria se o h om em não pagasse a D eu s o que lhe devia em razão do pecado. Mas essa dívida era tão grande que, em bora fosse exclusivam ente do h om em , som en te D eu s podia pagá-la, logo, a m esm a pessoa teria de ser tanto h om em com o D eu s. Por isso, era necessário que D eu s assum isse a natureza humana na unidade de sua pessoa, para que, aquele que por natureza tinha a dívida que não podia pagar, na Pessoa dele, pudesse pagá-la. Em seguida, você me m ostrou que o hom em que era D eu s tinha de provir de uma virgem e vir na pessoa do Filho de D eu s e m ostrou com o poderia provir sem pecado da massa humana pecadora. A lém disso, você estabeleceu com muita clareza que a vida desse hom em era tão sublim e e preciosa, que seria suficiente para pagar a dívida pelos pecados do m un do inteiro e infinitam ente m ais.13
O m o d elo que A nselm o oferece da expiação retrata a m o rte de C risto na cruz com o um a transação objetiva en tre D eus Pai e o Filho de D eu s, Jesu s C risto , em sua h u m anidade. A m o rte voluntária do ser h u m a n o inocente, q u e é, ao m esm o tem po, o p ró p rio D eu s d o universo, reconcilia o am o r de D eus e a sua ira porque a ju stiç a é feita de m o d o m isericordioso. A desobediência não é varrida para baixo do tapete, p o r assim dizer, m as não é necessário, tam pouco, q u e todos os pecado res paguem p o r isso com a m o rte eterna. A h o n ra de D eus é plen am en te satisfeita, a ju stiça cósm ica é restaurada e os seres h u m an o s que aceitam o sacrifício de C risto pelo arrep en d im en to , fé e sacram entos colhem seus benefícios integrais e são p er doados p or D eus. Ju sto G onzález observa q u e “o tratado de A nselm o m arcou época. A m aioria dos teólogos m edievais posteriores, em b o ra não seguissem todos os p o rm en o res desse tratado, in terp retaram a obra de C risto à luz d ele”.14 A teoria da com pensação sim p lesm en te su b stitu iu a teoria do resgate na teologia católica ro m an a graças a A nselm o. Além disso, d u ra n te a R eform a p rotestante n o século xvi, Jo ão C alvino apresen to u um a versão co m p letam en te bíblica do m o d elo de A nselm o que ficou conhecida p o r teoria da expiação pela substituição penal. E vários aspectos, é sim plesm ente um a versão atualizada da teoria de A nselm o, destituída do sim bolism o m edieval. M u ito s críticos d iscordam do pen sam en to de A nselm o e de C alvino a respeito da m o rte expiatória de C risto. Para alguns, a teoria é objetiva dem ais para incluir
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q u alq u er ação hum ana: nela, os seres h u m an o s parecem peões n u m a grande tra n sação cósm ica en tre D eus Pai e Jesus C risto. O u tro s co n sid eram -n a dem asiada m en te ju ríd ic a ou legalista para ressaltar o am o r de D eus. Para esses, ela se re strin ge m u ito à ho n ra de D eus, retratando D eus Pai co m o o rei feudal e Jesu s C risto c o m o o am igo com passivo q u e paga a dívida em n o m e de todos os seres h um anos. Esses m esm os críticos en ten d e m , tam bém , que a form ulação divide a Trindade en tre Pai e F ilho e deixa o E spírito totalm ente fora da equação. A teoria de A nselm o, da expiação pela com pensação, é m u ito debatida, m as seu im pacto global sobre a teologia no O c id e n te (católica e protestante) é p ro fu n d o p o rq u e parece tanto bí blica q u an to racional, a despeito de suas falhas.
A vida e os infortúnios de Pedro Abelardo U m dissidente, p erto dos tem p o s do p ró p rio A nselm o na história da teologia, foi o grande gênio escolástico m edieval Pedro A belardo. Provavelm ente, sabem os m ais a respeito de sua vida pessoal do q u e de q u alq u er o u tro pensador cristão antigo ou m edieval, à exceção de A gostinho. Isso p o rq u e A belardo escreveu um a au to b io grafia — u m ev en to raro antes dos tem p o s m o d e rn o s — q u e c o n tin u a sendo publicada com o títu lo A história dos meus infortúnios. A vida atorm entada e to rtu rad a de A belardo to rn o u -se até destaque de um film e de H ollyw ood que, infelizm ente, preferiu focalizar o lado escandaloso de seu rom ance com a bela H eloísa. S egundo todos os relatos existentes, A belardo foi u m dos grandes gênios da teologia cristã e tam bém u m filósofo em in en te. S egundo aparece, tam b ém era h o m em de grande c h a rm e e m a g n e tis m o p esso al, o q u e h o je c h a m a ría m o s d e p e rs o n a lid a d e carism ática. Tais características freq ü en tem en te se co m b in am para criar um a vida de tragédia e esse foi o caso de A belardo. O u as pessoas o am avam apaixonadam en te e eram ex trem am en te leais a ele e ao seu ensino o u o odiavam e queriam d estru ílo. Q u e m o conhecia, dificilm ente ficava indiferente a ele. Pedro A belardo nasceu em 1079 na B retanha (França) e m o rre u em 1142 no fam oso m osteiro de C luny, na França, q u an d o estava a cam in h o de R om a para se defen d er dc acusações de heresia. O período em q u e viveu coincidiu com a era da edificação das grandes catedrais góticas em todas as partes da Europa. Era, tam bém , o início d o flo rescim ento da filosofia e teologia escolásticas. D epois de e stu dar filosofia e teologia com alguns dos m ais renom ados m estres da França, A belardo crio u seu p ró p rio m éto d o de ensino em Paris. Pelo m enos até certo po n to , a boa fama co m o m estre e a grande reputação co m o estudioso aju d aram -n o a fu n d ar a U n iversidade de Paris, pois alunos de todas as partes da E uropa chegavam para estu d ar com ele e com o u tro s eru d ito s da cidade. E m Paris, A belardo era conside rado avançado p erto dos escolásticos de o rdens m onásticas cujas preleções teológi cas eram consideradas áridas e m o n ó to n as com discursos interm ináveis a respeito
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das tradições dos pais da igreja e de o u tro s pensadores m edievais. As preleções de Abelardo desafiavam as tradições reverenciadas e seus alunos eram freq ü en tem en te desordeiros, além desrespeitosos para com as tradições aprovadas pela igreja. Para m anter-se, A belardo to rn o u -se tu to r da filha adolescente de u m dos m ais ilustres cidadãos de Paris. A belardo e H eloísa apaixonaram -se e tiveram u m forte caso de am o r q u e resu ltou n o nascim ento de u m filho. E m b o ra tivessem se casado secretam ente para que o m en in o fosse legítim o, o escândalo espalhou-se e o tio e cu rad o r de H eloísa, F ulbert, co n trato u capangas para invadirem a residência de A belardo e castrá-lo. N ã o d em o ro u m u ito para todos em Paris ficarem sabendo a respeito e, seg u n d o A belardo, m ultidões aglom eraram -se na rua em frente ao seu ap artam en to para expressar sua sim patia p o r ele e exigir vingança contra Fulbert. A belardo acabou deixando Paris, h u m ilh ad o , e to rn o u -se m o n g e e, p o sterio rm e n te, abade de um m osteiro na B retanha on d e havia nascido. Passou o resto da vida viajando en tre Paris e vários m osteiros e retiros e co rresp o n d en d o -se com I Ieloísa, q ue to m o u os votos de freira e en clau su ro u -se n u m convento. As cartas q u e ela escreveu para ele co n tin u am sendo publicadas e consideradas clássicos da poesia am orosa m edieval.
O estilo filosófico de Abelardo N e m é preciso d izer q u e A belardo provocou m uita controvérsia em sua vida, sur p reen d en tem en te, não tanto p o r causa de seu caso am oroso e do castigo infligido pelo tio da jo v em , m as p o r seu m éto d o de en sin o e de escrita e p o r sua grande popularidade e n tre os estudantes irrequietos e entediados com as linhas tradicio nais de raciocínio. A belardo não hesitou em desafiar as crenças q u e considerava ilógicas o u antibíblicas, p o r m ais tradicionais que fossem . Seus escritos incluíam a obra altam ente controversa Sic et non (Sim e não), na qual fez proposições co n trá ri as às contidas nas obras oficiais consagradas de teologia e de filosofia cristã para d em o n strar que ainda existiam m u ito s problem as sem solução para ele e o u tro s pensadores cristãos trabalharem . O p ô s-se à m entalidade q u e dizia q u e a única ta refa da teologia e da filosofia era rep etir e in terp re tar os escritos oficiais e consagra dos do passado. N a tu ralm en te, op o n en tes com o o grande abade e m ístico B ernardo de Claraval (1090-1153) usaram essas declarações contra ele e acu saram -n o de ten tar su tilm en te su b v erter a tradição cristã oficial. A belardo tam b ém escreveu u m livro cham ado Teologia cristã logo depois de Sic et non (1123-1124), no qual p ro c u ro u solucionar alguns problem as q u e a tradição não solucionava. A intenção de A belardo era d em o n strar a com patibilidade en tre a verdade cristã e a verdade da filosofia. A creditava que, em b o ra a razão talvez não conseguisse resolver to do problem a teológico q u e p orventura existisse e certam ente não tivesse a m e n o r chance de fazê-lo sem a fé, as verdades básicas do cristianism o
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estavam im plícitas na m en te h u m an a e podiam ser alcançadas e en tendidas com a ajuda d o p en sam en to lógico. Em ú ltim a análise, para A belardo não podia haver co nflito en tre a verdade filosófica e a verdade teológica, em bora a reconciliação perfeita en tre elas talvez n u n ca fosse alcançada na H istória. Por exem plo, em Teo logia cristã, A belardo arg u m e n to u que em bora não fosse possível descobrir ou c o m p re en d er co m p letam en te a T rindade un icam en te pela razão h u m an a, não havia nada nessa d o u trin a q u e entrasse em conflito com a razão. D e fato, ele chegou a dizer que as idéias básicas da crença trinitária estavam im plícitas nas palavras dos profetas ju d aico s e filósofos gregos antes de C risto. Em todos os escritos e ensinos de A belardo, vê-se o m o d o original de pensar a respeito das proposições universais q u e ro m p e radicalm ente com o realism o de A nselm o e de A gostinho e q u e p ren u n cia a ascensão do q u e m ais tarde veio a ser co n hecido, na teologia e filosofia m edievais, co m o nom inalism o. C o n fo rm e já foi abordado aqui, A nselm o acreditava q u e as proposições universais co n tin h am um a realidade ontológica além da m en te h u m ana. Ele certam en te as via co m o m ais do q u e nom es, term o s ou m esm o abstrações. Essa c a idéia das proposições universais 110 realism o. A belardo foi treinado nesse tipo de filosofia c ro m p eu decisivam ente com ela. Passou a tratar as proposições universais co m o conceitos q u e tinham exis tência real e q u e não existiam além o u à parte das coisas individuais e nem apenas na m en te com o term o s convencionais. Se a filosofia das form as dc Platão está por trás d o realism o, a filosofia da form a e da m atéria de A ristóteles está p o r trás do conceitualism o de A belardo, q u e é freq ü en tem en te encarado co m o u m passo para o nom inalism o medieval posterior, que tratou as proposições universais com o m eros nom es ou term os. S egundo Abelardo, a solução [para o problem a das p rop osições universais] está em reconhecer q ue as p roposições universais não são “coisas”, isto é, não subsistem em si m esm as se não forem abstraídas. Elas existem da m esm a maneira que a forma existe na matéria: é possível abstrair a form a da matéria, mas ela n u n ca realm ente existe sem a matéria. Da m esm a m aneira, as p rop osições u n i versais podem ser abstraídas de coisas individuais — e tem os de fazê-lo para pensarm os — , mas nunca vêm desacom panhadas de algo específico e con creto.15
A teoria das proposições universais de A belardo pode, p o rtan to , ser considera da u m a posição in term ediária en tre o realism o e o no m in alism o radicais q u e apa receriam p o sterio rm en te 110 pen sam en to m edieval. M as, n o geral, sua opinião foi en ten d id a co m o próxim a ao n o m inalism o e to rn o u -se mais u m m otivo de crítica em sua vida. M u ito s teólogos e líderes eclesiásticos consideravam o realism o es sencial para a teologia católica e ortodoxa.
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A teoria da expiação pela influência moral proposta por Abelardo A grande co n trib u ição de A belardo para a teologia foi a d o u trin a da expiação. Em Teologia cristã e m u ito m ais no livro in titu lad o Exposição da epístola aos romanos, ele d isco rd o u ab ertam en te da teoria tradicional d o resgate e tam b ém da teoria da co m pensação m ais nova p roposta p o r A nselm o e desenvolveu sua p ró p ria teoria, cha m ada teoria da influência o u do exem plo m oral q u e explica co m o a m o rte de C risto traz a reconciliação da raça h u m an a com D eus. Para m u ito s críticos seus, essa foi a gota d ’água. B ernardo de C laraval, sem dúvida o líder eclesiástico m ais in flu en te daquela época, pregou contra A belardo em Paris e pediu q u e fosse c o n denado pelo papa. U m sínodo de bispos em Paris c o n d e n o u diversas opiniões de A belardo e o papa In ocêncio in p ro m u lg o u u m ed ito n o qual q u e concordava com o sínodo. A belardo esperava co n seg u ir a revogação da condenação ao ficar diante do papa e se d efen d er pessoalm ente, m as adoeceu e m o rre u q u a n d o estava a cam i n h o de R om a. N u m a carta a H eloísa pouco antes de sua m o rte, A belardo escre veu: “N ã o q u e ro ser filósofo d e sa sso c ian d o -m e de P aulo, não q u e ro ser u m A ristóteles d esassociando-m e de C risto , visto q u e não há o u tro n o m e na terra que possa m e salvar”.16 P ouco antes de m orrer, A belardo su b m eteu -se oficialm ente ao papa e reco n cilio u -se com B ernardo de C laraval p o r carta. M o rre u em paz com a igreja que o co n d e n o u e perseguiu. O abade P edro, o Venerável, presenciou os ú ltim o s dias de A belardo e escreveu u m relato a respeito, no qual louva a h u m ild a de de A belardo e o cham a “o Sócrates dos gálios, o grande Platão do O cid en te, nosso A ristóteles”.17 O m o d elo de expiação p ro p o sto p o r A belardo enfatizava o am o r acim a da h o n ra ou da ira de D eus. S egundo ele, a hu m an id ad e necessita de u m a nova m otivação para agir e não de u m a com pensação paga a D eus em seu n om e. A creditava que a teoria da com pensação e a do resgate deixavam a h u m an id ad e to talm en te fora do processo de reconciliação e retratava o D eus da cruz co m o alguém interessado so m en te p o r sua p rópria h o n ra e pela ju stiç a cósm ica. A belardo era fascinado pela parábola de Jesu s sobre o filho pródigo cujo pai sem pre esperava p o r seu retorno. Assim, para o teólogo dissidente, a cruz é a prova q u e D eu s oferece aos seres h u m anos pecam inosos de sua m isericórdia e a m ensagem que seu F ilho transm ite sobre os m érito s q u e g an h o u de D eus p o r sua total obediência. A cruz afeta a h u m an idad e e não a D eus. S egundo A belardo, D eus não precisa se reconciliar com a h u m anidade. Ele já nos aina. O problem a é que não tem os consciência disso e, por causa d o nosso pecado e ignorância, vivem os com tan to m ed o de D eus que nos afastam os dele. A cruz de Jesu s é u m ato de am or de D eus q u e deve inspirar nossas ações com novas m otivações, para q u e vejam os o q u an to ele nos am a e com ecem os a am á-lo tam bém :
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Assim nos parece que fomos absolvidos pelo sangue de Cristo e reconciliados com Deus, pois, pela graça singular que manifestou por nós quando seu Fi lho assumiu a nossa natureza, ensinou-nos com palavras c exemplos e perse verou até a morte, Jesus nos trouxe para mais perto de dele, de modo que, incitados por tamanha benevolência da graça divina, já não receássemos su portar qualquer coisa por amor a ele. As pessoas se tornaram mais justas, ou seja, mais devotadas a Deus, depois da paixão de Cristo, porque são mais propensas a amar por causa do benefício que de fato receberam do que um benefício que esperam receber. E assim nossa redenção está no grande amor por nós demonstrado na paixão de Cris to, que não somente nos livra da escravidão do pecado, mas conquista para nós a verdadeira liberdade dos filhos de Deus, para que cumpramos qualquer propósito, não por medo, mas por amor àquele que nos prestou um bem tão grande que, como ele mesmo disse, não se pode encontrar outro maior: “Amor maior não há, que dar a própria vida pelos seus amigos”."1 O b serv e q u e a explicação de A n selm o da expiação a d esp o ja de q u a lq u e r conotação de transação ju ríd ica. É p o r isso q u e alguns críticos cham am -n a “teoria subjetiva”. Para eles, na teoria de A belardo não há, com a m orte de C risto na cruz, n en h u m a m udança objetiva na relação de alienação en tre D eus e a h u m anidade por causa do pecado e da culpa. A única m udança verdadeira ocorre som ente q uando os seres h u m an o s pecadores são afetados pelo exem plo d o am o r de D eus na m orte de C risto. M as, exatam ente a form a com o as pessoas “m ortas pelas transgressões e pecados” m u d am p or causa de um sim ples exem plo m oral é algo q u e m u ito s críti cos da teoria de A belardo não percebem . Para eles, a teoria de A belardo tam bém su b en ten d e, necessariam ente, a negação pclagiana do pecado original e reforça a idéia de q ue os seres h u m an o s realm ente precisam com eçar nova vida ao percebe rem o q u an to D eus os am a para tam bém p o d erem amar. H á certa verdade nessa crítica. Por o u tro lado, A belardo realm ente afirm ou a d o u trin a do pecado original e acrescentou, em seu conceito geral da expiação, que a m o rte de C risto co n q u isto u m érito diante de D eus p o r causa de sua obediência co m o h o m em e q u e esse m érito pode ser com u n icad o a todos os pecadores que vierem a ele pelo arrep en d im en to , pela fé e pelos sacram entos.19 Essa idéia confere um a visão um tan to objetiva da cruz à descrição q u e A belardo fez da expiação. N o entan to , a principal linha de raciocínio de A belardo é q u e a cruz foi o evento pelo qual D eus d e m o n stro u seu grande am o r à hu m an id ad e e assim tran sfo rm o u nos sos corações para q u e fôssem os m ovidos pelo am o r c não pelo m edo. N esse caso, então, a verdadeira expiação acontece d en tro de nós e não na cruz. Ela acontece q u an d o os seres h u m an o s pecadores se arrep en d em e com eçam a agir p o r am or, e não q u an d o C risto m o rreu . P orque D eus, segundo A belardo, n u n ca precisou se
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reconciliar conosco p o r u m sacrifício cru en to . Pelo contrário, som os nós q u e p re cisam os nos reconciliar com ele e isso acontece q u an d o a cruz age sobre nós causa n d o -n o s u m a tran sfo rm açã o m o ral in terio r. U m co m e n ta rista m o d e rn o de A belardo resu m e su cin tam en te essa teoria: “O p ropó sito da crucificação, portanto, era e n c h er nossos corações de caridade [am or] através de C risto , q u e com isso nos torn a filhos de D eus e não seus escravos p o r m edo. D essa form a, u m a nova m o ti vação inspira nossas ações, q u e por isso se to rn am m eritórias”.20 A teoria de A nselm o, da expiação pela com pensação, to rn o u -se padrão em parte da teologia cristã conservadora no O cid en te. A lguns pensadores católicos e p ro tes tantes conservadores co n sid eram -n a a visão bíblica e ortodoxa da expiação. A teo ria de A belardo foi rejeitada em seu p ró p rio tem po, m as foi redescoberta e aceita por m uitos protestantes liberais dos séculos xix e XX com o a teoria cristã “esclarecida” da cruz. A lguns teólogos m oderados acreditam que não existe n e n h u m a teoria da expiação capaz de captar toda a verdade, pois tanto A nselm o q u an to A belardo ti nham razão e, na verdade, seus m odelos se com p lem en tam . A abordagem subjeti va de A belardo ressalta o efeito m oral q u e a cruz de C risto causou na H istória e em cada pessoa q u e se arrepende e passa a viver 110 am or. A abordagem objetiva de A nselm o ressalta o efeito legal q u e a cruz de C risto causou n o cosm os e n o próprio D eus, que só pode realm ente perdoar os pecadores p o rq u e um a grande dívida foi paga. C o nsid erad a isoladam ente, não está claro co m o a teoria de A belardo aprecia a responsabilidade h u m an a pelo pecado o u a santidade de D eus. E, considerada isoladam ente, não está claro co m o a teoria de A nselm o aprecia o envolvim ento h u m an o 110 processo da reconciliação o u explica q u e a cruz afeta a vida hum ana. E lastimável q u e am bas já ten h am sido consideradas um dia incom patíveis 011 m u tu am ente exclusivas. D everiam , pelo contrário, soar co m o explicações c o m p lem en tares da cruz. A nselm o e A belardo representam o p rim eiro estágio da teologia escolástica da cristan d ad e ocid en tal m edieval. N e le s, a m aioria dos interesses c m éto d o s do escolasticism o são en co n trad o s o u , no m ín im o , prenunciados. A grande c o n tro v érsia e n tre realista s e n o m in a lis ta s, q u e c o n trib u iria p ara a d e rro c a d a do escolasticism o na Alta Idade M édia, já com eçava a aparecer com eles. O en fo q u e à racionalidade da crença cristã e o desejo de d em o n strar sua com patibilidade com o m e lh o r da filosofia são exem plos da sua inclinação escolástica. M as o m aior dos teólogos e filósofos escolásticos ainda estava p o r vir. A jó ia da coroa escolástica e o grande pen sad o r da teologia m edieval apareceu em Paris n o século x i i i . O “D o u to r A ngélico” d o p en sam en to católico co m eçou a vida co m o o “b u rro ” da U n iv ersid a de de Paris e to rn o u -se o padrão c a n o rm a d o p en sam en to católico ro m an o nos séculos seguintes.
22 Tomás de Aquino resume a verdade crista
T - J m n o m e destaca-se acim a de todos os dem ais co m o o pen sad o r escolástico por excelência: Tom ás de A quino. E im possível su p erestim ar sua im p o rtân cia para a história da teologia cristã e especialm ente da teologia católica rom ana. N ela, ele co n tin u a sen d o o padrão, a n o rm a, m esm o em to d o o século xx. N ã o q u erem o s d izer com isso, n atu ra lm e n te , q u e todos os teólogos católicos ro m anos co n co r dam to talm en te com toda e q u alq u er proposição o u opinião q u e se acha na e n o r m e coleção de escritos de A quino. N o en tan to , sua abordagem básica da teologia e suas idéias e m éto d o s fu n d am en tais ainda são o q u e se espera q u e to d o teólogo católico co n h eça e reflita a respeito. D isco rd ar ab ertam en te deles pode acabar em certa censura da parte dos vigilantes teológicos do Vaticano. E m 1879, o papa Leão xiii, na sua carta encíclica, Aetertii patris, fez da teologia de A q u in o a n o rm a para a teologia católica. M as, assim , apenas oficializou o conceito geral q u e os líderes católicos m an tiv eram , in fo rm alm en te, d u ra n te m u ito s séculos. A q u in o já tinha sido can onizado em 1323 e a hierarquia católica o u to rg o u -lh e o títu lo de D o u to r Angélico. O papa Pio v o u to rg o u a Tom ás de A quino o títu lo de D o u to r U niversal da Igreja em 1567, no C o n cílio de T rento. C o m todos esses en có m io s e afirm a ções oficiais, Tom ás de A qu in o só pode ser considerado o m aior teólogo da tradi ção católica desde A gostinho n o século v até Karl R ahner, da Á ustria, em fins do século xx.
O contexto teológico da obra de Aquino A ntes de exam inarm os de p erto a história da vida de A quino, bem co m o sua c o n tribuição teológica específica, será útil refletirm os u m po u co m ais a respeito do am b ien te teológico n o qual trabalhava. A quino era u m teólogo escolástico e isso significava que tam b ém era filósofo. A teologia e a filosofia eram inseparáveis espe cialm ente para os teólogos escolásticos dos séculos x iii e xiv de universidades co m o O x fo rd e Paris. O objetivo deles era sintetizar as duas disciplinas sem p erd er a
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teologia em m eio a filosofia. A teologia estava para se to rn ar a “R ainha das C iên ci as” e a filosofia seria a serva o u criada necessária. E absolutam ente crucial e n te n d erm o s a idéia q u e os escolásticos faziam da relação en tre teologia e filosofia para p o d erm o s c o m p re en d er seus propósitos e objetivos: O s esco lá stic o s d o s sc c u lo s x i i i c xiv eram essen cia lm e n te teó lo g o s e incidentalm cnte filósofos. Sua lógica se concentrava em desvendar os m istéri os da fé cristã; sua filosofia era serva da teologia. N o entanto, é um fato histó rico notável que esses grandes teólogos fossem igualm ente grandes filósofos. C om o teólogos, não lhes interessava desenvolver uma filosofia com pleta. Em vez disso, desenvolveram uma teologia e filosofia num a integração orgânica, de m odo que a filosofia fosse constantem ente fertilizada pelas especulações filosóficas e a filosofia perm anecesse sob a orientação do dogm a cristão.1
Essa descrição do m éto d o escolástico certam ente se aplica à abordagem de To más de A quino. A p rim eira vista, sua teologia pode parecer especulativa e filosófica dem ais a p o n to de nos fazer im aginar on d e se en co n tra a reflexão teológica sobre a revelação divina. Ao estudarm os m ais p ro fu n d am en te seus escritos, 110 entanto, fica claro que sua preocupação m aior é a salvação e que ela é o p ró p rio âm ago de todo seu trabalho. A grande síntese teológico-filosófica q u e ten to u construir, com o um a en o rm e catedral m edieval de idéias, tin h a no ce n tro o altar do corpo m utilado de C risto e a graça da redenção q u e nele se encontra. É u m desafio chegar ao altar, passando pelos arcobotantes e vestíbulos prim o ro so s da teologia natural, e m uitos jam ais conseguem chegar até lá. M as, para os que perseveram , não há dúvida de q u e A qu in o — e talvez todos os escolásticos — se im portava m u ito com os m isté rios da salvação e, pen sando neles, en sin o u e escreveu.
A vida e a carreira de Aquino Tom ás de A q u in o nasceu em 1224 o u 1225 no castelo da sua fam ília p erto de Roccasecca, na Itália. Seu pai, L andulfo de A quino, era u m m e m b ro abastado da pequena nobreza fundiária e esperava que seus filhos seguissem seus passos prós peros e influ en tes. Tom ás cu rso u o en sin o p rim ário na m atriz d o m o v im e n to beneditino: o m o steiro de M o n te C assino, fundado pelo p ró p rio B ento de N úrsia. N a m ocidade, m atricu lou-se na relativam ente nova U niversidade de N ápoles onde e n tro u em c o n ta to co m duas forças q u e tra n sfo rm a ria m sua vida. A re cen te redescoberta da filosofia de A ristóteles estava causando controvérsias ali e A quino rap id am en te a assim ilou e passou o resto da vida te n ta n d o reconciliá-la com a revelação divina, p o rq u e “Aristóteles se to rn o u para ele u m paradigm a da boa lógi ca”.2 Isso significa que não considerava Platão e o platonism o o paradigm a da boa
Tom ás de A quino resum e a verdade cristã
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lógica, co m o fez a m aioria dos pensadores católicos d u ra n te séculos. Até m esm o o grande A nselm o tin h a sido platônico na sua orientação filosófica básica. A segunda influência na vida de A quino em N ápoles foi a relativam ente nova o rd em dos frades cham ados dom inicanos. Esses seguidores do pregador m e n d i cante D o m in g o s (1170-1221) to rn aram -se rapidam ente u m m o v im e n to de re n o vação religiosa, o rgulhosa e popular, com fortes atrativos para os jo v en s in telectu ais. E ram , p o rém , considerados fanáticos por m uito s m em b ro s ricos e poderosos da elite da sociedade e o pai de A qu in o ficou h o rro rizad o com o convívio de seu filho com eles. Em 1242, o jo v e m universitário en tro u para a o rd em dom inicana com o noviço e m u d o u -se para o m osteiro. O pai m an d o u os irm ãos de A quino seq ü estrá-lo e fazer o q u e nos tem pos m o d ern o s cham am de desprogram ação, para ele voltar à razão e assum ir o papel que lhe fora reservado na fam ília e na sociedade. A família de A quino m anteve Tom ás confinado n o castelo p o r dois anos sem conseguir persu ad i-lo a abrir m ão do seu so n h o de to rn ar-se estudioso de A ristóteles en tre os frades dom inicanos. A cabaram soltando-o c ele im ediatam ente vo lto u para a ordem . A quino saiu da Itália assim q u e pôde, para não ser recapturado pela fam ília, e estabeleceu-se na vida estudantil da U niversidade de C olônia, na E uropa C entral, ond e foi alu n o do grande m estre escolástico A lberto M agno (A lberto, o G rande, 1193-1280), q u e su p o stam en te declarou, a respeito de A quino, para todos os estu dantes: “C h am am o s esse m oço de b u rro , m as digo-lhes que o m u n d o in teiro vai escutar seus rin c h o s”.3 D iz a lenda que A quino era m u ito co rp u le n to e acanhado e que, p o r isso, seus colegas de classe lhe deram o apelido de “b u rro ”. A lberto, no entan to , percebeu seu potencial e A quino chegou a superar o p ró p rio m estre. D epois de estudar em C olônia, A quino estu d o u teologia e filosofia na U n iv er sidade de Paris, q u e havia se to rn ad o cam po fértil de controvérsia a respeito da filosofia de A ristóteles. O s frades franciscanos, q u e tin h am u m grande m osteiro em Paris e en sin av am na Escola de Teologia da U n iv ersid a d e, o p u n h a m -se a A ristóteles e condenavam o uso cristão dos seus pensam entos. C onsideravam o platonism o o “cam in h o da m en te para D e u s”. O s dom in ican o s eram m ais favorá veis a A ristóteles e alguns chegavam ao p o n to de falar em “duas verdades”: um a era a revelação divina nas E scrituras e na tradição e a ou tra, da filosofia de A ristóteles. A Igreja C atólica co n d e n o u a teoria das duas verdades e o grande p rojeto da vida de A quino co m o eru d ito foi vencer essa condenação ao d em o n strar q u e as idéias filo sóficas básicas de A ristóteles não colidiam com a verdade cristã fundam ental. E m 1256, A quino iniciou a carreira m agisterial co m o m estre de teologia em Paris. Ele p ro d u z iu m uitas obras teológicas, m as as duas m ais notáveis foram as obras em vários v o lum es cham adas Sum m a contra gentiles [Suma contra os geutios] e Suma teológica. Suma é u m sistem a de proposições q u e p re te n d e re su m ir da verdade
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sobre d eterm in ad a disciplina. A Sununa contra gentiles era um a defesa apologética da verdade cristã co n tra as críticas dos estudiosos islâm icos na E spanha e na África do N o rte . A Sutna teológica era um a teologia sistem ática. E n q u an to ensinava em Paris, A q u in o to rn o u -s e fam o so e a lta m e n te re sp e ita d o p o r líd ere s eclesiástico s e governantes. Era, no en tanto, u m tanto excêntrico, o epítom e do catedrático e ru d ito distraído, sem p re to m ad o p o r seus pensam entos: U m a das [histórias] mais famosas fala dc uma ocasião, em 1269, em que ele estava jantando com o rei Luís ix da França. Segundo o biógrafo, Bernardo G ui, A quino, que parecia estar sem pre “absorto” em pensam entos, passou a maior parte da refeição m editando sobre os m aniqueístas (um a seita religiosa que existia desde o século m a.C .). D e repente, deu um m urro na m esa e exclam ou: “Isto liquida a questão dos m aniqueístas!” e im ediatam ente m an dou chamar seu secretário para que tom asse as anotações ditadas. Explicou aos com ensais alarmados: “Pensava estar sentado à m inha escrivaninha”.4
O u tra história q u e sem pre se conta sobre A quino fala dc seus últim os dias de vida. Ele m o rre u em 7 de m arço de 1274, cm Paris, m en o s de u m ano antes parou de escrever co m p letam en te, sem m otivo aparente. Seus colegas e assistentes insis tiam com ele a voltar ao trabalho e, supostam ente, A quino respondeu: “N ã o posso, po rq u e tu d o que escrevi parece insignificante”. A lgum as versões dessa história in cluem u m aden d o à resposta: “em com paração com as coisas q u e m e estão sendo reveladas”. S u b en ten d e-se que ele tin h a experiências m ísticas q u e eram p re n ú n c i os da grande “visão beatífica” a respeito da qual tanto escrevera ao falar d o objetivo da redenção hum ana: ver D eus face a face. Assim co m o A gostinho, A quino escreveu sobre quase to d o tem a im aginável relacionado ao cu rrícu lo da universidade. Ele era u m verdadeiro enciclopedista e, portanto, fica difícil, senão im possível, abordar m esm o q u e rapidam ente m uitas de suas idéias e contribuições. N ossa tarefa aqui será apenas descrever seus principais m étodos e conceitos teológicos distintos, especialm ente os q u e vieram a exercer grande influência sobre a teologia católica rom ana cm geral c q u e diferem , de algu m a form a, das idéias e m étodos dc A gostinho e de A nselm o — os principais pensa dores cristãos ocidentais anteriores a A quino. N ossa descrição da contribuição teo lógica de A quino focalizará seus pensam entos a respeito d o m éto d o teológico e so b retu d o da teologia natural, suas idéias a respeito da natureza e da graça, inclusive a relação en tre razão e revelação, seu conceito da natureza e dos atributos de D eus, seu conceito da linguagem a respeito de D eus co m o discurso analógico e sua d o u trina da providência divina, inclusive da predestinação. Em cada área, assim com o em m uitas outras, A q u ino preparou o terren o para a teologia católica e arm o u o
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palco para a reação p rotestante q u e surgiria n o século xvi. E m bora a m aioria dos reform adores respeitasse A qu in o co m o u m grande gênio, considerava sua teologia um grave desvio da fé bíblica para a especulação filosófica, sob o efeito hipnótico da filosofia aristotélica.
O método teológico de Aquino O estilo de A qu in o nas duas Sumas é tipicam ente escolástico. C o m eça com um a p erg u n ta disputada o u passível de debate, com o: “Se, além das ciências filosóficas, há necessidade de q u alq u er o u tra d o u trin a ” e então passa a exam inar objeções, com o “O bjeção n.° 1: Parece que, além das ciências filosóficas, não necessitam os de n e n h u m o u tro co n h e c im e n to ”.5 D epois de dar todas as respostas negativas im portantes à p ergunta, expõe seu p ró p rio p o n to de vista, que usu alm en te com eça com frases com o: “Pelo co n trá rio ” ou “D igo q u e ” ou “R esposta à objeção n 9 1”. F req ü en tem en te, ao expor seu p o n to de vista, A qu in o cita autoridades consagra das, com o textos bíblicos, declarações dos pais da igreja e passagens dos concílios e dos credos. C u rio sam en te, ele cita A gostinho m uitas vezes co m o autoridade em vez de q u alq u er texto bíblico. As vezes, tam b ém cita ou m enciona “o Filósofo” qu an d o q u er se referir a A ristóteles. N ão é preciso ir m u ito longe nas Sumas de A quino para perceber q u e ele consi derava A ristóteles tan to autoridade q u an to problem a. Para ele, a lógica e m etafísica básica de A ristóteles estavam corretas e serviam de guia para a teologia natural cristã. Ao m e sm o te m p o , n o e n ta n to , A ristó teles tin h a o p in iõ e s c la ra m e n te conflitantes com as doutrinas cristãs. U m exem plo notável disso, um a opinião contra a qual A quino lu to u corajosam ente, é a origem d o universo. A ristóteles acreditava que o universo era eterno, m as q u e havia sido criado p o r u m a P rim eira C ausa que não era causada. Em outras palavras, acreditava q u e u m a P rim eira C ausa não cau sada e um a C ausa M o triz Im óvel, m etafisicam ente o n ip o ten tes e eternas, deram origem à eterna existência do universo. A ristóteles não abria espaço, em seu pensa m en to , para q u alq u er a idéia de creatio cx tiihilo e n em para u m a criação n o tem po. A lguns filósofos das universidades m edievais sugeriam q u e filósofo cristão tinha a obrigação de co n co rd ar tan to com os pais da igreja q u an to com A ristóteles e que isso era u m exem plo da teoria das duas verdades, contra a qual a igreja lutava e A quino sustentava. E m questões co m o essa, A qu in o sim plesm ente tin h a que dis cordar de A ristóteles. Em outras questões, n o en tan to , considerava A ristóteles um grande aliado da teologia cristã, da m esm a m aneira q u e m u ito s pais da igreja p rim i tiva contaram com Platão e os platonistas nos seus escritos apologéticos. O m éto d o teológico de A quino com eça estabelecendo a relação e n tre o c o n h e cim en to natural (a filosofia e outras ciências não teológicas) c a revelação divina, para buscar algum c o n h e cim en to sobre D eus. D a m esm a form a q u e os escolásticos
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anterio res co m o A nselm o e A belardo, A quino recu so u -se a colocar esses sistem as de c o n h e cim en to u m contra o o u tro para estabelecer tipo de conflito básico. N o en tan to , d iferen tem en te de A nselm o, pelo m enos, A quino não considerava a fé essencial para o e n te n d im e n to o u pelo m en o s não na esfera do saber que D eus existe e de co n h ecer algo sobre a natureza de D eus e dos seus atributos. O lem a de A nselm o era “a fé em busca do e n ten d im en to ” ou “creio para co m p re en d er”. A quino não rejeitaria necessariam ente essa atitude, m as procurava descobrir e estabelecer rigorosam ente u m âm bito d o co n h e cim en to natural de D eus que não exigisse, de m o d o algum , a fé cristã. N ã o há dúvida de q u e A nselm o tam b ém acreditava q u e a razão pura, sem a revelação ou a fé, podia com provar a existência e essência de D eus. M as tam b ém A nselm o considerava q u e a própria lógica era u m tipo de reve lação ou, pelo m enos, um a dádiva de D eus. Ele não reconheceu de fato n e n h u m plano d estitu íd o de graça. N ã o há n e n h u m a distinção clara en tre o “n atu ra l” e o “so b ren atu ral” nas teologias filosóficas de A nselm o o u de A belardo co m o a que A quino fez e na qual insistiu.
Aquino e o conceito da fé e da teologia natural U m a das co n trib u içõ es m ais controversas dc A quino à teologia cristã foi alegação dc q ue existe u m rein o natural do co n h e cim en to de D eus e da alm a h u m an a dife rente dc q u alq u er rein o de atividade sobrenatural e graciosa especial de D eus. Todo pensador cristão antes dele, inclusive A nselm o e A belardo, co m preendia a teologia natural co m o u m a sublim ação da m en te h u m an a pela graça. Até o arg u m en to ontológico dc A nselm o em favor da existência de D eu s era considerado por ele um a obra divina através da lógica e do intelecto. N ão havia linha perceptível que separasse a atividade divina especial reveladora da razão em geral. A razão era um dos cam inhos da m en te até D eus, m as esse cam in h o era pavim entado pela graça. A quino q u eria d em o n strar q u e existia um m u n d o natural e u m tipo de co n h eci m en to natural que não dep en d em to talm en te da graça, de m o d o que até m esm o u m não-cristão, to talm ente d estituído de fé — com o A ristóteles — podia seguir o cam in h o p u ram en te natural para co n h ecer D eus. O bv iam en te, para ele, essa o p e ração da razão, p o r m ais natural q u e fosse, era a im agem de D eus nos seres h u m a nos: “O ra, o intelecto ou a m en te é o aspecto pelo qual a criatura racional so b re p u ja as dem ais. Logo, a im agem de D eus não se en co n tra n em na criatura racional, a não ser na m e n te ”.6 Assim , ela não é in teiram en te in d ep en d en te de D eus, e nada poderia ser já q u e D eus é o criador de tudo. E n tretan to , a razão tem sua própria esfera de atividade e com petência, à parte da atividade graciosa sobrenatural de D eus. Essa era um a novidade polêm ica na história da teologia cristã. U m a das m aneiras de retratar a teoria de A quino, q u e co n stitu i o alicerce de toda sua teologia, é:
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Trindade, Encarnação Graça, Revelação e C on h ecim en to Sobrenaturais, Fé, Salvação
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N atureza, Revelação e C on h ecim en to Naturais (Gerais), Razão, Criação Existência e Atributos de D eu s
Para A quino, o rein o inferior constituía-se basicam ente da filosofia de Aristóteles e o superior, da revelação sobrenatural c divina. N in g u é m pode ser salvo e alcan çar a “visão beatífica de D e u s” 110 céu (sem elhante à divinização) sem chegar ao rein o superior, m as a pessoa pode co n h e cer a D eu s e c o m p re e n d ê -lo realm ente q u an to à sua existência e atrib u to s com base na razão, ex am inando a o rd e m n a tu ral da criação. Através da razão so m en te, não se descobriria n u n ca q u e D eu s é trin o , m as a crença na T rindade não é irracional. Ela sim p lesm en te tran scen d e o q u e a razão pode d esco brir sozinha e q u e é revelado pela graça de D eus através das E scrituras e da tradição da igreja. T anto A nselm o q u an to A belardo acreditavam q u e a T rindade — assim co m o as dem ais crenças cristãs im p o rtan tes — podia ser revelada o u concebida racionalm ente. O ú n ico m otivo pelo q u e as pessoas não a desco b rem racio n alm ente, diriam , deve-se ao efeito do pecado sobre a m e n te h u m ana. A qu in o afirm ava algo d iferente. Para ele, a razão tem um a esfera distinta da graça e da revelação: a natureza. D a m esm a form a, a fé tem u m a esfera distinta da natureza e su p erio r a ela: o sobrenatural. As flechas d o gráfico acim a tam b ém re p resen tam um a parte im p o rtan te d o esquem a de A quino. A natureza aponta para cim a, para a graça; a razão se com pleta com a revelação. A graça e a atividade so brenatural de D eu s q u e operam a salvação elevam a natureza; a revelação c u m pre e co m p lem en ta a razão. As duas esferas não são opostas. Elas são distintas, m as com plem en tares. A existência de D eus não é a única verdade teológica e espiritual q u e a razão sozinha, sem a ajuda da graça, pode descobrir. S egundo A quino, a razão, o p eran d o exclusivam ente na área natural, pode tam b ém descobrir a im ortalidade da alm a e as leis éticas e m orais básicas. Ele en c o n tro u essas verdades b em desenvolvidas em A ristóteles, m esm o q ue o filósofo não soubesse tu d o q u e se pode saber a respeito disso com a ajuda da revelação sobrenatural e da fé. U m exem plo excelente da teologia natural aristotélica de A q u in o é o c o n h e cim en to natural de D eus. Ele acre ditava e argum entava que, em b o ra a existência de D eu s não fosse evidente p o r si m esm a, co n fo rm e A nselm o já havia dito, ela podia ser d em o n strad a pela razão natural.7 A q u in o rejeitou o arg u m e n to ontológico de A nselm o p o rq u e ele não co m eçava co m os se n tid o s e, fu n d a m e n ta n d o seu a rg u m e n to n o d esa co rd o de A ristóteles com seu m e n to r Platão, A quino alegou q u e to d o c o n h e cim en to natural com eça com a experiência sensorial.
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A quino ap resen to u cinco m aneiras de d em o n strar racionalm ente a existência de D eus e todas en co n tram -se, de algum a form a, na filosofia de A ristóteles. As cinco m aneiras apelam às experiências q u e a m en te h u m an a sofre em relação ao m u n d o natural e m o stram que, se D eus não existisse, as experiências não teriam sen tid o o u seriam im possíveis. D e fato, o q u e estaria sendo experim entado não existiria. C o m o existem , D eus tam bém deve existir. E m outras palavras, D eus é con h ecid o de m o d o natural, através de seus efeitos naturais, co m o a causa necessá ria: “A p artir de efeitos não proporcionais à causa, não se pode o b ter n e n h u m co n h ec im e n to perfeito da causa. E n tretan to , a partir de cada efeito, a existência da causa pode ser claram ente d em onstrada e p o r isso p o d em o s d em o n strar a existên cia de D eu s com seus efeitos, em bora através deles não possam os co n h e cer a D eus perfeitam ente, co m o ele é em essência”.8 A prim eira m aneira de A quino dem o n strar a existência de D eus foi com base no fen ô m en o do m o v im en to natural. Tudo o que é m ovido precisa ter um a causa m o triz e não pode haver um a cadeia infinita de regressão do m ovim ento. “P ortanto, é necessário chegar à causa m otriz q u e não é m ovida p o r outra, e todos en ten d em que se trata de D eu s”.9 C o m esse argum ento, ou “prova”, A quino apresentou a distinção aristotélica m u ito im p ortante entre dois m odos de existência: o ato e a potência. Em cada m ovim ento, o que é potencial torna-se ato [concreto]. M as o ato não parte da potencialidade sem um a causa e esta precisa ser totalm ente realizada. Por isso, a prim eira causa m otriz de tu d o n o m u n d o natural precisa ser pura atualidade — actus purus [p u ro ato]. Isso, porém , torna-se claro posteriorm ente nas considerações de A quino sobre a natureza e os atributos de D eus. N a prim eira m aneira, ele estava interessado apenas em notar que a causa m otriz de tu d o não deve ser m ovida por n en h u m a outra. Trata-se do P rim eiro M o to r Im óvel de Aristóteles. A segunda m aneira de A quino d em o n strar a existência de D eu s foi através da causalidade. D e m aneira bem sem elhante à prim eira, arg u m e n to u q u e tu d o no universo é causado e, portan to , deve haver um a “prim eira causa eficiente, à qual todos dão o n o m e de D e u s”.10 A terceira m aneira de A quino d e m o n strar a existência de D eus é, em geral, considerada a m ais c o n tu n d e n te das cinco, será abordada p o r últim o. A quarta m aneira enfoca as graduações q u e se acham nas coisas e conclui que “deve haver [...] algo que seja, para todos os seres, a causa da existência, v irtu d e e q u alq u er o u tra perfeição; e a ela cham am os de D e u s”.11 Este arg u m e n to é m u ito se m e lh a n te ao p rim e iro , q u a n d o A n selm o d e fe n d e a ex istên cia de D e u s em Monologium. A q u in ta c últim a m aneira é reco rrer aos propósitos das coisas segundo sua o rd em natural: “Existe algum ser inteligente, p o r q u em todas as coisas naturais são dirigidas para u m fim ; e esse ser cham am os D e u s”.12 Essa é um a versão q u e alguns
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ch am am de arg u m e n to do desígnio e ficou co nhecido na teologia filosófica por arg u m en to teleológico. N ã o se en co n tra to talm en te desenvolvido n o pen sam en to de A quino. A terceira m aneira de A quino é geralm ente considerada a base de sua teologia natural. Por ser exem plo nítido, tanto d o pen sam en to escolástico q u an to do racio cínio teológico natural tom ista, será citada aqui integralm ente: Encontram os na natureza coisas que têm a possibilidade de existir e de não existir, visto que são geradas e corrom pidas c, por isso, é possível que existam e não existam. M as é im possível que sem pre existam , pois o que pode não existir num m om ento, não existe. Portanto, se tudo pode não existir, logo houve um tem po em que não existia nada. Ora, sc assim fosse, m esm o agora não existiria nada, pois o que não existe com eça a existir som ente a partir de algo já existente. Se, portanto, nada existia, seria im possível que algo viesse a existir; e, portanto, m esm o agora nada existiria — o que é absurdo. Logo, não som ente todas as coisas existentes são m eram ente possíveis, mas deve existir algo cuja existência é necessária. M as toda coisa necessária pode ter ou não sua necessidade causada por outra. Porém, é im possível progredir infinita m ente nas coisas necessárias que têm sua necessidade causada por outra, co n form e já foi provado em relação às causas eficientes. N ã o podem os, portanto, deixar de reconhecer a existência de algum ser que tem sua própria necessi dade e que não a recebe de outro, mas que, pelo contrário, causa nos outros a necessidade que têm . A tudo isso o h om em chama de D e u s.13
E m o u tras palavras, m esm o q u e o m u n d o fosse etern o , co n fo rm e declarou Aristóteles, n em p o r isso deixaria de exigir um a explicação, pois é feito de coisas finitas e d ep en d en tes q u e exigem um a explicação p o r sua existência. Elas são d e pen d en tes e causadas e, sc toda a realidade fosse com posta dessas coisas d e p e n d e n tes e causadas, então ela não existiria. O m u n d o precisa de u m a causa não causada para sua existência co n tín u a e m esm o para seu princípio. A quino pensava q u e o p rincípio do m u n d o natural d en tro d o tem p o (ou no com eço do tem p o ) e especialm ente ex tiihilo (do nada) não podia ser dem o n strad o pela filosofia. S endo cristão, acreditava nessas verdades com base na fé na revelação divina, m as argum entava q u e até m esm o A ristóteles, q u e não acreditava nelas, ti nha de co n clu ir q u e o m u n d o exige um a prim eira causa, não causada, co m o sua explicação. D essa m aneira, A ristóteles, em b o ra fosse pagão, sabia da existência de D eus e acreditava na eternidade do m u n d o . Todas as provas de A quino em favor da existência de D eu s “fu n c io n a m ” m esm o se A ristóteles tivesse razão e o m u n d o fosse eterno. Para ele, “a conclusão que D eus existe está bem fu n dam entada 110 pen sam en to filosófico. M as a existência de D eus não parte do q u e devem os su p o r
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que tenha acontecido n o passado. E m term o s filosóficos, som ente a existência de D eus pode explicar o q u e agora observam os e ele a explica pelo fato de tu d o estar presente co n fo rm e o b servam os”.14
Tomás de Aquino e a doutrina de Deus A qu in o prosseguiu, a partir das cinco m aneiras de d em o n strar a existência de D eus, explicando com o seria a essência de D eus caso ele fosse a prim eira causa de tudo. Ele acreditava q u e boa parte da natureza e dos atributos de D eus pudesse ser co nhecida pela razão, ten d o p o r base exclusiva a natureza. Se, p o r exem plo, D eus é o prim eiro m o to r im óvel, deve ser pura realidade sem potencialidade, pois de o u tra form a ele m esm o precisaria da causa m otriz, da prim eira causa. Para A quino, não pode haver n e n h u m a potencialidade em D e u s.15 “A perfeição absoluta tem de ser p u ro ato, pois a potencialidade su b en ten d e existência não realizada. E p o r isso que D eus é p u ro ato ”.16 E m outras palavras, a essência e a existência de D eus são idên ticas c isso é exclusividade de D eus visto que é a prim eira causa de todas as coisas. O que D eus é, é o m esm o que D eu s existe c vice-versa. N ã o existe nada q u e D eus deveria ser o u poderia se tornar, q u e já não seja agora. D izer o contrário, segundo A quino, im plicaria sugerir q u e existe algum a falha em D eus e n e n h u m ser faltoso pode ser a prim eira causa de todas as coisas, pois ele m esm o precisaria ter um a cau sa p ara p re e n c h e r essa falha. D e u s n ão s o m e n te é p u ra re a lid a d e sem potencialidade — a pura existência sem n e n h u m a transform ação — co m o tam bém é ab so lutam ente sim ples. A essência de D eus não é com posta. O ser perfeito, que D eus tem de ser para fun cio n ar co m o a prim eira causa, não pode ser com posto, m óvel, in co m p leto e falho: “D eus é absolutam ente sim ples, pois em D eus não existe corpo, o u com posição hilom órfica. D eus é p u ro ato, em q u em a essência e a existência são idênticas, é a perfeição de toda a existência e é o bem su p re m o ”.17 Em últim a análise, o D eus de A quino é bastante sem elhante ao D eus de A nselm o: im utável, im passível, substância sim ples, q u e já existe nu n ca se transform a, total m en te d iferente de q u alq u er ser finito, criado e m ortal. Ju n tas, as im agens de D eus q u e os dois retrataram co n stitu em o pináculo às vezes cham ado teísm o cristão clássico. O D eus do teísm o cristão clássico é p u ra realidade, m as não sofre n e n h u ma ação. Todos os seus atos são eternos e au to d eterm in an tes e n e n h u m ato ou súplica das criaturas é capaz de in d u zi-lo a agir, a não ser q u e já esteja resolvido a fazê-lo e essa ação não seja contrária ao que ele é. A lguns críticos m o d ern o s q u es tionam co m o esse D eus pode então ser considerado pessoal. N ã o parece atender ou interagir co m nada fora dele m esm o. A m esm a coisa pode ser dita a respeito do D eus de A nselm o e de A quino. A im agem que am bos retratam do D eus estático e sem relacionam entos resulta de suas teologias naturais. Para D eus ser “tão grande q u e não se pode con ceber nada m a io r” o u “a prim eira causa eficiente de todas as
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coisas”, ele precisa existir sem sofrer alteração, ser p u ro ato sem potencialidade e, portan to , im pérvio à atuação de q u alq u er coisa fora dele. E esse o D eus da Bíblia? Foi precisam ente co ntra essa descrição de D eus q u e o grande filósofo e m ístico cristão do século xvii, Blaise Pascal, escreveu: “O D eu s dos filósofos não é o D eus de Abraão, de Isaque e de Jac ó ”. E n tretan to , a d o u trin a de D eus defendida p o r A quino é acolhida p o r m uitos estudiosos — tan to cristãos q u an to não cristãos — co m o um a obra de gênio e é a única q u e realm ente faz ju s à m ajestade e à glória de D eus. O s defensores dessa d o u trin a ficam o fendidos diante da acusação de q u e o D eus tom ista é “estático”. P erguntam : co m o a “p u ra realidade” e “o p u ro ato da existência” podem ser estáti cos? Esse D eu s é m u ito ativo, o q u e dificilm ente caracterizaria u m ser estático. Eles tam bém destacam as últim as partes da Suma teológica de A quino, nas quais fala dos atrib u to s divinos do am o r e da bondade, e nega a im plicação de q u e D eus é insensível, frio ou distante, q u e alguns críticos atribuem ao teísm o cristão clássico. Q u e m q u e r que esteja com a razão, um a coisa é certa: D eu s, a “causa não causada” de A quino, é im perm eável a q u alq u er m udança. Para ele, “D eu s é a própria exis tência subsistente p or si m esm a. C o n seq ü en tem e n te , ele precisa c o n ter d en tro de si a absoluta perfeição da existência”.18 Isso significa necessariam ente que, na linha de raciocínio de A quino, D eus não pode m u d ar e ser afetado é u m tipo de m u d a n ça. A quino afirm ava e defendia de form a resoluta e absoluta a im utabilidade de D eus: Esta é a prova de que Deus é absolutamente imutável. Primeiro porque, como foi demonstrado acima, existe uni primeiro ser, a quem chamamos Deus, que é puro ato, sem nenhum a potencialidade, pela simples razão que, sem dúvida, a potencialidade é posterior ao ato. Tudo, pois, que é alterado de algu ma forma está de certo modo na potencialidade. Logo, obviamente e impos sível que Deus sofra alguma mudança.19 Im u tab ilid ad e significa sim p lesm en te “não sofrer m u d an ças” e m u ito s teó lo gos, talvez a m aioria, antes de A quino tam b ém atribuíam essa qualidade a D eus. O pro b lem a q u e os teólogos m o d ern o s en c o n tram n o D eus de A quino está na noção m ais p ro fu n d a e intensa da sua falta de relacionam ento, que aparece q u an d o A quino considera a existência de D eus. P or causa da absoluta sim plicidade da essência de D eus e da realidade com pleta da sua existência, ele não se relaciona de form a algum a com as criaturas. O p ró p rio relacionam ento significaria algum tipo de ca rência, necessidade o u im perfeição de D eus. N as palavras do p ró p rio A quino: “C o m o D eus está to talm e n te fora da o rd e m das criaturas, já q u e elas são o rd e n a das p o r ele, m as ele não está p o r elas, fica claro q u e estar relacionado a D eus é a
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realidade das criaturas, m as estar relacionado às criaturas não é a realidade de D e u s”.20 B rian D avies, in térp re te m o d e rn o de A quino, chega à conclusão de que, para A quino, “o fato de existirem criaturas não faz diferença para D eu s [...]. N a teo ria de A quino, D eu s é im utável e assim perm anece, em b o ra seja verdade que existam criaturas que são criadas e sustentadas p o r ele”.21 A teoria de A qu in o lem bra bastante a de A nselm o e parece co m b in ar a idéia de A ristóteles, da Força M o triz Im óvel co m o “P en sam en to q u e concebe a si m e sm o ”, e a idéia de A gostinho, de q u e D eus é a realidade etern a q u e a tu d o d eterm in a. S egundo Davies, A quino até m esm o negou q ue a m isericórdia de D eus seja algum tipo de sentim ento. “‘S en tir-se triste pela desgraça de alg u ém ’, descreve, ‘não é u m a trib u to de D e u s’. [...] Para A quino, a m isericórdia de D eus está n o q u e ele p ro d u z e não !10 q u e algum a coisa p ro d u z n ele”.22 E com o se A quino deixasse sua teologia natural d eterm in a r a d o u trin a de D eus. N o en tan to , o retrato de D eus q u e daí se desenvolve não é m u ito d iferente dos retratos cristãos de tem pos anteriores. O q u e A quino fez foi definir bem o teísm o cristão clássico, q ue já tinha sido desenvolvido pelos apologistas, inclusive A gosti n h o e A nselm o. M as esse retrato é bem diferente do D eus da narrativa bíblica, que gen u in am en te sente pesar e tristeza e até m esm o se arrepende (atende) q u an d o as pessoas oram . Todas essas características e em oções de D eus são descartadas por serem consideradas m eros an tro p o m o rfism o s pelos defensores da teoria teísta clás sica, m as fica difícil não im aginar q u e tipo de D eus seria esse que am a (sem n e n h u m an tro p o m o rfism o ) m as não sente g en u in am e n te com paixão, m isericórdia, tristeza e pesar q u an d o suas criaturas sofrem 011 se rebelam .
A teoria de Aquino da linguagem religiosa como fala analógica O u tra área na qual A quino forneceu algum as sugestões inovadoras à teologia é a natureza da linguagem religiosa, 011 seja: o “discurso sobre D eu s”. O problem a que ele ten to u solucionar era com o o discurso h u m an o a respeito de D eus podia fazer sentido c realm ente descrever a pessoa de D eus, se a existência dele é tão radical m ente diferente de qu alquer criatura. D a m esm a form a q u e m uitos teólogos antes dele, tanto do O rie n te q u an to do O cidente, A quino sem pre insistiu em dizer que a essência de D eus é incom preensível. Podem os conhecer alguns atributos de D eus, m as não podem os penetrar 110 m istério da vida divina a ponto de descrevê-la direta ou literalm ente. C o n tu d o , A quino não se satisfez com a teologia apofática de alguns m ísticos e teólogos, na qual D eus só podia ser descrito pela negação, 011 seja, pelo que ele não é. A quino acreditava que a m elhor form a de en ten d er a linguagem h u m ana 110 tocante a D eus estava 11 a relação entre causa e efeito pela qual D eus é co nhecido na teologia natural: “O s efeitos são sem elhantes às causas, porque neles a operação e natureza de suas causas são colocadas em prática e m anifestadas. Por
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serem pro d u to s de suas causas, revelam o que os trouxe à existência”.23 H á, portanto, um a “analogia de existência” en tre causa e efeito q u e possibilita a descrição da causa invisível e desconhecida pelo exam e dos efeitos. P ortanto, a solução que A quino oferece para o problem a da linguagem sobre D eus gira em to rn o do conceito da analogia. Analogia é a figura de linguagem que se en co n tra en tre u m a declaração “unívoca”, na qual a palavra descreve algo literal m en te, e u m a declaração “equívoca”, na qual a palavra não descreve nada, m as sim p lesm en te evoca certos sentim entos. U m exem plo de discurso unívoco é afir m ar q u e a rocha é dura. A palavra “d u ra ” não é usada ein n e n h u m sentido m etafó rico o u poético. O significado é literal. “D u ra ” é o que a rocha é. Existe um a cor respondência en tre o significado norm al de “rocha” e o significado norm al de “d u ra”. U m exem plo de discurso equívoco é a declaração: “a lua é u m navio fantasm a”. N ão existe realm ente n e n h u m a sem elhança en tre u m navio fantasm a e a lua ou vice-versa. T rata-se de linguagem poética cuja intenção é evocar u m a sensação fantasm agórica. A q u in o arg u m en to u q u e q u an d o falam os da teologia dos atributos de D eus, não falam os de m o d o unívoco, pois D eus é sem pre m aior do q u e q u al q u er coisa na criação, n em de m o d o equívoco, pois dessa form a não saberíam os abso lu tam en te nada a respeito de D eus. N a verdade, to d o o discurso teológico a respeito de D eu s é analógico. A nalogia é a d escrição de algo em q u e o te rm o d escritiv o é se m e lh a n te e dessem elhante ao q u e descreve, assim co m o o efeito é sem elhante e dessem elhante à sua causa. Tudo que se diz a respeito de D eu s c das criaturas é dito à m edida que existe alguma relação entre a criatura e D eu s, quanto ao seu princípio e causa, na qual todas as perfeições das coisas preexistem perfeitam ente. Ora, essa forma de com unicação é um n ieio-term o entre a pura equivocidade e a sim ples univocidade. Pois, diferentem ente do que é unívoco, na analogia as idéias não são exatamente as mesmas; por outro lado, não são totalm ente diversas (com o na equivocidade); mas o nom e que é então usado em vários sentidos repre senta diversas proporções de uma m esm a coisa; por exem plo, saudável apli cado à urina expressa o sinal de saúde animal, mas aplicado à m edicina, ex pressa a causa da m esm a saúde.24
Por outras palavras, saudável é um a analogia q u an d o usada para descrever a u ri na e a m ed icin a de form as d iferen tes. Ao aplicar a D eu s a teo ria d o d iscu rso análogico, A quino escolheu o adjetivo sábio e disse q u e q u an d o é usado a respeito de D eus e de u m ser h u m an o , é usado de form a analógica. Em o u tras palavras, existe um a analogico en tre a sabedoria hu m an a e a sabedoria divina. Elas não são totalm en te diferentes, nem to talm en te sem elhantes.
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R esum indo, ao falarmos de D eu s, usam os palavras que norm alm ente são empregadas para descrever as coisas no m undo. Mas, à m edida que falarmos de m odo verdadeiro, estarem os nos referindo a algo (D eus) cujo m odo de ser descrito por nós c diferente de todas as coisas que descrevem os da m esm a maneira. N esse sentido, com preendem os e não com preendem os o que dize m os quando falamos a respeito de D eu s.25
A teoria de A quino da linguagem sobre D eus tem m u ita influência nas tradi ções teológicas ocidentais. M uitos protestantes e católicos rom anos a aceitam . As sim co m o m uitas outras proposições de A quino, ela reflete A ristóteles tanto q u a n to a Bíblia. A ristóteles defendia a idéia d o certo e do b o m co m o o “m eio de o u ro ” en tre os extrem os. A quino, portan to , estava novam ente aproveitando os pensa m en to s de u m pagão, “despojando os egípcios”, assim co m o m u ito s pensadores cristãos antes dele fizeram . M as certam ente não há nada de antibíblico na sua teo ria da linguagem religiosa e ela pode ser usada m u ito além dos lim ites do to m ism o 26 ou de q u alq u er o u tra filosofia ou teologia específica.
A doutrina da salvação segundo Aquino O que se pode dizer do conceito de A quino sobre a salvação? N a introdução deste capítulo, notam os que, em bora sua teologia filosófica pareça altam ente técnica e até m esm o especulativa, às vezes, seu propósito ulterior era proteger e prom over a salva ção. N essa área, A quino posicionava-se totalm ente acim a da linha divisória entre a natureza e a graça. A salvação não pode ser encontrada nem experim entada sem a graça sobrenatural de D eus, que é “a ação de D eus que nos leva à união com ele”.27 Essa transform ação pela graça é sem elhante ao conceito ortodoxo oriental da salvação com o divinização (theosis). Para A quino, a graça “é um a obra de D eus nos seres h um a nos que os eleva para além de sua natureza a ponto de se tornarem co-participantes da natureza divina”.28 E absolutam ente essencial levar cm conta duas coisas a respeito da idéia de A quino sobre a transform ação graciosa da salvação. Prim eiro, para ele, ela não destrói, m as eleva a natureza hum ana e realiza seu propósito. A natureza hum ana, segundo A quino, não ficou arruinada pela queda da hum anidade no im em orial ja r dim . A natureza hum ana talvez seja, por assim dizer, m ercadoria danificada, m as a im agem básica de D eus, que é a razão, perm aneceu intacta a despeito do pecado original. N a verdade, a queda destruiu a “justiça original” e não a im agem de Deus. Portanto, a graça da salvação, que se torna ativa pelo batism o, pela fé, pelos sacram en tos e pelas boas obras realizadas com am or, enaltece m as não transform a n em restaura a natureza hum ana. Ela restaura sim plesm ente o que foi perdido, ou seja, o verdadei ro relacionam ento com D eus. Ela o faz conferindo as virtudes teológicas da fé, da esperança e do am or e, finalm ente, levando o ser hu m an o à visão sde D eus n o céu.
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A segunda coisa im p o rtan te que se deve levar em conta a respeito da idéia de A q u in o sobre a graça da salvação é q u e ela n u n ca pode ser forçada. Ela é pura dádiva de D eus e não pode ser conquistada pelo m ere cim en to h u m an o . D eu s j a m ais deverá q u alq u er coisa ao ser h u m an o . Para A quino, assim co m o para A gosti nh o , até m esm o a fé é u m a dádiva da graça de D eus. T am bém com o A gostinho, A q u in o en ten d ia a fé co m o fidelidade, não apenas a decisão de confiar so m en te em D eus, m as a etern a devoção a D eus na obediência. Esse “h áb ito ” é um a dádiva de D eus in fu n d id a na pessoa pelos sacram entos. N e n h u m a boa o bra é capaz de causálo. S om ente D eu s pode. Esse processo da salvação pela graça é tan to justificação qu an to santificação. A prim eira palavra enfatiza o lado ju ríd ic o da salvação, n o qual a pessoa q u e está sendo salva se to rn a ju sta com D eus. A segunda, pelo contrário, designa o lado in terio r desse processo, n o qual a pessoa realm ente se torna cada vez m ais piedosa. Para A quino, as duas palavras são inseparáveis. São sim plesm ente duas form as d iferentes de descrever o m esm o processo da graça q u e tran sfo rm a a vida da pessoa para alcançar o objetivo m aior de co n tem p lar a D eu s n o céu. U m dos equívocos m ais com uns dos protestantes em relação à teologia de A quino é que achar q u e ele ensinava a salvação pelas obras. Essa interpretação protestante de u m lado está correta e de o u tro não. A quino realm ente acreditava q u e a partici pação nos sacram entos, co m o batism o, eucaristia e penitência, são elem entos es senciais n o processo crescente de justificação e santificação. Ele acreditava q u e a pessoa precisa exercer o livre-arbítrio e se esforçar para p o d er usar esses m eios de graça. A p rim eira vista, portan to , parece q u e ele acreditava q u e as boas obras p o dem levar à salvação. N o en tan to , no nível m ais p ro fu n d o de seu p en sam ento, A qu in o claram ente negava q u e q u alq u er esforço ou obra h u m an a é capaz de fazer a graça en tra r na vida dessa pessoa o u de conservá-la. E m ú ltim a análise, é tu d o obra de D eu s, in clusive a decisão e o esforço hu m an o s. S egundo A quino, a justificação não é, de m odo algum, conseqüência das “obras”. Ele certa m ente não acha que podem os chegar a D eu s ao confrontá-lo com justiça tal que o obriga a nos recompensar. Ele acha que som os justificados por D eu s unicam ente por sua generosidade. Para ele, nosso arrependim ento e o resul tado da forma com o nos com portam os (nossas “obras”) são reflexo, na h istó ria, do am or eterno e da bondade de D eu s enquanto não havia nenhum a reivindicação que o obrigasse a tanto.29
O contexto teológico necessário para c o m p re en d er o conceito de A q u in o sobre a salvação está na su a idéia geral so b re a p ro v id ê n c ia d e D e u s, in c lu siv e a predestinação. A q u in o seguiu A gostinho m u ito de p erto nessas d o u trin as, m as deu
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a elas suas próprias conclusões teológicas. N o tocante à providência, asseverou que D eus ord en a tu d o e é a causa su p rem a de tu d o o q u e acontece, a não ser do mal, q u e é m eram en te a ausência d o bem . N o en tan to , A quino acrescentou ao pensa m e n to de A gostinho a idéia de q u e D eus opera na natureza e na história através de causas secundárias. Isto é, em b o ra ele seja a causa prim ária da existência de todas as coisas, usa as coisas criadas para p ro d u z ir vários eventos individuais. N e m tu d o o qu e acontece é causado d iretam en te p o r D eus, p orém tu d o que existe na realidade está d en tro do plano, p ropósito, c o n h e cim en to e co n tro le de D eus. As escolhas do livre-arbítrio são os exem plos excelentes da idéia da causação secundária de A quino. O s seres h u m an o s agem e, ao agir, acreditam q u e realm ente estão fazendo com q u e aconteça u m a coisa que, de o u tra form a, não aconteceria. Existe certa verdade nisso, até m esm o para A quino, m as a verdade m aio r é q u e eles n u n ca teriam esco lhido ou agido de d eterm in ad a m aneira se D eus não tivesse disposto assim e colo cado em prática um a cadeia de causação para fazer co m q u e as pessoas orassem , se arrependessem , praticassem u m a boa ação ou o louvassem : D eus, portanto, é a primeira causa, que desencadeia tanto as causas naturais quanto as voluntárias. Ele não im pede que as ações das pessoas sejam natu rais, de m odo que, ao desencadear as causas voluntárias, não priva as ações de sua voluntariedade, mas, pelo contrário, é exatam ente a causa dela, pois opera em cada coisa de acordo com a sua própria natureza.30
N a natureza e na história, D eu s geralm ente opera através de causas secundárias naturais■, na redenção, D eus opera através das causas secundárias sobrenaturais. A graça da salvação deve invadir e enaltecer a natureza sem destruí-la. A razão faz parte do eq u ip am en to natural da pessoa e pode levá-la a saber q u e D eus existe e a buscá-lo. Até m esm o isso seria obra da providência divina. Para a pessoa alcançar a salvação, 110 en tan to , é necessário o ato gracioso especial de D eus q u e transcenda a m era razão, sem contradizê-la. Se isso acontecer na vida de alguém , só pode ser p o rq u e D eu s o d ecretou desde toda a eternidade. Todas as decisões e atos de D eus são eternos, de m o d o q u e é absurdo sugerir q u e D eus, de algum a m aneira, seleci ona arb itrariam ente, d en tro do tem po, alguém para ser salvo. Pelo contrário, D eus, etern a e soberan am en te, escolheu alguns seres h u m an o s para serem salvos c lhes outorga a graça necessária para a transform ação. Q u e eles o rem p ed in d o a salvação não é p or acaso e n em é gratuito no sentido de p o d er acontecer de o u tra form a (livre-arbítrio de incom patibilidade). Pelo contrário, para A quino, co m o tam bém para A gostinho, o livre-arbítrio é sim plesm ente fazer o q u e se q u e r e se resolve fazer e isso é com patível com a incapacidade de fazer o u tra coisa. Para ele, p o rtan to, a predestinação é com patível com o livre-arbítrio.
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N e m todos os teólogos católicos rom anos seguiram A quino na sua d o u trin a da predestinação. D epois dele, irro m p eram controvérsias precisam ente a respeito dessa questão e os jesu ítas — um a o rd e m de sacerdotes fundada d u ra n te a R eform a no século xvi — em geral rejeitaram o m o n erg ism o e optaram pelo sinergism o. M u i tos teólogos católicos, assim co m o protestantes, preferem deixar 110 âm bito do m istério a q uestão do livre-arbítrio e da soberania divina. M as está claro o firm e posicio n am en to de A q uino ao lado de A gostinho em favor d o m o n erg ism o . N e n h u m a vontade de D eu s nasce da influência da atuação d o ser h u m a n o o u de o u tra criatura. A atuação das criaturas, com o decidir orar e p edir algo a D eus, in d ireta m en te, é resultado do decreto etern o e da atuação de D eus: Segundo A quino, portanto, a providência governa tudo, mas nem tudo aconte ce de acordo com a necessidade natural e precisamos levar em conta a liberdade humana. M esm o assim, a liberdade humana enquadra-se no escopo da provi dência, posto que D eu s opera em todas as coisas. Ele não o faz com o um objeto no m undo, com o algo que agisse para causar uma mudança no contexto onde ele m esm o habita. Ele o faz com o quem chama à existência todas as coisas mutáveis que conhecem os ou que podem os entender.31
T endo em m en te esse contexto teológico, parece bastante irônico q u e alguns protestantes acusem A qu in o de sem ipelagianism o! Trata-se apenas da aparência superficial, devido à sua forte ênfase na graça habitual q u e transform a a vida de u m a pessoa n u m processo que envolve obras do am or. Sob a superfície, n o e n ta n to, o esquem a de A qu ino inclui a atuação d eterm in a n te de D eus, q u e p reo rd en a e p ro d u z essas obras do am or. As queixas de alguns protestantes contra a soteriologia de A quino devem co n centrar-se na verdadeira questão: a distinção e n tre a justificação e a santificação. A quino se recusava a diferenciá-las. U m a pessoa só é justificada — ju s ta perante D eus — q u an d o é in tern a m e n te santificada pela piedade. D u ra n te a R eform a 110 século xvi, todos os reform adores protestantes insistiam em fazer nítida distinção en tre a justificação (na qual D eus declara q u e u m a pessoa é ju sta) e a santificação (a obra de D eus q ue tran sform a e cria a retidão in terio rm en te). D e n tro da estru tu ra m onergística, no en tan to, não faz m u ita diferença se forem o u não diferenciadas. Em últim a análise, as duas estão to talm en te garantidas, in d ep en d e n tem en te de um eventual esforço o u decisão da pessoa. Logicam ente, d en tro dessa estru tu ra , a ju s tificação, no sen tid o de D eus to rn ar um a pessoa ju sta diante de si, acontece na etern id ad e pela p reordenação de D eus. E so m en te d en tro da soteriologia sinergista q u e re a lm e n te im p o rta se d istin g u im o s c la ra m e n te o u n ão a ju s tific a ç ã o da santificação e, na época de L u tero , a m aioria dos católicos ro m an o s a d o to u o
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sinci gism o, em b o ra para todos os efeitos elegessem A gostinho e A quino com o seus g ran d es h eró is teológicos. Foi ex atam en te c o n tra o p e n sa m e n to católico sinergista de seu tem p o que L utero se rebelou. É para a história da teologia católica ro m an a após A quino q u e agora dirigirem os a nossa atenção. E m b ora A quino tenha d o m in ad o o p en sam en to da igreja ocid en tal d u ra n te séculos depois de sua m o rte, alguns teólogos católicos m edievais desvi aram -se de seu sistem a teológico e filosófico básicos e ajudaram a co n stru ir os alicerces para a R eform a. Três deles, em especial, destacam -se p o r serem notavel m en te im po rtan tes n o perío d o transicional en tre A q u in o e Lutero: G u ilh erm e de O ccam , Jo ão Wycliffe e D esidério E rasm o. Todos eles, a seu m o d o , desafiaram as p ressuposições do escolasticism o m edieval (em b ora aproveitando-se da cultura dele recebida) e ajudaram a abrir o cam in h o para as reform as p rotestante e católica do século xvi.
23 Os nominalistas, os reformadores e os humanistas desafiam a síntese escolástica
cu ltu ra européia e n tro u em polvorosa nos séculos xiv e xv. O nacionalism o estava em alta, a peste b ubônica dizim ava a população e a igreja estava se d e sm o ro nando. O grande so n h o de o u tro ra da E uropa to talm en te unificada e governada pelo papa e pelo im p erador trabalhando ju n to s sob a orientação divina com eçou a se desvanecer rap id am ente q u an d o a igreja caiu sob o d o m ín io dos reis franceses e o papado m u d o u -se para Avinhão, na França (1309-1377), e q u a n d o os reis das nações q u e su p o stam ente faziam parte d o Sacro Im p ério R o m an o en traram em guerra uns co n tra os o utros. A grande depressão da igreja m edieval e d o respeito e autoridade q u e gozava aconteceu n o G rande C ism a d o O c id e n te q u an d o , a p rin cí pio, dois h o m en s e, depois, três conseguiram , com sucesso, reivindicar o títu lo de papa (1378-1417). N o clim a de confusão e caos cultural e religiosos co m o esse, não é de adm irar q ue alguns teólogos cristãos com eçaram a se aliar a reis sob cuja proteção podiam p rosperar en q u a n to reivindicavam reform as tan to na estru tu ra da igreja q u an to na teologia.
A Renascença e três reformadores da pré-Reforma Além d o tu m u lto do nacionalism o e da corrupção eclesiástica, o u tro fen ô m en o aju d o u a preparar o cam in h o para as m udanças radicais na igreja e na cu ltu ra em geral: a Renascença. A R enascença não foi u m m o v im e n to isolado. C ertam e n te não tinha n e n h u m cen tro de atividades, em b o ra alguns co n sid erem F lorença, na Itália, com o tal. A R enascença foi, na verdade, um a tendência (ou estado de ânim o) da elite cu ltu ral da E uropa, q u e com eçou no século xrv, g anhou força n o século xv e alcançou o apogeu no século xvi. Foi a reação contra o co n tro le opressivo sobre a cu ltu ra de governantes e clérigos co rru p to s e aproveitadores; um a onda de indivi du alism o na qual os artistas assinavam as próprias obras e os gênios literários escre viam autobiografias e reverenciavam a criatividade h um ana; um a onda de liberda de, cultura, ênfase nas artes e ciências hu m an as e de incansável busca de algo novo
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que tirasse a civilização européia da Idade das Trevas (assim os líderes da R enas cença consideravam a era m edieval com o um todo) e a encam inhasse para um a nova era de prosperidade, beleza e esclarecim ento. O espírito da Renascença pode ser resum ido em um a só palavra: hum anism o. O hum anism o da Renascença, no entanto, não era “secular”. Pelo contrário, era sim ples m ente crença na criatividade cultural do hom em , que rejeitava o pessim ism o agostiniano a respeito da hum anidade que reinou soberano por mil anos. Essa doutrina tinha gran de interesse pelas artes e ciências que vieram a ser chamadas de hum anidades. Essa é a verdadeira origem da palavra humanismo: o interesse pelas hum anidades. N a Itália, o hum anism o adquiriu u m teor distintivam ente pagão, à m edida que os intelectuais e artistas buscavam fontes de inspiração helenistas, pré-cristãs. Ao longo do rio Reno, no norte da Europa, o hum anism o continuou solidam ente cristão, em bora se distan ciasse do escolasticismo e m esm o discordasse abertam ente de Agostinho no tocante ao pecado original com o depravação total. A Renascença no norte causou m udanças radi cais na teologia e acabou contribuindo m uito para a Reform a protestante. Três teólogos destacam -se nesse perío d o transicional de d u zen to s anos e n tre a alta Idade M édia e a R eform a: G u ilh erm e de O ccam , Jo ão W ycliffe e D esidério E rasm o. O s dois prim eiros reagiram contra a autoridade opressiva do papa e da hierarquia eclesiástica e tam bém contra o escolasticism o na filosofia e na teologia. N o en tan to , eles m esm os eram escolásticos com parados a E rasm o, q u e apareceu p o sterio rm en te e to rn o u -se o pensador m ais in flu en te da R enascença n o n o rte e do h u m an ism o cristão. A reputação de O ccam na história da teologia cristã está na renovação do n o m in alism o que, p o r sua vez, ajudou a criar o m o v im en to de refor m a d en tro da Igreja C atólica q u e recebeu o n o m e de conciliarism o. Indiretam ente, isso tam b ém in flu en c io u o n ascim en to da teologia p ro testan te com M a rtin h o L utero, cujo trein am en to filosófico e teológico foi altam ente nom inalista. Wycliffe ficou fam oso não apenas pelo trabalho de tradução da Bíblia, mas tam bém p o r suas idéias a respeito da igreja e da salvação q u e influenciaram o grande refo rm ad o r boêm io, Jo ão H u s, q u e foi q u eim ad o na fogueira cm 1417, m as deixou u m grande legado, m otivo pelo qual L utero é cham ado de “H u s saxônio”. P o rtan to, a teologia de W ycliffe tam b ém influenciou, de m o d o indireto, tan to L utero q u an to a Igreja da Inglaterra. Seus seguidores na Inglaterra, cham ados lollardos, ajudaram a realizar a R eform a, d u zen to s anos após sua m orte. A fam a de Erasm o está na “filosofia de C risto ”, um a alternativa à filosofia e teologia escolásticas m e dievais. U m ditado po pular do século xvi dizia: “E rasm o bo to u o ovo q u e L utero c h o c o u ”. O s três h o m en s — O ccam , W ycliffc e E rasm o — serviram de ponte e n tre o escolasticism o m edieval e o p rotestantism o. N esse processo, todavia, a p o n te foi destruída, de m o d o que, a teologia pro testan te q u e surgiu tinha pouca ou n en h u m a sem elhança real com o escolasticism o m edieval.
O s nom inalistas, os reform adores e os hum anistas desafiam .
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Guilherme de Occam e o nominalismo G u ilh e rm e de O c cam nasceu p o r volta de 1280 o u 1290, p e rto da aldeia de G u ild fo rd , co n d ad o de Surrey, Inglaterra. Pouca coisa se sabe a respeito de sua infância e ju v e n tu d e , m as a vida pública co m eçou com seus estudos na U n iv ersi dade de O x fo rd , o n d e se to rn o u frade franciscano e tam b ém en sin o u Filosofia e Teologia até 1324. Escreveu, co m o era de costum e, u m a crítica acadêm ica sobre as Sentenças do teólogo m edieval P edro L om bardo, que co n tin h am u m a série de d e clarações oficiais, tiradas da Bíblia, dos pais da igreja e especialm ente de A gostinho. As Sentenças foram escritas p o r volta de 1150 e se to rn aram leitura obrigatória de teologia na E uropa da Idade M édia. Q uase todos os jo v en s estudantes de teologia am biciosos tin h am de escrever u m co m en tário a respeito. O c o m en tário de O ccam não foi bem recebido p o r alguns dos seus colegas, n em pelas autoridades eclesiás ticas. E m 1324, seu co m entário foi co n d en ad o co m o hetero d o x o p o r u m sínodo de bispos e teólogos da Inglaterra e O ccam foi intim ado a com parecer em A vinhão, na França, on d e residia o papa, a fim de se d efen d er diante da C úria, o trib u n al papal. Ao chegar em Avinhão, O ccam foi confinado à casa dos franciscanos (u m tipo de m osteiro na cidade) e ali m antido p o r dois anos, antes de sua condenação final com o herege em 1326. U m a das razões para a condenação de O ccam foi seu apoio ao g ru p o de franciscanos radicais q u e queriam voltar aos ideais de pobreza d efen didos p or Francisco de Assis. Esses “franciscanos p o b re s” criticavam d u ra m e n te o pod er e as riquezas do papa e da igreja, c o n tra p o n d o -o s com o m o d o de vida de C risto. O papa Jo ão xxii iniciou um a cam panha co n tra os franciscanos radicais e todos os dem ais franciscanos q u e sim patizavam com eles. O ccam fugiu de seu co n fin am en to em A vinhão e conseguiu viajar até a corte do rei Ludovico da Bavária, em M u n iq u e , na A lem anha. Ludovico tam b ém era im p e rad o r do Sacro Im p ério R om ano naqueles tem pos, sendo, p ortanto, u m p ro teto r poderoso. Por acaso, ele estava envolvido em um a disputa acalorada com o papa e po r isso m o stro u -se m ais d o q u e disposto a oferecer abrigo a dissidentes com o O ccam . Em troca de proteção e patrocínio, o frade c teólogo franciscano escreveu tratados q u e argum entavam em favor da autoridade su p rem a d o im p erad o r sobre a igreja e o estado. N o final, “O ccam foi solen em en te excom ungado ao u n ir-se com o m onarca co n tra o qual o papa já tinha esgotado todas as m aldições espirituais”.' A lém disso, en q u a n to residia e ensinava em M u n iq u e, O ccam escreveu a m aior parte de suas grandes obras de lógica, teologia e ética. E provável q u e seja mais fam oso, fora dos círculos teológicos por causa do desenvolvim ento e em prego do princípio que se to rn o u co n h ecid o com o a “N avalha de O c cam ”. E xistem m uitas versões desse princípio, m as basicam ente trata-se de um a regra de econom ia de explicação am plam en te considerada um a das descobertas m ais im p o rtan tes do iní cio da ciência m oderna. O ccam argum entava, em todos os seus escritos, que “é
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perda de tem p o em pregar vários princípios [para explicar fen ô m e n o s], q u an d o é possível em p reg ar apenas alguns”.2 E m outras palavras, se u m evento específico na natu reza pode ser explicado pela alusão a u m ú n ico an teced en te causal, é inútil p o stu lar o u tros. A N avalha de O ccam operava contra a tendência dos líderes ecle siásticos de po stu lar duas causalidades para as coisas — u m a natural e o u tra espiri tual. Assim , co n fo rm e dizia O ccam , se um a lei da natureza explica p o r que um a rocha desceu ro lan d o pela encosta de u m a m o n tan h a, não faz sen tid o declarar, tam b ém , q u e u m anjo o u u m d em ô n io a em p u rro u . O ccam tam bém é conhecido na história intelectual geral p o r ter desenvolvido e defendido um a versão do nom inalism o. Se ele era nom inalista o u não é um a questão extrem am ente controversa. M uitos preferem , com razão, cham ar de “conceitualism o” a sua teoria de universais. D e m uitas m aneiras, ela reflete a teoria que Abelardo desenvolveu contra o realism o extrem ado, dois séculos antes. É m ais apropriado cham ar nom inalistas os seguidores de O ccam , já que a teoria de vários deles foi m u ito além do que o p róprio O ccam postulou. M esm o assim, bem ou m al, O ccam é geralm ente considerado u m filósofo e teólogo d o nom inalism o m oderado do final da Idade M édia. D e q ualquer form a, não há dúvida de q u e “O ccam [...] rejeitava categoricam ente todas as form as do realism o e fundam entava o conhecim ento na apreensão direta dos objetos individuais”.3 N o seu tem po, isso significou u m revo lucionário passo adiante e m uitos historiadores creditam o início da ciência m o d er na a ele. Eles m encionam a via moderna, o “cam inho m o d e rn o ” do conhecim ento, q ue com eça com O ccam e continua com C opérnico, G alileu, K epler e N e w to n .4 Já no fim da vida, O ccam p erd eu seu status em M u n iq u e q u an d o o im perador Ludovico, o Bávaro, ten to u reconciliar-se com os papas de A vinhão. Ele m o rre u , acom etido pela peste em 1349, antes de ser obrigado a fugir de M u n iq u e. N u n c a se reconciliou co m a igreja e m o rre u con d en ad o co m o herege e excom ungado. M es m o assim , sua influência foi sentida em todas as partes do n o rte da E uropa. Ela p rovocou u m a desilusão geral com o realism o tradicional defen d id o pela hierar quia da igreja e co m isso ajudou a d im in u ir o alto conceito em q u e a igreja era m antida. A ju d o u a in spirar e alim entar o conciliarism o, q u e pregava q u e a igreja deveria ser governada p o r concílios e não p o r papas. A lém disso, provocou, de m o d o sutil, um a divisão en tre a fé e a razão e, assim , subverteu o m éto d o escolástico de usá-las na teologia. D e m o d o geral, não se pode negar q u e O ccam foi um a figura revolucionária, em bora não ten h a desenvolvido n em pro m o v id o n e n h u m a d o u tr in a n o v a. P elo c o n trá rio , “su a c rític a ló g ica s a c u d iu os a lic e rc e s d o escolasticism o e a dialética dos séculos q u e se seguiram girou em to rn o das q u es tões que ele lev an to u ”.5 N a base de todas as outras inovações q u e O ccam realizou em q u alq u er área da vida intelectual en co n tra-se a teoria das proposições universais. Essa área inteira da
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filosofia soa tão abstrata e obscura para m uitas pessoas da atualidade, q u e será bom exam inarm os a natureza da controvérsia e o m otivo de ter sido tão im p o rtan te em boa parte da Idade M édia. “P roposição universal” é u m a qualidade ou característi ca atribuída a várias coisas. A controvérsia en tre os realistas e os nom inalistas, e as várias via media, o u visões m oderadas, dizia respeito ao status ontológico das p ro posições universais — sua existência e m o d o de ser. P roposições universais com o “v erm elh id ão ”, “beleza” e “b o n d ad e” de algum a form a são reais destituídas das coisas nas quais se inserem ? O s realistas de todos os tipos declaravam q u e as p ro posições universais são reais e insistiam q u e n e n h u m a o u tra teoria seria capaz de abarcar um a idéia racional e ordenada do universo. Eles argum entavam que, se as proposições universais não fossem reais, estando acim a e à parte das coisas, a o r d em da realidade não passaria de invenção im posta pela m en te h u m an a para as coisas e não a o rd em , já in eren te das coisas, descoberta pela m en te hum ana. S ub traia as proposições universais ontologicam entc existentes e tu d o o q u e restará será u m “m o n te de desab ro cham entos e zu m b id o s” das coisas da natureza. O s realistas arg u m entavam q u e seu conceito sobre proposições universais es tava in trin secam en te ligado à cosinovisão e à teologia cristã. P or exem plo, não tin h a C risto assu m id o a natureza h u m an a genuína na encarnação? O q u e era isso, senão u m a proposição universal? Ela não tinha hypostasis própria. Foi hipostasiada no Logos (a d o u trin a da enhypostasia, de Leôncio). Q u a lq u e r teoria irrealista ou anti-realista, co m o o n o m in alism o , teria considerado a encarnação im possível. E o que d izer da substância divina única da trindade? A negação das proposições u n i versais não resultaria n o triteísm o? M as o p o n to m ais delicado da controvérsia en tre os realistas e os nom inalistas na alta e baixa Idade M édia na E uropa relacio nava-se com a igreja. A Igreja C atólica R om ana chegou a co n ceb er a igreja — o co rp o de C risto — co m o algo à parte dos gru p o s de indivíduos q u e a constituíam . Ela é “m ística”, isto é, é espiritual, tran scen d en te, sobrenatural. Essa eclesiologia teria de ad otar o realism o co m o sua base. O s realistas consideravam q u a lq u e r re jeição radical d o realism o quase co m o heresia, pelos efeitos q u e acabaria p ro v o cando em to d o o sistem a da crença cristã e na sociedade. O s realistas estavam convictos de q u e seu co n ceito das proposições universais era o ú n ico baluarte co n tra o relativism o — a idéia de q u e não existem valores absolutos, n em p rin cí pios éticos e m orais sólidos. G u ilh erm e de O ccam pode não ter sido nom inalista n o sen tid o q u e m u ito s estudiosos em pregam esse term o. O nominalismo não raro é considerado a negação radical da realidade das proposições universais, a p o n to de reduzi-las a m eras pala vras inventadas p or seres h u m an o s para descrever as sem elhanças e n tre coisas dis tintas. E d uvidoso que O ccam tenha ido tão longe em sua teoria das proposições universais. O u tro s nom inalistas chegaram até esse ponto. M as O ccam realm ente
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seguiu A belardo ao arg u m en tar que “a generalidade do nosso pen sam en to é subje tiva”.6 E m outras palavras, co n fo rm e argum enta u m co n hecido m edievalista, “a idéia q u e perm eia as considerações teológicas de O ccam é a rejeição de todas as facetas d o realism o. As proposições universais não têm existência na realidade. São invenções co n venientes da m en te, sím bolos q u e representam várias proposições específicas de um a v ez”.7 U m a das razões de O ccam rejeitar as proposições univer sais o n to logicam ente reais é q u e a crença nelas viola a sua “navalha”. A realidade pode ser descrita de m o d o adequado sem n e n h u m a referência a elas, portan to , são supérfluas. Ele tam bém considerava a crença nas proposições universais co n fo rm e os realistas as en ten d iam , co m o contraditórias em si m esm as. O s realistas as des crevem com o entidades individuais existentes em várias coisas, m as O ccam argu m entava que algo individual não pode existir em várias coisas sim u ltan eam en te e p erm an ecer individual. P ortanto, o realism o é ilógico. E ntão, qual era o conceito q u e O ccam fazia das proposições universais? Suas considerações a esse respeito parecem ter se desenvolvido n o d ec o rre r de sua car reira. E m c e m ocasião, ele as co n sid ero u m era ficção, o q u e su b en ten d e algo in ven tad o pela m ente. P o sterio rm en te, p o rém , a p rim o ro u sua opinião e co n sid ero u as proposições universais im agens m entais com existência real, m as apenas na m e n te, co m o idéias. As pessoas dos tem pos m o d ern o s co stu m am ad m itir q u e as idéias são irreais p o r serem incom ensuráveis ou intangíveis. A ntes dos tem p o s m o d er nos, as pessoas não pensavam assim . Para O ccam e quase todas as pessoas da E u ropa no fim da Idade M édia, u m conceito pode ter realidade ontológica m esm o q u e não possa ser pesado na balança. Foi essa posição q u e ele fin alm en te adotou em relação às proposições universais. A creditava e argum entava q u e elas são im a gens reais partilhadas p o r m uitas m en tes ao m esm o tem p o e não são coisas reais fora da m en te (co m o n o realism o), n em m eras palavras arbitrárias e convencio nais (co m o 110 n o m in alism o extrem ado). E u m tipo de realidade ligado a idéias gerais, em b o ra essa realidade não seja objetiva n o sen tid o de ter existido fora da m en te. S o m en te o in d iv íd u o existe objetivam ente. P ortanto, para O ccam : “N ão existe b ran q u id ão , m as coisas brancas diferentes. O s sím bolos m entais não p o dem , p o rtan to , se assem elhar a entidades gerais, p o rq u e tais coisas não existem ”.8 Para os historiadores, essa idéia é revolucionária e m arca u m a era: é u m a rev o lu ção copérnica da filosofia. N o s s o in te re s s e p rin c ip a l a q u i é c o n h e c e r O c c a m c o m o te ó lo g o . S eu n o m in alism o ou co n ceitualism o teve efeitos de grande alcance na teologia. P ri m eiro, ap resen to u um a divisão en tre a fé e a razão e seguiu na direção do fideísm o, ou a “u n icam en te da fé”, co m o base da crença cristã. A fé escolástica na razão foi gravem ente subvertida pela filosofia de O ccam . S egundo, a filosofia e a teologia de O ccam enfatizavam a vontade divina acim a da natureza e da razão de D eus. Essa
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ênfase da teologia é cham ada voluntarism o. D eus não ord en a as coisas p o rq u e são boas; elas são boas sim plesm ente p o rq u e D eus as ordena. D eus poderia, da m esm a form a, ter o rd en ad o outras coisas. Todas as coisas existem da form a q u e são sim plesm en te p o rq u e D eus v o lu n tariam en te opta p o r sua existência e não p o rq u e ele segue algum padrão etern o fora o u d en tro de seu p ró p rio ser. Terceiro, o pensa m en to de O ccam aju d ou a estabelecer o conciliarism o na eclesiologia. A rejeição de O ccam às proposições universais o b jetivam ente reais afastou-o da teologia natural, que tirava conclusões a respeito de D eus e das realidades esp iritu ais seg u n d o um a o rd em lógica in eren te n o universo e percebida pela m ente. O u seja, o realism o subjaz à m aior parte da teologia natural escolástica. O ccam acredi tava q u e existe apenas um a verdade sobre D eus q u e pode ser conclusivam ente estabelecida pela razão: a de que D eus existe. N e m m esm o a crença no ún ico D eus pode ser com provada de m o d o conclusivo so m en te pela razão. A fé na verdade da revelação divina é a base desta crença cristã e de quase todas as dem ais.9 O ccam estabeleceu u m padrão d e com provação m u ito m ais alto d o q u e q u al q u e r o u tro , n o e n ta n to , rejeito u provas racionais da m aioria das crenças cristãs p o rq u e d ep en d iam de u m tipo de co n h e c im e n to q u e sim p le sm e n te não pode ser co n ceb id o pela m en te h u m an a sem u m a revelação especial: o c o n h e c im e n to das realidades invisíveis e espirituais. A lém disso, as com provações nas quais A nselm o se baseou levavam a conceitos, m as os conceitos não im plicam necessariam ente na existência. “E m re su m o , não se pode chegar ao c o n h e c im e n to filosófico c o n clusivo a resp eito de D eus. N o sso s conceitos a respeito dele ap resen tam o m es m o defeito de to d o s os conceitos: não provam a existência. Para c o n h e cerm o s a D eus co m o ser existente, teríam os q u e a p reen d ê -lo pela in tu ição [experiência sensorial]; e isso é im possível”.10 A teologia natural, portan to , estava fora de questão para O ccam . Ele to m o u tu d o o q u e estava abaixo da linha divisória d o esquem a de dois rein o s de A q u ino sobre o co n h e c im e n to teológico, com exceção da exis tência de D eus, e co lo cou acim a. E n tre ta n to , isso d ificilm en te co n stitu iria a teo logia natural, especialm ente q u an d o a razão natural não consegue provar q u e existe um só D eus. A teologia filosófica de O ccam levou-o a fazer um a distinção e n tre dois poderes de D eus: potentia absoluta e potetitia ordinata — o p o d er absoluto e ilim itado de D eus e o p o d er o rd en ad o de D eus na realidade, co n fo rm e ele opera n o m u n d o . Essa é a base teológica d o vo lu ntarism o. O p o d er de D eus não é lim itado p o r nada a não ser pelas leis m ais rigorosas da lógica, co m o a lei da não-contradição. A não pode ser igual a não-A. M as O ccam não considerava que essa fosse realm ente u m a lim ita ção, pois u m ser q u e pudesse agir contra a lei da não-contradição seria co m p leta m en te arbitrário e sem sentido. N ã o seria possível co n h e cer e nem falar nada a respeito desse ser. U n ica m e n te nessa questão, O ccam concordava co m p letam en te
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com a tradição realista da teologia. Fora desse aspecto, ele não lim itaria D eus de n e n h u m a m aneira. E m outras palavras, para O ccam não havia n e n h u m sen tid o na m aneira de D eus criar e agir d en tro da criação, a não ser o fato de ele assim querer. A potentia absoluta de D eus é o seu poder de desejar u m a coisa diferente do que faz e esse p o d er é sim plesm ente irrestrito. A potentia ordinata de D eus é seu p o d er de desejar o q u e faz e tam b ém é sim plesm ente irrestrito. D a perspectiva de O ccam , p o rtan to , D eu s poderia ter encarnado em u m a rocha, em um a árvore ou em um ju m e n to . O p to u p o r encarnar em u m ser h u m an o . A inda m ais, O ccam acreditava que, q u an d o D eus o rd en a algum a coisa — tal co m o o arrep e n d im en to e a fé — , não é p o rq u e existe u m a estru tu ra eterna e im utável na realidade q u e estabelece que essas coisas sejam boas. Pelo contrário, elas são boas sim plesm ente p orque D eu s deseja e ord en a q u e sejam boas. Para O ccam , portan to, “u m ato h u m an o é bo m o u m oral, não p o rq u e está em co n fo rm id ad e com um a lei etern a q u e existe p o r si m esm a e que até governa a vontade de D eus, m as sim plesm ente p o rq u e é d eterm in ad o e o rd en ad o pela v o n tade de D eus. Logo, o que D eu s q u e r é bom e o q u e ele proíbe é m a u ”.11 Isso significa q u e D eus poderia d eterm in a r u m a coisa diferen te d o q u e ele determ ina. D eus poderia d eterm in a r o mal. A ética, a m oralidade e o p ró p rio ca m in h o da salva ção estão todos fu n d am entados na vontade de D eus e não na natureza de D eus, nem nas estru tu ras eternas da realidade q u e refletem a natureza de D eus. O s o p o n en tes de O ccam en ten d e ram q u e isso im possibilitaria um a ética racio nal ou q u alq u er justificação filosófica da m oralidade cristã. D eve-se obedecer aos m an d am en to s de D eu s sim plesm ente p o rq u e D eu s assim o rd e n o u . G eralm ente, não se pode apresentar n e n h u m a razão além desta. N a sua potentia absoluta, D eus poderia m u d ar de idéia e, am anhã, o rd en ar o ódio e o assassínio. N a sua potentia ordinata, ele não o faz. Pelo contrário, decide o rd en ar o am o r e a paz. “Todos e n te n diam q ue a p rópria distinção significava que, dada a onipotência divina. D eus p o dia agir de form a contrária a q u e razão supõe ou d eterm in a e que, p o rtan to , era inútil ten tar co m p ro v ar p o r arg u m en to s de necessidade lógica o que, na realidade, é verdade so m en te p o rq u e D eus assim d e te rm in o u ”.12 O v o lu n ta ris m o d e O c c a m flu iu d ire ta m e n te d e seu n o m in a lis m o (o u conceitualism o) p o rq u e “indica a vontade produtiva de D eus com o fu n d am en to do universo [e das leis q u e o regem ], em vez de sua essência im utável”.13 D eus, seg u n d o O ccam , não possui n e n h u m a essência im utável q u e lim ite de algum a form a sua vontade e poder. Se ele a possuísse, ela seria u m a proposição universal com realidade objetiva e ontológica. E isso não existe. P ortanto, O ccam chegou à conclusão de que até m esm o D eus é u m indivíduo, m as com p o d er absoluto e incondicional para fazer tu d o o q u e desejar fazer. Assim co m o sua rejeição da teologia natural, o v o lu n tarism o de O ccam in flu -
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enciou L utero, d u zen to s anos m ais tarde. L utero considerava O ccam u m herói por ter d erru b ad o o escolasticism o e afirm ado o p o d er absoluto de D eu s, q u e não pode ser lim itado n em co m p re en d id o pela razão hum ana. L utero escreveu a respeito do “D eu s o cu lto ” ten d o em m en te a potentia absoluta de O ccam com o o D eus in d o m á vel da Bíblia, que n u n ca pode ser lim itado pela m en te h u m ana. Para os realistas, católicos o u p rotestantes, esse D eus parece arbitrário, irracional e perigoso. M as, para reag ir c o n tra o e sc o la stic ism o m ed iev al, L u te ro q u e ria u m D e u s m ais im previsível e incontrolável e en c o n tro u em O ccam u m aliado. N e n h u m a área da teologia de O ccam era m ais radical e m ais co n tro v ertid a para a época do q u e sua eclesiologia. O ccam reagiu contra toda a estru tu ra hierárquica m edieval da igreja e sua tendência de identificar o corpo de C risto com o clero, ex cluindo quase to talm ente o laicato. C ritico u , so b retu d o , o papel d o bispo de R om a — o papa ou su m o pontífice — daquele tem p o e p ro c u ro u re to rn ar ao m o delo m ais bíblico de liderança eclesiástica. “S egundo O ccam , na religião organiza da existem so m en te os crentes, as E scrituras e os sacram entos, q u e são os aspectos m ais essenciais. P ortanto, segundo ele, o sistem a tradicional hierárq u ico da igreja outorgava a u m ú n ico pontífice u m a autoridade sem n e n h u m fu n d a m e n to nas E scrituras”.14 C o m base em seu conceito nom inalista o u conceitualista das p ro p o sições universais, O ccam negou a essência invisível da igreja que, supostam ente, residia n o papa e nos bispos, arcebispos e cardeais por ele nom eados e, em vez disso, identificou a igreja com os crentes q u e a c o m p u n h am . Para ele, “a igreja é a reunião de todos os crentes, a co m u n id ad e dos cristãos. [...] Todo cren te é m e m b ro da co m u n id ad e cristã”.'3 O s “conciliaristas” eram clérigos com o M arsílio de Pádua (1275-1342) q u e co m binavam o n o m in alism o de O ccam com suas teorias da igreja e d o estado, dando en fo q u e sobre os indivíduos e seu d iscern im en to pessoal na ética e declaravam que a igreja devia ser g o v ernada p o r co n cílio s e não p o r u m ú n ic o in d iv íd u o . O conciliarism o to rn o u -se m u ito po p u lar na R enascença e suas idéias ajudaram a preparar a igreja e a sociedade européia para a R eform a protestante. Sem dúvida, além disso, ele p re n u n cio u os m ov im en to s dem ocráticos m o d ern o s e co n stru iu suas bases. A Igreja C atólica R om ana rejeitou o conciliarism o e O ccam ; todavia tan to u m co m o o o u tro afetaram p ro fu n d am en te toda a sociedade européia.
João Wycliffe e os lollardos João W ycliffe nasceu na terra natal de O ccam , na Inglaterra, aproxim adam ente na m esm a data em que o exilado excom ungado m o rre u de peste em M u n iq u e. E m bora chegassem a m uitas conclusões idênticas no tocante à igreja, W ycliffe e O ccam divergiam g ran d em en te nas abordagens básicas da filosofia e da teologia. W ycliffe era realista em relação às proposições universais, m as acreditava, assim co m o O ccam ,
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q u e o papa era co rru p to e q u e a igreja deveria ser governada pelo povo de D eus com seus respectivos representantes c não pela e stru tu ra hierárquica clerical. Wycliffe nasceu p o r volta de 1330 em L u tterw o rth , n o condado de Y orkshire, na Inglaterra. M o rre u ali em 1384 co m o pároco, depois de ter sido afastado da U n iv ersid ad e de O x fo rd pelos seus colegas e pelos líderes eclesiásticos, devido aos seus ensinos radicais. A inda jo v em , W ycliffe to rn o u -se m estre no Balliol C ollege da U niversidade de O xford, alcançou rapidam ente posição de destaque e ad q u iriu grande reputação com o eru d ito e forte d efensor de reform as na igreja. E n q u an to dava aulas em O x fo rd , assim com o m uitos o u tro s catedráticos, W ycliffe era fu n ci onário do rei da Inglaterra de q u em recebia proteção co n tan to q u e suas opiniões concordassem com as da realeza. Serviu de m ed iad o r en tre a igreja e a corte real nas disputas a respeito dos bens im óveis da igreja, im postos e de outras questões conflitantes en tre a igreja e o estado e escreveu dois grandes livros sobre a teoria governam ental: O n divine lordship [Do senhorio divino] e O n civil lordship [Do senhorio civil]. Escreveu, tam b ém , O n the king’s office [Do papel de rei], O n the truth o f the Holy Scriptures [Da veracidade das Sagradas Escrituras], O n the church [Da igreja], O n the power o f the pope [Do poder do papa], O n the eucharist [Da eucarisita ] e O n the pastoral office [Sohre cargo pastoral]. D efendia a tradução da Bíblia inteira para a linguagem do povo para q u e todos os cristãos pudessem lê-la e estudá-la p o r conta própria. G ra ças a isso, é lem brado n o n o m e da m aior sociedade de tradução bíblica do m u n d o . W ycliffe não era nada diplom ático ou flexível em questões q u e envolviam suas fortes convicções. C ensurava a corrupção e abusos d en tro da igreja e condenava d u ram en te os papas de sua época p o r causa da secularidade e obsessão pelo poder e din h eiro . U m exem plo de sua invectiva contra o papa oferece u m a am ostra de sua inclinação à polêm ica: “P ortanto, o papa co rru p to é anticristão e m aligno, por ser a p rópria falsidade e o pai das m en tiras”.16 C h a m o u os u b íquos frades de seu país de “ad últeros da Palavra de D eus, q u e usam as vestes e véus coloridos das p ro stitu tas”.17 Wycliffe antecipou os ataques de L utero contra a corrupção da igreja de form a m ais v eem en te em sua crítica às indulgências. As indulgências eram d o cu m en to s de absolvição do castigo tem poral (com o o pu rg ató rio ) dos pecados vendidos p o r agentes dos papas. W ycliffe co n d e n o u severam ente essa prática, as sim com o L utero o fez em seus dias. A respeito das críticas que o teólogo de O xford fez contra a igreja, u m biógrafo m o d ern o de W ycliffe escreve: “U m ataque com o esse foi necessariam ente o prelú d io para a R eform a e um a contribuição im p o rtan te de Wycliffe. D e fato, pode-se dizer que o ataque de Wycliffe foi tão direto, tão devastador q u e p o u p o u os reform adores d o século xvi o trabalho de realizar a tare fa so zin h o s”.18 E m 1377, dezo ito “erro s” de W ycliffe foram co n denados pelo papa a pedido de alguns de seus colegas de O xford. Ele foi in tim ad o a com parecer diante dos bispos
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da Inglaterra para se defender. N essa ocasião, conseguiu evitar a confrontação ape nas p o rq u e a rain h a-m ãe o d efen d eu firm em en te. E m 1378, W ycliffe com eçou a criticar o G ran d e C ism a d o O cid en te, n o qual dois h o m en s e, p o sterio rm en te, três alegavam ser papas. Suas críticas, n o en tan to , não se restringiram ao papado. Elas se estenderam às d o u trin as católicas essenciais co m o a transubstanciação, q u e se to rn o u dogm a sem i-oficial da igreja no tocante à eucaristia n o Q u a rto C oncílio luteran o em 1215. A fam ília real apoiou e p rotegeu W ycliffe até 1381, q u an d o ele sim patizou ab ertam en te com a revolta dos cam poneses. S o frendo grandes pres sões do co rp o d o cen te de O x fo rd e dos bispos da Inglaterra, W ycliffe v o lto u à sua paróquia natal em L u tterw o rth , o n d e passou o resto de seus dias escrevendo e organizando um a sociedade de pregadores leigos pobres, conhecidos co m o lollardos. M o rre u de d erram e en q u a n to conduzia o culto n o ú ltim o dia de 1384 e foi co n d e nado co m o herege e oficialm ente excom ungado pelo C o n cílio de C o n stan ça em 1415; ali tam b ém foi q u eim ad o na fogueira seu devoto seguidor b oêm io, Jo ão H us. O s restos m ortais de W ycliffe foram exum ados, queim ados e jo g ad o s n o rio Swift pelo bispo de L incoln em 1428. D iferen tem en te de O ccam , W ycliffe era u m ardoroso realista n o tocante às p ro posições universais. N essa questão, assim co m o tam b ém em m uitas outras, ele recorreu à tradição cristã platônica da igreja prim itiva e de A gostinho e se posicionou com A nselm o. Em pregava a lógica escolástica, m as dava pouco valor ao aristotelism o de A q u in o e ao n o m in alism o de O ccam . O realism o de W ycliffe m an ifesto u -se em várias áreas da sua teologia, m as em n e n h u m lugar com tanta força q u an to em sua crítica à d o u trin a da transubstanciação. S egundo ela, q u an d o o sacerdote p ro n u n cia as palavras da consagração na celebração da missa, o pão m u d a de substância e torn a-se verdadeira e fisicam ente a carne de Jesu s C risto e n q u a n to o v in h o to rn ase de fato seu sangue. O s “acidentes” ou qualidades exteriores do pão e d o vin h o perm an ecem os m esm os, m as a substância in terio r é transform ada de tal m aneira que, seg u n d o a d o u trin a, a pessoa q u e participa da eucaristia realm en te com e e bebe o co rp o e sangue de C risto. E m bora essa d o u trin a da eucaristia não tenha se to rn ad o u m dogm a definitivo e form al — já não m ais passível de debate — antes do C o n cílio de T rento no século xvi, ainda na época de W ycliffe chegou a ser a crença e d o u trin a aceita pela Igreja C atólica R om ana. W ycliffe lu to u com ferocida de co n tra essa d o u trin a e u sou o realism o co m o aliado. N a obra Oti the eucharist, W ycliffe levantou m uitas objeções contra a d o u trin a da transubstanciação e até m esm o a ro tu lo u de “fantasias infiéis e in fu n d ad as” e argu m en to u que ela levava à adoração idólatra dos alim entos. M as seu arg u m en to m ais forte baseava-se na m etafísica realista. A referida d o u trin a su b en ten d e q u e um a substância, co m o o pão e o vin h o , pode ser d estru íd a e q u e “acidentes” podem existir sem q u e haja n e n h u m a relação com a substância. S egundo W ycliffe, essa
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crença d esonra a D eus q u e é o au to r de todas as substâncias. A lém disso, viola as regras básicas da m etafísica e da lógica. Em q u alq u er m etafísica realista, q u an d o um a substância ou proposição universal é destruída, seus acidentes tam bém são destruídos. Pelo m enos, assim ele acreditava e argum entava. D e qu alq u er form a, Wycliffe apresentou seu p ró p rio conceito da eucaristia com o alternativa ao q u e cham ava de “heresia m o d e rn a ” da transubstanciação. Segundo seu conceito, as substâncias d o pão e do v in h o p erm an ecem en q u a n to o Espírito do D eus vivo estiver nelas, de m o d o que co n têm a “presença real” de Jesu s C risto, em b o ra co n tin u em sen do pão e vinho. Em suas próprias palavras: “Assim com o C risto é duas substâncias, a saber, terrena e divina, tam b ém esse sacram ento é o corpo do pão m aterial e o corpo de C risto ”.19 Wycliffe rejeitava a idéia de que q u alq u er sacram ento funcionasse ex opere operato. N essa questão, ro m p eu com seu am ado pai da igreja, A gostinho, e insistiu que, para q u e o sacram ento fosse verda d eiro e transm itisse graça, devia existir a presença da fé. A visão de W ycliffe sobre os sacram entos — especialm ente da refeição eucarística — foi p re n ú n cio d o p en sam en to dos grandes reform adores p rotestantes m agisteriais: L utero e C alvino. Sua d o u trin a da presença real de C risto p o r m eio do E spírito Santo antecipa, so bretu d o , a de C alvino. A rejeição de W ycliffe à d o u trin a e à prática católica rom ana m edieval ia m u ito além da crítica à transubstanciação. Seus conceitos sobre m in istério e autoridade foram ainda m ais im p o rtantes para sua luta p o r reform a. O teólogo de O xford argum entava q u e a responsabilidade básica d o m in istro cristão — o sacerdote — era proclam ar o evangelho e esse dever sobrepujava todos os dem ais. “Pregar o evangelho é in fin itam en te m ais im p o rtan te do q u e orar e ad m in istrar os sacram en tos. [...] D ifu n d ir o evangelho p ro d u z u m benefício m aior e m ais evidente; é, por isso, a atividade m ais preciosa da igreja. [...] P ortanto, os q u e pregam o evangelho devem realm ente ser consagrados pela autoridade do S e n h o r”.20 C o m o eles deviam ser escolhidos e consagrados? W ycliffe chegou a recom endar que os m em b ro s de cada paróquia escolhessem seu próprio sacerdote — u m a idéia bastante radical para a época. Ele estava p ro fu n d am en te desiludido com o poder, as riquezas, a corrupção e os abusos de autoridade por parte dos líderes da igreja e voltou sua atenção para o povo de D eus co m o a voz da vontade de D eu s 110 governo eclesiástico. E m bora fosse realista, sua eclesiologia converge, em certos aspectos, para a de O ccam . Assim co m o o nom inalista de M u n iq u e, Wycliffe defendia refor m a radicais do clero e até a abolição do papado em q u alq u er form a reconhecível. Talvez o principal trabalho de W ycliffe na teologia ten h a sido sua defesa da autoridade suprem a das E scrituras para tu d o q u e tem relação com a fé e a vida. A Igreja C atólica m edieval chegou a considerar q u e a tradição tinha a m esm a au to ri dade das E scrituras. A palavra d o papa era considerada, p o r m u ito s sacerdotes e
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bispos, a palavra de D eus, em b o ra a teologia católica não exigisse necessariam ente essa crença. O dogm a da infalibilidade papal só foi p ro m u lg ad o oficialm ente no século xix, m as na prática, as palavras e ações dos papas m edievais eram respeitadas co m o autoridade absoluta. W ycliffe rejeitava to talm en te essa idéia e depois de 1380 com eço u a ch am ar os papas de anticristos. Até o papa precisava o b ed ecer ao “pa drão evangélico” de en sino e prática derivado in teiram en te das E scrituras e, à m e dida q u e o papa deixava de ser verdadeiram ente evangélico, deixava m esm o de fazer parte da verdadeira igreja de Jesus C risto e não devia ser considerado seu sen h o rio tem poral ou espiritual. W ycliffe escreveu o tratado cham ado De veritate Sacrae Scripturae [Da veracidade das Sagradas Escrituras] em 1378, ano em q u e com eçou o G ran d e C ism a O cidental. N ele, ap resen to u a tese de q u e as “Sagradas E scrituras são a su p rem a autoridade para todo cristão e o padrão de fé e de toda a perfeição h u m a n a ”.21 A firm ou, tam bém , a infalibilidade das Escrituras, q u e se in terp retam a si m esm as e o papel do E spírito Santo de ilu m inar a m en te dos leitores en q u a n to as lêem e estudam . Em outras palavras, assim co m o os principais R eform adores protestantes de tem pos posteriores, W ycliffe rejeitava a necessidade do magisterium autorizado — o ofício da igreja no en sin o e interpretação das Escrituras. A Bíblia, a Palavra inspirada de D eus, assum e esse ofício e está acim a de todas as agências eclesiásticas. Wycliffe rejeitava, tam bém , o sistem a m edieval penitencial da salvação. N o s sé culos su bseqüentes a G regório M agno, a igreja ocidental e, especialm ente, os m o n ges desenvolveram u m sistem a m eticuloso e exigente de penitências, o u atos de contrição, que os cristãos tin h am q u e seguir para conquistar m érito perante D eus. E m bora W ycliffe não chegasse a aceitar p len am en te o evangelho pro testan te da justificação unicam ente pela graça, antecipou L utero e C alvino e o utros reform adores do século xvi ao co n d en ar todas as práticas hum anas q u e visavam co n q u istar m é ri tos diante de D eus. Sem n u n ca criticar o u abandonar as genuínas obras de am or com o parte integrante da vida cristã, W ycliffe atribuía to d o o m érito som ente a C risto e enfatizava a graça e a fé de m aneira q u e não se ouviu falar na igreja d u ran te séculos. A lém disso, endossava com firm eza a crença na predestinação e tendia ao m onergism o no seu co nceito da intervenção de D eus em relação à atuação h u m a na. Baseava-se nas E scrituras e não na m etafísica escolástica ou na teologia natural. M uitas razões ju stificam a reputação de W ycliffe co m o p recu rso r da R eform a protestante. N e n h u m a delas é m ais im p o rtan te, en tre tan to , do q u e a sua ênfase à Bíblia co m o in fin itam en te superior, em veracidade e autoridade, a q u alq u er trad i ção o u ofício h u m an o . “C e n to e cin q ü en ta anos antes daquele tem p o [da R eform a protestan te], Wycliffe agarrou-se à única autoridade adequada à R eform a, conce d eu -lh e posição de d estaque em sua obra e não p o u p o u esforços para torná-la conhecida pelo povo, graças à tradução e à insistência na pregação da Palavra”.22
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N o s anos finais, em L u tterw o rth , organizou o g rupo de evangelistas e pregado res leigos, p o sterio rm en te cham ados de lollardos, q u e ajudaram a preparar a Re fo rm a na Inglaterra. A lém disso, lu to u pela tradução da Bíblia para a língua inglesa e seus esforços p ro d u ziram en tre seus seguidores a prim eira Bíblia em inglês, cha m ada Bíblia de O xford. Seus livros e ensinos chegaram à cidade de Praga, na B oê m ia, o n d e o grande pregador e re fo rm ad o r João H u s u so u -o s para estabelecer ali u m m o v im en to p erm a n en te pré-p ro testan te. P osterio rm en te, L utero aproveitou os trabalhos tanto de H u s q u an to de W ycliffe em sua luta b em -su ced id a para refor m ar a teologia e a vida eclesiástica na Europa.
