O ESPELHO DE HERÓDOTO Ensaio sobre a representação do outro
François Hartog HIIMMÎTAS
F R A N Ç O I S
H
A
R
T
O
G
0 ESPELHO DE HER0D0T0
ENSAIO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DO OUTRO NOVA
EDIÇÃO
REVISTA
E
AUMENTADA
TRADUÇÃO DE JACYNTHO LINS BRANDÃO 1001069627
Belo Horizonte Editora UFMG
1999
u
O
M
LISTA DE FIGURAS
9
PREFÁCIO O VELHO HERÓDOTO
15
(INTRODUÇÃO /O NOME DF. HERÓDOTO
31
O espelho de Heródoto R
T
E
OS CITAS IMAGINÁRIOS: PODER E NOMADISMO INTRODUÇÃO
ESPAÇO,
O s CITAS DE HERÓDOTO: O ESPELHO CITA
icAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
37
45
ONDE É A CÍTIA?
53
Quem são os citas?
59
O CAÇADOR CAÇADO: PÓROS E APORIA As injunções narrativas O caçador caçado Os "hoplitas" persas Combater sem batalha
73 74 78 82 86
Poros e aporia: história de um desvario
93
FRONTEIRA E ALTERIDADE Anácarsis e Ciles: percursos de uma
97
transgressão Zálmoxis: o Pitágoras dos getas
98 116
Fronteira e alteridade
139
O CORPO DO REI: ESPAÇO E PODER
143
O corpo doente
143
O sangue do juramento O corpo do rei: Héstia e nomadismo Como produzir a verdade? O corpo morto: os funerais dos reis Morte e espaço cívico Túmulo e eskbaliá Mutilar, embalsamar, estrangular Os reis espartanos
144 148 154 160 161 164 16 8 176
O chefe quer cabeças
180
A c a ç a às c a b e ç a s U m a a r i t m é t i c a d a aristeia:
181 beber o vinho,
beber o sangue
CAPÍTULO V
185
O ESPAÇO E OS DEUSES: O BOI QUE "COZINHA A SI MESMO" E AS "BEBIDAS" DE ARES O boi As "bebidas" de Ares
195 198 208
CONCLUSÃO A Q U E S T Ã O DO NOMADISMO
2 1 3
Poder e espaço As palavras para dizê-lo
218 223
HERÓDOTO, RAPSODO E AGRIMENSOR INTRODUÇÃO GENERALIZAR
,
%
. 2
27
CAPÍTULO I
UMA RETÓRICA DA ALTERIDADE Diferença e inversão A comparação e a analogia A medida do ihôma Traduzir, nomear, classificar Descrever: ver e fazer ver... O terceiro excluído
2 29 2 29 240 245 251 261 270
CAPITULO II CAPÍ'
O OLHO E O OUVIDO Eu vi, eu ouvi Entre o escrito e o oral Eu digo, eu escrevo O jogo da enunciação Mythos e prazer ou pbilomythía Uma nova crença
273 273 283 292 297 302 312
AS HISTÓRIAS COMO REPRESENTAÇÃO Uma representação do poder? O poder despótico Heródoto, rapsodo e agrimensor
315 326 332 341
APITULO III
O agrimensor O rapsodo A ordem do discurso Fazer crer para quê? — o efeito do texto
342 345 350 359
CONCLUSÃO A HISTÓRIA DE UMA PARTILHA
4
,
3 6 9
NOTAS
379
ÍNDICE REMISSIVO
475
L
I
S
T
A
D E
F
I
G
U
R
A
Fora do texto 1 - Heródoto, "historiador das Guerras Médicas", coroado pelas Musas 2 - Mapa: A Cítia
11 12
3 - Guerreiro cita
13
4 - Carro cita
13
5 - O "nascimento" da história
14
No texto 6 - Provável representação do mundo por Heródoto 7 - Mapa: "Admitindo-se que a Cítia é um quadrado..."
56 347
S
P
R
E
F
Á
C
O
O VELHO HERODOTO Ele vai bem, o velho Heródoto. É lido (pelo menos supõe-se), editado, glosado e interpretado. 1 Estará satisfeito com isso? Swift lembrava como Gulliver, de passagem pela Ilha dos Feiticeiros, tinha, de início, observado a que ponto Homero e Aristóteles ignoravam a multidão de seus comentadores. Em seguida, não demorou a compreender como, na realidade, ambos absolutamente não a conheciam. Finalmente, um fantasma confirmou-lhes que, de fato, "os comentadores não se aproximavam jamais dos infernos em que estavam os autores que eles tinham glosado, por vergonha e por remorso de ter tão horrivelmente deformado seu pensamento, ao explicá-lo às gerações posteriores". Hoje, em todo caso, livros e artigos consagrados a Heródoto aparecem a cada ano, num ritmo constante. 2 Por quê? Pela boa forma de uma tradição clássica totalmente acabada que, semelhante a um barco de guerra bem protegido, corre ainda muito tempo movida apenas pelo próprio impulso? 3 Ou será em conseqüência da aprisionadora inércia de um sistema de produção acadêmico que, ano após ano, acumula, colige e corrige, mas também se defende e se reproduz, recrutando novos trabalhadores — combinando-se as leis do gênero com as regras do meio? Evidentemente, mesmo quando desenvolvidas, essas respostas ainda seriam muito simples, redutoras. Por que esta horticultura intensiva, repetitiva, enquanto tantos outros textos — exumados, mal conhecidos e esquecidos — estão alhures à espera de quem os decifre, à espera de leitores? > Uma cultura (a nossa em todo caso) é feita de tal modo que não cessa de retornar aos "textos" que a constituíram, de ruminá-los, como se sua leitura fosse sempre uma releitura. Seja felicitando-se por isso ou lamentando-se, seja embalsamando-os ou recusando-os, ela parece tecida por seus fios —
e como que já "lida" por eles. A tarefa de um historiador da cultura pode, a partir daí, consistir em dar a 1er esses textos, reconstruindo — para falar como a hermenêutica — a questão à qual eles respondem, redesenhando os horizontes de expectativa em que, desde seu primeiro dia até os nossos (ainda que no modo de ausência), eles vieram inscrever-se, recalculando as apostas que fizeram e significaram, apontando os qüiproquós que sucessivamente provocaram. Essa historicização não significa modernizá-los ou atualizá-los, mas sobretudo fazer ver sua inatual atualidade: suas respostas a questões que nós não mais levantamos, não sabemos mais levantar ou simplesmente "esquecemos". Tornadas epônimas de um gênero e de uma disciplina, as Histórias de Heródoto desempenharam seguramente esse papel de texto maior. Mesmo que não se duvide de que se produziram e mesmo se escreveram, de outro modo, histórias ou a história alhures e antes: na Mesopotâmia, com a Bíblia, na antiga China ou no Japão. A essa distância, O Espelho de Heródoto surge-me como uma experiência de leitura. Era o tempo em que os historiadores (ou, pelo menos, certos historiadores), cansados de contar, aprendiam a 1er; em que a antropologia histórica e a história do imaginário se preocupavam com as margens mais que com o centro, mais com a alteridade que com a identidade; era o momento em que o problema da enunciação vinha renovar a abordagem estrutural dos textos, tendo acabado de aparecer L'Écriture de l'Histoire, de Michel de Certeau. Foi-me algumas vezes criticada a expressão "Os citas de Heródoto", como se fosse, pura e simplesmente, uma injunção a ser trancafiada somente no texto das Histórias, uma apologia do solipsismo, uma defesa em favor da ignorância e do ceticismo. Mais simplesmente, exprimia ela antes uma insatisfação diante da maneira como muitas vezes os historiadores, valendo-se do rótulo de "documento", utilizavam os textos (literários, em particular). Daí a experiência: no limite, tratar Heródoto como se fosse Homero. Avançar o mais longe possível num lógos escolhido, dando todas as chances ao texto, abordado em seus múltiplos níveis, em suas diversas linhas melódicas, do mesmo modo que em suas rupturas, retomadas, impasses — enfim: como a expressão de uma ou de muitas estratégias narrativas. A lingüística da enunciação fornecia, ió
desde Benveniste, um precioso balizamento teórico, que permitia, deixando-se ao texto toda sua consistência, vê-lo, por assim dizer, animar-se e pôr-se em movimento. "Heródoto narrando como Homero inventa [...], criando, por uma obra-prima da arte de escrever, a ciência dos lugares, dos tempos e dos fatos." Esse julgamento, um dentre outros, menos conhecido que muitos outros, deve-se a Daunou. 4 Pela dupla aproximação problemática que faz — de uma parte entre Homero e Heródoto (pela mediação do narrar como), de outra, entre a arte de escrever e a ciência dos fatos — tem o mérito de fazer ressurgir,_em sua complexidade, a questão da primeira escrita da história. A operação historiográfica de Heródoto manifesta-se, desde as primeiras palavras da frase de abertura das Histórias, como nomeação de num novo lugar e como suã circunscrição nas práticas discursivas e nos saberes em curso: historie.'' Não imediatamente (pois Tucídides jamais utilizará esse termo), mas pouco a pouco (a partir do século IV a.C.), a designação será retomada até acabar impondo-se: usando pof sua própria conta a palavra latina historia, Cícero designará Heródoto como "pai da história". 6 O que nós chamamos as Histórias é iT ^aprésentação pública" ( h i s t o r i e s apódeixis), a "mostra" desta historie-, Heródoto de Halicarnasso apresenta aqui sua historie, para impedir que o que fizeram os homens, com o tempo, se apague da memória e para que grandes e maravilhosas obras, produzidas tanto pelos bárbaros, quanto pelos gregos, não cessem de ser renomadas; em particular, aquilo que foi a causa de eles entrarem em guerra uns contra os outros. Entre os persas, os doutos ( l õ g i o i ) dizem que os fenícios foram a causa do desacordo... 7
Já há muito tempo foram ressaltadas as semelhanças de estrutura, de vocabulário e mesmo de cadência entre essa abertura e os prólogos da epopéia. Nos dois casos trata-se da memória, do esquecimento, da morte. Se o aedo de outrora era um dispensador de kléos, de uma glória imortal para os heróis que tinham aceitado morrer por ela no combate, o histor sente-se requisitado a "produzir" sua narrativa para 17
impedir (ou, pelo menos, retardar) o apagamento dos traços da atividade de homens que são simplesmente homens. Gregory Nagy voltou a examinar esse parentesco e sua dimensão, a partir de um estudo do termo lógioi, no qual mostra, por uma série de exemplos tomados de Píndaro, que aedos e lógioi são quase intercambiáveis. Uns e outros têm a tarefa de serem os dispensadores do kléos, através de uma mesma "apresentação pública": os primeiros, é \*erdade, cantam em versos, enquanto os segundos usam a prosa. Também "Heródoto, o lógios,"8 seguindo os "doutos" persas ou revezando com eles, inscreve-se na cadeia dos lógioi e a prolonga, assim como a história continua a epopéia e reveza com ela: inscreve-se no ciclo começado sob as muralhas de Tróia e recapitula-o. Como o canto do aedo, a prosa do primeiro historiador preocupa-se com o kléos. Um celebrava os altos feitos e os ditos famosos dos heróis de outrora; o outro prende-se aos traços da atividade dos homens ( t à g e n ó m e n a ex anthrópori), aos "monumentos" (no sentido mais amplo) que dão testemunho dela — a todas essas marcas, pelo menos àquelas que se reconhecem como "grandes e maravilhosas", mas perecíveis, efêmeras, se comparadas com a imutabilidade da natureza e a imortalidade dos deuses. Para os gregos, a morte sempre ganha. Se toda palavra humana tem de haver-se com a morte, se os homgns. narram porque se sabem mortais, a epopéia e ã história — instaladas ambas na fronteira entre visível e invisível, para evocar, para chamar antes de tudo os que não existem mais — ambas têm como função específica domesticar a morte, socializando-a: "A epopéia não é apenas um gênero literário — ela é, com os funerais e na mesma linha que eles, uma das instituições que os gregos elaboraram para dar resposta ao problema da morte, para aculturar a morte." 9 Através desse canto de rememoração, os heróis transformam-se em homens de outrora e representam o passado do grupo. jjVías é bem claro que o que qualifica o herói, o que lhe vale uma morte à parte e a glória de ser narrado não é, nem de início, nem somente, seu estatuto ou sua função, mas "a série de façanhas que faz dele o que é": seu curriculum vitae.10 {^Quando se passa da epopéia para a história, o campo alarga-se em muitas direções. Não se celebra mais a lembrança 18
das simples façanhas — busca-se guardar a memória do que fizeram os homens, soletrar e fazer lembrar os traços e as marcas da ação não mais somente de tal ou qual herói singular, mas dos gregos e dos bárbaros, isto é, de todos os homens. Com uma correção: não serão retidas senão aquelas ações que são "grandes e maravilhosas". Muda a façanha, notadamente guerreira: a excelência torna-se coletiva. A ordem da falange e a lei da cidade impõem-se. É belo morrer não mais na primeira fifa, mas na sua própria fileira. 11 Todavia, da epopéia à história encontra-se a mesma escolha e opera a mesma matriz narrativa: a exigência de que se conte o que fizeram os homens, essa parte efêmera que é seu lote. Enquanto o aedo, com a segurança de um mestre do kléos que a Musa inspira, promete uma glória "que não se c o n s o m e " ( ã p h t i t o n ) , o historiador, circunscrito num tempo que é o dos homens,Talando dê coisas humanas, com seu saber e seu nome, entende que apenas luta contra o esquecimento. Através da exibição de sua historie, ele quer que todas as marcas do fazer dos homens não se tornem "privadas de kléof (akléa), não "passem" (exítela) como uma pintura que pouco a pouco o tempo apaga. No eco entre kléos e akléa, bem como na distância instaurada entre os dois, parece que, de Homero a Heródoto, a promessa de imortalidade não mais se pode enunciar a não ser de modo negativo: em suma, sem ilusão. Como se se soubesse que, na troca desigual que propõe a epopéia (a vida pela glória), jamais o segundo termo poderá ser verdadeiramente conquistado. Até porque, em matéria humana, a instabilidade é a regra: as cidades grandes outrora tornaram-se pequenas e as pequenas, grandes. A resposta muito prática de Heródoto é percorrer igualmente umas e outras, rememorando tanto umas quantas as outras. Ao pôr-se a tônica sobre o kléos como matriz dos cantos épicos e da palavra histórica, privilegia-se a homologia entre as duas formas de discurso e a continuidade de uma à outra. Essa é a posição de Nagy. Mas a própria expressão "Heródoto, o lógios" não é evidente por si. Antes de tudo, porque a palavra não se aplica, nele, senão aos bárbaros (sábios persas, sacerdotes egípcios, o cita Anácarsis); em seguida — e sobretudo — porque, uma vez referidos os ditos dos lógioi persas 19
sobre as origens do conflito, Heródoto não se inscreve em sua continuação, mas rompe a cadeia, anunciando que falará de outro lugar e de outro modo: "Mas eu próprio ( e g ò dê) não vou me pronunciar, a propósito destes acontecimentos, se se deram assim ou de outra forma. Indicarei aquele que, pelo que sei pessoalmente, tomou primeiro a iniciativa de atos ofensivos contra os gregos." 12 A saber: Creso, o rei da Lídia. Nessa primeira intervenção direta, enunciada na primeira pessoa, o que impressiona é o desejo de ruptura. Muda-se de universo de discurso, de regime de verdade e de escala cronológica. Heródoto hístor não visa nem a retomar, nem a corrigir as informações a que acaba de referir-se, nem mesmo a comprometer-se com uma nova narrativa sobre as origens — mas visa antes, em função do que sabe ele próprio, a estabelecer um ponto de partida, permanecendo nele. A epopéia porém já não fazia isso, quando escolhia cantar um único episódio? Não toda a Guerra de Tróia, mas somente a cólera de Aquiles, no momento em que surge a querela funesta com Agamêmnon. Entretanto, decidindo medir o início de acordo com o que sabe ele próprio, o historiador muda as regras do jogo. Tradução dessa pequena decisão inicial, a operação historiográfica, mesmo quando parece ou crê retomar a epopéia, rompe com ela, recortando um novo espaço de palavras que tem por nome historie. Quanto às palavras dos "doutos" persas, elas não deixam de intrigar. Com efeito, são persas que falam "grego". 13 Circulando com grande naturalidade pelo repertório dos mitos da tribo (grega), eles reúnem muitas histórias famosas, todas pondo em cena figuras femininas, com as quais tecem uma narrativa contínua das origens da hostilidade entre bárbaros e gregos. Partem de Io, para terminar com Helena, passando por Europa e Medéia. Ordenam e criam continuidade: em suma, fazem seu trabalho de historiador. Mas a que preço? As versões que preservam ou produzem afastam-se das versões correntes, senão canónicas. Io não é mais a princesa amada por Zeus, que Hera persegue sem dar descanso a seu ódio, mas simplesmente a filha do rei de Argos, raptada com outras mulheres por mercadores fenícios que, tendo vendido sua carga, partiam para o Egito, ou seja, ela era o frete de volta. 14 Do mesmo modo, Europa, tornada filha do rei de Tiro (e não mais de Fênix), foi simplesmente raptada pelos gregos 20
(cretenses, talvez) e não mais transportada até Creta por um Zeus saído do mar sob a forma de touro. Vem, em seguida, o rapto de Medéia, filha do rei da Cólquida, mas em absoluto uma feiticeira, ao qual responde, "uma geração mais tarde", o rapto de Helena por Alexandre, fechando a série de raptos alternados. Deixa-se então dessa espécie de troca para entrar-se na violência da guerra. Os gregos desembarcam em Tróia para pedir reparação. Esta é a origem da inimizade que existe entre persas e gregos. Nesta versão "persa" — racionalizante, evemerista avant la lettre, senão irônica — as grandes narrativas transformam-se em pequenas histórias. Contadas assim, inscrevem-se numa cronologia (a sucessão dos raptos) e numa geografia (a Ásia em face da Europa), vindo a constituir, para dizer tudo, uma série que tem valor justamente enquanto etiologia das Guerras Médicas, as quais aparecem mais como um novo episódio de um ciclo principiado há muito tempo, do que como um desfecho ou um começo. Tudo se passa como se os doutos persas, falando "grego", se pusessem à distância dessas narrativas famosas, desmistificando-as — ou como se sua qualidade de persas lhes permitisse saber do que se tratava, de • fato, nessas histórias, em conjunto medíocres. Estamos longe dos lógioi vistos como confrades próximos dos aedos, como mestres do kléos em prosa. No momento em que o narrador Heródoto intervém para cortar prontamente esses desdobramentos, não recusa, 15 não repete, nem mesmo comenta diretamente a distância instaurada pela versão persa — apenas contenta-se em estabelecer uma outra regra do jogo, propondo um outro ponto de partida. Historie, correntemente traduzida como investigação (no duplo sentido de pesquisa e de investigação judiciária), vale como título e foco organizador de todo o empreendimento. Muito questionado, o campo semântico de historie conduz à epopéia. 1 6 No momento de pôr fim a sua querela com Aquiles, Agamêmnon faz um juramento solene, invocando Zeus e diversas divindades: "Isto Zeus..." — que Zeus não somente saiba, mas veja/ seja testemunha (de que jamais pus a mão em Briseida). 17 /Considerando esse apelo ao testemunho de Zeus, Benveniste julga que, segundo a etimologia, se deve 21
entender o nome de agente hístor como "testemunha", enquanto aquele que sabe e, sobretudo, enquanto aquele que viu.18 Testemunha ocular, ele sabe por ter visto. O hístor seria, antes de tudcfcf por princípio, um olho — e a historie, por' sua vez, alguma coisa (senão uma história) relativa ao ollío. Propondo-se examinar o campo coberto pela noção de historie, uma tese recente questiona o primado do olho na primeira definição de hístor}9 No momento da corrida de carros, organizada por ocasião dos funerais de Pátroclo, surge uma disputa entre Ájax e Idomeneu: qual carro está na frente? Enquanto os concorrentes estão ainda longe da linha de chegada e são dificilmente identificáveis, Idomeneu crê reconhecer Diomedes; Ájax, que não acredita nisso, acusa-o de ver mal. Idomeneu propõe-lhe então uma aposta, apelando, na pessoa de Agamêmnon, a um hístor.20 Agamêmnon, que não viu nada, não pode ser evidentemente- uma testemunha. É então um "árbitro", escolhido por suas qualidades para resolver a questão e impor respeito às decisões tomadas. Como? Investigando. Segundo Sauge, ele pode tão-somente criar, pelo discurso, uma situação de enunciação tal que faça os protagonistas atestarem o que se passou, conseguindo fazer ^e^-que-acqntecia no momento da disputa. Ele é juiz e não testemunha — e, de modo algum, ele é juiz porque foi testemunha: seu saber não é de modo algum fundado sobre um ver. Numa cena representada sobre o escudo de Aquiles, forjado por Hefesto, dois homens que disputam a propósito do resgate pago por um assassinato resolvem apelar a um hístor,21 A uma testemunha? Sem dúvida não, senão o litígio já estaria decidido. A um "juiz", já que, no termo do processo, se trata de dar uma "sentença"? Mas como se passa, com relação ao hístor, do sentido inicial de testemunha para o de juiz? Do que sabe por ter visto ao que decide sem ter nada visto? Consciente da dificuldade, Benveniste a resolvia assim: Para nós, o juiz não é a testemunha. Essa variação de sentido perturba nossa análise dessa passagem. Mas é precisamente porque hístor é a testemunha ocular, o único que resolve o debate, que se pode atribuir a hístor o sentido de "aquele que decide, através de um julgamento sem apelação, sobre uma questão de boa fé". 22
22
Diferentemente do primeiro exemplo, aqui o hístor não é, de início, nomeado ou designado. O que se vê efetivamente? Os mais velhos se reúnem e, tomando cada um, por sua vez, a palavra, são convidados a dar sua sentença. Por outro lado, dois talentos encontram-se depositados no meio do círculo, devendo ser atribuídos àquele que, dentre todos, "dará a sentença mais recta". Alguém não é, portanto, hístor; mas revela-se como tal, qualifica-se como tal no termo de uma série de discursos e no contexto de uma certa situação de enunciação. O hístor será aquele que, formulando o julgamento "mais reto", porá fim à querela somente por sua palavra — sem que se interponha ou se sobreponha a intervenção de um "mestre de verdade", através da figura de um rei ou, mesmo, através da prevalência do ponto de vista da maioria. Assim, entre o ver e o saber do hístor, a distância aprofunda-se ou a relação é mais complexa. Bastará um último exemplo, tomado desta vez do próprio Heródoto — para o qual Sauge chamou igualmente a atenção. Periandro, o tirano de Corinto, um dia é confrontado com um "acontecimento extraordinário" ( t h ô m a tnégistorí).23 Arion, um famoso cantor, escapou da morte de um modo bem estranho — a crer-se nele. Havendo embarcado num navio coríntio para fazer a travessia de Tarento a Corinto, teve, sob ameaça, de saltar no mar. Os marinheiros queriam livrar-se dele para tomar posse de suas riquezas. Ele executou a si mesmo, mas não sem antes cantar, vestido com sua mais bela indumentária. Então, um golfinho o tomou sobre o dorso e o desembarcou são e salvo no cabo Tênaro, de onde voltou ele a Corinto. Periandro, a quem ele foi contar tudo, mostrou-se "incrédulo". Heródoto, por seu lado, sem pronunciar-se abertamente, precisa que essa narrativa circula não somente em Corinto, mas também em Lesbo (pátria de Arion) — e que se pode ver em Tênaro um ex-voto de Arion, representando um homem empoleirado sobre o dorso de um golfinho. Sem constituir uma prova, esse acordo de versões e esse traço visível valem como indícios de credibilidade. Confrontando-se com esse thôma que, de início, suscita incredulidade, como agirá Periandro? Ele assume o papel de hístor, investigador. Mas ele não viu nada — nem crê em nada disso. Mantendo então Arion sob custódia, vigia os 23
marinheiros. Tão logo desembarcam, manda chamá-los e "informa-se sobre se teriam notícias de Arion" ( h i s t o r é e s t h a i ei ti légoien peri Aríonos). Historéesthai é geralmente traduzido como se se tratasse de um simples substituto de interrogar. Periandro, de fato, cria uma situação de interlocução em que são os marinheiros (por definição as únicas testemunhas) que irão declarar-se, eles próprios, culpados: "Eles responderam que Arion estava muito bem na Itália e que o haviam deixado em Tarento em boa.situação." Arion faz então uma entrada teatral que, acabando de fechar a armadilha aberta por Periandro, daí em diante torna impossível qualquer escapatória para os marinheiros. Assumindo o papel de hístor, Periandro não é nem testemunha, nem investigador no sentido moderno (pois o procedimento mais óbvio seria revistar o barco), mas este mestre do discurso que, contra a vontade dos marinheiros, faz deles as testemunhas do que realmente aconteceu, pelo menos enquanto Arion era seu passageiro. 24 E a historie não é, de início ou somente, uma operação que, do ver, extrai o saber, mas principalmente um procedimento lingüístico que, em certos casos, consegue fazer ver.O hístor não é, em princípio ou exclusivamente, um voyeur obsedado pelos campos de batalha, pelas praças públicas e sobretudo pelos palácios. De Homero a Heródoto, o hístor é, antes de tudo, um mestre da palavra, com esta pequena diferença que mudará tudo: enquanto Agamêmnon é hístor porque é rei, Periandro pode sê-lo enquanto tirano de Corinto, e os mais velhos podem revelar-se como tais porque são os mais velhos, Heródoto não pode fazer-se crer .senão por si mesmo. Do mesmo modo, retomando a altiva assinatura inaugural que Hecateu havia inscrito, havia pouco, na abertura de suas Genealogias ("Hecateu de Mileto conta que..."), 25 abre seu livro com o famosíssimo "Heródoto de Halicarnasso", Heródoto cidadão da cidade de Halicarnasso. Com esse nome, o seu, que ele deve "habitar". A nomeação deste lugar novo começa pela proferição de um nome próprio, 26 o qual ocasiona o uso da terceira pessoa: a distância de um ele, ou mais ainda, segundo a classificação de Benveniste, o registro da não-pessoa. 27 Nomeando-se, o historiador inscreve-se, a partir desse mesmo movimento, como o "ausente" da história. Mas logo em seguida, como que 24
se recobrando, o narrador apela para o pronome demonstrativo de primeira pessoa (héde): "Esta é a apresentação da historie." Marcas de um eu que vem fazer, aqui e agora, no presente da enunciação, sua narrativa: sob a forma de uma conferência em Atenas, por exemplo. 28 O ele não é explicitamente substituído pelo eu, mas acompanha-o ou reveza com ele. Sob o efe avança o eu, instaurando um vaivém entre ausência e presença. No prólogo épico, se retornarmos a ele, o regime das pessoas verbais distribui-se sobretudo entre a primeira e a segunda: "Dize-me, Musa, o homem de muitos ardis..." 29 As Musas falam como aquelas que sabem o que é, será e foi. Nesse diálogo desigual, o eu aparece no dativo: está lá para recolher e transmitir o canto divino. Toda sua autoridade reside no contato privilegiado com o mundo dos deuses, através da intermediação das Musas, apresentadas como "moradoras do Olimpo", "filhas de Zeus", "filhas da Memória". 30 Simples médium, este eu é vazio, pois cada aedo, durante o tempo em que canta, ocupa-o sucessivamente. É um eu sem nome próprio e sem autoridade própria. Para o poeta épico, a inspiração funciona como rememoração. Transportado a um tempo que não conheceu e a lugares que ignora, ele vê, muitas vezes ao preço de sua própria vista, o que não viu nem viveu. Assim, Demódoco, o aedo cego dos feácios, canta, por solicitação e em presença de Ulisses, o episódio do cavalo de Tróia: D e m ó d o c o , entre todos os mortais eu te saúdo! A Musa, filha de Zeus, instruiu-te, ou Apolo: tu cantas com muita arte a sorte dos gregos, tudo que foi feito, suportado ou sofrido pelos argivos, c o m o alguém que tivesse estado presente ( p a r e ó n ) ou, pelo menos, tivesse ouvido ( a k o ú s a s ) de algum outro! Mas, mudando de assunto, canta a história do cavalo... 3 1
Hesíodo retoma, mas modifica essa estrutura de inauguração do discurso. As Musas estão bem presentes, sempre como detentoras do saber e da inspiração, mas sua invocação ou evocação é diferentemente mais complexa. A estrutura dual — primeira/segunda pessoa (Musa/aedo) — estilhaça-se para dar lugar à terceira pessoa. "Cantemos as Musas" — assim se abre o prólogo da Teogonia: "Elas..." (segue uma evocação de seus coros e de seus cantos sobre a montanha do Hélicon), 25
foram elas que a Hesíodo, um dia, ensinaram um belo canto [...]. Eis as primeiras palavras que me endereçaram as deusas, Musas do Olimpo, filhas de Zeus que detém a égide. 52
A primeira pessoa inicial ("Cantemos") faz surgir as Musas na distância de uma encenação na terceira pessoa. De imediato, parecendo instalar-se este regime da terceira pessoa, o próprio poeta não pode aparecer ou reaparecer senão na terceira pessoa (fato considerável), sob a forma de um nome próprio ("Elas ensinaram a Hesíodo..."). Em seguida, sem interrupção, volta às marcas da primeira pessoa ("Eis [...] as primeiras palavras que me endereçaram...") — as Musas vindo a ocupar, no discurso direto, o lugar da primeira pessoa ("Nós sabemos..."). Desse prólogo (de interpretação difícil), reteremos o apelo à terceira pessoa, que põe tanto as Musas a distância (elas— e não mais vós) quanto igualmente o poeta ( e l e — e não mais eü), levando a que este seja chamado por seu nome próprio — o que o coloca, portanto, nesse lugar ainda não claramente delineado ou ocupado: o lugar do autor. Mais exatamente, entre as Musas e Hesíodo parece instaurar-se uma relação de mestre e discípulo (edidaxatt): elas não são apenas aquelas que dizem, mas as que ensinam, transmitindo algo como um saber (admirável e reiterável?). Isso embora Hesíodo, é verdade, retorne quase que imediatamente à figura habitual das Musas inspiradoras: elas me inspiraram (enépneusan) este canto divino. 33 Da poesia épica ao prólogo das Histórias, a ruptura mais visível é o total desaparecimento das Musas (tanto na primeira, quanto na terceira pessoa). Estabelece-se então uma nova economia do discurso e um novo regime de autoridade: quem fala, respaldado por quem? Não mais as Musas, mas o hístor — ou melhor, a historie, que passa a ocupar o lugar que a estrutura épica reservava àquelas. "A tudo presentes, vós sabeis (iste) tudo, nós não ouvimos senão um ruído e nada sabemos" — proclamava a Ilíada.iA Sendo deusas, as Musas vêem ou sabem tudo; os mortais ouvem um rumor, mas não vêem. O historiador, pelo contrário, deve construir seu lugar de saber graças à historie, que é talvez, de início, um substituto da visão divina, ausente por definição. Como ver o que não se viu? Como fazer como se se houvesse visto? Como fazer ver o que não se viu? 26
Ao renunciar-se à antiga divisão que regulava a atribuição da palavra aos interlocutores, não resta senão a terceira pessoa: ele e não mais eu, mas sob a forma de um nome próprio. Heródoto: primeira palavra da primeira frase, lançada no genitivo (diferentemente do eu épico, disposto no dativo), como maneira de selar o que lhe cabe de direito, de assinar, como o artista, sua obra, senão de demarcar seu território. Em resumo: de produzir-se (apresentar-se) como autor. Entretanto, como se o registro (ou a voz) da terceira pessoa fosse muito difícil de manter-se, quase imediatamente ressurgem traços da primeira pessoa, os quais tendem a reconstituir as balizas familiares do hic et nunc da enunciação. 35 Isso antes que, um pouco adiante, no mesmo prólogo, o narrador intervenha fortemente na primeira pessoa ( e g ò dé), para retomar a palavra por um tempo delegada aos "doutos" persas e estabelecer as novas regras de formulação de enunciados aceitáveis. É a primeira de uma série de tomadas de posição que, na seqüência dos livros, escandem as Histórias, no meio das quais o eu do narrador-autor põe em perspectiva, dá a ver, avalia e julga as narrativas que decidiu fazer. 36 No lugar das Musas, a historie de Heródoto, com esta hesitação ou este equilíbrio inicial entre a primeira e a terceira pessoa. Mas não é tudo. Em lugar e em substituição do saber das Musas, proferido na segunda pessoa, rumorejam todas as opiniões sustentadas por uns e por outros, desde os lógioi persas ao anônimo légetai (diz-se), em que a terceira pessoa reina absoluta: eles, eles dizem que. Porventura, não é nessa passagem do vós das Musas ao eles (discurso assumido, senão autenticado por um sujeito coletivo) que se deixa perceber um traço significativo da constituição da história? Com justiça, Claude Calame chamou a atenção para essa substituição^ 7 Também pela polissemia que lhe confere o pertencimento ao campo semântico de oída, a historie pode definir-se como procedimento de constituição, bem como de avaliação ou de autentificação do eles, isto é, como processo de confrontação entre o eles (eles dizem que) e o ele/eu do narrador, que reúne ou subsume a autoridade (que nada estabelece, senão a obra por vir) de um nome próprio: por exemplo, Heródoto de Halicarnasso. 27
Tucídides apagará mais ainda, na seqüência de sua narrativa, as marcas da primeira pessoa, na medida em que fará da vista (ópsis) o critério essencial capaz de tornar possível uma história verdadeira. 38 Da autópsia tucidideana ao ideal de uma história positivista, em que o historiador não seria mais que um olho (leitor, é verdade, mais que espectador), no limite, o olho de ninguém, indica-se uma via (aporética) pela qual a historiografia não cessou de caminhar: o historiador como voyeur39 Ora, é no momento em que, epistemologicamente, com Tucídides, a vista passa para o primeiro lugar, que o historiador, para nomear sua atividade, recusa a historie de seu predecessor Heródoto (em que, todavia, a etimologia mesclava ver e saber), em benefício do verbo syngráphein. A historie, termo muito marcado, muito usado, dá lugar (momentaneamente) a um termo mais diretamente político. A obra não é mais manifestação de uma historie; mas uma "inscrição", uma redação, uma composição. 4 0 O aedo de outrora, por seu canto retomado sem cessar, oferecia aos heróis mortos um kléos imortal. Heródoto pôs mãos à obra para impedir que todas as marcas da atividade dos homens se apagassem (tornando-se akléà), deixando muito rapidamente de serem contadas. Tucídides, por seu lado, escolhendo "escrever" uma guerra que ele sabia dever ser "a maior" de todas, apresenta sua narrativa como "ktêma para sempre", isto é, patrimônio para sempre. Do kléos ao ktêma, o deslocamento é sensível. O tempo da epopéia está decerto terminado (provavelmente, será preciso aguardar Michelet para reencontrar uma concepção épica da história, mas com um historiador que pretende ser, ao mesmo tempo, "vidente" e voyeur). Daí em diante, não se trata mais de preservar do esquecimento as ações valorosas, mas de transmitir às gerações futuras um instrumento de inteligibilidade de seu próprio presente. A Guerra do Peloponeso é portadora de imortalidade em si mesma, por si mesma, para si mesma. E, já que se abre com estas palavras: "Thoukydides Athenaíos xynégrapse" (Tucídides ateniense escreveu) — oferece-se também para a leitura, como inscrição funerária e memorial de um ausente inaugural: Tucídides de Atenas. Recorrendo a uma terceira pessoa desdobrada (sem primeiro locutor e sem mestre de enunciação), as Histórias instauram a estrutura profunda da narrativa histórica, uma das "formas" 28
também, se não principalmente, um pretexto para polemizar com os filomissas (os papistas). Permanece, do mesmo modo, a questão de saber-se como e por que Heródoto foi, durante tão longo tempo, considerado mentiroso, ainda que sendo reconhecido como pai da história. Outras obras: LACHENAUD, G. Mythologies, religion et philosophie dans Hérodote. Lille, 1978. (Tese) HUNTER, V. Past and Process in Herodotus Princeton, 1982.
and
de l'histoire Thucydides.
CORCELLA, A. Erodoto e l'analogia. Palermo, 1984. BELTRAMETTI, A. Erodoto: una storia governata dal discorso. Il l'acconto morale come forma delia memoria. Firenze: La Nuova Italia, 1986. DARBO-PESCHANSKI, C. Le discours du particulier. l'enquête hérodotéenne. Paris, 1987.
Essai sur
Atualizar as referências bibliográficas em seu conjunto seria impossível. Em alguns casos, isso foi feito. Muitos dos artigos citados na primeira edição tornaram-se livros (o que confirma, pelo menos, o movimento da ciência). NOTA DO E D I T O R : Na edição brasileira, a atualização bibliográfica foi incluída nas respectivas notas.
30
as Histórias de Heródoto desconsiderando-se a história de suas interpretações. Entretanto, essa história conduz na direção de uma história da história antiga, senão simplesmente da história — se é verdade que o nome de Heródoto lhe designa o pai. 3 O que se sabe dele? Muito pouca coisa, não diretamente transmitida pelo mesmo, mas através de algumas informações tardias — e, deste pouco, alguns se esforçaram ainda em demonstrar o caráter fictício.4 "Heródoto de Halicarnasso...", dão os manuscritos; "Heródoto de Túrios", responde a tradição indireta. De início de Halicarnasso, onde nasceu por volta de 480 a.C., ele pode dizer-se em seguida de Túrios, no sul da Itália, desde quando se tornou cidadão daquela cidade. 5 Conheceu ele o exílio em Samos, durante algum tempo; viajou através do Oriente Médio e principalmente pelo Egito; em torno do Mar Negro, em direção ao norte; na Itália do Sul, na direção do oeste; na Grécia continental também. 6 Estabeleceu-se algum tempo em Atenas, partiu para Túrios. Morreu na década de 420 a.C., em Túrios, onde uma tradição lhe atribui um túmulo na ágora — ou em Atenas, segundo uma outra tradição, ou ainda em Péla, na Macedónia. 7 Sua vida inscreve-se entre dois grandes conflitos: as Guerras Médicas, que ele não viveu, por assim dizer; e a Guerra do Peloponeso, de que conheceu pelo menos os princípios. Heródoto... e x p õ e aqui suas pesquisas (historie), para impedir q u e o q u e fizeram os homens, c o m o tempo, se apague da memória e que grandes e maravilhosas façanhas ( é r g a ) realizadas tanto pelos bárbaros, quanto pelos gregos não c e s s e m de ser contadas; em particular, o que foi causa de que gregos e bárbaros entrassem em guerra uns contra os outros.
Assim começa a obra que chamamos Histórias, mas que, conforme o costume do tempo, não tinha um título. Essas poucas linhas chamaram particularmente a atenção dos comentadores, para os quais estabelecer exatamente o significado de cada palavra e, antes de tudo, da mais famosa dentre elas, historie, deveria permitir que se compreendesse o sentido do empreendimento herodotiano. 8 As Histórias são divididas em nove livros que trazem o nome de cada uma das nove Musas. Mas nem a divisão, nem 32
o patrocínio se devem ao próprio Heródoto. Atestados por Luciano (séc. II d.C.), seguramente não são anteriores à época helenística; constituem entretanto indício tanto de um certo estatuto da obra, quanto da forma como, neste momento, a mesma era recebida pelo público: ela está do lado das Musas, da poesia, do prazer, da ficção. O autor Heródoto não fala senão de seu lógos, ou de seus lógoi, suas narrativas. Nos nove livros sucedem-se, encaixam-se, algumas vezes cruzam-se diferentes lógoiem torno de um projeto central — evitar que o que fizeram os homens se apague e cesse de ser contado. Os quatro primeiros livros são extensamente ocupados pelas narrativas consagradas aos outros, aos não-gregos (lídios, persas, babilônios, massagetas, egípcios, citas, líbios...), enquanto os cinco últimos são, em grande parte, reservados à narrativa das próprias Guerras Médicas. Qual foi o efeito das Histórias? Como foram recebidas? São perguntas para as quais não podemos dar uma resposta precisa, já que não temos meios para reconstituir o "horizçyite. _de expectativa" do qual participavam, 9 nem temos verdadeiramente os meios para traçar, ao longo do tempo, uma história de seus efeitos. Parece, entretanto, que as Histórias se tornaram conhecidas muito rapidamente, pelo menos em Atenas, bem como se fizeram reconhecidas e afamadas de modo duradouro por toda a Antigüidade. 10 Todavia, foram também, não menos rápida e duradouramente, criticadas e atacadas: Heródoto é um ladrão e, mais ainda, um mentiroso. A Antigüidade fabrica assim um Heródoto bifrons e faz de seu nome, que todo mundo conhece, um nome duplo, designando, a um só tempo, o pai da história e um mentiroso, senão propriamente o pai da mentira. 11 Em 1768, Voltaire apresentava ainda nestes termos as Histórias: "Recitando para os gregos os nove livros de sua história, ele os encantava pela novidade de seu empreendimento, pelo encanto de sua dicção e sobretudo pelas fábulas."12 A novidade do empreendimento: é isso que explica Euclides ao jovem Anácarsis, mostrando-lhe a prateleira histórica de sua biblioteca: "Ele abriu aos olhos dos gregos os anais do universo conhecido e lhes ofereceu, sob um mesmo ponto de vista, tudo o que se havia passado de memorável no espaço de cerca de duzentos e quarenta anos." 13 O encanto de sua 33
dicção é tudo o que se escreveu, do século IV à época imperial, sobre Heródoto, o mestre do jónico. As fábulas, enfim, estas remetem a Heródoto contador de mythoi, mitólogo e encantador, o qual Tucídides foi o primeiro a denunciar, mas que é preciso ainda denunciar ou, sobretudo, saber reconhecer, pois um autor tão "estimável" quanto Rollin deixa-se conquistar e "nos acalenta com todos os contos de Heródoto". 14 Essa frase não faz mais que resumir, justapondo-os, os pontos de vista tradicionais sobre o autor das Histórias: ele é o primeiro historiador; ele é um grande artista; ele é um mentiroso. Mas como introduzir um pouco de ordem nessas declarações e, antes de tudo e sobretudo, como distinguir o que é verdade, portanto história, do que é mentira, portanto fábula? Voltaire, no capítulo intitulado "Da História de Heródoto", propõe uma solução: "Quase tudo que ele contou dando fé aos estrangeiros é fabuloso; mas tudo que ele viu é verdadeiro." Escolhe ele assim o olho contra a orelha, a autópsia em detrimento da audição ( a k o ê ) , isto é, também os genómena, os fatos, contra os legómena, os discursos. Baseando-se nesse método de reconhecimento da verdade, Voltaire, na realidade, não faz mais que retomar o programa tucidideano: a autópsia antes de todas as coisas e fora da autópsia não há definitivamente história. Mas Tucídides tirava as conseqüências dessa posição metodológica: condenava seus antecessores, que acreditaram poder fazer história do passado, mesmo próximo, que acreditaram (ou fizeram acreditar) que escreviam uma história verdadeira, por exemplo, das Guerras Médicas: antes de todos os outros, ele condenava Heródoto. Entretanto, Voltaire, se retomava bem o critério de verdade tucidideano, parecia "esquecer-se" de tirar as implicações disso: Heródoto não viu diretamente as Guerras Médicas, sua narrativa repousa sobre os legómena13 — logo, ele é indigno de confiança. Muito pelo contrário, depois de ter eliminado o Heródoto dos contos, ele retém o Heródoto da autópsia que, num passe de mágica, se acredita ser o Heródoto historiador das Guerras Médicas, isto é: o "modelo dos historiadores". Mais ainda, não somente uma história das Guerras Médicas é possível, mas é mesmo com a história das Guerras Médicas que começa verdadeiramente a história: 34
está o Egito, figurado pelo próprio Nilo e pelas pirâmide como também por todo um conjunto de objetos "típico além do escriba agachado e de hieroglifos. A seleção dess dois motivos pelo gravador não é evidentemente feita p acaso. O interessante, contudo, é que o Heródoto viajar aparece como um cenário e somente como um cenário, con cujo fundo se pode desenrolar o grande memorial devi ao historiador. Essa gravura, em suma, banal, é, pois, cor truída em função da partilha, que ela se contenta em tom visível: há bem dois Heródotos — o historiador das Guerr Médicas 20 e um outro Heródoto, antes de tudo aquele d outros, dos não-gregos. A partilha é revigorada, de modo magistral, no própi domínio dos estudos clássicos. O longo artigo, redigido t 1913 pelo maior conhecedor dos historiadores gregos, apai eido neste austero instrumento de referência que é a Rt Encyclopadie der classischen Altertumswissenschaft, te 21 durante muito tempo e tem ainda hoje autoridade. Ani de ser historiador, Heródoto foi geógrafo e etnógrafo. Ipois, o viajante e o historiador das Guerras Médicas. 1 viajante, ele tornou-se historiador, e sua obra testemun essas duas etapas, como também a passagem de uma à out Combina-se, assim, partilha e evolução. Desde então — sem pôr em questão esse esquema — n restou aos intérpretes outra escolha senão variar a linha demarcação entre o historiador e o outro, seja avançando seja recuando-a, de acordo com a extensão que se atribu própria palavra historie. Com exceção de um livro muito isolado, publicado e 1937, 22 será preciso esperar os anos cinqüenta 23 e, sobretuc o fim dos anos sessenta, em que aparece um conjunto trabalhos, para que essa abordagem se modifique. Com efei vários especialistas se esforçarão em apagar a linha de partill mostrando que ela não se encontra efetivamente inscrita próprio texto: tentarão provar que os dois nomes de Heródc não formam, na realidade, senão um. Esses estudos, p mais diferentes que possam ser, têm um ponto em comum desconfiança diante dos pressupostos (uma definição m; ou menos explícita do que é a história, por exemplo) e, contrário, a vontade de interrogar o próprio texto, tratande 36
como um todo. É o que propõe Myres, quando empreende esclarecer a composição dos lógoi através de uma aproximação com a escultura: para descrever uma cena, Heródoto procede como o artista que, esculpindo o frontão de um templo, tem grande preocupação com a simetria, ou que, para desenvolver um friso, obedece a um certo ritmo. Mais deliberadamente ainda, Immerwahr, por exemplo, pretende tratar a obra como "uma unidade orgânica que tem sua própria inteligibilidade". 24 A partilha — da qual dão testemunho, a seu modo, o frontispício, o texto de Voltaire e o artigo de Jacoby — permitia que se contivesse a lancinante questão da verdade e da mentira, bem como que se impusesse alguma ordem na questão da paternidade. Mas desde o momento em que a análise do texto concluiu em favor da unidade da obra, desde quando deixou de haver dois nomes, restando um só, desde então a questão da história, descartada momentaneamente, reaparece, agora no interior do próprio texto, onde eclode no próprio interior do nome de Heródoto: o que são enfim as Histórias? O que é a historiei O que é um histor? Ou ainda: o pai da história é um historiador? 25 Questões inevitáveis no caminho do intérprete. O ESPELHO DE HERÓDOTO Spljk- i ^^ O ponto de partida deste livro é indicado no subtítulo: "Ensaio sobre a Representação do Outro". Trata-se, com efeito, de ver como os gregos~da época clássica representaram para si os outros, os não-gregos, de fazer aparecer a maneira ou as maneiras pelas quais eles praticavam a etnologia, em resumo, de esboçar uma história da alteridade, com seu ritmo, seus tempos fortes e suas rupturas, se for possível cercá-los de algum modo. Para uma pesquisa como esta, Heródoto seria evidentemente incontornável, parecendo-me muito cedo que era inextrincável; entretanto, pareceu-me sobretudo que valia a pena permanecer nele, pois seu texto era o lugar privilegiado em que se amarrava e se jogava todo um conjunto de questões, elas próprias reiteradas, denegadas, transformadas ou suscitadas pela interpretação, as quais conduzem, no final das contas, às questões da prática da história. Eis porque o livro, finalmente, foi chamado de O Espelho de Heródoto. 37
As Histórias são decerto este espelho no qual o historiador não cessou jamais de olhar, de interrogar-se sobre sua própria identidade: ele é esse que olha e é olhado, questionadorquestionado — enfim, sempre conduzido a declinar seus títulos e suas qualidades. O que é ele: historiador ou mentiroso? Donde a importância, na história das interpretações de Heródoto, de marcar bem a cesura entre o historiador das Guerras Médicas e o Heródoto dos outros, geralmente tratado como um outro Heródoto. Onde está ele: a serviço de um príncipe ou de uma cidade, exercendo o papel de olho e de memória escrita? Donde a importância dos debates sobre as relações entre Heródoto, Péricles e Atenas. Para quem fala ele e por quê? Donde as questões sobre o público de Heródoto, sobre Heródoto conferencista, remunerado ou não. Mas o espelho entende-se também em dois outros sentidos. Se, em alguma parte, é um espelho" em negativo, o espelho de Heródoto o é nos lógoi consagrados aos não-gregos — o espelho que ele levanta para os gregos. Entre suas narrativas, escolhi o lógos cita, pois o cita não deixa de espantar os gregos: é ele que põe em fuga o exército de Dario, o rei dos persas, e, sobretudo, ele é este nômade que não tem nem casa, nem cidade, nem campo lavrado. O espelho de Heródoto é ainda o olho do hístor que, percorrendo e contando o mundo, o põe em ordem num espaço grego do saber e, em idêntico movimento, constrói para os gregos uma representação de seu passado próximo, ou seja: o hístor faz-se rapsodo e agrimensor. Contudo, ultrapassando a si mesmo, ele é também este espelho através do qual outros, na seqüência, tenderam a ver o mundo. Levanta-se assim a questão do efeito ou dos efeitos do texto e, portanto, a questão do efeito do texto de história. Os diferentes sentidos assumidos pela metáfora do espelho indicam, de fato, um encadeamento de questões que conduz continuamente dos citas de Heródoto ao caso de Heródoto, da leitura de um lógos^a uma interrogação sobre a maneira de escrever a história. No percurso de alguns dos lógoi consagrados aos outros, o texto de Heródoto é tratado como uma narrativa de viagem, isto é, como uma narrativa que tem a preocupação de traduzir o outro em termos do saber compartilhado pelos gregos e que, para fazer crer no outro que 38
constrói, elabora toda uma retórica da alteridade. Este estudo é, pois, a escolha de um nível de análise que não se pretende exclusivo em relação a outras abordagens, nem mais importante que outros níveis: prendendo-se ao contrato que liga o narrador ao destinatário, entende tirar mais do texto, não em conseqüência de alguma espécie de culto do mesmo, mas simplesmente visando a esboçar algumas propostas para uma semântica histórica. Esta viagem em Heródoto, à semelhança de seu objeto primeiro, o nómade, não é nem fechada sobre si mesma, nem acabada. Ao contrário, trata-se de um convite a levar-se mais longe a investigação, recolocando-se a questão do efeito do texto de história, o que significa recolocar também a questão do-gênero histórico e retomar a pergunta sobre o lugar e a função do historiador na sociedade. Um estudo sobre o olhar do historiador e o olho da história ofereceria talvez uma via "dê abordagem? Tenta-se pois fazer uma arqueologia do olhar do historiador ou, pelo menos, tenta-se escrever sobre isso alguns fragmentos. Todavia, no caso de Heródoto, a questão da função do hístor não pode ser separada de uma história de suas interpretações. Por sua vez, essa história, se não pretende permanecer apenas no nível da história das idéias, deve incluir uma reflexão sobre a instituição da história e sobre a profissão do historiador. Em resumo: das leituras de Heródoto a uma história geral da história, enfocada, segundo a fórmula de M. I. Finley, como um "practical subject".
39
OS CIÏAS IMAGINÁRIOS: ESPAÇO, PODER E NOMADISMO
... És tu, Nômade, que nos conduzirás esta noite às margens do Real? Saint-John
Perse
N
T
R
O
D
U
Ç
Á
o
OS CIÍAS DE HERODOTO: O ESPELHO CIÍA Nas Histórias, os citas são um outro privilegiado: eles são, depois dos egípcios, o povo ao qual Heródoto consagra a exposição mais longa de seu livro1 — e, entretanto, contrariamente ao Egito, seu país não apresenta absolutamente maravilhas ou curiosidades que mereçam ser contadas. 2 Em vista disso, por que os citas fizeram Heródoto falar ou escrever? Será em conseqüência das viagens do segundo pelo Ponto ou porque Dario fez guerra contra os primeiros? Assim, o lógos cita: como lê-lo ou quais perguntas fazer-lhe? Antes de tudo, quem são os citas de Heródoto? Para responder a essa questão, pode-se tentar uma confrontação entre o que diz o texto e o que descobre a arqueologia, entre os citas de Heródoto e os citas da arqueologia, entre o lógos cita e os citas "reais". Com efeito, teremos, de um lado, um discurso e uma representação dos citas; de outro, o que eles efetivamente são. A partir disso, indo do texto aos restos e dos restos ao texto, seria possível levantar as convergências e, sobretudo, questionar as divergências para, em seguida, concluir, avaliar a exatidão do testemunho de Heródoto: ele descreveu-os bem ou mal. Os erros serão provavelmente debitados à má informação, espírito crítico insuficiente ou ingenuidade. Os "encontros" serão, ao contrário, creditados a suas qualidades de observador, a sua ausência de preconceitos... Se o débito ultrapassar o crédito, diremos que ele descreveu mal; se, inversamente, ele for credor, estimaremos que é uma testemunha verídica. Contudo, a troca entre texto e resto não pode ser abordada de uma forma tão simplesmente positivista, como se supuséssemos resolvida de antemão a questão das escavações
como referência. Darei um único exemplo. Heródoto consagrou muitos capítulos aos estranhos funerais celebrados pelos citas em honra de seus reis. Ora, admite-se geralmente que ele faz uma boa descrição dos cúrgãs principescos e das terríveis cerimônias que então aconteciam: "Nosso conhecimento" — escrevia Rostovtzeff — "das cerimônias funerárias citas no sexto e no quinto século a.C., derivado das escavações no vale de Kuban, corresponde bem de perto ao relato de Heródoto sobre as exéquias dos reis e príncipes citas". 3 Um encontro, portanto, entre texto e escavação. A superposição dos dois faz, porém, que não se veja ou que se negligencie um detalhe do texto em nada desprezível: para Heródoto, com efeito, os reis — e sempre apenas eles — são enterrados no mesmo lugar, no país dos gerros, isto é, no limite norte da Cítia, em terra de eskhatiã, de confins. 4 Ora, a arqueologia mostra, ao contrario, que os cúrgãs se encontram disseminados pelos vales de todo o país.' Se, pois, se superpõe texto e escavação, não se percebe, literalmente, este ligeiro descompasso — e, se avaliamos o texto a partir da escavação, o descompasso é então eliminado, sendo arrolado, por exemplo, como resultado de "informação insuficiente" do viajante. Todavia, antes de etiquetar um dado desta natureza como resto sem utilidade, por que não considerar que pode ter sentido no interior do próprio texto, que se trata de um detalhe narrativo que conta e do qual dá conta a lógica da narrativa, em suma: que ele é produzido por uma certa representação dos citas que o lógos está precisamente construindo^De modo mais amplo, por esta confrontação direta entre texto e resto, corre-se o risco de negligenciar o texto enquanto narrativa com sua própria organização (o lógos cita não é uma ficha monográfica sobre os citas mas inscreve-se, num dado momento, num conjunto mais amplo que se chama Histórias etc.). Não adotarei, portanto, esse procedimento de mútua validação — o texto validando a escavação, da qual seria como que um suplemento anímico; a escavação validando o texto, ao qual ajuntaria, senão o real, pelo menos um suplemento de realidade. Então, como ler o /ógoscita? Pode-se pensar num segundo tipo de confrontação, não mais entre texto e resto, mas entre os capítulos de Heródoto e a epopéia osseta. Sabe-se, com 46
efeito, após um século e meio, que os ossetas, povo instalado no coração do Cáucaso, são, através dos alanos, os últimos descendentes dos citas — uns e outros pertencendo ao vasto grupo dos "irarianos do norte". Ora, os ossetas realizaram uma dupla proeza: o conteúdo de sua cultura, um conteúdo que nos conduz aos últimos estágios da civilização cita, foi preservado, ao mesmo tempo que a linguagem que o contém — e isso até nossos tempos. E, sobretudo, um tesouro de narrativas épicas subsiste, cheio de arcaísmos, em torno de heróis cuja originalidade, apesar da penetração de temas folclóricos mais ou menos universais, se mantém cheia de força e frescor. Mais: são os povos vizinhos que, em graus diversos, adotaram essa literatura, alterando nela só o que era muito especificamente osseta, cita. 6
Reconhecida essa continuidade, torna-se legítimo relacionar a narrativa de Heródoto e as Lendas sobre os Nartas (epopéia osseta). Para Dumézil, não há dúvida de que "a tradição fielmente guardada pelos ossetas esclarece um grande número de dados citas de Heródoto (e de Luciano)". 7 A partir daí, se nos concentrarmos mais em Heródoto que na "herança indo-européia" dos citas, poderemos desenvolver uma reflexão sobre a maneira como ele trata este material cita-osseta: as transformações ou as deformações a que o submete, como e por quê? Contudo, independentemente de minha incompetência, independentemente mesmo do fato de Dumézil ter aberto e percorrido este caminho, não seguirei por ele. Por quê? É que essas duas leituras, tanto a que se baseia na confrontação com os dados arqueológicos, quanto a que apela para os textos ossetas, se encontram voltadas, se posso assim dizer, para o exterior-, uma e outra procura "sair" do texto das Histórias, a fim de avaliá-lo, pendendo "para o lado" dos próprios citas. De fato, o lógos cita é lido "do lado" dos citas, no que diz respeito a um referente cita. Há o que é dito por Heródoto e o que se sabe por outras formas. O que se sabe serve para criticar o que se diz, e o que se diz (uma vez criticado) aumenta o que se sabe. O texto é totalmente avaliado do ponto de vista da quantidade e da qualidade de informações que contém. Heródoto é uma fonte confiável e abundante sobre os citas? 47
Entretanto, a primeira questão que levanto não é sobre os citas, mas simplesmente sobre os citas de Heródoto. Objeção: se você começa recusando toda confrontação do texto com o que não é diretamente texto, corre o risco de fechar-se nele e de desenvolver, mais ou menos habilmente, uma máquina de produção de perífrases e tautologias; no fim das contas, de instaurar um culto ao texto, que não ousa sequer confessar-se como tal. Em resumo: de valorizar o texto pelo texto e os citas pelos citas — ou de fazer, como se dizia antigamente, arte pela arte. Os citas de Heródoto? Se não se trata de confrontá-los com um referente (ou com o que se constitui como tal: os citas "reais"), não se trata também de recusar toda confrontação e, antes de tudo, no próprio interior das Histórias, em que o lógos cita ocupa, num momento da narrativa, um dado lugar. Estamos, pois, autorizados a relacionar um enunciado deste lógos com outros enunciados pertencentes ao mesmo contexto. 8 Por exemplo: Heródoto narra longamente a guerra que fez Dario contra os citas.9 Essa expedição atormentou comentadores e historiadores: ela é verídica ou o que há de verídico nela, admitindo-se que é impossível que seja totaímente verídica? Ora, se no interior das Histórias aproximarmos os segmentos dessa narrativa de certos elementos da expedição de Xerxes contra os gregos, surgirão convergências e retomadas. Dito de outro modo, mesmo se a guerra de Dario não se reduz a isso, as Guerras Médicas de Heródoto (posteriores na narrativa) desempenham, com relação a ela, um papel de matriz narrativa e de modelo de inteligibilidade para o destinatário. De imediato, a questão do caráter mais ou menos fictício do empreendimento de Dario na Cítia fica, pelo menos, deslocada. O fato de que certos enunciados remetem a outros enunciados do mesmo contexto é um indício do que se poderia chamar de injunções narrativas. Injunções não exteriores e impostas, mas interiores e produzidas pela própria narrativa no processo de sua elaboração. Segue-se que o lógos cita não é informação imediata sobre os citas, a qual se oferece de chofre a qualquer leitor desse único lógos, nem um documento, se posso assim dizer, em estado bruto e imediatamente confrontável com o que não é ele mesmo. Inevitavelmente, impõe-se então um problema de recorte. 48
Uma segunda confrontação conduz não "para o lado" dos citas "reais", mas "para o lado" dos gregos. Trata-se de confrontar os enunciados das Histórias com o saber compartilhado pelos gregos no século V. A possibilidade dessa confrontação repousa sobre a idéia de que um texto não é uma coisa inerte, mas inscreve-se entre um narrador e um destinatário. Entre o narrador e o destinatário existe, como condição para tornar possível a comunicação, um conjunto de saberes semântico, enciclopédico e simbólico que lhes é comum.10 É justamente a partir desse conjunto que tanto pode desenvolver-se o texto, quanto o destinatário pode decodificar os diversos enunciados que lhe são dirigidos: A interpretação de uni enunciado pelo destinatário exige deste menos um trabalho de decodificação que a capacidade de fazer um "cálculo", o qual reconstrói a. relação tecida pelo enunciado com um certo número de marcas selecionadas nas representações, as quais o interlocutor divide ou crê dividir com o locutor. 11
Assim, a descrição da Cítia ocupa uma certa posição na economia geral das Histórias, mas essa própria posição define-se também com respeito a um espaço grego do saber, que obedece sobretudo ao princípio de simetria: o norte e o sul da oikouméne ocupam posições simétricas, de uma e de outra parte de um "equador" que corre através do Mediterrâneo. S Como confrontar enunciado e saber compartilhado? De início, essa operação não leva a que se "saia" do texto. O destinatário está, com efeito, alojado no interior do próprio texto, como uma sorte de "leitor vazio", ou simulacro de leitor, a quem se dirige essencialmente o narradof e sobre o qual exerce seu poder de persuasão. A dificuldade não provém tanto da exterioridade desse saber, mas de seu caráter implícito ou largamente implícito, já que se trata daquilo em função de que o destinatário "calcula" o sentido de um enunciado, o mesmo critério a partir do qual o narrador formula, justamente para que se faça este cálculo. Pode-se, desde então, a título de hipótese, proceder assim: tratar o Inome próprio citas12 como um simples significante, traçando o percurso desse significante no interior do espaço da narrativa, elencando todos os predicados 13 que a ele se agregam e que constroem 49
afinal a figura dos citas. A soma desses predicados constituiria os citas de Heródoto. Quanto aos próprios predicados, pode-se analisá-los segundo uma hipótese complementar da precedente: o desvio sistemático. Isso significa ler considerando que uma prática cita é interpretada com relação a seu homólogo no mundo grego. Quando Heródoto fala do sacrifício cita, enfoca implicitamente o sacrifício grego, que é o que lhe permite reunir uma dispersão de atos e gestos e vê-los como elementos de uma prática única que os gregos chamam thysía-, de início, ele identifica como sacrifício uma prática que consiste em estrangular, por trás, um animal entravado; em seguida, a descrição que faz dos momentos sucessivos da cerimônia não ganha sentido senão pela relação que se estabelece com a sucessão das seqüências no ritual grego.'Vagindo como "modelo ausente", o sacrifício gregoxiferece, a um só tempo, a possibilidade de apreender a prática cita e de traduzir sua alteridade: fazendo o "cálculo" correto, o destinatário terá, se quiser, a possibilidade de explicitar os desvios. Vai-se, pois, do nome aos predicados que o constituem e, em seguida, dos predicados aos códigos que os sustém, de modo que a palavra cita é tratada como um nome "codificado"./ Confrontando-se assim os enunciados do texto com o saber compartilhado, a questão não se reduz a avaliar a descrição ou medir a informação, mas trata-se sobretudo de sondar a maneira como se faz a descrição, considerando-se o tratamento dado à informação. EssáTquêsfãò do como (como se relacionam os enunciados com o saber compartilhado?) levanta finalmente a questão das condições que possibilitam a construção da narrativa ou, pelo menos, de uma dentre elas. Falando do outro com referência ao saber compartilhado e nos termos dele, o texto funciona globalmente como tradução. Trata-se, então, de elencar seus procedimentos e modalidades particulares. Última questão: como reconhecer e delimitar um saber compartilhado que, por definição, eu não compartilho? Como ( posso dar conta dele, se seu modo de ser é largamente um modo de ser implícito? Como inventariá-lo, se é verdade que não tenho, como o etnólogo, a possibilidade de interrogar pelo menos um informante, na impossibilidade de encontrar diretamente aqueles que o compartilham? Com efeito, para 50
tomar uma imagem simplificada da comunicação, oíçtnólogcp após haver aprendido o código ou os códigos de um grupo, terá a possibilidade de decifrar as mensagens emitidas pelos locutores. Mas para o historiador, quanto mais diminui a base documental, mais a separação entre código e mensagem se adelgaça, até atingir-se a situação limite em que se deverá, praticamente com o mesmo movimento, decifrar-se código e mensagem, comunicar o que é código e o que é mensagem. Os poemas homéricos servem perfeitamente como ilustração dessa posição limítrofe: texto fechado sobre si mesmo, pelo menos para nós. Como proceder no caso das Histórias? Se o texto decerto inscreve-se entre um narrador e um destinatário e se é verdade que, de um certo modo, o destinatário se encontra alojado no próprio texto, reconhecer o mapa do saber compartilhado ão implica "sair" do texto. Mais ainda: se esse saber permanece amplamente implícito, isso não impede que possam apontá-lo, de modo indireto, as marcas que, por seu lado, surgem de modo explícito. Penso em todas as intervenções do próprio narrador, bem como nas intervenções de narradores secundários ou delegados, nas quais eles se espantam com uma^estranheza, sublinham uma diferença, explicam uma ausênciaí15 Num plano mais geral, a simples atividade de nomeação que o narrador realiza é um modo de referir-se ao saber compartilhado: ele ^recorta ^õ real do outro segundo lis categorias grégâs^ Reconhecer a ação de estrangular um animal por trás como Y thysía é todavia suficiente para justificar uma confrontação precisa com um modelo sacrificai construído pelos helenistas, a partir de uma documentação que apela tanto para os textos, quanto para as representações figuradas?16 Tomemos como hipótese que essa operação metodológica seja lícitá\ A partir de então, posso pôr em perspectiva o conjunto dos outros sacrifícios (dos sacrifícios outros) e traduzir sua dispersão em termos de desvio, lendo sua incompletude e heterogeneidade em termos de diferenças. Constata-se também que nenhum desses sacrifícios contradiz, em sua arquitetura, o modelo grego. Isso leva a que, uma vez acabada a confrontação, a hipótese se legitime e, num movimento de retorno, confirme-se ou, pelo menos, reforce-se a validade do próprio modéló.