Erasmo e o humanismo cristão D esidério E rasm o não se considerava teólogo. Esse títu lo seria ofensivo, p orque era quase sin ô n im o de “pensador especulativo escolástico”. Para E rasm o, “teologia insípida” era u m a tautologia. S egundo ele, “todas as contendas da especulação teo lógica surgem da curiosidade perigosa e levam à audácia ím pia”.23 A pesar disso, E ra sm o d e R o terd ã é co n sid e ra d o em geral u m dos m aio re s teó lo g o s da era transicional q u e recebeu o n o m e de R enascença. Viveu vários anos após o início da era da R eform a p ro testan te e debateu com L utero. T in h a u m pé firm em e n te calca do na tradição católica m edieval de pensam ento. E o exem plo clássico da figura de transição. Sua “filosofia de C risto ” era, na realidade, u m tipo de teologia, ainda q u e recusasse a dar-lhe sem elhante título. Era u m a alternativa à teologia dos escolásticos m edievais que ainda d om inavam as faculdades de teologia nas universidades no fim do século xv e início do século xvi. Era, tam bém , u m a alternativa ao que c o n siderava evangelicalism o fanático dos reform adores protestantes em m eados do século xvi. E rasm o foi realm ente u m teólogo sem lar, u m livre pensador q u e não se p re n dia a nada. C o m o profeta in d ep en d en te, p erco rre u toda a E uropa na prim eira m e tade d o século xvi, co n clam ando incansavelm ente à reform a tanto da igreja q u an to do estado, em b o ra recusasse a filiação a q u alq u er p artido de reform a. Sem dúvida, po rém , os escritos de E rasm o e sua influência co m o herói cultural ajudaram a levar a efeito as reform as tan to católicas q u an to protestantes. E rasm o nasceu p o r volta de 1466 em R oterdã, na H olanda. Seus pais m orreram qu an d o ele ainda era criança c q u an d o co m p leto u nove anos de idade seu tu to r m a n d o u -o a um a escola da igreja, dirigida pela o rd em m ística reform adora de cris tãos leigos cham ada Irm ãos da Vida C o m u m . Ali ap ren d eu a devotio moderna, a “m aneira m o d ern a de ser espiritual”, q u e se centralizava nos aspectos práticos da espiritualidade cristã, co m o a oração, a m editação, o exem plo de C risto e o estudo das E scrituras. Sem dúvida, a vida inteira q u e E rasm o dedicou à busca da reform a na cristandade recebeu o ím peto dessa o rd e m espiritual pacífica de cristãos que
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dirigiam escolas p o r toda a Europa. P osteriorm ente, o jo v e m estudioso ingressou em u m m o steiro agostiniano, contra sua própria vontade. Seu guardião rsco lh eu para ele a vida m onástica e E rasm o sem pre Se ressentiu disso. Era u m espírito livre c in d ep en d en te q u e dava grande valor à autodeterm inação. C o n seg u iu o b ter per m issão especial da h ierarquia eclesiástica para viver boa parte de sua vida fora do m osteiro. O jo v em m o n g e holandês foi ord en ad o ao sacerdócio em 1492, ano em que C ristóvão C o lo m b o em barcou em sua viagem de d esco b rim en to , e E rasm o co m e çou a estu d ar grego, história eclesiástica, teologia e várias outras disciplinas em diferentes universidades da Europa. Estava m u ito m ais para e ru d ito do q u e para clérigo e d edicou a vida a viajar, escrever e discursar e ao e tern o am o r pelos estu dos. Erasm o absorveu o novo espírito d o h u m an ism o , q u e estava tran sfo rm an d o a vida intelectual e cultural da E uropa, e so m o u -o ao am or pelo ca m in h o de Jesu s C risto. O h u m an ism o im plicava na redescoberta de antigas fontes da filosofia, inclusive Sócrates. “N o q u e dizia respeito a E rasm o, não existia n e n h u m antago nism o m oral n em intransponível e n tre Jesu s e Sócrates, e n tre os en sin am en to s cristãos e a sabedoria da A ntigüidade clássica, en tre a piedade e a ética”.24 C h eg o u a ch am ar o antigo m estre grego de Platão “São Sócrates” e o enalteceu co m o m odelo da sabedoria natural, assim co m o Jesu s era o m o d elo da sabedoria e b ondade so brenaturais. O so n h o vitalício de E rasm o era refo rm ar a Igreja C atólica R om ana sem destruí-la. Acreditava q u e o m elh o r m o d o de colocar essa reform a em prática era d ifu n d ir o ev an g elh o d e sua filosofia de C ris to , q u e im p o rtav a em um a espiritualidade cristã prática e pacífica, centralizada n o exem plo de Jesus. E rasm o ficou fam oso em toda a E uropa d o com eço do século xvi q u a n d o p u b li cou seu p rim eiro livro, co n h ecid o co m o Adagia, um a coletânea de pensam entos espirituosos e estim uladores, q u e refletem claram ente o pen sam en to do h u m anista cristão. D e n tro da obra, encontrava-se um a crítica sutil à sociedade e à igreja m e d i eval e não d em o ro u m u ito para as pessoas de toda as partes da E uropa com eçarem a citar E rasm o. P ouco depois, p u blicou Colloquia, u m a série de diálogos e anedotas que ridicularizavam as superstições populares prom ovidas pela igreja. A lguns co lóquios descrevem conversas de pessoas q u e tin h am feito peregrinações a lugares santos da cristandade e m o stram que E rasm o considerava ignorante, senão im oral, o co stu m e de se fazer peregrinações para adm irar relíquias. E m u m dos colóquios, E rasm o descreve u m en c o n tro en tre São P edro e o papa, Jú lio n, diante dos portões do céu. Jú lio , q u e se interessava m ais p o r guerras d o q u e pela teologia, aparece 110 diálogo v estindo arm adura com pleta para a guerra e é repelido d o céu pelo p o b re e h u m ild e Pedro, q u e não o reconhece co m o seu sucessor. E rasm o foi obrigado a pedir desculpas ao papa pela sátira, m as esta su rtiu o devido efeito. M uitas pessoas cultas da E uropa concordavam com E rasm o, q u e a piedade po p u lar prom ovida
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pela igreja era m era superstição religiosa e q u e a hierarquia da igreja de R om a tinha se transform ado em potência secular, destituída de autoridade m oral e espiritual. D uas das obras m ais influentes de E rasm o foram Enchiridion [Manual do cristão militante] (1503) e Elogio da loucura (1509). O p rim eiro livro foi escrito para um m ilitar cristão cuja esposa havia pedido u m a exposição sim ples e direta da vida cristã. T o rn o u -se um clássico d o ensino religioso católico renascentista e contém os m elho res exem plos da filosofia de C risto sustentada por Erasm o. N ele, reco m en d a duas “arm as na guerra espiritual”, a oração e o co n h e cim en to , e conclam a o cristão a seguir Jesu s C risto em seu exem plo m oral e a rep u d iar os m odos sed u to res d o m u n d o secular, bem co m o as superstições dos sacerdotes e m onges igno rantes: “Vocês ficam m u d o s e m aravilhados diante da túnica ou sudário q u e dizem ter sido de C risto , m as ficam sonolentos ao lerem a palavra de C risto? Vocês acre ditam que é m u ito m ais im p o rtan te ter u m a lasca da cruz cm casa, m as isso não se com para a carregar no ín tim o o m istério da c ru z ”.25 O conceito de E rasm o sobre a vida cristã em Enchiridion reflete claram ente a influência da escola alexandrina do pen sam en to cristão prim itivo — as teologias de C lem en te e de O ríg enes. E vitando a tendência à especulação gnóstica dessa cor ren te de pen sam en to , m erg u lh o u p ro fu n d am en te nessa fonte de interpretação ale górica das E scrituras e da espiritualização da vida cristã e d o relacionam ento com D eus. Para E rasm o, assim co m o para C lem en te e O rígenes, o cam in h o de C risto é intelectual e m ístico, despreza as seduções d o m u n d o e as paixões da carne e p ro cura sem pre habitar o plano da m en te e do espírito. E m Elogio da loucura, E rasm o critica to d o o padrão católico ro m an o de espiri tu a lid a d e e x te rio r, in c lu s iv e as p e re g rin a ç õ e s , as re líq u ia s , o a sc e tism o , o m onasticism o, os atos de penitência e a estru tu ra hierárquica da igreja. “L oucura” é a som a de tu d o isso e, para tran sm itir sua m ensagem com h u m o r e evitar a reta liação das autoridades da igreja, fingiu elogiá-la. N a realidade, po rém , até m esm o o leitor in g ên u o pode p erceber im ediatam ente q u e o livro é pura ironia e ridiculariza a piedade po p u lar e a pom pa eclesiástica co m o superstição e corrupção. Assim co m o Enchiridion, co n q u isto u e n o rm e popularidade cm pouco tem p o e, ju n to s , os dois livros forneceram aos cristãos de m entalidade reform ista em toda a E uropa u m m o d elo de m udança. Elogio da loucura d efiniu com clareza os p ro b le m as. Enchiridion defin iu com clareza a solução oferecida p o r E rasm o. E m lugar de ignorância e fanatism o, o e ru d ito p ropõe a piedade in terio r e intelectual d e m o n s trada na vida m oral segundo o exem plo de C risto. Talvez a m ais im portante de todas as contribuições de Erasm o tenha sido a p ro dução do texto crítico do N o v o T estam ento grego em 1514. “Foi incalculável a in fluência dessa obra sobre a R eform a”.26 T ornou-se a base da tradução de L utero para o alem ão e forneceu aos estudiosos de toda a cristandade o m odelo para trabalhos de
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interpretação e tradução. A ntes d o N o v o T estam ento grego de E rasm o, a única Bíblia q u e grande parte dos estudiosos tinha era a Vulgata latina: o texto autorizado da Igreja C atólica R om ana. O texto de E rasm o revelou q u e a Vulgata era u m a tra dução relativam ente in ferior e esse fato estim u lo u e prep aro u o crescente m ovi m en to para trad u zir a Bíblia nos idiom as dos povos da E uropa. E rasm o queria que todas as pessoas na cristandade pudessem ler a Bíblia sozinhos. Insistia q u e a Bíblia não era so m en te para o clero e para alguns estudiosos cultos. Pelo contrário, a Bíblia devia ser lida p o r q u alq u er leiteiro ou cam ponês. Isto se to rn o u u m a realida de, em parte, graças ao esforço de Erasm o. Q u a n d o M artin h o L utero iniciou a R eform a p rotestante q u e dividiu a igreja na Europa em 1517, E rasm o era, sem dúvida, o estudioso m ais in flu en te n o co n tin e n te. Era m u ito requisitado para aconselhar reis e o im perador. As principais u n iv er sidades sem p re o q u eriam e os bispos e arcebispos tin h am de respeitá-lo. T o rn o u se sím bolo cu ltu ral aos q uarenta anos — com p o d er considerável. S egundo seu biógrafo m o d ern o , “n u n ca um h o m em [...] d esfru to u de tam an h o prestígio na Europa, prestígio q u e se devia inteiram en te às suas obras intelectuais”.27 Apesar disso, E rasm o era u m h o m em sem lar. C onsiderava-se “co sm o p o lita” e não nacio nalista. C riticava severam ente a guerra e conclam ava a paz e a união en tre os povos da E uropa. Ao m esm o tem po, q u eria u m a reform a da igreja q u e não provocasse divisão. D etestava tan to a ignorância q u an to o fanatism o e esperava q u e sua filoso fia de C risto — sin ô n im o de m oralidade nobre, hu m an itária e racional — acabasse ven cen d o c unificasse a cristandade. Isso não aconteceu. O p ríncipe de L utero, Frederico de Saxônia, p ro c u ro u os conselhos de E rasm o. L utero escreveu-lhe. O papa, o u tro s soberanos e clérigos praticam ente exigiram u m p ro n u n c ia m e n to d e cisivo de E rasm o a respeito dos eventos q u e aconteciam na igreja e n o im pério. E rasm o apoiava L utero secretam ente, em bora se recusasse a to m ar abertam ente partido dele o u de sua reform a. C oncordava com o reform ador alem ão cm relação a m uitas questões, m as considerava-o u m tanto fanático e revolucionário p o r q u e rer dividir a igreja e se recusar a obedecer às ordens do im perador e d o papa de re n u n c ia r às suas heresias. Ao p rín cip e F red erico de Saxônia, E rasm o en v io u secretam ente a m ensagem q u e L utero devia ser protegido. M as diante das exigênci as que declarasse p u blicam ente qual lado apoiava, “m anteve-se inabalável em sua resolução e, assim , deixou o papa, o im perador, reis e reform adores co m o Lutero, M elâncton e D tirer esperando ano após ano e n e n h u m conseguiu forçá-lo a dar a palavra decisiva que esperavam . S orriu cortesm ente para seus interlocutores, mas seus lábios perm aneceram selados para sem p re”.28 O u assim pareceu. Em corres pondência particular e conversas com am igos, Erasm o criticou severam ente L utero e o u tro s reform adores protestantes p o r dividirem a igreja e sustentarem opiniões fanáticas que não correspondiam ao espírito ilum inado daquela época. P ublicam ente
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não disse m u ito p o r não q u erer dar a im pressão de q ue estava apoiando as corrupções de R om a. A hesitação de Erasm o nessa crise acabou pesando contra ele e todos o pressionaram para q u e escrevesse algum a coisa a respeito de Lutero. F in alm en te, com relutância, E rasm o escreveu um a crítica à teologia de L utero intitu lad a Delibero arbitrio [Do livre-arbítrio] em 1524. M u ito s ficaram surpresos por ele ter escolhido essa questão para debater com o re fo rm ad o r protestante. L utero ficou m u ito co n ten te e parabenizou o estudioso holandês p o r sua perspicácia em ir d ireto ao âm ago das diferenças en tre eles: a questão antiga d o m o n erg ism o versus o sinergism o. E m bora fosse m onge agostiniano, Erasm o considerava o m onergism o rigoroso incom patível com o cristianism o racional e argum entava em favor da li berdade da pessoa aceitar o u rejeitar a graça de D eus. Ele sabia qual era a posição de L utero. L utero tam b ém tinha sido m o n g e agostiniano antes de ser excom ungado pelo papa e considerava q u e o pai da igreja n o rte-africano tin h a razão nessa questão por co n co rd ar com Paulo em R om anos 9-11. L utero era m onergista e acreditava q u e D eus era a realidade q u e a tu d o determ inava, então, declarou que os seres hu m an o s nada m ais eram d o q u e cavalos m ontados p o r D eu s o u pelo diabo segun do o capricho de D eus. E rasm o considerava ridículo e fanático o en sin o de L utero a respeito do livrearbítrio e da graça. T am bém o considerava co n trário às E scrituras e ao testem u n h o dos pais da igreja anteriores a A gostinho. Ele chegou a acusar L u tero de p ro m o v er o m an iq u eísm o . Sobre essa questão crucial, pensava o seguinte: Embora o livre-arbítrio esteja contam inado p elo pecado, nem por isso foi por ele extinto. E em bora tenha sido tão prejudicado por esse processo que, antes de receberm os graça nos inclinam os mais facilm ente ao mal do que ao bem , o livre-arbítrio não foi totalm ente suprim ido, mas a enorm idade de crim es que se tornou uma espécie de segunda natureza anuvia o bom ju íz o e dom ina a liberdade da vontade de tal foram que aquele parece destruído e este total m ente perdido.2’
A fim de evitar a acusação de pelagianism o, E rasm o concedeu sem hesitação q ue u m tipo de graça auxiliadora — a “graça cooperadora” — é totalm ente essenci al para q u e o livre-arbítrio do ser h u m an o co rro m p id o pelo pecado seja capaz de q u alq u er ação realm ente virtuosa o u justa. M as Erasm o insistia que, com a ajuda da graça, o livre-arbítrio co ntam inado pode optar por participar da salvação. P or isso, afirm ou o sinergism o com a graça exercendo o papel principal n o estorço com um . L u tero resp o n d eu com u m livro severo in titu lad o Da escravidão do arbítrio, no qual reafirm a seu m o n erg ism o e acusa E rasm o de cair no sem ipelagianism o ou m esm o na heresia pelagiana. P osteriorm ente, L utero escreveu a u m am igo que, se
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fosse obrigado a d estru ir todos os livros q u e escreveu, insistiria em conservar o Catecismo menor e Da escravidão do arbítrio, visto q u e essas duas obras re su m e m os ensinos de sua vida inteira. R epudiava todos os tipos de sinergism o e argum entava que somente o m o nergism o evangélico poderia preservar a d ou trin a neotestam entária da salvação co m o p u ra dádiva e tratar com ju stiç a a m ajestade de D eus. Afirm ava o livre-arbítrio somente de D eus e não dos seres h u m an o s e argum entava que, por causa da queda, a vontade h u m an a era prisioneira do pecado e de Satanás, a não ser que D eus decidisse controlá-la: A ssim , a vontade hum ana fica entre os dois co m o um animal de carga. Se D eu s m ontar nela, ela irá aonde D eu s quiser, conform e afirma o salmo: “m i nha atitude para contigo era a de uni animal irracional” (SI 73.22ss.). Se Sata nás m ontar nela, ela irá aonde Satanás quiser. Ela não pode decidir correr atrás de um ou de outro cavaleiro c nem procurá-los; são os cavaleiros que disputam a posse e o controle da m ontaria.30
Perto d o fim da vida, E rasm o ficou desanim ado p o r não ter conseguido levar a efeito a verdadeira reform a — a reform a co m o ele a via — sem dividir a igreja. E m 1533, exilado da cidade q u e escolhera para m orar, Basiléia, na Suíça, e m o ran d o em F reiburg na A lem anha, Erasm o escreveu o que são considerados seus pensa m en to s m ais m ad u ro s a respeito da igreja, da verdadeira reform a e da teologia em geral. Esses pen sam en to s estão no livro O n mending thepeace o f the church [Consertan do a p a z da igreja] e, em b o ra a esperança de E rasm o expressa n o títu lo n u n ca tenha se concretizado, o p eq u e n o livro c o n trib u iu m u ito para a R eform a católica e talvez m u ito m ais para teologia e espiritualidade católicas m odernas. Ao observar a igreja dividida em seus dias, o diagnóstico de E rasm o foi bem diferente daquele de L utero. Este considerava q u e os principais problem as eram teológicos. E, en q u a n to a Igreja C atólica R om ana não alterasse radicalm ente sua teologia, L utero acreditava q u e os verdadeiros cristãos tin h am de abandoná-la c o m pletam ente. E rasm o enxergava as coisas de m o d o diferente. Para ele, “a principal causa da perturbação é o colapso da m o ral”.31 A verdadeira m oralidade, arg u m e n tou , está no coração e não m eram en te nas atitudes externas, e o ca m in h o para a renovação cristã e para a revitalização de um a igreja unificada é o novo coração concedido pela graça do E spírito de D eus. E n q u an to L utero acreditava q u e era necessário usar linguagem c o n tu n d en te para forçar a reconsideração de questões tidas co m o encerradas e os defensores da tradi ção católica respondiam na m esm a m oeda a L utero e aos seus seguidores, E rasm o conclam ava to d o s para u m diálogo cortês e racional. A h iera rq u ia eclesiástica cham ava L utero de "javali selvagem na vinha do S e n h o r” e L utero os cham ava de
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anticristos e de “pulgas na m anta de D e u s”. E rasm o escreveu aos dois partidos: “M o d erem a linguagem grosseira de suas discussões insanas”.32 Ele tentava en c o n trar um a posição interm ediária no tocante à salvação, afirm ando, de u m lado, o livre-arbítrio e a cooperação h u m ana e, de o u tro , a total necessidade da graça e da fé co m o dádivas absolutas. Aos colegas católicos, escreveu: “O s que confiam na p ró pria sabedoria, nas próprias forças, nos próprios m éritos, q u e respeitam so m en te as cerim ônias, os privilégios e os d o cu m en to s papais, n u n ca alcançam aquela b em aventurança [das coisas celestiais]”33 p o rq u e “a verdadeira confiança deve existir so m en te na graça de D eus e em suas prom essas”.34 Aos luteranos e a o u tro s protes tantes, E rasm o escreveu: “As expressões ‘recom pensa’ ou ‘m érito ’ não devem ser rejeitadas, pois D eus aceita e ju lg a a graça q u e está em nós ou que opera p o r m eio de n ó s”.35 “C o n co rd em o s q u e som os justificados pela fé, isto é, q u e os corações dos fiéis são p o r ela purificados, co n tan to q u e reconheçam os q u e as obras de caridade são essenciais para a salvação. E a verdadeira fé não é inoperante, visto q u e é a nascente e o ja rd im de todas as boas obras”.36 E rasm o m o rre u três anos depois de escrever O n mending the peace o f lhe church. M o rreu sem atingir o objetivo q u e havia se proposto a alcançar: um a igreja católica u n ificad a e re fo rm ad a de toda a E uro p a. M e sm o assim , d e ix o u o legado do h u m an ism o cristão liberal que, em b o ra co n tro v ertid o , influenciou p ro fu n d a m e n te p ro testan tes e católicos. O braço d ireito do p ró p rio L utero, Filipe M elâncton (1497-1560) foi ex trem am ente influenciado por Erasm o, m as não pôde dem o n strálo senão depois da m o rte de L utero em 1546. Ele e o u tro s luteranos seguiram na direção de u m tipo de sinergism o evangélico n o tocante à salvação e buscaram paz, ou m esm o a reconciliação, com a Igreja de R om a. N o lado católico, Erasm o in flu en cio u m u ito s refo rm adores m oderados e seus escritos, sem dúvida, causaram im pacto sobre o C o n cílio de T rcnto (1545-1563), u m grande m o v im en to refor m ista católico, m as ele não ficaria satisfeito com seus resultados finais. O legado de E rasm o foi m ais in flu en te e p erm a n en te na Inglaterra, onde viveu vários anos em m eio a estudiosos h um anistas da R enascença inglesa. A Igreja da Inglaterra (agora anglicana) p ro c u ro u u n ir o m elh o r da tradição católica rom ana com o m elh o r do pro testantism o de um a form a que teria agradado m u ito a Erasm o. N o seio dessa igreja, sua filosofia de C risto — inclusive o sinergism o da salvação — arraigou-se e cresceu. E quase certo que, se E rasm o tivesse vivido até então, teria aprovado a Igreja da Inglaterra elisabetana dos dias de Shakespeare. “E rasm o b o to u o ovo que L utero c h o c o u ” diz u m ditado popular. C o m o já vim os, está claro q u e não foi apenas E rasm o q u e “b o to u o ovo” da reform a na teologia e na vida da igreja. O ccam tam bém d e se m p e n h o u papel im p o rtan te nesse processo, assim co m o Wycliffe. Essas figuras não tão ilustres certam en te deram grande contribuição. M as se E rasm o foi reform ador, M artin h o L utero foi m u ito
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m ais do q u e isso. Foi u m revolucionário. V irou o m u n d o de cabeça para baixo. E n q u an to o dr. E rasm o te n to u realizar u m a cirurgia delicada na igreja em que mal tocava nos nervos vitais da teologia, o dr. L utero realizou u m a cirurgia radical que envolvia am putação e reconstrução, a p o n to de tran sfo rm ar d rasticam ente o paci ente. É para essa história q u e agora voltarem os nossa atenção.
S é t im a P a r t e U m a n o v a g u in a d a n a n a r r a tiv a : A igreja ocidental é reformada e dividida
A o raiar o século xvi, a teologia cristã na E uropa estava em apuros. Talvez não seja n e n h u m exagero dizer que essa história to rn o u -se desinteressante para a m aioria das pessoas. O grande h u m anista E rasm o em pregava a palavra teologia co m o sin ô n im o de especulação vã e teólogo co m o sin ô n im o de u m p ensador alienado que havia p erd id o o co n tato com a realidade. O bv iam en te, E rasm o era u m teólogo à sua própria m aneira, m as para m uitas pessoas co m o ele, a teologia deveria ser eq u i parada com o escolasticism o nas várias form as q u e assum iu n o fim da Idade M é dia. T am bém era considerada u m a ciência — se é q u e m erecia esse títu lo — sob o d o m ín io total da cúria rom ana, a burocracia d o Vaticano q u e determ inava com o todas as pessoas deviam pensar. E as pessoas m ais esclarecidas, co m o E rasm o, c o n sideravam a cúria quase irrecuperavelm ente irrelevante e corrupta. E rasm o ofereceu a “filosofia” de C risto co m o solução para a letargia no pensa m en to e na vida cristãos. Ele esperava q u e ela desse novo sopro de vida na ciência m orta da teologia, pois focalizava questões práticas a m oralidade e o viver ético seg u n d o o exem plo de Jesus, e preocupações do m u n d o real, co m o a paz e a har m onia en tre todos os povos. N as prim eiras décadas d o século xvi, surgiram alguns rivais d o program a de Erasm o. M esm o assim , seus volum osos e populares escritos não pareciam afetar o tradicionalism o e a corrupção da teologia oficial de R om a. A situação exigia soluções m ais drásticas q u e as de E rasm o. O grande refo rm ad o r bo êm io de Praga, Jo ão H u s, havia profetizado u m a solução nesses m oldes fazia quase u m sécu lo , p o u co an tes de ser m artiriza d o p o r o rd e m d o C o n c ílio de C onstança (1415). A teologia de M artin h o L utero era tão sem elhante à de H us, q u e m u ito s o ro tu laram de “o IIu s saxônio” p o rq u e p rovinha do principado da Saxônia na A lem anha oriental. N o entanto, M artin h o L utero não apenas d eu nova vida à teologia cristã ocidental, co m o a revolucionou. C o m p arad o ao calm o e paci en te E rasm o, o refo rm ad o r alem ão parecia u m elefante em loja de cristal. Para o o u sa d o e d e c id id o L u te ro , E ra sm o soava c o m o b u r b u r in h o na v astid ão do
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m u n d an ism o , da heresia, da corrupção e o eclipse quase total do verdadeiro evan gelho de Jesu s C risto.
Contexto histórico das reformas A m aioria dos historiadores atribui o raiar da grande R eform a do século xvi a um ún ico dia de 1517. N o dia 31 de o u tu b ro desse ano, um m onge agostiniano, cate drático de teologia na U niversidade de W ittenberg, cham ado M artin h o L utero, afixou noventa e cinco teses (questões para debate) na p orta da catedral da cidade on d e ensinava. Suas teses insinuavam q u e a única igreja oficial da cristandade oci dental — a igreja de R om a — incorria em graves erros. E m questão de m eses, toda a E uropa lia as teses de L utero, graças ao novo invento de G u ten b erg : a prensa com tipos m óveis. O papa Leão x as leu e declarou q u e o m onge saxônio certam ente devia estar bcbado. P o steriorm ente, ch am o u L utero de “javali selvagem na vinha do S e n h o r” e o ex com ungou. A essa altura, no en tan to , o trem da R eform a de Lutero já partira da estação e não havia co m o fazê-lo parar. Pouco depois, as vozes de outras pessoas na liderança se levantaram contra a teologia norm ativa da cristandade ocidental, e cidade após o utra seguiu o exem plo de W ittenberg, banindo a m issa e reform ando o culto e a teologia. Z u riq u e, G enebra e E strasburgo aderiram à R eform a, assim com o m uitas cidades e principados ale m ães im portantes. P osteriorm ente, toda a Escandinávia aderiu ao novo m o vim ento e, alguns anos depois, a Escócia e a Inglaterra tam bém se tornaram protestantes. U m terceiro grande cism a estava acontecendo na cristandade. O p rim eiro foi a divisão en tre o O c id e n te e o O rie n te em 1054. O segundo foi a luta m edieval en tre dois e, depois, três papas de 1378 a 1417. Agora, o terceiro era a divisão en tre as igrejas católica rom ana e protestante na Europa, q u e co m eço u p o r volta de 1520 com a ex co m u n h ão de L utero da igreja de Rom a. O s reform adores protestantes tin h am algum as crenças e objetivos em co m u m . Três princípios protestantes da m aior im portância são geralm ente identificados com o os responsáveis p o r diferenciá-los da igreja de R om a e de sua teologia oficial: sola gratia etfides (a salvação pela graça m ediante a fé so m en te), sola Scriptura (as E scritu ras acim a de todas as dem ais autoridades da fé e da prática cristãs) e o sacerdócio de todos os crentes. C ada líder protestante interpretava esses princípios à sua própria m aneira, m as todos os com partilhavam e se esforçavam para c o n stru ir com eles u m novo alicerce para o cristianism o. Seu p ropósito c o m u m era levar a igreja de Jesu s C risto de volta aos verdadeiros alicerces no N o v o T estam ento e livrá-la de todos os falsos ensinos e práticas corruptas. Infelizm ente, não chegaram a u m acordo q u an to à m aneira de fazer isso e, portan to , n u n ca se chegou à teologia e igreja p ro testan te unificada. N o en tan to , apesar das diferenças, todos os reform adores protestantes e as igrejas p o r eles dirigidas sustentavam e proclam avam basicam ente
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as m esm as m ensagens: a Palavra de D eu s está acim a de todas as tradições hum anas, a salvação acontece pela graça m ediante a fé som ente, to d o cristão verdadeiro é sacerdote de D eus e não há necessidade de n e n h u m o u tro m ed iad o r senão o p ró prio Jesu s C risto. O m o v im en to p ro testan te provocou a reação da igreja de R om a, que decidiu que precisava fazer duas coisas: livrar-se dos grandes abusos e corrupções q u e ti nham levado alguns príncipes do Sacro Im pério R om ano a apoiar os p rotestantes e solidificar sua p rópria teologia, resolvendo e declarando, de u m a vez p o r todas, qual seria a verdade cristã no tocante às E scrituras e à tradição, à salvação e à igreja. C o m essa finalidade, o papa convocou u m novo concílio para resp o n d er ao p ro tes tantism o. O C o n cílio de T rento é considerado p o r R om a o xix concílio ecum ênico e re u n iu -se em várias ocasiões en tre 1545 e 1563. E geralm ente considerado o âm ago da C o n tra-R efo rm a católica e, em b o ra abolisse m u ito s abusos q u e ajuda ram a provocar o m o v im e n to protestante, tam b ém to rn o u -se dogm a m uitas cre n ças extra-oficiais e inform ais da tradição católica rom ana, contra as quais L utero e o u tro s protestantes tin h am reagido. Em ú ltim a análise, ap ro fu n d o u a divisão d e n tro da cristandade ocidental. Foi so m en te na segunda m etade d o século xx que esse abism o d im in u iu o suficiente para os teólogos católicos e protestantes p o d erem dialogar e co n siderar u m ao o u tro cristãos autênticos. Todos os principais teólogos protestantes nas décadas de 1520 até 1540 achavam que, de u m m o d o o u de o u tro , a igreja de R om a e a teologia escolástica tinham sim p lesm en te en terrad o o evangelho p ro fu n d am en te sob tradições hum anas. D e m o d o geral, não estavam dispostos a declarar q u e não existiam cristãos d e n tro da igreja de R om a, m as concordavam , em m aior ou m e n o r grau, q u e os líderes e m estres da igreja tin h am se desviado tanto de q u alq u er coisa q u e pudesse ser reco nhecida com o cristianism o apostólico q u e u m a possível reform a estava fora de cogitação. Era necessário u m novo com eço, prin cip alm en te após o papa ter co m e çado a exco m u n g ar os líderes p rotestantes a to rto e a direito. É ex trem am en te im p o rtan te reco n h ecer q u e os p rotestantes se interessavam prin cip alm en te pela teologia, e não apenas pela e stru tu ra e práticas da igreja católi ca m edieval. E m b o ra a R eform a talvez tenha com eçado com o p ro testo de L utero co n tra a venda de indulgências pelos cam elôs papais, essa e outras disputas co n cre tas no tocante a práticas específicas de R om a eram sintom as da discordância m ais pro fu n d a a respeito da própria natu reza do relacio n am en to en tre D eus e os seres hum anos. L utero e os principais reform adores da Suíça, Z u ín g lio e C alvino, acre ditavam q ue a igreja de R om a podia ju stific ar a venda de indulgências (a isenção de passar pelo p u rgatório) p o rq u e não en ten d ia a natureza da ju stiç a de D eus e da pecam inosidade hu m ana. N o nível m ais p ro fu n d o , p o rtan to , a disputa dizia res peito a soteriologia e não a práticas corruptas específicas.
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A R eform a protestante revolucionou a cristandade ocidental. D esde 1520, n e n h u m a igreja con seg u iu unificar a sociedade ocidental e, nesse sentido, a cristan dade m o rreu . A síntese m edieval da igreja única, ten d o sua m atriz cm R om a, ces sou de existir. A era do d en om inacionalism o foi in tro d u zid a contra a vontade do p ró p rio L utero. Ele não tin h a a m ín im a intenção de dividir a cristandade. Sua teo logia não d efen d ia a divisão da igreja em facções q u e lutassem e n tre si o u se desconsiderassem m u tu am en te. N e m por isso deixou de acontecer. Paulatinam ente, n o d ecu rso de décadas e séculos, a cristandade ocidental dividiu-se em grupos dissidentes à m edida q u e o pro testan tism o adotava form as cada vez m ais novas. N a p rim eira geração, a teologia cristã p rotestante teve q u atro ram ificações d ife rentes. As q u atro ainda existem , m as elas tam bém se dividiram . Essas ram ificações são ainda hoje: luterana (ou Evangelische em alem ão), reform ada (“os suíços” para L utero), anabatista (considerada a parte principal da R eform a Radical) e anglicana (a Igreja da Inglaterra). C ada qual tinha ênfases próprias, q u e diferiam das dem ais, em b o ra todas com partilhassem os três princípios protestantes m ais im portantes. N a Parte vii, exam inarem os co m o essas form as da teologia pro testan te surgiram e quais eram suas características n o século xvi. E xam inarem os, tam b ém , a reform a da Igreja C atólica R om ana — a cham ada C o n tra-R efo rm a — co m o a reação contra o protestantism o. A ntes de nos ap ro fu n d arm o s nessa tram a com plicada, em p rim e iro lugar, será b o m co n h e cerm o s a situação na igreja e na teologia 110 co m eço da revolução pro testan te. Isso p o rq u e , em grande m edida, o p ro testan tism o era exatam ente aq uilo q u e seu n o m e sugeria: u m protesto. L u tero e os dem ais p ro testan te s esta vam p ro testan d o co n tra a co ndição da Igreja de R om a. E m b o ra, teo ricam en te, a teologia oficial da Igreja C atólica R om ana fosse so lid am en te antipelagiana, e até m esm o an ti-sem ipelagiana, e em b o ra alguns de seus principais pensadores d e fendessem o m o n erg ism o agostiniano, a teologia p o p u la r da igreja tin h a caído em u m sin erg ism o não evangélico capaz de fazer A gostinho e A q u in o revirarem em seus tú m u lo s. N o m ín im o , os líderes da Igreja C atólica R om ana e até alguns de seus principais teólogos davam a e n te n d e r q u e a graça era um a sim ples m erca do ria q u e podia ser co n q u istad a o u m esm o com prada. O mérito havia se to rn ad o a palavra-chave da so teriologia católica. A pessoa seria realm en te salva à m edida q u e co n q u istasse m érito suficiente peran te D eu s pela fé e p o r obras de caridade. A f é era in terp retad a co m o a fidelidade aos en sin o s e às práticas da igreja oficial e as obras de caridade eram in terp retad as co m o a co m p ra de indulgências, o paga m e n to de m issas em favor das alm as 110 p u rg a tó rio , peregrinações dispendiosas para v er relíquias, doação de esm olas aos pobres, a prática de penitências, a p arti cipação nos sacram en tos e a realização de práticas devocionais co m o a oração e a m editação.
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A base desse sistem a de salvação, bem co m o d o apoio teórico explícito q u e ele recebeu de alguns teólogos católicos rom anos da Idade M édia posterior, estava na idéia de que os seres h u m an o s podem e devem acrescentar seus pró p rio s esforços à graça de D eu s a fim de alcançar a salvação. A salvação era cada vez m ais conside rada recom pensa q u e se recebia p o r cooperar com a graça. E m bora todos os teólo gos católicos afirm assem que a iniciativa na salvação provinha da graça de D eus no batism o, m u ito s passaram a enfatizar a “graça h ab itu al” q u e aum entava na vida de u m a pessoa batizada na m esm a proporção de suas obras de caridade. S om ente q u a n do a graça fizesse sua obra de tran sfo rm ar a pessoa pecadora em santa — realm ente santa e virtuosa — , D eus poderia “ju stific á-la” o u “declará-la ju s ta ”. “G eralm ente, a igreja m edieval definia a justificação de D eu s co m o a ju stiç a exigida p o r D e u s”.1 D eus podia declarar a pessoa to talm en te perdoada e p ro n ta para o céu, e assim o faria, q u an d o ela deixasse de ser pecadora e fosse transform ada em santa ao coope rar com a graça p o r todos os m eios possíveis. Para a m aioria dos cristãos católicos do final da Idade M édia, isso significava sofrer n o p urgatório in d efin id am en te após a m o rte d o corpo. E m m u ito s — inclusive L utero no m osteiro antes de redescobrir o evangelho da graça m ed ian te a fé so m en te — isso provocou m ed o d o ju íz o divi no q u e d estru iria toda a garantia da salvação. E m o u tro s, isso se tra d u z iu em farisaísm o e eles se co n g ratu lav am p o r suas realizações esp iritu ais. T odos os reform adores p ro testantes (e alguns católicos) consideravam essa soteriologia im plicitam ente pelagiana — ju stiç a pelas obras, m oralista e legalista, co m p letam en te contrária à proclam ação da ju stiç a de D eus n o N o v o T estam ento dada gratuita m en te pela graça m ed iante a fé som ente. E lógico q ue existiam outras questões im portantes q ue dividiam os protestantes e a Igreja C atólica R om ana, e m uitas delas eram de natureza teológica. M as n en h u m a questão ch am o u tanto a atenção e provocou tanta agitação qu an to a soteriologia e, particularm ente, a questão da justiça de D eus e de com o os seres hu m an o s parti lham o u se beneficiam dela visando a salvação. O s líderes católicos, ao serem conclam ados a apresentar a sustentação bíblica de sua soteriologia, apelaram para a tradição oral da igreja além das Escrituras. A igreja m edieval chegou a considerar a tradição oral e inform al tão válida qu an to a Bíblia. Lutero e os dem ais protestantes rejeitaram essas duas fontes de autoridade da igreja e declararam as Escrituras supe riores a todas as tradições hum anas. Q u a n d o L utero surgiu n o palco da teologia cristã, p o r volta do período de 1513 a 1518, foi nessa situação que se enco n tro u , ju n to com toda a cristandade ocidental: prisioneiro da tradição oral inform al, co n trolada por u m papa e um a cúria corruptos em Rom a, e preso à soteriologia sinergística e quase pelagiana de m éritos e de obras de caridade. Suas principais fontes de inspi ração para en d ireitar essa situação passaram a ser as Escrituras (especialm ente as epístolas de Paulo), a teologia de A gostinho e alguns aspectos de nom inalism o.
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A história de L u tero é o ato in tro d u tó rio à história da R eform a d o século xvi. Poucos cristãos individuais afetaram tão p ro fu n d am en te o d esenvolvim ento da fé cristã. N o en tan to , m u ito s cristãos m o d ern o s q u e pensam co n h ecer L utero, não c o n h e c e m m u ito b em sua teologia. Q u e L u te ro se re b e lo u c o n tra o papa e red esco b riu a autoridade das E scrituras e o evangelho da salvação pela graça m ed i ante a fé som ente, é fato n o tó rio para quase todos os p rotestantes que se preparam para a confirm ação. M as não se sabe bem e n em se co m p re en d e exatam ente com o ou p o r q u e ele fez o q ue fez. P ortanto, é bom dedicarm os u m capítulo inteiro dessa história ao protagonista M artin h o L utero, q u e se considerava u m m ero e h u m ild e m onge e professor de teologia, m as q u e v iro u o m u n d o de cabeça para baixo.
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J N ^ a rtin h o L u tero nasceu em 10 de n o v em b ro de 1483, em Eisleben, na A lem a nha. M o rre u na m esm a cidade em um a viagem n o dia 18 de fevereiro de 1546. Seu pai era pro p rietário de um a m ina, pertencia à classe m édia alta e im p u n h a um a disciplina rigorosa. Sua m ãe era um a m u lh e r p ro fu n d am en te religiosa, m as tam bém supersticiosa, a respeito de q u em L u tero disse e escreveu pouca coisa no fim da vida. R ecebeu a m e lh o r educação q u e seus pais podiam pagar. Aos q u atorze anos de idade foi m o rar longe dos pais a fim de o b ter o m e lh o r en sin o possível. Parte dele, pelo m enos, obteve sob a orientação dos Irm ãos da Vida C o m u m , a m esm a o rd e m religiosa leiga q u e ed u co u E rasm o. O pai de L u tero q u eria que ele fosse advogado, p o r isso ele e n tro u para a U n i versidade de E rfu rt. C o m freqüência, p erco rria o c a m in h o e n tre sua casa, em Eisleben, e E rfu rt a pé nos fins da sem ana. S egundo a autobiografia q u e escreveu já no fim da vida, L u tero quase m o rre u atingido p o r u m raio certa tarde de verão en q u a n to andava so zin ho pela estrada. O raio d e rru b o u -o n o chão e, cheio de m edo, clam ou à sua padroeira: “Santa Ana, aju d e-m e e m e tornarei m o n g e!”. P ou co depois, o jo v e m estudante universitário ven d eu todos os livros de D ireito e bateu à porta do m osteiro agostiniano em E rfurt. Q u a n d o era noviço e depois, ao tornar-se m onge, L u tero ex p erim en to u crises d o que cham ava Anfechtungen — an siedade espiritual aguda sobre o estado de sua alm a. N ã o tin h a certeza q u an to à sinceridade de seu p ró p rio pesar e arrep e n d im en to , p o r isso castigava-se para c o m pensar essa deficiência e conseguir m érito diante de D eus. D isse, p o sterio rm en te, q u e toda a sua vida no m o steiro foi a “busca de u m D eus gracioso”. M as, em vez de am ar a D eu s e d escobrir q u e ele era o gracioso Pai celeste, L utero o tem ia e passou a odiá-lo p o rq u e só sentia sua ira e não seu am or. O confessor de L u tero n o m o steiro era u m h o m em cham ado Jo ão Staupitz, q u e tam b ém era o vigário-geral da o rd e m agostiniana na A lem anha. P osterior m ente, L utero atrib u iu vários de seus e n te n d im e n to s teológicos às longas sessões
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que teve com o “sen h o r S taupitz” n o m osteiro. O jo v em m onge ia confessar-se com tanta freqüência que seu confessor o adm oestou a adiar essas confissões para q u an d o tivesse algo realm ente pecam inoso para confessar. L utero, n o entanto, sem pre ficava preocupado, im aginando se tinha se esquecido de confessar algum pensa m en to , m otivação o u ato q u e porventura fosse pecam inoso. O m eio espiritual dos tem pos de L utero co n tribuía para suas ansiedades. Em geral, acreditava-se que: em bora D eu s fosse m isericordioso e C risto tivesse m orrido pelos pecados do m undo, [...] a responsabilidade do pecador [era] agir em favor da sua própria alma com rigorosa auto-análise, boas obras e abnegação, oração e práticas piedosas. D eu s está disposto a perdoar o pecador, mas existem con d ições que precisam ser atendidas e que só o pecador pode realizar. Acim a de tudo, o pecador deve estar genuinam ente contrito e deve fazer uma confissão sincera e com pleta.1
Staupitz não concordava to talm en te com isso e adotou u m a abordagem m ais branda, q u e enfatizava a graça e a m isericórdia de D eus. L utero adotou a aborda gem m ais severa possível, talvez apenas co m o garantia e para aliviar suas dúvidas qu an to à m isericórdia de D eus. F inalm ente, S taupitz m an d o u L u tero sair d o m os teiro para estu d ar Filosofia, Teologia e Bíblia na U niversidade de E rfurt, e tam bém o enviou a R om a a serviço da o rd em agostiniana. N a universidade, L utero recebeu um a educação to talm en te nom inalista. Se g u n d o o principal estudioso de L utero, I Ieiko O b e rm an : “N ã o há dúvida de que L utero foi treinado co m o nom inalista em E rfurt; m as as im plicações de seu trein a m en to acadêm ico ainda são contestadas e controversas”.2 P o sterio rm en te, a educa ção nom inalista de L u tero revelou-se pelo m enos em sua ênfase à liberdade abso luta de D eu s para fazer exatam ente o que deseja — expressa pelo “D eus escondi d o ” (Deus absconditus) p o r trás do D eus que realm ente se revela pela graça, pelo am o r e pela m isericórdia. O no m in alism o tam b ém talvez tenha ajudado a afastar L utero da tradição escolástica de Tom ás de A quino, bem co m o da teologia natural, em direção à ênfase m aior na fé co m o o cam in h o da m en te até D eus. L utero ch e gou a cham ar o escolasticism o e a teologia natural e, especialm ente a confiança em A ristóteles, “grande m ere triz” q u e atrai a m en te para longe de C risto. E m 1511, L utero foi a R om a a serviço da ordem agostiniana. Para qualquer bom católico, essa seria a viagem m ais m aravilhosa de toda a vida, a opo rtu n id ad e de visitar os santos tú m u lo s dos apóstolos, bem com o a grande igreja do papa, e assim i lar o am biente espiritual da cidade mais santa da cristandade. Porém , revelou-se a m aior decepção da vida de Lutero. Em Rom a, só enco n tro u obscenidade, im oralida de, b lasfêm ia, fra q u e z a e apatia esp iritu al. S ua d escrição da cidade em 1511
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co rresp o n d e a o u tro s relatos c o n tem p o rân eo s. Até alguns papas d o sécu lo xv conclam avam a restauração de R om a — tanto espiritual quanto física. Lutero voltou à A lem anha decepcionado e aflito e, provavelm ente, com algum a determ inação inte rior no sentido de en contrar um a solução para a letargia espiritual e teológica que havia provocado essa condição abism al da cidade santa. L utero obteve o d o u to rad o em Teologia na relativam ente nova U niversidade de W itten b erg em 1512 e, na m esm a época, com eçou a lecionar ali m atérias bíblicas. E n q u an to preparava preleções sobre a epístola de Paulo aos R om anos em seu apo sen to na to rre da universidade, passou p o r um a série de experiências intelectuais e espirituais, que foram reunidas pelos biógrafos na cham ada “experiência da to rre ”. Esses aco n tecim entos ocorreram en tre 1513 e 1518. O jo v e m professor, recém no m eado, ainda se debatia com as questões da graça e da ju stiç a de D eus. C o m o o m esm o D eu s podia ser essas duas coisas? A q u e se referia Paulo q u an d o escreveu a respeito da ju stiç a de D eus e da fé co m o o m o d o de vida dos ju sto s? N o fim da vida, L u tero confessou q u e se sentiu “renascido” q u an d o o verd ad eiro significado das palavras de Paulo finalm ente p en e tro u em sua m en te e coração: Finalm ente, pela misericórdia de D eu s, m editando dia e noite, dei ouvidos ao contexto das palavras: “A justiça de D eu s se revela no evangelho, de fé em fé, com o está escrito: ‘O ju sto viverá por fé’”. Então, com ecei a com preender que ajustiça de D eu s é aquela m ediante a qual o ju sto vive por uma dádiva de D eu s, ou seja, pela fé. E é este o significado: ajustiça de D eu s é revelada pelo evangelho, a saber, a justiça passiva com a qual o D eu s m isericordioso nos justifica pela fé, segundo está escrito: “O ju sto viverá por fé ”. Aqui, senti com o se renascesse totalm ente e entrasse no paraíso pelos portões abertos. Ali, uma faceta totalm ente nova da Bíblia revelou-se para m im .3
O conceito que L utero adotava sobre D eus e a salvação foi revolucionado por sua nova interpretação da ju stiç a de D eus e d o evangelho da justificação pela graça m ediante a fé som ente. N ã o tardou em fazer preleções a esse respeito e escrever folhetos e panfletos q u e explicavam sua nova interpretação em com paração com as formas padronizadas de interpretação do evangelho da salvação de seu próprio tem po. A crise aconteceu cm 1517, q u an d o u m v en d ed o r de indulgências chegou em um a cidade p erto de W itten berg com a m ensagem : “T ão logo a m oeda n o cofre soa, um a alm a do purgatório voa!”. L utero não era o ún ico o p o n en te aos m étodos grosseiros de levantar fundos para a nova catedral do papa em R om a, m as foi o único que escreveu noventa e cinco teses para o debate e afixou-as à porta da igreja do castelo. As teses não condenavam so m en te as indulgências. C o n tin h a m condenações im plícitas de m uitas das crenças e práticas populares prom ovidas pela igreja. A tese
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82, em especial, deve ter atraído a atenção d o papa para o m onge saxônio: “Por q u e o papa não livra do purgatório todas as pessoas cm nom e do am or (um a coisa santíssima) e p o r causa da necessidade suprem a de suas almas? M oralm ente, esse seria o m elhor de todos os m otivos. E ntrem entes, ele resgata inúm eras alm as p o r d in h eiro ”.4 E m poucos m eses, L utero to rn o u -se u m herói po p u lar alem ão p o r ter desafia do o p o d erio estrangeiro de R om a que esgotava os recursos financeiros da A lem a nha. T orn o u -se tam b ém um h o m em m arcado pelo Vaticano para u m exam e cuida doso e possível exco m unhão. D e 1518 a 1520, L utero o cu p o u -se de debates com os principais estudiosos católicos rom anos q u e defendiam a autoridade do papa para ven d er indulgências e para perdoar as conseqüências tem porais dos pecados (por exem plo, o purgatório). A lém disso, escreveu vários tratados sobre a reform a da igreja e sua teologia e apelou aos príncipes germ ânicos para q u e tom assem o partido dele co n tra R om a. L utero foi excom ungado pelo papa em 1520 e convoca do a com parecer diante do im p erad o r C arlos v na corte im perial (D ieta) na cidade de W orm s em 1521. Q u a n d o o representante do papa o rd e n o u L utero a retratar suas opiniões “heréticas”, declarou: “M in h a consciência serve à Palavra de D eus. Por isso não posso n em q u ero m e retratar, pois ir contra a m in h a consciência não é seguro n em salutar. N ã o posso agir de o u tra m aneira, esta é m in h a posição. Q u e D eus m e ajude. A m ém ”.5 L utero foi ban id o co m o fora-da-lei pelo im perador, m as protegido pelo p rín ci pe, Frederico, o Sábio da Saxônia. D e volta a W ittenberg depois de u m ano em seu esconderijo, L utero c o n tin u o u sua obra de reform a com vasta produção de livros e de cartas. Todos os olhos da E uropa estavam voltados para ele. Q u ase todas as pessoas am avam -no ou odiavam -no. Poucos indivíduos na história conseguiram dividir tanto u m co n tin en te co m o M artin h o Lutero. L utero era u m polem ista. Insistia para que as pessoas tom assem o seu partido com p letam en te — p o r causa d o grande perigo q u e, segundo ele, a Igreja de R om a e o papado representavam — ou, caso contrário, q u e se afastassem dele e se tornas sem seus inim igos. Sua atitude foi expressa da seguinte m aneira: “Se não estiverem cem p o r cento conosco e a nosso favor, estarão contra n ó s”. D epois de ser exco m u n g ad o pelo papa, L utero soltou sua fúria co n tra o Vaticano, a cúria e o papado, ch am an do -o s “B abilônia” — que m an tin h a no cativeiro a igreja verdadeira — e “o an ticristo ” — q u e buscava d estru ir a verdadeira obra de C risto. N o en tan to , algu m as de suas invectivas m ais c o n tu n d en te s estavam reservadas para o u tro s p ro tes tantes, que se voltaram contra ele p o r questões com o os sacram entos e a o b ed iên cia ao estado. U m de seus apelidos prediletos para o teólogo q u e discordasse dele era “teólogo p o rco ” e se referia aos reform adores m ais radicais co m o “aqueles fa náticos” (die Schwãrmer). As vezes, ao resp o n d er a o u tro reform ador, co m o U lrico Z u ín g lio da Suíça, L utero irrom pia em u m a to rren te furiosa de ofensas. A Z uínglio,
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que discordava dele sobre a “presença real” de C risto na ceia d o S enhor, L utero escreveu: “Sum a, fanático estúpido, com suas idéias im prestáveis! Se você não c o n segue pensar em term o s diferentes e superiores a esses, fique sentado ao lado do fogão para cozer m açãs e pêras e esqueça desses assu n to s”.6 A única defesa q u e se pode oferecer pelo ataque de L u tero é seu e n te n d im e n to que, nas lutas teológicas que o cercaram , o p ró p rio evangelho estava em jo g o . Ele achava que, se era para recuperar de um a vez p o r todas o evangelho da salvação pela graça m ediante a fé som ente, todos os protestantes precisavam se u n ir a ele e parar de se dividir p o r causa de questões secundárias. A falta de un ião só servia para fortalecer o inim igo q ue, em sua opinião, era o Vaticano e o papado. É óbvio que m adores não opinavam estar se voltan d o contra Lutero! havia chegado à m esm a redescoberta do evangelho que com p letam en te in d ep en d e n te dele. M esm o assim , deveíentalidade ofensiva de L utero ao lerm os suas polêm icas es e até m esm o contra os ju d e u s. C o n fo rm e O b e rm a n nos ;e considerou u m ‘re fo rm ad o r’. N ã o se esquivava, porém , cta; queria divulgar o evangelho co m o evangelista”.7 Para ־tância q u e os o u tro s o seguissem e se unissem sob sua achava estar com razão no tocante às d o u trin as em disputa os dem ais q u e incorriam em graves erros d o u trin ário s não 3 que o papa e a cúria.
la cruz go sistem ático e n u n ca p ro d u z iu um a teologia sistem ática, co, o q u e significa q u e se deleitava na natureza paradoxal ue a Palavra de D eus revela um a m ensagem além da razão a e q u e a verdade nela contida é m uitas vezes expressa por Ficaria a cargo dos reform adores protestantes posteriores, , o principal assistente de L utero, e Jo ão C alvino, teólogo refo rm ado r suíço nascido na França, sistem atizar a d o u trin a protestante. L utero não faria isso. A m aioria de seus escritos consistia cm tratados ad hoc visando um a questão o u controvérsia específica o u então com entários e serm ões bíblicos. C h e gou, sim , a escrever dois catecism os para a instrução dos cristãos p o r m inistros protestantes e trabalhou em duas declarações bastante po rm en o rizad as da fé evan gélica — a Confissão de Augsburgo e os Artigos de Smalcald. D evido à natureza dos escritos de L utero, tem os q u e discernir seus principais princípios teológicos cm vez de m eram en te “averiguá-los”. A lgum as de suas gran des ênfases eram a teologia da cruz (versus a teologia da glória), o co n h e cim en to de D eus m ediante a Palavra de D eu s e o E spírito Santo, o D eus en co b erto e revelado,
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a justificação pela graça m ediante a fé so m en te, o sacerdócio de todos os crentes e o batism o e a ceia do S en h o r com o sinais e in stru m en to s eficazes da graça de D eus e da fé. Essas ênfases, p ortan to , form arão o esboço do presente capítulo e p o r m eio delas p ro cu rarem o s elucidar a contribuição de L utero à história da teologia. A ntes de nos ap ro fu n d arm o s na contribuição de L utero à teologia, será bo m fazer um a pausa para ver se tu d o isso pode ser resum ido. M uitos estudiosos de Lutero acreditam que sim. David C . S teinm etz oferece u m a frase que resum e L utero e diz q u e para ele: “O evangelho não é ‘d ê -m e sua v irtu d e e coroála-ei com a graça’ m as ‘despreze seu pecado e banhá-lo-ei em m isericórdia”’.8 Paul A lthaus com pleta essa declaração d izen d o que, para Lutero: “O h o m em não so m en te é incapaz de con seg u ir m érito de fato perante D eus, m as tam bém é incapaz de fazê-lo em p rin cípio. Em todos os casos, ele dep en d e da graça inefável de D eus para sua salvação”.9 Esse m o d o de e n te n d e r e essa contribuição eram realm ente novos? O b e rm a n ar gu m en ta que: A descoberta de Lutero não som ente era nova, co m o tam bém extraordinária; abalava os próprios fundam entos da ética cristã. A recom pensa e o mérito, que por tanto tem po foram considerados a m otivação básica de qualquer ação humana, perderam a eficácia. As boas obras, que a doutrina da igreja con sid e rava indispensáveis, foram destituídas de sua base nas Escrituras. Essa revira volta não som ente afetou a fé e a justiça, com o tam bém toda a vida e, por isso, teve de ser reconsiderada. N o decurso dos anos que se seguiram de con fron tação e conflito, o objetivo era um só: desvendar as im plicações dessa d esco berta e garantir que fossem am plam ente con h ecidas.1"
O âm ago e a essência da contribuição teológica de L utero, p ortanto, era a salva ção com o d o m gratuito da m isericórdia divina pelo qual o ser h u m a n o nada pode fazer. M u ito s protestantes nos dias de hoje, e até m esm o alguns católicos, aceitam essa idéia co m o se sem pre tivesse sido crida. M as pensar assim é desconsiderar o papel revolucionário d esem p en h ad o por L utero na recuperação do q ue, em grande parte, tin h a sido p erd id o e ignorado p o r m ais de m il anos. Se alguém perguntasse ao p ró p rio L utero qual era sua principal ênfase teológi ca. talvez não citasse a d o u trin a da salvação pela graça m ediante a fé so m en te. Ela se to rn o u a idéia m ais relevante em term os de im pacto geral. N o entanto, talvez L utero respondesse à p erg u n ta n o tan d o que, p o r trás de tu d o , estava a sua idéia da “teolo gia da c ru z ”, q ue so m en te pode ser en ten d id a ao ser com parada com seu avesso, a “teologia da glória”. O contraste entre essas duas abordagens teológicas foi delineada na D isputa de H e id e lb e rg e m 1518. Pouco m enos de u m ano após ter exibido as noventa e cinco teses em W ittenberg, L utero foi convidado, pelo m osteiro agostiniano em H eidelberg, a explicar seu
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program a para a reform a e renovação da teologia. R esolveu p en e trar bem n o âm a go das diferenças com o escolasticism o — o m aior inim igo de sua teologia da res tauração seg u n d o o evangelho. Ele taxava de “teologia da glória” q u alq u er aborda gem que procurasse explicar D eus pela razão h u m an a sem a ajuda da graça sobre natural e do d o m da fé: É certo que o hom em precisa se desesperar totalm ente de suas próprias capa cidades antes de se estar pronto para acolher a graça de Cristo. [...] N ã o m e rece ser cham ado teólogo aquele que considera as coisas invisíveis de D eu s com o se fossem claram ente perceptíveis nas coisas que realm ente acontece ram (Rm 1.20). [...] M erece ser cham ado teólogo, no entanto, aquele que com preende as coisas visíveis e m anifestas de D eu s da perspectiva do sofri m en to e da cruz. [...] O teólogo da glória chama o mal de bem e o bem de mal. O teólogo da cruz chama as coisas conform e realm ente são."
Paul A lthaus expressa de m o d o su cin to essa distinção: “A teologia da glória co nhece D eu s pelas obras; a teologia da cruz o conhece pelos so frim en to s”.12 L utero estava co n ceb en d o as declarações estupendas de Paulo em IC o rín tio s a respeito do evangelho da cru z co m o “escândalo” e “ob stácu lo ” e com parando-as com o que considerava um a tentativa da teologia natural escolástica de co n to rn a r o escândalo pela razão destitu íd a da fé e da graça. D eus, de acordo com L utero, é revelado su p rem am en te ein Jesu s C risto e na sua cruz. É exatam ente esse o escândalo do evangelho d o n t . O grande D eus criador do universo h u m ilh o u -se ao sofrer na cruz rom ana e ao ser revelado nela com o am or e m isericórdia. N atu ralm en te, Lutero não negava q u e todas as pessoas de todos os lugares têm um a idéia inata de u m ser sup rem o , m as estava q u estio n an d o a teologia cristã e seu p o n to de partida. Para L utero, assim com o Paulo, tratava-se de Jesu s C risto e da cruz e não da natureza c da razão. Isso p o rq u e D eus escolheu essa auto-revelação escandalosa (para a razão) e p o rq u e a razão h u m an a está co rro m p id a dem ais pelo pecado para chegar, p o r si m esm a, ao verdadeiro co n h e cim en to de D eus. L utero acreditava q u e se a teologia cristã com eçar com o nível inferior adotado pelo escolasticism o 110 esquem a teoló gico de dois níveis de Tom ás de A quino, n u n ca realm en te alcançará o nível su p eri or, o n d e se en co n tra a verdade do evangelho. Se D eu s se revelou na cruz de Jesus C risto , p o r q u e com eçar a reflexão cristã sobre D eu s em o u tro lugar? L utero acreditava que a teologia da glória, com seu en fo q u e na razão h u m an a e naq u ilo que consegue descobrir a respeito de D eus exclusivam ente a partir da n a tureza, co n d u z inevitavelm ente à espiritualidade m oralista da ju stiç a segundo as obras, p o rq u e esse conceito parece m ais racional para o intelecto h u m a n o pecam i noso e caído do q u e o evangelho da justificação pela m o rte de C risto recebida pela graça m ediante a fé som ente:
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A teologia da glória procura conhecer a D eu s de m odo direto, no seu poder, sabedoria e glória claramente divinos; ao passo que a teologia da cruz o reco n hece, de m odo paradoxal, exatam ente onde ele se ocultou: em seus sofri m entos e cm tudo o que a teologia da glória considera fraqueza e estultícia. A teologia da glória im pele o h om em a com parecer diante de D eu s e entrar em acordo com ele, tendo por base a realização ética do cum prim ento da lei, ao passo que a teologia da cruz enxerga o h om em co m o alguém que foi cham a do para sofrer.13
A teologia da glória, portan to , é a teologia centralizada n o h o m em e induz à superestim ação d o p o d er e capacidade naturais d o h o m em . A teologia da cruz re vela a verdadeira condição dos seres h u m an o s, co m o pecadores desam parados, alienados de D eus, na m en te e no coração, necessitando desesperadam ente do pla n o de salvação criado p o r D eus: a cruz de C risto. A teologia da glória sugere q u e os seres h u m an o s p o d em se elevar a D eus p o r seus pró p rio s esforços e co n d u z a projetos h u m an o s de salvação própria e de especulação teológica. A teologia da cruz proclam a q u e os seres h u m an o s são to talm en te d ep en d en tes e incapazes de descobrir q u alq u er coisa a respeito de D eus sem a ajuda da auto-revelação d o p ró prio D eus, e co n d u z ao discipulado m arcado pelo so frim en to em n o m e de D eus e do próxim o. E m bora não se referisse explicitam ente a ela a to d o o m o m en to , “a teologia da cruz p erm eia to d o o p en sam en to teológico de L u tero ”.14 Essa teologia é a causa e a base de sua rejeição d esdenhosa do racionalism o teológico e da calorosa aceitação d o p arad o x o e d o m isté rio n a teologia. E o fu n d a m e n to de seu e n fo q u e na pecam inosidade h u m an a e na transcendência divina, bem co m o da ênfase na graça e m isericórdia divinas, to talm en te im previsíveis e ind ep en d en tes d o controle h u m ano, e na d ep endência hum ana. Q u a n d o L utero olhava para a Igreja de R om a, via a m anifestação concreta da teologia da glória. Q u e ria rejeitar tu d o isso sem d estru ir a cristandade. Podia aceitar o papa q u e liderasse a igreja co m o servo sofre dor, m as não o papa q u e era rico, poderoso e m ajestoso e reinava sobre todos. Podia aceitar a teologia que entendesse q u e seu ú n ico propósito era p roclam ar o evangelho da graça, m as não a teologia controlada p o r A ristóteles, q u e visava à especulação e à explicação racional dos m istérios divinos sem a ajuda da fé. L utero tam b ém considerava exem plo da teologia da glória a crença no livrearbítrio h u m an o no tocante à salvação. C o m raras exceções, a m aioria dos teólogos e h um anistas escolásticos aceitava a liberdade da vontade co m o parte de seu c o n ceito sinergístico da salvação. L utero a tratava co m o apenas m ais um a m anifestação da soberba h u m an a q ue se co n tra p u n h a à cruz e proclam ava o desam paro d o ser hu m an o . L u tero acreditava fo rtem en te na escravidão da v ontade p o r conseqüência
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da queda e d o pecado original, m as assim acreditava p o r causa da cruz e não da especulação m etafísica. Sua teologia da cruz tam bém o levou à defesa fervorosa da d o u trin a da salvação — o m o n erg ism o da salvação — q u e considerava u m “vinho m u ito forte e aliin en to sólido para os fortes”.15 E m bora L utero tivesse m u ito s m o tivos para crer na predestinação, na verdade, sua crença nela se baseava na cruz e, só podia ser explicada por m eio da cruz, e não pela argum entação teológica ou filosófica racional: A doutrina da predestinação defendida por Lutero não era motivada por inte resses especulativos ou m etafísicos. Era uma janela para a vontade graciosa de D eu s q ue volu n tariam en te se u n iu à h um anid ad e em J esu s C risto. A predestinação, assim com o a natureza do próprio D eu s, podia ser explicada som ente por m eio da cruz, pelas “chagas de Jesus” às quais Staupitz dirigiu a atenção do jo v em Lutero em suas primeiras reflexões.16
Para L utero, a crença na liberdade da vontade — q u e r na versão escolástica, q u er na h u m an ista — evidenciava a recusa de aceitar a atuação de D eus a nosso favor com o a única esperança de salvação. A cruz é o grande evento e sím bolo do desam paro h u m an o e da intervenção divina. A única m aneira de resp o n d er a isso é reco n h ecer a total indignidade c d ependência da graça de D eus. E m seu p ró p rio tem po, L utero via apenas duas opções para a teologia cristã: a versão da teologia da glória o u da teologia da cruz. Pelos seus cálculos, todos os seus o p o n en tes — inclusive a Igreja de R om a e os hu m anistas, b em co m o os “faná ticos” en tre os pro testantes — eram culpados de adotar a teologia da glória. So m en te ele conseguia ver a centralidade da cruz e o paradoxo do p o d er e so frim en to de D eus 110 âm ago do evangelho, co n fo rm e o entendia. Tudo na co n trib u ição teo lógica de L utero flui e reflui daí co n tin u am en te. C ertam e n te , elem en tos teológicos e filosóficos externos in flu en c ia ram -n o sem q u e tivesse plena consciência disso. E xem plo notável desse fato é a influência do nom in alism o em sua d o u trin a de D eus, e pelo m enos alguns estudiosos e críticos de L u tero arg u m en tam que ele era u m fator tan to no seu m o n erg ism o da salvação q u an to na sua teologia da cruz. Assim com o O ccam , L utero identificava a pessoa de D eus com total liberdade de vontade. A vontade h u m an a é restrita e d eterm in a da p o r D eus. C o n fo rm e L utero declarou a E rasm o, re sp o n d en d o à pergunta do hum an ista em Da liberdade da vontade, n o tocante à razão para D eu s p re o rd en a r o pecado e o mal: Ele é D eu s e, quanto à sua vontade, não existe nenhum a causa o u razão que possa ser definida com o regra ou m edida, visto que não há nada igual 011 superior a ela já que ela m esm a é a regra para todas as coisas. Se, portanto,
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houvesse uma regra ou padrão que a determ inasse, quer co m o causa ou ra zão, já não seria a vontade de D eus. Pois o q ue acontece está necessariam ente certo não porque ele é ou foi obrigado a determinar tal coisa, mas porque ele próprio a determ inou. A causa c a razão podem ser designadas para a vontade da criatura, mas não para a vontade do Criador, a não ser que se coloque acima dele outro criador.17
D ific ilm e n te p o d e ria h av e r u m a d ec la raç ão m ais clara d e u m a d o u trin a nom inalista de D eus.
O conhecimento de Deus segundo Lutero S egundo L utero, se D eus deve ser co n hecido de algum a m aneira, ele m esm o p re cisa se revelar. P ortanto, a base de to d o o c o n h e cim en to g en u ín o a respeito de D eus só pode ser a auto-revelação m ediante sua Palavra e seu Espírito. E m bora a teologia natural fosse um a possibilidade antes d o pecado, e à parte dele, segundo L utero, a queda d estru iu não so m en te a liberdade da vontade, m as tam b ém a capa cidade do intelecto de co n h ecer a D eus pela razão natural sem ajuda da revelação especial. Por causa do pecado, declarou Lutero: “Q u e m tiver um deus, m as não sua palavra, não tem deus n e n h u m ”, e q u em p ro c u rar D eus fora de Jesu s C risto co m o a Palavra de D eus em pessoa encontrará o diabo e não D e u s.18 Isso porque, segundo L utero, a p rópria razão precisa de cura e renovação m ilagrosas pela graça de D eu s e do E spírito Santo para crer em D eus corretam ente. O pecado c o rro m peu de tal m aneira o ser h u m an o q u e a im agem de D eus não passa de reflexo fragm entado o u de m era lem brança do q u e deveria ter sido. E m bora as evidências da existência, do p o d er e da bondade de D eus estejam presentes em toda parte na natureza, a m en te hu m ana, p o r causa do pecado, so m en te percebe ídolos e rejeita a verdadeira adoração a D eus em favor da idolatria. L u tero buscou em Paulo, R o m anos 1 a base para rejeitar q u alq u er co n h e cim en to natural g en u ín o de D eus. N ão é necessário d izer q u e o re fo rm ad o r alem ão desprezava com p letam en te o co n h ecim en to natural de D eu s segundo o escolasticism o e m u ito m enos a ênfase dada à filosofia de A ristóteles pelos tom istas (seguidores de Tom ás de A quino). E n tre ou tras coisas — co n fo rm e argum entava L utero — essa abordagem do co n h ec im e n to de D eu s não leva o pecado suficien tem en te a sério. Em contrapartida, exalta a filosofia dem asiadam ente. Q u a n d o Lutero vituperava a razão com o a “grande m e re triz”, geralm ente se referia a A ristóteles e a q u alq u er filosofia o u teologia que tentasse alcançar o co n h ecim en to a respeito de D eus e do evangelho usando m eios alheios à Palavra de D eus. N a sua opinião, “A ristóteles está para a teologia assim com o as trevas estão para a lu z”19 e “a filosofia não consegue expressar nada senão o co n teú d o lim itado da razão h u m a n a ”.20
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N o v am en te, parece q u e dois arg u m en to s su sten tam a opinião de L utero e os estudiosos vivem q u estio n an d o qual seria a principal influência de seu conceito do c o n h ecim en to de D eus. D e u m lado, L utero apelava ao evangelho e às Escrituras em busca de fu n d a m e n to . N esse p o n to , estão em jo g o as d o u trin as do pecado original e a transcendência de D eus em relação ao raciocínio h u m an o . D e o u tro lado, aqui e em ou tras partes, L utero estava n itid am en te sob a influência de O ccam e do n om inalism o. O ccam não en c o n tro u m u ita ajuda para a teologia na razão natural (a não ser a p rópria lógica). O grande nom inalista m edieval enfatizava a fé so m en te com o in stru m en to para en te n d e r a natureza de D eus e os m istérios da revelação divina. P ortanto, se a razão e a filosofia sem ajuda da graça e da revelação são de pouca ou n en h u m a serventia, on d e L utero foi buscar o co n h e cim en to sobre D eus que lhe p erm itiria desenvolver e estabelecer a d o u trin a verdadeira? C o n tra a teologia da Igreja de R om a, apelou so m en te à E scritura — sola scriptura — com o guia, n o r ma e autoridade finais para a fé e a prática cristãs. A Igreja C atólica nos dias de L utero ensinava q u e a tradição oral era tão válida q u an to as Escrituras. A lém disso, ensinava q u e a Bíblia foi p roduzida pela igreja e, p ortanto, so m en te sua hierarquia poderia interp retá-la de m o d o apropriado. L utero, en tre tan to , considerava q u e o evangelho e as E scrituras q u e o refletem se encontravam em u m nível de autorida de m u ito su p erio r ao da filosofia o u da tradição, sendo q u e estas podiam errar e não raro erravam m esm o. Isso não q u e r dizer, porém , q u e L utero descartou in teiram en te a tradição. Ele m anteve a tradição cristã, ao co n trário da filosofia, na m ais alta estim a e p ro c u ro u resg atá-la e p re se rv á -la o m áx im o p ossível. U m a d e suas q u eix as c o n tra os reform adores m ais radicais foi de agirem precipitadam ente contra a herança teoló gica e litúrgica tradicionais da igreja. C o m p aran d o a tradição acum ulada nos cre dos e liturgia co m u m tem plo, L utero escreveu contra os radicais: “Precisam os ter um espírito m ais cauteloso e discreto, q u e ataque as m udanças q u e am eaçam o tem plo sem d estru ir o tem plo de D e u s”.21 Para L utero, o padrão e a m edida de toda a verdade é o evangelho de Jesus C risto, que é, antes de tu d o , um a m ensagem falada — a Palavra de D eu s — e não um a “m ensagem m o rta ”. L utero não se lim itou a equiparar a Palavra de D eus com a Bíblia. C o n tu d o , não relegou, tam pouco, a Bíblia a um a categoria in ferio r ou m enos im p o rtan te. N ó s só co n h ecem o s e ouvim os o evangelho p o r m eio da Bí blia, que é o in stru m e n to escolhido p o r D eu s e usado pelo E spírito Santo para trazer Jesu s C risto até nós e nos en sin ar o evangelho. Para L utero, a Bíblia é o berço no qual C risto se encontra. M as a Bíblia não é D eus, n em Jesu s C risto e nem o evangelho. Estes estão acim a do livro e o valor do livro en co n tra-se exclusiva m en te no fato de D eus usá-lo para in stru ir seu povo. M as ele realm ente o usa
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com o n e n h u m o u tro livro e, p o r isso, sua autoridade está acim a de todas as au to ri dades hum anas. Segundo Lutero: “O evangelho [...] não é o utra coisa senão a p re gação a respeito de C risto, Filho de D eus e de Davi, verdadeiram ente D eus e verda deiram ente h o m em , cuja m orte e ressurreição sobrepujaram o pecado, a m orte e o infern o de todos h o m en s q ue nele crêem ”.22 E, em outras palavras, um a m ensagem : a Palavra de D eus. A ntes de existir o n t , a m ensagem era pregada pelos apóstolos. Ela é o âm ago e padrão interior da verdade, até m esm o nas próprias Escrituras. A abordagem de L u tero à Bíblia era u m pouco am bígua e até paradoxal. A lguns críticos diriam q u e é u m exem plar perfeito de sua tendência à inconsistência ou m esm o à contradição total. D e u m lado, contra a equiparação das autoridades da tradição e das E scrituras feita pelos católicos, ele colocou a Bíblia em um plano mais alto e insistiu q u e n e n h u m a pessoa ou igreja tin h a o d ireito de ju lg a r as Escri turas. Em algum as ocasiões em seus escritos, ele de fato eq u ip aro u a Bíblia com a Palavra de D eu s e co n d e n o u todas as críticas q u e lhe foram feitas e sua su b o rd in a ção à au toridade da igreja. R eferiu-se à Bíblia co m o “a rain h a” e declarou: “essa rainha deve reinar e todos devem obedecer-lhe e se su b o rd in ar a ela. O papa, L utero, A gostinho, Paulo c m esm o os anjos do céu não devem ser senhores, ju iz e s ou árbitros, m as apenas testem unhas, discípulos e confessores das E scrituras”.23 D e o u tro lado, L utero tam bém foi capaz de declarar de m o d o bastante inequívoco que nem tu d o nas E scrituras tem igual valor e, sem cerim ônia, depreciou alguns livros da Bíblia afirm ando que tinham pouco ou n e n h u m valor para a alma. O exem plo clássico disso é a Epístola de Tiago, a respeito da qual L utero escre veu: “Fora com Tiago. [...] Ele não tem autoridade suficiente para m e fazer aban d o n ar a d o u trin a da fé e desviar da autoridade dos dem ais apóstolos e da Bíblia inteira”.24 L utero lidava com a m ensagem do evangelho — a Palavra de D eus — co m o u m “cânon d en tro do câ n o n ”, de m o d o q u e Tiago e certos o u tro s livros e partes das E scrituras não tem a m esm a autoridade: Em poucas palavras, o evangelho segu n d ojoão e sua primeira epístola, as epís tolas de Paulo, especialm ente Romanos, Gálatas e Efésios, e a primeira epístola de Pedro são os livros que mostram Cristo e ensinam tudo o que é necessário e salvífico, m esm o que nunca mais se venha a ler ou a conhecer nenhum outro livro ou doutrina. Por isso, a epístola de Tiago é realm ente uma epístola inútil se comparada às outras, pois não contém nada da natureza do evangelho.25
Para L u tero , p o rtan to , até a B íblia co n tém d iferen tes níveis de au to rid a d e e o teste para d e te rm in á -lo s e m ed id a para in te rp re ta r toda a E scritu ra é u m Christum treibí — o q u e p ro m o v e (ou im pele) C risto — , o u seja, a m en sag em d o evange lh o sobre C risto , a cru z e a salvação pela graça m ed ian te a fé so m en te. L utero,
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d ife re n te m e n te de alguns conceitos falsos a respeito, não excluiu a epístola de Tiago do n t . M as realm ente desencorajava o seu uso n o culto c n o ensino e proibia os asp iran tes ao m in isté rio lu te ra n o de p reg ar com base nela o u n o livro do Apocalipse, q u e considerava obscuro. A lém disso, ele excluiu das versões p ro tes tantes da Bíblia os livros conhecidos com o apócrifos e crio u u m a tradução em alem ão das Escrituras, a partir d o texto grego crítico do n t de E rasm o. N ã o há dúvida q u an to à devoção de L utero às E scrituras co m o Palavra de D eus. M as não se pode negar, tam p o u co, que sua d o u trin a das E scrituras seja altam ente am bígua e apresente quase tantas dúvidas q u a n to soluções. A autoridade religiosa e espiritual final, segundo L utero, é a “Palavra ex tern a” d o evangelho, refletida pelas Escrituras q u an d o o E spírito Santo a usa para cham ar, co n vencer e in stru ir os pecadores que se to rn am crentes. C o n tra a Igreja de R om a, colocou a Bíblia em u m pedestal acim a da tradição eclesiástica, co m o árbitro de toda a crença e prática. S o m en te os aspectos da tradição q u e estão de acordo com as E scrituras devem ser m antidos. Ao co n trário dos m ísticos e espiritualistas de seu tem p o , L u tero estabeleceu u m forte vínculo en tre o E spírito Santo, a Palavra exter na e a Bíblia e arg u m e n to u q u e o E spírito Santo não ensina nada além do que a Bíblia ensina. Para ele, “a Palavra e o Espírito Santo [...] não apenas estão unidas, co m o tam b ém fo rm am u m a un id ad e indissolúvel”.26 A única com provação da ve racidade e au to rid ad e das E scrituras é o te ste m u n h o do E spírito Santo p o r m eio delas. Para L utero, isso bastava. O arg u m e n to racional não tem nada a acrescentar.
O Deus de Lutero é oculto e revelado O u tro princípio básico da teologia de L utero diz respeito à pessoa de D eus. L utero é fam oso pelas alusões indiretas, freqüentes e enigm áticas à sua crença n o “D eus o cu lto ”. Para ele, o D eus verdadeiro é tanto o cu lto com o revelado, tratan d o -se de u m paradoxo. O co n ceito da qualidade oculta de D eus, seg u n d o L utero, sugere m u ito m ais do q u e o b o m senso o u a noção po p u lar de q u e n em tu d o relacionado a D eu s pode ser con cebido pela m en te h u m an a, m esm o q u an d o ela se apóia na revelação divina. Trata-se praticam ente de u m tru ísm o sem n e n h u m interesse es pecial. A idéia de L u tero sobre o aspecto oculto de D eus vai m u ito além disso, m as ainda não se en tro u em acordo sobre exatam ente o q u e está envolvido e su b e n te n did o nela. A lguns críticos a consideram incoerente, e alguns adm iradores de L utero um a de suas m aiores realizações. Para Lutero, D eus é oculto e revelado no evangelho e nas Escrituras em dois sentidos. D e u m lado, D eus decide se revelar de m odo soberano sob um a form a contrária à sua, na hum anidade de Jesus C risto e no sofrim ento da cruz. Esse sentido da qualidade oculta de D eus foi um a m aneira de L utero expressar a condescendência de D eus em sua auto-revelação. D eus escolhe o q u e lhe é alheio e até m esm o o que
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é profano (o ab an d o n o de Jesu s C risto p o r D eus na cruz, p o rq u e Jesu s levava sobre si os pecados do in u n d o ) para ir ao en c o n tro da hum anidade. Sua grandeza e seu p o d er são revelados p o r m eio da fraqueza, do so frim en to e d o pecado assum i do. C o m o D eu s po d e ser D eus e ainda passar p o r tu d o isso é incom preensível à m en te hum ana. Faz parte d o escândalo da teologia da cruz, que é ofensa e obstácu lo para a razão natural. O sen tid o m ais enigm ático da qualidade oculta de D eu s tem a ver com a afir m ação de L utero de q u e de algum a form a, alem da auto-revelação de D eus no evangelho existe um p o d er m isterioso quase to talm en te desconhecido pelos seres hu m an o s. D eus se revela em Jesu s C risto co m o irm ão e am igo am oroso e, no evangelho, co m o graça e m isericórdia. N o evangelho, D eus é só com paixão e b o n dade perfeita, sem o m e n o r indício de arbitrariedade o u capricho. D eus está “a nosso favor”. Este é o ú nico lado o u aspecto de D eus do qual devem os nos ocupar. O D eus revelado pelo evangelho opõe-se ao pecado c ao m al c procura vencê-los d erro tan d o o pecado, a m o rte e Satanás por m eio da cruz. D eus a nosso favor 110 evangelho é a nossa única função na proclam ação. S egundo L utero, devem os diri gir a nossa atenção a esse D eus, q u e é m u ito sem elhante ao pai disposto a perdoar na parábola de Jesu s sobre o filho pródigo. A inda que de m o d o paradoxal, L utero q ueria nos avisar q u e esse não é o único aspecto de D eus. Por trás d o D eus q u e nos espera, com rosto so rrid en te e braços estendidos, en co n tra-se o D eus oculto, obscuro, m isterioso, com p o d er para d e term in ar tu do, q u e é a causa de todas as coisas m ás e de todas as coisas boas da natureza e da história. E m bora essa força divina e obscura tenha pouca relação com a m ensagem do evangelho, L utero a apontava com o o contexto necessário para a toda a história. A b so lu tam ente nada pode existir o u acontecer q u e não faça parte d iretam en te d o plano e causalidade de D eus. N esse p o n to , o m o n erg ism o vai além até de A gostinho: “O diabo é ,o diabo de D e u s’”.27 D eus opera tu d o em todos, até m esm o em Satanás e nos ím pios e p o r m eio deles. “D evem os saber, p o rtan to , que, em to d o mal q ue nos acontece, é o p ró p rio D eus q u e opera p o r m eio de seus in stru m en to s”.28 L utero relacionava sua d o u trin a da dupla predestinação — q u e D eus preordena alguns anjos e seres h u m an o s para o céu e o u tro s para o in fern o — ao aspecto oculto de D eus. U m a idéia tão terrível com o essa parece contrária ao evangelho, mas é inevitável, assim acreditava L utero. P or ser tanto o culto com o revelado, D eus tem duas vontades que parecem totalm ente conflitantes para a m ente hu m an a finita. Por u m lado, D eus deseja a salvação de todos; p o r o u tro lado, deseja operar o m al (em bora para ele isso não seja n e n h u m mal!) e criar Satanás, provocar a sua queda e usá-lo co m o in stru m en to . Sem a m en o r intenção de esclarecer as contradições aparentes dessa d o u trin a, L utero sim plesm ente falou d o aspecto oculto de D eus e
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con clam o u os cristãos a reconhecê-lo, sem deixar de m an ter o en fo q u e na au to revelação de D eu s em C risto. M u ito s críticos e estudiosos en ten d e m q u e o “D e u s o c u lto ” de L utero é m ais um a evidência d o n o m in alism o . Sua redescoberta d o evangelho apontava de m odo irrefutável para a grande com paixão, m isericórdia e bo n d ad e de D eus. E n tretan to , L u tero não podia lim itar a isso a d o u trin a de D eus, visto q u e assim estaria suge rin d o q u e D eu s é, de algum a form a, prisio n eiro de seu rela cio n am en to com a h u m an id ad e e q u e existem poderes — Satanás, o pecado e o m al — q u e estão fora de seu co n trole. L u tero tin h a um a idéia bastante clara de Satanás co m o u m in im i go seu e de D eus e co m o o p o n en te d o evangelho. Por o u tro lado, conhecia a D eus co m o o S en h o r o n ip o te n te do u n iv erso q u e d eterm in a tu d o o q u e acontece. A solução estava em p o stu lar u m D eus o cu lto atrás do D eus am o ro so e pessoal do evangelho que se o p u n h a a Satanás e era am igo da hum an id ad e. Esse D eu s oculto é quase id ên tico ao p o d er e à vontade divina co m p letam en te livre (potentia absolu ta) postulados pelo n o m in alism o e ao im p era d o r d o u n iverso p o stu lad o p o r A gos tin h o . O resu ltad o para a teologia de L utero é u m D eus sem elh an te a Jan o , com dois rostos. Até m esm o estudiosos sim patizantes de L utero, com o Paul A lthaus, ficam cons ternados p o r L u tero ter se apegado tanto à idéia do D eus oculto, en q u a n to seu com p ro m isso com o evangelho deveria revolucionar a d o u trin a d o ser divino.29 E m vez de o p o d er de D eus ficar su b o rd in ad o ao am o r — co n fo rm e indicaria o evangelho — , o co nceito de L utero sobre o D eus oculto parece sugerir u m conflito d ireto e n tre o am o r e o p o d er de D eus ou, então, a subordinação d o am o r ao poder.
A justificação: a doutrina peia qual a igreja se firma ou cai A co n trib u ição m ais co nhecida de L u tero à teologia é a d o u trin a da ju stiç a o u da “justificação pela graça m ediante a fé so m e n te ”. A justificação é o ato pelo qual D eus declara q u e u m a pessoa está em u m relacionam ento certo com ele, o u seja, ju sto . L u tero considerava q u e esse era o âm ago da soteriologia, e a soteriologia, o âm ago de toda a teologia. Para ele, “a d o u trin a da justificação não é apenas m ais um a d o u trin a; é o artigo fun d am en tal da fé, pelo qual a igreja se firm ará o u cairá e do qual d ep en d e toda a d o u trin a ”.30 Para co m p re en d erm o s o conceito da ju stifica ção segundo L utero, é essencial en ten d e rm o s a d o u trin a católica m edieval co n tra a qual su rgiu essa reação. C o n fo rm e a d o u trin a católica — desde os dias de Agosti nh o , m il anos atrás — a justificação é o processo gradativo pelo qual o pecador realm ente se to rn a in terio rm en te ju s to ao receber a ju stiç a d o p ró p rio D eus, in fundida nele m ediante a graça d o batism o, da fé, de obras de caridade e de toda a vida penitencial. S o m en te q u an d o o pecador é tran sfo rm ad o de tal m aneira que realm ente deixa de ser pecador é q u e D eus o ju stifica n o sen tid o pleno e com pleto.
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A graça batism al q u e lava a culpa do pecado original precisa tornar-se a graça habi tual q u e é au m en tad a in terio rm en te pelos sacram entos e pela penitência e acaba se tran sfo rm an d o na perfeição im pecável. A justificação vem progressivam ente no d eco rrer do processo da salvação, m as só no fim acontece de m o d o definitivo e perfeito. Para os católicos m edievais, esse processo se estendia até o purgatório. L u tero desesperou-se ao pensar se algum dia alcançaria a justificação dessa m a neira. T in h a sido batizado e se to rn ad o “p en iten te p erfeito ” ao ingresar n o m ostei ro c se confessar, com sincera contrição, várias vezes p o r dia. T in h a experim entado até m esm o autoflagelar-se e je ju a r até quase m o rre r de fom e, além de d o rm ir no chão frio de pedra de sua cela. M esm o assim , sua m en te continuava perturbada e o sem blante de D eu s ainda lhe parecia irado q u an d o o contem plava à luz de sua própria v irtu d e im perfeita. O estu d o das E scrituras só fez ap ro fu n d ar ainda m ais o senso da pecam inosidade h u m an a que o sistem a católico m edieval da salvação pres su p u n h a. L utero chegou a acreditar que “o h o m em [...] peca m esm o depois de dar o m elh o r de si, até em suas m elhores o b ras”.3' C o m o , então, teria algum a esperan ça de justificação? Sua d o u trin a alternativa com eçou com a idéia: “eu não sou bom e ju sto , m as C risto o é ” e há um a “troca agradável e alegre” na cruz, e n tre a b o n d a de e retidão de C risto c a pecam inosidade e iniqüidade d o ser h u m an o , q u e se to rn a p leno benefício a partir do m o m en to em q u e se tem fé e nisso crê. “C o m o noivos que p erm u tam as posses n o casam ento, o pecador recebe a justificação de C risto e C risto assum e seus pecados.”32 Esse in tercâm b io alegre acontece tanto na cruz, pela m o rte de C risto, q u an to na vida d o cristão tão logo que ele crê na Palavra de D eus e confia so m en te em C risto para a salvação. Para isso, nada m ais é necessário senão a cruz na história, o evange lho proclam ado e a fé n o coração do pecador. O s atos de penitência não fazem n en h u m a diferença. O s m éritos de C risto , q u e D eus im puta ao pecador, não au m entam . A ju stiça assim obtida é de C risto, p o r isso é “alheia” e “im p u tad a”: “m e diante a fé em C risto [...] a ju stiç a de C risto se torna a nossa ju stiç a c tu d o que é dele passa a ser nosso, ele p ró p rio passa a ser n o sso ”.33 L utero deixou claro 110 contexto q u e essa retidão q u e nos justifica nu n ca se torna nossa propriedade. E, para sem pre, to talm en te de C risto. A lém disso, não transform a a pessoa q u e a recebeu em ju sta de fato, em bora forneça u m novo m otivo para agradar a D eu s — a gratidão. Pelo contrário, a pessoa que recebe a ju stiç a de C risto pela im putação (um a m etáfora contábil ou ju ríd ica) co n tin u a to talm en te pecadora. Sua condição é constante na vida, sen do sitnuljusttis ct peccator— “sim u ltan eam en te ju sta e pecado ra”. Por causa de C risto, recebido pela fé, D eus enxerga o pecador co m o ju sto , em bora o pecador seja exatam ente isso, pecador: “assim , o cristão é ju s to e peca dor, santo e profano, inim igo de D eus, n o en tan to seu filho”.34 Para L utero, p o rtan to , a justificação tin h a dois m o m en to s. N o p rim eiro , D eus
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perdoa o pecador p o r causa da fé, m ed ian te a graça divina som ente. N o segundo, além do sim ples perdão, D eus im p u ta ao pecador a ju stiç a de C risto , co m o se fosse a ju stiça do p ró p rio pecador. E u m evento em duas etapas q u e acontece um a única vez — u su alm en te p o r ocasião do batism o — e diariam ente no d eco rrer da vida à m edida q u e o cren te pecador renova a cada dia seu arre p e n d im e n to e fé. N ã o há, po rém , insegurança no aspecto diário da justificação, pois é dádiva gratuita, total m en te in d ep en d e n te do progresso da ju stiç a concreta. A única condição para m an ter a justificação é a fé contínua, e a fé, segundo L utero, é o co n trário de “o b ra”. “Para L utero, [...] a fé significa aceitar de coração a prom essa de D eus e nela arris car tu d o ”.35 A essência da fé é a sim ples crença e confiança na prom essa de D eus feita em C risto na cruz. N o m o m e n to em q u e alguém passa a ter fé — que é o do m de D eus aos eleitos — , a troca agradável c alegre se com pleta c o pecador deixa de ser u m pecador co n d en ado aos olhos de D eus. O s o p o n en tes de L utero acusaram -no de abrir um a brecha para a antiga heresia do an tin o m ism o — a rejeição de toda lei e obediência. Alegaram q u e seus ensinos a respeito da justificação suprim iriam o âm ago do viver cristão. As pessoas “pecari am m ais para q u e a graça fosse a b u n d a n te ” e iriam para o in fern o p o r negligenciar o crescim en to para a perfeição pelo sistem a penitencial. L utero recebeu essa crítica com te m o r p o rq u e sabia que havia u m pouco de verdade nela e q u e algum as pes soas, sem dúvida, en ten d eriam erro n ea m e n te o evangelho e transform ariam liber dade em libertinagem , co m o já havia acontecido nos dias de Paulo. L utero explicava as boas obras cristãs à sua própria m aneira. As boas obras, com o atos de am o r a D eus e ao próxim o, fluiriam naturalm ente no novo coração que a pessoa recebe ao ser perdoada e justificada livrem ente pela graça. A m esm a fé que acolhe a graça e a m esm a graça q u e justifica com eçarão inevitavelm ente a transfor m ar a pessoa in terio rm en te e a pro d u zir frutos de justiça. D isso L utero tinha certeza. Mas não dedicou m uita atenção às boas obras com receio de q u e levassem de volta à justiça pelas obras. Para ele, o total de boas obras e o grau de resignação genuína da pessoa a C risto q u an to ao com portam ento, nada dizem respeito à justificação. Em últim a análise, eles são “trapos im u n d o s” em com paração com a justiça perfeita de C risto e, portanto, não ajudam nem um pouco a justificação nem a causam .
O sacerdócio e os sacramentos segundo Lutero D e acordo com L utero, todos os cristãos, p o r serem ju stificad o s pela graça m ed i ante a fé so m en te, são sacerdotes de D eus. Esse é o u tro princípio teológico básico. E n q u an to a igreja m edieval elevava a classe de h o m en s cham ados sacerdotes à p o sição espiritual especial de m ediadores en tre os pecadores e D eu s, com poderes sobrenaturais para absolver da culpa e celebrar os sacram entos, L utero elevava todo cren te verdadeiro a essa m esm a condição. R eferia-se à igreja inteira co m o a “co-
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m u n h âo dos santos” e co m o o “sacerdócio evangélico”. L utero asseverava que, por causa da graça e da fé: N ão som ente som os os mais livres entre os reis, com o também som os eterna m ente sacerdotes, que é m uito m elhor do que serm os reis, pois com o sacerdo tes som os também dignos de aparecer perante D eu s a fim de orarmos pelo próxim o e ensinarm os as questões divinas uns aos outros. [...] Cristo tornou possível, sob a condição de crermos nele, que fôssem os não som ente seus ir mãos, co-herdeiros e reis, mas também sacerdotes com o ele. Podem os, portan to, aparecer confiantem ente na presença de D eu s com espírito de fé [...] e cla mar “Aba, Pai!”, e orar uns pelos outros c fazer todas as coisas que sabem os que são feitas e prenunciadas nos serviços exteriores e visíveis dos sacerdotes.36
L utero não m en o sp rezo u o cargo do m in istro co m o pastor da congregação ao elevar o sacerdócio todos os crentes. Enfatizava o cargo dos m inistros 110 ensino co m o servos treinados a in terp retar e ensinar a Palavra de D eus. E n tretan to , acre ditava que eles deviam sem pre ser cham ados e escolhidos pelo povo de D eus e não serem im postos sobre ele p o r u m oficial h ierárquico da igreja, e ensinava que q ual q u e r cristão co m u m podia, em u m a em ergência, celebrar q u alq u er u m dos dois sacram entos — o batism o e a ceia do S en h o r — e pregar e en sin ar a Palavra de D eus diante da congregação. O sacerdócio de todos os crentes tem dois significa dos. P rim eiro, todos os verdadeiros crentes em Jesu s C risto p o d em re co rrer d ire tam en te a D eu s em súplica a favor dos outros, bem co m o de si m esm os. S egundo, n en h u m a condição espiritual especial coloca os m inistros acim a d o resto do povo de D eu s para exercer d o m ín io sobre ele. G rande parte da controvérsia que envolvia L utero e sua teologia reform adora dizia respeito aos sacram entos. A Igreja C atólica R om ana m edieval enfatizava o va lor e a im portância dos sete atos de C risto realizados p o r m eio da igreja, visando à salvação dos indivíduos. O debate na R eform a girava em to rn o de dois deles: o batis m o e a ceia do Senhor. Esta últim a é cham ada de eucaristia pelas igrejas ortodoxa oriental e católica rom ana, e tam bém p or algum as denom inações protestantes. Lutero preferia cham á-la sim plesm ente de ceia do S enhor ou de santa com unhão. Para desgosto da Igreja de R om a, L utero red u ziu o n ú m e ro dos sacram entos a esses dois. D u ra n te algum tem po, n o com eço de sua obra reform adora, co n sid e rou a penitência (a confissão e a absolvição) u m terceiro sacram ento, m as acabou tiran d o -a dessa categoria. S egundo L utero, para um a cerim ônia ser u m sacram en to verdadeiro e fortalecer a fé, “o ato sim bólico deve ser in stitu íd o p o r D eus e ser aco m panhado de um a prom essa. A qualidade de sacram ento dep en d e, em últim a análise, da presença de um a Palavra divina de prom essa”.37 S om ente o batism o e a
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ceia d o S en h o r satisfazem esses critérios. A lém disso, co n tra a opinião católica q u e im perava, L utero insistia que, a fim de u m sacram ento ser eficaz no fortalecim ento da fé, a fé já deve estar presente. O s sacram entos não fu n cionam ex opere operato. N ã o basta apenas parar de colocar um im p ed im en to à eficácia d o sacram ento — co n fo rm e A gostinho alegava e a igreja ensinava. Pelo co n trário, a pessoa q u e recebe o sacram ento deve ter fé para se b e neficiar do sacram ento. D ife re n te m e n te d o e n sin o ca tó lico ro m a n o a re sp e ito d o b atism o , L u tero rejeitava a idéia de q u e o b atism o m e ra m e n te re sta u ra a re tid ã o o rig in al p e rd i da na q u ed a p o r A dão e Eva c p o r to d o s os seus d e sc e n d e n te s e dá in ício ao p ro cesso d o c re s c im e n to h ab itu al na graça. A ntes, asseverava q u e o b atism o , celeb rad o e re c e b id o co m fé, ju s tific a p le n a m e n te o p ec ad o r m e d ia n te a Pala vra de D e u s m iste rio sa m e n te ligada à água. Ao c o n trá rio d o e n sin o católico ro m a n o a re sp e ito da ceia d o S en h o r, L u te ro rejeitava a idéia de q u e ela re p re sen ta sacrificar C risto de n o v o e tam b ém rejeitava a crença na tran su b stan ciação , q u e alegava q u e o p ão e o v in h o re a lm e n te se to rn a m o c o rp o e o san g u e de C ris to em su b stân cia. L utero, todavia, travava a m aioria de suas lutas n o tocante ao batism o e à ceia do S en h o r com o u tro s protestantes. U lric o Z u ín g lio na Suíça o p u n h a-se ao conceito da ceia do S en h o r su stentado p o r L utero e os anabatistas e o u tro s reform adores radicais rejeitavam seu conceito do batism o. As batalhas teológicas en tre os p ro tes tantes p o r causa desses sacram entos, o u “ordenanças”, m anteve-os tão divididos co m o n e n h u m o u tro assunto o fez. L utero era severo e inexorável nos debates tanto co m os católicos q u an to com os protestantes não luteranos. O s anabatistas acusaram L utero de inconsistência. Se a eficácia d o sacram ento d e p e n d e da fé, c o m o u m b eb ê p o d e re c e b e r o b atism o cristão g e n u ín o ? O s anabatistas q u eriam um a reform a p ro fu n d a na igreja e achavam q u e L utero e o u tros líderes protestan tes m agisteriais estavam se d eten d o a m eio cam inho. Para eles, o batism o infantil era sinal do aban d o n o do cristianism o apostólico pela igre ja, além de ser in co n sistente com o evangelho da salvação pela graça m ediante a fé som ente. Por L u tero d efen d er o batism o infantil, acusaram -no de ser in co n sisten te e de estar preso à tradição católica. A creditavam q u e so m en te as pessoas que tivessem alcançado o d esp ertar da consciência, o u a idade da responsabilidade, podiam se arrep e n d er e expressar a fé e q u e o batism o é eficaz so m en te q u an d o isso acontece co m o sinal e sím bolo da conversão. Anabatista significa “aquele q u e rebatiza” e foi u m n o m e criado com a intenção de ofender. N a tu ralm en te, os anabatistas, q u e se cham avam de Irm ãos, não acredi tavam em “reb atizar” pessoa algum a. C onsideravam q u e o batism o infantil não era batism o verdadeiro.
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L utero não sim patizava com os anabatistas e respondeu às suas perguntas e acu sações suben ten d id as com fervor causticante. Sua própria opinião a respeito era próxim a do q u e se pode cham ar de “regeneração batism al” — a crença de q u e “no batism o recebem os im ediatam ente o perdão co m p leto d o pecado”.38 Para L utero, o batism o era “o sinal visível da justificação im erecida m ed ian te a graça de D eus. O batism o leva a efeito a justificação m ediante a graça de D eus. Ele realiza a ‘alegre troca’ m ediante a qual o pecador recebe a ju stiç a de C risto e C risto tom a sobre si os pecados do p ecad o r”.39 Insistia, no entanto, q u e a criança precisa ter fé para receber a salvação m ediante o batism o. C o m o um a criança pode ter fé? L utero considerava essa p erg u n ta quase blasfe m a, pois para ele a fé é sim plesm ente confiança e um a dádiva de D eus. Q u e m m elh o r do q ue u m a criança para tê-la? E m b o ra acreditasse e argum entasse que um a criança pode ter fé, para L utero, a validade do batism o não dependia disso. Antes, ele sustentava que o batism o das crianças é legítim o p o r ser tradicional: C om o o batism o é o m esm o desde o início do cristianism o e que é costum e batizar crianças e com o ninguém pode provar com boa razão que elas não têm fé, não devem os prom over alterações e nos basear em argum entos tão fracos. Sc, pois, for para mudar ou abolir costu m es que são tradicionais, é necessário com provar que estes são contrários à Palavra de D eu s.40
O s anabatistas ficaram insatisfeitos com o apelo final de L utero à tradição. A cre ditavam q ue o batism o infantil era contrário à Palavra de D eus e argum entavam que n em sem pre tin h a sido praticado pelos cristãos, q u e tinha sido in tro d u zid o em fins d o século il o u n o início do século m e q u e era assunto co n tro v ertid o desde os tem pos de Tertuliano. A d o u trin a do batism o infantil defendida p o r L utero, na m elh o r das hipóteses, é fraca diante da forte ênfase que d eu à fé pessoal com o crença e confiança na obra de C risto necessária para a justificação e da sua te n d ê n cia a rejeitar as tradições que, de algum a m aneira, entrassem em conflito com o evangelho e não recebessem nítido apoio nas Escrituras.
A casa protestante dividida: Lutero versus Zuínglio na ceia do Senhor Talvez o in cidente m ais lastim ável en tre L utero e seus colegas protestantes seja o q u e o correu em o u tu b ro de 1529 na cidade de M arb u rg o , A lem anha, na co n ferê n cia conhecida co m o Colóquio de Marburgo. O p ríncipe Filipe de l lesse, p rotestante fervoroso, levou para lá L utero, Z u ín g lio e M artin h o Bucer, de E strasburgo, em um a tentativa de se chegar a um consenso 110 tocante ao sacram ento da ceia do Senhor. Z u ín g lio , o refo rm ad o r de Z u riq u e , ensinava aos protestantes suíços que a ceia do S en h o r é sim p lesm ente um a com em oração da m o rte de C risto e q u e nela
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não há n e n h u m a “presença real” d o corpo de C risto . L utero ensinava que, em bora fosse antibíblica a d o u trin a católica rom ana da transubstanciação, as palavras de C risto “este é o m eu co rp o ” na ú ltim a refeição com os discípulos com prova que existe um a “presença real” do corpo de C risto nos elem entos d o pão e do vinho. Em bora L utero rotulasse sua d o u trin a da ceia do S enhor, historiadores eclesiásti cos posteriores ch am aram -n a consubstanciação. Isto é, para L utero as duas n atu re zas do alim en to físico e d o corpo h u m a n o glorificado de C risto se re ú n em e ali m en tam a alm a fiel na refeição sacram ental. “Assim co m o o D eus incom preensível e o n ip resen te se aproxim a d o h o m em na hu m an id ad e de Jesu s C risto , tam b ém a h u m an id ad e incom preensível e o n ip resen te de C risto aproxim a-se e pode ser cap tada pelos h o m en s na ceia do S enhor.”41 N o Colóquio de Marburgo, Z u ín g lio argum entou que as Escrituras ensinam que a carne e o sangue não p ro d u zem “nada q u e se aproveite” (Jo 6.63) e que a insistência de Lutero na presença corpórea de C risto no sacram ento tom a literalm ente as pala vras de Jesu s “este é o m eu co rp o ”, além de ficar perigosam ente próxim a à doutrina católica da transubstanciação. Z uínglio tam bém arg u m en to u q u e a própria idéia de com er carne e sangue era um a noção pagã nojenta. A isso, L utero respondeu: “Eu com eria esterco se D eus assim ordenasse”42 e acusou Z uínglio de não levar as Escri turas a sério e de tentar racionalizar u m m istério. N e m é necessário dizer que a reunião foi u m fracasso. O s participantes voltaram para casa m ais divididos d o que nunca e a atitude de L utero para com Z uínglio endureceu. A respeito de Z uínglio e dos que o apoiavam, L utero co m en to u com os colegas: “S up o n h o q u e D eus os ce go u ”,43 e deixou claro em seus escritos q u e dificilm ente podia considerá-los salvos. Boa parte das diferenças en tre as d o u trin as de L utero e de Z u ín g lio a respeito do sacram ento da ceia do S enhor era resultado de suas cristologias distintas. Z uínglio acreditava que, p o r causa da encarnação, Jesus C risto fica no céu e não é onipresente. O corpo h u m an o ressu rreto e glorificado de Jesu s C risto não pode estar em todos os lugares ao m esm o tem po a não ser “m ediante o E spírito”. D e o u tra form a, não seria verd ad eiram en te h u m an o . L utero, p o r o u tro lado, acreditava enfaticam ente na communicatio idiomatum de C irilo e de Leão i e argum entava que, p o r causa da encarnação, a h u m an id ad e de Jesu s C risto é glorificada e “C risto está ao nosso redor, d en tro de nós e em todos os lugares” ao m esm o tem p o .44 O s dois grandes reform adores acusavam -se m u tu a m e n te de erros cristológicos, bem co m o de fa lhas graves no m o d o de e n te n d e r a ceia do S enhor. U m a das principais diferenças en tre os protestantes desde então diz respeito a essa questão. O u tro reform ador suíço — Jo ão C alvino — te n to u e n c o n trar u m m eio -term o , co n fo rm e verem os no p róxim o capítulo. L utero acreditava q ue, assim co m o o batism o, a ceia do S en h o r é sacram ento g en u ín o q u e com u n ica o perdão dos pecados q u an d o a fé está presente. O m otivo
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de não d efen d er a c o m u n h ão para as crianças depois do batism o perm anece um m istério, sabe-se apenas que não o fazia. D e q u alq u er form a, L utero tin h a os dois sacram entos na m ais alta estim a e geralm ente vinculava a justificação a eles. Por o u tro lado, ao ser q u estionado a respeito, reconheceu p ro n tam e n te q u e a pessoa podia ser p len am en te justificada in d ep en d e n tem en te da participação dos sacra m entos. N ão acreditava que as crianças não batizadas perdiam , autom aticam ente, a en trada ao céu e m u ito m enos que fossem condenadas ao inferno. E em b o ra en co rajasse a participação freq ü en te na ceia do S enhor, não fazia dela u m a condição prévia para m an ter a justificação. E n tretan to , L utero advertia q u e rejeitar o batis m o e d eliberadam ente negligenciar a ceia do S en h o r podiam levar à perda da co m u n h ão com D eus. Isso só aconteceria, logicam ente, se D eus assim tivesse p re d e term in ad o . Tal rejeição e negligência dos sacram entos seriam sim plesm ente um sinal claro q u e a pessoa não pertencia aos eleitos de D eus. Ao m esm o tem p o em q u e L utero com eçava a reform a da igreja e da teologia na A lem anha, o u tro reform ador inaugurava um a revolução protestante na Suíça. U lrico Z u ín g lio é considerado herói nacional e os protestantes suíços geralm ente acredi tam q u e seu avanço ao p ro testan tism o foi co m p letam en te in d ep en d en te de Lutero. N ã o se pode dizer o m esm o a respeito de seu colega suíço m ais jo v e m , nascido na França, cham ado João Calvino. Este foi influenciado pelos ensinos luteranos q uando era universitário em Paris. Ju n to s, Z u ín g lio e C alvino ajudaram a refo rm ar a Suíça e estabelecer o ram o do pro testan tism o co n hecido co m o Igreja R eform ada — a m aior igreja européia a form ar um paralelo com o luteranism o — , q u e d eu origem aos m ov im en to s presb iteriano e p u ritan o na G rã-B retanha. A história de cada u m dos dois será contada a seguir.
25 Zuínglio e Calvino organizam o pensamento protestante
L u t e r o n u n ca p u b lico u um a teologia sistem ática e seus pen sam en to s ainda são, em grande m edida, ru d im entares, e até m esm o incoerentes. Paradoxal era seu m odo natural de expressão, p o rq u e acreditava q u e D eus e sua Palavra são, em ú ltim a análise, m isteriosos e estão além da com preensão hum ana. O s reform adores su í ços dedicaram m ais atenção ao organizar e sistem atizar a nova teologia protestante. C o m isso, d eram seu to q u e especial, de m o d o q u e a teologia pro v en ien te do traba lho deles é u su alm en te identificada co m o reform ada, ao passo q u e a de L utero é cham ada lu terana o u evangélica (em alguns lugares da Europa, evangélico significa sim p lesm en te “p ro testan te” em oposição a católico rom ano). A teologia reform ada é a representação do p en sam en to p rotestante cujas raízes se en co n tram nos en si nos de U lrico Z u ín g lio e Jo ão C alvino. O s ilustres coadjuvantes da teologia refor m ada giravam em to rn o desses dois grandes astros e alguns foram além de sua órbita original e iniciaram m ov im en to s im portantes de reform a na H olanda, Escó cia, Inglaterra e em o u tro s lugares p o r toda a E uropa. Todos, no en tan to , partiram de Z u ín g lio e C alvino.
A teologia reformada O que é teologia reform ada? E um a form a de teologia pro testan te e, p o rtan to , tem em co m u m co m L u tero e com o u tro s reform adores protestantes os três grandes princípios protestantes: a salvação pela graça m ed ian te a fé so m en te, a autoridade especial e final das E scrituras e o sacerdócio de todos os crentes. E n treta n to , a teologia p ro testan te reform ada tem seu p ró p rio to q u e teológico. E m bora co n co r de in teiram en te com L utero 110 tocante à m aioria das questões, trata de m o d o d istin to várias q u estõ es d o utrinárias, in terp retan d o -as e enfatizando-as à sua p ró pria m aneira. N ão raro, ouve-se a generalização de q u e a teologia reform ada é u m a ram ifica ção do p en sam en to p ro testante q u e enfatiza de m o d o especial a soberania de D eus.
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E n tretan to , co n fo rm e já vim os na história da teologia, m u ito antes da R eform a suíça, vários teólogos ressaltavam a soberania de D eus sobre a natureza e a história. O m o n erg ism o e a providência m eticulosa caracterizavam a teologia m adura de A gostinho, e os escolásticos m edievais, A nselm o e Tom ás de A quino, tam b ém os ensinavam . L utero negava o livre-arbítrio e argum entava q u e D eus só poderia ser realm ente D eu s se governasse sobre tu d o de tal m aneira q u e não acontecesse nada na natureza o u na história q u e não fosse planejado e levado a efeito p o r ele. Parece incorreto, portan to , considerar a soberania divina na providência e na predestinação um a co n tribuição especial da teologia p rotestante reform ada. Talvez a identificação popular (e às vezes tam bém erudita) da teologia refo rm a da com ênfase na soberania de D eus, inclusive a providência e a predestinação m onergistas, resulte do fato de a teologia luterana posterior ter abrandado a ênfase tam bém forte de L utero. A teologia luterana depois de L utero foi influenciada por seu assistente, Filipe M elâncton (1497-1560), q u e tendia ao sinergism o e era um tan to erasm ian o no tocante ao te m p eram en to e à teologia. O s anabatistas e os anglicanos (Igreja da Inglaterra) ora discordavam a respeito, ora tendiam fo rte m en te ao sinergism o — especialm ente nos séculos xvii e xvm. P or isso, a teologia reform ada pro v en ien te da Suíça acabou ficando especialm ente vinculada à d o u tri na da soberania absoluta de D eus. C ertam e n te , po rém , não detém n e n h u m m o n o pólio dessa d o u trin a na história da teologia cristã. O s teólogos reform ados, inicialm ente os suíços e p o sterio rm e n te todos, diver giam de L utero cm três áreas principais de teologia: a soteriologia, a eclesiologia (a d o u trin a da igreja) e a teologia sacram ental. O to q u e distintivo d o pen sam en to refo rm ad o nessas três questões teológicas p erm eo u o m o v im e n to de tal m aneira que, no d eco rrer do tem po, a teologia reform ada ficou bem diferente da teologia luterana. M u ito s líderes, tanto da igreja q u an to d o estado, não conseguiam co m p re en d er p o r q u e os suíços reform ados e os luteranos alem ães não podiam se unir. M artin h o B ucer (1491-1551), refo rm ad o r de E strasburgo, trabalhou incansavel m en te para u ni-los. Filipe de H esse, príncipe e eleito r de M arburgo, tam bém se esforçou para u n ir as duas alas principais do protestantism o. Todas as tentativas fracassaram até q ue, no século xvm, u m rei prussiano forçou as igrejas luterana e reform ada de sua região na A lem anha a se u n irem . N essa união, n o en tan to , os dois tipos de p ro testan tism o ficaram sim plesm ente co m o duas tábuas ju n ta s e co ladas. N ã o se chegou a n e n h u m a síntese teológica. Em fins do século xx, na A m é rica do N o rte , as principais denom inações luteranas e reform adas fin alm en te c o n cordaram em aceitar os m inistérios e sacram entos um as das outras, sem form al m e n te se u n i r e m u m a só d e n o m in a ç ã o . E m b o ra r e c o n h e c e s s e m a in co m en su rab ilid ad e de suas culturas teológicas, as partes só se aceitaram depois de m u ito diálogo e cooperação.
Z u ín g lio e C alvino organizam o p en sam ento protestante
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A vida e a carreira do reformador Ulrico Zuínglio O verdadeiro pai da teologia protestante reform ada é U lrico Z uínglio. In felizm en te para ele, seu colega franco-suíço m ais jo v em , Jo ão C alvino, ofuscou seu brilho na história. O grande m érito de C alvino, n o en tan to , é sim plesm ente ter organiza do, sistem atizado e articulado a teologia reform ada co m o n u n ca se havia feito an tes. Para tanto, baseou-se firm em e n te em L utero e Z uínglio. Seria difícil en co n trar na obra de C alv in o q u alq u er idéia o u contribuição d o u trin ária q u e já não tivesse sid o a p re s e n ta d a e d e s e n v o lv id a p o r L u te ro e Z u ín g lio . O s d o is g ra n d e s reform adores da prim eira geração sim plesm ente não tin h am o grande do m de o r ganização de C alvino e não influenciaram o m u n d o de língua inglesa tan to q u an to ele p o r m eio dos presbiterianos e p u ritan o s da G rã-B retan h a e das colônias n o rteam ericanas, cujos fu n dadores tin h am sido alunos de C alvino em G en eb ra e co n si deravam a cidade, sob o governo de C alvino, “a m ais perfeita escola de C risto desde os tem p o s dos apóstolos”. U lrico Z u ín g lio nasceu em G larus, na Suíça, 110 p rim eiro dia de 1484. Sua fam ília era de classe m édia alta e bem relacionada, e ele recebeu excelente educa ção h u m anista, com d ireito a cu rso universitário em Viena e Basiléia. R ecebeu o m estrado de teologia na Basiléia em 1506 e quase im ediatam ente c o m p ro u um pasto rado 1 em sua cidade natal. Ali, e na cidade de rom arias, E insiedeln, o jo v em nacionalista e estu d io so h u m an ista suíço d istin g u iu -se co m o pregador, escritor e patriota. O p o n to crucial na vida de Z u ín g lio aconteceu q u an d o se en c o n tro u com E rasm o na prim avera de 1516. T o rnou-se seguidor devoto d o grande refo rm ad o r h u m an ista e d efen so r de sua filosofia de C risto e “po d ia ser c o n sid erad o um erasm iano sem reservas e u m partidário notável do h u m an ism o bíblico q u an d o chegou em Z u riq u e em I o de ja n e iro de 1519”.2 N a cidade m ais im p o rtan te da C onfederação Suíça, Z u ín g lio to rn o u -se o “sacerdote do p ovo” na G rande M iinster (catedral) ao co m p letar 35 anos. N o perío d o em q ue p erm aneceu nesse cargo em Z u riq u e , Z u ín g lio cooperou com os dem ais líderes religiosos e com a p refeitura para im p lem en tar reform as de vulto, tan to na igreja q u a n to no estado. A seu pedido, o concílio da cidade aboliu as missas e su b stitu iu -as p o r cultos protestantes nas igrejas de Z u riq u e e região. N a década de 1520, o ritm o da R eform a protestante em Z u riq u e e em outras cidades do n o rte da Suíça, co m o B erna e Basiléia, a u m e n to u de tal m aneira que, em 1530, quase todos os vestígios d o catolicism o ro m an o desapareceram . As igrejas p erd e ram suas estátuas e os m in istro s m u d aram suas vestes para algo m ais sem elhante às togas usadas nas salas de preleções das universidades do q u e às vestim entas usadas diante dos altares católicos. A veneração aos santos e a M aria foi proibida, da m es m a form a que as indulgências, as orações pelos m o rto s (Z u ín g lio negava o purga tó rio) e m uitas ou tras práticas católicas tradicionais.
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A elim inação de práticas católicas rom anas tradicionais foi m u ito além d o que L utero aboliu nas igrejas protestantes da A lem anha. A lguém se referiu às igrejas reform adas suíças co m o “q u atro paredes lim pas e u m serm ão ”. As igrejas luteranas, pelo m enos na A lem anha, m antiveram vários sím bolos característicos da tradição católica m edieval, inclusive os bispos, em bora L utero os considerasse adm inistra dores e não d eten to res de algum a condição espiritual especial. Para L utero, Z u ín g lio e seus seguidores eram “fanáticos” p o rq u e despojaram as igrejas de toda a tradição e negaram a eficácia dos dois sacram entos para o fortale cim en to da fé. R ejeitaram , tam bém , a presença real do corpo de C risto na ceia do S en h o r e red u ziram a cerim ônia a um a refeição m em orial. Para a h ierarquia cató lica, Z u ín g lio e os dem ais protestantes suíços sob sua tutela eram rebeldes perigo sos. As cidades in d ep en d en tes on d e pastorearam e ensinaram , p o rém , p ro teg e ram -n o s das tropas católicas. Já, para alguns de seus pró p rio s seguidores, Z u ín g lio não era assim tão radical, co n fo rm e verem os no pró x im o capítulo. Alguns segui dores de Z u ín g lio em Z u riq u e queriam abolir o batism o infantil e acusaram o refo rm ad o r de não praticar de form a consistente os princípios da R eform a. Esses anabatistas, co m o eram cham ados por seus inim igos, com eçaram a recusar o batis m o para seus filhos recém -nascidos e a batizar u ns aos o u tro s p o r im ersão o u efusão em Z u riq u e em 1525. A lém disso, ignoraram o re c o n h ec im e n to , p o r parte de Z u ín g lio , da au toridade da prefeitura m unicipal sobre os assuntos da igreja por co nsiderá-lo m ais u m a form a de co n stan tin ism o o u cesaropapism o — defendiam a total separação e n tre a igreja e o estado. Z u ín g lio e a prefeitura m unicipal perse guiram esses refo rm ad ores radicais, p re n d en d o -o s e, às vezes, afogando-os nos rios suíços. Z u ín g lio foi escrito r prolífico bem com o pregador e conferencista objetivo. Participou de debates públicos com seus o ponentes católicos em Z u riq u e e engajouse em guerras de panfletos contra seus críticos católicos, anabatistas e luteranos. A lém disso, escreveu declarações da d o u trin a reform ada para o rei da França e para o im p erad o r C arlos v. Suas obras teológicas m ais conhecidas são: Da providência de Detis (1531), Da religião verdadeira e falsa (1525), Explicação da religião de Zuínglio (1530) e Exposição breve e clara daf é cristã (1531). N ã o há dúvida de que essas e outras com posições e livros de Z u ín g lio influenciaram p ro fu n d am en te o u tro s teólogos reform ados. Da religião verdadeira e falsa é geralm ente considerada a prim eira obra dogm ática (teologia sistem ática) reform ada.3Jo ão C alvino fez considerável uso de suas obras e, graças a ele e o u tro s reform adores suíços, Z u ín g lio deixou u m a m arca indelével cm to d o o ram o reform ado d o protestantism o. Em 1531, a tensão entre os cantões p rotestantes e católicos da Suíça chegou ao p o n to d o co n flito aberto. A cidade de Z u riq u e resolveu e n tra r em guerra contra cinco cantões católicos ao sul e vários m inistros de Z u riq u e foram para a frente de
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batalha com os soldados da cidade. A Segunda G u e rra de Kappel d u ro u u m dia — 11 de o u tu b ro de 1531 — e Z u ín g lio m o rre u na luta, ju n to com várias centenas dos soldados de Z u riq u e e pouco m ais de vinte pregadores protestantes. Apesar disso, Z u riq u e sobreviveu co m o estado in d ep en d en te, m as o sul da Suíça co n ti n u o u basicam ente católico e o protestantism o, em grande parte, ficou confinado ao n orte e ao extrem o oeste da Suíça. A partir daí, d issem in o u -se para a França (de o n d e p o sterio rm en te foi quase to talm en te erradicado), para o sudoeste da A lem a nha, para cidades co m o E strasburgo ao longo do rio R eno, para a I Iolanda, Escócia e Inglaterra. O s pu ritanos da Inglaterra e das colônias da N ova Inglaterra foram seguidores da teologia reform ada de C alvino.
A teologia de Zuínglio Assim com o L utero, Z u ín g lio enfatizava fo rtem en te o p rincípio das E scrituras, de que a Bíblia é a au toridade final para a fé e a prática cristãs e q u e se en co n tra em posição to talm en te su p erio r a todas as tradições hum anas, q u e p o r ela devem ser julg ad as.4 Existe um a pequena diferença e n tre as d o u trin as im plícitas das E scritu ras sustentada pelos reform adores alem ães e pelos suíços. L utero sentia-se à v o n ta de para reco n h ecer o “cânon d en tro d o câ n o n ” e para relegar partes da Bíblia à condição secundária q u an d o não “prom oviam a C risto ” do m o d o certo. Z uínglio, por o u tro lado, p raticam ente identificava a Bíblia inteira co m o Palavra de D eus. C o m Z u ín g lio e com a teologia reform ada, a Bíblia assum iu condição privilegiada que L utero não lhe atribuía. L utero fazia clara distinção en tre o livro e a Palavra de D eus, equ ip aran d o -o s ao evangelho e à Jesu s C risto. Para Z u ín g lio , tu d o estava ligado. Para nós, pelo m enos, a distinção não faz m u ita diferença. C risto e o evan gelho chegam até nós so m en te p o r m eio da Bíblia e, p o r isso, a Bíblia é a Palavra de D eus dirigida a nós. Z u ín g lio não reconhecia n e n h u m cânon d e n tro d o cânon e se recusava a colocar um a parte das E scrituras acim a de q u alq u er outra. D a m esm a form a q u e L utero, n o en tan to , Z u ín g lio enfatizava q u e o p o d er e a clareza das Escrituras provêm do E spírito Santo. S egundo os dois reform adores e, p o sterio r m en te, C alvino, a Palavra e o E spírito estão insepara-velm entc ligados, de m odo que, so m en te pelo E spírito de D eus, a Bíblia é a Palavra de D eus, e o E spírito nada fala fora ou co ntra a Bíblia. A despeito do forte apelo à autoridade das Escrituras, Z u ín g lio tam b ém atri bu iu valor positivo à filosofia de m o d o to talm en te alheio ao m éto d o antifilosófico de L utero na teologia. Z u ín g lio estava im pregnado d o h u m an ism o e do pensa m en to grego. T in h a sido treinado em Platão, A ristóteles e no estoicism o, e u m dos escritores e pensadores da antigüidade q u e m ais lhe agradavam era Sêneca, o poeta e orad o r rom ano. D a m esm a form a q u e a escola alexandrina do cristianism o p ri m itivo, Z u ín g lio acreditava q u e toda a verdade é verdade de D eus e que, contanto
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q u e os filósofos gregos pensassem e falassem verdades q u e favorecessem a teologia cristã, deviam ser altam ente respeitados e estim ados. Sem dúvida, esse era u m ves tígio do seu p erío d o erasm iano de pensam ento. N o livro Da providência, Z u ín g lio com eça com a teologia natural para explicar a existência e natureza de D eus com o d eterm in a n te de toda a realidade q u e governa de m o d o soberano a natureza e a história. Seu p rin cíp io fundam ental, assim co m o sua linha de raciocínio dedutivo, foi basicam ente influenciado pelo p en sam en to grego. C o m eça n d o com o conceito do B em su p re m o (sem elhante à form a do B em de Platão), Z u ín g lio d ed u z iu que “a providência deve existir, pois o bem su p re m o necessariam ente cuida de todas as coisas e as regula”.5 E m ediante u m a série de deduções cuidadosam ente arg u m e n tadas co n clu iu que “a providência existe e deve existir [e] está claro q u e ela não so m en te conhece todas as coisas, m as tam b ém as regula, ord en a e disp õ e”.6 N esse ensaio, Z u ín g lio en treteceu a filosofia grega, a teologia natural cristã (fo rtem en te influenciada p o r Tom ás de A quino), a lógica aristotélica, a teologia bíblica e o apelo à tradição cristã. A teologia de A gostinho influenciou consideravelm ente a d o u tri na da providência divina defendida por Z uínglio. E n q uanto L utero acreditava e ensinava que D eus é a realidade q u e a tu d o deter m ina, Z uínglio colocava a soberania de D eus em posição especial d en tro da teologia cristã. L utero tratava a soberania de D eus com o parte do evangelho da graça, em bora tam bém fosse influenciado pelo nom inalism o. Z uínglio e, posteriorm ente, C alvino tratavam a soberania de D eus com o princípio fundam ental do pensam ento cristão. N ão se q u er dizer com isso que apareciam em p rim eiro lugar em seus sistem as de teologia. Mas realm ente ocupou a posição de destaque, entre todas as doutrinas, de tem a central organizador da teologia reform ada, o po n to de convergência de tudo. Para Lutero, esse tem a seria a doutrina da salvação (justificação) pela graça m ediante a fé som ente. Para Z uínglio, C alvino e seus colegas reform adores, era a doutrina da soberania e do poder de D eus que a tu d o determ inam . F u n d am en tan d o -se na razão c nas Escrituras, Z u ín g lio chegou à m ais forte d o u trina do co n tro le divino soberano, m eticuloso e providencial sobre todas as coisas. Se D eus é D eus, argum entava Z uínglio, é lógico q u e absolutam ente n en h u m a ou tra coisa pode ter q u alq u er p o d er ou determ inação in d ep en d en te. Z u ín g lio es creveu em Da providência: “D efini a providência com o o controle e a orientação de todas as coisas do universo. Se, portan to , algum a coisa fosse orientada p o r seu p ró p rio p o d er ou e n ten d im en to , exatam ente nesse p o n to a sabedoria e o p o d er da nossa D eidade seria d eficien te”.7 O governo providencial de D eus é e te rn o e im u tável, a causa de tu d o o q u e acontece, inclusive o bem e o m al, e elim ina a possibi lidade de q u alq u er coisa ser co n tin g en te, fortuita o u acidental. D eus, e som ente ele, é a “causa ú n ica” de tudo. Todas as dem ais causas alegadas não passam de “in stru m en to s da obra divina”.8
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A crença m onergista de Z u ín g lio no relacionam ento en tre D eus e a o rd em cri ada chegou a um a conclusão quase herética. O u seja, ele ad m itiu ab ertam en te que, se n e n h u m ser criado tem q u alq u er au to determ inação in d ep en d en te, então, de certa form a, tu d o é m anifestação de D eus. A lguns críticos acusam Z u ín g lio de recair em u m tipo de racionalism o e panteísm o estóico.9 N o m ín im o , o que ele afirm ou pode ser co nsiderado teopanism o: a crença em D eus co m o o ú nico agente e energia de tudo. E m D a providência, escreveu a respeito dos poderes criados: “D igo q ue esse p o d er é declaradam ente criado p o r ser um a m anifestação d o p o d er geral, q u e a tu d o abrange, em um a nova form a individual. M oisés, Paulo, Platão e Sêneca são testem u n h as”.10 Até a queda de Adão e de Eva foi preordenada e levada a efeito pelo p o d er providencial de D eus “para ap ren d erm o s p o r m eio da q u ed a e dos erros o q u e não p oderíam os ter ap ren d id o pelas lutas e esforços sinceros”.11 Para Z u ín g lio , a predestinação era d o u trin a bíblica e a única idéia d o papel de D eus na salvação co n sistente com a d o u trin a racionalm ente deduzida da provi dência. Ele pensava q u e Tom ás de A qu in o c toda a tradição católica m edieval fu n dam entava a p reordenação divina das pessoas para irem ao céu o u ao in fern o na presciência das decisões livres feitas p o r elas e rejeitou enfaticam ente essa tradição, declarando q ue a base da presciência de D eus era a eleição c a predestinação divi nas. D eus sabe p o rq u e predetermina. E Z u ín g lio não hesitou em afirm ar q u e os in d i víduos q ue são con d en ados etern am en te ao in fern o tam bém foram etern am en te determ in ad o s p o r D eus para terem esse destino: “P ortanto, a eleição é atribuída aos que serão abençoados, m as os q u e serão co n denados não são cham ados de eleitos, em b o ra a vontade D ivina tam b ém ten h a um a determ inação para eles, mas ele os rejeita, expulsa e repudia para q u e se to rn em exem plos de sua ju s tiç a ”.12 A eleição refere-se so m en te aos q u e estão predestinados a ser salvos e ao d estin o deles n o céu. Todos os dem ais não são apenas deixados para a perdição q u e livrem ente escolheram , co n fo rm e os cristãos reform ados de tem pos posteriores costum avam dizer, m as tam bém são predestinados (m as não eleitos) ao seu d estin o 110 inferno. Z u ín g lio afirm ava q ue D eus não é de m aneira algum a “m aculado” pelos peca dos e m ales q ue os rép robos co m etem . M esm o q u e m ande u m a pessoa m atar ou adulterar, p o r exem plo, D eus não é de form a algum a culpado, p o rq u e “a m esm a ação realizada sob instigação e co m an d o de D eu s, traz h o n ra a ele, em bora seja crim e e pecado para o h o m e m ” e “ele pode im p u lsio n ar o h o m em a praticar um ato q u e é in íq u o para o in stru m e n to q u e o pratica, m as não para ele”. 13 Em últim a análise, Z u ín g lio co n cluiu q u e D eus não é responsável n em culpado pelo pecado e pelo m al que ele m esm o planeja e causa, p o rq u e “ele não está sob a lei”.14 M as tam bém arg u m en to u q u e D eus tira algo de bo m de to d o o m al e q u e até m esm o o so frim en to etern o dos ím pios m anifesta sua retidão e ju stiç a e é, portan to , um a parte necessária d o b o m plano global de D eus.
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Z u ín g lio concordava total e fervorosam ente com L utero no tocante à salvação pela graça m ediante a fé som ente. A lém disso, definia a fé de m o d o m u ito sem e lhante a L utero e rejeitava q u alq u er idéia de que a condição correta da pessoa com D eus (a justificação) pudesse ser m erecida p o r algum tipo de obra. A fé é d o m de D eus concedido aos eleitos e a única base para a eficácia da graça. M as Z u ín g lio divergiu de L utero (ou L utero divergiu de Z uínglio) em dois p o n to s im portantes no tocante à salvação. P rim eiro, en q u a n to L utero definia a lei de D eus (por exem plo, os dez m an d am en tos) de m o d o negativo e a contrastava com o evangelho, Z u ín g lio ensinava que a lei e o evangelho são inseparáveis e com plem entares. Para ele, a lei de D eus era a expressão da sua vontade para o viver ju s to e santo e, p o rtan to, guia para o cristão saber co m o m elh o r agradar a D eus. E m bora L utero achasse que essa idéia im plicava em acom odação à ju stiç a segundo as obras, Z u ín g lio a enxergava com o a única m aneira de evitar o a n tin o m ism o e saber co m o m elh o r servir a D eus com gratidão. A teologia reform ada, a partir de Z u ín g lio com eçou a enfatizar a santificação c a vida d o discipulado de u m m o d o q u e L utero não as enfatizava: com o vida de obediência à lei revelada de D eus. D e m o d o algum , p o rém , Z u ín g lio o u C alvino m itigaram o evangelho da salvação pela graça m ediante a fé som ente, ao ressaltar o papel positivo da lei de D eu s na vida d o cristão. Para eles, a obediência à lei de D eus era sim plesm ente “sinal de graça e de gratidão” e jam ais a condição o u causa da justificação do pecador.
Zuínglio se opõe a Lutero a respeito dos sacramentos A segunda diferença sotcriológica en tre Z u ín g lio e L utero girava em to rn o dos sacram entos. Z u ín g lio não gostava do term o sacramento p o r d en o tar u m m eio m a terial da graça e acreditava que a graça saivífica é recebida pela fé e so m en te por m eio do E spírito Santo. U m de seus textos bíblicos prediletos era Jo ão 6.63: “a carne não p ro d u z nada q u e se aproveite”. Ele interpretava o texto e n te n d e n d o que as substâncias m ateriais não podem tran sm itir bênçãos espirituais e que, so b re tu do, o pão e o vin h o da ceia d o S enhor não po d em captar e tran sm itir o corpo de C risto e, m esm o se p u dessem , isso não serviria para nada. S o m en te o E spírito alim enta e fortalece a alm a, e a fé é a única via de acesso en tre o E spírito Santo e a alma. P ortanto, para Z u ínglio, os cham ados sacram entos do batism o c da ceia do S en h o r eram cerim ônias sim bólicas (p o sterio rm en te cham adas “o rd en an ças”) e não m eios literais de graça: “O s sacram entos são [...] sím bolos o u cerim ônias [...] m ediante as quais os h o m en s se oferecem diante da igreja co m o soldados 0 11 discí pulos de C risto . O s sacram entos são m ais um a confirm ação para a igreja da fé de um a pessoa, do q u e para ela m esm a. Se a fé não existir sem u m ato cerim onial para confirm á-la, então não é verdadeira. A verdadeira fé repousa inabalável, firm e e inteiram en te na m isericórdia de D eus, co n fo rm e Paulo ressalta repetidas vezes”.15
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O s sacram entos, o u ordenanças, são sinais o u sím bolos da realidade divina. Eles existem para a igreja e proclam am e co m em o ram o ato salvífico de C risto e seu efeito sobre o indivíduo. Eles fortalecem a fé so m en te no sen tid o de relem brar o evangelho na form a visível de um a lição prática. M as não se q u e r dizer co m isso q u e sejam dispensáveis. Para Z u ín g lio , nós, os seres hu m an o s, precisam os de pala vras e cerim ônias visíveis co m o essas, que nos ajudem a lem brar da obra de C risto e da nossa fé e a proclam á-las. E m resposta aos críticos católicos e luteranos q u e alegavam q u e Z u ín g lio desm ereceu os sacram entos, ele disse: “M as veneram os e acalentam os os sacram entos co m o sinais e sím bolos das coisas sagradas, m as não com o se eles m esm os fossem os objetos p o r eles representados. Q u e m , pois, seria tão ignorante a p o n to de dizer q u e o sím bolo é o objeto rep resen tad o ?”.16 Z u ín g lio acreditava q u e o E spírito Santo está realm ente presente de m o d o especial nas ceri m ônias do batism o e da ceia d o S enhor, m as a presença dele se deve à fé da pessoa qu e recebe a ord en an ça e à fé da igreja. A fé e, certam ente, a graça salvífica o u o perdão não d ep en d em das cerim ônias. “C o m u m ím peto antiluterano e anticatólico, [Z uínglio] negava o seu p o d er de tran sm itir graça”.17 Z u ín g lio equiparava o batism o à circuncisão na antiga aliança en tre D eus e Isra el. E a cerim ô n ia da iniciação do povo de D eus segundo a nova aliança. N a teologia reform ada de Z u ín g lio , pressupõe-se q u e as crianças que nascem de pais cristãos sim plesm ente já estão “na aliança” com D eus co m o parte de seu povo eleito, a igreja. A eleição feita p or D eus antecede a fé; a fé é u m d o m ou to rg ad o por D eus aos eleitos. O batism o é sim plesm ente o sinal e o selo — co m o a circuncisão — da eleição e da inclusão. Ele não salva, não fortalece a fé e n em outorga graça. Z u ín g lio rejeitava radicalm ente q u alq u er indício da regeneração batism al. E m contrapartida, ta m b é m rejeitav a ra d ic a lm e n te o q u e cham av a “re b a tis m o ” p ra tic a d o pelos anabatistas. Z u ín g lio explicou seu conceito em Uma exposifio da fé de Zuínglio, que e n cam in h o u ao Im p erad o r C arlos v co m o preparativo para o D ieta (P arlam ento) de A ugsburgo em 1530: O s sacramentos são dados com o testem unho público da graça que está previ am ente presente em todo indivíduo. A ssim , o batism o é administrado na pre sença da igreja àquele que, antes de recebê-lo, confessou a religião de C risto ou tem a palavra da promessa, pela qual se sabe que pertence à igreja. E por isso que, quando batizamos um adulto, perguntam os se ele crê. E apenas se ele responder “sim ” é que recebe o batismo. A fé, portanto, não é concedida pelo batism o, ela já estava presente antes de ele ser batizado. Mas quando uma criança se apresenta, pergunta-se se os pais dela a oferecem para o batismo. Q uando respondem , na presença de testem unhas, que querem que ela seja batizada, então a criança é batizada. N esse caso, prevalece a prom essa de D eu s que considera que as nossas crianças, assim co m o as dos hebreus, pertencem
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à igreja. Q uando, portanto, os m em bros da igreja apresentam a criança, ela é batizada, por nascer de pais cristãos, e é considerada, segundo a prom essa e a lei divina, m em bro da igreja. Logo, pelo batism o, a igreja recebe p ublicam en te quem já tinha sido recebido m ediante a graça. Portanto, o batism o não transmite graça, mas a igreja confirm a que a graça foi outorgada à pessoa que recebeu o batism o.18
N ão é necessário dizer que Z uínglio não acreditava que as crianças nascem culpa das d o pecado de Adão. Para ele, o pecado original é en ferm id ad e herdada da corrupção, depravação e m orte. Ela não envolve culpa, porque a m orte de C risto na cruz exim iu de toda a posteridade a culpa do pecado de Adão. O pecado herdado é escravidão, mas não é culpa. C arrega um a tendência tão forte ao pecado pro p riam en te dito que a culpa é inevitável para os que crescem e am adurecem até alcançarem a m aioridade responsável, m as quanto às crianças que m o rrem sem a aliança (sem batism o) antes da idade da responsabilidade m oral, não se pode deduzir q u e estão sob condenação.19 Sim plesm ente estão nas m ãos de D eus, e não devem os presum ir que sabem os sua sorte o u destino. Se forem eleitas, serão salvas. Pode-se dizer que todas as crianças batizadas são salvas, em bora tenham de confirm ar sua eleição, p u blicam ente, pela profissão de fé, ao atingir a idade da consciência. Z u ín g lio tam b ém discordava v eem e n tem en te de L utero e da tradição católica ro m an a n o tocante à ceia d o S enhor. D a m esm a form a q u e L utero, rejeitava a transubstanciação e a teoria de que a eucaristia tran sm ite a graça ex opere operato. Negava, tam bém , que se tratasse de sacrificar C risto de novo. C o n tra L utero, p o rém , argum entava q ue o corpo h u m an o ressu rreto e glorificado de C risto está localizado no céu e não é onipresente. P ortanto, seg u n d o Z u ín g lio , não existe n e n h u m a presença real de C risto nos elem entos d o pão e d o v in h o na refeição. O p rim eiro e rro de L utero, para ele, era acreditar que algum a coisa externa — com o a água n o batism o ou pão na Eucaristia — podia realm ente tran sm itir graça o u fé. “A carne não p ro d u z nada q u e se aproveite.” O u tro erro era en sin ar q u e o corpo de C risto está no sacram ento. N o conceito do refo rm ad o r suíço, essas duas declara ções de L u tero im plicavam idolatria e heresia cristológica. A h u m an id ad e de C ris to significa q ue seu corpo, em b o ra seja ressu rreto e glorificado, não é onipresente. U m corpo o nipresente seria divino e não hum ano. Z u ín g lio via no ensino de L utero a respeito da o nipresença corpórea de C risto m ais do q u e u m indício da antiga heresia de eu tiq u ism o . L utero, en tre tan to , via n o en sin o de Z u ín g lio a respeito do “co rp o localizado” de C risto no céu m ais do que um indício da antiga heresia do nestorianism o, visto q u e Z u ín g lio q ueria reco n h ecer co m o o n ip resen te a natureza divina de C risto . S o m ente sua natureza h u m ana, ligada a u m corpo, está localizada no céu.3’
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Para Z u ín g lio , a ceia do S en h o r é refeição m em orial na qual o co rp o de C risto na terra — a igreja — relem bra e proclam a a sua m orte. O batism o é im p o rtan te para a igreja, tan to q u an to ou m ais d o q u e para o batizando, assim com o a ceia do Senhor. N ela, os cristãos realm ente “se alim entam de C risto ”, m as apenas espiri tu alm en te e não fisicam ente: C om er o corpo de C risto espiritualm ente não é outra coisa senão confiar, de corpo e alma, na m isericórdia e na bondade de D eu s em C risto, ou seja, ter a certeza, a fé inabalável, de que D eu s perdoará nossos pecados e nos outorgará a alegria da bem -aventurança eterna por causa de seu Filho, que foi feito inteiram ente nosso e oferecido em nosso nom e para reconciliar ajustiça divi na para nós.21
Por q ue, seg u n d o Z uínglio, essa refeição sacram ental é necessária? “P orque todo cristão deve deixar claro aos o u tro s cristãos q u e é m em b ro do corpo de C risto e u m deve saber que o o u tro tam bém é m em b ro do co rp o .”22 A teoria de Z u ín g lio sobre a ceia do S en h o r co m o refeição m em orial e dos elem en to s d o pão e do vinho com o sím bolos foi m odificada p o sterio rm e n te pela m aioria das igrejas reform a das. Elas adotaram o conceito sacram ental m o d erad o de C alvino, q u e pretendia aproveitar o que havia m e lh o r em Z u ín g lio e L utero e o m itir o q u e havia de pior. O conceito zuingliano da ceia d o S en h o r to rn o u -se a teoria geralm ente aceita pelos anabatistas e, p o sterio rm en te, pelos batistas e o u tro s p rotestantes ind ep en d en tes da Inglaterra e da A m érica do N o rte. Esse breve esboço do papel de Z u ín g lio na história da teologia cristã d ificilm en te o retrata à altura de seus m erecim entos. Apenas ressalta alguns p o n to s im p o r tantes de sua teologia e m ostra seu papel histórico de fu n d a d o r da tradição refor m ada d o p ro testan tism o. D e m o d o geral, ele concordava com L utero. A forte e am arga discórdia en tre eles a respeito da ceia d o S en h o r é u m dos episódios m ais lastimáveis e cism áticos de toda a R eform a protestante. Z u ín g lio é m u ito ofuscado pelos dois o u tro s grandes reform adores m agisteriais do p rotestantism o: L utero e C alvino. Calvinismo é o ró tu lo am plam ente usado para d en o tar a teologia refo rm a da. Ela poderia, co m igual razão, ser cham ada zuinglianismo, po rém , p o r um a estra nha exigência da história, esse ró tu lo acabou sendo aplicado quase q u e exclusiva m en te para designar q u em concorda com o conceito sobre a ceia do S en h o r sus ten tad o pelo refo rm ad o r de Z u riq u e . Ironicam ente, até m esm o os batistas livres q u e re je ita m a teo lo g ia re fo rm a d a de Z u ín g lio n o to c a n te à p ro v id ê n c ia , à predestinação e ao batism o infantil, são cham ados de zuinglianos sim plesm ente p o r que concordam com sua dou trin a da ceia d o Senhor! É hora de redescobrir e ressal tar o im portante papel de Z uínglio na história da teologia cristã, m enosprezado há
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centenas de anos. E m bora João C alvino não estivesse disposto a reconhecer teo lo gicam ente Z u ín g lio co m o devia, foi de fato discípulo dele de m uitas m aneiras (pela influência de H e n riq u e B ullinger, sucessor de Z u ín g lio , sobre C alvino) e pouco co n trib u iu à teologia q u e não se encontrasse an terio rm en te nas obras do próprio Z uínglio.
A vida e a carreira do reformador João Calvino João C alvino nasceu p erto de N o y o n , na França, em 10 de ju lh o de 1509. M o rreu em G enebra, no m esm o país, cm 27 de m aio de 1564. E m G enebra, um a república in d ep en d en te q u e p o sterio rm e n te se to rn o u parte da Suíça, C alvino praticam ente governou com o “pastor principal”; o refo rm ad o r p ro testante francês fu n d o u a Aca dem ia de G enebra, para onde afluíam protestantes de toda a Europa. N a época da perseguição aos protestantes na Escócia e na Inglaterra, o sem inário em G enebra atraiu fu tu ro s reform adores co m o Jo ão K nox (1514-1572), que conseguiu tran s form ar a Escócia em um a nação m odelada segundo a cidade suíça. Foi K nox q u em proclam ou a academ ia de G enebra dirigida p or C alvino e por seu sucessor, T eodoro Beza, “a escola de C risto m ais perfeita desde os dias dos apóstolos”. C o m h o m en s co m o Knox, o calvinism o to rn o u -se sin ô n im o de teologia reform ada nos países de língua inglesa. O s p u ritanos da Inglaterra e da N ova Inglaterra consideravam -se calvinistas, assim co m o os teólogos pregadores da H olanda, em b o ra suas teologias e espiritualidades tivessem toques distintivos. D e q u alq u er form a, o calvinism o to rn o u -se expressão co m u m para designar a teologia reform ada n o m u n d o de lín gua inglesa. N ão q u erem os, com isso, depreciar o papel d esem p en h ad o p o r João C alvino na R eform a p ro testan te e sua teologia, m as apenas dizer q u e talvez ele não seja de fato tão ex traordinário q u an to se pensa. C ertam e n te , reformado não é o m es m o q u e calvitiista. M as C alvino se to rn o u o grande herói da m aioria dos teólogos reform ados depois dele. E quase certo que a grande reputação de C alvino se deve ao seu entusiasm o, à sua liderança e à sua m ente sistemática brilhante representada em sua obra-prim a, Institutos da religião cristã, publicada em várias edições n o decurso de sua vida. T ornou-se o principal m anual de referência para a teologia reform ada e assim c o n tin u o u durante séculos, e ainda hoje é publicado, analisado, interpretado e debatido. C alvino tam bém escreveu num erosos com entários sobre os livros da Bíblia, bem com o serm ões para todas as ocasiões e cartas a outros reform adores a respeito de quase todos os assuntos que se possa imaginar. Além da teologia, sua influência sobre a política, as ciências econôm icas c a ética social é profunda na cultura protestante, sob retu d o em países com o H olanda e Escócia onde sua teologia d o m in o u a igreja nacional. Q u a n d o jo v em estu dante em O rléan s e Paris, C alvino estu d o u D ireito, Filoso fia e Teologia. E n tro u em contato com h um anistas c luteranos e se co nverteu ao
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pen sam ento p ro testan te p o r volta de 1530. Q u a n d o a perseguição irro m p eu contra os protestantes em Paris, C alvino fugiu para Basileia, na Suíça, q u e estava a cam i n h o dc se to rn ar um a cidade reform ada co m o Z u riq u e . Lá, C alvino escreveu a prim eira edição de sua obra Institntas q u e foi publicada em 1536. T in h a apenas vinte e cinco anos de idade e já “não so m en te tinha dado form a dogm ática genuína às principais d o u trin as da R eform a, co m o tam bém acom odado essas d o u trin as em um a das apresentações clássicas da fé cristã”.23 O livro foi reco n h ecid o quase que im ediatam ente pelos am igos e inim igos da R eform a p rotestante co m o a obra dc u m jo v em gênio d estinado a ser um a das grandes sum idades do m ovim ento. Em 1537, C alvino estava a cam in h o dc E strasburgo, u m a das principais cidades protestantes da E uropa, para estudar com M artin h o Bucer. P or causa da guerra, o cam in h o m ais cu rto tin ha sido bloqueado, o q u e forçou o jo v e m francês a fazer um desvio até G enebra, que tinha se to rn ad o protestante e republicana não havia um ano. C alvino planejava apenas p ern o itar ali, m as u m líder pro testan te cham ado G u ilh erm e Farei p ro c u ro u -o e im p lo ro u -lh e que ficasse e ajudasse a co m p letar a R eform a da cidade. P o steriorm ente, C alvino se lem brou: D ep ois de saber que eu queria, de todo coração, dedicar-m e aos estudos par ticulares, m otivo pelo qual pretendia m e m anter livre de outras atividades, c vendo que suas súplicas não dariam em nada, [Farei] com eçou a proferir a imprecação de que D eu s amaldiçoaria a reclusão e tranqüilidade dc m eus estudos, se eu m e retirasse e m e recusasse a ajudar quando a necessidade era tão urgente. Fiquei tão aterrorizado com essa im precação, que desisti da via gem que havia em preendido.24
Para resu m ir um a história m u ito longa e com plexa, C alvino passou o resto de sua vida em G en eb ra, a não ser pelo cu rto perío d o em q u e m o ro u e estu d o u em E strasburgo. Em G en ebra, serviu oficialm ente apenas co m o pastor principal. N a realidade, rein o u praticam ente co m o u m d itad o r da cidade. Era o profeta de G e n e bra, mas a p refeitura e os ilustres cidadãos, em geral, tem iam e respeitavam tanto aquele q u e se cham ava de “servo de G e n eb ra” q u e n o rm alm en te obedeciam às suas ordens. A G enebra de C alvino deveria ser um a “cidade piedosa”, um a república teocrática q ue seria o m o d elo na terra do reino dc D eus no céu. Pelo m enos, era esse o ideal e o objetivo de C alvino para G enebra. M uitas pessoas e facções da cidade resistiam à sua disciplina autoritária, mas C alvino sem pre os vencia nos con fro n to s e conseguia im p o r sua vontade, am eaçando ir em bora caso a prefeitura não lhe desse apoio. Foi im posto à cidade u m m odo de vida austero fu n d am en tad o na lei bíblica. O s delin qü en tes eram castigados severam ente e, às vezes, banidos p o r causa de bebedeiras
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baru lh en tas o u p o r criticar C alvino abertam ente. Pelo m enos um herege foi c o n denado à fogueira em 1553. M iguel de Serveto estava pro ib id o de en tra r na cidade p o r o rd em do p ró p rio C alvino, m as o u so u aparecer e ir à igreja para ouvir C alvino pregar. C alvino queria que fosse decapitado co m o castigo m ais m isericordioso por ter negado ab ertam en te a trindade, m as as autoridades da prefeitura decidiram q u eim á-lo. Ele n em sem pre conseguia im p o r sua vontade nas questões secundári as, mas m an tin h a firm em en te os princípios e as crenças pelas quais a igreja e a cidade se orientavam .
A teologia de Calvino A teo lo g ia de C a lv in o b a se o u -se em L u te ro , Z u ín g lio e n o re fo rm a d o r de Estrasburgo, Bucer, e aproveitou m u ito d o pen sam en to deles. C alvino rejeitou a teologia natural, o p tan d o pela Palavra de D eus com o o cam in h o m ais seguro para alcançar o co n h ecim en to divino, e enalteceu as Escrituras, inspiradas e ilum inadas pelo E spírito Santo, co m o autoridade única e su p rem a para a fé e prática cristãs. E m bora D eus seja ad equadam ente revelado na natureza e na sua Palavra, o pecado cegou de tal m aneira os seres h u m an o s q u e eles não po d em o b ter o verdadeiro co n h ecim en to de D eu s sem a ilum inação especial do E spírito Santo — o te ste m u nh o in terio r do E spírito, segundo C alvino — , q u e é outorgada so m en te aos eleitos q u an d o são regenerados (nascem de novo). C alvino baseou seus argum entos d o u trinários e suas crenças inteiram en te nas E scrituras e, raras vezes, apelou à filosofia ou à tradição cristã co m o autoridade absoluta, p o rq u e elas erram em questões per tinentes a D eus e à salvação com freqüência. A d o u trin a de D eus sustentada p o r C alvino é co m p letam en te agostiniana, por considerá-la to talm en te bíblica. Assim co m o A gostinho, L utero e Z u ín g lio , acre ditava q u e D eus era a realidade que a tu d o d eterm in a e ensinava a m eticulosa p ro vidência de D eus sobre a natureza e a história. As vezes, C alvino rem etia certos eventos na história à “perm issão” de D eus, m as cm geral enten d ia q u e D eus é a causa suprem a de tu d o e ensinava q u e absolutam ente nada acontece, n em pode acontecer, sem a d eterm in ação de D eus “p o r d e c re to ”. Assim com o Z u ín g lio , C alvino negava a existência da contingência; nada acontece p o r acaso. E n em D eus sim p lesm en te prevê o u sabe o q u e vai acontecer n o fu tu ro . Ao contrário, “D eus, pelo po der da providência, co n d u z todo evento para o n d e ele q u e r”25 e “o q u e para nós parece contingência, a fé reconhece co m o im p u lso secreto de D e u s”.26 Isso significa que até m esm o a queda de Adão e de Eva foi predestinada p o r D eus? C alvino negava q u alq u er distinção real en tre a vontade e a perm issão de D eus, co m o alguns teólogos escolásticos tin h am estabelecido. Em vez disso, afirmava: “O p rim eiro h o m em caiu p o rq u e o S en h o r ju lg o u q u e era o p o rtu n o ; p o r q u e ele assim ju lg o u , não nos é revelado. E certo, po rém , que assim ju lg o u p o rq u e viu que
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com isso a glória do seu n o m e seria devidam ente revelada”.27 S egundo C alvino, tu d o o q u e acontece resulta na glória de D eus, em b o ra nós, seres hu m an o s, não en ten d am o s com o. E a glória de D eus é o propósito dc tu d o o q u e acontece, e m bora sejam os incapazes de reconciliá-la com o am or, a m isericórdia ou a justiça. A inda q ue a crença na dupla predestinação não raro seja cham ada sim plesm ente de caivinism o e m uitas pessoas achem que ela é o princípio organizador central da teologia de C alvino e sua m aior contribuição, “se exam inarm os m ais atentam ente, verem os a im pressio n ante falta de originalidade da d o u trin a de C alvino sobre a eleição. Seu en sin o sobre o assunto é, em todos os princípios básicos, idêntico ao q u e já vim os cm L u tero e Z u ín g lio ”.28 C alvino afirm ou q u e tanto nas E scrituras q u an to na tradição cristã “se afirm a que D eus o rd e n o u desde a eternidade q u em iria acolher co m am o r e q u em seria objeto de sua ira”.2*' Ele identificou u m conflito aparente en tre essa d o u trin a e 1T im ó teo 2.3-4 c 2P edro 3.9, q u e sugerem a v o n ta de universal de D eus para a salvação. A solução dc C alvino foi postular a dupla vontade de D eus, sendo um a delas revelada e o u tra secreta. A vontade revelada de D eus ofcrccc m isericórdia e perdão a todos q u e se arrep en d erem e crerem . A v o n tade secrcta dc D eu s predestina alguns à perdição etern a e d eterm in a q u e eles pe carão c n u n ca se arrependerão. C alvino não teve paciência com aqueles q u e levan taram objeções co n tra a d o u trin a das duas vontades e da dupla predestinação por considerá-las injustas e declarou: “Pois, com o A gostinho argum enta com razão, os que m edem aju stiça divina segundo o padrão da justiça hu m an a estão agindo m al”.30 M u ito s c r ític o s d o m o n e rg is m o o b je ta m a r g u m e n ta n d o q u e , se D e u s pred estin o u e p ro m o v eu a queda da hu m an id ad e e a reprovação (pecado e perdi ção eterna) do in d ivíduo, co m o o rép ro b o pode ser considerado responsável pelo pecado c não D eus? O n d e está a ju stiç a disso? U m h u m o rista anticalvinista escre veu alguns versos b u rlesco s sobre u m calvinista h o lan d ês c h a m a d o Francisco G o m aro que ensinava q u e o supralapsarism o — um a form a notavelm ente extre m ada do caivinism o — era a form a correta d o m o n erg ism o cristão: Francisco G o m aro era supralapsário; Até m esm o in ventou para A dão um a desculpa. D eus d ecreto u e p red estin o u o ato de Adão. D eus prep aro u para Adão a culpa! C alvino ten to u resp o n d er tais objeções contra a d upla predestinação — obje ções estas que cham ava de “desculpas m aldosas”. “M as re co n h eç o ”, escreveu ele, “que isso não pode ser feito de tal m aneira que os ím pios parem de rosnar e m u r m u ra r”. Sua resposta definitiva nas Instituías da religião cristã é q u e “em b o ra o h o m em ten h a sido criado pela providência eterna de D eus para sofrer a calam idade à
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qual está sujeito [a queda, o pecado, a m o rte], ainda assim , a causa provém do pró p rio h o m em e não de D eus, visto que a única razão de sua ruína é que, da pura criação divina, ele se d eg en ero u para a perversidade viciosa e im p u ra”.31 O s o p o n en tes c críticos de C alvino d ificilm ente po d em ser culpados de não se deixar co n v en cer p o r essa resposta. Ela parece c o n ter u m a total contradição lógica, consi d eran d o a nítida rejeição de C alvino a q u alq u er distinção feita en tre a vontade divina e a perm issão divina. U m a área da d o u trin a na qual C alvino divergia tan to de L utero q u a n to de Z u ín g lio era a ceia do Senhor. E m bora concordasse com Z u ín g lio n o tocante ao batism o, discordava do teólogo de Z u riq u e no tocante à ceia do S en h o r co m o um a refeição m em orial d estituída de q u alq u er presença corpórea dc C risto. Por o u tro lado, C alvino rejeitava com veem ência a d o u trin a católica da transubstanciação e a versão dc L utero da presença real: a consubstanciação. Assim com o em sua d o u tri na da predestinação e da responsabilidade hu m an a pelo pecado, o ensino de C alvino a respeito da ceia do S en h o r parcce contraditório. C o m o Z u ín g lio e contra L utero, afirm ava um a lim itação espacial do corpo de C risto n o céu c negava a onipresença ou u b iq üidade da h u m an id ad e dc C risto: “Pois assim co m o não duvidam os q u e o co rp o de C risto é lim itado pelas características gerais q u e tódos os corpos h u m a nos têm em co m u m , e que é c o n tid o 110 céu (onde foi recebido p erm a n en tem en te) até a volta de C risto n o ju íz o , [...] tam bém consideram os co m p letam en te ilegítim o trazê-lo de volta para esses elem entos corruptíveis ou im aginar q u e está presente cm todos os lugares”.32 E n tretan to , contra Z u ín g lio e co m o L utero, C alvino afir mava a presença real dc C risto corporeamente n o S acram ento da ceia d o S enhor: “Pois, p o r q ue o S en h o r colocaria cm suas m ãos o sím bolo de seu corpo, a não ser para lhe garantir a genuína participação dele? M as se é verdade q u e o sinal visível nos é dado para selar a dádiva d o invisível, q u an d o rcccbcm os o sím bolo do corpo, confiem os com a m esm a certeza q u e o p ró p rio corpo nos é dad o ”.33 C alvino queria o corpo de C risto n o céu e tam b ém co m ê-lo na refeição sacra m ental! Sua solução para essa contradição aparente era que o E spírito Santo, de m o d o m ístico e espiritual, aproxim a o corpo de Jesu s C risto e o crente fiel m ed i ante os sím bolos do pão e d o vin h o na ceia d o S enhor: “Para nós, o m éto d o [da presença real] é espiritual, p o rq u e o p o d er secreto d o Espírito é o elo da nossa un ião com C risto ”.3'* A negação de C alvino é m u ito m ais clara do q u e sua afirm a ção. Rejeitava tan to a teoria de L utero q u an to a teoria dc Z uínglio. A creditava que a ceia d o S en h o r é um sacram ento da presença real, q u e fortalece a fé dos crentes q u an d o dela participam com fé e cria um a união m ais forte en tre o crente e C risto m ediante o E spírito Santo. D evido, em grande parte, à influência de Jo ão C alvino, a teologia reform ada afetou p ro fu n d am en te o p ro testan tism o na E uropa O cid en tal e na A m érica do
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N o rte e, com os m o v im en to s m issionários, no m u n d o inteiro. O presbiterianism o é sim p lesm en te o calvinism o escocês, cujo n o m e se deriva da form a de governo eclesiástico favorecida p o r C alvino e levado à Escócia p o r Jo ão Knox. As Igrejas R eform adas suíça, francesa e holandesa têm influenciado g ra n d em en te todas as áreas da vida na E uropa, bem co m o na África do Sul e na A m erica do N o rte . O s p u ritan o s da Inglaterra ten taram estabelecer u m a república piedosa seg u n d o o m o d elo de G en eb ra de C alvino n o N o v o M u n d o e tanto o presbiterianism o q u a n to o congregacionalism o n o rte-am erican o adotaram form as da teologia calvinista. Q u a n d o as p r im e ir a s c o n g r e g a ç õ e s b a tis ta s s u r g ir a m e m m e io ao congregacionalism o p u ritan o na Inglaterra e na A m érica do N o rte , m uitas se d e clararam “batistas p articulares”, q u e significa q u e acreditavam na “eleição particu lar” e a ensinavam — trata-se de um a form a de dupla predestinação. Todas essas tradições p ro testantes recorreram m u ito m ais a C alvino do q u e a Z u ín g lio , e m b o ra, em grande parte, o q u e C alvino realm ente fez foi tran sm itir a teologia refo rm a da de Z u ín g lio ao resto do m u n d o .
26 Os anabatistas voltam às raízes do cristianismo
O co n ju n to total dos reform adores protestantes e de seus seguidores n o século xvi pode ser dividido em duas categorias principais: a R eform a m agisterial e a R e form a radical. Radical significa, sim plesm ente, “voltar às raízes” e é lógico q u e to dos os protestantes p retendiam recuperar o verdadeiro evangelho do n t , livrandoo das partes da tradição m edieval q u e achassem q u e o restringiam c suprim iam . E n tretan to , o g ru p o divergente de reform adores protestantes, m ais radical do q u e os dem ais, foi classificado “R eform a radical” ou sim plesm ente “protestantes radi cais” p o r causa de suas características c o m u n s.1 O s re fo rm ad o res m agisteriais incluíam L utero, Z u ín g lio , C alv in o e Tom ás C ran m er, o principal re fo rm ad o r p rotestante da Inglaterra e artífice da Igreja da Inglaterra pós-católica. Seus colegas e seguidores de várias cidades e países da E u ropa co n stitu íram a R eform a m agisterial p o rq u e todos p reten d iam estabelecer um a só igreja e república verdadeiram ente cristã em seus respectivos países com o apoio de magistrados — u m term o geral para as autoridades seculares, co m o príncipes, ju izes e vereadores das cidades. O s reform adores m agisteriais conceberam um a form a de cooperação e n tre a igreja c o estado e queriam expulsar de seus territórios todos os rom anistas (católicos rom anos) e hereges. N a m aior parte, esses p ro tes tantes m agisteriais, q u e r fossem luteranos, reform ados ou anglicanos, reco n h eci am a autoridade relativa dos credos m ais antigos da cristandade, insistiam no batis m o infantil, p erm itiam um a única form a legalizada do cristianism o em seus terri tórios e favoreciam o p o d er das autoridades seculares para p ro m o v er guerras e perseguir os dissidentes religiosos.
A Reforma radical e o anabatísmo A R eform a radical inclui todos os protestantes da E uropa no século xvi q u e acredi tavam na separação en tre a igreja e o estado, renunciavam à coerção nas q uestões da crença religiosa, rejeitavam o batism o infantil em favor do batism o dos crentes
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(tam bém cham ado batism o n o Espírito) e enfatizavam a experiência da regenera ção (“nascer de n o v o ”) pelo E spírito de D eu s m ais d o q u e a justificação forense. Eles evitavam m agistrados cristãos e, em geral, procuravam viver o m ais longe possível da sociedade. A lguns fundaram com u n id ad es cristãs. A m aioria adotou o pacifism o cristão e um m o d o de vida singelo. A lguns rejeitavam o trein am en to teológico form al e os clérigos profissionais. Todos enfatizavam o viver cristão prá tico mais do que os credos e as confissões de fé d outrinária. E desnecessário d izer q u e os p rotestantes radicais eram os “p rotestantes do p ro testan tism o ”. Protestavam contra as m edidas, p o r eles consideradas insuficientes, tom adas p o r L utero e p o r o u tro s reform adores m agisteriais para purificar a igreja dos elem en to s católicos rom anos. O ideal deles era restaurar a igreja do n t com o o rem anescente perseguido, da m esm a form a q u e havia sido 110 Im p ério R om ano antes de C o n stan tin o . Para eles, os reform adores m agisteriais estavam presos ao co n stan tin ism o e n o agostinism o. Essas eram as principais enferm idades do cristi anism o m edieval q u e os reform adores radicais queriam erradicar de suas co n g re gações in d ep en d en tes e au tô n o m as o u m esm o do p ró p rio cristianism o. A R eform a radical inclui três subgrupos distintos: anabatistas, espirituais (ou espiritualistas) e racionalistas antitrinitários. Este grupo, do qual fez parte M iguel de Serveto que foi queim ado na fogueira na G enebra de Calvino, era com posto princi palm ente de indivíduos e grupos pequenos que, 11 a m aior parte, eram obrigados a se reu n ir secretam ente para realizar cultos e ensinar. Posteriorm ente, no fim do século xvii, organizaram -se na Inglaterra e na N ova Inglaterra e form aram o grupo dos unitaristas. O s espirituais incluíam pessoas com o C aspar Schwenkfeld (1489-1561) e ensinavam um a form a m ística do cristianism o protestante que enfatizava a “luz inte rior” do Espírito de D eus cm todas as pessoas. O m ovim ento inglês dos quacres em ergiu em um a form a organizada desse protestantism o radical espiritual no século xvin. O m a io r e m ais in flu e n te g ru p o d e re fo rm a d o re s rad icais co n sistia nos anabatistas, q u e deixaram sua m arca m ais expressiva na teologia cristã com líderes com o Baltasar H u b m a ie r e M en o S im ons. C riad o na época de Z u ín g lio em Z u ri que em 1525, den o m inavam -se “irm ãos suíços” e p o sterio rm e n te espalharam -se p o r toda a Europa. C erto g ru p o de anabatistas to rn o u -se conhecido p o r m enonitas, seg u n d o o n o m e de seu fundador, M en o S im ons, e o u tro g ru p o fo rm o u colônias co m unitárias c recebeu o n o m e dc huteritas, por causa dc seu líder Jacó H u tter. O s p rin c ip a is g ru p o s de an ab atistas 110 m u n d o m o d e rn o são as várias co lô n ias m enonitas, ainisli e huteritas, bem co m o as Igrejas dos Irm ãos. Todos procuram transm itir, de algum a form a, as características teológicas e práticas distintas de seus fundadores no século xvi. C o m o os anabatistas eram os m ais influentes de todos os reform adores radicais na questão da teologia cristã, focalizarem os nossa atenção exclusivam ente na história
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deles. D ois pensadores anabatistas, notavelm ente criativos e influentes, d o período da R eform a m erecem ser destacados: Baltasar U u b m a ie r c M e n o S im ons. A m bos deixaram urna m arca incom parável na vida e n o p en sam ento dos anabatistas e tam bém , de m o d o in d ireto, em toda a tradição das igrejas in d ep en d en tes q u e rejeita vam as igrejas oficiais dos estados c preferiam a separação e n tre a igreja e o estado. A ntes de exam inarm os a teologia do anabatism o, e bo m explicarm os o início do m o v im en to .2 D e acordo com o historiador anabatista W illiam R. Estep, “o ato m ais revolucionário da R eform a” aconteceu em Z u riq u e , em 21 de ja n e iro de 1525.3 U m ex-sacerdote católico, cham ado Jo rg e B laurock, que havia se to rn ad o p ro tes tante re u n iu -se secretam ente com o u tro s seguidores radicais de Z uínglio. Estavam insatisfeitos com o an d am en to lento e cauteloso da reform a em Z u riq u e . D ois jo v en s brilhantes seguidores de Z uínglio, cham ados Félix M anz e C o n rad o G rebel, estavam en tre eles. D epois de cuidadoso estu d o e oração, resolveram batizar uns aos o u tros. E m bora, hoje em dia, esse ato não pareça especialm ente corajoso, na quele tem p o era. R ecusar o batism o infantil e rebatizar as pessoas era ilegal p o r ser considerado heresia e sedição. Esses “Irm ãos”, co n fo rm e se cham avam , tinham exp erim en tad o u m a conversão q u e havia transform ado suas vidas e, depois de es tud ar cu idadosam ente o n t , criam que o batism o infantil, por anteceder o arrep e n d im en to e a fé, não é gen u ín o . Z u ín g lio im pediu os esforços deles de abolir o batism o infantil e as autoridades m unicipais am eaçaram castigá-los caso colocas sem cm prática suas crenças. O p rim eiro a ser batizado p o r afusão foi B laurock. Ele foi o p rim eiro anabatista verdadeiro. E m seguida, batizou G rebel e M anz. “C o m o n ascim ento do anabatism o, u m m o v im en to religioso novo e dinâm ico achou expressão na E u ropa.”4 O s jo v en s radicais percorreram o in terio r e as cida des do n o rte da Suíça e da A lem anha do sul, pregando a necessidade d o arrep en d i m en to e da fé pessoal antes do batism o e “reb atizan d o ” centenas de católicos e protestantes. “O s irm ãos enfatizavam a necessidade absoluta de um co m prom isso pessoal com C risto co m o essencial para a salvação e a condição prévia do batis m o .”5 N a cidade de W aldshut, toda a congregação p rotestante de Baltasar I lu b m aier recebeu o batism o dos crentes depois de confessar publicam ente sua fé. Em Z u ri que, po rém , Z u ín g lio e as autoridades da prefeitura prom ulgaram leis contra os anabatistas e conclam aram as autoridades civis em toda a E uropa a caçá-los e pren d êlos. Félix M anz, q u e tinha sido o alu n o m ais brilh an te e afilhado de Z u ín g lio , to rn o u -se o p rim eiro m ártir anabatista. Ele foi preso e levado a Z u riq u e para ser julg ad o . Z u ín g lio co n sen tiu com a sentença: afogam ento. Esse cham ado terceiro batism o to rn o u -se a pena preferida de católicos e protestantes para os anabatistas. Em 5 de ja n e iro de 1527, M anz, o líder do m o v im en to incipiente dos Irm ãos S uí ços, foi am arrado e jo g ad o n o rio L im m at n o c e n tro de Z u riq u e . N o s anos seguin tes, m ilhares de anabatistas foram caçados p or policiais especiais cham ados Tàtiferjàger
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(caçadores de anabatistas) e m uitas pessoas, inclusive m u lh eres, foram executadas. O s filhos de anabatistas eram tom ados e en treg u es para famílias de grupos eclesiás ticos oficialm ente reconhecidos. O s anabatistas, além de hereges, eram considerados rebeldes perigosos pelas autoridades da igreja e do estado.6 U m p eq u en o g rupo de fanáticos chegou tom ar posse da cidade de M ü n ster, na A lem anha. E m bora a m aioria dos anabatistas fosse pacifista e nada tivesse a ver com a rebelião de M ünster, todos levaram a culpa. Além disso, a recusa de batizar crianças, ou m esm o o ato de encorajar o u tro s a não batizar seus filhos recém -nascidos, era entendida co m o um a form a de m olestam ento infantil cm u m p erío d o em q u e o b em -estar espiritual da criança era considerado tão im p o rtan te q u an to o b em -estar físico. A separação dos anabatistas das igrejas estatais e os freq ü en tes serm ões contra elas eram vistos com desconfiança pelos protestantes m agisteriais e pelos católicos rom anos, q u e acreditavam q u e a igreja e o estado deviam co operar en tre si. A idéia da liberdade de p en sam en to e da dissi dência era considerada um a novidade perigosa q u e só poderia acabar em anarquia. Pelo m en o s era assim q u e os guardiões das igrejas nacionais encaravam a questão. Além disso, m u ito s anabatistas usavam o estilo de c o n fro n to com o m éto d o de co n q uistar adeptos e desafiavam as autoridades religiosas e civis, q u e considera vam apóstatas. Jo rg e B laurock não era diferente. A ntes de ser d etido c q u eim ad o na fogueira em 1529, tinha o hábito de in terro m p e r cultos da Igreja R eform ada na Suíça a fim de p roclam ar o evangelho do a rrep e n d im en to pessoal, da conversão e d o batism o subseqüente. P or causa da perseguição generalizada contra eles e co m o a m aioria dos líderes não viveu p or m u ito tem po, os irm ãos anabatistas p ro d u ziram p o u co n o que se refere à teologia form al. A lém disso, em geral não se interessavam pela teologia dogm ática nem pela especulação filosófica. O s prim eiros anabatistas sim p lesm en te adotaram as grandes d o u trin as do cristianism o e não se interessaram em explorálas e defendê-las mais p ro fu n d am en te. A creditavam na trindade e na hu m an id ad e e divindade de Jesu s C risto . Assim co m o L utero, Z u ín g lio e o u tro s protestantes, aceitavam a salvação so m en te pela fé, a autoridade final e definitiva das E scrituras e o sacerdócio de todos os crentes. O problem a era q u e achavam q u e os p ro testan tes m agisteriais não tin h am ido su ficien tem en te longe com os princípios p ro tes tantes praticados c q u e estavam atolados no co n stan tin ism o c 110 agostinism o. N a opinião dos anabatistas, os principais reform adores p rotestantes não eram refor m ados o bastante. A m aioria dos escritos anabatistas focalizava a defesa do batism o dos crentes e a liberdade de p en sam en to sem coerção. N ã o raro, escreviam ser m ões e hinos que enfatizavam a escolha pessoal e o discipulado e seus artigos e cartas visavam p rin cip alm en te re co n stitu ir a igreja seg u n d o as d iretrizes do n t , in d ep en d e n tem en te da aprovação oficial dos governos. N e n h u m líder anabatista
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da prim eira geração p ro d u z iu u m sistem a abrangente da teologia o u da doutrina. Só m u ito mais tarde é que tiveram tem p o e liberdade para fazê-lo.
A vida e a carreira do reformador Baltasar Hubmaier Talvez o m aior intelectual d o m o v im e n to anabatista prim itivo ten h a sido o pastor de W aldshut, q u e co n d u z iu toda a sua congregação ao batism o dos crentes após a conversão. Seu n o m e era Baltasar I Iubm aier. N asceu em 1481 e m o rre u q u eim a do na fogueira em Viena, em 1528. Três dias depois, sua esposa foi condenada ao afogam ento no rio D anúbio. I Iubm aier era considerado especialm ente radical e perigoso pelas au to ridades religiosas e civis de todas as partes da E uropa, p orque tin h a sido u m estu d io so católico de re n o m e antes de se to rn ar pro testan te e ainda havia se afiliado aos Irm ãos. Em 1515, foi n o m ead o vice-reitor da U n iv ersid ad e de Ingolstadt. na A lem anha. Em 1516, to rn o u -se sacerdote da catedral de R egensburg, um a cidade im p o rtan te da Bavária, no sul da A lem anha. Por seus ensinos, prega ções e escritos eru d ito s, I Iubm aier to rn o u -se um dos líderes católicos m ais co nhecid o s na época em q u e L utero estava iniciando sua obra refo rm ad o ra n o n orte da A lem anha. Em 1522, co n v erteu -se ao pro testan tism o e foi forçado a deixar o cargo cm R egensburg. A ceitou o pastorado de um a pequena congregação refor m ada em W aldshut, p erto de Z u riq u e , na Suíça, e participou das reform as q u e estavam sen d o realizadas sob a liderança de Z uínglio. O s p rotestantes de todas as partes da E uropa consideraram u m a grande vitória a conversão dele em favor de sua causa. N o início de 1525, H u b m a ie r com eçou a pregar e p ublicar sua oposição ao batism o infantil. N ão se sabe q u em ou o q u e o influenciou, m as é provável que estivesse em co n tato com jo v en s seguidores radicais de Z u ín g lio q u e form avam o âm ago do m o v im e n to anabatista dos Irm ãos Suíços. A igreja de I Iu b m aier em W aldshut to rn o u -se a prim eira congregação anabatista, no D o m in g o da Páscoa, em abril de 1525, ao batizar trezentos adultos usando u m balde de leite (a m aioria dos anabatistas batizava p o r efusão o u d erram am en to de água em vez de im ersão). Em m aio, Z u ín g lio publicou u m a crítica aos anabatistas e I Iubm aier resp o n d eu com o p rim eiro tratado anabatista intitulado O batismo cristão dos crentes. A partir de então, Z u ín g lio e I Iu b m aier com eçaram um a guerra de panfletos. Q u a n d o a polí cia do im p erad o r apareceu em W aldshut atrás de H u b m aier, ele fugiu para Z u riq u e e en fren to u Z u ín g lio em u m debate público. Este m an d o u p re n d ê-lo e torturá-lo. “Esticado n o cavalete, ele [I Iubm aier] fez a retratação requerida e depois a colocou no papel co n fo rm e exigia Z u ín g lio .”7 Então, recebeu perm issão para partir de Z u rique e estabeleceu-se na cidade m orávia de N ik o lsb u rg , on d e os anabatistas e o u tro s dissidentes desfrutavam de liberdade lim itada. Lá, I Iu b m aier dedicou-se ex ten siv am en te ao m in istério e batizou pelo m en o s seis m il pessoas, inclusive
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m em b ro s da fam ília governante. F inalm ente, po rem , os Tâuferjãger do im perador p re n d era m -n o e levaram -no a Viena para ser ju lg ad o c executado. H u b m a ie r c o n c o rd a v a fe rv o ro s a m e n te c o m os p rin c ip a is re fo rm a d o re s m agisteriais co n tra a teologia e práticas prevalecentes da Igreja C atólica R om ana, mas acreditava realm ente q u e L utero e Z u ín g lio não tin h am se desvencilhado das en ferm idades debilitantes d o co n stan tin ism o e do agostinism o. E m bora não tenha usado exatam ente esses term os cm seus escritos, sabe-sc q ue essas eram as síndrom es às quais se o p u n h a. Sob a influência co n tín u a deles, n em m esm o as igrejas p ro tes tan tes m agisteriais da E u ro p a eram v erd ad eiras “igrejas de c re n te s” n eo testa m entárias, m as igrejas estatais, dom inadas pelas autoridades secularcs, nas quais era im possível d istin g u ir os crentes g enuínos dos falsos, p o rq u e todos tin h am sido igualm ente batizados na infância. A igreja e a sociedade são cocxtensivas nesse m o d elo de cristandade e era a isso q u e H u b m a ie r e todos os anabatistas se o p u nh am . A igreja deve scr a ekkksia de D eus — os q u e são “cham ados” e se destacam e se separam da sociedade pela fé e pelo discipulado. Sem rejeitar a au toridade do governo secular, H u b m a ie r criticou d u ra m e n te a coerção do p en sam en to e a im posição dc crenças e co n d e n o u a qu eim a de hereges na fogueira. C ritico u tam bém líderes protestantes, co m o Z u ín g lio , que entrega vam os dissidentes aos m agistrados para serem to rtu rad o s e executados. R cfcrindo-se aos caçadores dc hereges (Ketzemneister), tan to católicos q u an to protestantes, H u b m aier escreveu: “os inquisidores são os piores dc todos os hereges, porque, co n trarian d o a d o u trin a c o exem plo de Jesu s, co n d en am os hereges à fogueira. [...] Porque C risto não veio para trucidar, m atar, queim ar, m as para q u e as pessoas vivam cm abu n d ân cia”.8 C o n clam o u as autoridades religiosas, em especial, a e m pregar so m en te a arm a da Palavra de D eus contra aqueles q u e consideravam h ere ges e a esperar e o rar pelo a rrep e n d im en to deles em vez de m atá-los. Esses sen tim en to s parecem corriqueiros para m uitas pessoas do O c id e n te m o dern o , m as, no com eço do século xvi, eram considerados radicais e até m esm o perigosos. I Iubm aier era constantem ente acusado p or seus inim igos de q u erer abolir toda c q u alq u er form a de governo — acusação essa q u e negava. N a realidade, seus escritos d em o n stram q u e ele aconselhava o respeito c a obediência para com os príncipes e m agistrados co n tan to que isso não exigisse que os cristãos desobede cessem a Palavra da D eus. Por o u tro lado, tam bém está claro q u e não acreditava q u e as ligações oficiais en tre as igrejas e os governos fossem legítim as, p o rq u e em n e n h u m m o m en to isso foi aprovado p o r Jesu s ou pelos apóstolos.
A teologia de Hubmaier As atitudes antiagostinianas de H u b m a ie r m anifestam sua opinião a respeito da salvação e dos sacram entos. Ele culpava A gostinho explicitam ente pelos m il anos
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da falha dos cristãos em observar a verdade bíblica sobre essas questões.9 C o n tra os conceitos m onergistas da salvação oferecidos p o r L utero e Z u ín g lio , H u b m a ie r to m o u o p artid o de E rasm o ao afirm ar o livre-arbítrio e o sincrgism o. C o n tra os conceitos q u e eles tin h am do batism o, to m o u partido de G rebel e M anz, os radi cais de Z u riq u e . N o to can te à ceia d o S enhor, co n co rd av a in te ira m e n te com Z u ín g lio e se o p u n h a a L utero. N o âm ago da teologia de H u b m aier, há um a p re o cupação que prevalece sobre as dem ais: a conversão individual. M ais u m a vez, essa não era exatam ente a expressão q u e ele usava, m as é 11111 term o apropriado para descrever sua convicção a respeito da necessidade do ingresso na vida cristã. Em todos os seus escritos, prin cip alm en te a respeito do batism o, H u b m a ie r p re ssu p u nha q u e a fé é a livre decisão de crer no evangelho e confiar so m en te em Jesus C risto e na sua graça para a salvação.10 E o u v ir a Palavra de deus, assum ir a culpa do pecado, crer 110 evangelho de C risto , confessar os pecados e arrepender-se, confiar som en te em C risto para a salvação, co m p ro m eter-se a viver seg u n d o os m anda m en to s de C risto , ser batizado na água (“batism o ex tern o ”), e participar da vida da igreja, inclusive da ceia do S enhor. C o m essa experiência, disse H u b m aier, D eus concede as dádivas do perdão e do E spírito Santo (“o batism o in te rn o ”) c com isso a pessoa se tran sfo rm a cm crente. S om ente os realm ente convertidos — os “cre n tes” — devem ser m em b ro s de congregações cristãs. D e acordo com H ubm aier, a o rdem da salvação segundo o n t determ ina que “para essas coisas procederem corretam ente, a fé deverá anteceder ao batism o”, caso contrário, as pessoas acharão que são crentes genuínos sim plesm ente p orque foram batizadas na infância. C o n fo rm e o padrão do n t , argum entava ele, “nin g u ém deve ser batizado com água sem antes ter confessado sua fé e conhecido sua situação diante de D eu s”.11 Falando em nom e de todos os anabatistas, escreveu: “Assim, co n fessamos abertam ente q ue não fom os batizados 11 a infância”12 e que “o batism o in fantil é um tru q u e inventado e instituído pelo ser h u m an o ”.13 S egundo H ubm aier, o batism o é sim plesm ente u m testem u n h o público da conversão e regeneração já leva das a efeito m ediante o Espírito de D eus e só deve ser realizado depois disso, pois de ou tra form a não é genuíno. E por isso que ele e outros anabatistas rejeitavam o term o rebatismo aplicado à prática de batizarem crentes m aduros que já tinham sido “lava dos” na infância. Para eles, essa prática não era um rebatism o, m as o p rim eiro batis m o genuíno. Em bora, em debates com Z uínglio e cm vários tratados q u e escreveu sobre o assunto do batism o, I Iubm aier apresentasse interpretações porm enorizadas de todas as passagens bíblicas pertinentes, sua oposição ao batism o infantil baseavase, em últim a análise, no conceito da iniciação cristã verdadeira. N in g u ém se torna cristão sim plesm ente p or ter nascido em um a família cristã, nem por causa da fé dos pais ou da igreja. E um a criança não é capaz, tam pouco, de ter fé 110 sentido pleno c verdadeiro do arrep en d im ento pessoal e da confissão de confiar som ente em C risto.
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N o ano dc sua m o rte, H u b m a ie r com pôs Um catecismo cristão para os anabatistas e nele expôs as crenças básicas do m o v im en to perseguido, inclusive três tipos de batism o: o batism o n o E spírito, o batism o na água e o batism o n o sangue.14 O batism o no E spírito está em p rim eiro lugar e é “a ilum inação in terio r do nosso coração realizada pelo E spírito Santo m ediante a Palavra viva de D e u s”. O contex to global da teologia de H u b m a ie r deixa claro q u e esse batism o n o E spírito signifi cava a conversão e a regeneração com base no a rrep e n d im en to e na fé. Trata-se do “batism o in te rn o ” que deve ser o prim eiro a acontecer. O batism o na água “é um testem u n h o externo e público do batism o in tern o no E spírito, onde a pessoa testifica ao receber a água e confessa seus pecados diante dc todas as pessoas”. E a cerim ônia pela qual o novo cren te entra em c o m u n h ão com a igreja e se co m p ro m e te a viver para C risto. F inalm ente, o batism o no sangue “é a m ortificação diária da carne até a m o rte ” (a santificação). O segundo batism o — o batism o na água — é a ponte en tre o p rim eiro e o terceiro batism os. N ã o é sacram ento e nem transm ite a dádiva da fé ou da graça. P orém , é necessário p o rq u e C risto o o rd e n o u co m o testem u n h o e com p ro m isso externo, c a igreja precisa dele para saber q u em realm ente pertence e q u em não p ertence à sua co m u n h ão . O p o n to m ais claro da teologia dc H u b m a ie r é a crença fervorosa — m ais pres suposta do q u e explicitam ente declarada — de q u e a vida cristã autêntica com eça por livre escolha do indivíduo, em resposta ao ato gracioso de D eus em Jesu s C ris to. Essa resposta livre e pessoal da vontade não acontece com um a criança. Ela im plica cm crcnça, pesar, confiança e c o m p ro m e tim en to . E m bora as crianças nas çam inocentes do pecado p o rq u e C risto restau ro u a natureza h u m an a caída com sua vida, m o rte c ressurreição, n in g u ém pode dizer q u e se tornarão adultos verda deiram en te crentes. H u b m a ie r com parava o batism o infantil a um b o teq u im que anuncia v inhos excelentes antes da estação de colheita das uvas. E presunção. C e r tam ente, L utero e Z u ín g lio defendiam o batism o infantil sob o arg u m en to de que a fé é um a dádiva de D eus e não um a decisão co n tin g en te e livre. O s conceitos m onergistas da salvação form am pelo m enos parte de seus fu n d am en to s para essa prática. H u b m a ie r acabou re je ita n d o o m o n e rg is m o ag o stin ian o , in clu siv e a predestinação, e ad o tando o sinergism o erasm iano, inclusive o livre-arbítrio. Em seu p rim eiro ensaio, Liberdade da vontade, escreveu: “O ra, o ser h u m a n o pode tam bém se ajudar pelo po d er da Palavra o u pode deliberadam ente rejeitá-la; depende dele. E p o r isso que se diz: “D eus o criou sem a sua ajuda, m as precisa dela para salvá-lo”.13 A defesa do livre-arbítrio feita p o r H u b m a ie r acom panha fielm ente a obra de E rasm o Da liberdade da vontade, porém o refo rm ad o r anabatista atrib u iu o livrearb ítrio h u m an o à atuação de C risto e do E spírito Santo e não a u m a capacidade natural que sobreviveu à queda ao pecado. Para H ubm aier, ao pecar, A dão e Eva
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p erderam o livre-arbítrio e caíram na escravidão d o pecado, c o m p ro m e te n d o com isso toda a posteridade: “Se, pois, D eus, o Pai celestial, não nos tivesse socorrido com um a nova graça especial m ediante Jesu s C risto , seu Filho am ado e nosso Se nhor, estaríam os todos co n denados à cegueira, m orte e perdição e tern a”.16 Porem , a vontade revelada da salvação universal de D eus é clara nas Escrituras: “ele [...] envia a todas as pessoas a sua Palavra e ainda lhes concede o poder, a liberdade e a opção de aceitá-la o u rejeitá-la”.17 H u b m a ie r proclam ava co m o base d o livre-arbítrio aquilo q u e o u tro s teólogos cham am de graça preveniente: a graça resistível de D eus, que cham a, convence e capacita. H u b m aier tam bém alegava q u e a eleição e predestinação divinas se baseiam in teiram en te na presciência de D eus sobre quais indivíduos co rresp o n d erão à graça e de co m o o farão. O p u n h a -se ferren h a m en te à predestinação incondicional — ao m o n erg ism o de A gostinho, L utero, Z u ín g lio e C alvino: “Seria pérfido u m D eus q u e convidasse todas as pessoas para u m jantar, oferecesse sua m isericórdia com a m ais elevada sinceridade, m as não quisesse que com parecessem , Lucas 14.16ss.; M ateus 22.2ss. Seria falso u m D eus q u e dissesse: ‘V enham para ju n to de m im ’, m as q u e pensasse secretam ente em seu coração: ‘Fi q u em aí’”.18 H u b m aier não so m en te foi o p rim eiro teólogo anabatista, co m o tam b ém o pri m eiro sinergista evangélico. Isto é, foi o p rim eiro p ensador p rotestante a d efen d er abertam en te a crença no livre-arbítrio com base na obra de D eu s cm C risto e m ediante o E spírito Santo. O livre-arbítrio, d estru íd o pela queda, é restaurado por C risto e pelo E spírito de D eus q u e opera por m eio da Palavra. E so m en te p o r terem livre-arbítrio q u e as pessoas po d em ser responsabilizadas, com ju stiça, por D eus e pela igreja, p o r suas decisões e ações. Porém , sejam quais forem as suas boas ações, elas não p o d em se jactar, p o rq u e q u alq u er decisão correta q u e fizerem ou boa ação q u e praticarem só acontece pela graça e não pela b ondade inata da natureza ou d o caráter. Essa é basicam ente a m esm a teologia da salvação q u e os rem o n stran tes holandeses — seguidores de Jacó A rm ínio — desenvolveram pos terio rm en te 110 início do século x v i i . I Iubm aier, portan to , foi um “a rm in ian o antes de A rm ín io ”, assim co m o A gostinho foi um “calvinista antes de C alv in o ”. E m b o ra Baltasar H u b m a ie r não fosse fu n d ad o r de q u alq u er igreja específica ou g ru p o de anabatistas, seu legado in fluenciou p ro fu n d am en te todos os anabatistas. N o s dois ou três anos em q u e foi líder d o m o v im en to p rotestante radical, fo rn e ceu -lh es um a base teológica q u e p erm itiu que edificassem sua fé. N a m aior parte, anabatistas influentes posteriores co m o M e n o S im ons desenvolveram essa base de tal m aneira q u e perm an eceram leais aos princípios protestantes básicos sob a pers pectiva radical e com u m tom fo rte m e n te sinergista. Eles enfatizaram a conversão individual e o discipulado co m u m , bem co m o o isolam ento do m u n d o e a liberda de de pensam ento.
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A vida e a carreira do reformador Meno Simons M en o S im ons nasceu em 1496 nos Países Baixos e m o rre u de causas naturais em 1561. Foi u m dos grandes organizadores do anabatism o. U m n ú m e ro significativo de congregações adotou seu n om e e p o r isso são cham adas m enonitas. Provavel m en te, é o g ru p o anabatista m ais n u m ero so existente no m u n d o m o d ern o , em b o ra se dividam em várias denom inações espalhadas p o r toda a E uropa e pelas A m é ricas. O crédito de M en o está na liderança corajosa que exerceu sobre os anabatistas perseguidos no n o rte da E uropa nos últim o s vinte c cinco anos de sua vida. Por causa dc seu papel de organizá-los e ensiná-los, “M en o S im ons foi o líder m ais notável d o ram o anabatista da R eform a radical”.19 Foi ord en ad o ao sacerdócio da Igreja C atólica R om ana em 1524 e serviu com o pároco em sua cidadc natal, onde, co n fo rm e ele m esm o confessou m ais tarde, teve urna vida im oral e era popular en tre os pagodeiros locais. E ntre 1530 c 1535, com eçou a ler as obras de L utero e de Z u ín g lio e con h eceu vários protestantes radicais. Em 1535, Pedro, seu irm ão, to rn o u -se anabatista e foi executado pelas autoridades. Esse evento provocou no jo v em sacerdote um a crise de fé e, depois de p ro fu n d a agonia de espírito, passou p o r um a conversão: M eu coração palpitava. O rei a D eus, com suspiros e lágrimas, para que desse a m im , um pecador arrependido, o dom de sua graça, criasse em m im um coração puro e, graciosam ente, pelos m éritos do sangue carm esim de Cristo, perdoasse m eu com portam ento im puro e m inha vida fácil c frívola, e me outorgasse sabedoria, Espírito, coragem e bravura para que pudesse pregar seu n om e elevado e adorável e sua santa Palavra com pureza e tornar co n h e cida a sua verdade para sua glória.20
A conversão sincera dc M eno, q u e envolveu o a rrep e n d im en to consciente e a confiança em Jesu s C risto , seguida pela p len itu d e d o E spírito Santo, to rn o u -se o paradigm a da teologia da salvação dos anabatistas prim itivos. D epois da experiência dc conversão, M en o com eçou a encontrar-se secretam ente com grupos anabatistas clandestinos e ajudou a fo rm ar congregações perm anentes. Foi tão bem -su ced id o , q u e o Im p erad o r C arlos v em itiu um a o rd em de prisão e ofereceu um a recom pensa p o r sua captura. D e algum a form a, M en o conseguiu fugir e viajou pelo n o rte da E uropa d u ran te vinte e cinco anos, pregando, estabele cendo congregações anabatistas e escrevendo vinte e cinco livros c panfletos de vulto, bem com o n u m erosos serm ões, hinos e cartas. D iferentem ente dc I Iubm aier, M en o não era eru d ito , m as ap ro fu n d o u -se na Bíblia c en sin o u seus seguidores a estu d ar e m em o rizar as Escrituras de tal m aneira que, q u an d o eram presos c in ter rogados, m uitas vezes deixavam os m agistrados e os líderes das igrejas estatais atô nitos com o p ro fu n d o conhecim ento do n t que dem onstravam . O bviam ente, M eno
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era teólogo, em bora não tivesse sido form alm ente treinado na teologia, n em escrito um a teologia sistem ática: “M en o nunca teve tem po suficiente para p ro d u z ir tom os eruditos, n em para desenvolver um a teologia sistem ática. Escreveu, porém , com vigor e perspicácia guiado pela tradição anabatista an terio r e pela tradição cristã mais am pla, mas basicam ente por seu p ró p rio e intenso engajam ento com as Escri turas”.21 E n tre seus escritos m ais conhecidos, en co n tra-se u m in flu en te tratado intitulado O alicerce da doutrina cristã, que M en o escreveu em 1540 e depois revisou em 1558. E m bora não fosse, por definição, um a teologia sistem ática, de fato fo rn e ce u m resu m o das principais crenças anabatistas, tanto para os próprios anabatistas, qu an to para a sociedade não anabatista que não os entendia e os perseguia.
A teologia de Meno Assim co m o no caso de Baltasar 1 Iubm aier e o u tro s líderes anabatistas, a teologia de M en o S im ons con centra-se na experiência da salvação. A dm itia a autoridade absoluta das Escrituras e colocava o n t acim a do a t p o r ter, segundo ele, au to rid a de d o u trin ária su p erio r ao en sin o cristão. T am bém reconhecia as realizações dos reform adores m agisteriais q u e d erru b aram a autoridade da tradição e q u e livraram a igreja de adendos m edievais àquela tradição, com o o purgatório, as indulgências e as orações dirigidas aos santos. A principal preocupação de M en o era q u e os protestantes m agisteriais não tin h am feito u m trabalho com pleto ao descartar as tradições antibíblicas da igreja, sendo q u e o batism o infantil era um a delas. N o en tan to , a principal razão de q u e re r abolir o batism o infantil não era p o rq u e se tratava de u m adendo à prática cristã prim itiva, m as p o rq u e era inconsistente com o m o d o g e n u in am e n te evangélico de e n te n d e r e ex p erim en tar a salvação. Para Sim ons, a salvação gen uína sem pre im plicava no a rrep e n d im en to consciente e na fé e provocava um a conversão radical na vida, que incluía a regeneração (nascer de novo do Espírito de D eus) e term inava na santificação (viver seguindo a C risto no discipulado). C o m o o batism o é u m teste m u n h o da regeneração e u m c o m p ro m isso de discipulado, não pode anteceder à conversão. Segundo M en o , as crianças nascem sem culpa c não precisam da conversão, n em do batism o até atingirem a idade do d iscern im en to m oral, o q u e os batistas posteriores cham aram de idade da responsabilidade. M en o escreveu: “As crianças inocentes, m en o res de idade, o pecado não é im p u tad o pelo am o r de Je su s”.22 A cre ditava que o pecado de Adão havia co rro m p id o a natureza h u m ana, de form a que todos nós estávam os incluídos na queda dele e seríam os responsabilizados p o r isso, não fossem a vida, m o rte e ressurreição de Jesus C risto. M as p o r causa da expiação realizada p or C risto , toda a hu m an id ad e está perdoada esp iritu alm en te p o r D eus. M en o não negava a existência do pecado original, m as en ten d ia q u e Paulo ensinava cm R om anos 5 que a m o rte de C risto retira tem p o rariam en te a culpa d o pecado
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original de todas as pessoas, ate o m o m en to em q u e co m etem pecados de m o d o consciente e deliberado. Acreditava q u e todos os que alcançam a idade da m atu ri dade realm ente pecam dc m o d o responsável e passam a in co rrer tanto na culpa objetiva q u an to em um a consciência de culpa e precisam da conversão pelo arre pen d im en to e pela fé. Achava q u e os reform adores m agisteriais enfatizavam a fé a po n to de negligenciar o a rrep e n d im en to e p o r isso n u n ca se cansou dc escrever que “esse arrep en d im en to , e so m en te esse, ensinam os, a saber, q u e n in g u ém pode nem deve piedosam ente se gloriar na graça dc D eus, no perdão dos pecados, nos m éritos de C risto , a não ser que tenha realm ente se arrep e n d id o ”.23 Para M eno, o batism o infantil (pedobatism o) é “abom inação e idolatria” por que as crianças não po dem escutar o evangelho, co m p re en d er e arrepender-se e po rq u e em n en h u m a parte do n t C risto o rd e n o u o batism o infantil.24 As palavras ditas p or M en o deixam claro q u e ele acreditava q u e batizar crianças inevitavelm en te su b en ten d ia que elas não precisam se arrep en d er e se co nverter po sterio rm en te na vida e essa postura as levará à destruição. A lém disso, o batism o infantil torna im possível saber q u em pertence e q u em não pertence verdadeiram ente à igreja e, visto q u e M en o e todos os anabatistas insistiam q u e a igreja verdadeira consiste so m en te cm crentcs g enuínos que experim entaram a conversão e a regeneração, o batism o é o ato dc te ste m u n h o e de co m prom isso q u e m arca a entrada no corpo de C risto. C o m o as crianças não podem ser crentes, não são plenam ente m em b ro s do corpo de C risto , ainda q u e q u an d o m o rrerem serão salvas e irão ao céu. Em sua d o u trin a da salvação, M en o S im ons negligenciava a forte ênfase que L utero deu à justificação c o m o ju stiç a im putada e nunca afirm ou a d o u trin a, tipi cam ente luterana, de sinitil jiistus et peccator — sim u ltan eam en te ju s to e pecador. Assim com o H u bm aier, M en o tam bém rejeitava a predestinação pelos m esm os m otivos. N e n h u m desses teólogos anabatistas chegou a negar q u e a salvação se dá pela graça m ediante a fé som ente, m as “não aceitavam a d o u trin a forense da ju s ti ficação pela fé so m en te (conform e L utero ensinava) p o rq u e viam nela u m im p ed i m en to para a d o u trin a verdadeira da fé ‘viva’ q u e cu lm in a em vida santa”.25 A palavra-chave éJorense. Isto é, os anabatistas não gostavam da d o u trin a q u e declara va que a ju s tiç a é imputada apenas aos pecadores q u e se arrep en d erem . Q u e riam enfatizar a regeneração, q u e im plica no receb im en to d o E spírito Santo e na união com C risto , de m o d o q u e o pecador nascido dc novo realm ente com eça a se to rn ar ju s to in terio rm en te. M en o argum entava que a fé genuína e sincera sem pre se re verte em vida dc retidão, em b o ra não exista perfeição antes da m orte. M en o talvez ten h a sido parcial cm seus ataques contra a d o u trin a da salvação ensinada p o r L utero, pois a acusava dc ser apenas “fé racional” ou “fé h istórica” q u e ignora o coração e a retidão interior. L utero falava de “dois tipos dc ju stiç a ”. O segundo tipo im plica na transform ação in terio r com C risto, m as é verdade que
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L u tero enfatizava o p rim e iro tipo de ju stiç a , q u e é passiva e im p u tad a, e não co m unicada. E um a “ju stiç a alheia”. N ã o se pode afirm ar q u e M e n o e o u tro s anabatistas aceitavam aju stiça alheia, em b o ra realm ente afirm assem o perdão c o m pleto e p leno dos pecados na ocasião da conversão, caso o arrep e n d im en to fosse verdadeiro e sincero. O s críticos católicos condenavam os anabatistas p o rq u e eles rejeitavam o siste ma p enitenciário e os sacram entos. Assim co m o M eno, os principais anabatistas focalizavam sua atenção na conversão interna e 110 teste m u n h o externo. O s críti cos protestantes m agisteriais condenavam os anabatistas p o rq u e eles rejeitavam o m o n erg ism o (a predestinação), o batism o infantil e a justificação forense. D a m es m a m aneira q ue M eno, os principais anabatistas focalizavam sua atenção m ais na decisão pessoal e 110 viver santo d o q u e 110 receb im en to passivo da salvação. Para os seguidores protestantes m agisteriais de L utero e de Z u ín g lio , M e n o c os o u tro s anabatistas pareciam m ais católicos d o q u e g en u in am e n te p ro testan te s em sua soteriologia. O s anabatistas co m o M en o ficaram claram ente frustrados ao tentar libertar a teologia dos grilhões das categorias tradicionais, co n fo rm e en ten d ia m , e de recu p erar o cristianism o sim ples do n t q u e buscavam . N o en tan to , é preciso ser dito q u e os anabatistas co m o H u b m a ie r e M en o S im ons eram m ais p ro testan tes d o q u e católicos, apesar dos d u ro s ataques de ho m en s co m o L utero, Z u ín g lio e C alvino. N ão pode existir n e n h u m a dúvida q u an to à firm e e inabalável fé 11 a m ise ricórdia e graça to talm en te suficientes de D eus m ediante C risto e n o perdão dos pecados sem a necessidade de sacerdotes, penitencias o u boas obras q u an d o al guém se arrep en d e com sinceridade. D ois aspectos m u ito controvertidos de M en o S im ons devem tam bém ser m e n cionados em q u alq u er exposição sobre sua contribuição teológica. D evido, em gran de m edida, à sua influência, o m o v im e n to anabatista aceitou o pacifism o com o n o rm a para a v id a cristã. I Iu b m a ie r a rg u m e n to u , a n te r io rm e n te , c o n tra os anabatistas m ilitantes q u e os cristãos n u n ca devem usar “a espada” (q u alq u er tipo de coerção) para d issem inar o evangelho 011 ten tar estabelecer o rein o de D eus, co n fo rm e alguns tin h am feito. M as I Iu b m aier e o u tro s líderes anabatistas p rim iti vos não exigiram a co m pleta não-resistência p o r parte dos cristãos. M en o sim . Em Alicerce da doutrina cristã, ele escreveu: “Todos que são m ovidos pelo E spírito de C risto não sabem de n e n h u m a espada senão a Palavra d o S e n h o r”26 e “não en sin a m os nem reconhecem os n e n h u m a o utra espada, n em tu m u lto n o rein o 011 na igreja de C risto, a não ser a espada afiada do E spírito, a Palavra de D e u s”.27 A partir de M eno, os anabatistas passaram a rejeitar to d o e q u alq u er tipo de violência e coer ção, sem deixar de reconhecer o direito e a necessidade do estado secular de em pregálas para p ro teg er os inocentes c castigar os m alfeitores. O s cristãos, po rém , seg u n do eles, não têm n en h u m a perm issão da parte de C risto para se envolver nisso e,
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portan to , nunca devem carregar arm as, participar dc batalhas, sequer para proteger a si m esm os 0 11 outras pessoas. Por essa razão, as igrejas m enonitas e outras igrejas anabatistas são conhecidas com o “igrejas da paz”. M u ito s foram presos p o r se re cusarem a prestar serviço m ilitar c congregações inteiras m igram de u m lugar para o u tro , p ro cu ran d o p or um a nação o n d e possam ter a liberdade de adorar c viver seu cristianism o dissidente e pacifista. O u tr o aspecto c o n tro v e rtid o do en sin o de M e n o S im o n s d izia re sp eito à cristologia. M as n em vale a pena m encionar, p o rq u e não se to rn o u u m a parte acei ta do legado teológico de M e n o pelos anabatistas 0 11 q u alq u er o u tro grupo. E n tre tanto, tan to os católicos q u an to os protestantes m agisteriais citavam a cristologia com freqüência para arg u m e n tar q u e M en o e os m en o n itas eram hereges. Em 1554, M en o escreveu u m tratado intitulado A encarnação de nosso Senhor no qual ten to u apresentar sua p rópria interpretação da pessoa de Jesu s C risto. Sem rejeitar explicitam ente a cristologia calcedônia das duas naturezas (união hipostática), cri ticou os teólogos reform ados de sua época, q u e pareciam interpretá-la su b e n te n d e n d o u m a divisão de Jesu s C risto em duas pessoas de m o d o sem elh a n te ao nestorianism o. R esu m in d o a opinião alternativa de M eno, o h o m em Jesus C risto teve sua origem integral 110 céu e nada de essencial recebeu de M aria senão o in gresso 11 a vida terrestre a partir da existência celeste.28 A lguns críticos consideram a suposta heresia dc M en o eu tiq u ian a 0 11 m onofisista p o r en ten d e rem q u e ele acre ditava 11 a carne (natureza h u m an a) celestial dc C risto e, com isso, in consciente m en te negava a h u m an id ad e autêntica de Jesus. O q u e ele ten to u fazer, 110 entanto, foi d efen d er e p ro teg er a hu m an id ad e de Jesu s e, ao m esm o tem p o , evitar dividi-lo em duas pessoas co m o os nestorianos fizeram . O co n c e ito de M e n o so b re a pessoa de C ris to e a e n c arn a ção não está to ta l m e n te claro e é c a lo ro sa m e n te d eb a tid o . O q u e está claro, p o ré m , é q u e ele negava q u e a h u m a n id a d e de Je s u s p ro v in h a de M aria. N ã o é c e rto q u e negava tod a a v erd ad eira h u m a n id a d e de Je s u s C risto , pois c e rta m e n te afirm ava seu s o frim e n to e m o rte reais. A p a re n te m e n te , acreditâva q u e, se a n a tu re z a h u m a na de Je su s p ro ced esse de M aria, se trata ria d e “c a rn e caída, ad â m ic a” e, assim , Je su s não p o d eria ser o S alvador im pecável d o m u n d o . A n a tu re z a h u m a n a dc Je su s era criação de D e u s Pai n o céu e foi colocada em M aria p elo E sp írito S an to e a p a rtir dele e n tro u 110 m u n d o sem re ceb e r nada su b stan cial dela. E m b o ra essa idéia fosse h etero d o x a cm co m p araçã o com a cristo lo g ia trad ic io n a l, “M e n o não tin h a in ten çã o de neg ar a v erd ad eira h u m a n id a d e de C ris to ”29 e, ao c o n trá rio da m aio ria d os re p re se n ta n te s da cristo lo g ia clássica, p elo m e n o s e n sinava q u e C ris to re a lm e n te so freu co m o o V erbo, o F ilh o de D e u s, c não m e ra m e n te “s e g u n d o sua n a tu re z a h u m a n a ”. Por m ais e stra n h a q u e sua d o u trin a da en carn ação fosse, não era igual a n e n h u m a o u tra heresia c o n h e c id a e não foi
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ad o tad a p o r n e n h u m g ru p o an ab atista c o m o cristo lo g ia oficial. A teologia anabatista pode ser resum ida da seguinte form a: foi um a tentativa dos reform adores protestantes radicais de com pletar a R eform a protestante, resga tando o cristianism o da era apostólica. Era radicalm ente anticonstantinista em seu co nceito da igreja e do relacionam ento com os governantes seculares. Era radical m en te antiagostiniana em seu conceito da salvação e da vida cristã. O s anabatistas enfatizavam a decisão consciente e pessoal d o a rrep e n d im en to c da fé e o viver santo com o discípulos de C risto e repudiavam q u alq u er idéia da salvação com o dádiva concedida p o r via sacram ental. Aplicavam ao batism o a interpretação sim bólica de Z u ín g lio sobre a ceia d o S en h o r e insistiam que, co m o as crianças não po d em se arrep en d er ou crer 110 evangelho, o batism o só pode ser adm inistrado aos q u e se arrep en d erem depois de alcançar a idade da responsabilidade. E claro q u e tan to a visão anabatista da salvação e da igreja q u a n to a visão p ro testan te m agisterial, especialm ente na versão reform ada, influenciaram o evangelicalism o m o d ern o . N ele, as tensões en tre as duas visões ainda perd u ram . As reform as d o século xvi co m p re en d em m ais d o que luteranos, reform ados e anabatistas. A R eform a na Inglaterra teve u m com eço e d esenvolvim ento total m en te diferen te e chegou a in co rp o rar aspectos das teologias católica, luterana e reform ada. A Igreja da Inglaterra q u e em ergiu da R eform a inglesa é, em m uitos sentidos, um a m istu ra das três. A Igreja C atólica R om ana ex p erim en to u sua p ró pria R eform a n o século xvi. As vezes, é cham ada de C o n tra-R efo rm a p o rq u e pelo m en o s os p ro te sta n te s e n te n d e ra m q u e se tratava de u m a reação à sua o b ra reform adora. O p o n to central dessa C o n tra-R efo rm a foi o grande C o n cílio de T rento, q ue se re u n iu 11 a cidade italiana de m esm o n o m e n o perío d o de 1545 a 1563. N ossa narrativa da teologia histórica se voltará, agora, para a história das reform as inglesa e católica.
27 Roma e Cantuária seguem caminhos separados, mas paralelos
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s reform as da Igreja da Inglaterra e da Igreja de R om a foram processos com ple xos q u e abrangeram décadas do século xvi e envolveram num erosas pessoas, m ovi m en to s e eventos. N e n h u m a dessas reform as foi co n d u zid a p o r u m ún ico teólogo o u r e fo rm a d o r ec le siá stic o d e sta c a d o . Elas n ão fo ra m c o n s id e ra d a s m u ito satisfatórias pelos refo rm adores m agisteriais e radicais da A lem anha e da Suíça. A natureza da reform a na Inglaterra foi basicam ente teológica, sen d o q u e as e stru tu ras do governo e da liturgia da igreja, em geral, perm aneceram co m o eram antes de com eçar a reform a. A natureza da reform a da Igreja C atólica R om ana foi basica m ente eclesiástica e im plicou em m udanças na prática, sendo q u e a teologia e liturgia tradicionais da igreja foram consolidadas e até m esm o fortalecidas. O s protestantes ficaram con stern ad o s e estarrecidos com a cham ada C o n tra-R efo rm a da Igreja de R om a e a conseq ü ên cia foi o agravam ento da divisão da cristandade provocada pela corrupção dessa igreja, bem co m o pela R eform a protestante. O s teólogos refo rm a dos de G enebra e dc E strasburgo especialm ente, além de outras partes da Europa, ficaram con stern ad o s com o resultado final da reform a inglesa, pois parecia ter se restringido a u m acordo com o catolicism o. C o m o as refo rm as inglesa e católica, de fato, pouco co n trib u íra m para a história da teologia cristã, tratarem os delas em u m ú n ico capítulo e ressaltarem os as áreas nas quais deram ênfase nova e distinta. E studarem os, tam b ém , particularm ente, os aspectos nos quais concordavam o u discordavam de o u tro s ram os da R eform a do século xvi. A ntes de tratarm os das teologias dessas reform as, no en tan to , verem os seu contexto histórico e seus principais co n to rn o s. N ã o se pode c o m p re en d er a reform a inglesa n em a reform a católica sem co n h ecer as influências e aconteci m en to s políticos e eclesiásticos q u e as form aram .
Contexto histórico da reforma inglesa A refo rm a inglesa co m eçou de m aneira b em diferen te das dem ais reform as protes-
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tantes na Europa. O rei H e n riq u e viu (1491-1547) queria se divorciar da esposa para se casar com o u tra m ulher. Isso era rigorosam ente pro ib id o pela lei canônica católica, p o rém I Ien riq uc, católico devoto e o p o n en te ardente do protestantism o, queria 11111 filho para ser seu sucessor. A esposa só lhe d eu filhas e teve vários abor tos. F inalm ente, H e n riq u e ro m p eu o relacionam ento oficial en tre a Igreja da Ingla terra e a de R om a e n o m eo u prim az de toda a Inglaterra u m teólogo inglês que sim patizava com sua causa. Tom ás C ra n m e r (1489-1556) da U n iv ersid a d e de C am bridge to rn o u -se arcebispo de C antuária em 1533. C ra n m e r legitim ou o di vórcio c novo casam ento de I Ien riq u c e com eçou a refo rm ar cautelosam ente a Inglaterra, d en tro dos lim ites perm itidos p o r H e n riq u e , nos m oldes luteranos. H e n riq u e era d istin tam ente antipático à causa protestante, a despeito de sua grati dão a C ran m er. Em 1534, o rei declarou-se “chefe su p re m o ” da igreja católica in glesa, ten d o com o seu subo rd in ad o o arcebispo de C antuária, e m an d o u q ueim ar 11 a fogueira tanto os católicos rom anos q u an to os protestantes q u e não quisessem reconhecer sua suprem acia. N o reinado de I Ienrique, a teologia da Igreja da Ingla terra p erm aneceu solidam ente católica, porém in d ep en d en te de R om a e do papa. H e n riq u e m o rreu em 1547 e foi sucedido por seu filho, E duardo vi, de nove anos de idade, que viveu so m en te até 1553. D u ra n te esse período, o pro testan tis m o, de vários tipos, floresceu na Inglaterra. O arcebispo C ra n m e r estava 110 centro do dinâm ico m o v im en to protestante e ao seu lado encontravam -se vários teólogos luteranos e reform ados de destaque provenientes da Europa. M artin h o Bucer, por exem plo, veio de E strasburgo a fim de encorajar e o rien ta r a R eform a protestante em franco d esenvolvim ento na Inglaterra. O p ró p rio C ra n m e r m o ro u p o r algum tem p o em N u re m b erg , 11 a A lem anha, e até m esm o se casou secretam ente com a sob rin h a d o refo rm ad o r luterano da cidade, A ndré O siander. Em 1549, C ra n m e r criou u m livro de oração inglês, de inspiração protestante, para ser usado com o m anual de cu lto u n ifo rm izado p o r toda a igreja da Inglaterra. D epois de revisá-lo cm 1552, ch a m o u -o Livro cie oração comum e, em bora tenha passado p o sterio rm en te p o r m uitas revisões, to rn o u -se, desde então, a obra central do pro testan tism o in glês. A Inglaterra recebeu grande influxo de protestantes provenientes da E uropa 110 breve reinado de E d uardo vi. A Igreja da Inglaterra, sob a liderança de C ran m er, estava a cam in h o de se to rn ar protestante, ten d o um m onarca e um arcebispo tra balhando de m ãos dadas. O p eq u en o rei m o rre u re p en tin am en te em 1553 e su ced eu -lh e 110 tro n o a m eiairm ã católica rom ana fanática, M aria, apelidada “a S anguinária” pelas gerações pos teriores. Sob seu reinado de cinco anos, a Inglaterra re to rn o u ao catolicism o ro m a no. C ra n m e r e m ais de trezentos clérigos e teólogos protestantes im portantes fo ram q u eim ad o s na fogueira ou decapitados. Sob to rtu ra c am eaça de m o rte, o arce bispo de C an tu ária e artífice do protestantism o inglês retrato u -se pelas “heresias”
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q u e co m eteu e abraçou, novam ente, a te de R om a. M esm o assim , foi co n d en ad o à m orte e, ao ser q u eim ad o publicam ente cm 21 de m arço de 1556, colocou nas cham as a m ão q u e assinou a retratação em u m gesto indicador de seu cancelam en to. M uitos líderes protestantes fugiram da Inglaterra e foram m o rar em G enebra, Estrasburgo, e em outras cidades p rotestantes n o reinado de te rro r de M aria. Ali, alim entaram -se das fontes teológicas reform adas e resolveram que, se u m dia re conquistassem o p o d er e a influência em sua pátria, sua política e teologia seriam totalm en te calvinistas e reform adas. Maria, a Sanguinária, m orreu em 1558 e sua sucessora foi a m eia-irm ã Elisabete i, que reinou até 1603, q u an d o m o rreu . Era protestante, m as n u tria pouca sim patia pela teologia reform ada e n e n h u m a pelo governo eclesiástico reform ado, q u e na Escócia era cham ad o p resbiterianism o. Elisabete queria a via media para sua igreja inglesa e queria que fosse a única igreja em seus dom ínios. O acordo, conhecido com o Lei de U n ifo rm id ad e Elisabetana, era p erm itir um a teologia m o d era d am en te p ro testan te sob a form a dc governo eclesiástico e liturgia m o d erad am en te cató licas. A form a de governo eclesiástico encabeçado p o r Elisabete e pelos arcebispos da C an tu ária p o r ela n om eados seria episcopal e os bispos se su b m eteriam ao m o narca co m o o governante su p re m o de toda a Igreja da Inglaterra. O Livro de oração comum, revisado, seria im posto para todas as igrejas do reino e todos os sacerdotes afirm ariam a declaração d o u trin ária q u e ficou conhecida com o Os trinta e nove arti gos de religião. A Igreja Anglicana parecia m u ito católica do p o n to de vista dos p ro testantes eu ro p eu s, especialm ente dos teólogos e m inistros reform ados, q u e c o n sideravam a G enebra de C alvino o m o d elo d o q u e a igreja deveria ser. E m co n tra partida, R om a a condenava p o r ser dem asiadam ente protestante, p o rq u e não dava o m en o r espaço para o papado n em para as d o u trin as e práticas tipicam ente católi cas, com o a transubstanciação, o purgatório, as penitências e as obras m eritórias de caridade. A Igreja Anglicana de Elisabete afirm ava, de m o d o inequívoco, a ju stiç a pela graça m ed ian te a fé so m en te, e n q u a n to , ao m esm o tem po, rejeitava os aspec tos m ais radicais do p ro testan tism o refo rm ad o do c o n tin en te eu ro p eu . N o século xvi, a Inglaterra to rn o u -se u m reino separado da Escócia. Foi so m en te no com eço d o século xvii, na ocasião da m o rte de Elisabete, q u e as duas nações se u n iram sob u m ún ico m onarca. A im portância desse fato é q u e o reino da Escócia to rn o u -se a prim eira nação q u e ad o to u co m o religião nacional a versão calvinista e reform ada d o p ro testan tism o sob a liderança do refo rm ad o r João Knox (1514-1572) p o r volta de 1560. Knox, q u e considerava G enebra sob o governo de C alvino e do sucessor deste, T eodoro Beza, “a m ais perfeita escola de C risto desde os dias dos apóstolos”, q ueria q u e toda a Escócia seguisse o m o d elo de G enebra, tanto na teologia q u an to na política. M u ito s m em b ro s da Igreja da Inglaterra no reinado de Elisabete q u eriam q u e a Inglaterra seguisse o exem plo de K nox e da
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Escócia. A lguns q u eriam q u e a igreja fosse tão católica q u an to possível, en q u a n to o u tro s contem plavam m ais o m odelo luterano da A lem anha. Elisabete detestava e tem ia Jo ão Knox, q u e sentia o m esm o por dela. R eferindo-se a ela e à sua prim a, M aria, rainha da Escócia, K nox publicou um panfleto in titu lad o “O p rim eiro to q u e do clarim co ntra o m o n stru o so governo fe m in in o ” e pediu a abolição de toda a m o n arq u ia e o estabelecim ento de um a igreja nacional presbiteriana com teolo gia fo rtem en te calvinista tanto na Escócia q u an to na Inglaterra. N a Inglaterra, foi so m en te o poder de E lisab ete! q u e m anteve a Igreja Anglicana unida, e n q u an to os partidos da Igreja Alta (ritualistas) e da Igreja Baixa (evangelicais) se enfrentavam . A Igreja Alta consistia dos cham ados h o m en s do livro de oração q u e se esforçavam para m an ter a igreja inglesa tão católica q u an to possível 110 go v ern o eclesiástico c 11 a liturgia.1 D efendiam a sucessão apostólica co m o o rd em cor reta do m in istério e argum entavam em favor da autoridade espiritual especial para os sacerdotes da igreja. E m bora afirm assem d o u trin as tipicam ente pro testan tes das E scrituras e da salvação, queriam um a igreja hierárquica com bispos estreitam ente ligados à coroa e um a liturgia form al com base em um livro de cu lto un ifo rm e. O partido evangelical da Igreja Baixa era com posto pelos h erdeiros dos “evangélicos fervorosos” dos tem p o s de C ran m er, cuja m aioria tin h a sido queim ada na fogueira o u exilada para a E u ro pa co ntinental n o reinado de M aria, a Sanguinária. Q u e riam que a Inglaterra seguisse o exem plo da reform a da Escócia liderada p o r Knox. C ada vez mais, pediam a abolição do L ii׳ro de oração comum, dos bispos, d o sacerdócio e da sucessão apostólica, bem co m o do cu lto exageradam ente litúrgico. Por q u ererem purificar a Igreja Anglicana com a rem oção dos elem en to s católicos rem an escen tes, ficaram co n h ecid o s co m o puritanos. O s q u e seguiam a teologia ritualista da Igreja Alta foram cham ados anglicanos. O principal teólogo anglicano d o reinado de Elisabete 1 era R ichard H o o k c r (1554-16()()), q u e foi educado com o reform ado, m as se co n v erteu ao anglicanism o com fortes tendências católicas q u an d o cu rso u a U niversidade de O xford. Em 1584, foi no m ead o m estre d o Tem plo de L ondres pela rainha. Tratava-se de um dos m ais prestigiosos cargos de pregação de todo o reino. H o o k e r foi colega de o u tro m in istro , cham ado W alter Travers (1548-1635), q u e era u m crítico p u ritan o ard en te e franco do anglicanism o e da Lei de U n ifo rm id ad e de Elisabete. H o o k e r ex p unha seu episcopaiism o católico m od erad o pela m anhã e Travers o contradizia à tarde. S egundo um h istoriador do século xx: “D e m anhã, C an tu ária se p ro n u n c i ava e, de tarde, G e n eb ra”.2 M em b ro s destacados da sociedade de Londres escutavam am bos. H o o k e r apre sentava defesas m eticulosam ente arrazoadas d o governo eclesiástico e da liturgia da Igreja Alta e argum entava q u e o p en sam en to católico, em b o ra fosse herético em alguns aspectos, não estava inteiram ente errado. Enfatizava, p o r exem plo, a idéia
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escolástica de q ue a graça segue a natureza h u m ana, em vez de contradizê-la e defendia a crença no livre-arbítrio e n o conceito m o d erad am en te sinergista da sal vação. Até o u so u sugerir que os católicos rom anos, em b o ra estivessem errados em suas crenças, p udessem chegar ao céu afinal. Travers pregava a predestinação, bem com o o fogo e enxofre do in fern o para todos os católicos, declarados o u não, em seus serm ões v espertinos e declarou do p ú lp ito do T em plo q u e o Livro de oração comum, as vestes sacerdotais, as im agens dos santos e toda e q u alq u er o u tra relíquia e vestígio da tradição católica deviam ser abolidos da igreja. Travers e I Iooker representavam dois partidos da Igreja da Inglaterra q u e aca baram p erseguindo u m ao o u tro de tal form a q u e provocou um a guerra civil quase um século mais tarde. Até aos dias de hoje, a Igreja da Inglaterra e a C o m u n h ã o Anglicana (que re ú n e as igrejas d o m u n d o inteiro, e que consideram o arcebispo de C an tu ária líder espiritual) m an têm partidos m oderados da Igreja Alta e da Bai xa. O s extrem istas dos dois lados, com o passar dos anos, estão ab an d o n an d o o anglicanism o e passando para R om a ou para as várias den o m in açõ es reform adas.
Contexto histórico da reforma católica N as décadas de 1520 e de 1530, vários líderes e teólogos católicos rom anos co n v o caram u m novo concílio ecu m ên ico para reagir à grande revolução p rotestante e reform ar a igreja a partir de d f litro. E rasm o de R oterdã, sem dúvida, foi o reform ador católico m ais in flu en te, m as o u tro s que pediram m udanças na igreja foram líderes co m o os cardeais G asparo C o n tarin i (1483-1542) e Jacopo Sadoleto (1447-1547), sendo que estes alm ejavam a unificação e n tre R om a e os luteranos. A m aioria dos líderes católicos ro m an os estava to talm en te revoltada com a degradação da igreja. Q u e riam clérigos cultos, g en u in am e n te celibatários, residentes em suas paróquias e pregadores do evangelho — ao estilo rom ano. Q u e ria m q u e os papas se co n c en trassem nas questões espirituais e deixassem para os governantes seculares as g u er ras c a política e ansiavam pelo dia em q u e os cargos da igreja não fossem m ais com prados e vendidos (sim onia) o u entregues a parentes (nepotism o). F inalm en te, queriam que a igreja declarasse, de m o d o claro e oficial, quais eram suas crenças e as obrigações de u m bo m cristão católico em term o s de d o u trin a e de prática. M uitas crenças católicas típicas q u e os p rotestantes repudiavam n u n ca tin h am sido declaradas dogm as oficiais por R om a. P ortanto, não se sabia exatam ente o q u e os dividia. Em 11 de n o v em b ro de 1544, o papa Paulo in p ro m u lg o u u m decreto de convo cação do xix C o n cílio E cum ênico da igreja, a ser realizado na cidade italiana de Trento no m ês de m arço do ano seguinte. A localidade foi u m acordo e n tre o papa e o im p erad o r C arlos v. T rento era um a cidade insignificante, q u e ficava exatam en te na fronteira en tre os estados papais da Itália e o Sacro Im p ério R om ano. O
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iinp erad o r esperava q ue o concílio ocasionasse a reconciliação dos p rotestantes com os católicos ro m anos e reunificasse a cristandade. Insistiu para q u e rep resen tantes luteranos fossem convidados. O papa queria q u e o concílio definisse nitida m en te as diferenças en tre os protestantes e a Igreja de R om a e deixasse claro que os protestantes eram hereges e q u e a Igreja de R om a representava a única igreja ver dadeira. Tanto o papa q u an to o im p erad o r queriam que o concílio livrasse a igreja de abusos e de corrupção. Vários concílios ecum ênicos já tinham se re u n id o para d irim ir problem as d e n tro da igreja e estabelecer o dogm a católico verdadeiro. N e n h u m dos concílios reform adores anteriores teve m u ito sucesso. O C oncílio de C onstança (1414-1418) é considerado pela Igreja C atólica R om ana o décim o sexto concílio ecum ênico. R esolveu o grande cism a papal ao d ep o r os três papas rivais e eleger M artin h o v co m o ú n ico papa verdadeiro. Seu p rim eiro ato depois do concílio foi ratificar todos os seus atos, exceto o ú ltim o que depôs os dem ais e o declarou papa. R ejei tou o ato conciliar p o rq u e insinuava que um concílio podia d ep o r u m papa. O C oncílio de C onstança seria o triu n fo do m o v im en to conciliar, m as com o M artinho v conseguiu rep u d iar seus atos m ais im portantes, acabou sendo m alsucedido na reform a da igreja. Foi tam bém esse concílio que co n d e n o u à fogueira o reform ador boêm io, Jo ão H u s. O C o n cílio de F lorença re u n iu -se na referida cidade italiana no p e río d o de 1438 a 1445. C o n s id e ra d o p o r R o m a ,o d é c im o s é tim o co n c ílio ecum ênico, conseguiu um a breve reunificação en tre a ortodoxia oriental c a igreja ocidental. O décim o oitavo concílio aconteceu em R om a no perío d o de 1512 a 1517 c é co nhecido na história eclesiástica co m o C o n cílio Laterano (“L aterano” era o n o m e da igreja oficial d o papa em R om a antes de ser construída a C atedral de São Pedro). Sem m u ito sucesso, ten to u livrar a igreja dos tipos de abuso q u e Lutero observou e rep u d io u q u an d o visitou R om a. O m e lh o r q u e se pode dizer a respeito dele é q u e ch am o u a atenção para a necessidade de reform a das estru tu ras c das práticas da igreja. O C o n cílio de T rento foi u m sucesso espetacular em com paração com as três reuniões ecum ênicas anteriores. C entenas de bispos, abades e generais de o rdens especiais d en tro da igreja reu n iram -se, em várias sessões, em u m período de quase vinte anos. O concílio foi in terro m p id o p o r pestes, guerras c p o r controvérsias e n tre os delegados. O papa q u e convocou o concílio m o rre u antes de seu térm in o e ele foi co n clu íd o p o r Pio iv, u m pontífice radicalm ente antiprotestante. Longe de conseguir a reunificação da cristandade, T rento intensificou as divisões. P or o u tro lado, fortaleceu o catolicism o ro m an o e deu ím peto à sua revitalização e ressurgi m ento. O s líderes católicos agora sabiam o q u e to d o bom católico deveria crer e defender. Além de livrar a igreja da corrupção, o concílio criou um c o n ju n to de decretos e u m credo q ue uniform izava o dogm a católico e condenava to d o aquele
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que, assim co m o L u tero e o u tro s protestantes, rejeitasse q u alq u er parte dele. O s anátem as de T rento declararam heréticos L u tero e os dem ais reform adores protes tantes e as condenações n u n ca foram revogadas.3 Sob esse co n tex to da história eclesiástica, fica m ais fácil e n te n d e r o desdobra m en to da história da teologia dos reform adores ingleses e da teologia da C o n traR eform a católica rom ana. Agora voltarem os a atenção apenas para os dois p rin ci pais reform adores ingleses, C ra n m e r e I Iooker, e suas respectivas co n tribuições e para o C o n cílio de T rento n o lado católico. E certo q u e m u ito s líderes e pensadores da igreja influenciaram as reform as, m as, devido às restrições de tem p o e espaço, levarem os em consideração so m en te os m encionados há pouco, já que afinal são os rep resen tan tes m ais im portantes. A lém disso, co n cen trarem o s nossa atenção nas opiniões desses reform adores e de T rento a respeito dos três princípios m ais im po rtan tes que estavam em discussão e disputa na R eform a d o século xvi: sola scriptiira (as E scrituras co m o autoridade final para a fé e prática cristãs), solagratia et ftdes (a salvação pela graça m ed ian te a fé so m en te) e o sacerdócio de todos os cre n tes. M uitas ou tras questões d esem penharam papéis cruciais nas reform as católica e inglesa, m as a exigiiidadc do tem p o e do espaço exigem q u e lim item os essa história ao curso principal e deixem os de lado todas as tangentes e tram as paralelas.
O pai da reforma inglesa: Tomás Cranm er O s reform adores ingleses afirm avam a total suficiência e suprem acia exclusiva da Bíblia para a fé c prática cristãs, sem descartar a tradição. Em últim a análise, a teologia anglicana de R ichard H ooker, co n fo rm e expressa em sua o b ra-p rim a Leis do governo eclesiástico, p reservou m u ito m ais da tradição católica do q u e q u alq u er o u tra form a de teologia protestante. M esm o assim , tanto C ra n m e r q u a n to H o o k e r exigiram q u e todas as crenças e práticas tradicionais m antidas deveriam estar de acordo com a Bíblia. Da m esm a form a, os reform adores ingleses prom overam a d o u trin a p ro testan te da justificação pela graça m ediante a fé so m en te, sem deixar de enfatizar a im portância da santificação e das boas obras. F inalm ente, ensinavam q u e todo cren te em Jesu s C risto pode falar d iretam en te com D eus em oração em seu p ró p rio favor ou em favor do próxim o, sen! a m ediação de clérigos o u santos. Ao m esm o tem po, m an tin h am 110 m ais alto conceito a ordenação e o sacerdócio, inclusive a sucessão apostólica e as características indeléveis transm itidas ao m in is tro pela ordenação apropriada. O terceiro princípio protestante, o sacerdócio de todos os crentes, era o m enos sustentado pelos reform adores ingleses, segundo seus inim igos p u ritan o s. Estes consideravam o Livro de oração comum, a sucessão apostólica e as vestim entas e im petrações de bênçãos sinais nítid o s d o “p ap ism o ” latente em H o o k e r e em sua eclesiologia anglicana. A pesar disso, não há dúvida de que C ra n m e r e H o o k e r e todos os artífices anteriores e posteriores da teologia
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anglicana eram protestantes, ainda q u e o pro testan tism o tivesse u m to m decidida m en te tradicionalista.4 Tomás C ra n m e r é geralm ente considerado o fu n d a d o r do p ro testan tism o in glês. “Se não era teólogo de prim eira categoria, certam en te exerceu influência d e cisiva c d u ra d o u ra.”5 C ra n m e r p ro d u ziu poucos escritos teológicos form ais, m as foi o responsável p o r grande quantidade de “teologia in d ireta” com a sua estratégia de to rn ar a Bíblia acessível a to d o o povo e com sua obra 110 Livro de oração comum. In flu en cio u a teologia da Inglaterra tam bém com a produção dos Artigos de reli gião da Igreja da Inglaterra. Em ju n h o de 1553, 110 ano em q u e foi m artirizado, C ra n m e r escreveu Os quarenta e dois artigos de religião, q u e se tornaram a base para Os trinta e nove artigos de religião posteriores. C o n fo rm e co m en ta certo in térp rete m o d ern o de C ran m er: “Ele d eu à sua igreja um a Bíblia, a pregação bíblica, u m cate cism o, u m livro de oração e u m a confissão de fé. Se ele não tem m u ito a oferecer na área de tratados dogm áticos, no nível teológico estão as reform as pelas quais ele foi o principal responsável”.6 As principais influências teológicas 110 pen sam en to e na ob ra refo rm ad o ra de C ra n m e r eram luteranas e reform adas. E specialm ente im p o rtan te foi sua am izade com M artin h o Bucer, que ten to u , sem sucesso, u n ir os p ro testantes da E u ro p a co n tin en tal e tam bém en c o n trar u m m eio te rm o en tre Z u ín g lio e L utero 110 tocante à presença de C risto na ceia do S enhor. S em dúvida, a esposa luterana de C ra n m e r e seu tio, A ndré O sian d e r de N u rc m b e rg , tam bém influenciaram seu pensam ento. Q u a n to às E scrituras, as ações de C ra n m e r falam m ais alto que as palavras es critas. P ouco depois de ter sido investido por H e n riq u e viu 110 cargo de arcebispo da C antuária, ap resen tou nas igrejas do reino a prim eira Bíblia em inglês cham ada G ran d e Bíblia. E m bora C ra n m e r não fosse o tradutor, tam b ém se to rn o u co n h eci da com o a Bíblia de C ran m er, p o rq u e ele escreveu o prefácio e organizou sua distribuição p or todas as igrejas. N o prefácio, o arcebispo instou todas as pessoas a ler a Bíblia e se referiu a ela com o “a Palavra de D eus, a jó ia m ais preciosa, a relí quia m ais santa q u e p erm anece sobre a terra”.7 Para C ran m er, as E scrituras eram “o p ró p rio alicerce da fé reform ada [p ro te sta n te]” e “tu d o o q u e se acha nas E scri turas Sagradas [...] ‘deve ser considerado terren o seguro e verdade infalível; e tu d o o q u e não pode ser fu n d am en tad o nelas, n o tocante à nossa fé, é invenção dos h o m en s, m utável e incerta’”.8 Todas as “verdades não escritas” (tradições hum anas religiosas que não se en co n tram nas Escrituras) devem ser subm etidas à prova das E scrituras e rejeitadas na m edida em q u e en tre m em conflito com suas declarações e princípios gerais”. P or o u tro lado, de m o d o diferente de m u ito s na tradição reform ada, C ran m er prezava m u ito toda tradição que é com patível com as E scrituras e não raro apelava à autoridade dos pais da igreja em questões nas quais as E scrituras não se m anifestam :
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“Podia ad m itir q u e os p ro n u n c ia m en to s patrísticos eram dispensáveis e q u e po d i am até ser errô n eo s q u an d o não se fundam entavam na Palavra de D eus. M as, por o u tro lado, podia tam b ém su sten tar q u e ‘toda exposição das E scrituras, com a qual a igreja prim itiva, santa e verdadeira concordava, deve necessariam ente ser crida’”.9 C ra n m e r e o u tro s refo rm adores ingleses d o século xvi procuravam descobrir e m an ter o eq u ilíb rio delicado e n tre a autoridade suprem a das E scrituras e o respeito pela tradição cristã prim itiva. Essa é u m a das m arcas da reform a inglesa: respeito pela au to rid ad e subsidiária dos pais da igreja e dos credos dos p rim eiro s séculos do cristianism o, especialm ente nas questões de cerim ô n ia e o rd e m d en tro da igreja. O co m p ro m isso de C ra n m e r com o princípio pro testan te sola gratia e ftdes (a salvação pela graça m ediante a fé so m en te) se revela claram ente em seu serm ão publicado “H o m ilia sobre a salvação” (1547), q u e “p erten ce de m o d o especial à d o u trin a oficial da Igreja da Inglaterra”.10 N ele, o re fo rm ad o r inglês criticou e c o n d en o u a d o u trin a católica ro m an a da ju stiç a atribuída o u infu n d id a p o r m eio da fé, dos sacram entos e das obras m eritórias e afirm o u q u e “nossa justificação se dá gratu itam en te p o r p u ra m isericórdia de D e u s” e não p o r causa de obras p o r nós praticadas, m as som ente pela “fé verdadeira e viva, que por sua vez é do m de D eu s”.11 A d o u trin a da salvação, defendida p o r C ran m er, é quase idêntica à dos reform adores da E uropa con tin en tal, L utero, Z u ín g lio e C alvino. E n tretan to , abriu cam in h o para a teologia anglicana fu tu ra de H o o k e r e de o u tro s teólogos da U n ifo rm id a d e Elisabetana ao enfatizar a santificação co m o vida de santidade e de boas obras que resultam n atural e necessariam ente da “fé verdadeira e viva” da justificação. D ife re n te m en te de L utero, C ra n m e r valorizava g ran d em en te a epístola de T iago e não via conflito e n tre a m ensagem dela e a de P aulo no tocante à salvação: “Pois a fé que p ro d u z (sem arrep en d im en to ) obras m ás o u n e n h u m a obra boa, não é a fé correta, p u ra e viva, m as fé m orta, diabólica, falsa e fingida co n fo rm e São Paulo e São Tiago a ch am am ”.12 F inalm ente, C ra n m e r tinha p o u co a dizer d iretam en te a respeito d o sacerdócio de todos os crentes, m as o afirm ou, de m o d o indireto, co m o nada m enos q u e sola scriptura e sola gratia et ftdes, em b o ra em u m estilo claram ente p rotestante inglês. C ra n m e r e os dem ais reform adores ingleses tom aram o partido de seus colegas na E uropa co n tinental ao rejeitar o conceito católico ro m an o do clericalism o sacerdo tal — a crença n o p o d er espiritual especial que os sacerdotes recebiam no sacra m en to da o rdenação.13 R ejeitaram , sobretudo, a crença católica tradicional de que som ente os sacerdotes são capazes de absolver os pecados e de oferecer C risto de novo n o sacrifício da missa. N o tratado in titu lad o Defesa da doutrina verdadeira e cató lica dos sacramentos, C ra n m e r co n d e n o u o sacerdotalism o da igreja papal e o tratou com o “a p rópria raiz da árvore d o erro q u e ele e seus colegas reform adores conside ravam essencial ex tirp ar”.14 Por o u tro lado, procurava m an ter a term inologia de
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m in istro com o “sacerdote” (priest em inglês), só p o r ser a tradução em inglês do term o “p resb ítero ” n o n t (presbyteros em grego) e dar ao títu lo novo significado. Para ele, o sacerdote era ord en ad o pela igreja para pregar e en sin ar a Palavra de D eus, atender, 110 trabalho pastoral, às necessidades espirituais da congregação e adm in istrar os sacram entos d o batism o e da santa co m u n h ão . A natureza d o ofício de sacerdote na Igreja da Inglaterra não era considerada distintivam ente sacerdotal, m as profética e pastoral. S egundo C ran m er, C risto é o ún ico e verdadeiro sacerdo te que age co m o m ed iador en tre D eus e o crente na intercessão, n o perdão e na concessão da graça. A lguns críticos de C ra n m e r achavam q u e ele dava com u m a m ão e tirava com a outra. Isto é, em b o ra rejeitasse o sacerdotalism o e afirm asse d iretam en te o sacer dócio de todos os crentes, tam b ém m an tin h a a e stru tu ra hierárquica da igreja m e dieval com seu co n stan tinism o. Para C ra n m e r e os anglicanos posteriores, o m o narca da Inglaterra era o governante su p rem o da igreja, em b o ra C risto fosse seu ú nico cabeça. O rei o u a rainha eram reconhecidos com o m inistros seculares de D eus de toda a nação, tanto civil q u an to religiosa, e tin h a o d ireito e o p o d er de n o m ear o principal m in istro , o arcebispo da C antuária. A própria igreja era dirigida pela h ierarquia de bispos, sacerdotes e diáconos sob o p o d er d o m onarca e do arcebispo, e a ordenação gen u ín a tin h a de acontecer de acordo com a o rd e m de sucessão apostólica. Para todos os fins, so m en te os bispos estavam investidos de autoridade para sancionar sacram entos e o rd e n ar e n o m ear clérigos para suas res pectivas paróquias. Essa form a altam ente episcopal de governo eclesiástico foi d e finida e d efendida p o r R ichard H o o k e r em sua obra m agisterial Leis de governo eclesiástico, m as foi inicialm ente m antida (nas tradições católicas rom anas herdadas pela Igreja da Inglaterra) p o r C ranm er. D o p o n to de vista dos protestantes ingleses da ala evangélica e, especialm ente, da puritana, essa o rd em e as cerim ônias m antidas pela Igreja da Inglaterra, relíquias d o catolicism o ro m an o , tin h a m a m arca do sacerdotalism o, em b o ra não fosse declarado q u e os sacerdotes d etin h am poderes espirituais especiais. C ra n m e r d eu form a à d o u trin a dos sacram entos da Igreja da Inglaterra com seu tratado A defesa da doutrina verdadeira e católica dos sacramentos e com o Livro de oração comum e Os trinta e nove artigos de religião. A d iretriz e a base q u e estabeleceu eram co n scien tem en te destinadas a evitar a guerra teológica in tern a sobre os sacram en tos, q u e C ra n m e r tan to deplorava, e n tre os reform adores da E uropa continental. A redação exata das cerim ônias para o batism o e a ceia do S enhor, co n fo rm e C ra n m e r escreveu no Livro de oração comum, e as declarações d o utrinárias q u e incluiu nos Artigos de religião deixam espaço para várias interpretações, m as excluem as d o u tri nas tipicam ente católicas rom anas, bem com o as interpretações e práticas zuinglianas e anabatistas. O s conceitos que C ra n m e r tinha dos dois sacram entos eram mais
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sem elhantes aos de C alvino e de Bucer. Q u a n to ao batism o, afirm ava o batism o infantil e a regeneração batism al, n o caso de a fé estar presente o u ser confirm ada po sterio rm en te, q u an d o a criança batizada se tornasse adulta. D a m esm a form a que os teólogos reform ados, C ra n m e r equiparava o batism o à circuncisão e adm i tia q ue os filhos batizados de pais cristãos são salvos. T am bém em h arm o n ia com a teologia reform ada, defendia a presença espiritual real de C risto 110 sacram ento da santa co m u n h ão , q u an d o existia fé nos corações e m entes dos participantes.
O artífice do anglicanismo: Richard Hooker E m bora Tom ás C ra n m e r fosse o verdadeiro fu n d ad o r histórico do p rotestantism o inglês, o artífice teológico d o anglicanism o — q u e é o n o m e q u e se pode dar à igreja inglesa m ad u ra da U n ifo rm id ad e Elisabetana — foi R ichard H ooker. Foi H o o k e r q u em re to m o u e desenvolveu os elem entos do pen sam en to de C ra n m e r favoráveis à tradição da Igreja Alta, inclusive a liturgia form al e o governo eclesiás tico hierárquico. C o m b in o u esses elem entos, ainda, com um a visão m o d erad a m en te escolástica da n atureza e da graça, além da teologia natural e da ênfase ao livre-arbítrio e à participação h u m an a 110 processo da salvação (sinergism o). Sc a visão q ue C ra n m e r tinha do p ro testan tism o inglês fosse interpretada e im posta pela ala p u ritan a (a Igreja Baixa) da Igreja da Inglaterra, co m o W alter Travers e T h o m as C artw rig h t (1535-1603), talvez esse ram o do p ro testan tism o n u n ca se tornaria anglicano e seria b em diferente. P orém , isso não aconteceria. Elisabete 1 favorecia abertam en te clérigos co m o R ichard H ooker, q u e tendiam fo rtem en te para o tradicionalism o católico sem cair na d o u trin a e prática católicas m edievais contrárias às m otivações básicas da R eform a p rotestante européia. G raças a seus serm ões falados e escritos e especialm ente à sua obra de m u ito s to m o s Leis do governo eclesiástico, H o o k e r to rn o u -se “o m aior expoente em teologia da U n ifo rm i d ad e E lis a b e ta n a ”. 13 E ssa u n ifo rm id a d e e a te o lo g ia d e H o o k e r c ria ra m a sem ip ro testan te e sem icatólica teologia e Igreja A nglicana tão desprezadas e rejei tadas pelos p u ritan o s, presbiterianos e vários o u tro s protestantes dissidentes da G rã-B retan h a q u e tin h am em G enebra sua inspiração. Sem dúvida, em geral, H o o k e r concordava de to d o o coração com C ra n m e r e com os reform adores m agisteriais a respeito dos dois p rim eiro s princípios p ro tes tantes: sola scriptitra e sola gratia et ftdes. A plicou a eles, p o rém , seu p ró p rio toque distintivo. Além disso, negligenciou de tal m aneira o terceiro princípio protestante do sacerdócio de todos os crentes, q u e seus inim igos p u ritan o s o consideravam um católico n ão assum ido. N o q ue diz respeito ao p rincípio das Escrituras, H o o k e r m anteve a d o u trin a oficial da Igreja da Inglaterra co n fo rm e é expressa nos Trinta e nove artigos de religião. O artigo vi dessa confissão d o u trin ária oficial da Igreja da Inglaterra afirm a a su p rem a suficiência e autoridade das Sagradas E scrituras para a
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fé e prática cristãs. C o n tu d o , sem negar a posição especial da Bíblia com o fonte e n o rm a para a teologia e vida cristãs, H o o k e r reconhecia autoridades m últiplas, divididas em graus de im portância q u e incluíam D eus, a Bíblia, as leis nacionais e a consciência individual. S em pre pensava em term os de graus e graduações para tu d o , inclusive para as autoridades e rejeitava o q u e considerava tendência a pensar tu d o em term o s de “p re to ou b ran co ”, “u m o u o u tro ” p o r parte dos puritanos, que apelavam apenas às Escrituras e não raro rejeitavam todas as au to rid ad es.16 H o o k er não hesitava em apelar a Platão, aos pais da igreja prim itiva, aos credos da igreja, às declarações dos m onarcas, dos filósofos e dos ju ristas nas áreas sobre as quais as Escrituras silenciam o u são am bíguas. Buscava u m a abordagem am pla e razoável para a autoridade que evitava o q u e considerava extrem os do racionalism o e do dogm atism o conservador. O que m ais desagradou os puritanos, talvez, tenha sido o em prego p o r H o o k er da teologia natural escolástica m edieval. A m aioria dos reform adores europeus, inclusive L utero, Z u ín g lio e C alvino, tin h a incluído o escolasticism o com o parte integrante da teologia católica por eles rejeitada. H ooker, n o en tan to , acreditava em u m esquem a do tipo tom ista, 110 qual a graça (o âm bito sobrenatural) cu m p re a natureza em vez de contradizê-la. Lionel T h o rn to n , ad m irador e com entarista de H o o k e r 110 século xx, resu m e o p en sam ento do teólogo anglicano da seguinte m a neira: “O h o m em [para H o o k er] encabeça a o rd em natural c o q u e lhe confere essa posição única é a posse da liberdade m oral. Ele possui a luz natural da razão pela qual pode reco n h ecer o bem , e o livre-arbítrio pelo qual pode optar pelo bem e se identificar com ele”.17 Em outras palavras, segundo H ooker, a natureza h u m a na não é prejudicada pela queda e pelo pecado original a p o n to de não p o d er alcan çar a graça e co operar com ela, com a ajuda da própria graça. A razão e o livrearbítrio, na m elh o r das hipóteses, são preparativos para o verdadeiro co n h e cim en to de D eus e da salvação e, q u an d o a revelação divina e a graça salvífica aparecem , a natureza h u m an a é enlevada para a participação da vida de D eus, m as não é recri ada. Isso significa q u e a m en te h u m an a natural, m esm o sem a ajuda da revelação especial, pode enxergar algo de D eus e de sua graça, pois “toda a o rd e m da natureza é u m espelho no qual se pode ver e co nhecer a D e u s”.'8 O s op o n en tes reform ados de H o o k e r consideravam q u e esse esquem a m etafísico e epistem ológico inteiro era an tip ro testan te e a volta aos alicerces católicos m edievais. H o o k er concordava sem restrições com o princípio protestante da justificação pela graça m ediante a fé som ente. Em seu tratado Uin discurso erudito a respeito da justificação, o artífice da teologia anglicana identificou dois tipos de ju stiça de form a m u ito sem elhante a L utero, co m pletam ente contrária ao ensino católico ro m an o oficial c o n fo rm e d eclarad o pelo C o n c ílio de T ren to . Para H o o k e r, a “ju s tiç a ju stifican te” não é in erente à alm a, nem é infundida nela com o acontece com a
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“ju stiça santificante”.19 A justiça justificante é sem pre im putada som ente por D eus por sua livre m isericórdia c graça por causa da m orte de C risto e da nossa fé. A justiça santificante não é a causa m eritória do relacionam ento certo com D eus (com o no pensam ento católico), em bora haja um a ligação insolúvel entre am bos. Em tudo isso, H o o k er concordava totalm ente com Lutero e C ran m er e com Os trinta e nove artigos de religião, cujo artigo XI afirm a claram ente a justificação pela graça m ediante a fé som ente. Assim com o no caso da doutrina das Escrituras defendida p o r H ooker, no entanto, seus o ponentes calvinistas na Igreja da Inglaterra ficaram insatisfeitos com sua d o u trin a da salvação, porque H ooker acreditava que os católicos rom anos que negassem , p o r ignorância, a justificação pela graça m ediante a fé som ente, podi am ser salvos e tam bém acreditava que as pessoas participam da própria salvação, aceitando livrem ente a graça de D eus. E m bora I Iooker falasse de eleição e até m es m o de predestinação, parecia, afinal, baseá-las m ais na presciência de D eus do q ue na predestinação divina eterna. Talvez o aspecto m ais p ertu rb ad o r da soteriologia de H ooker, do p o n to de vista dos p ro testantes evangélicos da Igreja da Inglaterra, tenha sido seu apoio à idéia católica e o rtodoxa da salvação co m o deificação.20 E m bora ensinasse a d o u trin a pro testan te da salvação inicial co m o um a declaração definitiva do perdão e da ju s tiça im p u tad a (justificação forense), H o o k e r tam bém descrevia a salvação co m o o processo pelo qual a n atureza h u m an a gradualm ente com eça a participar da n a tu reza divina pelos sacram entos. E m b o ra rejeitasse a idéia católica clássica de q u e os sacram entos do batism o e da eucaristia, o u santa co m u n h ão , in fu n d e m a graça ex opere operato, H o o k e r aceitava a crença ortodoxa e católica clássica de q u e os sacra m en to s u n em a pessoa a D eus e a to rn am g en u in am en te santa e im ortal. Ele acres cen to u apenas que é necessária a presença da fé para isso acontecer e q u e o proces so se com pleta no céu, e não na terra. A ssim , H o o k e r su sten to u o conceito p ro tes tante da justificação aliado ao conceito católico e o rtodoxo clássico e o resultado foi que m u ito s críticos protestantes ingleses o acusaram de se acom odar ao catolicis m o ro m an o e de d ilu ir o princípio da R eform a: simul justus et peccator (sim ultanea m en te ju s to e pecador). H o o k e r d em o n strava apoiar o p rin cíp io d o sacerdócio de todos os crentes, m as de fato defendia, tan to q u a n to podia, o clericalism o da tradição anglicana em d e sen volvim ento. E claro q u e não negava q u e to d o cren te verd ad eiro e batizado pode chegar d iretam en te a D eu s para p ed ir perdão e ajuda, n em afirm ava q u al q u e r necessidade de u m sacerdócio especial para absolver os pecados o u realizar sacrifícios, co m o acontece na d o u trin a católica da m issa. E n treta n to , pelo m enos aos olhos dos críticos da Igreja da Inglaterra, a d o u trin a do m in istério segundo H o o k e r estava perig o sam ente próxim a do sacerdotalism o católico, pois H o o k e r aceitava e d efen d ia “a d o u trin a católica d o governo eclesiástico p o r bispos que
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possuíam autoridade apostólica recebida pela sucessão visível”.21 O partido da Igreja Baixa achava q u e esse conceito hierárquico e católico de governo eclesiástico, in e vitavelm ente, levaria de volta ao abraço sufocante de R om a. R eagindo co n tra a ênfase anglicana à autoridade dos bispos, os puritanos pediam , cada vez m ais, a abolição do ofício de bispo da igreja. I lo o k e r d efen d eu , fortaleceu o ofício c foi ainda mais longe. T endo p o r base o apoio q u e C ra n m e r dera an terio rm en te ao m onarca com o governante su p re m o da igreja nacional da Inglaterra, H o o k e r ap ro xim o u as o rd en s civil e religiosa o m áxim o possível nas Leis do governo eclesiástico en ten d e n d o que “a igreja e o estado são um a só sociedade com dois aspectos”.22 N essa única sociedade com duas autoridades, H o o k e r atribuía a p reem in ên cia ao soberano (m onarca), de m o d o q u e Elisabcte i desem penhava o m esm o papel na Inglaterra q u e C o n sta n tin o M agno o u C arlos M agno desem penhavam nas igrejas patrística e m edieval, respectivam ente. O s conceitos de I Iooker sobre o governo eclesiástico não negavam ab ertam en te o sacerdócio universal dos crentes, m as certam ente o subvertiam . A tendência inevitável era os cristãos leigos confiarem nas autoridades espirituais im postas so bre eles, com o se fossem m ediadores da graça, seg u n d o o sistem a sacram ental anglicano de H ooker. In térp rete e defensor m o d ern o de H ooker, T h o rn to n reco nhece q u e o teólogo anglicano era tanto católico q u an to p rotestante e q u e H o o k e r seguiu cada vez m ais na direção católica no decurso da sua carreira. Isso é especial m en te v erdadeiro em relação à eclesiologia, a d o u trin a da igreja.23 A pesar disso, H o o k er n em sequer sonhava com a idéia de reunificar a Igreja da Inglaterra e Rojua. Suas Leis do governo eclesiástico estavam sendo elaboradas em resposta a dois extre m os q ue considerava destrutivos: o p u ritan ism o e o tradicionalism o católico ro m ano. Q u e ria ser o artífice de um a via m edia, um m e io -te rm o q u e fosse fiel à recuperação p ro testan te básica da d o u trin a do n t e, tam bém , ao q u e havia de m e lh o r na tradição ortodoxa e católica. O m eio -term o não co n ten to u n e n h u m de seus grupos o p o n en tes, m as realm ente estabeleceu um a igreja p erm an en te e forte para os d o m ín io s ingleses. Seria ex trem am en te im p ró p rio deixar para trás o estu d o do anglicanism o sem tratar, pelo m enos, de dois grandes m o n u m e n to s escritos característicos: o Livro de oração conniin c Trinta e nove artigos de religião. Essas duas obras já receberam algum a atenção nesta história da reform a inglesa, m as sua im portância ainda não foi devi dam en te ressaltada. O Livro de oração comum foi preparado p o r C ra n m e r em 1549 e desde então passou p o r m uitas revisões. Até certo p o n to , cada agrem iação a u tô n o m a e nacional da C o m u n h ã o A nglicana, co m o a Igreja Episcopal nos Estados U n i dos (que se separou da Igreja da Inglaterra na G u e rra da In d ep en d ên cia n o rteam ericana), tem seu p ró p rio Livro de oração comum, m as todos apresentam m uita coisa em co m u m . Esse Livro de oração comum ( l o c :, co m o será cham ado de agora em
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diante) tinha o p ro p ó sito de su b stitu ir e sim plificar a liturgia ex tre m am en te c o m plexa da Igreja C atólica R om ana na Inglaterra, além de dar ao povo inglês um a liturgia unifo rm izad a e u m c o n ju n to de devoções e cerim ônias no vernáculo. Ele d eterm in a os textos dos serm ões para todos os d o m ingos d o ano, bem co m o leitu ras, litanias, m o d elo s para cultos especiais e sacram entos. C o n té m , ainda, orações de uso coletivo e individual. O p ropósito do LOC é unificar a igreja e evitar o in d i vidualism o religioso. O s anglicanos de to d o o m u n d o con co rd am q u e D eu s é glo rificado no cu lto coletivo u n ifo rm e e belo e q u e não n o culto e devoção q u e sejam m eras invenções do m o m en to , sem n e n h u m a relação com a grande tradição do cristianism o. N a tu ralm en te, os p u ritan o s de todos os tipos consideravam o l o c sufocante, d em asiadam ente católico e se ressentiam de ser im posto p o r lei. Acabou se to rn an d o o p o n to crítico para rebeliões abertas, à m edida q u e cada vez m ais congregações p uritanas inglesas se recusavam a usá-lo. Trinta e nove artigos de religião re p resen ta m a confissão d o u trin á ria oficial do anglicanism o m u n d ial. Assim co m o 110 caso do l o c , vários organism os nacionais dessa c o m u n h ão p o d em fazer algum a m odificação, m as ele ainda é para todos u m padrão d o u trin ário unificante. A lguns artigos já foram m encionados, especialm en te os q u e afirm am a au toridade suprem a das E scrituras e a salvação pela graça m e diante a fé som en te. O p rim eiro artigo trata da fé na santíssim a T rindade e o segun do afirm a as duas naturezas de C risto. O artigo viu atribui autoridade especial aos credos Apostólico, Niceno e Atanasiano (a revisão am ericana o m ite o ú ltim o ). O arti go xvii, “D a predestinação e eleição”, evita a dupla predestinação e deixa em aberto a p o ssibilidade de basear a p red estin ação na presciência (co m o fazem m u ito s anglicanos e episcopais). O artigo x x ii co n d en a a crença n o p urgatório e artigos posteriores tratam da crença correta a respeito dos sacram entos. O ú ltim o artigo perm ite q u e os cristãos “p restem ju ra m e n to q u an d o o m agistrado assim re q u e r”, em bora, de m o d o geral. C risto proibia o uso de “ju ra m e n to s vãos e precipitados”.24 C o m o n o caso de alguns o u tro s, o ú ltim o artigo é reação aos anabatistas, q u e se recusavam a prestar ju ra m e n to até m esm o 110 tribunal. O to m dos Trinta e nove artigos é indiscutivelm ente protestante, em b o ra os p u ri tanos considerassem algum as partes m u ito católicas. E n tretan to , alguns aspectos do governo e da teologia da Igreja da Inglaterra, inclusive o l o c , são ligeira ou claram ente católicos, em bora anglicanos co m o I Iookcr o negassem . O historiador eclesiástico J u s to G onzález resu m e m u ito bem a situação: A U niform idade Elisabctana pode, pois, ser considerada uma tentativa de en contrar um m eio-term o para o catolicism o rom ano e o m od elo que a Refor ma protestante estava usando na Europa C ontinental. Portanto, teve de lutar contra seus elem en tos mais radicais — e essa luta acabou se transformando
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em revoluções políticas. Mas, a lon go prazo, o m eio-term o anglicano sobre viveria com o o m od elo mais característico do cristianism o na Inglaterra, en quanto os outros, que variavam do catolicism o rom ano ao protestantism o extrem o, continuariam existindo lado a lado com ele.25
A jóia da reforma católica: o Concílio de Trento A peça central da reform a católica foi o grande C o n cílio de T rento. C o m o descreve u m cardeal da igreja: “N e n h u m concílio na história da igreja resp o n d eu a tantas perguntas, resolveu tantas questões de doutrina o u p rom ulgou tantas leis”.26 Q u a n d o o concílio finalm ente chegou ao fim em 4 de d ezem b ro de 1563, seus n u m ero so s decretos foram assinados solen em en te p o r q u atro legados papais, três patriarcas, vinte e cinco arcebispos, cento e sessenta e nove bispos, sete abades, sete generais de o rd en s católicas, dez p ro curadores episcopais e pelos em baixadores de todas as potências católicas da Europa. O papa Pio iv, confinado ao leito da enferm idade, resp o n d eu à notícia da conclusão d o concílio da seguinte form a: “T udo foi feito pela inspiração de D e u s”.27 C e rto tradicionalista católico m o d e rn o conclui que: N as principais diferenças entre a tradição católica e a doutrina herética, o C on cílio fala e determ ina de m od o resoluto o que se deve crer. Seu feito é de vital importância e garante à igreja a estabilidade de seus alicerces, coloca a verdade revelada acima da arena do debate e estabelece regras que ninguém poderia rejeitar então, sem com isso cair em heresia.28
Para os católicos ro m anos, T rento foi u m a realização m agnífica q u e d efiniu o dogm a e u nificou a igreja contra as heresias de m uitas seitas protestantes. Para os protestantes de todos os tipos, foi u m jo g o reacionário de poder, q u e en d u receu as categorias católicas e c o n d e n o u co m o heresia ex atam en te o evangelho q u e os reform adores estavam ten tan d o recuperar. O C on cílio de T rento p ro m u lg o u m u ito s decretos e cânones d o u trin ário s — afirm ações de crença oficial (dogm as) e condenações de q u em as nega. L utero e seus seguidores foram citados especificam ente com o heresiarcas e suas crenças fo ram anatem atizadas (condenadas). Q u al é o valor ju ríd ic o desses decretos e cânones para os católicos ro m anos depois de T rento? O estudioso do catolicism o oficial, D aniel-R ops, explica: “N o plano dogm ático, as decisões do C o n cílio são obrigató rias para todos os católicos; rejeitá-las é heresia. N o cam po da disciplina, p o r o u tro lado, q u em as contesta o u se recusa a obedecê-las é estouvado e rebelde, ou até cism ático, m as n em p o r isso se coloca fora da Igreja”.29 E m outras palavras, T rento defin iu com autoridade d eterm in an te o que os católicos devem crer. R ejeitar q ual q u er de seus decretos o u cânones im plica em heresia. E m b o ra m u ito s católicos
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ro m an o s m o d ern o s q u estio n em e critiq u em alguns decretos e cânones de T rento, precisam ser m u ito cuidadosos e cautelosos para não serem in terp retad o s com o q u em os rejeita. E specialm ente para os teólogos e sacerdotes católicos, essa rejei ção pode servir de fu n d a m e n to para repreensão o u até m esm o excom unhão. C o m o o C o n cílio de T rento lidou com m uitas questões de fé e prática, lim itarei m inhas considerações às principais decisões relacionadas aos três princípios p ro testantes m ais im p ortantes. U m a das prim eiras questões debatidas e resolvidas pelo concílio foi a autoridade das E scrituras e da tradição. E m bora a Igreja C atólica R om ana n u n ca tivesse declarado oficialm ente o peso da autoridade da tradição ein relação às Escrituras, respeitava a tradição oral da m esm a form a que a Bíblia. Q u a n d o desafiada pelos protestantes a com provar a verdade de ensinos e práticas extrabíblicas, com o as orações em favor dos m o rto s e a transubstanciação, R om a sem pre apelou para a tradição oral transm itida pelos apóstolos aos seus sucessores, os bispos. O s protestantes rejeitaram a tradição não escrita por e n ten d e rem q u e carecia da au to ridade necessária e su stentaram q u e so m en te as crenças e práticas ensinadas espe cificam ente pela própria Bíblia podiam ser exigidas dos cristãos. T rento respondeu ao desafio p ro testan te declarando q u e a d o u trin a e prática cristãs têm duas fontes de autoridade, assim co m o a própria revelação vem em duas form as: O con cílio segue o exem plo dos pais ortodoxos e com o m esm o senso de devoção e reverência com que aceita e venera todos os livros do A ntigo e do N o v o Testam ento, pois um só D eu s é o autor de am bos, e tam bém aceita e venera as tradições que dizem respeito à fé e à moralidade, por considerar que foram oralm ente recebidas de C risto ou inspiradas pelo Espírito Santo e preservadas continuam ente na Igreja C atólica.30
T rento não so m en te afirm ou a autoridade das tradições extrabíblicas, co m o tam bém anatem atizou, o u condenou, qualquer pessoa que consciente e deliberadam ente as rejeitasse ou ultrajasse. Além disso, o concílio identificou a Vulgata Latina com o a edição autêntica da Bíblia (in clu in d o os cham ados livros apócrifos) e designou a igreja-m ãe (R om a) co m o ju íz a inapelável d o significado das Escrituras. Assim co m o n o caso do decreto sobre as E scrituras e a tradição, T rento resp o n d eu ao p ro testan tism o “batizan d o ” com o dogm a a d o u trin a padronizada católica rom ana da justificação. A sexta sessão do concílio, que d u ro u quase u m ano (15461547), p ro d u z iu , depois de prolongado debate, o decreto sobre a justificação, q u e a d efin iu com o “a passagem d o estado em q u e o h o m em nasceu do p rim eiro Adão ao estado de graça e adoção co m o filhos de D eus [...] pelo seg u n d o Adão, Jesu s C risto nosso Salvador. D epois da prom ulgação d o evangelho, essa transform ação não pode o co rrer sem a água da regeneração [o batism o] ou o desejo p o r ela”.31
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Além disso, o concílio d ecretou q u e “a justificação não é so m en te a rem issão dos pecados, m as a santificação e renovação do h o m em in terio r pela aceitação v o lu n tá ria da graça e dos d ons pelos quais o h o m em se torna ju sto , em vez de ím pio, e am igo, em vez de inim igo, para q u e seja herd eiro na esperança de vida e tern a”.32 D essa m aneira, T rento identificou ajustificação com a santificação e as trato u co m o os dois lados da m esm a m oeda da salvação. O decreto tam bém tratou a justificação com o infusão de fé, esperança e caridade (am or) pela presença do E spírito Santo n o batism o e rejeitou a idéia de q u e as pessoas salvas são apenas “consideradas ju stas [retas]”. D e acordo com o decreto sobre a justificação, as pessoas que são salvas to m am a ju stiç a (retidão) para si com o se fosse sua, “co n fo rm e a disposição e cooperação de cada u m a ”.33 N a prática, p o rtan to , o concílio re p u d io u a ju stiç a forense ou alheia, bem co m o o m onergism o. O s protestantes in terp retaram essa decisão com o um a declaração de q u e os cristãos só são justificados q u an d o são santificados e, co m o a santificação dep en d e da cooperação com a graça de D eus, a p rópria justificação teria de ser obra do ser h u m an o . N o en tan to , cm n e n h u m m o m en to , T rento declarou tal coisa tão abertam ente. D epois d o d ecreto sobre a justificação, o C o n cílio de T rento p ro n u n c io u trinta e três cânones sobre a justificação q u e equivalem a condenações (anátem as) de opiniões contrárias. O cânon rx declara: Se alguém disser que o pecador é justificado pela fé som en te, no sentido dc nenhum a outra cooperação ser exigida para se obter a graça da justificação, e que não é necessário, de m odo algum, que ele esteja preparado e disposto pela ação dc sua vontade, seja anátema.34
O cânon xi declara: Se alguém disser que os h om ens são justificados som en te pela im putação da justiça [retidão] dc C risto ou som ente pela rem issão dos pecados, sem a graça e a caridade [amor] vertida cm seu coração pelo Espírito Santo e se torna inerente a ele, ou m esm o que a graça que nos justifica é som en te a boa v on tade dc D eu s, seja anátema.35
Para os protestantes, o m aior ultraje contra o evangelho (conform e o e n te n d i am ) foi p ro ferid o no cânon x x x ji : Se alguém disser que as boas obras de um h om em justificado são dádivas de D eu s, a tal ponto dc não serem tam bém os bons m éritos d o próprio h om em justificado, ou que, pelas boas obras que realiza pela graça de D eu s e pelos m éritos de Jesus C risto, [...] o h om em justificado não m erece verdadeira-
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m ente um aum ento da graça, da vida eterna e, na condição dc morrer em estado de graça, alcançar a vida eterna e nem m erece um p ouco mais de gló ria, seja anátema.36
O s protestantes e n ten d e ram isso co m o prova concreta d e q u e a Igreja C atólica R om ana adotava a ju stiç a pelas obras. O resultado final do decreto e dos cânones de T rento a respeito da justificação foi a rejeição da soteriologia p rotestante e a alienação dos próprios protestantes. E m bora usasse linguagem cautelosa com nuanças cuidadosas, T rento negou n iti d am en te a salvação pela graça m ediante a fé so m en te e tran sfo rm o u a justificação em processo q u e envolvia a cooperação da vontade h u m an a e as boas obras m eritó rias. N a tu ralm en te, T rento tam bém afirm ou a prioridade da graça acim a de tudo. Sem a graça p rev en ien te de D eus para capacitar o ser h u m an o , n in g u ém seria ca paz de realizar obras v erdadeiram ente boas. M as a retidão outorgada pela ju stific a ção não é pura dádiva. A capacidade de m erecê-la e possuí-la pode ser dádiva, m as a retidão em si é p arcialm ente m erecida. O s pro testan tes ficaram h o rro rizad o s diante dessa declaração, assim co m o os católicos ficaram diante da ju stiç a forense dos protestantes, q u e parecia ser “ficção ju ríd ic a ”. A rejeição total de T rento ao sacerdócio de todos os crentes é patente. N o d e creto sobre as “santas o rd e n s” (a ordenação), o concílio declarou: N o sacram ento das ordens [ordenação], assim com o no batism o e na confir m ação, fica marcado um caráter que nem pode ser apagado nem tirado. Por tanto, este con cílio santo condena, com razão, a opinião dos que dizem que o poder dos sacerdotes, segundo o NT, é m eram ente tem porário e que, uma vez devidam ente ordenados, podem voltar a ser leigos, se não exercerem o m i nistério da palavra de D eus. M as se alguém disser que todos os cristãos, sem exceção, são sacerdotes, segundo o
n t , ou
que estão dotados de igual
poder espiritual, está claro que subverte a hierarquia eclesiástica.37
O concílio reafirm ou a hierarquia tradicional da igreja, inclusive o papa, os bispos, sacerdotes e diáconos, e co n d e n o u todo aquele q u e a rejeita. O C o n cílio de T ren to p ro d u z iu decretos q u e afirm avam o en sin o tradicional de R om a a respeito d o pu rgatório, da transubstanciação e das indulgências. Em seus decretos e cânones disciplinares, corrigiu abusos e corrupção, inclusive a venda de indulgências p or d in h eiro . C o n fo rm e já foi notado, o resultado de T rento para a cristandade foi u m m aior fortalecim ento da posição da Igreja de R om a e u m a divi são m ais acentuada e n tre ela e todos os protestantes que, para todos os efeitos, foram co n d enados co m o hereges em seus cânones. S om ente n o C o n cílio Vaticano ii (1963-1965), co n h ecid o co m o o vigésim o p rim eiro concílio ecu m ên ico , é que
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R oina con ced eu aos p rotestantes a condição m ais favorável de “irm ãos separados". N a tu ralm en te, devem os nos lem brar de que, m u ito tem p o antes de T rento ter anatem atizado os protestantes, os principais reform adores protestantes c m uitos dos seus seguidores referiam -se n o rm alm en te ao papa co m o o anticristo e consig navam ao in fern o to d o o seu rebanho. E m resposta ao C o n cílio de T rento e seus prováveis dècretos e cânones, as co m u n h õ es protestantes m agisteriais da E uropa com eçaram a p ro m u lg ar suas p ró prias confissões dou trinárias form ais. L utero escreveu os Artigos de Smalcald em 1537, para resu m ir de form a clara e sucinta sua versão da d o u trin a cristã para o novo concílio que estava em perspectiva. P ouco depois do en c erram en to de T rento, líderes luteranos criaram a Fórmula de concórdia (1577), q u e é a declaração p o rm e norizada da d o u trin a luterana oficial. Perto do fim do C o n cílio de T rento, cristãos holandeses reform ados escreveram a Confissão belga (1561) e as igrejas suíças refor m adas aceitaram o Catecismo de Heidelberg (1562), q u e se to rn o u a base para a m ai oria das confissões de fé reform ada posteriores, inclusive a Confissão d e fé e Catecis mo de Westminster (1647/1648) dos presbiterianos. O grande capítulo da R eform a na história da teologia cristã term in o u em caos, com a igreja e a civilização p ro fu n d am en te divididas. A cristandade não era com o antes e n u n ca voltaria a ser. A grande visão m edieval d e u m a sociedade cristã unificada p ropagou-se na Inglaterra n o reinado de Elisabete i, m as, co m o so nho para toda a E uropa, desvaneceu para sem pre na nu v em da guerra teológica. E esta não d em o ro u a se to rn ar um a guerra arm ada, na qual territó rio s p rotestantes e católicos se en fren taram em lutas m ortais em toda a E u ro p a no fim d o século xvi e com eço do século xvii. A G u erra dos T rinta A nos e n tre católicos e protestantes esto u ro u na E uropa C en tral de 1618 a 1648. C o n flito s nacionais em escala m e n o r irro m p eram na França e na Inglaterra, aproxim adam ente na m esm a época. N o fim da era da R eform a, não so m en te a cristandade, m as tam bém o p ro tes tan tism o se dividiu em facções dissidentes, m u ito além d o que se poderia im agi nar. N a G rã-B retan h a (Inglaterra e Escócia), a Igreja da Inglaterra deu origem a m u ito s grupos dissidentes provenientes do m o v im en to p u ritan o original. M uitos deles eram reb en to s do p u ritan ism o o u do presbiterianism o escocês e, portanto, seguiam a teologia reform ada. D iscordavam , po rém , em relação ao governo eclesi ástico e outras questões secundárias. A influência da teologia puritana era m aior na A m érica do N o rte , para on d e m ilhares de puritanos de vários tipos em igraram para fugir da perseguição na Inglaterra e estabelecer a república cristã, nos m oldes de G enebra, q u e não conseguiram em sua própria pátria. N a H olanda, a igreja reform ada dividiu-se em relação à d o u trin a da predestinação c surgiu um a nova form a de teologia protestante, conhecida com o arm inianism o (proveniente do n om e Jacó A rm ínio). Alguns protestantes ficaram tão im pressionados com os avanços da
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razão e da ciência n o século x v ii e tão tristes e desiludidos com as guerras religiosas, q u e ten taram e n c o n trar u m a religião de p u ra razão e assim nasceu o deísm o. Final m ente, surg in d o das cinzas das guerras religiosas e da rebelião contra o racionalism o e ortodoxia m o rta nos quais boa parte da teologia pro testan te havia caído, nasceu o cristianism o do coração n o século xvi. Esse m o v im e n to novo, co nhecido com o pietism o, voltava a atenção m ais para a experiência d o q u e para a d o u trin a e deu origem ao reavivalism o n o com eço do século xviii. D essa efervescência do pós-R eform a, nasceram novas den o m in açõ es e novas form as de cristianism o. O m eto d ism o e todas as suas ram ificações surgiram do pietism o e d o reavivalism o. O m o v im e n to batista nasceu d o co n tato de puritanos com anabatistas eu ro p eu s na I lolanda. A Igreja U nitária, à qual p erten ceram vários presidentes dos Estados U n id o s, foi p ro d u to d o d eísm o e da religião natural e racional do ilu m in ism o. A teologia arm iniana holandesa in flu en cio u p ro fu n d a m en te os prim eiro s m etodistas, m u ito s batistas c a Igreja da Inglaterra com sua ram ificação no rte-am ericana, a Igreja Episcopal. O s próxim os capítulos da história da teologia cristã contarão co m o o pro testan tism o se frag m en to u ao re to rn ar às raízes de suas diversas denom inações nos debates e controvérsias teológicas no século xvi.