51
;
Essa leitura através da hipótese do desvio sistemático tende, pois, a fazer sentido e justifica-se pelo acréscimo de sentido que proporciona. Em suma, visando a explicitar_uma parte do saber implícito que é evocado ou mobilizado pelos enunciados da narrativa, ela reconstrói o "cálculo" que um grego do século V, ouvinte de Heródoto, não teria necessidade de fazer. Sem dúvida, essas duas confrontações — a que se volta para o contexto (as exigências do real) e a que se prende ao saber compartilhado — não podem sei_^ej^ada£jjmia da outra. Através delas, o historiador é levado não "para o lado" dos citas, mas "para o lado" dos gregos — e, por elas, pode-se apreender quem são os citas de Heródoto, o que inclui também os citas do imaginário grego, uns remetendo aos outros reciprocamente, o que significa ainda que assim se constrói o espelho cita. Com efeito, como um certo povo (os gregos) que passa o tempo dizendo, que a vida na cidade é a única que merece ser vivida pode elaborar uma representação de uma personagem cujo ser é precisamente estar incessantemente em movimento? Ou, colocando-se a mesma questão de outro modo: como os atenienses, que reivindicam para si mesmos, com tanta insistência, a autoctonia, 1 7 podiam representar para si mesmos aquele cujo ser é não ter lugar? Pressente-se bem que o discurso da autoctonia não pode abster-se da representação do nomadismo e que, para este autóctone imaginário, que é o ateniense, é preciso um nômade, não menos imaginário, que será principalmente o cita. * jCo> *F
*
&
. V \
y
52
y
[& S *
í
JC
C
A
P
í
T
U
L
O
ONDE É A CÍTIA? A Cítia é terra de eremía e zona de eskhcttiá, terra deserta e zona de confins: ela é uma ponta do mundo. Foi para lá que Poder e Força conduziram Prometeu, a fim de ser encadeado por ordem de Zeus: "Eis-nos aqui sobre o solo de uma terra longínqua" — declara o Poder — "caminhando no país dos citas, num deserto sem humanos". 1 Aristófanes utiliza a fórmula "deserto cita", mas aplica-a a uma pessoa: uma personagem é chamada por ele de "deserto cita" ( s k y t h o n eremía), modo de dizer que é um bruto selvagem e sem amigos. 2 Muito mais tarde, retomando a expressão, Quinto Cúrcio a colocará na boca dos próprios citas: em sua expedição contra eles, retomada bem sucedida da expedição de Dario, Alexandre, a ponto de transpor o Tânais, recebe deputados citas que, para fazê-lo desistir do ataque, lembram-lhe de que seu espaço os torna inacessíveis: "Parece, ajuntam eles, que mesmo os provérbios gregos zombam da solidão da Cítia — pois nós buscamos os desertos, a ausência de civilização mais que as cidades e os campos opulentos." 3 De fato, existem numerosos provérbios sobre este tema: a "solidão cita". Diz-se de "lugares solitários e completamente selvagens", de "pessoas que, não possuindo terra alguma, mudam constantemente de habitat", de "pessoas abandonadas..." 4 O tratado hipocrático Dos Ares, das Águas e dos Lugares usa a mesma expressão, dando-lhe uma definição geográfica precisa: "O que se chama deserto cita é uma planície com pradarias, sem árvores e medianamente irrigada." 5 Seja aplicada a um lugar, seja designando metaforicamente um indivíduo, a fórmula sem dúvida pertence ao conjunto das coisas bem conhecidas dos gregos. Expressão feita, conjuga solidão, selvageria e distanciamento. A Cítia pertence, com efeito, aos confins do mundo. Localizada ao norte, estende-se nas margens do mundo
habitado — ou mesmo à margem. Prometeu Acorrentado insiste sobre esse distanciamento da Cítia: os enviados de Zeus e seu prisioneiro caminham em "terra distante", "as hordas citas" ( h ó m i l o s ) são descritas como ocupando os "confins do mundo" ( g â s éskhaton tópori), em torno do 6 "Meótida estagnado". A eskhatiá, para uma cidade grega, é a zona além das culturas: é a região "na ponta", as terras de rendimento ruim e de utilização difícil ou intermitente, na direção da montanha ou na própria montanha que sempre guarnece o território; ela é vizinha da fronteira, onde se dissolve, região de montanhas e de florestas que separa o território de duas cidades, abandonada ao uso de pastores, de lenhadores e de carvoeiros.7
Portanto, apresentar a Cítia como eskhatiá é representá-la, com relação ã oikouméne, numa posição "análoga à que ocupa essa zona das margens com relação ao território da cidade. Mas esse saber implícito e formular que avança pelo menos de Ésquilo a Quinto Cúrcio (do século V a.C. ao século I d.C.), Heródoto, no livro IV das Histórias, põe em cheque. Com efeito, ele não se contenta em repetir que a Cítia é terra de eremía e zona de eskhatiá, já que a realidade se revela diferentemente mais complexa. Ele mostrará que essa terra de eremía compreende também seus próprios desertos e que essa zona de eskhatiá possui ela própria suas margens. Não somente os citas não formam um grupo único, pois dividem-se em muitos povos, como também se encontram estabelecidos nessas mesmas terras outros povos que não são absolutamente da "raça" cita. Heródoto irá enumerá-los, fazer seu inventário e demarcar o território que ocupam. Organiza-se assim, a partir dos próprios objetivos do historiador, todo um sistema de povos do norte, em que parece que os desertos "verdadeiros" — sobre os quais não há nada a dizer, pois são, a um só tempo, limites do espaçq_e_iim i t e s do cHzíve 1 — começam apenas muito longe, ao norte da Cítia, crescendo a selvageria quanto mais se avança na direção do norte e do nordeste. Esta última afirmativa não é verdadeira senão globalmente; mas o movimento marca bem uma diminuição da parte de humanidade, até que se atingem esses seres, conhecidos somente por ouvir-se dizer, que são os homens com pés de 54
cabra, os arimaspos e os grifãos. 8 Nesse contexto, é claro que a percepção da "selvageria" dos citas muda: eles são tão menos selvagens quanto os outros o são mais. Sem dúvida o mais importante dos povos do norte, os citas não são, todavia, para Heródoto, senão um daqueles povos: ele evita, com efeito, a imagem excessivamente simplista da Cítia como terra desolada, situada quase além dos últimos homens. Por outro lado, ela não é somente uma ponta do mundo, mas ocupa um lugar na representação global que Heródoto faz da terra. Myres mostrou como ele, compondo as Histórias, utilizou muitos mapas e, especificamente, um mapa jónico. 9 Ora, esses mapas exploram preferentemente o princípio de simetria: o mundo organiza-se__simetricamente de um e do outro lado de um "equador", que atravessa o Mediterrâneo, desde as colunas de Héracles até o Tauro, passando pela Sicília e por Delfos. Ao norte, tem-se o frio; o calor, aojrul. As coisas explicam-se pelo frio, ao norte; e pelo calor, ao sul.10 O ponto simétrico da Cítia, no sul, é a Líbia e, mais precisamente, o Egito. Quando vem o inverno, as gruas, com efeito, deixando a fria Cítia, voam para estas regiões. 11 Mas a simetria age sobretudo no nível destes dois rios espantosos que são o Nilo e o Istro: o Istro é, no norte, o que o Nilo é no sul. Que Heródoto estabelece essa simetria, prova-o uma suposição que faz num certo ponto: imaginemos, por um momento, uma inversão das estações, ou seja, Bóreas e inverno, de um lado, o Notos e o sul, de outro, trocando respectivamente de posição — enquanto o sol, "atravessando toda a Europa, agiria sobre o Istro como age hoje sobre o Nilo". 12 A partir disso, ressalta ele que o Nilo e o Istro são exatamente eqüidistantes do "equador", materializando (na parte oeste-leste de seus cursos) os avanços extremos do sol — ou, dito de outro modo, os dois "trópicos" do mapa jónico. 13 Acima de tudo, o princípio de simetria é tão "evidente" que tem uma função eurística certa: conhecendo-se, com efeito, o curso do Istro, pode-se inferir, por analogia, o do Nilo; aplicando este princípio, posso responder, de uma nova forma, à embaraçante pergunta sobre as nascentes do Nilo, propondo uma solução. Do mesmo modo que o Istro, que tem sua fonte no país dos celtas, "corta a Europa pelo meio, assim também o Nilo atravessa toda a Líbia, sendo igual ao Istro". 14 Enfim, o Nilo e o Istro não estão somente na mesma latitude, mas 55
"Trópico" de verão
Equador"
de inverno
(Deserto)
Mar E ri treu
FIGURA 6 - Provável representação do mundo por Heródoto
situam-se também sobre o mesmo meridiano: o Istro desemboca na ístria e esta se encontra em face (antíon) de Sínope; o Nilo, por sua vez, desemboca no Egito, que está praticamente em face ( a n t í o n ) da Cilicia montanhosa; da Cilicia até Sínope são cinco dias de marcha em linha reta; portanto, o delta do Nilo encontra-se defronte da embocadura do Istro (ver Figura 6). Essa simetria, uma vez estabelecida, permite ao narrador pensar as relações entre o Egito e a Cítia segundo as modalidades do próprio e da inversão. Assim, o calor e o frio, incidindo, respectivamente, sobre essas regiões, produzem efeitos inversos. Os egípcios, até as experiências do faraó Psamético, consideravam-se os mais antigos de todos os homens, 1 3 enquanto os citas, por seu turno, se dizem "o mais recente ( n e ó t a t o n ) de todos os povos". 16 De uma maneira geral, as regiões do norte são terra de ignorância, enquanto os egípcios são um povo de antiqüíssima ciência: 17 os gregos do Ponto expressam essa distância na história de Zálmoxis — os getas, seus compatriotas, consideram-no uma divindade; os gregos vêem nele um antigo escravo de Pitágoras; ora, Pitágoras, como a maior parte dos "sábios" da Grécia, viajou ao Egito para instruir-se; 18 portanto, do ponto de vista do saber, existe um fosso entre Zálmoxis e os sacerdotes egípcios. Em compensação, os egípcios, como os citas, têm a mesma atitude diante dos nómoi estrangeiros: a recusa e, particularmente, a recusa total dos nómoi gregos. 19 Por outro lado, a narrativa relaciona citas e egípcios também através da guerra: Sesóstris, no curso de suas grandes guerras e conquistas, atingiu a Cítia e "subjugou" seus habitantes (trata-se de exemplo único, já que Dario será derrotado 20 ); por sua vez, quando percorrem a Ásia, devastando-a, os citas são dissuadidos pelo faraó (através de presentes e preces) de penetrar no Egito.21 Pode-se relevar uma outra analogia na oposição entre o Egito e a Cítia. Se se admite, com efeito, como fazem os jônios, que a fronteira entre a Ásia e a Líbia é marcada pelo Nilo, então deve-se considerar o Egito como um país entre a Ásia e a Líbia. 22 Ora, como veremos, da mesma forma pode-se considerar a Cítia como um território entre a Ásia e a Europa. 23 Um e outra podem ser vistos como terras intermediárias. A crer-se nos sacerdotes egípcios, Sesóstris foi não somente um conquistador, como também o verdadeiro criador do 57
espaço egípcio. Com efeito, antes dele o Egito era "inteiramente percorrido pelos cavalos e pelos carros"; constituía, pois, uma espécie de espaço nômade, em tudo comparável com a Cítia. por onde constantemente avançam os carros e passam os cavalos. Mas, com Sesóstris, cavalos e carros desapareceram, pois mandou ele cavar numerosos canais em todo o território "Desde então o Egito, ainda que seja todo plano, é impraticável para os cavalos e os carros; a causa disso está nesses canais, que são numerosos e se espalham em todas as direções. Na origem, os canais foram cavados para permitir o fornecimento de água para as cidades que ficavam longe do rio. Mais ainda Sesóstris repartiu a terra, deu a cada um um lote igual (klêros e fixou os encargos. Se o rio levava a parte de um klêros, o re enviava seus homens para medir a perda e fixar uma diminuição proporcional do imposto — no que Heródoto vê a origem da geometria. 25 Dito de outro modo, o espaço egípcio é uma criação do poder: passa-se de um espaço de percurso a urr. espaço partido, medido, distribuído e fiscalizado. Para efetuar esses grandes trabalhos, Sesóstris emprega os prisioneiros feitos no decorrer de suas conquistasr explora, pois, sob ameaça, sua força de trabalho. Os citas, por sua vez, fazem também prisioneiros, mas os tratam berr. diferentemente: cegam-nos. Com efeito, Heródoto explica, num estranho capítulo, que eles cegam seus prisioneiros e os utilizam para ordenhar suas jumentas: "É para esse serviço que os citas cegam todos seus prisioneiros; pois eles não são agricultores, mas nômades." 27 Curiosamente, é, pois, o nomadismo que, em última instância, se encarrega de justificar o comportamento dos citas, mesmo se a relação entre cegamento e nomadismo não é explicitada pelo narrador. Em todc caso, a diferença de tratamento dos prisioneiros indica bem a distância que há entre o Egito do faraó e a Cítia dos nômades. Antes de Sesóstris, o Egito é um espaço de percurso, como são os descampados citas; depois dele, de forma espantosa, o Egito torna-se artificialmente parecido com o que a Cítia é naturalmente: "Pois esse território é uma planície, abundante em pastagens e em águas, à qual sulcam muitos rios, em número quase tão elevado quanto o dos canais do Egito. Num caso, porém, os rios são "aliados" isymmakhoí) de urr. gênero de vida (o nomadismo); no outro, os canais impedem 58
a circulação dos carros e as corridas dos cavalos: os canais interditam o que os rios permitem, impondo os primeiros um gênero de vida regido pelo poder do faraó. Ter-se-ia, pois, de um lado, um poder modelando inevitavelmente um novo espaço; de outro, uma "ausência" de poder acomodando-se a um espaço natural. Mas essa é uma explicação simplista. Por duas vezes, com efeito, Heródoto assinala que o território cita é dividido em nomos, cada nomo tendo a sua frente um nomarca, o
QUEM SÃO OS CITAS? Antes de tudo, a pergunta é relativa a suas origens: como e quando eles surgiram? Como quase sempre quando se trata de origem, a resposta não é única. Heródoto conhece quatro versões diferentes (pelo menos), referindo-se a elas uma após outra. A própria acumulação de versões (francamente inconciliáveis ou dificilmente conciliáveis umas com as outras) não pode deixar de produzir um certo efeito no destinatário da narrativa. 30 A primeira versão deve-se aos próprios citas — os citas dizem... (Skythai légousí) — não sendo absolutamente esclarecida, pelo narrador, a maneira como este lógos lhe chegou aos ouvidos: 59
O primeiro homem que apareceu em seu país, até então desen: chamava-se Targitau. Dizia-se que era filho de Zeus e de urr._ filha do rio Borístenes. 31 Targitau teve três filhos: Lípoxa:.Árpoxais e, por último, Cólaxais. Durante sua vida, caíram d céu sobre a terra da Cítia alguns objetos de ouro: uma charrui um jugo, um machado e uma taça. À sua vista, o mais velh dos três filhos precipitou-se para pegá-los, mas, ao aproximar-;.; deles, o ouro pôs-se em chamas. Ele retirou-se então e segundo avançou, de novo a c o n t e c e n d o a mesma coisi Assim, tendo os dois primeiros renunciado ao ouro inflamadc o terceiro irmão aproximou-se e o fogo apagou-se. Então, ei; tomou-o consigo e levou-o para casa. Diante desse signo, Cr dois irmãos mais velhos atribuíram ao caçula toda a realeza De Lípoxais nasceram aqueles dentre os citas que são chamadc: pelo nome genérico de Aukhátai-, do segundo irmão, Árpoxaií os que são chamados de Katíaroi e Tráspies-, e do último, d rei, os que se chamam Paralátai. Mas todos, em conjunto, nomeiam-se Skólotoi, a partir do nome do rei. Skythaié o nom ; que lhes deram os gregos.!...] Sendo vasta aquela região, contar, eles que Cólaxais a dividiu em três reinos para seus filhos, fazendo maior que os demais aquele em que se conservav_ o ouro. 32
Dumézil mostrou como esses quatro objetos (que, na realidade, não são mais que três, já que o jugo e a charrua constituiriam um só) simbolizam as "três funções", "que formavam urr. dos principais modelos do pensamento dos indo-iranianos. fiéis depositários, com relação a isso, da tradição indo-européia: a taça é o instrumento do culto e das festas; o machado uma arma de guerra; a charrua e o jugo evocam a agricultura". 33 O texto coloca uma segunda questão — o papel das duas gerações sucessivas de irmãos: Cólaxais e seus irmãos, e os filhos de Cólaxais. Julga Dumézil que essas duas tríades não se confundçm: a primeira exprime uma divisão funcional: somente a segunda traduziria uma divisão geográfica: Aukhátai, Kathíaroi e Tráspies, bem como Paralátai não são nomes étnicos, designando antes tipos funcionais de homens que vivem em qualquer local — isto é: indicam, no interior da sociedade cita como um todo, os protótipos dos servidores humanos das três funções; por sua vez, os filhos de Cólaxais engendram dinastias destinadas a reinar sobre terras distintas e contíguas. 34
60
Essa hipótese, mesmo se não é "inteiramente verificável", explica a presença das duas tríades, que é vão tentar reduzir a uma só. Mas o ponto capital é que, nessa versão, os próprios citas se apresentam como sedentários e agricultores, não como nômades e criadores de animais: do céu caem, com efeito, um jugo e uma charrua, levando o caçula dos irmãos os objetos de ouro "para a sua casa" (portanto, uma indicação de que, já antes da queda dos objetos, ele era sedentário, ou seja, a queda dos objetos não põe fim a uma fase anterior de nomadismo). Seja como for, a "ideologia das três funções", em seu conjunto, não é de fato própria das sociedades nômades. Estamos então diante de povos que se dizem sedentários, mas que os gregos vêem, antes de tudo, como nômades? Ainda mais: a lenda, se é uma versão da origem dos citas, é mais ainda uma versão das origens do poder entre eles. Afinal, ela trata em primeiro lugar da realeza e das qualificações para seu exercício. O mais jovem dos irmãos, que é o único que pode aproximar-se dos objetos inflamados, pega-os todos e detém, daí em diante, sua eminente propriedade: esses "talismãs funcionais" que ele conserva em sua presença são, com efeito, a marca de sua eleição, qualificando-o para exercer pâsa basileía, toda a realeza. Em torno dos objetos de ouro realiza-se anualmente um ritual em que se reitera a ligação entre poder e território: Este ouro sagrado, os reis o guardam com o maior cuidado. Oferecem em sua honra, a cada ano, grandes sacrifícios propiciatórios. Se, durante a festa ao ar livre, o responsável pelo ouro sagrado dorme, os citas dizem que não passará daquele ano. Além disso, para desagravá-lo, dão-lhe todas as terras cuja volta ele puder fazer, a cavalo, em um dia. 35
Este ouro (que Heródoto não voltará a mencionar, nem quando falar dos sacrifícios, nem quando contar a invasão persa) simboliza a realeza e representa o ponto em que ela se ancora: quem possui o ouro tem, da mesma forma, autoridade sobre o território. Ora, curiosamente, aquele que vigia o ouro, se vem a dormir (o que é interpretado como signo de uma morte próxima), recebe, "por esta razão" ( d i à toütó), uma parcela do território: propriedade "efêmera", cuja medida é a distância 61
percorrida por seu cavalo durante um dia; marca-se entã no segundo grau, uma relação entre o ouro dos reis e partilha do solo. No ponto de partida, essa relação já manifestava no gesto de Cólaxais, o primeiro possuidor ; ouro, que dividiu o país em três reinos para os filhos. Heródoto não somente não avaliza essa versão das orige: dos citas e do poder, precisando que são eles próprios que . "dizem" (légousi), como não a leva absolutamente em corr„ Com efeito, quando contam eles que Targitau, o primeiro ci:. teve como pais Zeus e uma filha do rio Borístenes, o narrad: observa: "Para mim, o que dizem não é crível" ( e m o i ou pis:, légontes),36 Se, pois, o começo da história não é crível, com a seqüência o será? A segunda versão é produzida pelos vizinhos dos citas, Or gregos do Ponto Çhôde légousiri). A terra da Cítia era deser: quando lá chegou Héracles, tocando os rebanhos de Gerião. Durante o sono, seus cavalos desapareceram. Partindo er busca deles, encontrou então uma virgem-serpente, que aceito. devolver-lhe os cavalos caso se unisse a ela, o que ele fez. Dessa união nasceram três filhos. À futura mãe que o interroga sobre o futuro de seus filhos, Héracles responde: Quando vires teus filhos atingirem a idade de homens, faze c que vou dizer e não terás de temer que te enganes: aquele que vires estender este arco como eu faço e cingir este cinto dests maneira, autoriza-o a fixar aqui sua morada; os que, ao contrário, não realizarem os atos que prescrevi, expulsa-os do país. [.... Quando os filhos que dela nasceram atingiram a idade viril, ela deu, a um, o nome de Agatirso; ao outro, de Gelono; e ao último, de Cita. Lembrando-se da recomendação de Héracles, fez o que lhe havia prescrito. Então, dois dos jovens, Agatirso e Gelono, não conseguiram passar na prova proposta. Banidos pela mãe, deixaram o país. O mais novo, Cita, teve sucesso, p e r m a n e c e n d o nele. É desse Cita, filho de Héracles, que d e s c e n d e m os reis que se sucedem entre os citas. 37
Como a precedente, esta versão é, pois, uma narrativa sobre a origem tanto dos citas, quanto do poder real. Ela é ainda interessante do ponto de vista da representação dos lugares longínquos que põe em cena. Com efeito, é vindo da casa de Gerião que Héracles chega à Cítia. Ora, Gerião habita "além do Ponto, na ilha que os gregos chamam Eritia, 62
situada defronte de Gades, além das colunas de Héracles, na borda do Oceano". Segundo Apolodoro, Héracles, antes de atingi-la, teve de atravessar a Europa, desembarcar na Líbia, passar por Tartesso (onde edifica as famosas "colunas") e obter, enfim, a taça do Sol para atravessar o oceano. 38 Situada nas margens do mundo, senão à margem, a ilha do monstro Gerião pertence, por outro lado, à "geografia mítica". Aproximar a Eritia da Cítia não é uma maneira de dizer que esta última faz parte também da geografia mítica? Vindo da casa de Gerião, Héracles chega à Cítia como se esses dois espaços marginais se comunicassem facilmente (segundo Apolodoro, ele persegue os bois até a Trácia; mas a versão dos gregos do Ponto não menciona as etapas de sua viagem de regresso). Então, "depois de ter percorrido todo o país, Héracles teria chegado à região que se chama Hiléia; aí ele encontrou, num antro, uma virgem-serpente formada de duas naturezas ( m i x o p ã r t h e n ó n tina ékhidhan diphyéà): as partes superiores do corpo, a partir dos quadris, eram de mulher; as partes inferiores, dum réptil". 39 Esse é, pois, o estranho ser que Héracles encontra naquela região um pouco à parte do território cita: com efeito, a Hiléia é a única região coberta de árvores em toda a Cítia.40 A versão elaborada pelos gregos do Ponto remete à figura da Equidna, tal como aparece em Hesíodo. 41 Não se trata evidentemente de uma citação literal da Teogonia, mas da retomada do tema, não muito comum, da mixopárthenos,42 com um certo número de descartes que levantam, eles próprios, muitas questões. Como se apresenta a Equidna em Hesíodo? A atroz (lygré) Equidna, 43 nascida de Fôreis e de Ceto, não se assemelha "nem aos homens mortais, nem aos deuses imortais" e vive "em baixo", numa gruta, longe "tanto dos homens, quanto dos deuses"; sua morada é sob a terra, no país dos arimos. 44 Seu corpo é, "pela metade, de uma moça de belas faces e olhos que cintilam, pela metade de uma enorme serpente, tão terrível quanto grande, pintada, cruel..." Monstro ela própria, põe no mundo um certo número de monstros; ora, entre estes encontram-se muitos que se envolveram com Héracles: Orto, o cão de Gerião; Hidra, o monstro de Lema; e o leão de Neméia. Todos três foram, com efeito, mortos por Héracles. Entre a narrativa hesiódica e a versão dos gregos do Ponto deixam-se apreender algumas convergências: em termos 63
de aparência, a Equidna e a mixopárthenos são idêntica; Entretanto, Heródoto não diz qual seria a origem da virge: serpente que, por outro lado, não é apresentada como temi-.; ou atroz. Essa figura meio-mulher, meio-serpente reapare;: em Diodoro da Sicília: unida a Zeus, dá à luz um filho, Ci:_ Este último não é a origem do povo cita, que já existia ante; mas torna-se o famoso rei daquela população, à qual dá se. nome. Dessa vez, o texto é apresentado como uma narrath. que fazem os próprios citas, precisando que a Equidna "nasce:, da terra"(gegenês). 45 Nota-se também uma certa "proximidade de Gerião: em Hesíodo, a família da Equidna é evocad. justamente após a referência a Gerião, sendo ela quer põe no mundo Orto, o cão deste último; em Heródoto, "proximidade" é espacial, sendo Héracles o traço de uniã<: entre os dois, já que é retornando da casa de Gerião qu. chega ele a essa terra até então deserta, a qual se tornar, a Cítia. Que efeito produz esse contexto equidniano na narrativ. de Heródoto? Por que os gregos do Ponto procedem a esv. "desvio" hesiódico, quando se trata de explicar a origem d povo cita? Antes de tudo, isso parece ser um modo de indicao distanciamento dos citas: um distanciamento no espaço, que, eu creio, é o efeito que produz a evocação de Gerião: um distanciamento cultural, em seguida: os citas têm a ver com uma idade passada, a dos monstros. Expressa-se assirr. um certo "primitivismo" cita. Mas essa referência à genealogia da Equidna pelos grego> do Ponto levanta ainda muitas questões que transbordam o; poucos capítulos de Heródoto. Eu vejo três delas. Em Hesíodo. Héracles intervém matando três dos filhos da Equidna: Orto. a Hidra e o leão; para os gregos do Ponto, ao contrário. Héracles, longe de suprimir a descendência da tnixopárthenos. é aquele que lhe dá três filhos. Por que os gregos operarr. essa reviravolta, tornando o que suprime a descendência, nun: caso, quem dá a descendência, no outro? Sobretudo, que efeito produz o " bricolage" dos gregos do Ponto? Equidna não se "assemelha" nem aos homens mortais, neir. aos deuses imortais; já a mixopárthenos de Heródoto é meio humana, meio animal: dotada desse estatuto intermediário, é a mãe dos citas. Ora, os citas são, antes de tudo, nômades. A 64
questão que se levanta então é a do papel do híbrido. Dito de outro modo, dar aos citas uma mãe que não é nem verdadeiramente humana, nem verdadeiramente bestial é um modo, para os gregos do Ponto, de "pensar" o nomadismo? Existe uma correlação entre o gstatuto do híbrido e a vida nômade? Responder a isso exigiria pesquisar o que é um ser híbrido para os gregos. 46 Enfim, a última questão é levantada pela intervenção de Héracles. Se um ser híbrido é a mãe dos citas, nm herói, Héracles, é seu pai. Com efeito, não é contraditório apresentar como pai de uma população nômade aquele que é, antes de tudo, um herói civilizador? Deparamo-nos, uma vez mais, com a questão do nomadismo. Héracles é, para toda uma parte da tradição, 47 um viajante que "explora" e "marca os limites da terra", 48 mas também um defensor da humanidade. Ele é, principalmente, o fundador de numerosíssimas cidades. Assim, nada menos que à seqüência de sua expedição contra Gerião pode-se atribuir a fundação de Hecatômpilo, na Líbia; de Sagunto, na Espanha; de Alésia, na Gália; de Bola, Herculano e Crotona, na Itália; de Solunto e Mótia, na Sicília. 49 Além disso, ele é o que purga a terra dos monstros, os quais não hesita em acossar até nos confins do mundo habitado e mesmo nos Infernos. Ele ocupa-se igualmente dos povos pouco civilizados, como os dríopos, que se entregam ao banditismo, vencendo também os lestrigões, famosos por sua crueldade. 50 Tirésias tinha revelado a Anfitrião o destino de Héracles e "quantas bestas ferozes ele massacraria sobre a terra, e quantas ele massacraria no mar; e como ele daria a morte mais horrenda a mais de um homem arrastado, pelo orgulho, para fora do caminho direito". 51 Enquanto fundador de cidades, djspensador da vida civilizada, Héracles situa-se, pois^numa esfera contrária à do nomadismo, caracterizado principalmente pela ausência de vida na pó/is. Mas a figura_de Héracles apresenta uma certa ambigüidade: continuamente por montes e vales, ele não é sempre um herói civilizador, nem mesmo sempre civilizado! Com efeito, sua relação com a comida e com a sexualidade é marcada pelo excesso. A comédia apresenta-o como glutão e libertino. 52 Sob este aspecto, Héracles não é o "deus herói", como o chamava Píndaro, ou o "homem divino", como o consideravam os 65
estóicos, mas o "herói-bcsta". 53 É porventura essa ambigi. que lhe permite ser considerado, sem contradição, pelos grdo Ponto, como o pai dos citas? Quanto ao helejiocentrismo, que consiste em colocu: herói grego na origem de outros povos, trata-se de . constante na antropologia grega. 54 Em Heródoto, H é n : encontra-se, no total, na origem de três famílias reais: a fa~ real cita (neste caso encontra-se ele também na origen próprio povo); Candaules, rei de Sardes, descendia Alceu, filho de Héracles; 53 os reis espartanos, enfim, tin Héracles como ancestral. 56 As duas últimas versões relatadas por Heródoto têrr. comum o fato de esclarecer não a origem dos citas, mas chegada ao país depois chamado de Cítia.57 A primeira introduzida pelas seguintes palavras: existe ainda um c_:~ lógos...-, quanto à segunda, é atribuída ao poeta Aristéa^ Proconésia. No primeiro caso, os citas, nômades, pressiom pelos massagetas, atravessaram o rio Araxes e invadiram região antes ocupada pelos cimérios que, com exceção _ reis, fugiram diante de sua aproximação. Nessa versão, ; Heródoto "subscreve de muito bom grado", os citas
povo? Em todo caso, no texto de Heródoto, a própria observação sobre a juventude dos citas não ganha todo seu sentido senão quando aproximada do que se diz dos egípcios, os mais antigos (ou quase os mais antigos) dos homens. 62 Intervém ainda, na questão da identidade dos citas, um outro elemento: o clima. Nas Histórias, com efeito, o clima serve de explicação para vários fenômenos; há na obra uma espécie de teoria dos climas, segundo a qual o que está ao norte se explica pelo frio ( d i à tà psykhea gínetai taüta6i), enquanto o que está ao sul se explica pelo calor. O clima da Cítia é particular: 64 o inverno é "diferente" dos invernos que reinam em todos os outros países (kekhóristai). O termo grego empregado marca bem que há distanciamento, separação, solução de continuidade.65 Essa diferença, Heródoto não se contenta em declará-la, mas se esforça em demonstrá-la, para convencer seus ouvintes. Os citas conhecem um inverno excessivo, tanto por sua intensidade, quando pela duração: durante oito meses, reina um frio "insuportável". 66 Fica logo claro que o padrão a partir do qual será medido o inverno cita é o inverno grego: excesso em relação a que, senão ao inverno grego? Mas isso, por enquanto, está apenas implícito. Primeira prova apresentada por Heródoto: "Se alguém derrama água no chão, não se forma lama; mas se alguém acende um fogo, então se forma." Na Cítia, o fogo age como a água em outros lugares: em vez de secar e de cozer, umidifica e liquefaz (em vez de cozer a terra produzindo alguma espécie de gesso, ele produz lama). 6 7 Já a água, o liqüido por excelência, solidifica o que toca e solidifica-se ela própria. O mar, sob o efeito do frio, torna-se passagem para os carros. Tem-se, pois, um embaralhamento das categorias do seco e do úmido, do liqüido e do sólido. Assim é o clima durante oito meses do ano, aos quais sucedem não quatro meses de "verão", como se poderia esperar, mas quatro meses de "inverno simples" (toüs d'epiloípous tésseras psykhea autóthi es ti). Vê-se que o clima cita é bastante particular, configurando mesmo uma espécie de clima à parte. Vê-se também como a diferença tende, em vista do próprio discurso demonstrativo, a especificar-se como oposição. Heródoto passa em seguida ao regime das chuvas. A partir daí, a oposição irá revelar-se claramente como inversão: na 67
Cítia não chove durante o inverno, que é normalmente, todos os outros lugares, a estação das chuvas; pelo contrá não cessa de chover no verão (tõ dè théros hyon ouk anie O regime das chuvas apresenta-se, pois, invertido, em comp, ração com o das regiões mediterrâneas. Mas o ponto rr.. importante (que prova que Heródoto se refere ao modelo grec é o emprego da palavra théros: após escrever que o ano se divide em oito meses de inverno excessivo ( d y s k h e í m e n seguidos de quatro meses de inverno simples (psykhea), pa ; . ele a chamar este último período de théros, isto é, verão. Ass para encontrar seu lugar num modelo grego, permitindo i: funcionamento do sistema de oposições, os quatro meses Ü psykhea devem tornar-se o equivalente de um "verão": cho.»: na estação em que não devia chover (o "verão"), não ehe r na estação em que devia chover. Uma vez deduzida essa regra de inteligibilidade, 68 Heródr estende seu uso e ultrapassa a mera questão do clima. Trovr _ na Cítia quando não troveja em outros lugares e, se algu vez acontece uma exceção a essa lei, os citas "espantam- : c o m o se estivessem diante de um p r o d í g i o " ( h o s tér^m thaumãzetai). Do mesmo modo, um tremor de terra é c c - J siderado, por eles, como algo prodigioso (subentende-contrariamente, ao que acontece na Grécia). Outro domín ainda em que age a inversão é o da resistência dos anim_ ao frio: na Cítia, os cavalos, mas não os asnos e as muL suportam o frio, enquanto em outros lugares acontece i inverso. Daí, Heródoto passa para a ação respectiva do ca r| e do frio sobre os chifres dos animais: o calor faz com que sj animais adquiram chifres mais rapidamente, como testemur 2 um verso de Homero sobre "a Líbia onde os cordeiros pass_r a ter chifres rapidamente"; em sentido inverso, o frio faz cc que não os tenham senão com dificuldade. É o que expl porque os bois citas são desprovidos de chifres. Assim, o narrador, para ser persuasivo, passa da posiç^ai de diferença à produção da oposição, logo especificada inversão. Quanto aos citas que vivem nesse inverno excessi trata-se sem dúvida de um povo do norte, embora Heródr (diferentemente do tratado hipocrático Dos Ares, dasÁgi _ e dos Lugare^9) não tire conseqüências disso sobre compleição. 68
Se os citas não têm uma única origem, têm pelo menos um único lugar, um único país? Onde se situa a Cítia? É um espaço europeu ou faz parte da Ásia? Lendo-se Hecateu de Mileto, parece que há alguma hesitação: "povos citas" são mencionados no livro da Periegese que ele consagra à Europa, mas encontram-se também referências a eles no livro que trata da Ásia. Por exemplo: os melanclenos são apresentados como éthnos Skythikón (no Hekataios Európei)-, já os issedons pertencem também ao éthnos Skythikón, mas, ao contrário, figuram na parte asiática ( H e k a t a i o s Asíai).70 Essa incerteza, que parece fazer dos citas um povo entre dois espaços, na fronteira da Ásia e com a Europa, levanta efetivamente a questão dos limites entre os dois continentes. No tratado Dos Ares, das Águas e dos Lugares, é o lago Meótida que se considera a fronteira entre a Europa e a Ásia,71 pertencendo os citas indiscutivelmente â Europa, já que mesmo os sauromatas, que habitam em torno do Meótida, são apresentados como europeus. 72 Outros (Heródoto não precisa quem 73 ) fixam a fronteira no rio Tânais ou no estreito cimério: entre os que assim pensam deveria estar, sem dúvida, Hecateu. De modo convinvente, Myres demonstrou como, indo-se do sul para o norte, o estreito cimério, o lago de Meótida e o Tânais se situam no mesmo meridiano. 74 O importante entretanto é que, defendendo-se uma dessas três fronteiras, se admite uma separação norte-sul entre a Europa e a Ásia. Separação que Heródoto recusa, pois pensa, pelo contrário, que a Europa "se estende em sentido longitudinal, ao longo dos dois outros continentes", 75 a saber, a Líbia e a Ásia. Conclui-se que ele é favorável a uma linha de demarcação não mais na direção norte-sul, mas leste-oeste. A partir disso, o rio Fásis, da Cólquida, serve muito bem como fronteira. O Fásis lança-se no "mar setentrional" ( tèn Boreien thãlassari) e marca o limite norte da primeira península asiática: Daí, uma outra península, que do lado norte começa no Fásis, estende-se ao longo do Ponto Euxino e do Helesponto até o cabo Sigeu, na Tróade; esta mesma península, do lado sul, estende-se pelo mar, a partir do Golfo de Miriandro, adjacente à Fenícia, até o promontório Triópio [na Cária, perto de Cnido] ,76
69
No livro I,77 Heródoto conta que o rei Ciaxares, assedian Nínive, é assaltado por um exército cita que, em perseguidos cimérios, passava pela Média, ao que ajunta o detalhe que, do pântano Meótida até o Fásis, contavam-se trinta de marcha. Enfim, para se vingarem de Dario, os citas env: a Esparta uma embaixada destinada a obter a aliança espartanos, propondo um plano de ação no termo do q t . atacariam pelo norte, "costeando o Fásis", a fim de penet\ na Média. 78 Pode-se, pois, concluir que, nas Histórias fronteira entre a Ásia e a Europa é o Fásis. E também que i Cítia está seguramente situada na Europa. Também à rainha Atossa, que o pressiona a agir, Da-.: responde: "Estou decidido a lançar uma ponte deste continer ao outro e a combater os citas." 79 Uma expedição desse t:: apresentava-se como algo grave, pois seria a primeira ; que um dos Grandes Reis sairia de seus domínios, passar.. da Ásia à Europa. Quanto ao Tânais, marca ele bem o lim:: : Com efeito, quem o atravessa deixa a Cítia: 80 quando sauromatas (isto é, os jovens povos citas que desposaram : amazonas) buscam uma terra onde se estabelecer, atravess^ o Tânais e avançam, durante três dias, para o norte. 81 Mas se a Cítia está na Europa, os citas não são necessar .mente "europeus". Com efeito, na versão das "origens" p:-. a qual se inclina Heródoto, afirma-se que "os citas nômacrij habitavam a Ásia" e que foi sob a pressão dos massagens que partiram para a Ciméria, para a Europa, portanto. Chegac s à Ciméria (tornada desde então a Cítia), puseram-se a perseg_. os cimérios, confundiram o caminho e, após terem deixai o Cáucaso à sua direita, penetraram na Média. Ali vencermos medas e dominaram a Ásia durante vinte e oito an: • "arruinando tudo com sua violência e negligência" (hyt s kai oligoría): "Como tributo, faziam cada povo pagar a s o r . que lhes impunham; e, além do tributo, pilhavam, no cu: de suas cavalgadas, o que cada um possuía." 82 Mas os meei recobraram finalmente sua supremacia, graças a uma trapa;. convidaram os citas para um banquete, embriagaram-r .4 e massacraram a maior parte deles. Todavia, no início do livro IV, Heródoto não recorda e r episódio, mas diz somente que, após vinte e oito anos, . citas retornaram "para casa" (es tèn sphetéreri).8i Assim, 70
citas são caracterizados muito bem pela mobilidade: passando de um espaço ao outro. Para eles, verdadeiramente jião existe separação entre a Ásia e a Europa, tanto que passam de um continente a outro sem mesmo saber exatamente o que fazem (perseguindo os cimérios, erram o caminho). Portanto, estão eles entre dois espaços. 84 É contudo claro que, na narrativa de Heródoto, é a guerra de Dario que irá verdadeiramente "fixá-los" na Europa, fazendo deles ocupantes desse continente que o rei invadiu quando não devia.
71
u
o
11
O CAÇADOR CAÇADO: POROS E APORIA "As longas excursões que Heródoto atribui a Dario não têm caráter histórico" — escreve Legrand a propósito da expedição do Grande Rei na Cítia.1 Como fazem e fizeram muitos outros, Legrand esforça-se em separar, nessa guerra, o que é histórico do que não é, vale dizer: o que verdadeiramente é do que não é. Que importam os detalhes, uma vez que, como escrevia Bury, "é inútil insinuar que, mesmo se Dario certamente não se aproximou do Don, avançou até o Dniéper, ou, mesmo que não tenha chegado ao Dniéper, deve ter parado às margens do Bug, ou ainda, se o Bug está fora de questão, pelo menos ele atingiu o Dniéster..." 2 Se a fronteira do verossímil desloca-se mais ou menos para o leste, de acordo com os comentadores, pelo menos todos concordam que Dario atravessou efetivamente o Istro (o Danúbio). E quanto aos objetivos da guerra? Alguns pensam que a invasão da Cítia só se compreende em vista da conquista da Trácia: para Momigliano, "a expedição cita explica-se como um prolongamento mal feito da conquista da Trácia". 3 Para outros, é o ouro que a justifica: Dario buscava o ouro dos citas ou dos agatirsos, "seja como tributo, seja como presa de guerra, a fim de prosseguir a construção de seu império". 4 Deixo de lado Dario, caçador de ouro. Negligenciarei também Dario, ancestral de Napoleão, bem como Idantirso, o rei dos citas, que prefigura o general Koutouzov, considerando-se esta expedição, como sugere a Cambridge Ancient History, "o 1812 de Dario" — o que levaria então a aproximar a travessia do Istro de alguma espécie de travessia da Berezina. 5 Deixo de lado os critérios de verossimilhança, para passar imediatamente à narrativa da guerra, abordada sob três aspectos:
as injunções puramente narrativas, o caçador caçado e _ e x i g ê n c i a s do discurso etnológico de Heródoto.
AS INJUNÇÕES NARRATIVA Injunções narrativas designam aqui tudo que, na guerr. cita, anuncia, prefigura, delineia as Guerras Médicas; _ expedição cita, observou-se com freqüência, é uma repetiçãn do drama que, da próxima vez, será representado na própr:_ Grécia. De que maneira pode ser uma prefiguração? Er primeiro lugar, porque marca um corte no tempo e perturb_ a organização do espaço: quando Dario atravessa o Bósforo. trata-se efetivamente da primeira vez que um Grande Rei deix. a Ásia para pôr os pés sobre o solo da Europa. Ora, desde prólogo das Histórias, fica esclarecido que "os persas considerar deles a Ásia e os povos bárbaros que a habitam; e crêem qua Europa e o mundo grego são uma região à parte". 7 Ber entendido, os comentadores terão o cuidado de ajuntar qur a expedição contra a Cítia é uma prefiguração, em escaL menor, da invasão de Xerxes, ao que a epopéia das Guerraí Médicas obriga: "Em comparação com elas, a guerra de Dari : contra os citas parece um nada." 8 Mas há mais: a guerra cit_ não é, com efeito, inteligível senão através cio modelo fornecic pelas Guerras Médicas. Compor a narrativa dela implica, pois empregar os esquemas elaborados na Grécia, sobretud: pelos atenienses, para dizer o que foram as Guerras Médicas Dito de outro modo, os citas são, em relação aos persas, o que foram os atenienses com relação aos mesmos persas. Ess_ analogia recorrente — que funciona como modelo de inteligibilidade da expedição cita — leva a que se faça dos citas, nesta ocasião, uma espécie de atenienses. A partir daí, não resta senão relacionar explicitamente as duas expedições, fazendo, no texto, um certo número de remissões de uma à outra, as quais obrigam a que se leia a primeira como uma repetição da segunda. Dario mandou Mândocles de Samos construir uma ponte sobre o Bósforo; 10 Xerxes, por sua parte, impôs um jugo ao Helesponto. A Dario que, antes de passar à Europa, parou um momento para contemplar o Ponto Euxino, corresponde 74
Xerxes que contempla o Helesponto e chora a brevidade da vida humana. Do mesmo modo, ao término das duas narrativas, i fuga de Dario na direção da ponte ameaçada prefigura a fuga de Xerxes para o Helesponto. 11 No momento em que se põem em movimento os dois exércitos, narram-se dois episódios que ocupam, evidentemente, posições homólogas e têm a rr.esma função de sacrifício propiciatório. Eóbazo, um persa, que tinha três filhos no exército, pede a Dario que lhe deixe um deles; Dario, "como a um amigo que lhe pedisse algo moderado, respondeu que lhe deixaria todos os seus filhos" — mandando então degolá-los. 12 Do mesmo modo, o lídio Pítio, tendo seus cinco filhos no exército, pede a Xerxes que isente o primogênito; Xerxes salva a vida dos outros, mas manda matar precisamente o primogênito e, depois de tê-lo cortado ao meio, ordena ao exército que desfile entre as duas metades. 13 Por outro lado, a continuidade entre as duas expedições é sublinhada pela presença de uma mesma personagem, no mesmo papel de conselheiro do rei: Artábano, irmão de Dario e tio de Xerxes, viu muitas coisas e recorda-as — ele é a memória do rei, seu mnémon.u Assim, quando Xerxes convoca a assembléia dos mais importantes dos persas para propor-lhes o ataque aos gregos, Artábano é o único a opor-se à opinião do rei, recordando principalmente a guerra cita: Desaconselhei já teu pai, meu irmão Dario, a entrar em guerra contra os citas, povos que não vivem em cidades; mas ele, esperando subjugar esses citas nômades, não me ouviu. Tu, ó rei, tu te dispões a marchar contra homens que valem muito mais que os citas, homens que são, diz-se, e x c e l e n t e s combatentes tanto na terra, quanto no mar. 15
Artábano acrescenta ainda que depender de uma ponte é correr grandes riscos: se Histieu de Mileto não se tivesse oposto à quebra da ponte de barcos sobre o Istro, o que seria de Dario e do império persa? Do mesmo modo, agora, se os gregos conseguem romper a ponte sobre o Helesponto, que acontecerá a Xerxes e seu exército? Ligação viva entre duas épocas, Artábano sublinha, pois, a repetição: a guerra cita prefigura a expedição de Xerxes, e as Guerra Médicas repetem a expedição de Dario, como se o poder dos Grandes Reis fosse 75
uma máquina voltada para a repetição: uma sorte de compulsa em afirmar o próprio poder para, afirmando-o, destruí-lo. Duas outras curtas seqüências ocupam posições homóloga nos dois episódios. No momento em que os citas e o exérci: persa parecem enfim ao ponto de enfrentar-se numa verd: deira batalha ordenada, surge, entre as duas linhas, uma lebre os citas, de imediato, abandonam a ordem de batalha e sae: em sua caça; Dario, estupefacto, compreende então a qur ponto eles o desprezam e decide abandonar o local. 16 D> mesmo modo, após as Termópilas e o Artemísio, Heródo:. evoca uma cena que lembra a caça à lebre: alguns trânsfugi arcádios são conduzidos diante do rei e, interrogados sobr: o que estavam fazendo os gregos, responderam que celebravar as festas de Olímpia, ou seja, assistiam a concursos cujo prêrrj pela vitória era nada mais que uma coroa de oliveira. A esu palavras, Tritantecmes (filho de Artábano, que portanto te: a quem puxar em matéria de conselhos!) não pode senl declarar: "Grandes deuses, contra que espécie de homem Mardônio, nos levaste a guerrear?" 17 Esses dois episód:: repetem, pois, a mesma decisão em face de um adversá: tido como insignificante. O que se considera como o primeiro motivo dessas duir guerras é a vingança: Dario quer vingar-se dos citas qut perseguindo os cimérios, invadiram a Ásia e aí implantar.. uma dominação atrapalhada. 18 Xerxes, por seu lado, retorr.. os projetos de seu pai e quer castigar os atenienses, qu; "incendiaram Sardes e invadiram a Ásia".19 Citas e ateniense portanto, violaram o domínio persa de antemão. Mas em fa:t desse perigo, uns e outros se esforçarão em convencer s e . vizinhos de que essas expedições ameaçam igualmente a tod sendo o motivo apresentado pelos persas nada mais que i_r pretexto: "O persa não veio contra nós mais que contra vó> : não se satisfará em nos subjugar, poupando-vos" — declarar os citas; 20 a essas palavras fazem eco as pronunciadas pe^ :m embaixadores dos gregos em Siracusa: o persa declara q_t marcha contra Atenas como pretexto, mas tem de fa: "no espírito a intenção de submeter a sua dominação . Grécia inteira". 2 1 Se algumas vezes são os gregos continentais ou, mais ain_i todos os gregos "animados dos melhores sentimentos" c: 76
relação à Grécia que são considerados "como os citas", a homologia aplica-se mais freqüentemente aos citas e atenienses: os citas ameaçam tratar com o Grande Rei ou mesmo abandonar o país, se os reis, seus vizinhos, não se aliarem com eles para repelir o inimigo; 22 do mesmo modo, os atenienses, muitas vezes, ameaçam entender-se com Xerxes ou levantam, como faz Temístocles, a possibilidade de abandonarem a Ática: "...Nós" — declara ele ao espartano Euribíades — "comandando a fróta, tomaremos nossas famílias e iremos para Siris, na Itália..." 23 Enfim, quando certos reis, em resposta aos enviados citas, invocam a justiça para justificar seu não-envolvimento — fostes vós, em primeiro lugar, que desrespeitastes a díke, invadindo a Ásia; hoje em dia não deveis contar senão com vós mesmos, se os persas vos retribuem 24 — somos levados a pensar nas críticas endereçadas pelos espartanos aos atenienses: "Fostes vós que acendestes essa guerra contra nossa vontade; na origem, ela não dizia respeito que a vosso país e agora ganha a Grécia inteira." 25 A assembléia dos reis é de todo estranha. Ela reuniu, com efeito, os chefes dos povos que habitavam "acima" (tò katyperthé) dos citas: os gelonos, os budinos e os sauromatas (que estão dispostos a fazer a aliança); os agatirsos, os neuros, os tauros, os melanclenos e os andrófagos (que se recusam a fazê-la). Esses povos foram apresentados, no correr do livro IV, como misteriosos, fabulosos, primitivos, senão francamente selvagens: os andrófagos, por exemplo, não têm nem díke, nem nómos e são antropófagos. 26 Ora, bruscamente todos esses povos têm reis (mesmo se é a única vez em que serão mencionados), os quais, ainda por cima, declaram tomar sua decisão em função da díke. Pode-se, pois, perguntar se essa reunião não é homóloga, no lógos cita, às embaixadas despachadas, na narrativa das Guerras Médicas, pelos "gregos animados dos melhores sentimentos", a Argos, Siracusa, Corcira e Creta. Já que os gregos buscaram aliados, os citas também tinham de ter feito a mesma coisa, não podendo ter agido de modo diferente. Por outro lado, a assembléia tem uma função bem clara, do ponto de vista da história: dá uma explicação narrativamente verossímil para o fato de que os citas recusarão o combate com os persas; já que não são apoiados por seus vizinhos, "resolveram não fazer abertamente nenhuma batalha organizada". 27 Assim, essa cena nos mostra 77
o modo como operam as injunções puramente narrativas, dois aspectos: em primeiro lugar, se o modelo de inteligibili era o das Guerras Médicas, impunha-se a introdução de u. seqüência que ocupasse a mesma posição das embaixada: estivesse no lugar delas; por outro lado, os citas recusarama entrar em verdadeiro combate por quê? Porque não tinha aliados em número suficiente. Ver-se-á que a essa "raz. narrativa" se ajunta uma "razão etnológica" e que, de ur_ certa maneira, os citas não tinham porque optar por lu:_ numa batalha organizada. Os atenienses disseram, proclamaram e indefinidamer repetiram que combateram pela liberdade dos gregos — atribuindo-lhes Heródoto justamente isto: "Optando pc liberdade da Grécia, fazendo esta escolha, foram eles e ape: . eles que insuflaram todos os outros gregos que ainda n: tinham tomado o partido dos medas; foram eles, portar/ depois dos deuses, que repeliram o Grande Rei."28 Ao contrár o Grande Rei é a própria figura do despótes que torna escra tudo o que toca, sustentando que os homens livres si inferiores, como combatentes, diante de pessoas conduziciis : por um só. 29 Ora, os citas, na medida em que se opõeir . Dario, na medida em que são uma espécie de atenienses, r.i podem igualmente ser senão combatentes pela liberdade. Ass. quando Dario lhes pede que o reconheçam como despó eles o mandam "ir chorar;" 30 os reis dos citas, acrescer/ Heródoto, "por terem ouvido ser pronunciado o nome zi servidão, encheram-se de cólera". 31 Se os citas não fosser: combatentes da liberdade, não poderiam ( m u t a t i s mutanc. ter o mesmo papel que os atenienses. Ao contrário, quan_ Dario conquista outros povos, não se vê em absoluto essa oposição entre escravidão e liberdade. 32 Entretanto, quana Heródoto pinta o quadro dos nómoi citas, não se consta:, que a liberdade tenha nele um lugar destacado: o rei cita t de fato, um perfeito despótes.
O CAÇADOR CAÇADO As injunções narrativas tornam narrativamente admissíve o fato de que a guerra que opôs persas e citas tenha sid: 78
uma guerra sem a menor batalha organizada, uma guerra em que, no limite, os adversários não se vêem, havendo contudo, incontestavelmente, um vencedor e um vencido. Ora, o que vem a ser, no discurso sobre a guerra no século V, uma guerra em que se recusa continuamente o enfrentamento, o encontro sobre um campo de batalha? Os citas fogem continuamente dos persas e, entretanto, tomam constantemente a iniciativa; têm o ar de andar ao acaso e, no entanto, nada mais fazem do que pôr em execução um plano anteriormente traçado. Os persas os perseguem com constância e, contudo, não os apanham jamais. Os citas aparecem pela primeira vez, nas Histórias, como senhores da caça. 33 Um grupo de citas nômades refugiou-se junto de Ciaxares, o rei dos medas, que "lhes confiou seus filhos, para com eles aprenderem sua língua e a atirar com o arco". Assim, eles vão cada dia à caça e preparam a presa que matam. Arqueiros e caçadores, essa é, pois, sua função. Ora, o que eles proporão a Dario na Cítia? Uma caça, uma estranha caça em que se invertem os papéis do perseguidor e do perseguido, em que, enfim, o caçador se torna, efetivamente e sem sabê-lo, a própria caça. Com efeito, um grupo, comandado por Escópasis, recebe a seguinte instrução: hypágein, atrair sobre si o inimigo; no vocabulário cinegético, entretanto, hypágein significa propriamente "levantar a caça". 34 Outra instrução: hypopheúgein, "fugir discretamente", que significa também, no vocabulário da caça, "escapar dos cães". Através desse embaralhamento lexical, não se sabe bem quem persegue verdadeiramente quem: os persas são cães na pista de uma presa, ou é a própria pista deles que é seguida? Numa outra fase (que representa a segunda fase das instruções dadas ao chefe cita), a partir do instante em que o persa se afastasse, seria preciso persegui-lo, caçá-lo. Escópasis, tornando-se abertamente o caçador, deve então atacar, como o cão ataca a lebre. O outro grupo recebe ainda a ordem de atrair e extraviar o persa, mantendo-se um dia de marcha à sua frente. Os verbos empregados são hypexágein, que, por seu prefixo, implica que esse movimento se faz às escondidas, e proékhein, "manter-se à frente", 35 o que também se diz do cão que está à 79
frente do caminho da lebre, o que implica que encontrar: j mesma ambigüidade: quem persegue quem? Trata-se de o persa para fora da Cítia (para, por esse ardil, forçar os r vizinhos a também entrarem na guerra) e depois, feito : mudar bruscamente de direção e voltar para a Cítia: Her6_ emprega hypostrépbein, que se aplica especificamen : lebre — perseguida pelos cães, a lebre estende bruscam. uma de suas orelhas, o que a desequilibra e faz girar no n:. lugar, levando-a a escapar de seuS perseguidores. 36 Cor comportamento ardiloso da lebre, que lembra a brusca re volta da raposa para apoderar-se de sua presa (epistrépk, encontramo-nos explicitamente no campo semântico da Mi Os citas, caça cheia de métis, têm tudo o que é preciso : 2 serem excelentes caçadores. Tratamos até aqui dos planos (tà beboulewnénà).38 Passe agora ã sua realização, que os citas executarão passo a pa;r Primeiro passo: pôr a salvo as mulheres, as crianças e animais, que são enviados para o norte ( e l a ú n e i n prós Bo o simples emprego de elaúnein (empurrar diante de si) r . descrever essa precaução, parece indicar que o conjunt: . cortejo não é visto senão como um grande rebanho qur empurra para os confins escolhidos. 40 Vêm, em seguidr operações propriamente ditas, em que se encontra, no moir.r da execução, o mesmo vocabulário cinegético empregad: planejamento. Quando os persas, que não sabem aondpercebem enfim os citas, seguem-lhes o passo ou, inexatamente, "seguem sua pista" (katà stíbori),^ sem dúv. como se segue uma presa, para não se perdê-la, mas tambt (talvez principalmente) para não se perderem eles própr: Enfim, através de um último ardil da narrativa, terrrrr numa caça derrisória essa perseguição através do espaço : onde o caçador ou perseguidor nunca é o mestre do jogo t perseguido se torna, algumas vezes, o verdadeiro perseguidc No momento mesmo em que parece que Dario irá finalmer obter o que espera desde o início, uma batalha verdade:quando os citas tomam posição em ordem de batalha diar do exército persa, como se fossem atacá-los (bos), uma let passa entre os dois exércitos... Então, na medida em que lebre avança, os citas rompem a ordem de batalha e, se preocupar-se mais com os persas, põem-se a persegu:80
(diókein): é que haviam encontrado uma caça mais engraçada; mais vale, com efeito, uma verdadeira lebre que uma lebre falsa, que não é nem mesmo um verdadeiro caçador. Mas esta lebre, surgindo entre os dois exércitos, remete a uma outra lebre. De fato, no momento em que o exército de Xerxes acaba de atravessar o Helesponto, aparece um prodígio "fácil de interpretar: uma égua deu à luz uma lebre. Isso significa claramente que Xerxes^cünchizirá-Gontra os gregos uma e x p e d i ç ã o muito faustosa e magnífica, mas retornará a seu país correndo, para salvar a própria vida". 43 Xerxes, naturalmente, não dá atenção a isso. Dario, ao contrário, compreende enfim que miserável c a ç a tinha sido para os citas e, c o m o a lebre, sua única e s p e r a n ç a agora é escapar de seus p e r s e g u i d o r e s , ou seja: fugir — e fugir enganando! A lebre, enfim, não é considerada pelos gregos como uma caça difícil ou particularmente gloriosa. Adônis, por. exemplo, quando caça, vê lhe serem destinados por sua amante Afrodite "lebres medrosas e gamos temerosos, todos eles animais prontos a fugir diante do caçador", 44 não leões ou javalis. Mesmo assim, para os citas, a lebre parece ser uma caça mais interessante que Dario. Depois de Heródoto, outras razões foram invocadas pelos autores para explicar essa ausência de batalha entre os citas e Dario. Assim, para Ctésias, Dario atravessou o Istro e avançou durante quinze dias pelo interior da Cítia; depois, os reis trocaram os arcos: sendo o arco cita mais forte (epikratésterà), Dario fugiu, mas com tanta pressa que destruiu a ponte antes mesmo de que todo seu exército houvesse atravessado. 45 Esse tema do arco que não se pode retesar é apresentado, nas Histórias, não no norte, mas no sul, entre os etíopes macróbios: com efeito, esse é o presente que o rei dos etíopes envia a Cambises, que pretende atacá-lo. 46 Ctésias, portanto, transferiu para os citas o que Heródoto atribui aos etíopes, como se os elementos que compõem a figura dos povos dos confins fossem perfeitamente intercambiáveis: o arco pode facilmente viajar do extremo sul para o extremo norte. Além disso, a Cítia e a Etiópia são, ambas, "espaços inacessíveis". 47 Já Estrabão atribui a derrota de Dario não ao "inverno russo", mas ao "deserto dos getas", 48 vasta planície sem água onde, depois de ter atravessado o Istro, o Grande Rei esteve 81
a ponto de morrer de sede juntamente com seu exér Dario era como que um prisioneiro caído na armadilha d deserto; o texto diz apolephteís,49 como um animal "preso uma armadilha". Reencontra-se assim a metáfora cia caça, que haja, desta vez, nenhum caçador à espreita.
OS "HOPLITAS" PERSAS Os persas, no momento em que invadem a Grécia, represer _ - j uma potência formidável: os gregos disseram e repetiram : J f mas não menos disseram e repetiram que os persas não sabcal f combater. Quando Aristágoras de Mileto foi a Atenas : : d tentar convencer a Assembléia a intervir na Ásia, sublinhou ; _ j os persas, não utilizando nem a lança ( d ó r u ) , nem o esc_aJ (aspís), seriam facilmente vencidos:50 "A causa, para eles, de i_ i grave desvantagem" — afirma Heródoto — "era a naturez_ a seu equipamento, que não incluía armadura protetora; e~soldados armados ligeiramente, lutando contra os hoplita:*? Numa síntese de todo surpreendente, eles são chamado: _-• ánoploi, "sem armas". Suas armas não são armas verdadeiras pois só o são plenamente as armas do hoplita.52 "Sem arr quer dizer armados de arcos. 53 Com efeito, os persas ã arqueiros, aliás, os arqueiros por excelência. Desde Os PemI de Ésquilo, a oposição da lança com o arco é muitas vezes tc~_tizada. À inferioridade do armamento (que, fundamentalmc é um modo de dizer que os persas são bárbaros: ser á significa não ser hoplita, não ser cidadão), a isso ajunta-— i falta de conhecimento. Relatando a batalha de Platéia, Heródoto observa: persas não eram inferiores nem em coragem, nem em fera mas, ao mesmo tempo que de um verdadeiro armam;: {ánoploi), careciam de instrução militar (anepistémones) e rã se igualavam a seus adversários em habilidade (sophíe * Eles lançam-se igualmente ao acaso, em pequenos gru: sobre os espartanos, acabando evidentemente massacra. não compreenderam nada do funcionamento da falangt eram incapazes de táxis. Sem essa ordem, que faz com ; m cada um lute em seu lugar, "o combatente mantendo-se ao . _ do combatente", 55 nem a lança, nem o escudo são plenam^- 82
armas. "Sem armas", "inferiores em sophía", "incapazes de táxis", em suma: os persas não sabem combater. Os persas ensinam suas crianças, dos cinco aos vinte anos, "três coisas somente: montar a cavalo, atirar com o arco, dizer a verdade". 56 Além de arqueiros, eles são também cavaleiros e, salvo em Maratona, sua cavalaria terá um papel importante ao longo das Guerras Médicas, não sendo sua superioridade jamais questionada. 5 7 Mas Maratona é precisamente "uma batalha de hoplitas em estado puro. A cavalaria, providencialmente ausente do lado persa, não aparece também do lado ateniense. Os hippeís de Atenas combatem a pé." 58 Não sabendo combater, os persas não podem, por outro lado, compreender o choque de duas falanges: "Quando declaram guerra uns aos outros" — declara Mardônio — os gregos, "procuram o local mais belo e mais plano que possam encontrar, descem para aí e lutam, de modò que os vencedores se retiram com grandes perdas; dos vencidos nem falo, pois são simplesmente aniquilados".59 Heródoto, com prazer, acumula os contra-sensos de Mardônio, que ignora completamente o caráter de agón que há num combate hoplítico 60 — e tudo que faz dele um combate regulado e não a carnificina a que se refere. Assim, não há dúvida de que, na Grécia, os persas são bárbaros, isto é, anti-hoplitas. Ora, na Cítia, o exército de Dario aparece como um exército quase grego: como compreender esta estranha metamorfose? Se a lógica da narrativa leva a que se apresentem os citas como uma espécie de atenienses, os persas, por sua vez, deveriam aparecer como guerreiros bárbaros. Mas isso não acontece. Quando Dario atravessa o Bósforo, leva consigo um exército de setecentos mil soldados de infantaria e cavaleiros, sem contar a armada naval, detalha Heródoto. 6 1 Sem dúvida os persas têm uma cavalaria, mas essa cavalaria, cada vez que encontra os cavaleiros citas, leva a pior e foge — e, detalhe curioso, é a infantaria persa que faz os cavaleiros citas recuarem, pois temem gente a pé ( p h o b e õ m e n o i tèn pézon).62 Eis, pois, esses cavaleiros natos obrigados a se entregar a sua infantaria, cuja vista faz os citas dar meia volta. Ora, no episódio de Platéia, Heródoto observa que os lacedemônios se retiram, fechando os declives do Citerão, 83
"por medo da cavalaria" ( p b o b e ó m e n o i tèn híppori),6) is: por medo da cavalaria persa, sem dúvida (mesmo cavalaria persa inclui muitos outros povos além dos perTem-se, pois, num caso, o puro cavaleiro (isto é, o cita outro, o puro soldado de infantaria (ou seja, o espartadiante do espartano, o persa é este cavaleiro temível, po: não obedece às mesmas regras que ele; mas, diante do c:\ persa é considerado sobretudo como soldado de infanu Mais ainda: no momento em que os persas fogem da C : Heródoto lembra que seu exército "consiste, na maior p de infantaria". 64 Se, pobre caça, eles conseguem escapa- ; I caçador, é em parte porque seus perseguidores estão a ca' age, pois, em seu favor (mesmo se Heródoto não pre. J exatamente como) a oposição cavalaria/infantaria. Não sendo totalmente cavaleiros na Cítia, os persas tam : -gj não são, absolutamente, arqueiros. Ora, o tiro ao arco. J mesma forma que o cavalo, constitui a base da educação p. sal Se, na Grécia, arqueiros e cavaleiros são os persas, na C ; I cavaleiros e arqueiros são citas. 65 Por que essa mudar I quando se passa de um espaço a outro? Por que os persas perdem sua figura de anti-hoplitas r : -g tornarem-se quase-hoplitas? Com efeito, o que quer D_ d quando atravessa o Istro? Penetrar na Cítia e forçar assim se • adversários a entrar numa batalha: uma batalha orderu _jl (ithymakhíe), em local descoberto, conforme todas as regrai do combate hoplítico. Dario exprime muito claramente e t: estratégia, quando manda dizer, através de um cavaleiro. . d rei dos citas: Infeliz, por que foges sempre, quando te seria lícito tomar j J destes dois partidos? Se estimas a ti mesmo a ponto de enfre- _ r meu poder, pára, cessa de vagabundar e combate. Se tens c : - J ciência, ao contrário, de não seres forte, neste caso tarr.-7-B cessa tuas andanças, traze como presente a teu mestre a t e m t a água — e conferencia comigo. 66
Ou seja, de duas, uma — e não existe uma terceira via: e. penetro em seu território, por isso você combate comigo p-.: defendê-lo e, se você for vencido, torno-me senhor de >e. território; se você não combate, é porque reconhece própria inferioridade e eu torno-me também então senhor : 184
seu território: reconheça isso, traga-me a terra e a água — e negociemos. A fala de Dario denota o uso de uma "estratégia tradicional", segundo Garlan,67 estratégia grega, bem entendido: "Quando inimigos invadem as fronteiras de uma cidade grega, o que normalmente lhes cabe fazer, em primeiro lugar, é afrontar uma saída em massa dos cidadãos e afirmar sua superioridade num combate em campo aberto."68 Dito de outro modo, Dario "vê" a Cítia como se se tratasse de uma cidade grega que o ataca, sendo ele igualmente grego. Ele não compreende nada do comportamento dos citas. Interpreta, com efeito, como marcha errante ( p l ã n e ) o que é uma marcha segura de si mesma; e como ação de fuga ( p h e ú g e i n ) , logo, de fraqueza, o que é hypopheúgein, isto é, ação de fugir secretamente e de escapar do cão — e, portanto, um modo ardiloso de combater. Para obrigar o adversário a combater, o invasor pode entregar-se à pilhagem.do território; 69 mas, neste caso, Dario se veria em dificuldade, pois foram os próprios citas que tomaram a iniciativa da "pilhagem", tapando os poços e as fontes, destruindo a pastagem produzida pelo solo e pondo seus rebanhos a salvo. 70 O rei não se depara com um comportamento normal senão quando penetra no país dos budinos: encontrando sua cidade de madeira, deserta, põe-lhe imediatamente fogo.71 Ele poderia também, adaptando a estratégia tradicional, recorrer ao epiteikhismós, isto é, "estabelecer um ponto de apoio ocupado de modo duradouro por uma guarnição"; 72 mas também isso não é possível, já que os citas estão sempre em movimento: assim, quando ele constrói, às margens do rio Oaro, oito grandes fortificações, os citas, agindo como caça ardilosa, escapam de sua rede derrisória, que não captura mais que o vento dos desertos. 73 Na medida em que é um estrategista "tradicional", não espanta que Dario não compreenda nada dos presentes que lhe envia Idantirso: um rato, uma rã, um pássaro e cinco flechas. Para ele, com efeito, esses presentes não podem ser mais que equivalentes simbólicos da terra e da água e, uma de duas, se Idantirso lhe envia presentes, é porque reconhece a própria inferioridade, caso contrário combateria. 7 4 Mas é precisamente na medida em que Heródoto mostra Dario sob os traços de um estrategista "tradicional", que ressalta a alteridade da estratégia cita: era preciso vestir Dario como hoplita, para permitir que os arqueiros citas galopassem. 85
Garlan evoca este trecho de Heródoto num parágrafo intitu "Algumas Exceções que Confirmam a Regra" (da estrat' tradicional) — concluindo: "O espanto e o interesse manifes por Heródoto com relação à estratégia dos adversários Dario constituem uma prova evidente da familiaridade contemporâneos de Péricles com uma estratégia oposta, subordinava a sobrevivência de uma comunidade à prote de seu território." 75 Que seja. Entretanto, desejo antes ressaltar a apare incapacidade da narrativa herodotiana em lidar com modelo que comporta três termos: os gregos, os persas, citas. Quando confrontados aos gregos, os persas são, ef vãmente, "persas", isto é, povos que não sabem comba anti-hoplitas; mas quando estão em face dos citas, não pens senão numa batalha ordenada, em que se ponha em jogo domínio do território, aparecendo como (quase-)hopli isto é, como "gregos". Do ponto de vista estratégico, a narra não lida com mais de dois termos de cada vez: gregos/per: na Grécia; na Cítia, citas/persas, isto é, "gregos". Em su~ gregos e anti-hoplitas de um lado; citas e (quase-)hopli do outro. Se na Cítia os persas se tornam gregos, poder-sepensar que, por permuta dos papéis, os citas apareceri como persas, isto é, como anti-hoplitas. De fato, eles s= arqueiros e cavaleiros e, portanto, estão distantes do comb.r hoplítico. Entretanto, em momento algum Heródoto sublir. ou mesmo deixa supor que eles não sabem combater: s estratégia é, ao contrário, qualificada como invenção inteL:gentíssima (sophótata); mais ainda, não podem apresentarcomo anti-hoplitas, já que são eles que, finalmente, levar vantagem e obrigam o persa a bater em retirada.