O ita v a P a r t e O c e n tro d o e n re d o se fr a g m e n ta : O s protestantes seguem caminhos diferentes
A -Ju a s grandes divisões o correram até este m o m e n to na história da teologia cristã. A prim eira divisão en tre os cristãos católicos e os ortodoxos o co rreu gradualm ente n o d ecu rso de vários séculos e cu lm in o u com o ro m p im en to , q u e ainda p erm a n e ce, en tre o O rie n te e o O c id e n te em 1054. O segundo ro m p im e n to o co rreu no O cid en te, n o século xvi, e com eçou oficialm ente q u an d o M artin h o L utero foi ex co m u n g ad o pelo papa em 1520. O s protestantes discordavam en tre si sobre várias questões secundárias, m as conseguiram c o m p o r um a frente relativam ente unida c o n tra o p o d erio m o n o lítico da Igreja de R om a. A pesar de suas diferenças, teó lo gos luteranos, reform ados e anglicanos p erm aneceram u n id o s teologicam ente, mas não politicam ente. E m bora gostassem de criticar-se m u tu a m e n te p o r causa das controvérsias em relação aos sacram entos e às form as de governo eclesiástico e seguissem líderes políticos d iferentes, essas fam ílias da R eform a m agisterial se u n i ram na fé e na d o u trin a em boa parte d o século xvi. A quarta fam ília protestante, os anabatistas, foi tão perseguida e m arginalizada p o r todos q u e quase desapareceu de cena e d esem p en h o u u m papel p eq u en o , o u até m esm o nu lo , n o desenvolvim ento da história da teologia cristã p o r m u ito tem po. O século xvii te ste m u n h o u o aparecim ento de grandes rachaduras teológicas, não so m en te en tre essas fam ílias p rotestantes, m as tam b ém d e n tro de cada um a delas. N o com eço desse século pós-R eform a, os seguidores de Z uínglio e de C alvino en traram em conflito sobre os p o rm en o res da d o u trin a da predestinação. U m a grande e p erm an en te divisão o co rreu p o r volta de 1610 q u an d o os seguidores do teó lo g o re fo rm ad o h o lan d ês Jacó A rm ín io rejeitaram in te ira m e n te a d o u trin a zuingliana e calvinista clássica em favor da crença m ais erasm iana e anabatista no sinergism o e n o livre-arbítrio. U m a nova co rren te teológica nasceu da fonte refor mada: o arm in ian ism o . Trata-se basicam ente d o equivalente do sinergism o p ro tes tan te e da rejeição da crença agostiniana-zungliana-calvinista clássica na pro v id ên cia m e tic u lo s a e na p re d e s tin a ç ã o to ta l. O lu te ra n is m o na A le m a n h a e na
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Escandinávia ex p erim en to u u m grande m o v im e n to de renovação espiritual em m eados d o século x v ii cham ado pietism o, q u e levou a grandes conflitos e co n tro vérsia en tre os seguidores de L utero e, po sterio rm en te, e n tre o u tro s protestantes. A Igreja da Inglaterra passou p o r um a guerra teológica e política angustiante en tre anglicanos e p u ritanos e vários destes abandonaram a igreja-m ãe para fundar várias denom inações, dissidentes c não conform istas, baseadas na teologia refor m ada. N o século xvii, a Igreja da Inglaterra e a co m u n id ad e anglicana m undial ex perim entaram o utra grande perda q u an d o os seguidores de Jo h n W esley ro m p e ram com ela para form ar o m o v im en to m etodista. F inalm ente, u m a nova o rdem cu ltural, cham ada ilu m inism o, surgiu na E uropa n o fim das guerras religiosas em m eados do século xvii. C o m ele surgiu u m novo m o d elo de pen sam en to religioso q u e não nasceu de n e n h u m a fam ília teológica da R eform a, m as q u e acabou influ enciando todas elas. É conhecida com o deísm o e religião natural em suas form as variadas. Boa parte de seus p rim eiro s partidários e defensores eram protestantes, m as as gerações posteriores desviaram -se para o ceticism o e o agnosticism o. A influência do deísm o, d en tro e fora das igrejas p rotestantes estabelecidas, desafiou seriam ente a ortodoxia p rotestante e lançou os alicerces para a ascensão da teologia p ro testan te liberal no século seguinte. L utero nun ca sonharia que o seu apelo às reform as, sua excom unhão e o estabe lecim ento de um a form a rival de cristianism o acabaria causando a total desintegra ção não apenas da cristandade, m as tam bém da teologia cristã. Sua intenção era restaurar a única e verdadeira igreja ortodoxa e católica dos apóstolos e dos pais da igreja. Esse era o objetivo co m u m de Z uínglio, C alvino, B ucer e C ranm er. C em anos depois da m o rte deles, no entanto, seu em p re en d im en to protestante desm o ron o u . N ã o se q u er dizer com isso q u e tenha fracassado totalm ente. Fracassou a idéia da unidade visível, m as isso não é de surpreender. Todos os reform adores da prim eira geração qu eb raram a unidade visível ao rejeitarem R om a — e considera vam ter boas razões para isso. E ntretanto, estabeleceu-se u m precedente e seus fi lhos, enteados e netos teológicos seguiram seus passos na reform a dividindo-se. N esta seção, contarei a história das subdivisões da teologia protestante depois da R eform a e com eçarei com a evolução da história d o ram o reform ado do protestan tism o no qual Jo ão C alvino surgiu co m o o grande líder espiritual. Para on d e q u er q u e a teologia reform ada fosse, sofreria a influência de C alvino. A pesar disso, al guns de seus discípulos m ais próxim os interpretaram C alvino de form a diferente do espírito do grande “servo de G en eb ra”. Foi na H olanda que interpretações com o essa se reverteram na tentativa de reforinar a teologia reform ada, o q u e acabou p ro vocando u m ro m p im en to total e criando um a form a nova de teologia protestante.
28 Os arminianos tentam reformar a teologia reformada
A
teologia arm in ian a provém do teólogo reform ad o holandês Jacó A rm ínio, que nasceu em 1560 e m o rre u em 1609, aos 49 anos de idade.1 A rm ín io e sua teologia eram polêm icos em todas as partes dos Países Baixos, bem co m o na G rã-B retanha e em o u tro s países o n d e a teologia reform ada predom inava ou tinha influência. A certa altura da controvérsia, irro m p eram m o tin s nas principais cidades da H olanda e de ou tras províncias dos Países Baixos. Em vida, A rm ínio e seus ensinos p rovo caram um a divisão tão p ro fu n d a na co m u n id ad e reform ada q u e o governo h o lan dês acabou se envolvendo. E m bora exonerado de u m a heresia pela m ais alta au to ridade governante do país, acabou m o rre n d o cm m eio a o u tra crise en tre a igreja e o estado, q u e girou em to rn o de sua crítica pública às d o u trin as calvinistas. Seus seguidores, cham ados rem o n stran tes (Remonstrantia foi o seu d o c u m e n to de p ro testo), retom aram a bandeira deixada p o r ele e co n tin u aram o desafio. N o fim , foram excom ungados da igreja reform ada dos Países Baixos pelo S ínodo de D o rt (1618-1619) e seus líderes foram exilados pelo governo holandês. U m deles, q u e trabalhou d u ran te m u ito s anos co m o o principal estadista dos Países Baixos foi preso e decapitado p u blicam ente, em parte, pelo m enos, p o r causa de seu apoio intransigente à “h eresia” d o arm inianism o. Séculos depois da controvérsia dos rem o n stran tes, o arm in ian ism o to rn o u -se praticam ente sin ô n im o de pelagianism o para os p u ritan o s e o u tro s calvinistas c o n servadores. Jacó A rm ínio, n o en tan to , negou expressam ente ser pelagiano o u ter q u alq u er sim patia pela heresia da salvação sem a ajuda da graça sobrenatural. M u i tos o p o n en tes cautelosos equiparam a teologia arm iniana com o sem ipelagianism o, em b o ra o p ró p rio A rm ínio ten h a afirm ado q u e a iniciativa da salvação parte exclu sivam ente de D eus e q u e a salvação em si de dá pela graça m ediante a fé som ente. A rm ínio considerava-se p rotestante leal à igreja reform ada da H o lan d a q u e sim plesm ente discordava de algum as opiniões do calvinism o. E m especial, rejeitava a versão extrem a do calvinism o cham ada supralapsarism o, m as acabou rejeitando
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q u alq u er tipo de crença na eleição divina incondicional — o u predestinação de um a pessoa ao céu o u ao inferno. C o m o m u ito s calvinistas de sua época (e desde então) equiparavam a d o u trin a p rotestante da justificação pela graça m ediante a fé so m en te co m o m o n erg ism o e o sin erg ism o com a d o u trin a católica rom ana, A rm ín io foi acusado de ser u m sim patizante secreto d e R om a. A rm ín io e seus seguidores negavam v ee m e n tem en te q u e o m o n erg ism o é o ú n ico conceito do relacionam ento en tre D eus o os seres h u m an o s caídos e pecadores q u e adequada m en te considera a salvação pura dádiva gratuita. E m bora rejeitassem a eleição in condicional e a graça irresistível, defendiam os principais princípios p rotestantes e afirm avam q u e a ju stiç a de C risto é im putada aos pecadores para sua salvação m e diante a fé som ente. Sem dúvida ou q u estio n am en to , A rm ínio é u m dos teólogos m ais injustam ente ignorados e grosseiram ente m al interpretados da história da teologia cristã. Tanto ele com o sua teologia são “freq ü en tem en te avaliados seg u n d o boatos superfici ais”.2 U m com entarista e crítico reform ado m o d e rn o n o to u q u e “a teologia de Jacó A rm ínio é desprezada tan to p o r adm iradores q u an to p o r difam adores”3 e disse que A rm ínio é “u m dos doze o u m ais teólogos da história da igreja cristã q u e ofereceu um critério p erm an en te para a tradição teológica e, com isso, tran sfo rm o u seu n o m e em sím bolo de u m p o n to de vista d o u trin ário o u confessional específico”4, o q u e to rn a d u p lam en te irônico q u e seja “u m dos principais e tam b ém m ais desp re zados teólogos p ro testan tes”.5 Para co m p re en d er A rm ín io e sua teologia e a p ro funda divisão q u e ela p rovocou na teologia pro testan te terem os de voltar na h istó ria até antes do p ró p rio A rm ínio e exam inar a teologia reform ada depois de C alvino.
O escolasticismo reformado e o supralapsarismo E m bora os principais reform adores protestantes da prim eira geração, co m o L utero, Z u ín g lio e C alvino, ten h am reagido contra o escolasticism o e a teologia escolástica, seus seguidores im ediatos voltaram -se para u m tipo de p en sam en to escolástico que dava m u ito m ais ênfase à filosofia e à lógica e procurava usá-las para desenvol ver sistem as altam ente coerentes de d o u trin a protestante. Essa tendência dos p en sadores protestantes da pós-R eform a re n d eu -lh es o ró tu lo d ú b io de “escolásticos pro testan tes” e sua teologia é caracterizada com im precisão co m o escolasticism o protestante. O que m u ito s deles tentaram fazer foi e n c o n trar e co n stru ir um a o rto doxia p ro testan te rígida que contestasse todas as heresias, inclusive os ataques de céticos e críticos católicos rom anos. P ortanto, e n q u a n to L u tero e C alvino estavam satisfeitos com u m p o u co de m istério na teologia, esses escolásticos protestantes ten taram o b literar o m istério, a incerteza e a am bigüidade da teologia protestante ao im itarem o estilo de Tom ás de A quino, q u e p ro c u ro u em pregar as E scrituras, a tradição e a razão para desenvolver u m sistem a abrangente de toda a verdade. N a -
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tu ralm en te, a m aioria dos escolásticos protestantes dos séculos xvi e x v ii não tinha consciência das sem elhanças en tre seus próprios em p re en d im en to s teológicos e os de Tom ás de A q u in o e de o u tro s teólogos católicos m edievais. A pesar disso, os teólogos históricos posteriores, ao exam iná-los, não p u d eram deixar de perceber a sem elhança. R ichard M uller, u m dos principais estudiosos m o d ern o s d o escolasticism o p ro testante, d efin e-o co m o “teologia acadêm ica, identificada pela cuidadosa divisão dos tem as e definição das partes co m p o n en tes e pelo interesse em im p elir questões lógicas e m etafísicas levantadas pela teologia para respostas racionais”.6 M u lle r d es creve com exatidão essa teologia pós-R eform a protestante d o final d o século xvi (exatam ente q u an d o A rm ínio estava com eçando seu m inistério em A m sterdã) com o “o rtodoxia confessional m ais rigorosam ente definida em seus lim ites d o u trin ário s do que a teologia dos reform adores prim itivos, m as, ao m esm o tem po, m ais am pla e m ais diversificada no em prego de m aterial de tradição cristã, p articu larm en te do m aterial fo rnecido pelos d o u to res m edievais [em teologia]”.7 E m b o ra poucos (ou talvez n en h u m ) desses praticantes d o escolasticism o pro testan te reconhecessem explicitam ente sua dívida para com fontes do cu m en tais católicas rom anas, os sis tem as de p en sam en to o rtodoxo p rotestante q u e desenvolveram dependia m u ito das referidas fontes e, so bretudo, de seus m étodos de dedução lógica e especulação metafísica. U m dos exem plos m ais notáveis desse escolasticism o pro testan te incipiente é o sucessor de C alvino em G enebra, T eodoro Beza (1519-1605). Q u a n d o C alvino m o rreu , em 1564, “toda a responsabilidade de C alvino recaiu sobre Beza. Beza era chefe da A cadem ia [de G enebra] e professor, presidente d o C o n selh o dos Pasto res, u m a influência poderosa sobre os m agistrados de G en eb ra e porta-voz e d e fensor da posição protestante refo rm ad a”.8 Assim com o vários o u tro s pastores e teólogos reform ados de todas as partes da G rã-B retan h a e da E u ro p a co ntinental, Jacó A rm ín io foi alu n o de Beza p o r algum tem po. P o sterio rm en te, é claro, rejeitou as conclusões de Beza, m as talvez não o m éto d o escolástico. Beza é m ais co n h e ci do na história da teologia co m o u m dos fundadores d o tipo extrem o da teologia calvinista con h ecid o co m o supralapsarism o. M uitos escolásticos reform ados, com o Beza, ficavam fascinados com perguntas sobre os d ecretos de D eus. T anto Z u ín g lio com o C alvino enfatizavam q u e tu d o q u e acontece — inclusive a queda de A dão e Eva e a eleição de alguns seres h u m an o s para a salvação e de o u tro s para a perdição — é d eterm in ad o p o r D eus. Em outras palavras, esses dois teólogos suíços refor m ados afirm aram q ue nada acontece, n em pode acontecer, p o r acidente o u m esm o p o r contingência. T udo q u e acontece fora d o p ró p rio D eu s, acontece p o r decreto divino. D eus prediz o q u e vai acontecer, p o rq u e tu d o é pred estin ad o p o r ele e ele predestina p o rq u e decreta q u e assim seja p o r toda a eternidade.
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Beza e o u tro s teólogos reform ados depois de C alvino com eçaram a pensar e especular a respeito da “o rd em dos decretos divinos”. Em outras palavras, interessa vam -se pelos propósitos suprem os de D eus para todas as coisas. Por que D eus criou o m u n d o ? Seu decreto da criação do m u n d o é logicam ente anterior ao decreto de predestinar algum as pessoas para a salvação e outras para a perdição eterna ou o contrário? Eles concordavam que todos os decretos de D eus são sim ultâneos e eter nos, p o rque aceitavam a noção de A gostinho da eternidade com o o “m o m en to p re sente etern o ” no qual todos os tem pos — passado, presente e fu tu ro — são sim ultâ neos. Acreditavam que, para D eus, não há n en h u m a separação, n em sequer suces são, de m om entos. Tudo é eternam ente presente. Por isso, D eus não decreta algo e depois espera para ver o que acontece para então, dep en d en d o do resultado, decretar outra coisa. Todos os decretos de D eus em relação ao que está fora dele (a criação) são sim ultâneos e eternos. Logo, q uando Beza e outros protestantes especulavam e debatiam a respeito da “o rd em dos decretos etern o s”, referiam -se à o rdem lógica e não a algum a ord em cronológica. P ortanto, a pergunta era: Q ual é a o rdem lógica correta dos decretos de D eus com relação à criação e à redenção? E um a questão im portante, p o rque a m aneira de verm os os propósitos suprem os de D eus para as coisas d epende de com o consideram os a o rd em dos decretos divinos e vice-versa. Beza e o u tro s calvinistas eram obcecados pela d o u trin a da predestinação, m u ito mais d o q u e C alvino jam ais foi. E n q u an to C alvino situ o u essa d o u trin a d en tro da categoria da redenção co m o parte da atividade graciosa de D eus c adm itia o m isté rio em relação aos p ro pósitos de D eus na eleição e reprovação divinas, Beza situou a predestinação d en tro da d o u trin a de D eus com o a dedução direta do poder, dos co n h ecim en to s e do g o verno providencial de D eu s.9 Assim , aproxim ava-se m u ito m ais de Z u ín g lio d o que de C alvino. Beza, assim co m o a m aioria dos calvinistas, tam b ém d ed u ziu a d o u trin a da expiação lim itada — q u e C risto m o rre u som ente pelos eleitos e não pelos réprobos — a partir da d o u trin a da providência e dos decretos d e eleição divinos. Essa dedução, em b o ra lógica, não se e n c o n tra em C alvino. Para p ro teg e r a d o u trin a da pred estin ação de q u a lq u e r desgaste pelo sin erg ism o , Beza e o u tro s calvinistas rígidos d o séc u lo xvi d ese n v o lv e ram o supralapsarism o. Supra indica a prioridade lógica em relação a algum a o u tra coisa. Lapsarismo é um a referência à q u ed a da h u m an id ad e (da m esm a raiz q u e lapso — “cair”). Por isso, supralapsarismo significa, literalm ente, “algum a coisa an terio r à q u ed a”. Isso, p o rém , d ificilm ente explica sua relevância teológica. T eologicam ente, o supralapsarism o é um a form a de o rd en ar os decretos divi nos de tal m aneira q u e a decisão e o decreto de D eus em relação à predestinação do seres hu m an o s, ao céu ou ao inferno, antecede seus decretos de criar os seres h u m anos e p e rm itir sua queda. A o rd e m típica dos d ecreto s divinos, seg u n d o o supralapsarism o, é a seguinte:
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1. O d ecreto divino de predestinar algum as criaturas à salvação e à vida eterna e o utras à perdição e ao castigo etern o no inferno. 2. O d ecreto divino de criar. 3. O d ecreto divino de p erm itir q u e os seres h u m an o s caiam no pecado. 4. O d ecreto divino de fornecer m eios para a salvação (C risto e o evangelho) dos eleitos. 5. O d ecreto divino de aplicar aos eleitos a salvação (a ju stiç a de C risto). A o rd em supralapsária dos decretos divinos deixa claro q u e o p rim eiro e p rin ci pal pro p ósito dc D eu s n o seu relacionam ento com o m u n d o é glorificar a si m es m o (sem pre o m otivo principal de D eus em tu d o ), salvando algum as criaturas e c o n d en an d o outras. A dupla predestinação, p o rtan to , logicam ente antecede à cria ção, à qued a e todas as dem ais coisas, inclusive a encarnação de C risto e sua expi ação, na intenção e n o p ropósito de D eus. Beza e os dem ais calvinistas supralapsários acreditavam estar apenas esclarecen do os p o rm en o res lógicos da d o u trin a da eleição ensinada pelo p ró p rio C alvino. N ã o se sabe se isso era verdade. A lguns estudiosos acreditam q u e C alvino o teria aprovado. O u tro s acham que ele teria rejeitado o supralapsarism o e preferido o contrário, o infralapsarism o. Infra indica subseqüência a o u tra coisa. N e sse caso, o infralapsarism o su b o rd in a o decreto divino da predestinação ao d ecreto de p e rm i tir a qued a da h u m an id ad e n o pecado. S egundo os calvinistas infralapsários, o p ro pósito su p re m o de seu plano global não é eleger alguns e reprovar o u tro s, m as glorificar a si m esm o pela criação d o m u n d o . Foi so m en te p o rq u e os seres h u m a nos caíram no pecado q u e D eus su b seq ü e n te m e n te (pela o rd e m lógica) d ec reto u a d u p la p r e d e s tin a ç ã o . P o r ta n to , a o r d e m típ ic a d o s d e c r e to s d iv in o s n o infralapsarism o é a seguinte: 1. O decreto divino de criar o m u n d o e, nele, a hum anidade. 2. O decreto divino de p erm itir a queda da hum anidade. 3. O d ecreto divino de eleger alguns seres h u m an o s à salvação e à vida eterna e de pred estin ar o u tro s à perdição e ao castigo eterno. 4. O d ecreto divino de fo rn ecer o m eio de salvação (C risto) aos eleitos. 5. O d ecreto divino de aplicar a salvação aos eleitos e deixar os réprobos (os predestinados à perdição) ao seu destino m erecido. O s supralapsários e os infralapsários concordavam em m u ito s assuntos. C o n cordavam q u e C alvino tinha a visão básica correta do plano e p ropósito de D eus em relação à criação: glorificar a si m esm o através de tu d o . C o n co rd av am que D eu s co n tro la tu d o q u e acontece, tanto na criação q u a n to na redenção, e q u e nada
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acontece sem q u e ele o decrete e faça acontecer. C on co rd av am que a queda da h u m an id ad e e o destin o final de cada ser h u m a n o n o céu o u 110 in fern o é pred es tinados p o r D eus, e não apenas previstos o u prenunciados. C oncordavam q u e D eus não é responsável pelo pecado n em pelo m al, no sen tid o de carregar algum fardo d e culpa p or isso, pois ele está acim a das leis e das noções hum anas de eqüidade. T udo o q u e D eu s faz é correto, p o rq u e glorifica a ele e, co n fo rm e Beza suposta m en te declarou: “O s q u e sofrem etern am en te n o in fern o po d em pelo m enos se consolar com o fato de estarem ali para a m aior glória de D e u s”. A discórdia e n tre os supralapsários e os infralapsários girava em to rn o de o p rim eiro p ro p ó sito (su prem o) de D eu s ser o de se glorificar pela predestinação ou pela criação. O u tra m aneira de expressar a questão é q u e os supralapsários consi deravam q u e o d ec reto div in o da predestinação se aplicava aos seres h u m an o s co m o criaturas, sem levar em conta o fato de tam b ém serem pecadores, ao passo que os infralapsários consideravam q u e o d ecreto divino da predestinação se apli cava aos seres h u m an o s co m o pecadores caídos. D e q u a lq u e r form a, po rém , tanto os salvos q u an to os p erdidos são o q u e são p o rq u e D eu s assim decidiu desde a etern id ad e.
O consenso doutrinário calvinista N a segunda m etade d o século xvi, os escolásticos protestantes reform ados p erte n centes às duas escolas de p en sam ento, supralapsária e infralapsária, desenvolveram gradualm ente u m sistem a de d o u trin a calvinista que, p o sterio rm en te, foi sintetiza do de acordo com o acrônim o t u l i p . O s cinco p o n to s d o calvinism o n u n ca tin h am sido expostos exatam ente dessa m aneira antes da grande controvérsia arm iniana e da sua conclusão n o S ínodo de D o rt em 1618-1619. N esse sínodo calvinista na H olanda, eles foram declarados e reconhecidos co m o d o u trin a oficial, pelo m enos para as igrejas holandesas reform adas. D epois desse acontecim ento, protestantes reform ados de todos os lugares com eçaram a aceitá-los. O acrônim o foi adotado e os cin co p o n to s são c o rre ta m e n te e n te n d id o s c o m o válidos pela m aio ria dos escolásticos reform ados, tanto supralapsários q u an to infralapsários, m esm o antes de D o rt os ter canonizado. O s cinco p o n to s são o q u e A rm ínio questionava e seus seguidores, os rem o n strantes, rejeitavam e, p o r esse m otivo, os últim os foram ex com u n g ad o s e exilados da H olanda. E quase certo q u e o p ró p rio A rm ínio recebe ria o m esm o tratam en to se tivesse vivido tem p o suficiente. E m poucas palavras, os cinco p o n to s são: □ D epravação total (Total depravation). O s seres h u m an o s estão m o rto s em seus delitos e pecados antes de D eus os regenerar so b eran am en te e lhes ou to rg ar a dádiva da salvação (o que, em geral, im plica na negação d o livre-arbítrio).
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□ Eleição in co ndicional (Uncondiíional election). D eus escolhe alguns seres h u m anos para serem salvos, antes e in d ep en d e n tem en te de q u alq u er coisa que façam p o r conta própria (com isso, fica em aberto a questão se D eus ativa m en te p redestina alguns para a perdição o u sim p lesm en te os deixa em sua perdição m erecida). □ Expiação lim itada (Limited atonement). C risto m o rre u so m en te para salvar os eleitos e sua m o rte expiatória não é universal, para a h u m an id ad e toda. □ G raça irresistível (Irresistiblegrace). N ã o é possível resistir à graça d e D eus. O s eleitos a receberão e serão salvos p o r ela. O s réprobos n u n ca a receberão. □ Perseverança dos santos (Perseveratue o f the saints). O s eleitos perseveram ine vitavelm ente para a salvação final (eterna segurança). Esse é u m q u ad ro parcial da teologia reform ada calvinista de aproxim adam ente 1600, em b o ra o acrô n im o t u l i p fosse c u n h a d o p o sterio rm en te. Para o n d e q u er que se fosse na G rã-B retan h a o u na E uropa contin ental, os q u e se consideravam reform ados e seguidores de Jo ão C alvino concordavam , n o m ín im o , q u an to a es ses cinco axiom as de d o u trin a, além d o Credo tiiceno. E discutível se C alvino teria con co rd ad o com todos os cinco. O s teólogos e pregadores reform ados tam bém concordavam , de m o d o geral, q u e fazia parte do sistem a a crença na providência m eticulosa de D eu s sobre tu d o — q u e tu d o o q u e acontece na natureza e na histó ria é decretado p o r D eus. Q u a lq u e r o u tra crença, co m o o sinergism o, era equipa rada pela m aioria dos calvinistas com a d o u trin a católica rom ana. O s supralapsários toleravam os infralapsários, m as achavam que a interpretação q u e estes davam à teologia calvinista, na m e lh o r das hipóteses era fraca e, na pior, era ab ertu ra para o sinergism o. Beza to lero u o infralapsarism o em G en eb ra e até m esm o en tre o cor po docen te da A cadem ia de G enebra.
Jacó Armínio e a controvérsia dos remonstrantes A H o lan d a na qual Jacó A rm ín io nasceu e foi criado estava lu tan d o contra a trad i ção católica ro m an a e contra o d o m ín io da E spanha católica. U m p eq u e n o g ru p o de rebeldes u n iu várias províncias contra o d o m ín io espanhol e estabeleceu um a aliança instável co n h ecida co m o Províncias U n id as (dos Países Baixos). A H olanda era a m aior e a m ais in flu en te das províncias. Ao m esm o tem p o em q u e os h o lan deses se libertaram da Espanha, estabeleceram sua igreja nacional protestante. A igreja reform ada de A m sterdã foi fundada em 1566 e seus principais m in istro s e leigos m an tiv eram os três princípios protestantes fu n d am en tais, sem se aliarem a n e n h u m ram o específico d o p rotestantism o. O p ro testan tism o holandês p rim iti vo era u m tip o sui generis q u e n ão seg u ia rig id a m e n te o lu te ra n is m o o u o calvinism o.10
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A rm ín io foi criado co m o p ro te sta n te na cid ad ezin h a de O u d e w a te r, e n tre U tre c h t e R oterdã, m as sua form ação cristã na ju v e n tu d e não foi pesadam ente calvinista. Aos q u in ze anos de idade, foi enviado a M arburgo, na A lem anha, para o b ter sua educação. E n q u an to estava lá, sua cidade natal foi invadida por soldados católicos leais à E spanha e m u ito s habitantes foram m assacrados. A família inteira de A rm ín io foi exterm inada em u m ún ico dia. O jo v e m estu d an te ficou sob os cuidados de u m respeitado m in istro holandês de A m sterdã e acabou se to rn an d o um dos prim eiro s alunos a se m atricular na recém -estabelecida universidade p ro testante de Leiden. A igreja reform ada de A m sterdã considerava A rm ínio u m dos jo v en s candidatos m ais prom issores ao m inistério e p o r isso custeou seu estudo su p erio r em Leiden e, depois, na Suíça. Lá, estu d o u p o r algum tem p o na “M eca” da teologia reform ada, a A cadem ia de G enebra, dirigida p o r Beza. E m 1588, A rm ín io iniciou o m in istério na igreja reform ada de A m sterdã, aos 29 anos de idade. Todos os relatos contam q u e seu pastorado foi ilustre. C o n fo rm e observa certo biógrafo: “A rm ínio se to rn o u o p rim eiro pastor holandês da igreja reform ada holandesa da m aior cidade da H olanda, exatam ente q u an d o ela estava em e rg in d o de seu passado m edieval e irro m p e n d o na Idade de O u r o ”.11 Era notad am en te b en q u isto e respeitado, tan to com o pastor q u an to co m o pregador, e rapidam ente se to rn o u u m dos h o m en s m ais influentes de toda a H olanda. C asouse com a filha de u m dos principais cidadãos de A m sterdã e e n tro u para o grupo dos privilegiados e poderosos. N e m p o r isso d e m o n stro u q u alq u er indício de ar rogância ou am bição. N e m seq u er seus críticos ousaram acusá-lo de abusar de seu cargo pastoral o u de q u alq u er o u tra falha pessoal ou espiritual. A cabaram acusan d o -n o de heresia so m en te po rq u e, com o pastor de um a das igrejas m ais influentes da H o landa, com eço u a criticar ab ertam en te o supralapsarism o q u e en tro u cm ascensão co n fo rm e cada vez m ais m inistros holandeses reto rn aram de seus estu dos em G enebra sob a direção de Beza. A rm ínio era da “escola antiga” d o p ro tes tan tism o holandês de m entalidade in d ep en d en te, q u e se recusava a declarar com o orto d o x o q u alq u er ram o específico da teologia protestante. A lguns, n o entanto, insistiam cada vez m ais q u e o supralapsarism o era a única teologia p rotestante o r todoxa e q u e q u alq u er o u tra opinião significava, de algum a form a, u m a acom o dação à teologia católica rom ana e, portanto, era um a aliada em potencial da Espanha, inim iga política dos Países Baixos. N a década 1590, o conflito en tre A rm ínio e os calvinistas rígidos da H olanda se to rn o u cada vez pior. A lguns estudiosos sugerem q u e A rm ínio m u d o u de opinião nesse p erío d o . A creditam q u e tin h a sido u m “h ip ercalv in ista” o u m esm o u m supralapsário. Essa suposição parece te r se fu n d a m e n tad o sim p lesm en te n o fato de ele ter sido alu n o de Beza. O principal in térp rete m o d ern o de A rm ín io contradiz a idéia da alegada m u d an ça de opinião de A rm ínio: “Todas as evidências levam a
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um a só co n clusão: A rm ín io não concordava co m a d o u trin a de B eza so b re a predestinação, q u an d o assum iu o seu m in istério em A m sterdã; na realidade, é p ro vável q u e n u n ca ten h a concordado com ela”.12 N a série de serm ões sobre a Epístola de Paulo aos romanos, o jo v e m pregador com eçou a negar ab ertam ente não so m en te o supralapsarism o, m as tam b ém a eleição incondicional e a graça irresistível. In te r p reto u R om anos 9, p o r exem plo, com o um a referência não a indivíduos, m as a classes — crentes e in crédulos — co n fo rm e predestinadas p o r D eus. A firm ou que o livre-arbítrio dos indivíduos os incluía nas classes de “eleitos” e de “ré p ro b o s” e explicou a predestinação co m o a presciência divina acerca da livre escolha dos in divíduos. Para apoiar essa idéia, A rm ín io apelou a R om anos 8.29. C o n fo rm e o b serva o biógrafo e in térp rete de A rm ínio, C ari Bangs, o teólogo holandês d e m o n s tro u , em seus serm ões da década de 1590, o desejo de e n c o n trar o eq u ilíb rio entre a graça soberana e o livre-arbítrio h u m ano: “o objetivo era um a teologia da graça, que não deixasse o h o m em ‘e n tre a cruz e o p u n h a l”’.13 O s rígidos o p o n en tes calvinistas de A rm ínio em A m sterdã e o u tro s lugares não tardaram em farejar o pavoroso erro de sinergism o em sua pregação e ensino e, p u b licam en te, acu saram -no de heresia para os oficiais da igreja e da cidade, que exam inaram a q uestão e inocentaram A rm ín io das acusações. A rm ín io apelou à tradição p ro testan te holandesa da independência dos sistem as teológicos específi cos e à tolerância de diversidade nos p o rm en o res da d o u trin a. O s oficiais co n co r daram . O s o p o n en tes supralapsários de A rm ín io ressentiram -se e decidiram q u e o arruinariam de q u alq u er m aneira. Sofreram um a derrota fragorosa q u an d o A rm ínio foi n o m eado para ocu p ar a prestigiosa cátedra de teologia na U niversidade de Leiden em 1603. O o u tro catedrático de teologia daquele perío d o era Francisco G om aro, q u e talvez ten h a sido o calvinista supralapsário m ais franco e rígido de toda a E u ro pa. G om aro, além de considerar todas as outras opiniões, inclusive o infralapsarism o, falhas o u até heréticas, “tinha, segundo quase todos os relatos a seu respeito, um tem p eram en to ex trem am en te irascível”.14 Q uase que im ediatam ente, G o m aro iniciou u m a cam panha de acusações contra A rm ínio. A lgum as delas eram verídicas. P or exem plo, A rm ínio não escondia a rejei ção não som ente do supralapsarism o, m as tam bém da d o u trin a clássica calvinista da predestinação co m o u m todo. G om aro distorceu esse fato e, publicam ente e por trás das costas de A rm ínio, insinuou que ele era u m sim patizante secreto dos jesuítas — um a ord em de sacerdotes católicos rom anos especialm ente tem ida que era cham ada “tropa de ch o q u e da C o n tra-R efo rm a”. Essa alegação de G om aro, assim co m o o u tras, era claram ente falsa. Por exem plo, G om aro acusou A rm ínio de socinianism o, que era u m a negação da Trindade e de quase todas as dem ais doutrinas cristãs clás sicas. N ão im porta o que A rm ínio escrevesse ou dissesse em sua defesa, via-se cons tan tem en te atacado p o r boatos e sob suspeita. “Q u a n d o a controvérsia ultrapassou
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os lim ites das salas acadêm icas e chegou aos púlpitos e às ruas, suas defesas p erd e ram o efeito. Era m ais fácil chegar à conclusão de q u e ‘o n d e há fum aça, há fogo’”.15 A controvérsia cresceu a p o n to de provocar u m a guerra civil e n tre as províncias dos Países Baixos. A lgum as apoiavam A rm ínio, outras apoiavam G om aro. O c o n flito eclodiu em 1604, q u an d o G om aro, pela prim eira vez, acusou A rm ín io aberta m en te de heresia e d u ro u até a m o rte de A rm ínio p o r causa de tuberculose em 1609. Q u a n d o m o rre u , sua teologia estava sob a inquisição pública de líderes reli giosos e políticos. Em seu en terro , u m de seus am igos m ais íntim os fez o discurso fú n eb re diante do corpo de A rm ínio: “V iveu na H o lan d a u m h o m em que só não era con h ecid o p o r q u em não o estim ava suficien tem en te e só não o estim ava qu em não o conhecia su ficien te m e n te”.16 D epois da m o rte dc A rm ínio, q uarenta e seis m in istro s e leigos holandeses res peitados redigiram u m d o c u m e n to cham ado “R em o n strân cia” q u e resum ia a re jeição, p o r A rm ínio e p o r eles m esm os, d o calvinism o rígido em cinco pontos. G raças ao títu lo d o d o c u m e n to , os a rm in ia n o s passaram a ser c h a m a d o s de rem o n stran tes. E ntre eles, estavam os estadistas e líderes políticos holandeses que tin h am ajudado a libertar os Países Baixos da Espanha. Seus inim igos acusavam nos de apoiar secretam ente os jesu ítas e a teologia católica rom ana, e de sim patizar com a E spanha, só p o rq u e concordavam com a oposição de A rm ín io a respeito das do u trin as da predestinação! N ã o existe n e n h u m a evidência de q u e q u alq u er u m deles realm en te tivesse algum a culpa em relação às acusações políticas feitas contra eles. M esm o assim , o correram tu m u lto s em várias cidades holandesas, nos quais foram pregados serm ões contra os rem o n stran tes e d istribuídos panfletos que os difam avam co m o hereges e traidores. F inalm ente, o grande p o d er político dos Pa íses Baixos, o príncipe M aurício d e N assau, e n tro u na luta em favor dos calvinistas. E m 1618, o rd e n o u a detenção e o en carceram en to dos principais arm inianos, para aguardar o resultado d o sínodo nacional de teólogos e pregadores. O S ínodo de D o rt e n tro u em sessão em no v em b ro de 1618 e foi en cerrado em ja n e iro de 1619, co n tan d o com a presença de m ais de cem delegados, inclusive alguns da Inglaterra, da Escócia, da França e da Suíça. “Jo ão B ogerm an, u m pregador calvinista com opiniões extrem adas, q u e havia defen d id o em u m d o c u m e n to a pena de m o rte por heresia, foi escolhido co m o p re sid e n te”.17 C o m o esperado, a despeito das eloqüentes defesas do arm in ian ism o feitas pelos principais rem o n stran tes, na conclusão do sínodo, todos os líderes rem o n stran tes foram condenados co m o hereges. Pelo m en o s d u zen to s foram depostos do m in is tério da igreja e do estado e cerca de o iten ta foram exilados o u presos. U m deles, o presbítero, estadista e filósofo H u g o G ro tiu s (1583-1645), foi confinado em um a m asm o rra da qual p o sterio rm e n te escapou. O u tro estadista foi pu b licam en te d e capitado. U m h isto riador m o d ern o da controvérsia concluiu q u e “o m o d o de [o
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príncipe] M au rício tratar os estadistas arm inianos só pode ser considerado u m dos grandes crim es da H istó ria”.1S O S ínodo de D o rt p ro m u lg o u u m co n ju n to de d o u trin as padronizadas para a igreja reform ada holandesa, que se to rn o u a base d o acrô n im o t u l i p . C ada cânon, co n fo rm e eram cham adas as doutrinas, baseava-se em um dos cinco pontos da “R em o n strân cia”. As coisas q u e os arm inianos negavam , D o rt can onizou com o d o u trin a oficial, obrigatória para todos os crentes protestantes reform ados. N ão arb itro u , n o en tan to , sobre o supralapsarism o e o infralapsarism o e, desde então, as duas teorias co n tin u aram d en tro do consenso calvinista expresso pelo S ínodo de D o rt. Após a m o rte d o príncipe M aurício em 1625, o arm in ian ism o gradualm ente vo lto u a fazer parte da vida holandesa. Já em 1634, m u ito s exilados voltaram e organizaram a F raternidade R em o n stran te, q u e cresceu e fo rm o u a Igreja R efor m ada R em o n stran te, q ue ainda existe. N ã o foi nos Países Baixos, no en tan to , que a teologia arm in ian a causou m aior im pacto. Isso aconteceu na Inglaterra e na A m e rica do N o rte pela influência de destacados m inistros anglicanos, batistas gerais, m etodistas e m in istro s de outras seitas e denom inações que surgiram nos séculos xvii e xviii. Jo ão Wesley (1703-1791) to rn o u -se o arm in ian o m ais in flu en te de to dos os tem pos. Seu m o v im e n to m etodista adotou o arm in ian ism o co m o teologia oficial e, através dele, to rn o u -se parte da tendência prevalecente na vida p ro testan te da G rã-B retan h a e da A m érica do N o rte.
A crítica de Armínio contra a teologia reformada A rm ínio expressou sua teologia em vários tratados publicados, os quais, ju n to s, form am três grandes v o lu m es.19 Suas principais obras doutrinárias sobre questões relacionadas à controvérsia arm iniana (os decretos, a providência, e a predestinação) são: Exame do panfleto do dr. Perkins sobre a predestinação (1602), Declaração de sentimentos (1608), Cana endereçada a Hipólito A. Collibus (1608) e Artigos que devem ser diligente mente examinados eponderados (data desconhecida). N a tu ralm en te, A rm ínio escreveu várias outras obras de im portância, inclusive com entários sobre R om anos 7 e R o m anos 9, m as os q u atro tratados resu m em e expressam de form a adequada e clara suas idéias básicas a respeito de D eus, da hum anidade, d o pecado e da salvação. U m a das acusações feitas com freqüência co n tra A rm ín io e seus seguidores é a de terem se desviado da teologia p rotestante clássica. Eles foram acusados de rejei tar as crenças fu n d am entais da R eform a protestante. A inda hoje, é possível ouvir ou ler essa alegação, especialm ente da parte de calvinistas tradicionais. O p ró p rio A rm ín io não p o u p o u esforços para com provar seu co m p ro m isso e suas cred en ci ais teológicas protestantes. P or exem plo, sobre a sola scriptura, A rm ín io afirm ava a autoridade su p rem a das Sagradas E scrituras acim a de todas as dem ais fontes e n o r m as. Rejeitava explicitam ente a equivalência en tre a tradição o u a razão e as Escri-
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turas e apelava p o r u m novo exam e de todas as form ulações teológicas hu m an as à luz da Bíblia. A regra da verdade teológica não deve ser dividida em prim ária e secundária; é una c sim ples, as Sagradas Escrituras. [...] As Escrituras são a regra de toda a verdade divina, de si, em si e por si m esm as. [...] N en h u m escrito com posto por hom ens, seja um , alguns ou m uitos indivíduos, à exceção das Sagradas Escrituras [...] está [...] isento de um exam e a ser instituído pelas Escrituras. [...] E tirania e papism o controlar a m ente dos h om ens com escritos hum a nos e im pedir que sejam legitim am ente exam inados, seja qual for o pretexto adotado para tal conduta tirânica.20
A lém de declarações explícitas com o essa, o utra prova da lealdade de A rm ínio ao princípio protestan te das E scrituras reside no fato de ele n u n ca te r contestado as E scrituras n em apelado a um a tradição extrabíblica ou idéia filosófica contrária a elas. D iscordava abertam ente de algum as interpretações tradicionais das E scritu ras, m as n u n ca disco rd ou dos ensinos das Escrituras, co n fo rm e os entendia. D e fato, acusou seus o p o n en tes calvinistas de violar o princípio bíblico ao tratarem certas declarações confessionais reform adas co m o equivalentes à Bíblia em digni dade e au toridade e se recusarem a reconsiderá-las o u revisá-las. Assim co m o no p rin cípio bíblico, A rm ínio n u n ca se cansou de afirm ar a lealda de ao p rin cíp io básico p rotestante solagratia etfides — a salvação pela graça, m ed ian te a fé so m ente. Alan Scll, teólogo reform ado con tem p o rân eo , declara que “q u an to à questão da justificação, A rm ínio está cm h arm onia com todas as igrejas reform a das e pro testan tes”.21 N a tu ralm en te, se partirm os d o fato de q u e q u alq u er form a de sinergism o é incom patível com a d o u trin a p rotestante da justificação pela fé so m ente, a d outrina da salvação adotada p or A rm ínio será excluída a priori. M as A rm ínio contestava essa suposição e insistia em afirm ar que, em b o ra negasse a teologia m onergista de A gostinho, Z u ín g lio e C alvino, podia aderir à d o u trin a protestante clássica da salvação. N a Declaração de sentimentos, escreveu: “acredito não ter ensina do ou n u trid o sen tim entos a respeito da justificação do homem diante de Deus que não fossem u n an im em en te m antidos pelas igrejas reform adas e p rotestantes e estives sem de total acordo com suas opiniões expressas”.22 Por ter sido publicam ente acu sado de negar a justificação pela graça m ediante a fé som ente, A rm ínio incluiu u m a declaração confessional sobre essa d o u trin a cm Sentimentos, q u e en treg o u ao gover no holandês na controvérsia im ediatam ente an terio r à sua m orte: Pelo presente, abreviadamente, direi apenas que “creio que os pecadores são considerados justos unicam ente pela obeditMicia de Cristo e que a justiça de Cristo é a única causa meritória pela qual D eu s perdoa os pecados dos que
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crêem e os considera tãojustos com o se tivessem cum prido com perfeição a lei. Mas com o D eus não imputa a justiça de Cristo a ninguém , a não ser aos que crêem , concluo que, já que se pode dizer com segurança, àquele que crê, a fé é imputada pela graça comojustiça — porque D eu s apresentou seu Filho Jesus Cris to para ser uma propiciação, um trono de graça [ou misericórdia] pela fé em seu sangue — , seja qual for a interpretação aplicada a essas expressões, nenhum de nossos ministros culpa C alvino nem o considera heterodoxo nessa questão; a m inha opinião, porém , não diverge tanto da dele a ponto de m e impedir de colocar de próprio punho m inha assinatura em tudo o que ele ensinou a respei to do assunto, no terceiro livro de suas Institutos; isso estou disposto a fazer a qualquer m om ento, além de expressar a m inha aprovação total.23
Em m u ito s lugares e de m uitas m aneiras, A rm ín io afirm o u a crença de q u e a salvação se dá pela graça de D eus m ediante a fé som ente. A calúnia de q u e negava tal coisa, tão co m u m em sua época e freqüente desde então, é u m a das m aiores injustiças da história da teologia cristã. Por que, então, os o ponentes e inim igos de A rm ínio o acusavam bem com o seus seguidores de negar o princípio da salvação pela graça m ediante a fé som ente? Só pode ser p o rq u e se o p u n h a abertam ente às d o u trin as de calvinism o que eram extrem am en te associadas a esse princípio. A creditavam q u e a salvação é p u ra dádi va — im erecida — q u an d o a pessoa é totalm ente passiva na regeneração, na c o n versão e na justificação. O u seja, a salvação acontece realm ente pela graça som ente q u an d o a aceitação dela pelos pecadores não é u m ato de livre escolha, m as se dá de form a incondicional e irresistível. E isso só é verdade se estiver predestinado e etern am en te decretado. P ortanto, dizer q u e o pecador q u e está sendo salvo partici pa da própria salvação é dar lugar à jactância, p o rq u e su b en ten d e q u e a pessoa que livrem ente tom a a decisão de aceitar a graça para a salvação a está, de certa form a, conq u istan d o p o r m erecim ento. S egundo a crença calvinista tradicional, isso tam bém despojaria D eus de sua soberania c tornaria a decisão divina, a respeito de q u em deve ser salvo, d ep en d en te das decisões e ações das criaturas. A rm ínio rejei tava to talm en te essa linha de raciocínio e interpretava a passagem bíblica crucial de R om anos 9 de m o d o d iferente dos calvinistas. A rm ín io não rejeitava a p red estin ação . N a realidade, a firm o u a cren ça tia predestinação. Rejeitava, isto sim , o supralapsarism o, q u e considerava d o u trin a m u ito perniciosa. R esum iu a versão supralapsária do calvinism o apresentada p o r G o m aro da seguinte form a: D eus, por decreto eterno e im utável, predestinou, dentre os h om en s (que nem sequer considerava criados e m uito m enos caídos), certos indivíduos à vida eterna e outros à destruição eterna, sem levar em conta a justiça 011 o
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pecado, a ob ed iên cia ou a d esob ed iên cia, mas u n icam en te seu próprio aprazimento, para dem onstrar a glória de sua justiça e m isericórdia ou, com o outros afirmam, para dem onstrar sua graça salvífica, sua sabedoria e seu po der livre e inexorável.24
N a Declaração de sentimentos, A rm ín io levantou v in te objeçõcs ao supralapsa rism o. A lgum as se aplicam a q u alq u er versão da crença calvinista na predestinação, in clu in d o o infralapsarism o. A rg u m e n to u q u e o supralapsarism o é c o n trá rio à p ró p ria n atu reza d o evangelho, pois e n te n d e q u e as pessoas são salvas o u não in d e p e n d e n te m e n te de serem pecadoras o u crentes. P rim eiro (n o p rim eiro d e creto de D eu s), são salvas o u condenadas e, so m en te então, se to rn a m crentes ou pecadoras. A rg u m e n to u , tam b ém , q u e essa d o u trin a é u m a novidade na história da teologia, p o rq u e n u n ca foi apresentada antes de G o m a ro e de seus antecessores im ediatos (p o r exem plo, Beza). A lém disso, é co n trária à natu reza am orosa de D eus e à liberdade da natureza h u m an a. Talvez a objeção m ais fo rte dc A rm ínio ten h a sido a de q u e o supralapsarism o (e, p o r extensão, q u a lq u e r d o u trin a da eleição in co n d icio n al) é “in ju rio so à glória de D e u s” p o rq u e “a p artir dessas p re m issas, d ed u zim o s, além disso, q u e D eu s realm en te peca [...], q u e D e u s é o ú n i co pecador [...], q u e o pecado não é p ecado”.25 A rm ín io n u n ca se cansou de dizer q u e a forte d o u trin a do calvinism o não pode negar q u e coloca D e u s co m o au to r do pecado e, se D eu s é o a u to r d o pecado, logo, o pecado não é de fato pecado p o rq u e tu d o o q u e ele cria é bom . A rm ín io era u m realista m etafísico. Q u a n d o passou a exam inar o infralapsarism o, A rm ín io não foi m ais generoso. E m b o ra não co lo q u e o d ec reto d iv in o da eleição e da reprovação antes da criação e da q u ed a, o infralapsarism o não deixa de c o n sid erar necessária a q u ed a da h u m an id ad e e D eu s seu au to r.26 E m ú ltim a análise, seg u n d o A rm ín io , q u a lq u e r d o u trin a m on erg ista da salvação to rn a D eu s o a u to r d o pecado e, p o rtan to , h ip ó crita, “p o rq u e im p u ta hipocrisia a D eu s ao su p o r q u e, em sua exortação às pesso as, exige q u e creiam cm C risto , m as não o a p resen ta co m o seu S alv ad o r”.27 A rm ín io apelou a Jo ão 3.16 e a rg u m e n to u em seus escritos q u e a universalidade da v o n tad e de D eu s de salvar deve ser levada a sério e q u e a p redestinação deve ser en ten d id a de fo rm a com patível com o am o r e b o n d ad e de D e u s e com o liv re-arb ítrio h u m an o .
A doutrina da predestinação segundo Armínio A rm ínio não se recusava a discu tir os decretos de D eus. A penas se o p u n h a à ordem específica em que os decretos divinos eram colocados nos dois principais ram os do calvinism o. S egundo ele, am bos eram passíveis de críticas devastadoras da m esm a espécie. Por exem plo, n e n h u m colocava em p rim eiro lugar o d ecreto divino no
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sentido de enviar Jesu s C risto para ser o Salvador d o m u n d o , en q u a n to o evange lho é essencialm ente Jesu s C risto. N a Declaração de sentimentos, A rm ín io propôs um esquem a alternativo de q u atro decretos divinos a respeito da salvação intitu lad o “M eus pró p rio s sen tim en to s a respeito da predestinação”: I. O p rim eiro d ecreto absoluto de D eus sobre a salvação do pecador é aquele pelo qual d ecreto u que nom eava seu F ilho Jesu s C risto m ediador, redentor, salvador, sacerdote e rei [...] II. O seg u n d o d ecreto exato e absoluto de D eus é aquele pelo qual d ecretou q u e receberia em favor aqueles que se arrependessem e cressem e que, em C risto [...] se cu m p riria a salvação dos pen iten tes e crentes q u e perseverassem até o fim ; m as q u e deixaria em pecado e sob a ira todos os impenitentes e incrédulos e os co n denaria pela alienação a C risto. III. O terceiro d ecreto divino é aquele pelo qual D eus d ecreto u q u e adm inistra ria de modo suficiente e eficaz os m eios q u e eram necessários ao a rrep e n d im en to e à fé [...]. IV. D epois desses, segue-se o quarto decreto pelo qual D eus decretou a salvação o u a perdição das pessoas. Esse decreto se fundam enta na presciência de D eus, pela qual desde a eternidade ele sem pre soube quais os indivíduos que, pela graça [preveniente], creriam e, pela graça subseqüente, perseverariam.28 Para A rm ínio, p o rtan to , a predestinação era, antes, de Jesu s C risto e não de indivíduos sem ele. E im p o rtan te lem b rar q u e A rm ínio insistia q u e toda a questão da predestinação estava relacionada à condição caída dos seres h u m an o s carentes de redenção. Para A rm ínio, o d ecreto divino de p erm itir a queda, em outras palavras, não dizia res peito à salvação. O s d ecreto s de D e u s a respeito da salvação vêm depois (são logicam ente posteriores) da perm issão divina da q u ed a de Adão e de Eva. C o m o A rm ínio concebia a queda? D eixou isso claro em seu tratado Certos artigos a ser diligentemente examinados eponderados: “A dão não caiu p o r decreto de D eus, n em por estar d estinado a cair, n em p o r ter sido desertado p o r D eu s, m as p o r m era p erm is são de D eus, q u e não está su b ordinada a n e n h u m a predestinação, n em à salvação o u à m o r te , m as q u e p e r te n c e à p r o v id ê n c ia , q u e é d is tin ta e o p o s ta à predestinação”.29 E m outras palavras, a providência divina co m p reen d e certos d e cretos e a predestinação divina, outros. As duas não devem ser confundidas. N a providência, D eus d ecretou q u e perm itiria a queda de A dão e de Eva e de toda a raça h u m an a ju n to com eles. N o Exame do panfleto do dr. Perkins, A rm ínio disse claram ente q u e D eu s não poderia evitar a queda depois de criar os seres h um anos e dar-lhes o d o m do livre-arbítrio. A rm ínio acreditava na autolim itação e restrição
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de D eus e tam b ém na liberdade h u m an a gen u ín a n o relacionam ento abrangente estabelecido pela aliança.30 P ortanto, os decretos de D eus q u an to à predestinação dizem respeito aos seres h u m an o s apenas co m o pecadores depois da queda e, de m o d o algum , à própria queda. D eus sabia previam ente q u e os seres h u m an o s cai riam , m as não d ecreto u n em pred estin o u , de n e n h u m a form a, tal coisa. D epois q u e os seres h u m an o s caíram , argum entava A rm ínio, o p rim eiro decre to de D eus em relação a eles foi providenciar para que Jesu s C risto fosse seu Salva dor. Então, depois disso, d ecretou que salvaria, p o r m eio de C risto , todos aqueles que se arrependessem e cressem e q u e deixaria à sua m erecida perdição aqueles q u e recusassem a salvação. A partir daí, A rm ínio com eça a analisar a predestinação dos seres h u m an o s caídos. E m p rim eiro lugar, trata-se de classes e grupos e não de indivíduos. Isto é, D eu s decreta q u e salvará os q u e crêem , todos eles. O objeto da eleição para a salvação é u m g ru p o indefinido de pessoas: os crentes. O objeto da condenação para a perdição tam b ém é u m g ru p o in d efin id o de pessoas: os incré dulos. Foi assim que A rm ínio in terp re to u o texto de Paulo em R om anos 9: tratan do-se de classes o u grupos e não de indivíduos. “A rm ínio en ten d e R om anos 9 em term o s de ‘predestinação de classes’: ‘os q u e buscam a ju stiç a pelas obras e os que a buscam pela fé’; Esaú é exem plo dos q u e buscam a ju stiç a pelas obras e Jacó, dos q u e b u sca m pela fé .”31 M as A rm ín io ta m b é m tin h a u m a ex p licação p ara a predestinação condicional dos indivíduos. E m sua presciência absoluta, D eus sabe q u em terá fé e q u em não terá.32 C o m o Paulo disse em R om anos 8.29: “Pois aq u e les q u e de an tem ão con heceu, tam b ém os p re d estin o u para serem conform es à im a gem de seu Filho; a fim de q u e ele seja o p rim ogênito en tre m u ito s irm ão s”. A predestinação de grupos, p o rtan to , é incondicional. A predestinação de indivíduos é condicional e se baseia na presciência de D eus daquilo q u e farão livrem ente com a liberdade q u e D eus lhes dá. Essa é a essência d o segundo e do q u arto decretos de A rm ínio m encionados an terio rm en te.
O sinergismo evangélico de Armínio E q u an to à graça? E n q u an to os calvinistas clássicos argum entavam q u e a graça salvífica é sem pre irresistível, A rm ínio acreditava q u e a graça significava q u e a sal vação é resistível e q u e m u ito s, inclusive nas E scrituras, resistiram à graça de D eus. M as co m o a salvação pode acontecer “u n icam en te pela graça” se os seres h u m an o s são livres para aceitá-la o u rejeitá-la? Se alguém não achar essa perg u n ta razoável, é provável que seja arm iniano! O s calvinistas e o u tro s m onergistas acreditam que, para se dar co m p letam en te pela graça, co n fo rm e Paulo afirm ou em Efésios 2, a salvação não podia ser u m a dádiva recebida “liv rem en te” n o q u e se refere à c o n tin gência. E m outras palavras, se a pessoa q u e recebe a graça para a salvação pudesse recusá-la, então, ao aceitá-la, estaria praticando u m a “boa o b ra” e m ereceria um a
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parte da salvação, p o d en d o assim jactar-se. Isso tam b ém sugere u m a capacidade co m o a do pelagianism o em q u e a pessoa co n trib u i para sua própria salvação, d e claram os m onergistas. A solução de A rm ín io para esse p ro b lem a delicado é o conceito-chave da “graça p re v en ien te”. A rm ínio sem pre foi cuidadoso ao atrib u ir toda a salvação à graça e nada às boas obras. U m exem plo típico desse cuidado está na seção sobre a graça e o livre-arbítrio da Carta endereçada a H ipólitoA. Collibus: “O m estre [de teologia] q u e atribui o m áxim o possível à graça divina tem a m in h a m ais alta aprovação, c o n tan to q u e pleiteie a causa da graça de tal m aneira que não p ro v o q u e d anos à ju stiç a de D eu s e não rem ova o livre-arbítrio para praticar o mal".33 M as co m o isso é possível? A rm ín io explicou: A respeito da graça e do livre-arbítrio, en sin o con form e as Escrituras e o co n sentim en to ortodoxo: o livre-arbítrio não tem a capacidade de fazer ou de aperfeiçoar qualquer bem espiritual gen u íno sem a graça. Para que não se diga que eu, assim co m o Pelágio, com eto uma falácia em relação à palavra “graça”, esclareço que com ela m e refiro à graça de C risto que pertence à regeneração: afirmo, portanto, que a graça é sim ples e absolutam ente n eces sária para a ilum inação da m ente, para o devido controle das em oções e para a inclinação da vontade ao que é bom . E a graça que [...] força a vontade a colocar em prática boas ideias e os bons desejos. Essa graça [...] antecede, acom panha e segue; ela nos desperta, assiste, opera para queiram os o bem , coopera para que não o queiram os em vão. Ela afasta as tentações, ajuda e oferece socorro em m eio às tentações, sustenta o h om em contra a carne, o m un do e Satanás, e nessa grande luta con cede ao h om em a satisfação da vitó ria. [...] A graça é o princípio da salvação; é o que a prom ove, aperfeiçoa e consum a. C onfesso que a m ente [...] d o h om em natural e carnal é obscura e escura, que suas afeições são corruptas e imoderadas, que sua vontade é ob s tinada e d esobediente e que o próprio h om em está m orto em pecados.34
A graça d e sc rita p o r A rm ín io nessa d ec la raç ão u m ta n to longa é a graça preveniente. E a graça q u e D eus oferece e concede a todas as pessoas de algum a form a e é abso lu tam ente necessária para q u e os pecadores caídos — m o rto s cm pecados e escravos da vontade — creiam e sejam salvos. E a graça sobrenatural, auxiliadora e o u to rg an te de Jesu s C risto . M as p o r ser p rev en ien te (acontece antes), pode ser resistida. Se a pessoa não resistir à graça preveniente e p erm itir q u e ela opere em sua vida pela fé, ela se tornará justificadora. A m udança é a “conversão”, não u m a boa obra, m as a sim ples aceitação. E aqui q u e aparece o sinergism o de A rm ínio. A vontade hu m ana, livre pela graça p reveniente (a operação do E spírito Santo d en tro da pessoa), precisa cooperar sim plesm ente aceitando a necessidade da salvação e p erm itin d o q u e D eus o u to rg u e a dádiva da fé. Ela não será im posta
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p o r D eus e o pecador não pode m erecê-la. Ela deve ser aceita livrem ente, m as até m esm o a capacidade de desejá-la e de aceitá-la se to rna possível pela graça. O c o n ceito da graça p rev en iente perm ite q u e a soteriologia de A rm ínio seja sinergista (envolvendo as vontades e atuações divina e hu m an a) sem cair no pelagianism o ou n o sem ipelagianism o. D ife ren tem en te deste ú ltim o , o sinergism o de A rm ínio co loca toda a iniciativa e capacidade de salvação a favor de D eu s e reconhece a total incapacidade do ser h u m a n o de c o n trib u ir para a p ró p ria salvação sem a graça auxiliadora sobrenatural de C risto. Está claro, p o rtanto, que A rm ínio rejeitava não som ente o supralapsarism o, com o tam bém q u alq u er conceito m onergista da salvação. N o m ín im o , negava a eleição incondicional, a expiação lim itada e a graça irresistível. N ão se pode afirm ar que negava a depravação total. A citação apresentada da Carta a Hipólito indica q u e de fato acreditava nela. A lguns rem o n stran tes claram ente não acreditavam e isso se to rn o u um a questão delicada e controversa depois da m o rte de A rm ínio. Este não negava a perseverança (a segurança etern a dos santos), m as argum entava q u e a questão não estava encerrada e advertia contra a falsa segurança e certeza. Assim co m no caso da depravação total, m u ito s arm inianos p o sterio rm e n te rejeitaram a perseverança incondicional e ensinaram que a pessoa pode p erd er a salvação por indiferença e tam b ém pela rejeição consciente da graça. M uitos o u tro s arm inianos passaram a crer na segurança eterna dos g en u in am e n te regenerados e justificados pela graça.
O legado do arminianismo U m a questão ainda debatida pelos estudiosos de A rm ínio é se a sua teologia era um a alternativa à teologia reform ada o u u m a adaptação dela. R ichard M u ller su sten ta q u e era u m a alternativa e, co m o prova, indica a fo rte ênfase d c A rm ín io à autolim itação dc D eus. O s teólogos reform ados posteriores a C alvino reco n h eci am a condescendência dc D eus na revelação, m as negavam u n an im em en te q ual q u e r autolim itação de D eus na providência o u predestinação.35 C ari Bangs su sten ta a opinião de q u e a teologia de A rm ínio representa um a adaptação e desenvolvi m en to da teologia reform ada.36 E m bora o p ró p rio A rm ínio quase certam en te e n tendesse dessa form a sua teologia, M u ller está m ais próxim o da verdade. A teolo gia da A rm ín io é to talm en te protestante, m as não reform ada. O teólogo holandês se propôs refo rm ar a teologia reform ada, m as acabou criando u m paradigm a p ro testante to talm en te diferente. O s anabatistas argum entariam , com razão, q u e se tratava de um paradigm a q u e Baltasar I Iubm aier e o u tro s pensadores anabatistas com eçaram a desenvolver quase u m século antes. Ele poderia ser ch am ado de “sinergism o evangélico”. O arm in ian ism o , em bora politicam ente re p rim id o e p o sterio rm e n te m argina-
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lizado 110 país de origem , radicou-se e floresceu em solo inglês no fim do século xvi. M u ito s líderes da Igreja da Inglaterra foram sim páticos a ele 110 início e, poste rio rm en te, ad o taram -n o ab ertam ente. E m bora Os trinta e nove artigos de religião da Igreja da Inglaterra incluíssem a afirm ação da predestinação, o arm in ian ism o to r n o u -s e opção p e rm a n e n te da tradição anglicana. N o sécu lo xvii, u m a era de racionalism o e avivam ento na Inglaterra e na N ova Inglaterra, os arm inianos divi diram -se em dois grupos: arm inianos de m en te e arm inianos de coração. O s p ri m eiros pen d iam para o deísm o e a religião natural e os ú ltim os, para o pietism o e o avivam ento. A história desses m ov im en to s será contada nos capítulos posteriores. Basta d izer q ue, n o cristianism o da era m o d ern a de língua inglesa, é possível ser arm in iano liberal o u arm in ian o evangélico. O m o v im en to m etodista prim itivo, fu ndado p o r J o h n e C harles Wesley, bem co m o m u ito s batistas prim itivos re p re sentavam o seg u n d o tipo de arm inianism o, en q u a n to os deístas e os pensadores protestantes liberais dos séculos xvin e xix representavam o prim eiro. C o m esses m o vim entos, a teologia arm iniana paulatinam ente to rn o u -se parte das grandes te n dências do p en sam en to p rotestante na Inglaterra e nos Estados U n id o s — para desgosto dos protestantes reform ados m ais tradicionais. C o m o vim os, depois da m o rte dos p rim eiro s reform adores, seus herdeiros o r todoxos e escolásticos elevaram à im portância p rim ordial as questões da exatidão do u trin ária e litúrgica. A lguns críticos diriam que as igrejas nacionais protestantes m agisteriais da E uropa e da G rã-B retan h a declinaram até se to rn arem “ortodoxia m o rta” q u e crê na regeneração batism al, no clericalism o e n o co n stan tin ism o . Essa situação provocou a reação dos m inistros das igrejas estatais cham ada pietism o. E n tre outras coisas, ela tentava v incular a justificação à conversão, e a regeneração ao com eço de u m a vida de santificação verdadeira. T am bém censurava a ênfase exagerada à ortodoxia d o u trin ária e a indiferença diante da experiência espiritual co m o sinal au tên tico do cristianism o e criava lem as com o: “m e lh o r u m a heresia viva do q u e um a ortodoxia m o rta!”. E para a história d o p ietism o e de sua tentativa de refo rm ar a teologia p rotestante nos séculos xvi e xvii q u e agora dirigirem os nossa atenção.
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S e g u n d o os in térp retes m o d ern o s, “u m dos m o v im en to s m en o s com p reen d id o s da história do cristianism o é, sem dúvida, o p ietism o ”.' U m historiador do pietism o nota q ue esse ró tu lo é geralm ente usado pelos teólogos com sen tid o negativo: “O pietism o denotava subjetivism o, individualism o e rep ú d io ao m u n d a n ism o ”.2 Em linguagem sim ples, o pietista é, em geral, u m a pessoa farisaica, q u e se co m porta com o se fosse “m ais santo d o v ós” o u u m a pessoa ex trem am en te espiritual que, de tanto pensar no céu, de nada serve na terra. São, todavia, conceitos falsos e estere ótipos q u e não têm quase relação com o m o v im e n to histórico cham ado pietism o qu e surgiu nos séculos xvii e x v i i i , p rim ariam en te e n tre os luteranos na A lem anha. O pietism o era o m o v im en to de renovação q u e preten d ia co m p letar a R eform a protestante iniciada p o r M artin h o Lutero. Seus principais pensadores e líderes eram clérigos lu teran o s q u e sinceram ente adm itiam os princípios protestantes fu n d a m entais sola Scriptura, sola gratia et ftdes e o sacerdócio de todos os crentes. D ificil m en te, ou talvez nu n ca, ro m p eram com as confissões básicas da tradição luterana. T in h am L utero co m o grande herói e citavam -no co m freqüência, em b o ra descar tassem algum as de suas idéias características, co m o o D eus oculto. O principal arg u m en to do p ietism o era q u e a reform a luterana foi u m excelente com eço para um m o v im en to de renovação, m as ficou incom pleto. “O p ietism o reiterava o tem a de que a reform a d o u trin ária iniciada p o r L utero precisava ser consum ada p o r um a nova reform a da vida.”3 M esm o depois de descartar as distorções e conceitos errô n eo s sobre o pietism o, resta o p ro b lem a de d efinir o te rm o e identificar os c o n to rn o s exatos do m o v im e n to. Q u a n d o o pietism o com eçou? Q u e pensadores e idéias fazem parte dele? Q uais eram suas principais características e idéias? M uitas pessoas, inclusive alguns estu diosos, em pregam o te rm o pietismo para expressar q u alq u er form a de religião expe rim en tal, especialm ente o cristianism o experim ental. P ortanto, se d eterm in a d o pen sad o r ou líder cristão enfatiza m ais a experiência d o q u e o e n te n d im e n to a
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respeito de D eus ou a devoção pessoal do q u e a crença d outrinária, há q u em o considere pietista. O grande m atem ático e filósofo católico francês Blaise Pascal (1623-1662), às vezes, é considerado pietista em sen tid o lato. E studiosos da história da teologia m ais cuidadosos e exatos, no entanto, re strin gem o uso do term o pietism o (g enuníno) ao m o v im e n to específico d en tro do p ro testan tism o alem ão nos séculos xvi c xvii, q u e teve efeitos d u ra d o u ro s e deixou um legado significativo para o cristianism o p rotestante posterior. O s cristãos m o d er nos que seguem os passos dos líderes desse m o v im e n to dc reform a e de renovação são realm ente pietistas no sen tid o histórico. A qui, estudarem os o m o v im e n to his tórico específico e em pregarem os o term o pietismo exclusivam ente para ele. Ele n u n ca foi e ainda não é um a denom inação específica ou u m m o v im en to com u m núcleo. Pelo contrário, o p ietism o era e co n tin u a sendo u m “esp írito ” o u u m “e to s” m ais do q ue q u alq u er tipo de form a socialm ente perceptível.4 A tualm ente, quase toda d en om inação p ro testante tem u m a ala pietista, q u e r receba esse no m e ou não. Existem , tam b ém , algum as denom inações vivas e ativas q u e consideram o m ovi m en to pietista do p eríodo pós-R eform a sua origem . U m exem plo paradigm ático de um a delas é a Igreja Evangélica da Aliança nos Estados U n id o s, q u e com eçou na Suécia com os luteranos pietistas q u e deixaram a Igreja L uterana sueca p o r q u es tões relacionadas ao pietism o. Q ual era, e ainda é, a m arca característica d o p ietism o protestante? U m intér prete atual disse q u e o “p ietism o ressaltava a experiência religiosa pessoal, especial m en te o arrep en d im en to (a experiência da própria indignidade diante de D eus e da necessidade dc graça) e a santificação (a expcriência do crescim ento pessoal na santidade, q ue envolve o progresso até o cu m p rim e n to co m p leto o u perfeito da intenção de D e u s)”.5 L utero enfatizou a obra objetiva dc D eus “em nosso favor” em Jesu s C risto e sua característica na teologia foi a salvação co m o declaração fo rense do perdão c da im putação da ju stiç a de C risto ao pecador. Em outras pala vras, L utero ressaltava a justificação pela graça m ediante a fé som ente, a salvação com o m u d an ça objetiva n o relacionam ento ju ríd ic o da pessoa com D eus. N a tu ralm ente, pod em o s en co n trar em L utero outras características e ênfases. L utero jam ais negou o renascim ento e a renovação da pessoa justificada pelo p o d er do E spírito Santo de D eus. Em alguns m o m en to s, até reconhece isso. C ostum ava equiparar a experiência da regeneração pessoal ao batism o. O s pietistas originais concordavam to talm en te com L utero a respeito da d o u trin a da justificação, e m b o ra, com o a m aioria dos luteranos depois de L utero, suprim isse seu m o n erg ism o e adotasse um a d o u trin a paradoxal da soberania divina e d o livre-arbítrio h u m an o o u se voltassem m ais para o sinergism o evangélico. D e q u alq u er form a, os pietistas concordavam com L u tero que a salvação é exclusivam ente obra de D eus e dádiva que o ser h u m an o não pode, de form a algum a, o b ter p o r m érito.
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O s pietistas sim p lesm ente acreditavam q u e L u tero tin h a sido unilateral na ê n fase dada aos aspectos objetivos da salvação e q u e os luteranos desprezaram ainda mais o lado subjetivo e in terio r da salvação. E n ten d iam q u e cabia a eles com pletar e levar à co nsum ação a R eform a pro testan te iniciada p o r L utero, ressaltando a obra graciosa de D eu s 110 crente, q u e o transform a em nova criatura em C risto Jesus. A experiência pessoal com D eus, p o rtan to , era o en fo q u e e a ênfase dos pietistas. Para eles, o v erd adeiro início da existência cristã podia ser o batism o, m as p o r si só ele é insuficiente, m esm o q u an d o acom panhado da fé. A m udança de vida, cham a da conversão, precisa acontecer em algum m o m e n to ou a p artir da idade do des pertar da consciência e deve ser acom panhada p o r u m coração tran sfo rm ad o e nova disposição pelas coisas de D eus, caso contrário, não é genuína e o cristianis m o autên tico não existe nessa pessoa. N ã o é co rreto dizer q u e L utero concordaria com isso. O s pietistas achavam q u e sim . Seus críticos insistiam q u e L u tero teria rejeitado a idéia da d o u trin a da conversão pessoal co m o aspecto necessário da ini ciação cristã.
Antecedentes da ortodoxia luterana Assim com o o arm in ianism o foi um a reação e rejeição à teologia reform ada pósC alvino (o escolasticism o e supralapsarism o reform ados), o p ietism o tam b ém foi u m a reação e rejeição à ortodoxia luterana pós-L utero. E im possível e n te n d e r o pietism o p ro testan te h istórico sem ter n e n h u m co n h e cim en to da teologia luterana e das igrejas luteranas estatais do século xvn. A expressão “ortodoxia lu teran a” foi cun h ad a pelos historiadores da teologia para descrever o en rijecim en to geral das categorias d o u trin árias desse ram o d o pro testan tism o depois de L utero. E u m pa ralelo aproxim ado do escolasticism o reform ado. U m a o u duas gerações após a m o rte de L utero, os principais teólogos luteranos com eçaram a sistem atizar racio nalm ente a d o u trin a q ue, não raro, incluía teologia natural, lógica aristotélica e form ulações dou trin árias exageradam ente detalhistas. O trabalho da teologia nas principais universidades luteranas “to rn o u -se cada vez m ais árido e objetivo, com o se a relevância da teologia se encontrasse basicam ente em u m a série de verdades q u e pudessem ser fo rm alm en te declaradas em proposições a serem transm itidas de um a geração para o u tra ”.6 J u n to com as tendências escolásticas e racionalistas da ortodoxia, surgiu um a abordagem polêm ica à pregação e ao ensino. Isto é, com o os principais teólogos daquele tipo d o m in an te de teologia na A lem anha do século xvn se envolveram em debates calorosos co n tra o cristianism o reform ado e uns co n tra os o u tro s; a m arca do teólogo verd ad eiram ente grandioso era cada vez m ais, a proeza de d e stru ir seus op o n en tes ao d em o n strar as falhas de suas teologias. P ouco 011 nada de co n stru tiv o se realizou com esse tipo de teologia, a não ser novas m aneiras de ordenar e reordenar
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as d o u trin as clássicas. M u ita energia foi despendida com críticas a outras fo rm u la ções d o u trinárias e sistem as teológicos. Era este o tipo de teologia na qual a m aioria dos pastores luteranos alem ães era treinada nas universidades alem ãs do século x v ii . E m d ecorrência disso: O espírito escolástico [da ortodoxia luterana] estendeu uma m ortalha de intelectualism o sobre a fé cristã. As pessoas tinham a im pressão de que o cristianism o consistia no recebim ento da Palavra salvífica de D eu s pela pre gação e pelos sacramentos, além da aderência leal às confissões luteranas. D iziase q ue, com p oucas e x c eç õ es, os p astores evitavam q ualq uer ên fase à interioridade.7
N o século p ó s-R eform a, o cristianism o luterano na A lem anha en tro u em u m estado de letargia espiritual, m oral e teológica. E claro q u e havia exceções notáveis. D e m o d o geral, p o rém , o cristianism o au tên tico era identificado co m o correção do u trin ária e sacram ental, tan to que: As igrejas territoriais em geral acreditavam que cristão é todo aquele que foi batizado, que m antém conexão formal com a igreja ao empregar, p elo m enos ocasionalm ente, os m eios da graça, e que acredita, de m odo geral, nas verda des definidas pelos sím bolos doutrinários [credos e confissões] da sua co m u nhão e adere às suas formas de culto [liturgias].8
E x em p lo notável dessa ten d ên c ia foi o a u m e n to da cren ça na regeneração batism al, inclusive aceitação im plícita da antiga idéia ex opere operato de q u e o batis m o auto m aticam en te realiza a salvação, co n tan to que não haja resistência consci ente à graça divina. L utero se opôs a essa d o u trin a católica, m as seus ensinos a respeito da fé im plícita o u infantil pareceram excêntricos para m uitas pessoas. Por isso, p referiram confiar no batism o infantil co m o garantia autom ática da salvação. A lém disso, a forte ênfase de L utero ao aspecto forense da justificação era in te rp re tada p o r m u ito s m in istro s e leigos co m o u m m o d o de evitar a necessidade da san tidade pessoal na vida ou até m esm o d o aperfeiçoam ento m oral. O pietism o foi o m o v im en to q u e surgiu n o contexto da ortodoxia luterana, que m u ito s pietistas cham avam de “ortodoxia m o rta ”. Para eles, pelo m enos, ela não revelava n e n h u m a vida espiritual real. O lem a pietista popular “m e lh o r u m a h e re sia viva do que um a ortodoxia m o rta ” talvez seja a abreviação da declaração m aior de u m dos fu n dadores do p ietism o q u e p erg u n to u aos seus colegas, m in istro s da igreja estatal luterana da A lem anha: “D e q u e adianta nossos ouvintes ficarem livres de todos os erros papais, reform ados, socinianos etc., m as com isso terem u m a fé m orta pela qual são m ais severam ente co n denados d o q u e todas as vidas m elhores
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lastim avelm ente heterodoxas?”.9 U m aspecto fu n d am en tal d o pietism o, portan to , era a forte distinção e diferença visível en tre o cristianism o au tên tico e falso, ou en tre a fé cristã viva e m orta. A ortodoxia luterana desprezava essa distinção a não ser q u an d o seguia as linhas d outrinárias. O cristianism o au tên tico era equiparado com o batism o, o cu lto e a d o u trin a apropriados d en tro da tradição luterana. O s pietistas rejeitavam esse conceito p o r considerá-lo banal e superficial. Q u e riam identificar o cristianism o au tên tico em term o s da experiência g en u ín a da transfor m ação in terio r pelo E spírito de D eus. Para eles, p o rtan to , os critérios verdadeiros do cristianism o eram a o rtopatia (os sen tim en to s certos) e a ortopraxia (o viver certo), além da o rtodoxia (a crença certa). E os três n u n ca p o d em estar separados. A lém disso, acreditavam e argum entavam que a m aneira m ais confiável de garantir a ortodoxia era p ro m o v er a ortopatia e a ortopraxia. A experiência certa e o viver certo co n d u ziriam necessariam ente à crença certa.
Quatro autores e formadores do pietismo Johann A m dt. O m o v im e n to pietista não tin h a u m ú n ico líder. Pelo contrário, q u atro p ersonagens se destacam co m o seus m aiores pensadores e defensores nos séculos xvii e xviii na A lem anha. O p re cu rso r d o p ietism o foi Jo h a n n A rn d t (15551621), figura p o u co co n h ecid a q u e escreveu u m livro de grande influência que m u ito s h isto riad o res co n sid eram a “B íblia” do pietism o: Quatro livros sobre o cristi anismo verdadeiro (1610). P ouco se sabe da vida de A rndt, a não ser q u e foi m in istro lu tera n o m u ito respeitado m as u m po u co co n tro v e rtid o , q u e tin h a tendências m ísticas e q u e p asto reou igrejas em E isleben (cidade natal de L utero) e C elle na A lem anha. E n tre 1606 e 1609, escreveu um livro devocional, q u e se to rn o u co nh ecid o na A lem anha sim p le sm e n te co m o Cristianismo verdadeiro. D u ra n te m u i tos anos, foi a o b ra religiosa m ais lida e m ais in flu en te da A lem anha depois da Bíblia. A rn d t enfatizava a necessidade de to d o cristão passar pela experiência de renovação pessoal pelo a rre p e n d im e n to e pela fé e de u m novo n ascim ento. Em vez de ressaltar a ju stificação pela fé (que nu n ca negou), o p re cu rso r d o p ietism o escreveu e pregava a respeito da un ião com C risto e da transform ação q u e cham a va de “vida nova”. S eg u n d o A rndt, em cada cristão existe tan to o “v e lh o ” q u a n to o “novo h o m em in te rio r”. O s dois travam u m a luta m ortal e a vitória d o ú ltim o — que é a im agem de C risto n o ín tim o — d ep en d e d o a rre p e n d im e n to g en u ín o e da fé verdadeira. A rn d t distinguia o arrep e n d im en to externo (falso) d o arrep e n d im en to in tern o (genuíno): “O arre p e n d im e n to g en u ín o acontece q u an d o , de pesar e arrep en d i m en to , o coração se parte, é d estru íd o , abatido e, pela fé e pelo perdão dos pecados, é santificado, consolado, purificado, tran sfo rm ad o e m elh o rad o , de tal m aneira q u e a vida é m elh o rad a”.10 D istin g u iu , tam b ém , a fé verdadeira da falsa. A respeito
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da fé verdadeira escreveu: “C o m confiança e segurança, o h o m em oferece to d o o seu coração a D eus, confia so m en te nele, entrega-se a ele, apega-se apenas a ele e un e-se a ele”." Tanto o v erdadeiro arrep e n d im en to q u an to a verdadeira fé, p o rta n to, inclu em o cerne an tropológico identificado p o r todos os pietistas com o “cora ção”. Tam bém incluem sen tim en to s e em oções, em b o ra A rndt não escrevesse com detalhes a respeito destes. Essencial para ele, e tam b ém para os pietistas posteriores, é q u e o cristianism o verdadeiro não pode ser p u ra m e n te objetivo, superficialm ente co n fo rm ad o às fór m ulas de d o u trin a, aos sacram entos 011 à liturgia. Ele se m anifesta cm m udanças visíveis nas atitudes, nas afeições e no m o d o de vida d o cristão. O co n h ecim en to verdadeiro de D eus en contra-se em p rim eiro lugar n o cam po afetivo do coração e depois n o plano intelectual. E m Cristianismo verdadeiro, A rndt arg u m e n to u de m odo tipicam ente pietista que a pureza d o en sin o e da d o u trin a seria m elh o r m antida pelo arrep e n d im en to g en u ín o e pelo viver santo do q u e nas disputas teológicas e nos livros de teologia sistem ática. O q u e n o tad am en te falta nas reflexões de A rndt é a ênfase 110 batism o. A ortodoxia luterana argum entava q u e o cristianism o v erda deiro é a renovação diária d o batism o, pela confissão das prom essas dc D eus acerca dele. N ão foi p o r sim ples esq u ecim en to que A rndt desco n sid ero u o batism o u m c o m p o n en te im p o rtan te d o cristianism o verdadeiro. A influência de A rn dt sobre o pietism o foi profunda. A lguns estudiosos consi d eram -n o o verdadeiro pai do pietism o e atrib u em o início d o m o v im e n to à sua obra Cristianismo verdadeiro. U m desses historiadores da teologia afirm a q u e “o re lacionam ento en tre A rndt e o pietism o luterano está 110 fato de ele ser o iniciador do m o v im en to . Por causa de sua influência, ele com eçou a florescer rapidam ente e, então, reccbcu as contribuições dc S pcner e de F rancke”.12 O u tro s estudiosos consideram A rn d t o p recu rso r e arauto d o p ietism o lu tera n o .13 Essa ú ltim a opinião é provavelm ente m elhor, sim plesm ente p o rq u e A rn d t não propôs n e n h u m p ro gram a para a reform a pietista do p ro testan tism o o u da igreja estatal luterana e não liderou n e n h u m m o v im ento. Apenas escreveu u m livro q u e ajudou a estabelecer os alicerces para a po sterior reform a e renovação. E o u tro s o desenvolveram . PhilippJakob Spener. O patriarca do p ietism o é P hilipp Jakob Spcner, q u e nasceu em 1635, na Alsácia p erto d o rio R eno q u e separa a A lem anha da F rança.14 Q u a n d o m en in o , teve com o m adrinha um a m u lh e r rica, poderosa e p ro fu n d am en te religi osa cham ada condessa Ágata von R appoltstein, que m orava em u m castelo p e n o da casa dele. Lá, o jo v e m leu e discutiu o Cristianismo verdadeiro e foi educado p o r sua m en to ra espiritual 110 tipo de cristianism o do coração. A condessa aju d o u a conse g u ir c a pagar a educação teológica de S pcner em E strasburgo e Basiléia. Ele tam bém passou algum tem po em G enebra o n d e foi influenciado pelo pregador refor m ado m ístico c h a m a d o jo ã o de Labadie (1610-1674), q u e exortava seus seguidores
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a confiar na experiência in terio r m ais do q u e nos sacram entos para garantir a salva ção. Q u a n d o recebeu o p rim eiro pastorado em F rankfurt, na A lem anha, S pener já era u m “cristão do coração” convicto, q u e acreditava piam ente q u e a vida eclesiás tica e a teologia de seu país precisavam de reform a. A p artir da plataform a de seu cargo in flu en te co m o m in istro de hierarquia mais elevada de to d o o m in istério de F rankfurt, S pener im p lan to u u m program a de renovação, fu n d an d o collegia pietatis (encontros para a piedade), q u e tam b ém passa ram a ser cham ados de “conventículos de F ran k fu rt”. E ram grupos p equenos de cristãos q u e se reu n iam nas casas e nas igrejas para oração, estu d o da Bíblia e deba tes sobre serm ões e o viver cristão. A tualm ente, a m aioria das pessoas considera isso norm al. M u ito s até preferem ingressar fo rm alm en te na igreja. Em 1670, 110 en tanto, eles eram considerados inovação radical e rapidam ente se to rn aram c o n troversos. M u ito s pastores e governantes fora de F rankfurt se opuseram ao m ovi m en to de co n v entículos, p o rq u e parecia d im in u ir a distância en tre clérigos e leigos e abria espaço para a interpretação e exposição das Escrituras e da d o u trin a aos leigos. Spener, no en tan to , acreditava ard en tem en te 110 p rincípio p rotestante do sacerdócio de todos os crentes e achava q u e isso estava sendo desprezado no am b i ente da ortodoxia luterana das igrejas estatais. Em bora insistisse q ue os conventículos fossem dirigidos p o r m em b ro s treinados do clero luterano, tam b ém ordenava a participação de leigos, q u e oravam , faziam as leituras bíblicas e debatiam aberta m en te o significado dos serm ões. O objetivo dos collegia pietatis era in fu n d ir o “cris tianism o d o coração”, um a vida m ais p ro fu n d a de devoção a C risto e o crescim en to da santidade pessoal. O s críticos consideravam q u e se tratava da negação sutil da d o u trin a lu terana simul justus et peccator (salvo e pecador ao m esm o tem po). M u ito s h istoriadores atrib u em o início do p ietism o p ro p ria m e n te dito ao ano da publicação d o p eq u en o vo lu m e de Spener, Pia desideria, em 1675. O títu lo signi fica “desejos p iedosos” e o livro co n tém um a crítica arrasadora das condições exis tentes na igreja estatal luterana, b em co m o um program a de reform a. E considera do o texto clássico do pietism o e já foi traduzido para m u ito s idiom as. Três séculos depois de ter sido escrito, ainda co n tin u a cm circulação. O títu lo co m p leto do vo lu m e é Pia desideria ou sinceros desejos de uma reforma na verdadeira igreja evangélica que seja agradável a Deus, além de várias propostas cristãs simples para a sua implementação. Lem bretes aos m in istros co m o este são co m u n s em to d o o livro: L em brem o-nos de que, 110 ju íz o final, não serem os questionados [por D eu s] se fom os eruditos c se dem onstram os a nossa erudição ao m un do, se desfru tamos do favor dos h om ens e sou bem os m antê-lo, se fom os exaltados e se tínham os grande reputação no m un do que deixam os para trás o u se reuni m os m uitos tesouros em bens terrenos para n ossos filhos e com isso atraímos
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uma m aldição contra nós. Pelo contrário, serem os questionados se fom os fiéis, se ensinam os coisas puras e piedosas e d em os exem plo digno, procu rando edificar os nossos ouvintes em m eio ao desprezo do m undo, se fom os abnegados, carregando a cruz e seguindo o nosso Salvador, se fom os zelosos ao nos opor não som ente ao erro mas também à iniqüidade da vida ou se fom os constantes e dispostos a suportar a perseguição e a adversidade lançadas sobre nós pelo m un do m anifestam ente ím pio c pelos falsos irmãos e se, em m eio a esses sofrim entos, louvam os ao n osso D e u s.15
S pener condenava d u ra m e n te os defeitos das autoridades, tan to civis q u an to religiosas, na A lem anha dos seus dias. E n tre eles citava a im oralidade excessiva, falta de sinais da conversão genuína, m esm o en tre os clérigos, apego à controvérsia e crença exagerada na “engenhosidade h u m a n a ” na teologia e na vida eclesiástica e falta de crença na ilum inação divina do E spírito Santo. C ondenava a “ilusão vergo n h o sa” do opus operatum (eficácia autom ática) no batism o e censurava o cristianis m o form al e n o m inal q ue não tocava o coração e nem transform ava vidas. Longe de rejeitar o luteranism o, S pener escreveu: “A d o u trin a da nossa igreja não pode ser culpada p o r nada disso, pois se opõe vigorosam ente a tais ilusões”.16 Aprovava o batism o infantil, em b o ra condenasse a falsa segurança de algum as pes soas p o r causa dele. Advogava m ais disciplina na igreja e propôs u m program a de reform a e renovação do cristianism o au tên tico para a igreja estatal. O program a é descrito na seção cham ada “Propostas para corrigir as condições da igreja” e c o n tém seis etapas concretas, inclusive a dissem inação da prática dos collegia pietatis, a responsabilidade espiritual, m ais irenism o nas controvérsias religiosas e m aior ê n fase à vida espiritual 110 trein a m e n to m inisterial. A cim a de tu d o , S pener defendia a lim itação do cargo de m in istro para os cristãos q u e fossem realm ente convertidos e que m ostrassem sinais disso: “N ã o seria m á idéia se todos os alunos fossem o b ri gados a trazer de suas respectivas universidades relatórios a respeito de sua piedade e não apenas de sua diligência e perícia nos estu d o s”.17 N o fim de Pia desicieria, o autor revela o propósito fundam ental d o pietism o: a d o u trin a d o “h o m em in te rio r” o u d o “novo h o m e m ”. Esse conceito provém d ire tam en te de A rndt. S pener redefiniu o cristianism o autêntico, sem se ce n trar 110 batism o e na ortodoxia, enfatizando a experiência da transform ação interior: “N ossa religião cristã inteira consiste n o h o m em in terio r ou n o novo h o m em , cuja alm a é a fé e cujas expressões são os frutos da vida, e todos os serm ões devem visar esse p ro p ó sito ”. N ã o basta escutarm os a Palavra apenas com os ouvidos, pois devem os deixála penetrar em nossos corações, para que com ele possam os escutar a voz do Espírito Santo, ou seja, com grande em oção e conforto sentir a confirm ação
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do Espírito e o poder da Palavra. Nem basta sermos batizados, mas o homem interior, que revestimos de Cristo no batismo, deve também se revestir de Cristo e dar testem unho dele na vida exterior.18 S pener foi expulso de F ran k fu rt p o r causa das controvérsias. Em 1686, to rn o u se capelão da corte d o príncipe da Saxônia, o eleitor Jo h a n n G eo rg ui em D resden. Lá, co n tin u o u a defesa fervorosa e profética do cristianism o d o coração e acabou ganhando a antipatia d o p ríncipe m u n d an o . Em 1691, m u d o u -se para B erlim , onde se to rn o u pastor da in flu en te Nikolaikirche (Igreja de São N ico lau ) luterana e aju do u líderes m ais jo v en s do p ietism o a divulgarem o m o v im e n to na A lem anha e Escandinávia. S p en er m o rre u em 1705 em B erlim e, a seu pedido, foi sepultado com vestes brancas em u m caixão branco, co m o sím bolo da esperança em seu fu tu ro no céu e n o fu tu ro da cristandade. Seu biógrafo observa q u e “na época da m o rte de Spener, o p ietism o já era u m m o v im e n to florescente nas igrejas luteranas de toda a A lem anha”.19 Auguste Hennann Francke. Se Spener foi o patriarca do pietism o, Auguste H erm an n Francke foi seu gênio organizador.20 Francke nasceu em 1663 na cidade universitá ria de Lübeck, em u m lar p ro fu n d am en te influenciado pelo pietism o de Spener. Sua família tam b ém tinha fortes tradições intelectuais e vínculos com a ortodoxia luterana. E m 1684, co m eçou seus estudos teológicos na U niversidade de Leipzig, “o u n iv ersalm en te reco n h ecid o baluarte da ortodoxia lu teran a”.21 N ão d em o ro u a assu m ir a posição de liderança n o m o v im e n to pietista local ch am ad o collegium philobiblicum o u “g ru p o de am antes da Bíblia”. E m 1687, passou p o r um a conver são radical acom panhada de m u ito s conflitos e em oções. Foi convidado a pregar em u m a igreja e na noite da véspera de seu serm ão, percebeu q u e não era n em u m cren te verdadeiro de D eu s e Jesu s C risto. T inha apenas “c o n h e cim en to s na m e n te” e n e n h u m a “experiência n o coração”, co n fo rm e diriam os pietistas. E m sua autobiografia, escreveu: “T om ado de preocupação e dúvida, caí de jo elh o s, m as, com alegria inefável e grande certeza, levantei-m e. Q u a n d o m e ajoelhei, não acre ditava q u e D eus existia, m as ao m e levantar acreditei ao p o n to de d ar m eu sangue sem m ed o n em dú v id a”.22 Francke fez da própria experiência de conversão de Sturm und Drang (tem pestade e aflição) a n o rm a para toda a iniciação cristã genuína, e m bora não exigisse q u e as pessoas soubessem co m o ele a data exata de sua conversão. O p o n to central de seus escritos teológicos era o q u e cham ava de experiência de Busskampf: “a luta d o a rre p e n d im e n to ”. Q u e m não a experim entasse de algum a form a, não poderia ter a certeza de possuir a fé cristã autêntica. Francke logo foi atraído para o círcu lo de S p en er e d ed ico u -se ao program a de refo rm a da igreja estatal luterana. D epois de se form ar, to rn o u -se p regador e m es tre p o p u lar e c e n tro de considerável controvérsia. Seus colegas em Leipzig se
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queixaram e o acusaram , ju n to com Spener, de co m ete r m ais de seiscentas h eresi as! Sem dúvida, as acusações baseavam -se m ais na inveja profissional e em m al e n ten d id o s do q u e em q u alq u er co n h e cim en to verdadeiro a respeito de seus en si nos. Em 1690, Franckc ajudou a fu n d ar a nova U niversidade Pietista de H alle, o n d e S pcner foi forte influencia. A lém disso, pastoreou um a igreja luterana e fu n d o u várias instituições de caridade, que se to rn aram conhecidas com o Instituições Francke. Elas tin h am escolas para os ricos e para os pobres, um orfanato, um a editora e u m cen tro m issionário. Francke obteve o patrocínio do rei da D inam arca para m u ito s de seus em p re en d im en to s caridosos e m issionários e, com o apoio dele, enviou à índia os prim eiros m issionários estrangeiros protestantes. Era u m h o m em de grande charm e pessoal, carism a, integridade e dedicação e to rn o u -se o ed u cad o r m ais respeitado e pro cu rad o da A lem anha. T in h a livre circulação tanto en tre os ricos e poderosos q u an to en tre os pobres e op rim id o s e se com padecia destes, em bora buscasse a sim patia daqueles para o b ter apoio financeiro e político. Q u a n d o m o rre u cm 1727, era co n hecido em toda a A lem anha e em boa parte da E uropa com o o líder do pietism o e u m a das forças m ais poderosas do cristianism o protestante. C o m o observa certo historiador: “ele foi o iniciador, fu n d a d o r e o líder vitalício dc u m em p re en d im en to caridoso q u e co n q u isto u a m en te e a ad m i ração de pessoas d o m u n d o inteiro. N u n c a se tin h a visto coisa sem elhante na longa história da igreja cristã”.23 Nikolaus Ludwig von Zinzendorf. U m a das personagens m ais incom paráveis de toda a história da teologia cristã é N ikolaus L udw ig von Z in z e n d o rf o u conde Z in zen d o rf. Seu n o m e oficial, inclusive o títu lo de nobreza, era N ikolaus Ludwig, co n d e e sen h o r de Z in z e n d o rf e P ottendorf. N asceu em 1700 em D resd en , onde a influência de S pener ainda era forte. Se S pener foi o patriarca do p ietism o e Francke o gênio organizador, Z in z e n d o rf foi o profeta excêntrico. D e certo m o d o , levou o pietism o ao extrem o, ainda q u e perm anecesse d en tro dos parâm etros da teologia ortodoxa luterana. O em in en te teólogo luterano e histo riad o r eclesiástico, G eorge Forell, ch am o u Z in z e n d o rf “o nobre ‘fanático de Jesu s’” e fez a notável declaração de q u e ele foi “o teólogo alem ão m ais influente de L utero a S chleierm acher [...] e que, aliás, nun ca estu d o u teologia”.24 O u tro histo riad o r cham a Z in z e n d o rf “gênio de m uitas facetas” e “um a das figuras m ais controvertidas de sua era”.25 Z in z e n d o rf foi um garoto notável, criado pela avó pietista I Ienrietta von G erstorff, que era p ro fu n d am en te envolvida n o m o v im en to pietista de S pener e Francke na Saxônia. S pener to rn o u -se p ad rin h o de Z inzendorf. D esde peq u en o , o conde assi m ilo u a rica vida devocional da avó e teve suas próprias experiências espirituais profundas. Aos seis anos de idade, escrevia poesias declarando o am o r a C risto e na pu b erd ad e conduzia reuniões de oração de fam iliares e am igos. D e acordo com a opinião geral, era u m prodígio espiritual destinado à liderança religiosa. Aos dez
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anos de idade, Z in z e n d o rf com eçou a estudar em Ila lle sob a orientação de Francke. Essa experiência foi “d u ra e am arga” p o rq u e seus colegas de classe consideravam n o excêntrico. Francke tam b ém o tratava com severidade p o r p erceber certa sober ba espiritual n o jo v e m nobre. Aos dezesseis anos, com eçou a estu d ar D ireito na U niversidade de W itten b erg e lá aju d o u a fu n d ar u m g ru p o pietista cham ado “O r dem d o G rão de M o stard a”. D epois de form ado, trabalhou para o governo e c o m p ro u u m a p ro p rie d a d e p a rtic u la r em B cth elsd o rf, q u e c h a m o u d e Herrnhut: “G uardião d o S e n h o r”. E m 1727, Z in z e n d o rf convidou u m g ru p o de exilados religiosos provenientes da B oêm ia a se estabelecer em sua propriedade. E ram m em b ro s perseguidos da igreja cham ada Unitas F m rutn ou U n ião dos Irm ãos, cujas raízes rem ontavam ao refo rm ad o r p ré -p ro testan te Jo ão H u s, q u e foi co n d en ad o à fogueira pelo C oncílio de C o n stan ça em 1415. O s irm ãos boêm ios se estabeleceram p o r algum tem p o na M orávia e p o r isso foram cham ados de “m orávios” na A lem anha. Para todos os efeitos, fo rm aram seu p ró p rio ram o do p rotestantism o. C en ten as deles estabeleceram -se na pro p ried ad e de Z in z e n d o rf e este se to rn o u seu se n h o r e p ro teto r feu dal. P o sterio rm en te, to rn o u -se tam b ém o bispo e líder espiritual deles. O excên trico conde alem ão d ecididam ente fru stro u -se em seu desejo de ser pregador e teólogo, m as acabou ap ren d en d o sozinho o suficiente de teologia para ser o rd e n a do na igreja estatal luterana. A ssim , to rn o u -se clérigo o rd e n ad o do lu teran ism o e também bispo de u m a organização religiosa separada, a Igreja dos Irm ãos M orávios, cujos m em b ro s (inclusive Z in ze n d o rf) se to rn aram p o p u larm e n te conhecidos no m u n d o inteiro co m o “m orávios”. O s irm ãos m orávios se aproxim avam m ais do p ietism o n o estilo de vida cristão do q u e a igreja estatal na qual Z in z e n d o rf foi o rdenado. O co n d e era u m forte crítico da ortodoxia luterana e da teologia form al e sistem ática. D eclarou: “Q u a n do a verdade se to rn a u m sistem a, deixa de ser verdade”.26 E m seus m u ito s serm ões e cartas, Z in z e n d o rf colocava a experiência cristã e os sen tim en to s piedosos no âm ago d o cristianism o autêntico e deixava a teologia e d o u trin as form ais em se g u n d o plano. “A religião d o coração” to rn o u -se o ideal pelo qual ele e os m orávios lutaram com todo o em p en h o . Para eles, os ju lg a m e n to s teóricos e conceitos in te lectuais a respeito de D eus eram estranhos à essência verdadeira do cristianism o q u e era ex p erim en tar D eus com fervor apaixonado. O legado de Z in z e n d o rf e dos m orávios en co n tra-se em toda a linha d o cristianism o p o sterio r q u e se deleita em em oção e sen tim en to s espirituais. Não somente [Zinzendorf] ajudou a impor em seu tempo um novo modo de entender a natureza da religião, mas também um novo modo de entender a apreensão religiosa. O único caminho válido para a realidade religiosa pesso
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almente relevante é considerado (nesse movimento) o “sentim ento”. A rele vância das afirmações religiosas encontra-se basicamente no m odo de satisfa zer as necessidades religiosas do crente.27 Z in z e n d o rf e os m orávios fundaram com unidades sem elhantes a H e rrn h u t por toda a E uropa e pelas colônias na Am érica do N o rte. D esenvolveram suas práticas peculiares, com o a observância regular das “festas de am o r”, cultos dedicados especi alm ente a cantar hinos, cultos de véspera do A no N o v o que perduram a noite inteira, cham ados de “cultos de vigília” e, na Páscoa, os “cultos da aurora”. A lgum as práticas, a princípio, foram consideradas fanáticas, m as posteriorm ente tiveram am pla aceita ção dos grupos que se definiam com o evangélicos. A lém disso, adotaram a cerim ônia de lava-pés com o faziam os anabatistas e insistiram em experiências radicais de c o n versão para o reconhecim ento de m em bros plenos de suas igrejas. C onquistaram a sim patia do rei da D inam arca, que apoiou seus esforços m issionários. O s morávios enviaram m issionários a m uitas partes do m u n d o que não tinham recebido n en h u m testem u n h o cristão. João Wesley, fundador do m ovim ento m etodista na Inglaterra e na Am érica do N o rte , atribuiu a m issionários m orávios o crédito de ser estim ulado a u m despertar espiritual. Z in z e n d o rf e os m orávios concentravam sua adoração e sua vida devocional nos sofrim en to s de Jesus. Sem negar nem desprezar, de m o d o algum , a divindade de C risto o u sua ressurreição, acreditavam q u e o m elh o r cam in h o para o verdadei ro arrep en d im en to , conversão e santidade pessoal era ficar obcecado de am o r pelas chagas de Jesus. A m editação e a pregação sobre a figura d o Salvador sofredor su b stituíam a liturgia e teologia form ais. Z in z e n d o rf pregava que “u m a alm a cheia do m ais tern o am o r pelo Salvador pode ficar alheia a um a centena de verdades e concentrar-se, co m toda h um ildade, apenas nas feridas e na m o rte de Je su s”.28 Ele acreditava q u e q u alq u er pessoa que realm ente se tom asse de am o r pelo Salvador pro curaria n atu ralm en te agradá-lo p o r toda a vida; p o rtan to , não via a necessidade de p reg ar serm õ es m oralistas e evitava a to d o cu sto o legalism o e a teologia dogm ática. D ois falsos conceitos a respeito de Z in z e n d o rf e dos p rim eiro s m orávios devem ser evitados. P rim eiro, eles não eram pentecostais nem carism áticos n o sentido m o d ern o dessas palavras. N ã o apoiavam explosões em ocionais o u excessos. Suas reuniões eram geralm ente tranqüilas e talvez a dem onstração m ais em otiva fosse o ch o ro silencioso. D izer q u e se deleitavam na em oção significa q u e ex p erim en ta vam p ro fu n d o s sen tim en to s interiores, m as não explosões de êxtase. S egundo, Z in z e n d o rf e os m orávios não excluíam a sã dou trin a. A penas d estitu íram -n a da posição de su p rem a im portância e colocaram -na em posição secundária. O p ró prio Z in z e n d o rf afirm ou todos os credos cristãos clássicos e as confissões de fé
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luteranas, m as não acreditava q u e era necessário afirm á-los para ser cristão. Para ele, era m u ito m ais im p o rtan te o arrep e n d im en to , a fé pessoal e o q u e os cristãos evangélicos da atualidade cham am de “relacionam ento pessoal com Jesu s C risto ”. O s m orávios já tin h am adotado an terio rm en te o Credo de Nicéia e, sob a liderança de Z in zen d o rf, chegaram a afirm ar a C onfissão A ugsburgo. O q u e rejeitavam m es m o era a validez da confissão d o u trin ária exterior sem a experiência pessoal de D eus em Jesu s C risto . Z in z e n d o rf declarou: A confissão sempre vem de dentro do meu coração, do meu conhecimento da questão. Pressupõe que eu tenha feito alguma coisa, que tenha estado em algum lugar, que tenha visto 011 ouvido alguma coisa que outras pessoas gos tariam de saber por meu intermédio. Portanto, quem quiser ser confessor [de doutrina] [...] precisa ter pessoalmente recebido, visto, sentido, experi mentado e desfrutado do assunto.29 Sem dúvida, Z in z e n d o rf revelava tendências ao em ocionalism o e ao an tiin telectualism o, m as n u n ca encorajou n em aceitou o fanatism o o u o obscurantism o. Z in z e n d o rf m o rre u em H e rrn h u t em 1760. D eixou co m o legado a c o m u n id a de m orávia, altam ente organizada e bem estabelecida, em b o ra relativam ente p e quena, espalhada pelo m u n d o inteiro. A C o m u n id ad e M orávia da A m érica do N o rte co n tin u o u existindo co m o d enom inação e suas raízes re m o n ta m d iretam en te à visita de Z in z e n d o rf à Pensilvânia 11 a década de 1740. N o m u n d o in teiro é possível en co n trar grupos de m orávios nos lugares para on d e viajaram m issionários prove nientes de H e rrn h u t e de o u tro s cen tro s m orávios. E n treta n to , a influência de Z in z e n d o rf e de seu m o v im e n to pietista vai m u ito além disso. Sua ênfase na “in ti m idade com Je su s” ex p erim ental e não d o u trin ária co m o o verdadeiro âm ago do cristianism o au tên tico tem perm eado e se m istu rad o com boa parte do cristianis m o p ro testante da A m érica d o N o rte . S em pre que as pessoas se re ú n em para e n to ar cânticos espirituais, para co m p artilh ar seus testem u n h o s pessoais, para assistir a projeções de film es m issionários, para realizar u m culto da m anhã da Páscoa ou um a vigília da véspera d o A no N o v o o u para ver a encenação da Paixão, o legado de Z in z e n d o rf co n tin u a vivo.
Principais temas do pietismo O m o v im en to pietista não se interessava em in tro d u zir d o u trin as novas, n em alte rar radicalm ente as crenças do lu teran ism o alem ão. N o en tan to , era m ais do que m eram en te u m m o v im e n to em favor da renovação espiritual. Suas ênfases peculi ares acabaram provocando u m a m udança na teologia, em b o ra ela ten h a sido, em grande parte, in co nsciente e não intencional. Essa m u dança pode ser resum ida ao
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declarar q ue, antes do p ietism o, a teologia p rotestante focalizava, de m o d o geral, a natureza objetiva da salvação, o que D eus faz pelas pessoas, ao passo q u e a teologia pietista focalizava m ais a natureza subjetiva da salvação, o q u e D eu s realiza dentro das pessoas. A teologia luterana, em especial, enfatizava a natureza objetiva da obra de D eus na redenção e evitava, de m o d o geral, o interesse pelas experiências espi rituais de natureza subjetiva. O s crentes eram encorajados a aceitar e afirm ar a palavra da prom essa de D eus, dada em Jesu s C risto pelas E scrituras e pela água do batism o, sem levar em conta q u alq u er em oção q u e pudessem experim entar. Se um a pessoa fosse co n su ltar u m m in istro da igreja estatal luterana e confessasse sen tim en to s de culpa, rem o rso e incerteza q u an to à salvação, provavelm ente, o m in istro perguntaria: “Você já foi batizado?”. C aso a resposta fosse afirm ativa, o m em b ro da igreja seria encorajado a renovar a fé n o batism o e confiar na prom essa divina do perdão pela água e pela Palavra que a acom panha. O batism o era o “m o m en to decisivo” do relacionam ento en tre o cren te e D eus. O s pietistas, p o r sua vez, perg u n tariam a essa pessoa: “Você já foi co nvertido?”. E: “C o m o vai a sua vida dcvocional?”. Para eles, o “m o m en to decisivo” d o cristianism o v erdadeiro era m ais a conversão pessoal do q u e o batism o na água, e a certeza dependia m ais da piedade resultante da conversão do q u e da renovação diária da fé batism al. O p rim eiro m arco d o pietism o, portan to , é o cristianism o in terio r c experi m ental. O u tro m o d o de expressar esse fato é a frase “piedade resultante da conver são”. Isto é, para os pietistas, a verdadeira piedade cristã — a devoção, o discipulado, a santificação — com eça com um a experiência distinta na conversão, q u e não é idêntica ao batism o. Todos os pietistas luteranos dos séculos xvii e xvm acreditavam que os filhos peq u en o s de pais cristãos recebem perdão e novo nascim ento no batism o, m as inevitavelm ente p erdem essa graça ao alcançar a idade d o despertar da consciência.30 D e m o d o g en u in am en te luterano, S pener até m esm o se referia ao batism o co m o “o ban h o da regeneração”, m as ao m esm o tem p o enfatizava a neces sidade da conversão e da regeneração pessoais posteriores, pelo a rrep e n d im en to e fé conscientes. Francke adotou o m esm o conceito geral para a iniciação cristã. D ale B row n observa: “A necessidade q u e os pietistas sentiam de se apropriar pessoal m en te da fé p erm itiu q u e alguns seguidores de S pener e Francke subestim assem o valor do batism o infantil e valorizassem a experiência p o sterio r da conversão, des prezando a eficácia objetiva desse sacram ento. Francke e Spener, n o en tan to , ten ta ram evitar essa ten d ên cia”.31 N a verdade, m u ito s pietistas posteriores nos séculos xviii e xix abandonaram as igrejas luteranas da A lem anha e da Escandinávia c for m aram “igrejas livres” q u e enfatizavam o batism o de crentes ou ofereciam aos pais a escolha en tre o batism o infantil para seus filhos e o batism o depois da conver são.32 S pener e Francke, n o entanto, procuraram co m b in ar d en tro de seu m ovi m e n to o sacram en talism o lu te ra n o e a ênfase pietista na conversão. F. E rn est
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Stoeffler observa: “Ao q ue parece, não lhe o co rreu [a S pener] q u e estava su sten ta do dois conceitos da salvação u m tanto discrepantes. U m deles baseia-se na graça infundida pelo sacram ento ou, pelo m enos, na m u dança induzida pelo sacram ento na atitude de D eu s e o o u tro , n o co m p ro m isso pessoal da fé”.33 A m esm a coisa podia ser dita a respeito de Francke, de Z in z e n d o rf e de to d o o m o v im e n to pietista q u e p erm a n ece u nas igrejas p ro testan te s m agisteriais e não se desviou para o anabatism o e o “sectarism o” (com o os protestantes m agisteriais cham am as igrejas livres q u e se separaram das igrejas estatais da E uropa d o N o rte e da G rã-B retanha). D e q u alq u er form a, a piedade pro v en ien te da conversão, e não a piedade sacra m ental, é a verdadeira ênfase e o âm ago do pietism o. A piedade p roveniente da conversão enfatiza duas experiências distintas, p o rém correlatas, na o rd e m da sal vação: a regeneração e a santificação. O s dois term o s já eram usados na teologia anterior, m as ganharam novos significados e nova ênfase com o pietism o. E n q u an to a teologia clássica protestante considerava o novo n ascim ento (a regeneração) e a santidade da vida (a santificação) o d esenvolvim ento da justificação (que n o rm al m en te ocorria no batism o), os pietistas tratavam a justificação (a declaração divina forense d o perdão e da im putação da ju stiç a de C risto ) co m o secundária à regene ração, q u e é o com eço da santificação. E m bora o aspecto objetivo da salvação, a justificação, n u n ca fosse negado pelos pietistas, sua ênfase era a renovação in terio r do ren ascim en to espiritual, a regeneração, deixando a justificação em segundo pla no. Seu principal interesse era a experiência de “nascer de n o v o ” pela graça de D eus, p o r m eio de decisões conscientes de arrep e n d im en to e de fé c sen tim en to s evidentes de pesar, confiança e alegria d eco rren tes do m o d o de vida transform ado espelhado em C risto pelo p o d er do E spírito Santo. S pener dava m en o s ênfase aos estados de se n tim e n to dos in d iv íd u o s q u e F rancke, e n q u a n to Z in z e n d o r f os enfatizava m ais do q u e q u alq u er u m de seus antecessores pietistas. O seg u n d o m arco do pietism o é o cristianism o tolerante e irênico. C ansados das polêm icas e da caça aos hereges da o rto d o x ia lu teran a, S pener, F rancke e Z in z e n d o rf apelaram para u m novo espírito de paz en tre os cristãos, especialm ente em questões secundárias: A posição deles se resumia no ditado popular: in necessarii writas (unitas), in tion necessarii libertas, in omnibus caritas (nas coisas essenciais, veracidade [011 unidade]; nas coisas não essenciais, liberdade; em todas as coisas, amor). [...] Spener, Francke c seus colegas adotaram uma posição neutra entre a inflexi bilidade e a indiferença dogmática.*1 O pietism o rum ava em direção à total liberdade de consciência em questões reli giosas. Pietistas posteriores, com o Z inzendorf, rejeitavam , em especial, a coerção
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pelo Estado de crenças e práticas religiosas, sem p ro p o r a separação en tre a igreja e o E stad o . N o e n ta n to , até o p ró p rio S p e n e r c ritic o u o q u e e n te n d ia c o m o cesaropapism o — a ingerência das autoridades civis nos assuntos das igrejas — e a ênfase exagerada nos p o rm en o res da d o u trin a pelos teólogos e líderes eclesiásticos. N e n h u m dos fu n dadores originais do pietism o, en tre tan to , rejeitava a d outrina. A creditavam que a verdadeira experiência pessoal de Jesu s C risto e a ilum inação do E spírito Santo que a acom panha esclarecem , inevitavelm ente, as pessoas a res peito da d o u trin a verdadeira, de m o d o q u e é m elh o r com bater a heresia pela re n o vação da relig ião d o coração, em vez de ap e la r à p o lê m ic a e às am eaças de ex com unhão. C ertam e n te , com os pietistas, as proposições dou trin árias ganharam o novo status de “linguagem de o rd em secundária” cujo valor estava a serviço da lingua gem de o rd em prim ária q u e era a experiência cristã. A essência p erm a n en te do cristianism o é en ten d id a p o r todos os pietistas co m o o q u e aqui cham am os de piedade p ro veniente da conversão. Para eles, a d en om inação ou tradição teológica com a qual a pessoa se identifica im porta m en o s d o q u e o tipo de experiência com D eus q u e ela tem . A ortopatia e a ortopraxia têm precedência sobre a ortodoxia, mas não a exclui. O s pietistas p ro testantes clássicos, co m o Spener, Francke e Z in z e n d o rf e seus seguidores, eram conservadores na teologia. M u ito depois deles, no en tan to , d e senvolveu-se u m tipo de pietism o liberal, com F riedrich S chlcierm acher (17681834), q u e foi criado sob a influência do pietism o, m as q ue acabou rejeitando m uitas do u trin as ortodoxas. O s críticos ortodoxos d o pietism o culpam o p ró p rio pietism o pelo desvio da fé conservadora. Pietistas com o seu p ró p rio pai e irm ã, no entanto, atribuíram esse desvio à falta de sen tim en to s p ro fu n d o s para com D eus e à falta de um relacionam ento m ais ín tim o com Jesus C risto. Talvez o m aior dan o que já foi causado ao p ietism o tenha sido a declaração d o p ró p rio S chleierm acher, com o teólogo liberal, de q u e ele era u m pietista q u e continuava “acim a dos d em ais”. O terceiro m arco d o pietism o é o cristianism o visível. Trata-se de um tipo de cristianism o q u e é aparente n o m o d o de viver da pessoa convertida. O s pietistas estavam convencidos de q u e o cristianism o autêntico, ao co n trário da ortodoxia m o rta e do cristianism o nom inal vinculado exclusivam ente à filiação à igreja, sem pre se revelaria nas atitudes e na co n d u ta dos cristãos. A iniciação cristã genuína sem p re com eçaria co m a vivência da conversão q u e incluía a regeneração. O s pietistas acreditavam q u e a regeneração incutiria n o convertido um a “reorientação existencial to tal” da vida, in tro d u zin d o u m novo padrão no estilo de vida. Francke dava especial atenção a esse ú ltim o aspecto d o cristianism o autêntico. D esenvol veu c apresen to u cinco sinais desse novo padrão de vida: as provações, carregar a cruz, obediência à lei de D eus, confiança em D eu s e alegria.35 Esses sinais visíveis
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da nova vida au m en tariam à m edida q u e o cren te adotasse cinco m eios de viver vida cristã autêntica: exam e da consciência, arre p e n d im e n to diário, oração, escutar a Palavra e participar dos sacram entos.36 Assim , a santificação ad q u iriu ênfase espe cial para os pietistas à m edida q u e p ro cu raram se distanciar da indiferença ética e m oral (segundo as percebiam ) de m u ito s cristãos professos das igrejas estatais. O s pietistas desenvolveram duas m aneiras básicas de p ro m o v er e encorajar o cristianism o visível. P rim eiro, todos, a com eçar p o r Spener, fu n d aram e dirigiram espécies de con v en tícu los na e stru tu ra da igreja estatal. Esses gru p o s p eq u en o s de “cristãos de coração” consideravam -se responsáveis pelo crescim en to espiritual em direção ao ideal da perfeição. S egundo, todos enfatizavam a vida devocional indivi dual e pessoal e u m m o m e n to diário a ser dedicado à oração, à leitura bíblica e à m editação. Z in z e n d o rf tin h a seu p ró p rio m éto d o de ajudar os cristãos de coração a alcan çar o cristianism o visível. S egundo ele, a intim idade com o Salvador era o cam inho m ais seguro para q u e os cristãos tornassem sua vida de piedade e devoção forte e visível. D esp rezo u to d o o m oralism o e legalism o em favor do m aio r fortalecim en to da “conexão com C risto ” pela m editação sobre o sangue e as feridas de C risto. “O q u e ele exigia co m veem ência era q u e a essência da piedade cristã não fosse encarada com o u m co n ju n to de regras, mas o relacionam ento pessoal alegre, afetivo, inefável e satisfatório com ‘o Salvador’”.37 O s seguidores de Z inzendorf, os m orávios, m anifestavam seu cristianism o para o m u n d o inteiro m o stran d o não sen tir n e n h u m m ed o da m orte. Essa foi a m aneira q u e enco n traram para to rn a r o cristianis m o visível e isso im p ressionou Jo ão Wesley de tal m aneira q u e ele tam bém c o m e çou a sen tir a necessidade de ter um a experiência in terio r p ro fu n d a com C risto. Antes de seu desp ertar espiritual, viajou às colônias britânicas na A m érica do N o r te para pastorear um a igreja anglicana e o navio quase se a fu n d o u d u ra n te um a violenta tem p estad e n o m eio do oceano A tlântico. W csley observou q u e u m grupo dc em igrantes m orávios m anteve a calm a em m eio à tem pestade e na presença do perigo m ortal e achou q u e o m edo da m o rte q u e ele sentia era sinal de q u e não era tão espiritual q u an to eles, em b o ra fosse m in istro o rd en ad o da Igreja da Inglaterra. O s pietistas foram acusados da heresia de perfeccionism o p o rq u e ressaltavam tanto o aperfeiçoam ento da santificação q u e pareciam subverter o princípio luterano simuljtistus et peccator. E n tretan to , todos os grandes pensadores pietistas rejeitavam o perfeccionism o da m esm a form a q u e se recusavam a satisfazer-se com o sim ples perdão dos pecados. Francke e Z in z e n d o rf chegaram inclusive a criticar o perfeccio nism o cristão. F rancke escreveu u m tratado ch am ado Da perfeição cristã n o qual declarou q u e a “perfeição não é o u tra coisa senão a fé n o S e n h o r Jesu s e não está em nós e n em é nossa, m as está em C risto e vem de C risto e, p o r causa dele, som os considerados p erfeitos diante de D eu s e, p o rtan to , sua perfeição é nossa
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por atribuição [im p u taçã o ]”. N o m esm o tratado, p o rém , tam b ém deixou claro q u e o p ro g resso à p erfeição na vida é u n ia p o ssib ilid ad e e u m a realid ad e da santificação. O cristão g en u in am en te co nvertido d em o n strará inevitavelm ente os sinais da “fé que am ad u rece”. “L ogo”, escreveu Francke, “as duas declarações são verdadeiras 110 seguinte sentido: som os perfeitos e não som os p erfeitos”.39 Isto é, a perfeição de nossas vidas d ep en d e so m en te de C risto e de serm os co nduzidos até a perfeita sem elhança com ele. N ossa im perfeição en co n tra-se no constante fracasso de alcançar a total co n form idade com C risto nesta vida. Z in z e n d o rf travou um debate fam oso com Jo ão W esley sobre a perfeição cristã depois q u e este despertou esp iritu alm en te após o contato com os m orávios cm Londres. O co n d e alem ão rejeitou a d o u trin a da “santificação p lena” ensinada p o r Wesley e insistiu q u e o cristão é sem pre santo “em C risto ” pela fé e nunca santo “em si m esm o ”." O q u arto e ú ltim o m arco d o pietism o é o cristianism o ativo. Infelizm ente, o pietism o freq ü en tem en te é co n fu n d id o com o “q u ietism o ” a p o n to de ser conside rado sin ô n im o deste. O q u ietism o é a opinião de q u e a espiritualidade cristã a u tê n tica e forte faz a pessoa ficar totalm ente alheia aos assuntos deste m u n d o . O quietista não p rocura tran sfo rm ar a sociedade e a cultura. O s prim eiros pietistas não eram quietistas. Francke, p o r exem plo, estabeleceu as Instituições Francke em I lalle e conclam ava seus seguidores de todos os lugares a im itar seu exem plo e estabelece rem instituições de caridade sem elhantes para dar educação e assistência aos pobres e aos d oentes e para dissem inar o evangelho. C e rto h istoriador m o d ern o escreve a respeito de Francke: “Vidas transform adas, a igreja renovada, a nação reform ada, o m u n d o evangelizado, esses eram os grandes objetivos nos quais visava em pregar as suas energias”.41 Z in z e n d o rf tam bém dem onstrava m u ito interesse pela transfor m ação do m u n d o , basicam ente através das m issões e d o evangelism o m undial. N u triu , tam bém , d u ran te toda a vida, a idéia de um a igreja cristã unificada, à qual até m esm o d eu u m n om e: C ongregação de D eus no Espírito. Essa igreja ecum ênica que transcenderia todas as barreiras denom inacionais n u n ca chegou a existir, mas Z in z e n d o rf en tendia q u e ela seria u m grande passo em direção à transform ação do m u n d o . Longe de serem quietistas, “que de tanto pensar no céu, de nada serviam na terra”, os principais pietistas eram pessoas de ação q u e acreditavam q u e o cristi anism o au têntico inevitavelm ente provocaria u m a m u d an ça na sociedade.
O legado do pietismo O m o v im en to pietista com eçou com Spener, com o um a “segunda R eform a” ou a c o m p le m e n ta ç ã o da R efo rm a p ro te s ta n te o rig in al. S eus o p o n e n te s , c o m o o poderosíssim o pastor luterano ortodoxo, Jo h a n n F riedrich M ayer de H am b u rg o , fizeram cam panhas co ntra ele ch am an d o -o fanático e herético. A despeito da o p o sição, p o rém , o pietism o to m o u -se elem en to p erm a n en te da tradição protestante,
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tan to pela penetração silenciosa nas principais deno m inações protestantes q u an to pelo estab elecim en to de seitas e organizações religiosas separatistas. Seu m aior im pacto foi na A m érica d o N o rte e com as m issões norte-am ericanas pelo m u n d o inteiro n o século xix. N a E uropa, p erm aneceu relativam ente p eq u e n o e distinto, à m argem das igrejas estatais protestantes. N a A m érica d o N o rte , to rn o u -se a p rin cipal form a de pro testantism o e su p lan to u e ofuscou totalm ente o sacram entalism o, o confessionalism o e o tradicionalism o litúrgico. Todas as den o m in açõ es p ro tes tantes da A m érica d o N o rte foram afetadas pela m aré crescente do pietism o nos séculos xvin e xix e ele se to rn o u a form a p o p u lar fu n d am en tal de religião. As deno m in açõ es episcopal, luterana e presbiteriana tam b ém foram afetadas p o r ele, tanto q ue, na A m érica do N o rte , elas têm u m caráter pietista, geralm ente ausente ou pouco perceptível na E uropa c G rã-B retanha. Infelizm ente, na A m érica do N o rte o p ie tis m o foi m a l-s u c e d id o em d is s e m in a r o in d iv id u a lis m o re lig io s o , o em o cio n alism o c o an tiintelectualism o. D ebates calorosos q u estio n am se essas distorções representariam necessariam ente o p o n to final da trajetória pietista. O p ietism o com eço u co m o m o v im e n to distinto en tre os luteranos. Q u a n d o os luteranos alem ães e escandinavos em igraram para as colônias am ericanas e posteri o rm e n te para os Estados U n id o s da A m érica, m u ito s form aram denom inações luteranas pietistas separadas. U m exem plo notável disso foi o grande e influente S ínodo L u teran o A ugustano da A m érica do N o rte , que acabou se m istu ran d o a o u tra d en o m in ação luterana e fin alm en te sendo absorvido pelas consolidações ecum ênicas q ue fo rm aram a d enom inação cham ada Igreja L uterana Evangélica da A m érica do N o rte . Sua ênfase pietista, n o en tan to , serve de tem p ero para a d e n o m inação tradicional e freq ü en tem en te liberal de sua teologia. M uitas congregações luteranas da A m érica do N o rte têm satisfação em se proclam ar “evangélicas” em um sentido especial e participam dos esforços de evangelism o e vida devocional. A lgum as seguem u m a tendência carism ática. A lém d o luteranism o, o p ietism o in fluenciou o m eto d ism o n o rte-am erican o e as convenções batistas e criou a base para várias igrejas in d ep en d en tes, co m o a Igreja Evangélica In d e p en d en te da A m é rica do N o rte . O s grupos dc reavivam ento, in clu in d o os pentecostais e igrejas de santidade, com o os nazarenos e as A ssem bléias dc D eu s, p o d em ser vistos com o extensões radicais do p ietism o cristão. Em n e n h u m o u tro aspecto, talvez, o legado do pietism o ten h a sido m ais co n cretam en te m anifestado d o q u e no d esenvolvim ento da literatura devocional e da m úsica evangélica. Best-sellers cristãos com o Tudo para ele, de O sw ald C h am b ers e O segredo de titna vida feliz, de Iia n n a h W hitall S m ith, são pietistas em essência c servem para p ro m o v er a visão do cristianism o au tên tico e das possibilidades do relacio n am en to en tre o ind iv íd u o e D eus aqui e agora. O s cânticos evangélicos de Fannie C rosby, co m o “Q u e segurança, Jesu s é m e u ” e “Sou teu S enhor, tua voz
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o u v i”, instilam p ietism o e tam b ém têm ajudado a to rn a r essa teologia am plam ente aceita nos países em q ue a língua inglesa tem penetração. O pietism o co m eçou com o m o v im e n to q u e visava a refo rm a e a renovação d en tro do ram o lu teran o alem ão d o cristianism o protestante, m as tran sfo rm o u o co n teú d o d o p ró p rio protestantism o, especialm ente fora da E uropa. Ele d eu o ri gem a várias d en o m in ações distintas, algum as arraigadas n o luteranism o, outras não. O ram o inglês da R eform a p rotestante passou p o r dois m o v im en to s de refor m a e renovação, q u e acabaram criando form as in teiram en te novas de pro testan tis m o. N o s séculos xvii e xvin na Inglaterra, houve a ascensão d o p u ritan ism o e do m eto d ism o , dois m o v im en to s m u ito diferentes, q u e foram iniciados na Igreja da Inglaterra e p o sterio rm en te se separaram dela, deixando atrás de si sinais de sua influência.
30 Os puritanos e os metodistas esforçam-se para reavivar a teologia inglesa i alvez u m títu lo m elh o r e m ais descritivo para esse capítulo fosse “p u ritan o s e m etodistas esforçam -se para reavivar a teologia inglesa, m as não co n seg u em e se separam dela”. P orém , assim ficaria co m p rid o dem ais. A lém disso, alguns p u rita nos e tam b ém os seguidores de J o h n Wesley, o fu n d ad o r d o m eto d ism o , decidiram p erm an ecer d e n tro da Igreja da Inglaterra. Esses dois m o v im en to s de renovação e reform a pós-R efo rm a surgiram , originariam ente, d en tro da Igreja da Inglaterra, em u m a tentativa de alterar seu caráter. O caráter anglicano foi d eterm in a d o pela U n ifo rm id ad e E lisabetana e é m ais b em rep resen tad o pela teologia de R ichard H ooker, au to r de Leis do governo eclesiástico. O p u ritan ism o co m eço u co m o partido de oposição ao anglicanism o d en tro da Igreja de Inglaterra da R ainha Elisabete i. P u ritan o s co m o W alter Travers — pastor assistente d o T em plo em L ondres no pastorado de R icardo H o o k e r — eram os herdeiros dos “evangelistas fervorosos” do início da reform a inglesa. Sua teologia devia m u ito a Jo ão C alvino e a T eodoro Beza, seu sucessor em G enebra. Eles foram influenciados, tam bém , pelo reform ador da Escócia, Jo ão Knox, q u e atu o u naquele país de m o d o sem elh an te a C alvino em G enebra e aju d o u a estabelecer a Igreja P resbiteriana (segundo o m o d elo da teolo gia e a fo rm a de governo de C alvino) com o a igreja nacional da Escócia. O p u ritan ism o foi a d q u irin d o características próprias ao ten tar o b ter o d o m ín io da Igreja da Inglaterra. E m bora fosse basicam ente calvinista na teologia, não c o m binava m u ito bem co m n e n h u m a o u tra form a de calvinism o, m as desenvolveu um a m arca b em distinta. E m b o ra o m o v im e n to p u ritan o ten h a falhado em seu in ten to de tran sfo rm ar a igreja e a nação inglesa em república calvinista inglesa, conseguiu deixar m arca p erm a n en te n o cenário n o rte-am erican o , on d e m ilhares de pu ritan o s ingleses buscavam novo com eço e o p o rtu n id ad e renovada de edificar o rein o de D eu s co n fo rm e o im aginavam . Todas as pessoas n o m u n d o de língua inglesa já tiveram algum contato com o p u ritan ism o , m esm o q u e seus conceitos a respeito dele sejam u m p o u co distorcidos. O cu rrícu lo de escolas públicas e os
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m eios de com unicação de massa dos Estados U n id o s conseguiram criar u m a cari catura do p u ritan ism o e a m aioria das pessoas atu alm en te tem um a noção pouco exata desses reform adores protestantes da Inglaterra e das colônias britânicas.1 O pró p rio term o puritano evoca im agens de h o m en s e m u lh ere s vestidos de form a estranha, o p rim in d o os índios norte-am ericanos, q u eim an d o e en fo rcan d o m u lheres falsam ente acusadas de bruxaria e p re n d en d o as pessoas n o tro n co por pe quenas infrações de regras eclesiásticas. E praticam ente sin ô n im o de rigidez m oral e intolerância religiosa. Assim co m o todas as caricaturas, essas im agens contêm um elem en to de verdade, m as não contam toda a história d o puritanism o. E seria im possível aqui fazê-lo. N o presente capítulo, nosso único propósito será descrever a teologia p uritana e apenas à m edida que apresenta características incom paráveis que a destacam das form as de teologia protestante já descritas e consideradas. O p u ritan ism o com o m o v im en to distinto de reform a teológica com eçou na Inglaterra, n o seio da Igreja Anglicana, e term in o u com o m aior pregador e pensador puritano de todos, Jonathan Edw ards da N ova Inglaterra. N a época em que o m o v im en to p u ritan o se extinguiu, em m eados do século x v i i i , quase todos tin h am desistido da Igreja da Inglaterra e form ado novas d en om inações dissidentes. E dw ards fo rm o u um elo en tre os dois principais grupos p u ritanos da N ova Inglaterra: o presbiterianism o e o congregacionalism o. Boa parte da nossa narração da teologia puritana focalizará Edwards, em b o ra tenha en trad o em cena no fim da história do puritanism o. Pode-se até dizer q u e ele foi o ú ltim o e o m aio r dos p u ritan o s. N ã o raro, os grandes au to res e form uladores de u m m o v im en to aparecem no início. O caso de E dw ards é exceção. O u tro m o v im en to de renovação e reform a surgiu d en tro da Igreja da Inglaterra, exatam ente q u an d o o p u ritan ism o estava p erd en d o a força. O cham ado G rande A vivam ento na Inglaterra e nas suas colônias norte-am ericanas na década de 1740 ajudou a ocasionar o desaparecim ento do puritanism o e o nascim ento do m etodism o. O m eto d ism o teve início co m o m o v im en to pietista e reavivam entalista que visava dar vida nova à tradição anglicana, cada vez m ais distante, form al e racionalista. O s irm ãos J o h n e C harles Wesley e seu am igo G eorge W hitefield foram seus fu n d ad o res. N ã o tin h am a m en o r intenção de criar u m cism a o u dar início a um a nova denom inação, m as, no fim , a tensão en tre as sociedades m etodistas e a igreja-m ãe obrigou Jo h n Wesley a p erm itir q u e seus assistentes se separassem da Igreja da Inglaterra. A Igreja Episcopal M etodista nasceu nos Estados U n id o s da A m érica em 1784, po u co m enos de um a década antes da m o rte de J o h n W esley em 1791. N a Inglaterra, o m o v im en to se to rn o u oficialm ente in d ep en d en te da Igreja da Ingla terra e um a “igreja d issidente” em 1787. O p ró p rio W esley carregou até o leito de m o rte a ilusão de q u e seu m o v im en to transform aria a Igreja da Inglaterra. Só então reconheceu com relutância que havia fundado um a nova d enom inação protestante.
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Assim co m o n o caso do p u ritanism o, a história d o m eto d ism o é ex trem am ente com plexa e não poderá ser relatada com m u ito s detalhes aqui. N esta história, apre sentarem os a teologia de J o h n Wesley e especialm ente os aspectos q u e a d istin g u i ram das outras form as de teologia protestante. E n q u an to a teologia do p u ritan ism o era um a fornia de calvinism o com forte caráter evangélico (ênfase na piedade da conversão), a teologia prim itiva de W esley e do m eto d ism o era u m a form a de arm inianism o com caráter evangélico. N o início, havia m etodistas calvinistas, com o G eorge W hitefield, e alguns deles seguiram à m argem do m eto d ism o , m as W esley era arm in ian o e crio u sua p ró p ria m arca teológica n o principal m o v im e n to do m eto d ism o . A qui nossa atenção recairá sobre a contribuição incom parável e dis tin ta de W esley ao q u e an te rio rm e n te cham am os de sin erg ism o evangélico. O perfeccionism o de W esley talvez não seja to talm en te novo na história do pensa m en to cristão, m as certam en te crio u um novo elem e n to para ser acrescentado ao co n ju n to cada vez m ais diversificado de opções que os protestantes encontravam diante de si nos séculos x v iii e xix.
O movimento puritano e a sua teologia Q u e m eram os puritanos e por que eram cham ados assim? C o m o de costum e, é difícil dar um a resposta sim ples e direta. Estudiosos ainda discutem e debatem a verdadeira essência e lim ites do puritanism o. Alguns, por exem plo, saúdam Jonathan Edwards com o o “Príncipe dos P uritanos”, ao passo que outros acham que ele apare ceu tarde dem ais para ser considerado um puritano genuíno. Alguns estudiosos atri b uem o início do puritanism o a João C alvino e a R eform a em G enebra. O u tro s, mais sensatos, insistem que ninguém antes de W alter Travers deve ser considerado um p uritano gen u ín o no sentido histórico-teológico. Aqui, seguirem os a linha mais m oderada e tratarem os o puritanism o com o u m m ovim ento distinto, u m pouco diferente, dos protestantes britânicos que reagiram contra a U niform idade Elisabetana da igreja inglesa na segunda m etade do século xvi e Jo n ath an E dw ards com o o últim o e m aior dos teólogos puritanos. N o desenrolar de nossa história, verem os que Edwards m o rreu pouco depois de tom ar posse do cargo de presidente da U niversidade de Princeton (com o é hoje cham ada) cm 1758. Assim, a história do puritanism o tom ou cerca de dois séculos e se restringiu, inicialm ente, aos territórios dom inados pela G rã-B retanha. O bviam ente, tinha raízes anteriores e provocou efeitos posteriores. O s prim eiros p u ritanos eram todos calvinistas ingleses que esperavam transfor m ar toda a Igreja da Inglaterra em um a igreja nacional presbiteriana — nos m oldes da Escócia — e toda a Inglaterra em um a república cristã segundo o m odelo de G enebra. Q u a n d o a U n ifo rm id ad e Elisabetana ficou m ais nítida e m ais firm em ente estabelecida, suas vozes soaram em protesto contra os elem entos que consideravam “pap ism o ” na teologia, na adoração e n o governo eclesiástico anglicano. Isto é,
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consideravam q u e a Igreja da Inglaterra, sob o governo de Elisabete e Ilo o k e r e de vários arcebispos de C antuária, estava dem asiadam ente próxim a do catolicism o ro m an o e q u eriam purificá-la, elim in an d o as crenças e práticas “rom anas”. Todos queriam abolir o cargo de bispo e deixar as congregações ter voz m ais ativa na escolha de seus m inistros. D esprezavam o Livro de oração comum e queriam um cu lto m ais sim p les, c e n tra liz a d o nos serm õ es. A m aio ria co n sid erav a q u e as vestim entas sacerdotais, o incenso, os altares-m ores, as genuflexões e as im agens das igrejas eram sím bolos perniciosos que representavam tendências antibíblicas e católicas nas igrejas inglesas. O ró tu lo “p u ritan o s” lhes foi atrib u íd o pelo desejo de purificar a igreja inglesa dessas tradições e adaptá-la à sua própria visão da genuína teologia e prática reform ada. N as prim eiras décadas do século xvii, os p u ritan o s com eçaram a discu tir a res peito da natureza da igreja ideal. A lguns q u eriam p erm an ecer na Igreja da Inglater ra a q u alq u er cu sto para c o n tin u ar ten tan d o reform á-la. O u tro s insistiam q u e a igreja estatal estava irreversivelm ente co rru p ta c poluída, longe de q u alq u er possi bilidade de reform a. Estes se separaram da Igreja A nglicana c form aram igrejas ind ep en d en tes q u e seguiam a form a congregacional de governo eclesiástico. C ada igreja seria au tô n o m a, com governo próprio, escolheria seu p ró p rio pastor e to m a ria suas próprias decisões a respeito d o cu lto e suas práticas. E ntre esses puritanos radicais e separatistas encontravam -se os peregrinos, co m o eram cham ados, que, para escapar da perseguição do governo inglês, m u d aram -se inicialm ente para a H o lan d a e depois em barcaram n o navio M ayflow er e navegaram até a Baía de M assachusetts, on d e fu ndaram a C o lô n ia de P ly m o u th em 1620. D u ra n te a década de 1630, m ilhares de p u ritan o s partiram da Inglaterra e se estabeleceram na N ova Inglaterra na esperança de estabelecer um a república cristã. A m aioria to rn o u -se congregacional q u an d o chegou no N o v o M u n d o , em bora o governo eclesiástico preferido pela m aioria dos p u ritan o s na Inglaterra fosse o presbiteriano. O s p uritan o s q u e perm aneceram na Inglaterra depois da grande D iáspora da década de 1630 d o m in aram o P arlam ento, depuseram e decapitaram o rei C arlos i e estabeleceram um a república p uritana governada p o r O liv er C ro m w ell. Após a m o rte de C ro m w ell, em 1658, a G rã-B retanha voltou à m o n arq u ia e restabeleceu a Igreja da Inglaterra com liberdade de religião para os dissidentes e n ão -co n fo rmistas. N o início da guerra civil contra a coroa, o parlam ento convocou um a as sem bléia nacional de m inistros e teólogos puritanos na Abadia de W estm inster, em Londres. A Assem bléia de W estm inster criou u m sínodo de 151 líderes p u ritan o s e presbiterianos cuja intenção era estabelecer os alicerces da igreja reform ada nacio nal da Inglaterra, seg u n do o m odelo da igreja nacional da Escócia. O s grandes atos da A ssem bléia foram a C onfissão de Fé de W estm inster e os C atecism o s M aio r e M e n o r de W estm inster. D esde então, eles se to rn aram as
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declarações d o u trin árias sem i-oficiais para todos os presbiterianos e m u ito s p u ri tanos. A p rim eira p erg unta e resposta do C atecism o m e n o r de W estm inster é fa m osa p o r sua frase atem poral da “principal finalidade d o h o m e m ” q u e é “glorificar a D eus e regozijar-se nele para se m p re ”. A C onfissão de fé de W estm inster é total m en te calvinista, com u m caráter d istin tam e n te puritano. Enfatiza a inspiração verbal e inerrância das Escrituras, a soberania absoluta de D eus, os decretos divi nos etern o s da eleição e da condenação (perdição) e a depravação total dos seres hu m an o s e sua com pleta d ep endência da graça de D eus. O traço p u ritan o aparece no em prego da C onfissão da teologia federal, ou das alianças, para explicar o rela cio n am en to de D eu s com a raça hum ana. N a Inglaterra, os puritanos acabaram se dividindo em várias denom inações. A Igreja da Inglaterra perm aneceu anglicana na teologia, adoração e governo eclesiásti co, tendo R ichard H o o ker com o influência form ativa principal. Alguns puritanos m u ito resistentes perm aneceram na Igreja Anglicana, na esperança de reform á-la gradualm ente, de d en tro para fora. O u tro s que não em igraram para a A m érica do N o rte se acom odaram nas denom inações dissidentes e se tornaram congregacionais, p re sb iterian o s e m esm o batistas. O s batistas eram os p u rita n o s separatistas e congregacionais q ue resolveram abandonar o batism o infantil e adotar a prática anabatista do batism o dos crentes. N a N ova Inglaterra, o p uritanism o floresceu, com algum as m udanças, n o decorrer de u m século. M esm o perdendo a condição de in fluência cultural d om inante, deixou m arcas indeléveis no am biente cultural n o rteam ericano. Entre essas marcas, estava a idéia do “destino m anifesto” para os coloni zadores norte-am ericanos e para a república pós-revolucionária dos Estados U n id o s — um a versão secularizada da visão puritana de um a república piedosa na terra. Já nas décadas de 1730 e 1740, os puritanos ficaram consideravelm ente mais fracos na N o v a Inglaterra. H avia igrejas congregacionais o u presbiterianas no cen tro de todas as cidades, grandes o u pequenas, m as sua influência tin h a d im in u íd o . A m aioria dos cidadãos não era seguidora fiel dos ideais p u ritan o s originais e a pressão dos pregadores p u ritan o s sobre o p o d er civil d im in u iu . E m bora os p u rita nos originais da N o v a Inglaterra ten h am pro cu rad o evitar a m aldição das “assem bléias m istas” (igrejas nas quais os crentes verdadeiros e os incrédulos se m istu ra vam ), esse co stu m e invadiu suas igrejas n o início e até m eados do século x v iii . Jo n ath an E dw ards p ro c u ro u reverter essa tendência através do fervor evangelístico e da disciplina eclesiástica. Era tarde dem ais. A pesar disso, na luta para co n d u z ir o pu ritan ism o da N o v a Inglaterra de volta ao seu p rim eiro am or, E dw ards to rn o u -se o m aior pen sad o r e pregador puritano. A teologia p u ritan a era total e persisten tem en te calvinista. A lguns teólogos p u ritanos pregavam o supralapsarism o; o u tro s pregavam o infralapsarism o. Todos proclam avam a soberania absoluta de D eus e a total depravação do ser hu m an o .
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Teriam co n co rd ad o sinceram ente com os cinco tem as teológicos d o S ínodo de D o rt ( t u l i p ) e condenavam o arm inianism o co m o doença “gangrenosa” na teolo gia cristã. A única coisa q u e u m teólogo p u ritan o am ava tan to q u an to o exam e e o en altecim en to dos cam inhos m isteriosos da providência divina na história era ex plo rar e proclam ar as etapas e os aspectos da experiência cristã. A lém d o co n teú d o calvinista, a teologia p uritana era caracterizada p o r três idéias teológicas universais que, ju n ta s, co m p õ em o consenso puritano: a igreja pura, o relacionam ento pactuai de D eus com os eleitos e a sociedade cristianizada. C ada um a dessas idéias foi ao m enos pren u n ciad a nas teologias protestantes anteriores, m as os p u ritan o s as re forçaram , de form a incom parável, e m esclaram em u m a receita d istin tam en te p u ritana q u e não se en contra em n e n h u m o u tro lugar da história da teologia cristã. U m a das m arcas registradas da teologia p uritana era o ideal da igreja pura. Para os reform adores p u ritanos da Igreja da Inglaterra sob a u n ifo rm id ad e elisabetana, isso significava duas coisas: elim inar da igreja os vestígios rem anescentes d o cato licism o ro m an o e expurgar d o m inistério e da congregação todos os incrédulos. Para eles, a igreja verdadeira de Jesus C risto era m ais do q u e um a autarquia do E stado ou u m g rupo de apoio aos pecadores. D evia ser o corpo de C risto na terra, a presença co m u n itária do rein o de D eus na história e um a cidade acim a das d e m ais, cuja luz brilhasse para q u e todos vissem . P or isso, a igreja precisava ser c o m posta de verdadeiros santos de D eus, d em o n strar crenças corretas, vidas puras e líderes com essas qualidades. Isso não significa q u e so m en te as pessoas perfeitas podiam p erten cer à igreja, m as certam ente que cristãos m eram en te nom inais, sem n e n h u m a experiência genuína com D eus de verdadeiro a rrep e n d im en to e fé, não deviam ser m em b ro s plenos. Estes deviam ter licença para freq ü en tar a igreja e até ser obrigados a tanto, m as não podiam ser adm itidos plenam ente. O s puritanos consideravam a Igreja da Inglaterra um a “assem bléia m ista” que não fazia o m ín i m o esforço para d istin g u ir os crentes dos incrédulos. Para a Igreja da Inglaterra, bastava ser u m cidadão co rreto do reino, batizado na infância na igreja, para ser um m em b ro p leno com os direitos inerentes a tal condição. O s p u ritan o s olharam ao red o r e pensaram e n c o n trar sacerdotes e bispos com pouca o u n e n h u m a intenção de serem cristãos verdadeiros. Por isso, se em p en h aram na tarefa de purificar a igreja, não so m en te de práticas que consideravam vestígios do “papism o”, m as tam bém dc pessoas que não davam evidência de crença e devoção cristãs genuínas. Esse ideal p u ritan o da igreja de crentes fiéis criou u m dilem a: “q u em m erecia en tra r para o g rupo e q u em devia ficar de fora ou ser lançado para o m u n d o ? ”. Essa pergunta, q u e de início parecia sim ples, rcvclou-se cada vez m ais difícil.2 Alguns resp o n d eram ap resentando um a solução que, para a m aioria, pareceu radical e ina ceitável: o batism o dos crentes. As poucas congregações puritanas separatistas que adotaram essa solução se tornaram conhecidas com o Batistas e cresceram m u ito na
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A m érica do N o rte pós-revolucionária. N o s séculos x v ii e x v in , po rém , rep resen ta vam a m inoria en tre os p uritanos britânicos e norte-am ericanos. U m n ú m e ro m u ito m aio r de p u ritan o s q u eria solucionar esse dilem a, identificando “sinais de graça” que p udessem ser observados na vida dos crentes e exigindo q u e os candidatos à afiliação plena da igreja revelassem esses sinais e fizessem a profissão da fé publica m ente. A vasta m aioria dos puritanos, tanto aqueles q u e p erm an eceram d en tro da Igreja da Inglaterra co m o os congregacionais o u presbiterianos, d efendiam o batis m o infantil, m as com a exigência de, m ais tarde, m anifestarem pu b licam en te seu ingresso na igreja co m o m em b ro s adultos em plena co m u n h ão . As pessoas que não conseguiam explicar suas crenças n e m prestar contas satisfatórias de sua “a qui sição de fé” seriam excluídas da afiliação efetiva. C o m o essa exigência era contrária às leis de governo eclesiástico da Igreja da Inglaterra (que re q u er so m en te um a cerim ô n ia de confirm ação na qual a pessoa confirm a pu b licam en te o batism o), cada vez m ais p u ritan o s se separaram da igreja estatal e foram perseguidos p o r isso. O s p u ritan o s q u e em igraram para a N o v a Inglaterra nas décadas de 1630 e 1640 desenvolveram suas próprias form as de eclesiologia puritana. Q u ase todas as igre jas eram congregacionais n o governo eclesiástico, m an ten d o fortes elos fraternais en tre elas. O s p u ritan o s saíram da Inglaterra co m o presbiterianos, na m aioria, mas adotaram rap id am en te o congregacionalism o ao se estabelecerem na C o lô n ia da Baía de M assachusetts. Esse foi o com eço da antiga Igreja C ongregacional n o rte am ericana, q u e p o sterio rm e n te se fu n d iu a várias outras den o m in açõ es p ro testan tes para fo rm ar a Igreja U n id a de C risto (com o atualm ente é cham ada). O s p u rita nos da N o v a Inglaterra, livres dos em pecilhos das leis da igreja e d o estado da Inglaterra, com eçaram a exigir q u e os candidatos à afiliação, além de fazerem a confissão de fé calvinista ortodoxa, oferecessem relatos p o rm en o rizad o s de sua conversão e dem o n strassem os sinais de graça em suas vidas. D ife ren tem en te dos pietistas alem ães, os pu ritanos da N o v a Inglaterra não enfatizavam os sen tim en to s e desconfiavam dos estados em ocionais. Q u a n d o perguntavam aos candidatos a m em b ro da igreja a respeito de suas respectivas conversões, qu eriam o u v ir descri ções da sua contrição, arrep e n d im en to , crença, confiança e certeza de perdão. E qu an d o p erguntavam a respeito dos sinais da graça, o u os procuravam , não se refe riam à perfeição na vida. N a verdade, q u eriam provas de sincera dedicação à igreja, de participação co n stan te na sociedade, de vida fam iliar sólida e de interesse g en u íno em o u v ir e estu d ar as Escrituras. Em m uitas igrejas puritanas, apenas as pessoas que cum priam as qualificações necessárias para ser m em bros eram adm itidas à ceia do S enhor e som ente os filhos delas eram batizados. O u tro s, não raro, a m aioria dos cidadãos e dos freqüentadores da igreja, eram relegados à condição secundária de espectadores, em vez de partici pantes plenos da vida da igreja. Se chegassem a ter verdadeira fé salvífica, seria, a
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partir de então, considerada a possibilidade de se tornarem m em bros efetivos. Essa estratégia para garantir a pureza da igreja criou um dilem a para os puritanos da N ova Inglaterra. Em bora contribuísse m u ito para evitar a tão odiada “assem bléia m ista” da igreja estatal da Inglaterra, trazia de volta a ameaça da antiga heresia do donatism o. O s donatistas da África do N o rte nos tem pos de A gostinho (séculos iv e v) tam bém queriam a igreja pura. Tanto os líderes católicos qu an to os protestantes magisteriais, por m ais de m il anos, criticaram o donatism o por ser dem asiadam ente extrem ado e perfeccionista. E m bora os puritanos não quisessem ser donatistas (consideravam Agostinho u m grande herói da história da igreja), sua eclesiologia pendia pesadam ente nessa direção e seus oponentes e críticos da Igreja da Inglaterra nunca deixavam que eles se esquecessem disso. O s bispos anglicanos acusaram -nos de serem cismáticos, heréticos e fanáticos. Até os presbiterianos escoceses e os puritanos m oderados que perm aneceram d en tro da Igreja da Inglaterra, olhavam com reprovação para os p u ri tanos da N ova Inglaterra e os consideravam sectários p o r causa de suas crenças e práticas separatistas e aparentem ente perfeccionistas. O u tro problem a criado pelo padrão da igreja dos crentes fiéis im posto pelos p u ritanos da N ova Inglaterra era a questão dos filhos dos m em bros da igreja, que eram batizados na infância e criados na igreja, m as que nunca tinham experim entado co n versão e n em com provado os sinais da graça. O s filhos desses freqüentadores não convertidos da igreja deviam ser batizados? D eviam ser adm itidos à ceia d o Senhor? N o ano 1700, a m aioria dos cidadãos da N ova Inglaterra não fazia parte das igrejas estabelecidas, em bora lhes fosse obrigatória a freqüência regular nos cultos. O ideal puritano da igreja pura tinha provocado, sem querer, a redução no n ú m e ro de m em bros da igreja e chegado ao dilem a do batism o dos filhos dos n ão-m em bros que cresceram na igreja. C o n fo rm e observa certo historiador do puritanism o: “os purita nos, na realidade, levaram a igreja para tão longe d o m u n d o q ue ela já não com porta va m ais os fatos biológicos da vida”.3 D urante o fim do século xvii e o início do século xviii, enco n tro u -se um a solução interessante q u e m u d o u pro fu n d am en te o purita nism o. U m dos principais m inistros puritanos da N ova Inglaterra, Salom on Stoddard (1643-1729), avô de Jo n athan Edwards, ajudou a criar a M eia Aliança, que perm itia que os filhos dos não-m em bros, criados na igreja, fossem batizados. M uitos, inclusi ve Edwards, q ue sucedeu ao seu pai com o m inistro da Igreja de N o rth a m p to n , que desfrutava de grande influência, consideravam que se tratava de u m desvio sério do ideal p u ritan o e procuraram reverter a situação. M as era tarde dem ais. O ideal p u ri tano da igreja de crentes verdadeiros co n tin u o u a existir principalm ente entre os batistas. A segunda m arca registrada da teologia puritana era a relação do pacto de D eus com os eleitos. O s teólogos puritanos en fren taram d iretam en te u m dos dilem as do calvinism o e pro cu raram solucioná-lo com a teologia conhecida com ofederal o u da
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aliança. E m b o ra esse m o d o de enxergar o relacionam ento de D eu s com a h u m a n i dade já tivesse sido desenvolvido pelos calvinistas antes do apogeu d o puritanism o, foram os puritanos, especialm ente os da N ova Inglaterra, que o colocaram no âm ago de sua teologia. U m dilem a q u e surgiu, so b retu d o diante dos calvinistas p u ritan o s da N ova Inglaterra, foi o seguinte: se os seres h u m an o s devem se esforçar para alcançar a conversão e a santificação (sinais da graça), co m o se explica a soberania divina na predestinação? E m outras palavras, com o a crença enfática na predestinação pode ser conciliada co m a insistência igualm ente enfática na piedade puritana? Afinal, “se a predestinação afirm a o p o d er definitivo e final da escolha divina, a piedade incita pelo m enos a u m a participação livre efetiva da parte do ser h u m a n o ”.4 O u tro dilem a sem elhante era o seguinte: se D eus é tão soberano q u e sua vontade não está sujeita a nada, nem m esm o à sua própria natureza e caráter, com o os crentes poderão ter certeza de q u e serão eleitos? O n o m in alism o (ou pelo m e nos o v o lu n tarism o divino) subjacente ao alto calvinism o levantou m u ito essa q ues tão para os p u ritan o s q u e buscavam a certeza da eleição pelos sinais da graça. C o m o se pode confiar q ue D eus não será caprichoso? O s eleitos estão assegurados ou D eus pode m u d ar de idéia? A solução desses e de outros problem as estava na teologia do pacto, que afirm a que D eus to m o u a iniciativa de celebrar contratos com os seres h u m anos e se obri gou ao cu m p rim en to deles. A prim eira aliança que D eus ofereceu a Adão e a Eva foi o pacto das obras. D eus p rom eteu que os abençoaria n o paraíso contanto que o obede cessem e não com essem da árvore do conhecim ento do bem e do mal. O pacto das obras foi quebrado pelos seres h u m anos e a conseqüência era exatam ente o que o contrato estipulava: a condenação e a corrupção aos que violam a aliança. O s purita nos acred itav am q u e toda a p o ste rid a d e de A dão e d e Eva era n a tu ra lm e n te transgressora do pacto. Aceitavam a idéia agostiniana co n tu n d en te de que, com o costum avam dizer: “na queda de Adão, todos nós pecam os”. Parte do pacto das obras era a condição de que, se os seres h u m anos originais falhassem em suas obrigações, a posteridade sofreria a corrupção e a condenação. O s pactos de D eus não são m era m en te com indivíduos. São coletivos e se aplicam a grupos na história. A teologia dos pactos postulava u m segundo co n trato q u e D eu s, em sua m iseri córdia, estabeleceu co m a h u m an id ad e caída: o pacto da graça. S egundo ela, “as p ro m essas divinas da redenção e da renovação são dadas àqueles q u e as aceitarem com fé e co rresp o n d erem co m obediência. As boas novas são proclam adas, m as há exi gências a serem cu m p rid a s”.5 O pacto da graça re q u er so m en te q u e os seres h u m a nos sintam pesar p o r sua pecam inosidade, creiam em D eus e confiem em suas prom essas (por exem plo, o ferecer u m sacrifício perfeito pelo pecado) e se esfor cem para glorificar a D eus d u ra n te a vida. C o m o diz o h in o evangelístico d o século XDC: “C re r e observ ar”.
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D e acordo com a teologia puritana, o pacto da graça, q u e abrange desde Abraão até a segunda vinda de C risto , é tanto condicional q u an to absoluto. E condicional no sentido de q ue os seres h um anos, co m o indivíduos e co m o grupos (isto é, Israel e a igreja) devem participar dela de m o d o livre e voluntário. Se aceitarem as co n d i ções d o pacto, os sinais da graça aparecerão em suas vidas. Para os puritanos, essa teologia era segura p o rq u e respondia à preocupação latente a respeito da possibili dade de D eus ser capcioso e resolvia a questão da incerteza da eleição. Q u e m são os eleitos? São todos aqueles que realm ente se co n v erterem e d em o n strarem sinais da graça em suas vidas diárias. Por quê? P orque D eus se c o m p ro m e te u , pelo pacto da graça, a lhes dar a salvação. M as com o esse conceito evita o arm inianism o o u até m esm o o pelagianism o, as duas “heresias” m ais odiadas pelos puritanos? A paren tem en te, a teologia dos pactos podia facilm ente ser interpretada co m o algo q u e pendia para o sinergism o e se desviava d o m onergism o. O s pu ritan o s insistiram q u e o pacto da graça não so m en te era condicional, com o tam b ém absoluto. P or trás d o aspecto condicional está o m istério dos decretos divinos etern o s da predestinação. Se a pessoa realm ente cu m p rir o lado h u m an o do co n trato, é p o rq u e D eus assim p red estin o u e lhe concedeu a vontade e os m eios para tanto: “o pacto da graça, p ortanto, tam bém é u m pacto do absoluto, q u e d e pende da soberania decisiva da atuação de D eus e a essência dessa convicção deve ser reconhecida da m esm a form a na interpretação da teologia do pacto. O e m p re go da idéia d o pacto não fez os teólogos puritanos ab andonarem o calvinism o ou p erd erem a crença na realidade da livre eleição de D e u s”.6 Em ú ltim a análise, a teologia do pacto baseia-se em u m paradoxo. O s puritanos não o negaram , n em procuraram resolvê-lo. Eles sim plesm ente deixaram o para doxo, na m aior parte, sem solução. D eus estabeleceu com a h u m an id ad e u m pacto condicional q u e re q u er o assentim ento e a participação livre e voluntária, m as so m en te aqueles que ele escolheu desde a eternidade e ch am o u de m o d o irresistível conseguem cum p ri-la. O s dem ais são co n denados p o r toda a etern id ad e com o violadores do pacto. Q u e b rara m o pacto das obras (e não poderiam fazer de outra form a) e deixaram de cu m p rir o lado h u m an o do pacto da graça (e não poderiam fazer de o u tra form a). N ão é de adm irar que os arm inianos, cada vez m ais n u m e rosos na Igreja da Inglaterra nos séculos x v ii e xvm, levantassem objeções contra a teologia dos pactos, alegando q u e era irracional e injusta. O s puritanos resp o n d e ram ch am ando os arm inianos de “racionalistas” q u e tentavam d estru ir o caráter m isterioso dos cam in h os de D eus. O s arm inianos objetaram dizen d o q u e a teolo gia puritana dos pactos era a im posição de u m a interpretação h u m an a das E scritu ras, q u e não era ensinada em n e n h u m o u tro lugar, c q u e era u m absurdo tentar conciliar o condicional com o absoluto. O pacto da graça tin h a de ser condicional ou absoluto, m as não podia ser as duas coisas ao m esm o tem po. Jo n a th a n E dw ards
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p ro cu ro u d eter o avanço crescente do arm in ian ism o na N ova Inglaterra, resp o n d en d o q u e o pacto absoluto é o ú n ico tipo de pacto q u e o D eus santo pode celebrar e q u e a crença arm in iana n o livre-arbítrio é absurda. N a sua ânsia em co m b ater o arm in ian ism o , E dw ards acabou negando to talm en te o aspecto condicional da ali ança — u m desvio o u u m a correção da teologia p uritana clássica, d ep e n d en d o da perspectiva. Q u al era o objetivo da teologia p uritana dos pactos? Para os p u ritan o s, assim co m o para os calvinistas e evangélicos convictos, ela fornecia u m p o n to de ligação en tre o m o n erg ism o e o sinergism o e estabelecia um a base de certeza para as pes soas preocupadas com a eleição. O pacto da graça é estabelecido e supervisionado inteiram en te p or D eus e, e n q u a n to isso, os seres h u m an o s têm de d esem p en h ar seu papel. Para “fazer parte do pacto” precisam ser visivelm ente convertidos e crescer na santificação. E aquele q u e for visivelm ente convertido e crescer na santificação (d em o n stran d o sinais da graça), o é p o rq u e foi eleito p o r D eus. A terceira m arca registrada da teologia puritana era o ideal da sociedade cristianizada. O s puritanos da N ova Inglaterra, em especial, acreditavam fervorosam ente no que se tem cham ado de teonom ia ou “teologia do reino agora”. Em outras palavras, eles acre ditavam que um a das prom essas de D eus no pacto não é apenas abençoar os indivídu os, famílias e igreja por confiarem e obedecerem , mas tam bém abençoar a sociedade hum ana se esta se esforçar para ser fiel a D eus na ordem social. O s puritanos acredita vam que as prom essas de bênçãos que D eus fez a Israel se aplicavam a eles, porque eram a extensão de Israel sob a segunda fase do pacto da graça conhecido com o N ova Aliança. A igreja é o “novo Israel” e o reino de D eus na Terra está garantido se ele se espalhar por toda a sociedade hum ana e conform ar suas estruturas sociais com a lei de Deus. Q u an d o os puritanos se exilaram da Inglaterra na década de 1630, buscavam um N ovo M u n d o onde essa república cristã (seguindo o m odelo de C alvino em G enebra) pudesse ser construída sem im pedim entos por parte da coroa ímpia e da igreja estatal im pura. Acreditavam que os Estados U nidos eram a terra prom etida e se esforçarain para ocupá-la em n om e de D eus e de seu reino. Q u a lq u e r escola secundária dos Estados U n id o s agora conhece o lado som brio do esforço p u ritan o de criar o reino de D eus em solo am ericano. O q u e raram ente se ensina e se en ten d e, 110 en tan to , é co m o o ideal p u ritan o e n tro u n o âm ago da vida norte-am erican a, na form a religiosa e secular. O o tim ism o e ativism o p u rita nos d eram ím p eto aos esforços não p u ritan o s posteriores das m issões e da trans form ação social e inspiraram p ro fu n d am en te a psique n o rte-am erican a com a fé na vocação celeste desse país. Q u a n d o o ideal p u ritan o original com eçou a oscilar e am eaçou se extinguir ou se to rn ar um a crença vulgar da riqueza e d o poder, Jo n a th a n E dw ards surgiu com o p ro fe ta p u r ita n o p ara re s g a ta r su as m o tiv a ç õ e s v e rd a d e ira s . D e ssa fo rm a ,
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rein terp reto u -o . Insistiu q u e os cidadãos da N ova Inglaterra não so m en te “se m u l tiplicassem e su bjugassem ” o paraíso selvagem do N o v o M u n d o , m as tam b ém que tratassem com ju stiç a e am or os nativos que se encontravam ali. C o n d e n o u especi ficam ente os m aus tratos aos índios n o rte-am erican o s e solicitou q u e as tribos fossem recom pensadas pelas terras q u e lhes foram tiradas. P ouco depois, foi in ti m ado a deixar seu p ú lp ito em N o rth a m p to n e partiu para viver com os índios. A visão puritana da o rd em social cristianizada assum iu m uitas form as, m as sem pre desejou e acreditou n o reino de D eus na Terra antes da volta visível de Jesu s C risto (p ó s-m ilenism o).
Jonathan Edwards: o príncipe dos puritanos Jo n ath an E dw ards nasceu em 1703 no estado de C o n n ecticu t. Seu avô m atern o era Salom ão Stoddard, u m dos teólogos p u ritan o s m ais in flu en tes da N ova Inglaterra. E m b o ra o n eto fosse precoce e sinceram ente estudioso, poucos acreditariam que, na vida adulta, o pastor assistente Jo n ath an chegaria a ofuscar a fama do avô, após se fo rm ar na Faculdade de Yale em 1724. A vida de E dw ards foi notável e m erecia um a narrativa m ais com pleta do que p odem os oferecer aqui. E injusta a reputação atribuída a ele pelos currículos das escolas públicas dos Estados U n id o s de prega d o r “de fogo e en x o fre”, cuja única contribuição foi o assustador serm ão co n d en atório: “Pecadores nas m ãos de u m D eus irado”. Esse serm ão é freq ü en tem en te incluído nas antologias da literatura n o rte-am erican a co m o exem plo de pregação puritana e m u ito s alunos com pletam o segundo grau sem ap ren d erem m ais nada a respeito do h o m em q u e o professor de filosofia da U niversidade dc Yale, J o h n E. S m ith, cham a de “in d u bitavelm ente o m aior teólogo d o p u ritan ism o n o rte-am eri cano [e] o pen sad o r filosófico de m aior acuidade no cenário n o rte-am erican o até os tem p os de C harles Peirce”7 e q u e o em in en te teólogo lu teran o n o rte-am erica no, R obert W. Jen so n , cham a de “teólogo dos Estados U n id o s”.8 E dw ards escreveu mais de seiscentos serm ões q u e ainda existem na form a de m anuscrito. P oucos enfatizam o fogo do in fern o e testem u n h as oculares dizem q ue q u an d o E dw ards pregava, falava com clareza, m as sem m uita em oção. Partici po u ativam ente de quase todas as controvérsias na N ova Inglaterra e leu e escreveu a respeito de um a am pla variedade de assuntos, inclusive filosofia, ética e ciência. M u ito s livros q ue escreveu co n tin u am em circulação e algum as seleções deles e n con tram -se em coletâneas e antologias. E ntre suas obras m ais influentes e im p o r tantes estão: D a natureza da virtude verdadeira, Da liberdade da vontade, Defesa da grande doutrina cristã do pecado original e Tratado sobre as inclinações religiosas. Foi u m avivador e p articipou ativam ente d o G rande D e sp e rtam en to q u e se es palhou pelas colônias na década de 1740 e ajudou a fu n d a r a ciência da psicologia da religião pelo exam e cuidadoso e crítico das experiências religiosas. Foi u m dos
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prim eiro s filósofos do N o v o M u n d o a ler e estu d ar a filosofia d o ilu m in ism o de J o h n Locke e a cosm ologia de Isaac N e w to n . A cim a de tu d o , o teólogo E dw ards defendia apaixonadam ente as doutrinas calvinistas puritanas contra o “arm inianism o rastejante” e o racionalism o na teologia. Em seus escritos, criou u m a form a d istin tam en te no rte-am ericana de teologia reform ada, q u e se to rn o u referência para os cristãos protestantes intelectuais de fé evangélica p o r m ais de dois séculos. M uitos cristãos n o rte-am erican o s q u e se en ten d e m evangélicos consideram E dw ards u m herói, u m tip o de A gostinho dos Estados U n id o s, q u e fo rm u lo u a cosm ovisão cristã do N o v o M u n d o e o m o d elo de integração da fé cristã p ro fu n d a com a vida intelectual rigorosa e disciplinada.9 D epois de co n d u z ir a congregação de N o rth a m p to n que h e rd o u do avô ao aviv am en to n o G ran d e D espertam ento, E dw ards foi expulso sem cerim ônia pelo c o n selho da igreja em 1750 p o r causa de seus serm ões proféticos em defesa do trata m en to eqüitativo para os índios e p o r p ro ib ir a c o m u n h ão aos freq ü en tad o res não convertidos da igreja. Foi, então, para a co m u n id ad e fronteiriça de Stockbridge, M assachusetts, trabalhar com o m in istro e m issionário en tre os índios. E m 1757, foi convidado a ocu p ar o cargo de presidente da U niversidade de P rin ceto n , em N ova Jersey. U m m ês depois de to m ar posse, m o rre u de varíola, provocada por um a vacina estragada. E m bora fosse forte o p o n en te da teologia arm iniana e de outras idéias q u e se o p u n h am à tradição puritana, E dw ards n u n ca participou da estereotipada caça às bruxas, pela qual tantos críticos m o d ern o s do p u ritan ism o são obcecados. Era u m cidadão p reocupado com a verdade, a ju stiç a e a virtude. Era o tipo de h o m em introspectivo q u e pensa m u ito sobre questões com plexas antes de fazer q u alq u er declaração a respeito. Era u m h o m em de grande devoção e piedade, q u e concordava com os pietistas alem ães (q u er os ten h a lido o u não) ao acreditar q u e o cristianism o verdadeiro está m ais n o coração do q u e no intelecto. A teologia de Jo n a th a n E dw ards era um a m escla d o calvinism o e d o pietism o, p o r não ser m u ito d iferente do p en sam en to clássico p u ritan o , em b o ra a ênfase pietista no sen tim en to religioso seja m ais m arcante em E dw ards do q u e em teó lo gos p u ritan o s anteriores. Sua pregação era avivadora e visava apelar ao coração dos ouvintes a fim de levá-los ao d esp ertar religioso. As vezes, provocava reações e m o cionais exageradas q u e assustavam até m esm o a ele. Seus escritos teológicos têm três m arcas principais consistentes: a glória e a liberdade de D eus, a depravação e escravidão dos seres h u m an o s e o coração o u as afeições co m o o cen tro an tro p o ló gico. C o m o acontece com freqüência, a teologia de E dw ards se desenvolveu d u rante conflitos e controvérsias. N ão pregava n em escrevia sem m otivação. As notas distintivas de sua elevação calvinista da glória de D eu s e da depravação hu m an a foram im pulsionadas pelo receio da teologia arm iniana. Sua ênfase n o coração, ao co n trário da m en te e da vontade, se devia parcialm ente ao receio do racionalism o
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religioso. Assim , a teologia de E dw ards foi criada para com bater os perigos que enxergava na m aré crescente do “arm in ian ism o da m e n te ” na N ova Inglaterra. N ã o parece que realm ente reconhecia o u tinha consciência de algum o u tro tipo de teologia arm iniana o u sinergism o evangélico. Para ele, o arm in ian ism o era in trin secam ente racionalista e h u m anista e, portan to , co n trário ao verdadeiro evangelho de Jesu s C risto e aos ensinos dos grandes reform adores protestantes. N e n h u m teólogo na história do cristianism o su sten to u u m conceito m ais ele vado o u enfático da m ajestade, da soberania, da glória e do p o d er de D eus do que Jo n ath an Edw ards. Ele co n cen tro u todo o seu p en sam en to nesses tem as e exigiu que toda e q u alq u er idéia fosse trazida de volta a eles para ser testada. Para ele, D eus é a realidade q u e a tu d o d eterm in a, n o sentido m ais incondicional possível, e sem pre age em prol de sua própria glória e honra. Por q u e D eus crio u algum a coisa fora dele m esm o? S egundo Edw ards, q u e escreveu u m tratado sobre o assunto, a única m otivação de D eus era a sua própria glória. N a Dissertação sobre afinalidade de Deus criar o mundo, o pregador p u ritan o declarou: “parece que tu d o o que chega a ser m en cio n ad o nas E scrituras com o propósito final das obras de D eus se resum e em única frase, a glória de Deus, pela qual a derradeira finalidade de suas obras é m ais c o m u m en te cham ada nas E scrituras”.10 Essa idéia extrem a da glória de D eus não é p articu larm en te nova na história da teologia. M as E dw ards p o stu lo u que, se D eus é verd ad eiram en te D eus, então, é o ún ico poder, causa e existência de tudo. N ad a pode existir o u agir sem a presença im ediata de D eu s, não so m en te que sustenta m as tam bém causa tu d o diretam ente. A d o u trin a de E dw ards q u an to à atuação de D eu s q u e a tu d o d eterm in a era tão extrem a q u e alguns intérpretes sen tiram nela um a am eaça d o panteísm o (D eus idêntico à natureza). C ertam e n te , não era essa a intenção de Edw ards, m as ele realm ente ad o to u um conceito d o relacio nam en to de D eus com o m u n d o para o qual teopan ism o não seria u m term o forte dem ais. D eus faz tu d o e tu d o é feito para a sua própria glória. D eus é a única causa; as criaturas e as suas ações são os efeitos. Creatio ex nihilo é o caso não so m en te da criação original, m as tam b ém da criação inteira e de cada ser q u e existe nela em to d o e q u alq u er m o m e n to .11 Ao con trário d o se poderia im aginar, E dw ards não apresentou o conceito d o ser universal e da atuação de D eus co m o m era sugestão, co m o u m a idéia possível en tre outras. E n ten d ia que era a única d o u trin a realm ente bíblica de D eus. S egun do a Bíblia, D eus é soberano. A soberania de D eus está na sua divindade. A c o n tin gência e a liberdade libertária, c inclusive a causação secundária, depreciam a sobe rania de D eus. P ortanto, q u alq u er idéia diferente da sua co n d u z inevitavelm ente ao ateísm o. J o h n E. S m ith declara que, para Edw ards: “a c o n d u ta im ediata de D eus, q u e r em agir, q u e r em deixar de agir, é o ‘original’ na série de eventos su b seq ü e n tes. A despeito do grande p ro lo n g am en to e das com plexidades do arg u m e n to de
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Edw ards, sua posição repousa, co m o u m a to rre en o rm e , em u m ú n ico alicerce: D eus e so m en te ele é a única causa de tudo; e p erm itir ‘causas secundárias’ equivale a negar to talm en te a realidade de D e u s”.12 N a tu ralm en te, esse conceito en tro u em conflito so b retu d o com o arm in ian ism o e com a d o u trin a da autolim itação de D eus e d o livre-arbítrio libertário. O p u n h a -se , tam bém , ao m o n erg ism o an terio r e c o n tem p o rân eo que in tro d u ziram fatores de causalidade en tre D e u s e a atuação h u m ana. Era até m esm o incom patível com a teologia p uritana clássica dos pactos, já que esta representava D eus condicionado às respostas dos seres h um anos. S egun do Edw ards, o cristão não pode enfatizar dem ais a qualidade absoluta de D eus e a dependência de todas as criaturas, inclusive do ser hu m an o . O seg u n d o tem a principal da teologia de E dw ards é a depravação e a escravidão dos seres h u m an o s. O s seres h u m an o s e todas as criaturas não apenas d ependem to talm en te de D eus, do m o d o m ais d ireto e im ediato possível, co m o tam b ém são to talm en te depravados e obrigados a pecar, a m en o s q u e D eu s os salve soberana m ente. M esm o assim , são livres so m en te para fazer o q u e D eus d eterm in a. C o n tra a m aré crescente da teologia arm iniana en tre os anglicanos e alguns congregacionais, Edw ards defendia com firm eza as d o u trin as da depravação total, da eleição in co n dicional e da graça irresistível. Se D eus decidir in clu ir todos os seres h u m an o s em Adão e considerá-los responsáveis pela queda dele, tem toda a liberdade de fazê-lo. S egundo Edw ards, D eus criou a h u m an id ad e de tal m aneira q u e a forte identidade e n tre Adão e cada u m de seus descendentes vai existir até q u e ele decida rom pê-la co n ced en d o às pessoas u m a nova existência. O livre-arbítrio, argum entava, não faz o m ín im o sen tid o a não ser q u e as pessoas, pecadoras ou salvas, façam o q u e q u e rem fazer. Elas seguem as inclinações q u e D eus lhes incutiu. Toda realidade preci sa ter um a causa, explicou ele em Da liberdade da vontade, e a d o u trin a arm iniana da liberdade libertária afirm a u m evento não causado: a livre decisão d o agente h u m a no. O s eventos sem causa são irracionais e, p o rtan to , “a noção arm iniana da liber dade da vontade, q u e consiste na autodeterminação da vontade, é contrária a si m es m a e se exclui to talm en te do m u n d o ”.13 N a tu ralm en te, E dw ards n u n ca chegou a solucionar o dilem a q u e esse argu m en to cria para sua p rópria d o u trin a de D eus. Acreditava fervorosam ente na liber dade de D eus em relação ao q u e está fora dele. O u seja, a criação e a redenção do m u n d o p o r D eu s não são, de m o d o algum , determ inadas. D eus não precisava criar ou red im ir o m u n d o . Se assim fosse, o m u n d o seria u m a parte de D eus e ele não seria in finito e soberano. M as a crítica de E dw ards à teologia arm iniana levanta um a dú v id a em sua p ró p ria d o u trin a de D eus: o p ró p rio Deus tem liberdade libertária? Se não tem , co m o ele pode ser soberano e sua decisão de criar o m u n d o não ser necessária? Se ele tem , p o r q u e D eus não poderia com partilhar essa liber dade libertária com os seres h u m an o s co m o dádiva e parte da im agem divina? E p o r
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q u e a crença na liberdade libertária é irracional e absurda (conform e E dw ards ale gava) para os seres h u m an o s e para D eus não é? A crítica de E dw ards à liberdade libertária, parece tê-lo lançado nas garras de u m dilem a, m as ele não o adm itiu. Para Edw ards, além de o pecado restringir a vontade dos pecadores, a própria condição de criatura to rn a o livre-arbítrio im possível e inconcebível à m en te raci onal. Todos os seres h u m an o s são pecadores, p o rq u e D eus inclui todos em Adão. O s eleitos são red im idos p o rq u e D eu s os inclui em C risto . D eu s pred estin a e causa tu do. M as, se D eus é ju sto , co m o inclui todos em A dão? N o tratado Defesa da doutrina do pecado original, E dw ards arg u m e n to u q u e toda a identidade, inclusive a identidade p rópria de cada pessoa, é con stitu íd a co m p letam en te p o r D eus. Sem ele não fu n cio n ar co m o u m “adesivo” q u e m an tém unidas as experiências e idéias m o m entâneas, a identidade particular de cada ego se esfacelaria. A única razão de u m a pessoa co n tin u ar sendo a m esm a pessoa e ser responsável pelas m ás ações com etidas n o passado é o “estabelecim ento d iv in o ” da co n tin u id ad e da unicidade cham ada “e g o ”. P ortanto, E dw ards, resp o n d en d o à qu estão da ju stiç a de D eus im p u ta r o pecado de Adão a toda a h u m anidade, declarou: Estou convicto de que nenhum a razão sólida pode ser citada para que Deus, que constituiu toda a união ou unicidade de acordo com sua vontade e se gundo seus propósitos, conveniências e intenções, não possa estabelecer uma estrutura pela qual a posteridade natural de Adão, que dele procede, de modo m uito semelhante aos brotos e galhos do caule e da raiz de uma árvore, seja tratada como uma só com ele, para a derivação da justiça e da comunhão em recompensa ou para a perda da justiça e conseqüente corrupção e culpa.14 A visão radicalm ente m onergista de E dw ards sobre D eus e a criação responde algum as dúvidas e levanta outras. Por que as coisas são co m o são? P orque D eus glorifica a si m esm o com isso. O q u e dá ord em , continuidade e coerência à grande confusão que é o m u n do? D eus. M as há perguntas não respondidas q u e talvez se ja m im possíveis de responder pelo sistem a de Edw ards, com o: E xatam ente qual é a diferença en tre o ser divino e o ser h u m an o , se a agência deles é a m esm a? Se D eus causa de m o d o im ediato e direto tu d o o q ue acontece, p o r que outra pessoa, e não o próprio D eus, seria responsável pelo pecado e pelo mal? C o m o D eus pode ser glo rificado em criaturas q u e sofrem etern am en te no inferno? N e m é necessário dizer que os arm inianos não ficaram satisfeitos com as respostas (ou a falta de respostas) de E dw ards a essas perguntas. Preferiam conviver com o m istério do livre-arbítrio libertário do que com essas perguntas sem respostas e im possíveis de responder. O terceiro tem a da teologia de E dw ards trata das afeições co m o “c erne a n tro p o lógico”. O cerne an tropológico refere-se à essência da personalidade da qual p ro -
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vêm a identidade e as ações. Três candidatos principais dessa faculdade central e crucial se apresentaram diante de Edw ards: a m en te, a vontade e o coração. N a N ova Inglaterra do século xvn, u m novo racionalism o q u e atribuía à m en te o u à razão suprem acia sobre a ação h u m an a ganhava cada vez m ais influência e po p u la ridade. Seus defensores criticaram severam ente o grande reavivam ento q u e se es palhava pelas colônias inglesas nas décadas de 1730 e 1740, taxando-o de em otivo, irracional e, p o rtan to , contrário aos m elhores im pulsos da natureza hum ana. Al guns p ro p o n en tes m ais fanáticos d o reavivam ento insistiam q u e o coração o u as em oções devia guiar as pessoas e d o m in ar a razão e a vontade, especialm ente nas questões religiosas. Jo n a th a n E dw ards desenvolveu u m tipo de psicologia q u e transcendia as alter nativas conhecidas. E m vez da m ente, da vontade o u do coração, ele sugeriu que u m a faculdade cham ada “afeição” governava as ações do indivíduo. As pessoas fa zem o q u e suas afeições o rdenam . As afeições não são iguais às paixões o u e m o ções, m as as dirigem . N ã o são, tam pouco, pensam entos o u decisões. Pelo c o n trá rio, as afeições são o q u e d eterm in a as crenças e as escolhas de cada um . São fortes m otivações interiores. São, fu n d a m e n talm e n te, o q u e a pessoa am a, o u m elhor, são os am ores da pessoa. O p ró p rio E dw ards explicou as afeições co m o inclinações em seu Tratado sobre as afeições religiosas: “As afeições não são nada m ais d o q u e o exercí cio m ais vigoroso e sensível da inclinação e da vontade da alm a [...] é aquilo pelo qual a alm a não apenas percebe e enxerga as coisas, m as de algum a form a para o qual se inclina diante das coisas que vê o u considera; ela é predisposta o u indisposta c aversa a elas”.15 E dw ards não p o u p o u esforços para diferenciar as afeições genuínas das falsas na religião. E m ú ltim a análise, a rg u m e n to u q u e os afetos g enuínos são os que glorifi cam a D eu s e a única afeição q u e D eus m ais q u e r instilar nos eleitos é a b en evolên cia para com os seres, p o rq u e esta é a afeição básica d o p ró p rio D eus. E a “natureza da v irtu d e g en u ín a” e o m aior e m elh o r sinal da graça. O reavivam ento g en u ín o da religião provoca m ais d o q u e explosões em ocionais, em bora, segundo E dw ards, elas sejam inevitáveis q u an d o as pessoas estão p ro fu n d am en te com ovidas. N e m é preciso d izer q u e os racionalistas daquele tem p o ficaram chocados com a psicolo gia das afeições proposta p o r Edw ards. Receavam q u e ele levaria ao irracionalism o e ao em ocionalism o religioso. P orém , a psicologia m o d ern a d efen d e m u ito as idéi as de E dw ards sobre a personalidade h u m an a, d esconsiderando sua interpretação teológica, q u e considerava D eus a causa su p rem a de todas as afeições, tanto boas q u an to más. J o n a th a n E d w a rd s é, sem d ú v id a, u m dos teó lo g o s m ais im p o rta n te s do evangelicalism o n o rte-am erican o . M uitos cristãos protestantes m o d ern o s n o rteam ericanos que se d efinem co m o evangélicos referem -se a ele co m o a ep íto m e de
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um a séria reflexão e fé bíblicas, acom panhadas de p ro fu n d a piedade pessoal. O u tro im p o rtan te teólogo no contexto histórico d o evangelicalism o é Jo ão Wesley, o colega inglês m ais jo v em de Jo n ath an Edw ards. E n q u an to os evangélicos calvinistas m an têm E dw ards na m ais alta estim a, os evangélicos arm inianos enaltecem Wesley co m o paradigm a.
John Wesley: fundador do metodismo O s p u ritan o s tentaram re fo rm ar a Igreja da Inglaterra seg u n d o o m o d elo calvinista e acabaram se d iv id in d o nas den o m in açõ es congregacional, presbiteriana e batis ta. S em a fo rte in flu ê n c ia p u rita n a , as igrejas anglicanas se v o ltara m para o racionalism o frio e, inclusive, para o q u e o teólogo re fo rm ad o Alan P F. Sell cha m a de “a rm in ian ism o da m e n te ”.16J o h n W esley estava d ecidido a reavivar o espí rito evangélico da Igreja da Inglaterra, m as sem im p o r a teologia reform ada às pessoas. Pelo co n trário, sua teologia era o q u e Sell cham a de “arm in ian ism o do coração”, u m arm in ian ism o co m b in ad o com o pietism o q u e ardia com o fogo do reavivam ento. P o sterio rm en te, o m o v im e n to de Wesley, ch am ad o m eto d ism o , sep a ro u -s e da Igreja da In g la te rra . A ssim c o m o o p u rita n is m o e E d w a rd s, o m eto d ism o e Wesley deixaram um a im pressão indelével na teologia evangélica da A m érica do N o rte . Jo h n W esley nasceu no lar de u m re ito r anglicano em E pw orth, na Inglaterra, em 1703.17Foi criado com o u m dos dezesseis filhos de Sam uel e Susanna Wesley.18 Q u a n d o era p eq u en o , a casa pastoral in cen d io u -se e J o h n só foi salvo p o rq u e foi jo g ad o pela jan ela para os braços de u m a pessoa. Em seu diário, ele sem pre fala de si com o u m “tição arrancado das cham as”, um a referência a dois profetas d o a t . J o h n tin h a a consciência profética de q u em foi especialm ente escolhido e cham ado p o r D eu s para reavivar o cristianism o verdadeiro na Inglaterra. A história da vida de Wesley é fascinante e extrem am en te com plexa e não pode ser contada aqui com m u ito s detalhes. Basta dizer q u e estu d o u na U niversidade de O xford, prep aran d o -se para o m inistério da Igreja da Inglaterra, e en fre n to u p ro blem as p o r con fratern izar com pessoas co m o G eorge W hitefield (1714-1770) q u e pertenciam a um a classe diferente da sociedade inglesa. J u n to com W hitefield e seu p ró p rio irm ão, C harles, J o h n fu n d o u o q u e cham aram “C lu b e S anto”, que era sem elhante a u m co n ventículo pietista. O s críticos taxaram -nos de “m etodistas” p o rque, segundo en ten d iam , queriam e n c o n trar e praticar u m m éto d o de espiri tualidade. D epois da ordenação, Jo h n foi para a colônia norte-am ericana da G eórgia com o u m tipo de m issionário dos colonos ingleses. N a viagem m arítim a de traves sia do Atlântico, um a tem pestade quase afu n d o u o navio e W esley ficou p ro fu n d a m en te p ertu rb ad o com seu p ró p rio m edo da m o rte diante da calm a e da serenida de de um g ru p o de pietistas m orávios.
O s p u ritan os e os m etodistas esforçam -se para reavivar .
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O breve pastorado de Wesley na G eórgia foi u m fracasso e ele reto rn o u h u m ilh a do para a Inglaterra. Sentia a necessidade cada vez m aior de um despertar que lhe desse a certeza da salvação e o livrasse do tu m u lto das tentações que o assediavam todos os dias. Em 24 de m aio de 1738, o jo v em m inistro anglicano participou de um a reunião religiosa em u m salão alugado na rua Aldcrsgate, em Londres. O s estudiosos acreditam q ue se tratava de um a reunião de m orávios. Ali, conta Wesley, enq u an to escutava alguém ler em voz alta o prefácio de Lutero ao Comentário sobre a epístola aos romanos escrito p o r ele, sentiu o despertar religioso que tanto ansiava: “Senti m eu coração se aquecer com o nunca antes. Senti que confiava de fato em C risto, e so m ente nele, para a m in ha salvação; e tive a certeza de que ele havia assum ido meus pecados, sim , até os meus pecados, e me salvado da lei do pecado e da m o rte ”.19 H á 250 anos, estudiosos discutem se essa experiência re p resen to u a conversão de W esley ao c ris tia n is m o o u se foi u m e v e n to especial e m o m e n tâ n e o de santificação. Seja o q u e for, foi crucial para sua vida espiritual e carreira m inisterial. D epois disso, com eço u u m a longa série de cam panhas evangelísticas ju n to com seu am igo G eorge W hitefield e seu p ró p rio irm ão, C harles Wesley. Jo h n W esley viajou m ilhares de q u ilô m etro s a cavalo, pregando às m ultidões sem pre q u e possível, ao ar livre o u em salões alugados q u an d o as igrejas anglicanas lhe negavam o p ú lp ito . E m certa ocasião fam osa, c h e g o u a E p w o rth para p reg ar na igreja de seu pai já falecido. O p áro co p ro ib iu W esley de p re g ar n o p ú lp ito d o pai, assim , o filh o se co lo co u d ia n te da lápide da s e p u ltu ra d o pai, ao lado da ig reja, e p re g o u su a m e n s a g e m à m u ltid ã o . E m su a c a rre ira e v a n g e lístic a itin e ra n te , W esley p re g o u m ais de v in te m il serm õ e s, m u ito s d o s q u ais foram p u b licad o s em livros, revistas o u folhetos. Seu irm ão C harles (1707-1788) escre veu centenas de hin o s e m u ito s ainda são c o m u m e n tc usados nas igrejas p ro testan tes do m u n d o inteiro. Ju n to s, os três am igos deram início ao G rande D espertam ento na Inglaterra q u e se espalhou pelas colônias da A m érica do N o rte . A lguns h isto ri adores susten tam q u e os reavivam entos w esleyanos na Inglaterra ajudaram a evitar um a revolução sangrenta com o a q u e explodiu na França n o fim d o século x v i i i . Wesley pregava a conversão e a santidade às m assas q u e se sentiam excluídas do am biente form al da igreja estatal. Para acom odar e discipular os n u m ero so s novos convertidos ao cristianism o, W esley fu n d o u sociedades m etodistas sem elhantes aos collegia pietatis, o u conventículos dos cristãos d o coração, dos pietistas luteranos alem ães. O rg an izo u -as, co n d u ziu -as e p o r fim , com relutância, acabou no m ean d o m inistros e até bispos para dirigi-las. A ntes de sua m o rte em 1791, o m eto d ism o já era um a den o m in ação dissidente plen am en te estabelecida na Inglaterra. N a A m é rica do N o rte , o n d e tinha com eçado com o facção nova e peq u en a na época da revolução am ericana, cresceu até se to rn ar a d enom inação cristã p re d o m in a n te nos tem p o s da G u e rra de Sucessão, em m eados do século xix.
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Wesley nun ca escreveu um a teologia sistem ática. N a verdade, não se interessa va n em u m pouco em fazê-lo por acreditar q u e os p rotestantes já haviam escrito com p ên d io s suficientes de d o u trin a c especulações teológicas. E n tretan to , ele ti nha sua própria teologia e esse fato está claram ente refletido em seus serm ões, seu diário, suas notas e com entários, no Livro dc disciplina metodista e cm tratados com o Explicação clara da perfeição cristã (Im prensa M etodista, 1984). W esley devia m u ito de seus escritos a um a m istura eclética de precursores: R ichard H o o k e r,Ja có A rm ínio, N ik o lau s L udw ig v on Z in z e n d o rf e p u ritan o s co m o R ichard B axter e W illiam Perkins. C onsiderava-se o rtodoxo e católico, bem com o to talm en te protestante. Sem pre afirm ou q u e aceitava os princípios protestantes clássicos sola scriptura, sola ftdes e o sacerdócio de todos os crentes, em b o ra m u ito s de seus o p o n en tes e críticos ainda o co ndenem p or ter interpretado à sua própria m aneira essas m arcas registradas da teologia protestante. A teologia de W esley era co m pletam ente arm iniana em um período em que m u ito s evangélicos, inclusive seu am igo e colega evangelista, G eorge W hitefield, consideravam o arm in ianism o quase um a heresia. Esse fato provocou a separação dos irm ãos W esley e W hitefield e um a divisão n o m etodism o. W hitefield e um p eq u en o g ru p o de m etodistas calvinistas separaram -sc d o g rupo principal q u e se guia W esley em seus en sin o s a resp eito d o liv re-a rb ítrio e da graça resistível. W hitefield, em sua viagem evangelística pelas colônias norte-am ericanas, to rn o u se am igo ín tim o de Jo n ath an Edw ards, ao passo q u e os irm ãos W esley se aproxim a ram m ais da teologia sinergista de Z in z e n d o rf c dos pietistas alem ães e escandinavos. U m a m aneira de d efinir a diferença en tre a teologia evangélica dc J o h n Wesley e a de Jo n ath an E dw ards é dizer q u e W esley colocava o am or de D eu s 110 âm ago de sua pregação e en sin o , en q u a n to E dw ards tom ava a glória de D eus co m o base de tu do. Todo protestan te evangélico q u e r m an ter as duas ênfases. C o m o diz fam osa a oração das crianças: “D eus é grande e D eus é b o m ”. W esley n u n ca negou n em q u estio n o u a m ajestade e grandeza de D eu s, m as colocava o am o r de D eus em p rim eiro lugar. E dw ards nunca negou nem q u estio n o u o am o r de D eus, m as colo cava a m ajestade e a glória de D eus em p rim eiro lugar. P ortanto, Edw ards conside rava q u alq u er tipo de arm inianism o, inclusive a teologia arm iniana evangélica de Wesley, um a negação im plícita da grandeza de D eus e u m passo em direção ao ateísm o. Por o u tro lado, W esley considerava as d o u trin as de C alvino — a eleição incondicional, a graça irresistível e a dupla predestinação — ofensivas ao caráter de D eus, q ue é am or. C h eg o u a p o n to dc declarar a opinião de q u e essas d o u trin as eram um a blasfêm ia, p o rq u e to rn am difícil d istin g u ir e n tre D eus e o diabo.20 N e m é preciso d izer q u e Wesley e seus colegas p u ritan o s d o reavivam ento do século x v iii não conseguiram cooperar en tre si. A divisão en tre m o n erg ism o e o sinergism o m an tin h a-o s afastados, arredios e cheios de suspeitas uns contra os outros. A m bas
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partes afirm avam q u e podiam se am ar, m as abom inavam e repudiavam as d o u tri nas uina da o u tra. Essa divisão perm anece n o cristianism o pro testan te evangélico anglo-am ericano até hoje e p ro m ete c o n tin u ar a ser m otivo de lutas teológicas por m u ito tem p o ainda.21 A co ntrib u ição especial de W esley à história da teologia p rotestante está em suas interpretações distintas de dois princípios clássicos. E m b o ra afirm asse sola scriptura, tam bém desenvolveu um a teoria de autoridade para a fé e prática cristãs, conhecida co m o o q u a d rilá te ro w esleyano. E m b o ra afirm asse sola gratia et fides, tam b ém enfatizava a possibilidade real da perfeição cristã p o r toda a santificação. Essas duas em endas à teologia p ro testan te clássica q u e eram controvertidas e n q u a n to W esley ainda vivia, influenciaram p ro fu n d am en te o m eto d ism o e, através dele, boa parte do cristianism o p ro testante e ainda são questões controversas d o cristianism o c o n tem p o rân eo . A atitu d e de W esley para com o sacerdócio de todos os crentes era to talm en te p ro testan te na teoria, em b o ra alguns críticos acreditassem q u e ele a lim ito u ao m an ter o cargo de bispo e u m governo eclesiástico episcopal n o m ovi m en to m etodista. N ão há a m e n o r dúvida de q u e o p ró p rio W esley sustentava a autoridade su p re m a das Escrituras, acim a de q u alq u er o u tra fonte e n o rm a para a pregação e vida cristãs. Por o u tro lado, incluiu a razão, a tradição e a experiência co m o ferram entas essenciais para o exercício da teologia. O quadrilátero w esleyano estabelece q u atro fontes e ferram entas essenciais da teologia: as Escrituras, a razão, a tradição e a experiência.22 W esley em p re sto u , do teólogo anglicano R ichard H ooker, a forte ênfase à razão e à tradição e, do pietism o, a ênfase à experiência. A creditava q u e as qu atro inevitavelm ente d ese m p e n h am papéis n o pen sam en to cristão e que, em vez de rejeitá-las, os cristãos devem reco n h ecer a função de cada u m a de ferram enta para a interpretação das E scrituras e atrib u ir o devido valor às co n tribuições que po d em dar à form ulação de d o u trin as bíblicas v erd ad eiram en te católicas (fiéis ao espírito dos pais da igreja e dos reform adores), razoáveis (coerentes, inteligíveis) e práticas (relevantes à experiência). E n tretan to , o quadrilátero de Wesley, de fontes e ferram entas para o m éto d o teológico, não era n em u m po u co eqüilátero. S em pre p ro cu ro u afirm ar a au toridade su p rem a das Escrituras e n u n ca p erm itiu q u e a tra dição, a razão o u a experiência as obliterasse o u regulasse. C o m o afirm a T h o m as C. O d e n , u m dos in térp retes atuais de W esley de m aior autoridade: “W esley sem pre afirm ou q u e ‘a Palavra de D eus escrita é a única e suficiente regra tanto da fé qu an to da prática cristãs”’.23 M as W esley insistia em afirm ar q u e n in g u ém apenas lê a Bíblia. Isto é, as pessoas vão além da leitura (q u er ten h am consciência o u não) e in terp retam a Bíblia (q u e r ten h am consciência ou não). Wesley, ao ap resentar seu quadrilátero, estava sim plesm ente apresentando as ferram entas apropriadas da boa interpretação bíblica e a form a co m o devem ser
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usadas. N ão estava p ro cu ran d o , de m o d o algum , restrin g ir a autoridade das E scri turas. A interpretação bíblica e o m éto d o teológico apropriados aliam a subm issão total à Bíblia com o Palavra inspirada de D eus ao respeito pela grande tradição da d o u trin a cristã, um a p ostura ju d icio sa que em prega a lógica, o coração caloroso e a m en te ilum inada pelo E spírito Santo. A segunda co n trib u ição distinta de Wesley é a crença 110 perfeccionism o cristão. A lguns críticos, já naquela época e desde então, acusavam Wesley dc negar a d o u trina p ro testante clássica da justificação pela graça m ediante a fé som ente, não ape nas p o rq u e procurava com biná-la com o sinergism o, m as tam bém p o rq u e ressal tava a regeneração c a santificação m ais do que a justificação. Isso acontecia p o r q ue, assim com o os pietistas luteranos alem ães, ele adm itia a d o u trin a da ju stific a ção com o fato co n sum ado. Era um a d o u trin a que já estava firm em en te enraizada na teologia protestante. O que havia sido desprezado, segundo acreditava, era o lado experim ental da iniciação cristã na salvação e nesse respeito ele concordava com Francke c Z in z e n d o rf e o u tro s “cristãos d o coração” do pietism o. C o m o eles, Wesley defendia com veem ência o batism o infantil, ao contrário dos atiabatistas c dos batistas, m as interpretava o rito m ais co m o u m m eio de graça p reveniente (e resistível) d o q u e u m sacram ento regenerador. Em alguns escritos e serm ões, q u a se chegou a re d u zir o batism o infantil a um a cerim ônia com em orativa e foi assim que m u ito s m etodistas posteriores interpretaram . Sem dúvida, a principal ênfase da soteriologia de W esley recaía na conversão, in clu in d o a regeneração, o nascer de novo do Espírito de D eus pela fé consciente em Jesu s C risto. E necessário tê-la para ser considerado “cristão verd ad eiro ”. E u m a obra de D eus pela graça m ed ian te a fé e inclui a justificação.24 M as seu ensino soteriológico m ais controvertido, m esm o en tre os pietistas e o u tro s reavivalistas, se encontrava 11 a área da santificação. Em “Explicação clara da perfeição cristã”, u m apêndice de seu livro de 1767, o evangelista explica sua posição: Alguns pensamentos vieram à minha mente com respeito à perfeição cristã, à forma e ao m om ento de recebê-la, que acredito por bem explicá-los. Primei ro, por perfeição entendo humildade, bondade, paciência, amor a Deus e ao próximo, domínio de nossas emoções, palavras e ações. Não excluo a possi bilidade da falta dela, parcial ou total. Portanto, retiro várias expressões de nossos hinos que expressam c insinuam a falta dessa possibilidade. E não defendo o term o impecável, embora não me oponha a ele. Segundo, quanto à forma, creio que a perfeição é sempre trabalhada na alma por um ato simples dc fé; por conseqüência, instantaneamente. Mas acredito em um esforço pro gressivo que anteceda e suceda esse instante. Terceiro, quanto ao momento, crcio que, em geral, é o instante da morte, o m om ento que antecede o aban dono do corpo pela alma. Mas também acredito que pode ser dez, vinte,
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quarenta anos antes. Creio que normalmente aconteça muitos anos depois da justificação; mas isso pode significar cinco anos como cinco meses depois. Não conheço nenhum argumento conclusivo do contrário. Se forem muitos anos depois da justificação, gostaria de saber quantos.25 E m outras palavras, W esley chegou a sim plesm ente in sin u ar co m o possibilida de real q u e o cristão podia, e talvez devesse, chegar à “perfeição n o a m o r” nesta vida antes o u n o m o m e n to da m orte. Sem dúvida, toda a d o u trin a da santificação de W esley é passível da várias in ter pretações. M as seja qual ela for, não há co m o fugir d o conflito in eren te com o p rin cíp io simul justus et peccator (sem pre tan to ju s to q u an to pecador) de L utero. O s protestantes q u e insistem q u e a justificação pela fé so m en te está in trin secam en te ligada a esse p rin cíp io o p õ em -se à d o u trin a da santificação de W esley e co n sid e ram -n a m ais católica d o que protestante. W esley não a enxergava dessa form a. E n sinava q u e tu d o de b o m q u e a pessoa tem é sem pre dádiva de D eus, recebida livre m en te pela fé. Esse fato se aplica à santificação da m esm a m aneira q u e à regenera ção e à justificação. R esp o n d en d o aos q u e o acusavam de re strin g ir o princípio protestan te sola ftdes, Wesley escreveu, exasperado: Creio na justificação pela fé somente, tanto quanto creio que Deus existe. Declarei isso no sermão que preguei na Universidade de Oxford há vinte e oito anos. Declarei isso ao m undo todo, há dezoito anos, no sermão que redi gi especificamente sobre o assunto [“A salvação pela fé”]. Nunca me desviei dela, nem no menor detalhe, desde 1738 até o dia de hoje.26
D e form a igualm ente veem ente, atribuía toda a experiência cristã à graça e d e clarava q u e a fé so m ente, e não as obras n em os esforços h u m an o s, é o ún ico in stru m en to pelo qual a graça opera a v irtude na vida hum ana. M as, segundo Wesley e em desacordo com q u alq u er tipo de m o n erg ism o , a graça pode ser resistida e a fé é sim p lesm en te a decisão livre, capacitada pela graça p reveniente, de não resistir, m as de colocar na graça toda a confiança e esperança, p erm itin d o q u e o E spírito Santo tran sfo rm e o nosso ser em filho de D eus. P ortanto, a soteriologia de Wesley é m ais um a form a de sinergism o evangélico. E to talm en te protestante, em b o ra não seja m onergista, pois rejeita q u alq u er participação das obras m eritórias hum anas na salvação. U m a o u tra área na qual alguns críticos consideram a teologia de W esley insufi cien tem en te protestan te é o sacerdócio de todos os crentes. A lguns protestantes evangélicos da Igreja Baixa, inclusive alguns dos pró p rio s herdeiros do m o v im en to “h o lin ess” de W esley do século x d c na ram ificação d o m eto d ism o , rejeitam sua
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eclesiologia e especialm ente o governo eclesiástico episcopal, p o r inconsistência com o sacerdócio de todos os crentes. Wesley, assim co m o L utero e toda a tradição an g lican a, m a n tev e b isp o s n o m e to d is m o e re je ito u o g o v e rn o ec lesiástico congregacional tan to q u an to o presbiteriano. As igrejas m etodistas não são a u tô n o m as e não escolhem seus próprios pastores. O s pastores são geralm ente nom eados pelos bispos e são freq ü en tem en te transferidos de igreja para igreja. As congrega ções não têm liberdade total n em para d eterm in a r suas próprias form as de culto, nem para co n tro lar seus próprios negócios. E m bora os bispos não possuam n e n h u m a autoridade espiritual especial (com o acontece no catolicism o ro m an o e em algum as facções do anglicanism o) e não estejam na sucessão apostólica, m an têm a o rd em nas igrejas e, com essa finalidade, podem su sp en d e r pastores e tam bém conselhos das igrejas. Pelo contato com outras tradições das igrejas livres nos Esta dos U n id o s, no en tan to, o m etodism o, assim co m o o luteranism o, enfraqueceu consideravelm ente o papel dos bispos, de m o d o que atualm ente não passam de adm inistradores. E m essência, p ortanto, a teologia de W esley e o m eto d ism o não c o m p ro m etem seriam ente o sacerdócio de todos os crentes, a não q u e se insista que n e n h u m a form a de governo eclesiástico, a não ser o congregacionalism o (por exem plo), é com patível com ele.
Os legados do puritanismo e do metodismo N o p resente capítulo, exam inam os os papéis do p u ritanism o, inclusive de Jo n ath an E dw ards e do m eto d ism o e especialm ente de seu fu n d ad o r Jo h n W esley na história da teologia cristã. Por quê? Q u e legados deixaram para as gerações cristãs posteri ores? O s dois m o v im en to s de renovação e de reform a tiveram a influência m ais p ro fu n d a e d u rad o u ra na teologia am ericana e, m ais tarde, através de suas m issões, influenciaram boa parte do m u n d o . A teologia britânica tam b ém foi influenciada p o r eles, em b o ra de form a m enos intensa. Esses m ov im en to s com eçaram com o tentativa de reavivam ento e reform a da teologia e da vida da Igreja da Inglaterra e acabaram criando novas form as de teologia protestante. U m a m aneira de descre ver seus legados é indicar o cristianism o evangélico co n tem p o rân eo nos Estados U n id o s e os m o v im en to s que se originaram dele. O cristianism o evangélico é um a su b cu ltu ra m ultifacetada n o to riam en te difícil de d efinir com precisão. D ois elem entos, no en tan to , caracterizam -no de m o d o especial: os legados vivos de E dw ards e de Wesley, p u ritan o e m etodista. P rim eiro, a teologia e a vida evangélicas têm u m a d o u trin a conservadora, n o sentido de p ro cu rar preservar e m a n te r as d o u trin as cristãs clássicas dos pais da igreja e dos reform adores. Tanto E dw ards q u an to W esley resistiram ao q u e consideravam in clinação para o racionalism o, a heresia e a acom odação à cultura. T in h am se c o m p ro m e tid o c o m a o rto d o x ia c ristã .
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O segundo legado deixado por Edw ards e Wesley ao evangelicalism o co n tem p o râneo é a “ortodoxia ardente”. Isto é, am bos afirm aram que o m ero assentim ento cristão nom inal à exatidão doutrinária não transform a ninguém autom aticam ente em cristão verdadeiro. A experiência transform adora com D eus é o que torna um a pessoa verdadeiram ente cristã e essa é a m elhor garantia da ortodoxia. Eles rejeita vam o sacram entalism o, o confessionalism o e o racionalism o religioso e defendiam a piedade resultante da conversão, a fé com o confiança e não m ero assentim ento e a crença em u m D eus sobrenatural que opera no m u n d o de m o d o im ediato, por ca m inhos q ue em geral são m isteriosos. Ao m esm o tem po, nem Edw ards nem Wesley foram literalistas crassos na interpretação das Escrituras e am bos repudiavam o obs curantism o im pensado e a alienação cultural. N ão eram o que alguns n o m u n d o m o d ern o cham am “fundam entalistas”. E dw ards e Wesley, a despeito das profundas diferenças em relação à graça e ao livre-arbítrio, são as raízes o u os pilares da vida e do pensam ento evangélico anglo-am ericano contem porâneo. E n q u an to E dw ards e W esley criavam o cristianism o evangélico m o d ern o , o u tros refo rm ad o res religiosos tentavam levar o p ro testan tism o para u m a direção totalm ente nova e diversa, orientados pela razão mais do q u e pelo coração. O deísm o (ou a religião natural) foi u m m o v im e n to do século xvn e início d o século x v i ii que qu eria refo rm ar a teologia pro testan te para torná-la m ais razoável e com patível com o m u n d o m o d ern o q u e desabrochava. E a im p o rtan te história desse m ovi m en to de renovação da teologia que agora estudarem os.
31 Os deístas tentam transformar a teologia protestante
T o d o s os m o v im en to s cujas histórias são contadas na presente seção têm um a coisa em co m u m . C o nsideravam a R eform a protestante incom pleta o u , de algum a form a, errada e procuravam com pletá-la o u corrigi-la. C ada m o v im e n to com seus respectivos líderes tinha sua própria visão do que estava errado n o pro testan tism o dos séculos xvii e xvni e u m program a d iferente para corrigi-la o u com pletá-la. A rm ín io e os re m o n stran tes reagiram co n tra o “e n d u re c im e n to das categorias” pela ortodoxia p ro testante e especialm ente contra o trata m e n to escolástico q u e a teologia reform ada d eu à d o u trin a da predestinação. O s arm in ian o s qu eriam cor rigir a teologia reform ada tiran d o -a d o cam in h o m onergista e co n d u z in d o -a ru m o ao sin erg ism o evangélico. O p ie tism o reagiu c o n tra a “o rto d o x ia m o rta ” n o luteran ism o p ó s-R efo rm a na A lem anha, especialm ente co n tra a tendência de m u i tos teólogos para eq u ip arar o cristianism o autêntico com o assen tim en to às fó rm u las e sistem as d o u trin ário s corretos. Q u e ria m co m p letar a R eform a enfatizando u m co m p o n en te negligenciado da soteriologia protestante: a experiência cristã da regeneração e da santificação. O s p u ritan o s e os m etodistas, de m o d o m u ito dife rente, esforçaram -se p o r com pletar a R eform a p rotestante d o cristianism o de lín gua inglesa. O s p u ritan o s en ten d ia m q u e o cam in h o co rreto encontrava-se em u m a fo rm a d is tin ta m e n te b ritân ica de teologia e eclesiologia re fo rm ad as. O s m etodistas m apearam u m cam in h o dc renovação q u e incluía a ênfase na experiên cia cristã da conversão e o ideal da perfeição cristã. Surgiu o u tro m o v im en to d en tro do seio da teologia pro testan te da pós-R eform a com um a visão in teiram en te diferente de co m o m elh o r co m p letar a R eform a protestante. Enfatizava a autoridade da razão em todas as questões, inclusive a reli gião, e sonhava com u m a religião universal e razoável q u e vencesse as lutas sectári as, a superstição e a au toridade arbitrária e irracional e introduzisse o cristianism o em u m a nova era de paz, ilum inação e tolerância. Esse m o v im en to , co nhecido diversam ente co m o religião natural o u deísm o, não possuía n e n h u m profeta ou
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fu n d ad o r e n en h u m a organização form al. Seus seguidores eram relativam ente p o u cos. M uitos porta-vozes do cristianism o protestante organizado co n d e n ara m -n o de ateísm o e seus líderes de infiéis. A pesar disso, o d eísm o conseguiu deixar um a m arca indelével n o cristianism o e na religião em geral na E uropa O cidental e na A m érica do N o rte . M u ito s dos q u e despertaram e form aram o nacionalism o m o d ern o na G rã-B retan h a, na França e nos Estados U n id o s sim patizavam com o deísm o. U m a den o m in ação pequena, porém influente, cham ada u n itarism o foi fundada na Inglaterra e na N ova Inglaterra em fins d o século x v i i i , baseada sobre tu d o nessas idéias. A d espeito da grande oposição p o r parte de todos os ram os do cristianism o tradicional, inclusive dos o u tro s m o v im en to s reform adores, e a des peito de não ter co n seguido estabelecer o so n h o da religião universal, natural e racional, o deísm o in filtro u -se su tilm en te na tram a e u rd id u ra da teologia m o d er na ocidental e to rn o u -se u m dos precursores do q u e veio a ser co n hecido com o teologia protestan te liberal dos séculos xix e xx.
Uma definição do deísmo O s problem as antigos de equívocos e abusos de term inologia ato rm en tam q u al q u e r estu d o do deísm o. O caso é sem elhante aos de p ietism o c do puritanism o. C o m o passar dos séculos, surgiu u m falso conceito po p u lar do deísm o, tão p ro fu n d am en te arraigado q u e talvez seja im praticável q u alq u er tentativa de corrigi-lo. Para m uitas pessoas, o deísm o é a religião d o “D eu s q u e se au se n to u ” e q u e não está envolvido no m u n d o da natureza e da história. Para elas, os deístas eram céti cos q ue negavam a existência de m ilagres, d izen d o q u e se tratava de leis naturais, e q u e rejeitavam q u alq u er coisa sobrenatural. Assim co m o 110 caso do pietism o e do puritan ism o , há u m p o uco de verdade nesse estereótipo po p u lar do deísm o. M as som en te u m pouco. A m aioria dos principais deístas dos séculos xvn e x v i i i consi deravam -se cristãos, m esm o q u e fossem da “o rd em su p e rio r”. N e m sem pre rejei tavam ab ertam ente tu d o q u e é sobrenatural, em b o ra adotassem um a atitude cética para com os m ilagres e as revelações especiais. F inalm ente, de m o d o contrário até m esm o a algum as opiniões eruditas e m al-inform adas, os principais deístas não excluíam D eu s d o m u n d o n em o relegaram aos papéis de “arq u iteto original” ou “g overnante m o ral” que nunca intervém no m u n d o n em interage com os seres hu m an o s. C ertam e n te não consideravam D eus desinteressado pelo m u n d o o u no env o lvim ento com ele. O q ue era en tão o deísm o? É m ais fácil corrigir conceitos e inform ações e rrô neos do q ue definir com exatidão o que era o deísm o. A m elh o r m aneira de descrevêlo não é oferecer u m a definição sim ples, m as, sim , delinear a sua história na form a de um a narrativa. Esse será o m eu propósito aqui. E n tretan to , para q u e os leitores saibam a respeito de q u em a história está sendo contada e qual é o seu enredo,
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tentarei oferecer u m a definição e descrição p relim in ar d o fe n ô m e n o pós-R eform a con h ecid o co m o deísm o. E m poucas palavras, os deístas eram pensadores religio sos da E u ro p a e da A m érica d o N o rte 110 período após a R eform a q u e elevavam a razão h u m an a e a religião acim a da fé e da revelação especial, até m esm o 110 cristi anism o. O deísm o não era apenas um a d o u trin a de D eus, co n fo rm e alguns e rro neam en te su p õ em , m as u m conceito do co n h e cim en to religioso q u e colocava no cen tro os princípios co m u n s do raciocínio h u m an o e as idéias religiosas co m u n s da h u m an id ad e e, seg u n d o eles, julgava todas as reivindicações à revelação especi al. O princípio básico do deísm o pode ser resu m id o da seguinte m aneira: “N ada deve ser aceito co m o v erdadeiro p o r u m ser inteligente, tal co m o o h o m em , a não ser q u an d o é fu n d am en tad o 11 a natureza das coisas e está em h arm onia com a sã razão”.1 Esse princípio talvez expresse o im pulso universal d o ilu m in ism o em ge ral. O deísm o aplicava-o à religião e até m esm o ao cristianism o. O deísm o foi u m esforço no sen tid o de d em o n strar q u e o cristianism o é a ex pressão m ais su b lim e e m e lh o r da religião da razão, p u ra m e n te natural. Para exe cu tar esse e m p re en d im en to , os deístas tin h am q u e extirpar boa parte da teologia cristã tradicional o u rein terp retá-a de m o d o radical. Em alguns casos, a fim de evitar a condenação pelas leis de blasfêm ia, sim plesm ente ignoravam certas d o u tri nas q u e consideravam inconsistentes com a religião natural e a razão universal. A divindade de Jesu s C risto e a d o u trin a da T rindade eram dois dogm as estreitam en te relacionados do cristianism o clássico q u e m uitos, senão a m aioria dos deístas fez questão de desprezar. Assim q u e as leis de blasfêm ia deixaram de ser executadas na Inglaterra e na A m érica do N o rte , a m aioria dos deístas passou a negar ab e rtam en te tais d o u trin as 011 a relegá-las à obscuridade co m o insignificantes, na m elh o r das hipóteses. B asicam ente, p o rtan to , a natu reza q u e distinguia o d eísm o dos m o v im en to s pro testan tes referia-se à sua visão de autoridade religiosa. Todas as dem ais teologias pro testan tes eram teologias da Palavra e d o E spírito. L utero, C alvino, Z u ín g lio , C ran m er, H o o k e r e os anabatistas, todos enfatizavam a dialética da Palavra e do E spírito co m o a au to ridade cristã verdadeira para a fé e a prática. A Palavra de D eus, especialm ente co n fo rm e é expressa nas Sagradas E scrituras, era co n sid era da a revelação especial, infalível e objetiva de D eus, e n tre g u e pela atuação do Es pírito Santo em u m a operação sobrenatural conhecida co m o inspiração. E n tre tanto, a Palavra sem a ilum inação do E spírito nas m entes e corações dos leitores perm an eceria “letra m o rta ”, de m o d o q u e o E spírito S anto tam b ém é crucial para a au to rid ad e cristã. Todos os principais refo rm ad o res pro testan tes da p rim eira ge ração concordavam q u e o E spírito S anto não revela novas verdades d o u trin árias depois da conclusão das E scrituras, m as realm en te as ilu m in a para os q u e as lêem com fé e im p ressio n a inculca as suas verdades pelo testimonio internum Spiriti Sancti,
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o “teste m u n h o in tern o d o E spírito S anto”. Q u a n d o os reform adores e teólogos protestantes clássicos falavam ou escreviam a respeito da autoridade das Escrituras, baseavam -na na inspiração dos autores e das palavras pelo E spírito Santo, bem co m o no te ste m u n h o co n tem p o rân eo do E spírito em sua leitura e proclam ação. R eferiam -se a isso q u an d o falavam da natureza certificadora da Bíblia. Para eles, era realm ente o E spírito Santo que a autenticava. D epois da R eform a protestante, surgiu u m a tendência em desfazer esse equilí brio delicado en tre a Palavra e o Espírito. A ortodoxia p rotestante enfatizava so m en te a Palavra, de m o d o q u e sua autoridade residia na inerrância de suas p ro p o sições (reivindicações à verdade) e de sua coerência interna. O E spírito Santo pas sou a d esem p en h ar u m papel cada vez m e n o r na sua visão de autoridade cristã. O apelo à inerrância das reivindicações das E scrituras e à sua consistência interna su p lan to u o apelo ao teste m u n h o in terio r d o Espírito. O experim entalism o p ro testante (in clu in d o o p ietism o e o m etodism o, bem co m o m ov im en to s m ais radi cais com o o quacres) enfatizava o E spírito sem desprezar a Palavra. A lguns “e n tu siastas religiosos” m ais radicais defendiam novas revelações para su p lem en tar as Escrituras. Todos os m ov im en to s p rotestantes en ten d iam q u e a razão tinha sido co rro m p id a pelo pecado e q u e necessitava ser saneada pela graça para p o d er captar as verdades divinas q u e iam além dos poucos itens básicos da teologia natural, com o a existência de D eus e a im ortalidade da alma. N ã o davam m uita ênfase ao papel da razão natural n o co n h e cim en to religioso. N a m e lh o r das hipóteses, a ra zão era u m a ferram en ta útil para o e n te n d im e n to das E scrituras e para argum entar co n tra as religiões falsas e as heresias. N e n h u m grande refo rm ad o r ou teólogo p ro testante do século x v i ao x v i i i considerava a razão natural, destituída da graça, m u ito útil para a teologia. O deísm o teve sua origem na insatisfação e desilusão em relação a essa aborda gem da autoridade religiosa e cristã. D ois catalisadores principais alim entaram a insatisfação e desilusão e colocaram os partidários da religião natural em busca de u m a nova abordagem . A prim eira foi a luta sectária do século xvn. N a Europa C en tral, católicos e p ro testantes m ergulharam na G u e rra dos Trinta A nos q u e aca bou provocando lutas en tre protestantes em solo alem ão. N a França, católicos e protestantes com eçaram u m a guerra civil prolongada que causou m assacres e exí lios em massa. N a Inglaterra, os p u ritan o s se levantaram contra o m onarca em um a guerra civil cruel que resultou na decapitação pública do arcebispo da C antuária e d o p ró p rio rei. M esm o depois da restauração da m o n arq u ia e do restabelecim ento da Igreja da Inglaterra, os vários grupos protestantes engajaram -se em batalhas ver bais q u e certo h u m o rista ro tu lo u de rabies tlwologicuin, um a doença na qual os teó logos lutam e n tre si co m o cães raivosos. D iante de todas essas contendas, m uitas pessoas cultas da E uropa com eçaram a im aginar se a razão natural, e não a fé na
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revelação especial, deveria ser a base da união e do progresso na religião, já que parecia ser tão frutífera ao u n ir e fortalecer a ciência, a filosofia e a política. O seg u n d o catalisador da busca dos deístas pela religião da razão natural foi o ilu m in ism o , u m te rm o genérico para a nova tendência da cultura, q u e com eçou na E u ro p a p o r volta de 1650. A lguns intérpretes consideram o deísm o sim plesm ente a “religião d o ilu m in ism o ”, pois a m aioria dos principais pensadores do ilum inism o sim patizava com a religião natural. O u tra m aneira de co n sid erar a questão, no en tan to , é q u e o ilu m in ism o forneceu u m novo co ntexto cultural e filosófico, e os deístas foram pensadores cristãos q u e, assim co m o certos pais da igreja prim itiva e teólogos m edievais de cu ltu ra e filosofia gregas, rapidam ente adotaram atitudes com o o ilu m in ism o e adaptaram -nas ao pen sam en to cristão. S eg u n d o os teólogos e líderes eclesiásticos os deístas, natu ralm en te, eram culpados pela acom odação superficial d o cristianism o ao m o d o de pensar do ilum inism o. O ilu m in ism o pode ser resu m id o em um a declaração de três idéias características: 1. ênfase no p o d er da “razão” para descobrir a verdade a respeito da h u m an id a de e do m u n d o ; 2. ceticism o em relação às instituições e tradições veneráveis d o passado; 3. ascensão d o m o d o científico de pensar q u e oferecia aos intelectuais um a abordagem alternativa e viável do co n h ecim en to , em contraposição à abor dagem q u e d o m in o u o pen sam en to m edieval.2 O s principais catalisadores intelectuais do ilu m in ism o foram o filósofo R ené D escartes (1596-1650) e o cientista e m atem ático Isaque N e w to n (1642-1717). O s dois, separadam ente, deitaram os alicerces d o novo m o d o de pensar e do novo conceito do m u n d o natural q u e enfatizava a dúvida m ais do q u e a fé e a u n ifo rm i dade m ais d o q u e as intervenções divinas. A m bos se consideravam cristãos, mas seus m étodos e idéias eram , de m uitas m aneiras, antitéticas aos co stu m es cristãos tradicionais de pensar e de considerar a natureza. Por causa d o ilu m in ism o , já não era tão fácil aceitar u m a pessoa in stru íd a dizer, co m o a m aioria dos pensadores através das eras: “creio para p o d er c o m p re e n d e r”. O p rincípio da “fé em busca do e n te n d im e n to ” não era m ais adm itido. Agora, as pessoas su b stitu íam esses ditados por: “C reio so m en te no q u e posso e n te n d e r” e “a fé segue o e n te n d im e n to ”. D esiludidos com as lutas sectárias, desanim ados com a intolerância e as co n tro vérsias religiosas e im pulsionados p o r um a nova visão da cultura, da ciência e da filosofia concedidas pelo ilum inism o, os deístas tentaram re co n stru ir o pensam ento cristão. Estavam convencidos de que, a m enos q u e se pudesse d em o n strar q u e era totalm ente razoável segundo os critérios usados pelo pensam ento do ilum inism o, o cristianism o acabaria se to rn an d o irrelevante e desapareceria. Estavam convencidos
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q u e o cristianism o co n tinuaria a se dividir em facções rivais, se não fosse possível d em o n strar q u e se tratava de um a religião universal, racional e natural para todos os pensadores em todos os lugares. O q u e os deístas qu eriam era um cristianism o não m isterioso, racional e universal que transcendesse as fronteiras denom inacionais e confessionais e que não necessitasse da fé supra-racional nem do te ste m u n h o in terio r do E spírito Santo para persuadir e convencer as pessoas de sua veracidade. O q ue acabaram co n seguindo foi um a religião genérica, u m a espécie de teísm o enfraquecido, d estitu íd o de quase tu d o que era distintivam ente cristão. Era m u ito sem elhante à esfera in ferio r da teologia de Tom ás de A quino, u m c o n ju n to de conceitos a respeito de D eus, da alm a e da m oralidade que seriam conhecidos pela razão, in d ep en d e n tem en te da graça, da fé e da revelação especial.
Precursores e proponentes do deísmo Estabelecer as fronteiras exatas do deísm o é tão difícil q u a n to defini-lo precisa m ente. Q u e pensadores religiosos dos séculos x v i i e x v i i i são considerados real m en te deístas? N ã o existe n e n h u m a concordância universal q u a n to a isso. O s in térpretes autorizados apresentam listas diferentes, m as todas in clu em pelo m enos dois pensadores do século x v i i i : Jo h n Toland e M atth ew T indal. C ada u m desses ingleses escreveu u m livro im p o rtan te q u e c o n trib u iu consideravelm ente para a ascensão do deísm o. Estes, p o rtan to , são nossos principais p ro p o n e n te s d o deísm o e d en tro em breve con tarem os suas histórias e explicarem os os papéis q u e d esem p en h am na história co m o u m todo. C o n fo rm e já vim os nesta história da teologia cristã, todo m o v im en to teológico tem seus precursores. O de L u tero foi H u s e Erasm o. O de Spener, A rndt. O de Wesley, H o o k e r e A rm ínio. O deísm o tam bém teve seus precursores e alguns estudiosos os incluem d en tro do p ró p rio m o v im e n to. C o n sid erarem o s lorde H e rb e rt de C h e rb u ry e J o h n Locke os precursores do deísm o, m as o u tro s po dem considerar um deles, ou am bos, deístas pro p riam en te ditos.3 D e q u alq u er m aneira, na o rd em cronológica, a história d o d eísm o deve com eçar com o Lorde H erb ert. Lorde Herbert de Cherbury. U m a razão para lorde H e rb e rt de C herbury, cujo pren o m e era E duardo, às vezes, ser identificado m ais com o p recursor d o q u e p ro p o nen te d o deísm o é a sua distância cronológica do apogeu do m ovim ento. Lorde H e rb ert nasceu na Inglaterra, em um a família rica e poderosa em 1583. M o rre u em 1648, depois de levar um a vida un i tanto libertina de livre pensador, duelista, c o n quistador de m u lh eres e fidalgo rural. Seu irm ão G eorge foi um poeta fam oso cujos versos aparecem com freqüência em antologias da literatura inglesa. Lorde H e rb e rt escreveu u m vo lu m e p eq u en o em latim , intitulado D e veritate [Da verdade], que foi publicado em Paris em 1624 e é freq ü en tem en te considerado o p rim eiro ensaio a delinear o q ue p o sterio rm en te se tornaria conhecido co m o religião natural. N ele, o
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aristocrata inglês atacou a fé cega nas revelações, as lutas sectárias p o r causa de questões de d o u trin a e to d o o irracionalism o na religião assim co m o em q u alq u er o u tra esfera da vida. D c m o d o positivo, ap resen to u cinco “N o ç õ es co m u n s da religião” q u e considerava universais, racionais e em perfeita co n fo rm id ad e com o que se co n h ece da natureza: 1. há u m D eus su p rem o; 2. essa D eidade soberana deve ser adorada; 3. a conexão en tre a v irtu d e e a piedade, definida [...] com o a conform ação correta das faculdades é, e sem pre foi considerada, a parte m ais im p o rtan te da prática religiosa; 4. a m en te h u m an a sem pre ab o m in o u sua própria iniqüidade. Seus vícios e crim es sem pre foram óbvios. D evem ser expiados pelo arrep e n d im en to ; 5. existe recom pensa ou castigo depois desta vida.4 S egundo o lorde H e rb ert, “a única igreja católica e u n ifo rm e é a d o u trin a das N oçõ es co m u n s q u e abrangem todos os lugares e todos os h o m e n s ”.5 O co n teú d o d o livro deixa claro q u e o Lorde H e rb e rt não preten d ia rejeitar co m o falsas todas as crenças cristãs além das cinco noções com uns. Pelo contrário, p ro p u n h a-as co m o o fu n d a m e n to sobre o qual todos os dem ais “ditam es da fé podem se apoiar [...], assim co m o o telhado se apóia na casa”.6 E n treta n to , o to m de De veritate é cético q u an to a todas as d o u trin as específicas das d en o m inações cristãs e até m esm o q u an to aos dogm as clássicos que não foram claram ente delineados nas E scrituras e n em sugeridos pelas cinco N o çõ es com uns. A trindade é u m exem plo de dogm a clássico cristão q u e lorde H e rb e rt tratou com ceticism o. A principal lição do referido ensaio é que tu d o o q u e as pessoas acreditam co m o verdade reli giosa deve ser ju lg ad o pelas cinco noções religiosas co m u n s q u e, supostam ente, residem em todos os lugares da história da hu m an id ad e e em todas as culturas. N atu ralm en te, o p eq u en o livro de lorde H e rb e rt provocou grande agitação q u an do foi publicado. M u ito s acusaram o au to r de ateísm o, q u e não foi m ais exato do qu e a acusação idêntica q u e os ro m an o s fizeram contra os cristãos prim itivos. Sem dúvida, lorde H e rb e rt acreditava em D eus. M as não estava claro se acreditava na Trindade ou na divindade de Jesu s C risto. C ertam e n te acreditava em m ilagres e em revelações especiais. E screveu, em reflexões autobiográficas posteriores, ter publicado D e veritate a despeito de sen tir certa preocupação po rq u e, e n q u a n to esta va pensando na hipótese de publicá-lo, ouviu u m e stro n d o em u m céu sem nuvens e e n ten d e u q u e se tratava de u m sinal celestial aprovando a publicação d o livro. N ã o está m u ito claro se acreditava em todos os m ilagres da Bíblia. De veritate foi am p lam en te lido em m eados e fins do século xvii e lançou os alicerces do deísm o:
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“A im portância de De veritate é que possibilitou aos pensadores subseqüentes p ro fessar a crença em D eus e, ao m esm o tem po, re p u d iar a religião revelada e o cris tian ism o estabelecido; os efeitos libertadores de tal possibilidade para os pensado res p ro fu n d am en te envolvidos nas descobertas ousadas da era científica q u e des pontava não devem ser subestim ados”.7 John Locke. O seg u n d o p re cu rso r do deísm o foi o m u ito m ais im p o rtan te e in fluente filósofo J o h n Locke.8 Locke nasceu na Inglaterra em 1632 e m o rre u em 1704. G anhava a vida co m o assistente especial e professor particular de algum as fam ílias inglesas p ro e m in e n te s e, certa vez, teve q u e fugir da Inglaterra para a H o landa q u an d o seu em p reg ad o r se envolveu em u m a conspiração para d erru b ar o rei. Locke foi, sem dúvida algum a, o intelectual m ais in flu en te da Inglaterra e talvez até de to d o o m u n d o ocidental e n q u a n to viveu e m uitas décadas depois. Poucas pessoas da história intelectual alcançaram tanta estatura e influência. Locke foi o Erasm o de seu tem po. Todos escutavam e procuravam sua orientação e c o n selho em q u estõ es filosóficas, religiosas e políticas. Seu im p o rtan te Uni ensaio sobre o entendimento humano foi u m a revolução na filosofia d o ilu m in ism o . Ele in au g u ro u a escola em pírica de filosofia, q u e, ju n to com as descobertas de Isaac N e w to n na física, ajudou a m o ld ar a ciência m o derna. O s escritos de Locke in flu enciaram pessoas bem diferentes, co m o Jo n a th a n E dw ards e T h o m as Jefferson. O que m u ito s professores e estudantes da filosofia de Locke desconsideram o u des con h ecem é q ue, da m esm a form a q u e N e w to n e inclusive D escartes, Locke se interessava p rin cip alm en te pelas questões religiosas. O p reconceito m o d e rn o c o n tra a religião é q u e leva a tal “ignorância acadêm ica”. Esses h o m en s conhecidos co m o p ro p o n en tes e form uladores d o p en sam ento m o d ern o eram obcecados por questões religiosas e todos, inclusive os m enos convencionais, além de crentes em D eus, consideravam -se tam bém cristãos. O tratado religioso m ais im p o rtan te de Locke é The reasonableness o f christiatiity [.4 racionalidade do cristianismo], publicado em 1695. O u tro s escritos in clu em A discourse o f miracles [Uma dissertação sobre milagres] e parte de A third letter conceming toleration [Terceira carta sobre a tolerância]. Ao q u e parece, Locke era b em consciente da tendência ao deísm o de certos pensadores religiosos. Era b em consciente, é óbvio, da filosofia p ro todeísta da religião de lorde H e rb e rt e da influência q u e ela exercia. Em A racionalidade do cristianismo, Locke ten to u ju stificar as crenças básicas do cristianism o n o tribunal da razão. C o n fo rm e certo au to r descreveu a co n trib u i ção de Locke, “o leão d o racionalism o é levado a se deitar pacificam ente ao lado do co rd eiro do tradicionalism o e não a d ev o rá-lo ”.9 Talvez essa seja u m a m aneira ge nerosa de expressar o caso. U m a avaliação m ais crítica do e m p re e n d im e n to de Locke e de seus resultados talvez seja q u e o leão do racionalism o obrigou o cordei ro d o tradicionalism o cristão a deitar-se e ficar bem quieto. E m bora seja verdade
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que “Locke [...] sem pre achou q u e seus escritos davam o devido valor à fé cristã”,10 um a avaliação m ais objetiva m ostrará inevitavelm ente q u e as d o u trin as fu n d a m e n tais da tradição são desprezadas nos arg u m en to s de Locke. Locke tin h a pouca coisa o u nada para d izer a respeito da T rindade ou da divindade de C risto. D e q u alq u er form a, o q u e ele te n to u fazer nesse livro e em o u tro s escritos apologéticos foi d em o n strar q u e a essência da revelação divina e a fé cristã q u e nela se baseia é plen am en te co n sistente com a razão. Por que esse projeto foi tão controvertido? Por que m uitos críticos alegam que, de m o d o contrário às próprias intenções de Locke, A racionalidade do cristianismo tor nava inevitável o deísm o? P rim eiro, Locke tratava a religião, inclusive o cristianism o, inteiram ente co m o questão de crença intelectual. Seu cristianism o era o que alguns pietistas m o dernos cham ariam de “viagem intelectual” religiosa. U m assentim ento racional a crenças razoáveis, era assim que Locke descrevia a fé cristã. Falava do arre pen d im en to e enfatizava a im portância de se ter um a vida virtuosa, mas, acima de tudo, dizia que crer em D eus e em Jesus com o o M essias é o que define u m cristão. Locke argum entava que tal crença é confirm ada pelos m ilagres de Jesus e que seus milagres e m essiado exigem que as pessoas racionais envidem seus m elhores esfor ços para seguir os seus ensinos. Até essa altura, som ente a apologética evidencialista c o m u m está em consideração. M as, nas entrelinhas dos escritos de Locke, havia um a noção radical. Locke adm itia, e às vezes argum entava de m o d o m u ito sutil, que qual qu er coisa na revelação divina que não seja com pletam ente consistente com a razão hu m an a natural é sim plesm ente im possível de ser crida. U m princípio bastante revelador encontra-se cm Uma dissertação sobre os milagres: Não poderá ser considerado divino nenhum em preendim ento que insulte a honra do único, exclusivo e verdadeiro Deus invisível ou que seja inconsis tente com a religião natural c as regras da moralidade. Pois, se Deus mostrou aos homens a unidade e majestade de sua eterna deidade e as verdades da religião natural c da moralidade pela luz da razão, não se pode supor que ele apóie o contrário pela revelação, pois isso seria destruir a evidência e uso da razão, sem os quais os homens não saberiam diferenciar a revelação divina da impostura diabólica." O princípio radical p roposto p o r Locke era q u e “tu d o o q u e D eus revela é ver dadeiro e deve ser o bjeto de nossa fé; m as o q u e foi revelado p o r D eus de realm en te im p o rtan te, isso deve ser ju lg ad o pela razão”.12 E m vez de a razão natural servir de ferram enta nas m ãos da fé, para Locke ela se to rn o u o critério final para ju lg a r a própria revelação. Talvez haja verdades da revelação q u e transcendam a razão, m as so m en te a razão pode d e te rm in a r q u e verdades são essas. C o m Locke, a esfera inferio r de Tom ás de A qu in o com eçava a se elevar e a d o m in ar a esfera superior.
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M as será que Locke realm ente en c o n tro u algum a coisa na revelação divina que tinha de ser rejeitada pela razão? A resposta a essa perg u n ta é que, para Locke, se algo era rejeitado pela razão, não podia ser revelação divina. P ortanto, colocando a p ergunta em ou tras palavras, Locke realm ente rejeitou algum a d o u trin a crucial do cristianism o clássico q u e se baseia na revelação divina? N ão. Locke foi m u ito cau teloso nessa questão. N ã o é possível adivinhar o q u e ele pensava, portan to , não sabem os p o r q u e ele raram ente m encionava a T rindade, a divindade de C risto ou a expiação. Parecia acreditar q u e o cristianism o autêntico pode ser resum ido na crença em Jesus com o M essias (o profeta incom parável de D eus), no a rrep e n d im en to e na tentativa de se ter utna vida virtuosa segundo os en sin am en to s de Jesus. Será q u e Locke considerava q u e m uitos dos dogm as do cristianism o tradicional eram contrários à razão e, p o rtan to , não faziam parte da essência do cristianism o? E o q u e parece. O em p re en d im en to de Locke de desenvolver e d efen d er o cristianism o razoá vel não pode ser ro tu lad o p ro n tam e n te de deísm o. E n tretan to , ele abriu as portas e preparou o cam in h o para isso. U m com entarista observa: A tentativa de Locke de defender a “racionalidade” do cristianismo e, ao mes mo tempo, sustentar a epistemologia empírica, abriu uma brecha entre a re ligião revelada e a que pode ser derivada da razão sem a revelação especial. Por essa brecha, passaram os cavalos e carruagem do deísmo, inicialmente no modelo do irlandês John Toland (1670-1722).13 John Toland. J o h n Toland foi, talvez, o p rim eiro deísta p ro p ria m e n te dito. Era ad m irad o r de Locke e considerava o fam oso filósofo inglês seu m entor. U m ano depois do lançam ento de A racionalidade do cristianismo, Toland pub lico u seu livro co n tro v ertid o Christianity tiot mysterious [Cristianismo não misterioso] que sustentava que nada q u e fosse co n trário à religião natural, p u ra m e n te racional e acessível a todas as pessoas poderia ser considerado cristianism o au tên tico e que n en h u m a verdade real do cristianism o estava acim a o u alem da razão. O âm ago d o livro de Toland se en co n tra n o princípio: “Q u a n d o alguém revela algum a coisa, o u seja, q u an d o nos conta algo que não sabíam os antes, suas palavras devem ser inteligíveis e a questão concebível. Essa regra co n tin u a válida, q u e r a revelação seja feita p o r Deus ou pelo homem”.14 Q u a n d o Toland afirm ou q u e as reivindicações da revelação devem ser inteligí veis para serem reconhecidas co m o verdadeiras, queria dizer q u e devem se confor m ar com as “noções óbvias” co m u n s a todos os seres h u m an o s razoáveis. Isso inclui as distinções m orais lógicas e básicas. Q u a n d o afirm ou q u e as reivindicações da revelação devem ser possíveis, queria dizer q u e elas não devem exigir q u e creiam os
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em coisas q u e são claram ente inconcebíveis. As alegações ininteligíveis e im possí veis são in trin secam en te m isteriosas e, portan to , os m istérios não p erten cem ao âm bito da religião verdadeira nem ao cristianism o autêntico. Elas exigem u m sa crifício do intelecto e assim violam a própria im agem de D eus na h u m anidade, que é a dádiva da razão. Toland o bjetou m u ito vigorosam ente co n tra o em basam ento das crenças “na operação ilum inadora e eficaz do E spírito S anto”, seg u n d o C alvino: testimonium intemum Spiritus Sancti. Por fim , afirm ou q u e so m en te a razão deve ser soberana q u an d o se trata de resolver qual alegada revelação especial, se h o u v er algum a, tem as qualificações para ser crida. N ã o podem existir duas autoridades iguais, a razão e a revelação, já q u e é a razão q u e ju lg a a veracidade da revelação. Para Toland, p o rtan to , a razão soberana substitui o teste m u n h o d o E spírito na au toridade cristã. D epois de entronizar a razão natural com o a autoridade final, Toland d eu u m passo adiante com Cristianismo não misterioso e afirm ou que a religião verdadeira é, pela própria natureza, eterna e im utável. As religiões positivas m u d am com o tem po. Som ente a verdade de D eus perm anece para sem pre. E é a razão q u e define qual é a verdade que perm anece. Portanto, a religião natural da razão é o padrão segundo o qual cada religião positiva, inclusive o cristianism o, deve ser julgada. T udo o que é m isterioso (ininteligível, im possível) não pode fazer parte da religião natural da ra zão. N e m pode, portanto, fazer parte do cristianism o autêntico. N o fim de Cristia nismo não misterioso, o leitor fica com a nítida im pressão de que o cristianism o é um a vaga reflexão da religião natural, u m teísm o vago e genérico sem nada de diferente. Até m esm o o p róprio Jesus C risto recebe pouca atenção n o m o d o de Toland tratar a religião, a não ser com o um reform ador social e religioso.15 A obra de Toland representa u m p eq u en o passo adiante de Locke, m as rapida m en te se to rn o u u m salto quântico. Locke co n d e n o u Cristianismo tião misterioso e re p u d io u o au to r co m o seu protegido. N ã o se pode, porém , culpar T oland p o r considerar que foi tratado im p ro p riam en te p o r seu m entor. S egundo sua opinião, estava sim p lesm en te seguindo as conclusões naturais da m etodologia d o p ró p rio Locke no pen sam en to religioso. M esm o assim , parece q u e Toland atravessou u m “ru b icão de C é s a r” q u a n d o se afastou das fo rm as a n te rio re s d o cristian ism o racionalista ao insistir que tu d o o q u e é válido na revelação do n t c na tradição cristã está con d en sad o no q u e a razão natural pode conhecer, re d u zin d o assim o cristianism o a um a religião natural. Ao q u e parece, acreditava sinceram ente que suas conclusões representavam o resultado final das m elhores m otivações da R e form a p ro testan te.16 M uitas pessoas da elite cu ltu ra da E uropa e especialm ente da G rã-B retan h a saudaram o livro de Toland com o corajoso e m uitas “pessoas cultas se agarraram à possibilidade de serem ‘religiosas’ sem ter de crer em tudo q u e o cristianism o tradicional ensinava”.17 N a tu ralm en te, era inevitável a reação negativa
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da parte de tradicionalistas de todos os tipos. O parlam ento irlandês co n d e n o u o livro infam e de seu filho nativo e o carrasco oficial da Irlanda q u eim o u a obra em um a cerim ônia pública. Matthew Tindal. O segundo e o ú ltim o p ro p o n e n te im p o rtan te d o deísm o em sua form a priinitiva e prístina foi M atth ew T indal, cujo livro Christianity as old as the creation: or, thegospel a republication o f the religion o f nature [Cristianismo tão antigo quanto a criação, ou: o evangelho é uma reedição da religião da natureza], publicado em 1730, chegou a ser co n h ecid o com o “a bíblia dos deístas”. T indal era u m cavalheiro in glês, nascido em 1657, q u e se to rn o u m em b ro (tu to r e preletor) da prestigiosa Ali Souls C ollege da U n iversidade de O xford. Era “certam en te o m ais eru d ito dos deístas”18 e se definia co m o “deísta cristão” em b o ra u m de seus principais em p re en d im en to s fosse d e m o n strar “a im possibilidade de reconciliar o D eu s m esq u i n h o e arbitrário da Revelação [das E scrituras] com o D eu s im parcial e m agnânim o da religião n atu ral”.19 A visão de T indal sobre o cristianism o seguiu a trajetória traçada p o r Locke e Toland até as últim as conclusões: o cristianism o verdadeiro nada m ais é d o q u e u m sistem a ético racional sobre u m pano de fu n d o vagam ente teísta. “C o n siste em observar as regras q u e a razão descobre. A religião [segundo T indal] consiste basicam ente em c u m p rir todos os deveres da m oralid ad e”.20 Trata-se da religião q ue não tem n e n h u m a necessidade real da revelação especial, nem da graça, n em d o Salvador. Só precisa da crença em u m Ser su p re m o q u e seja vagam ente pessoal, transcendente e im an en te e q u e possa ser co n hecido pela razão natural com o o p ro p u lso r e a base para a m oralidade objetiva e universal. Tindal não rejeitava co m o necessariam ente falsas todas as alegações de revelações especi ais e m ilagres, m as as subordinava à religião natural, inclusive à m oralidade n a tu ral. Sua ú nica fu n ção válida era confirm ar, de m o d o especial, o q u e pode ser c o m u m en te co n cebido in d ep en d e n tem en te delas. Tindal m o rre u com o herói controvertido, p orém respeitado, da religião natural em 1733, apenas três anos após a publicação de sua única e grande obra. Cristianismo tão antigo quanto a criação to rn o u -se a n o rm a para o deísm o e influenciou p ro fu n d a m en te grandes pensadores norte-am ericanos, co m o B enjam in Franklin e T h o m as Jefferson. Sob a influência do deísm o, Jefferson, o artífice dos Estados U n id o s, crio u sua própria Bíblia, q u e consistia no n t destituído de todos os relatos e d o u tri nas considerados contrários à razão. As únicas d o u trin as de Jesus e dos apóstolos que sobraram foram as que o terceiro presidente dos Estados U n id o s acreditava serem consistentes com a religião natural. A influência de Tindal pôde tam bém ser vista em m u ito s dos principais panfletistas das revoluções do fim do século xvm. T h o m as Paine, u m dos principais defensores das revoluções dem ocráticas e da se paração da igreja e do estado, escreveu The age o f reason [A idade da razão] em 1794 e d eu u m passo além de Toland e T indal em direção à religião natural anticristã.