COMBATER SEM BATALHA Nem quase-hoplitas, nem anti-hoplitas, que são afinal Or combatentes citas? A pergunta remete ao fundamento de su_ estratégia: não combater diretamente, mas fugir, retirar-se. escapulir. Quando, diante da invasão de Xerxes, os ateniense consultam a Pítia, esta declara aos theoroí, aos enviado? consternados: "Infelizes, por que permaneceis sentados 86
Deixando tua morada e os altos cimos de tua cidade circular, foge para a extremidade da terra (es éskhata gaíes)" ,76 Quando, retornando como suplicantes, a consultam de novo, esperando receber uma resposta menos catastrófica, ela indica-lhes claramente que não devem permanecer ( m é n e i n ) esperando o choque do exército persa — como o hoplita espera o choque da falange adversária — mas, ao contrário, recuar e virar as costas, pelo menos temporariamente. 77 A Pítia aconselha, pois, aos atenienses, a escolha de uma estratégia "cita": não entrar numa batalha ordenada e abandonar a cidade e seu território. Em sua segunda resposta, ela ajunta que somente um baluarte de madeira será apórthetos — isto é: não devastado, o que não pode ser devastado. 78 Conhecem-se as interpretações do oráculo: alguns pensam que se trata da Acrópole, pois ela era, em outras épocas, fortificada com uma palissada, 7 9 preconizando, pois, o abandono do território e da cidade baixa, mas a defesa da cidade alta; outros — principalmente Temístocles — defendem que se trata dos navios e que é preciso fazer um combate naval: abandona-se então o território e a cidade — e a cidade se transporta para seus navios, torna-se verdadeiramente seus navios. 80 Assim, com relação ao combate hoplítico, em que o essencial é "permanecer" (ménein), o combate naval "preconizado" pela Pítia e a guerrilha praticada pelos citas ocupam a mesma posição: ambos começam pela fuga; o baluarte de madeira é apórthetos, do mesmo modo que os citas são áporoi. Dario pratica uma estratégia "tradicional". Uma aproximação entre a estratégia cita e a estratégia pericleana no momento da guerra do Peloponeso seria esclarecedora? Seria uma maneira de apreender a alteridade da conduta dos citas? A estratégia de Péricles consiste nisto: não entrar em batalha ordenada, abandonar o território, defender a cidade e apoiar-se na frota.81 Péricles declara que os atenienses devem aproximar-se o máximo possível da contuda dos insulares, pois o insular é "aquele que menos se sujeita à captura"; 82 trata-se, pois, de sempre escapar, de ser áporos. Mas é claro que a defesa da cidade não tem nenhum sentido para os citas: abandona-se o território para defender-se a cidade, mas, quando não se tem cidade, a própria noção de território deixa de ter sentido. Sem cidades, os citas não têm efetivamente nenhum território? Para eles não existem mais que terras de percurso. 87
À fuga, os citas ajuntam, cada vez que a ocasião se apreser ataques aos persas: operações rápidas, feitas a cavalo, p exemplo, no momento em que o inimigo se ocupa corr . refeição.83 Por essas ações de suas tropas de choque, "anunciaeles os peltastas do IV século. Com efeito, o Laques de Pla ' em que se levanta, no plano de fundo, a questão destas n o _ formas de guerra, menciona a estratégia cita. O que é . coragem? — pergunta Sócrates a Laques, militar de carrei:. É corajoso, responde este último, quem "aceita ficar na fila rechaçar o inimigo em vez de fugir diante dele".84 Laques apóia->± pois, numa "concepção inteiramente socializada da corager militar, recusando toda tékhne".85 Para desmontar sua definiçl . Sócrates começa perguntando-lhe se é possível ser corajc fugindo. Diante de seu embaraço, dá-lhe logo um exempt "À maneira mesmo, creio, dos citas que, diz-se, não combater menos fugindo (pbeúgontes), do que perseguindo ( d i o k ó n t e s l Pensar-se-á ainda" — continua Sócrates — "no elogio qur Homero faz dos cavalos de Enéias que, a crer-se nele, sabia: 'com grande rapidez, aqui e acolá, perseguir tão bem quar.: fugir'; e o próprio Enéias é chamado de 'mestre maquinaci: da fuga' (Méstoraphóboió)". Resposta imediata de Laques: "Ei; tinha razão, pois falava de carros; tu falas dos citas que sã. cavaleiros. Com efeito, é assim que combate a cavalaria deh (tò hippikón), mas a infantaria de falange grega (tò hoplitikóir combate como eu disse." A objeção de Sócrates não põe, po:em causa a definição de coragem, já que nem as armas, ne: o povo são gregos. Sócrates irá então evocar a retirada tátic. dos lacedemônios em Platéia, pois é difícil sustentar que nà sejam gregos. Assim, os citas são bem conhecidos como pov que foge e que persegue a um só tempo, como "maquinadore: de fuga": porventura não combatiam eles como combatiam c heróis homéricos, aos quais o carro permitia deslocamento rápidos? A aproximação com Enéias pode sugerir isso, mas que, aos olhos de Laques, explica seu comportamento é : fato de que são cavaleiros: a alteridade de sua estratégL inscreve-se, com efeito, na distância que separa tò bippikó de tò boplitikón. Dentre as formas indiretas de apreender-se a alteridade da estratégia cita, há ainda uma que nos é sugerida por Fócio. Segundo ele, com efeito, "os habitantes de Élis chamam o? efebos de citas e os espartanos de sidelines",86 Sidelines 88
conforme Liddell-Scott, significa um jovem de quinze ou dezesseis anos. Essas duas qualificações não atuam portanto num mesmo plano: num caso, o epíteto evoca uma população longínqua; no outro, designa uma faixa etária. Por que esse nome de citas? Pelikidis pensa que "os efebos da Elida, que serviam, como os efebos atenienses, na guarda do país, vestiam-se e armavam-se à maneira dos citas" — o que "explica seu nome". 87 Esta conjectura de Pelikidis baseia-se no trabalho de Plassart sobre os arqueiros de Atenas, no qual ele se esforça em demonstrar que arqueiros e cavaleiros arqueiros de Atenas, antes de 476, são na realidade atenienses vestidos de citas, os quais têm o papel de hyperetaí, isto é, de auxiliares ou ordenanças: 88 Atenas, no século V, possui um corpo policial que, criado em torno de 476, durou pelo menos um século, sendo formado de arqueiros citas comprados pela cidade. De outra parte, existia um corpo de arqueiros militares, desde as Guerras Médicas. Antes, não havia em Atenas tropas de arqueiros regularmente organizadas; mas o arco, empregado na Ática para a guerra desde épocas muito antigas, era a arma de um certo número de auxiliares atenienses, que serviam como ordenanças dos hoplitas, montados ou não, muitos dos quais, ã imitação sem dúvida dos jônios, usavam indumentária cita. 89
Se se trata de atenienses, por que a indumentária cita? É nesse ponto que a demonstração de Plassart se torna menos convincente pois, à "imitação dos jônios" antes referida, ajunta ele ainda a moda: "Alguns filhos de grandes famílias tiveram um dia a fantasia de adotar a brilhante indumentária e o armamento dos hippotoxótai (cavaleiros arqueiros) citas e, por moda, provavelmente, este equipamento parece ter-se generalizado." 9 0 Seria evidentemente muito mais satisfatório poder demonstrar que esses jovens (Plassart observa muitas vezes sua juventude) são efebos, sendo a indumentária cita uma espécie de uniforme da efebia. Mas nada autoriza isso (até o presente momento): para tentá-lo seria necessário, pelo menos, retomar o corpus das representações figuradas91 — e não é esse meu propósito. 92 Se, a crer-se em Fócio, os efebos de Élis são citas; se, em Atenas, há ou houve jovens (efebos?) vestidos de citas — a questão que retorna é saber se os citas de Heródoto 89
são, de algum modo, vistos como efebos. Quero dizer: una representação da efebia pode estar sendo elaborada, ain__ que em pequena escala, no próprio texto de Heródoto — ou ela poderia ser uma forma de apreender e de medir . alteridade do comportamento deles e, principalmente, de >_. estratégia? Trata-se, entretanto, de ser mais que prudente, que não sabemos nada sobre a efebia do século V. Os citas reivindicam para si a juventude: eles são "o rm jovem de todos os povos" Çneótaton).93 Ora, como se sabr entre neótatoi e efebos existem relações, senão mesmo urr.. equivalência. 94 Não concluirei todavia que os citas são povo efebo... Chamar os efebos de Élis de citas pode setambém um modo de designar uma esfera de sua atividade efebo é o "hóspede dos fortins de fronteira", 95 o perípoi: isto é, aquele que gira em torno da cidade e percorre a eskhat.s como o cita é um hóspede, sempre em movimento, c : confins da terra. Os citas, enfim, lutam como caçadores. O combate é, par. eles, uma caça recheada de cautela, pontuada com ataqu— de surpresa: ataques no momento em que os persas guardar os víveres ou ataques noturnos. 96 Ora, o ardil, a emboscac; o combate noturno são também traços do comportamen:; do efebo, que é, ao mesmo tenipo, um "pré-hoplita" e ur: "anti-hoplita". 97 Diante dos persas que, na Cítia, aparecer praticamente "equipados" como hoplitas, os citas são, de ur certo modo, "anti-hoplitas", mas não no sentido em que são os persas na Grécia, os quais, antes de tudo, são visto.como anti-hoplitas porque não sabem combater. Portanto, ur.. seriam "anti-hoplitas" porque lutam de modo ardiloso; O: outros, porque não sabem lutar. São apenas indícios e nada mais que isso. Eles permitem entretanto, aumentar a verossimilhança da tática utilizad. pelos citas em face de Dario. Com efeito, se o saber compartilhado pelos gregos pode associar (por pouco que seja) apalavras cita e efebo, bem como a figura do efebo e a d cita, essa aproximação, mesmo implícita, não tem comc deixar de referir-se à representação da forma como combatem Muito esquematicamente, tem-se uma espécie de matriz dr inteligibilidade (ressalvando-se que nem Heródoto, nem seu^ ouvintes a formulariam assim, se é que formulariam): os cita^ 90
lutam como se jamais deixassem de ser efebos. Lutar como efebo: o destinatário sabe o que isso quer dizer (pelo menos pode-se admiti-lo); mas lutar sempre como efebo implica uma contradição, pois sabe-se bem que a efebia é um estágio transitório. Isso poderia ser, portanto, mais uma forma de a narrativa apreender o comportamento dos citas, pondo-o a distância. Em resumo: de ressaltar-lhes a alteridade. Sua escolha estratégica, que se resume, estranhamente, em fazer a guerra e não fazer mais que isso, mas sem entrar em batalha, é justificada, do ponto de vista narrativo, pela recusa dos reis, seus vizinhos, em engajar-se do lado deles. Acabamos de ver como essa estratégia poderia ser, implícita ou indiretamente, esclarecida pela aproximação com os conselhos da Pítia aos atenienses, com a estratégia pericleana, com os questionamentos do Laques e com a efebia. Mas o que fundamentalmente justifica essa estratégia é o nomadismo. Às proposições de Dario, estrategista "tradicional", responde Idantirso, o nômade: ...O que estou fazendo presentemente não tem nada de mais extraordinário do que o que tenho costume de fazer em tempos de paz. Por que não te combato em campo aberto, dar-te-ei t a m b é m a e x p l i c a ç ã o : nós não temos nem cidades, nem plantações que temamos perder ou ver devastadas, o que nos forçaria a lutar convosco... 98
Em suma: a estratégia "tradicional", quer recorra às incursões temporárias, quer ao epiteikhismós, não consegue me capturar. Eis porque é absurda a pretensão de Dario, quando exige dele a terra e a água: minha terra é a que eu percorro; minha água é aquela de todos os poços onde paro para beber. Idantirso responde soberbamente: "Em lugar (no lugar de, ao modo de) dos presentes ( a n t i dóroii) que tu reclamas de mim, eu te enviarei presentes que te convém receber." 9 9 E, pouco depois, envia-lhe isto: um rato, uma rã, um pássaro e cinco flechas. Dario, sempre preso a seu modo de reflexão, com base no "de duas coisas, uma", não compreende evidentemente o jogo em torno de anti; para ele, esses presentes não podem ser senão metáforas da terra e da água, indicando, pois, simbolicamente, submissão: "Ele baseia sua conjectura nisto: o rato vive dentro da terra, alimentando-se do mesmo 91
fruto que o homem; a rã, na água; o pássaro parece-se mui: com o cavalo; já as flechas representavam a deposição, pelo: citas, de suas armas." Mas, para fazer com que essas metáfora: concordassem com seu desejo, Dario tinha de mais ou meno: triturá-las. Só Gobrias, seu sogro, compreende que esse presentes não são em absoluto metáforas e significam contrário do que se pensa: "Se vós não vos tornardes pássara: e não voardes pelo céu, ó persas, ou se não vos tornarde.ratos e não vos enfiardes sob a terra, ou se não vos tornarde: rãs e não saltardes no pântano, não retornareis para casi traspassados por estas flechas." 100 Dito de outro modo: com. sois homens, não tendes absolutamente nenhuma possibilidade de escapar. Não há, para vós, nenhum poros. É o próprio Heródoto, falando na primeira pessoa, quemuito explicitamente, tira as implicações estratégicas d: gênero de vida nômade, apresentando uma sorte de teor:, da guerra nômade: Para um dos negócios humanos, o mais importante, a naçã: cita imaginou, de todas as que conhecemos, a solução mu sábia. O que eles inventaram, c o m o eu disse, de primei:_ importância, é um modo de impedir que algum agressor qut marche contra eles escape ou que alguém possa atingi-los eles não querem ser descobertos.
Eis, apresentada em todo seu desenvolvimento estratégico, _ recusa de entrar em batalha. Em seguida, ele continua: Com efeito, pessoas que não têm nem cidades, nem muralhs.: construídas, mas que levam todos suas casas consigo e sã: arqueiros a cavalo, que não vivem da lavoura, mas de se_ gado, que têm suas casas sobre carroças — como essas pessoi: não estariam ao abrigo dos combates e não seriam impossível: de alcançar? 101
Este é, pois, o verdadeiro fundamento da estratégia citi As injunções narrativas tendem a fazer deles atenienses discurso dos delegados citas à assembléia dos reis não estlonge dos pronunciados pelos atenienses ou pelos "gregoanimados dos melhores sentimentos"), mas, agindo na direçà; oposta^jys "exigências da etnologia" fazem delegjiôrnades. A 92
narrativa herodotiana sustenta as duas proposições em concorrência: os citas são "atenienses" e, ao mesmo tempo, são o contrário deles, enquanto nômades. Idantirso não é Temístocles, uns vivem na polis, os outros a ignoram: esta é a distância intransponível que os separa. Os citas são, com efeito, povo ápolis por natureza. 102 Ao contrário, Atenas pode ser (õmãSa e a Ática ocupada, mas mesmo assim Temístocles sustenta, contra as alegações do coríntio Adimanto, não ser um indivíduo ápolis: Atenas, enquanto pólis, existe sempre e está em seus barcos. Quando Xerxes decide empreender sua grande expedição, Artábano, seu tio e o mnémon da dinastia, lembra-lhe de que tinha desaconselhado Dario a entrar em guerra contra os citas, "gente que, em lugar algum, vive em cidades". 103 Mais tarde, em Abido, quando Xerxes contempla seu exército, os dois homens retomam a discussão, e Artábano apresenta novos motivos de temor, que Xerxes trata de dissipar, sublinhando principalmente que "aqueles contra os quais nós marchamos são agricultores e não nômades". 104 No contexto imediato, essa frase quer dizer: não teremos problema de abastecimento, o país nos fornecerá alimentos; mas ela significa não menos que isto: estes que nós atacamos são homens para os quais a noção de território tem um sentido, homens que se podem capturar, homens com os quais se pode entrar em batalha ordenada. Decididamente Idantirso não é Temístocles, mas Temístocles é pelo menos tão ardiloso quanto Idantirso!
PÓROSE APORIA: HISTÓRIA DE UM DESVARIO Passar de um espaço a outro é atravessar um ribeirão, um rio ou um braço de mar, bem como um deserto. A ação que, numa narrativa, dramatiza a travessia é a construção de uma ponte. O que opera a passagem é portanto a ponte, mas trata-se de um "operador difícil — ou perigoso", 105 na medida em que põe em comunicação dois espaços, estabelece um poros entre dois espaços sem extremidade comum. Nas Histórias, toda translação, pela mediação de um ponto, de fato não se 93
dá a ler sempre como transgressão? Quando, pela prirr. vez, Dario comunica seu projeto a Atossa, a rainha, anuncia que resolvera "lançar uma ponte deste continente ao o continente e entrar em guerra contra os citas". 106 É Mând de Samos quem recebe o encargo de reunir, através de u ponte de barcos, as duas margens do Helesponto: 107 por Dario e seu exército passam da Ásia para a Europa. Mas, atingir os citas, é-lhes necessário mudar outra vez de esp; e atravessar o Istro: são então os jônios que têm a missão estabelecer a segunda ponte sobre o rio.108 Tendo atravessa o Istro, Dario manda quebrar a ponte, mas um mitileno, Cor sugere que seja deixada no lugar, declarando: "Já que tu v_ .5 atacar um país onde não se verão nem terra lavrada, ner cidade habitada, deixa a ponte no lugar e entrega sua gua:_ . àqueles mesmos que a construíram." 109 O argumento pc-parecer curioso: qual a ligação entre nomadismo e manutenç. da ponte? Sem dúvida, na narrativa, essa intervenção anun: o que vai acontecer, pois Coes continua: "Deixa a ponte, pL\ que tenhamos uma via de retorno assegurada, pois temo nâ que sejamos vencidos pelos citas, mas que não consigarr.: encontrá-los ( e u r e i n ) " — e isso justamente porque eles n_ têm nem cidade nem cultura. Dito de outro modo, e é nis> que esse episódio é interessante, não é certo que a por sobre o Istro seja um verdadeiro póros, ou, mais ainda, deve-: , temer que não seja senão um falso póros, mantendo-se, pc. : inteira a aporia dos citas. Ao contrário, quando Creso atrave; . o Hális, ele encontra os persas; quando Ciro atravessa Araxes, encontra os massagetas; quando Xerxes atravessa Helesponto, encontra os gregos; e o próprio Dario, uma \ transposto o Bósforo, submete os trácios — mas quan_ transpõe o Istro, não tem ao mesmo tempo acesso aos citaí Ele crê que essa ponte é um póros, quanto de fato não o é. O espaço cita é um espaço de alteridade, ao qual nenhurr., ponte pode dar acesso. É bem o sentido das palavras de Coeí bem como das considerações de Artábano, que valoriza, jun: de seu irmão Dario, a "aporia" dos citas,110 repetindo o mesrr. depois a Xerxes, seu sobrinho, quando este decide de nov; a passar para a Europa.111 Enfim, é esse o sentido que o própn Heródoto manifesta no esboço que faz de uma teoria da guerr. nômade: é impossível lutar com eles (que são ámakhoi), po: não possuem nem cidades, nem muralhas, nem lavouras, send 94
portanto inacessíveis ( á p o r o i ) . Isso significa que nenhum tipo de poros conduz até eles, 112 que a Cítia é um espaço do outro e que o código de sua alteridade é o nomadismo. Espaço do outro, a Cítia é também um espaço outro, marcando o Istro o corte entre um aquém e um além, como os persas constatarão na prática. Com efeito, tão logo transpuseram a ponte, penetraram num espaço diferente, cuja organização absolutamente não perceberam: entraram num mundo estranho onde, para eles, não existia mais nem direção, nem pontos de referência seguros. Quando percebem os citas, a única coisa que podem fazer é seguir sua pegada (stíbon) e, se perdem as pegadas, param. São, pois, os citas que, se querem e somente se querem, se fazem poros até eles mesmos, constrangendo os persas a se tornarem cães de caça. Mais ainda, perseguindo-os, Dario é incapaz de apreciar a direção em que segue. Com efeito, conforme seu plajio, os citas seguem "em linha recta"; mas Dario, ao enviar-lhes uma mensagem, censura o rei Idantirso pela "vagabundagem" ( p l á n é ) . u 3 Para os persas, que não conheciam as estradas, é como se não houvesse nenhuma estrada aberta; enquanto para os citas, que conhecem seu espaço, existem não só estradas, mas também atalhos, 114 toda uma "rede" de vias de comunicação. Assim, quando os persas, enfim convencidos desta aporia, decidem retirar-se, mostram-se incapazes de orientar-se e são constrangidos, para encontrar o caminho, a seguir suas próprias pegadas, sua própria pista (stíbon) — a pista que tinham deixado na ida. É neste momento da narrativa que, por uma reviravolta, a ponte se torna enfim póros:u5 não mais caminho que permite atingir os citas, mas passagem que permite escapar deles. Sem ela, Dario não teria jamais encontrado uma saída, pois o espaço cita é um espaço de onde não se retorna. É isto que diz explicitamente Heródoto, teórico do nomadismo (no capítulo 46, já citado): "O que eles inventaram, como eu disse, de primeira importância, é um modo de impedir que algum agressor que marche contra eles consiga escapar Qapophygeiri) e que alguém possa atingi-los se eles não querem ser descobertos." É bem isso que dizem os presentes enviados por Idantirso a Dario. 116 Os presentes são enviados no momento em que Dario, cansado de sempre perseguir em 95
vão, já não sabe mais o que fazer, encontrando-se "em plen aporia" ( e n aporíesi eíkhetó). De fato, eles constituem ura resposta a essa aporia. O arauto cita os leva, sem fazs um único comentário, nem mesmo quando o pressior..para esclarecer o sentido ( n ó o n ) dos objetos. Só Gob- a os interpreta corretamente: dados a Dario em plena ap:- a significam precisamente que não há, para ele, nenhum pé a Todavia, ele conseguirá escapar. Antes de tudo porqur citas, lançando-se em sua perseguição, falham. Para explica esse ponto surpreendente, a narrativa fará uma reviravol:.. i opacidade do espaço cita para Dario irá, de agora em di:.~ : j agir em seu favor, enquanto a familiaridade com o prc:~ I espaço prejudicará os citas. Com efeito, eles procuram E . onde não está: enquanto este segue com dificuldade próprias pegadas, aqueles tomam a estrada mais cuna Chegam então muito antes dele na ponte. 117 Voltando a:\ buscam-no onde poderia encontrar forragem e água, es: cendo-se de que o inimigo seria de todo incapaz de loca : j tal itinerário. Em seguida, a ponte que, no começo da exped... não era senão um falso poros, torna-se um verdadeiro p - \ no momento mesmo em que é falsamente cortada. E é m e s J porque os jônios fingem cortá-la, que ela pode represeseu papel de saída do território cita. 118 Assim, o jogo e : = poros e aporia constitui um modo de "dizer" a fronteira: - i basta lançar uma ponte sobre o Istro para atingir os c _ posto que eles habitam um espaço outro.
96
C
A
P
Í
T
U
L
O
FRONTEIRA E ALIERIDADE A questão da alteridade levanta a da fronteira: onde passa a cesura entre o mesmo e o outro? Os citas são nômades e, espacialmente, a Cítia é um espaço outro, na medida em que é um lugar "inacessível". Com efeito, como na experiência de Dario, não basta lançar uma ponte sobre o Istro para penetrar verdadeiramente na Cítia: o persa esgotou-se numa caça derrisória de que saiu vencido, sem nunca ter visto seus adversários. Mas esta mesma alteridade, isto é, esta ausência aparente de fronteira fixa não se separa da narrativa da guerra, já que não se poderia apreendê-la independentemente dos atores da narrativa. Num sentido, o Istro é bem a fronteira (os citas não buscam ultrapassá-lo e, em sua fuga, quando Dario o passa, está a salvo); mas, em outro sentido, não é (ele não dá "acesso" aos citas, cuja aporia permanece inteira). De um ponto de vista simplesmente espacial, a fronteira pode, pois, entender-se em muitos sentidos. Dois outros episódios do lógos cita dão margem a que se levante a questão da fronteira, não mais geográfica, mas cultural: em primeiro lugar, as desventuras de Anácarsis e de Ciles, dois citas de alta linhagem; e, em seguida, a história de Zálmoxis, personagem de identidade incerta. Esses dois textos oferecem duas aproximações opostas da fronteira: Anácarsis e Ciles "esquecem-se", com efeito, da fronteira entre gregos e citas, sofrendo as conseqüências disso; ao contrário, no episódio de Zálmoxis, os gregos do Ponto fazem tudo para que não se possa "esquecer" a distância que os separa dos getas. 1 A questão da fronteira cultural desemboca na questão do recorte do espaço divino: o mundo dos deuses é sensível às fronteiras geográficas e humanas? Mais ainda, esses dois trechos apresentam o narrador em ação: na história de Anácarsis e
de Ciles, ele faz seu destinatário crer que vê os gregos vis J pelos citas; por outro lado, na história de Zálmoxis, mesa os getas vistos pelos gregos do Ponto. Portanto, as c _ J histórias se correspondem de uma parte e de outra da lia* imaginária da fronteira: na primeira, os gregos são "vis:: pelo outro; na segunda, o outro é "visto" pelos gregos.
ANÁCARSIS E CILES: PERCURSOS DE UMA TRANSGRESSÃO As histórias de Anácarsis e de Ciles devem ser lidas r - J conjunto: uma com a outra, uma em relação com a oura I Anácarsis e Ciles conheceram, ambos, destinos "análor: 1 (paraplésià). Essa similitude justifica, com efeito, que secai reunidos, mesmo que a cronologia os separe, Ciles "teaiJ vivido muito depois de Anácarsis". Heródoto os apresa • como dois exemplos de uma regra de comportamento 3 s citas, e a narrativa, que se abre com o enunciado da regai fechar-se-á com sua retomada: os citas, "também eles, repuc_:ti terrivelmente a adoção de costumes estrangeiros, sejam I de outros povos, sejam sobretudo os dos gregos". 3 Essa ; g lição que o destinatário é levado a tirar de um e de o_ episódio. A partir dessa organização absolutamente clara do tei 1 gostaria de formular uma hipótese relativa à lógica deste lóz fl não existe uma homologia entre os diferentes códigos oper.: • por essas duas narrrativas? Em primeiro lugar, quem são os atores das duas histónaJ Do lado de Anácarsis, encontramos, pela ordem: Anácarí .1 os habitantes de Cizico (que estão celebrando uma fer_ I um cita (que denuncia ao rei o comportamento de Anáca- I e, enfim, o rei Sáulio que, como define Heródoto, vem a í : • próprio irmão de Anácarsis (é ele quem mata Anácarsi; j essa lista é preciso ainda ajuntar uma personagem divir_> J Mãe dos Deuses. Pode-se notar desde já que a Mãe dos D e u s J como Dioniso no outro episódio, são somente os des: - I tários "mudos" de um culto. Com efeito, a narrativa rã 1 nos diz se lhes agrada ou não o culto que lhes rendem e s a J novos devotos. 98
Em seguida, examinemos a história de Ciles: nela intervêm Ciles, os boristenitas (que celebram a festa de Dioniso Báquico), um certo boristenita (o que revela tudo aos citas), os principais citas que vêem a cena e a contam ( e s é m a i n o n ) aos outros citas, além de Octamasades, irmão de Ciles, que os citas proclamam seu chefe (é ele igualmente quem mandará executar Ciles). Em segundo lugar, quem são Anácarsis e Ciles? Heródoto esforça-se em reconstituir a genealogia de Anácarsis, produzindo a testemunha que autoriza seu discurso: Timnes, o homem de confiança de Ariapites.4 Anácarsis era o tio paterno de Idantirso; Idantirso era filho de Sáulio; Sáulio e Anácarsis são portanto irmãos. 5 O ponto importante é que Anácarsis pertence à família real cita. Quanto a sua biografia, é das mais sumárias: "Anácarsis, após ter visto uma grande parte da terra ( g ê n pollén) e de ter demonstrado importantes sinais de sabedoria ( s o p h í e n pollén), retornou ao país ( é t h e a ) onde vivem os citas." Diz-se o mesmo de Sólon, que viu uma grande parte da terra ( g ê n polléri) e deu mostras de sophíe,6 Em Heródoto, Anácarsis não é contado no número dos sábios, não tem nenhum contato direto com Sólon, mas tanto um quanto o outro são pessoas para as quais há ligação entre viagem e sophíe. Ciles, por seu lado, é não somente da família real, mas também é rei; além disso, é bastardo. Seu pai teve inúmeros filhos naturais, e Ciles não é mais que um dentre eles. Distingue-se entretanto de seus irmãos, pois sua mãe é grega: "Ele nasceu de uma mulher de ístria e não de uma mulher natural daquele país ( e p i k h o r í e s ) " ; 7 além disso, sua mãe "ensinou-lhe a língua e as letras gregas". 8 Ciles é, pois, uma personagem dupla, meio cita e grego pela metade: ele é díglossos. Tendo seu pai sido assassinado, obteve a realeza e a mulher do pai. Mas Heródoto não nos diz como subiu ao trono, como se qualificou para a realeza, uma vez que seu pai tinha pelo menos um filho legítimo, Órico 9 — do mesmo modo que não explicara anteriormente por que Anácarsis não tinha obtido a realeza, que foi dada a seu irmão. O confronto dessas duas "biografias" permite uma observação relativa à lógica da narrativa: as viagens de Anácarsis e o bilingüismo de Ciles são dois elementos que, na narrativa, 99
ocupam estruturalmente a mesma posição, desempenha no seu desenvolvimento, a mesma função. ^Viajar. _t díglossos é a mesma coisa, uma e outra são coisas perig: pois ambas conduzem ao esquecimento da fronteira e, p, à transgressão. 10 Deslocamentos: como Anácarsis e Ciles se deslocam? espaços transpõem? No que respeita a Ciles, o esquer . simples: movimento de ida e volta entre os éthea dos (palavra que significa toca dos animais, a morada habite_ a cidade dos boristenitas, Ólbia. Ele parte do espaço n espaço mais animal que humano, onde se sente pou: vontade por detestar o "gênero de vida" cita — e dirigtpara a cidade, esclarecendo a narrativa que deixa sua tr : em tôiproasteíoi, no subúrbio, 11 nessa zona intermediar:. 3 que não se está mais nos domínios dos éthea, nem aindr. domínios da ásty. Tudo se passa como se os citas não pude ir além daí: eles não são bilíngües. A narrativa detalha seguida, que Ciles, daí em diante só, transpunha as mura : J que são a marca precisa do recorte no tecido espacial: delimitam um além e um aquém; além, uma vez ultrapasr. _j a zona intermediária do subúrbio, fica o espaço cita, esr. de percurso; aquém, uma vez fechada a porta (pois os não podem nem mesmo ver o que se passa no inter j encontra-se um espaço grego, o espaço da cidade. No fir um mês ou mais, Ciles refazia o mesmo caminho em ser : inverso, com as mesmas etapas. Mas "como era preciso que lhe sobreviesse desgraça' história, desta vez, torna-se a narrativa de sua última v i a ; ; : Com efeito, ele ganha de novo os éthea citas, mas os tendo visto o que não deveriam ver, levantam-se contra e í l que então se refugia na Trácia. Tendo feito o que fez, o esr. • cita lhe é daí em diante interditado. Os citas, prontos c . a combater, reúnem-se às margens do Istro. Os trácios fazer a mesma coisa e se ajuntam na outra margem do rio. O Iíc-B evidentemente, serve como fronteira entre citas e trác:: ^ Há negociação entre os dois reis: "Entrega-me meu irrr_ d que eu te entrego o teu." Ciles é entregue e, tão logo trar.-r ±> de novo o Istro, foi morto. O texto detalha isso com u^a palavra, taútei\ deste lado, aqui. 14 Ele não pode pisar de nc d o espaço cita a não ser para morrer. Portanto, essas sã: 2 etapas da última viagem de Ciles. 100
Já Anácarsis deixou completamente o espaço cita. Ora, após uma longa ausência, retorna para os éthea15 dos citas. Fazendo escala em Cizico, colônia milesiana, encontra-se ainda num espaço grego; depois, desembarca na Cítia e embrenha-se imediatamente por uma região arborizada chamada Hylaía. O cita percébe-o e previne o rei. Este, vendo a cena, mata logo Anácarsis. Nesse segundo caso, o esquema espacial é simples: passagem de um espaço grego ao espaço cita. Parece-me entretanto que se impõem duas questões: a Hylaía é, de uma parte à outra, um espaço cita — ou é um lugar particular, quiçá marginal? Em segundo lugar: qual é a posição da cidade de Cizico com relação ao "espaço grego"? É ela um lugar particular desse espaço? A essas interrogações, o simples exame dos deslocamentos no espaço não permite dar resposta: apenas a consideração do conteúdo semântico e dos códigos culturais permitirá isso, eventualmente. As ações: a narrativa relativa a Anácarsis é muito mais esquelética que a outra. Tendo visto os cizicenses celebrar a Mãe dos Deuses, faz ele um voto de que, se voltar para casa, lhe oferecerá cerimônia semelhante. Tão logo retorna, cumpre a promessa, como exige a piedade — contudo, Sáulio o mata com uma flecha. Quanto a Ciles, a história, mais desenvolvida, ressalta três pontos principais. Cada vez que entra na cidade, ele tira a "roupa" cita (stolé), para pôr a vestimenta (esthés) grega e, mais amplamente, adotar o gênero de vida grego ( d i a í t e i Hellenikêí). O segundo ponto diz respeito a suas relações com as mulheres: ele recebe a realeza e a esposa de seu pai, Opea; por outro lado, desposa uma outra mulher, a qual instala na casa que mandou construir para si em Ólbia. Há nisso um problema: Opea é qualificada como asté,16 o que os tradutores e comentadores costumam verter como "indígena", isto é, segundo eles, ela é cita. Quanto à segunda esposa, é apresentada como epikhoríe, isto é, "do país", mas os tradutores e comentadores explicam que se deve entender que nasceu na cidade, logo que é grega. Ciles não teria portanto feito nada mais que repetir o que o pai havia feito antes dele. Dito de outro modo, os tradutores invertem aqui o sentido habitual das palavras e, no limite, uma pode ter o sentido da outra e vice-versa: epikhoríe significa indígena, mas também "da cidade"; e asíéquer dizer "da cidade", mas também "indígena"... 101
Pode-se entretanto recordar o início do capítulo 78, er que se diz que Ciles nasceu de uma mulher de ístria e não, absolutamente, de uma indígena (oudamôs epikhoríe; ^ marcando-se então a oposição entre a cidade e o país justamen:; pelo emprego de epikhoríe. Enfim, não se pode pensar que as ações de Ciles são ma: complexas? Ele desposa Opea (Opóia), mulher da cidade, vive porém no espaço cita; 17 depois, em Ólbia, desposa urr_ mulher epikhoríe, uma indígena, que entretanto reside n: espaço grego, ou melhor, no recinto de sua vasta habitaçã: que não se sabe se pertence completamente ao tecido espacr da cidade. O princípio de sua ação seria, pois, a confusãc misturar os gêneros de espaço. Resta, enfim, o aspecto religioso: ele pratica a religião greg. e quer iniciar-se no culto de Dioniso Bãkkheios (telesthêna: Essa piedade, como no caso de Anácarsis, lhe valerá a morte pois o que é piedade para os gregos torna-se, para os citas. : cúmulo da impiedade. As duas narrativas estabelecem, pois, do ponto de vist. de sua lógica, uma equivalência entre viajar e ser bilíngüe A partir daí, o número e a complexidade das seqüências poder variar, mas todas falam da confusão e de seus perigos, sobretud: no domínio religioso, uma desordem a que apenas a mortr pode pôr fim. Convém agora retomar as duas história; levantando as diferentes seqüências de seu conteúdo semântico e descobrindo a rede de códigos culturais em que Sr inscrevem e que, ao mesmo tempo, exprimem. O que é a Hiléia? Em grego, a palavra significa "arborizado", mas também selvagem, um lugar pertencente à floresta muito freqüentemente ao espaço das margens e, portanto. : selvageria. Mas o que é a Hiléia na Cítia? Para Heródoto, 18 a Hiléia situa-se ao longo do mar, sendo margeada a oest^ pelo Borístenes e limitada ao norte pelo território dos cita lavradores. Sua particularidade reside no fato de, contrariamente ao resto do país, ser coberta de árvores e mesmo de árvorede toda espécie. A essa primeira particularidade ajunta-se um. segunda: é na Hiléia que Héracles encontra a Mixopárther.: com a qual se une; e é dessa união, segundo os gregos d: Ponto, que surgirá o povo cita. Se essas observações permiter considerar a Hiléia um lugar um pouco à parte no espaç: 102
cita, são contudo insuficientes para precisar o sentido dessa particularidade. Quando, nos textos ulteriores, fala-se da Hiléia, ressalta-se seu aspecto de floresta espessa e profunda. Assim, Pompônio Mela refere-se a ela como um lugar "onde se encontram as florestas mais consideráveis deste país";19 Valério Flaco ajunta: "Em nenhuma parte as florestas produzem árvores mais altas e mais espessas: as flechas perdem sua força e caem antes de atingir o cimo delas." 20 Mas a flecha de Sáulio atingiu sim Anácarsis. Do mesmo modo que Ólbia, fechadas as portas, oferece a Ciles um abrigo para fazer o que os citas não devem ver, assim também a Hiléia, onde se embrenha (katadús) Anácarsis, fornece-lhe um esconderijo para celebrar aquilo que os citas não querem conhecer. Mas, além da proteção que oferece essa floresta espessa, não há um outro elemento que a qualifica para acolher uma festa em honra da Mãe dos Deuses? Trata-se do único local arborizado da região e o culto da Mãe é ligado às árvores e plantas. Segundo a tradição, foram os argonautas que fundaram o culto da Mãe dos Deuses em Cizico.21 Com efeito, para reparar o assassinato do herói Cizico, os argonautas, sobre o monte Díndimo, "ao abrigo dos carvalhos elevados, os mais altos de quantos estão enraizados no solo", estabeleceram o santuário da deusa, tendo sido o próprio Argos que, num cepo de vinha, talhou o xôanon desde então reverenciado. 2 2 Parece portanto que, no interior do espaço cita, é a Hiléia que se presta melhor para uma "transplantação" do culto da Mãe dos Deuses. Na história de Ciles, o esquema espacial é simples: há Ólbia, de um lado, e a Cítia, do outro. Por que, quanto se trata de Anácarsis, há antes de tudo Cizico, depois a Hiléia? Por que essa disjunção? Não se pode imaginar um cita surpreendendo Anácarsis em Cizico, enquanto celebra com os cizicenses (como Ciles fazia com os boristenitas) uma pannykhí— e mandando-o matar no momento em que desembarca na Cítia? Questão inútil? Não necessariamente. Parece entretanto impossível que a narrativa siga essa trama. Com efeito, a distância entre Cizico e a Cítia é muito grande, já que um mar extenso as separa: em Cizico, Anácarsis fez a promessa de, se voltasse para casa são e salvo, oferecer à 103
Mãe dos Deuses um sacrifício (thysein) e instituir, em su_ honra, uma vigília sagrada (pannykhís). 2 3 Essa prece não ter nada de despropositada, já que Cibele é também uma "dam_ do mar".24 Ela é invocada nas tempestades, 25 os marinheiro; oferecem-lhe ex-votos 26 e, "sobre os promontórios da cost_ mísia, seus templos se erguem como faróis de salvação". Do ponto de vista espacial, pode-se, pois, considerar qur a Hiléia é um território cita, o duplo de Cizico, com a diferenç_ de que Anácarsis não tem mais o direito de festejar aí _ Mãe dos Deuses: sua piedade torna-se então impiedade. A confrontação Cizico/Hiléia reforça a singularidade observad. antes com relação a este lugar: ele encontra-se em territóri : cita, mas é também uma outra coisa além do território cita Quanto a Ólbia, está fora do espaço cita, e suas muralha: são o próprio signo desta extraterritorialidade, muralhas qur interrompem o olhar e dissimulam o. que se passa no interior mas ela não escapa totalmente do território cita: um olhe estrangeiro pode sempre pôr-se no alto da muralha. É precisamente pela metáfora do olhar que a narrativa designa a ambigüidade espacial de Hiléia e de Ólbia: mesmo abrigad: pela floresta ou pelas fortificações, um olhar pode sempre, por acaso ou pela vontade de prejudicá-lo, ver você. Há enfim uma última relação a enfocar: além do problerm concernente à posição de Cizico-Hiléia e de Ólbia relativamente ao espaço cita, levanta-se a questão do lugar que ocupar Cizico e Ólbia com relação ao espaço grego. Questão à qua. na verdade, não é possível responder por enquanto: uma e outra são cidades coloniais. Para Heródoto, Ólbia é um "empório" habitado pelos "gregos";27 mais precisamente ainda os boristenitas "dizem que são milesianos", 28 o que signific_ que Borístenes é colônia de Mileto e que existe, entre as dua? cidades, um tratado garantindo igualdade de direitos aoí cidadãos de ambas ( i s o p o l i t e í a ) . Cizico, por seu lado, é igualmente colônia de Mileto e é provável que a isopolitéia existisse também entre as duas cidades. 29 Quanto a saber se os cizicenses e os boristenitas são marginais com relação ao espaço grego, não mais no plano da geografia, mas do sabe: compartilhado, nenhum indício permite ainda que se delineie uma resposta. Qual é a posição da Mãe dos Deuses e de Dioniso com relação ao espaço cita, de um lado, e com relação ao espaço 104
grego, de outro? Essa é a questão que se levanta agora, o que nos leva a perguntar qual é a falta cometida por Anácarsis e Ciles, em que foram eles contra os códigos culturais dos citas (do modo como nos sugere a narrativa herodotiana, sem dúvida)? No que respeita ao espaço grego, deve-se perguntar por que escolheram a Mãe e Dioniso e não, por exemplo, Apolo ou Hera. A última questão que surge no horizonte desses poucos capítulos das Histórias diz respeito à posição que ocupam a Mãe e Dioniso no panteão grego: por que essas duas divindades foram escolhidas por dois não-gregos, sendo percebidas pelos citas como critério de "grecidade"? Mas antes precisemos quais são as vozes que se manifestam. Quem fala? O texto dá-se como uma narrativa (o que é indicado especialmente pelo uso do aoristo na exemplificação de uma regra expressa na intemporalidade do presente). 3 0 Essa característica explica o pequeníssimo espaço.deixado às marcas de enunciação: trata-se, de algum modo, de uma espécie de regra que conta e se conta a si mesma; mas trata-se também do destino, esta voz que não é de ninguém, da qual ninguém pode escapar, sequer os deuses. É isso que o texto diz muitíssimo bem como conclusão da trágica história de Anácarsis: este homem foi destruído como se disse mais acima ( h ó s p e r próteron eiréthe) — alojando-se, com efeito, nessa não-pessoa o infrangível destino; ou ainda, agora com referência a Ciles: "como era preciso que lhe sobreviessem males" (epeíte dè édee hoi kakôs genésthaí).31 A citação, justamente desenhada, do código trágico é uma forma, para o texto, de dizer que ignorar a fronteira é tão insensato quanto querer escapar ao destino. O "eu" herodotiano intervém entretanto em duas ocasiões: uma primeira, no capítulo 76, para demonstrar que Anácarsis foi morto por seu próprio irmão: "Ouvi dizer ( é k o u s a ) por Timnes, homem de confiança de Ariapites..." Informação ainda mais importante na medida em que aproxima o destino de Anácarsis do de Ciles. Deve-se observar que, para exprimir a conclusão de sua demonstração, o narrador retorna à terceira pessoa e ao presente {"isto...": "que ele saiba" que foi seu irmão que o matou); esta passagem para o "intemporal" exprime bem que o resultado da demonstração foi estabelecido para sempre e pode, impessoal, ressoar até nos infernos. 32 A segunda vez é para relatar o lógos dos peloponésios: Anácarsis teria sido enviado em missão pelo rei dos citas, 105
para tornar-se discípulo da Grécia (tês Helládos mathetés de volta a seu país, teria declarado que, dentre todos as gregos, só "os lacedemônios eram capazes de falar e de retrucar com sábia medida". É claro que esse lógosé completamente acidental, já que não ilustra a regra, mas pelo contrán a contradiz: longe de odiar os nómoi estrangeiros, os cita buscam conhecê-los. A personagem Anácarsis aparece _ somente como uma sorte de investimento dos lacedemônio; que o utilizam para marcar a própria excelência em relaçã. aos outros gregos, apresentados como tarefeiros sem nenhur talento. Heródoto, após haver mencionado essa tradição, elimina-a como ficção forjada ( p é p l a s t a i ) na Grécia, pelo: próprios gregos, com vistas às suas próprias querelas. Ao lado dos peloponésios, Heródoto faz ouvir a voz der citas: "Declaram não conhecer Anácarsis, por ter ele viajad: pela Grécia e adotado costumes' estrangeiros." 34 A mesm. declaração é retomada, quase com os mesmos termos, n: c o m e ç o do capítulo 78, sob a forma de " d i à xeiniká te nómaia kai Hellenikàs homilias", aplicando-se agora a Cile^ Trata-se, portanto, da falta cometida explicitamente pela.duas personagens. Mais precisamente, pode-se mostrar como eles foram contra os códigos culturais citas. Na lista das divindades do panteã: cita não figuram, com efeito, nem Dioniso, nem a Mãe dc> Deuses: não há lugar para eles, mesmo sob outro nome; pode-se estar certo de que, se não fosse assim, Heródoto nãc deixaria de dar a tradução dos nomes. Por outro lado, uma das regras fundamentais da religião cita é não usar neir imagens, nem altares, nem templos, exceção feita apenas para Ares.36 Ora, como Anácarsis celebra a festa em honra da Mãe Se toca tamborins, leva também em torno do pescoço imager.r Cagáhnata) da deusa. Já Ciles, uma vez dentro de Ólbia, oferecia sacrifícios "segundo os costumes dos gregos", freqüentando os templos e sacrificando sobre os altares. Com Ciles levanta-se ainda o problema da iniciação. Tudo acontece como se os citas pudessem suportar a transgressão, caso ele se contentasse em ir a Ólbia e em viver aí à moda grega, o que não excederia exageradamente seu bilingüismo. Com efeito, quando ele deixava Ólbia e retomava o costume cita para voltar aos éthea dos citas, tudo estava acabado: não 106
havia, pois, nem mistura, nem "transbordamento" dos nómoi de um espaço para o outro. A iniciação parece, pelo contrário, transtornar essa divisão. Por quê? Precisamente porque ela é a marca de uma mudança de estado duradoura e irreversível — porque ela não existe senão na distância instaurada entre um antes e um depois. Assim, Ciles poderia, como costumava fazer no fim de sua estada, retomar o costume cita, mas não seria menos um iniciado de Dioniso Báquico. Entende-se, pois, que os citas não pudessem suportar isso: há, desta vez, "transbordamento" 37 e, portanto, sanção. Do "lado grego", a gravidade dessa iniciação é indicada, na narrativa, pela intervenção divina. Mais exatamente, o texto parece sustentar, em concorrência, dois pontos de vista opostos: em primeiro lugar, a iniciação não é mais que "a ocasião, o pretexto" 38 para a punição de Ciles, a quem, de qualquer maneira, "deveria sobrevir males"; em segundo lugar, trata-se de algo grave, já que logo antes o deus envia um "enorme prodígio" ( p h á s m a mégiston). A oposição, entretanto, resolve-se na medida em que as duas frases não se situam no mesmo plano: a primeira é a intromissão, propiciada pelo narrador, da voz anônima do destino e da tragédia; a outra, expressão, na narrativa, da importância de uma iniciação. Ciles mandou construir para si, em Ólbia, uma casa "vasta e suntuosa", num recinto cercado por um muro guardado por "esfinges e grifos de mármore branco". 39 Essa morada apresenta algo de deslocado, de exagerado: ela é mais bárbara que grega. Os grifos, que são como que seus guardiões, são seres dos confins: "guardiões do ouro", eles vivem, segundo alguns, entre os arimaspos e os hiperbóreos. 40 Mandando construir esse recinto, Ciles marca, no interior da cidade, sua diferença. Ora, qual é o prodígio que lhe enviará "o deus", isto é: Zeus? O raio, que irá abater-se precisamente sobre o recinto e reduzi-lo inteiramente a cinzas. 41 O que busca dizer-lhe Zeus através dessa intervenção, no momento em que Ciles está a ponto de ser iniciado? Do mesmo modo que o raio, destruindo seu muro, suprime a separação entre dois espaços, a iniciação que ele está prestes a receber abole, de um certo modo, a distância entre o espaço grego e o espaço cita — sendo essa transgressão de um espaço sobre o outro coisa grave. Mas é claro que Ciles não pode captar o sentido do prodígio, levando a cabo a cerimônia que o conduzirá à morte. 107
Heródoto tem grande cuidado em precisar as circunstâ de cada morte: vimos como considera importante estabel e registrar, na narrativa, que Anácarsis foi morto por irmão Sáulio. Com efeito, a intervenção dos dois irmã explica-se facilmente: como são os parentes mais próxi vêm a ser quase que duplos de Anácarsis e de Ciles, res vãmente, mas representam o "duplo bom", posto que logra permanecer totalmente fiéis aos nómoi citas, sendo, neles que a transgressão provoca mais horror. Assim, decerto os mais qualificados para punir e fazer desapar os culpados, para os quais o solo cita passa a ser, daí diante, interditado. 43 Não contentes de executá-los, os c matam também sua memória: eles foram tão esquecidos : . mesmo não existiram nunca — se "hoje alguém pergunta citas sobre Anácarsis, dizem que não o conhecem..." 44 Anácarsis e Ciles escolhem honrar duas divindades : _ provocam sua morte: a Mãe dos Deuses e Dioniso. Por c . essa escolha? Por que essas divindades e não outras? Pergu^ 3 vã, pode-se retrucar, já que a narrativa se resolve tão be_ Sem dúvida. Mas o que se pode tentar apreender é o c_representam a Mãe dos Deuses e Dioniso nas Histórias e século V — ou, de maneira menos ambiciosa e mais prec;^ eu diria que a Mãe dos Deuses e Dioniso aparecem no próp: lugar onde se cruzam um certo número de códigos cultura permitindo à narrativa de Heródoto que se formulem algum: hipóteses sobre a topografia desse lugar. Cizico e Ólbia estão situadas às margens do espaço greg: Pode-se, em nome de uma homologia, dizer-se o mesmo Mãe dos Deuses e de Dioniso? A Mãe é apresentada sob este nome apenas nesse ún:: capítulo das Histórias-, encontra-se, pois, sem maiores precisc es ligada a Cizico.45 Se, por outra parte, admite-se a equivalên: _ entre a Mãe e a deusa do monte Díndimo, deve-se obser-_ que há mais uma menção a ela, através desse topônimc Enfim, se admitirmos, como faz a tradição, a equivalên: . entre a Mãe dos Deuses e Kybébe ou Cibele, encontrarem: nova ocorrência no livro V: os jônios incendiaram Sarde: diz Heródoto, e especialmente "o templo da deusa loc: Kybébe" (epikboríes theou).47 Deusa "indígena", pertence eh ao espaço persa: com efeito, "é esse incêndio que os perr_ 108
alegam, em seguida, para queimar, em contrapartida, os santuários dos gregos". 48 Na narrativa da guerra, Cibele é posta do lado dos persas, sendo, pois, uma das divindades que "receberam a terra persa em herança", às quais Xerxes se dirige antes de transpor o Helesponto. 49 Enfim, Cibele é um dos três únicos deuses para os quais Heródoto não propõe um equivalente "em língua grega": no "dicionário" de Heródoto não há tradução para o nome de Kybébe.50 No total, seu único ponto de ancoragem no espaço grego é, pois, Cizico e os únicos gregos a lhe renderem culto são dos cizicenses. Quanto a Dioniso, tem ele uma posição muito mais destacada e figura num grande número de panteões. Quais são os povos que, nas Histórias, lhe rendem culto? Ele é adorado pelos etíopes 51 — ainda mais, 52 o texto precisa que "os etíopes macróbios [...] habitam em torno da cidade santa de Nisa e conduzem cortejos em festa em honra de Dioniso" ( a n á g o i i s i tàs hortás). Ele é (com Urânia) o único deus de quem os árabes reconhecem a existência, sob o nome de Orotalt. 53 O Egito é marcado por sua presença: com efeito, traduzindo-se Osíris "em língua grega", obtém-se Dioniso. 54 Quando se passa do sul para o norte, o encontramos entre os trácios, que o reverenciam juntamente com Ártemis e Ares.55 Um povo trácio, os satras, jamais submetido a alguém, possui mesmo um "santuário oracular de Dioniso, situado sobre as altas montanhas [...], onde é uma mulher que profere os oráculos". 56 Muito mais longe, rumo ao norte, Heródoto nos informa que os gelonos celebram festas para Dioniso, honrando-o de duas maneiras: "em honra de Dioniso celebram as trienais e as bacanais." 57 Em território grego, Dioniso aparece explicitamente em Bizâncio, onde tem um templo;58 em Esmirna, onde os habitantes lhe oferecem uma festa "fora dos muros"; 59 há coros trágicos em Sicião, os quais lhe foram atribuídos por Clístenes; 60 ele é, enfim, invocado sob o nome de íakkos durante as cerimônias de iniciação em Elêusis. 61 O rápido inventário dos locais onde sua presença é atestada não pretende, de modo algum, sugerir que não apareça alhures: as Histórias não são, além de todo o resto, uma monografia sobre Dioniso. Honrado em lugares longínquos, mas também reverenciado na Grécia, ele pode estar por toda parte.
109
Segundo Heródoto, para saber quem recebeu Dionis: quem seria preciso questionar suas origens. Como ser quando se trata de origens, muitas vozes se fazem ou\ dos gregos, a dos egípcios e a do narrador. Dioniso (assim como Héracles e Pâ) é tido pelos grr como um dos deuses mais recentes (neótatoi). 6 2 Diz-se nasceu de Sêmele, filha de Cadmo. Por outro lado, os gr. dizem "agora ( n y n ) que, tão logo nasceu, Zeus o cost em sua coxa e o transportou para Nisa, que fica além do E na Etiópia". 63 Para os egípcios, Dioniso pertence, ao contr à terceira geração dos deuses: houve os oito, depois os e, enfim, os nascidos dos doze, sendo Dioniso um de Também contam eles quinze mil anos entre Dioniso e o Ámasis.64 Como vimos acima, há equivalência entre Dior. e Osíris. Os egípcios dizem igualmente que "DeméteDioniso reinam nos infernos". 45 Quanto ao narrador, opõe-se ele de fato ã posição gregos. Estima, em primeiro lugar, baseando-se em "investigações", que quase todos os ounómata dos de foram trazidos para a Grécia do Egito: pynthanómenos k: 66 heurísko eón. No que diz respeito a Dioniso, o trajeto í ; seguinte: "O que, para mim, é mais verossímil é que Melar aprendeu as coisas relativas a Dioniso de Cadmo de Tir: dos que vieram com ele, da Fenícia, para a região ag chamada de Beócia"; "com efeito, foi Melampo quem de., conhecer aos gregos o 'nome' de Dioniso, o sacrifício e procissão do falo" — tó te oúnoma kai tèn thusíen kai pompèn toü pballoü.67 Conseqüência disso: o discurso dos gregos torna-se insust tável. É o que Heródoto sublinha, fazendo intervir a cronolotde Dioniso, filho de Sêmele, "a mim", há no máximo mil s seiscentos anos, enquanto no cômputo egípcio se con:. r quinze mil anos de Dioniso a Ámasis; ora, os egípcios conhec; i "seguramente" ( a t r e k é o s ) essas cifras, "tendo sempre conta2J e tendo sempre anotado por escrito os anos". 68 Conclusão: os gregos enganam-se e confundem o momer : em que conheceram o deus com o momento de seu nascimer Segunda conclusão: os gregos conheceram Dioniso . mesmo modo que Pã e Héracles) "mais tarde" (hysteron) c . t os outros deuses. 69 Enfim, Dioniso tem decerto uma "origr 110
estrangeira", mas, para Heródoto, é isso que acontece com a maior parte dos deuses gregos. Eis, pois, se nos ativermos somente às Histórias, os locais em que são conhecidos a Mãe dos Deuses e Dioniso, bem como quem são eles. Se a Mãe dos Deuses parece verdadeiramente marginal, o cortejo de Dioniso (aparentemente) percorre todo o espaço, tanto o não-grego, quanto o grego. Mas a questão mais interessante que o texto levanta diz respeito a saber em que medida Dioniso e a Mãe dos Deuses podem servir como critério de "grecidade" tanto para os citas e os gregos das Histórias, quanto para os verdadeiros destinatários do discurso, os ouvintes de Heródoto. Quando o narrador demonstra, no livro II, que Dioniso é de origem egípcia, utiliza, em certo momento, um argumento a contrario sem dúvida importante: "Não direi que coincidem fortuitamente o culto rendido ao deus no Egito e o que lhe é rendido pelos gregos; a ser assim, esses ritos deveriam estar em harmonia [ser homótropa] com os costumes dos gregos e sua introdução não seria recente." 70 Dito de outro modo: uma das provas do caráter estrangeiro de Dioniso, para o narrador, está no fato (que ele se contenta em enunciar como algo natural, sem sentir necessidade de desenvolvê-lo ou glosá-lo) — no fato de que suas práticas cultuais não são homótropoi às dos gregos. Seu culto seria, pois, a lembrança de seu caráter não-grego. Esta é a primeira proposição que se pode descobrir nas Histórias. Há uma segunda, sem dúvida menos explícita mas não menos interessante, que aparece na passagem consagrada aos gelonos. Com efeito, os gelonos habitam o território dos budinos, mas construíram uma cidade de madeira com santuários consagrados aos deuses gregos e, "a cada três anos, fazem festas em honra de Dioniso e celebram as bacanais". Essas informações, dadas desse modo, são surpreendentes. Heródoto sabe disso muito bem, tanto que ajunta imediatamente um elemento explicativo para esclarecer o comportamento dos gelonos: se eles se comportam assim, é "porque antigamente (tò arkhaiorí) eram gregos". 71 Assim, a construção de uma pólis, a fundação de santuários e a celebração de festas em honra de Dioniso são postas no mesmo plano, constituindo ações que perdem seu caráter surpreendente tão logo o 111
ouvinte é informado de que os gelonos têm ancestrais gre^ Neste último caso, portanto, Dioniso, para restringirmo-" a ele, funciona como critério para definir-se o caráter do _ é grego. Há contradição entre as duas afirmações? Não, elas não se situam no mesmo nível nem se referem ao me tempo: num caso, trata-se das origens; no outro, dos diar hoje. Também a expressão "celebrar bacanais" ( b a k k h e ú e . , mesmo se não era na origem homótropos às práticas gre pôde muito bem, com o tempo, tornar-se uma maneira designar um grego. Dioniso, em todo caso, está habituado às margens do Negro. Numerosos testemunhos o confirmam, o que não d entretanto o fato de o testemunho de Heródoto ser o : antigo. Pippidi assinala, por exemplo, em Calátis, os Xe Dionysia, isto é, o banquete ritual organizado em h de Dioniso, 7 2 bem como a existência de um culto púb^ de tíasos, de um santuário do deus e de um mês chan Dionísio. 73 Em resumo, uma presença muito ativa (bem ate na época helenística), que vale não somente para Calátis, para toda a extensão da Cítia Menor.74 Numa digressão do tratado sobre a Dança, Lucian: quem se atribui a obra) fala da moda tradicional da d báquica na Jônia e no Ponto: A dança báquica [...] tem uma tal influência entre os povc : lá que, quando c h e g a o m o m e n t o , se e s q u e c e m de t o ; : resto e ficam assentados dias inteiros, contemplando os os coribantes, os sátiros e os boukoloí (oficiantes dionisía Os que praticam essas danças pertencem às melhores farr são os primeiros de cada cidade e estão longe de enru': r sentindo ao contrário mais orgulho com isso que com a güidade, as honras e a dignidade de sua raça. 7 5
Essa dança tinha já "uma tal influência" em Ólbia quí. Ciles quis ser iniciado? O tíaso era já composto pelas melh famílias da cidade? Infelizmente, Heródoto nada diz sobre composição, contentando-se em mencionar o "tíaso", o prova como qualquer precisão seria supérflua e como quai; ouvinte saberia o que entender. Já se levantou a questã: se os tíasos não seriam reservados somente às mulher-. Não, pelo menos em Ólbia, já que Ciles, quando os ci:_ 112
vêem, participa dele. No que diz respeito ao estatuto, oficial ou não, do tíaso, constata-se que em Ólbia tudo se passa de fato abertamente, nas ruas da cidade. Donde impõe-se uma última observação: foi lembrado com freqüência, como indício do caráter exterior de Dioniso com relação à pólis, o fato de que, mesmo depois de adotado, o deus não entrou na cidade. Quando se evocam os lugares onde se desenrolam os mistérios, trata-se sempre da zona selvagem do agros-, pode-se também lembrar que os habitantes de Esmirna celebram sua festa "fora dos muros" (éxo teíkheos);77 enfim, pode-se mencionar o nome que lhe é por vezes atribuído, prò póleos, "diante da cidade". Mas se retornamos a Ólbia, somos obrigados a admitir que a iniciação e a procissão acontecem no interior da cidade, já que Ciles mandou fechar as portas. Quando os citas, postados no alto da torre, vêem a procissão, Ciles é descrito, numa palavra', como "celebrando as bacanais", o que significa que a pompéexige que os iniciados cantem e dancem em honra do deus. Quanto à Mãe dos Deuses, quem lhe rende culto? Heródoto contenta-se, também neste caso, em mencionar os "cizicenses", expressão que designa os habitantes de Cizico, tanto homens, quanto mulheres. Para Hasluck, pelo contrário, é claro que os gregos consideravam seu culto como "bárbaro", sendo sua religião "provavelmente para os nativos [...]: a Mãe foi sempre uma estrangeira para os cizicenses, ainda que uma estrangeira com quem tinham de conciliar-se". 78 Ora, como prova do caráter bárbaro de seu culto para um grego, Hasluck dá o exemplo de Anácarsis no texto de Heródoto. Mas Anácarsis é assassinado pelos citas precisamente por ter introduzido na Cítia um culto vindo de Cizico! Quanto à segunda afirmação de Hasluck, a insersão do "provavelmente" dispensa-o decerto de fundamentá-la. E então? Se damos crédito a toda uma tradição difícil de datar, que ecoa especialmente num escólio de Aristáfanes e Jâmblico, os zeladores da Mãe eram recrutados antes de tudo entre as mulheres e os efeminados. 79 Pode-se também mencionar a lenda, transmitida pela Suda e por Fócio, sobre a introdução de seu culto em Atenas: 80 um metragirta, tendo desembarcado na Ática, iniciava as mulheres; os atenienses mataram-no, precipitando-o no báratro; segue-se um loimós-, um oráculo, consultado, incitou-os a construir um 113
recinto e a consagrá-lo à Mãe dos Deuses. Assim se exp justifica-se a construção do Metrôon, que marca a entra Mãe dos Deuses na ágora — lugar que se tornou ain depósito oficial dos textos públicos. 81 No fim do século Mãe tem um edifício na ágora, parecendo portanto q questão de seu caráter "estrangeiro" está longe de colo em termos simples: 82 rejeitada, marginal, admitida no pr' centro da cidade, ela pode ocupar todas as posições. Para fechar esta digressão com um exemplo no li lembremos o testemunho de Clemente de Alexandria. Es_ ele: Grande bem advém ao antigo rei dos citas. Como um de súditos reproduzisse na Cítia os mistérios de Cizico em da Mãe dos Deuses, tocando tambor, fazendo retinir os cím e levando no pescoço essas imagens que usam os sacer de Cibele em sua coleta mensal, ele o atravessou com flechas, por ter-se amolecido entre os gregos ( á n a n gegeneménorí) e por ter querido ensinar aos outros citas cost doentios de efeminados ( t h e l e í a s nósou).85
Anácarsis tornou-se um zelador da Mãe, um verdad metragirta. Por outra parte, Clemente de Alexandria não a menor dúvida de que a prática do culto de Cibele é critério para distinguir-se o caráter do que é grego, isto é defeito. Anácarsis, de fato, foi morto não por ter introdu nómoi estrangeiros entre os citas, mas por "ter-se amolec: ou, melhor, por ter perdido sua virilidade entre os grego por ter querido ensinar "esta doença de mulher" aos c: Cibele é portanto grega e os gregos são mulheres! Os citas, por seu lado, recusam totalmente a Mãe e Dior aplicando a regra enunciada por Heródoto. Sáulio vê Anác e o mata de imediato, sem uma única palavra, como se t explicação ou justificação fosse inútil: o crime é patente e castigo imediato. Com Ciles, o cenário é ligeiramente d:: rente: Dioniso é não somente estrangeiro, mas ainda faz fi louco; portanto, duas "razões" para os citas recusaremLevanta-se assim a questão das relações entre Dioniso e mar. Nas Bacantes, Penteu é privado da razão por Dioniso, que conduz para o Citerão vestido de mulher,84 precisamente porc o rei recusa obstinadamente reconhecê-lo e quer "cortar114
o pescoço". Tem-se aí um primeiro tipo de mania, mas existe ainda um segundo, aquele com que estão às voltas Agave e suas companheiras que erram sobre as encostas da montanha, pois elas também "insultaram" Dioniso, "contestando que fosse um deus". 85 Poderia ser citado também o exemplo das filhas de Mínias em Orcômeno, ou o das filhas de Elêuter em Eleutera. A cegueira, a perda do bom senso, a mania são, pois, punições pelo não reconhecimento do deus. 86 Uma vez instaurada essa lógica da mania, compreende-se que Penteu, quando descoberto empoleirado no alto de sua árvore, morra por ter "visto coisas proibidas" e ter "perseguido aquilo de que se deve fugir".87 Mas com Ciles temos uma situação, em muitos aspectos, inversa. Com efeito, os que estão em emboscada no alto de uma torre ( l á t h r e ) são os mais importantes dos citas, sendo eles portanto que vêem o que não deveriam ter visto — e sendo eles todavia que matam; eles também são os que recusam o deus, sendo entretanto os que falam de mania e acusam os outros de loucura. E o boristenita, quando vem buscá-los, finge falar sua linguagem, para na verdade zombar mais deles: com efeito, ele retoma as palavras que Heródoto atribui aos citas para explicar sua conduta 88 e chega mesmo a referir-se a Dioniso usando o termo daimon. A incompreensão de Dioniso por parte dos citas — este será o ardil do narrador — não é um modo de dizer que não é louco quem se crê e que, afinal, os verdadeiros loucos são antes aqueles que se apressam em denunciar a loucura do outro? Mas essa incompreensão é um ardil ainda num outro sentido: o que os citas, no comportamento do tíaso, tomam por mania, se tem toda aparência da mania, não tem dela precisamente senão a aparência. Dito de outro modo: entre mania e bakkheúein há toda a distância existente entre quem recusa e quem admite Dioniso. Mas os citas são de fato incapazes de ver além das aparências e seu discurso não sabe, pois, o que diz. Neste ponto, encontramos o discurso do etnólogo como discurso de verdade: discurso daquele que sabe porque conhece as circunstâncias. Os citas, eles, não fazem diferença, por exemplo, entre plumas e a neve 89 e chamam plumas o que conviria chamar de neve, porque os flocos de neve se 115
"parecem" com plumas; do mesmo modo, eles não distingu entre estar às voltas com a mania e celebrar as bacan porque aparentemente se trata da mesma coisa. Tais foram, portanto, a vida e a morte de Anácarsis e Ciles, por terem esquecido que existiam fronteiras.