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Infelizm ente, m u ito s norte-am ericanos chegaram a definir o deísm o exclusivam ente em term o s da polêm ica anticristã rancorosa de Paine. P ouco m ais de cem anos d e pois, o presidente dos Estados U n id o s, T h e o d o re Roosevelt, c h am o u Paine de “ateu m esq u in h o e im u n d o ”. Ficou a im pressão para m u ito s am ericanos de q u e todos os deístas eram ateus ocultos ou, n o m ín im o , o ponentes ardentes do cristianism o.
Noções comuns do deísmo Q u ais eram as idéias básicas traçadas pelos precursores do deísm o e defendidas p o r seus pro p o n en tes? Em u m a definição u m pouco exagerada, m as n em p o r isso in correta o u cruel, da essência d o deísm o, o notável filósofo britânico d e religião, Ian Ramsey, explicou que: Os deístas, dos quais Toland e Tindal são os representantes mais famosos, argumentavam a favor da racionalidade do cristianismo somente removendo totalmente suas qualidades distintivas. A fé cristã era crível apenas quando era razoável e era razoável unicamente quando repetia as crenças e máximas morais que podiam ser percebidas por qualquer pessoa que tivesse capacida de e tempo para elaborar de forma independente um conceito filosófico. Mais uma vez, a racionalidade do cristianismo era defendida somente às custas de reduzir a religião cristã a algo irreconhecível.21 Todos os deístas, apoiados no alicerce criado parcialm ente p o r Locke e o u tro s pensadores religiosos d o ilu m in ism o , visavam desenvolver e d efen d er três idéias principais. P rim eiro , que o cristianism o au tên tico é co m p letam en te consistente co m a religião n atural e a m oralidade razoáveis e universalm ente acessíveis e, se u m a crença ou regra m oral não pudesse ser com patível com isso, não devia ser crida n em seguida. E m bora hesitassem em atacar abertam ente a d o u trin a da T rin dade, os deístas claram ente a consideravam incom patível com a religião natural e praticam ente a desconsideravam . Esse era tam b ém o caso de quase todas as d o u tri nas distin tiv am en te cristãs. E m bora essa distorção procustiana22 d o cristianism o feita pelos deístas seja d e plorável, tem os q u e nos p erg u n tar se ela é p io r em espécie o u so m en te em grau do q u e a praticada p o r certos pensadores cristãos prim itivos e m edievais que, além de em pregar as categorias filosóficas gregas co m o ferram entas de interpretação ou contextualização do evangelho, chegaram a acom odar os ensinos bíblicos a elas. O s gnósticos, obviam ente, com eteram essa falta e p o r isso são quase q u e universal m en te co n denados na história d o cristianism o pelos pensadores ortodoxos. O que raram en te é reco n h ecido, especialm ente pelos p ro p o n e n te s m o d ern o s da o rto d o xia p rotestante, é a tendência q u e certos pais da igreja apresentam na m esm a d ire ção. Sem equiparar de m o d o algum o em prego do n eo p lato n ism o p o r A gostinho e
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o em p reg o do racionalism o ilum inista pelo deísm o, há razão para com pará-los. O D eu s de A gostinho, em bora seja trin o , é p risio n eiro da teologia filosófica grega da singeleza, im utabilidade e im passibilidade divinas e está m ais para u m grande im p erad o r cósm ico do q u e para o Pai celestial am oroso e com passivo. A nselm o n e go u que D eu s experim entava q u alq u er sen tim en to de com paixão. O retrato de D eus do teísm o cristão clássico parece ter sido p intado tanto com cores bíblicas q u an to helenísticas. A queles que, com razão, acusam o deísm o de subverter os ensinos bíblicos com a religião filosófica e natural d o ilu m in ism o devem conside rar até q ue p o n to as d o u trin as cristãs clássicas de D eu s foram indevidam ente in flu enciadas pelas categorias filosóficas gregas da perfeição m etafísica.23 A segunda idéia co m u m ao deísm o é q u e a religião verdadeira e o cristianism o verdadeiro tratam basicam ente da m oralidade social e individual. O s deístas ten d i am a re d u zir a religião válida ao c o n ju n to de crenças básicas a respeito de D eus, da im ortalidade da alm a e de recom pensas e castigos pelo co m p o rta m e n to , q u e era un iv ersalm en te acessível à razão e essencialm ente significativo apenas com o m o delo de v irtu d e nesta vida. O s deístas não se interessavam m u ito pela especulação m etafísica ou teológica. Se não fosse possível d em o n strar o valor prático de algum a crença para o progresso da h u m an id ad e em direção à transform ação total da vida, eles d efinitivam ente a ignoravam . Todos acreditavam , n o en tan to , q u e era necessá rio algum tipo de crença em D eus e na im ortalidade da alm a, bem com o no ju lg a m en to depois da m o rte, para a transform ação progressiva da vida. As crenças reli giosas, p o rtan to , to rn aram -se m eros su p o rtes práticos para a ética, na opinião da m aioria dos deístas. A terceira e ú ltim a n o ção c o m u m do d eísm o é q u e pessoas in telig e n tes e esclarecidas devem tratar com ceticism o todas as alegações de revelações e m ila gres sobrenaturais. E m b o ra os deístas do século xvm, co m o Toland e T indal, não as negassem , claram ente as relegavam a u m a categoria in ferio r à das verdades un iv er sais da razão e restringiram o elem e n to sobrenatural na religião quase a p o n to de extingui-lo. P o sterio rm ente, os deístas m ais radicais rejeitaram to talm en te os m i lagres e optaram p or u m cristianism o p u ra m e n te naturalista, desm itificado, des pojado de q u alq u er m istério. A cosm ovisão d o deísm o foi m oldada, em grande parte, pela física n ew to niana com seu universo governado p o r leis naturais rígidas. Era u m a “m áq u in a u n iversal” com pouco espaço para a intervenção divina. M es m o q u an d o os deístas reconheciam os m ilagres, eles perm aneciam u m elem en to estran h o na linha de raciocínio, p ro n to s para serem erradicados.
O legado do deísmo O ideal básico dos principais deístas era tran sfo rm ar o cristianism o em religião natural universal de razão pura. Por mais surp reen d en te que possa parecer, os deístas
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não achavam q u e sua versão do cristianism o era u m a religião d iferente. E n te n d i am q u e era m ais u m passo para o progresso d o cristianism o, q u e se livraria da superstição m edieval e da subserviência cega ao au to ritarism o in au g u ra d o por E rasm o e L utero. E n tretan to , os deten to res do p o d er nas denom inações religiosas do século x v iii rejeitaram co m p letam en te o deísm o, m esm o q u e secretam ente sim patizassem com alguns de seus ideais. Q u a n d o os deístas perceberam q u e a Igreja da Inglaterra poderia se distanciar da teologia reform ada para se aproxim ar d o arm inianism o, p ro g red ir na direção certa, m as não da religião natural, com eçaram a organizar u m a nova denom inação. D os q ue se reu n iram para fo rm ar a nova igreja deísta, alguns eram anglicanos d e siludidos e o u tro s, congregacionais progressistas. U n s poucos eram batistas d ese n cantados. E m 1774, foi fundada a p rim eira congregação unitarista de L ondres com o n o m e de C apela de Essex. A prim eira igreja unitarista n o rte-am eric an a foi a K ing’s C hapei, de B oston, fundada em 1785 a p artir da igreja episcopal (anglicana) já existente. N a década de 1790, diversas igrejas congregacionais, tan to na Inglater ra q u a n to n o s E stad o s U n id o s (s o b re tu d o na N o v a In g la te rra ) to rn a ra m -s e unitaristas, com teologia m arcadam ente influenciada pelo deísm o. U m a nova d e no m inação cham ada Associação U n itarista A m ericana foi oficialm ente form ada em 1825 e organizada segundo padrões rigorosam ente congregacionais sem credos ou d o u trin as. A Escola de Teologia de H arvard era seu sem inário oficial e, em b o ra a d en om inação perm anecesse relativam ente peq u en a em n ú m e ro de m em b ro s, to rn o u -se u m dos grupos religiosos m ais influentes da A m érica d o N o rte m o d er na e m u ito s presidentes e congressistas dos Estados U n id o s consideravam -na seu lar espiritual. A m aioria dos deístas não se filiou a n e n h u m a igreja unitarista, sendo q u e al guns co n tin u aram religiosos ind ep en d en tes sem n e n h u m a filiação denom inacional e o u tro s co n tin u aram a freq ü en tar igrejas cristãs estabelecidas, secretam ente dis co rd an d o das d o u trin as e práticas cristãs tradicionais. O deísm o se in filtro u silen ciosam ente na estru tu ra da vida política e religiosa dos Estados U n id o s e o D eus do deísm o e da religião natural to rn o u -se o “D e u s” da religião civil dos Estados U n id o s (“e m D eus co nfiam os”, era o lem a nacional). U m tipo interessante de dualidade in flu en cio u a vida religiosa dos Estados U n id o s de tal m aneira q u e a m aioria das deno m in ações cristãs, b em co m o a espiritualidade cristã fundam ental de grande parte das pessoas, tem u m sabor notavelm ente pietista, e n q u a n to a reli gião pública dos políticos e dos oficiais do governo é m arcada pelo deísm o. As m esm as pessoas q u e falam ao público, de form a fria e racional, a respeito da b ê n ção de D eus para os Estados U n id o s sem fazer n e n h u m a m enção a je s u s C risto , ao pecado o u à salvação, freq ü en tem en te se deleitam na religião experim ental em sua vida particular e na igreja. U m presidente dos E stados U n id o s d o fim do século xx,
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com tendências fo rtem en te pietistas e evangélicas, ten to u in tro d u z ir u m pouco dessa linguagem em sua vida pública e foi quase globalm ente criticado p o r isso. Por o u tro lado, u m candidato presidencial da década de 1980 talvez tenha perdido a eleição em parte p o rq u e não d e m o n stro u q u alq u er evidência de fé em D eus ou de espiritualidade.2‘' A cu ltu ra dos Estados U n id o s é p ro fu n d am en te influenciada pelo deísm o tan to q u an to pelo pietism o. Se u m político não for, pelo m enos, deísta será rejeitado. O político q u e se declarar ab ertam ente pietista será criticado. O legado do deísm o tam b ém pode ser visto na ascensão da teologia liberal p ro testante do século xix. O s principais fundadores e p ro p o n e n te s da teologia liberal na E u ro p a e na A m érica d o N o rte não eram deístas. N a realidade, F ried rich S chleierm acher, o “pai da teologia liberal”, declarou ser m ais u m pietista “de o r dem su p e rio r” d o q u e u m deísta ou racionalista. A pesar disso, q u an d o a teologia pro testante liberal se desenvolveu no século xix, revelou m uitas noções populares do deísm o e co m u m dos principais responsáveis p o r sua popularização, o notável h isto riad o r eclesiástico alem ão A d o lf von H arnack, a teologia liberal ficou bastante sem elh an te ao deísm o de J o h n Toland. E disso q u e tratarem os a seguir nesta n arra tiva da teologia cristã: a ascensão d o p en sa m e n to p ro testan te liberal e as várias reações e respostas a ele.
N o n a P arte A t r a m a g e ra l se d iv id e : O s liberais e os conservadores respondem positivamente à modernidade
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pro testan te, não ficaria sem contestação. Já em 1901, teólogos p rotestantes o rto doxos da E u ro p a e da A m érica do N o rte u n iram forças para lutar co n tra ela. N ão d em o ro u a su rg ir e n tre eles u m a coalizão de teólogos, pastores e cristãos leigos cu ltos para criar u m a batalha teológica contra o q u e cham avam d e “m o d e rn ism o ” da teologia. Essa nova e intensa form a de tradicionalism o o rto d o x o se tornaria co n h ecid a co m o “fu n d a m e n talism o ”. A rraigados na ortodoxia pro testan te e im pu lsionados pelo esp írito m ilitante an tim o d ern ista (especialm ente em teologia), os fu n d am entalistas fizeram um a cam panha para elim in ar das den o m in açõ es p ro testantes as influências liberais e m odernistas. A cusaram a teologia liberal de ser u m a relig ião d ife re n te d o c ris tia n is m o , d e ser u n ita ris m o d isfa rç a d o , m ais racionalista e h u m an ista do q u e centralizado n o evangelho. U m dos principais te ó lo g o s da re açã o fu n d a m e n ta lis ta foi J. G re s h a m M a c h e n (1 8 8 1 -1 9 3 7 ), presb iterian o conservador, leal à C onfissão de fé de W estm inster e às verdades atem porais descobertas e consagradas pelos teólogos p rotestantes ortodoxos dos séculos xvi e xvn. A lém disso, havia forte ênfase à in errância e verdade literal do registro bíblico e à falsidade da ciência c filosofia m o d ern as, q u e eram céticas e evolucionistas. M ach en d eu o grito de guerra com Christianity and liberalism [Cris tianismo e liberalismo]3, publicado q u a n d o o fu n d a m e n talism o estava no auge da sua influência. N esse livro, M achen se esforçou para desm ascarar a teologia libe ral, ap resen tan d o -a co m o falso evangelho e religião alternativa ao cristianism o genuíno. O fu n d am en talism o não foi a única resposta à teologia protestante liberal. M u i to m ais destrutiva, talvez, tenha sido a crítica dos cham ados teólogos n e o -o rto d o xos, vários dos quais tin h am sido alunos nos sem inários e universidades de teólo gos liberais de destaque, co m o A d o lf H arnack, au to r de What is Christianity? [O que éo cristianismo?]. O s teólogos neo -o rto d o x o s eram protestantes q u e buscavam suas raízes m ais na R eform a, especialm ente em L utero, do q u e na ortodoxia protestante ou no puritan ism o . Estavam dispostos a adaptar alguns aspectos d o cristianism o ao p en sam en to m o d ô rn o , m as acreditavam q u e a teologia pro testan te liberal tin h a se acom odado m u ito radicalm ente à m odernidade. O em in en te p ensador n e o -o rto doxo n o rte-am erican o , I I. R ichard N ieb u h r, da Escola de Teologia de Yale, decla rou q ue, na teologia liberal, “um D eus sem ira levou h o m en s sem pecado para um rein o sem ju lg am en to pela m inistração de u m C risto sem c ru z ”.4 N a Europa, o teólogo suíço Karl B arth (1886-1968) dirigiu a revolta n eo-ortodoxa contra a teo logia protestan te liberal e desenvolveu a teologia m ais influente d o século xx. Para m u ito s observadores da teologia m oderna, B arth consta co m o grande reform ador à altura de L utero, p o rq u e, assim com o o alem ão d o século xvi, o au to r suíço do século xx d erro to u quase q u e sozinho a oposição e recu p ero u a im agem do evan gelho cristão em tem p os de crise.
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As décadas finais do século xx testem u n h aram o processo re p en tin o e su rp re e n den te de pluralização na teologia cristã. Isto é, m uitas teologias novas de “interesse especial” b ro taram n o vácuo de vozes teológicas d o m in an tes. O s ú ltim o s gigantes teológicos do século m o rre ra m n o início da década de 1970 e não su rg iu n in g u ém para su b stitu í-lo s. A teologia cristã c o n tem p o rân ea é m arcada pela p ro fu n da variedade e diversidade: a teologia evangélica, u m a nova teologia católica ro m ana, a teologia do processo, a teologia da libertação e a teologia escatológica po d em todas ser en sinadas 110 m esm o sem in ário o u faculdade teológica. Para algum as pessoas, essa situação é p ro fu n d a m e n te p ertu rb ad o ra, e n q u a n to q u e, para ou tras, é em o cio n a n te e libertadora. T erm in arem o s esta parte ainda não finda da história da teologia cristã com um a descrição dessa situação pluralista e das várias respostas a ela.
A divisão no século xx por causa da modernidade U m a m aneira de ler e contar a história da teologia protestante depois da R eform a é traçar duas grandes linhas divisórias o u divisões con tinentais. A prim eira é en tre o m o n erg ism o e o sinergism o. As pessoas não raro com param essa divisão com o calvinism o e o arm in ianism o. E n tretan to , m u ito s m onergistas protestantes não se identificam n em com C alvino, n em com a teologia reform ada. A lguns pensadores luteranos, p o r exem plo, são m onergistas, assim co m o foi o p ró p rio L utero, sem adotarem toda a especulação calvinista a respeito da predestinação (decretos divi nos) o u m esm o da providência m eticulosa. Da m esm a form a, m u ito s sinergistas evangélicos não se identificam com A rm ínio nem com o arm inianism o. A lguns teólogos luteranos tom am o sucessor de L utero, Filipe M elâncton, co m o m odelo do sinergism o evangélico. M u ito s anglicanos seguiram o tipo de sinergism o de R ichard H o o k e r e, n aturalm ente, os anabatistas alegam q u e Baltasar H u b m a ie r e M en o S im ons eram sinergistas evangélicos m u ito antes de A rm ínio. A m aioria dos pensadores escolásticos e ortodoxos protestantes, n o entanto, é m onergista seg u n do o padrão clássico agostiniano-calvinista. Para m u ito s deles, essa é a única e ver dadeira form a p rotestante de pensar no relacionam ento en tre D eus e o h o m em na salvação e na história. Sinergistas protestantes de vários tipos protestam contra esse exclusivism o e reivindicam para o sinergism o evangélico u m papel na tradição p ro testante que rem o n ta ao p ró p rio início. Essa divisão é ilustrada na história de João Wesley q u e se d esen ten d eu com G eorge W hitefield q u an to à predestinação. M u i tos líderes e pensadores protestantes pro cu ram ligar o abism o en tre aqueles que, com o Wesley, d efen d em o livre-arbítrio h u m an o ju n to com a graça divina e aq u e les q ue, co m o W hitefield, insistem que a salvação só pode ser um do m gratuito se D eus fizer tu d o e o ser h u m a n o for inteiram en te passivo. P oucos conseguiram , p o rém , co m b in ar as duas perspectivas e, de tem pos em tem pos, a controvérsia
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volta a irrom per, o q u e d em o n stra que ela ainda é u m a falha na base do p en sam en to protestante. A segunda grande linha divisória d en tro da teologia pro testan te aconteceu d u zentos anos depois q u e A rm ínio se opôs ab ertam en te ao m o n erg ism o calvinista da Igreja R eform ada dos Países Baixos. D u ra n te séculos, os protestantes sustentaram firm em e n te o p rin cíp io soía scriptura, m esm o q u an d o usaram a razão, a tradição e a experiência co m o ferram entas da interpretação bíblica. E n tretan to , m u ito s pensa dores protestantes, especialm ente da am pla e p ro fu n d a tradição ortodoxa p ro tes tante do escolasticism o, chegaram a tratar certas declarações d o utrinárias da histó ria eclesiástica com o padrões inquestionáveis de exatidão teológica. O C red o N icen o era aceito p or quase todos os protestantes até as igrejas unitaristas o rejeitarem abertam ente, n o fim do século x v iii , sob a influência d o deísm o. Por causa dessa defecção, o u tro s protestantes rejeitaram o u n itarism o p o r considerá-lo seita h e ré tica ou m esm o falso cristianism o. A C onfissão de Fé de W estm inster e os dois catecism os de W estm inster tornaram -se, para m u ito s na tradição protestante re form ada, quase anexos autênticos das E scrituras em term o s de autoridade. A m ai oria dos teólogos protestantes de todas as denom inações reco n h eceu q u e não p o dia haver n e n h u m a dúvida séria contra a crença im plícita D eus tran scen d en te e pessoal q u e age, às vezes, de m o d o so b re n atu ral (assim co m o na ressurreição corpórea de C risto ) e cuja graça é m ais poderosa do q u e a natureza. E m outras palavras, todos os pensadores protestantes su stentaram com firm eza u m a certa cosm ovisão cristã básica q u e sofreu cada vez m ais pressão p o r parte da filosofia e da ciência do ilu m in ism o 110 século x v iii . N esse palco, surgiram os racionalistas religiosos, os deístas, os céticos e o u tro s pensadores ilum inistas da E uropa e dos Estados U n id o s, cuja m aioria alegava ser cristã p ro testan te e inclusive de um a “o rd em su p e rio r”. Para eles, a m odernidade, um novo Zeitgeist (espírito da era), dificilm ente definível, to rn o u -se referência de verdade à altura das E scrituras e da tradição ou m esm o su p erio r a elas. A própria razão to rn o u -se praticam ente sin ô n im o do p en sam en to ilum inista, q u e constituía a m odernidade, e não podia ser sacrificada nem p o r am o r à preservação da tradição cristã. Para os pensadores p rofundam ente im pressionados pelos avanços irreversíveis e positivos da ciência m o d ern a e da filosofia, havia duas opções se quisessem per m anecer cristãos. P rim eiro, eles podiam desenvolver abertam ente form as m o d er nas próprias de cristianism o protestante co m o alternativas à ortodoxia protestante. O u n itarism o era u m em p re en d im en to desse tipo e rejeitava pu b licam en te as n o r m as clássicas cristãs e protestantes da fé, co m o N icéia e C alcedônia e a C onfissão e C atecism o de W estm inster. Esses “livres pensadores” protestantes rapidam ente se desviaram do cristianism o clássico para u m a variedade de experiências com a filo sofia da religião e com a espiritualidade m ística. O transcendentalism o de R alph
A tram a geral se divide
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W aldo E m erso n foi u m a experiência que tin h a pouco o u nada de cristã. D e m uitas m aneiras, parecia u m a m istura sincretista de cristianism o com h in d u ísm o . A segunda opção para aqueles q u e desejassem c o n tin u a r cristãos protestantes, apesar de ser to rn arem to talm en te m o d ern o s e m esm o de re co n h ecerem com ple tam en te as reivindicações da m o dernidade, era p erm an ecer na tendência d o m i nan te das den o m in açõ es p rotestantes e suas ram ificações e te n ta r transform á-las, reco n stru in d o suas teologias à luz dos co n h ecim en to s m o d ern o s. E m outras pala vras, esses pensadores protestantes liberais não seguiriam o curso separatista do un itarism o, q ue rejeitava as d o u trin as clássicas p o r contrastarem com o m e lh o r da m o d ern id ad e, m as sim plesm ente rein terp retariam as d o u trin as protestantes clás sicas, para q u e sua “verdadeira essência” se m ostrasse com patível com a m o d er nidade. Esse era o em p re en d im en to da teologia p rotestante liberal clássica: desco b rir a “verdadeira essência do cristianism o” diferente de tu d o q u e contrastasse com a m o d ern id ad e e re co n stru ir a teologia p rotestante em to rn o dessa essência. O s conservadores rap id am ente partiram em defesa de todas as crenças cristãs p ro tes tantes tradicionais e fortaleceram suas categorias co n tra a influência, considerada perniciosa, da teologia m odernista. H o u v e u m a nova divisória co ntinental na te o logia p rotestante, separando os q u e acreditavam q u e a reconstrução da d o u trin a à luz da m o d ern id ad e não so m en te era inevitável m as tam b ém necessária e os que defendiam os sistem as d o u trin ário s tradicionais co n tra a reco n stru ção co m o se fosse u m caso “de vida o u m o rte ” para o cristianism o.
32 A teologia liberal ajusta-se à cultura moderna
.A s s im co m o o p ietism o, o p u ritan ism o e o deísm o, o liberalism o é u m a categoria m u ito mal co m p reen d id a e um ró tu lo em geral mal usado. As pessoas co stum am pensar na teologia liberal co m o a negação de algum a coisa, em vez de um a aborda gem distinta e positiva da m etodologia teológica. E m outras palavras, ela é equipa rada sim p lesm en te com a negação do nascim ento virginal de Jesu s C risto , de sua ressurreição co rpórea o u de am bos. Ela pode ser caracterizada co m o a negação da inspiração bíblica e a rejeição de dogm as co m o a T rindade e a divindade de C risto. Sem dúvida, alguns o u talvez m u ito s pensadores protestantes liberais dos séculos xix e xx negaram esses itens da ortodoxia p rotestante clássica. A m aioria pelo m e nos qu estio n a algum as dessas doutrinas. M as para chegarm os ao âm ago do pensa m en to p ro testan te liberal, precisam os p erg u n tar por que esses teólogos q u estio n a ram crenças tradicionais. Para serm os ju s to s com eles, devem os reco n h ecer que, p e lo m e n o s e m su a p e rs p e c tiv a , n ã o estav a m re je ita n d o a tra d iç ã o , m as a rein terp retan d o ou re co n stru in d o . A lém disso, os pensadores liberais clássicos dis cordavam sobre detalhes específicos da d o u trin a. O m o v im en to era m ais u m a te n tativa de tran sfo rm ar o p en sam en to cristão à luz de u m novo contexto cultural m o d ern o do q u e de rejeitar algum as crenças. P ortan to , essa definição prática pode servir de p re âm b u lo para a teologia p ro testan te liberal clássica. O q u e todos os seus p recu rso res e p ro p o n e n te s tin h am em co m u m era o re c o n h e c im e n to m áxim o das reivindicações da m o d ern id a d e na teologia cristã.1 O s teólogos estavam convencidos de q u e a c u ltu ra h u m an a tinha dado u m salto q u ân tico de avanço com o ilu m in ism o e q u e a p ró p ria existência do cristian ism o co m o m ais d o q u e u m a religião folclórica d ep en d ia de sua atuali zação, para q u e entrasse em h a rm o n ia com o q u e havia de m e lh o r n o “p ro jeto de m o d e rn id a d e ” do ilu m in ism o . O u seja, a teologia cristã precisava se m o d ern iz ar ou deixaria de ser religião p o p u la r com atrativos e in flu ên cia universais. O s te ó logos liberais acreditavam q u e, se não se ajustasse à nova situação m o d ern a , o
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cristian ism o se to rn aria superstição e espiritualidade esotérica para uns poucos indivíduos atrasados e incultos, sem elhante à astrologia. U m im p o rtan te teólogo da popularização do liberalism o expressou essa opinião em serm ões d o u trin ário s à sua congregação p ro testante norte-am ericana, em 1913, da seguinte m aneira: “Esta geração m erece receber os m elhores e m ais sublim es pensam entos de nossos te m pos q u an to aos tem as grandiosos da vida religiosa”,2 pois, se ao tratar-se de d o u tri na, os “assuntos são apresentados da form a q u e foram há cin q ü en ta anos, não cri am convicções nas m entes dos hom ens; não se pode crer n eles”.3 Isso porque, segundo W ashington G ladden, a filosofia, a ciência e a erudição bíblica m odernas apresentam inform ações novas, q u e os form uladores dos credos e d o u trin as do cristianism o no passado sim plesm ente não possuíam , c isso faz um a en o rm e dife rença. O s jo v en s cristãos q u e forem criados nas igrejas so m en te com doutrinas tradicionais que não são corrigidas à luz de co n h ecim en to s novos e m odernos, inevitavelm ente p erderão a fé n o cristianism o q u an d o se voltarem para o m u n d o m o d ern o e en co n trarem esses novos conhecim entos. O s teólogos liberais não concordavam a respeito da m elh o r form a de recons tru ir as crenças cristãs à luz da m o d ernidade, mas todos concordavam q u a n to à necessidade fu n d am en tal de reconstrução co n tín u a da teologia m oderna. E m bora n e n h u m pensador p ro testan te liberal clássico do século xix estivesse disposto a colocar, de m o d o explícito, a m o d ernidade n o m esm o patam ar das Escrituras, to dos consideravam o p en sam ento m o d ern o ferram enta necessária de interpretação e a m aioria, inclusive, lhe atribuía autoridade o rientadora ou m esm o controladora na determ inação da essência da verdade cristã. Era isso q u e os tornava “teólogos liberais”. A lguns foram m ais radicais em suas conclusões e descartaram totalm ente q u alq u er crença literal n o sobrenatural e n o m ilagroso. Poucos chegaram a esse ponto. E m geral, os teólogos p rotestantes liberais clássicos sim plesm ente restrin g i am o u desprezavam o aspecto sobrenatural. O m esm o aconteceu com dogm as clás sicos, com o a Trindade e a divindade de C risto. A lguns rejeitaram -nos com pleta m ente, en q u a n to a m aioria p referiu desprezá-los ou reinterpretá-los. C ada um , a seu p ró p rio m o d o , ten to u c o n stru ir u m a teologia cristã nova q u e fosse co m p leta m en te com patível com o que havia de m elh o r na m o d ernidade, na filosofia, na ciência e na erudição bíblica. N ã o se chegou a n e n h u m c o n ju n to de conclusões que todos os teólogos liberais concordassem .
Modernidade: o contexto cultural para a teologia liberal O q u e é m od ern id ad e? A lguns com entaristas a descrevem co m o disposição c u ltu ral, u m c o n ju n to de perspectivas e atitudes q u e d u ro u de 1650 a ap ro x im ad am en te 1950. G rosso m o d o , era sin ô n im o de ilu m in ism o e de seus reflexos culturais posteriores. E está sen do su p o stam en te suplantada pelo q u e se cham a de “pós-
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m o d ern id ad e” desde a década dc 1960. U m a form a de descrever a m o d er-n id a d e é com pará-la à cu ltu ra helenística do Im pério R o m an o nos p rim eiro s séculos do cristianism o. N o s p rim eiro s episódios da história da teologia cristã, vim os com o os pensadores cristãos dos séculos n a iv c inclusive d o século v contextualizaram de várias m aneiras o evangelho e a cosm ovisão cristã segundo sua cultura. Vim os, tam bém , q u e não existia u m “conceito h elenístico” da realidade. Existiam , sim , características co m u n s da cu ltu ra helenística q u e foram m oldadas p o r filósofos gregos p ré -c ris tã o s , c o m o S ó cra te s, P la tão , A ris tó te le s e se u s h e rd e iro s . A m o d e rn id a d e e n c o n tra -se em situ açã o se m e lh a n te . N u n c a foi u m c o n ju n to m o n o lítico de crenças a respeito d o m u n d o . Pelo contrário, o p en sam en to m o d er no foi co n stitu íd o p o r alguns tem as culturais p enetrantes que, ju n to s , form aram tendência cultural m oldada pelo ilum inism o. O s tem as c o m u n s e penetrantes da m o d ern id ad e vieram da filosofia e da ciência do ilu m in ism o . Já vim os alguns deles na história d o deísm o (capítulo 31). R ecapi tu lan d o e re su m in d o , o p en sam ento ilum inista m o d ern o focalizava a total co m p e tência da razão e sua au toridade sobre a tradição ou a fé, a u n ifo rm id ad e da n a tu re za em vez d o co n tro le e das intervenções sobrenaturais e o progresso inevitável da hum an id ad e pela educação, razão e ciência. Para os pensadores ilum inistas, o p rin cipal papel da religião na m o d ern id ad e era a educação m oral da h u m an id ad e e não a especulação m etafísica ou a do u trin ação nos dogm as a respeito de coisas que estavam além do alcance da investigação racional. O Zeitgeist (espírito da era) do ilu m in ism o e da m o d ern id ad e de m o d o geral era centralizado n o ser h u m an o . O ensaísta ilum inista A lexander Pope d eu os seguintes conselhos aos partidários do ilum inism o: “C o n h eça, pois, a si m esm o. N ã o pro cu re perscrutar D eus. O estudo apropriado da h u m an id ad e é o h o m e m ”. E xpressou, tam bém , o fascínio q u e o ilu m in ism o tin h a pela ciência e pelas leis naturais, ao escrever: “A natureza e suas leis estavam envoltas nas trevas. D eus disse: i laja N e w to n !’, e tu d o se fez lu z”. Talvez o m aio r pen sador ilum inista de todos tenha sido o grande filósofo ale m ão Im m an u el Kant, q u e nasceu em K õnigsberg, na Prússia, em 1724 e m o rre u em 1804 sem n u n ca ter saído dessa cidade. E freq ü en tem en te considerado o ápice d o ilu m in ism o e tam b ém seu m aior crítico, p o rq u e expressava e incorporava m u i tos de seus tem as cruciais e, ao m esm o tem p o , restringia a razão a um a esfera mais lim itada do q ue os pensadores anteriores d o ilu m in ism o aceitariam . K ant escreveu u m ensaio fam oso cham ado O que é o iluminismo?, n o qual resu m iu n o im perativo sapere aude!: “pense p o r si m esm o !”. Para ele, isso se aplicava à religião tan to q u an to a q u alq u er o u tro âm b ito cultural. O principal p ropósito da religião era único: for necer à sociedade fu n d am en to s m orais e instrução. Em seu livro m ais influente sobre religião, A religião dentro da esfera da razão pura, o grande filósofo alem ão rele gou a religião ao âm b ito da ética.4 C o m isso, desvalorizou tanto a teologia natural
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q u an to a teologia revelada. Para Kant, a religião autêntica, inclusive o cristianism o válido, era sim plesm ente viver de acordo com os deveres racionalm ente discerníveis. Essa era sua versão da religião natural e ela teve grande influência sobre os pensa dores ilum inistas no início do século xix q u e procuravam um a religião totalm ente m o d ern a. A religião de K ant não tinha a m e n o r possibilidade de en tra r em conflito com a ciência, p o rq u e não tinha n e n h u m a crença especulativa a respeito da n a tu re za d o m u n d o ou da história e não dependia de revelações sobrenaturais n em de m ilagres. A pesar disso, m an tin h a a crença em D eus, na existência im ortal da alm a e nas recom pensas e castigos após a m orte. N e m todos os filósofos do ilu m in ism o ficaram satisfeitos com a filosofia da religião quase naturalista proposta por Kant. S egundo o u tro grande filósofo alem ão do com eço do século xix, ela reduzia D eus a m ero colaborador, p o r assim dizer, do esforço m oral e ético hum ano. G eorg W ilhelm F riedrich H egel (1770-1831) p ro cu ro u re in tro d u z ir u m forte conceito de D eus com o aspecto fundam ental da filo sofia m o derna, sem exigir a crença em nada que contrastasse com a ciência m o d er na o u que exigisse fé cega na autoridade ou na revelação sobrenatural. E m Preleções sobre afilosofia da religião, H egel explicou “D e u s” co m o u m E spírito (Geist) m undial im anente, que subjaz à natureza e à história e com elas evolui.3 Para ele, a crença nesse D eus era tanto racional q u an to p erfeitam ente com patível com o m elh o r da cu ltura m o derna, em b o ra fosse metafísica, especulativa e, portanto, contrária aos ditam es de Kant, que restringia a filosofia da religião à ética. O D eus de H egel era plenam ente im an en te no m u n d o . U m a das m áxim as do filósofo era: “Sem o m u n do, D eu s não seria D e u s”. D eus e o m u n d o pertencem u m ao o u tro e crescem ju n to s. A h u m an id ad e e a cultura h u m an a são D eus chegando à autoconsciência, e D eus é o que a h u m an idade, na m elh o r das hipóteses, poderá chegar a ser. E m um a era m o d ern a q u e buscava um a perspectiva religiosa p len am en te c o m patível com a razão e a ciência do ilu m in ism o , as opiniões religiosas de Kant c H egel foram facilm ente aceitas, am plam ente debatidas e p ro fu n d am en te in flu en tes. N e n h u m deles exigia a crença em dogm as o u m ilagres considerados in com pa tíveis com o espírito racionalista e naturalista da era. M as am bos forneceram m o dos de considerar a D eus que evitavam o ateísm o ou o total agnosticism o. Assim com o Platão e seu alu n o A ristóteles na Atenas antiga e, p o sterio rm en te, na cu ltu ra helenística, K ant e H egel fo rn eceram duas teorias filosóficas d iferen tes para a m o d ern id ad e q ue, para m uitos, podiam ser com binadas de m o d o criativo. M u ito s antagonistas cultos da religião tradicional do século xix acreditavam q u e a ênfase à ética sem dogm a q u e K ant d eu à religião e o conceito de H egel do D eus im anente na história e na cu ltu ra podiam se to rn ar os pilares de um a nova teologia filosófica qu e não entraria em conflito com a ciência. D a m esm a form a que m u ito s pagãos cultos do Im p ério R om ano, co m o C elso, abraçavam u m tipo de filosofia religiosa
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grega genérica q u e aliava aspectos de várias filosofias específicas, as pessoas cultas da E uropa e (p o sterio rm en te) da A m érica do N o rte no século xix com eçaram a aceitar a filosofia religiosa vaga e genérica do ilum inism o, influenciadas pelo deísm o, Kant e H egel. Essa m aneira m o d ern a de ser religioso buscou, acim a de tu d o , evitar conflitos co m a ciência, já q u e ela sem p re parecia vencer. P ro cu ro u , tam b ém , red efin ir in teiram en te a religião dc u m a form a n em m etafísica, n em especulativa em term o s de ter u m a vida de dever ético e de coragem m oral. A dotou da parte de H egel u m conceito im anentista de D eus com o força espiritual im pessoal e univer sal q u e m archa sem pre adiante, em direção ao fim da história, em u m estado de perfeição cultural utópica. C ada avanço cultural foi in terp retad o co m o u m a vitória do espírito h u m an o e u m m o m e n to histórico dc auto-realização de D eus p o r m eio da h u m an id ad e na história.
O pai da teologia liberal moderna: Friedrich Schleiermacher A religião filosófica im precisa d o pen sam en to ilum inista do século xix parecia bem distante do cristianism o clássico, em b o ra K ant, H egel e a m aioria de seus seguido res alegassem ser cristãos, pelo m en o s n o sentido cultural. Isso significa q u e p er tenciam à igreja nacional oficial e ocasionalm ente participavam de seus rituais, mas rejeitavam seus dogm as. Essa religiosidade m o d ern a estava tão difu n d id a na elite cultural da E u ro p a que parecia q u e um a geração inteira estaria perdida para a igreja a não ser que ela pudesse adaptar sua pregação e seus ensinos à cosm ovisão desses m em bros. Até a p rim eira década d o século xix, os teólogos p rotestantes da E uropa e da A m érica do N o rte , de m o d o geral, representavam forte oposição à m odernidade sem pre q u e ela entrava em conflito com a ortodoxia. E possível q u e ten h am lido Kant e, p o sterio rm en te, H egel e se deixado influenciar parcialm ente p o r eles, mas os teólogos protestantes ortodoxos das faculdades teológicas resistiam a q u alq u er a c o m o d a ç ã o às filo s o fia s ilu m in is ta s . F o i e n tã o q u e a p a re c e u F r ie d r ic h S chleierm acher, o p rim eiro teólogo pro testan te a apelar para m udanças revolucio nárias na ortodoxia p ro testante para ir ao e n c o n tro d o Zeitgeist da m o d ern id ad e e en trar em h arm o n ia com ele. O resultado foi o n ascim ento da teologia protestante liberal. F riedrich D aniel E rn st S chleierm acher nasceu na Prússia em 1768. Seu pai era u m cristão pietista devoto, de crenças ortodoxas sólidas. E nviou o jo v e m F riedrich a u m in tern ato , dirigido p o r pietistas e, p o sterio rm en te, a u m sem inário pietista. E n q u an to cursava o terceiro grau na U niversidade de H alle, tam b ém fundada por pietistas, o jo v em S chleierm acher se alim entou das fontes do pensam ento ilum inista e especialm ente da filosofia de K ant e com eçou a expressar dúvidas a respeito da veracidade de algum as d o u trin as ortodoxas nas cartas q u e escrevia ao pai. Isso p ro vocou u m ro m p im en to en tre eles, q u e acabou sendo sanado, m as S chleierm acher
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sem pre con testo u o cristianism o do pai. Em u m a carta q u e escreveu à irm ã anos m ais tarde, S chleierm acher expressou a consciência de sem pre ter sido pietista, po rém de um a “o rd em su p e rio r”. S chleierm acher to rn o u -se m in istro da Igreja R eform ada, serviu co m o capelão em u m hospital de B erlim e depois co m o cate drático de teologia e pastor da U niversidade de I lalle. E m 1806, q u an d o H alle foi fechada p o r N apoleão, v oltou a B erlim . Lá pastoreou a grande e in flu en te Igreja da T rindade e ajudou a fu n d ar a U niversidade de B erlim . T o rnou-se deão da faculda de de teologia e co n q u isto u , na A lem anha, a reputação de herói nacional, poderoso pregador e grande intelectual. Q u a n d o m o rre u , em 1834, o povo de B erlim foi para as ruas em luto, para ver a procissão fú n eb re passar. Schleierm acher escreveu m uitos livros durante a carreira, m as dois se destacam com o os m ais influentes na form ação da nova escola de teologia protestante liberal. E m 1799, q u ando participava ativam ente da cultura acadêm ica de Berlim , o jovem m inistro e capelão hospitalar queria en contrar u m m eio de influenciar os “antago nistas cultos” do cristianism o com o evangelho e convencê-los da legitim idade do cristianism o com o um a religião positiva baseada na revelação divina. A tendência cultural da época era o rom antism o, um a reação sentim ental à ênfase exagerada à razão objetiva do ilum inism o no século x v iii . O s rom ânticos celebravam os “senti m en to s”, pelos quais entendiam não as em oções irracionais, m as os anseios h u m a nos profundos e a apreciação da beleza da natureza. O m ovim ento rom ântico deu origem a novos florescim entos nas artes em m eio a um a cultura que tendia a valori zar dados científicos sólidos e filosofias intelectuais. G oethe na literatura e B eethoven na m úsica gozavam de en o rm e popularidade. Schleierm acher queria en contrar um a form a de in tro d u zir o cristianism o em seu círculo de am igos, que era bastante cético qu an to à religião tradicional. Para eles, escreveu um a obra que veio a ser considerada clássica na apologética: Da religião: discursos em resposta aos críticos cultos. D e certa form a, esse livro explicava q ue a essência da religião não está nas com provações racionais da existência de D eus, nos dogm as sobrenaturalm ente revelados ou nos rituais e form a lidades das igrejas, m as no “elem ento fundam ental, distinto e integrador da vida e da cultura h u m an a”,6 a sensação (Gejiihl) de ficar totalm ente dependente de algum a coisa infinita q u e se m anifesta nas coisas e pelas coisas finitas. S chleierm acher tiro u a revelação autoritária e objetiva do ce n tro da religião e a su b stitu iu p o r Gefúhl, um a palavra em alem ão de difícil tradução. A tradução mais próxim a seria “consciência íntim a p ro fu n d a”. Ela é fre q ü en tem en te traduzida p o r “se n tim en to ”, m as essa palavra expressa a idéia errada. Para Schleierm acher, tanto a religião em geral q u an to o cristianism o co m o religião positiva trata, principal m en te, da faculdade e da experiência h u m an a universal q u e ele ch a m o u de Gefühl. E a consciência d istin tam en te h u m an a de algo infinito, além d o p ró p rio eu, da qual ele d ep e n d e para tu d o . O cristian ism o tem sua fo rm a d istin ta de Gefiihl, q u e
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S chleierm acher considerava a m ais sublim e, m as cada ser h u m a n o tem essa co n s ciência experim ental co m o parte do seu “religioso a priori”. Ele é universal e in trín seco à p ró p ria n atureza h u m ana, seg u n d o S chleierm acher. Essa idéia pareceu atra en te para os ro m ân ticos, bem co m o para os adeptos do ilu m in ism o q u e pro cu ra vam u m a espiritualidade religiosa sem a fé cega nos dogm as eclesiásticos que re q u eriam o sacrifício do intelecto. S chleierm acher m o stro u co m o eles podiam se to rn ar m ais religiosos sem abrir m ão do q u e consideravam a valorização ilum inista de sua verdadeira hum anidade. O cam in h o era descobrir e alim entar da religiosi dade h u m an a universal existente d en tro de cada u m , q u e S chleierm acher, às vezes, cham ava sim p lesm en te de “p iedade” e descobrir o v ín cu lo com o infinito q u e já existia d en tro deles. E m Da religião, S ch leierm acher estabeleceu a base sobre a qual criou um a e stru tu ra teológica especificam ente cristã com sua obra suprem a: A f é cristã. Essa teolo gia sistem ática apareceu pela prim eira vez em 1821 e depois foi atualizada e revisa da p o r S chleierm acher em 1830. N essa obra m o n u m en tal, o pastor e teólogo de B erlim ap resen to u u m sistem a de d o u trin a cristã para os tem p o s m o d ern o s. A m aioria dos estudiosos da teologia m o d ern a concordaria com o q u e escreveu o com entarista: “nada de tão im p o rtan te e sistem ático apareceu n o pro testan tism o desde Instituías da religião cristã de C alvino, quase três séculos antes”7. A intenção de S chleierm acher co m A fé cristã era apresentar um a teologia especificam ente cristã q u e fornecesse u m a alternativa à religiosidade im precisa de K ant e H egel, levando em conta os avanços do pen sam en to m o d ern o e evitando conflitos com eles. Era u m a atualização da ortodoxia protestante, em b o ra a m aioria dos teólogos p ro tes tantes ortodoxos reagisse co n tra ela e a repudiasse. N a época em q u e escreveu A f é cristã, S chleierm acher chegou a se referir ao Ceftihl co m o “ter consciência de D e u s” c arg u m e n to u q u e existe u m a consciência de D eus na h u m an id ad e e tam b ém form as religiosas específicas dessa consciência nas religiões positivas. S egundo S chleierm acher, a teologia cristã não era apenas um a reflexão sobre a revelação sobrenatural e divina, m as u m a tentativa de colocar em palavras o sen tim en to religioso.“ O principal se n tim en to religioso n o cristia nism o é a consciência de ser to talm en te d ep e n d en te da obra red en to ra de Jesus C risto n o relacio n am ento com D eus. Essa é a “essência d o cristianism o”, a total consciência de d ep e n d er de D eus (ter consciência de D eus) e de Jesu s C risto com o nosso vín cu lo co m D eus. Esse Gefiiltl era a fonte e a n o rm a oficiais da teologia de Schleierm acher e as próprias E scrituras seriam interpretadas e até m esm o julgadas p o r ele. O au to r acreditava que, na m aior parte, tan to as E scrituras q u a n to a trad i ção cristã resistiriam bem ao escru tín io crítico usando a experiência co m o re ferê n cia, m as estava m ais do q u e disposto a revisar q u alq u er d o u trin a específica à essa luz se fosse necessário. N e n h u m a d o u trin a, p o r m ais tradicional q u e fosse, seria
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sacrossanta. S o m en te as q u e fossem com patíveis com a consciência de D eu s e sua expressão cristã específica seriam aceitáveis para S chleierm acher. Sem dúvida, S ch leierm acher tinha na m ais alta estim a as E scrituras e a grande tradição dos ensinos da igreja. M as tam b ém considerava q u e a experiência religiosa tin h a m u ito m ais autoridade. A Bíblia, declarou, não é a autoridade absoluta, m as o registro das experiências religiosas das co m u n id ad es cristãs prim itivas; portanto, fornece um padrão para as tentativas contem porâneas de in terp re tar a relevância de Jesu s C risto para as circunstâncias históricas específicas. Ela não é so b ren atu ral m en te inspirada e n em infalível. S chleierm acher relegava o a t a u m a condição de irrelevância p o r acreditar que carecia da dignidade norm ativa d o n t . Até o n t , po rém , poderia estar errado em q u alq u er p o rm en o r, se conflitasse com a experiên cia religiosa h u m an a de m o d o geral ou com a form a especificam ente cristã. O teólogo liberal alem ão com eçou a reco n stru ir a d o u trin a de D eu s, afirm ando que “todos os atributos q u e atribuím os a D eus devem ser en ten d id o s n o sentido de d en o tar não algo de especial em D eus, m as so m en te na m aneira com o o se n tim en to de absoluta dep en d ência deve estar relacionado a ele”.9 E m outras palavras, falar de D eus é sem pre falar da experiência h u m an a de D eus. Essas declarações não descrevem o p ró p rio D eus, m as são um a form a de te r um a experiência com D eus. S chleierm acher acreditava q u e a d o u trin a da T rindade não com binava m u ito bem com a experiência de term o s consciência de D eu s, p o r isso red u ziu a conside ração sobre ela a u m apêndice de sua teologia. N ã o a rejeitou n em a negou, mas reconheceu ter dúvidas a respeito e declarou q u e ela é praticam ente inútil para a teologia cristã, p or não se tratar de u m a declaração sobre a consciência religiosa. A rg u m en to u que para o cristão ter consciência de D eus, precisa o lhar para tu d o o que acontece na natureza e na história com o a atividade de D eu s e, p o rtan to , a teologia deve ab an d o n ar a distinção en tre o natural e o sobrenatural. Sem negar totalm en te os atos especiais de D eus, q u e alguns p oderiam co rretam en te cham ar de m ilagres, S ch leierm acher declarou: De modo geral [...], no tocante aos milagres, os interesses gerais da ciência, mais especificamente da ciência natural, e os interesses da religião parecem convergir para o mesmo lugar, ou seja, devemos abandonar a idéia do absolu tamente sobrenatural, porque nem uma única ocorrência sua pode ser co nhecida por nós e em nenhum lugar se exige de que a reconheçamos.10 Portanto, para S ch leierm acher e para a teologia p rotestante liberal em geral, a ciência e o cristianism o, a princípio, não po d em estar em conflito. A ciência trata so m en te de causas próxim as, ao passo que o cristianism o trata da causa suprem a de tudo. N o fim , p o rém , S chleierm acher realm ente pareceu cen su rar o u p ro ib ir a
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crença nas intervenções divinas especiais. N u n c a ter negado a ressurreição corpórea de Jesu s n em o tú m u lo vazio, talvez indique sua relutância em levar até às últim as conseqüências o sen tim en to co n trário ao sobrenatural. E m n e n h u m lugar o liberalism o teológico de S chleierm acher aparece m ais cla ram en te do q u e em sua cristologia. R ejeitou a d o u trin a tradicional das duas n a tu rezas de Jesu s C risto e a su b stitu iu p o r u m a cristologia baseada inteiram en te na experiência de Jesu s de ter consciência de D eus. Jesu s C risto , en sin o u , é exata m en te igual em sua n atureza ao resto da hum anidade. A única diferença é que, d iferen tem en te dos o u tro s seres h u m an o s, “desde o início, ele tinha plena consci ência de D e u s”.11 D esde o nascim ento, tinha total consciência de sua dependência de D eu s e n u n ca p ro fanou de form a pecam inosa esse relacionam ento de d e p e n dência, declarando ter au to n o m ia de D eus, seu Pai celestial. S chleierm acher ex pressou sua cristologia funcional (em oposição à cristologia ontológica) q u an d o escreveu q ue “o R edentor, portan to , é sem elhante aos h o m en s em v irtu d e da iden tidade da natureza h u m an a, m as diferente de todos pelo p o d er co nstante de sua consciência de D eu s, q u e era a au tên tica existência de D eu s n ele”. 12 S egundo S chleierm acher, p o r causa do p o d er dessa consciência de D eus, Jesu s C risto foi o Salvador da h u m an id ad e p o rq u e co nseguiu tran sm iti-la, de algum a form a, aos o utros pela com u n id ad e q ue fu n d o u e q ue é conhecida com o igreja. S chleierm acher negava tan to a teoria da expiação pela com pensação q u an to pela substituição e d e fendia algo pró x im o ao m odelo de A belardo, da influência m oral. D eclarou que, p o r sua p rópria vida e m orte, Jesu s C risto atrai os fiéis para o p o d er de sua própria consciência de D eu s e a transm ite a eles de algum a form a. Está claro que a cristologia de S chleierm acher trata Jesu s co m o u m “ser h u m an o exaltado”, em vez de D eus encarnado no sentido tradicional. Está m ais para o adocianism o do q ue para a crença na encarnação. A intenção de S ch leierm acher era fornecer um a teologia q u e fosse com pleta m en te m o d ern a e cristã. N ã o exigia n e n h u m a crença q u e fosse essencialm ente contrária ao p en sam en to m o d ern o e não descartava n e n h u m a q u e fosse essencial m en te contrária ao cristianism o. O u pelo m en o s era assim q u e pensava. Seus críti cos não estavam convictos de q u e conseguiu essa façanha. D o lado da esquerda, os deístas e os seguidores de K ant e de H egel consideravam o e m p re e n d im e n to de S ch leierm a ch er cristão dem ais, m e sm o q u e tratasse o cristian ism o co m o u m su b co n ju n to da religiosidade universal. Ao to rn ar u in ser h u m a n o o Salvador da hum an id ad e na história, S chleierm acher caiu n o “escândalo da particularidade”, en q u a n to q u e o grande filósofo alem ão do ilu m in ism o , G. E. Lessing havia decla rado q u e as verdades universais não po d em ser fundam entadas em eventos h istó ri cos particulares. D o lado da direita, seus críticos cristãos achavam q u e Schleier m ach er era m u ito radical na reinterpretação da fé cristã su b v erten d o -a à cultura
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m o d ern a. U m a acusação freq ü en te era q u e ele a havia to rn ad o in teiram en te subje tiva ao d efin ir a teologia co m o reflexo da experiência m ais d o q u e a revelação his tórica e objetiva das Escrituras.
Albrecht Ritschl e a busca da essência do cristianismo Se existe u m teólogo cujo n o m e está m ais estreitam en te ligado à teologia p ro tes tante liberal, este é A lbrecht Ritschl. N as duas últim as décadas d o século xix e nas duas prim eiras décadas do século xx, a teologia liberal foi freq ü en tem en te cham a da “ritschlism o ”. A lbrecht R itschl levou um a vida notavelm ente tranqüila de 1822 a 1889. E n sin o u teologia sistem ática nos últim os vinte e cinco anos de sua vida na U niversidade de G õ ttin g en na A lem anha e to rn o u -se in térp rete m u n d ialm e n te fam oso da teologia p ro testante na era m oderna. Sua obra-p rim a foi o tratado de três volum es A doutrina cristã da justificação e da reconciliação, publicado em partes de 1870 a 1874. Seu tra d u to r e e d ito r na língua inglesa, o teólogo escocês I I. R. M ackintosh, co m en to u : “D esde a publicação de Christliche Glaube [.4 f é cristã] de S chleierm acher em 1821, n u n ca um a obra dogm ática deixou um a m arca tão p ro funda com o essa no p en sam en to teológico da A lem anha e do m u n d o in teiro ”.13 U m a geração inteira de teólogos protestantes foi treinada na teologia de R itschl. U m dos propósitos de Ritschl era livrar o cristianism o da ciência. P or “ciência” não se referia so m en te às ciências naturais, m as a q u alq u er disciplina objetiva que lidasse com “fatos”. O teólogo de G õ ttin g en acreditava q u e a teologia e a religião cm geral eram d istintas da ciência — conceito to talm en te d iferen te do projeto m edieval de estabelecer a teologia co m o a “rainha das ciências”. D uas estratégias cum p ririam a tarefa ex trem am ente im p o rtan te de desvincular a teologia da ciência. P rim eiro, R itschl acreditava e argum entava q u e as proposições religiosas, inclusive as d o u trin as cristãs, eram co m p letam en te diferentes das proposições científicas. A ciência lida com fatos e usa a linguagem da afirm ação dos fatos. A religião lida com valores e usa a linguagem do ju lg a m e n to de valor. As duas precisam ser separadas. S egundo o jargão filosófico, elas são “jo g o s de linguagem ” co m p letam en te d iferen tes. O segundo passo, estreitam ente vinculado ao anterior, para desvincular a reli gião da ciência m o d ern a, seria descobrir q u e a essência verdadeira d o cristianism o é co m p letam en te com patível com a cosm ovisão m oderna. Ju n tas, as duas estraté gias m etodológicas para transform ar e reco n stru ir a teologia cristã form am o âm a go do ritschlism o, que por sua vez é o âm ago da teologia protestante liberal. Sob a influência da filosofia de Im m anuel Kant, R itschl acreditava ter d escober to o m o d o certo de criar um a teologia protestante to talm en te m o derna. Traçou um a distinção en tre dois tipos de proposições o u alegações da verdade: ju lg a m e n to de fatos e ju lg a m e n to de valores. O s ju lg am en to s de fatos são declarações a respei to da realidade objetiva que podem , de algum a form a, ser testadas. São teóricos e
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m o ralm en te n eu tro s. A pessoa q u e faz u m ju lg a m e n to de fatos não precisa assum ir pessoalm ente ou m o ralm en te n e n h u m co m p ro m isso para estar certa. U m exem plo desse tip o de ju lg a m e n to seria “o m u n d o é re d o n d o ”. O ju lg a m e n to de valores, p o r o u tro lado, exige envolvim ento pessoal e c o m p ro m e tim en to . A pessoa n u n ca é n eu tra q u an to faz u m ju lg a m e n to de valores. U m exem plo desse tipo de declara ção seria “D eu s é a m o r”. Essas duas afirm ações são de o rd em inteiram en te dife rente, seg u n d o Ritschl. A essência d o liberalism o de Ritschl en co n tra-se n o fato de ele ter relegado todas as afirm ações p u ra m e n te religiosas, inclusive as declarações q u e perfazem a teologia cristã, ao âm b ito dos ju lg am en to s de valores. E m bora reconhecesse q u e é im possível desvincular to talm en te as duas o rdens de linguagem , R itschl entendia que elim in ar toda a confusão e conflito com a ciência era a chave para to rn a r m o derna a teologia. A teologia não se interessa pelo m esm o tipo de coisa q u e a ciência. A ciência visa c o n stru ir u m sistem a de fatos q u e descrevam , de m o d o exato e o bje tivo, o m u n d o físico. A teologia pro cu ra c o n stru ir u m sistem a de ju lg a m e n to s de valores, baseado exclusivam ente na influência de D eus na vida das pessoas e no valor dessa influência para o bem m aior das pessoas. A teologia não se interessa pelo co n h e cim en to científico. Interessa-se, até certo po n to , pelo co n h e cim en to histórico, m as so m en te d en tro dos lim ites necessários para estabelecer os valores ensinados p o r Jesu s e seus discípulos. Q u a n d o Ritschl com eçou a d eterm in a r a verdadeira essência do cristianism o, já tin h a resolvido q u e não podia ser algum a verdade científica o u m etafísica q u e fosse acessível a todos. Tais verdades sem pre poderiam ser derrubadas pelos ataques da pesquisa m o d ern a. A essência precisa ser u m ju lg a m e n to de valores ou u m c o n ju n to deles. R itschl acreditava ter en c o n trad o a essência n o ideal de Jesu s d o “reino de D e u s”. M as esse ideal, seg u n d o R itschl, não dizia respeito a idas e vindas sobre naturais, m ilagres terrestres o u celestes, ju íz o s o u céu e inferno. O rein o de D eus é a u nidade ideal da h u m anidade, organizada segundo o am o r na história da h u m a n id ad e.14 Esse rein o é o su m o b em de D eus e da h u m an id ad e e o interesse exclusi vo da teologia. C o m o Kant antes dele, Ritschl quase red u ziu o cristianism o à m oralidade. Isto é, para ele o âm ago do cristianism o era u m m o d o de vida q u e pouca coisa tem em co m u m com o so b ren atural, m ilagroso 011 dogm ático. A pessoa é “cristã” q u an d o procura estabelecer o re in o de D eus na terra de m o d o relevante, razoável e prático. Para Ritschl, o cristianism o não era um a religião relativa ao o u tro m u n d o , m as u m a religião de transform ação m undial pela ação ética inspirada no am or. A teolo gia não era u m sistem a m etafísico de declarações quase científicas a respeito da realidade objetiva, m as u m c o n ju n to de ju lg am en to s de valores com os quais a pessoa se co m p ro m e te para edificar o re in o de D eus.
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U m exem plo dessa transform ação de declarações religiosas e teológicas é a in te rp r e ta ç ã o d e R its c h l p a ra a d iv in d a d e d e J e s u s . D a m e s m a fo rm a q u e Schleierm acher, Ritschl rejeitava a cristologia clássica de C alcedônia, das duas na turezas de C risto. Explicou que, q u an d o os cristãos afirm am q u e Jesu s é D eus, estão fazendo u m ju lg a m e n to de valor sobre a vida dc Jesus, em relação a D eus q u an to em relação à hum anidade. Jesus foi cham ado para a “vocação” q u e D eus Pai lhe deu de ser a incorporação perfeita do rein o de D eus en tre os seres hu m an o s e a cu m p riu com perfeição. O s cristãos confessam q u e Jesu s e “D e u s” p o rq u e essa vocação vitalícia possibilitou a conquista parcial d o reino de D eus na história. Mas, segundo Ritschl argum entava, Jesu s não preexistia à vida h u m an a na terra em al gum plano celestial, m as so m en te na m en te de D eus. Assim com o a teologia de Schleierm acher, a de R itschl não pode co n ílitar com a ciência, n em seq u er n o sentido m ais am plo do term o . C o m o p rotestantism o liberal, a teologia p erd eu a categoria científica. Passou a ser vinculada m ais estreita m en te à espiritualidade e m oralidade. A lguns d iriam q u e ela se to rn o u m era su b d i visão delas. A vantagem é q u e os cristãos já não teriam q u e tem er as conclusões mais recentes da ciência, q u e r no tocante ao sistem a solar, co m o aconteceu no célebre conflito en tre G alileu e a Igreja C atólica, q u e r n o tocante à origem das espécies, co m o aconteceu no conflito en tre D arw in e os teólogos cristãos conser vadores. O s liberais reco n stru íram a teologia cristã em to rn o da “essência” recém descoberta (seja qual for) de tal m aneira q u e n u n ca pudesse ser afetada p o r novas conclusões científicas. A desvantagem , é claro, era a subjetivação quase com pleta da teologia cristã. Agora, ela trataria da experiência, q u e r a consciência de D eus segundo S chleierm acher o u a experiência m oral d o reino de D eus segundo Ritschl, com o o su m o b em da hum anidade. C o m R itschl, a teologia já não lidava com fatos, m as so m en te com valores. As crenças tradicionais q u e pudessem conflitar com a m od ern id ad e, com o as do nascim ento virginal, da natureza de Jesus, dos m ilagres e da segunda vinda, o m u n d o dos anjos e dos dem ô n io s e d o céu e do infern o , foram p au latinam ente relegadas ao passado da antiga teologia p o r descui d o ou pela reinterpretação radical. Por o u tro lado, pelo m enos agora n in g u ém m ais seria q u eim ad o na fogueira, com o Serveto em G enebra, p o r q u estio n ar d o u trin as ortodoxas. M u ito pelo contrário. Assim q u e os teólogos p rotestantes assum iram o co n tro le dos sem inários e das faculdades de teologia, os estudiosos q u e insistiam em en sin ar co m o fato d o u trin as ortodoxas eram fre q ü e n te m e n te considerados obscurantistas antiquados e expulsos.
Os temas comuns da teologia liberal A n terio rm en te, neste capítulo, identificam os um a essência da teologia protestante liberal: o re co n h ecim en to m áxim o das reivindicações da m o d ern id ad e em um a
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estru tu ra cristã. O u seja, pensadores p rotestantes liberais, co m o S chleierm acher e Ritschl, não estavam interessados em ser deístas, unitaristas, livres-pensadores ou pesquisadores espirituais ind ep en d en tes. E ram h o m en s da igreja, q u e pregavam , celebravam os sacram entos e ensinavam teologia sistem ática. Prezavam a Bíblia, ainda que negassem sua inspiração verbal e inerrância. P rocuravam centralizar-se em C risto e preservar a crença de que, em certo sentido, Jesu s C risto é o Salvador do m u n d o . A creditavam em u m D eus de am or, pessoal e envolvido, q u e revela a si m esm o, e não lim itavam a teologia ao q u e a razão h u m an a a u tô n o m a pode desco brir. C o n tu d o , iniciavam seus e m p re en d im en to s teológicos com a pressuposição de q ue a pessoa não deve optar en tre ser cristã ou m oderna. Ela deve ser am bas, na m esm a proporção. Isso significaria que, assim co m o a verdade cristã se co n fro n ta com a m o d ern id ad e c a transform a (Jesus é S en h o r), a m o d ern id ad e se co n fro n ta com o cristianism o tradicional e o transform a (o dogm a das duas naturezas de Jesu s já não é sustentável d en tro da cosm ovisão m oderna). A lém de reco n h ecerem a m o d ern id ad e co m o fonte originária e n o rm a a u to ri zada da teologia cristã, os pensadores protestantes liberais a partir de S chleierm acher sustentavam três tem as principais q u e condicionavam suas reflexões teológicas: a im anência divina, a m oralização do dogm a e a salvação universal da raça hum ana. A influência de H egel ofuscou a d o u trin a de D eus adotada pela teologia liberal. Q uase todos os pensadores protestantes liberais do fim d o século xix e início do século xx enfatizavam a co n tin u id ad e de D eus e da natureza de form a q u e não raro lem brava o pan teísm o ou, pelo m enos, o pan en teísm o (a m utu alid ad e e n tre D eus e o m u n d o ). N a m elh o r das hipóteses, a teologia liberal parou de re d u z ir D eus ao espírito m u ndial universal” e afirm o u a natureza pessoal de D eus. M as a re p resen tação da h u m an id ad e e da natureza co m o um a espécie de extensão de D eus p erm a neceu 110 seg u n d o o u até m esm o no p rim eiro plano do p en sam en to liberal. A idéia de D eus ser “to talm en te d iferen te”, u m a diferença qualitativa infinita e n tre D eus e o m u n d o , co n fo rm e proclam ado p o r filósofos e teólogos antiliberais, co m o o di nam arquês S eren Kierkegaard, era anátem a para os teólogos liberais. U m a m etáfo ra bastante usada p or alguns pensadores liberais para descrever o relacionam ento en tre D eu s e os seres h u m an o s era a de um a baía rodeada p o r u m a grande extensão de água. A baía é d istinta d o oceano ou do m ar, m as é feita da m esm a m atéria. D a m esm a form a, espiritu alm ente, a h u m an id ad e é u m a extensão de D eus, em b o ra D eus não se restrinja a ela. O segundo tem a co m u m era a m oralização d o dogm a. Influenciados p o r Kant, os pensadores p ro testantes liberais insistiam em rein te rp reta r todas as d o u trin as e dogm as do cristianism o em term o s éticos e m orais e aquelas q u e não pudessem ser rein terp retad as eram então desprezadas o u m esm o to talm en te descartadas. A d i vindade de C risto podia ser reduzida à linguagem m oral co m o expressão de sua
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influência m oral. Ele trouxe o reino de D eus para a história social h u m an a com o u m ideal. M as, para m u ito s liberais, a trindade não podia ser m oralizada assim. Eles não p erceberam sua relevância para a co m u n id ad e e p o r isso a ignoraram totalm ente. O terceiro tem a co m u m era a salvação universal da raça hum ana. O q u e faltava quase inteiram en te ao protestantism o liberal era o re co n h ec im e n to do pecado ra dical e do m al, do ju íz o final, da ira divina e do inferno. Este ú ltim o era in terp reta do co m o u m estado de consciência n o qual os seres h u m an o s se alienam de D eus e do reino de D eus p o r suas próprias decisões e ações. N ã o se trata tanto de D eus os julgar, m as de eles ju lg arem a si m esm os.
O legado da teologia protestante liberal U m dos grandes in térpretes e responsáveis pela popularização da teologia protes tante liberal foi A d o lf H arnack (1851-1930), q u e escreveu O que é cristianismo?. H arnack era u m intelectual alem ão em in en te q u e ensinava história eclesiástica e teologia histórica na U niversidade de B erlim . D e m uitas m aneiras, foi sucessor dc S chleierm acher e de R itschl na liderança do m o v im e n to teológico liberal. T inha livre trânsito n o governo alem ão e redigiu o discurso d o im p erad o r G u ilh erm e de declaração dc guerra contra a França e a G rã-B retanha em 1914. D epois da guerra, o governo alem ão o fereceu-lhe o cargo de em baixador nos Estados U n id o s, m as H arnack recusou a oferta. U m im p o rtan te préd io governam ental em B erlim leva o seu nom e. Sua obra eru d ita m ais in flu en te í o \ A história do dogma, de vários v o lu m es, na qual p ro cu ro u d e m o n strar a heletiização d o pen sam en to cristão antigo e lançou o e m p re en d im en to de redescoberta do evangelho sim ples de Jesu s C risto, rem o v en d o as supostas partes de filosofia especulativa grega dos credos e das fór m ulas de fé. Q u ase todos os jo v en s aspirantes a teólogo e historiadores eclesiásti cos da A lem anha foram alunos dc H arn ack d u ra n te u m ano pelo m enos. Em O que é cristianismo? o grande m estre alem ão de teologia resu m iu a essência ap aren tem en te sim ples d o cristianism o a três grandes idéias apresentadas por J e sus, cujas m ensagens, segundo H arnack, não falavam dele, m as so m en te de D eus Pai. O p rim eiro princípio básico d o cristianism o autêntico, para H arnack, é o rei no de D eus e a sua v in da.15 Isso não tem n e n h u m a relação com os eventos sobrena turais do fu tu ro , m as apenas com “o governo de D eus no coração dos in d iv íd u o s”. A segunda das três idéias básicas do evangelho d o n t é D eus Pai e o valor infinito da alm a. S egundo H arnack, Jesus não fazia n e n h u m a distinção e n tre o papel de D eus co m o Pai dos crentes e com o Pai dos incrédulos. D eus é Pai da h u m an id ad e e cada alm a tem valor e apreço infinitos diante de D eus, o q u e nos to rn a a todos irm ãos e irm ãs. Esse conceito às vezes é expresso co m o a paternidade de D eus e a fraternidade dos h o m ens. F inalm ente, segundo H arnack, Jesu s ofereceu a ju stiç a
A teologia liberal ajusta-se à cultura m oderna
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suprem a e o m an d am e n to do am or. P or “ju stiç a su p re m a” referia-se à ju stiç a ce n tralizada no am o r e não a sim ples preservação legalista da lei. Para H arnack, essas três idéias religiosas ju n ta s form am o “âm ago” d o cristianism o au tên tico e o resto é “casca”, q u e deve ser arrancada e descartada. A influência de H arn ack chegou à A m érica de N o rte , 110 o u tro lado do oceano A tlântico, e aju d o u a desenvolver um a escola de p en sam en to liberal cham ada o e v a n g e lh o so c ia l, c u jo p r o p o n e n te p rin c ip a l e ra o te ó lo g o b a tis ta W alter R auschenbusch. R auschenbusch nasceu na fam ília de u m pastor batista alem ão, professor de teologia em N ova York, em 1861. M o rre u no fim da P rim eira G u erra M u ndial, em 1918, depois de u m a carreira distinta, seguindo os passos d o pai. E nsinou teologia e história eclesiástica p o r m u ito s anos na divisão alem ã d o S em i nário Teológico de R ochestcr, E stado de N o v a Y ork.16 M as o p rim eiro am o r de R au schenbusch foi o evangelho social (com o era cham ado) e, ju n to com o pastor de O h io , W ashington G ladden, e o u tro s, aju d o u a desenvolvê-lo e prom ovê-lo fun d am en tad o , em boa m edida, na teologia de R itschl. A m ensagem de H arnack do “evangelho sim p les” de Jesu s sobre o reino de D eu s na história tam b ém in flu encio u os profetas do evangelho social. A obra m ais im p o rtan te de R auschenbusch foi a ú ltim a q u e escreveu: A theology for the socialgospel [Uma teologia para 0 evangelho social], publicada em 1917. E m bora tenha to m ad o o cuidado de evitar q u alq u er rep ú d io público às crenças d o u trin á ri as fu n d am en tais d o p ro testan tism o , o p rofessor batista liberal re o rien to u to tal m en te a teologia, desviando sua atenção dos dogm as a respeito de realidades sobre naturais para a ética social. As categorias principais dessa teologia eram o “rein o do m al” e o “rein o de D e u s” e a “salvação de seres superpessoais”. C o m essa últim a expressão, R ausch en b u sch referia-se às grandes estru tu ras da vida social q u e assu m em vida própria m u ito m aior e m ais poderosa do q u e os indivíduos q u e nela existem . A sociedade anônim a m oderna, p o r exem plo, é u m “ser superpessoal”, u m a p esso a ju ríd ic a , da m e sm a fo rm a q u e a re p ú b lic a m o d e rn a . S e g u n d o R auschenbusch, C risto veio não so m en te para salvar indivíduos, m as so b retu d o para salvar seres superpessoais:
A salvação dos seres superpessoais se dá pela sujeição à lei de Cristo. O passo fundamental para o arrependimento e para a conversão nas profissões e orga nizações é abrir mão do poder monopolizador e das rendas provenientes da extorsão legalizada e se subm eter à lei do serviço, contentando-se com o pa gamento justo pelo trabalho honesto. O passo correspondente, no caso dos governos e das oligarquias políticas, tanto nas m onarquias quanto nas semidemocracias capitalistas, é submeter-se à democracia genuína. Assim, eles saem do reino do mal e entram para o reino de D eus.17
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As teologias de H arnack e R auschenbusch são exem plos da “m oralização do do g m a” kantiano da teologia liberal. O s grandes tem as da d o u trin a que levaram centenas de anos para se desenvolver são abafados. O cristianism o é praticam ente red u zid o a algum as declarações religiosas sim ples e a u m program a político e eco n ô m ico socialista. O apogeu desse tipo de teologia p rotestante liberal se d eu na década de 1920, especialm ente nos Estados U n id o s. O h o rro r da P rim eira G uerra M undial enfraqueceu o ím peto desse m o v im en to na E uropa. Até m esm o nos Esta dos U n id o s, a teologia passou p o r m udanças dram áticas em reação às dificuldades das grandes guerras m undiais, d o holocausto e da neo-ortodoxia. Várias form as novas de teologia liberal surgiram e lhe deram m ais vitalidade e a m antiveram viável em tem pos de m udança. M as, apesar dos altos e baixos, a teologia liberal clássica deixou u m legado p erm an en te e poderoso de teologia p rotestante tradici onal. Esse legado pode ser percebido sem pre q u e e q u an d o os teólogos expressam desdém pela d o u trin a e pela experiência cristã individual com D eus e, em vez disso, enfatizam a educação ética e o ativism o social. Ele pode ser percebido sem pre q u e “o p en sam en to m o d ern o e a experiência” são elevados à n o rm a básica da teologia e q u an d o D eus é red u zid o a um a força espiritual im anente em todas as coisas. U m a form a co n tem porânea im p o rtan te da teologia liberal q u e se encontra na tradição de H egel e de S chleierm acher é a “teologia do processo”. N a tradição dc K ant e R itschl en c o n tram -se um a rica variedade de teologias da libertação e de teologias políticas. A teologia protestante liberal clássica expandiu-se triu n fan te pelos sem inários e pelas principais d en o m inações da E uropa e da A m érica d o N o rte , com p o d er e influência tão tran sfo rm adores q u e m u ito s pensadores e líderes protestantes tradi cionais foram apanhados de surpresa. M as um a forte reação a esse m o v im en to refo rm ad o r radical era inevitável e surgiu em sua form a m ais intensa sob o no m e de “fu n d am en talism o ” nas prim eiras décadas do século xx.
33 A teologia conservadora consolida as categorias tradicionais
D e p o i s d o g ran d e im p acto da teologia p ro te sta n te liberal, h o u v e um a forte reação dos teólogos co m p ro m e tid o s com as form as d e o rto d o x ia p ro testan te . Por volta de 1910, o gran de teólogo e estadista holandês, A braham K uyper (18371920), declarou: Não há dúvida [...] de que o cristianismo está sendo ameaçado por grandes e graves perigos. Dois sistemas de vida estão se degladiando em um combate mortal. O modernismo certamente construirá um m undo só seu com base no homem natural e construirá o próprio homem com base na natureza; enquanto que, por outro lado, todos aqueles que reverentemente se ajoelha rem diante de Cristo e o adorarem como o Filho do Deus vivo e como o próprio Deus tentarão salvar a “herança cristã”. Essa é a luta que acontece na Europa, na América do N orte e que se dá em defesa dos princípios na qual minha própria pátria está empenhada e à qual eu mesmo estou dedicando todas as minhas energias há quase quarenta anos.1 Vários o u tro s pensadores e líderes protestantes pensavam da m esm a form a, que a teologia liberal estava am eaçando d e stru ir o cristianism o au tên tico e até m esm o a “herança cristã” na cu ltu ra ocidental. D e n tre a ortodoxia pro testan te surgiu u m a teologia m ilitante em reação à teolo gia liberal e ao pensam ento m o d ern o em geral q u e foi cham ada de fundam entalism o. E m bora procurasse sim plesm ente preservar a teologia pro testan te clássica e im pe dir a acom odação liberal ao pen sam en to m o d ern o , o fu n d am en talism o acabou de senvolvendo u m a nova form a de teologia protestante racionalista, separatista e ab solutista. Isto é, a teologia fundam entalista plen am en te desenvolvida p ro d u z iu sis tem as absolutos de proposições d o utrinárias in tern a m e n te coerentes q u e devem ser aceitos na íntegra, sem q u estio n am en to , o u to talm en te rejeitados. Q u a lq u e r pessoa q u e q u estio n asse u m ú n ic o p o n to d o sistem a d o u trin á rio p ro te s ta n te
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fu ndam entalista seria acusada de heresia ou m esm o de apostasia. E ra um a reação exacerbada típica do fu n d am en talism o extrem o ao relativism o d o u trin ário da teo logia liberal.
Fundamentalismo: contestado no termo e na categoria Já n o ta m o s c o m o m u ito s n o m e s e c a te g o ria s te o ló g ic a s são im p re c is a s e fre q ü e n te m e n te to rcid o s, usados de m an eira errada e im precisa. E o caso de fundamentalismo efundamentalista. O q u e com eçou com o o n o m e de u m m o v im en to teológico que defendia a ortodoxia p rotestante da “acidez da m o d ern id a d e” e da dissolução pela teologia liberal, não raro, é usado co m o te rm o de insulto e desdém para q u alq u er form a fanática e m ilitante de religião. O s estudiosos da religião gas taram m ilhares de horas e de dólares na tentativa de defin ir com exatidão a essência d o fu n d am entalism o, p o r causa do m au uso generalizado d o te rm o pela m ídia e pelas pessoas co m u n s.2 A qui, o term o será usado em seu sentido h istórico-teológico. Farem os o possível para evitar o uso do term o da m aneira co m o os jornalistas geralm ente fazem , para descrever e m arginalizar u m a crença religiosa apaixonada e ardente. M uitas pessoas, cristãs e não cristãs, são crentes vigorosos e fervorosos na religião e na espiritualidade e não são fundam entalistas. O fun d am en talism o ge n u ín o é um a form a d istinta de pro testan tism o o rto d o x o d o século xx definida, em grande parte, pela reação às teologias liberal e m o d ern ista q u e estudam os n o capí tu lo anterior.3 Se a essência da teologia protestante liberal era o reco n h ecim en to m áxim o das reivindicações da m o d ern id ad e pelo p en sam en to cristão, a essência da teologia fundam entalista pode ser descrita co m o o reco n h ecim en to m áxim o das reivindica ções da ortodoxia protestante contra a m odernidade e a teologia liberal. O âm ago de sua postura e abordagem é o q u e se cham a de “conservadorism o m áxim o” da teolo gia cristã. Sua am bição é defender a inspiração verbal e infalibilidade (inerrância) absoluta da Bíblia, bem co m o todas as doutrinas tradicionais da teologia ortodoxa protestante q u e consideravam sob ataque pelo p en sam ento m o d ern o e pela teologia liberal. D e 1910 a 1960, aproxim adam ente, o em p re en d im en to fundam entalista to r n o u -se cada vez m ais intenso e separatista, q u an d o diversos líderes fundam entalistas discordaram a respeito dos “fundam entos da fé” e dos graus de separação da religião secular e m odernista. N o início do m ovim ento, os fun d am en to s da fé que precisa vam ser defendidos eram razoavelm ente poucos e bastante óbvios. Já nas décadas de 1940 e 1950, m u ito s líderes fundam entalistas reconhecidos acrescentaram à lista das doutrinas essenciais o pré-m ilen arism o (a crença no reino de C risto na terra p o r exatam ente mil anos depois da segunda vinda) e o criacionism o da terra jo v em (a crença q ue D eus criou toda a natureza e tu d o o q u e nela existe há m enos de dez m il anos, em exatam ente um a sem ana de vinte e q u atro horas diárias).
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H istórica e teologicam ente, é errado cham ar de fundam entalism o qualquer coisa antes da ascensão da teologia protestante liberal. Esse m ovim ento é a reação do sécu lo xx ao cham ado liberalism o. E o contraponto deste. Sem a teologia liberal, a o rto d o xia protestante existiria, m as o fundam entalism o não. Além disso, é histórica e teolo gicam ente incorreto cham ar “fundam entalista” qualquer pessoa que acredite vigoro sa e fervorosam ente nas doutrinas religiosas ou que as prom ove pelo evangelismo. Finalm ente, é falso o estereótipo que retrata todos os fundam entalistas com o pessoas incultas, desprivilegiadas social e econom icam ente, m arginalizadas pela sociedade m oderna. M uitos fundam entalistas são cultos e afluentes, e sem pre foi assim. H istórica e teologicam ente, p o rtan to , os fundam entalistas são cristãos q u e d e fendem todo u m elaborado sistem a de d o u trin as bastante conservador dos ataques e das influências consideradas m odernistas e liberais e que, em geral, exigem e praticam a exclusão de cristãos q u e sejam culpados de participar o u p erm itir o m odernism o teológico. N a m aioria das vezes, os fundam entalistas insistem na crença da inspiração sobrenatural e verbal da Bíblia, na inerrância absoluta com relação às questões teológicas, históricas e naturais, na h erm en êu tica bíblica literalista e na forte oposição a to d o e q u alq u er desvio desses princípios o u crenças fundam entais do pro testan tism o conservador. U m historiador fundam entalista desse m o v im en to d o fim d o s é c u lo xx d e s c re v e u o m o v im e n to da s e g u in te m a n e ira : “O fu n d am en talism o histórico é a expressão literal de todas as afirm ações e atitudes da Bíblia e a exposição violenta de todas as afirm ações e atitudes não bíblicas”.4
Antecedentes históricos e precursores do fundamentalismo E m várias ocasiões da história da teologia cristã tivem os u m breve en c o n tro com a ortodoxia protestan te u m m o v im en to bastante am plo e geral q u e é m encionado, quase que jo co sam en te, co m o “en rijecim en to das categorias” da teologia p ro tes tante depois da p rim eira geração de reform adores). A m arca da ortodoxia p ro tes tante foi o re to rn o e a prática d o m éto d o escolástico de teologia em seu p en sam en to e a forte ênfase às Escrituras co m o verbalm ente inspiradas, proposicionalm ente infalíveis e m esm o inerrantes. U m ó tim o exem plo, em bora u m tan to exagerado, da teologia ortodoxa p rotestante é o influente teólogo reform ado ítalo-suíço Francis T urretin (1623-1687), cuja obra de três volum es Institutioties theologiae elenchiticae rep resenta “o tratado m ais sistem ático e eficiente sobre teologia d o u trin ária do g ru p o refo rm ad o depois das Imtitutas de C alv in o ”.5 O m o d ern o histo riad o r de te ologia Ju sto G onzález explica q u e T urretin foi u m “expoente típico da ortodoxia pro testante [...] no estilo escolástico e na m etodologia” p o rq u e “nele, m ais um a vez, en co n tram o s as distinções interm ináveis e sutis, os c o n to rn o s rígidos, a siste m atizaç ão rig o ro s a e a a b o rd a g e m p ro p o s ic io n a l c a ra c te rístic o s d o fim d o escolasticism o m edieval. P o rtan to , há m otivo m ais q u e suficiente para cham ar
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T u rretin e seus co n tem p o rân eo s de ‘escolásticos pro testan tes’”.6 T urretin adm itiu enfaticam ente a inspiração verbal em toda a E scritura de form a bastante extrem a, que quase a considerava um a form a de transcrição do E spírito Santo. U m a das grandes curiosidades da história da teologia cristã é a alegação de T urretin de que até os p on to s vocálicos do texto hebraico n o a t são div in am en te inspirados e, p o r tanto, inerrantes! N a época de T urretin, os estudiosos já sabiam q u e o texto origi nal das Escrituras hebraicas não co n tin h a p ontos vocálicos. Eles foram acrescenta dos pelos estudiosos ju d aico s cham ados m assoretas no século vi d .C . Para proteger a Bíblia da am bigüidade q u an to ao seu co n teú d o e significado exatos, o teólogo escolástico arg u m en to u q u e o texto m assorético d o AT é inspirado e in erran te e não precisa de n en h u m a correção baseada em m anuscritos hebraicos m ais antigos.7 A ortodoxia protestante escolástica de T urretin firm o u os alicerces do estudo teológico e do preparo m inisterial no influente Sem inário Teológico de P rinceton, onde, no século xix, a m aioria dos m inistros presbiterianos norte-am ericanos se m atriculou. A teologia sistem ática de T urretin em latim era leitura obrigatória até p erto do fim daquele século e para m uitos professores e alunos fornecia não so m en te um provável conceito da teologia correta, m as tam bém a única e exclusiva teolo gia verdadeira da d o u trin a protestante. U m a dinastia de erudição teológica conheci da com o “escola de teologia de P rin ceto n ” cresceu a partir dos ensinos de Turretin. Ela era exemplificada por Archibald Alexander, pela equipe de teólogos presbiterianos conservadores form ada por pai e filho, C harles H odge e Archibald A lexander H odge, e por seu sucessor B enjam im B reckinridge W arfield. D u ran te o reinado teológico em P rinceton de 1812 a 1921, a dinastia A lexander-H odge-W arfield de teologia de P rinceton traduziu o escolasticism o e a ortodoxia protestantes d o tipo T urretin para o contexto n o rte-am ericano do século xix e criou os alicerces teológicos e d o u trin á rios que dariam origem ao fundam entalism o no século seguinte.8 D os q u atro p recursores de P rinceton d o fun d am en talism o , o m aior, sem dú v i da, foi C harles I lodge, q u e nasceu na N ova Inglaterra, em 1797, em u m a família presbiteriana conservadora na qual a C onfissão de Fé de W estm inster e o C atecis m o M e n o r eram reverenciados da m esm a form a, ficando atrás apenas da própria Bíblia. H o d g e estu d o u para o m inistério presbiteriano n o S em inário de P rinceton, ten d o co m o professor A rchibald Alexander, e sua principal m atéria de estudos era a teologia sistem ática de T urretin. D epois de se form ar, o recém -o rd en ad o m in is tro presbiteriano ap ro fu n d o u seus estudos em várias universidades da Europa. As sistiu às preleções de S chleierm acher em B erlim e im ergiu cm H egel em T ü b in g en . Esses en co n tro s co n v en ceram -n o da fraqueza da nova abordagem liberal da teolo gia protestan te e da força da sua própria herança na ortodoxia protestante. N a b u s ca do fu n d am en to filosófico apropriado à sua teologia, H o d g e descobriu o realis m o escocês d o b o m senso de T h o m a s R eid (1710-1796), q u e ev o lu iu para o
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em p irism o de J o h n Locke, to m an d o um ru m o não idealista e não cético, contrário ao seu com patriota escocês m ais influente, D avid I lu m e (1711-1776). Reid sus tentava que “todos os seres h u m an o s norm ais são dotados p o r D eus de várias facul dades. Essas faculdades proporcionaram observações e idéias a respeito d o m u n d o nas quais os seres h u m an o s p o d em confiar. As pessoas precisavam apenas re u n ir e classificar as evidências e generalizar cuidadosam ente esses ‘fatos’”.9 1 Iodge aceitou o conceito de Reid do co n h ecim en to e rejeitou as opiniões em voga, m ais céticas, de H u m e e Kant, bem co m o a teoria m ais especulativa e racionalista de H egel. O realism o escocês do b om senso, com H odge, to rn o u -se a filosofia “o rtodoxa” da teologia de P rin ceto n e os fundam entalistas posteriores tam bém o adotaram . H o d g e aplicou a epistem ologia de R eid à teologia sistem ática e te n to u revivificar a tradição da teologia co m o ciência racional em sua base. Em sua extensa obra de três vo lu m es Teologia sistemática (1871-1873), H odge explicou o m éto d o apropriado da teologia de coletar e organizar os dados da revelação divina nas E scrituras, assim com o a ciência m o d ern a colhe e organiza os dados da natureza: “A Bíblia é para o teólogo o q u e a natureza é para o cientista. E seu arm azém de fatos e o m éto d o de verificar o q u e a Bíblia ensina é o m esm o q u e o filósofo natural adota para verificar o q ue a natureza en sin a”.10 H odge apresentou um sistem a rigorosam ente coerente de teologia R eform ada conservadora, com base em um a Bíblia infalível e verbal m en te inspirada, q u e tratou co m o u m c o n ju n to de proposições (declarações da verdade) d iv in am en te inspiradas, q u e só aguardavam para serem organizadas por seres h u m an o s racionais, orientados e ilum inados pelo E spírito Santo. E m bora negasse q u e os autores h u m an o s das E scrituras fossem m eras “m áq u i nas” q u e escreveram m ecanicam ente sob inspiração divina, H odge insistia q u e a inspiração e a infalibilidade se estendem às próprias palavras da Bíblia e não apenas às idéias. E nalteceu o aspecto divino das E scrituras e m in im izo u o aspecto h u m an o q u an d o escreveu q u e “é com preensível q u e q u alq u er m en te se encha de te m o r ao co n tem p lar as Sagradas E scrituras repletas de verdades sublim es, q u e falam com autoridade cm n o m e de D eus e p erm an ecem tão m ilagrosam ente livres do toque po lu id o r dos dedos h u m a n o s”.11 P or o u tro lado, I lodge recu so u -se a levar a sério as objeções à inspiração verbal e inerrância sobrenatural das Escrituras, q u e se ba seavam em algum as discrepâncias não esclarecidas. A dm itiu ind iretam en te a exis tência delas, m as declarou q u e elas “não fornecem fu n d a m e n to racional para negar a infalibilidade [das E scritu ras]” e “os cristãos devem ter o d ireto de ignorar essas objeções”.12 Sem dúvida, portan to , H odge ap resen to u u m dos conceitos m ais su blim es e absolutos de toda a história da teologia cristã sobre a autoridade exclusiva das E scrituras. Indo co ntra o q u e considerava um a restrição dessa autoridade pela teologia p ro testan te liberal q u e preferia a experiência e a razão, I Iodge elevou a d o u trin a das E scrituras a um a posição destacada sem paralelos até então.
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O s conceitos de H o dge sobre a teologia e a d o u trin a das E scrituras o to rn am u m p recu rso r do fu n d am entalism o do século xx, da m esm a form a q u e sua reação polêm ica contra a teologia protestante liberal. A contribuição de Ritschl ainda esta va para vir, de m o d o q u e a crítica de H odge sobre a teologia liberal se co n c en tro u quase que exclusivam ente em Schleierm acher, cujo pen sam en to H o d g e deplora va, p o r considerar um a influência perniciosa e debilitante ao cristianism o. A cusou a teologia de S chleierm acher de ser tão subjetiva q u e privava o cristianism o de seu co n teú d o d o u trin ário e o reduzia a u m a intuição m ística. C o n tra Schleierm acher, H o d g e declarou: O cristianismo sempre foi considerado um sistema de doutrina. Os que crê em nessas doutrinas são cristãos, os que as rejeitam são, segundo o juízo da igreja, pagãos ou hereges. Se nossa fé é formal ou especulativa, o nosso cristi anismo também é; se é espiritual e viva, também é a nossa religião. Mas ne nhum erro pode ser maior do que separar a religião da verdade e dar ao cris tianismo um espírito ou uma vida independente das doutrinas que as Escri turas apresentam como os objetos da fé.u
A crítica de H o d g e à S chleierm acher e sua teologia é tão séria q u e chega à c o n denação. E stim u lo u -o a tratar o cristianism o basicam ente co m o o re co n h ec im e n to de u m sistem a de verdades so b ren atu ralm en te reveladas, praticam ente isentas de qu alq u er am bigüidade ou necessidade de correção. O verdadeiro sistem a d o u trin ário de H odge é um a expressão da ortodoxia pro testante clássica e é apresentado de tal m aneira que q u alq u er discordância significa tiva, do todo ou de partes, equivale à heresia ou até m esm o à apostasia. Em sua do u trin a de D eus, H odge enfatizava a m ajestade transcendente de D eus e sua sobe rania. D eus é absolutam ente im utável e controla, de m o d o soberano, toda a n atu re za e a história. N o tocante à eleição, H odge defendia u m a interpretação nitidam ente calvinista, em bora preferisse o infralapsarism o ao supralapsarism o. O arm inianism o é con d en ad o com o um a concessão ao h u m an ism o e tratado com o u m atalho ao liberalism o teológico. E m geral, a teologia de H o d g e é u m a repristinização do escolasticism o protestante dos séculos xvii e xviu. C o n ta-se que o referido professor de P rinceton, pouco antes do fim de sua carreira, declarou ter o rg u lh o de dizer que, em sua adm inistração, ninguém apresentou n em ensinou n e n h u m a idéia nova. A m otivação da abordagem de H odge e dos dem ais teólogos de P rinceton à teologia era u nicam ente garantir c defender a “verdade transm itida de um a vez p o r todas” na ortodoxia protestante e evitar a inovação o u a experim entação teológica. O sucessor de H o d g e n o cargo de professor de teologia didática e polêm ica no Sem inário de P rin ceto n foi B enjam in B reckinridge W arfield, q u e se fo rm o u em
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P rin ceto n e foi alu n o de H odge. W arfield su sten to u e reforçou a forte ênfase que seu m e n to r dava à inspiração divina e à inerrância das Escrituras co m o as doutrinas fundam entais da teologia ortodoxa. E n q u an to ocupava esse cargo em P rin ceto n (1887-1921), a d en o m inação presbiteriana d o n o rte e n fre n to u u m a longa c o n tro vérsia a respeito da n atureza das Escrituras e dos m étodos m ais novos de erudição bíblica conhecidas co m o “alta crítica”. Esse tipo de crítica tentava investigar as E scrituras em p reg an d o m étodos literários e históricos objetivos e, em geral, levava a conclusões q u e questionavam os conceitos tradicionais de autoria, data e c o m p o sição dos livros bíblicos. N ão havia dúvidas q u an to à posição de W arfield q u e era d ecid id am en te co n tra a alta crítica e contra q u alq u er d im in u ição d o alto conceito das E scrituras adotado pela teologia de P rinceton. Em diversos artigos e livros, o sucessor de H odge reiterava e defendia essa d o u trin a e argum entava q u e a falta de fé total na inerrância com pleta dos autógrafos originais da Bíblia (os m anuscritos originais inexistentes) resultaria n o desvio da teologia para o liberalism o e p u ro relativism o, pois, seg u ndo W arfield, “não se pode m odificar n e n h u m dos ele m e n tos essenciais da d o u trin a da inspiração plenária sem su b v erter a confiança na au toridade dos apóstolos co m o m estres da d o u trin a ”14, e a inerrância é u m a caracte rística necessária da inspiração. Para m uitas pessoas, parece su rp re en d en te que n em H odge n em W arfield acha vam q u e a teoria da evolução de D arw in fosse u m a am eaça especialm ente contra a ortodoxia p ro testante. N a realidade, W arfield estu d o u biologia n o en sin o secundá rio e sem pre se consid erou u m crente d o evolucionism o. O bv iam en te, da m esm a form a q u e todos os conservadores, o p u n h am -se à evolução naturalista e considera vam a evolução, caso fosse a verdade, u m recurso q u e D eus u sou na criação.15 Em certos aspectos, os teólogos da escola de P rinceton não previram o fundam entalism o. E m o u tro s aspectos, não som ente o previram , m as tam b ém criaram os alicerces para ele. As principais m aneiras pelas quais eles previram e prepararam o terren o para esse m o v im en to foram : a identificação do cristianism o com a d o u trin a co rre ta, a forte ênfase na revelação co m o verdade objetiva e preposicional transm itida pela inspiração sobrenatural em u m a Bíblia in erran te e as respostas polêm icas à teologia p ro testante liberal e aos m éto d o s de alta crítica aplicados à erudição bíbli ca. E n tretan to , ao co n trário de m u ito s fundam entalistas declarados de um a geração posterior, eram intelectuais de alto nível cultural com am pla e p ro fu n d a consciên cia cultural e co n h e cim en to filosófico, lingüístico e histórico-teológico. A lém dis so, tam b ém eram clérigos q u e se consideravam defensores da grande tradição do cristianism o católico-ortodoxo. O s fundam entalistas posteriores repudiariam boa parte dessa tradição e sustentariam a idéia da apostasia im ediatam ente posterior à era apostólica e da redescoberta do evangelho verdadeiro so m en te com sua própria pregação e dou trin a.
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O movimento fundamentalista C o m o m o v im en to d istinto d o cristianism o protestante, o fun d am en talism o co m eçou p o r volta de 1910. O s estudiosos qu estio n am in term in av elm en te a data e a n a tu r e z a e x a ta s d e s e u s u r g i m e n t o e a té m e s m o a o r ig e m d o n o m e “fu n d am en talism o ”. Q uase todos concordam , no en tan to , q u e a publicação de um a série de bro ch u ras intituladas Thefundamentais [O ifundamentos] em 1910 foi o fator crucial e a provável origem do n o m e do m o v im en to . Inspirados pelos grandes reavivam entos d o evangelista D w ig h t Lym an M oo d y (1837-1899), chocados e h o r rorizados pela influência crescente da teologia liberal e im pulsionados pela o rto doxia p rotestante ressurgente de W arficld e o u tro s, dois afluentes executivos cris tãos patrocinaram a publicação e distribuição gratuita de doze com pilações de e n saios escritos por em in entes estudiosos protestantes conservadores. Thefundamentais foram enviados g ratu itam en te a m ilhares de pastores, líderes denom inacionais, professores e até m esm o a diretores da ACM dos Estados U n id o s. O p rim eiro v o lu m e co n tin h a defesas do teólogo escocês Jam es O r r sobre o nascim ento virginal e de W arfield sobre a divindade de C risto, além da apreciação de u m cônego anglicano canadense à alta crítica da B íblia.16 Thefundamentais exploraram um a fonte de apreensão protestante conservadora e ajudaram a galvanizar a resposta conservadora à teologia liberal e ao evangelho so cial, q ue estavam co n q uistando popularidade e influência. N a década q u e se se guiu, vários grupos cristãos antiliberais form ularam listas de fun d am en to s da fé. Em geral, essas listas de d o u trin as essenciais estavam condicionadas ao liberalism o, pois colocavam n o âm ago da fé cristã as d o u trin as q u e consideravam ameaçadas po r essa teologia. Fato ainda m ais relevante nessa questão é que algum as listas in cluíam crenças nunca antes consideradas doutrinas fundam entais p o r qualquer grupo significativo de cristãos. U m exem plo disso é a crença na volta p ré -m ile n ar de C risto. Além da inerrância da Bíblia, a Trindade, o nascim ento virginal de C risto, a queda da h u m an id ad e n o pecado, a expiação vicária de C risto e sua ressurreição corpórea e ascensão, a crença de que C risto voltaria fisicam ente e encarnado para governar e reinar na terra p o r m il anos antes da ressurreição e do ju íz o final deixou de ser apenas um a opinião sustentada p o r alguns cristãos e foi elevada a “fu n d a m en to da fé” pela Associação C ristã M undial dos F u n d am en to s fundada pelo p rin cipal m in istro fundam entalista W. B. Riley (1861-1947) em 1919. A lguns p ro tes tantes m u ito conservadores inclusive ficaram chocados com isso, pois a ortodoxia p ro testante em geral e a teologia de P rinceton em especial n u n ca apoiaram o prém ile n a ris m o . D e v e -s e p e r d o a r q u e m s u s p e ite q u e R ile y e a lg u n s o u tr o s fundam entalistas estavam sim plesm ente elevando à condição de essenciais algu m as de suas d o u trin as preferidas, que eles sabiam q u e n in g u ém , com opiniões libe rais ou progressistas p o r m ais m oderadas q u e fossem , poderia afirm ar. Já em 1919,
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p o rtan to , em ergia do fun d am en talism o u m a tendência em direção à divisão sectá ria e ao em p reg o de “ch iboletes” (testes) para averiguar se os cristãos perm aneciam totalm en te seguros e im aculados q u a n to à dou trin a. O p rim eiro g ru p o de tam an h o e relevância a cham ar seus m em b ro s “fu n d a m entalistas” foi a Associação dos F undam entalistas fundada em 1920 pelo d ireto r de um a das principais revistas batistas conservadoras cham ada Watchman-Exatniner. C u rtis Lee Laws, n o início, foi m ais m od erad o do que W. B. Riley e p ro c u ro u m an ter o fu n d am en talism o co m o u m m o v im e n to m ais am plo da igreja de preser vação e defesa dos verdadeiros fu n d am en to s da fé. Em 1920 e 1930, n o entanto, fundam entalistas m o derados e m ilitantes aproxim aram -se ao perceber q u e sua ini miga co m u m , a teologia liberal, se fortalecia. N a realidade, a teologia protestante liberal do tipo ritsehliana clássica estava em declínio nessas décadas e era su b stitu ída pela n eo -o rto d o x ia e p o r u m a form a atenuada de liberalism o. A pesar disso, os fundam entalistas consideravam “liberais” todos os m o v im en to s exceto o deles e a n eo -o rto d o x ia inclusive era cham ada p o r alguns deles de “novo m o d e rn ism o ”, p o rq u e a m aio r parte de seus p ro p o n e n te s rejeitava a inerrância da Bíblia. N a década de 1920, o apogeu d o fun d am en talism o prim itivo, o principal teó lo go eru d ito q ue o m o v im en to adotou e que, p o r sua vez, adotou o m o v im en to foi J. G resham M achen (1881-1937). M jc h e n foi alu n o de W arfield n o S em inário de P rin ceto n e lá en sin o u n t de 1906 a 1929. C o m a m o rte de W arfield em 1921, o cetro da liderança da escola de teologia de P rinceton passou para as m ãos de M achen que com eçou a travar batalhas teológicas e eclesiásticas contra o q u e considerava a nova on d a de teologia liberal q u e invadia sua própria d enom inação presbiteriana e todas as principais co rren tes d o pro testan tism o no rte-am erican o . M achen era um legítim o e ru d ito q u e estu d o u o n t e a teologia em algum as universidades alem ãs antes de iniciar sua carreira em P rinceton. Seus o p o n en tes teológicos liberais não conseguiram e n c o n trar n e n h u m a falha em sua erudição e n em d em iti-lo taxandoo de obscurantista d em en te, co m o costum avam fazer com o u tro s fundam entalistas. O livro de M achen Christianity and liberalism [Cristianismo e liberalismo] publicado em 1923 foi um a sensação e n tre o p ú b lic o .17 N ele, o teólogo de P rin ceto n argu m en to u q u e a teologia protestante liberal representava um a religião diferente do cristianism o e q u e seus p ro p o n e n te s deviam ser honestos o suficiente para ad m itilo. A firm ou: “Se fosse concebível u m a situação na qual toda a pregação da igreja fosse controlada pelo liberalism o, que já se to rn o u p re p o n d eran te em m uitas para gens, acreditam os q ue, nesse caso, o cristianism o finalm ente desapareceria da face da terra e o evangelho n u n ca m ais seria p roclam ado”.18 M as M achen foi além de sim p lesm en te afirmar essa tese polêm ica e com eçou a defendê-la com argum entos c o n tu n d en tes, fu n d am en tad o em co n h ecim en to s exaustivos de pesquisas bíblicas, inclusive os m éto d o s m o d ern o s da alta crítica, e da história da teologia cristã.
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U m dos m otivos de o livro de M achen ter provocado tam anha com oção foi o fato de o im p o rtan te com entarista secular, W alter L ippm ann, ter co ncordado com seu principal arg u m en to e desafiado os protestantes liberais e o in flu en te m in istro n o v a-io rq u in o H arry E m erson Fosdick (1878-1969) a rebatê-lo. O s fu n d a m e n talistas consideraram M achen u m herói e seu livro e a acolhida de L ippm ann um a grande vitória. M achen p erm itiu q u e os fundam entalistas o adotassem com o seu po rta-voz eru d ito , em b o ra não se encaixasse to talm en te nos m oldes deles. Apesar de ser um ardente d efensor da ortodoxia pro testan te e da inerrância bíblica, não sim patizava com as idéias pré-m ilenaristas e antievolucionistas cada vez m ais radi cais dos fundam entalistas na década de 1920. C oncordava com H o d g e e W arfield q u an to ao evolucionism o e rejeitava to talm en te o p ré-m ilen arism o , preferin d o o conceito am ilenarista reform ado tradicional do re in o de D e u s 19 em um perío d o no qual m uitos porta-vozes im portantes do m o v im e n to apontavam para D arw in e para o evolucionism o co m o os grandes inim igos da verdadeira fé e incluíam o prém ilen arism o nos fu n d am en to s do cristianism o. O prestígio de M achen crescia e n tre os fu n d a m e n ta lis ta s c o n fo rm e ele se afastava d o g ru p o p rin c ip a l d o presbiterianism o pela forte pressão da ala m ais liberal da hierarquia. Em 1929, foi forçado a sair de sua d enom inação p o r “insubordinação”, cm u m ju lg a m e n to ecle siástico infam e no qual n em seq u er teve o d ireito de se defender. D epois disso, foi considerado m ártir até m esm o pelos fundam entalistas q u e discordavam de suas opiniões a respeito d o evolucionism o e do final dos tem pos. O m o m en to crucial do fun d am en talism o aconteceu em 1925, n o fam oso “caso Scopes do ju lg am en to dos m acacos” em D ayton, estado do Tennessee, im ortaliza do pela peça de teatro de B roadw ay Inherit the wind [O vento será tua herança) que tam b ém serviu de inspiração para dois film es cinem atográficos. U m dos líderes em ergentes d o fu n d am en talism o era o político do Estado de N ebraska, W illiam Jen n in g s Bryan (1860-1925), ex-candidato à presidência dos Estados U n id o s e Secretário de E stado d o presidente W ilson. N o fim de sua carreira política, esse folclórico herói do p o p ulism o do C e n tro -O e s te do país to rn o u -se u m dos p rin ci pais porta-vozes do fundam entalism o e antagonista incansável do “progresso ím pio”. Em 1925, a recém -fu n dada U n ião N o rte-am erican a de D ireitos C ivis (A m erican Civil Liberties U n io n , a c l u ) provocou a prisão de u m professor de biologia de segundo grau cham ado J o h n Scopes, sob alegação de ensinar o evolucionism o, in frin g in d o as leis d o T ennessee. Scopes não tin h a certeza de te r en sin a d o o evolucionism o, m as acreditava q u e essas leis estaduais eram inconstitucionais c qu e o ú n ico pro p ó sito de sua prisão e ju lg a m e n to era levar o caso para o tribunal. O s fundam entalistas cm peso apoiavam essas leis e conseguiram q u e Bryan fosse o célebre p ro m o to r convidado para essa causa. A a c l u co n trato u u m fam oso advoga do crim inalista de C hicago e agnóstico cham ado C larence D arro w para d efen d er
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Scopes. O processo se tran sfo rm o u em u m circo na m ídia e era a prim eira notícia a ser tran sm itid a ao vivo pelo rádio em rede nacional. O jo rn a lista an tifu n d a m entalista, n acio n alm ente fam oso, H . L. M en ck en n arro u o processo, com d eta lhes, em sua u m a co luna de jo rn a l. O resultado d o ju lg a m e n to foi a condenação de Scopes, m as tam b ém a hum ilhação d o fundam entalism o. As respostas de B ryan no banco das testem u n h as de defesa às perguntas de D arro w foram de u m a in g en u i dade constrangedora e D arro w e M encken fizeram B ryan e o ím peto d o fu n d a m e n talism o co n tra o ev o lucionism o p arecerem tolos obscurantistas determ in ad o s a atrasar o relógio cultural aos tem p o s p ré -m o d e rn o s e pré-científicos. C in c o dias depois d o ju lg am en to , B ryan m o rre u em desonra e, p o sterio rm en te, as leis antievolucionistas foram revogadas p o r trib u n ais superiores.20 Antes de 1925, o fu n dam entalism o era u m a força cultural e política a ser levada a sério. T in h a u m a boa o p o rtu n id ad e de fazer recuar a m aré da teologia liberal e de trazer pelo m en o s algum as das denom inações clássicas de volta à ortodoxia p ro tes tante. M u ito s estudiosos, no en tan to , acreditam que, ao adotar o antievolucionism o co m o b an d eira e ao in c lu ir o p in iõ es re lativ am en te secu n d árias, c o m o o p ré m ilenarism o, à sua agenda política e insistir na inerrância absoluta e aliada à um a herm en êu tica literalista, o fu n d am en talism o c o n d e n o u -se à obscuridade teológi ca. Seja co m o for, não há dúvida de q ue, depois de 1925 e especialm ente depois de M ach en sair da Igreja P resbiteriana e de P rin ceto n em 1929 para fu n d a r o utra den o m in ação e sem inário, o fu n d am en talism o e n tro u em u m longo perío d o de retraim en to . O s líderes fundam entalistas d iscutiam e n tre si, não so m en te a respei to de estratégias, m as tam bém de q uestões doutrinárias secundárias e p o rm en o res a respeito do m o d o de vida, d o governo eclesiástico e dos graus de separação. S ur giram vozes im p o rtan tes n o m o v im en to , ho m en s co m o J o h n R. Rice, B ob Jo n es e C ari M cln tire, q u e insistiam na prática da “separação bíblica”: a recusa da convi vência ou cooperação com o u tro s cristãos conservadores q u e convivessem o u co operassem com cristãos não fundam entalistas. N as décadas d e 1940 e 1950, q u a n do o jo v e m evangelista Billy G rah am era u m astro ascendente, esses e o u tro s fundam entalistas extrem ados — seus pró p rio s m en to re s — re p u d ia ram -n o e re jeitara m suas cruzadas evangelísticas p o r causa de sua relação am istosa com m in is tros protestantes não fundam entalistas e católicos ro m an o s.21 A lguns estudiosos do cristianism o n o rte-am eric an o d o século xx arg u m en tari am q u e Rice, Jo n es, M c ln tire e o u tro s fundam entalistas separatistas ultraconservadores rep resen tam u m desvio d o fu n d am en talism o gen u ín o , m ais bem re p re sentado p or M achen e p o r autores eruditos dos ensaios contidos em Thefundamentais, cuja m aioria sim p lesm en te seguia a ortodoxia pro testan te tradicional. N a realida de, po rém , nas décadas de 1950 e 1960, as facções radicais e separatistas d o p ro tes tan tism o n o rte-am erican o lideradas p o r Rice, Jo n es e M c ln tire eram praticam ente
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as únicas q u e se cham avam de “fundam entalistas”. O s defensores m ais m oderados da ortodoxia p ro testan te e os herdeiros do pietism o o rtodoxo adotaram o ró tu lo de “evangélicos” para descrever seu m ovim ento. O c o rre u u m ro m p im e n to definitivo na teologia conservadora no início da década de 1940 q u an d o , então, C ari M cln tire, u m “p resbiteriano bíblico” (conform e se proclam ava) do estado de N ova Jersey que acusava o u tro s protestantes conservadores de se desviarem do fundam entalism o verdadeiro, fo rm o u a organização C oncílio A m ericano de Igrejas C ristãs (Am erican C o u n cil o f C h ristian C h u rch e s, a c c c )* qu e abrangia as igrejas e denom inações fundam entalistas puras e separadas. N o ano seguinte, foi fundada a Associação N acional de Evangélicos (N ational A ssociation o f Evangelicals, n a e ) co m o alter nativa pelo m in istro conservador de B oston, H arold J o h n O ckenga e o u tro s p ro testantes evangélicos q u e estavam fartos d o negativism o crítico e da m entalidade separatista dos principais fundam entalistas. A n a e passou a abranger um grande se g m e n to d o c r is tia n is m o p r o te s ta n te n o r te - a m e r ic a n o c o n s e rv a d o r, co m pentecostais, batistas, cristãos reform ados, e n q u a n to a ACCC caiu na obscuridade. As crenças básicas da m aioria dos evangélicos eram idênticas às da m aioria dos líderes do fu n d am en talism o original. M c ln tire e O ckenga, p o r exem plo, não dis cordavam a respeito dos princípios da d o u trin a cristã. O s p ontos conflitantes en tre os dois grupos, q u e concordavam em m u ito s assuntos, diziam respeito as atitudes para com os cristãos não conservadores e com os católicos ro m an o s e tam b ém para com a cultura, a educação, a ciência e a interpretação bíblica. E n q u an to a m aioria dos q u e se identificavam com os fundam entalistas rejeitavam q u alq u er c o m u n h ão com os católicos ro m anos e até m esm o com os não conservadores m oderados, os evangélicos se m ostravam cada vez m ais dispostos a dialogar e cooperar com eles em alguns em p re en d im en to s sociopolíticos e até m esm o evangelísticos. E n q u an to os principais fundam entalistas insistiam na interpretação m ais literal possível das passagens bíblicas q u e tratav am da o rig e m e d o fim d o s te m p o s (G ê n esis e A pocalipse), os evangélicos p erm itiam m ais latitude na interpretação. A profissão de fé da a c c c e da n a e revelam as diferenças. A da a c c c é m u ito m ais longa e detalhada. N ã o há m u ito espaço para opiniões ou interpretações. Todos os cristãos verdadeiros terão q u e pensar exatam ente da m esm a form a em praticam ente todas as questões de d o u trin a, m o d o de vida, p en sam en to sócio-político e tu d o o m ais. A profissão de fé da n a e é u m a afirm ação básica da d o u trin a pro testan te conservado ra q u e diz pouco o u nada a respeito de fatos nos quais os p rotestantes conservado res trad icio n alm en te d iscordam .22
* N o B ra s il, c o n h e c id o p o r C o n c íc lio d e Ig re ja s E v a n g é lic a s F u n d a m e n ta lis ta s ( N . d o T .).
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Características comuns do fundamentalismo na teologia Pelo esboço h istórico q u e traçam os an terio rm en te, pode-se perceber q u e não será fácil d efin ir com exatidão as características co m u n s do m o v im en to fundam entalista. T udo d ep en d e da fase d o fu n d am en talism o que se p re te n d e tratar e dos líderes fundam entalistas q u e serão tom ados co m o m odelos para to d o o m ovim ento. Tra tarei aqui das características co m u n s d o m o v im en to em duas fases e usarei o ano de 1925 c o m o m a rc o d iv is ó r io . A lé m d is s o , fa re i u m a d is tin ç ã o e n t r e o fu n d am en talism o m o d erado e o extrem ado. A ntes de 1925, o fu n dam entalism o era quase sin ô n im o de reafirm ação e defesa da ortodoxia p rotestante co n fo rm e interpretada pela teologia de P rin ceto n e pelas pessoas p o r ela influenciadas. A obra Christianity and Hberalism de M achen e os ensaios em The fundamentais m elh o r rep resentam a p rim eira fase relativam ente m oderada. D epois de 1925, o m ovi m en to não teve n e n h u m teólogo de notável destaque e passou a focalizar cada vez m ais as questões secundárias da ortodoxia protestante, co m o cam panhas contra o evolucionism o, o co m u n ism o e o ec u m e n ism o e a favor d o dispensacionalism o (qualidade específica da escatologia pré-m ilenarista) e do separatism o. E m outras palavras, na segunda fase surgiu u m fun d am en talism o extrem ista, q u e conseguiu d o m in ar o m o v im en to e se apropriar de seu rótulo. O fu n d am en talism o prim itivo (antes de 1925) foi m arcado pela crença de que os m ales da teologia m o d ern a p rovêm da falta de fé na inspiração verbal so b re n atu ral da Bíblia e em sua inerrância. Sob a influência de W arfield e de M achen, os fundam entalistas descobriram q u e a doença cham ada m o d ern ism o vinha d ireta m en te dessa única infecção e consideravam S chleierm acher responsável p o r tê-la in tro d u zid o na teologia protestante. C o n v en ien tem en te ignorado foi o fato de que, a despeito da c o n tu n d e n te afirm ação de sola scriptura, m u ito s reform adores p ro tes tantes prim itivos e pietistas não ensinavam a inspiração verbal da Bíblia n em sua inerrância m eticulosa.23 S egundo fundam entalistas posteriores, foi a ascensão da teologia p ro testan te liberal que deixou clara a necessidade dessas d o u trin as, que estavam im plícitas e latentes na teologia p rotestante clássica desde o início. Só houve necessidade de ressaltar e enfatizar essas d o u trin as cruciais q u an d o os liberais d e safiaram abertam en te a autoridade das Escrituras. C o m o afirm avam os fu n d a m e n talistas, a inspiração plenária verbal e a inerrância m eticulosa se to rn aram salva guardas necessárias co ntra a perda total da autoridade bíblica. Essa questão nos leva ao segundo grande tem a c o m u m do fun d am en talism o prim itivo: a oposição m ilitante à teologia liberal e m o d ern ista em todas as suas form as. Militante, é claro, não significa “terro rista” n em “violenta”, m as “rigorosa, e lo q ü en te e inexorável” e tam b ém “sem acordos”. M ach en expressou claram ente essa atitu d e q u an d o escreveu, em Christianity and Hberalism:
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Se é para realmente sermos cristãos, portanto, faz uma enorme diferença quais são as nossas doutrinas e não é, de modo algum, irrelevante fazer uma expo sição das doutrinas do cristianismo em oposição aos ensinos do principal rival moderno do cristianismo. O principal rival moderno do cristianismo é o “liberalismo”. U m exame dos ensinos do liberalismo comparado aos do cristianismo demonstrará que em todas as questões os dois movimentos são totalmente opostos. Passare mos, agora, a empreender esse exame.24
A terceira e ú ltim a característica c o m u m do fun d am en talism o prim itivo era a identificação do cristianism o autêntico com o sistem a coerente de proposições d o u trinárias cham ado ortodoxia protestante. O s fundam entalistas prim itivos não n e gavam que é im p o rtan te a experiência pessoal do a rrep e n d im en to e da conversão. M as, p o r causa da am eaça que viam na teologia liberal, enfatizavam a necessidade de aceitar proposições doutrinárias irretocáveis co m o o âm ago essencial e p erp étu o do cristianism o. E n q u an to o lem a de m u ito s pietistas era: “Se seu coração é caloro so, d ê-m e a sua m ão ”, o dos fundam entalistas era: “Se suas crenças são corretas, d ê-m e a sua m ão ”. Eles desconfiavam das experiências e sen tim en to s religiosos, p orq u e os liberais tam b ém podiam alegar tê-los e não havia n e n h u m teste prático para a ortopatia. A ortodoxia, p o r o u tro lado, podia ser m edida. C o m o n e n h u m teólogo liberal afirm aria q u e acreditava de fato n o nascim ento virginal, na expiação vicária, na segunda vinda de C risto e assim p o r diante, os fundam entalistas usavam esses itens co m o testes d o u trin ário s do cristianism o autêntico. A queles q u e não achavam que essas crenças bastariam para d estru ir o liberalism o, acrescentaram , prim eiro , o p ré-m ilen arism o e, depois, a crença na “sem ana da criação” q u e ocor reu apenas alguns m ilhares de anos antes de C risto. O u tro s itens de d o u trin a total m en te estranhos à ortodoxia protestante clássica tam bém foram acrescentados. Pelo m en o s u m a característica c o m u m foi acrescentada na segunda fase do fun d am en talism o (depois de 1925). A lém da crença na m ais rigorosa inerrância bíblica, n o ativism o antiliberal e na afirm ação enérgica da ortodoxia protestante, m u ito s fundam entalistas posteriores defendiam o separatism o bíblico. Trata-se da crença de q u e os cristãos gen u ín o s deviam ter o m ín im o contato possível co m os “falsos cristãos” e suas organizações (igrejas, m inistérios, sociedades). Essa separa ção inclui até m esm o os que se defin em co m o “fu ndam entalistas” ou “evangéli cos”, m as q ue praticam c o m u n h ão , diálogo o u cooperação com cristãos d o u trin a riam en te im p u ro s, p o rq u e “está claro q u e a Bíblia ord en a a separação daqueles qu e ajudam e encorajam q u alq u er tipo de acordo com infiéis”.25 F undam entalistas co m o M cln tire, Rice e Jo n e s debateram a exata natureza e extensão dessa separa ção e chegaram a conclusões u m pouco diferentes, ocasionando a rejeição m útua.
A teologia conservadora consolida as categorias tradicionais
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A lguns d efendiam a “separação secu n d ária”, en te n d e n d o p o r isso “u m ro m p im e n to de relações até m esm o com o u tro s fundam entalistas q u e não eram suficiente m en te m ilitantes na p rópria separação”.26
O legado do fundamentalismo O fundam entalism o foi e continua sendo u m grupo poderoso do cristianism o n o rteam ericano a despeito das várias proclam ações de seu falecim ento. Esse fato é espe cialm ente verdadeiro se caracterizarm os o fun d am en talism o co m o m o v im en to que abrange todos os cristãos protestantes q u e p ro cu ram d efen d er as d o u trin as e opi niões tradicionais d o p ro testan tism o o rtodoxo contra o m o d ern ism o em todas as suas form as e q u e su sten tam q u e o cristianism o bíblico au tên tico inclui a crença na inspiração verbal e in errân cia so b re n atu ral das E scrituras e na h e rm e n ê u -tic a literalista. Se restrin g irm os a definição in clu in d o so m en te aqueles q u e praticam tam b ém algum a form a de “separação bíblica”, nesse caso, a influência d o m ovi m en to en fraq u eceu e en tro u em declínio nas décadas posteriores a 1925. Essa é a distinção, já m encionada, en tre o fu n d am en talism o m od erad o e extrem ado. E n q u an to o tipo m o d erad o está se fortalecendo, o extrem ado parece ter estagnado e até m esm o recuado. Sem dúvida, a principal atração d o fun d am en talism o se en co n tra no nível do cristianism o básico. M ilhares de pastores, congregações e centenas de m inistérios nacionais [nos e u a ] são fundam entalistas de algum a form a. Q uase todas as cidades tê m g ra n d e s e a tiv a s c o n g re g a ç õ e s fu n d a m e n ta lis ta s , p ró s p e ra s liv ra ria s fundam entalistas e, não raro, colégios o u institutos bíblicos fundam entalistas, re lativam ente peq u en o s, m as firm em e n te estabelecidos. N o final do século xx, gran de parte dessas igrejas e instituições o m itiram o títu lo fundamentalista de seus n o m es e m aterial de divulgação. M uitas com eçaram a se afastar d o separatism o rigo roso e adotaram o ativism o político social conservador ao lado de o u tro s p ro testan tes conservadores e, ocasionalm ente, de católicos rom anos, especialm ente em cam panhas em prol da vida hum ana. M uitas dessas igrejas e instituições m ilitan tem en te conservadoras com eçaram a adotar o ró tu lo “evangélica conservadora” na década de 1980, para o grande desgosto dos evangélicos m ais pacíficos q u e saíram do fu n d am en talism o na década de 1940 sob a liderança de m oderados co m o O ckenga. Após 1990, so m en te os p rotestantes conservadores q u e ainda praticavam a “se paração b íb lica” de o u tro s cristãos co n tin u a ra m a se id en tificar co m o fu n d a m entalistas. O s verdadeiros h erdeiros de M achen, de Tlie fundamentais e d o m o vim en to fu ndam entalista prim itivo são n u m ero so s, influentes e estão rapidam ente se to rn an d o parte d o cristianism o n o rte-am erican o tradicional. E m geral, se d e n o m in am evangélicos conservadores. E m bora não exerçam praticam ente n e n h u m a influência na h ierarquia das d en o m inações protestantes liberais27, exercem grande
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influência na vida social, política e religiosa norte-am ericanas p o r m eio de suas próprias instituições, com o a U niversidade Liberty, fundada pelo evangelista e p re gador fun d am en talista na m ídia Je rry Falwell e o m in istério Foctis on the faniily [Enfoque na família], de Jam es D obson, psicólogo evangélico conservador, au to r e locu to r de rádio. Bem poucos teólogos profissionais em tal posição e categoria na E uropa co n tin en tal, na G rã-B retanha ou nos Estados U n id o s se in titu lam fu n d a m entalistas, m as o espírito do fundam entalism o prim itivo se m ostra p resente sem pre que os teólogos consideram q u e a verdadeira essência do cristianism o é um sistem a detalhado de proposições doutrinárias, preciso e irretocável (a ortodoxia protestante), e en ten d e m que sua m issão básica é d efen d er a fé cristã verdadeira da teologia liberal e da alta crítica e ensinam q u e a rigorosa inerrância bíblica é a d o u trina fundam ental do cristianism o evangélico. O u seja, até certo p o n to o fu n d am en talism o subsiste q u an d o o “m áxim o conservadorism o” teológico dom ina. O fu n d am en talism o é só um a das respostas teológicas im p o rtan tes à teologia pro testante liberal. O u tra resposta do século xx já recebeu vários nom es: “teologia dialética”, “n eo -o rto d o x ia” o u sim plesm ente “bartian ism o ”. K art B arth da Suíça e o u tro s principais fo rm uladores e p ro m o to res da neo -o rto d o x ia rejeitavam tanto o pro testan tism o liberal q u an to o fun d am en talism o e ten taram reto rn ar à teologia pu ra da R eform a em u m contexto m o d ern o . A lguns observadores e intérpretes do pen sam en to p ro testante do século xx dizem q u e ele oferece três opções principais, com diferenças consideráveis em cada um a: a teologia liberal, a teologia ortodoxafundam entalista e a n eo-ortodoxia. V oltem os nossa atenção, agora, à história da terceira opção.