ZÁLMOXIS: O PITÁGORAS DOS GETAS Quem é Zálmoxis, ou Zámolxis, ou Sálmoxis? Essa hesitação com relação ao nome da personagem não é mais que o come:: de uma longa história de problematização da identidade. E ; é homem, demônio ou deus? Não se sabe bem. Quando nasce No livro IV das Histórias de Heródoto, capítulo 94. Quar. _ morreu? Vive talvez ainda na Romênia? Quais são as princip_ etapas de sua carreira? De início, ele era geta. Em segui_. tornou-se dácio, transformando-se num grande sacerdi ou num rei com "grande erudição filosófica", como infor: . Jordanès. Depois, com a chegada dos romanos e com a aji do cristianismo, desapareceu ele de seu país para sobrevi- t nas tradições dos godos (geta=godo): Afonso, o Sábio, vê n : : alguém que era "maravilhosamente sábio em filosofia". Ek conhece em seguida um longo eclipse, antes de reaparece desta vez em casa, quando se desenvolve na Romênia, er torno de Pârvan e de seus discípulos, um movimento àt tracomania. Segundo Mircea Eliade, "Zálmoxis é valoriza., porque encarna o gênio religioso dos daco-getas, porque, er: última instância, representa a espiritualidade dos autóctonr de seus ancestrais quase míticos, vencidos e assimilaci: pelos romanos". 90 Deixo neste ponto a história de Zálmoxis, que nos levar., muito longe por caminhos onde encontraríamos Mircea Eliac: e outros, bem como a sombra dos xamãs, essas personager estranhas que não deixam de inquietar. Limitar-me-ei aqu: . seu "nascimento", relevando, de início, todos os traços qu; fazem de Zálmoxis uma espécie de Pitágoras dos get. Trata-se de uma imagem elaborada sobretudo pelos greg: moradores do Ponto e do Helesponto, de quem Heródoto i toma diretamente: pynthánomai, informei-me junto deleeis o que dizem. 116
Quem é Zálmoxis? Para os gregos do Ponto,91 não há dúvida: Zálmoxis é um ãnthropos, um ser humano e não, como se deixa entender no capítulo 94, um daímon ou um theós. Ele é de origem geta. Quanto a seu estatuto, trata-se de um antigo escravo. Do mesmo modo, sempre para os gregos do Ponto, Pitágoras é filho de Mnesarco, originário de Samos — e foi, durante certo tempo, o mestre do escravo Zálmoxis. Vê-se logo como, do ponto de vista da alteridade, procedem os gregos do Ponto: aquele que entre os gregos não passa de um escravo é tido pelos getas como um ser divino. Para desdobrar plenamente essa observação, é preciso considerar um outro termo, um outro país: o Egito. Com efeito, segundo uma tradição, 92 Pitágoras (como também Sólon, como também Tales) viajou ao Egito, uma vez em sua vida, para instruir-se junto dos egípcios, os homens mais antigos do mundo ou, em todo caso, os mais antigos após os frígios. 93 Sua antigüidade lhes assegura, portanto, um acréscimo de sabedoria com relação às populações mais jovens. Pitágoras é discípulo dos sacerdotes egípcios. Mas, quando se trata dos getas, a situação inverte-se, e Pitágoras aparece como o mestre, em todos os sentidos, de Zálmoxis. Indo do sul para o norte, produz-se, pois, uma degradação do saber; 94 degradação que se explica, em parte, pela idade das populações: se os egípcios são os mais "velhos", os citas, por seu lado, são os mais "jovens" dos homens, 95 tendo exatamente mil anos. No capítulo que Estrabão consagra a Zálmoxis, apresenta-o também como escravo de Pitágoras, mas atribui-lhe, além disso, uma viagem ao Egito, onde pôde adquirir conhecimentos astronômicos. 96 Ao lado dessa identidade civil que lhe atribuem os gregos do Ponto, Pitágoras foi dotado de identidades mais indecisas e flutuantes. Ora, a mesma flutuação encontra-se no texto de Heródoto no que concerne a Zálmoxis. Em primeiro lugar, Pitágoras conheceu um certo número de existências anteriores, das quais tinha o privilégio de lembrar-se. 97 Situado na outra extremidade da escala dos seres, ele é, a crer-se em certos fragmentos, um verdadeiro "deus: Apolo vindo para junto dos hiperbóreos". 9 8 Mas o qualificativo que exprime melhor essa flutuação é o de demônio: "Entre os deuses e entre os homens, há um homem divino, o daímon, o intermediário, isto é: Pitágoras." 99 O daímon não é definido nem por uma 117
representação figurada, nem por um mito, mas por um ritual Aristóteles, em sua obra "sobre os pitagóricos", 100 escreve, que existem, "de um lado, os deuses", de "outro, os horaen.»' e um terceiro termo constituído por "seres do gênero de Pitágoras": ele é, pois, um dos gloriosos representantes des>. raça de daímones, um "bom demônio cheio de amor pe!: homens". Em Heródoto, Zálmoxis é sucessivamente qualificado c o r daímon, theós e ãnthropos, o que demonstra ser-lhe possf. r ocupar as três posições simultaneamente ou circular cor nuamente de uma a outra: "Quem morre vai para junto át Zálmoxis, um ser divino (...apothnéiskein heoutoús nomízo. iénai te tòn apollymenon parà Sálmoxin daímona):"101 essi era a crença dos getas. A palavra daímona, colocada e~ aposição, parece constituir uma intervenção do narrador nj narrativa: este fornece uma informação que deve permitir _ ouvinte grego, não prevenido, saber em que esfera localir Zálmoxis; entre parà Sálmoxin e daímona, que não deper. d; de nomízousi, há um tempo de silêncio. Zálmoxis pertence . essa categoria de intermediários que nós, gregos, chamarr.. de daímones. Na frase seguinte, o narrador fornece uma nc . informação sobre as denominações de Zálmoxis, que é iga_ mente conhecido pelos trácios sob o nome de G e b e l é r empregando então a expressão tòn autón toüton ("alg;.deles a este mesmo o chamam Gebeléizis" 1 0 2 ): o toüton. . modo algum necessário, (Heródoto poderia, com efe;: escrever tòn autón ou tòn autòn daímona) pode pareci uma hesitação do narrador; toüton, por sua própria i m p cisão, deixa abertas todas as possibilidades e vem con que nuançar a afirmação precedente: do mesmo modo Zálmoxis tem dois nomes (pelo menos), assim tam_ pode ser um demônio (ou uma espécie de demônio uma outra coisa qualquer. Se o mensageiro enviado para junto de Zálmoxis rr. (ele é jogado no ar para cair sobre os dardos erguidos), " julgam que o deus lhes é favorável". 103 Contrariamente termo daímon, a palavra theós não se deve a uma intervedo narrador, que se contenta em informar a opinião getas (já que usa o verbo dokéeí). A quem designa tl Seguramente àquele a quem se envia o mensageiro, 1 118
Zálmoxis; mas também e sem ambigüidade, theós poderia designar deus em geral, a divindade, um pouco como em nossa expressão "meu deus do céu". Como a narrativa tem o cuidado de deixar intencionalmente abertas essas possibilidades, o ouvinte e o leitor são levados a admitir que a identidade de Zálmoxis é mais flutuante que nunca. O emprego ambíguo que se faz da palavra theós, que designa ou apenas Zálmoxis, ou o deus do céu em geral, ou os dois ao mesmo tempo (o que é o mais provável), explica como, algumas linhas adiante, pode-se passar a um outro theós que designará, desta vez, não somente o deus do céu, mas ainda o deus grego do céu. Assim, em seu próprio movimento, o texto exprime uma flutuação com relação à identidade de Zálmoxis: flutuação não acidental, mas constitutiva de sua personalidade e análoga à que pudemos constatar com relação à verdadeira natureza de Pitágoras; enfim, flutuação que o termo daímon, a um só tempo, exprime e contém. Um outro traço característico da narrativa é o emprego de todo um vocabulário do saber: a Zálmoxis, que é aquele que sabe ( e p i s t ã m e n o s ) , opõem-se os trácios, "gente que vive miseravelmente" ( k a k o b í o n ) e não é "muito esperta" (hypaphronestéron).104 Aristóteles, na História dos Animais, qualifica os pintassilgos de kakóbioi:w5 eles levam uma vida difícil, sofrendo para "encontrar" sua vida (bios), isto é, seu alimento; ao contrário, outros pássaros, citados anteriormente, são apresentados como eubiotoie eumékhanoi: eles encontram facilmente seu meio de vida, pois sabem ater-se a ele (agarrá-lo; assumi-lo; capturá-lo); sua diãnoia, sua "inteligência", como escreve Aristóteles, lhes permite encontrar facilmente a subsistência. Qualificar um pássaro de kakóbios implica, pois, dizer também que não é inteligente, não sabe adaptar-se a uma situação difícil. Do mesmo modo, os trácios são desprovidos da inteligência prática que lhes permitiria tirar o melhor partido possível de sua situação sem dúvida difícil; essa deficiência é sublinhada e amplificada pelo emprego do qualificativo hypaphronestéron, indicando que são meio estúpidos. Zálmoxis, ao contrário, apesar de suas origens getas, por ter vivido em Samos e ter tido contato com os gregos, tornou-se um homem sábio, alguém que sabe ( e p i s t ã m e n o s ) justamente 119
qual é o díaitan, isto é, o "regime", mas também o "luga onde se vive" e o "modo de vida" da Jônia ( I ã d a ) — expressa que, na frase de Heródoto, encontra-se contraposta ao tem.; kakóbioi, aplicado aos getas. 106 Sabe ele também os étbes bathytera, fórmula que tem uma coloração jónica e intelectual. Enfim, sabe ainda que teve como mestre Pitágoras que, com: escreve Heródoto, é um sophistés e "não o menor". O term: sophistés não tem, nessa época, nenhuma conotação pejorativa nem nada a ver com o que será o sofista de Platão; significa apenas alguma coisa como "sábio", "poeta", "vidente", com. na expressão "os sete sábios". Os sophistaí, na quinta ístmicc são os poetas; 108 no Reso, Orfeu é chamado de sophistés. Deve-se ainda observar que kakóbioi, bathytera (nessa acepção e hypaphronésteroi são hápax em Heródoto. Embora não Sr possa concluir disso que se trata de empréstimos, o fato nã: deve ser desprezado. Zálmoxis, pálido reflexo de seu mestre, consegue devera: impressionar esses rústicos que são os getas. Pitágoras e os pitagóricos são efetivamente gente de saber: eles formam uma comunidade de pessoas sábias ( e i d ó t e s ) ou cultivada: (.pepaideuménoí);110 e a tradição, desde o século V, não cess^ de apresentar Pitágoras como um homem de grande sabe: Heráclito o cita como exemplo de polymathés,lu Empédocle.e íon de Quios referem-se a ele como alguém que mais sabe. até demais. 112 Assim, a oposição entre o saber e a ignorância, entre as pessoas que sabem e a multidão grosseira vem a ser efetivamente um dos componentes da representação que se faz de Pitágoras e dos pitagóricos. O texto de Heródoto explora essa oposição, ecoando a tradição ou, melhor, pondo-se em consonância com ela. Ao lermos os capítulos de Heródoto, descobrimos ainda uma outra constelação, formada por uma série de três termos que têm um ar familiar e implicam-se mutuamente, de maneira não unívoca, incitando a perseguirmos o movimento de ida e de vinda entre o pitagorismo e o "zalmoxismo": trata-se da imortalidade, da coragem e da refeição em comum. Tão logo fala dos getas, Heródoto imediatamente ajunta que eles são athanatízontes.Ui Ele retoma esse qualificativo algumas linhas abaixo e, num outro livro das Histórias, quando volta a mencionar os getas, escreve, como se se tratasse de 120
uma expressão feita, "os getas que crêem em sua imortalidade" (Gétai boi athanatízontes) .u4 Além disso, Heródoto não é o único autor a associar o povo geta à imortalidade ou às práticas de imortalidade: Platão, Diodoro, Arriano, Luciano, entre outros, retomam essa associação. 115 Parece portanto plausível considerar que, no saber compartilhado dos gregos, geta e imortalidade se encontravam associados: boi athanatízontes seria uma sorte de epíteto natural desse povo do norte que eu traduziria como os getas "que praticam a imortalidade" 116 — deixando voluntariamente imprecisas as modalidades dessa associação. Com efeito, o texto não responde à questão das relações existentes entre essa imortalidade e Zálmoxis. Ele seria o único mediador? Caso não existisse Zálmoxis, os getas ainda seriam chamados de "os que praticam a imortalidade"? No capítulo 95, parece que a imortalidade está reservada apenas para os iniciados no zalmoxismo; algumas linhas abaixo, contudo, o texto fala dos trácios (em geral) chorando a "morte" de Zálmoxis. Além disso, no início do capítulo 94, encontramos a seguinte definição: "Os getas praticam a imortalidade desta maneira: acreditam que não morrem e que os finados vão para junto de Zálmoxis, um ser divino." De acordo com essa definição, cada um dos getas está portanto concernido e implicado: Zálmoxis vem a ser um mediador que vale para todos. Esta é a primeira aparição da palavra athanatizein na literatura grega. Poderíamos, pois, pensar que Heródoto a criou para descrever os getas e exprimir sua originalidade. Muito pelo contrário, acredito que ela faz parte do saber compartilhado pelos gregos daquele tempo, tendo sido retirada por Heródoto de seu "contexto" (primeiramente ou após algum outro?), a fim de ser aplicada aos getas. O fato de ela ser empregada pela primeira vez nas Histórias não tem evidentemente senão uma significação relativa, já que nossa documentação sobre os textos contemporâneos ou anteriores a Heródoto é mais que lacunar. Por outra parte, empregar essa expressão tão logo aparecem os getas, sem necessidade de explição ou comentário, parece indicar, antes de tudo, que é familiar para os ouvintes. Desse modo, não cabe a Heródoto explicá-la, mas apenas precisar seu sentido na visão de mundo dos getas, o que se faz através da introdução em cena da personagem Zálmoxis. 121
Pois bem: se admitirmos que essa fórmula pertence domínio das "coisas bem conhecidas", indicando uma reL indiscutível, ainda que fluida, com a imortalidade, rei perguntarmos a quem comumente ela se aplica. A q_ poderia aplicar-se a expressão hoi athanatízontes senã; pessoas que se pretendiam especialistas no além e nas ques:] relativas à imortalidade? Ora, quem, na Grécia, é mais volt para esses problemas que os pitagóricos, cuja "vida in.r [...] parece ter sido considerada como uma preparação p:.-. morte"?117 Donde a conjetura de Linforth (sedutora, me.-~ que nenhum texto a embase de maneira explícita), segun_ qual hoi athanatízontes sem uma alcunha visando efetivamros pitagóricos: "Os gregos, observando que os pitagór:; proclamavam serem hábeis em remover o aguilhão da m: e assegurar, para eles próprios e para seus associados, eterru alegria no além-túmulo, divinizando-se por isso e tornando-a como os deuses, aplicaram-lhes a alcunha de athanatízontes Assim, esse termo, que a tradição relaciona de preferêr.: com o povo geta, duplicaria seu valor como epíteto nar_-_ ou como alcunha,119 na medida em que, para um ouvinte gre. funcionasse também como citação 120 dizer que os getas SÍ "praticantes da imortalidade" supõe dizer que são uma espc. de pitagóricos. A sombra de Pitágoras, portanto, se encontra estendida sobre o texto, desde sua abertura. Ao contrário dos outros trácios, os quais se rendem s Dario sem combate, os getas resistem ao exército do Grar. Rei. Evidentemente, são vencidos, mas, escreve Heródo: mostram-se "os mais valentes ( a n d r e i ó t a t o i ) e os mais jusr: dos trácios". Encontramos então o segundo elemento zi constelação a que nos referimos acima: a andreía {a corager Com efeito, a andreía remete à imortalidade, que, por vez, lembra facilmente a andreía. Se Heródoto não quali:... a relação que une os dois termos, aproxima efetivamente un do outro, pois, logo após ter falado dos trácios "praticante da imortalidade", menciona sua grande coragem. 121 Outr: autores, porém, evocando os trácios, insistem em seu "apet : pela morte". 122 Pomônio Mela, por exemplo, afirma que : getas são "muito dispostos para a morte" ( p a r a t i s s i m i a: mortem), para o que dá três explicações: "alguns deles julg_ que as almas dos que partem hão de voltar; outros julga~ 122
que, mesmo se não voltam, pelo menos não se extinguem, indo para junto dos bem-aventurados; outros enfim julgam que morrem verdadeiramente, mas que isso é melhor do que viver". 123 Nessas condições, combater torna-se um prazer e morrer um objetivo invejável. Encontramos uma confirmação a contrario dessa ligação entre a imortalidade e a coragem no capítulo 94. Com efeito, quando os getas enviam um mensageiro a Zálmoxis, lançam-no no ar para fazê-lo cair sobre lanças; ora, se o mensageiro não morre, acusam-no de ser kakós, isto é, "covarde" (e não "malvado", conforme a tradução de Legrand.124 A covardia constitui a única explicação possível para sua recusa de morrer, isto é, para sua recusa da imortalidade. A guerra e a prática da andreía parecem, à primeira vista, muito distantes do pitagorismo. Entretanto, a consideração de uma personagem como Mílon de Crotona, atleta, seis vezes campeão em Olímpia, guerreiro temível, chefe de guerra contra os sibaritas em 540 e pitagórico seleto, pois é em sua casa que se reúnem Pitágoras e seus discípulos, recomenda mais prudência com relação a isso. Por outro lado, levam a que se retome o problema testemunhos como o que nos foi transmitido por Aristóxeno, segundo o qual "é preciso combater não pela palavra, mas em atos, pois é justo e sagrado fazer a guerra, quando ela se faz homem contra homem"; 125 ou ainda este preceito, fortemente militarista, que declara: "É belo morrer em conseqüência de feridas recebidas de frente, enquanto o contrário é infamante." 126 Com efeito, Detienne demonstrou como Mílon não é menos pitagórico que o próprio Pitágoras e c o m o o comportamento de ambos, longe de opor-se, na realidade se completa, indicando duas orientações do pitagorismo: de um lado, Pitágoras, "o mago extático, o sábio treinado na purificação, o homem-deus que não sofre de fome nem sede", representa a "exigência de salvação individual"; de outra parte, Mílon, "um dos primeiros cidadãos da cidade, atleta, guerreiro, decidido comedor de carne", encarna a "vontade de reformar a cidade", 127 ou o pitagorismo como movimento político. Esta reforma, os pitagóricos não se contentaram com sonhá-la, mas esforçaram-se em promovê-la; não se limitaram a proclamá-la, mas esforçaram-se em prepará-la na sua 123
prática social e através dela. Elaboraram um estilo de v:„_ desenvolveram uma série de instituições que constituer. verdadeiro sistema educacional ou um "adestramento cole: Para lutar contra a tryphé, o sibaritismo, é necessário d volver três virtudes: a sophrosyne, a andreía, a areté. I como desenvolvê-las melhor senão através destas institui: retomadas das sociedades guerreiras, que são as o companheirismo e os exercícios gímnicos? "As refe:: em comum (syssitíai) e a ginástica" — declara o espar Megilo —"são invenções bem feitas para inspirar a corae a temperança";128 ou ainda, desta vez na boca de um aten.z" • "O legislador, segundo nós, imaginou, em vista da guerr. _ refeições em comum e os exercícios físicos." 129 A conexão da coragem e da imortalidade é duplicada. nível da prática social e das instituições, pela conexãc _ coragem e da refeição em comum: a syssitía funciona, p: como um lugar que produz andreía. Aparece assim, em ... relação complexa com os dois outros, o terceiro element: _ constelação: a refeição em comum. Imortalidade, c o r a ; : e refeição em comum, três termos que evocam uns outros, bem como remetem uns aos outros, três elemer de uma mesma constelação. Já examinamos a conex. entre imortalidade e coragem, bem como entre coragerr refeição em comum, restando, pois, estabelecer a conex. entre o primeiro e o terceiro elemento, isto é, levantaquestão dos festins de imortalidade. Zálmoxis, tornando-se livre e rico, voltou a seu p : Mandou então construir um salão de banquetes para rece: certos de seus compatriotas. Em resumo: inaugurou a prá: .. das refeições em comum, parecendo fazer delas um c fundamentos de sua ação. Mandou preparar um andre•: isto é, um "salão para homens", 130 entretanto, fora do conte: c herodotiano, a palavra remete às práticas cretenses e espartar_ Em Creta, o termo andreión designa tanto o local público onoe se reúnem os membros das hetairias, quanto as próprias h e t ; : : _ e as refeições que acontecem em suas reuniões. A expreí:. espartana, pelo menos em época recente, parece ter s : ; phiditie, cujo sentido não é certo. Do mesmo modo que r Creta, a expressão andreión foi usada nos tempos anti; , em Esparta. 131
124
Ora, as refeições em comum — como vimos, recordando a sociedade pitagórica de Crotona — são um elemento importante numa vida regulada pelos preceitos do filósofo de Samos. Boyancé, lendo o texto de Heródoto, acreditou ter "descoberto" nele a primeira e mais preciosa alusão a essas refeições em comum, que constituem a parte mais importante da vida pitagórica, como Aristóxeno a descreveu. 132 Mas, até agora, através da figura de Mílon, o que encontramos foram as refeições em comum enquanto produtoras de andreía, enquanto têm uma função política — e não, seguindo-se a outra orientação do pitagorismo, como um momento importante da vida religiosa, como festim da imortalidade. Entendo que não existem duas espécies de syssitía, mas pode-se pôr o acento sobre um ou outro aspecto, sobre a figura de Mílon ou sobre a de Pitágoras. Aristóxeno de Tarento, que pretende ter sido o confidente de uma das últimas comunidades pitagóricas em Flionte (no século IV), informa-nos que, à noite, depois do banho, os membros da seita faziam sua refeição em comum, precedida e seguida de libações, de sacrifícios e de oferendas; uma leitura era feita, em seguida, pelo mais jovem dos discípulos e, logo após, o membro mais idoso tomava a palavra para fazer um certo número de recomendações. Depois eles se separavam e cada um ia para sua casa. 133 Zálmoxis, que institui refeições em comum de caráter religioso, convida para elas "os primeiros de seus concidadãos" (tôn astôn toüsprótous),134 A expressão é surpreendente. Com efeito, eis os getas, a partir do instante em que se fala de andreión e de refeição em comum, tornados cidadãos de uma cidade da Jônia ou do sul da Itália, reunindo-se para festejar, sob a conduta de um mestre de banquete. Se a expressão deve ser tomada ao pé da letra (tendo-se "esquecido" Heródoto de que os trácios não conheciam a vida na cidade), se é metafórica ou, ainda, se é uma transposição irônica ou derrisória, pouco importa, pois o que interessa é que a evocação da refeição em comum tenha levado precisamente às palavras acima: as refeições comuns reuniam apenas "gente boa" e Zálmoxis, que sabia disso perfeitamente, não convidava qualquer um. Através dessa precisão, o texto remete portanto para as refeições em comum dos pitagóricos e, mais amplamente, para 125
a política pitagórica. Quem se reunia? A quem se dirigia ensinamento de Pitágoras? Desde muito tempo têm sid ressaltadas as tendências aristocráticas do pitagorismo. Vindo de Crotona, Pitágoras "editou leis para os gregos d_ Itália, de modo que ele e seus discípulos eram tidos em grandr estima; sendo em torno de trezentos, os pitagóricos governavar tão bem a cidade que o regime era, na prática, uma verdadeir. aristocracia". 136 Essa informação de Diógenes Laércio, acredi:. Delatte, 137 é um resumo impreciso de Timeu, 138 segundo quer a sociedade pitagórica, que compreendia trezentos membro; organizava-se em hetairias, tendo assumido, em Crotona, . defesa das instituições estabelecidas contra os movimento: democráticos. Os pitagóricos eram, pois, apoiados peL aristocracia das cidades e recrutavam adeptos em seu seio: encontramos de novo a figura de Mílon, representante de um. família aristocrática de Crotona. Assim, a imortalidade conduziu-nos à coragem, a corager às refeições em comum — e esses três termos, longe de Sr sucederem num mesmo plano, formam uma constelação, ist é, desenham uma figura que se pode reconhecer, na qua se inscrevem, de modo não excludente, certos traços do: pitagorismo e, portanto, do zalmoxismo. No andreión assim preparado, Zálmoxis instrui os melhore 5 de seus "concidadãos"; o texto usa anadidáskein que, segund : o Thesaurus Linguae Graecae significa redoceo, iterum docec edoceo (ensinar de novo, fazer uma revisão ou ensinar a fundo' No mesmo sentido, o dicionário de Liddell-Scott ajunta /: teach otherwise or better (ensinar de outro modo ou melhor Assim, o verbo que designa a atividade de Zálmoxis podsignificar simplesmente que ele ensinava de novo, isto é retomava o ensinamento de Pitágoras ou fazia dele um_ exposição completa — mas também pode significar que c ensinava à sua maneira. Polissemia que convém sublinha: sem a pretensão de reduzi-la, escolhendo um significado em detrimento de outro, pois é no espaço dela que podr manifestar-se uma certa alteridade. Os gregos do Ponto (são sempre eles que falam) resumer numa frase a doutrina de Zálmoxis: "Ele ensinava que n e r ele, nem seus convivas, nem seus descendentes jamai: morreriam, mas viveriam num lugar onde sobreviveriam par_ 126
sempre e gozariam de uma completa felicidade." 139 Essas poucas palavras são uma mistura de afirmações planas e vagas com proposições exorbitantes: o que é esse lugar para onde irão os eleitos? o que é essa felicidade da qual gozarão? o que significa essa promessa, que vale não somente para os próprios convivas, mas também para seus "descendentes"? Sem dúvida, esse "lugar" indeterminado, para onde irão os concidadãos de Zálmoxis, lembra as Ilhas dos Bem-Aventurados dos pitagóricos, objetivo da suprema viagem, que não são outras além do sol e da lua. Isso contudo não basta para autorizar a sobreposição dos ensinamentos de Zálmoxis e de Pitágoras. Há, entretanto, desde o século V, leituras mais pitagóricas, isto é, mais explicitamente pitagóricas dos ensinamentos de Zálmoxis. Helânico de Mitilene, historiador do último quarto do século V, escreve, nos seus nómima barbariká,uo que Zálmoxis estabeleceu "mistérios" entre os getas, afirmando não só que os mortos vão para junto dele próprio, mas que também voltam ( b é x e i n dè aüthis)-, em resumo, o zalmoxismo ensina alguma coisa análoga à metempsicose, sendo semelhante a uma seita de iniciados. 141 Encontramos no Imperador Juliano uma leitura interessante dessa mudança de lugar que beneficia os convivas de Zálmoxis, apresentada como uma "mudança de casa": "Eles crêem que não morrem, mas mudam de residência." Ora, o termo metoíkesis e o tema da mudança de casa são pitagóricos. 142 Os discípulos transmitiam uns aos outros, conforme a expressão de Jâmblico, longos akoúsmata "sobre a mudança de casa daqui de baixo" (perl metoikéseos tês enteüthen).Ui Pode-se ajuntar um último texto ao dossiê dessas leituras explicitamente pitagóricas do zalmoxismo. Não se trata, dessa vez, de iniciação ou de viagem das almas, mas de práticas alimentares. Concluindo sua exposição sobre Zálmoxis, é Estrabão quem acrescenta ainda: "O costume de abster-se de seres vivos ( t ô n empsykhon apékhestbai) preservado pelos getas é também devido a Zálmoxis, que o teria tomado de Pitágoras." 144 O regime alimentar dos getas — que exclui qualquer "assassinato", isto é, a ingestão de carne — seria portanto uma retomada direta do ensinamento de Pitágoras. Esses poucos exemplos, tomados da tradição, demonstram como se pode legitimamente fazer uma leitura pitágorica do 127
zalmoxismo. Entretanto, retornando a Heródoto, deve sublinhar alguns desvios de uma tradição para a outra. Trata sem dúvida, de um exercício que implica algum risco, já q em geral, não conhecemos senão fragmentos e pedaços pitagorismo, estando bem longe de saber o que ele era século V. Por outro lado, o texto de Heródoto é não só dos primeiros testemunhos (senão o primeiro) que te sobre Zálmoxis, como igualmente um dos primeiros recebemos sobre Pitágoras, Em resumo, a receita de Zálm é das mais simples: banqueteiem comigo e, sem conhecemorte, vocês viverão para sempre. Ora, esse não é absolu mente o ensinamento de Pitágoras: bem longe de neg; morte, os pitagóricos seriam levados, ao contrário, a torr._ própria vida uma preparação para a morte.145 Além do ir. existe todo um cerimonial da morte pitagórica, que é L anagogé, isto é, ao mesmo tempo uma travessia (marítrr._ uma ascensão, tendo como ponto de chegada as Ilhas _ Bem-Aventurados: "Uma passagem de Jâmblico compar_ ritos que acompanham os últimos instantes de um pitagó com os ritos de partida para uma navegação.!...] Deve proceder então à observação ritual do vôo dos pássar: um silêncio religioso deve cercar-lhe os últimos instante; As refeições pitagóricas em comum têm, pois, um v ascético, de que os banquetes de Zálmoxis parecem completamente desprovidos. Basta lembrar a informação Aristóxeno sobre o desenrolar do dia de um pitagórico convencer-se disso. As refeições em comum, reuniões rr. austeras feitas quotidianamente, não são mais que prepara: da syssitía com Plutão, que não será conhecida senão ap : morte — e da qual falava, para rir-se dela, o poeta côn: Aristofonte. A sorte de cada um após a morte dependera modo como cada um tenha vivido, diria um pitagórico; Zálmoxis faz melhor: não ensina ele, efetivamente, que r seus convivas, nem seus descendentes (boi ek toúton) morrei A inclusão dos descendentes levanta um problema. Pocr pensar, com efeito, nos Orpbeotelestaí de que fala PI na República, esses charlatães que, indo às casas dos ri os persuadem de que têm o poder de "remediar tudo alegria e festas", "se alguém encontra-se na condição de cometido uma injustiça, ele próprio ou algum de seus ancestrais 128
Assim, uns têm em vista os ancestrais, o outro, os descendentes — mas em ambos os casos nos encontramos no mesmo mundo de charlatães. A menção dos "descendentes" faz o texto derrapar abertamente, introduzindo-se nele a derrisão. O verbo anadidãskein comportaria então o sentido de "à sua maneira", um sentido pesado de ironia: ele ensina "à sua maneira", querendo isso dizer: "Imaginem o que um ser como Zálmoxis pode compreender e reter da doutrina de Pitágoras, a qual, ainda por cima, ele ensina a gente de espírito tão simples como são os getas!" Uma outra possibilidade seria admitir que a presença dos "descendentes" vale, se ouso assim dizer, tanto para o zalmoxismo, quanto para o pitagorismo — e anadidãskein insistiria então principalmente na retomada, na repetição do ensinamento do mestre. Neste último caso, a derrisão se aplicaria tanto a Zálmoxis, quanto a Pitágoras " e os gregos do Ponto ririam de um e de outro, rindo de um pelo outro. O reconhecimento, com a inclusão dos "descendentes", de uma certa derrisão que opera no texto, leva a que se retome seu exame, a fim de ver se não se deixam levantar outras expressões "postas entre aspas" ou outras rupturas de tom. Após ter construído seu andreón, termo que nos conduziu a Creta e às sociedades guerreiras, Zálmoxis recebe seus convidados como um estalajadeiro em sua birosca: a palavra grega é pandokeúein. Não se pode deixar de ficar surpreendido com a distância entre as duas palavras: não são duas palavras do mesmo mundo; onde se espera um mestre do banquete, vê-se surgir um estalajadeiro, cuja preocupação principal, de acordo com a representação habitual, é esfolar seus clientes, extorquindo deles o máximo de dinheiro, no mínimo de tempo.148 Designar os getas, que Zálmoxis escolhe para compartilhar suas refeições, com a expressão "os primeiros de seus concidadãos" é também surpreendente. Sua presença, nesse ponto do relato, pode indicar um "esquecimento", da parte do narrador, da "cor local" (a saber: os getas não vivem em cidades); mas a expressão pode ser também, de algum modo, exigida pelo contexto: syssitía e "primeiros dos concidadãos" atraem-se mutuamente. Entretanto, juntá-los com uma sala de estalagem destoa. Se a carga derrisória de pandokeúein não deixa lugar 129
a dúvidas, pode-se supor que também a expressão % primeiros de seus concidadãos" apareça no texto c o r w. antífrase; se estivéssemos na Grécia, tratar-se-ia efetivamer •dos primeiros cidadãos da cidade; mas junto desses pobrr diabos... Finge-se crer que eles são o que deveriam normalmer ser, para dizer-se que, de fato, eles não o são de forma alguro. A derrapagem é de novo possível e, de novo, pode-se ; a derrisão. O termo sympótai pode também agir em dois registr i, designando o conviva, aquele que muito normalmente tor\. parte numa refeição, mas igualmente o beberrão, aquele .. quem o vinho não causa medo. A que gênero pertencem s convidados de Zálmoxis? Além disso, se acreditarmos eu alguns testemunhos, os pitagóricos de modo algum n: bebiam vinho. 149 Sobre quem, nesse caso, cai a (possível ironia? Questões que nos conduzem de novo à discus;. sobre o significado de ana-, em anadidáskein. O excesso que a menção dos "descendentes" dos con\. de Zálmoxis introduz leva, enfim, a retornarmos à expressia athanatízontes, da qual já falamos muitíssimo. Linforr entende que há nela uma ironia, a qual se aplica tanto . zalmoxismo, quanto ao pitagorismo. Com os getas, estarr diante de grandes praticantes da imortalidade! Com efe:" | o que dizem eles, senão que, para não morrer, é precr primeiro morrer? A prova disso está no capítulo 94: a narrai : esclarece que as recomendações são feitas ao mensageir: z ser enviado para junto de Zálmoxis, quando ele se enconin "ainda vivo" Çéti zoóntí). Em vista disso, não seria talvez m e r r traduzir a expressão boi athanatízontes não como "praticar.:-.5 da imortalidade", mas como "fazedores da imortalidade"? Assim, os diferentes termos examinados estão longe òt articularem-se de maneira unívoca e petrificada no conte: do saber compartilhado pelos gregos do século V. Essas palavr e expressões podem assumir valores diferentes umas cc relação às outras, podendo qualquer ouvinte combiná-L simultaneamente, de diversas maneiras. Entre essas palavra e expressões de valor variável instaura-se um jogo, no espa: 2 do qual pode alojar-se a derrisão, mas também inscreve:-: _ a alteridade.
130
Ao mesmo tempo em que agia como acaba de ser dito, ele mandou fazer para si uma morada subterrânea. E quando essa morada ficou pronta, desapareceu ele do meio dos trácios, desceu para a morada subterrânea e viveu nela durante três anos. Os trácios o lamentavam e choravam como morto. No quarto ano, apareceu diante de seus olhos e assim tornou-se crível para eles o que dizia Zálmoxis.
Assim termina a vida de Zálmoxis, contada pelos gregos do Ponto. Essa catábase é uma das seqüências da narrativa que mais incitou a aproximação entre Zálmoxis e Pitágoras. Com efeito, Pitágoras é também um homem de catábases, um especialista na vida subterrânea: Jerônimo de Rodes atribui a ele uma descida aos Infernos, onde encontra, especialmente, as almas de Homero e de Hesíodo. 150 Mais digna de nota, entretanto, é a narrativa de Hermipo, na qual Pitágoras, como fez Zálmoxis, manda construir para si, em segredo., uma casa subterrânea. Em seguida, desce para essa nova morada; sua velha mãe, a única pessoa a par do projeto, envia-lhe tabuinhas em que menciona os acontecimentos importantes. No fim de um certo tempo, o mestre, macilento e pálido, realiza sua reaparição, anunciando que vinha do Hades. Como podia contar o que havia acontecido em sua ausência, seus discípulos convenceram-se de que sua natureza era divina.151 Delatte acredita que se "deve" aproximar esses dois textos, sem contudo esclarecer por que considera tratar-se de algo obrigatório; 152 conforme outros, Hermipo demarca a narrativa herodotiana, ou mesmo apresenta uma "retomada audaciosa" da mesma.153 Já Burkert acredita que o tema da casa subterrânea não pertence à "tradição de Zálmoxis", mas é um "motivo grego"; a prova estaria no fato de que, segundo Estrabão, o grande sacerdote dos trácios habitava não numa caverna, mas no alto de uma montanha. A narrativa de Hermipo, por seu lado, não dependeria totalmente do relato de Heródoto, pois encontram-se na primeira elementos que não existem no segundo, principalmente a presença da mãe de Pitágoras. Em suma, de uma maneira ousada, Burkert julga tratar-se de um velho motivo não mais compreendido, que Hermipo "racionaliza" como pode: a mãe, longe de ser sua própria mãe, seria de fato a Mãe divina, isto é, Deméter, da qual ele seria o hierofante etc. ...154
131
A aproximação desses episódios das vidas de Zálmc por Heródoto, e de Pitágoras, por Hermipo, mostra bem c os dois podem ser lidos em conjunto: Zálmoxis reme": Pitágoras e Pitágoras a Zálmoxis. Quanto a dizer que aq_ vem a ser a origem ou modelo deste, com base no úr pretexto de que um é anterior ao outro, trata-se realmente abusar de nossa ignorância. Propusemos, no começo, ler o zalmoxismo através pitagorismo: procedimento legítimo (mesmo depoLlembrada a inexistência de qualquer exposição sistema do pitagorismo), mas insuficiente. Com efeito, este es:_ nos mostrou que, se o "zalmoxismo" pode ser lido atr; do pitagorismo, o pitagorismo, por seú lado, lê-se tam através do "zalmoxismo". Enfim, impõe-se a questão de Heródoto etnógrafo: c os gregos do Ponto viam Zálmoxis? Como o viajante trans o ponto de vista deles? De fato, os gregos sabem coisas : os getas, que nunca deixaram seu país, ignoram — ou, ainda, sabem aquilo de que nem sequer supõem a existêr Assim, trata-se de pessoas sábias: pois não sabem eles m mais sobre Zálmoxis do que algum dia saberá seu discír mais instruído? Isso implica que eles postulam, de iníc:: ignorância do outro que, literalmente, não sabe o que c . : Em segundo lugar, os gregos do Ponto, instalado? margem norte do mundo grego, darão uma grande volta p. explicar um fenômeno religioso do qual são vizinhos invocarem a figura de Pitágoras, geograficamente longe d um homem do Ocidente, senão do far ivest. Para t o r t inofensiva a alteridade geta, para fazer face à ameaça d. ser estranho e incapturável, que não se sabe bem o q_(deus, demônio ou ainda outra coisa), recorrem àquele : . embaixo, bem longe na direção do oeste, conquistou, no compartilhado dos gregos, um lugar especial como persona; intermediária, apresentando sem dúvida uma certa c_ de alteridade, mas não uma alteridade "selvagem", se inventariada, reconhecida, etiquetada. Jogo, portanto, e~ o próximo e o longínquo: o próximo é o mais longínqu : Os gregos do Ponto não têm como olhar Zálmoxis fa:t face, nem podem escutá-lo, já que não diz absolutamente 132
que valha. Assim, recorrem a um terceiro termo, verdadeiro transmissor de inteligibilidade, isto é, Pitágoras, considerado como origem dos atos e das palavras de Zálmoxis e como sua verdade. Desse modo, a relação entre os dois lê-se no sentido Pitágoras —> Zálmoxis, o que significa que o zalmoxismo se lê integralmente através do pitagorismo, do qual passa a ser um puro e simples plágio. Para os gregos do Ponto, é com efeito impensável que a relação possa também ser lida no sentido Zálmoxis —» Pitágoras, já que entre eles e os getas passa a fronteira do mundo grego. É o que sua narrativa expressa de maneira particularmente simples e brutal: Zálmoxis foi escravo de Pitágoras. Mesmo que as reflexões de Aristóteles sobre o escravo "por natureza" não tivessem sido ainda produzidas, não é menos verdadeiro que o escravo e o homem livre pertencem a dois mundos que, normalmente, não se misturam: um escravo alforriado obterá, em Atenas, por exemplo, o estatuto de meteco, mas permanecerá meteco para sempre, do mesmo modo que seus descendentes, os quais jamais se tornarão cidadãos. Como não estão no mesmo plano, a implicação não é portanto reversível. A alteridade que é assim reduzida, canalizada e conjurada pode todavia operar, no texto, no e pelo jogo da polissemia. Recordemos o anadidãskein e o sentido de "à sua maneira"; o "dono de botequim" recebendo os "primeiros de seus concidadãos" em seu andreón; ou ainda os "descendentes" que têm a promessa da imortalidade pelo copo que, uma noite, seus pais esvaziaram. Todas são palavras e expressões em que se pode ler, para um grego, a derrisão. Este jogo de derrisão introduziria então um certo distanciamento entre Zálmoxis e Pitágoras, marcando uma certa alteridade que, em suma, não faria mais que repetir, de um modo diferente, que Zálmoxis é o escravo de Pitágoras. Todo o discurso dos gregos do Ponto depende de fato de um "eu" (eu me informei, pynthánomai) que relata, no estilo indireto, as opiniões deles. Até agora, agimos como se, entre os gregos do Ponto e suas palavras, não existisse nenhuma distância. Mas há muito evidentemente a mediação de Heródoto. 155 Deixando de considerar apenas o capítulo 95 e o ponto de vista dos gregos do Ponto, é o conjunto da seqüência 133
consagrada aos getas que é preciso abordar e, de início, . relações entre os capítulos 94 e 95, entre o Zálmoxis demôr. e o Zálmoxis charlatão. Para alguns comentadores, o probler . resolve-se facilmente: o capítulo 94, em que se expl:.. como, em datas fixas, é enviado um mensageiro a Zálmoxdescrevendo-se quais procedimentos são seguidos caso s mensagem se transmita ou não, é de fato uma exposição _ rito; já o capítulo 95, em que nos é contada a história a; Zálmoxis, constitui o mito: "Ao reaparecimento do deus mito" — escreve Mircea Eliade -—• "corresponde, no ritual restabelecimento das comunicações concretas entre Zálmox: e seus fiéis. Repetição simbólica (já que ritual) da fundaçl do culto". 156 Para aplicar essas categorias ao texto, os autores empregar: especialmente, como argumento, considerações cronológic_i envia-se, com efeito, um mensageiro a Zálmoxis de quatr: em quatro anos, tendo Zálmoxis permanecido quatro ar em sua morada subterrânea. Ora, o grego diz que se lhe eir i um mensageiro dià penteterídos, a cada quinto ano, ou se . de quatro em quatro anos, no fim de cada período comple: de quatro anos; quanto a sua vida subterrânea, durou ep'é:.. tría, o que significa que se estendeu por três anos, tendo e.: reaparecido no quarto ano. Entre o mito e o rito insinua---, portanto a diferença de um ano: sem dúvida, os geu "não muito astutos", enganaram-se em suas contas, se e que sabiam contar. Seja como for, o capítulo 94 não dá margem alguma i comentários. Envia-se um mensageiro a Zálmoxis — e . descrição desta embaixada faz-se empregando-se um voe. bulário tão direto e neutro quanto possível. 157 O assassina do mensageiro é descrito com uma precisão quase técnic^ não sendo visto, um único instante, como sacrifício. O:. Heródoto é totalmente capaz, quando quer, de apresen:. práticas bárbaras, aparentemente escandalosas para um greg: é o caso, por exemplo, dos festins fúnebres dos issedons, - : curso dos quais eles comem os pais mortos. 158 O preser capítulo mostra-se como uma descrição, tão precisa quar possível, das práticas dos getas a respeito de seu deus: ; uma narrativa ou, mais exatamente, uma descrição, mas — nisso se encontra sua originalidade e dificuldade — a descr: v 134
não supõe nenhuma testemunha, nem a narrativa nenhum narrador, pelo menos explícito. Nenhuma mediação, detentora de um saber a mais, intervém para dar ao ouvinte ou ao leitor a palavra final da história; não há aparentemente nem enunciação, nem marca de enunciação (enquanto elas são claramente indicadas no capítulo 95: "Eu digo o que dizem os gregos do Ponto"), bem como não há a menor indicação das fontes. Nada mais que uma narrativa que, no imediatismo do presente (eis... é assim...), dá acesso direto e fornece uma transcrição imediata do que pensam, crêem e fazem os getas desde sempre e para sempre (pelo menos desde que Zálmoxis é Zálmoxis). Essa narrativa é, pois, como uma espécie de grau zero da interpretação: eis uma fatia de crença dos getas. É obscura? Possivelmente, mas é assim. Pode-se entretanto perguntar se não está em causa uma forma mais sutil de enunciação."Antes de tudo, Heródoto não compôs esse capítulo, neste lugar, por acaso: colocado aí, antes das palavras dos gregos do Ponto, ele deve produzir um certo efeito; depois, quando se chega ao termo da seqüência, o efeito deve seguramente modificar-se. Mas no interior do próprio capítulo opera uma certa e x e g e s e . O texto precisa, a cada instante, que se trata das crenças dos getas (nomízousi, phámenoi, dokéei, nomízontes). Essa insistência marca uma vontade, da parte do narrador, de recuar, de não considerar, de desembaraçar-se da responsabilidade; mas, guardando distância, ele põe tudo a distância, constituindo essa ausência de enunciação positiva uma autêntica forma de enunciação. Por outro lado, esses "crêem eles", distribuídos pelos texto, são como que transmissores, c a p a z e s de assegurar à conduta absurda deles, quiçá monstruosa, um mínimo de coerência: lançar alguém sobre lanças e concluir, se ele morre, que um deus lhes é favorável, é absurdo, senão monstruoso. Mas, a partir do momento em que se trata da crença de vocês, da conduta de vocês, ainda que ela permaneça abominável para mim, tem um sentido mesmo para mim. Estamos diante de um início de exegese. Podemos ainda elencar duas intervenções do narrador em seu texto, as quais desempenham um papel num plano ligeiramente diferente: "Este mesmo (Zálmoxis), alguns dentre 135
eles os chamam de Gebeleizis." Zálmoxis não tem nome na língua grega; 159 muito freqüentemente, com efeito, Heródoto escreve que um tal deus indígena é, em grego, tal deus: Héstia, por exemplo, chama-se Tabiti em língua cita, bem como Zeus chama-se Papaios etc. 160 Mas com relação a Zálmoxis, bem longe de ser reduzida por um retorno na direção do mesmo, a alteridade é, de um certo modo, redobrada: passa-se de Zálmoxis a Gebeleizis, nome de consonância mais estranha ainda. Essa dupla denominação, corrente entre os próprios getas, não faz menos que reforçar a incerteza sobre a identidade da pesonagem. O narrador mostra ou dá mostras de seu saber, extraviando ainda mais, se pode, o destinatário. 161 Eis agora a segunda intervenção: "E estes mesmos trácios, quando troveja e relampeja, arremessam flechas no ar, contra o céu, ameaçando o deus, pois pensam que não existe outro deus além do deles ( o u d é n a állon theòn nomízontes einai ei mè tòn sphéterori)." Essa frase levanta um problema: a palavra theós, que aparece duas vezes, designa, em cada caso, uma divindade diferente. Como Rohde observou, 162 se for preciso entender como o deus que eles ameaçam "este" deus (como traduz Legrand), isto é, Zálmoxis, a razão que é dada pelo narrador para seu comportamento seria estranha, quiçá absurda: eles o ameaçam porque é o único que consideram verdadeiro. É, pois, melhor ver no deus assim ameaçado não Zálmoxis, mas o deus do céu (ou seja, alguma coisa tão vaga quanto nosso "deus do céu"); ora, o interessante é que este deus é grego. Falar do raio e dos trovões dizendo ho theós é colocar-se do ponto de vista dos gregos; quando o raio cai sobre a casa de Ciles, em Ólbia, Heródoto escreve: "o deus lança o raio" — ho theós.m Essa passagem subreptícia para a visão de mundo grega obriga então o narrador a intervir, precisando que, além de Zálmoxis, eles não têm outro deus e que "o deus do céu", para eles, não existe. Dando esta explicação, Heródoto reintroduz a visão de mundo geta, situando-a contudo com referência à dos gregos. Ao mesmo tempo, dá a entender que, lançando suas flechas contra o céu, os getas não sabem o que fazem, mostrando-se ridículos, já que o mundo daqui de baixo e o dos deuses não se comunicam, estando portanto a explicação de seu comportamento em sua ignorância. Por outro lado, é certo que, para Heródoto, esse chauvinismo religioso é completamente ridículo. Com 136
efeito, ele acredita que a terra é "uma" 164 e que os deuses são os mesmos em todos os lugares, ainda que não se tenha em todos os lugares os mesmos deuses. 165 Enfim, o rito que, de quatro em quatro anos, permite o restabelecimento da comunicação dos getas com o seu deus revela alguma coisa do ponto de vista da alteridade? Pelo menos ele se expressa sob a forma de antífrase. Com efeito, como se procede com o infeliz mensageiro? Ele é lançado sobre três dardos ou três lanças, em vez de, como seria normal, lançarem-se os dardos sobre ele. Mais ainda, põem-se os dardos no sentido vertical, quando são utilizados correntemente no plano horizontal. Os getas usam de maneira duplamente "anormal" a lança. Para encontrar Zálmoxis, é preciso cair sobre as lanças. O jogo dessa inversão "orienta" o rito e delineia talvez o sentido de sua alteridade? Assim, este capítulo não é o grau zero da interpretação. Apenas pretende-se tal, o que é muito diferente. Vimos como pontuam o texto marcas (indiretas) de enunciação, esboçando-se uma exegese. No fundo, ele nos apresenta um outro Pitágoras que, se é verdade que Pitágoras e Zálmoxis se implicam mutuamente, vem a ser então como que o outro de Pitágoras.166 Quais são as diferentes vozes que se fazem ouvir nesses poucos capítulos? No capítulo 93, encontramo-nos ainda nos domínios da história e da "narrativa de acontecimentos". 167 Com o início do capítulo 94, as coisas mudam completamente: deixamos a narrativa dos acontecimentos, e o presente substitui o aoristo. Se não estamos mais na esfera da narrativa dos acontecimentos, não estamos também na esfera do diz-se (légetai), mas antes na do estí. O capítulo começa com uma rubrica de "produção", 168 constituída pela expressão tóndetòn trópon (desta maneira), que se renova algumas linhas abaixo através do termo hôide (assim). Portanto, lança-se mão de todo um vocabulário da descrição, ou melhor, da evidência, pois essas descrições não supõem nenhuma testemunha. Se quisermos classificar este capítulo, poderemos dizer que se trata de uma "narrativa", na medida em que "exclui toda forma autobiográfica", 169 em que não encontramos nele senão formas de terceira pessoa, que não supõem nem locutor, nem ouvinte. Quando começa o capítulo 95, introduzem-se novas vozes. De um lado, a descrição que não necessita da mediação 137
de nenhum observador nem de nenhum relator é deixad. imóvel e congelada; por outro lado, reencontramos o mundc do légetai. Ao imediatismo do estí, sucede a distância do discurso indireto. 170 Se definirmos como discurso "tod. enunciação que supõe um locutor e um ouvinte", 171 este capítulo é sem dúvida um discurso; mas, sendo em estilo indireto, trata-se antes de um discurso que se apresenta com: narrativa e que termina (quase) por sê-la. Esta é, eu creio, _ explicação para o brusco reaparecimento do aoristo no fitr do capítulo, o qual, como "tempo do acontecimento fora d_ pessoa do narrador",172 fica normalmente excluído do discurso. Enfim, o capítulo fecha-se com a expressão "eles dizem que fazem assim" ( t a ü t á phasí min poiêsai), nova rubrica de produção, que lembra tratar-se de estilo indireto, respondend: ainda ao pynthánomai do início, de acordo com os procedimentos da composição circular. Esse discurso racionalista e positivista esforça-se em reduzir o mais possível a alteridadr de Zálmoxis, apresentando-se como discurso de verdade: ele é a verdade daquilo que os getas seriam incapazes de dizer ele é a verdade de que eles não têm mesmo a mínima idéia de sua crença. Ele é a palavra final do capítulo 94 e de toda a história de Zálmoxis. O capítulo 96, enfim, faz ouvir sobretudo a voz do "eu' que intervém com relação aos pontos de vista sustentadc.pelos gregos do Ponto: às palavras definitivas e segurade si mesmas, que se esforçam para afastar a alteridadr excessivamente próxima, Heródoto responde, de modo adrr. rável, reintroduzindo a dúvida e a incerteza, arruinando . pretensão de ser a última palavra. A construção das frase: (oúte... oúte...; eíte... eíte...) é significativa em vista da vontadr do narrador de não escolher e de deixar lugar para a alteridade nem eu não creio, nem eu creio muito; às vezes ele era una homem... às vezes um demônio... Considerado entretanto em seu conjunto, o método dr Heródoto poderia esquematizar-se assim: a um capítulo era que a alteridade é grande e em que se quer que seja máxirr.: (cap. 94), sucede outro capítulo em que ela é quase afastad. (cap. 95); depois, vem a intervenção final de Heródoto, qur diz respeito sobretudo às afirmações dos gregos do Ponto, mas também ao capítulo 94 (retomando-se a questão de sabe138
se ele é um demônio), em que se deixa entender que o caminho que aqueles indicam para resolver a questão de Zálmoxis não é talvez mais que uma pista falsa: "Acho que Zálmoxis é anterior em muitos anos a Pitágoras." Esse dokéo moi arruina completamente a argumentação dos gregos do Ponto, demonstrando como passaram ao largo da alteridade de Zálmoxis. Recusando o discurso deles como discurso de verdade, não reconhecendo que o capítulo 95 possa ser a última palavra com relação ao anterior, Heródoto restabelece relações entre os dois, não mais com um único sentido, mas reversíveis. Zálmoxis pode ser homem ou demônio. Ele pode ter sido um e ser o outro. Pode ainda ser alguma outra coisa. Afinal, é nessa abertura que reside sua alteridade. Creio mesmo que esse é o sentido do khairéto final, um imperativo de terceira pessoa que significa "saudações, ou assim seja..." 173
FRONTEIRA E ALTERIDADE Anácarsis e Ciles pereceram ambos por terem transgredido a fronteira: um, na Hiléia, celebrou sozinho os mistérios da Mãe; o outro, fechado em Ólbia, fez-se iniciar nos mistérios de Dioniso Báquico. Este "esquecimento" dos nómoi citas não pode deixar de receber uma sanção, em virtude da regra antes enunciada pelo narrador; os citas não gostam de adotar nómoi estrangeiros. Em suma, a narrativa de suas desgraças não é mais que uma ilustração dessa grande lei que faz, do "costume, o rei do mundo". 174 Tanto a história de Anácarsis e de Ciles, quanto a de Zálmoxis lidam com os conceitos de próximo e longínquo: Dioniso, reconhecido dentro das muralhas de Ólbia, é totalmente desconhecido fora delas, já que os citas entendem que "celebrar as bacanais" equivale a "estar louco". A proximidade espacial é transformada eni distanciamento cultural. Do mesmo modo, os gregos do Ponto, para analisar Zálmoxis, seu vizinho, apelam para Pitágoras, sem dúvida um grego, mas um compatriota bem distante no espaço e com um comportamento muito estranho. Confrontados com Zálmoxis, cuja identidade lhes escapa e cujos rituais não deixam de inquietá-los, os gregos do Ponto tomam como referência a figura de Pitágoras. A partir 139
disso, podem tanto traduzir Zálmoxis em grego (o zalmoxi deve ser posto em relação com o pitagorismo), quanto ma a distância ou construir a alteridade do outro (Zálmoxis é homem, foi escravo de Pitágoras e, em suma, é um charlatâ sendo os getas não muito espertos). Passa-se assim para outro lado da fronteira, reforçando-a bem. Mas o próximo e o longínquo agem, de modo implíci: ainda num outro plano. Se alguém se põe do lado do des: natário, o que nos ensina, com efeito, a própria escolha da Mir dos Deuses e de Dioniso? Seguramente, uma e o outro si divindades importantes, senão as divindades principais õt Cizico e de Ólbia, que são duas cidades às margens d mundo grego. Todavia, levantar a hipótese de uma homolo; . direta entre uma representação do espaço geográfico e ur: : representação do espaço divino parece um procedimer: muito simplista: à marginalidade geográfica corresponde::; a mesma marginalidade no plano dos deuses. A Mãe c : Deuses e Dioniso estariam, em relação ao resto do panteã grego, na mesma posição que Cizico e Ólbia, com relação a resto do mundo grego. Proceder assim significaria desconhece a capacidade que ambos demonstram de ir dos limites até interior, estando em muitos lugares ao mesmo tempo. Todavia, para que sua rejeição radical tenha junto d destinatário o máximo de sentido, pode-se sugerir que essar duas potências (a Mãe e Dioniso) devem ser "vistas", a : mesmo tempo, como gregas e como próximas dos citas. E preciso, com efeito, que sejam elas percebidas como grega: pelo destinatário, para justificar o comportamento dos citas e ilustrar a regra enunciada pela narrativa. Mas é preciso tambér que sejam reconhecidas como "próximas" dos citas, não s : geograficamente, mas também culturalmente, para que su^ recusa surpreenda e ganhe todo seu sentido. São divindadeque eles deveriam poder acolher facilmente (por sua origem pelos rituais que exigem, em suma, por seu lado "bárbaro" Contudo, pelo contrário, eles absolutamente as rejeitará (como gregas). Reforça-se assim a moral explícita da história verdade aquém, erro além... Na narrativa dos males de Ciles, nenhuma intervenção direta do narrador faz o contraponto das opiniões que ele atribui aos citas, cabendo apenas ao destinatário apreciar a 140
confusão que estes fazem entre mania e bakkheúein. Pelo contrário, o episódio de Zálmoxis apresenta uma estrutura mais rica e, portanto, mais interessante. Ao discurso sustentado pelos gregos do Ponto — que pode ser identificado como um discurso de verdade, seguro de si, que relata o que ele é de fato (Zálmoxis é um charlatão), sabendo muito mais que os próprios getas as coisas que lhes concernem 175 — ajunta-se uma retomada do discurso direto pelo narrador que, na realidade, arruina toda essa explicação segura e redutora, repondo a questão da identidade da personagem; decidam-se vocês, é o que diz enfim o khairéto.
141
C
A
P
Í
T
U
L
O
IV
0 CORPO DO REI: ESPAÇO E PODER O CORPO DOENTE O rei sente dores, o rei está doente, tanto que manda buscar adivinhos para tratá-lo. Os adivinhos põem-se a trabalhar e lhe indicam logo a causa de seu mal: um perjuro. Prescrição: cortar-lhe a cabeça. Dito de outro modo, a dor real é o sintoma do perjúrio e não parece que se possa atribuir-lhe outra causa. Com efeito, os adivinhos declaram: "Como quase sempre [...], fulano ou cicrano jurou falso." 1 O que, portanto, sempre e mais que tudo atinge o rei em sua própria carne é o perjúrio. Quando um cita comete um crime, é o rei que logo em seguida sente os maus efeitos; estabelecem-se assim estranhas trocas entre o rei e seus súditos. Heródoto apresenta uma situação que é bem o inverso da mais conhecida, relativa ao rei justo: um bom rei, um rei justo assegura a prosperidade de seu pais; a terra produz gordas colheitas, os rebanhos são abundantes, as mulheres dão à luz "filhos semelhantes a seus pais". 2 Ao contrário, o rei mau, aquele que comete uma falta, deixa-se levar pela hybris e esquece a justiça, traz um loimós. a fome espalha-se, os rebanhos não se reproduzem mais e as mulheres não dão mais à luz. Mas tanto no caso do bom, quanto no caso do mau rei, o influxo vai sempre do rei para os súditos e o país — não se supondo jamais a possibilidade de reversão, ou seja, a influência dos súditos sobre a pessoa do rei.3 Ora, é precisamente o que parece acontecer entre os citas, onde um súdito mau, criminoso ou injusto, prejudica o rei; logicamente, súditos leais deveriam,
pelo contrário, favorecer sua boa saúde e aumentar su_ prosperidade. O SANGUE DO JURAMENTO Como os citas prestam juramento? Eles derramam vinho numa grande taça de terracota e misturar o sangue dos contratantes, que se picam com uma agulha o fazem, com uma faca ( m á k h a i r a ) , uma pequena incisão n : corpo; mergulham em seguida, na taça, um sabre, flechas, ur machado e um dardo; feito isso, recitam abundantes fórmu!_ religiosas ( k a t e ú k h o n t a i ) ; depois bebem o conteúdo da taça. tanto aqueles que se ligam por um juramento, quanto os ms: importantes dentre aqueles que os acompanham. 4
No mesmo sentido, Luciano, no Toxãris, evoca um ritual de confraternização: os dois contratantes fazem uma incisão no.; dedos, deixam correr o sangue num vaso e, antes de bebe: cada um deles mergulha nele apenas a ponta de sua espada Glotz 6 e Gaidoz 7 anotaram os numerosos exemplos dessa: alianças de sangue. G. Davy, para as necessidades de sua demonstração, retoma um certo número em La Foijurée,8 ma o primeiro que teorizou sobre essas práticas foi Robertsor. Smith. Para ele, com efeito, não há parentesco senão peL sangue e não há ligação senão pelo parentesco, o que é c fundamento do blood-covenant, da aliança pelo sangue: Os contratantes, que não podem estar ligados s e n ã o c o m : parentes e que não são naturalmente parentes, deverão, se querem ligar-se uns aos outros, tornar-se artificialmente parente? Ora, o parentesco sendo a participação no mesmo sangue, é preciso, por um rito de comunhão, que poderá tomar diversa.: formas, participarem uns do sangue dos outros. 9
Encontra-se aí essa idéia de comunhão, que está no centro de sua teoria do sacrifício e que será retomada muito em seguida Segundo Glotz, "a ordália é um juramento em ação, o juramento, uma ordália em palavras", 10 mas, por seu ritual, o juramento cita aparece como uma ordália tanto em ação, quant: em palavras; combinação de ação e de palavras, o juramento é, em todo caso, uma ordália antecipada. Em seu estudo 144
sobre "o juramento na Grécia", Benveniste indica que se pode "identificar o hórkos com um objeto: substância sagrada, bastão de autoridade, o essencial é, a cada vez, o próprio objeto e não o ato de enunciação"; 11 no presente caso, é a mistura de vinho puro e de sangue que é o "objeto" sacralizador, "o que contém uma potência que pune toda infidelidade com a palavra dada". Com o vinho, mistura-se o "sangue dos contratantes" (tôn tò hôrkion tamnoménori). O que significa o emprego dessa expressão, posto que não se menciona o sacrifício de nenhuma vítima? A fórmula ( h ó r k i a támnein) não é encontrada senão em Homero, em algumas inscrições jónicas arcaicas e em Heródoto, 12 no qual significa "imolar as vítimas", mas também "celebrar um pacto". Hórkia designou, de início, os hórkia hiereia (as vítimas sacrificais), passando depois a ser entendido como as "cerimónias de juramento", ao mesmo tempo em que aparecia um singular, hórkion, "pacto"; 13 no nosso texto, hórkione hórkia significam simplesmente "pactos", "juramentos".14 Mas por que essa ligação de hórkia e de támnein? Segundo Casabona, primitivamente a expressão designava "o rito que consistia em cortar as vítimas em pedaços durante a prestação de juramentos, sobretudo na época da constituição das fórmulas homéricas, por ocasião dos pactos militares". Em seguida, esse costume tendo caído em desuso, a expressão passou a ser entendida como "degolar as vítimas" e relacionou-se témno, particularmente em ático, ao rito pelo qual se "corta" a garganta dos animais. 15 Cortar a garganta de animais para fazer correr o sangue, isso é o importante. Mais que de um sacrifício propriamente dito, trata-se de uma "espécie de libação sangrenta". 16 Ora, o juramento cita repousa também numa espécie de libação sangrenta, ou, mais exatamente, o sangue é de início derramado no vaso em que é misturado ao vinho. 1 7 Ainda por cima, essa "libação" não é fornecida pelo sangue de uma vítima animal, mas pelos próprios contratantes; este é, sem dúvida, o primeiro desvio fundamental que separa o ritual cita do juramento grego. Os contratantes são, com efeito, eles próprios suas vítimas; é certo que não se degolam, mas se "picam" (typtein) com uma agulha ou se "cortam" (epitãmnein) com uma mákhaira. Assim, se a expressão hórkia támnein significa, como quer Casabona, simplesmente "celebrar um juramento", de qualquer modo não se encontra 145
deslocada nesse contexto sangrento. Há sangue que corre, sem dúvida, pouco (smikrón), mas é o sangue dos celebrantes. Pode-se também pensar que os golpes que se dão ou que as incisões que se fazem, pelas cicatrizes que deixarão, são também meios de recordação: os citas inscrevem em seus corpos a memória de seus compromissos. O vinho — muito particularmente o vinho puro — liga-se ao juramento.18 Quando alguém quer comprometer-se, derrama vinho e, nos usos da vida corrente, o ritual sacramental pode até reduzir-se à simples libação; "pelo vinho, estabelecem-se os liames do juramento", diz uma inscrição. 19 De acordo com a quase totalidade dos exemplos, esse vinho não é consumido, mas derramado de uma só vez. 20 Encontramos assim uma segunda aberração no ritual cita: o vinho, como é "normal", integra a cerimônia deles, mas em vez de ser libação, é bebida, o que significa que, em vez de ser inteiramente derramado, é consumido pelos participantes. Todavia, o desvio mais fundamental com relação ao ritual grego, está na qualidade do sangue e no uso que se faz dele. Trata-se, com efeito, de sangue humano — e não animal; por outro lado, não basta fazê-lo correr da garganta do animal ou derramá-lo sobre as vítimas, mas, misturado ao vinho, ele é bebido. Assim, nessa grande taça, misturam-se sangue e vinho, como numa cratera se misturam vinho e água. Heródoto relata contudo um caso em que os gregos bebem sangue humano: trata-se dos mercenários gregos e cários a serviço do faraó Amásis. Antes de começar a batalha contra os persas, eles degolam duas crianças, das quais deixam o sangue correr numa cratera, e, depois de ter derramado vinho e água. bebem-no. 2 1 Heródoto "racionaliza" essa cena de sacrifício, explicando-a por uma sorte de vingança: as duas crianças são os filhos de Fanes. Ora, Fanes, originário de Halicarnasso. era mercenário de Amásis, tendo-o deixado para oferecer seus serviços a Cambises; portanto, seus antigos companheiros queriam-lhe mal e, além do mais, foi "sob os olhos do pai" que degolaram as crianças. A carga de monstruosidade contida nesse sacrifício, a um só tempo propiciatório e de juramento, é assim debitada à vingança. Os Sete Contra Tebas oferecem um outro exemplo dos liames existentes entre o sangue e o juramento: "Sete valentes capitães" — declara o mensageiro a Etéocles, 146
degolaram um touro sobre um escudo negro e, tocando com as mãos o sangue do touro, por Ares, Enio e o Medo sedento de sangue, juraram ou destruir e pilhar a cidade de Cadmo com violência, ou, morrendo, cevar esta terra com seu sangue. 22
Trata-se de um ritual já "suavizado" (sangue de touro, unção das mãos e não absorção do sangue), que Ésquilo coloca todavia do lado dos sete guerreiros monstruosos que atacam Tebas de Sete portas. Se o sangue é sempre uma bebida terrível, o sangue do touro o é particularmente, já que passa por ser um veneno: beber sangue de touro é, com efeito, dar-se a morte; forçar alguém a beber sangue de touro é forçá-lo ao suicídio. 23 Mas Glotz julga que o "suicídio legendário pelo sangue do touro não passa de uma ordália deformada por pessoas que não a compreendiam mais". Dito de outro modo, ter-se-ia, no caso do juramento, uma fórmula como: que este sangue se torne veneno para mim, se o juramento que eu faço for um juramento falso. Um exemplo mítico, no limite, do que pode fazer um liqüido "carregado do falso juramento" é a água do Stix: quando um deus presta o grande juramento, derrama o conteúdo do cântaro de ouro em que ela foi recolhida e, se se trata de um perjúrio, cai inerte e permanece sem respiração durante um ano. 24 Heródoto não relata as palavras proferidas no correr da cerimônia cita. Nada sobre as invocações, as promessas ou a prece; sabe-se somente que "as preces são numerosas" (kateúkhontai pollã). Dizem eles, como os ossetas, "que esta bebida se me torne um veneno..."? É bem provável. Em todo caso, o fato de mergulhar as armas na taça parece indicar que, no caso de falso juramento, tornadas elas também uma espécie de armas envenenadas, saberão atingir o perjuro. Sem dúvida, o perjuro é um criminoso para os gregos. Trata-se de quem fez um falso juramento ou, mais precisamente, como explica Benveniste, daquele que ajuntou (epí) um juramento ( h ó r k o s ) a uma palavra ou a uma promessa que sabia que era mentirosa.25 Para ele, não existe, daí em diante, nem repouso, nem salvação. É o que declara a Pítia a Glauco, que a consulta para saber se pode, por um (falso) juramento, conservar consigo um depósito que não quer restituir: "...Mas há um filho do juramento, anônimo, sem mãos, nem pés; 147
rápido, entretanto, ele persegue [o perjuro], até que o tenha atingido e que tenha destruído sua descendência inteira e toda sua casa; já a descendência de quem guarda sua palavra terá, no futuro, melhor sorte." 26 O perjuro causa, pois, sua própria ruína e a de seu oíkos, abatendo-se sobre ele e os seus uma sorte de loimós. É importante contudo ressaltar que a aplicação do castigo compete aos deuses e não aos homens. O perjuro, diz Demóstenes, comete uma injustiça, uma impiedade com relação aos deuses: adikeí toüs theoils.27 De fato, "nenhum código indo-europeu antigo prevê sanção para o perjuro. O castigo é considerado como procedente dos deuses, já que eles são os fiadores do juramento."28 Ora, os citas, curiosamente, prevêem um castigo nesse caso: o perjuro, indicado pelos adivinhos, tem a cabeça cortada. Como se vê eles não confiam aos deuses o cuidado da vingança e o' restabelecimento da ordem que foi perturbada, pelo menos no caso do falso juramento "pela lareira real" ( b a s i l e í a s histías). O juramento pela lareira real é, de fato, o "maior juramento" (mégiston hórkori) que um cita pode fazer. As fórmulas de imprecação prometem, na maior parte das vezes, aos perjuros, a esterilidade das mulheres e a extinção da casa. 29 Assim, Glauco, por ter cogitado em não devolver o depósito, viu seu lar (histía) aniquilado: "Hoje, não existe nenhuma descendência de Glauco, nenhum lar que se julgue ser o seu; ele foi extirpado de Esparta até a raiz."30 Existe, pois, uma estreita relação entre o juramento e o lar: quem comete perjúrio põe em risco seu lar, prejudica seu próprio lar. Mas, entre os citas, o perjuro, por uma surpreendente transferência, prejudica não o próprio lar, mas ao próprio rei. Com efeito, de imediato o rei fica doente ( k ã m é ) e sente dores ( a l g é e i ) . Sem dúvida, isso ocorre apenas quando alguém jura falso "pelos lares reais". Mas por que a impiedade, a injustiça para com os lares reais reflete diretamente na pessoa do rei, aplica-se no seu corpo? O CORPO DO REI: HÉSTIA E NOMADISMO Essa questão levanta, antes de tudo, a do lar real e, mais amplamente, a do lugar de Héstia no panteão cita. Curiosamente, Héstia ocupa o primeiro plano entre os citas: 148
é a ela, com efeito, mais que a qualquer outra divindade, que se dirigem as preces; em seguida, vêm Zeus e a Terra. 31 O rei dos citas, Idantirso, testemunha também a preponderância de Héstia em sua resposta a Dario: ao Grande Rei que o convida a submeter-se, responde ele que, em matéria de senhores (déspotas), não reconhece senão dois: "Zeus, meu ancestral, e Héstia, rainha dos citas." 32 Assim, Héstia, sendo a bastteia dos citas, é também sua despótes. Quanto ao rei, o que é ele com relação a Héstia? Ocupa a mesma posição, com relação aos citas, que ela ocupa diante das outras divindades? Seria isso? Ele seria então uma espécie de análogo de Héstia.33 Não nos esqueçamos porém de que, em caso de perjúrio pelos lares reais, é ele que é prejudicado e sente dores. Heródoto acrescenta que, "na língua cita, Héstia se chama Tabiti". 34 Observa Dumézil que esse é o único nome cujo sentido é imediatamente evidente: ela se chama Tabiti, isto é, "a que aquece", quase o mesmo nome da luminosa Tapati indiana, filha do sol. 35 Se, por um lado, Héstia é a basíleia dos citas, por outro, vimos que o juramento pelos "lares reais" ( t à s basileías bistías) é o mais solene que um cita pode prestar. Portanto, Héstia é o próprio o lar. Dumézil, citando este texto de Heródoto, lembra que, entre os ossetas, "o lar é um lugar santo por excelência; o juramento mais solene se faz 'pelo lar', tendo-se na mão a cadeia de ferro que fica suspensa sobre a lareira". 36 Quanto à importância do fogo real, é atestada, por exemplo, no Irã, na época sassânida: o rei tinha seu fogo pessoal, aceso por ocasião de sua entronização e apagado somente no momento de sua morte; contavam-se os anos do reino a partir do momento em que o fogo era aceso. 37 Heródoto não diz que isso acontecia também com relação ao rei dos citas, mas esse exemplo ajuda a conceber que o fogo real possa ser um ponto de referência: origem do tempo ou dos contratos. Por que o texto fala dos "lares reais" no plural? Como os capítulos sobre a origem do povo cita nos informaram que havia três reis, cada um deles tendo um lar, não é estranho que se escreva os lares reais. Todavia, o capítulo 68 não põe em cena senão o rei dos citas ("quando o rei dos citas fica doente..."), como se ele fosse o único soberano; assim, em relação ao contexto próximo, o plural não remete senão a 149
uma única personagem. Outra explicação possível: a mesma personagem tem vários lares, sucessivamente. Sendo nômade, o rei desloca-se e, dia após dia, seu lar desloca-se igualmente. Ou, simplesmente, pode tratar-se de um plural de majestade. Há uma conjunção que não deixa de causar surpresa: a de Héstia e do nomadismo. Como um nômade pode, antes de tudo, reverenciar Héstia? Com efeito, Héstia encontra-se ligada ao espaço e a sua representação, estando relacionada com a extensão terrestre, de cuja espacialidade ela é mesmo uma "expressão", 38 mas seu domínio é o da humanidade sedentária e não o dos nômades. Héstia — canta o hino homérico, por toda parte, nas altas moradas dos deuses imortais e dos homens mortais que caminham sobre a terra, recebeu a honra e o privilégio de aí estabelecer-se para sempre: bela prerrogativa e honra! ( g é r a s kài timê)P
A parte de Héstia, tanto entre os deuses, quanto entre os homens, é a casa, e, como precisa o Hino a Afrodite, ela "pontifica no centro da casa" 40 e seu assento é imutável. Ela é, pois, o centro do espaço doméstico e, como tal, conota os valores de fixidez, imutabilidade e permanência. 41 Ora, os citas não têm justamente casas fixas, definindo-se como "porta-casas" Çpheréoikoi), ou seja, pessoas que "têm sua habitação sobre carroças" ( o i k é m a t a epi zeugéori).42 A fixidez do lar e o enraizamento da casa são noções alheias aos citas que, constantemente, tocam seus rebanhos diante de si e seguem de acampamento em acampamento. Considerando-se isso, pareceria lógico que, entre nômades, a parte de Héstia fosse reduzida ou mesmo estivesse ausente, enquanto a de seu "vizinho" Hermes deveria ser importante ou mesmo preponderante. Ora, muito curiosamente, Héstia é a principal divindade cita. De modo não menos surpreendente, Hermes está de todo ausente do panteão deles. Entretanto, Hermes é o mestre do agrós,43 o senhor desses lugares destinados ao percurso, longe dos campos cultivados, bem como dos espaços abertos onde se caçam animais selvagens. 44 E a Cítia, zona de eskhatiá, não é inteiramente uma terra de agrós? A parte de Hermes é a passagem: "A Hermes, o que está de 150
fora, a abertura, a mobilidade, o contato com o outro diferente de si." 45 Entretanto, os citas ignoram o filho de Maia. Mas, no conjunto, para um grego, a expressão do espaço passa tanto por Hermes, quanto por Héstia. As duas potências formam um par que "exprime, em sua polaridade, a tensão que se observa na representação arcaica do espaço; o espaço exige um centro, um ponto fixo, de valor privilegiado, a partir do qual as pessoas possam orientar-se e definir as direções, todas diferentes qualitativamente; mas o espaço se apresenta, ao mesmo tempo, como um lugar de movimento, o que implica uma possibilidade de transição e de passagem de não importa que ponto a não importa que outro". 46 Em suma, Héstia "centraliza" o espaço, enquanto Hermes o "mobiliza". Das duas figuras que exprimem o espaço (Héstia mais que Hermes), os citas parecem considerar apenas uma (Héstia), como se privilegiassem os valores do centro em detrimento dos da abertura e da mobilidade — logo eles que ignoram o deter-se! Como se pode todavia compreender que seja Héstia e não Hermes que os citas veneram? Trata-se, antes de tudo, de uma Héstia real. Ela é, com efeito, constantemente posta em relação com o rei: "Rainha dos citas, ela é o 'lar real'." Seu lugar depende, pois, do lugar do rei e seu poder do poder do soberano. Mencionar o lar real remete a um tempo passado da Grécia, a um tempo em que o lar da cidade não existia ainda e em que era o lar da casa real que desempenhava o primeiro papel: "O eminente valor do lar real sobrevive ainda, aqui e ali, nas recordações da poesia." 47 Na tragédia, lar real e lar da cidade se opõem ou, à vezes, se confundem. 48 Mas, na Cítia, não poderia haver dualidade, pois não há poder senão real, não havendo outro lar "comum" além do lar real. Nesse sentido, Héstia é bem a basíleia dos citas. O lar real é, por outro lado, o lugar e o objeto do juramento mais solene, o que ata mais, apresentando o risco de, se há perjúrio, fazer o rei ficar doente. Na Grécia, pelo contrário, Héstia não figura dentre as divindades comumente invocadas por ocasião de um juramento. 49 Conhece-se entretanto, na época clássica, um juramento por Héstia Buléia: Demóstenes, escreve Ésquines, "jurou por Héstia Buléia (tèn Hestían epómose tèn Boulaían) que felicitava a cidade por ter confiado esta 151
embaixada a homens que...". 50 Assim, existia, no recinto da Bulé, um altar de Héstia, que se invocava em certas ocasiões, mas nada de comparável ao papel central desempenhado entre os citas pelo lar real que é, a um só tempo, a garantia e o ponto de passagem das trocas mais sérias. Em relação ao espaço cita, o lar real figura e funciona como um lugar de trocas. Quando dois citas querem entrar em acordo, devem passar por ele. Pelo juramento, a Héstia real está portanto bem no centro da sociedade cita — conformando-se com esta Héstia "centralizadora" do espaço de que fala Vernant. Mas, na medida em que é ela que autoriza os encontros e as trocas, sendo portanto o lugar de passagem dos juramentos, torna-se também abertura e mobilidade, ou seja, há nela "uma parte que pertence já a Hermes". 51 Dumézil lembrava que, entre os ossetas, o juramento mais sério se faz pelo lar e aproximava essas indicações do texto de Heródoto, observando todavia que "o uso democratizou-se ou descentralizou-se somente entre os ossetas, que não conservaram nem rei, nem unidade". 52 Entre eles, cada lar pode ser igualmente invocado e pode garantir um acordo, sem nenhuma necessidade de passar pelo "lugar de troca" que é o lar real; tem-se uma sociedade "democratizada" ou "descentralizada", em todo caso sem um poder real dominante. O que, ao contrário, caracteriza a Cítia de Heródoto é a presença do rei como centro do poder. Seu lar é o lugar pelo qual transitam as trocas, o ponto de referência das relações sociais. No limite, os citas não têm lar pessoal. O único lar verdadeiro seria então o do rei. Os adivinhos declaram "que fulano ou cicrano — designando um dos cidadãos (tôn astôrí) de que querem falar — prestou um falso juramento pelos lares reais". Há nessa frase uma palavra de todo surpreendente, que é astoí, citadino ou cidadão. Tão logo, com efeito, nos encontremos no contexto do juramento e do lar real, os citas não podem ser outra coisa senão astoí. O procedimento do juramento e a invocação do lar real fazem de sua sociedade uma koinonía de astoí,53 como se isso fosse um dado de seu nomadismo. Ei-los transformados numa comunidade centralizada e fixa, como se isso pudesse ser uma c o n s e q ü ê n c i a desse universo constantemente instável que é o seu. É todavia interessante observar que o lar real é, de fato, apresentado por Heródoto 152
como o lar da cidade, uma vez que é o lar que garante os contratos dos astoí— desempenhando portanto o papel da Hestía koiné, do lar comum da cidade. Ao mesmo tempo, contudo, impõe-se essa relação estranha entre o lar e a pessoa do rei, que faz dele algo -completamente diferente do lar dos astoí. Essa ligação, admitida pelos citas, entre o corpo real e o corpo social, com o corpo real estendendo-se até finalmente englobar o corpo social ou político, faz pensar, em sua estranheza, numa teoria elaborada muito mais tarde, na Idade Média inglesa, relativa à dupla natureza do rei. Kantorowitz explicou, com efeito, essa dualidade do corpo real. O rei tem dois corpos: um de carne, sujeito à doença e à morte; e um corpo político, imortal. O rei tem dois corpos: o primeiro é um corpo natural, consistindo de membros naturais, c o m o têm todos os outros homens, sujeito a doenças e à morte, como acontece com os outros homens todos; o outro é um corpo político, e os membros dele são seus súditos... 54
Os dois corpos, a um só tempo, são completamente distintos e estão perfeitamente unidos. Mas, no caso do rei cita, um defeito do corpo político (o perjúrio) reflete sobre o corpo natural (provocando doença). O crime de perjúrio, pondo em causa aquilo que funda a possibilidade de um contrato, ataca fisicamente o rei: o perjuro é, pois, uma espécie de regicida. Na Grécia, o perjuro põe em perigo seu próprio lar; na Cítia, se ele prejudica o do rei, isso não é uma maneira de dizer que, finalmente, o único lar verdadeiro é o do rei? A figura do rei é tão dominante, que ele é o único a ter verdadeiramente um lar, sendo Héstia, plenamente, aquela que centraliza o espaço e reúne os citas. A presença de Héstia, transformando os citas em astoí, parece eliminar o nomadismo, a menos que ele se encontre expresso na forma do plural realçada acima: por que os lares reais? O rei, deslocando-se, tem numerosos lares, sucessivamente, mesmo se é o mesmo a cada vez, cabendo a Héstia centralizar não tanto o espaço geográfico, mas o social. O povo cita se assemelharia então às constelações que atravessam o céu: ainda que o conjunto seja constantemente instável, 153
mesmo assim cada uma das estrelas mantém-se a uma distância constante das outras. COMO PRODUZIR A VERDADE? Para conhecer as causas de sua doença, o rei apela para os adivinhos. Gente de saber e de poder, eles administram a verdade; sua arte permite-lhes, com efeito, conhecer o que acontece verdadeiramente com relação à doença do rei, isto é, designar, dentre os citas, o perjuro. Seu saber confere-lhes. pois, um poder de vida e de morte sobre os citas, o que tem sua contrapartida: eles próprios põem em risco sua vida. Com efeito, no termo do processo, se alguém se revela pseudomántis. um adivinho "mentiroso", deve ser executado. Eles são numerosos e praticam a adivinhação com a ajuda de varinhas de salgueiro: Eles carregam grandes feixes de varinhas, colocam-nos no chão. desatam-nos e, dispondo as varinhas uma a uma, proferem fórmulas divinatórias (thespízousi); depois, sempre proferindo estas fórmulas ( h á m a te légontes), repõem as varinhas, de novo. em feixes. 55
Uma outra categoria de adivinhos, os enareus, utilizam, por seu lado, casca de tília, que enrolam nos dedos. Amiano Marcelino escreve, do mesmo modo, a propósito dos alanos "Eles adivinham o futuro com um estranho procedimento: cortam varinhas bem retas e, num momento determinado, organizam-nas de um certo modo, com fórmulas secretas: assim ficam sabendo o que deve acontecer." 56 Miller foi o primeiro a esclarecer o texto de Heródoto, aproximando esse: procedimentos dos usos modernos dos ossetas. 57 Assim, são as figuras formadas por essas varinhas ou seu movimento que permitem ao adivinho decifrar a resposta à pergunta que lhe foi feita. Mas, descrevendo este procedimento. Heródoto não pode impedir-se de privilegiar o dizível correlação ao visível, entendendo que o manejamento das varinhní não faz mais que acompanhar as palavras proferidas; o que conta, antes de tudo, são as palavras: thespízousi, "ele: proferem palavras divinas". 58 Quando Heródoto aproxima c : dois planos, contenta-se em coordená-los através do term 154
hãma, ao mesmo tempo: "Sempre proferindo estas fórmulas, repõem as varinhas em feixes." As duas atividades encontram-se simplesmente justapostas, de modo algum articuladas: não são, em absoluto, as varinhas que ditam as palavras; quanto às palavras, em que têm elas necessidade de varinhas? Recorrendo ao vocabulário oracular grego, do campo da adivinhação, Heródoto enfatiza, pois, o oral mais que o visual, não podendo pensar a junção dos dois. Para um grego, a adivinhação é, com efeito, antes de tudo oral.59 Pela referência a este esquema, a alteridade da prática cita é, a um tempo, reduzida e defeituosa: reduzida, pois, a adivinhação cita é rebaixada com relação à grega; defeituosa, pois não se compreende para que servem as varinhas de salgueiro ou a casca de tília. Os adivinhos são chamados pelo rei para fazer um diagnóstico. Não existe, aparentemente, outros médicos além deles na Cítia e não há outra medicina além da mântica. Essa singularidade não é sublinhada pelo texto, que apresenta como normal esse recurso aos adivinhos, em caso de doença. Simplesmente, como se trata do rei, ele manda buscar "os mais reputados". Deve-se todavia notar que os Grandes Reis, quando ficam doentes, não recorrem aos magos, mas a médicos. Cambises manda buscar um médico egípcio para tratar de seus olhos, e Dario, para tratar seu pé, recorre aos cuidados de Demócedes de Crotona. 60 A maneira de agir dos citas é absolutamente normal ou Heródoto, ao apresentá-la, apenas finge considerá-la normal? Em todo caso, a adivinhação é o equivalente funcional de um diagnóstico: nomear o perjuro é indicar a causa das dores que afligem o rei (dià taüta algéei o basileús). Elencar a causa do mal é, ao mesmo tempo, proferir a condenação do culpado. O diagnóstico é, pois, uma forma de julgamento, e a adivinhação funciona como um procedimento de ordália. A seu modo, os adivinhos são "mestres de verdade",61 e suas palavras conjugam, a um só tempo, mântica e justiça. A Grécia conheceu essa forma de justiça nos locais onde se recorreu à adivinhação. Assim, em Mantinéia, ainda no século V, "num processo de sacrilégio, um tribunal misto de sacerdotes e juízes fixa a sanção a ser infligida eventualmente aos culpados, mas faz a condenação depender de um oráculo"; 62 o fato de 155
tratar-se de um sacrilégio não é seguramente estranho ao emprego desse procedimento arcaico, que Glotz qualifica de "ordália sem sofrimento". Os adivinhos citas, proferindo suas fórmulas e manejando suas varetas para designar o sacrilégio que é o perjúrio, praticam eles próprios uma espécie de "ordália sem sofrimento". Não se trata, de modo algum, de descobrir uma verdade de tipo histórico, que será a conclusão de uma investigação, mas, pela "aplicação correta, ritualmente perfeita do procedimento",63 a verdade se diz, não se demonstra; ela prova, mas não se prova. Essa prova de tipo antigo, que é a adivinhação, funciona, além disso, como prova decisória. 64 Se os adivinhos que vêm em segundo lugar confirmam, pela adivinhação, o "diagnóstico" dos primeiros, então o perjuro deve morrer imediatamente (ithéos). A sentença é determinada mecanicamente pelo resultado da adivinhação. Do mesmo modo, no caso contrário, quando a.maior parte dos adivinhos pronuncia-se a favor da inocência do homem designado pelos primeiros como perjuro, então são os primeiros adivinhos que devem automaticamente morrer ( d é d o k t a i ) . É assim: a sentença não se discute e a adivinhação é igualmente uma prova decisória. A adivinhação, em suas relações com o rei, é, portanto, a um só tempo, um diagnóstico, uma ordália, uma prova de tipo arcaico — mas é mais ainda. Com efeito, a partir do momento em que o perjuro é levado à presença dos adivinhos, a mise en scène muda bruscamente e nos encontramos no recinto de um tribunal, no momento em que se desenrola o processo: o perjuro, aquele que a adivinhação designou como tal, aparece desde então sob os traços de um acusado — ele é "preso" e "conduzido". 65 O que faz ele? Como todo acusado, começa negando: não, ele não é um perjuro. São precisamente essas denegações que transformam a confrontação em processo. Com efeito, ouvindo suas lamentações é que o rei manda procurar outros adivinhos, sempre em número duplo. Contestando a legitimidade da ação, o acusado leva o rei a intervir, assumindo a posição de juiz que controla o desenrolar do processo. Também então o rei cita desempenha um papel surpreendente: ele é, ao mesmo tempo, o paciente sobre cujo corpo se debruçam os adivinhos médicos e o 156
presidente de um tribunal onde se julga um ataque a seu "corpo político". Nessa nova distribuição de papéis, os adivinhos, tão logo se põem em presença do perjuro-acusado, transformam-se em litigantes e empregam um vocabulário jurídico. Eles o "acusam" ( e l é n k h o u s i ) de perjúrio — élenkhos é a prova suficiente para acusar alguém; eles o "condenam, depois de tê-lo acusado" (katadésosí), ou o "declaram inocente" (,apolysosi). São todas expressões retiradas do agón judiciário, em que a palavra se faz diálogo e busca acusar. Mas este agón atinge rapidamente o limite, pois nele não pode haver verdadeiramente diálogo. Para sua defesa, o acusado não pode, com efeito, senão "negar" e "proferir vivos lamentos" ( d e i n o l o g é e s t h a i ) , mas não tem nenhuma possibilidade de provar sua inocência, demonstrando-a. Quanto aos adivinhos, na condição de pessoas que sabem, utilizam eles a adivinhação como testemunho, mas, na medida em que esse saber não se discute e em que esse testemunho não "se presta a uma utilização positiva",66 continua a funcionar como prova, no sentido arcaico do termo. Na sua tentativa de acusar, os adivinhos contentam-se, de fato, em invocar a adivinhação: "Aparece na adivinhação que ele cometeu perjúrio" ( e p i o r k é s a s phaínetai en têi mantikêi), contentam-se em dizer — ou ainda, "vêem eles na adivinhação" ( e s o r ô n t e s es tèn mantikén).67 Dessa vez, Heródoto insiste no caráter ocular da adivinhação, para marcar bem que se trata de algo que não se discute. Dito de outro modo, este "tribunal" cita não é o Areópago da Orestia, que recebe como missão julgar não a partir de juramentos, mas baseado em indícios e testemunhos. No presente caso, não se trata de "investigação". Este estranho tribunal reserva ainda uma grande surpresa: é finalmente a maioria que decide — se a maioria dos adivinhos condena o acusado, ele é decapitado; se a maioria o declara inocente, ele é solto. 68 A aplicação dessa regra faz pensar no procedimento do juramento em grupo. Conhece-se uma lei de Cuma (na Eólida) sobre o assassino: "Se o acusador pode fornecer, dentre seus próprios parentes, um número definido de testemunhas, o acusado é culpado de assassinato." 6 9 Aristóteles dá essa lei como exemplo de ingenuidade, mas também da simplicidade e da barbárie da legislação de outros tempos. Conhecem-se outros casos, principalmente em Creta, 157
em que o juramento, prestado em grupo, tem um valor decisivo." Sobre o assunto, observa Gernet: Este procedimento, bem conhecido dos direitos antigos, surge como uma reviravolta, já que revela, com uma sorte de ingenuidade, uma certa exigência de prova, não deixando de participar de uma certa concepção primitiva do julgamento: não sendo nem "testemunhas de verdade", nem "testemunhas de credibilidade", como se tentou provar que fossem, os que juram em grupo, por seu empenho coletivo, não permitem nenhuma afirmação sobre o "fato"; eles orientam uma decisão sobre o "direito", o que significa que, se são bastante numerosos, asseguram a "vitória" da parte familiar que representam. 71
Se a lembrança desse procedimento permite lançar alguma luz sobre o funcionamento do "tribunal" cita, existem diferenças não menos notáveis entre os dois. Os adivinhos não representam, com efeito, nenhuma "parte familiar", mas sobretudo não fazem nenhum juramento. Não há juramento em grupo, mas, mais propriamente, adivinhação em grupo. No total, este texto, aparentemente simples, revela-se difícil. As poucas aproximações propostas permitiram mostrar que, nessa produção da verdade, a adivinhação funciona, a um só tempo, como ordália, como prova e como testemunho. Bem entendido, uma parte da dificuldade provém do fato de que Heródoto evita fornecer precisões. Por exemplo, uma vez executado o perjuro, o rei fica curado? Se o presumido perjuro é finalmente inocentado, os adivinhos devem designar um outro? E assim por diante. Mas sua sucinta rapidez contribui para criar um efeito de alteridade. Trata-se de um dos procedimentos à disposição do viajante para sugerir distância. Este texto é difícil de apreender, pois é difícil apreciar a maneira como poderia ser recebido por um ouvinte de Heródoto: como se via esse processo? Como um procedimento estranho? Como uma maneira muito arcaica de dizer a verdade? Ou, pelo contrário, como um procedimento ao qual se pode recorrer, pelo menos em certos casos? Afinal, em Mantinéia, em pleno século V, num processo de sacrilégio, faz-se condenação do culpado depender de um oráculo! O texto de Heródoto testemunha, em todo caso, a forma estreita como se entrelaçam mântica, pré-direito e direito.
158
A doença do rei põe em movimento todo um processo de produção da verdade no termo do qual fica "provado" que o perjuro é um verdadeiro perjuro, e os adivinhos são adivinhos verdadeiros,72 ou, ao contrário, que o perjuro é um falso perjuro, e os adivinhos são adivinhos mentirosos (pseudomãntis). Mas, nos dois casos, a história termina com execuções. O perjuro tem a cabeça cortada ( a p o t á m n o u s i tèn kephaléri), o que significa que é tratado como um inimigo. Os citas, com efeito, cortam a cabeça de seus inimigos. 73 Cortar-lhe a cabeça implica não mais considerá-lo como cita; há um cita célebre que sofreu esta morte seguramente infame, Ciles,74 traidor dos nómoi de seu povo, mandado decapitar pelo próprio irmão. O perjuro é, pois, um inimigo e um traidor — e a morte que lhe é infligida confirma que perjurar pelos lares reais significa minar a força que funda a koinonía cita. Já os adivinhos que se revelam "mestres de falsidade" devem também desaparecer. O ritual de sua morte é estranho e único: eles não são tratados como inimigos, mas sofrem uma morte nômade: E n c h e - s e uma c a r r o ç a com um monte de p e d a c i n h o s de madeira e atrelam-se bois a ela; os adivinhos, entravados, com as mãos amarradas atrás das costas, amordaçados, são inseridos no meio destes pedacinhos de madeira; põe-se fogo na madeira e faz-se partirem os bois, assustando-os. 75
O adivinho que se revelou um mau médico, incapaz de dizer a doença do corpo do rei, incapaz de produzir a verdade, é expulso do corpo real. Nem injuriado, nem flagelado, nem lapidado, mas queimado, ele irá aniquilar-se na estepe, onde suas cinzas se dispersarão: pharmakós que não seria todavia carregado senão de sua própria "falta", ele morre por ser um pseudomãntis, um mestre de falsidade. Antes de ser enterrado, o rei morto é levado à casa de seus súditos, o cidadão comum visita seus parentes, mas o adivinho é lançado sobre uma carroça que o fogo devora. Seu cadáver carbonizado ignorará a sepultura e ninguém virá recolher suas cinzas. Ele foi apagado: a estepe é como o mar. Mestres de verdade, mestres de acusação, os adivinhos são os médicos do rei, mas o são pondo em risco a própria vida. Se seu poder é grande, sua fragilidade não é menor 159
e a combinação dessa força e dessa fraqueza marca bem a ambigüidade de seu estatuto diante do poder que eles servem e que deles necessita. Uma tal ambigüidade não tem, por outra parte, nada que possa surpreender os gregos, que conhecem bem a problemática das relações entre o adivinho e o soberano, bastanto lembrar a personagem de Tirésias. 76 A ambigüidade de sua posição é, por outro lado, redobrada, já que existe, entre os numerosos adivinhos citas, uma categoria especial, os enareus, que são "andróginos". 77 Contudo, também com relação a estes últimos, Tirésias, tendo sido homem, depois mulher, depois de novo homem, testemunha que os adivinhos citas não fazem mais que participar da categoria dos mediadores que os gregos representaram sempre como seres ambíguos. A doença do rei mostra que a personagem real é a figura central de um poder despótico, em que corpo real e corpo social tendem a confundir-se. Ele é, ao mesmo tempo, o paciente à cabeceira do qual se debruça e o juiz que, de uma ponta à outra, controla o processo: ele é aquele que manda matar. A centralidade desse poder exprime-se através do lugar de Héstia e pelo papel fundamental que desempenham os lares reais.
O CORPO MORTO: OS FUNERAIS DOS REIS E digo-vos uma outra grande maravilha: quando os corpos dos Grandes Cãs são levados às montanhas para serem inumados, ainda que possam estar elas longes quarenta dias ou mais, todas as pessoas que se encontram pelo caminho são passadas pelo fio da espada por aqueles que conduzem o corpo. E dizem eles, quando matam: "Ide servir vosso senhor no outro mundo!"78
Assim, os ritos funerários sempre foram um aspecto privilegiado para os observadores, os viajantes e os etnólogos. Para quem sabe ver, eles dizem muito sobre a vida da tribo, da etnia ou da sociedade; para quem é bom entendedor, permitem reconstituir o sistema de representações do grupo ao qual pertence aquele ou aquela de quem se celebram os funerais." A questão levantada será, pois, a seguinte: que estatuto dá o discurso de Heródoto à morte do outro? Que pertinência tem essa figura se tomamos como exemplo privilegiado os funerais dos reis citas?80 160
A morte é signo de alteridade e intervém na grande partilha, sempre recomeçada, entre o mesmo e o outro: ela é um operador de diferença, ou seja: "Dize-me como morres e te direi quem és." Mas ela é também, na mesma medida em que intervém como discriminadora, rubrica e objeto de classificação: o observador pode, com efeito, construir um quadro dos costumes funerários, desde, por exemplo, o "próprio extremo" até o "extremo outro". Luciano, no tratado intitulado Do Luto, baseia-se na pertinência dessas distinções, quando declara: "...o grego queima; o persa enterra; o hindu põe sob vidro; o cita come; e o egípcio salga" o cadáver. 81 MORTE E ESPAÇO CÍVICO A morte está ligada ao espaço. Ele é mesmo um elemento da representação do espaço: o que faz a comunidade com seus mortos? Guarda-os em casa? Instala-os num lugar especial etc.? Isso tanto é assim, que alteridade da morte e alteridade do espaço avançam provavelmente como um par. Onde a cidade clássica põe seus mortos? É de regra não enterrá-los no interior da cidade. 82 Conhece-se, bem evidentemente, um certo número de exceções: assim, a regra parece não ser válida no caso de crianças. Pausânias assinala a presença de túmulos no interior de Mégara;83 foi encontrada uma necrópole no espaço interior de Tarento; há enfim o caso de Esparta que também com relação a isso marca sua diferença: "Para suprimir todo temor supersticioso, ele [Licurgo] não proibiu enterrar os mortos na cidade, localizando os túmulos perto dos templos." 84 Diante desse fato estranho, Plutarco opera uma racionalização pelo exemplo: se Licurgo assumiu assim o oposto do uso normal, foi bem evidentemente em virtude de uma preocupação pedagógica. "Educando assim os jovens no meio dos túmulos, habituou-os a este espetáculo, de modo a tirar-lhes o medo e o horror da morte e a idéia de que ela suja aqueles que tocam um corpo morto ou passam através de uma fileira de túmulos." 85 Mas existe também uma outra categoria de pessoas que se excetuam: trata-se dos heróis. Onde a cidade os enterra? Uma rápida incursão por este problema faz-se necessária, a fim de que possamos compreender os funerais dos reis citas. A cidade honra, de boa vontade, um herói, dando-lhe um 161
sepulcro na agoráv.86 Ádrasto, de quem Clístenes queria desembaraçar-se, estava alojado na ágora de Sicion; 87 do mesmo modo, Teseu foi levado oficialmente, em 476, para o Tesêion, "no próprio centro da cidade". 88 Uma outra categoria, próxima da precedente, tem com freqüência as honras da ágora: os fundadores da cidade. Esse é o caso de Bato em Cirene; 89 depois, mais tarde, o de Temístocles em Magnésia do Meandro e o de Brasidas em Anfípolis... 90 Um escólio a Píndaro parece mesmo fazer disso uma regra: "Os oikistaísão habitualmente enterrados no centro das cidades." 91 Outra hospedagem possível para os heróis: as muralhas e, mais particularmente, as portas da cidade. Etolo, por exemplo, filho de Óxilo, foi enterrado em Élis, na própria porta; 92 ou ainda o príncipe de Erétria, cujo túmulo, escavado por C. Bérard, "se insere facilmente numa série de herôa situados, com freqüência, no interior dos recintos murados, visando a uma defesa sobrenatural das portas... Em Erétria, os manes do príncipe do túmulo 6 e de seus guerreiros guardavam a porta do oeste, em face de Cálcis, sua rival".93 Há ainda um terceiro lugar onde pode ser interessante enterrar um herói: as fronteiras do território. Corebo, o primeiro vencedor olímpico, repousa "nas fronteiras da Élida" (epi tôipérati94) e diz-se que seu túmulo "delimita" ( h o r í z e i ) a região; um outro Corebo, filho de Migdon, possui uma sepultura "nas fronteiras da Frigia" ( e n hórois).95 Esses poucos exemplos são suficientes para mostrar que um herói pode ser enterrado tanto na agorá e nas portas d^ cidade, quanto nas fronteiras do país. 96 Há, pois, do ponto de vista da representação do território, uma equivalência entre os três lugares. Qual é, com efeito, a primeira função do cadáver assin honrado? Espera-se dele que faça a guarda, que defenda o território ou que assegure a vitória. Heródoto, por exemplo, conta em detalhe as aventuras dos ossos de Orestes. O.espartanos são constantemente vencidos pelos tegeatas. Ta. regularidade não podendo ser atribuída senão à hostilidade de algum deus, consultam eles a Pítia, que lhes promete _ vitória no dia em que tiverem mandado vir para junto deleos ossos de Orestes: então "tu te tornarás protetor de Tegéia Após longas buscas, um espartano, Liças, terminou descobrind: 162
os ossos em Tegéia mesmo, na casa de um ferreiro; ele os transportou para Esparta, onde foram enterrados na ágora; "a partir desse momento, todas as vezes que os lacedemônios e os tegeatas lutavam uns contra os outros, os lacedemônios levavam uma grande vantagem". 97 Do mesmo modo, Teseu é trazido da ilha de Siros para Atenas. Se a cidade se ocupou de seu retorno, pensa Plutarco, 98 foi, antes de tudo, porque seu espectro em armas apareceu aos soldados de Maratona. 99 Quando Cimon tornou-se senhor da ilha, empregou "todo seu zelo" na busca e terminou "descobrindo o ataúde de um homem de grande tamanho, com uma ponta de lança e uma espada de bronze de cada lado". Inversamente, a cidade pode desejar banir um herói que, ela crê, a prejudica. Assim, Clístenes decidiu "banir" Ádrasto da ágora de Sicion, pois ele era argivo. Ora, Clístenes estava em guerra contra Argos. Ter Ádrasto na -ágora era como ter um traidor no próprio coração da cidade. A Pítia não aprovando esse projeto, ele renunciou ao mesmo e tentou fazer Ádrasto partir "por si mesmo", usando o seguinte subterfúgio: instalou, igualmente na ágora, perto do pritaneu, Melanipo, um outro herói, que considerava como o pior inimigo de Ádrasto. Há portanto laços muito estreitos entre o herói e o território. Quando os tegeatas "perdem" Orestes, perdem, ao mesmo tempo, a supremacia militar e, no fim das contas, a supremacia de seu território; simetricamente, os espartanos ganham o que perdem os tegeatas: o herói é, pois, como que a figura metonímica do território. Nessas condições, compreende-se que, desde que se trata de invocar uma dessas figuras, a Pítia queira dizer algo, senão mesmo a última palavra. Enfim, há o caso das personagens que são enterradas em lugares secretos. Assim Periandro, tirano de Corinto, pouco seguro de seu futuro póstumo, concebe o seguinte estratagema: "Ele ordenou a dois jovens que partissem de noite por um caminho que lhes mostrou e que matassem e enterrassem o primeiro homem que encontrassem. Quatro outros homens foram enviados após os dois primeiros, com a missão de matá-los e de enterrá-los, etc."100 O primeiro homem encontrado pelos dois jovens era, evidentemente, o próprio Periandro. O que ele claramente desejava era evitar que lhe acontecesse o mesmo que havia acontecido a seu sobrinho Cípselo, a
163
saber, a violação de sua sepultura: "O povo" — escreve Nico„_ de Damas — "...jogou o cadáver de Cípselo além da fronteir: sem sepultura, violou os túmulos de seus ancestrais e es-. aziou-os das ossadas".101 Ressalte-se o detalhe "além da fronteira" o cadáver, longe de ser benéfico, torna-se, ao contrário, uir_ espécie de pharmakós que se expulsa para fora do territór:: Ao lado dessa razão egoísta e tirânica para ter uma sepultur. ignorada, existe uma razão "altruísta" e heróica: evitar que os inimigos da cidade, sabendo onde se encontra enterrad: tal herói protetor, tomem posse de seus ossos e assegurer: assim sua superioridade. É a essa razão que alude Plutarcc quando escreve que os heróis têm túmulos "secretos" e "difíceis de encontrar". 102 O exemplo mais claro é o de Édipo, er Colono. 103 No momento de sua morte, mandou chamar Tesea que, com efeito, é o único que pode conhecer o local exatc onde irá morrer; ele, o cego, torna-se então o guia de Teseu até o lugar preciso do "túmulo": Mas tu, não indiques a nenhum outro homem, nem reveles onde ele se esconde, nem o local onde se encontra se queres que, um dia, eu te valha uma ajuda igual a mil escudos. 1 0 4
Esse "exército de reforço" que Édipo oferece permitirá justamente manter Atenas ao abrigo da devastação que ameaçar/, infligir-lhe os "filhos da terra". Banido de Tebas, Édipo torna-se o mais qualificado para proteger a Ática contra Tebaí — de pharmakós, ele se torna herói protetor. 105 O segredo da sepultura é, em tudo, como o segredo da senha numa guarnição, quando a cidade se encontra sitiada — ele reforça a eficácia da proteção. O percurso pelas sepulturas heróicas permite compreender melhor os funerais dos reis citas que, de todo, se referem implicitamente a esse esquema espacial e o fazem funcionar diferentemente. TÚMULO E ESKHATIÁ Onde são enterrados os reis? Entre os gerros. 106 Os gerros habitam na região chamada de Gerro e são os mais recuados (éskhata) dos povos que obedecem aos citas. Para atingir seu 164
país, é preciso subir o Borístenes, dirigindo-se portanto para o norte durante quarenta dias. Esse lugar marca também o limite da parte navegável do Borístenes e o seu último ponto conhecido. Acima (tô katúperthé), não se sabe que direção exata segue seu curso, nem quais populações vivem às suas margens; é igualmente neste ponto que se separa do Borístenes o rio Gerro, que irá lançar-se no Hipáciris.107 O Gerro delimita portanto uma zona de eskhatiá, além da qual se estendem espaços sobre os quais ninguém tem nada a dizer,108 nem mesmo por ouvir dizer, sendo aí, nessa zona de confins, que os citas enterram seus reis. Por que aí? Não se trata de instalá-los aí, à semelhança de algum herói, para que protejam a "fronteira" norte do país contra as incursões de povos selvagens ou particularmente belicosos, já que, com certeza, não se sabe o que há além. Acredito que, pelo contrário, eles são colocados nesse local não para proteger, mas. estarem eles próprios protegidos, como se protege o corpo do herói dando-lhe uma sepultura tida como secreta. O norte é, para os citas, uma proteção, um refúgio: vê-se isso no momento da invasão de Dario. Entre as medidas de salvaguarda que se tomam, há com efeito uma que prevê a partida das mulheres, das crianças e da maior parte dos rebanhos: "Ordenaram ao comboio que marchasse sem cessar para o norte." 109 Mesmo instalados nas margens da Cítia, os reis não se encontram menos ligados ao "território", sem o que não se compreenderia que fossem postos a salvo. É bem isso o que quer dizer o rei dos citas, Idantirso, quando envia a Dario (que não compreende por que o outro se recusa a entrar em batalha com e l e ) a seguinte mensagem: "...Encontrai os túmulos de nossos pais, tentai violá-los e então sabereis se nós entraremos em combate convosco por esses túmulos ou se recusaremos o combate. Mas, até então, se não tivermos vontade, não entraremos em batalha convosco..." 1 1 0 Para Idantirso, há, pois, uma ligação entre os túmulos reais e o país: encontrar e violar uns, é prejudicar o outro. Encontrar os túmulos dos reis equivaleria, na Grécia, a encontrar o túmulo de um herói. Seria portanto adquirir supremacia (ao menos virtual) sobre o território. Vivo, o rei ocupa um lugar central, como indica a posição fundamental de Héstia, a "rainha dos citas", e a importância 165
do juramento feito pelos "lares reais". Ele representa exatamente o lugar central, mas um centro móvel. Como explicar então que, uma vez morto, seja transportado quase para os limites do mundo conhecido? Sem dúvida, o norte é, para os citas, zona de refúgio. Mas há nesse procedimento uma razão mais fundamental: o nomadismo. A cidade enterra seus heróis na agora, nas portas ou nas fronteiras — e os túmulos, assim dispostos, balizam o espaço e participam da criação de uma representação do território cívico. Mas os citas, como lembra Idantirso a Dario, não têm "nem cidades, nem terras cultivadas". Eles são, ao contrário, um povo do percurso e dos acampamentos. Seu território é uma terra de percurso e não um espaço "ordenado". Como, pois, tratar os reis mortos, que ocupam um lugar central e representam o centro, já que não existe ágora para recolher seus corpos? Tendo morrido o rei, diz o texto que os citas "carregam" (analambánousi) seu cadáver sobre um carro. Não se indica onde ele está: precisamente, ele não está em parte alguma, ele não tem um lugar institucional. O rei pode morrer em todos os lugares. Vivo, ele é, com efeito, um círculo móvel cuja circunferência se encontra em toda parte e o centro em parte alguma. O compromisso elaborado entre a exigência do nomadismo e a centralidade funcional equivale a um ponto fixo "excentrado": o túmulo será situado nas margens. Não tendo nem cidade, nem terra cultivada para defender, os citas não têm porque entrar em batalha ordenada com Dario que, no limite, não é invasor. Pelo contrário, se ele encontrar os túmulos reais, tornar-se-á um "invasor" que é preciso combater. O espaço de percurso não é, pois, um espaço totalmente indiferenciado, mas comporta um ponto nodal que é sua figura metonímica. Heródoto explica essa metonímia: no momento de enterrar seu rei, os citas cavam, no país dos gerros, uma "grande fossa quadrada" (tetrágonon); um pouco mais adiante, no texto, o narrador estabelece que o território da Cítia, em seu conjunto, é quadrado: "Admitindo-se que a Cítia é um quadrado..." 111 Para fixar o espaço dos funerais dos reis citas, Heródoto retoma, portanto, o esquema que determina as relações entre espaço cívico e o túmulo do herói, mas o operador do nomadismo faz com que aquilo que estava no centro continue sendo centro, tornando-se todavia "excentrado". Ele pensa esse espaço fúnebre de acordo 166
com os mesmos termos, operando um deslocamento: para a cidade, a zona dos éskhata é o que está mais longe do centro; enquanto, para os citas, os éskhata detêm precisamente o lugar central. Em outros termos, esse lugar "excentrado", esse ponto fixo na fronteira é o que permite ao espaço cita aparecer como espaço nômade. Pertence, pois, à própria lógica da narrativa localizar esses túmulos não no "território" cita (o que significaria negá-lo como espaço nômade), mas em suas margens (o que o constitui como espaço indiferenciado, sem ponto de referência fixo). Antes de o cadáver atingir esse espaço da morte, têm lugar cerimônias grandiosas e estranhas, em que a alteridade parece enorme. Entre a morte e os funerais, acontece, normalmente, na Grécia, a cerimônia da próthesis-. o morto, após ter sido lavado e vestido pelas mulheres, pelos parentes mais próximos ou por mulheres de mais de sessenta anos, é apresentado sobre um leito. Essa apresentação, que acontece no dia seguinte ao da morte, dura habitualmente um dia: "O objetivo da próthesis não é só confirmar a morte, mas também dar oportunidade para a realização das lamentações tradicionais e para os amigos e a família renderem as últimas homenagens ao morto."112 Entre os citas porém não se encontra procedimento análogo à próthesis. Pelo contrário, o cadáver do rei é, com efeito, transportado sobre um carro de povo em povo; cada povo o recebe e transmite, por sua vez, ao povo seguinte, até que se chega junto dos gerros, que são os últimos. Assim, não são os súditos que vêm render uma última homenagem ao rei, mas é o rei que lhes faz uma última visita. Trata-se, portanto, de um procedimento que é exatamente o inverso daquele da próthesis, cuja explicação deve ser buscada no nomadismo. A figura central do rei não pode ser senão uma figura móvel e o carro fúnebre, que corre para o norte, mas que, ao mesmo tempo, percorre (perielthein) os povos sujeitos ao rei, um após o outro, é como que a transcrição disso. Esse longo cortejo, que Heródoto não designa pelo termo habitual de ekphorã, evoca ainda, para o ouvinte, os funerais das grandes famílias do passado 113 — e é precisamente contra essa hybris que a cidade busca reagir, impondo um modelo comum de funerais. O tratamento reservado aos mortos comuns confirma que a explicação dessa "próthesis invertida" deva ser buscada no 167
nomadismo: eles também são postos sobre um carro e ã visitar seus parentes. Assim como os reis passam de povo en povo, eles vão de casa em casa, ou melhor, de carroça eu carroça, "fazendo a ronda" ( p e r i á g o u s i ) de seus parer.:=s (phílous). É preciso quarenta dias de navegação para a t : r . o Gerro; os cadáveres das pessoas comuns também circu^_(períágontai) durante quarenta dias antes de serem sepultado; M MUTILAR, EMBALSAMAR, ESTRANGULAR Assim, todos os povos do "império" cita participam suce; 5 vãmente do cortejo fúnebre. Sob que forma sua participação requisitada? Aqueles que r e c e b e m o c o r p o que lhes é levado agem coros citas reais: cortam ( a p o t á m n o n t a i ) um p e d a ç o da orelhí raspam o c a b e l o ( p e r i k e í r o n t a i ) em torno da c a b e ç a , fazrincisões ( p e r i t á m n o n t a i ) nos braços, rasgam (katamysson:.
i
a fronte e o nariz, cravam ( d i a b y n é o n t a i ) f l e c h a s na m i e esquerda.115
À visão do cortejo avançando de povo em povo, é precisc ainda ajuntar a das mutilações que, passo a passo, o acompanham, rastro indelével que se estende desde o país c : citas reais até o país dos gerros. O narrador não esclareci absolutamente quem são "aqueles que o recebem". Todessa cena se desenvolve, com efeito, na intemporalidadr do presente e praticamente sem a mínima marca de enunciaçâ: O vocabulário empregado para evocar essas manifestaçõe: não é indiferente pois, na sua maior parte, circunscreve : mundo bárbaro no qual a prática da mutilação é uma form_ de exercício do poder.116 Os Grandes Reis, os faraós, às veze; usam a mutilação e ela figura também em certos usos da guerra especialmente citas. Há uma ligação muito evidente entre a esfera do direito e a mutilação.117 Assim, a cidade grega interdita mutilação: não se deve tocar na integridade do corpo d; cidadão. Só o escravo, quando se quer colher seu testemunhe quando se quer extorquir-lhe a verdade, é submetido a essa prova. É curioso constatar que exclusão da pólis e exclusão da verdade vão de par. Inversamente, praticar a mutilação é 168
pôr-se fora da esfera do direito — e, entre os citas, não existe direito, nem mesmo pré-direito. Assim, mutilar, mutilar-se, às vezes simplesmente golpear-se, por ocasião dos funerais, diz respeito antes de tudo a algo estranho à cidade. Além dos citas, adotam essa prática os egípcios: "[As mulheres da casa] erram através da cidade, golpeando-se, com as vestes presas por um cinto, os seios descobertos e, com elas, todas as mulheres da família; de outro lado, os homens também golpeiam-se, as vestes presas por um cinto." 118 Essas práticas remetem também a um passado já completado, para um antes em que a cidade não era ainda verdadeiramente a cidade. No caso de Atenas, por exemplo, isso remete para antes da legislação de Sólon. Quando Epimênides veio a Atenas e tornou-se amigo de Sólon, "acostumou os atenienses [...] a serem mais comedidos (praotérous) nas manifestações de luto [...], suprimindo práticas rudes e bárbaras,' às quais a maior parte das mulheres se submetia antes". 119 O que são estas "práticas rudes e bárbaras" é esclarecido um pouco mais à frente: "[Sólon] proibiu as mulheres de machucar a pele golpeando-se, de proferir lamentações afetadas e de chorar um outro que não aquele de que se fazem os funerais." 120 Ao contrário, no mundo da epopéia, essas manifestações de luto "excessivas" são perfeitamente admitidas. Após a morte de Pátroclo, Aquiles e os mirmidões abandonam-se longamente às lágrimas e "alimentam-se de lamentos". 121 Além disso, antes de pôr fogo na fogueira de seu amigo, Aquiles não hesita em oferecer-lhe os cachos de sua cabeleira. 122 Do mesmo modo, no universo trágico, o coro das Suplicantes pode dizer: "Minha carne arada por minhas unhas e a cinza semeada sobre minha cabeça." 123 Essas manifestações de luto remete para um outro tempo, anterior, mas são também uma coisa de mulheres: o perigo, na cidade, vem das mulheres. Se o legislador não se precavém, elas podem sempre levar os funerais ao excesso. São elas, sem dúvida, que intervêm em diferentes momentos da cerimônia, mas é preciso determinar os limites que não devem de modo algum ultrapassar. A lei de Iúlis determina, por exemplo, quais são as mulheres autorizadas a entrar na casa do morto e indica que a ekphorá deve ser feita "em silêncio". 124 No que diz respeito aos reis citas, Heródoto não detalha se o cortejo fúnebre
169
era acompanhado de lamentações e de gemidos: tudo parece passar-se sem o menor murmúrio. Se os participantes do cortejo fúnebre se mutilam, o cadáver do rei é, ao contrário, particularmente honrado, já que embalsamado: "Após ter sido aberto e limpo, o ventre é enchido com pedra esmigalhada, com incenso, com semente? de aipo e de anis, sendo depois costurado de novo." 125 Ess_ operação é de todo surpreendente, e as plantas utilizada? pelos embalsamadores citas não aparecem de novo er. nenhum lugar das Histórias, salvo o incenso, que é empregad; pelos especialistas egípcios. 1 2 6 Quanto ao procedimento empregado, "lembra" o ritual do sacrifício a ísis, no curso do qual o ventre da vítima é enchido com substâncias aromáticas. Por que essas plantas? Elas fazem parte dos arômatas e são portanto reputadas por seu "bom odor"; 127 elas têm portanto a mesma função que os arômatas qué os egípcios misturam no ventre da vítima. Mas, por outro lado, uma dentre elas, o aipo, aparece na Grécia num contexto funerário. 128 Assim, os soldados de Timoleonte, percebendo mulas que transportavam aipo, julgam que é um sinal de mau agouro, pois "tem-se o costume de coroar de aipo os túmulos dos mortos". Existe ainda um provérbio que diz: "Quem está muito doente, precis^ só de aipo." 129 Plínio fala também do "aipo consagrado aos banquetes fúnebres". 130 Se a relação entre o aipo e a morte existe para os gregos, é claro que os citas, nesse contexto, operam um deslocamento considerável, já que se servem dele para embalsamar o cadáver do rei. Antes do embalsamamento, tem lugar uma outra operação que consiste em "untar o cadáver com cera". Essa prática, se é excepcional, não é única: é empregada pelos persas, que "untam com cera o cadáver, antes de enterrá-lo".131 Ela é ainda atestada em Esparta, num caso preciso. Assim, a maneira como os citas preparam o cadáver de seu rei remete o leitor ao Egito, aos persas e, enfim (fora do contexto das Histórias), a Esparta, mas, a cada vez, com certas diferenças. A questão última é saber se é possível atribuir algum sentido a esses desvios. Entre os persas, parece que todos os cadáveres eram untados com cera. O embalsamamento, no Egito, é um negócio que se conclui com um misthós:132 há três tarifas, possuindo a 170
múmia um certo valor, já que, como caução de uma dívida, pode-se depositar a múmia do pai.133 Com relação à cidade grega, observe-se que ela recusa de todo o embalsamamento. O cadáver é banhado, ungido com óleo, vestido e enfeitado pelos parentes mais próximos ou pelas mulheres com mais de sessenta anos. O cadáver do rei é posto sobre um carro e, no fim dessa longa próthesis invertida, tem lugar a cerimônia fúnebre propriamente dita. O horrível esplendor dessa cena muda dá poucas chances para comentários: como a receberia um ouvinte grego? À carga de alteridade que ela transporta não poderia responder senão o espanto, também mudo, do "espectador". Em Atenas, por ocasião dos funerais públicos celebrados em honra dos soldados mortos, a cerimônia é uma celebração da cidade pela voz do orador designado. Nicole Loraux mostrou a que ponto a bela morte, a dos ándres agathoí, marca a expansão de um dizer sobre um ver. Com efeito, a parte do que há para ver, no curso do funeral, é reduzida ao mínimo e o que conta é o discurso. 134 Entre os citas, ao contrário, ninguém diz o que quer que seja, nenhuma palavra autorizada dá sentido à morte, nenhum gemido dos súditos traduz a diminuição da comunidade. Não, os restos mortais passeiam num carro, são dados como espetáculo, como se afirma ser "digno de ser visto" também o cadáver do persa Masístio, igualmente levado sobre um carro. 135 Por que o silêncio? Pode-se explicá-lo pelo nomadismo. Com efeito, à cidade, que representa a plenitude da koinoma, tendo forjado um discurso de parte a parte político para expressar-se e guardar a memória de si mesma, opõem-se os nômades, que não são uma "comunidade" senão com dificuldade: o que poderiam eles dizer, memorizar ou celebrar? Mas a situação é provavelmente mais complexa. Os citas, com efeito, ainda que não elevem a voz e não articulem palavra alguma, falam, mas falam à sua maneira — em seus corpos e com seus corpos. Mutilando-se, inscrevem em seus corpos a lei cita e fazem de seus corpos a celebração e a oração fúnebre do rei morto. Pelas cicatrizes que trarão, seus corpos tornar-se-ão memória. 136 Mais ainda, essas mutilações não são exageros de violência feitos ao acaso, mas, ao contrário, parte do 171
cerimonial fúnebre. Elas devem ser realizadas no momer em que se recebe o cadáver, e os lugares do corpo em q j e devem inscrever-se são precisados (cabeça, braços, iri esquerda). Por outro lado, obedecer a essa etiqueta impi. reconhecer o poder do rei, mas também reconhecer-se c o r cita: "A melhor maneira de alguém atestar para si mesmo e de atestar para o outro que faz parte do mesmo grupo é imprir no corpo uma marca distintiva."137 O visível diz a que votr pertencem. Cada corpo assim marcado descreve o "brasâ dos reis citas. Na Grécia, são os escravos públicos que marcados com as armas da cidade; 138 a realeza não é, e n f r para um grego, o que impede toda palavra oral ou escrita? 1 citas não podem portanto falar a não ser por seus corpos e mais ainda, com a condição de dizerem que são súditos. À mutilação dos súditos corresponde o embalsamamer.: do rei. As duas operações não se compreendem, com efei: plenamente, se não são postas em relação uma com a outra Ao rebaixamento de uns, corresponde a exaltação do outr; A sorte do morto é tornar-se um "belo" morto (substituem-:e as vísceras por substâncias aromáticas e a cera impede 2 decomposição); a sorte dos súditos é a aikía, as sevícias en si mesmos, a degradação de seus corpos. A cidade, pe! contrário, proíbe tanto a mutilação, de que tem horror, quantc o embalsamamento, que lhe repugna, como duas conduta: marcadas pela hybris, sendo o discurso do orador que faz d^ morte dos cidadãos uma bela morte. Os citas formam portanto uma comunidade de que as marca: que se infligem são como que emblemas, mas é curiós observar que, talvez, eles nunca formem uma comunidadr de fato a não ser no momento da morte do rei, que não é re de fato senão depois de morto. Durkheim e outros mostrarar que as cerimônias de luto são meios, para a coletividade, dr demonstrar que não se encontra atingida, que sairá mesm. reforçada da prova. Mas os citas parecem não existir verdadeiramente como comunidade senão no momento dos funerais O avanço do cadáver sobre seu carro, seguido pelo cortejo domutilados que, a cada etapa, aumenta, marca sua verdadeira constituição. Até então, eles não são mais que bandos de nômades. O texto transcreve, além de tudo, essa mudança, ao precisar que, uma vez realizada a cerimônia, "toda 172
trabalham para elevar um grande outeiro, rivalizando uns com os outros para que seja o maior possível"; 1 3 9 nesse instante formam eles uma comunidade e pode, pois, aparecer, entre os grupos que a constituem, alguma coisa como uma espécie de emulação. O sêma real, longe nos éskhata, representa o território cita e figura seu centro. Ele torna-se, pois, um ponto de referência espacial, mas também se torna, curiosamente, uma sorte de ponto de referência temporal e de origem do tempo. Com efeito, é "ao término de um ano"(eniautoü) que se deve realizar a segunda cerimônia. Ao contrário, entre a morte do rei e os funerais poderia ter transcorrido tanto dois, quanto seis meses, já que nada estava fixado; mais exatamente, o tempo não contava. Desde então, os citas dispõem de uma referência temporal. Uma vez morto, o rei tem, por outro lado, uma verdadeira casa. Prepara-se-lhe um vasto espaço e dota-se-lhe de numerosos domésticos, o que faz pensar na casa do Grande Rei. A narrativa irá, daí em diante, acentuar a fixidez: para construir uma espécie de baldaquim vegetal, disposto sobre o cadáver, espetam-se, na terra, lanças. Para "levantar" a ronda macabra em torno do túmulo, como se levanta um monumento, fixam-se na terra "estacas", as quais servirão para sustentar os cavalos empalhados que se tem o cuidado de amarrar-se a uma estaca. Vivo, o rei percorre a Cítia a cavalo; morto, faz sua última viagem, a mais longa, de carro. Uma vez enterrado, tudo termina: os cavalos são empalhados e os carros desmontados. Pois, para instalar o círculo de cavaleiros, utilizam-se rodas, que não podem ser outras que as rodas dos carros. Elas são partidas em duas, pelo meio, e dispostas horizontalmente; 140 depois servem como suportes para os cavalos. O carro é, pois, desarticulado e seu "princípio" de mobilidade, as rodas, é transformado em seu contrário, em instrumento de imobilidade. As viagens, portanto, terminaram completamente e o mesmo se pode dizer do nomadismo: vivo, o rei era o centro móvel; morto, torna-se o centro fixo, embora excêntrico, de uma ronda que é, ela própria, imóvel. Essa descrição dos funerais, por mais inalcançável que seja, realiza todavia um certo número de desvios com relação às práticas gregas. Assim, foi proibido, por Sólon, "enterrar, com 173
o defunto, mais de três roupas"; 141 a lei de Iúlis determin. que as três mortalhas não devem valer mais de cem dracma? e fixa a quantidade de vinho e de óleo (três cantis) que Sc está autorizado a usar. Quando, em face dessas prescrições, considera-se a profusão do mobiliário funerário cita, não se pode senão constatar o desvio.142 Desvio também na dimensãc dos monumentos: os cômoros da época clássica e mesmo do período arcaico estão muito longe desse conjunto edificado para os reis. Desvio igualmente na natureza das construções: o monumento cita é construído com ajuda de materiais naturais, já que, além da terra, são utilizados um leito de folhas, lança? de madeira, traves, uma grade de caniço, ao passo que os túmulos gregos são feitos com pedras, tijolos, eventualmente gesso, e formam uma verdadeira construção. 143 Mas o desvio maior está nas ações realizadas sobre os túmulos. Os citas estrangulam (apopnígeí) uma concubina, o escansão. um palafreneiro, um cozinheiro, um valete, um mensageiro, cavalos — em resumo, a corte normal de um rei bárbaro. Em primeiro lugar, o estrangulamento é uma prática não grega de execução ou de assassinato, 144 marcando portanto uma diferença. Mais ainda, na Cítia, estrangular é um modo normal de sacrificar. 145 A ação que realizam os citas sobre a tumba de seu rei é portanto um sacrifício: estrangular essas pessoas corresponde, na cidade, à prescrição de Sólon proibindo sacrificar um boi aos mortos,146 ou à da lei de Iúlis estipulando que, "com relação ao sacrifício, tudo será conforme ao uso dos ancestrais". A distância entre as duas práticas mostra-se então máxima: à interdição do sacrifício do boi, responde um sacrifício humano. É preciso remontar até a epopéia — isto é, a um passado longínquo — para encontrar um sacrifício humano sobre a fogueira; é sem dúvida Aquiles quem sacrifica (mas degolando-os) doze troianos em honra de Pátroclo, aos quais ajunta ainda quatro cavalos e dois cães familiares. 147 Em seguida, vem a segunda fase, de uma certa maneira a mais enigmática: a cerimônia de quando se cumpre um ano. Trata-se de um imenso sacrifício (já que se estrangulam cinqüenta pessoas), ao qual se ajunta uma mise en scène que, para nós, parece mais uma descrição fantástica, sem falar que os sacrificados pertencem à casa do rei. 148 Nesse contexto funerário, encontra-se de novo a imagem do círculo, 174
referida acima. O sêma real fica no centro do círculo formado pelos cinqüenta servidores, ronda macabra de personagens empalhados. Depois da cerimônia fúnebre, tem lugar, como é normal, o ritual de purificação. 149 Mas se o rito é esperado, a forma como se realiza é surpreendente. Todavia, o aspecto enigmático desses banhos de vapor esclarece-se em parte, na medida em que se recorda que a armadura é constituída pela oposição entre a água, de um lado, e o fogo e a fumaça, do outro. O capítulo gira, com efeito, em torno da expressão anti loutroü: essa purificação desempenha a função de um banho, mas é também o contrário de um banho. Para alguns, como Meuli, a cerimônia revela autênticas técnicas de êxtase:150 do cânhamo faz-se o haxixe e, assim, reencontramos o xamanismo. Na Grécia, a água intervém continuamente nos ritos funerários e, especialmente, após um enterro, visando à purificação. Assim, a lei de Iúlis prevê que "os que estiverem sujos lavarão todo o corpo com muita água e ficarão puros". O mesmo acontece em Atenas.151 Mas esta oposição entre a água e o fogo-fumaça não explica o que fazem as mulheres citas que, pela primeira vez, são referidas distintamente. Elas untam o rosto e o corpo com uma pasta vegetal, que fabricam usando água. Pode-se, para resolver a questão, admitir, como faz Legrand, que Heródoto mistura ritos funerários e cuidados de beleza. 152 Após essa operação, as mulheres são, todavia, ditas puras ( k a t h a r a i ) . 1 5 3 Por outro lado, pode-se questionar o sentido dos ingredientes empregados para a fabricação da pasta: elas "ralam, sobre uma pedra áspera, vertendo água, madeira de cipreste, de cedro e da árvore de incenso". Eis algo absolutamente surpreendente, se recordamos que a Cítia é completamente desprovida de madeiras, salvo na região chamada Hiléia. Quanto à presença do incenso, é ainda mais surpreendente: ele vem, com efeito, do país das substâncias aromáticas, isto é, da Arábia, que é o "único país" do mundo que produz o incenso, a mirra, a canela, o cinamomo e o ládano, 154 um lugar aquecido e reaquecido pelo sol, enquanto a Cítia é a terra do frio. Essa pasta, composta de madeiras preciosas, oferece a característica essencial das substâncias aromáticas: o "bom odor". 155 O cipreste é algumas vezes reconhecido por 175
seu "bom odor"; 1 5 6 acontece o mesmo com o cedro. 1 5 7 O conjunto dessa cerimônia de purificação insere-se, pois, num contexto aromático: da parte dos homens, há a fumaça aromática que exala o cânhamo queimando (mas que comunicação ele instaura?); entre as mulheres, a pasta é composta de madeiras aromáticas. Um último traço marca, enfim, a estranheza dessa cerimônia. Quando os citas estão nessa espécie de "estufa", afirma-se que "se alegram e lançam uivos"158 ( a g á m e n o i oryontai). Existe aqui uma espécie de aliança de palavras. Heródoto emprega apenas uma vez oryontai, a propósito de pessoas que habitam o centro da Pérsia e que, para lamentar o Grande Rei, "lançam altos brados". 1 5 9 Mas, geralmente, o verbo aplica-se aos animais (o cão, o lobo) — e sobretudo aos animais selvagens. Os comentadores propõem freqüentemente que se corrija o texto, especialmente por causa da presença de agámenoi. Meuli vê aí um indício a mais do caráter enfeitiçador da cerimônia. 160 Em todo caso, essa palavra não pertence ao vocabulário normal da purificação e deve então surpreender, sem que nos esqueçamos, todavia, de que Heródoto escreveu muitas vezes que os citas viviam em éthea, tinham uma "pousada". Tem-se, pois, uma cena de purificação que se processa sem água — e essa é a diferença fundamental. Essa cena, por outro lado (pelo menos do lado feminino), desenvolve-se num contexto claramente aromático. Para poder determinar o sentido desses desvios, seria necessário poder contar com outras cenas do mesmo tipo. OS REIS ESPARTANOS Os funerais grandiosos e, sob muitos aspectos, únicos dos reis citas remetem, muitas vezes, a Esparta. Assim, vale a pena perguntar se os funerais dos reis espartanos não têm características que os aproximam dos rituais de morte do outro, mostrando como a partilha entre este e o próprio pode acontecer no interior mesmo da Grécia. 161 Quando Heródoto aborda essa questão, opera explicitamente um certo número de aproximações que indicam, sem nenhuma possibilidade de dúvida, o contexto no qual se situam essas cerimônias: "Os costumes dos lacedemônios, por ocasião da morte de seu rei, são os mesmos que os dos bárbaros da 176
Ásia."162 Um pouco adiante, nota ele uma semelhança com os hábitos dos persas: o novo rei perdoa as dívidas, do mesmo modo que o novo Grande Rei perdoa os tributos devidos pelas cidades.163 Além disso, logo após a passagem sobre os funerais, introduz Heródoto um novo trecho com estas palavras: "Os lacedemônios concordam também com os egípcios nisto..."; 164 o kai táde mostra bem que os egípcios, no que diz respeito aos funerais, fazem parte da mesma configuração. Aos bárbaros da Ásia, aos persas, aos egípcios, pode-se ainda ajuntar os citas; os espartanos encontram-se, pois, numa companhia pelo menos carregada de alteridade. No que diz respeito ao tratamento do cadáver, Heródoto não diz nada de preciso, a não ser que tem lugar uma ekphorá sobre um esquife e que é indispensável ter um cadáver para mostrar, seja verdadeiro ou seja falso. Com efeito, se o rei morre na guerra, fabrica-se um simulacro dele, um eídolon. A importância do cadáver real é atestada também através da regra que prevê que se repatriem os despojos de um rei morto no estrangeiro. Com efeito, Plutarco explica que "os lacedemônios, quando um dos seus morre no estrangeiro, têm o hábito de lá celebrar seus funerais e de deixá-lo lá, salvo no caso dos reis, cujo corpo é transportado para o país". 165 Como se transporta o mesmo? Fazendo-se, justamente, uma espécie de embalsamamento, com a ajuda de mel e de cera. Assim, Agesilau, voltando do Egito, morreu no caminho e "seu corpo, posto no mel, foi transportado a Esparta para aí ser enterrado". 166 Segundo Plutarco, os espartanos, não tendo mel, na verdade untaram seu cadáver com cera. 167 Conhece-se também o exemplo do rei Agesípolis, transportado da Calcídica no mel. 168 O uso da cera ou do mel remete aos persas e aos citas — e esse é o único exemplo de embalsamamento que conhecemos na Grécia, ainda que seja temporário. Quem participa dos funerais? Quando o rei morre, os cavaleiros percorrem toda a Lacônia proclamando a notícia (periangélousi). Na cidade, as mulheres circulam ( p e r i i o ú s a i ) batendo caldeirões; duas pessoas livres por casa (um homem e uma mulher) devem tomar sobre si a impureza do luto (katamiaínesthai); os periecos devem comparecer ao funeral, mas também os hilotas. Tirteu dizia já a respeito dos hilotas: "Eles e seus companheiros devem chorar seus senhores, cada 177
vez que os atinge o destino sinistro da morte.'" 6 9 Outro elemento singular apontado por Heródoto: reina, durante o funeral, grande promiscuidade, já que homens e mulheres se "misturam" (symmiga). Tal costume vai totalmente de encontro à legislação habitual. Basta que consideremos, por exemplo, as leis de Sólon, as de Iúlis ou ainda as disposições previstas por Platão, nas Leis: homens e mulheres devem ficar separados.170 Esses funerais têm igualmente um caráter despótico, pois são regulados pela obrigação. É "necessário" ( a n á n k e ) , é "preciso" ( d e i ) , "sob pena de graves penalidades", que as pessoas, em número determinado e representando o conjunto dos súditos, se reúnam em Esparta. Os cavaleiros percorrem a Lacônia, as mulheres fazem a ronda da cidade e, de todas as partes, vêm pessoas. Um escólio a Píndaro dá um outro exemplo, no mesmo sentido, não mais a propósito dos espartanos, mas dos coríntios: certa vez QS megarenses, então submetidos a Corinto, foram forçados a vir à cidade assistir aos funerais de um rei Baquíada.171 Os movimentos ocasionados por essas cerimônias funerárias confirmam de todo a inversão espacial que representa o nomos cita da próthesis. Pelo contrário, em Esparta ou Corinto, o rei é o ponto fixo e central em torno do qual se reúnem as pessoas e não esse ponto móvel que percorre as moradas de seus súditos. A fim de conclamar para o luto, as mulheres "batem caldeirões", do mesmo modo que, no Egito, quando as pessoas vão a Búbastis, para celebrar Ártemis, homens e mulheres, misturados nos barcos que os conduzem, "batem palmas". 172 Quando começa a cerimônia fúnebre, provavelmente na ágora espartana, os participantes "lançam gemidos infinitos" (oimogeí diakhréontai aplétoí). Oimogê é sobretudo uma palavra do registro trágico mas, cada vez que Heródoto a emprega, aplica-a aos persas. Os persas lançam gemidos infinitos quando Cambises se encontra doente. 173 Quando, em Susa, tomam conhecimento da derrota de Salamina, lançam "gemidos infinitos"; 174 enfim, por ocasião da morte de Masístio, cortam os cabelos e barbas, raspam a crina de seus cavalos e lançam "gemidos infinitos". 175 Estamos portanto num contexto não grego — e é interessante ver como, com relação a esse ponto, se delineia uma aproximação entre espartanos e persas. Bem entendido, esses gemidos regulamentares opõem-se ao que prevêem as legislações de outras cidades; principalmente 178
as leis de Atenas, desde Sólon, interditam o canto fúnebre (thrênos) ou codificam seu uso, reservando-o, por exemplo, às mulheres. 176 Para encontrar os grandes soluços com os quais alguém se "sacia", é necessário voltar à epopéia. Os citas, recorde-se, ignoram o thrênos, e os funerais são puro espetáculo, pura visão, sem que intervenha, em momento algum, o menor dito. Os funerais dos reis espartanos têm também sua parte de espetáculo destinado à visão, contando, entretanto, com a intervenção de um dizer quase inarticulado, a saber: esses "gemidos infinitos" que se exigem dos participantes. Se, ao lado dessas duas cerimônias, recordamos de novo o enterro dos soldados atenienses mortos na guerra, encontramos uma cerimônia em que o dizer passa ao primeiro plano e em que o ver reduz-se ao mínimo: expõem-se não os cadáveres, mas os ossos — e essa próthesis faz-se provavelmente por tribo e não por indivíduo; 177 o que conta então é a voz do orador, ele próprio voz da cidade. A aproximação entre as três cerimônias sugere uma equivalência funcional entre a oração fúnebre, em Atenas, os lamentos, em Esparta e a próthesis invertida, na Cítia. Mas é precisamente na distância que existe entre as três manifestações (do ver ao dizer, do máximo de koinonía ao mínimo) que se inscreve a diferença entre as três sociedades. Os lacedemônios (espartanos, periecos, hilotas, homens e mulheres confundidos) "gemem", mas também "golpeiam a fronte com violência". Mais uma vez, trata-se de uma prática que, opondo-se à legislação de Sólon, remete ao universo não grego, onde é costume golpear-se ou ferir-se no rosto durante cerimônias fúnebres. Entre os citas, mutilação e embalsamamento avançam juntos, sendo que mutilar-se é reconhecer-se e fazer-se reconhecer como cita. Em Atenas, não se encontra nenhuma dessas práticas e é a cidade que, pela boca do orador designado, se celebra a si mesma, reconhecendo os mortos como dignos dela. Esparta apresenta um estado intermediário: nem embalsamamento sistemático, nem mutilação verdadeira, mas a cidade escolhe um certo número de delegados do luto, que manifestam assim seu pertencimento à coletividade lacedemônia e reconhecem uma certa dependência com relação ao rei. Através dos gemidos, os lacedemônios dizem entretanto que o rei que acaba de morrer "era o melhor" — e isso a cacia 179
morte. O único dito articulado que a cidade produz não é, no fim das contas, mais que uma fórmula, sempre a mesma, que é preciso proferir, que não tem nenhum sentido já que se diz em todo sepultamento real. Seja como for (nova diferença em relação à oração fúnebre), o que se celebra é o rei ou, mais ainda, a realeza como instituição, a monarquia hereditária — e não a cidade. 178 Constata-se que essa fórmula é também excessiva se posta em relação com a lei de Sólon, que "proíbe que se diga mal dos mortos". 179 Entre não dizer mal e dizer que o morto era o melhor dos reis "há uma margem que os espartanos não hesitam em ultrapassar. Para completar o exame dos funerais espartanos, que apresentam tanto semelhanças quanto diferenças com relação aos dos reis citas, resta a questão da localização dos túmulos. Não surpreende que o rei espartano, como o ponto fixo em torno do qual as pessoas se reúnem, seja enterrado no interior da cidade. Ademais, contrariamente às outras cidades gregas, Esparta enterra seus mortos de preferência no interior. A crer-se em Pausânias, os Euripôntidas têm seu túmulo no fim da via Alphetais, que parte da ágora, enquanto os Agíadas encontram-se alojados a oeste da ágora. Se há dois lados da morte, a dos reis espartanos encontra-se sobretudo da parte da morte do outro, ressaltando Heródoto sua alteridade ao inscrevê-la no espaço. Com efeito, ele aproxima os funerais dos reis de Esparta das práticas dos bárbaros da Ásia, em geral, dos persas e até mesmo dos egípcios; a essa lista podemos certamente ajuntar os citas. No século IV, Xenofonte, reencontrando essa alteridade, tratá-la-á muito diferentemente: em vez de traduzi-la, se posso dizer assim, "horizontalmente", transcrevê-la-á "verticalmente"; ele escreverá, com efeito, que os reis espartanos, quando de sua morte, "são honrados não como homens, mas como heróis". 180 Um indício, entre outros, de que a figura do rei havia mudado.