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C o m o todos os o u tro s m ov im en to s teológicos considerados nos capítulos an te riores, a n eo -o rto d o x ia é n o to riam en te difícil de ser descrita com exatidão. N e m todos os seus adeptos gostam desse rótulo. M u ito s preferem , sim plesm ente, “nova teologia da R efo rm a” o u a “teologia dialética”. O fu n d ad o r e profeta do m o v im e n to, Karl B arth, basicam ente q ueria resgatar a “teologia da Palavra de D e u s”. E n tre tanto, p o r m ais indefinida e im precisa q u e fosse, essa nova form a de teologia p ro testante claram ente existe co m o u m g ru p o im p o rtan te da teologia m o d ern a e é co n v en cio n alm en te co nhecida, pelo m en o s na A m érica d o N o rte , co m o “n eo orto d o x ia”. O s q u e a p ro m o v eram e fo rm u laram estavam desiludidos com a o rto doxia p ro testan te e com a teologia p rotestante liberal, m as discordavam fo rte m e n te do fu n d am en talism o com relação à Bíblia. A lguns se referiam à Bíblia co m o o “papa de papel” do fu n dam entalism o, por causa da d o u trin a fundam entalista típica sobre a inerrância das Escrituras. Todos os líderes n eo-ortodoxos aceitavam , de certo m odo, os m étodos de estudo bíblico da alta crítica e rejeitavam a herm enêutica literalista. P or o u tro lado, acreditavam q u e a teologia p rotestante liberal tin h a se acom odado dem ais ao espírito m o d ern ista dessa era e com isso havia perd id o o evangelho em sua busca da verdadeira essência d o cristianism o. Teólogos n eo -o rto d oxos, co m o Karl B arth e seu colega suíço E m il B ru n n e r e os irm ãos am ericanos R einhold e H . R ichard N ieb u h r, queriam resgatar os grandes tem as protestantes da depravação hum ana, da graça acim a da natureza, da salvação pela fé so m en te e, especialm ente, da transcendência c soberania de D eus. Para eles, D eus é “inteiram en te o u tro ” e só pode ser co n hecido p o r sua própria Palavra, que não é idêntica às palavras das Escrituras, nem sequer às suas proposições. Para os pensadores neo -o rto d o xos, a “Palavra de D e u s” é a m ensagem de D eus à h u m a n i dade na história de Jesu s C risto. A Bíblia pode se tornar a Palavra de D eus, m as não é o m esm o q ue ela. A Palavra de D eus, assim co m o o p ró p rio D eu s, está acim a de qu alquer objeto o u m esm o da história com o u m todo. E soberanam ente imprevisível
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e v em d o além , no tem p o e d o espaço, para os seres h um anos. A neo-ortodoxia rejeita a teologia natural da teologia liberal, bem co m o a abordagem racional ou experim ental do co n h e cim en to de D eus. D eus só pode ser co n hecido p o r sua Pa lavra e m uitas vezes ela é expressa apenas cm paradoxos. A Palavra de D eus é tran s cen d en te, está até m esm o acim a da Bíblia. A Bíblia é u m instrumento da Palavra de D eus. Ela se torna sua Palavra sem pre q u e D eus decide usá-la para levar os seres h u m an o s ao en c o n tro salvífico consigo. M as ela não é u m c o n ju n to de proposições divinam ente reveladas. A essência da neo-ortodoxia encontra-se em seu conceito distinto da revelação divina. A revelação p ropriam ente dita é a Palavra de D eus com o auto-revelação es pecial de D eus nos eventos e, acim a de tudo, em Jesus C risto. D eus revela a si mesmo e não declarações preposicionais. D eus se revela de maneira especial e não em experi ências hum anas universais im precisas (G efühl de S chleierm acher) e n em na n atu re za o u na história universal. Para os teólogos protestantes neo-ortodoxos, a revelação de D eus aparece com o u m a invasão na história e na experiência hu m an a e nunca é idêntica aos resultados da “busca do h o m em p o r D e u s” e nem às palavras e proposi ções das Escrituras. A “busca do h o m em por D e u s” pela religião natural, pelas reli giões m undiais, espiritualidades e filosofias é, na m elh o r das hipóteses, u m indício da condição caída dos h om ens e da necessidade de revelação e graça transcendentes. A Bíblia é, na m elh o r das hipóteses, o in stru m en to e o veículo especial da Palavra de D eus e, na pior, u m talismã m ágico ou “papa de papel”. Para a m aioria das pessoas, ela é sim plesm ente m ais u m grande livro de história e de sabedoria. N e m sem pre é a Palavra de D eus. Ela se to rn a a Palavra d e D eus qu an d o D eus decide falar p or m eio dela para exigir um a decisão a favor ou contra D eus com o Senhor. O conceito que a n eo-ortodoxia tem da fé e da prática cristãs é bem diferente daqueles do p ro testan tism o liberal e da ortodoxia p rotestante e ela tem sido seria m en te criticada p o r am bos. Teólogos liberais, co m o H arnack, ficaram h o rro riza dos com a neo -o rto d o x ia e a acusaram de ser u m a fuga irracional da era m oderna para o so b ren atu ralism o e dogm atism o. Para os liberais, a ênfase n eo -o rto d o x a na transcendência de D eus era “so b ren atu ral” e a crença de q u e os seres h u m an o s são incapazes de co n h ecer a D eus sem a ajuda de sua Palavra era obscurantista. C e rto hu m o rista liberal ch am o u a n eo-ortodoxia de “fu n d am en talism o com boas m an ei ras” e de “fu n d am en talism o de tern o e gravata”. E m outras palavras, os teólogos liberais suspeitavam q u e B arth e seus colegas neo-o rto d o x o s não passavam de teó logos fundam entalistas com diplom as de universidades européias. A lém disso, co n sideravam -nos traidores e vira-casacas p o rq u e a m aioria tin h a com eçado a carreira na teologia liberal. O s fu n d am entalistas eram tão desconfiados e hostis com a n eo -o rto d o x ia q u a n to os teólogos liberais. C o m o os principais teólogos n e o -o rto d o x o s rejeitavam a
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d o u trin a fun d am en talista da Bíblia e sua h erm en êu tica literalista, os fu n d a m e n talistas co n sideravam -nos até m ais perigosos que os liberais ab ertam en te declara dos. U m im p o rtan te teólogo fundam entalista ro tu lo u a n eo-ortodoxia de “novo m o d e rn ism o ” em u m livro publicado em 1946 com esse títu lo .1 N as décadas se guintes do século xx, m u ito s evangélicos conservadores (fundam entalistas m o d e rados) co n tin u aram a atacar fo rte m e n te B arth e o u tro s teólogos n eo -o rto d o x o s.2 Em todos os casos, a reação conservadora focalizava o conceito n eo -o rto d o x o da revelação divina e da autoridade para a fé cristã. Por su sten tar a distinção real entre a “Palavra de D e u s” e as palavras da Bíblia, a n eo-ortodoxia foi acusada de ser u m cavalo de Tróia d o liberalism o. A d espeito das críticas severas das alas teológicas de esquerda e de direita, a n eo ortodoxia con seg u iu sobreviver, florescer e m esm o provocar transform ações na teologia p ro testan te liberal e conservadora. F orçou o liberalism o a levar m ais a sério o pecado e o m al, b em co m o a transcendência de D eus. D e m o d o m ais eficaz do que M achen, B arth e o u tro s teólogos n eo -o rto d o x o s revelaram a tendência do pro testan tism o liberal para o h u m an ism o m o dernista e para longe de q u alq u er coisa q u e pudesse ser reconhecida co m o o cristianism o histórico e clássico. A crí tica aguçada de B arth à acom odação cultural histórica da teologia liberal su rtiu efeito e a teologia liberal passou à defensiva, p rim eira m e n te nos círculos teológicos eu ro p eu s e depois nos n o rte-am ericanos. M u ito s teólogos liberais se converteram à n eo -o rtodoxia o u pelo m en o s m odificaram seu liberalism o sob a pressão dela. D a m esm a form a, grande n ú m e ro de teólogos protestantes conservadores en c o n tro u na n eo -o rto d o x ia u m refúgio e p o rto seguro d o q u e e n ten d e ram co m o u m proposicionalism o ex trem o, literalism o bíblico e rejeição obscurantista e indiscri m inada à m o d ern id ad e da parte do fu ndam entalism o. Até os p ro p o n e n te s conser vadores da ortodoxia p rotestante q u e não aderiram à neo -o rto d o x ia se sentiram am eaçados p o r ela c m odificaram seu escolasticism o e biblicism o à luz dela.
O precursor da neo-ortodoxia: Soren Kierkegaard A teologia protestante liberal dependia consideravelm ente da filosofia d o ilum inism o e especialm ente d o idealism o crítico e objetivism o m oral de Kant. P renunciada pelo racionalism o de Locke e pela religião natural d o deísm o, foi fo rtem en te in flu en c ia d a pela filo so fia re lig io sa d e H e g el d o e s p írito a b s o lu to . As teo lo g ias fundam entalista e evangélica conservadora foram firm adas sobre os alicerces cria dos pelos teólogos de P rinceton, I lodge e W arfield e seguiam a estru tu ra filosófica do realism o do b om senso de T h o m as Reid. A neo -o rto d o x ia te n to u redescobrir a teologia pura da Palavra de D eus, livre de q u alq u er influência filosófica dom inante. N o s p rim eiros episódios da história da teologia cristã, o m esm o conflito sobre o papel da filosofia na teologia provocou u m a divisão entre os grandes pais da igreja
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com o C lem en te de A lexandria e T ertuliano de C artago. N aq u ele tem po, assim com o agora, parece q u e a filosofia não pode ser to talm e n te evitada na reflexão teológica. A n eo -o rto d oxia foi p ro fu n d am en te influenciada, desde o início, p o r u m filósofo e crítico cultural dinam arquês excêntrico e p o u co conhecido, q u e tam bém desem penhava o papel de teólogo am ador. Seu n o m e era S oren Kierkegaard. Kierkegaard ficou co n hecido co m o “d in am arq u ês m elancólico” p o r causa dos seus escritos som brios, taciturnos, pessim istas e às vezes cínicos. P oucos pensado res, no en tanto, causaram tan to im pacto sobre um a cu ltu ra inteira co m o ele cau sou. Kierkegaard viveu em reclusão e solidão em sua cidade natal, C o p en h ag u e, na D inam arca, de 1813 a 1855. Seu pai era u m m elancólico lu teran o pictista q u e ex pressava ao seu jo v e m filho o te m o r de que tivesse provocado u m a m aldição c o n tra a sua família inteira p o r causa de algum pecado da ju v e n tu d e . Talvez p o r causa do m ed o in teriorizado pela suposta m aldição de seu pai, o jo v em K ierkegaard ro m p eu o noivado com R egine O lso n , sem oferecer n e n h u m a explicação, e n u n ca se casou. T in h a poucos am igos e às vezes parecia se desviar de seu cam in h o para ofen d er e alienar as pessoas. K ierkegaard to rn o u -se u m escrito r bastante co n h eci do na D inam arca em vida, m as sua influência fora d o país era m ín im a, o q u e só m u d o u m u ito tem p o depois de sua m orte. P o sterio rm en te, livros co m o Temor e tremor, Fragmentos filosóficos, Notas conclusivas não científicas dos fragmentos filosóficos e Um ou outro foram traduzidos para o alem ão e o inglês, e a cosm ovisão neles ex pressa foi cham ada de “existencialism o”. D epois da P rim eira G u e rra M undial, o existencialism o to rn o u -se u m a filosofia p o p u lar na E uropa c a partir daí trilh o u seu cam in h o até a A m érica do N o rte . E m bora o p ró p rio K ierkegaard fosse pes soalm ente cristão dev o to e considerasse sua filosofia consistente com o cristianis m o autêntico, os existencialistas posteriores desenvolveram form as seculares e até m esm o atéias dessa filosofia. K ierkegaard se considerava profeta d o cristianism o cultural que, para ele, não era de n ein u m pouco cristão. S egundo ele, a igreja nacional (luterana) da D in a m arca tin h a capitulado to talm en te diante d o Zeitgeist da m o dernidade. O tem a subjacente q ue perm eia todos os escritos religiosos do filósofo d in am arq u ês é a oposição à crença co m u m na co n tin u id ad e perfeita en tre o divino e o hu m an o . Essa crença na co n tin u idade baseava-se, em grande parte, na filosofia da religião de H egel, m as tam b ém era influenciada pelo racionalism o do ilu m in ism o (religião natural) e pelo rom an tism o. A filosofia da religião de H egel ressaltava a im anência de D eu s na história cultural h u m an a de tal form a q u e D eus, o E spírito im pessoal absoluto, chega à auto-satisfação ou à auto-realização com e pelo desenvolvim ento da h u m an id ad e até u m a civilização utópica. S egundo H egel e seus m u ito s segui dores teológicos da p rim eira parte do século xix, a cristandade e o Estado prussiano ju n to s form avam o pináculo da m archa do espírito absoluto (D eus) na história.
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S upostam ente, o “fim da história” chegaria através deles e toda a cu ltu ra e civiliza ção h u m an a veria a beleza e a perfeição da síntese de toda verdade e valor e seguiria esse b o m exem plo. D eus seria, então, “todas as coisas” e o re in o de D eus teria chegado. Para H egel e seus seguidores, o cam in h o para se chegar a essa perfeição cultural era o da razão q u e dirim isse os conflitos. A própria v erdade era considera da u m processo de crescente coerência cu lm in an d o em u m perfeito sistem a de idéias racionais concretizadas em u m E stado benevolente e em u m a igreja racional co operando de m ãos dadas para o bem co m u m . A filosofia religiosa e cultural de H egel causou p ro fu n d o im pacto na D inam arca com o bispo lu teran o I I. I. M artenseti. Kierkegaard ficou chocado com o q u e co n siderou a subversão total pela cristandade cultural do cristianism o autêntico, bíbli co e profético. Em u m a de suas obras derradeiras, Ataque contra a cristandade (1855), o m elancólico dinam arquês escreveu com ironia a respeito do grandioso bispo e da igreja estatal: “N a m agnífica catedral, o honrável e respeitável reverendo GeheitneGeneral-Ober-Hof-Prãdikant [superintendente-geral e pastor da corte], o favorito eleito pelo m u n d o da m oda, aparece perante u m público seleto e prega com emoção sobre o texto p or ele m esm o escolheu: ‘D eus escolheu as coisas m ais h u m ildes deste m u n do e tu d o o que é od iado’. E ninguém acha graça”.3 S egundo Kierkegaard, o cristi anism o verdadeiro era para ser (e co n tin u a sendo) u m grande risco assum ido por alguns “cavaleiros da fé” e nunca seria considerado respeitável pela elite cultural. Em Ataque contra a cristandade, arg u m en to u que, em u m a sociedade em q u e todas as pessoas são “cristãs”, o cristianism o verdadeiro já não existe. Kierkegaard chegou inclusive a p o n to de acusar a elite cultural (H egel e seus seguidores religiosos) de estarem envolvidos em um a conspiração para d estru ir o cristianism o autêntico. Eles perceberam q u e seria im praticável exterm iná-lo totalm ente, então, conspira ram para d estru í-lo ad o tan d o -o em seu falso cristianism o cham ado “cristandade”. Décadas depois, B arth e o u tro s protestantes n eo -o rto d o x o s da E uropa desco briram o ataque de K ierkegaard contra o cristianism o cultural e a teologia hegeliana da co n tin u id ad e en tre D eus e a hum an id ad e, o rein o de D eus e a cu ltu ra, e ap ro veitaram os p en sam en tos de K ierkegaard na reform a profética q u e estavam fazen do na teologia protestante. O verdadeiro rein o de D eus, afirm avam , é escatológico e não histó rico -cu ltu ral. N ã o é possibilidade h u m an a (afirm ativa contrária à teolo gia liberal e especialm ente ao evangelho social), m as um ideal divino e q u e se faz ju iz de todas as obras hum anas. C o n fo rm e u m im p o rtan te teólogo neo -o rto d o x o declarou a respeito d o re in o de D eus, ele “está sem p re a cam in h o , m as n u n ca acontece” na história pelo esforço hum ano. A crítica de Kierkegaard ao im anentism o hegeliano (D eu s im an ente na evolução h istó rico -cu ltu ral) e do cristianism o cu ltu ral criado a p artir dele p re n u n cio u e abriu ca m in h o para a ênfase n eo -o rto d o x a à transcendência de D eus e à natureza p u ra m e n te escatológica d o reino de D eus.
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H egel ten to u desenvolver u m a filosofia global p erfeitam ente coerente e objeti va so m en te pela razão. Para ele, o “real” era o racional e o racional era o real. A m en te h u m an a e a realidade estão tão in tim am e n te ligadas q u e o intelecto h u m a no, em sua m elh o r form a, consegue captar e c o m p re en d er p len am en te tu d o que é verdadeiro e real. A filosofia de H egel deixou p o u co espaço para a revelação espe cial e sobrenatural ou para a fé pessoal. O cristianism o é a “religião absoluta” sim plesm ente p o rq u e representa em conceitos aquilo q u e a filosofia racional e objeti va conhece além dela. A filosofia é um sistem a perfeito de idéias abstratas a respei to da realidade. U m a dessas idéias é a união en tre o divino e o h u m an o . O cristia n ism o re p re se n ta essa v erd ad e ab so lu ta d e m o d o c o n c re to p elo co n c e ito da encarnação. H egel acreditava q u e a verdade era a síntese de idéias aparentem ente opostas: “tese” e “antítese”. N a religião inclusive, os paradoxos, o u verdades apa ren tem en te opostas p o rém necessárias, podem ser racionalm ente diluídos. A idéia su p rem a da razão é a u nião en tre o infinito e o finito, D eus e a criação. A filosofia expressa essa idéia de m o d o abstrato e o cristianism o de m o d o concreto, com um a figura e u m a d o u trin a: Jesu s C risto co m o o D e u s-h o m em . Kierkegaard ficou chocado e enojado com a filosofia abstrata, especulativa e objetiva de H egel. A creditava q u e ela era u m su b stitu to para o cristianism o verda deiro e que, se fosse bem -sucedida, o cristianism o deixaria de existir. Para ele, o cristianism o não é um a filosofia e a existência não é passível de um e n ten d im en to racional com pleto. A verdade, especialm ente q u an to a D eu s e o seu relacionam en to com o m u n d o , não é correspondência racional e objetiva en tre o p en sam en to e a realidade. Por causa da “diferença qualitativa infinita” en tre D eu s c os seres h u m anos e co m o os seres h u m an o s são caídos e tam b ém finitos, a própria verdade, em suas p rofundezas, precisa ser acolhida in tim am e n te de form a apaixonada pela decisão, u m “salto de fé”, q u e não pode ser reduzida a u m silogism o lógico ou sistem a de idéias racionalm ente aceito. E m outras palavras, co n h ecer a D eus im plica necessariam ente na fé e a fé im plica necessariam ente em risco.4 C o n h ece r a D eus é um a questão de preocupação suprem a, bem diferente de saber os n om es dos planetas do sistem a solar, e, em questões de preocupação su p re m a, a verdade não pode ser descoberta p o r q u em se coloca na posição de espectador. C o m o D eus é pessoal, santo e transcendente e os seres h um anos são finitos, d ep en dentes e pecam inosos, D eus só pode ser conhecido q u an d o a pessoa sai da posição objetiva de observador e com eça a participar de u m relacionam ento com D eus pela interioridade apaixonada. Esse é o “salto de fé”, o risco, o único q u e pode nos trazer o verdadeiro co n h ecim en to sobre D eus c ao relacionam ento genuíno com ele. Sem o salto de fé, podem os ter um a religião ética, m as não o cristianism o verdadeiro. A n eo -o rtodoxia achou em Kierkegaard u m aliado q u an d o B arth e seu grupo se com eçou a apresentar um a alternativa tanto para a teologia liberal q u an to para a
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ortodoxia protestante. A m bas tin h am en terrad o a fé em u m p ântano de idéias raci onais e m oralistas. O s pensadores n eo -o rto d o x o s procuraram reafirm ar a necessi dade da fé para o cristianism o autêntico. B arth se o p u n h a à identificação d o cristi anism o com u m sistem a coerente de doutrinas, q u e r baseado na razão, q u e r na revelação ou na com binação de am bas. Para ele, o cristianism o, d iferen tem en te da religião, é o relacio n am ento e n tre o D eu s santo cujas palavras provêm do além m u n d o e o ser h u m a n o finito e pecador q u e se curva diante de m istérios q u e a razão não pode n em seq u er im aginar, m u ito m en o s com preender. A declaração de K ierkegaard de q u e “verdade é subjetividade” fo rneceu a base filosófica para a redescoberta, pela neo -ortodoxia, da teologia da Palavra de D eus q u e coloca a fé na posição su p rem a e relega a razão a sim ples ferram enta ou in stru m en to . B arth e ou tro s teólogos n eo -o rtodoxos q u eriam tam b ém afirm ar a natureza paradoxal das verdades básicas da Palavra de D eus. Para eles, ao contrário da m aioria dos teólo gos liberais e conservadores, a fé cristã não pode ser um a síntese de opostos. A lei da lógica, da n ão -contradição (A não é igual a -A ), não pode ser definitiva pela teologia cristã, p o rq u e os pensam entos de D eus estão além dos p ensam entos h u m anos e os cam inhos dele transcendem os cam inhos h um anos. N esse e em o u tro s aspectos, Kierkegaard p re n u n cio u a n eo-ortodoxia e os teólogos dialéticos buscara m -n o co m o aliado. Kierkegaard d efin iu a verdade (especialm ente a respeito de D eus e da existência hu m an a) co m o “a incerteza objetiva m antida firm em en te no processo de ap ro p ri ação da in terioridade m ais apaixonada”.5 Trata-se apenas de um a versão m ais ex tensa da afirm ação “verdade é subjetividade”. Q u e tipo de idéia surge desse p ro cesso que resulta na incerteza objetiva? Paradoxo. “Q u a n d o a subjetividade e a interioridade são a verdade, a verdade definida objetivam ente se to rn a u m parado xo”.6 A encarnação, p o r exem plo, é para K ierkegaard u m “paradoxo ab so lu to ” que só pode ser revelado e ap reen d id o pela fé. A tentativa de H egel no sen tid o de incluí-la co m o idéia lógica em u m sistem a universal, coerente, racional de toda a verdade profana, subjuga e transform a a encarnação em algo q u e ela não é: a repre sentação sim bólica de u m conceito filosófico abstrato. Para Kierkegaard, a verdade de q ue Jesu s C risto era tanto verd ad eiram en te D eus co m o verdadeiram ente h o m em , m as um a única pessoa, é um a contradição lógica e não u m sím bolo da u n i dade m etafísica de H egel en tre a existência divina e h u m ana; tam b ém não é m era dou trin a. E u m a verdade transform adora da revelação divina q u e exige a aceitação o u rejeição de Jesu s C risto co m o Senhor. D essa e de m uitas outras m aneira, K ierkegaard p re n u n c io u a neo-ortodoxia. Sua filosofia era antifilosófica e os teólogos n eo -o rto d o x o s qu eriam libertar a teo logia da sujeição a q u alq u er tipo de filosofia. S om ente a filosofia existencial de Kierkegaard podia se aliar à teologia e ser sua parceira nos diálogos. N ã o se q u er
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dizer com isso q u e B arth o u o u tro p ensador n eo -o rto d o x o seguiu Kierkegaard cegam ente. A filosofia de Kierkegaard era m u ito individualista para B arth, o au to r da Dogmática eclesiástica. A pesar disso, sem a filosofia de K ierkegaard, q u e foi redescoberta p o r pensadores eu ro p eu s depois da P rim eira G u erra M undial, a neoortodoxia talvez não se tornasse a força tão poderosa que se to rn o u ao se levantar c gritar para a igreja e a cu ltu ra q u e o cristianism o não é m ais um a religião en tre as religiões, nem o pináculo dos sen tim en to s religiosos hu m an o s, nem u m sistem a de m oralidade ou de d outrinas. E m vez disso, o cristianism o oferece um evange lho q ue transcende q u alq u er religião, cu ltu ra o u sistem a de p en sam en to hu m an o . E m 1922, B arth h o m enageou a influência de K ierkegaard em sua teologia n o p re fácio da segunda edição de seu co m en tário inovador sobre R om anos Der Rdmerbrief [Epístola aos Romanos]: Se tenho um sistema, cie está limitado ao reconhecimento do que Kierkegaard chamou de “distinção qualitativa infinita” entre o tempo e a eternidade e à minha opinião de que ela possui uma relevância negativa tanto quanto positi va: “Deus está 110 céu e tu estás na terra”. O relacionamento entre esse ho mem e esse Deus é, para mim, o tema da Bíblia e a essência da filosofia.7
O fundador da neo-ortodoxia: Karl Barth Q u a n d o os historiadores da teologia cristã analisam o século xx em busca do gran de pensador q ue o represente, a escolha e óbvia: o reform ador e pai da igreja p ro tes tante suíço Karl Barth. B arth, quase sem ajuda, m u d o u a m aré da teologia protes tante européia. N essa façanha, é com parável a L utero. A teologia protestante da E uropa e da A m érica d o N o rte estava regredindo rapidam ente para o h u m an ism o disfarçado da teologia liberal clássica. O fundam entalism o estava se desintegrando rapidam ente cm u m am biente conflituoso de ultraconservadores sectários mais p re ocupados em co m bater o evolucionism o e im p o r o p ré-m ilen arism o d o q u e se engajar na cu ltura de m o d o criativo e crítico. B arth era p ro d u to da educação o rto doxa protestante na infância e da form ação na teologia liberal e criou um a nova form a de teologia protestante para o novo século. Sua idéia era redescobrir o evan gelho sem n e n h u m sistem a h u m an o , q u e r liberal ou ortodoxo, e to rn á-lo a base de u m a te o lo g ia c ris tã q u e tra n s c e n d e s s e os lim ite s e n tr e o lib e ra lis m o e o conservadorism o, q ue considerava cativados pela m odernidade. A teologia liberal tinha se deixado cativar pela m odernidade p o r se acom odar a ela. Ela en tro n iz o u as categorias m odernas do pensam ento com o suprem as e p erm itiu q u e elas julgassem a revelação divina. A teologia conservadora, especialm ente o fundam entalism o, deixou-se cativar pela m o dernidade ao se o p o r a ela. T ornou-se tão obcecada em rejei tar tu d o o q ue era “m o d e rn o ” e “liberal” q u e ficou confinada a ela. B arth queria
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to rn ar a m o d ern id ad e relativa, e não rejeitá-la. Para ele, a m od ern id ad e, da m esm a form a q u e todas as culturas, era u m m o d ism o passageiro que acabaria se desfazen do, en q u a n to a Palavra de D eus (Jesus C risto , a m ensagem d o evangelho) p erm a nece para sem pre. Karl Barth nasceu em 1886 na Basiléia, Suíça. Seu pai era professor de teologia de um sem inário reform ado q u e se transferiu para a U niversidade de B erna quando Karl era p equeno. O jo v em B arth cresceu na capital suíça e resolveu que seria teó logo na ocasião de sua profissão de fé, com apenas dezesseis anos. E studou teologia e foi aluno de alguns dos principais pensadores protestantes liberais da Europa, inclusive A d o lf H arnack, e to rn o u -se m in istro da Igreja R eform ada, prim eiram ente em G enebra e depois, na pequena cidade de Safenwil, fronteira da Suíça com a A lem anha. E m suas m em órias, B arth descobriu q u e a teologia liberal na qual se fo rm o u não podia ser traduzida para pregações relevantes que fizessem sentido para a vida das pessoas co m u n s que freqüentavam a paróquia. Ficou decepcionado com o protestantism o liberal q u an d o seus próprios m entores teológicos, co m o I larnack e o u tros professores alem ães, apoiaram publicam ente a política de guerra d o im pe rador da A lem anha em 1914. O jo v em pastor m erg u lh o u na fonte perene de re n o vação teológica, a epístola do apóstolo Paulo aos rom anos, e publicou Der Rõmerbrief em 1919. N esse co m entário teológico, B arth expôs os preceitos básicos do progra m a neo -o rto d o x o da teologia dialética, ou seja: a “teologia da Palavra de D e u s”. A tese básica é expressa em u m ensaio à parte intitulado O estranho mundo novo da Bíblia: “N ã o são os p en sam entos hu m an o s corretos sobre D eus, m as os pen sam en tos divinos corretos sobre os ho m en s q u e form am o co n teú d o da Bíblia”.8 B arth foi convidado a lecionar teologia na A lem anha depois da P rim eira G u erra M u ndial. N o início, ensinava em G õttin g en , on d e a influência de Ritschl ainda predom inava. P o sterio rm ente, m u d o u -se para a U niversidade de M ü n ste r e, e n tão, para a U niv ersid ade de B onn. E n q u an to ensinava em B onn, com eçou o gran de em p re en d im en to da sua vida de c o m p o r u m sistem a co m p leto de teologia base ado na Palavra de D eu s com o títu lo de Dogmática eclesiástica. Q u a n d o B arth m o r reu, em 1968, a obra estava inacabada, m as já consistia em treze grandes volum es. A intenção de B arth era c o m p o r u m a teologia sistem ática co m p letam en te livre de q u alq u er influência filosófica p re d o m in a n te , baseada exclusivam ente na exegese da Palavra de D eu s em Jesu s C risto , segundo o te ste m u n h o das Escrituras. D ife re n te m e n te da m aio ria dos sistem as de teologia, liberais o u co n serv ad o res, a Dogmática eclesiástica não tem prolegôm enos, isto é, a seção in tro d u tó ria sobre teo logia natural o u evidências racionais para a crença em D eus e nas Sagradas E scritu ras. Pelo co n trário , B arth lançou-se d iretam en te à exposição da Palavra de D eus em Jesu s C risto , na igreja e nas Escrituras, o u seja, da revelação especial. Seu axio m a básico é “a possibilidade do c o n h e cim en to de D eu s en co n tra-se na Palavra de
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D eu s e em n e n h u m o u tro lugar”.9 C o m o B arth considerava que Jesus C risto é a Palavra de D eu s em pessoa e, portan to , idêntico a ela, afirm ou: “o D eus etern o deve ser co n h ecid o em Jesus C risto e não em o u tro lu g ar”.10 B arth evitou a teolo gia natural, as defesas filosóficas da revelação divina, a apologética racional e qual q u e r o u tro alicerce racional para o co n h e cim en to cristão de D eus além do próprio evangelho de Jesu s C risto legítim o em si m esm o. E n q u an to lecionava em B onn, B arth com eçou a ajudar a igreja antinazista na A lem anha e se recusou a ju ra r fidelidade a H itle r e ao partido nazista. Foi expulso da A lem anha pelo governo N acional Socialista e aceitou um a oferta para lecionar teologia na U niv ersid ade de Basiléia. Lá ficou até a aposentadoria e m orte. N a Suíça, B arth apoiava a oposição cristã a H itler. U m de seus ex-alunos alem ães, D ietrich B onhoeffer (1906-1945), to rn o u -se u m im p o rtan te teólogo protestante em B erlim e, p o sterio rm en te, participou da conspiração secreta para m atar H itler. Por causa disso, foi detido, preso e enforcado. B arth estava convicto q u e o nazism o era u m a pseudo-religião q u e representava o p ro d u to final da religião natural e da teologia natural. D u ra n te sua carreira, B arth travou u m a incansável guerra teológica contra toda e q u alq u er tentativa de fu n d a m e n tar a fé cristã em o u tra coisa senão a Palavra de D eus, p o rq u e isso seria o m esm o q u e elevar a sen h o r e m estre um a pessoa o u coisa q u e não era Jesu s C risto. C en ten as de alunos foram a Basiléia para estu d ar sob a orientação de B arth e, nas décadas de 1940 e 1950, ele se to rn o u a influência p re d o m in an te na teologia cristã d o m u n d o inteiro. Liberais e conservadores tin h am de levar B arth em consideração, pois ele sabia exatam ente com o desm ascarar suas teologias com o cu ltu ra lm en te condicionadas. B arth foi, de certa form a, u m enigm a da teologia m o d ern a e assim perm anece até hoje. Para os liberais, B arth foi a praga de sua existência, u m ultraconservador com credenciais intelectuais de categoria internacional. Para os conservadores e so b retu d o para os fundam entalistas, ele foi um lobo em pele de ovelha, u m liberal disfarçado de cristão que acreditava na Bíblia e am ava Jesu s C risto. N e n h u m a das partes achava q u e B arth fazia m u ito sentido e ao escrever a respeito da teologia dele, não raro, disto rciam -na de form a irreconhecível. C erta história, já p erto do fim de sua carreira, revela m uita coisa a respeito de sua vida cristã pessoal. N o início de 1960, ele fez u m a ú n ica viagem aos E stados U n id o s e foi à C apela Rockefeller, um a en o rm e catedral gótica na U niversidade de C hicago, para p arti cipar de u m a m esa red onda com vários teólogos norte-am ericanos. N a fase das perguntas e respostas após o debate, u m estudante levantou-se e colocou u m a p er gunta q ue fez o au d itó rio inteiro segurar o fôlego: “P rofessor B arth, o se n h o r p o deria, p o r favor, re su m ir em poucas palavras a obra de sua vida inteira?”. C o n ta-se q u e B arth fez u m a breve pausa e depois respondeu: “C ertam en te. E m p restan d o as
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palavras de um cântico que m in h a m ãe m e en sin o u q u an d o eu era criança: ‘Jesu s m e am a, isso eu sei, p o rq u e a Bíblia assim m e d iz”’. E im possível re su m ir em alguns parágrafos a teologia de B arth. P ortanto, exa m inarem os alguns de seus principais tem as, com parando-os e contrastando-os com a teologia liberal e a teologia fundam entalista conservadora. B arth deliberadam ente rejeitou q u alq u er tentativa de estabelecer um a relação en tre as duas abordagens do século xx. E m vez disso, enxergou a possibilidade de tran scen d er am bas, bem com o seus conflitos, pela sim ples reflexão sobre a Palavra de D eus. E m p rim eiro lugar, portan to , co n sid erarem os o conceito de B arth sobre a revelação divina: o p ró p rio D eus em sua Palavra. D epois, exam inarem os suas idéias sobre D eus co m o aquele que am a com liberdade e sobre a salvação co m o o “S im !” gracioso aos seres h u m a nos que estão em Jesu s C risto. E m bora nem todo teólogo n eo -o rto d o x o co n co r dasse com o program a in teiro de B arth da teologia protestante, ele fornece o m e lh o r exem plo e é a origem de todo o m o v im en to da neo-ortodoxia. O u tro s teólo gos n eo -o rto d o x o s, co m o o professor suíço Em il B runner, colega de B arth, e o no rte-am erican o R ein hold N ieb u h r, ofereceram suas próprias em endas e c o n tri buições, m as n e n h u m alcançou a estatura e influência de B arth. U m dos conceitos m ais calorosam ente debatidos da teologia cristã m o d ern a é a revelação divina. O n d e D eus se revela? C o m o D eus se revela? O s teólogos liberais enfatizavam u m a revelação geral de D eus na experiência religiosa h u m an a ou na história universal e tratavam a revelação especial co m o a representação m ais subli m e do q u e se pode saber a respeito de D eus de m o d o geral. O resultado foi d ep re ciar a característica distintiva do evangelho cristão e tran sfo rm á-lo em algo sem e lhante a um a filosofia da religião o u a u m program a de m oral e ética. O s teólogos conservadores e especialm ente fundam entalistas identificavam a revelação com o co n teú d o proposicional da Bíblia. R econheciam a realidade da revelação de D eus na natureza, m as d ep endiam da revelação especial das E scrituras para o co n h eci m en to cristão a respeito de D eus. A conseqüência foi a excessiva intelectualização do evangelho co m o u m sistem a d o u trin ário a ser ap ren d id o e crido. Karl B arth rejeitou as duas abordagens d o e n te n d im e n to da revelação divina e iniciou toda a sua teologia m ad u ra com o p rincípio básico de q u e a revelação divina é D eu s se co m u n ica n d o com a hu m an id ad e em sua m ensagem . Deus dixit, D eus fala. D eus fala pessoalm ente. A Palavra de D eu s é o p ró p rio D eu s se com u n ican d o , não um a coisa, co m o inform ação o u experiência, m as ele próprio. Em u m sentido m ais exato, p o rtan to , a revelação divina é o ev en to da com unicação d o p ró p rio D eus e isso só pode acontecer em Jesu s C risto c na p ré-h istó ria e pós-história da sua encarnação. Para B arth, p o rtan to , Jesu s C risto é a Palavra de D eus. O evangelho é Jesus C risto . Jesu s C risto é a revelação de D eus. Q u a n d o B arth identificou a revelação
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divina com Jesu s C risto, não se referia aos ensinos ou ao exem plo de Jesus. R efe ria-se à pessoa de Jesu s C risto no tem p o e na eternidade. C o n h e c e r Jesu s C risto (sabendo o u não seu n o m e h u m an o ) é co n h ecer D eus, e não se pode co nhecer D eu s sem co n h ecer Jesus C risto (sabendo o u não seu n o m e h u m an o ). B arth não disse q u e é im possível co nhecer D eus sem co n h ecer o m essias ju d e u , q u e nasceu na Palestina e m o rreu p o r volta de 30 d .C . Ele era e é o S enhor, m as sua vida hu m an a na terra não consom e sua realidade d iv in o -h u m an a. O conceito bartiano da revelação divina é q u e Jesu s C risto, o Filho de D eus, é a auto-expressão perfeita e com pleta de D eus e, sejam quais forem as outras revelações autênticas de D eus, elas se co n cen tram nele co m o prom essa, esperança e lem brança. O conceito da revelação de B arth é in ten sam en te particularista e realista. C ele bra o “escândalo da particularidade” que os pensadores d o ilu m in ism o e os teólo gos liberais procuravam evitar. B arth chegou quase ao ex trem o oposto. A revelação pro p riam en te dita não é um princípio universal e genérico, a espera de ser desco b erto p o r esforços m entais ou m ísticos. E Jesus C risto , e C risto não é apenas um a figura histórica, u m exem plo, um a representação, u m profeta. E u m a pessoa espe cífica q u e sem pre existiu co m o o F ilho e auto-expressão d o Pai." Para B arth, a Bíblia não era a Palavra de D eus n o m esm o sen tid o q u e Jesus C risto o é. Jesu s C risto é a Palavra de D eus p o rq u e é o p ró p rio D eus cm ação e com unicação. C o m p artilh a da própria existência de D eus. A Bíblia é um a das m a nifestações da Palavra de D eus e inclusive um a m anifestação secundária. E o teste m u n h o , o rd en ad o p o r D eus, da Palavra de D eus na pessoa de Jesu s C risto e se toma a Palavra de D eu s sem pre q u e D eus decide usá-la para en co n trar-se com um a pessoa e con fro n tá-la com o evangelho de Jesu s C risto: “A Bíblia é a Palavra de D eus à m edida q u e D eus a torna sua Palavra, à m edida q u e fala através dela”.12 B arth se o p u n h a à d o u trin a p ro testan te o rto d o x a da B íblia e n c o n tra d a em T u rretin e H o d g e e a outras que insistiam na Bíblia co m o revelação básica na for m a proposicional. Ele rejeitava a revelação proposicional, a idéia de q u e q u an d o D eus deseja se co m u n icar com os seres hu m an o s, transm ite as m ensagens cm d e clarações de verdades. Rejeitava, especialm ente, a idéia da in errância bíblica. A Bíblia, para B arth, era totalm ente hum ana. E u m livro com o te ste m u n h o h u m an o de Jesu s C risto e, a despeito de ser tão h u m an o , é incom parável p o rq u e D eus faz uso dele. S egundo ele, as declarações da Bíblia pod em estar erradas cm q u alq u er lugar. Isso não im porta. D eus sem pre usou testem u n h as falíveis e m esm o pecam i nosas, e a Bíblia é exatam ente u m te ste m u n h o assim . A pesar de rejeitar enfatica m en te a d o u trin a p ro testante ortodoxa da inspiração verbal e prin cip alm en te da inerrância, B arth tin h a a Bíblia em alta estim a. Suas negações não visavam desacre ditar a Bíblia, m as so m en te exaltar Jesu s C risto acim a dela. Jesu s é Senhor! A Bí blia, não. E u m testem u n h o d o Senhor.
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É im p o rtan te reco nhecer a distinção e n tre a d o u trin a das E scrituras segundo B arth e o seu m o d o de tratá-la. N a d o u trin a, a Bíblia é tratada co m o m era testem u nha de Jesu s C risto , sendo até m esm o um a testem u n h a falível. N a m elh o r das hipóteses, é um a form a de revelação divina, m as não é idêntica à própria revelação. E n tretan to , q u an d o com eçou a explicar outras doutrinas, B arth trato u a Bíblia conto sefosse v erb alm en te inspirada e infalível pelo m en o s q u an to aos ensinos a respeito de D eus e da salvação. E m Dogmática eclesiástica, a Bíblia é a fonte, e n q u a n to Jesus C risto é a no rm a, m as sem a Bíblia, nada saberíam os a respeito de Jesus C risto ou da história da atividade de D eus antes e depois de C risto. A Bíblia é a narrativa da história da auto-revelação de D eus em Jesu s e, com o tal, não se pode dispensá-la. N e n h u m a filosofia h u m an a pode ser colocada acim a dela. P orém , d iferen tem en te dos fundam entalistas, B arth não tin h a o m ín im o interesse em debater os detalhes de aparentes discrepâncias nas E scrituras e n em a precisão o u exatidão absoluta dos p o rm en o res históricos. Toda a atenção voltada para os detalhes secundários das Escrituras deprecia a grandiosidade de Jesu s C risto , que é a essência das Escrituras. P ortanto, em b o ra B arth, de u m lado, discordasse da d o u trin a p rotestante ortodoxa das E scrituras, concordava, de o u tro , com o princípio pro testan te sola Scriptura p o rq u e a Bíblia é a única fonte de c o n h e cim en to a respeito de Jesus C risto c o ún ico livro q u e D eu s usa com o in stru m e n to de sua Palavra para se e n c o n trar com os seres h u m an o s e conclam á-los à decisão a respeito da grandiosidade de Jesus. B arth reconhecia u m a terceira form a de revelação divina: a proclam ação pela igreja. A proclam ação pela igreja é terciária, terceira em prioridade depois de Jesu s C risto e das Escrituras. Ela pode, n o en tan to , ser um m eio de revelação divina. Pela pregação e en sin o da igreja, D eu s às vezes fala e atrai as pessoas ao seu en co n tro . N ão se q u er d izer com isso q u e to d o serm ão, culto de adoração o u aula de catecis m o é u m a m anifestação da Palavra de D eus. Pode o u não ser. Esse é o “realism o” de B arth, a idéia de q u e D eu s se revela em atos de auto-revelação. A Palavra de D eus, a revelação divina, n u n ca é u m objeto a ser possuído. N ã o pode ser m an ip u lada n em dom inada. Ela acontece. Já aconteceu em Jesu s C risto . A contece nas Escrituras. Pode acontecer na proclam ação e no ensino. Jesu s C risto é S en h o r das Escrituras e da igreja. As E scrituras são autoridade na igreja p o r serena a testem u nha básica de Jesu s C risto. A igreja é o contexto d o e n c o n tro divino e h u m an o no qual as E scrituras são expostas e Jesu s é proclam ado. Tudo isso é revelação divina. M as tu d o está centralizado em Jesu s C risto. B arth não dava o m e n o r valor à teologia natural e até desconsiderava a revelação geral na natureza, na história e na experiência h u m an a (consciência o u espiritua lidade). Seu conceito da revelação divina é radicalm ente partiéularista e nisso dife re fu n d am en talm en te da teologia protestante liberal. N ã o se interessava em e n co n trar p o n to s co m u n s en tre a m ensagem cristã e a experiência hu m an a e rejeitava
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a apologética e as com provações da existência de D eus. Para ele, o evangelho era a sua própria com provação. “A possibilidade da Palavra de D eus está na Palavra de D eus e em n e n h u m o u tro lu g ar”.13 A m elh o r apologética é a proclam ação. Por o u tro lado, ele não dem onstrava o m e n o r interesse pela identificação da revelação divina com a Bíblia feita pelos p rotestantes ortodoxos ou fundam entalistas. A Bí blia é. A revelação acontece. Jesu s é Senhor. A Bíblia é a te ste m u n h a básica da grande za de Jesus. A inspiração da Bíblia en co n tra-se em seu uso p o r D eu s co m o in stru m en to e testem u n h a especiais. N a d o u trin a de D e u s, B a rth p ro c u ro u e n c o n tr a r u m e q u ilíb rio e n tre a transcendência e a im anência de D eus, d efin in d o -o co m o “aquele que am a em liberdade”. Está claro que B arth rejeitava qu alq u er tentativa de realm ente “d e fin ir” D eus n o sentido preciso de estabelecer exatam ente a essência de D eus. D eus é m istério e está além da com preensão finita. Por o u tro lado, B arth rejeitava igual m en te qu alq u er tentativa de negar o co n h ecim en to válido sobre D eus. Se a revela ção tem algum significado, só pode ser o de q u e D eus de fato se m o stro u com o ele realm ente é. N ão pode haver separação en tre a revelação de D eus e o ser divino. N isso, o teólogo suíço do século xx discordou de Lutero. B arth não deixou n e n h u m espaço em sua teologia para u m “D eus o cu lto ” atrás de Jesu s C risto, com o se houvesse a possibilidade de D eus realm ente ser diferente do que parece em sua própria Palavra. Sc D eus se revela am oroso, gracioso e m isericordioso em Jesus C risto, então é exatam ente am oroso, gracioso e m isericordioso. N ã o pode ser c ru el, cheio de ódio e n em m aligno. A Palavra de D eus é o próprio D eus, m as isso não significa q u e a m en te hu m an a pode conceber D eus e decifrar o m istério de sua existência pelo raciocínio. Para B arth, a d o u trin a de D e u s é dialética. C o m o Kierkegaard antes dele, B arth acreditava q u e se D eus é D eus, o pen sam en to finito não pode “ter os p en sam entos de D eus sobre ele” (um a definição po p u lar da teologia no racionalism o), m as deve pensar e falar a respeito de D eus de form a paradoxal. Para B arth, o paradoxo m áxim o da d o u trin a cristã de D eus é q u e D eus é total m en te am o ro so e to talm en te livre em sua eterna existência trina e em seu relacio n am en to com a criação. D eus se revela co m o “aquele q u e am a liv rem en te”14 no tem p o e na eternidade. Isso não significa q u e os seres h u m an o s possam e n ten d e r plen am en te as profundezas e riquezas do am or e da liberdade de D eus, m as certa m en te significa q u e obtem os um a idéia deles pela pessoa de Jesu s C risto. B arth descreve os atributos de D eus a partir das categorias da liberdade e d o am or. A reflexão sobre a revelação divina co n d u z à certos atrib u to s ou características — “perfeições” — da liberdade de D eus, co m o a eternidade (d om ínio sobre o tem po) e a im utabilidade (fidelidade a si próprio). As perfeições da liberdade de D eus dem o n stram ser ele S en h o r de tudo. O q u e não está em D eus não pode condicionálo. D eus é abso lu tam ente livre em todos os seus relacionam entos ad extra (com a
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criação). Ig ualm ente im p o rtan te e verdadeiro na revelação de D eus, porém , é que a liberdade absoluta de D eu s não significa q u e ele não possa se relacionar com suas criaturas com am or. A própria essência de D eus é o am o r na co m u n id ad e de três Seinsiveisen (m odos de ser): Pai, Filho e E spírito Santo. Esse am o r flui livrem ente na criação e na redenção, para q u e os seres h u m an o s sejam tom ados p o r ele em Jesus C risto . As perfeições do am o r de D eus incluem a m isericórdia e a graça. O paradoxo de D eus, segundo B arth, está na verdade extraída d iretam en te da revelação divina de q u e D eus se realiza em seu relacionam ento com o m u n d o (à m oda de I Iegel) e tam b ém é absolutam ente livre nesse relacionam ento realizador. “D eus não é co n su m id o no relacionam ento c na atitu d e q u e estabelece com o m u n d o e conosco co m o acontece em sua revelação”15, p orém seu relacionam ento com o m u n d o não é u m a coisa m eram en te con tin g en te e exterior à sua existência. O ser divino é o “ser em ação” e não u m a essência estática, alheia ao relacionam en to d in âm ico en tre D eu s e o m u n d o . O am o r de D eus pelo m u n d o significa q u e ele está g en u in am en te envolvido e q u e o m u n d o o afeta. B arth ro m p e u radicalm ente com o teísm o cristão clássico p o rq u e en ten d ia q u e ele estava infectado pelas cate gorias gregas estáticas da existência. E n tretan to , na base da revelação divina, Barth insistia q u e m esm o no relacionam ento am oroso, so fred o r e to talm en te envolvido com o m u n d o , D eu s sem pre foi o Senhor. Assim , B arth conclui que D eus se realiza em sua existência trinitária p o r toda a eternidade. O m u n d o não acrescenta nada de essencial a ele, de o u tra form a: “se não to m arm o s cuidado nesse aspecto, inevitavelm ente privarem os D eus de sua d ivindade”. Por o u tro lado, D eus decide livrem ente, em toda a eternidade, ter esse relacionam ento com o m u n d o em q u e realiza seu ser já p len am en te realizado pela aliança q u e estabelece com a h u m anidade na pessoa de Jesu s C risto. O am o r de D eus pelo m u n d o é etern o , m as não necessário.17 A teologia liberal seguiu cada vez m ais na direção d o im an en tism o sob a in flu ên cia de H egel e da filosofia pós-hegeliana. M u ito s teólogos liberais desconsideraram a transcendência e liberdade de D eus e enfatizaram o relacionam ento benevolente de D eu s com o m u n d o , a p o n to de in sin u ar que D eus é prisio n eiro desse relacio nam ento. H egel declarou: “Sem o m u n d o , D eus não é D e u s”. E B arth responde: “D eus pode ser D eus sem o m u n d o , m as decidiu não se r”. A ortodoxia protestante enfatizava tão fo rtem en te a transcendência e soberania de D eu s, q u e o relaciona m en to en tre D eus e o m u n d o parecia algo m eram en te ex tern o a ele. Para o teísm o cristão clássico — e a ortodoxia p rotestante te n to u reforçar essas categorias — , o m u n d o não acrescenta absolutam ente nada a D eus. D eus é actus purus, p u ro ato ”. N ada em D eus é um a possibilidade. A perfeição de D eus é estática. A resposta de B arth a isso é: “D eu s decidiu não ser perfeito sem o m u n d o ”. Em Jesu s C risto, D eus abre to talm en te a sua própria vida para u m relacionam ento g en u ín o com o
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m u n d o , de tal m aneira q u e ele o afeta tam bém in tern a m e n te e não apenas externa m ente. E m bora a d o u trin a de D eus proposta p o r B arth seja paradoxal, B arth sus tenta que os paradoxos fazem parte do m istério de D eus, a respeito d o qual refleti m os. E n ten d ia q u e as teologias liberal e protestante conservadora são form as de racionalism o p o rq u e buscam um a coerência perfeita. S egundo B arth, se D eus é D eus, o p en sam en to finito não pode chegar a um a síntese perfeitam ente coerente em relação a ele. Ele deve sim plesm ente seguir a revelação divina para o n d e q u er que esta o guie e dar-se p o r satisfeito se ela levar a im passes nos quais pensam entos ap aren tem en te opostos devam ser igualm ente acolhidos. U m a terceira co n trib uição im p o rtan te da teologia de B arth en co n tra-se na d o u trin a da salvação. A teologia liberal era quase to talm en te universalista. Isto é, d e pois de Schleierm acher, quase todos os teólogos p rotestantes liberais sustentavam reconciliação final de D eus com todas as criaturas. A tendência era rejeitar a ira de D eus com o um a idéia prim itiva q u e Jesu s veio elim inar, d em o n stran d o q u e D eus é Pai, u m conceito in terp retad o de m o d o sentim ental pela m aioria dos liberais. O inferno, a perdição e o castigo etern o foram relegados ao arsenal de relíquias u ltra passadas da teologia m edieval. Até os teólogos liberais da tradição reform ada rejei tavam a dupla predestinação e a d o u trin a da eleição inteira e preferiam u m a idéia s e n tim e n ta l da p a te r n id a d e u n iv e rs a l d e D e u s p ara to d a s as c ria tu ra s . O fun d am en talism o foi ao extrem o oposto, pelo m en o s em sua pregação. O inferno era retratado em term o s vívidos e decididam ente realistas e o “so frim en to eterno dos ím pios” no fogo to rn o u -se dogm a absoluto para m u ito s m inistros e teólogos protestantes conservadores. As observações sobre a graça, m isericórdia e esperança foram suprim idas e o universalism o foi vilificado com o um a das m aiores heresias. Barth queria transcender essa polarização da doutrina cristã da salvação. N a base da revelação divina, defendia a realidade do ju íz o e a ira da D eus. C o m o teólogo reform ado na tradição de C alvino e Z uínglio, defendia a soberania de D eus na elei ção e rejeitava o sinergism o. N a realidade, Barth era supralapsário! Acreditava que o decreto de D eus ao eleger e condenar antecedia seus decretos de criar e perm itir a queda pelo pecado. O único propósito de D eus na criação é a salvação c a eleição é pan e intrínseca da salvação pela graça som ente. Barth, porém , chamava sua doutrina da salvação e da eleição de “supralapsarism o purificado”, qu eren d o dizer com isso que o propósito de D eus na eleição é apenas o am o r e que, em bora D eus tenha perm itido o mal desde o início dos tem pos, ele o nega com Jesus C risto. D eus não determ ina nem preordena que um a parte de sua criação sofra a eterna perdição p en sando em se glorificar. Pelo contrário. D eus quer, preordena e decreta para p erm itir o pecado e o mal c tam bém sua total negação com Jesus C risto, a cruz e a ressurreição. O “não” de D eus não é para a hum anidade, nem para parte dela, m as som ente para si m esm o em Jesus Cristo. D eus de fato diz “não” e “sim ” na dupla predestinação.
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M as para B arth, a “d u pla predestinação” não se refere a u m a determ inação dupla dos seres h u m an o s, m as a Jesus C risto , q u e é o ún ico “h o m em eleito e também rép ro b o ”. “N a eleição de Jesu s C risto , q u e é a eterna vontade de D eus, D eus c o n fere ao h o m em [...] a eleição, a salvação e a vida; e confere a si p ró p rio [...] a reprovação, a perdição e a m o rte ”.19 Para B arth, “a predestinação significa que, em toda a etern id ad e, D eu s d eterm in a a absolvição do h o m em às suas próprias cus tas”.20 O p reço é “o cam in h o do Filho de D eus a u m país d istan te” e a sua m o rte na cruz, pelas m ãos dos pecadores. A d o u trin a da salvação, segundo B arth, sugere o universalism o? E u m a form a da apokatastasis (reconciliação final), proposta p o r O rígenes, d o século xx? A paren tem en te. E n treta n to , B arth se recusou a afirm ar tal coisa e os m elhores intérpretes da teologia de B arth discordam disso. Q u a n d o alguém p erg u n to u a B arth se ele ensinava o universalism o, ele respondeu: “N ã o en sin o e n em deixo de e n sin a r”. A lógica interna de sua d o u trin a da eleição, n o en tan to , parecia sugerir a salvação universal. B arth escreveu que, “to m an d o p o r base seu decreto [o decreto da elei ção de D eusJ, o ú n ico h o m em realm ente rejeitado é seu p ró p rio F ilh o ”21 e “ao p erm itir que a vida d o seu p ró p rio F ilho fosse a de u m h o m em rejeitado, D eus to rn o u essa vida o bjetivam ente im possível para todos o u tro s”.22 M as B arth era um teólogo dialético e, p o rtan to , não pode ser descrito sob u m a posição to talm en te racional. E m sua conclusão, ad m itiu a possibilidade de que a “c o n tag em ” final dos eleitos talvez não inclua in teiram en te todos os seres h u m an o s existentes n o m u n do, m as ao m esm o tem po descartou q u alq u er lim itação da salvação final. A liber dade e o am o r de D eu s exigem q u e as possibilidades fiquem em aberto. A visão n eo -o rto d o x a de B arth sobre a teologia cristã revela u m a certa ironia. O teólogo suíço rejeitava a idéia da filosofia racionalista da religião, p roposta p o r H egel, de u m a prisão de idéias a respeito de D eu s e d o m u n d o q u e p ro cu ra d o m esticar a D eu s e d esp ojá-lo de sua divindade. P or o u tro lado, sua p ró p ria teo lo gia rep resen ta u m tipo de síntese hegeliana, u m a Aufhebtmg (transcendência de dois op o sto s em u m a com binação su p erio r), da tese da teologia liberal e da an tí tese do fu n d am en talism o . B arth rejeito u tan to a teologia liberal q u a n to a o rto d o xia p ro testan te co m o ex trem o s unilaterais e p ro c u ro u tran scen d ê-las em um a co m binação su p erio r q u e conservava as verdades de cada u m a e, ao m esm o te m po, excluía m u tu a m e n te seu erros. E m ú ltim a análise, a teologia de B arth é bas tan te co n serv ad o ra em com paração à teologia p ro testan te liberal clássica, co m o a do p ro fesso r A d o lf H arnack. E n treta n to , foi v ee m e n te rejeitada co m o “novo m o d e rn is m o ” pelo s fu n d a m e n talistas. Talvez p o r te r in d icad o u m a saída para o im passe en tre os dois arsenais de teologia p ro testan te d o século xx, a teologia de B arth foi am p lam en te aceita e, m esm o q u a n d o rejeitada, deixou u m a m arca em seu cam in h o .
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Os temas comuns da neo-ortodoxia e seu legado E m b o ra B arth fosse o fu n d a d o r e principal fo rm u lad o r da n eo -o rto d o x ia, o u tro s p ro testan tes e alguns teólogos católicos d efen d eram sua refo rm a da teologia m o d ern a e acrescentaram seus p ró p rio s toques. Em il B ru n n e r (1889-1966) lecionou em Z u riq u e , Suíça, n o m esm o p erío d o em q u e B arth lecionava em Basiléia. E m bora no início fossem colegas na nova teologia dialética da n eo -o rto d o x ia, os dois teólogos suíços tiveram um d ese n te n d im e n to fam oso e não m ais se falaram p o r décadas. B ru n n e r criticava a rejeição total de B arth à teologia n atu ral e a sua desconsideração pela revelação geral. Exigia o re c o n h e c im e n to de u m “p o n to co m u m ” natural d o evangelho com a natu reza h u m an a. B arth reagiu, zangado, com u m tratad o in titu lad o com u m sim ples N ein! (Não!) e e n d u re c e u sua posição co n tra q u alq u er possibilidade de a Palavra de D eu s existir além da p ró p ria Palavra de D eus. B ru n n e r tam b ém critico u a d o u trin a da eleição ensinada p o r B arth cham an d o -a d e d efin itiv am en te universalista. A co n trib u içã o positiva de B ru n n e r à n eo -o rto d o x ia veio em m u ito s livros, inclusive em sua obra program ática A ver dade como um encontro (1938 e 1954) e Revelação e razão (1941). Sua teologia siste m ática era m u ito m ais sucinta d o q u e a de B arth e foi publicada em três volum es, de 1946 a 1960, com o m esm o título: Dogmática. B ru n n e r enfatizava u m aspecto m ais experim en tal d o cristianism o. E n q u a n to B arth enfatizava a Palavra objetiva e a decisão etern a de D eus da salvação h u m an a, B ru n n e r enfatizava o e n c o n tro en tre D eus e o h o m em e o m o m e n to de decisão de cada pessoa a favor o u contra Jesu s co m o S enhor. Sem dúvida, B ru n n e r foi m ais in flu en ciad o pelo p ietism o que Barth. O principal teólogo n eo-ortodoxo norte-am ericano foi R einhold N ie b u h r (18931971), que lecionou p or m uitos anos n o sem inário teológico U n io n em N ova York. N ieb u h r, além de teólogo sistem ático, era especialista em ética social cristã, m as escreveu m uita coisa sobre as d o u trin as da h u m anidade, inclusive em sua obraprim a A natureza e o destino do homem (1941-1943). U m a escola de ética cristã cha m ada “realism o cristão” nasceu a partir da teologia de N ieb u h r. P ro fu n d am en te influenciada p or Kierkegaard e B arth, enfatizava a situação inevitavelm ente trágica e pecam inosa da existência h u m ana diante do D eus santo e tran scen d en te e enxer gava o m en o r dos m ales co m o o m aior bem q u e se poderia co n q u istar na história da hum anidade. N ie b u h r estava interessado em se o p o r ao o tim ism o in g ên u o do evangelho social cm relação à possibilidade do rein o de D eus na história. Para ele, a ju stiç a era a coisa m ais próxim a d o am or, dadas as condições do pecado. O s cristãos devem se satisfazer com a justiça, em vez de insistir em um a sociedade de perfeito am or, p o rq u e o perfeito am or é u m “ideal im possível” na história da h u m anidade. O rein o de D eus é radicalm ente escatológico e não um a possibilidade histórica hu m an a. N ie b u h r to rn o u -se a voz teológica m ais in flu en te da era q u e se
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seguiu à Segunda G u e rra M undial e seu rosto foi estam pado na capa da revista Titne na edição com em orativa de 25 anos. O q u e todos os teólogos neo -o rto d o x o s têm em co m u m ? A lguns diriam : “N ã o m u ito !”. N o m ín im o , porém , todos se op õ em à teologia p rotestante liberal e ao fu n d am en talism o . P ro cu ram u m a form a to talm en te m o d ern a de teologia p ro tes tante, q ue seja consistente com o evangelho do n t e com os principais tem as dos grandes reform adores L utero, Z u ín g lio e C alvino. Todos os pensadores n e o -o rto doxos (com exceção talvez de N ie b u h r) são to talm en te cristocêntricos. Isto é, c o n sideram Jesu s C risto a revelação de D eus em pessoa e p ro c u ram basear tu d o em reflexões teológicas a respeito dele. Para os teólogos dialéticos, Jesu s C risto é m ais d o q u e u m profeta h istórico o u h o m e m p len am en te consciente de D eus. É o Filho de D eus q u e vem d o além para o m u n d o da natureza e da história. Q u e r e m p re gando o term o sobrenatural o u não, todos os teólogos n eo -o rto d o x o s d efen d em a origem sobrenatural de Jesu s C risto e da salvação hum ana. Para eles, co m o é a Palavra de D eu s e o Filho de D eus, Jesu s C risto tem de ser o âm ago d o cristianis m o. N e n h u m a d o u trin a o u idéia pode co n jetu rar sobre ele. Ele é o ce n tro de todo sistem a verd ad eiram en te cristão de pensam ento. Todos os teólogos n eo -o rto d o x o s rejeitam a teologia natural e se apegam à Pala vra de D eus co m o fonte e n o rm a para a teologia cristã. Todos se recusam a equipa rar a “Palavra de D e u s” às palavras e proposições das Escrituras, em b o ra ten h am a Bíblia na m ais alta estim a co m o teste m u n h o especial e in stru m e n to da Palavra de D eus, q ue em si é sem pre u m evento. N a ortodoxia, a Bíblia não é apenas grandi oso livro de sabedoria religiosa h u m an a (com o considera a teologia liberal) e nem “o m an u scrito pro v en iente d o c é u ”. É u m livro to talm en te h u m an o , com todas as m arcas e características dos autores h um anos. E histórico, falível e cu ltu ra lm en te condicionado em todos os seus aspectos. P or o u tro lado, é o in stru m e n to único da Palavra de D eu s e se to rn a a Palavra de D eus n o m o m e n to em q u e ele decide usála para trazer as pessoas a seu en co n tro . U m a analogia usada para retratar m elh o r o co nceito n eo -o rto d o x o da Bíblia to m a a luz e a lâm pada elétrica. A Palavra de D eus é a luz e a Bíblia é o filam ento e o bu lb o da lâm pada. A luz (a Palavra de D eus) b rilha através da lâm pada (a Bíblia) e a lâm pada (a Bíblia) é de certa form a necessá ria para a luz (a Palavra de D eus). Finalm ente, todos os teólogos neo-o rto d o x o s enfatizam o q u e K ierkegaard cha m ava de diferença qualitativa infinita en tre o tem p o e a eternidade. Isso inclui a “qualidade to talm en te diversa” de D eu s e d o re in o de D eus. Sugere, tam b ém , a natureza paradoxal das form ulações hum anas a respeito de D eus q u e d eco rrem da reflexão sobre a Palavra de D eus. N e n h u m a o rd em ou organização social, nem m esm o a igreja, pode ser equiparada ao rein o de D eus. N e n h u m a ideologia, filo sofia e inclusive sistem a teológico pode ser equiparado à verdade do p ró p rio D eus.
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O ju lg a m e n to de D eu s está acim a de q u alq u er coisa q u e seja m aculada ou tenha o to q u e do ser h u m an o . N a m elh o r das hipóteses, pode ter u m p o u co da luz e da Palavra de D eus. E n tretan to , para os teólogos neo-o rto d o x o s, po d em existir luzes parciais da Palavra de D eus na história. C o m o D eus agiu e falou p o r m eio de Jesus C risto e deixou u m te ste m u n h o dele na Bíblia e na igreja, n em tu d o está perdido. D e tem pos cm tem pos, u m avanço 110 progresso social pode aproxim ar o reino de D eus da história e um a idéia nova pode se to rn ar u m eco da verdade de D eus no m u n d o d o p en sam en to h u m an o . M as se e q u an d o essas coisas acontecem , o m o d o certo de co rresp o n d er é com hum ildade e gratidão e n u n ca orgulho. A h u m an id a de não pode fazer nada q u e pague sua dívida para com D eus. T udo provém de D eus e de sua graça. O legado da n eo -o rto d o x ia ainda está sendo apreciado. H oje, o m o v im e n to iniciado p o r B arth e desenvolvido p o r B runner, N ie b u h r e o u tro s en co n tra-se em plena form a e é m an tido p o r seus alunos e discípulos. M uitos, q u e se identificam co m o evangélicos progressistas e q u e rejeitam o fun d am en talism o e a teologia li beral, se alim en tam em fontes neo-ortodoxas. E n tre eles estão B ernard R am m (1916-1992) e D onald Bloesch (1928-). Sua acolhida da neo -o rto d o x ia é com crí tica, m as cordial. A m aioria dos evangélicos considera inadequada a d o u trin a n eo ortodoxa das E scrituras e defende a inspiração verbal ou m esm o a inerrância, mas alguns, co m o R am m e Bloesch, d efen d em a distinção feita pela neo -o rto d o x ia e n tre a Palavra de D eu s e as palavras e proposições h um anas da Bíblia. Até alguns teólogos católicos ro m anos chegaram a adotar alguns aspectos da teologia de B arth e do realism o cristão de N ieb u h r. E ntre os discípulos m ais entusiásticos de B arth, está o teólogo católico H an s K üng (1928-), q u e arg u m e n to u em Justificação: a dou trina de Karl Barth e uma reflexão católica (1957) q u e a d o u trin a da salvação ensinada p o r B arth essencialm ente concorda com a da Igreja C atólica e vice-versa. O u tras escolas de teologia m o d ern a e p ó s-m o d ern a q u e foram p ro fu n d am en te in flu en ci adas p or B arth e pela n eo-ortodoxia incluem a teologia narrativa e a teologia pósliberal. Até os poucos teólogos protestantes liberais clássicos q u e ainda existem são gratos a B arth, B ru n n e r e N ie b u h r p o r tere m lem brado a todos da transcendência de D eu s e da pecam inosidade do h o m em . A m aioria dos teólogos liberais depois da Segunda G u erra M undial são “liberais arrep e n d id o s”, pois estu d am os pensa dores n eo -o rto d o x o s e adaptaram seu o tim ism o an tro p o cên trico à luz da in te rp re tação neo-o rto d o x a d o pensam ento liberal. A lem brança de B arth de q u e “não se pode falar em D eus sem falar do h o m em de m aneira vigorosa” foi levada a sério pela m aioria dos teólogos liberais. O s poucos q u e rejeitaram essa m áxim a se to rn a ram conhecidos co m o “radicais” e “teólogos seculares” na década de 1960. N a m aior parte do século xx, parecia haver apenas três opções viáveis para a teologia cristã: a teologia p rotestante liberal, o fu n d am en talism o e a neo-ortodoxia.
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Essa era a situação, m ais precisam ente, de 1920 a 1950. N a década de 1960, surgi ram opções novas. A lgum as desapareceram rapidam ente, co m o o infam e m ovi m en to do ateísm o cristão gerado pelo m o v im e n to da m o rte de D eus. O u tra s se estabeleceram e se to rn aram parte p erm a n en te do panoram a teológico, acrescen tando novos m ean d ro s à tram a da história da teologia. O capítulo final desta histó ria da teologia cristã tratará, de form a resum ida, de algum as dessas personagens relativam ente novas.
35 A teologia contemporânea enfrenta a diversidade
C ^ u e m já leu u m rom ance russo do século xix, provavelm ente teve as m esm as dúvidas que a m aioria das pessoas têm n o p rim eiro contato com a teologia c o n te m porânea. Q u e m são essas personagens e exatam ente q u e papéis desem p en h aram na tram a? O q u e aconteceu com a tram a? Ela é u m a só? A teologia cristã depois da Segunda G u erra M undial fica ainda m ais diversa do q u e antes. N a revolução cu l tural da década de 1960 principalm ente, a história da teologia cristã sofreu tantas reviravoltas drásticas e to m o u tantas direções novas, q u e até os peritos acham difí cil ju n ta r todas as partes para fo rm ar um a única história coerente. O q u e faz com q u e ela seja “cristã”? O n d e está o fio da m eada que su p o stam en te com põe to d o o enredo? E possível q u e estejam os p erto dem ais da etapa atual da história para per ceber on d e está o fio da m eada. E speram os q u e historiadores e intérpretes p o steri ores consigam identificá-lo e explicar m elh o r d o q u e nós este capítulo da história. U m grande so n h o d o cristianism o do século xx q u e cativou a m en te e o coração de m u ito s teólogos liberais no início desse século foi a unificação ecum ênica. Eles acreditavam de form a tipicam ente otim ista q u e o século xx se tornaria “o século cristão” com u m consenso q u e surgiria p aulatinam ente e n tre os cristãos n o m u n do inteiro. Esse consenso seria sem elhante à religião sim ples de Jesu s postulada por H arnack — um a religião calorosa e ética, baseada na universalidade da “pater nidade de D eu s e da fraternidade do h o m e m ”. O s eventos m u ndiais e as vozes adversas dos fundam entalistas e pensadores n eo -o rto d o x o s d estru íram o sonho. E claro que o fu n d am en talism o tin h a sua visão da unificação cristã, q u e olhava para o passado e para o reavivam ento de u m suposto consenso d o u trin ário cristão im p o s to a todos. Q u a n d o essa visão p ereceu com a conclusão d o caso Scopes em 1925, os fundam entalistas, de m o d o geral, desistiram de um a unificação cristã m ais am pla e restringiram o co nceito d o cristianism o au tên tico aos que já estavam unificados em to rn o “dos fu n d a m e n to s” co n fo rm e os interpretavam . O s pensadores n e o -o r todoxos m antiveram o so n h o da unidade cristã, m as insistiam q u e ela não daria
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certo com as fórm ulas legalistas e im postas da ortodoxia d o u trin ária n em com u m ec u m e n ism o fu n d am en tad o em u m d en o m in ad o r co m u m que abandonasse total m en te a ortodoxia. Ela teria de acontecer com um a renovação da teologia refo rm a da da Palavra de D eus. O s neo-liberais e os fundam entalistas, n o en tan to , não queriam apanhar o trem de B arth e, na década de 1950, a situação pareceu chegar a um im passe desesperador. Paulatinam ente, o so n h o da u n ifo rm id ad e na unidade cristã foi se dissipando e os teólogos aprovaram um novo paradigm a de unidade. Em vez de retratarem a unidade cristã co m o u m g rupo de crianças atrás de um flautista m ágico, com eça ram a explorar a possibilidade da unidade com o um a o rq u estra sinfônica, na qual cada m úsico e cada in stru m e n to acrescentava seu som d istin to a um a com posição m ultifacetada. Poderia haver unidade sem uniform idade? Até q u e p o n to as partes p o d em ser diversificadas e, co n tu d o , p ro d u z irem um a sinfonia? A inda não se e n c o n tro u um a resposta para essas perguntas. A situação atual da teologia cristã é m u ito sem elh an te ao processo de aq u ecim en to da orquestra antes do concerto. U san d o o u tra m etáfora, é m u ito sem elhante a u m ro m ance russo com tantos en re dos e personagens (que parecem não ter a m e n o r relação en tre si) q ue, n o m eio do livro, o leitor não faz a m ín im a ideia de com o tu d o vai se ju n ta r e fo rm ar um a história coerente. A lguns leitores en ten d erão , sem dúvida, q u e a grande diversidade da teologia cristã co n tem p o rân ea é negativa e ficarão tentados a desconsiderar essa parte da história p o r achar q u e é falsa o u u m em buste. Para eles, a teologia precisa estar unificada para ser au ten ticam en te cristã. Talvez seja bo m lem brarem de que, em quase m il anos, a teologia cristã foi unificada, de u m a form a ou de ou tra, pela coerção. A dissensão era abafada p o r am eaças de excom unhão, to rtu ra ou até de m orte. Além disso, n u n ca houve unidade perfeita de crença en tre os cristãos. A diversidade pode ser saudável, m as so m en te um a pessoa m adura saberá lidar com ela. A esperança deve repousar em D eus, o au to r su p rem o da história, q u e a c o n du zirá ao desfecho final. E ntrem en tes, devem os p ro c u rar na teologia cristã as v o zes q ue, de m o d o profético, p ro n u n ciam as palavras necessárias d e exortação e correção, c indicam o cam in h o para a renovação e a vitalidade d o povo de D eus. O u tro s leitores, p o r certo, celebrarão a diversidade da teologia cristã c o n te m porânea e resistirão a q u alq u er tentativa de descobrir o u m esm o de encorajar a unidade com o u m novo totalitarism o. Para eles, todas as m etanarrativas (histórias abrangentes) são necessariam ente totalizadoras. As m etanarrativas silenciam as his tórias dos fracos e m arginalizados e im p õ em as dos fortes e poderosos. Para esses leitores, a diversidade co n tem porânea da teologia, m esm o q u e represente u m a m is tura de vozes e sons, é libertadora c em ocionante. Talvez seja necessário lem brarlhes q u e q u alq u er coisa q u e seja consistente com todas as coisas é rigorosam ente
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sem sentido. Se n e n h u m a m etanarrativa, m esm o q u e não seja totalizadora, pode ser en co n trad a nas histórias aparen tem en te incom ensuráveis da teologia c o n te m porânea, isso significa q u e o p ró p rio cristianism o está perdido. U m a teologia que alega ser cristã deve ter algum a coisa em co m u m com o evangelho de Jesu s C risto, com o te ste m u n h o apostólico dele no n t e com a G ran d e Tradição da igreja cristã na história. É preciso q u e haja u m p o n to co m u m , um a base unificadora de verdade discernível q u e liga u m m o v im en to teológico a ou tro . O in stru m e n to e seu papel na com posição inteira deve se h arm o n izar aos dem ais, caso contrário, não faz parte da orquestra. C ada u m dos m o v im en to s teológicos aqui descritos alega ser cristão e procura trad u zir o evangelho da igreja prim itiva e da G rande Tradição da herança cristã para o atual co n tex to cultural. A lguns o trad u zem de m o d o m ais radical q u e o u tros. S o m en te o fu tu ro revelará quais deles fornecerão co n tribuições viáveis e per m an en tes para a co n tin u id ad e da história da teologia cristã e quais sairão da h istó ria e entrarão 110 esqu ecim ento. O s cinco m o v im en to s q u e serão descritos foram incluídos po rq u e, de todas as opções, são os m ais fortes e influentes. São as “o p ções vivas” da teologia co n tem p o rân ea. E m cada u m deles, será oferecida um a breve descrição d o m o v im en to e de alguns teólogos m ais im portantes. O s m ovi m en to s são descritos, analisados e avaliados criticam ente e co m m ais detalhes em obras q u e tratam especificam ente da teologia co n tem p o rân ea .1
Teologia evangélica O adjetivo evangélico é em pregado de m uitas m aneiras na história da teologia cristã. Ele significa sim p lesm ente “das boas novas” ou “fu n d am en tad o n o evangelho”. O s protestantes eu ro p eu s, luteranos e reform ados, u sa m -n o co m o sin ô n im o de “p ro testante” em oposição a “católico ro m a n o ” e até m esm o a “o rtodoxo o rien tal”. Al gum as deno m in açõ es protestantes da A m érica do N o rte in clu em esse te rm o no no m e sim p lesm en te para indicar q u e se baseiam n o evangelho, nas boas novas de Jesu s C risto , e que estão arraigados na grande R eform a protestante do século xvi. A Igreja Evangélica L uterana da A m érica ( e l c a ) é a m aior d enom inação luterana nos E stados U n id o s e foi form ada, em 1988, com a fusão de dois sínodos ou d e n o m i nações luteranas anteriores. A palavra evangélica n o n o m e da nova igreja visa trans m itir o sen tid o de que ela é protestante e atesta as boas novas d o evangelho. O u tro em prego histórico e co n tem p o rân eo do term o evangélico provém da história da G rãB retanha e das diversas facções da Igreja da Inglaterra. N o século xvm em especial, os evangélicos dessa igreja eram os q u e sustentavam os aspectos p rotestantes e se o p u n h am ao q u e en ten d iam co m o o poderio cada vez m aior dos elem entos de catolicização. O s evangélicos ingleses, não raro, tam b ém rejeitavam a regeneração batism al e o alto conceito do sacram entalism o e defendiam a piedade da conversão.
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O m o v im en to m etodista dos irm ãos Wesley co m eçou co m o u m “m o v im en to evan gélico de renovação” na Igreja da Inglaterra. N o s Estados U n id o s, o term o evangélico é em pregado de várias m aneiras. N o século xviii, foi adotado p o r m u ito s cristãos p rotestantes para diferenciar os que apoiavam os reav iv am entos do G ra n d e D e sp e rta m e n to , liderados p o r G eorge W hitefield e Jo n ath an E dw ards, dos q u e se o p u n h am a eles. O s evangélicos apoia vam os reavivam entos e o em prego d o term o se arraigou na A m érica do N o rte. O u tro em prego desse ró tu lo surgiu n o conflito crescente en tre a teologia liberal e a ortodoxia protestante. O s teólogos e pastores q u e se opuseram ao liberalism o e apoiaram a p rim eira reação fundam entalista co n tra ele foram cham ados de evan gélicos. N a década de 1890, en tretan to , alguns liberais m oderados da N ova Ingla terra ro tu laram seu m o v im en to de “liberalism o evangélico”. Sem dúvida, o grande teólogo do evangelho social, W alter R auschenbusch, considerava-se u m “liberal evangélico”. G rad u alm en te, po rém , esses term o s passaram a ser considerados an tagônicos pela m entalidade po p u lar e pela m aioria dos teólogos. N o cap ítu lo sobre o fu n d a m e n talism o , m en cio n a m o s a divisão q u e ac o n te ceu n o m o v im e n to nas décadas de 1940 e 1950 p o r causa da “separação bíb lica” e da “separação sec u n d ária”. Q u a n d o os fu n d am en talistas ficaram cada vez m ais sectários e rígidos, os p ro testan te s conservadores co m eçaram a se separar d o m o v im en to , m as p erm a n ece ram teo lo g icam en te o rto d o x o s. Várias qu estõ es d istin guiam os p ro testan tes conservadores q u e q u e ria m ser cham ados de evangélicos dos fu n d am en talistas. As áreas de m ú tu o acordo tam b ém eram relevantes. T anto os fu n d am en talistas q u a n to os novos evangélicos enfatizavam a inspiração so b ren atu ral da Bíblia e as co n q u istas d o u trin ária s da igreja cristã prim itiv a, co m o o Credo de Nicéia e a orto d o x ia p ro testan te . O s dois m o v im e n to s in tim a m e n te relacionados enfatizavam a piedade na conversão co m o um a m arca d o cristian is m o au tên tico e rejeitavam a regeneração batism al e o universalism o. O s novos e v a n g é lic o s re je ita v a m o q u e c o n s id e ra v a m u m e s p írito d e d iss e n s ã o d o s fu n d am en talistas q u a n to a q u estõ es d o u trin ária s e m o rais relativ am en te se c u n dárias e q u eria m desenvolver e n u trir u m a coalizão m ais am pla d o cristian ism o p ro testan te co n serv ad o r ligado à conversão. Para eles, a inspiração bíblica im p li cava na infalibilidade das E scrituras, m as não n ecessariam ente na exatidão té c n i ca absoluta de to d o s os p o rm e n o re s registrados na lite ratu ra bíblica. T am bém não exigia u m a h e rm e n ê u tic a literalista, m o rm e n te n o to can te à o rig em e ao fim dos tem p o s. O s novos evangélicos afirm avam D e u s co m o criad o r de tu d o (creatio ex nihilo) e a segunda vinda de Je su s C risto no fu tu ro , m as p erm itiam diferen tes in terp retaçõ es dos p o rm e n o re s dessas d o u trin as. Além das diferenças a respeito da d o u trin a das E scrituras e da herm en êu tica bíblica, os novos evangélicos e os fundam entalistas en traram em séria discórdia a
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respeito da separação bíblica. O s últim os defendiam a forte recusa de cooperação o u diálogo com os liberais e criticavam d u ra m e n te Billy G raham p o r p erm itir que não so m en te m in istro s m o d erad am en te liberais, m as tam b ém pentecostais e cató licos ro m an o s participassem de seus esforços evangelísticos. A m aioria dos princi pais fundam entalistas rejeitava o crescente m o v im e n to pentecostal q u e enfatizava o q u e consideravam “m ilagres falsificados” e considerava o catolicism o ro m an o apóstata e perigoso. O s novos evangélicos se u n iram em favor de Billy G raham e seus vários m inistérios. G rad u alm en te, nas décadas de 1950 e 1960, u m m o v im e n to relativam ente d iferen te do evangelicalism o pós-fundam entalista com eçou a d e senvolver a p rópria e d istinta teologia, q u e representava um a com binação da o rto doxia e d o p ietism o p rotestantes, com u m to q u e de reavivam entism o para co m p le tar a receita. P or causa da aparente necessidade de fo rn ecer u m a alternativa para o fu n d am en talism o rígido e sectário e para a teologia pro testan te liberal, os novos evangélicos deixaram de lado as diferenças internas. A lguns se inclinaram para a ortodoxia p ro testan te e não viram com bons olhos o p ietism o e m u ito m enos o reavivam entism o p or considerá-los dem asiadam ente experim ental e pouco ce n tralizad o n o c o n te ú d o d o u trin á rio d o cristian ism o . O u tro s p e n d e ra m para o pietism o e o reavivam entism o e, em bora dessem grande valor às sólidas doutrinas bíblicas, enfatizavam m ais o lado experim ental do cristianism o autêntico. Essa fraca coalizão evangélica e n tre as duas teologias protestantes distintas, p o rém com patíveis, carregava as sem entes da discórdia. N as extrem idades d o espec tro evangélico, alguns conservadores cuja principal atividade era p ro m o v er a o rto doxia protestan te da teologia de P rin ceto n criticavam os evangélicos experim entais que tinham com o propósito principal o evangelism o, a conversão e a espiritualidade. O s evangélicos conservadores tem iam que o en fo q u e na experiência cristã pudesse co n d u zir ao liberalism o seus parceiros na coalizão. O s evangélicos experim entalistas, igualm ente co m prom issados com a autoridade da Bíblia e com as d o u trin as cristãs históricas, criticavam as suspeitas de seus parceiros ortodoxos na coalizão, p o r não terem co n seg u id o se livrar in teiram en te da m entalidade fu n d am en talista e por enfatizarem de m o d o unilateral o co n teú d o d o u trin ário d o cristianism o, a po n to de desprezar a experiência q u e podiam ter d o D eus vivo. As tensões en tre as duas alas da coalizão evangélica au m en ta ram e p ioraram depois da S egunda G u erra M u ndial, de m o d o q u e, n o final da década de 1980 c n o início da década de 1990, com eçaram a d iscu tir sobre qual delas representava o evangelicalism o verdadeiro. U m a das alas d o m o v im e n to foi rotulada de paradigm a p u ritan o -p rin ceto n ian o do evangelicalism o e a o u tra pode ser rotulada de paradigm a pietista-pentecostal.2 O p rim eiro paradigm a enxerga Jo n ath an E dw ards e C harles H odge co m o g ran des teólogos evangélicos e en ten d e q u e a Confissão def é de Westminster é u m padrão d o u trin ário do m áxim o valor para todos os evangélicos. A atenção desse paradigm a
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recai na d o u trin a correta, inclusive na inspiração e na inerrância da Bíblia, co m o a essência p erm a n en te do cristianism o evangélico. O segundo paradigm a enxerga os pietistas Spener, Francke e Z in z e n d o rf e aos teólogos reav iv am en tistasjo h n Wesley e C h arles F inney (1792-1875) co m o os grandes precursores do evangelicalism o m o d ern o . N esse paradigm a, a atenção recai na experiência autêntica, so b retu d o na regeneração e na santificação inclusive, com o a essência p erm a n en te do cristianis m o evangélico. O p rim eiro paradigm a considera o m o n erg ism o a n o rm a da d o u trina evangélica, ao passo q u e o segundo aceita, pelo m enos, o sinergism o com o um a opção da teologia evangélica. O que as várias versões da teologia evangélica têm em co m u m ? O s adeptos desses dois paradigm as com partilham do co m prom isso com a cosm ovisão cristã histórica básica, inclusive a crença na transcendência e na atividade sobrenatural de D eus, na Bíblia com o d ivinam ente inspirada e infalível em questões de fé e de prática, em Jesu s C risto co m o o Salvador crucificado e ressuscitado e o S en h o r do m u n d o , na co n v ersão c o m o a ú n ica iniciação a u tê n tic a para a salvação e n o evangelism o com o a transm issão do evangelho a todas as pessoas. Eles tam bém rejeitam a teologia liberal e o fun d am en talism o de diversas form as. O s evangélicos tam bém são am bivalentes no tocante a Karl B arth e à neo-ortodoxia. O s q u e estão m ais próx im o s das raízes fundam entalistas do m o v im e n to rejeitam to talm en te am bos, m as os que se distanciam m ais d o fun d am en talism o os consideram am igos e aliados. M uitos teólogos evangélicos surgiram na história do m o v im en to após a S egun da G u erra M u n d ial, m as n e n h u m foi m ais fam oso o u m ais in flu en te do q u e C ari F. H . H e n ry (1913), teólogo batista escolhido p o r Billy G raham para estabelecer os m oldes intelectuais e teológicos do novo m o v im en to q u an d o este se esforçava para se estabelecer co m o um a oposição ao fun d am en talism o c à teologia liberal. H e n ry foi u m escritor prolífico e u m m estre e conferencista influente. D estacou-se com o o principal porta-voz do evangelicalism o p ós-fundam entalista nas décadas de 1950 e 1960, m as sua força d im in u iu nas décadas de 1980 e 1990 q u an d o se fechou cada vez m ais em um a m entalidade estreita, quase fundam entalista. U m novo portavoz do evangelicalism o m oderado surgiu nas décadas de 1970 c 1980 e sua in ten ção era m an ter ju n ta s as duas tendências protestantes, a ortodoxia e o pietism o, em um a “teologia da Palavra e do E spírito”.3 D onald G. Bloesch (1928-) en sin o u teo logia d u ra n te m u ito s anos na Faculdade de Teologia da U niversidade de D u b u q u e , estado de Iowa. E m toda a sua carreira, co nclam ou os evangélicos a reconhecerem sua base co m u m e a deixarem de lado as discussões insignificantes a respeito de p o rm e n o re s das d o u trin a s das E sc ritu ra s. R o tu lo u seu m o d o d e p e n sa r de “evangelicalism o progressivo” p o rq u e acolhia q u alq u er alta crítica da Bíblia que não partisse de u m preconceito naturalista. O teólogo d o estado de Iow a tam bém
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p ro cu ro u in co rp o rar em sua teologia as qualidades de várias tradições cristãs histó ricas, sem p erm itir q u e ela se tornasse um a “salada” eclética de tem as conflitantes. Para ele, a m ensagem d o evangelho, da cruz e da ressurreição de C risto é o coração e a alm a da teologia evangélica. S em pre q u e h o m en s e m u lh ere s da igreja se esfor çam p o r ressaltar essa m ensagem em suas teologias, B loesch revela-se m ais do que disposto a congregá-las, q u e r sejam ortodoxas orientais, católicas rom anas o u p ro testantes.
A teologia católica romana Até m eados d o século xx, o ún ico concílio ec u m ên ico da Igreja C atólica R om ana depois de T ren to foi o i C o n cílio Vaticano (Vaticano i) na década de 1870. Vaticano i foi co nsiderado u m concílio conservador, quase reacionário, p o r rejeitar as p ro postas inovadoras dos m odernistas na igreja e reforçar o co n tro le da tradição sobre a erudição bíblica e teológica. A pós quase u m século, a teologia católica p erm a n e ceu estagnada à m edida que u m papa após o u tro insistia n o tradicionalism o extre m o, centralizado nos ensinos de Tom ás de A quino. Em 1961, o papa idoso João xxiii convocou o xxi concílio ecu m ên ico a acontecer n o Vaticano, em R om a. O u C o n cílio Vaticano (Vaticano n) re u n iu -se de 1962 a 1965 e rev o lu cio n o u a Igreja C atólica R om ana. E m b ora não prom ulgasse q u alq u er dogm a novo n em alterasse radicalm ente a d o u trin a, o concílio “abriu bem as janelas da igreja e deixou um a brisa fresca arejá-la”. O s tradicionalistas lin h a-d u ra enxergaram as brisas co m o um v en to forte de m o d ern ism o . O s progressistas in terpretaram as brisas q u e trariam m udanças à igreja co m o o v en to refrescante do E spírito Santo. Seja co m o for, o Vaticano ii alterou radicalm ente a vida da Igreja C atólica R om ana de tal m aneira q u e deixou de ser isolada pela filosofia e pelas ciências m odernas, pelo p ro testan tism o e pelas religiões m undiais. A m issa passaria a ser celebrada no vernáculo (no idiom a dos leigos); os leigos teriam um a participação m aior nas atividades diárias das igrejas católicas; as listas de livros proibidos foram abolidas e os estudiosos católicos ganharam liberdade para p ublicar obras exploratórias sem a censura p ré via da h ierarq u ia católica. Talvez a m u d an ça m ais relevante q u e Vaticano n p ro d u z iu na teologia católica ten h a sido a afirm ação da suprem acia das Escrituras. E m bora o decreto d o concílio a respeito das E scrituras e da tradição não ten h a chegado a p o n to de afirm ar sola Scriptura, não restrin g iu seriam ente a d o u trin a das “duas fontes de au to rid ad e” tão detestável para os reform adores protestantes do século xvi. N a prática, pelo m e nos, o Vaticano li abriu a Igreja C atólica R om ana e sua erudição a u m nova era de en sin o e estu d o da Bíblia. A Bíblia assum iu u m novo papel e valor co m o fonte e padrão definitivos da verdade. O s p rotestantes q u e acom panharam aten tam en te o concílio ficaram to talm en te atônitos com as m udanças q u e ocorreram . Alguns,
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inclusive Karl B arth, foram convidados ao concílio co m o historiadores e com o conselheiros dos bispos e teólogos católicos q u e debateriam e redigiriam os decre tos. D epois do concílio, o contato ecu m ên ico e n tre pensadores católicos e protes tantes co n tin u o u , de tal m o d o que, na década de 1990, até os p rotestantes evangé licos conservadores e teólogos católicos rom anos m oderados se encontravam re g ularm ente para diálogos e chegavam a acordos a respeito de extensas esferas da fé e da ética cristãs.4 O m ais in flu en te teólogo católico ro m an o pós-Vaticano n foi Karl R ahner, que nasceu na Á ustria em 1904. M o rre u n o m esm o país, em 1984, depois de um a car reira a lecionar e a escrever teologia católica, com parável historicam ente apenas à Tom ás de A quino. Suas obras com pletas, intituladas Investigações teológicas, foram reunidas em vinte volum es. M ais de 3 500 livros e artigos foram publicados p o r R ah n er en q u a n to vivia. N o fim da vida e da carreira, publicou, em u m ú n ico v o lu m e, u m resu m o sistem ático dos ensinam entos transm itidos na sua vida, intitulado Alicerces da f é cristã (1978). N e n h u m pensador católico d o m u n d o m o d e rn o in flu encio u tão p ro fu n d am en te a teologia católica ro m an a c o m o ele. R ah n er foi o eq u i valente católico a Karl B arth em term o s de influência e de im pacto. Foi o teólogo católico ro m an o m ais notável d o século xx e, talvez, da própria era m oderna. Infelizm ente, é extrem am ente difícil e n ten d e r as reflexões teológicas de R ahner. Ele fez em p reg o extensivo da filosofia e de sua term inologia, não raro, sem expli cações. Seu principal objetivo era d em o n strar a viabilidade intelectual da revelação e do testem u n h o cristão no contexto cultural m o d ern o . Para tanto, desenvolveu um a antropologia teológica (d o u trin a da h u m anidade) para servir de “teologia fu n d am en tal” o u teologia filosófico-apologética que “consiste em um a prova científi ca do fato da revelação de D eus em Jesu s C risto ”.5 Essa teologia visa su b stitu ir a teologia natural tom ista tradicional. R ah n er te n to u d em o n strar com um a explora ção erudita da natureza e da existência h u m an a q u e os seres h u m an o s são, por natureza, “receptivos a D e u s” e en co n tram sua realização pessoal so m en te n o rela cio n am en to co m D eus p o r in term éd io de Jesu s C risto co m o Salvador absoluto. O espaço de q u e dispom os n o presente não co m p o rta sequer um a descrição superfi cial d o m éto d o ou das conclusões de R ahner. Basta dizer q u e acreditava ser possí vel d em o n strar não so m en te que o ateísm o é im possível, m as tam b ém q u e to d o o pen sam en to h u m an o encontra em D eus a sua fonte e seu h o rizo n te su p rem o e q u e todos os anseios e aspirações espirituais h u m an o s en c o n tram em Jesu s C risto a sua realização suprem a. O s dois conceitos m ais controvertidos de R ah n er são o “existencial so b re n atu ral” e o “cristianism o a n ô n im o ”. D e acordo com o teólogo austríaco, os seres h u m anos são, p o r natureza, receptivos à auto-revelação de D eus em Jesu s C risto. Além da natureza, en tre tan to , existe a revelação e a redenção sobrenatural e os
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seres h u m an o s são un iversalm ente dotados p o r D eus com a capacidade de recebe rem a graça. N a realidade, to d o ser h u m an o tem d e n tro de si u m elem en to de graça — u m existencial sobrenatural — q u e constitui a possibilidade da salvação. Q u e m seguir essa graça in terio r e sobre ela edificar en contrará a salvação total, in d ep en d e n tem en te de ter ouvido a m ensagem expressa de Jesu s C risto. O s que a seguem e vivem segundo a vontade de D eus, sejam cristãos batizados ou não, são “cristãos an ô n im o s”. R ah n er sustentava a salvação universal, de form a que, para a pessoa ser co n denada à perdição etern a n o inferno, tin h a de rejeitar explicitam ente a oferta da graça salvífica feita p o r D eus. E m esm o os q u e a rejeitassem podiam ser salvos se a rejeição se baseasse no m au e n te n d im e n to d o evangelho, desde que vivessem co n fo rm e a vida q u e D eus lhe revelou ser agradável: um a vida de am o r e m isericórdia para co m o próxim o. As d o u trin as de R ah n er a respeito de D eus, de Jesu s C risto e da salvação esta vam d en tro dos lim ites da tradição católica, em b o ra fossem expressas em um a linguagem filosófica altam ente abstrata. Ele afirm o u a d o u trin a da T rindade e c u n h o u u m a frase q u e ficou conhecida na teologia contem p o rân ea co m o a “regra de R a h n e r”: a T rindade econôm ica é a T rindade im an en te e a T rindade im an en te é a T rindade eco n ô m ica.6 E m outras palavras, R ah n er en sin o u tanto os teólogos cató licos q u an to os protestantes a evitarem a distinção en tre a vida trinitária de D eus na etern id ad e (a T rindade im anente) e a atividade trinitária de D eu s na história (a Trindade econôm ica). S egundo R ahner, D eus é aquele q u e está en tre nós. O Pai, o Filho e o E spírito Santo não se co n stitu em em u m círculo celestial intocado pelos eventos concretos e históricos de Jesu s e pelos atos d o E spírito Santo. A T rindade é a receptividade de D eus à hum an id ad e, assim co m o a hu m an id ad e é, p o r n a tu re za, receptiva a D eus. N ã o se trata de um a síntese panteísta hegeliana da divindade e da h u m an id ad e, m as certam ente de um a alteração do teísm o cristão clássico que afirm a que D eus é afetado pelo q u e acontece na história p o rq u e decide ser afetado. As influências com binadas do Vaticano n e das reflexões teológicas de Karl R ahner torn aram m ais elásticas e flexíveis as fronteiras en tre a teologia católica, a filosofia e a teologia p ro testante. O s sacerdotes e teólogos q u e estudaram nas universidades e sem inários católicos desde 1960 têm u m universo de reflexão diferente do q u e os que estudaram antes d o concílio e sem a forte influência de R ahner. E m geral, são m u ito m ais abertos ao p en sam en to m o d ern o e, especialm ente, à análise crítica da tradição católica. N ã o raro, defen d em toda a igreja co m o o povo de D eus, p o rta n to, os protestantes estão incluídos na igreja verdadeira de Jesu s C risto. O diálogo ecu m ên ico com os protestantes e m esm o com as religiões não-cristãs é m ais co m u m e aceito nos círculos católicos. M u ito s sacerdotes e teólogos católicos se tor naram tão liberais q u e, nas décadas de 1980 e 1990, o Vaticano com eçou a descon fiar e iniciou um a série de investigações sobre teólogos católicos q u e fez com que
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vários progressistas fossem obrigados ao silêncio o u ate m esm o forçados a abando nar a igreja. A m aioria dos historiadores, n o en tan to , acreditam q u e o e n d u reci m e n to da autoridade do Vaticano e da tradição n o papado de Jo ão Paulo n seja u m a reação tem porária. M u itos anseiam pelo dia em que católicos e protestantes des frutarão de plena c o m u n h ão e fraternidade e os pensadores católicos desfrutarão de toda a liberdade co m a qual os protestantes contam .
A teologia do processo E m toda a história da teologia cristã, vim os q u e a filosofia e a teologia são parceiras de diálogo ap aren tem en te inseparáveis. N o s séculos 11 a v, os pensadores cristãos em pregavam categorias e form as de pen sam en to helenísticas para explicar e tran s m itir a m ensagem bíblica aos pagãos cultos do Im pério R om ano. Tanto O rígenes com o A gostinho aproveitaram consideravelm ente o platonism o e, às vezes, pereci am p erm itir q u e ele dom inasse e controlasse suas form ulações da d o u trin a cristã. N a teo lo g ia m ed iev al, T om ás de A q u in o u so u a re c é m -d e s c o b e rta filosofia aristotélica co m o “serva” da teologia, po rém , m u ito s críticos alegam q u e sua ver são do teísm o cristão clássico foi m oldada p o r essa filosofia pagã. O s teólogos libe rais fazem parte do g ru p o de teologia m o d ern a que, freq ü en tem en te , considera a filosofia um a parceira valiosa e à sua altura no e m p re e n d im e n to teológico. U m m o d elo da teologia co ntem p o rân ea que é liberal e afirm ativo q u a n to à m istura de u m p o u co de filosofia na teologia é a teologia d o processo. A teologia do p rocesso rep resen ta a tentativa de alguns p en sadores cristãos co n tem p o rân eo s de re co n stru ir a d o u trin a de D eu s e toda a teologia cristã, para h arm o n izá-la m elh o r com as crenças m o d ern as sobre a natu reza d o m u n d o . O s pensadores do processo p artem da pressuposição prática de q u e a teologia cristã deve ser revisada e atualizada em cada nova cu ltu ra, à luz de seus interesses, q u es tões c dúvidas específicas. A lém disso, acreditam q u e u m a teologia cristã viável não pode se o p o r às pressuposições m ais básicas da c u ltu ra sobre a realidade. U m a das pressuposições básicas da cu ltu ra helenística era q u e a perfeição do ser é está tica. Isto é, a m u d an ça é u m a evidência da im perfeição. O real su p re m o — o div in o — deve ser ab so lu tam en te sim ples (não co m posto) e im utável (im passí vel). D e o u tra form a, seria im perfeito. O s teólogos do processo insistem q u e o p en sa m e n to m o d e rn o não pode co n co rd ar com esse co n ceito do ser e da perfei ção. H o m e n s e m u lh ere s m o d ern o s, inteligentes e sensatos, sim p le sm e n te sabem q u e esse co n ceito é u m a falha da m etafísica. A m u d an ça não é m ais considerada evidência da im perfeição. Aliás, seg u n d o o p en sa m e n to m o d e rn o , existir é m u dar. Tudo está relacionado a algum a coisa. A p rópria existência d ep en d e de relacio nam en to s. E os relacio nam entos d ep e n d em d e ficarm os abertos para serm os afe tados p o r o u tras pessoas nessa rede d in âm ica de re la cio n am en to s. A n atu re za
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fu n cio n a assim , da m esm a fo rm a q u e os seres h u m an o s. A existência é social e ser social significa ser dinâm ico. O s teólogos do processo acreditam que é necessária um a nova filosofia que faça o p en sam en to cristão m o d e rn o deixar para trás a m etafísica ultrapassada da perfeição p erp étu a e im utável e q u e re co n stru a a teologia de tal m o d o q u e seja viável neste m u n d o m o d ern o em q u e o “to rn a r-se ” é m ais im p o rtan te do q u e o “s e r”. Eles en c o n trara m essa filosofia nova n o p en sa m e n to d o m atem ático b ritâ nico A lfred N o rth W h itehead (1861-1947). W h iteh ead passou da m atem ática para a filosofia especulativa q u a n d o deixou sua terra natal na Inglaterra a fim lecionar na U n iv ersid ad e de H arvard em 1924. S egundo alguns historiadores, ele crio u o sistem a m etafísico m ais im p ressio n an te d o século xx ao co n ceb er a p ró p ria reali dade co m o u m a rede de m o m en to s inter-relacionados de energia cham ados “acon tecim en to s reais”. E m vez de descrever a realidade em term o s de objetos, q u e r sejam físicos, espirituais, ou am bos, W hitehead co n ceb eu toda a realidade em fu n ção de eventos o u fragm entos de experiência. A realidade é m ais u m a série de aco n tecim en to s do q u e um a grande cadeia de existência. Ser real é “aco n te cer” em relação a o u tro s aco n tecim en to s e “v ivenciar” integrado a um a rede de en tid a des q u e vivenciam . W hitehead en c o n tro u espaço para d efin ir D eus em sua filosofia co m o o grande princípio o rganizador cósm ico. D eus cria o m u n d o ao unificá-lo d en tro do possí vel. E n tretan to , na filosofia religiosa de W hitehead, D eus não é o n ip o ten te nem eterno. Ele co n tém o m u n d o e está co n tid o nele. L em brando as palavras de H egel que disse q u e “sem o m u n d o , D eus não é D e u s”, W hitehead afirm ou que “dizer que o m u n d o cria a D eus é tão certo q u an to dizer q u e D eu s cria o m u n d o ”. D eus é su p erio r ao m u n d o em q u alq u er m o m en to , m as tam b ém é sem pre capaz de ser su p erio r a si m esm o. E, realm ente, D eu s se torna su p erio r a si m esm o a todo m o m en to . D eu s se desenvolve com o m u n d o e sob a influência dele. U m co n ceito fu n d a m e n tal da filosofia de W h iteh ead é a “d ip o larid ad e” ou “b ip o laridade” de cada entidade real (entidade real é o u tro te rm o para descrever os elem en to s básicos q u e co m p õ em a realidade, tam b ém conhecidos p o r “aconteci m en to s reais”). N ad a é real, a não ser as entidades reais. Todas as pessoas, inclusive D eus, p ossuem dois aspectos o u pólos: o físico e o m ental. O s pólos de D eus tam b ém podem ser descritos com o “p rim o rd ial” e “co n se q ü e n te ”. N o pólo p ri m ordial — o caráter básico e estável de D eus q u e co n tém ideais ainda a serem concretizados — , D eus não m uda. E m ais abstrato e potencial do q u e concreto e real. O pólo co n seq ü en te de D eus é sua realidade vivida, sua experiência real, e está em constante m ud ança à m edida q u e D eus “sen te” o m u n d o . D a m esm a for m a q ue a condição d o m u n d o afeta e até constitui a existência concreta de D eus, D eus afeta o m u n d o . D eus fornece a ele os ideais de sua natureza prim ordial e
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ten ta sed u zir o u p ersuadir e co n q u istar os acontecim entos reais do m u n d o para au m en ta r a h arm onia, a beleza e o prazer. M as D eus não pode obrigar n e n h u m a en tidade real a alcançar seu “alvo ideal subjetivo”. Pode apenas ten tar persuadi-la. Toda en tid ad e real possui certo grau de livre-arbítrio e au to determ inação e pode seguir ou resistir ao ideal de D eus. O mal é um a conseqüência da resistência aos ideais de D eu s pelas entidades reais e isso faz D eu s sofrer. D eus enriquece ou em pobrece co n fo rm e as respostas do m u n d o à sua influência persuasiva. W h iteh ead não era cristão n o sen tid o form al da palavra. Sua religião era u m a religião natural ditada p o r sua filosofia. M as m u ito s pen sad o res cristãos liberais en co n traram algo de valor em sua filosofia para a reco n stru ção da d o u trin a cristã à luz dos co n h e cim en to s m o d ern o s. O s q u e procuravam relacionar a teologia cristã com a filosofia de W h iteh ead foram cham ados de teólogos d o processo e, na década de 1970, esse g ru p o au m en to u . O s principais sem in ário s pro testan tes e faculdades de teologia em universidades dos Estados U n id o s e d o C an ad á adota ram a teologia d o processo co m o principal ênfase c abordagem . A Faculdade de P ó s -G ra d u a ç ã o T eo lógica d e C la re m o n t (n a C a lifó rn ia ) v in c u la d a à Igreja M etodista U n id a, to rn o u -se u m c e n tro de teologia do processo. Ali se en c o n tram o C e n te r for Process S tudies [C e n tro de estu d o s do processo] e os d e p a rta m e n tos editoriais da revista Process studies [Estudos do processo]. O fo m e n ta d o r p ro tes tan te m ais articulado da teologia do processo, da década de 1960 até o com eço da década de 1990, foi J o h n C o b b Jr. (nascido em 1925), m in istro da Igreja M etodista U n id a e filho de m issionários. O professor de teologia de C la re m o n t p u blicou vários livros aplicando a filosofia de W h iteh ead à teologia cristã, inclusive Uma teologia natural cristã (1965), Deus e o mundo (1965) e Cristo em uma era pluralista (1975). Em todos os livros, C o b b enfatizou a relação de in terd ep en d ên cia de D eus com o m u n d o . Todos os teólogos de processo, inclusive J o h n C obb, queriam afastar a teologia cristã do teísm o cristão clássico, conform e desenvolvido na igreja prim itiva e m ed i eval. E m vez da transcendência de D eus, enfatizam a im anência de D eus. E m vez da qualidade absoluta de D eus, ressaltam a sua natureza pessoal. O am or de D eus, sua vulnerabilidade e seu sofrim ento inclusive, têm precedência sobre seu p o d er e so berania. Em segundo lugar, C o b b e os dem ais teólogos do processo rejeitam o m onergism o, b em com o q u alq u er descrição coerciva da obra de D eus n o m u n d o . D eus nun ca obriga um a entidade real — e os seres h u m an o s consistem em aconte cim entos reais — a fazer algum a coisa. Ele sem pre opera exclusivam ente pela p er suasão. D eus conclam a o m u n d o à sua plenitude na perfeita integridade e harm onia de seu reino, m as cabe às criaturas livres decidir se e co m o vão corresponder. A teologia tradicional dizia: “o h o m em propõe, m as D eus dispõe”; a teologia de p ro cesso diz: “D eus propõe, m as o h o m em dispõe”. F inalm ente, a teologia do processo
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é naturalista p o rq u e rejeita to d o o conceito das intervenções sobrenaturais d o p o der divino na o rd em natural. E m bora ela não exclua os atos persuasivos especiais de D eus, certam en te exclui m ilagres absolutos, b em co m o sinais e fenôm enos inexplicáveis. D eu s opera d iretam en te em cada entidade real, fo rn ecen d o -lh e seu alvo ideal inicial e atraindo-a para a idéia divina d o q u e ela deveria se tornar. M as D eus n u n ca in terro m p e a o rd em natural dos acontecim entos, n em força q u alq u er coisa a acontecer de m o d o co n trário à natureza o u ao livre-arbítrio. Ele n em se q u er pode co n h ecer o fu tu ro em cada detalhe com absoluta certeza, p o rq u e os detalhes só p o d em ser “p re en ch id o s” pelas decisões livres das entidades reais q u e ainda n em existem . A teologia do processo é u m m odelo específico d o século xx da teologia p ro tes tante liberal. A lguns pensadores católicos rom anos tam b ém aceitam alguns aspec tos dela. Seu atrativo parece estar na solução q u e oferece para o problem a d o m al e do sofrim en to dos inocentes. A Segunda G u e rra M undial e os holocaustos q u e a acom panharam desafiaram radicalm ente as idéias de m u ito s teólogos a respeito de D eus e do so frim en to . O n d e estava D eus q u an d o seis de nove m ilhões de ju d e u s foram executados em câm aras de gás e incinerados pelos nazistas? Para m uitos teólogos co n tem p o rân eo s, os h o rro res da guerra e do genocídio d o século xx exi giam u m a revisão radical das noções agostinianas do p o d er e da soberania de D eus. Segundo eles, se D eus pudesse im p ed ir as chacinas de h o m en s, m u lh ere s e crian ças inocentes, ele o teria feito. O caso, portan to , é q u e ele não podia. O s teólogos do processo en co n traram consolo e refúgio n o conceito de W hitehead sobre D eus com o u m “c o m p an h eiro n o so frim en to q u e co m p re en d e” e que não pode obrigar as entidades reais o u as sociedades delas a praticar o bem e não o mal. M u ito s dos críticos da teologia do processo sugerem q u e ela foi longe dem ais ao se o p o r ao m o n erg ism o agostiniano. O D eus w hiteh ead ian o da teologia d o p ro cesso de C o b b seria incapaz de fazer a m aioria das coisas que a teologia cristã tradi cion alm en te atribui à atividade de D eu s na criação e na redenção. O D eus do p ro cesso não criou o m u n d o no princípio. O m u n d o é o “co rp o ” de D eus e D eus é a “alm a” ou “m en te” do m u n d o , e os dois (corpo e alma) são etern am en te inseparáveis e in terd ep en d en tes. A lém disso, segundo a teologia d o processo, não existe n e n h u m a garantia e n em m otivo para crer q u e D eus vencerá em u m fu tu ro distante a intransigência da resistência à sua visão do bem . N ada nos im pede de su p o r q u e o fu tu ro consistirá em nada m ais do q u e exatam ente a m esm a coisa. O debate q u es tio n an d o se a teologia do processo poderia até ser considerada “cristã” foi violento nos círculos teológicos nas décadas de 1970 e 1980 e não chegou a n e n h u m c o n senso. Ela ainda é ensinada co m o um a versão viável da teologia cristã em m uitos sem inários protestantes clássicos liberais e, ao m esm o tem po, é condenada com o heresia p o r m u ito s teólogos conservadores.
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Teologias da libertação N a década de 1970, grupos de cristãos social, econôm ica e politicam ente o p rim i dos da A m érica d o N o rte e d o Sul com eçaram a desenvolver teologias da liberta ção. O s teólogos negros da A m érica do N o rte voltaram a atenção para o problem a do racism o e in cluíram no conceito da salvação a libertação dos afro-am ericanos do p reconceito e da exclusão racial. A lguns dos principais teólogos negros da déca da de 1970 chegaram a p o n to de sugerir q u e D eus é negro e q u e a salvação no contexto n o rte-am erican o m o d ern o significa “tornar-se negro com D e u s”. Essas declarações enigm áticas não devem ser tom adas m u ito ao pé da letra. A lição que Jam es C o n e e o u tro s q ueriam en sin ar é q u e D eus tom a o partido dos oprim idos e tiranizados, e as pessoas q u e buscam a salvação não po d em se m an ter neutras d ian te da segregação e da opressão racial. N a A m érica Latina, teólogos católicos e p ro testantes com eçaram a refletir teologicam ente sobre a situação do c o n tin en te — a m iséria extrem a e a injustiça econôm ica — e in terp retaram a salvação in clu in d o a idéia da abolição da pobreza estru tu ral e das o rd en s políticas injustas. N a década de 1980, teólogos fem inistas am ericanos votaram a atenção cada vez m ais para o p ro blem a do preco n ceito sexual e d o patriarcalism o, tan to na igreja q u a n to na socie dade. In terp retaram a salvação in clu in d o a igualdade en tre os h o m en s e as m u lh e res e até m esm o u m a reform a radical não so m en te do d o m ín io m asculino, m as tam b ém de todas as hierarquias políticas e sociais. Essas três principais form as de teologia da libertação com partilham certas ca racterísticas em co m u m , apesar das diferenças, das quais as m ais im portantes d i zem respeito às injustiças sociais. Teólogos afro-am ericanos, co m o Jam es C o n e do S em inário Teológico U n io n em N o v a York, identificam o racism o co m o o p rin ci pal pecado social da A m érica d o N o rte . Teólogos fem inistas, co m o R osem ary R u eth er d o S em inário Teológico Evangélico G a rrett em E vanston, Illinois, id en ti ficam o preco n ceito sexual e o patriarcalism o (o d o m ín io m asculino) com o os principais pecados sociais. G ustavo G utiérrez, do Peru, identifica a pobreza e stru tural co m o o principal mal social da A m érica Latina. P orém , todos concordam que a teologia não é u n iv ersalm ente aplicável e n e m social e politicam ente neutra. A teologia precisa ser no v am ente contextualizada em toda situação sociocultural e se to rn ar concreta e co m p ro m etid a com a ju stiç a naquela situação específica. Teólogos da libertação de todos os tipos rejeitam u m a teologia universal que sirva para todas as pessoas de todos os lugares. C ada g ru p o o p rim id o deve ter liber dade para refletir criticam ente a respeito das E scrituras e da situação atual na qual estão inseridos, e resolver p o r conta própria co m o m elh o r in terp re tar e viver a m ensagem do evangelho. Para q u alq u er tipo de teologia da libertação, a teologia é um a reflexão concreta e com prom issada sobre a práxis à luz da Palavra de D eus. Práxis significa “atividade libertadora” e é o q u e acontece em q u alq u er situação de
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opressão q u an d o as pessoas com eçam a se libertar e buscar igualdade e justiça. A tarefa dos teólogos é ajudar as pessoas em sua luta pela liberdade, vinculando-a à Palavra de D eus. U m im p o rtan te teólogo de libertação latino-am ericano fornece um a breve descrição desse conceito de teologia: A teologia, com o concebida aqui, não é uma tentativa de oferecer um m odo correto de entender os atributos ou ações dc D eu s, mas uma tentativa de articular a ação da fé, o form ato da práxis concebida e concretizada na obedi ência. Da m esm a forma que a filosofia 110 fam oso ditado de Marx, a teologia precisa parar de explicar o m un do e com eçar a transformá-lo. A ortopráxis, em vez da ortodoxia, se torna o critério da teologia.7
U m seg u n d o item de m ú tu o acordo en tre os teólogos da libertação é q u e D eus tem preferência pelos o p rim id o s e q u e os op rim id o s têm u m e n te n d im e n to espe cial da vontade de D eu s em q u alq u er situação social. Isso não significa q u e os afroam ericanos, as m u lh eres o u os pobres têm u m relacionam ento autom aticam ente favorável co m D eus q u e lhes confere u m a vantagem na salvação eterna. O s teólo gos da libertação pensam na “salvação” prin cip alm en te sob o co ntexto histórico e social e não individualista. N isso, têm m u ito em c o m u m com o m o v im e n to m ais antigo do E vangelho Social. E n tretan to , acreditam q u e na m ensagem profética bí blica, D eu s tom a p artid o de seu povo o p rim id o e pro cu ra ativam ente libertá-lo de toda a escravidão, sujeição e desigualdade. P ortanto, q u an d o h o u v er um a situação em q u e u m g ru p o é o p rim id o p o r o u tro , de tal m aneira q u e seus m em b ro s são im pedidos de realizarem o seu potencial, D eus tom ará o lado do g ru p o o p rim id o na luta para se libertar e alcançar a plena integridade de seus m em bros. Em terceiro e ú ltim o lugar, todos os teólogos da libertação co n co rd am q u e a m issão cristã consiste necessariam ente da participação ativa da igreja cristã na li bertação dos o prim idos. A igreja é conclam ada p o r D eus a se identificar com os op rim idos e m arginalizados, e não com os ricos, poderosos e privilegiados. C o m dem asiada freqüência, alegam os libertacionistas, as igrejas e denom inações cristãs se aliam às classes e p equenos grupos de privilegiados da sociedade e, com isso, co n trib u i para a injustiça e a desigualdade. N a A m érica Latina, os teólogos da libertação conclam am os bispos católicos ro m an o s a ab rirem m ão de seus acordos e am izades com os oligarcas do poder que co n tro lam a m aio r parte das riquezas e em pregam a força para m an terem a m aioria das pessoas em p e rm a n e n te estado de pobreza. D ian te do ped id o dos teólogos da libertação, os bispos latino-am ericanos co n co rd aram e endossaram os princípios básicos da teologia da libertação em duas grandes conferências em 1968 e 1979 ( C elam ii e C elam iii ). In flu e n te s bispos e arcebispos de países latin o -am e-
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ricanos exerceram forte pressão sobre os ditadores m ilitares para m u d arem radi calm en te as condições sociais em seus países. Em alguns casos, co m o na N icará gua, os bispos apoiaram revoluções contra as fam ílias governantes. E m El Salvador, o bispo libertacionista O scar R om ero, foi assassinado p o r u m esquadrão da m orte e se to rn o u u m m ártir da teologia da libertação. O s três principais teólogos da libertação já foram m encionados. Jam es C o n e (1938-) é freq ü en tem en te considerado o pai da teologia afro-am ericana. N o final da década de 1960 e início da de 1970, foi in tim am e n te associado aos m ovim entos Black P ow er [P oder N e g ro ] de M alcolm x e de o u tro s afro-am ericanos insatisfei tos com a tática pacifista de M artin L u th er K ing Jr. n o com bate ao racism o. C o n e escreveu dois livros teológicos, q u e abriam novas fronteiras e foram am plam ente debatidos, para ju stificar o ativism o radical: Black theology and black power (1969) \A teologia negra e o poder negro ] e A black theology ofliberation (1970) [A teologia negra da libertação]. A rg u m en to u que D eus é negro e que o p o d er negro é “a principal m e n sagem de C risto à A m érica n o século xx”,8 e pareceu apoiar o u de fato p ro p o r um a guerra racial, caso fosse o único m eio de acabar com o racism o nos Estados U n i dos. C o n e o cu p o u a cátedra C harles H . Briggs de Teologia Sistem ática no prestigi oso e liberal S em inário Teológico de U n io n na década de 1970. C o n tin u o u a d e senvolver a teologia negra baseada na experiência afro-am ericana da opressão e da libertação pu b lican d o vários livros c artigos. O s críticos o consideram u m a voz perigosam ente radical e sectária da teologia cristã contem porânea, en q u a n to seus partidários o consideram u m profeta sem elhante a A m ós n o a t . O pai da teologia da libertação latino-am ericana é G ustavo G u tiérrez (1928-), q u e m o ra em Lima, Peru, e cujo livro Teologia da libertação (1971) co n tin u a sendo a principal m atéria de estudo do m ovim ento. G u tiérrez é u m teólogo católico com am plos contatos ecum ênicos. Viaja freq ü en tem en te à A m érica do N o rte e à E u ro pa para d issem in ar a m ensagem da libertação e participar de debates abertos com teólogos de países afluentes. Explicou a origem da injustiça política e econôm ica na A m érica Latina pela m anipulação e a interferência da A m érica do N o rte e da E uropa em sua “teoria da d ep en d ên cia”. S egundo o teólogo peruano, a d e p e n d ê n cia econôm ica da A m érica Latina em relação às econom ias e aos governos n o rteam ericanos e eu ro p eu s foi deliberadam ente planejada para beneficiar as socieda des já afluentes e m an ter as sociedades e culturas do hem isfério sul em u m a situa ção desprivilegiada. Assim com o m u ito s o u tro s teólogos da libertação (a m aioria dos quais o consideram seu porta-voz e líder), G u tiérrez en ten d e q u e a salvação consiste na d erro ta das forças q u e m an têm as m aiorias latino-am ericanas na p o breza e no estabelecim ento de dem ocracias econôm icas de natureza basicam ente socialista ou m esm o com unista. E ncontra inspiração e orientação nas teorias eco nôm icas e políticas de Karl M arx, em b o ra rejeite o ateísm o e m aterialism o.
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A voz m ais alta na teologia fem inista é a de R osem ary R u eth er (1936-), autora de u m dos principais livros d o m ov im en to : Sexism andgod-talk [Sexiswo e conversa religiosa, 1983], J u n to com o u tro s cristãos fem inistas, R uether, teóloga católica que leciona em u m sem in ário m etodista, arg u m en ta q u e o patriarcalism o é u m mal básico que precisa ser elim inado para q ue a salvação aconteça. A palavra patriarcalismo não se refere apenas ao d o m ín io dos h o m en s — em b o ra esse seja o significado im ediato d o te rm o — , m as tam bém à estru tu ra hierárquica da sociedade, criada tanto p o r h o m en s co m o p o r m u lh eres, na qual as figuras paternais co n tro lam tudo. N e m o p ró p rio D eu s deve ser considerado u m ser acim a dos o u tro s q u e tu d o controla. S egundo R uether, D eus deve ser cham ado “D c u s(a)” e considerado a “m atriz da existência” q u e une todas as pessoas e todas as coisas em um a rede de igualdade e inter-relacionam ento. C o m o as m u lh eres têm m ais facilidade para se assim ilar a essa visão da sociedade, R u eth er propõe q u e sejam estabelecidas “igre jas fem inistas” co m o co m u n id ad es alternativas às denom inações e congregações dom inadas p o r h o m en s. As igrejas fem inistas seriam lugares seguros para fem inis tas (inclusive h o m en s com a consciência da igualdade das m u lh eres) explorarem o novo paradigm a da teologia fem inista n o en sin o e na liturgia voltado inteiram ente para as experiências das m ulheres. As teologias da libertação são centelhas q u e acenderam grandes controvérsias na teologia contem p o rânea. A lguns críticos rejeitam in teiram en te sua orientação política e as acusam de dividir o corpo de C risto en tre h o m en s e m u lh eres, ricos e pobres, brancos e negros. O s historiadores sim patizantes, em geral, en co n tram m u ita coisa de valor nas m ensagens proféticas dos libertacionistas para to rn ar a te o lo g ia m ais c o n c re ta n o c o m b a te à in ju s tiç a e à o p re s sã o . O s p ró p r io s libertacionistas não estão m u ito interessados em resp o n d er aos críticos e dão p o u co valor aos co m en tários objetivos dos historiadores. Eles e n te n d e m q u e a teologia é dos o p rim id o s e para os op rim id o s e não deve se preo cu p ar em agradar aos o u tros. Para m u ito s fem inistas, a teologia fem inista não consiste em buscar o diálogo com os h o m en s e m u ito m en o s a aprovação deles. C onsiste em buscar a igualdade com pleta en tre h o m en s e m u lh eres em todos os níveis da sociedade, inclusive nas igrejas. Se esse co nceito parece am eaçador aos h o m en s, isso só serve para m o strar que o patriarcalism o é altam ente resistente às m udanças. D a m esm a form a, a teo logia da libertação latino-am ericana está m ais preocupada em tran sfo rm ar as soci edades latino-am ericanas d o q u e em co n q u istar a aceitação e a aprovação dos teó logos c líderes eclesiásticos n o rte-am erican o s e europeus. E Jam es C o n e certa m en te não se im p o rta com a crítica dos brancos à teologia negra. O p rincípio “D eus é n eg ro ” foi feito para d efen d er a consciência afro-am ericana e, se isso ofende alguns brancos, tan to m elhor.