O CHEFE QUER CABEÇAS Os citas aparecem, pela primeira vez, nas Histórias, pintados como mestres da caça, na casa de Ciaxares. 181 Quando Dario 180
invade a Cítia, fazem guerra contra ele, fazendo-se, ao mesmo tempo, caça e caçador, preferindo finalmente perseguir uma lebre que entrar em combate. Portanto, a guerra não é, para eles, mais que continuação da caça, empregando os mesmos meios. A CAÇA ÀS CABEÇAS Quando entretanto se lêem os capítulos consagrados aos usos da guerra, 182 essa imagem modifica-se sensivelmente. Os citas, com efeito, não são mais aqueles pastores que, a um só tempo, caçam e lutam, mas surgem então como "seres para a guerra"; e se a guerra vem a ser uma espécie de caça, trata-se de caça ao homem e, mais precisamente, caça às cabeças: De todos aqueles que mata no campo de batalha, o guerreiro apresenta as cabeças ao rei, pois é apenas na medida em que apresenta uma cabeça é que passa a ter parte no butim que se fez; se não apresenta nenhuma, não tem também parte alguma. Essas c a b e ç a s são esfoladas do seguinte modo: o cita faz uma incisão circular contornando as orelhas, puxa a pele e, sacudindo, arranca-a do crânio; raspa em seguida a carne com uma costela de boi, amassa a pele com as mãos e, quando a torna macia, faz dela uma toalha de mão; prende-a nas rédeas do cavalo que monta e glorifica-se com isso... 183
Decapita-se, escalpela-se, curte-se. Quem, nas Histórias, além dos citas, pratica a decapitação? Deixarei de lado, por um momento, a decapitação como forma de execução e de castigo, 184 isto é, como forma de exercício do poder, para examinar apenas a decapitação feita nos cadáveres. Os tauros cortam a cabeça de seus inimigos, levam-nas para casa e fixam-nas numa vara sobre sua morada.185 Quando os sete conjurados penetram no palácio para matar o usurpador Esmérdis, matam também os magos e cortam-lhes as cabeças. 1 8 6 Artáfernes e Hárpago crucificam Histieu de Mileto, depois cortam-lhe a cabeça e enviam-na a Dario. 187 Depois das Termópilas, Xerxes, passando pelo meio dos cadáveres, manda cortar a cabeça de Leônidas e ordena que seja "fixada" em uma estaca; 188 o verbo empregado (anastaurôsai) é o mesmo pelo qual se designa o costume dos tauros. Um último exemplo é fornecido pelo povo de 181
Amatunte, cidade de Chipre: Onésilo havia tomado a iniciativa de liderar uma revolta contra o Grande Rei; tendo o povo de Amatunte se recusado a juntar-se a ele, sua cidade foi assediada em vão. Uma vez esmagada a revolta pelos persas e tendo sido morto Onésilo, o povo de Amatunte cortou-lhe a cabeça, pendurando-a sobre a porta da cidade. Vingança e derrisão: a cidade será desde então "protegida" por aquele que não pôde apoderar-se dela. Mas, prossegue Heródoto, a cabeça estava assim suspensa e já vazia quando um enxame de abelhas entrou nela e a encheu de favos de mel. Em seguida a esse incidente, o povo de Amatunte consultou o oráculo sobre a cabeça, tendo-lhe sido respondido que a deveriam abaixar e enterrar, oferecendo, a cada ano, sacrifícios a Onésilo, como a um herói; se fizessem isso, ficariam melhores. Fizeram isso então e o faziam ainda em minha época. 189
A intervenção das abelhas condena, pois, essa prática, e a voz do oráculo fará Onésilo passar do excesso da infâmia ao máximo da honra: sua cabeça, tratada como se fosse a totalidade de seu cadáver, é enterrada e ele recebe um estatuto equivalente ao de herói, ou seja, de protetor da cidade. 190 Quanto aos persas, mesmo entregando-se às vezes a esse tipo de ação, não o fazem normalmente. Heródoto precisa, com efeito, a propósito do tratamento infligido a Leônidas, que via nisso uma prova da cólera de Xerxes com relação a ele, já que os persas são, ordinariamente, "dos homens que eu conheço, os que mais honram os guerreiros corajosos". Bem evidentemente, Heródoto condena em absoluto esse ato, dizendo que Xerxes "ultrajou" o cadáver ou, com mais força ainda, "fez-lhe sofrer um tratamento contrário ao nómos" (parenómeseNo total, como verdadeiros cortadores de cabeças, não existem outros além dos tauros e dos citas. Eles são cortadores de cabeça, mas são talvez mais conhecidos como praticantes do escalpe. Com efeito, encontra-se um verbo em grego, skythízo, com seus compostos aposkythízo e periskytbízo, que significa, principalmente, "escalpelar". 192 Aposkytbízein é glosado na Sucia e por Estêvão de Bizâncio como "cortar e retirar a pele do crânio com os cabelos". Mas a palavra pode significar também "raspar completamente os cabelos"; assim, Hécuba, dirigindo-se a Helena, diz-lhe: "É 182
humilhada, vestida de andrajos, tremendo de pavor, com a cabeça raspada à moda cita que tu deverias vir aqui." 193 Do mesmo modo, em Ateneu, cortar os cabelos de alguém a fim de ultrajá-lo se diz aposkythízein.w Estrabão refere-se a uma população trácia, os Saraparae— o que significaria mais ou menos "cortadores de cabeças" — os quais são montanheses selvagens que "praticam o escalpe e a decapitação" (periskythistès kai apokephalistés).195 Com o escalpe, o cita faz uma espécie de "guardanapo" (kheirómaktron'), palavra que designa toalha para enxugar as mãos.196 Após ter sido trabalhado, o escalpe torna-se portanto uma espécie de toalha, e os citas parecem ter sido reputados por isso, pois devia existir a expressão skythisti kheirómaktron• ela é encontrada, com efeito, num fragmento de Sófocles, skythisti kheirómaktron ekkekarménos (ou ekdedarménos), "a cabeça raspada (ou escalpelada) para fazer um guardanapo à moda cita". 197 Hesíquio a retoma e explica, remetendo ao hábito que tinham os citas de escalpelar seus prisioneiros. 198 Esses usos lingüísticos de que, como pedaços de destroços encalhados sobre a praia, encontramos fragmentos nas colunas dos lexicógrafos, testemunham a que ponto a reputação dos citas como "escalpeladores" estava solidamente estabelecida. Reinach reuniu os textos clássicos que informam sobre a prática de cortar cabeças entre os celtas e "os povos vizinhos ou aparentados". Ela é atestada entre os germanos, depois entre os alamanos, entre os dácios, na Ibéria, na Cítia (ele cita o capítulo de Heródoto) e, sem dúvida, na Gália199 — de que existem dois testemunhos, um de Diodoro e o outro de Estrabão, ambos resumindo Posidônio de Apaméia, que viajou por essa região na época da conquista romana. Estas poucas linhas de Diodoro ilustram os hábitos dos gauleses, marcando igualmente as diferenças entre eles e os citas: Aos inimigos mortos, cortam a cabeça e a amarram ao pescoço de seus cavalos. Quanto aos despojos manchados de sangue, e n t r e g a m - n o s a seus escudeiros e os levam c o m o butim, fazendo uma marcha triunfante e cantando um hino de vitória; como troféus, pregam-nos em suas casas como se faz com certos animais mortos na caça. As cabeças dos inimigos mais ilustres são embalsamadas cuidadosamente com óleo de cedro e conservadas numa caixa. 200
183
Além da fabricação de guardanapos, os citas, decididamente industriosos, utilizam os crânios para fazer taças. Esse tratamento especial é reservado às cabeças de seus "piores inimigos' Eis os segredos do ofício: Serram eles o crânio abaixo das sobrancelhas e limpam-no; o> pobres contentam-se em envolvê-lo exteriormente com um couro de boi não curtido, empregando-o assim; os ricos não somente o envolvem com couro, mas douram-no no interior — e é assim tratado que ele é empregado como uma taça para beber. Fazem o mesmo com os crânios de seus parentes, se há entre eles alguma disputa e se um deles triunfa sobre o adversário perante o rei.201
Encontra-se um eco dessa especialidade em Estrabão, citando Apolodoro e Eratóstenes. O Ponto chamava-se, com efeito. Áxenos, por causa de suas tempestades e da crueldade das tribos instaladas nas proximidades, principalmente os citas, que "sacrificam os estrangeiros, comem carne humana e bebem em crânios também humanos". 202 Do mesmo modo, Plínio fala de antropófagos que vivem a dez dias de marcha ao norte do Borístenes e bebem em crânios humanos, de que levam o couro cabeludo, como guardanapo, colocado sobre o peito.203 Trata-se, pois, de um retrato desses bravos artesãos. Heródoto reconhece-lhes ainda uma especialidade no tratamento do cadáver de seus inimigos, a qual a tradição não parece ter retomado. Com as peles das cabeças cosidas em conjunto, eles fabricam mantos ( k h l a í n a s ) que são "como capas de pastores". 204 Além disso, praticam também o esfolamento: 2 0 5 "Arrancam a pele da mão direita, com as unhas, e fazem tampas para suas aljavas"; mas "muitos esfolam até homens inteiros e, estendendo as peles sobre pedaços de madeira, levam-nas sobre os cavalos". 206 Qual a função desses espantalhos com que se passeia? Heródoto nada diz, senão que são mostrados (periphérein): por acaso o guerreiro, através desses simulacros, exibe sua valentia? Enfim, a cabeça é o que dá direito à partilha do butim: quem não traz uma cabeça não tem direito ao butim. Como o mestre da partilha é o rei, somos levados a pensar na partilha homérica; o butim é o que é depositado "no meio", os objetos tornando-se xyneía keímena, objetos postos em comum207 que 184
o rei tem o encargo de distribuir. Mas em Homero é suficiente (parece) ter tomado parte na operação (o saque de uma cidade ou uma razia) para ter-se o direito a uma parte do butim. Ulisses, quando distribui as partes para cada um de seus homens, depois do saque de ísmaro, não lhes pede uma prova a mais de sua ação ou de sua coragem. 208 De mais a mais, o butim posto em comum não constitui todo o butim, pois cada um dos combatentes se esforça, com efeito, em formar seu butim "individual", que consiste especialmente nas armas do adversário que cada qual abate. Mesmo não precisando as modalidades da partilha (todo o butim é distribuído pelo rei? basta trazer uma cabeça? ou a parte é proporcional ao número de cabeças apresentadas?) — Heródoto mostra de novo o rei como figura central e dominante, pela qual tudo transita. Pode-se também, para marcar a distância, confrontar a prática cita de partilha com a empregada prelos gregos, por exemplo, após Platéia: Pausânias proíbe que se toque no butim e ordena aos hilotas que ajuntem os objetos preciosos; depois, uma vez separados os dízimos para os deuses, "repartiu-se o resto e cada povo recebeu o que merecia". 209 Pausânias desempenha portanto um papel importante, pelo menos na preparação da partilha, que se faz em função do "mérito". A repartição faz-se por povo e só os prêmios pela aristeía, pela valentia, são atribuídos individualmente. UMA ARITMÉTICA DA ARISTEÍA: B E B E R O SANGUE
BEBER O VINHO,
A cabeça cortada é o que dá direito ao butim, mas é também o que exprime a aristeía do guerreiro. 210 Este último "prende o escalpe-guardanapo às rédeas de seu cavalo e glorifica-se com isso" ( a g á l l e t a i ) . Após ter escrito uma frase de efeito (terminando com agálletai), o narrador intervém para explicar como é possível alguém glorificar-se com um ato tão abominável: "Ele glorifica-se com isso porque aquele que possui um grande número de guardanapos é julgado um homem excelente ( a n è r ãristos kékritai)."2U Assim, escalpelar não é, afinal, nada mais que provar que se é um "homem corajoso". A mesma explicação vale para os crânios transformados em taças: "Quando vêm à sua casa hóspedes que eles julgam importantes, servem-lhes a bebida nessas cabeças, explicando serem de parentes que
185
procuraram encrenca com eles e aos quais venceram. E falam disso como se fosse uma façanha (taüta andragathíen légontes),"21Assim, reabsorve-se a alteridade radical de sua conduta, tornada um modo de perseguir a aristeía, podendo-se ressaltar a distância que a separa da concepção grega de aristeía. Com efeito, Heródoto é muito atento para a questão do valor e da valentia, esforçando-se, após cada combate importante, em precisar quem recebeu esse prêmio: existem não menos que vinte e três exemplos disso ao longo das Histórias?11 A aristeía não se manifesta mais através da façanha individual, como no combate arcaico, mas resulta da estrita observância das regras do combate hoplítico: combater em seu lugar, manter-se em sua fileira na falange. Como revela Demarato a Xerxes (o qual, não compreendendo, não pode senão rir), a lei, o despótes dos lacedemônios, ordena-lhes sempre a mesma coisa: "Não fugir do campo de batalha diante-de nenhuma massa inimiga, mas permanecer firme em seu posto e aí vencer ou morrer." 214 A distinção entre duas formas de aristeía, a antiga e a nova, revela-se claramente no comportamento de dois espartanos, Aristodemo e Possidônio, durante a batalha de Platéia. Qual dos dois foi mais corajoso? 215 Segundo os espartanos, Aristodemo sem dúvida realizou grandes façanhas (érga megálà), mas "deixou sua fileira" e "agiu como um louco" (lyssôn), como alguém que buscava a morte. 216 Enquanto isso, Possidônio mostrou-se um homem corajoso, sem contudo abandonar-se à lyssa e buscar a morte. Este último é, pois, o mais corajoso. 217 Os citas atam os escalpes às rédeas de seus cavalos e quem tem o maior número é o mais corajoso; na Grécia, a aristeía. para poder ser proclamada, deve antes ser reconhecida pela cidade ou por várias cidades. Assim, após Salamina, os estrategistas votam para atribuir os prêmios pela valentia. 2 " Último constraste enfim: na Cítia, os escalpes são, ao mesmo tempo, um dado direto da aristeía e seu símbolo (eles são como que decoração), enquanto na Grécia a distância entre a aristeía, no campo de batalha, e seu reconhecimento pela cidade é maior. O prêmio pela valentia é uma parte escolhida do butim, dinheiro, uma coroa ou um simples elogio. 2 Assim, Euribíades, chefe da frota em Salamina, recebe, em seu retorno a Esparta, uma coroa de oliveira como prêmio por seu valor.220 186
A aristeía cita, na medida em que é uma façanha individual, aproxima-se da aristeía homérica? Sim, em parte, mas é fundamental observar que o combate homérico não é nunca uma caça a cabeças: mesmo se certos guerreiros, como Dólon, Hipóloco ou Coos são finalmente decapitados. 221 Quanto ã decapitação de um guerreiro caído, não surge como ameaça a não ser no canto XVII, principalmente quando Heitor quer, para ultrajar o cadáver de Pátroclo, "separar-lhe a cabeça das espáduas" e "entregá-lo aos cães de Tróia". 222 Mas, desejada por Euforbo e por Heitor, ou evocada por íris, a decapitação do inimigo morto não passará jamais de uma ameaça. Portanto, não se caçam cabeças, mas busca-se obter um troféu, signo da vitória e marca da valentia^ tomando-se as armas do guerreiro que se abateu: "Na Grécia de Homero, as armas dos vencidos substituem suas cabeças." 223 É que a glória, para tornar-se maior, necessita do troféu. Enfim, a mutilação do cadáver que se decapita e que se esfola é apresentada por Heródoto como uma marca de aristeía e não como uma manifestação de aikía, de ultraje: é que ela é enfocada apenas do ponto de vista do vivo — jamais, de modo algum, da perspectiva do morto. Pelo contrário, encontra-se também a crença de que "afligir um corpo é enervar uma alma"224 e impedi-la de vingar-se. Assim se explicam os ultrajes ao cadáver, especialmente o ritual do maskhalismós,225 A prática da aikía, segundo Gernet, é "suscetível de ser interpretada de forma múltipla. Por ela, um grupo ou um indivíduo vinga os seus; também por ela, aniquila-se o poder do inimigo morto ( m a s k h a l i s m ó s ) [...]; ainda por ela, dobra-se o próprio poder, a própria virtude." 226 Entre os citas, contudo, a mutilação dos inimigos é, antes de tudo, uma aritmética da aristeía. O escalpe é inevitavelmente, a um só tempo, marca e símbolo de aristeía entre os citas, enquanto na Grécia a proclamação da aristeía passa (pelo menos no século V) por um voto que discerne o prêmio pela valentia. Existe entretanto também na Cítia um procedimento simbólico de reconhecimento da aristeía: Uma vez por ano, cada monarca, em seu nome, prepara uma cratera de vinho misturado com água; desse vinho bebem aqueles
187
dos citas que mataram os inimigos; os que não fizeram proeza, não provam o vinho, permanecendo assentados à p a r ; e sem honras, o que é para eles um enorme opróbrio; pc contrário, aqueles dentre eles que mataram um grande núme: de inimigos bebem, ao mesmo tempo, em duas taças juntas -
Assim, ter matado dá-lhe o direito de beber; ter matado "mui: homens" dá-lhe o direito não a beber muito, mas a uma raçã dupla; ao contrário, não ter matado ninguém expulsa voe-. da comunidade. O nomarca, 228 que não pode ser nenhu: outro que o representante do poder central, é um mestre d . banquete ou, mais ainda, um contador da aristeía, dando : • escalpes direito ao vinho, o sangue dando direito a ele. 22 Os citas, nesta ocasião pelo menos, aparecem como bebedores de vinho, mas, tanto em Heródoto quanto na tradiçã. suas relações com o vinho não são simples, pois eles figurar ora como bebedores de vinho, ora como bebedores de sangue ora como bebedores de leite. Nas Histórias, o vinho é considerado uma bebida "civilizada Quando Creso se prepara para atacar os persas, um lídio que tinha uma grande reputação como sophós, desaconselhade fazer isso, observando que não tinha nada a ganhar e mu:: a perder marchando contra pessoas que se vestem de courc não comem do que gostam e, "ignorando o uso do vinhe bebem água"230 — em resumo, ele estaria atacando verdadeira í selvagens. Na fábula que Ciro mandou representar para 05 persas, a fim de levá-los à revolta contra os medas, o vinh: desempenha igualmente um papel. Com efeito, após tê-lc: reunido, no primeiro dia fê-los desbravar um campo dr cardos e, no dia seguinte, serviu-lhes um opulento banquetr regado a vinho. Moral da história: se vocês me derem ouvidos viverão como no segundo dia; se continuarem escravo: dos medas, como no primeiro. 231 Enfim, o vinho é o únic: presente oferecido por Cambises a Longavida, rei dos etíopes que este último aprecia e não considera como "enganosc (os etíopes são bebedores de leite 232 ): Ele encantou-se com aquela bebida. Perguntou de que sc alimentava o rei e qual era, para um persa, a duração ma:: longa da vida. Os ictiófagos responderam que o rei se nutr:_ de pão, explicando qual a natureza do trigo, e que oitent.
188
anos era a mais longa medida proposta para a vida humana. O etíope replicou que não se surpreendia que, alimentando-se de esterco, vivessem eles tão poucos anos, pois não poderiam mesmo viver tanto tempo se não tivessem, para reanimar-se, esta bebida — e ele indicava aos ictiófagos o vinho: com relação a isso, com efeito, os etíopes encontravam-se, diante dos persas, em estado de inferioridade. 233
Bebida civilizada, o vinho, contado no número dos agatbá, pode também servir para enganar os que o desconhecem; assim, o vinho desempenha um papel no cenário imaginado por Creso para levar vantagem sobre os massagetas. 234 Como os massagetas desconhecem as "boas coisas" ( a g a t h ã ) , Creso propõe a Ciro avançar por seu país, preparar um grande banquete com toda sorte de alimentos (sitia pantoia) e muitas crateras de vinho puro ( o i n o u akrêtoii), depois fingir que se retira, deixando atrás de si só os piores soldados. Será então fácil surpreender os massagetas "cheios de vinho e de alimentos" e realizar "grandes feitos". O estratagema baseia-se, em parte, no fato de que os massagetas são "bebedores de leite". 235 Eles irão não só beber vinho, mas ainda, redobrando de algum modo a eficácia da cilada por sua ignorância, beberão vinho puro. Após o desastre, Tómiris, a rainha dos massagetas, manda dizer a Ciro que ele venceu não pela força de um verdadeiro combate, mas pelo engano, numa triste matança, devendo seu sucesso a este phármakon de astúcia que é o vinho. 236 Do phármakon ele tem, com efeito, a ambigüidade: veneno ou remédio, segundo se saiba usá-lo ou não. Quando Tómiris vence os persas, manda buscar o cadáver de Ciro e mergulha-lhe a cabeça num odre cheio de sangue humano: "...Tu me perdeste, diz ela ao cadáver assim maltratado, dominando meus filhos pela astúcia; eu, como te ameacei, te fartarei de sangue ( h a í m a t o s korésó)."2il É a resposta da rainha ao banquete enganoso organizado por Ciro; mas, à guisa de vinho, serve-lhe sangue humano. A cena supõe, além disso, que se possa passar de uma bebida à outra: Ciro, bebedor de vinho, é, de fato, aos olhos de Tómiris, bebedor de sangue; assim, ela lhe serve sangue, como se fosse vinho. Beber vinho, beber sangue — há um domínio em que as duas ações se ajuntam e mesmo se confundem: o domínio do juramento, quando se misturam vinho e sangue, vinho puro 189
e sangue. 238 Os citas prestam juramento misturando vinho e sangue e bebem o conteúdo da taça. A equivalência entre as duas bebidas manifesta-se também nos usos da guerra: "Quando um cita abate seu primeiro homem, b e b e seu sangue." 2 3 9 Portanto, o jovem cita não é de todo um guerreiro senão após ter cumprido esse rito de iniciação; mas, em seguida, por ocasião da cerimônia anual, os guerreiros, caso tenham matado inimigos, esvaziam uma taça de vinho. Passa-se do sangue (na primeira vez), ao vinho (a cada ano) — e o vinho vale simbolicamente pelo sangue; mas, ao mesmo tempo, essa passagem ao plano do simbólico marca bem a distância existente entre a primeira vez e as outras. Repete-se a primeira vez, marcando-se bem que não será jamais a mesma coisa: passa-se do sangue ao vinho. Em certos casos, portanto, os citas bebem sangue; bebem, do mesmo modo, vinho; bebem, enfim, leite.-Desde o capítulo 2, Heródoto esclarece como obtêm eles o leite de que fazem sua bebida. 240 A tradição, com efeito, apresenta-os freqüentemente como bebedores de leite, expondo Estrabão, de modo organizado, os dados sobre o assunto, desde Homero até Éforo. A Ilíada menciona "os nobres hipomolgos, que não vivem senão de laticínios".241 Um fragmento de Hesíodo identifica-os com os citas.242 Ésquilo, numa peça perdida, refere-se aos "citas comedores de queijo de égua, conhecedores da eunomía" ,2" Hipócrates, enfim, reconhece que os citas têm um regime fundado sobre o leite e o queijo. 244 Paralelamente a essa corrente, que associa o fato de beber leite à justiça e à eunomía, desenvolveu-se uma representação que faz dos citas seres cruéis, que cortam cabeças e bebem nos crânios. Também Éforo, refletindo sobre essa dupla tradição, ordena-a, procedendo a uma disjunção geográfica e étnica: há, de um lado, os "bons" citas que, conforme a fórmula consagrada, se abstêm de todos os seres vivos (tôn zôon apékhesthaí), bebem 245 leite e são justos; por outro lado, existem os citas "maus", comedores de carne humana. 246 De uma parte, a Cítia é vista como um país onde se d e s c o n h e c e a vinha, isto é, as delícias da civilização ou, mais ainda, a boa vida. Antifanes, numa peça intitulada As Bacantes. escreve que, em conseqüência da embriaguez das mulheres, o homem que se casa é um infeliz, "salvo na Cítia, único 190
lugar onde nem mesmo brota a vinha". 247 Do mesmo modo, quando um grego pergunta a Anácarsis se existem flautas na Cítia, ele responde que "lá nem mesmo brota a vinha". 248 Por outro lado, contudo, desenvolve-se uma tradição que apresenta os citas como bêbados inveterados, a qual começa com Heródoto e ecoa em Ateneu. Não contentes de beber vinho por ocasião dos juramentos ou durante a cerimônia anual, os citas bebem como "gambás". Beber "à cita" é, com efeito, um provérbio que significa beber vinho puro. 249 Essa expressão, com esse sentido, é já referida por Heródoto, quando conta a sorte do rei espartano Cleômenes: os lacedemônios contam que Cleômenes ficou louco, pois aprendeu com os citas (vindos a Esparta para propor uma aliança contra Dario) a beber vinho puro; desde esta época, os espartanos, quando querem beber do vinho "mais puro" (zoróteron), dizem que vão beber "à cita". 250 Anacreonte, Camaleo de Heracléia (em seu livro sobre a Embriaguês), Aqueu (em Aetbon) falam também de beber "à cita" ou de "bebida cita". 251 Assim, beber vinho denota um homem civilizado, mas beber vinho puro é hábito de selvagem e representa uma transgressão. Joga-se com essa transgressão, a partir do momento em que se modifica a relação normal entre o vinho e a água. "Beber à cita" não é forçosamente beber vinho puro, mas é pôr menos água do que o habitual. Só Cleômenes bebeu o vinho verdadeiramente puro e ficou "louco" ( m a n ê n a i ) . O vinho puro é uma bebida perigosa. Interrogando sobre a etimologia da palavra skyphos, Ateneu propõe, entre outras possibilidades, derivá-la de skytbos, uma vez que os citas têm a reputação de embriagar-se; além disso, ajunta ele, Jerônimo de Rodes, em sua obra sobre a Embriaguês, escreve mesmo que "embriagar-se é ser cita" (íò methysai skythísai);252 skythízo significa, pois, "raspar os cabelos", mas também "embriagar-se". Enfim, Platão ajunta um traço ao quadro da embriaguez cita, declarando que diz respeito tanto aos homens, quanto às mulheres: "Vós [lacedemônios]" — declara o ateniense nas Leis — "vós rejeitais inteiramente a embriaguês — enquanto os citas e os trácios, que bebem vinho puro, as mulheres tanto quanto os homens, e que o espalham sobre suas vestes, fazem isso acreditando que observam um costume belo e beatificante". 253 191
Bebedores de sangue em algumas ocasiões, bebedore constantes de leite, bebedores de vinho em excesso — assir. são, pois, os citas. É inútil tentar conciliar essas tradiçõe? que, de fato, são partes constitutivas da aporia da personager a que se referem. Seja suficiente evocar, por último, Polifemc o ciclope: ele é bebedor de leite e comedor de queijo, macomedor de homens também; conhece o "vinho das uvas que Zeus faz brotar sobre a terra", mas não sabe beber e entrega-se à embriaguês: quando Ulisses lhe oferece vinho, ele o bebe puro, de uma vez e pede mais.254 Leite e vinhc puro são, pois, duas bebidas que, simultaneamente, poder conotar um selvagem. A guerra é uma caça e, antes de tudo, uma caça às cabeças A guerra é uma ocupação habitual, e os citas são seres para a guerra. Mas a guerra aparece — este é o ponto surpreendente — como uma atividade organizada e codificada. Entre povos nômades, que se encontram portanto no degrau mai? baixo da koinonía, essa socialização das atividades guerreirapode surpreender. Entretanto, desde o momento em que Heródoto relata os usos da guerra, o espaço cita deixa de se: um espaço de percurso indiferenciado e torna-se quadriculada e administrado: o território divide-se em nomos, à frente do> quais se instala um nomarca. Ares, que recebe um culto especial e sacrifícios particulares, principalmente humanos, 2 " possui um santuário em cada nomo, que é preciso manter todos os anos. À organização do espaço ajunta-se uma temporalidade regulada: é a cada ano que se repara o santuário de Ares e se lhe prestam honras com sacrifícios — e é a cada ano que tem lugar o "banquete" na casa do nomarca, para festejar os inimigos que cada guerreiro abateu. Essa cerimônia protocolar desdobra-se, além disso, no plano simbólico. Esses hábitos da guerra reservam enfim o lugar central para o rei. Mestre da partilha do butim, ele não dá uma parte do mesmo senão contra uma cabeça cortada. "Mestre do banquete" (por intermédio dos nomarcas), ele dá uma taça (ou duas) a quem, no ano, matou inimigos. "Mestre de justiça'' todo duelo judiciário deve-se desenrolar em sua presença: quando dois citas, que são parentes, têm uma desavença, afrontam-se na presença do rei, e o vencedor transforma o crânio de seu adversário numa taça. Neste caso também é o rei que "autoriza" a decapitação: o chefe quer cabeças! 192
Mestre da caça contra Dario, mestre de guerra, o rei cita é bem um despótes. Para os gregos do século V, o real é despótico, e o bárbaro não pode ser senão real. Vivo, o rei é um centro móvel do poder; morto, torna-se "centro excêntrico" do território, o corpo morto constituindo o ponto de amarração. A ele, como um navio amarrado a seu "corpo morto", está amarrado o povo cita. Vivo, seu lar é o fundamento das trocas e o que constitui os citas como corpo social; toda falta em seu lar o torna doente, como se corpo real e corpo social fossem, ao mesmo tempo, dois e um: para curá-lo, é preciso cortar a cabeça do perjuro. Por ocasião de sua morte, seu corpo é embalsamado e os citas mutilam-se. Por essa cerimônia, que deixa marcas, reconhecem-se como citas e como súditos. Seus corpos, onde se inscreve daí para a frente o brasão real, lembram-lhes que eles formam um corpo social e, de novo, por essa mnemotécnica do poder, corpo real e corpo social tecem estranhas alianças.
193
C
A
P
Í
T
U
L
O
V
0 ESPAÇO E OS DEUSES: 0 BOI QUE "COZINHA A SI MESMO" E AS "BEBIDAS" DE ARES 1 Que deuses têm os citas? Quais são suas relações com eles? Ou, perguntando de outro modo: de que maneira povos nômades se comunicam com os seus deuses? Já vimos como os citas, implicita e insistentemente, impõem aos gregos uma questão básica: como é que se pode ser nômade? Assim, a título de hipótese, poderíamos admitir que, de alguma forma, o nomadismo deve manifestar-se também no espaço divino, marcando, de algum modo, as relações que os citas mantêm com os seus deuses. Sirva de exemplo o sacrifício: através da degola do animal e da comensalidade que a partir disso se instaura, o sacrifício sangrento é fundamental para a cidade, que nele se reconhece como uma comunidade de comedores de carne. Ora, se o sacrifício se encontra bem ligado à ordem política da pólis, que ele funda e exprime a um só tempo, se ele constitui a "peça mestra da religião da cidade" 2 — o que pode significar um sacrifício entre nômades? Dessa perspectiva, as práticas sacrificais tornam-se, pois, uma maneira privilegiada de interrogar os grupos humanos, de marcar distâncias, de sugerir a alteridade. Antes porém de ler, da perspectiva desta questão, os dois capítulos que Heródoto consagra aos sacrifícios entre os citas, 3 examinemos seu panteão: As únicas divindades que veneram ( h i l á s k o n t a i ) são as seguintes: em primeiro lugar, Héstia, depois Zeus e a Terra (eles pensam — nomízontes — que a Terra é a esposa de Zeus), em seguida Apolo, Afrodite Urânia, Héracles e Ares; a essas divindades
todos os citas reconhecem ( n e n o m í k a s i ) ; os que se chamar, citas reais sacrificam também a Posseidon."*
Esse panteão impressiona, antes de tudo, por sua pobreza não tem mais que sete nomes (oito no caso dos citas reais), não diferindo assim dos demais panteões bárbaros que, cor exceção do egípcio, não reúnem senão um pequeno número de divindades. 5 Quanto aos numerosos outros deuses venerados pelos gregos, Heródoto não esclarece se os citas o> desconhecem totalmente. Em todo caso, eles não procuram "torná-los propícios" (hilãskontaí), o que significa que não lhes oferecem sacrifícios. Só o caso de Dioniso é claro: a história de Ciles nos informa que os citas o recusam em absoluto. Por outro lado, esse panteão é composto de modo curioso. A hierarquia divina, tal como a concebem os citas, não corresponde de modo algum às teogonias mais comuns no mundo grego: as de Homero e, sobretudo, de Hesíodo. Héstia, habitualmente considerada como filha de Réia e de Crono, portanto irmã de Zeus, 6 encontra-se aqui na posição de divindade primordial. Tentei dar conta de sua estranha presença entre nômades, relacionando a centralidade de Héstia com a centralidade do poder real.7 Mas a aproximação mais surpreendente é a da Terra com Zeus, que normalmente não pertencem à mesma geração divina: entre a Terra, oriunda do Caos, e Zeus, há com efeito a geração de Crono. O narrador, bem consciente do caráter "herético" dessa proposição, intervém então na narrativa para precisar a seus ouvintes que não é ele que se engana e que há uma lógica no "erro" dos citas: "Eles crêem que a Terra é a esposa de Zeus." De imediato, a proposição deles adquire uma certa coerência e, não correndo mais o risco de ser tida como insensata, torna-se simplesmente errônea e, portanto, explicável a partir da ignorância. Seu panteão é, pois, marcado pela pobreza e confusão: eles não tiveram nem Homero, nem Hesíodo para fixar a teogonia e delinear a figura dos deuses. 8 Com efeito, os pelasgos, os ancestrais dos gregos, ignoravam até data recente, até ontem, pode-se dizer,9 de que pais cada um dos deuses havia nascido, se todos existiram sempre, ou quais são suas figuras — do mesmo modo que os citas são ignorantes: pensam que Héstia é anterior à Terra e que esta é a esposa de Zeus. Todavia, diferentemente dos pelasgos que, antes 196
de aprendê-los com os egípcios, ignoravam os "nomes" (ounómata) dos deuses, os citas sabem nomeá-los. 10 Os citas suplicam a seus deuses oferecendo-lhes sacrifícios, mas esse culto não implica nem a fabricação de estátuas (agálmata), nem o uso de altares (bomoús), nem a edificação de templos ( n e o ú s ) . u Não há lugares privilegiados de onde o fiel deve dirigir-se aos deuses. Que sentido pode ter essa ausência? O narrador não esclarece. Todavia, a aparição dessa mesma tríade — estátuas, templos, altares — em outro ponto das Histórias pode sugerir uma alternativa. De fato, também os persas não têm o hábito de erguer estátuas, templos e altares. Ora, desta vez o narrador intervém para ajuntar que não só eles não fazem isso, mas consideram que é "loucura" (moríe) fazê-lo: "A razão, no meu modo de entender" — esclarece Heródoto — "é que eles jamais pensaram, como os gregos, que os deuses fossem feitos como os homens CantbropophyéasT,12 Entretanto, se essa explicação é válida com relação aos gregos, sendo-o também com relação aos persas, que sacrificam ao sol, à lua, ao fogo etc. — não vale para os citas, que buscam conciliar Héstia, Zeus, Apolo e outros. A alguma distância dos citas, na direção do norte, encontram-se os budinos, que vivem numa cidade toda de madeira: as muralhas, as casas e também os santuários são de madeira, "pois há nesse lugar santuários dos deuses gregos (Hellenikôn theôri), tendo, à moda grega (bellenikôs), estátuas, altares e templos de madeira". 13 Dito de outro modo, templos, estátuas e altares são signos de "grecidade" e podem funcionar como critério de "grecidade". Além disso, se os budinos conhecem esses usos não é por acaso, mas porque antigamente eram gregos. Esses três elementos desempenham, pois, a função de operadores de diferença. A imprecisão dos lugares de culto marca bem a alteridade da prática cultual dos citas. A mesma tríade retorna de novo, mas desta vez na boca dos sacerdotes egípcios: os sacerdotes de Heliópolis explicam a Heródoto que os egípcios foram os primeiros a terem dado nome aos doze deuses e os primeiros a terem "atribuído aos deuses altares, estátuas e templos". 14 São portanto invenções egípcias, retomadas pelos gregos. Não conhecê-las equivale, de algum modo, a viver num tempo anterior a esses fatos, o que significa que a diferença então se qualifica como 197
"primitivismo". Os citas parecem não ter conhecido o que os gregos aprenderam dos egípcios. Escrevi "parecem", pois, há a exceção de Ares, para quem se constroem santuários e a que é normal representar através de um ágalma.15 Protágoras, em seu mito, vai mesmo mais longe: não edificar templos, nem elaborar representações dos deuses não é apenas viver num tempo "anterior" a essa invenção egípcia, mas é viver fora da humanidade: "Porque o homem participava do lote divino, desde o início foi o único dos animais a honrar os deuses, pondo-se a contruir altares e imagens divinas.'" 6 Portanto, quem não honra os deuses nega a moira própria do homem.
O BOI Gente dos confins, os citas todavia sacrificam: seu distanciamento espacial não lhes assegura, em contrapartida, nenhuma proximidade particular com os deuses. Eles não têm, como os etíopes de Homero, os deuses como seus comensais. Do mesmo modo, não têm, como os etíopes macróbios de Heródoto, uma Mesa do Sol que lhes forneça quotidianamente carnes já cozidas. 17 Não têm ainda, como os ciclopes, a possibilidade de viverem sem importar-se com Zeus ou com os outros deuses, ignorando as práticas sacrificais. Pelo contrário, não passam de simples mortais e comedores de carne. Assim são os citas. Primeira observação do narrador: existe uma uniformidade nos sacrifícios, já que todos os citas sacrificam a todos os deuses (salvo Ares) segundo o mesmo ritual.18 Encontra-se de novo a mesma fórmula a propósito do sacrifício egípcio. Todos os egípcios agem do mesmo modo com relação às cabeças dos animais sacrificados e todos praticam as mesmas libações com vinho. 19 Mas, no Egito, a diversidade aparece de um sacrifício a outro, a partir da extração das entranhas e da cozedura, relatando Heródoto, a título de exemplo, o ritual em honra "da divindade que consideram a maior" ( d a í m o n a megísteri). Dito de outro modo, o ritual varia conforme a divindade que se invoca. O que sugere, no caso dos citas, essa uniformidade da prática? Uma certa ignorância das
198
exigências próprias de cada deus e uma certa indiferenciação de seu panteão: poderia ser isso? Como os citas não edificam templos nem altares, nenhum espaço sacrificai encontra-se delimitado: aparentemente, com efeito, todos os lugares do território equivalem-se indistintamente. 20 A vítima tendo sido conduzida (não se sabe como), começa a cerimônia: A vítima fica de pé, com as patas da frente presas; quem a sacrifica, de pé atrás do animal, puxa a extremidade da corda e o faz cair; no momento em que a vítima tomba, ele invoca o deus a quem sacrifica; após o que, passa um laço em volta do pescoço dela, introduz nele um bastão e, girando-o, estrangula o animal, sem acender o fogo, sem consagrar a vítima, sem fazer libações. 2 1
Nessa primeira fase do abate do animal, o narrador aponta explicitamente três faltas, indicadas pela repetição de oúte: a ausência do fogo, de primícias e de libações marca um desvio tríplice com relação ao sacrifício cívico. A repetição desses três pontos, em conjunto ou separadamente, ao descrever Heródoto outras práticas sacrificais, indica que são bem, a seus olhos, critérios de diferença. Os persas também "não acendem fogo antes de proceder ao sacrifício". 22 Essa precisão mostra, pois, que se trata do fogo que se acende sobre o altar antes da matança. As libações, ausentes do ritual cita, são provavelmente libações com vinho, que podem acontecer já antes da matança.23 Assim, os egípcios não somente constroem altares e acendem o fogo, como também, "perto do altar, aspergem sobre a vítima libações de vinho [...] e degolam-na". 24 Além do mais, e de uma maneira pelo menos estranha, os próprios citas, se desconhecem a libação quando se trata dos outros deuses, praticam-na em honra de Ares: sobre a cabeça da vítima, com efeito, verte-se vinho, antes de que seja degolada — embora se trate, neste caso, de uma vítima humana. 25 Último traço a ser realçado no comentário do narrador: a ausência do katárkhesthai. Note-se que Legrand traduziu o termo por "consagrar as primícias", como se Heródoto houvesse escrito apãrkhesthai. Ora, encontramos outras vezes, em numerosos pontos das Histórias, a palavra apãrkhesthai 199
com o sentido preciso de consagrar as primícias: uma \ cozida a carne e antes de começar a refeição, os citas separ;.uma parte como primícias. 26 Os líbios, antes de abaterem _ vítima, cortam como primícias uma ponta da orelha. 27 Entà o que significa katárkhesthai, se não se trata de um dupl de apárkhesthai? Além de no presente exemplo, Heródo:: emprega-o em duas outras passagens: os tauros, quando sacrficam prisioneiros, começam "consagrando-os" ( k a t a r x ã m e n o i ) . antes de matá-los com uma pancada! 28 Do mesmo modc Héracles, a ponto de ser sacrificado, foi "consagrado": T e n d o vindo ao Egito, Héracles foi c o r o a d o pelos egípcio^ que o levaram em procissão ipompé), para sacrificá-lo a Zeur até então ele se manteve tranqüilo; mas c o m o , perto do altar procedia-se a sua consagração ( k a t á r k h o n t h o ) , recorreu à forç_ e massacrou todo mundo. 2 9
A revolta de Héracles explode no momento em que não podL mais duvidar de que era não o herói da festa, mas a vítima designada para o sacrifício. A coroação e a procissão podiar ser ambíguas, mas a partir da "consagração" a ambigüidade cai por terra. Se ela assim esclarece Héracles sobre sua verdadeira situação, por quais gestos se manifesta? Quando Nestor oferece um sacrifício a Atena, começa por aspergir a água lustral e a cevada (katérkheto), em seguida faz a Palas uma longa prece, depois separa alguns pêlos da cabeça da vítima, jogando-os no fogo (aparkhómenos). 3 0 Assim, katãrkhestha: "significa consagrar", isto é, aspergir a água lustral e grãos de cevada — e apárkhesthai, que aparece um pouco depois, designa a separação de alguns pêlos que se queimam. Os citas desconhecem a "consagração", o que representa uma falha enorme. Com efeito, a aspersão da água e a chuva de grãos sobre a vítima visam a obter seu assentimento: balançando a cabeça da direita para a esquerda, ela aceita ser sacrificada. Dessa maneira, o ritual elimina a violência, e os participantes desculpam-se, de antemão, da acusação de assassinato. 31 A presença ou a ausência de "consagração" marca portanto uma enorme distância entre um sacrifício "não violento" e um sacrifício "violento": o sacrifício cita é violento. A ausência de "consagração" significa ainda outra coisa e repete, em outro plano, a diferença cita: os citas não cultivam 200
a terra. Ora, "a prática sacrificai sublinha a solidariedade entre vítimas de sacrifício e plantas cultivadas, associando grãos de cevada e vinho aos procedimentos de abate e de combustão do animal ritualmente abatido".32 Essa ausência é, pois, também a marca do nomadismo dos citas: como poderiam eles ter cevada, se não semeiam nem cultivam? Os gregos associam, no sacrifício, plantas cultivadas e animais domésticos. Os citas desconhecem as plantas cultivadas, mas mesmo assim sacrificam animais domésticos — embora não cheguem a ponto de sacrificar animais selvagens. Do par plantas cultivadas-animais domésticos retêm eles o segundo termo; Heródoto precisa, com efeito, que sacrificam o boi e o gado de pequeno porte ( p r ó b a t a ) , bem como o cavalo. A presença desse terceiro animal separa de novo sua prática da dos gregos, que não sacrificam normalmente o cavalo, não o fazendo jamais no contexo de um sacrifício sangrento de tipo alimentar — enquanto, para os citas, o boi, o gado p e q u e n o e o cavalo parecem ser equivalentes e podem substituir uns aos outros. 33 Os únicos, nas Histórias, além dos citas, que sacrificam cavalos, são os massagetas, que os sacrificam em honra do sol; 34 Pausânias atribui essa mesma prática aos sauromatas que, diz ele, degolam éguas e as comem; 3 5 sacrificar cavalos ainda passa, mas consumir sua carne é uma aberração. O animal é abatido de surpresa, sem que se solicite seu assentimento. Ele fica de pé, com a patas dianteiras amarradas, enquanto quem sacrifica mantém-se às suas costas, invisível: "Ele puxa a extremidade da corda e o faz cair; no momento em que a vítima tomba, invoca o deus a quem a sacrifica; após o que, passa um laço em volta do pescoço da vítima, introduz nele um bastão e, girando-o, estrangula o animal..." 36 Assim, no lugar do pélekys, do machado que serve para derrubar o boi, e da ?nákhaira, o cutelo com o qual ele é degolado, os citas utilizam uma corda e um pedaço de madeira, ou seja, um laço ( b r ó k h o s ) de que fazem um garrote. Assim, o escândalo maior do sacrifício está no fato de que o animal não é degolado, mas asfixiado, o que significa que seu sangue não corre. O sacrifício grego, de tipo alimentar, é sangrento; o sacrifício cita é bem de tipo alimentar, já que termina com a consumação da carne, mas não é sangrento. 201
Que significa essa morte aberrante? O estrangulamento não só não é um procedimento freqüente nos sacrifícios, mas ainda não é um modo corrente de execução. Com efeito, é praticado, numa ocasião, pelos egípcios, 37 pelos babilônios 38 e por um filho de Bato: 3 9 dito de outro modo, por não-gregos, em circunstâncias particulares, e por um "tirano". No catálogo do exército de Xerxes, Heródoto menciona um povo, os sagárcios, que, no combate, utiliza não armas de ferro ou de bronze, mas o laço. Contudo, não estrangulam suas presas humanas ou animais, contentando-se em imobilizá-las para matá-las em seguida com a ajuda de um punhal; todavia se esclarece — e isso não é indiferente — que se trata de nômades. 40 Fora das Histórias, o estrangulamento ou enforcamento representam a pior das mortes. É a que recebem as servas infiéis de Ulisses, após Telêmaco ter-lhes prometido uma morte que não seria "honrada" (katharós): D e s s a m a n e i r a , as c a b e ç a s de t o d a s em filas f i c a r a m , com cordas pelo pescoço, porque mais depressa morressem. Por pouco tempo, não muito, batendo com os pés, estrebucham/1'-
Na tragédia, essa morte ( a n k h ó n e ) reveste-se do máximo de horror. Andrômaca, por exemplo, pronta para morrer para salvar seu filho, grita: "Vós me tendes em vossas mãos, para degolar, matar, atar, enforcar." 42 Já Édipo diz ao corifeu que cometeu "crimes mais atrozes que aqueles pelos quais alguém se enforca" (ou pelos quais se estrangula o culpado?). 43 Estrangular parece, pois, ser uma execução particularmente "violenta". Os citas não somente não eliminam a violência sacrificai, como ainda a acentuam pelo modo de abater a vítima. O que significa a ausência de sangue? É possível determinar um sentido preciso para ela? Se examinamos as outras práticas sacrificais não-gregas de que fala Heródoto, constatamos que os egípcios "degolam" ( s p h á z o u s i ) as vítimas após terem acendido o fogo e aspergido libações, 44 enquanto os citas as estrangulam, sem acender fogo algum nem versar nenhuma libação. Já os líbios "torcem o pescoço da vítima" 45 (para estrangulá-la, quebrando-lhe as vértebras cervicais?). O texto cala-se com relação aos preparativos do sacrifício, não 202
esclarecendo se há libações ou se se acende o fogo; Heródoto precisa somente que os líbios cortam, como primícias, um pedaço da orelha do animal, jogando-o por sobre os ombros. 46 Assim, separam um pedaço de orelha, em vez de alguns pêlos arrancados da fronte do animal; jogam as primícias por sobre os ombros, em lugar de jogá-las no fogo, como é normal com relação aos pêlos. Esses gestos tendem, pois, a sugerir que não há fogo. Mas, sobretudo, esse modo de abater a vítima caracteriza os líbios nômades, isto é, gente que partilha o mesmo modo de vida dos citas. Esse indício é infelizmente muito tênue para permitir a aproximação entre o sacrifício por estrangulamento e o nomadismo, indicando-se, ao mesmo tempo, o sentido da ausência de sangue. Quanto aos persas, último povo de quem a narrativa menciona os costumes sacrificais, nada se diz sobre o abate da vítima; informa-se todavia que eles não acendem fogo nem aspergem libações. 47 No sacrifício grego, o sangue corre para os deuses. Recolhido num vaso especial, é aspergido sobre o altar e a terra em volta. Ele corre "ao longo das paredes da construção dos homens, para confundir-se com a terra do domínio divino que a suporta". 48 Já que os citas não têm nem santuário, nem altar em que sacrificar, não têm também lugar consagrado ao qual dar de beber, entendendo-se que não tenham necessidade de fazer correr o sangue. Assim, seu ritual aberrante é pelo menos coerente com seu nomadismo. 49 Após o abate vem o corte e o cozimento: "A vítima tendo sido estrangulada e esfolada, cuida-se de cozê-la"; "quando as vítimas são esfoladas, separam eles as carnes dos ossos, que deixam nus".50 Após o esfolamento, que acontece imediatamente após a morte, eles (não se sabe quem) dividem o animal em duas partes: as carnes Çkréà), de um lado; os ossos (ostéa), do outro. A única oposição pertinente é, portanto, entre ostéa e kréa. No mais, esses ostéa servirão de combustível: são eles que serão usados para cozer o animal. As aberrações do ritual são evidentes. De início, o sacrifício não prevê a parte dos deuses que é, antes de tudo, os mería, os ossos das coxas que, envolvidos em gordura, são queimados sobre o altar; 51 mas, ainda por cima, os ossos, longe de serem queimados sobre o altar para os deuses, são queimados debaixo do animal, como combustível. Há nisso um escândalo, do 203
qual se pode encontrar a confirmação indireta na racionalização desenvolvida pelo narrador para explicá-lo, de inspiração toynbiana: a Cítia é muito pobre em madeira, por isso os citas "inventaram" Çexeurétaí), na sua falta, o emprego dos ossos dos animais sacrificados. Assim, o escândalo de sua conduta, aos olhos dos gregos, torna-se compreensível, senão admissível. Que se trata de uma racionalização, pode-se perceber a partir da hesitação da narrativa a respeito da madeira na Cítia: se o país é globalmente desprovido de madeiras, existe todavia uma região, a Hiléia, toda coberta de florestas. 52 Os santuários de Ares são inteiramente de madeira e não medem menos de três estádios por três;53 enfim, quando se trata de castigar os pseudo-adivinhos, enche-se uma carroça de madeira e põe-se fogo nela. 54 À ausência dos mería acrescenta-se uma segunda ausência, implicada pela partilha do animal apenas em ostéa e kréa, a dos splánkhna, as vísceras. Ora, "a consumação das vísceras constitui necessariamente a primeira fase do sacrifício". 55 As vísceras, enfileiradas sobre os espetos, são postas para assar e devoradas, enquanto, sobre o altar, se consomem os mería. Lembrando o exemplo de Telêmaco ao chegar a Pilo, Detienne mostra que, no sacrifício, aparecem dois círculos de comensais: um, estreito, o dos "comedores de splánkhna"-, o outro, mais largo e mais aberto, o dos participantes na refeição sacrificai — sendo justamente a consumação dos splánkhna que assegura a "máxima participação" no sacrifício. Ora, essa fase necessária encontra-se totalmente ausente do ritual cita: inexiste nele a comensalidade forte dos comedores de splánkhna e o sacrificante aparece como um único indivíduo. Nada de splátíkhna, nada de espetos, nada de assado: parece que o modelo sacrificai se define pelas faltas e o ritual é de fato pobre. Com efeito, a fase do assado, que precede normalmente a do cozido, não existe absolutamente, já que os citas não praticam senão o cozimento por ebulição (hépsesis): 5 "Jogam as carnes nos caldeirões que usam, se acontece de terem um (parecendo-se de fato esses caldeirões com crateras de Lesbo, a não ser pelo fato de que são muito maiores); assim, jogam as carnes ali dentro e as cozem (hépsousi), queimando por cima os ossos das vítimas." 5 " Enfim, encontramos o primeiro instrumento verdadeiramente 204
sacrificai: o caldeirão, onde se cozinha a carne a fogo lento, mesmo se ele parece mais uma grande cratera. Muito rapidamente, contudo, o terreno familiar escapa de novo. Com efeito, "se eles não têm caldeirão" — continua o narrador, é na pança da vítima que põem todas as carnes, misturando-lhes água e queimando os ossos por cima. Esses ossos queimam muito b e m e a pança (gastet•) c o n t é m facilmente as carnes desossadas. Assim, um boi cozinha-se a si mesmo iheautóii), b e m c o m o as outras vítimas, cada uma a si mesma. 5 8
No Dyskolos de Menandro, uma personagem, no momento de sacrificar um carneiro, percebe que esqueceu o caldeirão; após ter, em vão, procurado outro, decide assar todas as carnes. 59 Confrontados com a mesma falta, os citas, porque desconhecem o assado, utilizam o ventre do animal à guisa de lébes. O uso da gastércomo panela é de fato surpreendente. Sem dúvida, Prometeu cobriu as carnes e as entranhas pesadas de gordura com o ventre do boi, 60 mas tratava-se de um embuste: dar à parte de fato melhor um aspecto incomestível; a gastér, se é um recipiente, não é automaticamente um substituto do lébes. Para apresentar a prática cita, o narrador recorre a uma racionalização do mesmo tipo que a empregada antes: como eles não têm madeira, queimam os ossos; do mesmo modo, quando não têm caldeirão, usam a pança do animal! Mas por que não teriam eles caldeirões, se estes existem e fazem parte dos instrumentos do sacrifício? Tem-se, pois, aí um modo de circunscrever a profunda estranheza dessa cozedura. Uma vez que o caldeirão desapareceu, não sobra senão essa imagem espantosa do boi que se coze a si mesmo. Tendo sido as carnes cozidas, começa a última fase do sacrifício, a refeição sobre a qual Heródoto não diz nada: "Quando as carnes se encontram cozidas, o sacrificante separa uma parte das carnes e das entranhas como primícias, lançando-as diante de si."61 Não se sabe nada do próprio banquete: as carnes são repartidas? por quem? entre quem? como? Na cidade, é fundamental que "todo mundo prove do animal"; 62 aqui, pode-se duvidar se há mesmo uma refeição comunitária. Com efeito, se, como mostra a narrativa das Bufonias, o sacrifício é político, então quem ignora a polis não poderia conhecer também nenhum tipo de refeição sacrificai — e os 205
nômades muito menos do que qualquer outro. Eu creio, pois, que, aqui, o silêncio indica uma ausência: nem partilha igualitária, nem comensalidade, nem comunidade verdadeira. O próprio gesto do sacrificante levanta um problema: espargir um pouco de alimento diante de si é habitual, 63 mas a composição dessas primícias é espantosa: carnes ( k r é a ) e vísceras (splánkhna); carnes cozidas, ainda vai — mas as vísceras?! Normalmente, nesse ponto da cerimônia, enquanto a carne coze a fogo brando, as vísceras já teriam sido consumidas pelos "comedores de splánkhna"; por outro lado, afirmou-se que os citas dividem o animal em duas partes: os ossos e as carnes; nada se prevê com relação às vísceras nem sua extração, nem seu cozimento, nem sua consumação. Deve-se então admitir que os splánkhna são tratados como a carne, isto é, cozidos como ela? O que seria uma aberração a mais. A aparição final dos splánkhna torna, pois,'ainda mais confuso o ritual. Se há, com efeito, consagração de uma parte das vísceras, ele não poderia acontecer senão no início do sacrifício, no momento de sua extração, antes mesmo do esfolamento da vítima — e não no fim, no momento em que começa a refeição ampliada. Os citas não diferenciam a fase dos splánkhna da fase dos kréa. O ritual cita é, no todo, marcado por numerosas ausências. Ausência de lugar sacrificai, ausência da fase preparatória (fogo, primícias, libação), ausência de sangue; não se prevê nem a parte dos deuses (tnería), nem a fase dos splánkhna — e não se termina, enfim, com partilha alguma das carnes nem com nenhum banquete. Ignoram-se os instrumentos indispensáveis para o sacrifício, os quais são inseparáveis da identidade grega:64 o cutelo, os espetos, o caldeirão (que os citas conhecem, mas sem o qual podem passar). Trata-se de um sacrifício violento: o animal, a quem não se pede assentimento, é, ainda por cima, estrangulado. Confrontado com o modelo grego do sacrifício alimentar, esse ritual mostra-se portanto pobre e confuso; ele não assegura, afinal, nem mediação entre os deuses e os homens, nem comunicação entre os homens. Não é possível atribuir um sentido único a cada uma das ausências, mas todas murmuram, ao menos, que os citas não cultivam a terra e não formam uma verdadeira comunidade. E então ainda mais interessante observar como, ao longo de 206
todo o capítulo, Heródoto se refere apenas ao sacrifício do boi. Sem dúvida, os citas sacrificam também animais pequenos e cavalos, mas aqui se trata apenas do boi. A "escolha" do boi prova duas coisas: a primeira, que a cena de referência, presente o tempo todo, é a do sacrifício cívico; a segunda, que apresentar os citas sacrificando o boi implica ao mesmo tempo estabelecer a maior distância possível com relação a eles, pois trata-se justamente do animal que deveriam sacrificar menos. Com efeito, se boi e polis formam um par, então quem é ápolis não deveria sacrificar o boi. Nessa situação, escolher representá-los sacrificando o boi significa tornar ainda mais perceptíveis, para o ouvinte, as aberrações de sua prática, culminando nessa imagem do boi que cozinha a si mesmo. Esse é, pois, um ritual sacrificai que, ao término, realiza uma cerimônia que, para um grego, mal pode ser considerada um sacrifício; mas, confrontado com a figura dos citas como "seres para a guerra", pode a mesma cerimônia revelar um caráter marcadamente sacrificai. Com efeito, quando fazem sua entrada nas Histórias como "mestres da caça", junto de Ciaxares, rei dos medas, os citas não hesitam, para vingar-se de uma injustiça, em servir-lhe um de seus filhos, do qual deviam tomar conta, como se fosse caça, "preparando-o como caça". 65 Ao contrário, quando Astíages, também para vingar-se, mata o filho de Hárpago, trata-o, da forma como o parte e cozinha, como uma vítima sacrificai, após o que o serve a seu pai. 66 Trata-se, sem dúvida, de duas refeições antropofágicas, mas numa se come uma vítima (humana), na outra uma caça. Os citas parecem não conhecer senão a caça, logo, animais selvagens, ignorando os procedimentos sacrificais. Para Luciano, se os citas não ignoram os sacrifícios, em todo caso recusam-nos todos, considerando-os como atos "indignos", "vis" ( t a p e i n ã s ) , preferindo "oferecer humanos a Ártemis, a quem, agindo assim, pensam agradar". 67 Povo violento, povo de guerra que se representa oferecendo ou sacrificando seres humanos. No próprio Heródoto, ao lado dos sacrifícios de animais, há um deus a quem eles oferecem vítimas humanas. Não se trata, como em Luciano, de Ártemis (que não consta mesmo de seu panteão), mas de Ares. A Ares, com efeito, eles sacrificam (thyousi) prisioneiros de guerra.
207
AS "BEBIDAS" DE ARES A singularidade de Ares manifesta-se já no momento em que é nomeado no panteão cita: o narrador dá a tradução em "língua cita" dos nomes dos diferentes deuses, salvo com relação a Ares. Se Ares não tem equivalente em cita, isso significaria que seu nome não é "grego"? Toda uma tradição, que começa com a Ilíada, põe-no em relação com a Trácia: ele vai à Trácia, volta da Trácia ou encontra-se fixado na Trácia. 68 Mais longe, na direção do norte, encontra-se ele associado com as amazonas, das quais é o pai.69 Nas Histórias, sua presença é discreta: ele é venerado na Trácia, onde ocupa o primeiro lugar, antes de Dioniso e de Ártemis. 70 Além disso, encontra-se solidamente instalado no Egito, na cidade de Paprêmis, onde se organizam festas em sua honra: além de sacrifícios, a cerimônia comporta um estranho combate a cacetadas, em que mais de um dos participantes, julga Heródoto, deve morrer.71 No mundo grego, ao contrário, seu nome não aparece senão em dois oráculos, para designar o combate: "O impetuoso Ares, sobre um carro sírio" e "Ares que tornará o mar vermelho de sangue". 72 Na Cítia, ele é honrado de duas maneiras. Em primeiro lugar, como aos outros deuses, são-lhe oferecidas vítimas animais. Heródoto entretanto não precisa se, como para os outros deuses, essas vítimas são estranguladas, 73 sabe-se apenas que se sacrifica em sua honra pequenos animais e cavalos: portanto, não se sacrificam bois. Mas ele é também o único dos deuses que tem direito a algo mais, ocupando um lugar à parte: Em cada n o m o de seu reino é construído um santuário de Ares: feixes de gravetos são empilhados até formarem uma pilha que mede três estádios de comprimento e de largura, c o m uma altura m e n o r ; s o b r e essa pilha é preparada uma p l a t a f o r m a q u a d r a d a ; três dos s e u s l a d o s ficam a p i q u e , p o d e n d o - s e subir por um só. Cada ano, deposita-se aí uma sobrecarga de cento e cinqüenta carroças de galhos, pois a pilha diminui c o n s t a n t e m e n t e por c a u s a das i n t e m p é r i e s . S o b r e a pilha, em cada distrito, instala-se um antigo sabre de ferro (akinákes), que é a representação ( á g a l m a ) de Ares. 74
208
Com Ares, passa-se de um espaço indiferenciado para um espaço organizado, geometrizado, administrado. Enquanto para os outros deuses não há nenhum lugar de sacrifício, Ares possui um santuário em cada "província". Esses marae onde ele se encontra bem alojado levantam de novo a questão da madeira:75 para os outros deuses, não existe absolutamente nenhuma madeira, a ponto de ter-se de empregar os ossos como combustível, enquanto Ares possui imensas pilhas de madeira. Essa é uma das razões pelas quais Dumézil vê nele, à semelhança do Batraz dos ossetas, uma personagem a quem agrada "passar trotes". 76 Com ele, aparece, do mesmo modo, uma temporalidade: o tempo é regulado e contabilizado — "todos os anos" é preciso reparar suas moradas e "a cada ano" se lhe oferecem sacrifícios de animais, enquanto, para os outros deuses, não se sabe nada da periodicidade das oferendas. Mais ainda, seu santuário figura, de modo metonímico, o espaço cita: a Cítia é um quadrado, o túmulo real é cavado como um quadrado e o templo de Ares é construído como um quadrado. 77 Enfim, numa última marca de originalidade, tem ele direito a uma representação figurada (ágalma). Com efeito, Ares encontra-se presente sobre o terraço de seu templo, sob a forma de um "antigo sabre de ferro" (akinákes). 7 8 Esse ágalma, todavia, é um sabre, nada mais que um sabre, enquanto ordinariamente (principalmente nas Histórias) os agãlmata dos deuses são estátuas. Assim, o próprio Ares tem um ágalma em Paprêmis que é uma estátua. 79 Essa diferença na representação do deus implica uma diferença a mais entre os citas e os outros? Se, pois, a ausência de templos e de representação figurada dos deuses indica um certo "primitivismo", Ares revela-se como o menos "primitivo" dos deuses citas, ele que, na Grécia e entre os deuses gregos, poderia passar por um dos mais "primitivos". Com efeito, na Círia apresenta-se como um deus do espaço organizado, justamente ele que é comumente associado à mistura furiosa, ao Medo e à Derrota, que são seus filhos; ele recebe, da parte dos citas, honras particulares, ele que, como Sófocles escreveu, era, dentre os deuses, o que ficava "sem parte alguma de honra" ( a p ó t i m o s en theois theós).S0 Mas finalmente, esse Ares cita, pessoa da ordem, inscreve-se num contexto mais amplo que lhe empresta sentido: remete, com efeito, às coisas da guerra e, portanto, à figura do rei, a qual me esforcei em
209
demonstrar como ocupa o lugar central nesse mundo nômade cujo centro deveria permanecer vazio. Além das vítimas animais, só ele, dentre todos os deuses citas, tem direito a vítimas humanas: "De todos os inimigos que capturam vivos, eles sacrificam (thyousi) um em cem, não do mesmo modo como sacrificam os animais, mas diferentemente." 81 Nas Histórias, além dos citas, apenas os tauros e os trácios apsíntios praticam o sacrifício dos prisioneiros; os tauros sacrificam à Ifigênia os naúfragos e os gregos que aprisionam no mar;82 quanto aos trácios, oferecem a Plistoro Çtheòs epikhórios), entre outros, o persa Eóbazo. 83 Trata-se, pois, de uma prática rara e decididamente não-grega. Fora das Histórias, esse ato é raro, mesmo que seja atestato. 84 O sacrifício aos outros deuses desconhece qualquer libação, enquanto o que é oferecido a Ares inclui uma libação de vinho sobre a cabeça das vítimas. Ele prevê a degola (apospházein~), a5 enquanto o outro ritual é marcado pela estranha ausência de sangue: "Eles são degolados sobre um vaso; levam em seguida esse vaso para o alto da pilha de gravetos e aspergem (katakbéousi) o sangue sobre o sabre." Nem sangue, nem libação, de um lado; sangue e libação, do outro: ambos os gestos — de aspergir libações e fazer correr o sangue — parecem que formam um par. Enquanto Ares "bebe" o sangue, o cadáver das vítimas sofre uma nova violência: a mutilação. Cortam-se sua espádua direita e o braço, que se lançam no ar; "depois, tendo terminado (apérxantes) com as outras vítimas, eles vão embora; o braço fica jogado lá onde caiu e o corpo também fica caído de outro lado". 86 Após essa espécie de maskhalismós, um último ultraje é reservado a esses corpos supliciados: a ausência de funerais. Eles aprodrecem lá, despedaçados, sem serem enterrados — portanto, aos olhos de um grego, sem poder verdadeiramente ter acesso ao estatuto dos mortos. 87 Assim é, pois, o sacrifício conforme a figura dos citas como seres para a guerra. Com efeito, do mesmo modo que o guerreiro cita, na primeira vez que mata um inimigo, bebe seu sangue e depois, a cada ano, em função duma aritmética da aristeía controlada pelo nomarca, bebe vinho, do mesmo modo Ares, em cada nomo, "bebe" o sangue dos prisioneiros.
210
Ares: figura da ordem, figura da desordem? De fato, se Ares pode ocupar um lugar central no espaço cita é porque na própria Grécia ele é marginal. 88 Assim, quando os efebos atenienses prestam juramento, invocam (entre outras potências) Ares; quando os jovens espartanos vão combater no Platanistes, sacrificam, de noite, um cão para Ares Eniálio. Ele é o pai das amazonas, e Luciano o chama de "deus das mulheres" (theòs gynaikôn), mesmo que, normalmente, se proíba as mulheres de combater. Em Tegéia, as mulheres sacrificam sozinhas a um Ares dito gynaikothoinas, um Ares de banquete. Em Esparta, ainda, segundo Apolodoro de Atenas, sacrifica-se para ele um homem. A mesma marginalidade se encontra em seu comportamento pessoal: o adultério não o intimida de modo algum, talvez nem mesmo o incesto. 89 Marginal: é bem isso que quer dizer Sófocles quando o denomina "o deus sem parte alguma de honra", isto é, desprovido de"timé.
211
CONCLUSÃO A QUES1ÁO 00 NOMADISMO Como se pode ser nômade? Responde a tradição: é preciso que se seja cita. E basta. Para a tradição, com efeito, há equivalência entre os dois termos: o cita é nômade e o nômade é cita. Na figura do cita, o saber compartilhado dos gregos conservou os traços do nomadismo, tornando-se esses traços a "verdadeira" figura do cita: é assim que se fabrica o exotismo. Bem entendido, não há dois momentos claramente separados: uma primeira figura, depois uma outra que surge e a recobre. Com efeito, o trabalho do exotismo esteve em ação desde o dia em que, "pela primeira vez", alguém proferiu a palavra "cita". Quando Prometeu revela a Io o longo percurso de seus sofrimentos, fala-lhe do país dos "citas nômades": Partindo daqui, vira primeiro na direção do levante e vai pelas planícies sem cultivo, até o momento em que atingirás os citas nômades, que habitam moradas de vime trançado empoleiradas sobre os carros de boas rodas e suspendem sobre os ombros o arco de longo alcance. Evita-os... 1
Do mesmo modo, o poeta parasita de yls/lyes(que tenta que lhe dêem um manto) cita Píndaro e evoca os "citas nômades": Pois entre os citas nômades, erra longe das tropas ( a l â t a i strátorí) quem não possui veste tecida pela lançadeira. 2
Píndaro falava da "casa levada sobre um carro". De modo genérico, "os antigos ( a r k h a i o i ) gregos", observa Estrabão, designavam "as populações conhecidas ao norte pelo único nome de citas (ou de nômades, em Homero)". 3 No artigo "nômades", a Suda transmite a mesma história, após ter dado,
como definição de nomãdes, o seguinte: boskómenai agélai (rebanhos que passam), kai éthne skytbikã (e populações citas). 4 Portanto, o cita é bem o nômade. Para Heródoto porém as coisas não são assim tão simples. Se os citas, com efeito, são bem nômades, não são os únicos nômades das Histórias, já que numerosos outros povos c o n h e c e m esse gênero de vida. Um certo número de tribos (géneá) persas é nômade; certas populações ( é t h n e a ) indianas são nômades; mais ao norte, os massagetas, atacados por Ciro, também o são; a leste do Tânais e vizinhos dos citas, os budinos e os andrófagos são nômades; no sul, encontram-se os líbios nômades, que circulam por um vasto território, desde o Egito até o lago Tritônis; enfim, são mencionados, apenas uma vez, os etíopes nômades. 5 Todos esses povos têm em comum o fato de desconhecerem a 1 a vou ra r a£e_m eaduxa e d e não viverem em casas. Entretanto, existe entre eles uma grande variedade de nómoi. Antes de tudo, variedade de regime alimentar: muitos são galactófagos (os líbios, os massagetas e os citas), mas não todos; a maior parte come alimentos cozidos, mas não todos (já que os indianos e os budinos os comem crus); a maior parte come carne, mas não todos (certos hindus são herbívoros e os budinos comem folhas de pinheiro); quanto aos andrófagos, são comedores de homens, embora se trate de uma exceção que se pode explicar, já que, de todos os povos do norte inventariados por Heródoto, são os que têm costumes mais selvagens Cagriótatã). Os costumes sexuais são também variados: alguns conhecem o casamento, outros não; alguns têm apenas uma mulher, outros não; alguns, como os hindus, "fazem amor em público", "como animais", enquanto os outros se isolam. Os líbios enterram seus mortos "como os gregos"; os citas enterram-nos diferentemente, mas enterram; os hindus e os massagetas sacrificam (thyousi) os velhos e fazem um festim ( k a t e u o k h é o n t a i ) . 6 Todavia, são todos igualmente nômades... Assim, o nomadismo, se é um gênero de vida, acomoda-se a múltiplos modos de vida e, uma vez posta a diferença radical que é o desconhecimento da agricultura, o nômade de Heródoto não é o mesmo em todos os lugares, o que significa que não repete no norte e no sul invariavelmente o mesmo comportamento. Além disso, aproximando-se os citas dos outros nômades, eles parecem relativamente "pouco nômades". Com efeito, seu modo de vida não conserva as soluções que comportam a maior carga de alteridade (em relação
214
a um modelo grego de existência): eles são monogâmicos, comem alimentos cozidos e fazem sacrifícios. Nômades entre outros, os citas não são mais que nômades e até mesmo não são sempre nômades. Recorde-se a primeira versão das origens, "dita" pelos próprios citas 7 : eles estão ali, recebem os objetos de ouro (dentre os quais o jugo e a charrua), que o mais jovem leva "para sua casa". Em suma, eles não se apresentam como nômades. Sem dúvida, Heródoto não avaliza essa versão nem em seu nome, nem em nome da narrativa, que é, além de tudo, mais uma narrativa das origens do poder real do que das origens dos próprios citas. Quanto à segunda versão, contada pelos gregos do Ponto, a qual, como a precedente, tem mais a ver com a origem da realeza que com a do povo cita, o narrador não a avaliza também, embora, diferentemente de no primeiro caso, ela não levante a questão da agricultura e não implique nenhuma sedentarização dos citas. Diz-se simplesmente que Cita torna-se o único senhor do território que seus dois irmãos, Agatirso e Gelono, devem deixar. No seu conjunto, essa história forjada pelos gregos do Ponto não se opõe ao saber compartilhado pelos gregos, para os quais o cita é nômade. Além disso, Heródoto declara em outro lugar e da maneira mais simples que os citas não são mais que nômades. Trata-se do momento em que ele passa a dimensionar a Cítia e a fazer o inventário dos povos que a ocupam: "Quanto, por ouvir dizer, pudemos obter de informações precisas, avançando tão longe quanto possível, tudo será dito." 8 Trata-se, pois, de dizer tudo do que se recolheu pela akoé, desde que se trate essa informação com precisão (atrekéos). Partindo de Ólbia, 9 encontram-se primeiro os calipidas, que são heleno-citas, depois, mais acima ihypér) , os alizãos: uns e outros "semeiam e consomem o trigo" (speírousi kai sitéontai). Mais acima ainda, vivem os "citas lavradores" (arotêres), que semeiam o trigo, mas não o comem. 10 A este primeiro grupo segue-se, mais ao leste e além do Borístenes, o dos "citas agricultores" (georgoí).u Do ponto de vista das práticas agrícolas, que diferença há entre os arotêrese os georgoí? Provavelmente esta: os arotêres semeiam e lavram, enquanto os georgoí semeiam mas não lavram. Dito de outro modo: estes últimos não só não comem pão, como nem mesmo produzem trigo. Com efeito, o narrador
215
afirma, com relação aos "citas nômades", encontrados além do rio Pantícapes, que eles "não semeiam nada nem lavram a terra" ( o ú t e ti speírontes oudèn oúte aroüntes) — isto é, não comem pão, nem produzem trigo, como ainda por cima ignoram toda forma de agricultura. Assim, o inventário circunscreve o nomadismo: o país (khôre) dos nômades estende-se entre o Pantícapes e o Gerro, ou seja, uma distância de quatorze dias de marcha. Vêm em último lugar, depois do Gerro, os "citas reais": "Eles são os melhores (áristoi) e os mais numerosos (pleistoi) e consideram todos os outros citas como seus escravos." Como vivem? Nada se diz: eles são simplesmente os citas reais. Este é todo o seu ser: eles são o poder. Do oeste ao leste, encontram-se, pois, sucessivamente, quatro grupos de citas: os três primeiros definem-se por sua relação com o trabalho agrícola; o último, por sua relação com o poder. O etnólogo, "trabalhando a partir da tradição oral ( a k o é ) , concluirá então desse inventário que eles não são nômades. As Histórias parecem assim distanciar-se do saber compartilhado. Os citas aparecem como um povo nômade entre outros e, sobretudo, não são apenas nômades. Todavia, considerando-se o conjunto do lógos, a figura produzida é a do nômade. Finalmente, os citas são nômades apesar de tudo, não são mesmo mais que nômades. Alguns exemplos: desde a abertura do lógos cita, eles são apresentados como nômades. Seu nomadismo é invocado como explicação (que não explica nada) de uma prática aberrante: os citas cegam seus prisioneiros "porque não lavram a terra, mas são nômades" 12 — ou seja, explica-se uma estranheza por outra que todo mundo conhece e cuja extensão é maior. A versão das origens à qual adere Heródoto conta que os "citas nômades" passaram da Ásia para a Europa e apossaram-se de um deserto. 13 Quando Dario, tendo atravessado o Istro, avançou para o leste "perseguindo" uma parte dos citas, deveria ter atravessado normalmente (isto é, de acordo com o inventário etnográfico) o país dos citas lavradores, dos citas agricultores, dos citas nômades e, depois, dos citas reais, antes de penetrar no país dos sauromatas. Ora, totalmente ao contrário, esclarece-se que, durante esse percurso, Dario não encontrou nada para pilhar, pois "a região não era cultivada" (khérsos). 1 4 Tudo 216
se passa, pois, como se, com a narrativa da guerra, o espaço mudasse e não fosse mais que um espaço de percurso: daí em diante, não há mais que uma única extensão de terra sem cultivo do Istro aos confins da terra dos sauromatas. Para enfrentar a invasão persa, os citas enviaram para o norte "as carroças onde vivem seus filhos e suas mulheres", 15 o que indica que não são mais que nômades. Enfim, Idantirso, em sua resposta a Dario, fala como nômade e apenas como nômade: "Nada de novo estou eu fazendo agora com relação ao que também em tempos de paz costumo fazer." 16 Fora do episódio etnográfico e da agrimensura etnográfica, eis portanto povos que são somente nômades. O que conduz a que se passe do não apenas nômades ao apenas nômades? Especialmente, por que o encenador da guerra de Dario não os apresenta senão como nômades? Bem evidentemente, o saber compartilhado pelos gregos desempenha um papel importante nisso, já que considera que cita e nômade são equivalentes. Mas não é tudo. Constatar que, com o início da narrativa da guerra, eles não aparecem mais sob outra figura que a do nômade leva, com efeito, a que voltemos às injunções narrativas. Essas injunções, como vimos, 17 dizem respeito a tudo que tende a fazer dos citas "atenienses" e, da guerra cita, uma repetição das Guerras Médicas, que funcionam, com relação à primeira, como modelo de inteligibilidade. Contudo, essa tendência de assimilar os citas aos atenienses, especialmente como defensores da liberdade, encontra, num momento, um limite intransponível: uns são autóctones e vivem na pólis, os outros ignoram a agricultura e a vida da cidade. É nesse ponto que as injunções puramente narrativas (citas = quase atenienses) se chocam com as exigências do discurso etnológico (o nomadismo). É claro que essa distinção existe e que ela é operatória num certo nível. Creio entretanto que é preciso ir mais longe e considerar que faz parte também das injunções narrativas não conhecê-los senão como nômades. Com efeito, nessa guerra é preciso que os citas levem a melhor, já que se trata de uma repetição das Guerras Médicas. É impossível que um Grande Rei possa, passando da Ásia para a Europa, sair impunemente de seu domínio. Mas seria pouco verossímil fazer os citas lutarem 217
numa grande batalha ordenada contra o exército persa: talvez porque esse exército lhes seja infinitamente superior, mas também porque a tradição não registrou jamais nada relacionado com isso. Dito de outro modo, a única arma dos citas é sua aporia, o fato de que não há poros que conduza a eles, sendo portanto inatingíveis. Os atenienses têm a "muralha de madeira", isto é, seus navios; os citas têm a mais segura das muralhas, 18 sua aporia. Estruturalmente, a aporia de uns e a frota dos outros ocupam o mesmo lugar e desempenham, num certo momento, o mesmo papel na narrativa. Assim, a narrativa da guerra implica a aporia, que faz parte das injunções narrativas. Ora, povos que são áporoi não podem ser senão nômades, e o nomadismo tem função na narrativa. Se os citas são áporoi, não podem ser senão nômades — e, se são nômades, são necessariamente áporoi. E à articulação dessas duas proposições que se prenderá o discurso etnológico do narrador — e por discurso etnológico entendo o esforço teórico despendido por Heródoto para p'ensar o nomadismo. No plano teórico, é na estratégia que Heródoto descobre a ligação entre as duas proposições, bem como o fundamento do nomadismo, já que a aporia constitui tanto uma escolha estratégica, quanto a conseqüência de uma forma de vida. Nessa aporia postulada pelo saber compartilhado (cita = nômade), exigida pela narrativa (os citas devem escapar de Dario) e teorizada pelo discurso etnológico de Heródoto (o nomadismo é um gênero de vida, mas também uma estratégia, da qual a figura espacial é precisamente a aporia) ajuntam-se, pois, as exigências e as injunções respectivas do saber compartilhado, da narrativa e da etnologia. 19
PODER E ESPAÇO Sesóstris, condenando ao trabalho forçado os prisioneiros que havia feito durante suas guerras de conquista, transforma o espaço egípcio; 20 uma região apropriada para carros e cavalos torna-se, com efeito, um território reticulado por toda uma rede de canais. De um modo geral, o poder real marca o espaço: ele orienta-o e fixa, recorta-o e distribui, baliza-o com monumentos que marcam sua presença; inversamente, o 218
terreno de percurso e o espaço indiferenciado repugnam-lhe. Como, nessas condições, os citas podem ser a um só tempo pastores e súditos? Ou: o que é um rei nômade? Tal híbrido é viável, ou seja, tal aliança de palavras é pensável? Introduzo aqui uma dupla hipótese. A primeira: o bárbaro é real ou despótico e o próprio modelo de todo poder bárbaro é dado, nas Histórias, pelo Grande Rei. O que é dito dos egípcios — que eles "não eram capazes de viver tempo algum sem rei" 21 — vale para todos os bárbaros ou para todos os não-gregos (um pequeno desvio entre as duas formulações é provocado pelo tirano, que é ao mesmo tempo grego e real, portanto, ao mesmo tempo "grego" e "não-grego"). A segunda hipótese: um poder nômade é impensável. Se isso é assim, de um lado, os citas, que são indiscutivelmente bárbaros, não podem c o n h e c e r senão o poder real, como de fato c o n h e c e m ; por outro lado, desde o momento em que, na narrativa, surge a figura do rei, eles não são mais nômades, como eu creio. Como o rei aparece? Antes de tudo, sob os traços de um doente, em conseqüência das estranhas trocas que acontecem entre o seu corpo e seus súditos, entre o corpo real e o corpo social: ele sofre porque um cita prestou um falso juramento pelos "lares reais". Héstia, a primeira divindade do panteão, é a "rainha" dos citas e o "lar real" é a garantia das trocas entre os citas e seu fundamento. Se essa presença central de Héstia-Tabiti revela bem a centralidade do poder real, marca não menos claramente que o poder real não poderia ser nômade nem em sua concepção, nem em seu funcionamento. Quando o rei morre, é talvez muito mais rei que enquanto vivia. Ele é enterrado junto dos gerros, nos confins da Cítia, e sua "casa" torna-se o centro verdadeiro do território, como provam as palavras de Idantirso a Dario: encontra os túmulos de nossos reis e entraremos em batalha contigo. Dito de outro modo: tu ultrapassaste bem o Istro, não encontrando por isso um póros até nós; mas se descobres os túmulos, então porás efetivamente em perigo nosso "território" e nós combateremos. Para ser um invasor verdadeiro, Dario não deve, pois, contentar-se (como ele crê) em ultrapassar o Istro; ele precisaria ainda encontrar os túmulos dos reis. Ou seja, o póros verdadeiro não é a ponte, mas os túmulos. O túmulo 219
real desempenha, pois, bem o papel de "centro". Com efeito, ele é esse ponto fixo e imóvel que faz com que o espaço cita possa constituir-se como território (por referência a um poder), mas é também, por sua localização na fronteira, justamente o que permite ao espaço cita funcionar como espaço nômade. Portanto, nada de território sem centro ou sem poder, mas o operador do nomadismo, agindo na narrativa, faz com que o centro seja um túmulo e que esse centro esteja "excentrado". Mais ainda: o rei morto obriga os citas a reconhecerem-se como citas, mutilando-se, e os constrange, ao mesmo tempo, a assim confessarem que são seus súditos. Essas marcas de reconhecimento fazem deles uma "comunidade", fundamentada numa sorte de memória corporal, que abole a dispersão nômade, em curso antes dos funerais. O poder nega o nomadismo. Enfim, o rei é um chefe de guerra: trata-se daquele a quem se deve levar cabeças, para que se tenha direito à partilha do butim. Mais amplamente porém, desde que se trate das coisas da guerra, o espaço cita modifica-se. Com efeito, passa-se brutalmente de uma extensão indiferenciada para um espaço delimitado, dividido, organizado (com seus nomos e seus nomarcas, com seus ritos e suas cerimônias anuais). Ares, presente nesses santuários, é a estranha imagem ( á g a l m a ) dessa ordem guerreira: ao rei levam-se cabeças, a Ares oferecem-se prisioneiros. O rei e Ares, enquanto mestres da guerra, criam, pois, um espaço pouco diferente do espaço dos nomos egípcios ou das satrapias persas. Assim, poder rrulitar e nomadismo parecem excluir-se um ao outro, traçando uma separação êntrè os dois os três retratos do rei cita, no exercício de seu despotismo: um poder nômade é impensável; a partir do nomento em que é poder, não é mais nômade. Todavia, se passamos da exposição dos nómoi citas para a narrativa da guerra de Dario, encontramos em Idantirso, seguramente, um rei nômade: nós que não temos nem cidade, nem terra cultivada, não temos por que lutar contigo numa batalha organizada. Como explicar essa intervenção? Na medida em que estamos na narrativa da guerra, os citas não podem ser senão nômades. Entretanto, Idantirso não aparece aí senão como porta-voz da guerra nômade: ele explica às pessoas que não compreendem nada do que ele diz (os persas) que sua conduta não é uma "loucura", mas a efetivação de 220
uma estratégia. Fazendo Idantirso falar, o narrador dirige-se aos persas que, na Cítia, se conduzem como se fossem gregos e são quase-hoplitas — dirigindo-se também e sobretudo ao destinatário das Histórias. É precisamente nesse ponto, na transcrição do nomadismo em termos estratégicos, que se situa a grande originalidade de Heródoto: finalmente, o nomadismo não é pensável de modo positivo senão como estratégia. Ele é o único a propor essa reflexão teórica, que não será verdadeiramente retomada depois, não sendo o nomadismo definido mais que negativamente. Eis por que diz ele, assumindo-o por si mesmo, através de um eu, que, "para a mais importante das atividades humanas, o povo cita inventou a solução mais sábia (sutil) de todas as que conhecemos": a guerra nômade, ou uma maneira "de impedir que algum agressor que marche contra eles possa escapar e que alguém possa atingi-los se eles não querem ser. descobertos". 2 2 Nessa perspectiva, a única que reconhece no nomadismo uma certa positividade, ele não é enfim um gênero de vida mais uma estratégia, mas antes uma estratégia mais um gênero de vida, ou uma estratégia que impõe um gênero de vida. O que permite a Heródoto produzir essa teoria na qual a estratégia funciona como modelo de inteligibilidade? A resposta a essa questão exige que se leve em conta o que dizia o saber compartilhado, por volta dos anos 440-430, em matéria de estratégia — ou o que diziam as teorias estratégicas que não pertencem (ou não pertencem ainda) ao saber compartilhado. Mostrei como, estruturalmente, a aporia representa, na expedição de Dario contra os citas, o mesmo que a frota ateniense no empreendimento de Xerxes contra os gregos: uma e outra ocupam a mesma posição na narrativa. Mas o que é que, ultrapassando a razão narrativa, fundamenta essa equivalência? Creio que está implicitamente presente aí a metáfora da insularidade ou, mais exatamente, que a insularidade funciona como metáfora do nomadismo, sendo o que torna pensável, de modo positivo, este último: ser nômade é, finalmente, ser como um insular. Chegando a esse ponto — e deixando as Histórias — encontramos inevitavelmente a estratégia de Péricles. Contrariamente à estratégia tradicional que subordinava a defesa da 221
cidade à do território, 23 a nova estratégia preconiza que se abandone o território, que não se entre em batalha organizada, que não se defenda senão a cidade e que se conte com a frota. Ora, essa estratégia, em seu discurso, lança mão da metáfora da insularidade. Atenas deve tornar-se como que uma ilha, e os atenienses devem tornar-se como que insulares: "Refleti principalmente" — declara Péricles em seu discurso de 432 aos atenienses, se f ô s s e m o s insulares, quem pois seria m e n o s capturável (aleptóteroi)? Pois bem! O que devemos fazer hoje é, com o p e n s a m e n t o , nos a p r o x i m a r m o s o m á x i m o possível dessa c o n d i ç ã o : é preciso que nos desinteressemos da terra e das casas, para não cuidar senão do mar e da cidade. [...] E se eu pensasse que deveria vos convencer, dir-vos-ia que fôsseis vós mesmos pilhá-las [a terra e as casas], mostrando aos peloponésios que este não é um meio de obter vossa submissão. 2 4
O insular não é capturável, ele é inatingível, é áporos. Ser insular é, pois, ser áporos, do mesmo modo que ser nômade é ser áporos. Não podendo ser insulares, os atenienses são marinheiros e abrigam-se detrás de suas muralhas; não podendo ser nem insulares, nem marinheiros, nem abrigados pelas muralhas, os citas áporoi não podem ser senão nômades. Assim, a insularidade, transcrição metafórica da estratégia de Péricles, vale também como "princípio" metafórico de inteligibilidade de um gênero de vida25 que, de outro modo, não se definiria senão por suas faltas. É a insularidade que informa implicitamente a teoria herodotiana do nomadismo. Pode-se relevar um indício de sua ação nas disposições tomadas no momento da invasão de Dario: os citas enviam suas mulheres, seus filhos e seus rebanhos para o norte, exatamente como os atenienses põem a salvo suas famílias e seus bens enviando-os para as ilhas; mas, sobretudo, aplicam os citas literalmente o programa de Péricles, devastando eles próprios as pastagens e tapando os poços. De que serviria entretanto uma precaução desse tipo num país onde os cursos de água são tão numerosos quando os canais do Egito? Que o nomadismo seja antes de tudo uma estratégia e mesmo uma escolha estratégica, nada exprime mais claramente que Arriano de Nicomédia, historiador do século II de nossa 222
era, num texto de todo surpreendente. Com efeito, num fragmento de seus Bithynica, ele a um só tempo dá uma reviravolta e avança até o limite. Em primeiro lugar, os citas não são nômades, ou melhor, não o foram sempre; em segundo lugar, decidiram tornar-se nômades por razões estratégicas: Outrora, os citas alimentavam-se de pão, lavraram a terra, habitavam em casas e tinham cidades. Quando foram vencidos p e l o s trácios, mudaram de costumes e juraram não mais construir casas, não mais sulcar a terra com a charrua, nem levantar cidades, nem amontoar riquezas, mas ter apenas c a r r o ç a s c o m o m o r a d a s , a c a r n e dos animais s e l v a g e n s c o m o alimento e o leite c o m o bebida, enfim: juraram não ter c o m o riqueza senão os rebanhos que os seguiriam em suas peregrinações de um país ao outro. Foi dessa maneira que, de agricultores, tornaram-se eles nômades. 26
AS PALAVRAS PARA DIZÊ-LO Mesmo se a estratégia da aporia é a única invenção que Heródoto admira entre os citas, ele a admira verdadeiramente: por ela, o nomadismo torna-se pensável e não é mais essa aberração que não se define senão por suas faltas. De outro modo, não há palavras para dizer o nomadismo, não se definindo ele senão por uma acumulação de negações: os nômades não comem pão, não lavram, não semeiam, não moram em casas; para suplicar a seus deuses, não têm nem estátuas, nem templos, nem altares e, quando sacrificam, não acendem fogo, não consagram primícias, não aspergem libações, não degolam animal etc. O nomadismo não é, pois, mais que a soma (jamais acabada) de suas faltas, e o nômade é a própria figura do ãpolis. Além do mais, a antropologia grega fará do nomadismo um primitivismo. Nos primeiros tempos a humanidade foi nômade, é o que sugere, dentre outros, Tucídides na Arqueologia.21 Quando Eurípides faz Ulisses desembarcar entre os ciclopes, pergunta ele a Silene: "Quem é seu chefe? Têm eles o estado democrático?" Resposta de Silene: "São nômades: em nada ninguém ouve (obedece a) ninguém."28 Sem dúvida, essas declarações são uma retomada 223
de Homero, mas jogam também com a impossibilidade de pensar um poder nômade. Uma observação de Aristóteles sobre os nômades é sintomática dessa incapacidade de dizer o nomadismo e, ao mesmo tempo, interessante pela maneira como se contorna a dificuldade: Os n ô m a d e s são os homens que m e n o s trabalham ( a r g ó t a t o i ) , pois o alimento que eles tiram dos animais domésticos lhes vem sem pena e à vontade, mas, c o m o seus r e b a n h o s são levados a deslocar-se para outras pastagens, eles também são obrigados a acompanhá-los, c o m o se cultivassem um campo vivo (hósper georgían zôsan georgoii/ites).29
Antes de tudo, os nômades ignoram o pónos, o trabalho agrícola; vivem praticamente num tempo anterior a Prometeu;30 vivem uma vida à vontade e conhecem uma idade de ouro ou quase isso, já que não é a terra que produz tudo por si mesma, mas seus rebanhos. Portanto, os rebanhos ocupam o mesmo lugar que a terra nas representações da idade de ouro, e a frase de Aristóteles joga com uma simples substituição. Ora, para representar a vida desses homens que ignoram o trabalho agrícola, Aristóteles não pode impedir-se de empregar uma metáfora precisamente agrícola: estação após estação, eles se deslocam "como se cultivassem um campo vivo". Não se poderia exprimir mais claramente a impossibilidade de pensar o nomadismo: não tendo palavras para dizê-lo, Aristóteles muda de código e recorre à metáfora que, finalmente, não faz mais que dizer de novo, com redundância, que o nomadismo não é próprio para pensar-se. Distanciando-nos mais ainda de Heródoto, encontramos um saber cada vez mais petrificado, sintagmas que não pensam mais nada. Nicolau de Damas, por exemplo, no século I a.C., em sua obra éthne synagogé, caracteriza assim os nômades líbios: "Eles contam o tempo não em dias, mas em noites" 31 — nada mais que uma inversão pobre. Enfim, os lexicógrafos dão, como sinônimos de nômades, "selvagens", "bárbaros". 32
224
N
T
R
O
D
U
Ç
Ã
O
GENERALIZAR Como um rastro, seguimos o nome citas e reunimos a coleção dos predicados que o constituem: leitura passo a passo através das Histórias e leitura fundada na prática do desvio sistemático. O lógos constrói a figura do nômade que torna pensável sua alteridade. Passa-se de uma alteridade compacta, opaca para o destinatário, como aparece no capítulo 2 (eles cegam seus prisioneiros, pois são nômade.s 1 ), a uma alteridade que faz sentido (o nomadismo é antes de tudo uma estratégia) — ou seja, de uma "falsa" inteligibilidade, que não faz mais que redobrar a estranheza, a uma inteligibilidade "verdadeira", isto é, que tem sentido para um grego de em torno dos anos 430. Neste ponto (já que se trata de inventariar os outros em Heródoto) conviria considerar outros povos e outros lógoi: antes de mais nada, aqueles que são mais fascinantes ainda para os gregos, isto é, os egípcios, os quais ocupam, nas Histórias, um lugar ao mesmo tempo simétrico e inverso com relação ao dos citas; mas também os líbios, em parte nômades, dos quais se trata logo após o lógos cita; ou ainda os hindus, os últimos homens que habitam na direção do leste; sem falar dos persas, com a figura emblemática do Grande Rei... Realizando, pelo menos para começar, uma leitura fundamentada no mesmo desvio sistemático, se poderia tentar capturar sua alteridade no imaginário grego do século V. Todavia, além do fato de que seguir os citas já nos levou a encontrar, por exemplo, os egípcios e os persas, parece mais interessante prosseguir na direção de uma generalização: não mais o movimento de ida e volta da narrativa ao saber compartilhado em torno da figura do cita, não mais pesquisar que outros a narrativa põe sucessivamente em cena, mas como ela os constrói.
( Se a narrativa se desenvolve justamente entre um narrador e um destinatário implicitamente presente no próprio texto, a questão é então perceber como ela "traduz" o outro e como faz com que o destinatário creia no outro que ela constrói. Em outros termos, tratar-se-á de descobrir uma retórica da alteridade em ação no texto, de capturar algumas de suas figuras e de desmontar alguns de seus procedimentos — em resumo, de reunir as regras através das quais se opera a fabricação do outro. Entretanto, embora necessário, não é suficiente esse trabalho de reunião e de recorte que, na melhor das hipóteses, levaria a um inventário mais ou menos completo de figuras inertes. Com efeito, as diversas figuras são postas em movimento pelo narrador, que intervém de múltiplos modos no interior de sua própria narrativa. A leitura deve, pois, atentar para todas as marcas de enunciação que apresentam essas figuras e que, para o destinatário, as carregam finalmente com um peso específico de persuasão. Nas Histórias, tudo se passa, antes de tudo, entre estas quatro marcas ou estas quatro operações: eu vi, eu ouvi— mas também eu digo, eu escrevo. A necessária atenção às marcas de enunciação faz com que não se possa ler uma narrativa como as Histórias, contentando-se com uma leitura de tipo estrutural, que recorta seu objeto, reduz o texto a um plano e combina os enunciados entre si. A narrativa não se desenvolve de um modo linear, uma frase sucedendo a outra para formar, no fim das contas, sob o olho do leitor-comentador, um sistema de transformações. Muito pelo contrário, existem diferenças de nível e processos que desengancham os enunciados sucessivos, o que é precisamente indicado pelo jogo de marcas de enunciação. Apenas a atenção a essa dimensão "vertical" do texto ou a consideração dessa interrogação (quem fala, a quem e como?) permite levantar, em sua complexidade, a questão do efeito do texto.
228
C
A
P
í
T
U
L
O
UMA RETÓRICA DA ALTERIDADE DIFERENÇA E INVERSÃO Dizer o outro é enunciá-lo como diferente — é enunciar que há dois termos, a e b, e que a não é b. Por exemplo: existem gregos e não-gregos. Mas a diferença nã.o se torna interessante senão a partir do momento em que a e b entram num mesmo sistema. Não se tinha antes senão uma pura e simples não-coincidência. Daí para a frente, encontramos desvios, portanto uma diferença possível de ser assinalada e significativa entre os dois termos.1 Por exemplo: existem gregos e bárbaros. Desde quando a diferença é dita ou transcrita, torna-se significativa, já que é captada nos sistemas da língua e da escrita. Começa então esse trabalho, incessante e indefinido como os das ondas quebrando na praia, que consiste em levar do outro ao próprio. A partir da relação fundamental que a diferença significativa instaura entre os dois conjuntos, pode-se desenvolver uma retórica da alteridade própria das narrativas que falam sobretudo do outro, especificamente as narrativas de viagem, em sentido amplo. Um narrador, pertencente ao grupo a, contará b às pessoas de a: há o mundo em que se conta e o mundo que se conta. Como, de modo persuasivo, inscrever o mundo que se conta no mundo em que se conta? Esse é o problema do narrador. Ele confronta-se com um problema de tradução. Para traduzir a diferença, o viajante tem à sua disposição a figura cômoda da inversão, em que a alteridade se transcreve como um antipróprio. Entende-se que as narrativas de viagem e as utopias recorram abundantemente a isso, já que essa
figura constrói uma alteridade "transparente" para o ouvinte ou leitor. Não há mais ae b, mas simplesmente a e o inverso d E n t e n d e - s e mesmo que essa seja a figura privilegiada do discurso utópico, cujo projeto não é mais que falar do próprio. As Histórias recorrem a essa figura em muitas ocasiões. Dois exemplos mostram a que ponto ela constitui uma tentação sempre presente para a narrativa que pretenda dizer o outro: num primeiro momento, levanta-se a diferença; num segundo momento, ela é "traduzida" ou "apreendida" pondo-se em ação um esquema de inversão. Tomemos um primeiro exemplo, bem conhecido — o do Egito: os egípcios vivem num clima outro (béteros), às margens de um rio diferente (állos) de todos os outros rios, e "adotaram também, em quase todas as coisas, modos e costumes que são o inverso (émpalin) dos 2 de todos os outros homens". Quando se trata dos costumes, a diferença tranforma-se em inversão. Além disso, o enunciado têm pretensões de universalidade: a inversão mede-se com relação ao resto do gênero humano. Ora, tão logo Heródoto começa a desfiar os exemplos de inversão, percebe-se que, com a expressão "todos os hom/ens" deve-se entender, de princípio e antes de tudo, os gregos: Entre eles, são as mulheres que vão ao mercado e fazem negócios; os homens ficam em casa e tecem. Ao tecer-se, nos outros países puxa-se a trama para o alto; no Egito, ela é puxada para baixo. No Egito, os homens levam os fardos na cabeça, as mulheres nos ombros. As mulheres urinam de pé, os homens agachados... 3
A pretendida universalidade da regra_ é uma maneira de a narrativa mascarar o procedimento de inversão, de apagar a marca de fabricação (nós os gregos/o inverso dos gregos) — e não uma forma de dizer que "todos os outros homens" e os gregos são equivalentes ou são dois termos que têm a mesma extensão. 4 A inversão pode também dissimular-se pela elisão do segundo termo da oposição: tem-se então uma inversão que se dá a entender como diferença (ainda que implicitamente não funcione senão como inversão). É o caso da descrição do clima cita5 em que, insensivelmente, o esquema de inversão 230
r nmi
Ê
J
Um V/2 Cie passagem
-—V nu LUfSO do para os carros. O
princípio da inversão é, portanto, uma maneira de transcrever
a alteridade, tornando-a fácil de apreender no mundo era que se conta (trata-se da mesma coisa, embora invertida). Entretanto, pode funcionar também como um princípio heurístico, permitindo compreender, considerar, dar sentido a uma alteridade que, sem isso, permaneceria completamente > opaca. A inversão é uma ficção que faz "ver" e que faz compreender: trata-se de uma das figuras que concorrem para a elaboração de uma representação do mundo. 6 Descrevendo o Egito, Heródoto passa, pois, "naturalmente", da posição da diferença à afirmação da inversão. Jean de Léry, no século XVI, procede de outro modo, indo do dessemelhante ao novo: I
*
<5-
L
Esse país da América, c o m o deduzirá quem o vir, no que diz respeito a o m o d o de vida de seus habitantes, à forma dos animais e, em geral, ao que a terra produz, é tão dessemelhante em vista do que temos na Europa, na Ásia e na África, que pode b e m ser chamado de mundo novo com relação a nós. 7
Bem entendido, o novo pode em seguida ser decomposto parcialmente em inverso (com relação ao que se encontra no mundo de aquém). Não se deve todavia crer que o emprego da figura da inversão seja suficiente para produzir toda a etnografia de Heródoto: inversão entre os nómoi gregos e os nómoi dos outros, inversão entre o norte da oikouméne, onde os fenômenos se explicam pelo frio, e o sul, onde se explicam pelo calor. 8 De início, mesmo se há outros privilegiados (egípcios, citas, persas), as Histórias põem em cena numerosos outros. Ora, se seus respectivos nómoi são o inverso dos adotados pelos gregos, no fim das contas todos teriam os mesmos nómoi, o que não é absolutamente o caso. Além disso, a leitura do lógos cita mostrou que os nómoi dos citas excedem amplamente a figura da inversão: não se poderia dizer que o sacrifício cita é o inverso do sacrifício cívico, sob o risco de não se estar dizendo absolutamente nada; 9 uma seqüência do ritual (por exemplo: os ossos queimados sob o altar como o^ 1 tóic . tj ji ti ~ f . , C r" ® ^ 'x X
\j
231
combustível) pode seguir o esquema da inversão, sem que a precedente ou a seguinte obedeça necessariamente ao mesmo modelo. Do mesmo modo, os funerais dos reis citas organizam-se espacialmente segundo um esquema de inversão: os éskhata desempenham o papel de centro, e a próthesis ordinária (exposição do cadáver) é substituída por uma próthesis invertida (o rei morto "visita" seus súditos). 10 Mas muitos traços da cerimônia são alheios à figura da inversão que, com efeito, não considera diretamente o tratamento do cadáver, nem a mutilação que se infligem os participantes, nem os sacrifícios humanos por estrangulamento, nem a ronda imóvel dos cavaleiros mortos cavalgando seus cavalos empalhados. A inversão, funcionando como um interruptor, dá sentido a tal prática ou a tal conduta — um sentido que pode ser explícito ou implícito. Portanto, na narrativa de viagem, a inversão revela-se uma*operação de tradução: trata-se de um dos procedimentos que pêrmitem passar do mundo que se. conta ao mundo em que se conta. et c\ j^
rtjvtS*^
à~ Mas o que acontece com os traços não considerados pela
" ^ j^V
inversão? Têm eles um sentido? Têm simplesmente sentido? Ou seu sentido é não ter aparentemente sentido, ficar fora e ^ marcar os limites? Em suma: trata-se de traços intraduzíveis? ; „ ^ i - ^ Mesmo que eles resistam ao trabalho que visa a torná-los inteligíveis (mesmo que o viajante não possa ou não queira , „r. traduzi-los), não são, por isso, expulsos da esfera do veros, Á símil. Muito pelo contrário, poderíamos pensar que sua < > v e r o s s i m i l h a n ç a reside precisamente nessa aparente falta de r> _„ sentido. A verossimilhança desses traços que escapam ao processo de inversão estaria no fato de eles se apresentarem, na narrativa, como idiotismos , cuio sentido nao se deixa , capturar, constituindo uma especie de meteoritos. E justamente a impossibilidade de capturar seu sentido que lhes garante a — áfteridade: basta que se recorde a cerimônia fúnebre em honra dos reis citas.
!
aS*
^X
Um último caso, o das amazonas, permite refletir sobre a inversão. 11 Para os gregos, existe uma polaridade, isto é, ao mesmo tempo uma disjunção e uma complementaridade entre a guerra e o casamento: uma é o destino dos homens; o outro, o das mulheres. A guerra e o casamento marcam a realização, respectivamente, do rapaz e da moça. 12 Imaginar uma inversão
232
^
:
'
rA '
. -
'
'
n
*r -
^
~ti> r
.uhwUh.
/»w ^
dos papéis implica fazer as mulheres passarem da esfera do casamento para a da guerra, excluindo os homens desta: as mulheres passam a ter então o monopólio da função guerreira. E o casamento? Duas soluções são possíveis. A primeira: as mulheres recusam o casamento e vivem sem homens. Essa é a alternativa admitida por Estrabão quando afirma que as amazonas passam a maior parte do tempo entre elas próprias e apenas uma vez por ano têm relações com os homens de um povo vizinho, os gargareus, numa união que acontece na obscuridade e no acaso do encontro: Quando eles as engravidam, elas os mandam embora. As que dão à luz uma criança do sexo feminino guardam-na consigo. Quanto às crianças do sexo masculino, levam-nas para os gargareus, a fim de que as criem. Estes as adotam individualmente, admitindo cada um que a criança trazida é seu filho. 13
A segunda solução seria admitir que elas se casam, mas são os homens que se responsabilizam pelos "trabalhos femininos". Este é o modelo apresentado por Diodoro da Sicília: os homens ficam em casa, cuidam das crianças e obedecem às ordens.14 Todavia, a polaridade guerra/casamento é tão densa que se manifesta na narrativa transmitida por Diodoro. Enquanto as amazonas guerreiam, permanecem virgens; a partir do momento em que geram filhos, não mais guerreiam. Do mesmo modo, para que o esquema de inversão de papéis continue a funcionar, apesar dessa "anomalia", é preciso supor que, na cidade das amazonas, existe (bagatela!) também uma separação entre guerra e política. Com efeito, após gerarem filhos, elas não lutam mais, passando entretanto a exercer magistraturas e a ocupar-se dos "negócios comuns" (tà koinã) da cidade; bem entendido, fazem isso sozinhas, com a exclusão dos homens, que não são portanto nem hoplitas, nem cidadãos. Dito de outro modo, a guerra é a função das amazonas-virgens, que se encontram numa faixa etária equivalente à da efebia, à qual o casamento põe fim. Com efeito, elas são uma sorte de efebos. Quanto ao texto de Heródoto sobre as amazonas, é claramente mais complexo. Se a polaridade guerra/casamento tem nele função, age diferentemente: não guerra ou casamento — mas guerra e casamento. 15 As passagens citadas de Diodoro e 233
de Estrabão põem em cena apenas as amazonas (diz-se que as amazonas etc.) e os gregos, que são apresentados no plano de fundo ou somente nos bastidores. O encenador herodotiano dispõe de um número maior de personagens: as amazonas, os citas, os mais jovens dos citas, os sauromatas e, por último, os gregos que, no limite, podem aparecer apenas como o ausente em função de quem tudo se organiza — isto é, o espectador. As relações entre as diversas personagens são portanto forçosamente mais complexas. Com efeito, em Estrabão e Diodoro, as relações são simplesmente duais: amazonas e (gregos). 16 O esquema de inversão portanto se aplica facilmente. Em Heródoto, as relações se estabelecem com base em pelo menos três termos: amazonas, citas e (gregos), havendo portanto relações entre as amazonas e os citas, entre as amazonas e os gregos e entre os citas e os (gregos). Essa disposição cênica triangular conduz, pois, a pensar que o esquema de inversão tem poucas chances de aplicar-se tal qual: o que não exclui que a narrativa dê lugar, em certas seqüências, a elementos de inversão. Mais ainda, o texto não é uma descrição das amazonas e de seus costumes, baseado na evidência atemporal do presente, 1 7 mas conta a origem dos sauromatas, a quem os citas pedem ajuda para fazer face à invasão de Dario. O texto é, pois, escandido segundo um antes e um depois: de início, as amazonas e o modo como elas escapam dos gregos, matando-os; depois, o encontro entre os citas e as amazonas e o nascimento dos sauromatas; enfim, o modo de vida dos sauromatas. Essa progressão no tempo contribui para a complexidade do texto, impedindo que se organize de acordo com a simples inversão. Após terem escapado dos gregos, as amazonas desembarcam na Cítia e põem-se a fazer o que têm costume, isto é, dedicar-se à pilhagem: A primeira vez que elas encontraram uma manada de cavalos, apossaram-se deles e, montadas sobre esses mesmos cavalos, puseram-se a pilhar os bens dos citas. Os citas não podiam entender o que estava acontecendo, 1 8 pois não conheciam nem a língua, nem o traje, nem o povo das amazonas, perguntando-se espantados de onde elas vinham. Tomaram-nas por homens que tinham todos a mesma idade e entraram em combate com elas.
234
É claro que os citas decidem fazer guerra contra esses desconhecidos belicosos que tomam por um bando de homens "da mesma idade" — e, sem dúvida, como esses guerreiros são imberbes, consideram que se trata de um bando de jovens. A partir do desprezo inicial, desenvolve-se, pois, uma conduta de acordo com todas as regras. Mas, "no final do combate, tendo-se apossado de alguns cadáveres, reconhecem eles que se trata de mulheres. Discutem então e decidem não matá-las mais de modo algum". Assim, desde o momento em que se constata que são mulheres, não se trata mais de matá-las: o texto postula que a mulher está excluída do mundo da guerra, "raciocinando" os citas, implicitamente, como os gregos. Eles decidem não mais matá-las, mas sim "enviar até elas os mais jovens dentre eles (neótatoi), no mesmo número que lhes pareceu haver de mulheres. [...] Os citas tomaram essa decisão porque queriam que nascessem crianças delas." Eis como se reencontra a polaridade guerra/casamento: com mulheres não se faz guerra e sim crianças. 19 Ora, para realizar esse programa, são despachados "os mais jovens" dos citas que, no curso da narrativa, não serão designados senão como uma faixa etária (os jovens, os mais jovens). Por que, numa decisão estranha, os citas apelam para os "efebos"? 20 Com efeito, existe claramente, na Grécia, uma separação entre casamento e efebia: um efebo não se casa e, se se casa, é porque não é mais efebo; não se pode ser ao mesmo tempo efebo e casado, pois isso equivaleria a confundir dois acontecimentos que devem suceder-se, ou melhor, duas seqüências, pois passa-se de uma à outra antes de se tornar plenamente adulto. Mas alguém não "pode", inversamente, ser efebo e recusar o casamento: essa é a história de Hipólito, um efebo que, para continuar a sê-lo indefinidamente, decide recusar o casamento, desconhecendo que a efebia é uma fase transitória que deve desembocar no casamento. Ora, os citas parecem conjugar casamento e efebia: os neótatoi recebem^ por suas qualidades, a missão de desposar as amazonas. 21 Por quê? Uma resposta simples e evidente: todos os citas adultos sendo casados, são os únicos homens disponíveis. De mais a mais, o texto não precisa se, uma vez casados, continuam a ser considerados neótatoi, ou, dito de outro modo, não se esclarece se há verdadeiramente confusão 235
entre as duas seqüências. Feitas essas reservas, nada diminui o fato de que é enquanto "efebos" que eles são encarregados da missão: em face desse bando de moças, são encarregados não de combater, mas de casar. O gênero de vida das amazonas, fundado na caça e na pilhagem, convém melhor a efebos, habituados com as margens, do que a adultos; pressuposto implícito que mostra como, insensivelmente, no desenrolar da narrativa, se opera um deslizamento entre os citas e os gregos: em face das amazonas, os citas tendem em transformar-se em gregos. Para "vencer" as amazonas, recomenda-se aos jovens uma conduta ardilosa, o que também está mais de acordo com as práticas dos efebos do que com as regras de vida dos adultos: Eles deveriam acampar junto delas e fazer o que elas fizessem. Se elas os perseguissem, fugiriam sem combater e, quando tivessem cessado, eles voltariam a acampar ao lado delas [...] As amazonas, quando constataram que eles não tinham vindo para fazer-lhes nenhum mal, deixaram-nos em paz. E, a cada dia, um dos acampamentos aproximava-se do outro. Os jovens, assim como as amazonas, não tinham nada além de suas armas e viviam, como elas, de caça e de pilhagem.
A mola desse ardil é afírmtlção^ Com efeito, se se tratasse de homens, eles seriam combatidos; se se tratasse de mulheres, elas seriam raptadas; mas trata-se de mulheres guerreiras, um autêntico^jrionstro J ó n i c o que_é a um só tempo homem e mulher, de quem só se pode aproximar, segundo os citas mais velhos, através da imitação. Nesse sentido, escolhem-se os que se parecem mais com elas (ou com os quais elas se parecem mais), os "efebos", aqueles que, em seu próprio estatuto, conjugam ainda, por pouco tempo, o masculino e o feminino. A ambigüidade de sua posição os torna, ao mesmo tempo, muito próximos e muito distantes das amazonas. Para seduzir essas virgens guerreiras, enviam-se guerreiros virgens. Se o texto é trabalhado por "elementos da efebia", organiza-o também não um simples esquema cie inversão, mas elementos de inversão. Efebia e inversão articulam-se bem, já que a inversão constitui um dos operadores lógicos da própria efebia. A cena de sedução apresenta-se, globalmente, como uma anticena de sedução, uma vez que os citas agem ao ar livre, 236
em pleno meio-dia e no momento em que as amazonas se isolam para fazer suas necessidades — várias condições, portanto, que se opõem aos hábitos gregos. 22 Mas o ponto mais interessante é que essa cena não é absolutamente uma violação: a amazona consente, "ela não repele o cita, mas deixa-o gozar de sua pessoa" ( p e r i e i d e khrésasthai). Não se viola uma amazona: há uma contradição entre os dois termos. Se a ambigüidade de seu estatuto qualifica os efebos para encontrar as amazonas, seu casamento com elas não os transformará em homens adultos. Muito pelo contrário, tudo se passa como se fosse a parte feminina de seu ser que ficasse reforçada. De início, eles propõem às mulheres que deixem as "margens", a fim de ir para junto deles, viver uma vida "normal" (não é preciso dizer que essa cena não se compreende senão com relação ao modelo grego de casamento, o que prova que os citas se tornaram efetivamente gregos). As amazonas então respondem que não saberiam viver como as mulheres citas e que isso não estava em questão. Por último, ajuntaram o seguinte: "...Ide vós encontrar vossos pais, recebei vossa parte de seus bens, depois voltai e moraremos em um lugar nosso [...] Os jovens obedeceram e fizeram assim." Observe-se como, neste caso, é o esposo que fornece o "dote" e não, como é habitual, a jovem mulher. A jovem casada — e essa é a segunda anomalia da cena — vem geralmente morar na casa de seu marido: ela deixa o oikos paterno para entrar no de seu marido. As amazonas recusam isso.23 Bem entendido, elas não podem fazer seus maridos entrarem em seus próprios oikoi, já que não têm nenhuma morada, mas decidem instalar-se num outro lugar, além do rio Tânais, que marca a fronteira oriental da Cítia. Do mesmo modo que a recém-casada ultrapassa a soleira da casa nos braços do marido (o texto joga com essa analogia), as amazonas fazem seus maridos ultrapassarem o Tânais para conduzi-los além, fora da Cítia, a um país que é, ao mesmo tempo, território novo e no man's land. Quando os citas percebem que as amazonas são mulheres, decidem ter filhos com elas. Entretanto, pode-se perguntar se, no fim da história, não foram as amazonas que asseguraram sua própria d e s c e n d ê n c i a . Em Estrabão, por exemplo, esclarece-se que as amazonas, uma sociedade sem homens, não cuidam senão de sua descendência feminina, não se 237
encarregando da educação dos machos: o jogo do esquema de inversão conduz logicamente a isso. Heródoto não diz que as amazonas ou suas descendentes se interessam apenas por suas filhas, afirmando mesmo que os sauromatas são um povo em que as partes masculina e feminina da população vivem juntas. No entanto, a única regra de educação que nos é transmitida diz respeito às meninas: "Eis qual é entre eles a regra em matéria de casamento: nenhuma moça casa-se antes de ter matado um inimigo macho ( á n d r a p o l e m í o n ) ; há algumas que morrem — e morrem velhas — antes de terem casado, por não poderem satisfazer a essa lei." Longe de dissociar (como em Estrabão e Diodoro) guerra e^asamento, os sauromatas, pelo contrário, conjugam os dois: para ter o direito de não ser mais virgem, é preciso matar um homem, ter feito correr o sangue de um homem; assim justificam elas seu nome de oiórpata, "matadoras de homens", segundo a etimologia cita transmitida por Heródoto. Uma exigência desse tipo faz pensar no ritual de agregação de um rapaz à casta dos guerreiros: por exemplo, quando um cita abate seu primeiro homem, b e b e seu sangue; em seguida, contenta-se, para festejar aqueles que matou a cada ano, em tomar uma bebida simbólica composta de vinho e água. 24 A guerra, longe de opor-se ao casamento (as amazonas de Diodoro param de guerrear quando não são mais virgem), é o que qualifica para o casamento. Do mesmo modo como não basta guerrear para ser guerreiro, assim também não basta, para um sauromata, guerrear para poder casar-se, devendo ser realizada ainda uma proeza: o guerreiro aspirante deve, por exemplo, trazer um escalpe, 25 como a aspirante ao casamento deve matar um homem. Quanto às próprias amazonas, o casamento com os "efebos" citas não as impede absolutamente de conjugar a dupla "fazer guerra" e "fazer amor". Como mulheres, não se tornam menos guerreiras. No que diz respeito a seu modo de vida, o casamento não marca uma ruptura entre um antes e um depois. É mesmo a exigência de continuar a guerrear que elas põem antes de tudo, para recusarem-se a viver na Cítia: Não saberíamos conviver com as mulheres que vivem entre vós, pois nossos hábitos ( n ó m a i a ) não são os mesmos delas. Nós atiramos c o m o arco, l a n ç a m o s o dardo, m o n t a m o s a
238
cavalo; nós não aprendemos os trabalhos femininos ( e r g a gynaikeíà)-, as mulheres que vivem entre vós não fazem nada do que dissemos, ocupando-se de trabalhos femininos e ficando nas carroças, sem sair para caçar nem para ir a nenhum lugar. Não poderemos, portanto, entrar em acordo com elas.
As mulheres citas, às quais são confiados os "trabalhos femininos", parecem-se muito com as mulheres gregas. Com efeito, vivem em suas carroças, como as mulheres gregas em suas casas. Produz-se então, de novo, o deslizamento já apontado: em face das amazonas, os citas tornam-se quase gregos. Com relação às mulheres citas, as amazonas ocupam indiscutivelmente uma posição masculina: percorrem o espaço exterior, manejam armas, montam cavalos e ignoram os "trabalhos femininos". Diante dos neótatoi citas, as amazonas ocupam mais a posição do esposo que a da esposa, já que são os maridos que trazem o "dote", deixam o oikos paterno e ainda obedecem. 26 De um modo geral, a história mostra que, do começo ao fim, as amazonas têm a iniciativa, podendo assim intitular-se: a origem dos sauromatas ou como assegurar-se uma descendência. Mas se as amazonas ocupam antes a posição de maridos, nem por isso seus maridos se tornam "esposas". O texto não se baseia numa inversão sistemática ou mecânica dos papéis, mas funciona de modo mais sutil. As mulheres recusam os érga gynaikeía, mas os homens não se encarregam deles, como acontece em Diodoro Sículo: "As mulheres dos sauromatas levam o modo de vida de seus antigos ancestrais: andam a cavalo, tanto com seus maridos como sem eles-, vão à guerra; usam o mesmo traje dos homens." Enfim, quem faz os "trabalhos femininos"? A narrativa de Heródoto, ainda que utilize elementos de inversão, não se organiza segundo um simples esquema de inversão. Sua mola não é uma inversão generalizada. Se a inversão constitui um método de tradução, a tradução é, pois, mais complexa. Sendo a inversão uma relação dual, a presença de mais de duas personagens sobre a cena é suficiente para explicar sua inadequação? Numa primeira seqüência, estão presentes as amazonas e os gregos: 27 elas justificam seu nome de matadoras de homens 28 e mostram que se encontram aquém de todo saber técnico; desconhecem a Atena que dirige 239
os navios, bem como a Atena do freio;29 não sabem navegar, mas naturalmente sabem montar a cavalo. No segundo momento, a cena passa-se entre as amazonas e os citas que, eles próprios, se dividem em "efebos", adultos e mulheres — sendo que o que há então de interessante é a transformação da sociedade cita em uma sociedade quase grega, como se fosse indispensável fazer com que as amazonas lidassem com gregos vestidos de citas, a fim de tornar compreensível para o espectador grego a alteridade delas. Imperceptivelmente, o texto tende, pois, a cair de novo na rotina da relação dual: as amazonas e os citas-gregos. jd
A COMPARAÇÃO E A ANALOGIA Para dizer o outro, o viajante dispõe também da comparação. Com efeito, ela é uma maneira de reunir o mundo que se conta e o mundo em que se conta, passando de um ao outro. • É uma rede que joga o narrador nas águas da alteridade: o tamanho das malhas e a montagem da trama determinam o tipo de peixe e a qualidade das presas, constituindo o próprio ato de puxar a rede um modo de reconduzir o outro ao mesmo. Assim, a comparação tem lugar numa retórica da alteridade,em que intervém na qualidade de procedimento cie tradução.
ô*
V < s
y\
'
Bem entendido, essa figura não é privilégio da narrativa de viagem, nem Heródoto foi o primeiro autor grego a utilizá-la. Muito pelo contrário, sabe-se como se trata de um traço fundamental do pensamento arcaico, sendo encontrada tanto na epopéia, especialmente nas famosas descrições homéricas, 30 quanto nos pensadores jónicos, que a usam como instrumento de^onhecimento, na medida em que lhes permite representar alguma coisa desconhecida seja um objeto, seja um fenômeno. 31 Na narrativa de viagem, funcionando como tradução, a comparação estabelece semelhanças e diferenças entre "além" e "aquém", 32 esboçando classificações. Para que a comparação tenha efeito, convém que o segundo termo pertença ao saber compartilhado pelas pessoas a quem se dirige o viajante. 33 Por exemplo: referindo-se à região do rio Araxes, além do qual habitam os massagetas, Heródoto precisa que muitas ilhas que balizam seu curso são "comparáveis" (paraplesíaí), 34 pela dimensão, com Lesbo; em outro ponto, descrevendo o 240
Nilo, ele informa que, além da cidade de Elefantina, seu curso é tão sinuoso quanto (katáper) o do Meandro.35 A única questão interessante que levantam essas comparações, cujo mecanismo é evidente, respeita a sua extensão: a quem a evocação de Lesbo e do Meandro diz algo? Se tomarmos a abstração típica de nossa história da Grécia, isto é, o ateniense de plantão, o que é que isso representava para ele? Vêm em seguida as comparações classificatórias que, marcando as semelhanças, assinalam deveras os desvios. Encontramo-las sobretudo nos quadros de costumes: hábitos sexuais, por exemplo, em que se precisa que tal ou tal população copula como (katáper) os animais; 36 ou nómoi em geral: os lídios têm mais ou menos os mesmos costumes dos gregos (paraplesíoi), não fosse o fato de que entregam suas filhas à prostituição. 37 Além disso, as comparações permitem que se estenda o conhecimento por etapas, avançando-se do próximo ao próximo: os giligamas (população da Lídia) têm mais ou menos os mesmos costumes que os outros líbios (dos quais Heródoto descreveu anteriormente os nótnoi).iB Enfim, os "gregos" enquanto tais ocupam freqüentemente, nesse grupo de comparações, a posição do segundo termo. 39 Ao lado dessas cor^ara^ões^lemem^ues, do tipo a é como b (a e b sendo diretamente comparáveis), existem compajjições em que o viajante deve demonstrar mais finura: trata-se daquelas que repousam sobre uma mudança dg registro. Com efeito, quando o primeiro termo não tem equivalente direto no mundo em que se conta ou quando o mundo em que se conta não pode funcionar diretamente como referência, a tradução deve então tornar-se transposição^ Assim, Heródoto descreve o revezamento dos mensageiros persas ao longo da rota real até Susa, a residência do Grande Rei. Depois, para fazer com que o destinatário compreenda o que é essa instituição, que não tem correspondente direto na Grécia, ajunta que a corrida desses mensageiros que se revezam é como as lampadoforias praticadas na Grécia: O primeiro corredor transmite ao segundo as mensagens de que é encarregado, o segundo ao terceiro e assim por diante até c h e g a r e m e l e s a o fim, p a s s a n d o de um a outro, como (katáper) entre os gregos (se passa a tocha, durante] a corrida dos portadores de tochas que se celebra em honra de Hefesto.' 10
241
Bem entendido, o serviço dos mensageiros e as lampadoforias não são, de modo algum, a mesma coisa, mas Heródoto estima que um pode ajudar a fazer com que se veja melhor o quv é o outro, valendo a pena, ainda que só por um instante, aproximá-los: as tochas que passam de mão em mão são como as notícias~qúe se divulgam de mensageiro em mensageiro, até o palácio real de Susa. Eis um outro exemplo em que, graças à comparação, a alteridade de uma conduta, de início apresentada maciçamente, termina tornando-se inteligível: quando os issedons, povo da margem nordeste da Cítia, perdem seus pais, organizam um banquete canibal, no curso do qual comem o cadáver paterno misturado com carnes de animais; depois, conservam "a cabeça depilada, esvaziada, dourada e tratam-na como um objeto de culto, por ocasião dos grandes sacrifícios que oferecem todos os anos". Aparentemente estamos num contexto muito pouco grego — e todavia a frase logo conduz a isso, pois precisa-se que os filhos prestam assim honra a seus pais, como (katáper) os gregos celebram o aniversário dos mortos (os genésia).41 Essas cerimônias e os genésia gregos não são a mesma coisa mas, de um ponto de vista funcional, desempenham o mesmo papel: uma é, na sociedade dos issedons, o que a outra é na sociedade grega. Essa forma de comparação, que opera por aproximação e transferência, corresponde à similitudo per collationem da Retórica a Herênio, que enumera com efeito quatro formas de "similitudes": similitudo per contrarium, similitudo per negationem, similitudo per brevitatem et similitudo per collationem, sendo esta última chamada de paralelojyA cada forma é atribuída uma função e a quarta recebe a de "pôr a coisa diante dos olhos" ( a n t e oculos poneré). Pôr a coisa diante dos olhos, que seja, mas precisamente pondo uma outra coisa: essa é a originalidade da narrativa de viagem. Como figura desse tipo de narrativa, o paralelo é portanto uma ficção que faz com que o destinatário veja como se estivesse lá, mas dando a ver uma outra coisa. Assim, no momento em que Heródoto mede a Cítia e constrói sua figura, encontra o promontório do país dos tauros, que representa da seguinte forma:
242
A Cítia, como (katãper) a Ática, é limitada pelo mar dos dois lados — mar do lado do meio-dia, mar do lado da aurora; e, semelhantemente ao que aconteceria na Ática, os tauros habitam na Cítia como se (paralésia, hos ei), na Ática, um outro povo que não os atenienses habitasse o promontório do Súnio, que se estende mar adentro desde Tórico até o povoado de Anaflisto; o q u e eu digo vale na medida em que se p o d e c o m p a r a r p e q u e n a s coisas às grandes. Tal é a situação da Táurida. 4 3
Portanto, a Táurida está para a Cítia como o Cabo Súnio está para a Ática: esse é o primeiro paralelo que se dá a ver. Além disso, o agrimensor precisa as condições de validade de sua comparação: ela vale "na medida em que se pode comparar pequenas coisas às grandes". 44 Mas esses escrúpulos são também uma forma de dizer que a diferença entre os dois é puramente quantitativa e não qualitativa: simples questão de medida. Sem dúvida, a Táurida é maior que o Súnio mas, salvo por isso, a Táurida é exatamente como o Súnio. A diferença não é negada, mas canalizada. Depois, o viajante prossegue, desenvolvendo um segundo paralelo: Para q u e m n ã o costeou ( p a r a p é p l o k e ) essa região da Ática, farei ver de um outro m o d o ( á l l o s delóso): é c o m o se ( h o s ei), em Iapígia (na Apúlia), um outro povo que não os iapígios o c u p a s s e separadamente a parte da região que avança sobre o mar, desde o porto de Brendésio (Bríndisi) até Tarento.
A Táurida é, portanto, com relação à Cítia, como o salto da bota italiana com relação à Apúlia. Esse segundo paralelo apela para um outro saber geográfico: esse outro saber é, de fato, um outro saber compartilhado,_limitado aos gregos da Magna Grécia? Deve-se observar que o viajante não diz "para quem não mora na Ática", ou "para quem não viu a Ática", mas "para quem não navegou ao longo da costa" da Ática. Qual é, pois, o primeiro destinatário desse paralelo? Os gregos da Magna Grécia? — entendendo-se que os que fizeram a viagem, para vir da Grécia ou para ir à Grécia, não podem tê-la feito senão de barco? Ou trata-se dos navegadores? Essas comparações são portanto mais da alçada da literatura dos périplos, essas espécies de instruções náuticas usadas pelos viajantes? Seja como for, a comparação constrói-se sobre a
243
possibilidade (quase ilimitada) de fabricar outros paralelos, pois "o que eu digo desses dois promontórios pode-se entender de muitos outros semelhantes, com os quais a Táurida se parece". Assim o viajante dá mostras de seu saber: eu poderia mostrar outros paralelos a vocês. Do mesmo modo, ele libera os ouvintes ou leitores que não conseguem ver bem, para que construam outros paralelos ainda mais satisfatórios. 43 O paralelo repousa sobre o jogo de quatro termos, associados dois a dois, conforme a seguinte fórmula: a é para b o que c é para d. Dito de outro modo, a comparação, tomando emprestada a fórmula da analogia, faz-se, se posso assim dizer, visão analógica. Com efeito, quando o narrador, para fazer ver as relações entre a Táurida e a Cítia, "põe diante dos olhos" do destinatário as relações entre o Cabo Súnio e a Ática, suscita uma visão analógica. Ou ainda, faz sua a frase de Anaxágoras: ópsis adélon tà phainómencf6 — do que se vê ao que não se vê, do conhecido ao desconhecido. A analogia desempenha um papel importante nas origens da ciência grega, em que funciona tanto como método de invenção, quanto como sistema de explicação. 4 7 É, pois, interessante ver uma narrativa como as Histórias recorrer a esse verdadeiro modo de conhecimento que é o conhecimento "por comparação", adaptando-o a seu próprio uso; no limite, encontra-se um bom exemplo disso no paralelo que Heródoto estabelece entre o Istro (o Danúbio) e o Nilo: "O Istro, correndo através de regiões habitadas, é conhecido por muita gente, enquanto ninguém pode falar das nascentes do Nilo, porque a Líbia, que ele atravessa, é inabitada e deserta." 48 Portanto, do conhecido para o desconhecido, do manifesto ao escondido — para "encontrar" a nascente do Nilo faço uma volta pela do Istro e procedo por inferência: "Tanto quanto posso, por conjetura, fazer uma idéia do que não se conhece, de acordo com o que é manifesto..." 49 Hipótese geral: o Nilo é como o Istro. Entretanto, para que a comparação adquira uma capacidade heurística, é preciso que eu postule uma simetria entre o norte e o sul do mundo habitado — e é a aplicação desse princípio que irá transformar a comparação em verdadeiro paralelo: o Nilo é no sul o que o Istro é no norte — ou, o Nilo é na Líbia o que o Istro é na Europa. Esse exemplo representa um caso no limite. Em primeiro lugar, 244
porque supõe, para que possa proceder a uma "descoberta", a pertinência do princípio de simetria. Com efeito, o paralelo em pauta requer, para tornar-se possível, a aplicação desse princípio. Em seguida e sobretudo, porque o segundo termo da comparação (o curso do Istro), diferentemente do Súnio e da Ática, não pertence ao mundo em que se conta — não integrando o horizonte concreto do destinatário, não fazendo parte do saber compartilhado (provavelmente), nem mesmo sendo, garantido pelo olho do narrador (eu mesmo vi). Ora, toda a demonstração entretanto repousa sobre a afirmação rápida do narrador, segundo o qual seu curso pertence bem ao que é conhecido: ele o sabe, mas muitos outros igualmente sabem. Tecida do mundo em que se conta, a comparação faz ver. Diretamente: aé como b; ou analogicamente: a é para k o r a o c é para d. Operador de tradução, ela filtra o outro no mesmo. Ficção narrativa, que tem como garantia o olho do viajante ou o saber do narrador, visa a convencer o destinatário. E se, uma vez puxada a rede, subsiste algo da diferença, trata-se de uma diferença assinalável e_ mensurável, o que significa que é dominável ("na medida em que se pode comparar coisas pequenas a grandes...").
A MEDIDA DO THÔMA A narrativa de viagem, se se pretende relação fiel, deve comportar uma rubrica dedicada aos "thôma" (maravilhas, curiosidades). Nas Histórias eh não falta. Com efeito, mostrou-se à saciedade como os lógoi etnográficos são, na maior parte das vezes, organizados assim: abertura referente à natureza cia região; passagem em revista dos nómoi; menção dos tbomásia; enfim, história política. 5 0 Que o thôma é um verdadeiro tóposdo discurso etnográfico, prova-o a abertura deste capítulo sobre a Lídia: "Com relação a maravilhas, o território da Lídia não tem mesmo nada que mereça ser escrito, como há em outras regiões, a não ser as palhetas de ouro que descem do Tmolo...". 5 1 Confirma-o ainda a retomada da mesma estrutura frasal a propósito da Cítia e do pouco que ela oferece ao viajante em termos de maravilhas. 52 A importância que tem para o narrador a abordagem das
245
maravilhas-curiosidades é indicada com clareza no prólogo de sua obra, no qual se definem seus objetivos: ele visa a, entre outras coisas, mencionar e mostrar os érga megãla te kal thomastá, feitos tanto pelos gregos, quanto pelos bárbaros. O que são esses érga? Houve muitas discussões sobre esse assunto e as opiniões dividem-se: são os "monumentos", isto é, os monumentos mais importantes construídos pelos gregos e pelos bárbaros? São as ações, isto é, os altos feitos? São ainda, como é provável, tanto as maravilhas da natureza, quanto os monumentos e os altos feitos? Não importa: não nos interessa, com efeito, senão seu qualificativo de thomastá?0 VK ••"Heródoto quer referir-se a eles porque são thomastá (e megãla, grandes), portanto, dignos de memória. Ele próprio afirma que faz isso para que não se corra o risco de que cessem de ser renomados ( a k l é a ) . Já que a narrativa lhe atribui um lugar, o thôma deve figurar no elenco dos procedimentos da retórica da alteridade. De uma maneira geral, produz um efeito de credibilidade, até porque o narrador não pode deixar de usar essa rubrica que o público espera: se a omitir, arruinará de uma vez seu crédito. Tudo se passa como se estivesse em ação o seguinte postulado: nesses países distantes (ou nesses países outros), não pode deixar de haver maravilhas-curiosidades. Assim, quando Heródoto se refere à eskhatiá, o limite do mundo habitado, encontramos um eco dessa "teoria": "As extremidades da terra habitada dir-se-ia que receberam em partilha o que há de mais belo, como a Grécia recebeu para si o clima mais temperado"; ou ainda: "as regiões extremas, que circundam o resto do mundo e o fecham entre si, possuem só coisas que julgamos as mais belas e que são as mais raras".54 Enorme beleza, excessiva raridade — esses são os constituintes do thôma. Dito de outro modo, o thôma apresenta-se como uma tradução da diferença: ele é uma das transcrições possíveis da diferença entre aqui e além. Bem entendido, o thôma, tomado como categoria da narrativa etnográfica, não é uma invenção de Heródoto. Pelo contrário, é encontrado na epopéia e em Hesíodo, onde não designa somente a maravilha, mas "o milagre como objeto de estupor": pondo em relevo o divino, ele é, da parte dos deuses, sêma-, já da parte dos mortais constitui propriamente 246
thôma,55 Nas Histórias, a referência à esfera divina desaparece, e o thôma assume aparentemente uma dupla estrutura. Com efeito, ele é qualitativamente extraordinário ou quantitativamente notável. Nas extremidades do mundo, onde se encontram as coisas "mais belas" e "mais raras", descobrem-se especialmente os misteriosos arômatas. 56 Os árabes recolhem o incenso fazendo fumigações para espantar as serpentes aladas que guardam as árvores onde ele brota. A canela é colhida num lago habitado por espécies de morcegos, dos quais é preciso proteger-se envolvendo-se o corpo inteiro em peles de boi. "Ainda mais extraordinária do que essas" Çthomastóteron) éa coleta do cinamomo: certos pássaros servem-se dele para fazer seu ninho, sendo, pois, necessário encontrar um subterfúgio para fazer caírem os ninhos, que são inacessíveis. Quanto à coleta do ládano, é "ainda mais extraordinária que esta última": esse arômata de perfume tão delicioso agarra-se, com efeito, na barba dos bodes, lugar muito fedorento. Assim, esses admiráveis produtos não podem ter senão uma procedência extraordinária. Mas encontramo-nos, por isso, na esfera do puro qualitativo? Não, pois deve-se observar como a ordem de exposição escolhida pelo narrador expõe passo a passo o caráter cada vez mais "extraordinário" das coletas, sendo a mirra, cuja colheita não apresenta problema, apenas mencionada. Isso mostra como o thôma funciona como critério de classificação: do menos extraordinário ao mais extraordinário. Existe, pois, (pelo menos virtualmente) uma escala e uma medida do thôma, à qual se refere o narrador. As diferentes colheitas são relatadas ao ouvinte em função da quantidade de thôma que cada uma contém, não sendo contadas senão em virtude dessa quantidade de thôma. Do mesmo modo, também o que organiza o qualitativamente extraordinário parece ser, na narrativa, o quantitativamente notável. Sem dúvida, o manejo da escala do thôma compete apenas ao narrador, mas é em função do destinatário que ele processa suas escolhas: a escala se organiza de acordo com o que é visto implicitamente como extraordinário, ou como mais e mais extraordinário, do ponto de vista de um "nós" (eu e vocês). Obedece-se portanto ao ouvido do público, entendendo-se que o thôma 247
possa, se for o caso, tomar emprestada a figura da inversão. Por exemplo: o caráter "extraordinário" da colheita do ládano decorre do fato de ele ser encontrado na barba dos bodes, isto é, o que exala o melhor odor se agarra precisamente no que espalha o pior fedor, sendo essa espécie de atração dos contrários o que há de mais surpreendente. Logo em seguida, após ter dito que o Egito é o país que oferece "mais maravilhas", Heródoto começa sua exposição sobre a diferença egípcia, que se transforma logo em inversão: passa-se portanto do thôma à inversão, admitindo-se que a inversão possa ser uma transcrição adequada do thôma.57 O thôma pode ser também a singularidade de que não se consegue entender a razão, a exceção: esse é o caso das mulas da Elida — ou melhor, de sua ausência. Descrevendo o clima cita, Heródoto observa que, naquele país, os cavalos resistem ao frio, mas as mulas (e os asnos) não, enquanto nos outros países acontece o inverso: os cavalos não resistem ao frio e as mulas sim. Em seguida, refere-se ele aos chifres dos bois. Se os bois não têm chifres na Cítia é por causa do frio; a prova: Homero diz que, na Líbia, os cordeiros rapidamente adquirem chifres; portanto, simetria e inversão entre o frio e o calor, entre a Cítia e a Líbia. Conclusão geral: "Lá ( e n t h a ü t a ) , isso de que eu falo explica-se pelo frio." É diante disso que Heródoto então se supreende: "Mas me pergunto com surpresa (thomãzo) por que, em toda a Elida, não podem ser geradas mulas, mesmo que a região não seja fria, não tendo esse fato nenhuma causa aparente." 58 Se a Élida fosse uma região fria, poderia ser invocado o precedente cita, e a anomalia seria facilmente explicada. Entretanto, fugindo a Élida da regra geral, fugindo também do inverso da regra, resta-me apenas ficar surpreso (thomãzo). Essas observações, apresentadas pelo narrador como "digressão" (prosthéke), 5 9 mostram que existe uma ligação entre thôma e digressão: a digressão pode ser uma forma de expressão do thôma, e o thôma pode ter, na narrativa, a função de figura organizadora da digressão. Thôma, segundo a qualidade, thôma, segundo a quantidade? A colheita dos arômatas mostrou que, no conjunto, o qualitativo se transcrevia como quantitativo, em virtude da aplicação implícita de uma escala, que fornecia também uma ordem de exposição. Mais freqüentemente, contudo, nas Histórias o 248
thôma exprime-se segundo a quantidade e a medida: ele deixa de ser apreciado tendo como referência uma escala do thôma (do menos extraordinário ao mais extraordinário), para transcrever-se diretamente em números e medidas, como se o número e a medida constituíssem o ser do thôma — quanto mais as medidas são grandes e os números elevados, maior é o thôma. Como se a escala do thôma, implícita e compartilhada pelo narrador e por seu público, lhe parecesse muito vaga e indigna de confiança. Assim, ele refaz sua escala a partir da escala imediatamente segura e disponível dos números. Por exemplo: "os árabes têm duas espécies de carneiros dignas de admiração ( ã x i a thómatos), que não existem em nenhuma outra parte" — singularidade. Transcrição da singularidade em quantidade: "Os da primeira espécie têm uma longa cauda que não mede menos de três côvados; [...] os da segunda têm uma comprida cauda, de um comprimento que atinge um côvado." 60 Do mesmo modo, entre as raras curiosidades da cítia, encontra-se uma pegada notável por seu comprimento de dois côvados;61 quanto ao autor dessa gigantesca marca, trata-se de Héracles. A atribuição não levanta nenhum problema para Heródoto, ainda mais considerando-se que Héracles, na versão da origem dos citas contada pelos gregos do Ponto, 62 esteve efetivamente na Cítia. De um modo geral, os gregos têm um estoque de personagens disponíveis e prontas para atuar em todas as situações: presentes como operadores de inteligibilidade, servem para classificar e ordenar os fenômenos, ajudando a pensar o mundo, o que os torna uma espécie de instrumentos do pensamento, uma sorte de ferramentas lógicas. Uma grande pegada é igual a uma marca de Héracles — e, de modo algum, o que seria uma abordagem moderna, uma grande pegada indica a existência de um homem selvagem ou a presença de algum "abominável homem das neves" cita! Para qualificar o_ thômçi, Homero e Hesíodo utilizam o adjetivo "grande" ( m é g a s ) , mas essa grandeza não se mede; 63 associado a mégas encontramos, com efeito, deinós, terrível, formidável. O "milagre" é, pois, grande ou terrível — e grande porque terrível. Nas Histórias, ao contrário, a figura do thôma é muito freqüentemente uma cifra. Os exemplos são abundantes. 64 Citarei apenas o labirinto do Egito, que produz 249
sobre o visitante "mil espantos", um thôma myríon, isto é, um espanto cuja própria intensidade se aprecia segundo um número. Com efeito, "se fizermos a soma das construções e das obras de arte que os gregos produziram, elas se mostrarão inferiores a esse labirinto, tanto no que se refere ao trabalho, quanto ao custo". 65 Ele "ultrapassa as pirâmides": [O labirinto] compreende doze pátios cobertos [...]; duas séries de salas, umas subterrâneas, outras acima do solo, sobre as primeiras, em número de três mil, sendo cada série de mil e quinhentas. Vimos e percorremos nós mesmos as salas que ficam acima do solo e dizemos o que constatamos com nossos próprios olhos; sobre as salas subterrâneas, fomos informados verbalmente, pois os egípcios que as guardam não quiseram mostrá-las a nós. [...] Assim, das salas inferiores falamos por ouvir dizer; mas nós vimos, com nossos próprios olhos, as salas superiores, que são maiores que a« obras humanas. Os caminhos que seguimos para sair dos c ô m o d o s que se atravessam, as voltas que fizemos atravessando os pátios, em vista de sua e x t r e m a c o m p l i c a ç ã o , c a u s a r a m - n o s um maravilhamento infinito, enquanto passávamos de um pátio às salas, das salas aos pórticos, depois desses pórticos a outros cômodos e dessas salas a outros pátios.
Assim, avaliar, medir, contar são operações necessárias para a tradução do thôma no mundo em que se conta. Que se pense no título algumas vezes dado ao livro de Marco Polo, o Milione, sem dúvida um modo de ressaltar a onipresença do número, questionando ao mesmo tempo sua autoridade. Além disso, o prólogo das Hitórias, citando os érga megála te kai thomastá, já procede à aproximação entre thôma e grandeza. Se a fórmula é um eco de Homero e de Hesíodo, quer dizer que, daí em diante, a grandeza é mensurável. Por outro lado, o caso do labirinto detalha que o thôma está ligado ao olho do viajante — eu vi com meus próprios olhos e esse olho encontra-se aí como garantia do thôma. Quando Hesíodo descreve o Tártaro, declara que se trata de um prodígio "mesmo para os deuses imortais". 66 Com a narrativa etnográfica, é o viajante que se torna a medida do thôma-. é com relação a mim — e não com relação aos deuses — que algo se entende como thôma-, sou eu que estimo que tal paisagem ou tal construção é "admirável" ou "extraordinária". 250
Como escreve Heródoto: "Direi o que para mim é o mais admirável (thôma mégistori) na Babilônia." 67 Existe, pois, uma ligação entre thôma e enunciação: o olho do viajante opera como medida do thôma, e o narrador "faz ver" o thôma ao destinatário, fornecendo-lhe precisamente as suas medidas. O thôma, no conjunto, decorre das técnicas da agrimensura. Se o thôma pode ser o fio condutor da digressão, é também, de um modo mais geral, produtor da narrativa, na medida em que é ele que faz dizer ou escrever: "Passo agora ao Egito, do qual falarei longamente pois, comparado com todos os outros países, é o que contém o maior número de maravilhas (pleista thomásià) e o que oferece o maior número de obras que ultrapassam o que se pode delas dizer. Assim, direi mais coisas sobre ele." 68 A extensão da narrativa define-se em função da quantidade de thôma-, quanto mais thôma há, mais minha narrativa será longa. Mas essa narrativa, tão longa quanto seja, não é suficiente para esgotar o thôma, que sempre corre o risco de escapar: há um resto, um além dos verba, um indizível. 69 Assim, o Egito é o país "que oferece o maior número de obras que ultrapassam o que se pode dizer" ( é r g a lógou mézó), mas um modo de fazê-las entrar no lógos, de dar-lhes razão ou de dar conta delas, é precisamente informar o seu número e a sua medida. Tradução da diferença entre aquém e além, o thôma produz finalmente um efeito de realidade, como se dissesse: eu sou o real do outro. Com efeito, na esfera do outro, as coisas, os érga não podem menos que thomastá. Nesse postulado repousa sua verossimilhança. Na medida em que sua presença na narrativa produz um efeito sério, na medida em que cria um efeito de realidade (e há o efeito sério apenas porque há efeito de realidade), enfim, na medida em que repousa no olho-medida do viajante, o thôma é bem um procedimento para fazer-crer, desenvolvido pela narrativa de viagem.