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A teologia escatológica U m a das teologias novas m ais influentes provenientes da E u ro p a na era pós-S egu n d a G u e rra M undial é a teologia escatológica in tim am e n te associada co m os escritos de dois professores alem ães: Jü rg e n M o ltm a n n e W olfhart P annenberg. O s dois nasceram no fim da década de 1920, viveram os h o rro res da Segunda G u erra M undial e se aposentaram de suas carreiras brilhantes nas cátedras de u n i versidades da A lem anha n o início da década de 1990. D esde o fim da década de 1960 até o com eço de 1980, eram c o m u m en te identificados co m o os m ais in flu en tes teólogos protestantes co n tem p o rân eo s de âm bito m undial. E m bora suas teolo gias difiram de várias m aneiras, ju n ta s despertaram u m novo interesse e apreço pelo realism o escatológico da teologia cristã clássica. E m boa parte dos séculos xix e xx, a crença no rein o de D eu s na Terra foi relegada à m itologia p o r teólogos liberais e alguns n eo -o rtodoxos. E m bora R itschl e os teólogos do evangelho social falassem m u ito a respeito d o reino de D eus, referiam -se m ais à o rd em social h u m ana do que à vinda de Jesu s C risto e ao governo e re in o de D eus n o fu tu ro . O s teólogos fundam entalistas pesquisavam todo tipo de especulação sobre a escatologia e, em geral, insistiam no p ré-m ilen arism o dispensacionalista — u m a opinião m u i to específica a respeito do final dos tem pos q u e m uitas vezes significava dar m ais atenção à cham ada grande tribulação e ao anticristo do q u e à m ajestade de Jesus C risto na terra. Essa obsessão fundam entalista pelo fim dos tem pos fez com q u e m u ito s cristãos m oderados, liberais e n eo -o rto d o x o s deixasse de prestar atenção à segunda vinda de C risto ou aos eventos do futuro. M o ltm an n e P an nenberg procuraram resgatar abordagem realista da escatologia bíblica, co m pletam ente livre do fundam entalism o. Esses professores alem ães não tinham n en h u m a form ação no protestantism o conservador. A m bos foram criados em lares sem influência religiosa e se converteram ao cristianism o q u an d o se to rn a ram adultos na época su b seq ü en te à destruição da A lem anha em 1945. M o ltm a n n to rn o u -s e cristão em u m cam p o de p risio n eiro s d e g u erra na G rã -B reta n h a. P an n en b erg teve um a conversão acadêm ica ao cristianism o q u a n d o era e s tu d a n te u n iv e rsitá rio em B erlim . D u ra n te algum te m p o , lecio n a ram ju n to s em u m se m in á rio da igreja estatal e, d ep o is, seg u ira m ca m in h o s separados. M o ltm a n n filio u -se à Igreja R efo rm ad a e le c io n o u p o r m u ito s anos na p restig io sa U n iv e r sid ad e de T ü b in g e n . P a n n e n b e rg to rn o u -s e lu te ra n o e seg u iu c a rre ira na U n i v ersid ad e de M u n iq u e , o n d e se ap o se n to u . A m bos lecio n a ram em u n iv e rsid a des e sem in á rio s n o rte -a m e ric a n o s q u a n d o estavam d e licença d e suas cátedras e se to rn a ra m flu en tes no inglês. A m aior parte de seus escritos foi traduzida para o inglês e eles conquistaram boa reputação na A m érica do N o rte com o os principais teólogos p ro testan te s m o d era d o s — u m m e io -te rm o e n tre o lib era lism o e o conservadorism o. C o n sideram suas abordagens básicas da teologia “criticam ente
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ortodoxas” p or respeitarem a grande tradição da d o u trin a cristã da igreja prim itiva e da R eform a, m as rejeitam o confessionalism o “m ecânico” e o conservadorism o m áxim o. Jü rg en M o ltm an n to rnou-se fam oso com a publicação de seu livro program ático Teologia da esperança em 1964. N ele, enfatizou a revelação com o prom essa (em vez de experiência ou proposição) e a salvação com o a obra histórica de D eus pertencente ao futuro. C olocou o reino de D eus n o centro de suas reflexões teológicas, mas evitou a idéia liberal de identificar o reino de D eus com um a sociedade hum ana. E m vez disso, o teólogo alem ão argum entou que som ente D eus pode concretizar seu reino e assim o fará, e q ue D eus deve ser entendido com o o “poder do fu tu ro ” que irrom pe na história im pelindo-a para um a nova era de paz e justiça que só pode ser prevista p o r q u e m faz p arte da h istó ria. E m b o ra evitasse rig o ro sa m e n te o literalism o escatológico, M o ltm an n acreditava que a igreja devia resgatar a idéia da m ajestade escatológica de D eus. Para ele, a história chegará ao térm ino em D eus e a ressurreição de Jesus C risto é a garantia disso. Ela é a prolepse (antecipação concreta) do reino de D eus, q u ando todos os m ortos se levantarão e as prom essas divinas do novo paraíso e nova terra serão cum pridas. A grande novidade de M oltm ann foi identificar D eus com o poder o u o “im pulso” do futuro. Em obras posteriores, com o O deus crucificado (1974) e A trindade e o reino (1981), ele não deixou n en h u m a dúvida de que tam bém considerava D eus trino, u n o e pessoal, mas co n tin u o u a identificar a pessoa de D eus m ais com a futuridade do que com a origem tem poral da natureza e da história. W olfhart P an n en b erg c o n q u isto u a fam a su b itam en te com a publicação de sua cristologia: Jesus: Deus e homem (1964). N ela, afirm o u o caráter verificável do evento histórico da ressurreição co rp ó rea de Jesu s C risto , o q u e era considerado im p o s sível ou m ito ló g ico pela m aioria dos teólogos alem ães da era m o d ern a. E m u n ís sono co m M o ltm a n n , P an n en b erg in te rp re to u a ressurreição de Jesu s co m o um ev en to escatológico — a prolepse d o fu tu ro re in o de D eu s q u a n d o D eu s final m en te revelará sua d ivindade e m ajestade e será “u m em to d o s”. E m escritos pos teriores, co m o A teologia e o reino de Deus (1969) e A idéia de Deus e da liberdade humana (1973), o p en sad o r lu tera n o alem ão expressou idéias bastante radicais a respeito do fu tu ro de D eu s e inclusive alegou q u e “D eu s ainda não existe”. Essas declarações não devem ser entendidas erro n eam en te. Para P annenberg, D eus existe plen am en te na etern id ade, m as, para o m u n d o , D eu s existe n o fu tu ro e tam bém n o p resen te so m en te se o p o d e r de sua m ajestade fu tu ra irro m p e r na história an tes d o tem p o . O m e sm o p o d ia ser d ito a re sp eito da d o u trin a escatológica de M o ltm a n n so b re D e u s. Para os dois teó lo g o s escatológicos, D e u s n ão precisa do m u n d o para ser o q u e é, m as d ec id e se re la c io n a r com o m u n d o para p e r c o rre r a h istó ria j u n t o co m ele. P a n n e n b e rg fala c la ra m e n te q u e D e u s se realiza co m e pela h istó ria m u n d ia l, sem se to rn a r d e p e n d e n te dela. P o rém , em nossa
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experiência h u m an a finita, D eus parece “ainda n ã o ” existir p o rq u e sua m ajestade é escatológica. O apelo da teologia escatológica, para m u ito s jo v en s pensadores protestantes nas décadas de 1970 e 1980 encontra-se em oferecer u m a alternativa tanto ao teísm o cristão clássico, com seu D eus estático q u e a tu d o controla, q u an to à teologia do processo, com seu D eu s im p o ten te e em desenvolvim ento. A teologia escatológica era u m novo paradigm a p o r considerar o relacionam ento de D eus com o m u n d o . Esse paradigm a se baseia na autolim itação divina pela qual D eus decide livrem ente p erm itir q u e o m u n d o da natureza e da história o afete, sem p erd er a m ajestade sobre ele. A existência de D eus não é co n su m id a n o relacionam ento com o m u n do. M as co m o D eus criou o m u n d o e lhe d eu liberdade, precisa o p erar nele sem dom in á-lo . E essa a solução q u e a teologia escatológica oferece para o problem a do mal: m ales co m o o h o locausto acontecem p o rq u e o m u n d o ainda não é o reino de D eus. D eus oferece à história h u m an a sua própria liberdade e sofre com e p o r ela com o p o d er de sua futuridade, pelo m agnetism o do am or e pela prolepse p o d ero sa. D eus, d o fu tu ro , envia Jesu s C risto e o E spírito Santo para o m u n d o , para d em o n strar seu am o r e libertar as forças espirituais de esperança na co rren teza da história hum ana. N o fim , D eus virá ao m u n d o e anulará to d o o pecado e mal e aqui habitará. Vários críticos, sob diversas perspectivas, já levantaram objeções à teologia escatológica. O s q u e assum em u m a posição m ais liberal (com o os teólogos do processo) co n sid eram -n a m u ito sobrenaturalista e qu estio n am p o r q u e D eus não intervém do fu tu ro para p ô r fim a m ales co m o o holocausto u m a vez q u e ele pode. A lém disso, consideram m itológica a aceitação, pela teologia escatológica, da res surreição de Jesu s C risto e da realidade de D eus co m o trin o e u n o na eternidade. Para eles, essa ortodoxia crítica não é su ficien tem en te crítica. O s teólogos conser vadores, so b retu d o os fundam entalistas, consideram a teologia escatológica m u ito crítica e p o u co ortodoxa. N e m M o ltm a n n n em P an n en b erg endossam a inerrância bíblica ou um a interpretação literalista das origens ou do final dos tem pos. A lém disso, ten d em fo rtem en te ao universalism o, em b o ra n e n h u m chegue a apoiá-lo co m pletam ente.
Cacofonia ou coro? Este cap ítu lo foi in tro d u z id o p o r co m en tá rio s a resp eito da d iv ersid ad e e do pluralism o da teologia contem porânea. Foram desconsiderados alguns m o v im e n tos teológicos m ais radicais p o r não poderem ser seriam ente considerados “cris tãos” (por exem plo, a teologia da m o rte de D eus), po rém , os problem as básicos devem ficar claros para q u alq u er leitor atento. O que falta no cenário da teologia cristã na virada d o m ilê n io é u m a m etanarrativa ab ran g en te q u e servisse para
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re u n ific á-la . M u ito s, in ev ita v e lm e n te , c o n sid e ra rã o a p re se n te situação u m a cacofonia de vozes e tam parão os ouvidos, aborrecidos, o u acolherão o barulho com o u m a libertação ju b ilo sa da u n ifo rm id ad e im posta. A lguns verão a situação p resente com certa esperança. Vozes diversas, ao se u n ire m em uníssono, podem fazer u m coral co m a cacofonia e u m coro com a confusão. S om ente o fu tu ro revelará se a teologia cristã perm anecerá radicalm ente pluralista o u redescobrirá u m acorde co m u m q u e u nirá várias vozes sem obliterá-las.
Conclusão O futuro de uma história inacabada £ \ história da teologia cristã com eçou com a diversidade, a tensão e a busca da unidade na crença. E m todas as igrejas cristãs do Im p ério R om ano, apareceram grandes pensadores para co n fro n tar os difíceis desafios postulados p o r sectários que se faziam passar p o r cristãos e p o r críticos pagãos que ridicularizavam os ensi nos cristãos. Seus e m p re en d im en to s na form ulação de respostas inteligíveis para as perguntas e na exclusão das respostas erradas geraram a padronização de certas crenças que não podiam ser encontradas explicitam ente em fontes cristãs. P or exem plo, em n e n h u m a parte das E scrituras o u dos ensinos dos apóstolos aparece o c o n ceito de creatio ex tiihilo (a criação a partir d o nada). N e m p o dem os en c o n tra r clara m en te expressa a idéia da trindade e da unidade de D eus. P or certo, a idéia plena m en te desenvolvida da encarnação co m o união hipostática de duas naturezas é, na m elh o r das hipóteses, sugerida nas fontes cristãs q u e são consideradas revelação divina. Essas e m uitas outras d o u trin as ortodoxas são fru to m u ito m ais da reflexão sobre a revelação divina d o que da revelação. Esse fato em nada as priva de sua veracidade. Isso significa apenas q u e elas representam a linguagem de segunda o r dem da igreja. A linguagem de prim eira o rd em é a linguagem da revelação. D e se n volver a linguagem de segunda o rd e m na d o u trin a e aplicá-la na igreja to rn o u -se necessário para evitar q u e o cristianism o chegasse à futilidade de ser com patível com toda e q u alq u er coisa. O em p re en d im en to de desenvolver, preservar e d efen d er a ortodoxia era consi derado necessário pelos pais da igreja antiga e pelos reform adores do século xvi e seus herdeiros pelo b em da salvação. N u n c a se co n sid ero u q u e as d o u trin as fos sem u m fim em si m esm as, idéias para serem estudadas e cridas sem um propósito m aior. P elo c o n trá rio , em seu s m e lh o re s m o m e n to s , os pais da igreja e os reform adores en ten d e ram q u e a tarefa teológica era u m ato de sobrevivência. Sem dou trin a, não haveria co m o m an ter o evangelho de Jesu s C risto d istin to e claro.
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Sem u m a visão da verdade, a proclam ação do evangelho seria im possível. E sem a proclam ação do evangelho, a salvação seria im provável. Esse era o raciocínio por trás dos ensinos, às vezes aparen tem en te obscuros, dos pais e reform adores da igreja. Por certo, algum as vezes, as d o u trin as e os sistem as de idéias realm ente se to r navam fins em si m esm os e a salvação era erradam ente equiparada ao assentim ento m eram en te intelectual dessas d o u trin as e idéias. S em pre q u e esse m o d o errado de en te n d e r o evangelho prevalecia, novas personagens entravam nas páginas da his tória da teologia para refo rm ar a igreja e restaurar o eq u ilíb rio en tre a ortodoxia, q u e d esem p en h av a u m a função p ro teto ra , e a experiência com D eu s, q u e era prioritária. O casio n alm ente, com o já vim os, algum as pessoas q u e se consideravam cristãs rejeitavam to talm ente a d o u trin a e a ortodoxia e procuravam identificar o cristianism o autên tico com um a experiência ininteligível com D eus. A grande tra dição da igreja sem pre lu to u contra os dois extrem os e p ro c u ro u deixar claro que, fu n d am en talm en te, o cristianism o não é um a filosofia para ser entendida de form a intelectual n em um a experiência m ística indescritível sem c o n teú d o cognitivo. U m a experiência não conceituai com D eus não faz sentido; a crença teologicam ente correta, sem um a experiência co rresp o n d en te com D eus é nula. A ortodoxia e a ortopatia devem andar de m ãos dadas. M as as tensões en tre elas ato rm en tam a igreja cristã há dois m il anos. A era co n tem p o rân ea transicional não é exceção. Pelo contrário, a tensão é m u ito m aior na virada do m ilênio do que antes. A h istó ria da teologia cristã não te rm in o u . Talvez n u n ca ch egue à conclusão. M esm o n o re in o de D eus haverá, decerto , o u tras coisas a serem aprendidas. Al guns im aginam o céu co m o um a escola etern a, sem o to rm e n to dos exam es e das provas. Seja co m o for, os cristãos ainda estão c u rsan d o a escola histórica da te o logia e sua história, com todos os seus conflitos, tensões, reviravoltas e guinadas, co n tin u a. C o n fo rm e vim os desde o ú ltim o capítulo da h istória, a era c o n te m p o rânea está em transição. U m a razão dessa incerteza é o p lu ralism o radical q u e aflige a teologia. A pesar de to d o o interesse e “c o r ” q u e o p lu ralism o acrescenta, a h istó ria não pod erá c o n tin u a r sem a q u e haja a red escoberta d o en fo q u e central q u e m an ten h a as diversas teologias unidas co m o cristãs. M u ito s h isto riad o res arg u m en tariam , com toda a razão, q u e a igreja de Jesu s C risto , n o âm b ito m u n dial, está atrasada nessa nova reform a. D essa vez, a refo rm a terá de co n sistir na reafirm ação do cristian ism o sim ples e básico para m a n te r o eq u ilíb rio saudável e n tre vivenciar a D eu s e co n h e c ê -lo in telectu alm en te . E necessário u m novo refo rm ad o r da igreja universal. U m grande p ensador religioso co m o Iren eu , Agos tin h o , Tom ás de A q u ino, L utero, C alvino, E dw ards, W esley o u B arth precisa su rg ir para o ferecer u m a nova visão unificadora da teologia cristã q u e se baseie firm em e n te na revelação divina, co n sisten te com a grande tradição da igreja e
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e sp iritu alm en te revigorante. E possível q u e a reform a da igreja n o século xxi com ece em algum lugar do Terceiro M u n d o e atinja a A m érica do N o rte e a Europa? É bem provável. A m ai oria dos cristãos agora reside fora desses dois co n tin en tes e os m o v im en to s religi osos m ais fortes tam b ém estão surg in d o nas culturas d o ch am ado Terceiro M u n do. As igrejas cristãs m ais jo v en s da Ásia, da África e da A m érica Latina talvez forneçam o profeta teológico do próxim o século ou até d o próxim o m ilênio. E possível q ue as fontes de renovação espiritual e teológica da E uropa e da A m érica d o N o rte ten h am se esgotado e precisem ser renovadas p o r novas fontes. P or m ais de três séculos, a teologia ocidental ficou obcecada pelas questões e pelos pro b le m as postulados pela m o d ernidade, de tal form a q u e todas as suas ram ificações se tornaram reféns d o Zeitgeisí ou etos cultural. O s pensadores cristãos tan to liberais q u an to conservadores atrelaram dem ais suas idéias a respeito de D eus e da salva ção a esse Zeitgeisí. A visão da teologia cristã desvinculada das form as do já ultrapas sado p en sam en to m o d e rn o talvez precise b ro tar de um a fonte cristã não-ocidental para q ue a história da teologia cristã ganhe u m novo vigor e vitalidade n o século xxi e no terceiro m ilênio. O que q u er q ue o fu tu ro da história da teologia cristã nos reserve, certam ente será in teressan te. S em p re foi. E restam ainda q u estõ es n ão resolvidas q u e os reform adores teológicos precisam responder. A principal delas, natu ralm en te, é a antiga discussão en tre m onergistas e sinergistas sobre o relacionam ento de D eus com o m u n d o . N o v o s e n ten d im en to s da Palavra de D eus sobre essa questão são urgentes, pois os extrem os da teologia de processo e do agostinism o-calvinism o ressurgente polarizam o pen sam en to cristão m ais do q u e nunca. E m bora eu “não seja profeta n em filho de p rofeta”, acredito (com te m o r e trem o r) q u e essa questão con su m irá toda a atenção da teologia cristã no século xxi e q u e novas opiniões e idéias para resolvê-la virão de pensadores cristãos não ocidentais. Todas as opções do p en sam en to ocidental (da E uropa e da A m érica do N o rte ) parecem ter se esgo tado e gerado apenas reações e não soluções. Se esse problem a específico da teolo gia for resolvido, ainda que em parte, em data futura, as idéias cruciais certam ente virão de um a cu ltu ra q u e não seja a ocidental, com sua m entalidade dualista que insiste em enxergar as agências divina e h u m an a em m ú tu a concorrência. C o m o cristãos, pod em os afirm ar com confiança e jú b ilo , co n fo rm e um antigo h in o evangelístico: “Essa é a m in h a história!”. A despeito de todos os aspectos p ertu rb ad o res e problem as não resolvidos, ela é a história da obra de D eus 110 m u n d o contada pelas pessoas dedicadas ao reino de D eus e à m ajestade de C risto. E a história da lenta form ação da tradição, o fu n d a m e n to sólido de crenças cristãs básicas para guiar e o rien tar o discipulado cristão. E, tam b ém , a história de grandes reform as dessa tradição, q u e c o n tin u am en te cham avam o povo de D eus de volta
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para a fonte da revelação divina e para a nova luz q u e elas lançavam . Se a história c o n tin u a r a se d esd o b rar com tanta coerência e surpresa, os dois ingredientes n e cessários em q u alq u er boa história, será p o rq u e os cristãos co n tin u am a dar valor aos dois princípios da tradição e da reform a, b eb en d o de águas pro fu n d as c o n tin u am en te renovadas p o r novas fontes.
Notas Introdução: A teologia cristã na história 1J. G. Sikes, Peter Abelard, N ew York, Russell 8c Russell, 1965, p. 179. 2O desenvolvimento dc um cânon cristão (coletânea limitada) de Escrituras inspiradas — que os atuais cristãos chamam de Bíblia do Antigo e do N ovo Testamento — foi um processo dolorosamente lento e prolongado. A igreja unificada do Império Romano cristão (igreja católica e ortodoxa) reconheceu formalmente uma lista definitiva de escritos cristãos que consistia em 66 livros (de Gênesis até Apocalipse) no ano 392, em um concílio local de bispos em Hipona, África do Norte. Essa história será contada em detalhes no capítulo 8 “O cristianismo se organiza”. 3Apud Harold O. J. Brown, Heresies: the image o f Christ in the mirror o f heresy and orthodoxy from the apostles to the present, Garden City, Doubleday, 1984, p. 104. 4Aqui, a palavra doutrina é usada em um sentido técnico especial para essa categoria de crenças cristãs. Emprego essa palavra em outro m om ento (reconheço que pode ficar um pouco con fuso) no sentido mais com um de qualquer crença cristã oficialmente ensinada com o uma interpretação verdadeira da Bíblia ou da Grande Tradição da igreja. Para obter uma explica ção mais detalhada sobre o assunto inteiro de “dogma, doutrina, opinião", v. Who needs theology? A n invitation to the study of God, de Stanley J. Grenz & Roger E. O lson (D ow ner’s Grove, InterVarsity Press, 1996, p. 73-7). 5N esse livro (assim com o em outros, na maior parte) pai da igreja designa um papel bem específico, assim com o reformador. Ambos são nom es técnicos atribuídos às pessoas que de ram forma às teologias do cristianismo em geral ou, cm especial, a determinadas ramificações e tradições do cristianismo. O rótulo “pai da igreja” não é um exem plo da preferência patri arcal pelos homens. A questão é que, simplesmente, não havia teólogas na igreja primitiva. Havia mártires femininas e místicas, mas nenhuma mulher, antes do século xix ou m esm o do século xx, contribuiu de m odo influente às formulações doutrinárias de qualquer das principais ramificações do cristianismo. N ão conheço nenhum estudioso sério, hom em ou mulher, que possa contestar esse fato. Por isso, o rótulo “pai da igreja” pode ser usado sem medo. 6Na década de 1980, uma frase famosa usada para descrever as políticas econômicas do presi dente americano Ronald Reagan era the trickle-down theory [teoria do efeito em cascata]. Significava que se os ricos nos EUA acumulassem mais riquezas com a redução de impostos, a sociedade inteira, inclusive os pobres, seria beneficiada. A riqueza causaria um “efeito em cascata” no crescimento econôm ico pelo aumento da oferta de empregos etc.
Introdução
à P rim e ira p a rte : O
prim eiro ato: Visões cristãs conflitantes no século n
1E lógico que até m esm o Jesus e seus discípulos podiam ser considerados “teólogo” em certo sentido. Se a teologia for definida com o uma reflexão sobre D eus e a salvação, todos somos teólogos! N esse caso, porém, o termo é usado no sentido de alguma coisa mais limitada e específica, a reflexão sobre o D eus de Jesus Cristo e o próprio Cristo e sobre sua obra e
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mensagem. D e certa forma, Jesus Cristo e seus discípulos se ocuparam principalmente do ministério de proclamar o evangelho, enquanto a teologia assume o ministério de explicá-lo. :A definição de apóstolo é discutível. Talvez pertença a uma classe grande de termos chamada “conceitos essencialmente contestados”, isto e, não existe consenso entre os estudiosos quanto ao significado exato de alguns conceitos e termos. Certa teoria popular a respeito dos apósto los cristãos primitivos diz que eram homens e, possivelmente, algumas mulheres que teste munharam a ressurreição de Jesus Cristo. Esse fato conferiu-lhes autoridade especial na igrejas primitiva. E possível encontrar certo respaldo a essa idéia de apostolado na defesa de Paulo sobre o apostolado dele. Paulo fundamenta sua idéia no fato de que Cristo apareceu também para ele, embora em data posterior e de m odo diferente do aparecimento a Pedro e aos demais apóstolos (IC o 9.1; 15.5-11). E provável, no entanto, que não houvesse uma única qualificação específica para o apostolado genuíno. Está claro que, no final do século i (ano 100), os cristãos de todas as partes do Império Romano acreditavam que todos os após tolos já tinham morrido. A crise de autoridade que isso criou é óbvia. N ão importa o que se pense a respeito deles, é inegável que os apóstolos eram uma ligação com Jesus Cristo, seus ensinos, sua morte, ressurreição c ascensão. Eram os fundadores da igreja e a autoridade contemporânea para a fc e a prática. Depois da morte deles, tornou-se necessário encontrar outra forma de dirimir controvérsias. 3A erudição bíblica moderna desafia gravemente a autoria joanina genuína de todos os escritos atribuídos ao amado discípulo de Jesus. É vasta a literatura a respeito dessa controvérsia. N esse caso, admitimos a autoria de João, pelo m enos, para o Evangelho segundo João e o Apocalipse. 1 lá, também, fortes argumentos em favor de sua autoria para as três epístolas a ele atribuídas que foram incluídas no n t .
Capítulo 1: Críticos e sectários provocam confusão ,O pai da igreja Ireneu de Lião relatou que ouviu isso de seu mestre cristão, Policarpo, que foi um dos discípulos do apóstolo João, cm Efeso, no final do século I. V. Contra heresias, de Ireneu (A N F 1, 3.3.4). 3Walpole, Stillpoint, 1984, p. 1-2. 3E altamente improvável que os gnósticos cristãos do século n acreditassem na reencarnação, embora seja possível que alguns fossem influenciados por emissários da índia e chegassem a acreditar na transmigração das almas. Certamente, todos os gnósticos acreditavam na pro gressão espiritual depois da morte, que consistia em um tipo de viagem espiritual “ascenden te”, de volta para o verdadeiro lar espiritual em união com Deus. 4Reincarnation: the missing link in Christianity, Corwin Springs, Summit University Press, 1997. 5As supostas declarações de Montano foram registradas por Eusébio, historiador eclesiástico, e podem ser achadas em quase qualquer obra clássica a respeito do cristianismo do século n. V. Thefathers without theology, de Marjorie Strachey (N ew York, George Braziller, 1958, p. 169). 6Michael G. M a u d l i n , Seers in the heartland: hot on the trail o f the Kansas City prophets, Christianity Today 35, 1: 18-22, 1991. 7Felizmente, não é necessário perscrutar toda a refutação de Orígenes para ter acesso ao con teúdo da obra de Celso. Ela foi reunida, editada e traduzida para os leitores modernos: On the trite doctrine: a discourse against the Christians, trad.R. Joseph I lotTmann (Nova York, Oxford University Press, 1987). 8Ibid., p. 116. ',Ibid., p. 78. 10Giovanni F ilo ra m o , A history of gnosticism, trad. Anthony Alcock, Cambridge, U.K., Basil
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Blackwell, 1991, p. 2. "Ibid., p. 52-3. 12As cinco semelhanças familiares foram extraídas de Doctrine and practice in the early church, de Stuart G. Hall (Grand Rapids, Eerdmans, 1991, p. 41-4). Hall cita e descreve sete semelhan ças familiares dos gnósticos. Reduzi-as a cinco e as adaptei um pouco. ,3Alguns evangelhos dos gnósticos, incluindo-se o controvertido O evangelho segundo Tomé, podem ser encontrados em linguagem moderna em The other gospels: noncanonical gospel texts, de Ron Cameron, org. (Philadelphia, Westminster Press, 1982). 14O s termos ortodoxo e católico são usados com freqüência nos primeiros capítulos do livro apenas para designar a igreja cristã primitiva em sua exatidão e unidade teológica. Escritos em letras minúsculas, não denotam “ortodoxia oriental” ou “catolicismo romano”. 15F il o r a m o ,/! history of gnosticism, p. 4.
Capítulo 2: Os pais apostólicos explicam o caminho 1A history of Christian thought, ed. rev., Nashville, Abingdon, 1987, p. 96. V. 1: From the beginnings to the council o f Chalcedon. 2To the Corinthians 21.6, Lightfoot, Harmer and Holm es. 3Ibid., 44.6. 4Ibid., 631. 5Ibid., 25. hThe didache ou The teaching of the twelve apostles, Lightfoot, Harmer e Holm es. 7Ibid. 8Ibid. 9To the Romans 4, Lightfoot, Harmer e Holmes. 10Ibid., p. 81. uTo the Magnesians 7, Lightfoot, Harmer e Holm es. 12To the Ephesians 6, Lightfoot, Harmer e Holm es. BTo the Trallians 10, Lightfoot, Harmer e Holm es. 147o the Ephesians 19 15Ibid., 20. 1‘׳To Polycarp 2, Lightfoot, Harmer e Holm es. 17The Epistle of Barnabas 10, Lightfoot, Harmer e Holm es. 18Ibid., 21. '9The apostolicfathers, trad. J. B. Lightfoot e J. R. Harmer, org. e trad. Michacl W. H olm es, 2 ed., Grand Rapids, Baker, 1989, p. 189. 20Ibid., 32. 21Ibid., 26. 22Ibid., 59.
Capítulo 3: Os apologistas defendem a fé 1Prescription against heretics 7 , A N F 3. 2Essa filosofia greco-helênica do Império Romano no século u é bem descrita e explicada por Christopher Stead (Philosophy in Christian antiquity, Cambridge, U.K., Cambridge University Press, 1994). 3Robert M. G r a n t , Gods and the one God, Philadelphia, Westminster Press, 1986, p. 84. *Greek apologists of the second century, Philadelphia, Westminster Press, 1988, p. 11. 5Ibid., p. 110. 6Ibid. p. 50.
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72, A N F 1. 8Ibid., 68. 915, A N F 1. ,0Dialogue with Trypho, aJew 128, A N F 1. "Ibid., 68. 1213. aA plea fo r the Christians 10, A N F 2. 14Ibid., 24. ,5Marcus D o d s , Introductory note to Theophilus o f Antioch, A N F 2.88. 16ToAutolyais 10, A N F 2. ,7Ibid. '*Gods and the one God, p. 87. C a p ítu lo 4: Ir e n e u d e sm a sc a r a h e r e sia s ,R. A. N o r r i s , God and the world in early Christian theology: a study in Justin Martyr, Irenaeus, Tertullian and Origen, N ew York, Seabury Press, 1965, p. 72. 21.11 (seleções) A N F 1. 3Ibid. 4I r e n e u , Against heresies 3 .1 7 .7 . 5G u s ta fW iN G R E N , Man and the incarnation: a s t u d y in t h e b ib li c a l t h e o l o g y o f I r e n a e u s , t r a d . R o s s M a c k e n z ie , P h ila d e lp h ia , M u h le n b e rg , 195 9 , p . 9 5 -6 .
6N o r r i s , God and the world, p . 9 4 .
In tr o d u çã o à S e g u n d a p a r t e : A tram a se co m p lic a : tensões e transformações do século in 'Early Christian thinkers: an introduction to Clem ent o f Alexandria and Origen, N ew York, Association Press, 1964, p. 9. 2O termo Grande Igreja aqui se refere à igreja indivisa do Oriente e do Ocidente (grega e latina) no Império Romano nos primeiros séculos do cristianismo. Trata-se da igreja univer sal, cujos bispos se declaravam os verdadeiros herdeiros dos apóstolos. E um conceito abso luto e não se refere a nenhum templo eclesiástico em especial ou a uma congregação especí fica. Essa família de congregações e seus líderes (presbíteros, bispos) alegava ser “ortodoxa” (teologicamente correta), “apostólica” (descendente dos apóstolos, pelo ensino e pela orde nação) e “católica” (unida no m undo inteiro). Posteriormente, o termo Grande Igreja também passou a designar a grande catedral no centro de Constantinopla (Bizâncio), também conhe cida com o Santa Sofia. O s dois empregos do termo não devem ser confundidos aqui. C a p ítu lo 5: P e n sa d o r e s n o r te -a fr ic a n o s e x a m in a m a f ilo s o fia ,Hans von C a m p e n iia u s e n , The fathers of the Greek church, trad. Stanley Godman, N ew York, Pantheon, 1959, p. 34. 21.13, A N F 2. 3I A , A N F 2. 4H. K r a f t , Early Christian thinkers: an introduction to Clem ent o f Alexandria and Origen, N e w York, Association Press, 1964, p. 33. 5Stromata 1.1. 6Ibid., 1.20. 7Ibid., 1.22. *Instructor 1.2. ׳־Ibid., 1.2.
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10Para definições e descrições dessas duas abordagens modernas à teologia cristã, v. 20th-Century theology: God & the world in a transitional age, de StanleyJ. Grenz & Roger E. Olson (Downers Grove, InterVarsity Press, 1992). "Timothy David B a r n e s , Tertullian: a historical and literary study, Oxford, U.K ., Clarendon, 1971, p. 142. 12Apud Justo Gonzalez, A history of Christian thought, rev. ed. Nashville, Abington, 1992, p. 178. V. 1: From the beginnings to the council o f Chalcedon. 13G o n z á l e z , History of Christian thought, 1:178. '4Apology 21, A N F 3. K7 , A N F 3. 1■׳Ibid., 13. 17On theflesh of Christ 5, A N F 3. 18Op. cit., 1.175. 19On baptism, A N F 3. 20Against Praxeas \ , A N F 3. 21Ibid., 2. -Ibid., 8. 23Ibid., 30. 24O “verdadeiro gnóstico”, para C lem ente, devia ser uma opção diferente do seguidor do gnosticismo que floresceu no Egito do século n com o uma heresia.
Capítulo 6: Orígenes de Alexandria deixa um legado perturbador 1Henri C r o u z e l , Origen, trad. A. S. Worral, São Francisco, Harper & Row, 1989, p. 14. 2Ibid., p. 37. 3Ibid., p. 27-8. 46 8 A N F 4 . 5Ibid., 6.18. ׳,C r o u z e l , Origen, p . 158. 7Against Celstis 68. 8D e principiis 3 A , A N F 4. , C r o u z e l , Origeti, p. 257ss. 10D e principiis 3.6. "4.72. 12Por exemplo, Orígenes acreditava na criação do m undo a partir do nada (creatio ex nihilo) contra a preponderância do pensamento grego e na ressurreição dos corpos, que também era anátema para a maioria dos gregos cultos. 13De principiis 1. 14Ibid. tsAgainst Celsus 4.14. 16De principiis 1. 17Apud Crouzel, Origen, p. 187. mDe principiis 1. 19Apud Crouzel: Origen, p. 203. 20D f principiis 2. 2,Against Celsus 7.16. 22C r o u z e l , Origen, p. 171, 174.
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Capítulo 7: Cipriano de Cartago promove a unidade ,
77k ׳fathers of the Latin church, trad. Manfred Hoffman, Stanford, Calif., Stanford University
Press, 1964, p. 37. 2The life and passion of Cyprian, bishop and martyr, 1.3, A N F 5. 3Epistle 1, To Donatus 3, 4, A N F 5. 4Epistle 58, To Fidus, on the baptism of infants 5, A N F 5. 5Epistle 71, ToJubaianus, concerning the baptism o f heretics 5 , A N F 5. 6Ibid., 7. 7Treatise 1: on the unity of the church 2, A N F 5. 8Epistle Í, To “Confessors” 2, A N F 5. 9Justo G o n z â l e z , / ! history of Christian thought rev. ed., Nashville, Abingdon, 1992, p . 242. V. 1: From the beginnings to the council o f Chalcedon. 10On the unity of the cliurch, 23. 1,Ibid., 7; 6. 12Epistle 26, Cipriatt to the lapsed 1, A N F 5. ,,Op. cit., 1.244. ״Ibid., p. 245. 15Hans Leitzmann: A history of the early church, vol. 2, The founding of the Church Universal (Cleveland e Nova York: World, 1950), p. 57. 16Hans von C a m p e n h a u s e n , Ecclesiastical authority and spiritual power in the church of thefirst three centuries, trad. J. A. Baker, Stanford, Calif., Stanford University Press, 1969, p. 290.
Capítulo 8: O cristianismo se organiza 1W. H. C. Frend, The rise of Christianity, Philadelphia, Fortress, 1984, p. 401-2. 2Ibid., p. 405-7. 3Ibid., p. 403. 4Ibid., p. 405. 5Ibid., p. 407. 6E conhecido com o “Cânon Vincentiniano” em homenagem ao seu autor, Vincente de Leríns, teólogo da França dos séculos v e vi. 7Gerald B ra y , Creeds, councils & Christ, Leicester, U.K. & Downers Grove, InterVarsity Press, 1984, p. 204-5. As palavras em itálico indicam alterações de uma forma antiga do credo no Livro de oração comum da Igreja da Inglaterra. ״Ibid., p. 101. ‘'Posteriormente, os chamados apócrifos de treze ou quatorze livros interbíblicos que havia na Septuaginta foram incluídos na Bíblia cristã pelas igrejas ocidentais latinas (católicas roma nas). As igrejas orientais gregas, com o passar do tempo, chegaram a respeitá-los com o fontes secundárias de informação histórica e de inspiração, embora os rejeitassem por não terem a mesma autoridade dos outros livros do Antigo e do N o v o Testamento. N a Reforma protes tante, a maioria dos reformadores seguiu o padrão das igrejas orientais e acabou desprezando totalmente os apócrifos porque eles estavam muito ligados à teologia católica romana. "’Hans von C a m p e n h a u s e n , Theformation of the Christian Bible, trad. J. A. Baker, Philadelphia, Fortress, 1972, p. 148. "Ibid., p. 254. 12Ibid., p. 327.
Capítulo 9: Os alexandrinos discutem a respeito do Filho de Deus ,Frances Y o u n g , From Nicea to Chalcedon, Philadelphia, Fortress, 1983, p. 59.
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2Robert C. G r e g g & Dennis E. G r o h , Early Arianism: A view o f salvation, Philadelphia, Fortress, 1981, p. 8. 3Ibid., p. 9. 4Bernard L o n e r g a n , The way to Nicea, trad. Conn O ’Donovan, Philadelphia, Westminster Press, 1976, p. 70-1. 5Atanásio: Deposition o/A rius 6 N P N F 4. 6A seita Testemunhas de Jeová ensina que Jesus Cristo é a encarnação do arcanjo Miguel, que é a primeira e maior criatura de Deus, por m eio de quem D eus criou o m undo e ofereceu um sacrifício pelos pecados. Ario e seus seguidores no século rv não entendiam dessa forma o Logos ou Filho de Deus. Entretanto, a estrutura básica de sua crença a respeito do Filho de Deus é quase idêntica à das Testemunhas de Jeová: o Filho de D eus é uma criatura grandiosa, mas não tem mesma natureza de Deus Pai, o único que é verdadeira e plenamente “D eus”. Conheça mais sobre os ensinos das Testemunhas de Jeová na brochura Deve-se crer na Trinda de? (Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, 1989) e a resposta evangélica de Robert Bowman, Por que devo crer na Trindade (trad. Gordon Chown, São Paulo, Candeia, 1996). 7A t a n á s io , Deposition o/A rius 2.
Capítulo 10: A igreja responde no Concílio de Nicéia 'A history of Christian thought, ed. rev., Nashville, Abingdon, 1992, p. 266-7. V. 1: From the beginnings to the council o f Chalcedon. 2Ibid., p. 2 67. 3Ibid., p. 2 6 7 -8 . 4Ibid., p. 2 7 1 .
Capítulo 11: Atanásio sustenta irredutivelm ente a fé 'A history of Christian thought, ed. rev., Nashville, Abingdon, 1992, p. 291. V 1: From the beginnings to the council o f Chalcedon. ·W. H. F r e n d , The rise of Christianity, Philadelphia, F o rtress P ress, 1984, p. 524. 3Frances Y o u n g , From Nicea to Chalcedon, Philadelphia, Fortress, 1983, p. 8 2 -3 . 4Harold O. J. B r o w n , Heresies: the image o f Christ in the mirror o f heresy and orthodoxy from the apostles to the present, Garden City, N.Y., Doubleday, 1984, p. 119. 5Alvyn P e t t e r s e n , Athanasius, Harrrisburg, Morehouse, 1995, p. 188. 6Ibid., p. 175. 7Ibid., p. 18. "Yo u n g , o p . c it., p. 72.
9Four discourses against the Ariatis 1.14, N P N F 2.4. 10Ibid., 1.25. "Ibid., 2.35. 1217.4, N P N F 2.4. '3Against theArians 2 .6 7 . '4On the incarnation of the Word 54.3. 15Ibid., 8.2 e 4. 16Y o u n g , op. cit., p. 74-5. 17P e t t e r s e n , o p . c it., p. 157.
18Against the Arians 2 .8 1 . ,,,P e t t e r s e n , op. cit., p. 187.
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Capítulo 12: Os pais capadócios resolvem a questão 'O n the deity of the Son and of the Holy Spirit, apud em Harold O. J. Brown, Heresies: the image o f Christ in the mirror o f heresy and orthodoxy from the apostles to the present, Garden City, N.Y., Doubleday, 1984, p. 104. 2Jus to G o n z á l e z , A history of Christian thought, ed. rev., Nashville, Abingdon, 1992, p . 3 0 0 . V. 1: From the beginnings to the Council o f Chalcedon. 3Ibid., p. 322. *־Ibid., p . 3 24. 5Anthony M e r e d ith , The Cappadocians, Crestwood, N.Y., St. Vladimir’s Seminary Press, 1995, p. 103. bDuidade é a palavra mais conveniente para descrever a doutrina pneumatômaca da divindade consistente somente no Pai e no Filho. 7Frances Y o u n g , From Nicea to Chalcedon, Philadelphia, Fortress, 1983, p. 114. 8Introdução do organizador, The select orations of Saint Gregory of Nazianzen: the “theological orations”, N P N F 27, p. 280. 'Y o u n g , o p . c it., p. 95.
10Letter 38, to his brother Gregory 7, N P N F 2, 8. "D e Spiritu Sancto 10.24, N P N F 2, 8. 12Ibid. 13Ibid., 15.36. 14Ibid., 10.25. 15Letter 8, to the Caesareans 2, N P N F 2, 8. 16Letter 38, to his brother Gregory 3. 17Ibid., 5. 18Conform e já foi observado, alguns estudiosos acreditam que a prioridade de Basílio, em termos de influência em relação aos três pais capadócios, não fica bem clara. Argumentariam em defesa de uma maior interdependência entre os três. Contudo, é tradicional na teologia histórica tratar Basílio, o Grande, entre os três amigos, com o o “primeiro entre iguais”. Embora seu gênio talvez não fosse tão grande quanto o de seu irmão, ele era bem mais velho e provavelmente foi o mentor inspirador de Grcgório de Nissa. Gregório Nazianzeno aparentemente não foi um pensador tão original quanto os demais. ',׳G r e g ó r i o N a z ia n z e n o , Fourth theological oration 4, N P N F 2,7. 2*1Idem, Fifth theological oration 11, N P N F 2, 7. 21Ibid., 8,' 22G o n z a le z , op. cit., 1.316. 23Third theological oration 19, N P N F 2, 7. 24Letter 101, apud Meredith, op. cit., p. 44. 25Fourth theological oration 21. 2,'On “not three gods” : to Ablabius, N P N F 2, 5. 27Ibid. 2«Ibid. 2,Ibid. 30M
e r e d it h ,
o p . c it., p. 44.
31Gerald B ray, Creeds, councils & Christ, Leicester, U.K. & Downers Grove, InterVarsity Press, 1984, p. 206-7.
Capítulo 13: As escolas de Antioquia e de Alexandria divergem sobre Cristo 1R. V. S e lle r s , The Council of Chalcedon : a historical and doctrinal survey, Londres, SPCK, 1961, p. 136.
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2Justo G o n z A le z , A history o f Christian thought, ed. rev., Nashville, Abingdon, 199 2 , p. 3 4 0 . V. 1: From the beginnings to the Council o f Chalcedon. 3S ellers , o p . c it., p. xv. 4H. Maurice R e l t o n , Λ study in Christology: the problem o f the relation o f the two natures in
the person o f Christ, N ew York, Macmillan, 1934, p. 11. 5G r e g ó r i o Ν α ζ ι α ν ζ ε ν ο , Epistle 101, N P N F 2 ,7 .
1,Commentary of Theodore of Mopsuestia on the Nicetie Creed, org. A. Mingana, Cambridge, U.K., Heifer, 1932, p. 82.
Capitulo 14: Nestório e Cirilo levam a controvérsia a uma decisão 1Justo G o n z A le z , A history of Christian thought, ed. rev., Nashville, Abingdon, 1 992, p. 3 6 1 . V 1: From the beginnings to the C ouncil o f Chalcedon. 2Aloys G r i l lm e ie r , Christ in Christian tradition, 2 ed. rev., trad. John Bowden, Atlanta, John Knox Press, 1975, p. 462. V. 1: From the beginnings to the Council o f Chalcedon. 3Ibid., p. 576. 4Ibid., p. 477. 5Ibid., p. 4 86. 6Ibid. 7Ibid., p. 4 79.
Capítulo 15: Calcedônia protege o mistério 1R. V S e l l e r s , The Council o f Chalcedon: a historical and doctrinal survey, Londres, SPCK, 1961, p. 29. 2Ibid., p. 33. 3Justo G o n z A le z , A history of Christian thought, ed. rev., Nashville, Abingdon, 1992, p. 371. V. 1: From the beginnings to the C ouncil o f Chalcedon. 4S e l l e r s , op. cit., p. 87. 5Ibid., p. 103. 6Ibid., p. 109. 7Gerald B ray, Creeds, councils & Christ, Leicester, U.K . & Downers Grove, InterVarsity Press, 1984, p. 162. "H. Maurice R e l t o n , / ! study in Christology: the problem o f the relation o f the two natures in the person o f Christ, N ew York, Macmillan, 1934, p. 36.
Capítulo 16: Continuam os efeitos do conflito 1H . Maurice R e l t o n , A study in Christology: the problem o f the relation o f the two natures in the person o f Christ, N ew York, Macmillan, 1934, p. 66. 2Frances Y o u n g , From Nicea to Chalcedon, Philadelphia, Fortress, 1983, p. 178. 3R. V S e l l e r s , 77!e Council o f Chalcedon: a historical and doctrinal survey, Londres, SPCK, 1961, p. 254. 4R e l t o n , o p . c it., p. 66.
5Ibid., p. 67. 6Justo G o n z A le z , A history of Christian thought, ed. rev., Nashville, Abingdon, 1992, p. 7 8 . V 1 : From the beginnings to the C ouncil o f Chalcedon. 7John M e y e n d o r f f , Christ in Eastern Christian thought, Crestwood, St. Vladimir’s Seminary Press, 1987, p. 38. 8Ibid. 9S e v e ro , apud González, op. c it., 2 .7 7 -8 .
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10Tim óteo E l u r o , apud Sellers, op. cit., p. 260. 11S ellers , o p . c it., p. 316.
12Ibid. 13R e l t o n , o p . c it., p. 77.
14Ibid. 15G o n z á l e z , o p . c it., 2 .9 7 .
1,'Ibid., p . 9 7 -8 . 17S ellers , o p . c it., p. 3 2 0 . 18G o n z á l e z , o p . c it., 2 .8 6 . 19S ellers , o p . c it., p. 3 4 1 .
20G o n z á le z , o p . c it., 2 .9 1 .
Capítulo 17: Agostinho confessa a glória de Deus e a depravação humana 1Justo G o n z á le z , A History of Christian thought, ed. rev., Nashville, Abingdon, 1987, p. 15. V. 2: From Augustine to the eve o f the Reformation. 2T. Kermit S c o t t , Augustine: his thought in context, Mahwah, Paulist, 1995, p. 153. 3Ibid., p. 13. 4The confessions, 8.12. 5S c o t t , o p . c it., p. 153.
6Gerald B o n n e r , St. Augustine of Hippo: life and controversies, N orw ich, Canterbury, 1986, p. 157. 7Concerning the nature o f good, 4. 8Ibid., 36. 9B o n n e r , o p . c it., p. 2 04.
10Ibid., p. 284. "Ibid., p. 287. 12Ibid., p. 290. 13Ibid., p. 292. "T h e enchiridion: onfaith, hope and love 52. 15On nature and grace 9 16Apud Bonner, op. cit., p. 317. 17B. R. Rees, Pelagius: a reluctant heretic, Woodbridge and Rochester, Boydell, 1988. 18Apud Rees, op. cit., p. 91. 19Ibid. 20Ibid., p. 93. 2'The enchiridion, 26. 22O n the grace of Christ and on original sin, 44. 23On the Spirit and the Letter, 5. 24S c o t t , o p . c it., p . 162. 2*On grace andfree will, 41. 26S c o t t , o p . c it., p. 181.
27On grace andfree will, 28. 28 On nature and grace, 2. - 1O n grace andfree will, 45. 3"Ibid. 31S c o t t , op. cit., p. 224. >2The enchiridion, 96. 33S c o t t , o p . c it., p. 227.
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Capítulo 18: A igreja ocidental torna-se Católica Romana 1E d g a r C . S . G i b s o n , P r o l e g o m e n a , in :
The works of John Cassian, N P N F 2 , 11, p . 1 8 9 .
2Ibid., p. 191. 3J o n h C a s s ia n , Conference 13, the third conference of Abbot Chaeremon, 11 N F N F 2, 11.
4Ibid. 5C a s s ia n , Conference 18, third conference 8 N P N F 2, 11. 6Ibid., 16. 7Ibid., 17. "Se essa descrição da teologia oficial católica romana da salvação conforme foi declarada no Sínodo de Orange em 529 parece um pouco confusa e contundente, talvez seja porque as declarações do sínodo e as interpretações da teologia católica não são muito inconsistentes. Por exemplo, a doutrina do Sínodo de Orange sobre a predestinação diz:
Segundo a fé católica, também cremos que depois de a graça ser recebida pelo batismo, todos os batizados, se estiverem dispostos a labutar com fidelidade, podem e devem realizar, com o auxílio e a cooperação de Cristo, o que diz respeito à salvação de suas almas. N ão acreditamos que alguns sejam predestinados ao mal pelo poder divino; e, ainda, se houver pessoas que queiram crer em tamanho descalabro, com grande desprazer, os declaramos anátemas. Também cremos e professamos para a nossa salvação que, em toda boa obra, não som os nós que damos início e com isso recebemos ajuda pela miseri córdia de Deus, mas, antes, sem qualquer mérito conquistado por nós, D eus instila em nós a fé e o amor a ele para que possamos fielmente obedecer ao sacramento do batismo e, mais tarde, possamos agradá-lo por m eio de nossas ações (The church teaches: documents of the church in English translation, [St. Louis & London: Herder, 1955, p. 228]). D e um lado, o sínodo afirmou que a fé é um dom· de D eus e não uma livre-escolha da pessoa humana em resposta à graça — que implicaria crença na predestinação — e, de outro, afirmou a necessidade de obras meritórias, assistidas pela graça, para a plena salvação. Tratase de uma combinação instável do monergism o com o sinergismo, que provoca tensões na teologia católica desde então. Ao que parece, é legítimo para um católico romano acreditar em um monergismo moderado (sem nenhum indício da predestinação ao mal) ou em um sinergismo moderado (sem nenhum indício da iniciativa humana ou das obras meritórias humanas para a salvação sen! a graça auxiliadora). 9Judith H e r r o n , The formation of Christendom, Princeton, N.J., Princeton University Press, 1987, p. 150. 10Justo G oN Z Á L E Z ,A histor} ׳o fC h ristia n thought, ed. rev., Nashville, Abingdon, 1987, p. 71. V. 2: From Augustine to the eve o f the Reformation. 11Apud Carole Straw, Gregor}' the Great: perfection in imperfection, Berkeley, University o f California Press, 1988, p. 140. 12Ibid. 13Ibid., p. 159. '4The book of pastoral rule of Saint Gregory the Great, 2 7 , N P N F 2 , 12.
Capítulo 19: A igreja oriental torna-se Ortodoxa Oriental 1John M e y e n d o r f f , Byzantine theology: historical trends and doctrinal themes, N ew York, Fordham University Press. 1974, p. 25-6. 2Ibid., p. 115. 3A Igreja Católica Romana reconhece 21 concílios ecumênicos até o presente, sendo o Vaticano
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li o mais recente, de 1962 a 1965. Decerto, haverá outros concílios ecum ênicos da Igreja Romana. A Igreja Oriental deixou de reconhecer concílios “ecum ênicos” depois do sétimo, e sobre este, até m esm o os cristãos ortodoxos orientais discordam de sua natureza. Em geral, no entanto, a tradição ortodoxa oriental não admite mais concílios ecum ênicos. Todas as questões realmente importantes da teologia já foram resolvidas. 4M e y e n d o r f f , Byzantine theology, p. 116. 5Ibid., p. 128. 6J. N . D. K e lly , Golden month: the story o f John Chrysostom — ascetic, preacher, bishop, Ithaca, N.Y., Cornell University Press, 1995, p. 94. 7Ibid., p. 135-6. "Ibid., p. 130. 9Apud The Byzantinefathers of the sixth to eighth century, v. 9: The collected works of Georges Florovsky, Richard S. Haugh (org.), trad. Raymond Miller, Anne-Marie Dõllinger-Labriolle e H elm ut W ilhelm Schmiedel, Vaduz, Liechtenstein, Büchervertriebanstalt, 1987, 211. 10M e y e n d o r f f , Christ in eastern Christian thought, Crestwood, N.Y., St. Vladimir’s Seminary Press, 1987, p. 132. "Apud Byzantine fathers, 9:220. 12Ibid., p. 223. 13Ibid., p. 216. 14Lars T h u n b e r g , Man and the cosmos: the vision o f St. Maximus the Confessor, Crestwood, N.Y., St. Vladimir’s Seminary Press, 1985, p. 71. ,5Byzantinefathers, 9:206. 16Justo G o n z á l e z , A history of Christian thought, cd. rev., Nashville, Abingdon, 1987, p. 200. V. 2: From Augustine to the eve o f the Reformation. 17Byzantine fathers, 9:254. 18Apud Meyendorff, Byzantine theology, p. 45-6. 19T he decree o f the holy, great, ecumenical synod, the second o f N ice, The seven ecumenical councils of the Undivided Church N P N F 2, 14.
Capítulo 20: O Grande Cisma transforma uma tradição em duas 1O termo Grande Cisma é usado duas vezes para identificar dois eventos distintos na história do cristianismo. N o presente, designa a divisão entre a ortodoxia oriental e o catolicismo romano, que ainda não foi saneada. Posteriormente, será usado de novo para designar uma divisão na Igreja Católica Romana entre dois e, depois, três papas na Idade Média. E impor tante não confundir os dois eventos completamente distintos, embora o m esm o termo seja tradicionalmente usado para designar ambos. 2The Christian tradition: a history ofthe development ofdoctrine, v. 2: The spirit o f eastern Christendom (600-1700), Chicago, University o f Chicago Press, 1974, p. 179. 3Byzantine theology: historical trends and doctrinal themes, N ew York, Fordham University Press, 1974, p. 98. 4Ibid., p. 91. 5Ibid., p. 91-2. 6P e lik a n , Christian tradition, 2.171.
Introdução à S e x t a P a r t e : A saga da rainha das ciências: O s escolásticos reavivam e en tron iza m a teologia 1B. B. P r i c e , Medieval thought: an introduction, Oxford, Blackwell, 1992, p. 120. 2Ibid., p. 130.
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3Ibid., p. 121. 4Ibid., p. 142.
Capítulo 21: Anselmo e Abelardo especulam sobre os caminhos de Deus 'A history of Christian thought, ed. rev., Nashville, Abingdon, 1987, p. 167. V. 2: From Augustine to the eve o f the Reformation. 2Joseph M. C o l l e r a n , Introduction: St. Anselm ’s life, in: A n se lm o d e C a n tu A ria , Why God became man and the virgin conception and original sin, trad. Joseph M. Colleran, Albany, N.Y., Magi, 1969, p. 21. 3Ibid., p. 17. 4Ibid., p. 15. 5St. Anselm: basic writings (Proslogium , M onologium , Cur D eu s hom o, and the fool by Gaunilon), 2 ed., trad. S. N . Deane, intro. Charles Hartshorne, La Salle, O pen Court, 1962, p. 6-7. 6Jasper H o p k jn , A companion to the study of St. Anselm, Minneapolis, University o f Minnesota, 1972, p. 66. 7Si. Anselm: basic writings, p. 42-3. "Ibid., p. 7. 9Ibid., p. 8. "'Ibid., p. 13-4. "Carol S tr a w , Gregory the Great: perfection in imperfection, Berkeley, University o f California Press, 1988, p. 155. 12C o l l e r a n , Introduction, p. 34-5. '3Why God became man and the virgin conception and original sin, trad. Joseph M. Colleran, Albany, N.Y., Magi, 1969, p. 55. 14G o n z A le z , op. cit., 2.167. 15Ibid., p. 170. 16Leif G rave, Peter Abelard: philosophy and Christianity in the Middle Ages, trad. Frederick e Christine Crowley, N ew York, Harcourt, Brace & Word, 1964, p. 151. 17Ibid., p. 157. 18Apud J. G. Sikes, Peter Abailard, Nova York, Russell & Russell, 1965, p. 208. 19Ibid., p. 210-1. 20Ibid., p. 210.
Capítulo 22: Tomás de Aquino resume a verdade cristã 1Philotheus B oehm , introdução a Guilherme de Occam, Philosophical writings: a selection, Indianapolis, Bobbs-Merrill, 1957, p. xvi-xvii. 2Brian D avies, The thought of Thomas Aquinas, Oxford, Clarendon, 1992, p. 2. 3Ibid., p. 5. 4Ibid., p. 8. sSuma teológica, parte 1, pergunta 1. 6Ibid., parte 7, pergunta 93. 7O s “cinco argumentos” de Aquino comprovar a existência de D eus sim plesm ente pela razão encontra-se em Suma teológica, parte 1, pergunta 2. 8Suma teológica, parte 1, pergunta 2. 9Ibid. 1,,Ibid. "Ibid.
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12Ibid. ,3Ibid. 14D avies , o p . c it., p. 39.
15Suma teológica, parte 1, pergunta 9. 16Justo G o n z á le z , A history of Christian thought, ed. rev., Nashville, Abingdon, 1987, p. 265. V. 2: From Augustine to the eve o f the Reformation. 17Ibid., p. 267. 18Suma teológica parte 1, pergunta 4. ,9Suma teológica parte 1, pergunta 9. 20Apud Davies, op. cit., p. 75. 21Ibid., p. 77. 22Ibid., p. 157. 23D avies, op. cit., p. 64. 2*Suma teológica, parte 1, pergunta 13. 25D avies , o p . c it., p. 67.
2,’Tomismo é o nom e dado à abordagem teológica básica de Tomás de Aquino e de suas idéias doutrinárias básicas. 27D avies , o p . c it., p. 2 62.
28Ibid., p. 264. 29Ibid., p. 338-9. 30Suma teológica, parte 1, pergunta 83. 31D avies , o p . c it., p. 185.
Capítulo 23: Os nominalistas, os reformadores e os humanistas desafiam a síntese escolástica 1Meyrick H. C a r r é , Realists and nominalists, Londres, Oxford University Press, 1946, p. 103. 2Ibid., p. 107. 3Ibid., p. 112. 4Guilherme de Occam não é uma figura histórica tão obscura com o talvez se possa supor. C om o muitas personagens da história de teologia cristã, Occam aparece na literatura, na mídia moderna e nos livros de teologia histórica. D ois romances populares do fim do século xx e os film es cinematográficos neles baseados demonstram esse fato. N o romance O nome da rosa, escrito pelo romancista italiano U m berto Eco, em 1983, o personagem principal (que no film e é representado pelo ator Sean Connery) foi inspirado em Occam. O astrônomo e escritor Carl Sagan citou Occam e sua “navalha” no romance Contato em 1985 (transformado em film e de longa metragem em 1997). Muitas pessoas consideram Guilherme de Occam o primeiro “hom em m oderno” por causa de suas idéias revolucio nárias sobre o conhecim ento, a política e a filosofia. Profissionalm ente, no entanto, era teólogo cristão. 5C arré , o p . c it., p. 104.
6Ibid., p. 107. 7Ibid. 8Ibid., p. 117. Para conhecer a abordagem de Occam aos princípios universais, veja Philosophical writings: a selection (trad. Philotheus Boehm , Indianápolis, Bobbs-Merrill, 1957, p. 35-44). ‘׳Veja a excelente exposição do conceito de Occam sobre a fé, a razão e a teologia natural na introdução de Boehner a Occam em Philosophical writings, p. xlv-vi. 1"C arré , o p . c it., p. 121.
11Introdução de Boehner a Occam, Philosophical writings, p. xlviii-ix.
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,2Justo G o n z A l e z ,/ ! history of Christian thought, ed. rev., Nashville, Abingdon, 1987, p. 3 1 9 . V 2: From Augustine to the eve o f the Reformation. 13C a r r e , o p . c it., p. 116.
״B. B. P r i c e , Medieval thought: an introduction, O x f o r d , Blackwell, 1992, p. 153. 15Ibid., p. 153. ,6Apud John Stacey,John Wyclifand Reform (Philadelphia, Westminster Press, 1964, p. 21). 17Ibid., p. 42. 18S tacey , o p . c it., p. 52.
,9Apud Stacey, op. cit., p. 107. 2"Matthew Spinka, orig., Advocates of Reform: from W yclif to Erasmus, Philadelphia, Westminster Press, 1953, p. 49. (The Library o f Christian Classics 14). 21Ibid., p. 26. 22S tacey , op. cit., p. 156. 23Johan H u iz in g a , Erasmus and the age of reformation, N ew York, Harper, 1957, p. 116. 24Stefan Z w eig, Erasmus o f Rotterdam, trad. Eden Paul & Cedar Paul, N ew York, Viking, 1956, p. 7-8. 25Apud Spinka, op. cit., p. 338. 26Spinka, op. cit., p. 228. 27Z w e ig , o p . c it., p. 102.
2״Ibid., p. 187. r,E. Gordon Rupp & Philip S. W a ts o n , eds., Luther and Erasmus: free will and salvation, Philadelphia, Westminster Press, 1964, p. 51. 30Ibid., p. 140. 31John R D o la n , org., The essential Erasmus, N e w York, N ew American Library, 1964, p. 377. 32Ibid., p. 378. 33Ibid., p. 364. 34Ibid., p. 369. 35Ibid., p . 3 7 9 . 36Ibid.
Introdução
à S é tim a P a r t e :
Uma nova guinada na narrativa: A igreja ocidental é
reformada e dividida ,John Dillenberger, org., Martin Luther: selections from his writings, Garden City, N.Y., Doubleday, 1961, p. xviii.
Capítulo 24: Lutero redescobre o evangelho e divide a igreja 1David C. S te i n m e t z , Luther in context, B loom in gton , Indiana U niversity Press, 1986, p. 5. 2Heiko O b e rm a n , Luther: Matt between God and the devil, trad. Eileen Walliser-Scharzbart, N ew York, Doubleday, 1992, p. 120. 3Preface to the complete edition o f Luther’s latin writings, in: Martin Luther: selection from his writings, org. John Dillenberger (Garden City, N.Y., Doubleday, 1961, p. 11). 4The ninety-five theses, in: Martin Luther: selections from his writings, p. 498. 5O b e rm a n , op. cit., p. 203. ',Confession concerning Christ’s supper, in: Martin Luther’s basic theological writings, org. Timothy Lull (Minneapolis, Fortress, 1989, p. 389. 7O b e rm a n , o p . c it., p. 79. 8S t e in m e t z , o p . c it., p. 41.
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, Paul A lth a u s , The theology of Martin Luther, trad. Robert C. Shultz, Philadelphia, Fortress, 1966, p. 121. 10O b e rm a n , op. cit., p. 154. "The Heidelberg disputation, in: Martin Luther’s basic theological writings, p. 31. 12A lth a u s , op. cit., p. 26. 13Ibid., p. 27. '4Ibid., p. 30. 15Apud Timothy George, Theology of the reformers (Nashville, Broadman, 1988, p. 77). 16Ibid., p. 79. 17De servo arbitrio, in: Luther and Erasmus: free w ill and salvation, org. E. Gordon Rupp & trad. Philip S. Watson (Philadelphia, Westminster Press, 1969, p. 236-7). 18A l t h a u s , o p . c it., p. 23. ',׳O b e rm a n , o p . c it., p . 160.
20A lth a u s , op. cit., p. 11.
21Concerning rebaptism, in: Martin Luther’s Basic theological writings, p. 115. 22Prefaces to the N ew Testament, in: Martin Luther’s basic theological writings, p. 115. 23Apud Althaus, op. cit., p. 75, n.8. 24Ibid., p. 81. 25Prefaces to the N ew Testament, p. 117. 26A l t h a u s , o p . c it., p. 3 8 .
27Ibid., 2"Ibid., 29Ibid., 30Ibid., 31Ibid.,
p. 165. p. 166.
p. 24-40. p. 225. p. 149.
32O b e rm a n , o p . c it., p. 184.
33Two kinds o f righteousness in Christ, in: Martin Luther’s basic theological writings, p. 156. MA commentary on St. Paul’s Epistle to the Galatians, in: Martin Luther: selections from his writings, p. 130. 35A l t h a u s , o p . c it., p. 44.
36T h e fre e d o m o f a C h ris tia n , in: Martin Luther: se lectio n s fro m h is w ritin g s, p. 64. 37A lth a u s , op. cit., p. 345.
38Ibid., p. 356. 39O
b er m a n ,
o p . c it., p. 227.
40Concerning rebaptism, p. 353. 41A l t h a u s , o p . c it., p. 3 9 9 .
42O b e rm a n , op. cit., p. 244.
43Ibid., p. 237. 44The Sacrament o f the body and blood: against the fanatics, in: Martin Luther’s basic theological writings, p. 321.
Capítulo 25: Zuínglio e Calvino organizam o pensamento protestante 1Pagar um príncipe ou bispo por um cargo ministerial, tecnicamente conhecido com o “simonia”, era com um na Europa na época de Zuínglio e m esm o antes. Essa prática foi abolida por católicos e protestantes nas reformas do século xvi. 2Ulrich G ã b le r, Huldrych Zw ingli: his life and work, trad. Ruth C. L. Gritsch, Philadelphia, Fortress, 1986, p. 40. 3Samuel Macauley Jackson & Clarence N cvin Heller, eds., Durham, Labyrinth, 1981.
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4V., de Jacques Courvoisier, Zw ingli: a reformed theologian (Richmond, John Knox Press, 1963 [p. 2 7 -3 7 ) ) .
5On the providence o f God, in: O n providence and other essays, Samuel Jackson & William John Hinke, eds. (Durham, Labyrinth, 1983, p. 130). 6Ibid., p. 134. 7Ibid., p. 137. "Ibid., p. 157. 9G ã b le r, o p . c it., p. 1 4 6 -7 .
'"Ibid., p. 138. “On the providence o f God, p. 227. 12Ibid., p. 186-7. 13Ibid., p. 182. 14Ibid., p. 183. ,5Apud Courvoisier, Zw ingli, p. 64. 16A short and clear exposition o f the Christian faith, in: O n providence and other essays, p. 240. ,7G ã b le r, op. cit., p. 145. ,8An account o f the faith o f Zwingli, in: O n Providettce and Other Essays, p. 47-8. ,,׳Ibid., p. 42-3. 20Para conhecer o trabalho de Zuinglio, v. A short and clear exposition o f the Christian faith, in: O n providence and other essays, p. 248-50. 2,Ibid, p. 2 52. 22C o u r v o isie r , o p . c it., p. 75.
23T. H. L. P a rk e r , John Calvin: a biography, Philadelphia, Westminster Press, 1975, p. 50. 24Ibid., p. 53. 25Institutes of the Christian Religion, 1.16.9 Brattles. 2־׳Ibid. 27Ibid., 3.23.8. 2"Timothy G e o r g e , Theology of the reformers, Nashville, Broadman, 1988, p. 2 32. 29Institutes, 3.24.17. 30Ibid. 31Ibid., 3.23.10. 32Ibid., 4.17.12. 33Ibid., 4.17.10. 34Ibid., 4.17.33.
Capítulo 26: Os anabatistas voltam às raizes do cristianismo 1A descrição dos dois tipos de reformadores protestantes do século xvi foi extraída, em termos gerais, da obra de George H. Williams, The radical reformation (Philadelphia, Westminster Press, 1962 [p. xxiii-xxxi]). 2A maior parte do material histórico sobre o m ovim ento anabatista provém de William R. Estep, The anabaptist story (Grand Rapids, Eerdmans, 1963). 3Ibid., p. 11. 4Ibid., p. 15. 5Ibid., p. 11. 6U m estudo fascinante das opiniões que os reformadores magisteriais fizeram dos anabatistas encontra-se na obra The reformers and their stepchildren, de Leonard Verduin (Grand Rapids, Eerdmans, 1964). Verduin demonstra de m odo convincente que os reformadores magisteriais (Lutero, Zuinglio, Calvino e outros) e os governantes civis (magistrados) do protestantismo
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majoritário não compreenderam os reformadores radicais e os atacaram de m odo m uito injusto. A maioria não era revolucionária nem herege, e existia naquele tem po evidência suficiente para saber isso. Essa obra de Verduin contém severa crítica aos reformadores pro testantes, por sua ignorância deliberada e pelo tratamento impróprio e mal-intencionado dispensado aos seus “enteados” religiosos, os anabatistas. 7Ibid., p. 63. *On heretics and those w ho burn them, in: Balthasar Hubmaier: theologian of anabaptism, H. Wayne Pipkin & John H. Yoder, eds. (Scottdale, Herald Press, 1989, p. 62). ,'Dialogue with Zwingli’s baptism book, in: Balthasar Hubmaier: 'Iheologian of anabaptism, p. 175. 10A descrição do conceito de Hubmaier sobre a iniciação cristã foi extraída, em grande parte, do último capítulo de On the Christian baptism of believers, intitulado “The order o f Christian justification”, 143-9. 11 On the Christian baptism of believers, p . 117. ,2Ibid., p. 98. 13Ibid., p. 146. ,■,A Christian catechism, in: Balthasar Hubmaier: Theologian of anabaptism, p. 349. ,5Freedom o f the will 1, in: Balthasar Hubmaier: Theologian o f anabaptism, p. 440. 16Freedom o f the will 2, in: Balthasar Hubmaier: Theologian of anabaptism, p. 454. ,7Ibid., p. 477. ,״Ibid., p. 465-6. ,T im o th y G e o rg e , Theology of the reformers, Nashville, Broadman, 1988, p. 255. 20Apud Timothy George, op. cit., p. 261. 2,G e o rg e , op. cit., p. 263. 22Foundation o f Christian doctrine, in: The complete writings ofMenno Sim ons,]. C. Wenger, org., trad. Leonard Verduin (Scottdale, Herald, 1956, p. 131). 23Ibid., p . 112. 24Ibid., p . 133-4. 25G e o r g e , o p . c it., p. 2 69.
26Foundation of Christian doctrine, p. 175. 27Ibid., p. 2 00. 28C f as próprias palavras de M eno em sua obra The incarnation o f our Lord in: Complete writings (p. 783-834). Veja unia análise a respeito em George, Theology of the reformers (p. 28085). 29G e o rg e , op. cit., p. 284.
Capítulo 27: Roma e Cantuária seguem caminhos diferentes, mas paralelos ,Agradeço a meu colega Cornells (N eil) Lettinga pelas expressões “homens do livro de ora ções” e “evangelistas fervorosos” e pelas informações e discernimentos oferecidos em sua tese de doutorado Covenant theology and the transformation of anglicanism (1987). 2Lionel S. T h o r t o n , Richard Hooker: a study of his theology, Londres, SPCK, 1924, p. 7. O “Templo” era uma igreja prestigiosa perto do rio Tamisa, no centro de Londres. Foi construído pela ordem dos cruzados Cavalheiros Templários no século xii. D ois livros excelentes sobre essa “dupla estranha” do Templo de Londres são Walter Travers: paragon o f Elizabethan Puritanism (Londres, Methuen, 1962) e Richard Hooker and the authority of scripture, tradition and reason: reformed theologian o f the church o f England?, de N igel Atkinson (Carlisle, U.K., Paternoster, 1997). 3Grandes progressos foram feitos para o entendim ento e a aceitação mútua de católicos e protestantes no n C oncílio Vaticano, o 21° concílio ecum ênico da Igreja Católica Romana,
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no com eço da década de 1960. Nas décadas de 1970 e 1980 e ainda na última década do século xx, teólogos católicos e protestantes mantiveram diálogos ecum ênicos frutíferos. A hierarquia católica romana ainda não tinha anulado oficialmente os anátemas de Trento con tra Lutero e seus seguidores na data em que este livro foi escrito. Para muitos católicos, porém, eles não passam de relíquias de uma era polêmica do passado distante. M uitos pensa dores e líderes católicos e protestantes os ignoram. 4O teólogo e historiador britânico, Philip Edgcumbe Hughes, levantou com sucesso argu mentos a favor do teor autenticamente protestante da Reforma inglesa (inclusive a anglicana) em Theology of the English reformers (Grand Rapids, Eerdmans, 1965). 5G. W. B ro m ile y , Thomas Crattmer theologian, N ew York, Oxford University Press, 1956, p. 98. ‘Ibid., p. 9. 7Apud Hughes, Theology of the English reformers, p. 16. "Ibid., p. 20. ,,B r o m iley , o p . c it., p. 25. "’Philip Edgcumbe H u g h e s , Faith and works: Cranmcr and Hooker on justification, Wilton,
Morehouse-Barlow, 1982, p. 33. 11Thomas C r a n m e r , A hom ily on the salvation o f mankind by only Christ our Savior from sin and death everlasting, in: Hughes, Faith and works, p. 51. 13Ibid., p. 57. 13U m estudo excelente da doutrina protestante-anglicana inglesa do ministério (inclusive de Cranmer) encontra-se em Theology of the English reformers, de Hughes (p. 162-88). 14Ibid., p. 164. 15Justo G o n z A le z , A history of Christian thought, ed. rev., Nashville, Abingdon Press, 1987, p. 194. V. 3: From the protestant reformation to the twentieth century. 16Para obter uma análise do raciocínio de Hooker e de sua abordagem geral à metafísica, veja Richard Hooker, de Thornton (p. 25-40), especialmente o capítulo 3. Para obter um exame de sua opinião sobre as Escrituras e outras autoridades, veja o capítulo 4 do m esm o livro (p. 4153). Thornton, anglicano do século xx, talvez simpatize demasiadamente com Hooker e critique demasiadamente seus oponentes puritanos, mas sua percepção do raciocínio do Mestre do Templo e autor de Laws of ecclesiastical polity é insuperável na literatura moderna. 17Ibid., p. 36. 11,Ibid., p. 50. 1‘, Richard H o o k e r , A learned discourse o f justification, works and how the foundation o f faith is overthrown, in: Hughes, Faith and works, p. 61-109. 2״T
hornton,
o p . c it., p. 68.
21Ibid., p. 96. 22Ibid., p. 92. 23Ibid., p. 74, 77. , 24John H. L e ith , org., Creeds of the churches, ed. rev., Richmond, John Knox Press, 1973, p. 266-81. 25G o n z A le z , op. cit., 3.195. 26Henri D a n ie l-R o p s , The Catholic refortnation, trad. John Warrington, N e w York, E. E Dutton, 1962, p. 94.
27Ibid. 2«Ibid., p. 99. 2",Ibid., p. 95 n. 1. 30The church teaches: documents o f the church in English translation, trad. John F. Clarkson, S. J., et al., St. Louis, Herder, 1961, p. 45.
652 31Ibid., 32Ibid., 33Ibid., 34Ibid., 35Ibid. 36Ibid., 37Ibid.,
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p. 231-2. p. 233. p. 234. p. 2 4 3 .
p. 246. p. 330-1.
Capítulo 28: Os arminianos tentam reform ar a teologia reformada 1A maior parte das informações biográficas sobre Jacó Armínio foi tirada de Arm inius: a study in the Dutch reformation, de Carl Bangs (Grand Rapids, Zondervan, 1985). 2Charles M . C a m e ro n , Arminius: hero or heretic?, Evangelical Quarterly 64, 3: 213, 1992. 3Richard A. M u l l e r , God, creation and providence in the thought of Jacob Arm inius, Grand Rapids, Baker, 1991, p. 269. 4Ibid., p. 3. 5Ibid., p. ix. 6Ibid., p. 31. 7Ibid., p. 32. *Robert S c h n u c k e r , Theodore Beza, in: The new international dictionary of the Christian church, J. D. Douglas, org., Grand Rapids, Zondervan, 1974, p. 126. 9Justo G o n z á l e z , A history o f Christian thought, ed. rev., Nashville, Abingdon, 1987, p. 270-8. V. 3: From the protestant reformation to the twentieth century. ",B a n g s , o p . c it., p. 96.
11Ibid., p. 19. 12Ibid., p. 144. 13Ibid., p. 195. 14Ibid., p. 248. 15Ibid., p. 282. 16Ibid., p. 331. 17W. H a r r i s o n , Arminianism, Londres, Duckworth, 1937, p. 84. 18Ibid., p. 81-2. ,9Todas as citações dos tratados de Armínio foram extraídas de The works of James Arminius, edição de Londres, trad. James N ichols e William N ichols (Grand Rapids, Baker, 1986). 20Certain articles to be diligently examined and weighed, in: Works of James Arm inius, 2.706. 2,Alan R F. S e ll, The great debate: Calvinism, Arminianism and salvation, Grand Rapids, Baker, 1983, p. 12. 22In: Works of James Arminius, 1.695. 23Ibid., p. 700. 24Ibid., p. 614. 25Ibid., p . 630. 26Ibid., p . 650-1. 27Ibid., p. 313. 2׳,Ibid., p. 653-4. 29Certain articles to be diligently examined and weighed, 2.716. 5"Examination o f Dr. Perkins’s Pamphlet, in: Works of James Arm inius, 3.284. Muller, com toda a razão, atribui muito valor à crença de Armínio na autolimitação divina da aliança com o uma diferença básica entre ele e os teólogos reformados de sua época. Veja God, creation and providence, de Muller (p. 235-45).
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31Skcvington W o o d , The declaration o f sentiments: the theological testament o f Arminius, Evangelical Quarterly 65, 2:219, 1993. 32A declaration o f sentiments, 1.279. 33A letter addressed to Hippolytus A. Collibus, in: Works of James Arm inius, 2.701. 34Ibid., p. 700-1. 35V God, creation and providence, de Muller (p. 281). 36B a n g s, op. cit., p. 348-9.
Capítulo 29: Os pietistas procuram renovar a teologia luterana 1Ernest S t o e f f l e r , The rise of evangelical pietism, Leiden, Brill, 1971, p. 1. 2Dale W. B ro w n , Understanding pietism, Grand Rapids, Eerdmans, 1978, p. 7. 3Ibid., p. 83. 4S t o e f f l e r , o p . c it., p. 13.
5Ted A. C am p b ell, The religion of the heart: a study o f European life in the seventeenth and eighteenth centuries, Columbia, University o f South Carolina Press, 1991, p. 71. 6Justo G o n z a l e z , A history of Christian thought, ed. rev., Nasville, Abingdon, 1987, p. 300. V 3: From the protestant reformation to the twentieth century. 7James S t e i n , Philipp Jakob Spener: Pietist patriarch, Chicago, Covenant Press, 1986, p. 21. 8S t o e f f l e r , op. cit., p. 17-8. ,'Philipp S p e n e r, apud em Brown, Understanding pietism, p. 85. 10Johann A r n d t , True Christianity in pietism, Christian Classics, org. Thom as Hallbrooks, Nashville, Broadman, 1981, p. 165. 11Ibid., p. 166. 12S t o e f f l e r , op. cit., p. 211. 13C a m pbell , o p . c it., p . 79.
14As presentes informações sobre a vida de Spener foram extraídas, em grande parte, da bio grafia escrita por Stein, Philipp Jakob Spener, p. 21. 13Philip Jakob S p e n e r, Pia desideria, trad. Theodore G. Tappert, Philadelphia, Fortress, 1964, p. 36-7. 16Ibid., p. 67. 17Ibid., p. 108. 18Ibid., p. 116-7. 19C a m pbell , o p . c it., p. 86.
20A principal biografia de Francke em língua inglesa moderna é a de Gary R. Sattler, God's glory, neighbour's good (Chicago, Covenant Press, 1982). 21Ernest S t o e f f l e r , Gentian pietism during the eighteenth century, Leiden, Brill, 1973, p. 4. 22August Hermann F r a n c k e , From the “Autobiography”, in: Pietists: selected writings, org. Peter C. Erb (N ew York, Paulist, 1983 [p. 105], The classics o f western spirituality). 23S t o e f f l e r , Gertnatt pietism, p. 3 1 . 24George W. F o r e l l , introdução a Nikolaus Ludwig von Zinzendorf, N ine public lectures on important subjects, trad, e org. George W. Forell (Iowa City, University o f Iowa Press, 1973 [p. vii]). 25S t o e f f l e r , German pietism, p. 141. 26Conde Z i n z e n d o r f , apud Stoeffler, German pietism, p. 143. 27S t o e f f l e r , German pietism, p . 144. 28Z i n z e n d o r f , N ine public lectures, p . 31. 29Ibid., p. 50-1. 30B ro w n , op. cit., p. 48-50.
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31Ibid., p. 50. 32Duas denominações batistas na América do N orte estão arraigadas no pietismo alemão e escandinavo mais do que no congregacionalismo puritano inglês. São a Baptist General Conference (sueca) e a North American Baptist Convention (alemã). A Evangelical Free Church o f America e a Evangelical Covenant Church o f America estão igualmente arraiga das no pietismo escandinavo e originariamente concediam aos pais a escolha entre o batismo infantil e o batismo dos crentes depois da conversão. 33S t o e f f l e r , Rise of evangelical pietism, p. 242. 34B ro w n , op. cit., p. 43. 35S t o e f f l e r , German pietism, p. 19. 3*Ibid., p. 21. 37Ibid., p. 153. 38August Hermann F ra n c k e , O n Christian perfection, in: Pietists: selected writings, p. 114. 39Ibid., p. 115. 4"Veja a transcrição do debate de Wesley e Z inzendorf na introdução de Forell a Zinzendorf, N ine public lectures (p. xvii-xix). 41S t o e f f l e r , German pietism, p. 7.
Capítulo 30: Os puritanos e os metodistas esforçam-se para reavivar a teologia inglesa 1O livro do professor de Wheaton College, Leland Ryken, Worldly saints: the puritans as they really were (Grand Rapids, Academic & Zondervan, 1986) deveria ser leitura obrigatória para todo professor e jornalista que fala ou escreve sobre os puritanos. A obra corrige muitos conceitos falsos e imagens distorcidas a respeito dos puritanos e do m ovim ento puritano que tomam quase todas as considerações populares não-eruditas. 2Edmund S. M o r g a n , Visible saints: the history o f the puritan idea, N ew York. N ew York University Press, 1963, p. 82. 3Ibid., p. 128. 4John von R o h r , The covenant of grace in puritan thought, Atlanta, Scholars Press, 1986, p. 8. 5Ibid. p. 10. 6Ibid. p. 15. 7John E. S m ith , Jonathan Edwards: puritan, preacher, philosopher, N otre Dame, N otre Dame University Press, 1992, p. 1. “Robert W. J e n s o n , America’s theologian: a recommendation ofjonathan Edwards, N ew York, Oxford University Press, 1988. 9Entre muitos outros estudiosos evangélicos contemporâneos, o professor Mark N o ll, de Wheaton College, atribui ajonathan Edwards esse tipo de referência em seu livro The scandal of the evangelical mind (Grand Rapids, Eerdmans, 1994). 10In: Jonathan Edwards: representative selections, ed. rev., Clarence H. Faust & Thomas H. Johnson, eds, N ew York, Hill and Wang, 1962, p. 340. 11Doctrine o f original sin, in: Jonathan Edwards: representative selections, p. 334. 12S m it h , o p . c it., p. 60.
13hr. Jonathan Edwards: representative selections, p. 286. 14Doctrine o f original sin, p. 338. 15In: Jonathan Edwards: representative selections, p. 209. 16Alan P F. S e ll, The great debate: Calvinism, Arminianism and salvation, Grand Rapids, Baker, 1983, p. 6. 17Um a biografia fascinante de Wesley, escrita em forma de autobiografia, encontra-se na obra
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de Robert G. Tuttle Jr.,John Wesley: his life and theology (Grand Rapids, Zondervan, 1978). Para obter uma abordagem histórica mais detalhada do m ovim ento metodista na Inglaterra no século XVM e também sobre a vida e o pensamento de Wesley, leia a obra de Henry D. Rack, Reasonable enthusiasm: John Wesley and the rise o f M ethodism (2 ed., Nashville, Abingdon, 1992). 18O número exato de filhos na família varia de acordo com as diferentes origens documentárias. Ao que parece, Samuel e Susana Wesley tiveram dezenove filhos, mas som ente dez sobrevi veram até a idade adulta. A maioria dos historiadores aceita que havia um total de dezesseis irmãos e irmãs, com inclusão do próprio John. Alguns morreram quando crianças. Aparen temente, três eram natimortos ou morreram pouco depois de nascer e não são contados entre os irmãos e irmãs de John. 19D o Journal de Wesley, apud Tuttle, João Wesley (p. 195). 20Cf. as citações e o comentário na obra de Thomas C. O den,John Wesley’s scriptural Christianity: a plain exposition o f his teaching on Christian doctrine (Grand Rapids, Zondervan, 1994 [p. 258-9]). 21Exatamente no m om ento ein que os cristãos evangélicos na Grã-Bretanha e na América do Norte consideraram que o grande debate teológico entre o monergism o e o sinergismo era coisa do passado, ele irrompe de novo. Enquanto escrevia este livro, a antiga controvérsia entre arminianos evangélicos, com o Wesley, e calvinistas evangélicos, com o Edwards e Whitefield, ameaçava surgir de novo, com o se pode notar pela formação de m ovimentos de renovação reformada, com o Christians U nited for Reformation (c.U .R .E .) e a Alliance o f Confessing Evangelicals. Esses dois grupos de teólogos, pastores e evangelistas consideram a teologia arminiana uma praga na existência do evangelicalismo e procuram estabelecer o monergismo na tradição agostiniana-calvinista-puritana com o norma para a ortodoxia evan gélica. 22U m a das melhores exposições e interpretações do quadrilátero wesleyano encontra-se na obra de Donald A. Thorsen, The Wesleyan quadrilateral: scripture, tradition, reason and experience as a model o f evangelical theology (Grand Rapids, Zondervan, 1990). 23O d e n , John Wesley’s scriptural Christianity, p. 56. 24U m bom resumo e interpretação crítica da soteriologia de Wesley encontra-se na obra de KcnnethJ. Collins, The scripture way of salvation: the heart ofjo h n Wesley’s theology (Nashville, Abingdon, 1997), especialmente no capítulo 4 “Regeneration by grace through faith”, p. 101-30. 25Explicação clara da perfeição cristã, São Paulo, Imprensa Metodista, 1984, p. 137-8. 26Remarks on a defense o f Aspasio vindicated, apud Collins, The scripture way of salvation, p. 95. O capítulo 3 inteiro de Collins, “Justification by grace through faith” (p. 69-100), constituise no argumento convincente de que Wesley nunca m udou ou hesitou nessa questão depois de sua “conversão” e até a morte.
Capítulo 31: Os deístas tentam transform ar a teologia protestante 1G. H e e e l b o w e r , lh e relation o f John Locke to English deism, Chicago, University o f Chicago Press, 1918, p. 117. 2James M. B y r n e , Religion and the enlightenment: from Descartes to Kant, Louisville, Westminster John Knox, 1996, p. 5-10. 3Peter Gay refere-se ao Lorde I lerbert com o “o pai do deísm o” e “precursor do deísm o” nas notas introdutórias à seleção para leitura tirada da obra do Lorde Herbert, D e veritate, in: Deism: an anthology (Princeton, N.J., Van Nostrand, 1968, [p. 29]). Gay também explica um pouco da situação ambígua de Locke em relação ao deísm o na introdução geral à antologia.
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onde escreve que Locke ajudou a tornar o deísm o inevitável, embora ele próprio não fosse deísta (p. 26). 4D e Lorde Herbert, D e veritate, apud Gay, Deism: an anthology, p. 32-8. 5Ibid., p. 40. 6Ibid., p. 31. 7B y r n e , o p . c it., p . 105.
8A relação exata de Locke com o deísmo é uma questão muito controversa da história da filoso fia e da teologia moderna. Creio que a questão ficou resolvida definitivamente em 1918 por S. G. Hefelbower, The relation of John Locke to English deism. Nessa obra, o autor analisa as várias formas de descrever essa relação e conclui demonstrando de forma bastante convincente que “Locke e o deísmo inglcs se relacionam com o partes coordenadas do movimento progressista mais amplo daquela era” (p. v) e que, embora tenha claramente influenciado e mesmo possibi litado a ascensão do deísmo, Locke não simpatizava com as conclusões mais radicais dele. 9H e f e l b o w e r , op. cit., p. 100. 1"I. T. R a m s e y , Introdução do editor a John Locke, in: The reasonableness of Christianity, with ‘A discourse of miracles" and part o f “A third letter concerning toleration", org. I. T. Ramsey (Londres, Black, 1958 [p. 8]). "R 84. 12B y r n e , o p . c it., p. 107.
1־,Ibid., p. 108. 14John T o l a n d , Christianity not mysterious, in: Gay, Deism, an anthology, p . 61. 1,Para obter um estudo das opiniões de Toland a respeito dos dogmas cristãos com o a Trinda de e as naturezas de Cristo, v., de Robert E. Sullivan, The task o f criticism, cap. 4, in: John Toland and the deist controversy: a study in adaptations (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1982 [p. 109-40]). 1',Ibid., p. 121ss. 17B y r n e , o p . c it., p. 109.
18Ernest Campbell M o s s n e r , Bishop Butler and the Age of Reason: a study in the history of thought, N ew York, Macmillan, 1936, p. 75. 19Ibid., p. 77. 20H e f e l b o w e r , op. cit., p. 138-9. 21Introdução do editor a John Locke, in: The reasonableness o f Christianity, p. 19. 22Procusto era o estalageiro iníquo da antiga lenda grega, que entrava sorrateiro no quarto de seus hóspedes à noite e forçava o corpo de cada um a se encaixar exatamente na cama, pela amputação ou o estiramento. “Leito de Procusto” é uma metáfora para um sistema de pensa mento empregado com o padrão implícito e pressuposto, no qual todas as coisas devem estar encaixadas. Um a “distorção de Procusto” é o processo de forçar uma religião ou filosofia positiva a encaixar-se em outro sistem a de pensam ento, com o uma religião natural, distorcendo-a até se tornar irreconhecível. 23Mais considerações a respeito da posição defendida nesse parágrafo sobre o conceito bíblico a respeito de Deus e com o ele foi subvertido por muitas categorias de pensamento gregas e modernas, encontram-se no excelente livro escrito pelo teólogo reformado sul-africano, Adriõ Kõnig, Here am I: a believer’s reflection on God (Grand Rapids, Eerdmans, 1982). 24Jimmy Carter e Michael Dukakis, respectivamente.
Introdução à N o n a P a r t e : A trama geral se divide: Os liberais e os conservadores res pondent positivamente à modernidade 1Henry Churchill K i n g , N ew York, Hodder & Stoughton, 1901.
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2A dolf von H a r n a c k , N ew York, Putnam’s, 1901. 3Grand Rapids, Eerdmans, 1985. 4The kingdom of God in America, N ew York, Harper & Row, 1959, p. 193.
Capítulo 32: A teologia liberal ajusta-se à cultura moderna ,A expressão “reconhecimento máximo das reivindicações da modernidade” foi cunhada por Claude Welch, Protestant theology in the nineteenth century, vl. 1, 1799-1870 (N ew Haven, Yale University Press, 1972 [p. 142]). M uitos livros de teólogos liberais e conservadores procura ram dissecar o m ovimento e discernir seu âmago ou essência. Três deles, que focalizam a teologia protestante liberal na América do N orte, e que influenciaram de forma especial o m odo de o presente autor interpretar o m ovim ento são: Kenneth Cauthen, The impact of American religious Hberalism (2 ed., Lanham, University Press o f America, 1983); The modernist impulse in American Protestantism (Oxford, Oxford University Press, 1982) e Donald E. Miller, The casefo r liberal Christianity (San Francisco, Harper & Row, 1981). 2W e l c h , Protestant theology, 1.142. 3Washington G l a d d e n , Present day theology, 2 ed., C olum bus, O hio, M cClelland, 1913, p. 3-4. 4Trad. Theodore M. Greene & Hoyt H. Hudson, N ew York, Harper Torchbooks, 1960. 5E. B. Speirs, org., trad. E. B. Speirs & J. Burden Sanderson, N ew York, Humanities Press, 1962. 6Terrence N . T i c e , Introdução a Friedrich Schleiermacher, in: On religion: addresses in response to its cultured critics, trad. Terrence N . Tice (Richmond, John Knox Press, 1969 [p. 12]). 7Keith W. C l e m e n t s , Friedrich Schleiermacher: Pioneer o f modern theology, Londres: Collins, 1987, p. 7. "H. R. Mackintosh & J. S. Stewart, eds., 2 ed., Philadelphia, Fortress, 1928, p. 76. ׳־Ibid., p. 194. 10Ibid., p. 183. 11Ibid., p. 367. 12Ibid., p. 385. 13Introdução a Albrecht Ritschl, in: The Christian doctrine of justification and reconciliation, trad. H. R. Mackintosh & A. B. Macaulay (Edimburgo, U.K., Clark, 1900 [p.v.]). 14R i t s c h l , Christian doctrine of justification, p. 334-5. 15Esses princípios foram apresentados por A dolf von Harnack em What is Christianity? (N ew York, Putnam’s, 1901 [p. 55]) e interpretados nas páginas seguintes. 16A divisão alemã do Seminário Teológico de Rochester era um departamento sem i-autônom o da escola batista de teologia que se separou e m udou para Sioux Falls, Dakota do Sul, na década de 1940. Agora é chamada Seminário Batista da América do N orte e reivindica Rauschenbusch com o seu. 1M theologyfo r the social gospel. N ew York, Macmillan, 1918, p. 117.
Capítulo 33: A teologia conservadora consolida as categorias tradicionais 1Apud Alan E R. Sell, Theology in turmoil: the roots, course and significance o f the conservativeliberal debate in modern theology (Grand Rapids, Baker, 1986 [p. 108]). ־Ura relevante estudo especializado do fundamentalismo que focaliza os aspectos sociológi cos e que tende a empregar o rótulo em um sentido bastante amplo é a série de cinco volu mes de Martin E. Marty e R. Scott Appleby, org., The Fundamentalism project (Chicago, University o f Chicago Press, 1991-1995). 3As descrições especializadas mais exatas e profundas do fundamentalismo protestantes são as escritas pelo historiador George Marsden. Cf. suas duas excelentes obras: Fundamentalism
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and American culture: the shaping o f twentieth-century Evangelicalism, 1870-1925 (N ew York, Oxford University Press, 1980) e Understanding Fundamentalism and Evangelicalism (Grand Rapids, Eerdmans, 1991). ,,George W. D o l l a r , / ! history o f Fundamentalism in America, Greenville, Bob Jones University Press, 1973, s.p. 5A history of Christian thought, ed. rev., Nashville, Abingdon, 1987, p. 276. V. 3: From the protestant reformation to the twentieth century. 6Ibid., p. 278. 7Francis T u r r e t i n , The doctrine of scripture: locus 2 o f “Institutio theologiae elencticae”, org. e trad. John W. Beardslee III, Grand Rapids, Baker, 1981, p. 135-46. *׳Para obter informações sobre os quatro personagens da dinastia teológica de Princeton (acom panhadas de trechos selecionados), cf. a excelente compilação de Mark A. N oll, org., The Princeton theology 1812-1921: Scripture, science and theological m ethod from Archibald Alexander to Benjamin Breckinridge Warfield (Grand Rapids, Baker, 1983). 9James H. S m y lie , D efining orthodoxy: Charles Hodge (1797-1878) in: Makers o f Christian theology in America, de Mark G. Toulouse &James O. Duke, orgs. (Nashville, Abingdon, 1997 [p. 154]). 103 v., Grand Rapids, Eerdmans, 1973, 1.10. “ Ibid., 1:170. ,2Ibid. 13Ibid., 1:179. u The inspiration and authority of the bible, Samuel G. Craig, org., Philadelphia, Presbyterian and Reformed, 1948, p. 181. 15Cf. seleções sobre “Ciência” dos dois Hodge e de Warfield em N oll, The Princeton theology (p. 135-52; 233-7; 289-98). 'bT~hefundamentals: a testimony to the truth, v. 1, Chicago, Testimony, 1910. ,7Grand Rapids, Eerdmans, 1985. ,8Ibid., p. 8. ,9U m a descrição fascinante da relação de Machen com o fundamentalismo foi feito por D. G. Hart em Defending thefaith: J. Gresham Machen and the crisis o f conservative Protestantism in modern America (Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1994). Hart mostra as iro nias dessa relação. “ As pessoas que conhecem o processo Scopes somente pela peça teatral (ou pelo filme) Inherit the wind pouco sabem a respeito. A história verídica encontra-se em qualquer livro histórico a respeito do caso e muitos outros já foram escritos. U m conjunto excelente de abordagens históricas especializadas do acontecimento está no capítulo seis da obra do organizador Willard B. Gatewood Jr., Controversy in the twenties: Fundamentalism, modernism and evolution (Nashville, Vanderbilt University Press, 1969 [p. 331-67]). Embora seja verdade que o caso representou uma derrota para o fundamentalismo no tribunal da opinião pública, isso se deveu em parte às reportagens tendenciosas de H. L. Mencken, que infelizmente se tornou base para muitas interpretações errôneas de Bryan e de outros oponentes do evolucionismo. 21Cf., de Billy Graham, Just as I am: the autobiography o f Billy Graham (N e w York, HarperCollins, 1997). N as p. 302-3, o evangelista descreve a amizade com B ob jones, John R. Rice e Carl Mclntire e a dolorosa rejeição da parte eles. 22Embora os teólogos liberais e a maioria de estudiosos religiosos seculares empreguem o termofundamentalismo para rotular todos os protestantes conservadores do século xx, especial mente os que afirmam a inerrância da Bíblia, muitos protestantes conservadores nos Estados U nidos e na Grã-Bretanha insistem em fazer uma distinção entre os fundamentalistas e os
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evangélicos pós-fundamentalistas. Os últimos geralmente concordam com o fundamentalismo antigo (Machen, The fundamentais) quanto às doutrinas básicas e aos perigos da teologia libe ral, mas rejeitam as características do fundam entalism o extrem o: o separatismo e a hermenêutica bíblica literalista. Fontes documentárias excelentes a respeito dessa distinção são as obras de George Marsden, Reforming Fundamentalism: fuller seminary and the new evangelicalism (Grand Rapids, Eerdmans, 1987) e de Joel Carpenter, Revive us again: the reawakening o f American Fundamentalism (N ew York, Oxford University Press, 1997). 2־,Jack R o g e r s & ־Donald M c K im , The authority and interpretation of the bible: an historical approach, San Francisco, Harper & Row, 1979. 24M a c h e n , Christianity and liberalism, p. 53. 25D ollar , o p . c it., p . 281.
2׳,Mark Taylor D a l h o u s e , BobJones University and the shaping of twentieth century separatism, Í9261991 (Tese de P h . D . , University o f Miami, 1991). 27O ito denominações são geralmente identificadas pelos sociólogos da religião com o inte grantes do “grupo majoritário” dos protestantes nos Estados Unidos: a Igreja Episcopal, a Igreja Presbiteriana ( e u a ) , a Igreja Luterana Evangélica dos Estados Unidos, a Igreja Metodista Unida, a Igreja de Cristo Unida, as Igrejas Batistas dos e u a , a Igreja Reformada dos e u a , a Igreja C ristã/Discípulos de Cristo. Essas oito denom inações são mais freqüentem ente identificadas com o “majoritárias” (ou “clássicas”) simplesmente por causa de suas histórias sociais de organizações religiosas que influenciaram a vida política e econôm ica dos Estados Unidos. Em geral, a liderança dessas denominações segue formas da teologia liberal, neoliberal ou neo-ortodoxa. O s fundamentalistas abandonaram totalmente essas formas e agora são excluídos da liderança central. 2*Em 1959, a editora presbiteriana Westminster Press, da Filadélfia, publicou uma série de três livros de autores diferentes. Cada livro devia apresentar, de m odo tão sucinto quanto possí vel, as idéias básicas de cada uma dessas principais opções da teologia protestante do século xx. O s autores e livros são: L. Harold D e Wolf, The casefor theology in liberal perspective; Edward John Carnell, The casefo r orthodox theology; e William I lordern, The casefo r a new reformation theology (neo-ortodoxa). Ironicamente, o livro de Carnell que devia fazer a defesa da teologia protestante conservadora, apresentou argumentos contra o fundamentalismo que ofende ram até alguns evangélicos moderados.
Capítulo 34: A neo-ortodoxia transcende a divisão 1Cornelius V a n T i l , Philipsburg, Presbyterian & Reformed, 1946. 2D ois teólogos evangélicos conservadores influentes, às vezes considerados fundamentalistas moderados, que inexoravelmente culpavam Karl Barth e a neo-ortodoxia em geral por todos os males teológicos protestantes do século xx eram Francis Schaeffer (1912-1984) e Carl F. H. Henry (1913-). Ainda na década de 1990, o último, não raro considerado o “decano dos teólogos evangélicos conservadores”, culpou Barth por um irracionalismo difuso na teologia contemporânea e até o ligou à teologia “desconstrucionista” relativista. Cf., de Cari F. H. Henry, Toward a recover}' of Christian belief (Wheaton, Crossway, 1990), p. 32-9. 3Robert B r e t a l l , org., A Kierkegaard anthology, Princeton, Princeton University Press, 1951, p. 448. 4V., de Sõren Kierkegaard, Concluding unscientific postscript to the “Philosophical fragments" in: 4׳״ Kierkegaard anthology (Princeton, Princeton University Press, 1951 [p. 215]). 5Ibid., p . 215. 6Ibid., p . 215. 7Trad. Edwyn C. Hoskyns, London, Oxford University Press, 1933 p. 1.
660
História
da
teologia
cristã
*The Word of God and the word of man, trad. Douglas Horton, Boston, Pilgrim, 1928, p. 43. 9Church dogmatics 1/1, “The doctrine o f the Word o f G od”, part 1, trad. G. W. Bromiley, Edim burgo, U.K., T. & T. Clark, 1975, p. 222. "1Idid., 11/2, trad. G. W. Bromiley et. al., Edimburgo, U.K.: T. & T. Clark, 1957, p. 191-2. 11Essa explicação do conceito de Barth sobre a revelação divina baseia-se especialmente no primeiro livro de Barth Church dogmatics, the doctrine o f the Word of God, parte 1/1. 12Ibid., p. 241. 13Ibid., p. 222. 14A doutrina de Barth a respeito do ser e dos atributos de D eus e sua exposição sobre Deus com o “aquele que ama na liberdade” encontra-se basicamente em Church dogmatics I I /l: “The doctrine o f God”, parte 1. 15Ibid., p. 26(). 16Ibid., p. 281. 17Ibid., p. 280. 18Essa interpretação de Barth sobre a doutrina da salvação foi tirada basicamente de Church dogmatics II/2, “The doctrine o f G od”, parte 2. 19Ibid., p. 163. 2,’Ibid., p. 167. 21Ibid., p. 319. 22Ibid., p. 346.
Capítulo 35: A teologia contemporânea enfrenta a diversidade 1Veja, por exemplo: Stanley J. Grenz & Roger E. O lson, 20th-century theology: God and the world in a transitional age (Downers Grove, InterVarsity Press, 1992). 2Essa distinção e terminologia foram tiradas e adaptadas de um debate entre dois historiadores importantes do m ovimento evangélico: George Marsden e Donald W. Dayton. Seus artigos e as respostas de vários pensadores evangélicos estão em Christian scholar’s review 23, /, 1993. 3Quando este livro estava sendo escrito, a InterVarsity Press publicou a teologia sistemática de Bloesch intitulada Christian foundations em sete volumes separadamente. O primeiro volume, que contém o m étodo teológico de Bloesch, é A theology of Word and Spirit: authority and method in theology (D ow ner’s Grove, 1992). 4O documento “Evagelicals and Catholics Together” foi ·promulgado pela primeira vez em 1994. U m a versão atualizada intitulada “T he gift o f salvation” pode ser encontrada na Christianity Today (Dec. 8:34-8, 1997). Essa versão é assinada por dezoito teólogos evangéli cos importantes e por quinze teólogos católicos famosos. 5Hearers of the Word, trad. Michael Richards, N ew York, Herder & Herder, 1969, p. 17. bThe Trinity, trad. Joseph D onceel, N ew York, Seabury Press, 1974, p. 22. A expressão “A regra de Rahner” foi cunhada por Ted Peters em Trinity talk, part I, Dialog 26, 46, 1987. 7José Miguez B o n i n o , Doing theology in a revolutionary situation, Philadelphia, Fortress, 1975, p. 81. 8N ew York, Seabury Press, 1969, p. 1.
A
Indice remissivo a A achen, S ínodo de 313 adiáforo 18 ad o cian ism o 132, 146, 154, 157, 192, 2 0 2 ,2 0 9 -1 0 ,2 1 4 ,2 1 8 ,2 2 0 ,2 2 3 ,2 3 2 , 254, 561 agennetos 150 agostinism o 259, 284, 294, 310, 426, 428, 430, 631 Alliance o f Confessing Evangelicals 656 American Civil Liberties Union (a c l u ) 579 amish 426 Alexandria Escola de 77, 205-14 Sínodo de 150 anabatistas 163, 403, 404, 4 0 5 ,4 0 8 ,4 1 0 , 415, 417, 4 2 6 -3 9 ,4 5 1 ,4 5 6 ,4 6 1 ,4 6 3 , 483, 496, 527, 533, 549, 650-1 anakephalaiosis (recapitulação) 72 Anfechtungen 385 anipostasia 223, 245, 250 an tin o m ism o 51, 124-5, 401, 414 A ntioquia Escola de 205, 214 S ínodo de 133, 146, 154 antitrinitários 161, 426 apócrifos 20, 137, 140, 397, 458, 638 apofática (v. teologia apofática) apokatastasis 101, 106, 183, 601 apolinarism o 1 9 3 -4,216, 218, 222, 226, 2 3 2 ,2 5 4 , 302 apologistas 2 6 ,3 4 , 52-67, 77, 79, 81, 94, 99, 350
apostólicos, pais 26, 38-52, 56-7, 63, 65, 67, 76, 79, 99, 137 apóstolos, Credo dos 134-6, 159 arianism o 149, 151-2, 154, 156, 159, 1 6 0 -1 ,1 6 5 -6 ,1 6 8 ,1 7 1 -2 ,1 7 6 ,1 7 8 -9 , 1 8 0 -1 ,1 8 4 ,1 9 2 ,2 0 1 ,2 3 5 , 254 sem i-arianism o 166, 168, 171, 176 arm in ian ism o 461, 463, 465, 475, 483, 487, 507, 510, 514-5, 517-9, 522, 525, 545, 549, 574 ascetism o 31, 37, 180, 294, 373 A ssem bléias de D eus 504 Associação C ristã M u n d ial dos F u n d a m en to s 577 A ugsburgo, C onfissão de 390 A ugustano, S ínodo L uterano 504 azymes 311
b basílicas 83, 133, 140 batism o 119, 122-3, 126 dos crentes 18, 425, 427, 429, 509, 5 1 1 ,6 5 5 infantil 76, 272, 404-5, 410, 418, 4 2 5 ,4 2 7 ,4 2 9 ,4 3 1 -2 ,4 3 5 -6 ,4 3 7 ,4 5 1 , 4 8 8 ,4 9 2 ,4 9 9 ,5 0 9 ,5 1 1 , 527, 655 batistas 18, 163, 417-8, 423, 436, 461, 4 7 5 ,4 8 3 ,5 0 9 ,5 1 1 ,5 1 3 ,5 2 7 ,5 4 5 ,5 8 0 , 655, 660 Belga, C onfissão 460 b isp o 25, 31-2, 42, 45, 117-9, 125-7, 130-1, 134
662
História
da t e o l o g i a
black power, m o v im en to 622 Busskam pf 494
C Calcedônia, C oncílio de 133,162, 202-3, 235-8, 241-2, 244, 249, 255 F ó rm ula de 237-9 calvinism o 417-8, 421, 423, 466, 470, 477-8, 505, 507, 513, 549 cânon 16, 25-6, 41, 49, 83, 93, 129-30, 134-6, 138-9, 297, 396, 411, 633 m u rató rio 138-9 capadócios, pais 19, 102, 143, 170, 177200, 640 carm a 106 C arvalho, Sínodo de 300 catolicism o rom ano 136,256, 283,285, 287 ,2 9 2 , 2 9 5 ,2 9 6 ,3 0 9 -1 5 ,4 0 9 ,4 4 2 , 4 4 7 ,4 5 0 ,4 5 3 ,4 5 6 ,5 0 8 ,5 1 0 ,5 2 8 ,6 1 1 , 635, 645 ceia d o S en h o r (v. eucaristia) CELAM
ii 622 ui 622 celibato clerical 309, 324 Centerfor Process Studies 618 cesaropapism o 243, 299, 311, 410, 500 Christians United fo r Reformation 656 Christotokos 217 cinco m aneiras (argum entos) de A quino 346, 348 collegia pietatis 524 collegium philobiblicum 493 communicatio idiomatum 406 conceitualism o 334, 360, 363, 365 conciliarism o 358, 360, 363, 365, 366 C o n có rd ia, F ó rm u la de 460 C ongregação de D eus no E spírito 503 congregacionalism o 423, 511, 529, 655
cristã
C o n selh o M u n d ial de Igrejas 154 co n stan tin ism o 1 6 3 ,4 1 0 ,4 2 6 ,4 2 8 ,4 3 0 , 450 C o n stan tin o p la C o n c ílio de 143, 161-2, 170, 175, 177-9, 181-4, 193-4, 198-203, 2 1 1 -2 ,2 1 4 ,2 2 7 S egundo C o n cílio de 247, 251 Terceiro C o n cílio de 306 consubstanciação 405, 422 consubstanciai 158-60, 166, 193,200-1, 210, 219, 231-2, 237, 245, 248 c o n te m p o râ n e a , teo lo g ia (v. teo lo g ia co n tem porânea) contextualização 544 C o n tra-R efo rm a 381-2, 439, 441, 447, 474 C onversão, piedade na 610 creatio ex tiihilo 85, 343, 5 1 9 ,6 1 1 , 629 criacionism o 570 cristãos reform ados 413, 580 cristologia clássica (de C alcedônia) 240,439,564 da Palavra-carne 209-10 da P alavra-hom em 210, 214 do E spírito 51, 60 do Logos 60
d deificação (v. theosis) deísm o 4 6 1,464, 483, 531-46, 550, 553, 555, 557, 587, 657 d en om inacionalism o 382 dependência, teoria da 623 D espertam ento, G rande 517, 524, 610 D eus linguagem analógica de 350, 352 natureza p rim ordial de 3 5 0 ,3 5 2 ,6 1 8 diáconos 44, 131, 133, 450, 460
índice rem issivo dialética, teologia (v. teologia dialética) diocese 118, 131 dispensacionalism o 581 do cetism o 37, 50, 207, 232, 234-5 Dogmática eclesiástica 592-4, 597 do m inicanos 341 do n atism o 243, 264, 269, 512 D o rt, S ínodo de 465, 470, 474-5, 510 duidade 181, 640 du o telism o 253, 302
e ecu m en ism o 581, 608 Édito de M ilão 142 Éfeso, C o n cílio de 203, 224-5, 228-9, 242, 272, 285 enipostasia 306, 361 ep icurism o 55, 88 episcopado 125 m o n árq u ico 46 episkopos 46, 118 escatológica, teologia (v. teologia escato lógica) escolasticism o 284, 315, 317-21, 323, 3 5 8 ,3 6 5 ,3 7 9 ,3 8 6 ,3 9 1 ,3 9 4 ,4 5 2 ,4 6 6 , 467, 487, 550, 574, 587 espiritualistas 397, 426 estoicism o 53, 55, 61, 88, 153 eucaristia 4 6 ,7 6 , 1 2 6 ,2 7 0 -1 ,3 1 1 ,3 5 3 , 3 6 7 ,3 6 8 , 4 0 3 ,4 1 6 , 453 eu tiq u ism o 234, 239-40 Evangelho segundo Tomé 37, 635 evangelicalismo 371, 439, 522, 529, 612, 656 progressivo 613 evolucionism o 5 7 5 ,5 7 8 -9 ,5 8 1 ,5 9 2 ,6 6 0 ex opere operato 2 7 0 -1 ,3 6 8 ,4 0 3 ,4 1 6 ,4 5 3 , 488 existencialism o 588 expiação lim itada 468, 4 7 1 ,4 8 2
663
teoria da influência m oral 335, 561, 566 teoria pela com pensação 323, 329-32, 337, 561 teoria pelo resgate 330
f fariseus 136 federal, teologia (v. teologia federal) fem inista, teologia (v. teologia fem inista) fênix, m ito do 42 filioque 310, 312-5 filosofia de C risto 3 2 1 ,3 5 8 ,3 7 0 , 372, 374, 377, 409 filosofia grega 23, 33, 35, 48 Florença, C o n cílio de 446 Focus on thefam ily 584 franciscanos 341, 359 Francke, Instituições 494, 502 F rankfurt, conventiculos de 491 F raternidade R em o n stran te 475 F undam ental, teologia (v. teologia fu n dam ental) fun d am en talism o 569-72, 574-85, 587, 592-3, 600, 602-5, 659-61 Fundamentals, The 576, 580-1, 584, 660
g Gefiihl 558-9, 586 gennetos 150 gnosticism o 27-30, 32, 35-8, 46-7, 52, 68-70, 72, 79, 81, 89-90, 93, 103, 129, 137, 174, 254, 266, 637 gnóstico, verdadeiro 89-91, 95, 99, 637 graça p rev en ien te 290, 433, 459, 481-2, 527-8 grande cism a 2 5 5 -7 ,3 0 9 ,3 5 7 ,3 6 7 ,3 6 9 , 380, 446, 645 G rande Igreja 77, 83, 92, 94, 117, 130, 132-3, 136, 140, 143, 160-3, 636
História
664
da
h H eidelberg, C atecism o de 460 heresia 17, 2 1 ,3 0 ,3 5 ,6 9 , 9 2 -4 ,9 6 ,1 0 1 , 117-8, 124, 130, 145-6, 151-3,443, 4 5 6 -7 ,4 6 5 ,4 7 2 -5 ,5 1 2 ,5 2 5 ,5 2 9 ,6 2 0 , 637 Herrnhut 495, 496 H ipona, S ínodo de 140 hipostática 16, 202-4, 222-3, 232, 2 3 8 -1 ,2 4 5 -6 ,2 4 8 -9 ,2 5 1 -2 ,3 0 1 ,4 3 8 , 629 Holiness, m o v im en to 163, 528 H o locausto 568, 626 homoiousios 168-70, 176, 246 homoousios 158-60, 166-70, 172, 178-9, 185, 191, 193, 2 1 9 ,2 4 5 -6 h u m an ism o 34, 358, 370-1, 377, 409, 4 1 1 ,5 7 4 , 587, 592 huteritas 426
i iconoclastia 306 Igreja C atólica R o m an a 77, 162-3, 238, 253, 281, 283-4, 290, 297, 310, 330, 3 6 1 ,3 6 6 , 3 6 8 ,3 7 1 , 373,376, 3 8 2 -3,403,430,434,439,441,446, 455, 457, 459, 613-4, 644-5, 652 C o p ta 238 da Inglaterra 1 6 2 ,3 2 5 ,3 5 8 ,3 7 7 ,3 8 2 , 4 0 8 ,4 2 5 ,4 3 9 ,4 4 1 -5 ,4 4 8 -5 6 ,4 6 1 , 464,483, 502,504-12, 515, 522-3, 529, 534, 545, 609-10 dos Irm ãos M orávios 495 Evangélica L uterana 609 O rto d o x a O riental 7 7 ,1 1 9 ,1 6 4 ,2 9 5 , 2 9 9 ,3 0 7 ,3 1 0 , 315 P resbiteriana 505, 579, 660 R eform ada 428, 461, 465, 472, 475,
teologia
cristã
550, 558, 593, 625, 660 U n id a de C risto 511 unitarista 545 U niversal e T riunfante 29 ilu m in ism o 461, 464, 517, 533, 535-6, 538, 543-4, 550, 553, 555-9, 562, 587, 588, 596 indulgências 367, 381-2, 387-8, 410, 4 3 5 ,4 6 0 infalibilidade das E scrituras 369, 570, 573-4 infralapsarism o 4 6 9 ,4 7 1 ,4 7 3 ,4 7 5 ,4 7 8 , 510, 574 inspiração das E scrituras 30, 208, 509, 533-4,565,570-3,575,581,583, 597-8, 604,610, 612 Institutos da religião cristã 418, 422, 559
j Jâm nia, C o n cílio de 136 Jefferso n , a Bíblia de 542 jesu ítas 355, 474 ju stiç a alheia 437 justificação 40, 43, 125, 287, 353-54, 3 5 6 ,3 7 0 ,3 8 7 ,3 9 0 ,3 9 2 , 399, 400-2, 404-6, 412, 414, 426, 436, 437, 447, 449, 453, 458, 459, 466, 476-7, 486, 4 8 8 -9 ,4 9 9 , 526-7, 562
1 Ladrões, S ínodo dos 162, 233-6 Laterano, C oncílio 446 Leão, Tom o de 234-6, 249 liberal, teologia (v. teologia liberal) libertação, teologia da (v. teologia da li bertação) lim bo 271 Logos 34, 51, 57, 59-65, 71, 73-4,79, 87, 90, 91, 94, 104, 110-3, 146-52,
índice rem issivo 171-5, 193-4, 206, 2 0 8-13, 216-7, 2 2 0 , 2 2 3 , 2 2 7 -8 , 2 3 1 -2 , 2 3 9 -4 0 , 245, 247-8, 2 5 0 -2,296, 303-4,305, 361, 639 logos spermatikos 60 lollardos 358, 366-7, 370
m m acedonianos 185-6 m an iq u eísm o 261, 265-6, 268-9, 375 M arburgo, C o ló q u io de 405 m assoretas 572 m en o n itas 163, 426, 434, 438 m etodistas 461, 475, 505-7, 524-5, 527-8, 531 m odalism o 9 3 ,9 7 ,1 4 6 ,1 5 7 -8 ,1 6 6 ,1 7 0 , 179, 200, 202, 254 m o d ern ism o 548, 569, 571, 577, 581, 5 8 3 ,5 8 7 ,6 0 2 , 613 m o n arq u ia d o Pai 147, 153, 176, 314 m onergism o 259, 265, 275, 280, 284-87, 289, 292-3, 310, 355, 370, 374-5, 382, 393, 398, 408, 421, 432, 4 3 3 ,4 3 7 ,4 5 8 ,4 6 6 ,4 8 6 ,5 1 5 ,5 1 9 ,5 2 5 , 528, 549-50, 612, 619, 644, 656 m o n o fisism o 216, 239, 2 4 4 -7 , 249, 2 5 3 ,3 0 2 , 307 m onofisista, controvérsia 2 4 4 ,2 4 7 ,2 4 9 , 301 m o n o teísm o orgânico 97 m o n o telism o 253, 296, 301-3, 305-6 m o n tan ism o 30, 32, 76, 83, 92-3, 96 m orávios 495-7, 502, 523
n Nag Hatmnadi 29 N atu ral, teologia (v. teologia natural) navalha de O ccam 360 nazarenos 504
665
nazism o 594 neocalcedônios 246-7 neo -o rd o to x ia 585-605 neo p lato n ism o 86, 8 8 -9 ,1 0 3 ,1 0 7 ,1 1 1 , 195-6, 261, 265-8, 544 n ep o tism o 445 nesto rian ism o 219-20, 226-9, 239-40, 2 4 2 ,2 4 5 ,2 4 8 ,2 5 4 ,3 0 1 ,3 0 7 ,4 1 7 ,4 3 8 N icéia C o n cílio de 143, 155, 159, 161-2 C redo de 1 3 5,143,158-9,162,164-5, 168, 172, 177, 180, 2 0 0 , 237, 245-6, 256, 313, 315, 497, 610 S egundo C o n cílio de 298, 308 no m in alism o 334-5, 358-9, 3 6 0 -3 ,3 6 5 , 3 6 7 ,3 8 4 ,3 8 6 ,3 9 3 ,3 9 5 ,3 9 9 ,4 1 2 ,5 1 3 N ova Era, m o v im e n to da 29, 30, 101 O O range, S ínodo de 284, 287, 289, 90, 643 ordenanças 404, 415 origenism o 296 ortodoxia 21, 608 crítica 627 oriental 21, 136, 163, 256, 286, 291, 296, 298, 300-1, 303, 306, 308, 446, 635, 645 protestante 21, 464, 466, 531, 534, 544, 548, 553, 557, 559, 569-87, 591, 600, 602, 610-1 ortopatia 489, 500, 582, 630 ortopraxia 489, 500
P pacifism o 426, 438 p a c to s, teo lo g ia d o s (v. te o lo g ia dos pactos) pan en teísm o 565 panteísm o 107, 413, 519, 565
666
História
da t e o l o g i a
papado 310,357,367,369,388-9,443,616 patriarcado 182 patriarcas 162, 202, 219, 243, 245, 248, 255, 283, 291 patripassianism o 96, 99, 157 pelagianism o 2 2 8 ,2 4 2 , 2 6 5 ,2 8 5 -9 , 375, 465, 481-2, 514 penitência 122-4, 131,243, 290, 293-4, 3 5 3 ,3 7 3 , 400-1, 403 p en iten te perfeito 294, 400 pentecostais 163, 497, 504, 580, 611 perfeccionism o 502, 507, 526 pietism o 485-91, 493-5, 498-04 platonism o m édio 56, 86, 88, 104,111 plerotna 37 pneu m atô m aco s 181, 185-7 pós-m ilen arism o 516 pó s-m o d ern id ad e 555 práxis 621 pré-m ilenarism o 570,577-9,583,592,624 predestinação 114,259, 284, 286, 28890, 293, 343, 354-5, 370, 393, 399, 408, 413, 418, 421-3, 432-3, 436- 7, 445, 453, 455, 461, 463, 466, 468-70, 473-5, 4 78-81,483, 513, 514, 525, 549, 600-1, 643-4 preexistência das alm as 101, 183 presbiterianism o 4 2 3 ,4 4 3 ,4 6 1 ,5 0 6 ,5 7 8 processo, teologia do (v. teologia do p ro cesso) P rocusto 657 p ro testante 463-4 p u ritan o s 275, 409, 411, 418, 423, 444, 448,451-2,454-6,461,464-5,505-22, 531, 652
q quacre 426 qu adrilátero w esleyano 525-6, 656 q u ietism o 502
cristã
r R ahner, regra de 615 re a lism o 3 3 4 -5 , 3 6 0 -3 , 3 6 7 -8 , 573, 587, 597, 624 cristão 603-4 reencarnação 29, 101, 634 R eform a católica 376, 441, 445, 456 inglesa 439, 441, 447, 449, 455, 505 m agisterial 425, 463 radical 3 8 2 ,4 2 5 -6 , 434 reformada, teologia (v. teologia reformada) regeneração 415, 426, 431-2, 435-7 batism al 122-3, 271, 404, 415, 451, 488, 610 R egra de São B ento 286 R enascença 284, 321, 3 5 7 -8 ,3 6 5 ,3 7 0 , 377 resgate (v. expiação) R eunião, F ó rm u la de 2 2 5 ,2 2 9 ,2 3 1 ,2 3 4 ritschlism o 562-3 ro m an tism o 558, 588
S sabelianism o 93, 145-6, 155, 157 60, 1 6 7 ,1 6 9 -7 1 ,1 7 8 -8 0 ,1 8 4 ,1 9 0 -1 ,2 0 0 , 2 5 4 ,3 1 4 sacerdócio de todos os crentes 126,283, 3 8 0 ,3 9 0 ,4 0 3 ,4 0 7 ,4 2 8 ,4 4 8 -5 0 , 452, 454, 459, 485, 491, 524-5, 528-9 sacram entos 5 8 ,1 2 4 , 1 3 1 ,2 0 9 ,2 2 8 -9 , 256, 264-5, 269-71, 290, 305, 310, 3 3 1 ,3 3 7 ,3 5 3 ,3 6 5 ,3 6 8 ,3 8 3 ,3 8 8 ,4 0 0 , 4 0 2 -4 ,4 0 6 ,4 0 8 ,4 1 0 ,4 1 4 -5 ,4 3 1 ,4 3 7 , 449-51, 453, 455, 463, 488, 490-1, 5 0 1 ,5 6 5 v. tb. batism o, donatism o Sacro Im p ério R om ano 135, 357, 359, 3 8 1 ,4 4 6
índice rem issivo s e m ip e la g ia n is m o 2 8 4 -5 , 2 8 7 -9 0 , 355, 375, 465, 482 separatism o 581, 583-4, 660 sim onia 445, 649 sin erg ism o 114, 124, 260, 275, 280, 286-7, 290, 292, 355-6, 374-5, 377, 382, 408, 431-2, 451, 463, 466, 468, 471, 473, 476, 481-3, 486, 507, 514, 515, 518, 525-6, 528, 531, 549, 601, 612, 644, 656 socinianism o 474 solagratia etJides 3 8 0 ,4 4 7 ,4 4 9 ,4 5 2 ,4 7 6 , 485, 525 sola Scriptura 395, 447, 449, 452, 476, 485, 524-5, 550, 582, 597, 614 sub o rd in acio n ism o 111-2, 157-8,161, 1 6 9 ,1 7 1 ,1 7 6 ,1 8 1 ,1 8 5 ,1 8 7 ,1 9 0 ,1 9 2 , 200, 314 sucessão apostólica 3 1 -2 ,3 9 ,4 3 ,7 6 ,9 2 , 95, 118, 125-6, 133, 161, 255, 271, 3 1 1 ,4 4 4 , 447-8, 450, 528 supralapsarism o 4 2 1 ,4 6 6 -9 ,4 7 2 -5 ,4 7 8 , 482, 487, 510, 574, 601 synapheia, cotijunctio 220
T teândrica, visão 303-6 teísm o cristão 114, 348-50, 544, 599, 6 0 5 ,6 1 5 -6 ,6 1 8 ,6 2 6 teologia apofática 62, 351 católica ro m an a 292, 332, 339, 342, 356, 472, 474, 549, 613-4, 639 conservadora 561 con tem p o rân ea 607-27, 661 da cruz 389-94, 398 da glória 390-3 da libertação 549, 620-2, 624 dialética 584-85, 593, 602
667
do processo 568, 616, 618-9, 626 dos pactos 514-5 escatológica 549, 624, 626-7 evangélica 523, 525, 549, 609, 612-3 federal 509 fem inista 623, 624 fundam ental 614 liberal 546-8, 553-68, 610, 612 n atural 325-6, 340, 342-5, 347, 351, 412, 420, 452, 586, 594, 598, 602-3, 614, 647 negativa 195 negra 622, 624 reformada 407-9,411-2,414-5,417-8, 423,443 T estem unhas de Jeová 2 0 ,1 5 2 ,1 5 4 ,1 6 1 , 165, 179, 639 theosis (divinização, deificação) 47, 76, 108, 114, 173, 194, 352 Theotokos 214-8, 237 Toledo, S ínodo de 313 to m ism o 352, 646 transcendentalism o 551 transubstanciação 3 6 7 -8 ,4 0 3 ,4 0 5 ,4 1 6 , 422, 443, 457, 460 T rento, C o n cílio de 339, 368, 377, 381, 439, 446-7, 453, 456-8, 460 T rindade 59-60, 62, 64-5, 177, 179-80, 1 8 4 -5 ,1 8 7 ,1 8 9 -9 2 ,1 9 6 -9 ,2 0 1 -2 , 214, 221, 2 2 7 ,2 2 9 , 2 5 1 ,2 5 7 ,2 6 5 , 281, 303, 307, 312, 314-5, 332, 3 3 4 ,3 4 5 , 361, 420, 428, 455, 474, 533,537,539-40,543, 553-4,558, 560, 566, 576, 615, 629, 657 analogia social da 191, 199 v. tb. adocianism o, consubstanciai, eu n o m ism o , homoiousios, homoousios, m odalism o, m o n arq u ia do Pai, p atripassianism o, sabelianism o, sociania-
668
História
da t e o l o g i a
nism o, subordinacionism o, triteísm o trinta e nove artigos, Os 443,448,450,452-3, 455-6,483 triteísm o 188-91, 196-7, 199, 361 t u l i p 470-1, 475, 510
cristã
V Vaticano, C oncílio 1 613 ii 162, 6 1 3 -5 ,6 4 4 via moderna 360 v o lu n tarism o 363-5, 513
u U n ifo rm id a d e E lisabetana 443, 449, 451, 456, 505, 507-8, 510 u n itarism o 532, 548, 550-1 unitas Fratrum 495 universais, proposições 184, 188, 191, 320, 334-5, 361-3, 365-7 universalism o 107, 600-1, 610, 627
W W estm inster A ssem bléia de 509 Catecismo menor 375, 509, 572 Catecismos maior e menor de 509 C onfissão de fé de 5 09,5 4 8 ,5 5 0 ,5 7 2 , 612 Worms, Dieta de 388
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2 000 ANOS
DE T R A D I Ç Ã O
E REFORMAS
lguém já escreveu que "para com preender o presente é preciso conhecer o passado". Para os que am am a obra de Deus, o con selho reveste-se de im portância ainda maior, pois vivemos dias em que a d o utrina cristã tem sido du ram en te confrontada. O conheci m ento da história da teologia é ferram enta eficaz para desm istificar enganos correntes e desfazer laços que têm m an tid o m uitas pessoas distantes dos ensinos cristãos.
A
Em História da teologia cristã, o professor Roger O lson co n d u z os leitores a um a aventura fascinante através dos tem pos. Ele relata vividam ente atos e palavras dos sectários e dos pais apostólicos do século II, o em bate entre as escolas teológicas de Alexandria e de A ntioquia, a divisão entre o O riente e o Ocidente, o advento revolu cionário da Reforma e m uito mais, chegando até os acontecim entos do século X X. Roger O lson encontra e traça o d en o m in ad o r com um do debate teológico: o interesse pela salvação, o gesto redentor de Deus de per doar e transform ar os pecadores. Imparcial, agradável de ler, ab ran gente e profundo, História da teologia cristã é um a referência para a teologia histórica. R o g e r O ls o n d e u a e s ta b e la s e n h o r a [a te o lo g ia h is tó r ic a ] u m a r o u p a m o d e r n a e u m d is c u rs o a p r o p ria d o p a ra o p ú b lic o c o n te m p o r â n e o . B r u c e L. S h e ll e y , catedrático de H istória Eclesiástica do Sem inário D enver
Ro g e r E. O
lson
é p r o fe s s o r d e T e o lo g ia d o G e o rg e W . T ru e tt T h e o lo g ic a l S e m in a
ry d a B a y lo r U n i v e r s i t y e m W a c o , T e x a s . É t a m b é m e d i t o r d a r e v i s t a C hristian
Scholar's Reinew. E s c r e v e u o u t r o s d o i s l i v r o s i n t i t u l a d o s A teologia do século 2 0 ( C u l t u r a C r i s t ã ) e Q u em precisa d e teologia? ( E d i t o r a V i d a ) , e m c o La u t o r i a c o m S t a n l e y J. G r e n z . O d r. O l s o n t e m a r t i g o s p u b l i c a d o s n o s p e r i ó d i c o s The Scottish
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