TRADUZIR, NOMEAR, CLASSIFICAR Uma retórica da alteridade é, no fundo, uma operação de tradução: visa a transportar o outro ao mesmo ( t r a d e r e ) — constituindo portanto uma espécie de transportador da 251
diferença. Mas qual é, nas Histórias, o estatuto cia tradução propriamente dita? Que lugar ela ocupa? O narrador mostra-se tomado pelo cuidado de traduzir, isto é, de "fazer com que aquilo que é enunciado numa língua o seja numa outra, visando à equivalência semântica e expressiva de dois enunciados"?70 Em 1578, apareceu a narrativa de Jean de Léry, História de uma Viagem Feita à Terra do Brasil. Esse texto organiza-se segundo uma verdadeira "economia da tradução", 71 ou seja, estabelece ele pouco a pouco que, entre "aquém" e "além", não são tanto as coisas que diferem, mas sua aparência, pois, no conjunto, a natureza humana é a mesma e só a língua é outra. Mas a língua é traduzível e, portanto, a diferença é suscetível de ser apreendida. Entre o Antigo e o Novo Mundo, a tradução é o que mantém e reduz a distância oceânica, constituindo, ao mesmo tempo, a marca' sempFé presente do corte entre ambos, bem como o signo, sempre retomado, de sua sutura: corte-sutura, dois tempos de um mesmo movimento que produz o texto. Para que se possa estabelecer teoricamente esse tipo de economia da tradução, supõe-se que seja possível fazer referência a um conjunto de problemas^ distinguindo-se entre o ser e o aparecer. Esse cuidado com a tradução explicita-se de fato no livro de Léry, tanto que o capítulo XX é um dicionário francês-tupi — ou melhor, um verdadeiro "método Assimil",72 que se apresenta sob a forma de um diálogo entre um tupinambá e um francês. Se a diferença é um dado no nível da língua, a função desse capítulo é fornecer "o código da transformação lingüística". 73 Além disso, esse "colóquio" fecha o quadro da vida indígena, pois não lhe seguem senão os dois últimos capítulos consagrados às peripécias do retorno "para o aquém". Pode-se descobrir, nas Histórias, uma economia da tradução? No sentido preciso da palavra, certamente não. Com efeito, não existe nelas nenhum "colóquio" egípcio-grego, ou persagrego, ou ainda cita-grego. Marco Polo aprendeu o persa, o mongol e um pouco de chinês. Léry recorre aos serviços de um "trugimão", de um intérprete, aprende também o tupi e é no campo da competência lingüística que critica Thévet, seu velho inimigo; este último consagrou um capítulo de sua Cosmografia à língua dos americanos, mas, segundo Léry, não fez mais que "falar gírias", "confusamente e sem ordem", 252
pois, na realidade, não conhecia dela nenhuma palavra. O próprio Léry emprega freqüentemente palavras tupis, na maioria dos casos nomes dos quais dá em seguida a tradução e a explicação. Esse modo de agir produz seguramente um efeito exótico, mas também um efeito sério. Já Heródoto, muito provavelmente, só conhecia o grego.74 Isso poderia ser explicado pelo fato de que, sem dúvida, ele não visitou apenas uma nação, como Léry, nem, como Marco Polo, viveu dezesseis anos apenas numa mesma região. Entretanto, isso não diminuiu o fato de que os gregos, de um modo geral, não falavam senão grego: "Não era hábito deles" — escreve Momigliano — "conversar com os nativos em línguas nativas. [...] Não havia tradição de traduzir livros estrangeiros em grego." E o olhar que Heródoto joga sobre as outras civilizações seria, em última análise, "frio e seguro de si mesmo": "Não se experimentava a tentação de entregar-se às civilizações estrangeiras. De fato, não se experimentava o desejo de chegar a conhecê-las intimamente, através do domínio das línguas estrangeiras." 75 De fato, Heródoto conversa ou com gregos, ou com pessoas que falam grego, ou então informa-se por intermédio de intérpretes, como se vê quando de sua viagem ao Egito. Visitando a pirâmide de Queops, assinala uma inscrição, ajuntando: "Se me recordo bem do que disse o intérprete que leu para mim a inscrição." 76 Mas trata-se de caso único. Das outras vezes, quando transmite palavras, cita um texto ou uma inscrição, o problema da tradução não é sequer considerado. De um modo geral, não se vêem os gregos das Histórias terem relações com os persas a não ser através de intérpretes, 77 com a única exceção de Histieu de Mileto, tirano e fantoche do Grande Rei, que, numa ocasião, profere pelo menos algumas palavras em língua persa; mais ainda, trata-se de um momento de todo particular: num combate, a ponto de ser morto por um soldado persa, ele faz-se reconhecer por ele; portanto, havia pelo menos urgência! 78 No que diz respeito à formação dos intérpretes, o livro II dá uma informação precisa e interessante. Psamético, tendo chegado ao poder graças à ajuda dos jônios e dos cários, concedeu-lhes terras e "confiou-lhes também os jovens egípcios, para serem instruídos na língua grega; é desses jovens que aprenderam a língua grega que descendem os intérpretes que existem hoje 253
no Egito". 79 Portanto, é-se intérprete de pai para filho e, sobretudo, os intérpretes são egípcios que falam grego e não gregos que conhecem o egípcio. Se as Histórias não se organizam segundo uma "atividade de tradução", encontra-se nelas, todavia, um certo número de traduções (uma trintena). De quais tipos e o que indicam do ponto de vista de uma relação com o outro? Trata-se sobretudo de nomes e, principalmente, de nomes próprios; em contrapartida, a tradução não acontece jamais com relação a enunciados; encontra-se, pois, fundamentalmente, ligada à atividade de nomeação: numa narrativa que diz o outro, ela é um modo da nomeação. O nome próprio significa alguma coisa, como se vê, por exemplo, com os nomes dos Grandes Reis, Dario, Xerxes e Artaxerxes. Com efeito, traduzidos em grego significam "O Repressor", "O Guerreiro", "O Grande Guerreiro" — e "os gregos poderiam, em sua língua, sem errar (orthôs), chamar assim esses príncipes". 80 Pela operação da tradução, o nome aparece, ao mesmo tempo, como nome próprio e como denominação: Dario e Xerxes são como Ricardo Coração de Leão e Ivan o Terrível. A tradução provê um suplemento de sentido. O que se dava como simples classificação (houve um rei que se chamava Dario, um outro chamado Xerxes etc.), entende-se daí em diante também como denominação, na medida em que esses nomes dizem alguma coisa de portador. Xerxes é o terceiro soberano da dinastia, após Ciro e Dario, mas é também "O Guerreiro". Eis um segundo exemplo de tradução-denominação mais rico que o precedente: os citas chamam as amazonas de oiórpata, palavra que, traduzida em grego, significa "matadoras de machos", pois em cita homem se diz "oior", e "pata" quer dizer matar.81 Portanto, a tradução parece que se faz em dois tempos: na Cítia, as amazonas são chamadas de oiórpata, nome que, em grego, quer dizer "matadoras de machos". Dito de outra forma, se oióipata é bem uma tradução de "amazonas", os dois nomes não têm a mesma "etimologia": pela "etimologia cita", chega-se, com efeito, ao sentido de "matadoras de machos"; por outro lado, pela etimologia popular grega, que Heródoto não menciona (mas que muito provavelmente deveria ser conhecida pelo destinatário), obtém-se a-mazós, 254
"sem seio". 82 Assim, a simples nomeação tradutora, agindo no registro grego e no registro cita, contribui para construir a figura das amazonas, pois, graças ã tradução, a denominação oiótpata torna-se, para um grego, uma descrição que aumenta seu saber sobre aquele povo. Último exemplo, o de Bato, fundador da colônia de Cirene, na Líbia: ...Nasceu um menino que tinha a fala embaraçada e gaguejava — a quem, de acordo com o que dizem os habitantes de Tera e de Cirene, foi dado o n o m e de Battos [em grego, báttos significa gago]; mas, na minha opinião, deram-lhe sim um outro nome, que ele trocou pelo de Battos quando veio para a Líbia. [...] Pois os líbios chamam o rei de battos...60
Assim, a mesma denominação, Báttos, designa a mesma pessoa como "o gago", se se tem em vista o registro grego, e como "o rei", se se adota o ponto de vista líbio, sendo justamente a nomeação tradutora aquilo que permite passar de um ao outro, em vista da garantia que fornece o saber do narrador ("na minha opinião"). Além desses exemplos, 84 a nomeação tradutora exerce-se no domínio particular dos nomes de deuses. Com efeito, o que são esses nomes de deuses? Trata-se de nomes próprios, de denominações ou simplesmente de nomes comuns? O que significam? A questão dos nomes, dos ounómata, é vasta e complexa, pois desemboca na questão do espaço divino e da representação do divino nas Histórias. Não seria aqui o lugar de abordar esse ponto em si mesmo, contentando-me eu em avaliar a atividade de tradução em suas relações com uma retórica da alteridade: a tradução como um dos procedimentos dessa retórica. Ela pode operar tanto no sentido de versão (começa-se dando o nome de uma divindade em grego e depois seu nome em língua bárbara), quanto no sentido especializado de tradução (parte-se do nome em língua bárbara, dando-se em seguida o nome grego), com predominância do primeiro modelo (onze exemplos, contra cinco do segundo). 85 Os exemplos de tradução encontram-se todos no lógos egípcio: tal deus (segue o nome egípcio), em língua grega 255
(katà Hellãda glôssari), é tal deus; 86 em contrapartida, o panteão cita é inteiramente composto no sentido da versão87 Segunda observação: a importância do nome. Sabe-se, desde a narrativa do Gênesis, que a nomeação sujxte^fomímo: renomeando as criaturas de Deus, Adão proclama, ao mesmo tempo, sua preeminência sobre elas. O segredo é uma outra maneira de indicar a importância do nome. Com efeito, conhecem-se numerosas sociedades primitivas em que os nomes próprios dos homens são mantidos em segredo (o que significa que não são revelados senão a alguns e segundo um ritual preciso). Impor um nome ou conhecer os nomes implica, pois, um certo poder: o nome é sempre mais que a simples proferição sonora. No contexto grego, Demócrito, que escreveu um Onomastikón, diz que os nomes dos deuses são "imagens sagradas dotadas de voz" ( a g á l m a t a phonéenta).88 O nome" do deus constitui, pois, sua "representação sonora", como as imagens são sua representação visual. E bem antes de Demócrito, os pitagóricos haviam considerado não somente os nomes dos deuses, mas todos os nomes como imagens das coisas ( a g á l m a t a , eikónes).89 Dessa perspectiva, os nomes ensinam sobre as coisas; e os nomes dos deuses ensinam^sõüre os deuses: "conhecer os deuses, é saber seus nomes. Antístenes, por exemplo, para quem a educação começa pelo estudo dos nomes, escreveu um livro Sobre a Educação ou os Nomes.90 Essas teses serão retomadas mais tarde no Crátilo, que consagra algumas páginas à questão dos nomes dos deuses. 91 Com efeito, Sócrates diverte-se examinando a correção da composição de seus nomes, dando uma etimologia do nome em função das qualidades do deus. Esse é, em grandes linhas, o contexto no qual pode inscrever-se a questão dos ounómata divinos e, particularmente, a seguinte afirmação de Heródoto, tão discutida, sobre a origem egípcia dos nomes dos deuses: "Quase todos os ounómata dos deuses foram trazidos, à Grécia, do Egito." 92 Terceira observação: o que implica a possibilidade de tradução, isto é, o fato de que eu possa dizer que Héstia em cita é Tabiti, ou que Osíris em grego é Dioniso? Linforth conclui que os nomes dos deuses são tratados como nomes comuns. 93 Finalmente, os nomes de deuses ocupam o mesmo lugar que os outros nomes da língua, concebida como um 256
repertório: como estes, aqueles são, pois, suscetíveis de tradução, graças ã constituição de tabelas de equivalência. Mas esta distinção entre nome próprio e nome comum é de fato pertinente? Sem entrar nas discussões dos lógicos e dos lingüistas sobre o que seria um nome próprio, pode-se todavia observar como o Crátilo, em que Platão busca uma teoria da nomeação das coisas em geral, parece passar indiferentemente do nome próprio ao nome comum: em cento e trinta e nove exemplos de nomeação, quarenta e nove são tirados de nomes próprios. 94 Tudo se passa, pois, como se essas duas operações de nomeação pudessem ser assimiladas uma à outra. Alçm disso, Lévi-Strauss observa que "o caráter mais ou menos 'próprio' dos nomes não pode ser determinado de modo intrínseco, nem por sua simples comparação com as outras palavras da língua; isso depende do momento em que cada sociedade declara terminada sua obra de classificação". Com efeito, para o etnólogo, o nome próprio, como um lugar que se nomeia, é um ponto de balizamento no seio do grupo social, sendo impossível defini-lo de outro modo senão como "um meio de assinalar uma posição, num sistema que comporta múltiplas dimensões". Pela aplicação de regras de atribuição, o nome próprio identifica um lugar e "confirma o pertencimento do indivíduo que se nomeia a uma classe antecipadamente ordenada". Nessas condições, "dizer que uma palavra é percebida como nome próprio, é dizer que ela se situa num nível além do qual não se requer nenhuma classificação, não absolutamente, mas no seio de um sistema cultural determinado"^ 5 O nome próprio classifica e significa sempre pelo menos isso. Os ounómata divinos, na medida em que "identificam um lugar", parecem pertencer à esfera do nome próprio. Com efeito, eles "confirmam o pertencimento do indivíduo que se nomeia a uma classe antecipadamente ordenada" (a dos deuses); por outro lado, é evidente que não posso lhes dar qualquer nome, já que os nomes dos deuses procedem de um conjunto paradigmático, portanto, são nomes próprios. Mas a tradução, o fato de que podem ser traduzidos de egípcio em grego ou do grego em cita, parece remetê-los para a esfera do nome comum. Todavia, consultando-se o "dicionário" de Heródoto, observa-se como ele está longe de ser completo, uma vez que 257
muitos nomes de deuses não são traduzidos: assim, sabemos que os líbios dirigem preces a Atena, Zeus, Hélio, Posseidon etc., mas não sabemos os nomes desses deuses em líbio. Encontramos então apenas o nome grego", não o nome indígena. 96 Que significa essa ausência da versão? O narrador ignora ou julgou inútil dar as equivalências, na medida em que a nomeação do panteão indígena em grego constituía um ponto de referência suficiente para o destinatário? Mas existe também o caso inverso: uma ausência de tradução, quando o texto dá um nome indígena, mas não o equivalente grego. A partir daí surge um espaço em branco na tabela de correspondências dos nomes divinos, ou melhor, um triplo espaço em branco, pois o fenômeno repete-se três vezes, para três divindades: Cibebe, Plístoro e Zálmoxis. Todos os três são desginados como uma "divindade indígena" ( t h e ò s epikhórios), constituindo a presença desse adjetivo o índice de sua não-traduzibilidade. Cibebe é apresentada "como a deusa local de Sardes". Por que seu nome, nesse momento, não pode ser traduzido como Cibele ou como Mãe dos Deuses? Por uma dupla razão: os jônios, revoltados contra o Grande Rei, chegando a Sardes, queimaram seu templo (portanto, essa deusa não pode ser grega); os persas, em contrapartida, "alegaram esse incêndio para queimar os santuários das regiões gregas" (portanto, essa deusa faz parte do domínio persa). 97 Já Plístoro é um deus dos trácios apsíntios, ao qual se oferecem sacrifícios humanos; 98 esse traço provavelmente explica o espaço em branco na tabela das correspondências. Com efeito, ele não poderia ter equivalente em grego. Quanto a Zálmoxis, 99 a incerteza com relação a sua identidade (ele é deus, homem ou demônio?), bem como a horrível maneira de se lhe "enviar" mensageiros explicam a ausência de tradução. Não somente sua alteridade não é traduzível, mas ainda é redobrada pelo outro nome que alguns lhe dão: "Esse mesmo Zálmoxis, alguns dentre eles o chamam de Gebeleizis." De Zálmoxis a Gebeleizis distancia-se ainda mais a possibilidade de uma tradução, em vista dessa sonoridade estranha. 100 Nos três casos, a ausência de tradução vem a ser verdadeiramente o indício de uma ausência na tabela de equivalências: em face de Cibebe, Plístoro e Zálmoxis, não há nada a pôr em grego. No total, os espaços em branco do "dicionário" confirmam que nomear o outro implica classificá-lo. Além disso, o exemplo 258
de Plístoro ou o de Zálmoxis-Gebeleizis mostra bem q u e m i o traduzir significa não somente classificar os deuses, mas também as pessoas. A alteridade do nome não é, com efeito, senão metonímia da alteridade dos povos. Não traduzir é classificar mas, evidentemente, traduzir não o é menos. De fato, constata-se isso explicitamente na retomada da seguinte expressão, quando se trata dos panteões bárbaros: "os únicos deuses que eles veneram são..."101. Os massagetas, por exemplo, não conhecem senão o sol, e os citas não cultuam senão oito divindades — mas, em todos os casos, os panteões bárbaros são menos numerosos que o panteão grego dos doze grandes deuses. Dito de outro modo, classificando o outro, classifico-me a mim mesmo e tudo se passa como se a tradução se fizesse sempre na esfera da versão, isto é, como se o panteão de referência fosse o panteão grego e como se o narrador procedesse de acordo com um sistema de presença-ausência. A partir dessa operação de nomeação tradutora, é necessário concluir que, entre os deuses, a diferença não é senão nominal, que há nada mais que um nome a ser traduzido para que se encontre, do outro lado, a identidade — e que, afinal, os deuses são os mesmos em toda parte, mesmo se não existem em toda parte os mesmos deuses? Se esse é o caso, então há espaço para uma atividade de tradução, retirando a narrativa as películas heterogêneas das línguas para fazer surgir a identidade das substâncias. E, por detrás da diversidade dos espaços geográficos, haveria uma unidade do espaço divino. Nesse sentido é que se encaminham as equivalências dadas para o nome da Afrodite Urânia, tomada como ponto de referência: à Afrodite Urânia os assírios chamam Milita, os árabes Alilat, os persas Mitra.102 Seguiriam também no mesmo sentido as observações do narrador a propósito da "deusa indígena" ( a u t h i g e n é s ) dos auseus e dos máclies, "que nós chamamos de Atena":103 o nós designa os gregos e distingue-os deles, os líbios — mas, de fato, tanto para uns como para os outros, trata-se da mesma divindade. Seguiria ainda no mesmo sentido a opinião sustentada a respeito de Lino, que é tanto um canto, quanto uma personagem celebrados na Grécia, no Egito, na Fenícia, em Chipre e em outros lugares. Na Grécia se chama Lino, Manero em egípcio — e "seu nome varia de povo para povo, mas se é levado a pensar que se trata do mesmo que os gregos cantam sob o nome de Lino". 104 259
Também neste último caso, por detrás da diversidade dos nomes, identidade da personagem. Mas iriam contra essa tendência principalmente as práticas dos gelonos, povo situado ao norte dos citas, que cultuam "à grega" ( h e l l e n i k ô s ) os deuses gregos ( t h e o i hellenikoí).m Heródoto precisa que os gelonos têm anscestrais gregos. Já Xerxes não parece acreditar na unidade do espaço divino, posto que, antes de passar para a Europa, atravessando o Helesponto, manda que se dirijam preces aos deuses "que receberam a terra da Pérsia em partilha" (lelónkhasi),106 Bem entendido, é Xerxes quem fala e Heródoto avaliza essa prece. Nessa operação, o momento mais importante é o da nomeação, sendo a tradução, enfim, nada mais que uma nomeação duplicada, que opera antes de tudo no sentido da^versão, não esclarecendo o narrador o modo como são estabelecidas as tabelas de equivalência: a correspondência é—dada como algo evidente e bem conhecido. Com efeitõ7 Heródoto não a justifica, não se responsabiliza por ela, nem mesmo a explica. A tradução classifica, o que significa que não visa a conduzir o outro ao mesmo, fazendo o inventário das diferenças — mas apenas que se contenta em circular pelo mundo dos critérios de classificação. De sorte que, no limite, não há "tradução", mas simplesmente imposição de uma grade sobre o espaço divino dos outros, através da qual ele é decifrado e, portanto, construído. A partir de então, basta "ler" de acordo com o sistema simples de presença-ausência. A tradução conduziu-nos até a nomeação, e a nomeação, revelou-se um modo de classificação. Ora, quem classifica, nomeia e traduz é o viajante. De fato, o viajante é aquele que sabe os nomes: no espaço geográfico, sabe recortar os nomes dos lugares; no tecido dos acontecimentos, sabe recortar os nomes dos atores principais; no espaço divino, sabe recortar os nomes dos deusês. Ele sabe, para os que o escutam, dar o nome (considerando-se o que a proferição sonora comporta de saber e importa de poder tanto sobre os que escutam, quanto sobre a coisa nomeada); ou, situação ainda mais favorável, repetindo a experiência de Adão, ele dá um nome àquilo que jamais teve um, não o tem mais ou não o tem ainda (pelo menos que seja do seu conhecimento). É impulsionado por um grande apetite de dar nomes e 260
experimenta um grande júbilo ao fazê-lo. Heródoto precisa com freqüência que sabe os nomes: que até tal ponto do mundo, para o norte ou para o sul, conhecem-se os nomes dos diferentes povos, mas que além de tal ponto não mais — "Até os atlantes da Líbia, posso pois enumerar os nomes dos que habitam a colina; além desse ponto, não posso mais." 107 Ainda, gosta ele de sublinhar que poderia dar os nomes (pois os recolheu) de todos os soldados que tomaram parte neste ou naquele combate. Ele sabe que Bato, o gago, é ao mesmo tempo o rei. Ele sabe que a deusa dos auseus e dos máclies é a que nós chamamos de Atena. Ele é quem permite passar de uma denominação à outra. Ele é o poros e a garantia dessa passagem. De uma parte, a narrativa de Marco Polo avança de nome exótico em nome exótico e expõe, de cada vez, o que esses nomes contêm de importante. Léry, por sua parte, nomeia a flora, depois a fauna, depois os Jiómoi dos tupis. /Se é verdade que a nomeação é uma das molas da escrita dk narrativa de viagem, 108 se é verdade que há um prazer na nomeação — é verdade também que a tradução, a nomeação tradutora, é como que a duplicação do prazer da nomeação, tendo seu lugar como figura de uma retórica da alteridade.
DESCREVER: VER E FAZER VER... Descrever é ver e fazer ver^ é dizer o que você viu, tudo o que viu e nada mais do que viu. Mas se você não pode dizer senão o que viu, não pode ver senão o que é dito: 109 você, leitor ou ouvinte, mas você também, testemunha que conta algo. Em Heródoto, a descrição desempenha uma função importante. As Histórias podem ser consideradas seja como uma justaposição, seja como um encaixe de descrições e de histórias, ou de quadros e de narrativas. Justaposição: os quatro primeiros livros são principalmente uma descrição dos diferentes nómoi de povos não-gregos; os cinco seguintes, uma história das Guerras Médicas. Encaixe: os capítulos de 2 a 82 do livro IV são uma descrição da Cítia e um quadro de seus nómoi, 261
enquanto o capítulo 1 e, depois, os capítulos de 83 a 144 são uma narrativa da expedição de Dario. Com a personagem de Zálmoxis 110 e, mais ainda, com os funerais dos reis citas,111 deparamo-nos já com a questão da descrição. Antes, contudo, de retornar a essas duas estranhas descrições, quero abordar uma outra espécie muito comum nas narrativas de viagem: o quadro sustentado por um ver. Assim, por exemplo, a descrição do hipopótamo, que é encontrado no Egito: Eis que aspecto ele tem. É um quadrúpede, de pés fendidos como o boi, de nariz chato, possuindo uma crina de cavalo e tendo dentes salientes (ou dentes de javali), a cauda do cavalo e seu relincho. Seu tamanho atinge o dos maiores bois. Sua pele é bastante espessa, de modo que, depois de seca, com ela se fabricam hastes de dardos. 112
A descrição da natureza Çphysis) do crocodilo põe em movimento o modelo. Quadrúpede, vive ele na terra firme e na água. Bota ovos não maiores que os de ganso — mas o filhote que sai deles, após crescer, chega a medir até dezessete côvados ou mais ainda. Ele tem olhos de porco, dentes grandes e salientes (ou de javali). É o único animal que não tem língua.113 Supõe-se uma linha de demarcação entre o mundo em que se fala e o mundo de que se fala, entre elese nós, entre "além" e "aquém". Como observa J. de Léry, no início de seu capítulo intitulado "Dos Animais, Carnes de Caça, Grandes Lagartos, Serpentes e Outros Bichos Monstruosos da América": "No que se refere aos animais de quatro patas, não somente em geral, mas sem exceção, não se encontra um único nesta terra do Brasil, na América, que em tudo e por tudo seja semelhante aos nossos." 114 Portanto, r e i n o j h ^ j f e r e n ç a . Problema: como circunscrevê-la? A "figura do dessemelhante" se construirá como desvio em face do que se vê "aquém", na medida mesma em que será uma combinação insólita das formas de "aquém". O hipopótamo tem características do boi, do cavalo, até do javali, mas não é nem boi, nem cavalo, nem javali. Um monstro é sempre uma reunião de elementos conhecidos 115 — e convém mesmo que os elementos sejam conhecidos, para que sua reunião seja, no conjunto, monstruosa. 262
O que autoriza uma descrição desse tipo é o olho da testemunha, seja esse olho o do narrador principal, ou o de um narrador local ou delegado: "eu vi", ou então — "ele diz que viu". Além disso, o olho do viajante encontra-se na posição de traço de união entre os elementos heteróclitos que compõem os animais diferentes de "além" — com efeito, é ele que é o ordenador e a garantia dessa reunião, portanto, o produtor do monstruoso, pelo modo como recorta o visível. Sem ele, jamais esses elementos poderiam ficar juntos. Depois de ter longamente descrito, de um modo absolutamente neutro, empregando um vocabulário técnico, as práticas antropofágicas dos tupinambás, J . de Léry fecha assim sua narrativa: "Eis pois que assim eu vi como os selvagens americanos cozinham a carne dos prisioneiros que capturam na guerra: a saber, moqueando, que é uma forma de assar para nós desconhecida." 116 A descrição estabelece, pois, uma variedade de assado, desconhecida na Europa, baseando-se numa autópsia que a autoriza: pretende ser um olho (no caso o olho de Léry) que fala sem mediação, diretamente, que é ou que se faz "objetivo". O olho fala e diz o visível. Quando Heródoto descreve o hipopótamo e o crocodilo do Egito, ou o cânhamo da Cítia,117 quando Léry descreve o tapiruçu e a flora do Novo Mundo — ambos põem em ação uma taxionomia: quando um constrói um quadro do mundo egípcio ou cita e o outro um quadro do mundo tupi, ambos operam uma espaciajização do saber. 118 P. Hamon mostrou como, para os textos naturalistas, a descrição constitui introdução do taxionômico na narrativa,119 que apela não para a competência lógica do leitor, mas para sua competência lexical e metalingüística. Bem entendido, a descrição não se reduz ao taxionômico, pois não é nada mais que isso, vindo a ser a própria mise en scène do taxionômico. Nem Heródoto nem Léry são escritores naturalistas, mas é inegável que, num e noutro, as descrições têm a ver com a taxionomia. Pode-se então tirar a primeira conclusão disso: a descrição é ver e fazer^ver, mas, desde o momento em que se articulam espaço e saber, em que ela é espacialização de um saber, em resumo, um quadro — a descrição vem a ser também saber e fazer saber (esse fazer constituindo precisamente a mise en scène do taxionômico). 263
Essas descrições fazem ver e fazem ver um saber: têm o olho como ponto focal, já que é ele que as organiza (o visível), delimita sua proliferação e as controla (campo visual), bem como as autentifica (testemunha). É, pois, ele que faz crer que se vê e que se sabe, é ele que é produtor de peithó, de persuasão: eu vi, é verdadeiro. 120 Se o olho, alojado na descrição, é o ponto de vista que a constitui, que dizer das descrições estranhas, como a cerimônia em honra de Zálmoxis ou os funerais dos rejs citas, que parecem excluir a presença de qualquer olho/^Mais ainda: se, há um olho, não é o olho de ninguém: é u m o l h o q u e fala. Em Heródoto, não existe nenhuma distância entre dizer e ver: ver e dizer, visível e dizível comunicam-se plenamente ou sobretudo não são constituídos em duas esferas separadas. As descrições precedentes (um quadro do mundo) tinham necessidade de marcas fortes de enunciação ("eu vi"). Já as duas últimas, pelo contrário, apresentam-se aparentemente desprovidas disso. Com efeito, não são sustentadas nem por um ver, nem por um dizer que finalmente remete, explicitamente ou não, a um ver fundador. Todavia, a enunciação, ausente sob a forma positiva de marcas (nem o narrador, nem nenhum de seus delegados não se encontram aí), não poderia ser descoberta sob a forma de vestígios? Retomemos a narrativa dos funerais dos reis, que começa assim: "Os túmulos dos reis encontram-se entre os gerros, no ponto até o qual o Borístenes é navegável. Lá (enthaütà)..." 1 2 1 O que implica essa maneira de exprimir-se? Que se fala grego, pois localizar os túmulos dos reis em função do limite até o qual o Borístenes é navegável implica evidentemente falar em grego para os gregos. Como apostar que os citas teriam recorrido a essa precisão, de todo impertinente em face de seu gênero de vida? Eles não são nem marinheiros de alto mar, nem marinheiros da costa, mas povos dos carros e dos cavalos. Eles não sabem utilizar a água senão quando congelada, precisamente para conduzir sobre ela os seus carros. 122 Falando do limite de navegabilidade, dirijo-me, pois, aos gregos, para os quais deslocar-se de barco é prática corrente e para os quais, além disso, o barco é um meio de medida (eu preciso, por exemplo, que seu curso é navegável durante quarenta dias). Mais particularmente ainda, dirijo-me talvez
264
aos gregos das cidades do Mar Negro, os quais se interessam pelas possibilidades de penetração no interior das terras que os cercam. Dirijo-me, enfim, aos outros viajantes gregos, que eventualmente completo, corrijo — e ajo como geógrafo, precisando a configuração espacial dessa zona de confins. Esse limite é também um limite do conhecimento: ninguém sabe o que há além. O limite de navegabilidade transforma-se então, na construção do mundo de Heródoto, em limite do espaço e limite do dizível: "Acima dos homens no meio dos quais ele corre, ninguém tem nada a dizer."123 A palavra que vem logo depois Çenthaúta, "naquele lugar": "lá [...] eles cavam uma grande fossa quadrada") não se encontra isenta de uma certa ambigüidade. Esse "lá" vale com relação aos citas (lá longe, ao norte, em relação a eles), mas vale também, do mesmo modo, com relação aos gregos (lá longe, ao norte, com relação ao nós). A mesma coisa acontece no que diz respeito à designação do país dos gerros como éskhata. Trata-se bem, para os citas, de uma zona de confins com relação a seu lugar de permanência habitual e é justamente por isso que eles a escolheram para enterrar seus reis; mas trata-se também de uma região de éskhata com relação a mim, grego, que digo ou que ouço essa narrativa: o país dos gerros, situado nos limites do mundo conhecido, é por definição uma zona das margens. Mas, vista da Grécia, a Cítia, em seu conjunto, não o é menos. Na realidade, a utilização, pelo narrador, do termo éskhata indica mais: o país dos gerros encontra-se, com efeito, na mesma posição com relação à Cítia que as zonas de éskhata com relação ao território de uma cidade. Uma prova disso, dada por ocasião dos funerais dos reis, é o esquema grego que, implicitamente, está subentendido na representação do espaço: os citas fazem dos éskhata o centro; mas, para que essa conduta possa ter sentido, isto é, para que possa ser decifrada pelo destinatário como reviravolta das práticas funerárias gregas, é necessário que seja pelo menos pensável, no contexto do saber compartilhado, uma analogia entre o país dos gerros e os éskhata, bem como entre a Cítia e o território da cidade. Ressalta ainda um outro vestígio de enunciação no fim do texto, mais incisivo que os dois precedentes: "Após haver 265
erguido tais (toioiitous) cavaleiros em círculo em torno do túmulo" — trata-se dos cinqüenta jovens empalhados — "os citas se retiram". 124 Esse toioútous constitui para o narrador, a um só tempo, uma maneira de avaliar a descrição que acaba de fazer e uma maneira de bater em retirada: sobre tais cavaleiros, da minha parte, não direi nada mais... Enfim, um último vestígio aparece no parêntese sobre a escravidão: "Eles são citas de nascimento, são servos do rei, aqueles a quem ele próprio dá ordens, não tendo os citas servos ( t h e r ã p o n t e s ) comprados (argyrónetoi)." Com efeito, é evidente que essa frase não pode dirigir-se senão a ouvintes gregos — e talvez dirija-se mesmo especialmente a ouvintes atenienses, se é verdade que, para eles, o escravo é antes de tudo uma mercadoria que se compra. Essa breve observação dá, pois, a medida da diferença entre eles e nós. No fim da história de Zálmoxis, o narrador intervém muito abertamente na primeira pessoa — "por mim, eu não me recuso a crer [...] e eu não creio muito [...], mas eu penso..." Isso não acontece entretanto na primeira parte, a mais misteriosa e cuidadosamente desprovida de qualquer marca explícita, que conta a embaixada a Zálmoxis. Todavia, como no caso dos funerais, parece-me que a enunciação está sim presente sob a forma de vestígios. Assim, quando Heródoto começa seu capítulo pelos getas, boi atbanatízontes — os getas, "praticantes da imortalidade" — no fundo intervém na narrativa e intervém mais ainda, se admitirmos, com Linforth,125 que a expressão é uma citação (se não uma alcunha) que faz surgir e põe em derrisão a imagem dos pitagóricos: aplicada aos getas, provoca um efeito de surpresa e, ao mesmo tempo, cataloga-os. Pode-se ainda lembrar a observação feita por Heródoto a propósito de tbeós, o céu, que constitui importação subreptícia de uma visão de mundo grega e, portanto, um modo de avaliar o comportamento dos getas quando arremessam flechas para o céu: atitude tanto vã, quanto derrisória de alguém que não sabe seguramente o que faz. Assim, essas descrições estranhas, embora sejam desprovidas de marcas de enunciação, deixam todavia espaço para a enunciação, sob a forma de vestígios. Se não há olho no ponto focal, há de qualquer modo piscadelas, que podem ser percebidas pelo destinatário. 266
As descrições "com olho" ou "sem olho" são feitas todas no presente. Ora, esse presente não conota o atual, "o tempo em que se está", isto é, "o tempo em que se fala". 126 Desta maneira, não há simultaneidade entre história e narrativa, entre os funerais dos reis e Heródoto falando deles ou escrevendo sobre eles. Esse presente que, ao contrário, conota a indeterminação temporal, é reservado para certos tipos de narrativa (adivinhações, provérbios, experiências científicas, resumos de intrigas...). 127 Grevisse o chama de presente gnômico. 1 2 8 No caso em pauta, refere-se aos nómoi citas em matéria de funerais reais. Para Weinrich, o presente é o mais freqüente dos "tempos comentativos" (distingue ele duas grandes categorias de tempo: os comentativos e os narrativos). 129 Essas descrições no presente "gnômico" são, por outra parte, intercaladas entre os momentos da ação: assim, a descrição dos nómoi citas é intercalada entre a decisão de Dario de vingar-se dos citas e os preparativos da vingança. Os valores do presente determinam-se, pois, também com referência aos "tempos narrativos" da ação. Coincidem a entrada na descrição e a passagem para o presente — e, depois, fim da descrição e volta ao aoristo e à narrativa. Ao lado do presente, encontram-se, como operadores descritivos, os pronomes: a descrição é introduzida por tóde, toiónde, tónde tòn trópon, hôde — este aqui, assim, desta maneira, eis aqui; em resumo, o mais freqüentemente, pelo que se convencionou chamar de demonstrativos da primeira pessoa. Pode-se, pois, perguntar qual é sua relação com a instância do discurso: não são, eles também, uma forma discreta de enunciação? 130 A questão todavia não se levanta exatamente nesses termos, se observarmos que esses pronomes da "primeira pessoa", abrindo a descrição, são em geral seguidos de pronomes da "segunda pessoa", que a fecham: hoütos, toioütos, hoúto — isso, eis aí. Trata-se, portanto, de um procedimento de composição oral: a composição circular (eis aqui como eles enterram seu rei [...] eis aí como eles enterram seu rei). Essas marcas são, de qualquer forma, um modo de intervenção cio narrador na narrativa, mas num nível diferente: sublinhando as articulações, precisando o recorte, de fato ele organiza internamente a narrativa. A propósito desse trabalho realizado pelo próprio narrador na 267
matéria narrativa, pode-se falar, com Genette, de função e de rubricas de produção. 131 Caída a noite, Marco Polo e Kubilai Kan, nos terraços do palácio real, falam — e o imperador, pela mediação desse embaixador estrangeiro, faz com que se descrevam as cidades de seu império. Esta noite, Kubilai Kan pede sem cessar uma cidade e outra ainda, de tal modo que o imenso repertório de Marco Polo termina esgotando-se: — Senhor, já te falei de todas as cidades que conheço. — Resta ainda uma de que não falas jamais. Marco Polo abaixou a cabeça. — Veneza, disse o Kan. Marco sorriu: — E de que outra acreditavas que te falava?132
Esse diálogo levanta, claramente, a questão fundamental: de que fala, no fim das contas, o viajante? Do próprio ou do outro? O método do viajante "chega" a construir uma figura do outro que seja "falante" para as pessoas do próprio. Ora, nessa perspectiva da narrativa de viagem, as descrições são um dos procedimentos que permitem ao narrador produzir e transmitir uma certa carga de alteridade. Esse é seu principal efeito e é na medida em que elas visam a esse efeito que se inscrevem no "projeto" do viajante. Para produzir o ^efeito. de alteridade, pode-se descrever práticas abomináveis (para nós) de um modo completamente neutro, empregando-se mesmo um vocabulário técnico, como se se tratasse das práticas mais simples e corriqueiras do mundo. Quando Heródoto descreve o ritual de Zálmoxis ou a ronda macabra dos cavaleiros empalhados, fá-lo em termos neutros, do mesmo modo que, quando J. de Léry descreve a conduta antropofágica dos tupinambás, refere-se com minúcia à série de operações, esclarecendo que se usa uma maneira de assar desconhecida por nós. Esse modo de marcar a alteridade dos selvagens ou dos bárbaros pode encontrar-se tanto na descrição organizada em torno de um olho, com marcas de enunciação fortes, como naquela em que a enunciação não se encontra presente senão sob a forma de vestígios. Pergunta-se então: no conjunto, o efeito produzido por uma e por outra é exatamente o mesmo? 268
/ A descrição do primeiro tipo é uma introdução explícita do taxionômico (descrição do hipopótamo ou do tapiruçu), sendo o efeito de alteridade produzido no destinatário algo determinado e calculado. E também, ela constrói a alteridade, mas indica como se deve usá-la: quando, por exemplo, Heródoto descreve os costumes sacrificais dos citas, indica, num determinado momento, que eles estrangulam a vítima "sem acender o fogo, sem consagrar as primícias, sem fazer libações".133 Essas negações sucessivas apontam para um desvio, dão seu sentido e até mesmo sua medida: eis do que se trata (em parte) a alteridade do sacrifício cita. Dito de outro modo, a descrição é como um quadro com sua legenda, pois faz-se acompanhar da maneira como convém que seja "lida". Ao contrário, a outra descrição, não se referindo a um ver explícito, não assinala os desvios e não prescreve o modo como deve ser usada. Se a primeira é co"mo um quadro com legenda, então a segunda é como um quadro sem legenda ou um quadro cuja legenda se encontra disseminada no interior do próprio quadro (são os vestígios de enunciação). Pode-se, evidentemente, passar-se imperceptivelmente de uma forma para a outra, o que se indica principalmente pela presença ou ausência de um certo número de figuras. Assim, a segunda forma de descrição não usa_nem a comparação (a lá é como b aqui), nem a analogia ( a é para b lá o que c é para d aqui), nem a negação. Ela recorre ao esquema da inversão. Não dando nem o sentido, nem a medida das diferenças, pode-se admitir que ela traz uma carga de alteridade maior que a outra, sendo justamente esse o efeito que produz no destinatário. Que se pense na grande cena macabra dos funerais citas! Quadro sem legenda ou, ainda, fábula, na medida em que ele é simplesmente proferido e em que cabe ao destinatário fazer-lhe a "legenda" ou "calcular" qual o seu sentido. A ausência de marcas de enunciação ou seu apagamento é, pois, uma das técnicas empregadas pelo narrador para aumentar o peso da alteridade de sua narrativa. Ele dá a impressão de transmitir ao destinatário a alteridade em "estado bruto" ou "selvagem". Todavia, os vestígios enunciativos que pontuam a descrição dirigem-se ao saber implícito do destinatário e orientam a maneira como este a recebe. 269
'Descrever é ver e fazer ver mas, muito rapidamente, a consideração da descrição como presença do taxionômico na narrativa leva-nos a ajuntar que descrever é também saber e fazer saber — ou ainda, fazer ver um saber. 134 Mas, no interior de uma narrativa particular, a descrição tem ainda uma outra função. Esse saber que ela faz ver não se encontra simplesmente justaposto à narração dos acontecimentos, p o i s a descrição tem sua eficácia na própria narrativa:) Por exemplo: a descrição das cerimônias em honra de ZáTtnòxis faz saber porque os getas são os únicos, entre os trácios, a resistir a Dario (eles têm Zálmoxis). Portanto, não há, pois, oposição entre narrar e descrever. Estudar a descrição como um procedimento de uma retórica da alteridade desemboca na questão da crença: Como opera /o fazer-cre¥Tdesse discurso que se constrói entre ó o T a orelha? ~ 7"" — T T ^ T — Ç ç ^ v (JW cri* rc# . fcj
O TERCEIRO EXCLUÍDO Para concluir essas notas sobre uma retórica da alteridade, falta ainda examinar uma característica da narrativa que diz o outro: o que se poderia chamar de regra do terceiro excluído. Mais que uma regra, à qual obedeceria o narrador, ou mais que um conjunto de procedimentos que ele operaria, trata-se do ritmo ou da pulsação da narrativa. Com efeito, parece que, em seu movimento para traduzir o outro, a narrativa mostra-se enfim incapaz de abordar mais que dois termos de cada vez. Por exemplo: os gregos, os persas e os citas. Eles lutam — os persas com os citas e os gregos contra os persas. Na Grécia, os persas conduzem-se como "persas", isto é, como pessoas que não sabem combater, como anti-hoplitas;135 mas, na Cítia, em face dos citas, não buscam mais que uma batalha ordenada, de acordo com todas as regras da "estratégia tradicional" dos gregos. Conduzem-se eles, pois, como poderiam fazer os hoplitas e mostram-se, no curso dessa seqüência, como "gregos". Por que, de um espaço para o outro, apresentam uma outra face? Como transmitir, para um destinatário grego, a alteridade das práticas persas, entendendo-se que, nesse momento, o 279.
narrador se interessa pela maneira de combater dos citas e quer demonstrar que eles vivem como combatem e combatem como vivem? Tudo se passa como se a narrativa, incapaz de assumir e de traduzir uma alteridade em dobro, operasse por deslizamentos: para tornar ainda mais sensível a alteridade cita, é suficiente, com efeito, transformar os persas em "gregos". Assim, n^o há mais três termos — os gregos e sua maneira de combater, os persas e sua maneira de combater, os citas e sua maneira de combater — mas simplesmente dois: os citas e os "persas-gregos". Da mesma maneira, a história das amazonas utiliza, no ponto de partida, uma disposição cênica triangular, com os gregos, os citas e as amazonas. 136 Mas, insensivelmente, para fazer realçar a alteridade das amazonas, a narrativa transforma os citas em "gregos". Com efeito, vê-se que os citas raciocinam como gregos (contra mulheres não se faz guerra), valendo para eles também a polaridade guerra/matrimônio. Além disso, estão talvez em ação "esquemas" efébicos: o gênero de vida das amazonas "convém" aos efebos. Quando se trata do casamento entre as amazonas e os jovens citas, o modelo ao qual se refere implicitamente a narrativa é grego. Enfim, as mulheres citas, embora vivam em carroças, são vistas pelas amazonas como mulheres gregas, completamente devotadas aos "trabalhos femininos" ( e r g a gynaikeíá). A retórica da alteridade tende, pois, a ser dual — ou, dito de outro modo: como seria de esperar, alter, na narrativa, significa bem o outro (de dois).
C
A
P
í
T
U
L
O
O OLHO E O OUVIDO A narrativa de viagem_traduz o outro, e a retórica da altendade constitui o operador da tradução: de fato, é ela que faz o destinatário crer que a tradução é fiel. Globalmente, produz, pois, ^m efeito de crença. Mas, mais precisamente, como engendra esse efeito? Como fazer crer? Antes de tudo, pela animação das figuras, pela atuação de procedimentos que reconhecemos que lhe pertencem, por sua manipulação cada vez que o narrador intervém na narrativa. A descrição, por exemplo, consiste bem em fazer ver e em fazer saber; mas, do ponto de vista da transcrição da alteridade, o que importa é a presença ou ausência de marcas fortes de enunciação. De fato, segundo ela se organize ou não em torno de um "eu vi" inicial, o efeito de estranheza que produz varia bastante. Fundamentalmente, os dois pólos entre os quais se inscreve e se desenvolve a retórica da alteridade são o olho e o ouvido: olho do viajante, ouvido do público (mas também ouvido do viajante e olho do público). Do olho ao ouvido o percurso não é linear, existindo, pelo contrário, todo um conjunto de corredores, escadas e passarelas que se interrompem para serem retomados mais adiante, às vezes num outro nível. E o percurso dessa espécie de edifício ou de andaime representa o jogo da enunciação. 1
EU VI, EU OUVI Ò c>lho ou, sobretudo, a autópsia. Com efeito, trata-se do olho como marca de enunciação, de um "eu vi" como intervenção do narrador em sua narrativa para, provar algo. Também me contentarei em recordar brevemente o contexto
no qual se inscreve a autópsia herodotiana. Hístor. como lembra Benveniste, é, em época muito antiga, a testemunha, "a testemunha enquanto aquele que sabe, mas, desde logo, também enquanto aquele que viu"r Em Homero, quando alguém faz um juramento, dirige-se aos deuses para que saibam, isto é, para que vejam e sejam as testemunhas do juramento: que Zeus, a Terra, o Sol saibam (hísto)... Neste ponto, o grego concorda com as outras línguas indo-européias e o valor próprio da raiz *wid esclarece-se pela regra enunciada no Satapatha Brâhmana: "Se agora dois homens disputam entre si (têm um litígio), dizendo um 'eu vi', e o outro 'eu ouvi', o que diz 'eu vi' é aquele em que devemos acreditar." Em segundo lugar, a autópsia lança-nos em duas direções, no cruzamento das quais ganha forma o empreendimento de Heródoto: a epopéia e a reflexão jónica do século VI.3 Homero dá a partida entre o testemunho ocular e os outros, especialmente o auditivo, sendo a expressão "ver com seus olhos", isto é, ver com seus próprios olhos mais persuasiva que o simples "ver", sobretudo quando se trata de^lgum fenômeno espantoso ou maravilhoso (tbaumásion)i^com efeito, dUsi^ que se viu com os próprios olhos é, ao mesmo tempo, "provar" o maravilhoso e a verdade^_eu o vi^ ele é verdadeiro — e é verdadeiro que ele é maravilhoso?Dos filósofos da Jônia a Aristóteles, passando pelos médicos e historiadores, trata-se da vista como instrumento de conhecimento. TaTõbsèrvãção não tem como objetivo reduzir esses discursos a um denominador comum, mas apontar o que parece ser, indiscutivelmente, uma "constante epistemológica".'1 Assim, Xenófanes diz que, para saber, é preciso ter visto,' e Aristóteles escreve, nas primeiras linhas da Metafísica•. "Preferimos a vista a todo o resto. A causa disso é que a vista é, de todos os sentidos, aquele que nos faz adquirir mais conhecimentos e o que nos revela mais diferenças." 6 Já Heráclito conclui que "os olhos são testemunhas mais seguras (akribésteroi mártyres) que os ouvidos". 7 Por outro lado, é significativo, do ponto de vista dessa "constante", que Luciano atribua a Heródoto a sentença de Heráclito. 8 De fato, aparece nas Histórias uma fórmula muito próxima, que é proferida não pelo autor, no momento em que reflete sobre o trabalho do historiador, mas no correr de 279.
uma história: Candaulo, rei da Lídia, quer convencer Giges, seu confidente, da beleza de sua mulher. Pouco tempo após o casamento, pois o destino queria q u e sobreviesse um mal a Candaulo, dirigiu ele estas palavras a Giges: "Giges, eu acho que tu não crês em mim quando te falo da beleza de minha mulher; é q u e os ouvidos s ã o mais incrédulos que os olhosJ^ô4a c o m p l e t a m e n t e nua." 9
Ao lado desse apólogo ilustrando o fazer-crer e o fazer-ver, o narrador faz muitas vezes uso da autópsia para qualificar sua própria narrativa: "Eu vi com meus próprios olhos até a cidade de Elefantina; do que há além falo por ouvir dizer e me informei interrogando (historéon)." 1 0 Assim, o olho do viajante baliza o espaço e recorta as zonas mais ou menos conhecidas (desde aquilo que eu vi com meus próprios olhos, ao que outros viram — e até àquilo que ninguém viu); do mesmo modo, no espaço da narrativa, o olho do narrador ou, se for o caso, o olho dos narradores delegados, recorta as zonas mais ou menos críveis para o destinatário. Marco Polo, desde a abertura de seu livro, afirma a eminente dignidade da autópsia, garantia de seus dizeres: "É assim que nosso livro vos contará [todas as grandíssimas maravilhas e diversidades da Grande Armênia...] em clara e boa ordem, absolutamente como Monsenhor Marco Polo, sábio e nobre vêneto de Veneza, as descreve porque as viu com seus próprios olhos." Ao lado dessa invocação da autópsia, a frase é digna de atenção pela adequação que supõe entre a ordem da visão e a ordem da exposição: o livro "contará em clara e boa ordem, absolutamente como" Marco Polo viu. Entre o ver j ; o dizer (sem mesmo falar da escrita) — nenhuma distância. Uma só e mesma "ordem" que os rege. Do mesmo modo, Léry precisa que, para conduzir bem um empreendimento como o seu, é preciso "bom pé e bom olho", pois se trata de "ver e de visitar", E sua narrativa, como ele precisa no prefácio, não é nada além da soma "das coisas notáveis observadas por mim em minha viagem". Essa precisão supõe também ela u m a a d e q u a ç ã o , não mais exatamente entre o visível e o dizível, mas entre o observável e o notável. 279.
De fato, observei o que era notável e anotei o que era observável. A autópsia fundamenta a veracidade das proposiçoês mas, além disso, presta contas da maneira de escrever do autor, justificando a presença repetida de marcas fortes de enunciação: Se alguém achar ruim que, quando à frente eu falar do modo de fazer dos selvagens ( c o m o se quisesse me fazer valer disso), u s e c o m muita f r e q ü ê n c i a e s t e m o d o de falar: eu vi, eu me e n c o n t r a v a , isso me a c o n t e c e u — e c o i s a s s e m e l h a n t e s , " r e s p o n d o que, além do mais [...] são matérias de meu próprio assunto e ainda, c o m o se diz, que isso é falar de ciência, isto é, de vista e de experiência.
Não tomem vocês como marca de vaidade esses signos que são, de fato, marcas s e cientificidade — e, portanto, creiam ainda mais em mim. Lescarbot, no fim do século X V l p r e c o n h e c i a plenamente o valor da autópsia, quando expôs as causas de sua viagem ao Canadá: "Desejoso não tanto de viajar, quanto de reconhecerji_terra_d,e modo ocular." 11 De uma maneira géral,~õ~ queuinove)esses viajantes é a "curiosidade", que é "potência dos olhos abertos e submissão à diversidade do mundo"; também "a descoberta do estranho faz-se como o mais agradável inventário"; eles não "se espantam, eles anotam". 12 O olho escrevejjau, pelo menos, a narrativa quer fazer com que se creia n i s s o y Dessa relação entre a visão e a persuasão, o texto hindu faz um princípio jurídico: deve-se crer naquele que viu. Já a narrativa de viagem faz dessa mesma relação um j r i n c í p i o de escrita e um argumento de persuasão voltado para o destinatário: o "eu vi" é como um operador de crença. Pouco antes da Batalha de Salamina, percebendo que, durante a noite, os persas cercavam os gregos, Aristides preveniu Temístocles, pedindo-lhe que advertisse o conselho dos aliados. Mas este último (que sabe do que se trata, pois ele próprio havia aconselhado aos persas essa manobra) declara: é melhor que sejas tu, que viste com teus próprios olhos o que faziam os medas, a levar essa notícia aos estrategistas aliados, pois eles crerão em ti mais facilmente. 13 _Um outro exemplo associa, de modo interessante e sutil, visão e persuasão, pois trata-se de uma autópsia analógica. Com 279.
efeito, os cartagineses dizem• que há um lago na Líbia, de cujo lodo as moças retiram palhetas de ouro, com a ajuda de plumas de pássaros endurecidas com piche. Intervenção do narrador: "Se é verdade eu não sei, escrevo o que se diz. Mas tudo é possível." Eu próprio vi em Zacinto (portanto, na Grécia), um lago de onde se retirava piche com a ajuda de ramos. Num caso, o piche é o que se retira; no outro^e que serve para retirar. Entretanto, a conclusão é esta: a história é "conforme" ( o i k ó t a ) à verdade; "conforme" não quer dizer que seja forçosamente verdadeira, mas, simplesmente, que está em "conformidade" com a verdade, que se "assemelha" à verdade fundada na autópsia — enfim, que, estruturalmente, entre o. dizer dos cartagineses e o ver do narrador, não há rupl Essa preeminência atribuída à autópsia em toda forr investigação ( h i s t o r i e ) tem conseqüências para a história propriamente dita. Se esse princípio metodológico for aplicado com todo rigor, não há de fato história possível senão a história contemporânea. Essa é bem a posição de Tucídides, para quem a única história factível é uma história no presente. Ele pôs-se a trabalhar desde o princípio da Guerra do Peloponeso e, para fazer bem seu trabalho, conta com a ópsis, não tendo por seguros senão os acontecimentos aos quais ele próprio assistiu ou "aqueles que seus contemporâneos observaram ou podiam observar pessoalmente, quando o relato que fazem resiste ao exame. [...] A experiência que funda o saber histórico ( s a p h ô s eidénai) não se reduz ao sentido da visão, mas organiza-se com base nos dados que obtém." 15 Dos fatos passados, não se pode, pois, dizer nada de seguro, não sendo possível acreditar nos poetas que os cantaram, nem nos logógrafos que os contaram: "A historiografia grega séria era sobre história contemporânea" 16 — escreveu Finley, que cita estas palavras de Collingwood, talvez "muito simples, [...] mas não simplesmente falsas": O historiador grego não podia, como Gibbon, começar desejando escrever uma grande obra histórica e então perguntar-se a si m e s m o sobre o que deveria escrever. [...] Em vez do historiador escolher o assunto, é o assunto que escolhia o historiador. Penso que a história é escrita só porque aconteceram c o i s a s m e m o r á v e i s que d e m a n d a m um cronista entre os c o n t e m p o r â n e o s do povo que as viu. Alguém poderia dizer
279.
que, na Grécia antiga, não havia historiadores, no sentido em que havia artistas e filósofos; não havia pessoas que dedicavam a vida ao estudo da história. O historiador era somente o autobiógrafo da sua geração — e autobiografia não é uma profissão. 1 7
Paradoxalmente, Tucídides, para quem só a história contemporânea é factível, será promovido ao primeiro posto entre os historiadores da Antigüidade, no século XIX, por homens para quem a história não pode fazer-se senão no passado: 1 8 Tucídides, historiador do presente, torna-se modelo para os historiadores "positivistas", pessoas que, por história, entendem história do passado — "a história não nasce para uma época senão quando ela está inteiramente morta; o domínio da história é o passado." 19 Fazer história significa ir aos arquivos e desenrolar, mas unicamente no passado, longas cadeias de acontecimentos. Mas o acontecimento, assim exorcizado, "retorna" hoje, diferente, produzido pelos mass media — e levanta-se de novo a questão da história contemporânea. Ora, o "retorno do acontecimento" não é também o retorno do olho? Não é isso que quer dizer Nora, ao escrever: "A história contemporânea poderia simbolicamente começar com o dito de Goethe a Valmy: 'E vós poderíeis dizer: eu estava lá!'." Ou seja: a prevalência da autópsia. Ao que se poderia opor as questões de Fabrice dei Dongo após Waterloo, cuja "grande inquietação era saber se realmente tinha assistido à batalha". Mais precisamente, esse acontecimento que retorna é posto em cena e, dando-se a ver, constrói seu próprio campo de visibilidade: "Ele nunca acontece sem um repórter-espectador, nem sem um espectador-repórter; ele é visto enquanto se faz e esse 'voyeurismo' dá à atualidade, a um só tempo, tanto sua especificidade com relação à história, quanto seu perfume já histórico." 20 Portanto, autópsia, se se quer, mas uma outra autópsia: uma autópsia construída. (^Ajjrimeira forma de história, aquela que Hegel chama de "história original", 21 organiza-se em torno de um "eu vi" — e esse '^eujvi", do ponto de vista da enunciação, dá crédito, a um "eu digo", na medida em nuft-digo o que vi. O invisível
279.
quer), apagam-se e condenam-se as marcas de enunciação. Desenrola-se então, no silêncio dos arquivos, a longa cadeia de acontecimentos, conduzindo dos anéis causas aos anéis conseqüências. Ausente no estado de marcas, a enunciação subsiste, entretanto, sob a forma de vestígios. Por exemplo, as notas, no pé-de^página, que assinalam "eu li", isto é, eu também li — portanto, nós lemos: eu sou crível e vocês podem reconhecer-me como um par.23 Com o retorno do acontecimento, a situação muda. Desta maneira, se "eu vi" o acontecimento, vocês o viram igualmente. Desde então, ser historiador não consiste em dizer o que se viu. Com efeito, com que finalidade? Consiste antes em interrogar-me sobre o visível e as condições de visibilidade. Afinal, o que é o visível? Ou seja: interessa não mais o que eu vi, mas o que
sobre sua distribuição. Com efeito, para que o visível e o invisível se constituam como dois domínios claramente separados, é preciso que "a oposição entre sere parecer tenha desenvolvido suas primeiras conseqüências e que os phanerá ou phainómena, interpretados como aparências, encontrem sua base na esfera dos aphanéou ãdela", das coisas invisíveis.2' Isso acontece durante o século V, com as pesquisas dos eleatas. Mas, até então, não existem fenômenos: os seres e as coisas não manifestam nada além do que são. A palavra ópsis significa a vista (subjetiva e objetiva), a presença, mas também o sonho. 26 Heródoto emprega-a pelo menos dezoito vezes nesta última acepção. 27 O sonho faz parte do visível e, para aquele que o recebe, vale como autópsia: ele faz crer e faz fazer, na maior parte das vezes justamente o que não seria necessário. Quando Xerxes está quase decidido a abandonar seu projeto da expedição contra os gregos, um sonho, noite após noite, vem visitá-lo, para obrigá-lo a não fazer isso. 28 Assim, no mundo das Histórias, o "invisível" parece penetrar o visível: o sonho é visível ou está do lado do visível. A questão complica-se todavia um pouco, pois o sonho não é repartido do mesmo modo entre os povos: com efeito, não recebem sonhos senão os bárbaros (mais que todos, os Grandes Reis) e os tiranos. Numa margem e noutra do mar Egeu, o par visível-invisível funciona diferentemente: 29 na margem asiática, o "invisível" se vê; na margem grega, se diz. Bem entendido, trata-se do oráculo, isto é, das palavras que, na Grécia, desempenham o papel do sonho na Ásia (pelo menos no espaço das Histórias'). Fundamentalmente, quando perguntamos sobre as condições dejvisibilidade, o que se encontra em jogo é a questão do visível e do dizível: eu vejo, eu digo; eu digo o que vejo; eu vejo o que posso dizer; eu digo o que posso ver. Com efeito, a relação entre o visível e o dizível impõe-se implicitamente como adequação: Marco Polo "conta claramente e em boa ordem" tudo que viu; já Léry conjuga notável e observável. Entre a maneira de ver e a maneira de dizer não há nenhuma distância. Em última análise, portanto, trata-se do problema das estruturas da língua e do visível: "A armadura do real é, tanto para Heródoto, quanto para os médicos do século XVIII, desenhada segundo o modelo da linguagem?" 30 279.
Depois da ópsis vem a akoé-, não mais eu vi, mas eu ouvi. Eis um segundo modo de intervenção do narrador na narrativa, uma outra espécie de marca de enunciação. O eu ouvi reveza com o eu vi, quando este último não é possível ou não é mais possível. Como lembra a história de Giges, o ouvido, do ponto de vista do fazer-crer, vale menos que o olho: disso se conclui que uma narrativa presa a um eu ouvi será menos crível ou menos persuasiva que uma outra, vizinha, organizada em torno de um eu vi. Sua marca de enunciação é, se posso dizer assim, menos forte. O narrador engaja-se menos, mantendo-se a alguma distância de sua narrativa, deixando, em conseqüência, mais espaço para o ouvinte modular sua crença. Em resumo, afrouxam-se suas rédeas. Positivamente, a akoé significa "eu me informei" (pynthánomai), eu investiguei (historéo) 3 1 junto de pessoas que dizem, por terem elas próprias visto ou por terem ouvido de outros que viram ou que dizem ter visto etc... A akoé não é uma só, mas compreende muitas formas e comporta diferentes níveis. Primeiro nível: eu não vi, mas ouvi eu próprio (autékoos). Visitando o labirinto, no Egito, Heródoto procede à distinção entre o que viu (as salas superiores) e o que não se deixou que ele visse (as salas inferiores), falando do que não viu por ouvir dizer. 32 Do mesmo modo, sobre tudo o que se encontra além da cidade de Elefantina, ele informou-se, perguntou, escutou ( a k o ê i historéorí),33 Ctésias de Cnido, o historiador do século IV, retomando o mesmo método (com a intenção de criticar Heródoto e mostrar que ele mentiu), declara ter visto ele próprio o que escreveu e, quanto ao que não viu, ter ouvido ele mesmo ( a u t é k o o n ) tudo diretamente. 34 Num segundo nível, a akoé não é mais direta, e o número de intermediários pode multiplicar-se. Quando Heródoto quer falar do que há "acima" da Cítia, esclarece que ninguém o sabe com exatidão (otde atrekéos): Com efeito, não pude informar-me com ninguém que dissesse sabê-lo por tê-lo visto com os próprios olhos — e o próprio Aristeas [um poeta...] não pretende ter ido pessoalmente além do país dos issedons; dos países situados acima, falou ele por ouvir dizer (akoé), declarando terem sido os issedons que lhe disseram o que ele diz. Da nossa parte, vamos relatar tudo o que, por ouvir dizer, pudemos obter de informações precisas (atrekéos), as quais se estendem o mais longe possível. 3 5
279.
Do mesmo modo, ninguém sabe com certeza ( s a p h é o s ) nada dos desertos da Líbia, de onde vem o Nilo. Todavia, eu ouvi alguma coisa da boca dos cireneus, que ouviram eles próprios do rei dos amoneus, que ele próprio soube dos nasamões, os quais repetiam eles próprios o que diziam ter visto "jovens loucos" que se arriscaram, certa vez, naquela direção. 36 Da ópsis à akoé, a distância pode, pois, variar muito, até o limite deste último exemplo, em que são necessários nada menos que quatro revezamentos para encontrar-se um eu vi fundador — constituído, ainda por cima, pelo olho de "jovens loucos" (hybristés). Quando se trata não mais de avançar até os limites da terra, mas de recuar no tempo, a akoé desempenha também um papel, sendo o eu ouvi que, então, remete a um primeiro enunciador, na maior parte das vezes qualificado como sábio (logíos). No Egito, esses interlocutores são" os sacerdotes: 37 "Até aqui, o que eu disse foi tirado do que vi (ópsis.), das reflexões que fiz (gnóme), das informações que tomei {historie); a partir de agora, vou dizer o que os egípcios contam [isto é, os sacerdotes, sobre o passado do Egito], como ouvi." 38 Enfim, o último nível da akoé, o mais baixo, que é classificado nas gramáticas com o nome de passiva impessoal: légetai, diz-se que, há uma narrativa que diz... No fundo, trata-se de uma espécie de narrativa flutuante, de que^ não se sabe nem quando, nem como, nem por quem, nem para quem foi produzida: enunciado aparentemente sem sujeito da enunciação e sem destinatário. Nenhuma marca forte de enunciação a pontua, o que não significa, em conseqüência, que o narrador creia nela globalmente ou não creia nela em bloco. A enunciação pode, com efeito, manifestar-se de modo mais sutil sob a forpia de vestígios'9 e, portanto, qualificar mais discretamente o1 diz-se.40 Essas declarações que se transmitem são uma sorte de citação sem quem cita e sem quem é citado, cuja autoridade varia conforme o contexto. A repartição entre a ópsis e a akoé é encontrada na introdução do livro de Marco Polo: Sem dúvida, há aqui algumas coisas que ele não viu: mas soube-as de homens dignos de serem cridos e citados. É por isso que apresentaremos as coisas vistas como vistas e as coisas
279.
ouvidas como ouvidas, de modo que nosso livro seja sincero e verdadeiro, sem nenhuma mentira — e que aquilo que ele diz não possa ser taxado de fábula. 41
Essa tomada de posição metodológica não é vã do ponto de vista do fazer-crer: por essa distinção, que eu assumo, reforço, com efeito, a credibilidade e a veracidade do eu vi, mas também a credibilidade do eu ouvie sua veracidade, tomada não absolutamente, mas como relação fiel de uma narrativa. O que conto é talvez incrível, mas não é "fábula" e eu não sou um mentiroso. O sentido jurídico de hístor (aquele em que devemos acreditar é aquele que viu e não aquele que ouviu) indica claramente uma inferioridade do ouvido com relação à vista. Para Tucídides, o saber histórico funda-se antes de tudo na ópsis (ou eu próprio vi, ou interrogo alguém que viu — e, nos dois casos, pode-se falar de ópsis)-, quanto à akoé, não tem ela grande valor de verdade, motivo por que o passado não pode ser conhecido com certeza. 42 Isso vale também para Heródoto? A história de Giges parece orientar-se nesse sentido. Todavia, ao lado da expressão "eu sei por ter visto", encontramos a expressão "eu sei por ter ouvido". Num e noutro caso, tem-se produção de saber ( o i d a ) , embora o primeiro seja fundado na ópsis, enquanto o segundo repousa na akoé-. "eu sei que [...], por ter ouvido dos délficos..."; ou "eu sei que [...], por ter ouvido em Dodona". 43 Se há^conjunção entre ver e saber, não há, pois, para Heródoto, em princípio, ruptura entre saber e ouvir,44 mesmo se há diferentes níveis de akoé, isto é, uma maior ou menor proximidade com relação ao ouvido do narrador.
ENTRE O ESCRITO E O ORAL De acordo com o princípio de que o ouvido segue quando a olho não pode fazê-lo, o eu ouvi pode valer tanto quanto o eu vi. Não se trata, todavia, de um valor absoluto, mas determinado relativamente, ou seja, o que significa o visto/ ouvido com relação a mim. Com efeito, vocês não acreditam menos em mim quando digo que ouvi, do que quando digo 279.
que vi? Que significa eu ouvi? Em primeiro lugar, que não dou por visto o que ouvi (cf. Marco Polo): não sou, portanto, um mentiroso. Em seguida, que relato fielmente as palavras que ouvi: não sou, portanto, um fanfarrão. Enfim, que vocês não são obrigados a acreditar no conteúdo das minhas palavras — e eu também não. O que pressupõe a aproximação, do ponto de vista da produção de saber, entre o ver e o ouvir, entre o fato de que Heródoto possa dizer, igualmente, "eu sei por ter visto e eu sei por ter ouvido?" Pressupõe, de fato, um mundo onde é natural qua^a palavrgrVajha como^colihecimepto, onde a palavra sabe). Um mundo em que o discurso oral não é desvalorizado com relação ao discurso escrito. Enfim, um mundo dominado pela oralidade ou ainda amplamente dominado pela oralidade. Essa é a situação da Grécia no correr do-século V, q u e j i ã o é ainda um mundo da escrita, mas apenas um mundo da palavra escrita. Sem dúvida, há muito tempo se sabe escrever: o alfabeto sírio-fenício apareceu na primeira metade do século VIII a.C., mas a cultura oral permanece muito presente, se não preponderante, moldando as estruturas mentais e o saber compartilhado pelos gregos dessa época: "A Grécia não conheceu uma revolução da escrita e o escrito não veio revezar com uma tradição oral subitamente desfalecente.'" 45 Para avaliar esse lento caminhar da escrita, podemos tomar como referência, pelo menos analogicamente, as conclusões da pesquisa de Furet e de Ozouf sobre a França: ...Entre o século XVII e a Guerra de 1914, os franceses ingressaram na cultura escrita. Mas essa longa história subterrânea n ã o é a de uma substituição radical do oral pela escrita. Pois a escrita preexistia a essa a c u l t u r a ç ã o coletiva, e n q u a n t o o oral s o b r e v i v e até o c o r a ç ã o do s é c u l o XX. O c o n c e i t o mais útil para dar a e n t e n d e r n o s s a p o s i ç ã o é p r o v a v e l m e n t e o de restricted literacy, tal c o m o foi d e f i n i d o p e l o a n t r o p ó l o g o inglês J a c k Goody. O que a c o n t e c e na França entre Luís XIV e Jules Ferry não é a alfabetização dos franceses propriamente dita, mas a p a s s a g e m de uma a l f a b e t i z a ç ã o restrita a uma a l f a b e t i z a ç ã o em massa. 4 6
À Grécia também se aplica o conceito de cultura escrita restrita, e existe uma "mestiçagem" entre o escrito e o oral. 279.
Heródoto e as Histórias testemunham essa mestiçagem. 47 Com efeito, o historiador Díilo conta que ele recebeu, dos atenienses, um prêmio de dez talentos, fato mencionado também por Eusébio, em sua Crônica (em torno dos anos 445-444), o qual esclarece a razão do citado prêmio: Heródoto havia feito uma leitura pública de sua obra. Luciano ecoa a tradição de uma recitação em Olímpia, que lhe rendeu tanto sucesso, a ponto de os nove livros receberem, desde então, os nomes das nove Musas. 48 Conhece-se ainda a anedota sobre Tucídides que, sendo ainda criança, ao ouvir Heródoto contar as Histórias, em Olímpia, ficou tão maravilhado que se pôs a chorar. 49 Ajunta-se ainda à tradição de um Heródoto meio sofista, meio rapsodo, a um só tempo declamador e conferencista, um provérvio que diz: "à sombra de Heródoto". 50 Enfim, Aristófanes, fazendo um certo número de alusões a Heródoto, indica que as Histórias — ou pelo menos certos trechos delas — tinham passado efetivamente para o domínio do muito conhecido, pelo menos em Atenas. A referência mais famosa é a que ele faz nos Acarnenses, em que Diceópolis traça as causas da Guerra do Peloponeso: Mas eis que jovens embriagados com o jogo do cótabo vão a Mégara e raptam a cortesã Simeta; os megarenses, em vista da afronta, excitados como galos, por represália roubam, de Aspásia, duas cortesãs. Eis por que a guerra eclodiu, semeando a discórdia entre todos os gregos por causa de três vagabundas! 51
Trata-se de uma alusão transparente ao prólogo das Histórias, em que se faz referência à sucessão de raptos (Io, Europa, Medéia, Helena) que, segundo os doutos persas, foi a causa da hostilidade entre gregos e bárbaros. Ao lado desses testemunhos indiretos, a própria obra, em parte, pertence ao mundo da oralidade. Em primeiro lugar, encontramos nela todos os processos de composição que Van Groningen inventariou, com relação à literatura arcaica, 52 entendendo que se dirigem antes a um ouvinte que a um leitor: a técnica da composição circular fornece o exemplo mais visível disso. De outra parte, o texto parece ecoar, em alguns momentos, um diálogo com o auditório ou discussões. 279.
Esse é o caso do famoso debate persa sobre as constituições. Depois do assassinato do usurpador Esmérdis, os conjurados teriam se reunido para deliberar sobre a melhor forma de governo a instaurar (monarquia, aristocracia, isonomia), afirmando o narrador, com precisão: "Foram proferidos discursos que certos gregos julgam incríveis, mas que foram proferidos todavia." 53 Três livros adiante, a propósito dos acontecimentos na Jônia, ele retorna à questão: "Vou dizer uma coisa que surpreenderá muitíssimo os gregos que se recusam a crer que, no conselho dos sete persas, Otanes tenha expressado a opinião de que o regime necessário para os persas era o poder do povo." 54 Herodótou Thouríou histories apódexis — assim começam as Histórias: "Heródoto de Túrio expõe aqui suas pesquisas." Ora, o termo apódexis pertence ao mundo da oralidade, remetendo à epopéia e implicando "seguramente uma publicação oral". 55 Heródoto seria então um rapsodo, e o prólogo das Histórias pretenderia bem, a um só tempo, invocar a tradição épica e rivalizar com ela: de fato, a Ilíada e a Odisséia encontram-se presentes. Entretanto, Heródoto pretende também distanciar-se dessa tradição: não é a deusa que canta "qual dos deuses semeou a discórdia entre o filho de Atreu e o divino Aquiles", mas Heródoto de Túrio que diz "qual foi a causa de gregos e bárbaros entrarem em guerra uns contra os outros"; não é a Musa que canta "aquele que visitou as cidades de tantos homens e conheceu seu espírito", mas Heródoto que "avança na seqüência de sua narrativa, percorrendo indistintamente as grandes e as pequenas cidades dos homens".56 Esse mesmo prólogo contém, todavia, um elemento que não pertence mais ao mundo da oralidade. Ao lado do nome do autor, menciona-se o de sua cidade: Heródoto de Túrio (ou de Halicarnasso). Tal elemento, desconhecido da poesia épica, não tem verdadeiramente sentido se a comunicação não está destinada a ultrapassar as fronteiras da cidade e a transbordar do mundo do "face a face" que a cidade supõe. 57 Ou, sobretudo, poder-se-ia dizer que há uma ligação entre a escrita da obra, a menção do nome do autor e o desenvolvimento das cidades, pois, depois de tudo, o rapsodo ia de cidade em cidade e de concurso em concurso, sem reservar seus cantos para apenas sua cidade de origem. Do mesmo modo, Hecateu 279.
abre suas Genealogias assim: "Hecateu de Mileto..." — depois continua: "conta isto; escrevo o que para mim é conforme com a verdade ( h ô d e mytheitai; táde grãpho hos moi dokei alethéa einai)". O surpreendente é, certamente, essa aliança de mytheitai (ele diz, ele conta), do mundo da oralidade, com grãpho, eu escrevo, portanto, com o mundo da escrita — e é escrevendo e pelo fato mesmo de escrever que ele irá estabelecer o que, nas múltiplas narrativas ( l ó g o i ) dos gregos, "assemelha-se à verdade" {dokei moi). Enfim, Tucídides começa pelo famoso "Tucídides de Atenas escreveu..." (synégrapse) — e o conjunto da obra tem o título de syngraphé, isto é, sin-grafia ou escrita conjunta: de imediato o autor se instala no mundo da escrita. Mundo da oralidade, mundo da escrita, mundo entre o oral e o escrito — enfim: o que é a escrita nas Histórias? O que é escrever? A escrita foi introduzida, na Grécia, pelos fenícios vindos com Cadmo: "ao que me parece". Os gregos tomaram emprestadas as letras aos fenícios, que as tinham ensinado a eles, empregando-as ligeiramente modificadas; empregando-as, conheciam-nas sob o nome de phonikéia.58 Grãphein significa escrever, mas também pintar, representar, desenhar, fazer um relevo. 5 9 O que se escreve? Põem-se por escrito os oráculos, 6 0 redigem-se inscrições sobre os monumentos ou para comemorar algum acontecimento, 6 1 escrevem-se cartas e, quando se é egípcio, escrevem-se livros, fazem-se listas, arquiva-se. Mas a carta é um meio de comunicação comum principalmente no mundo bárbaro — e não no mundo grego, com poucas exceções: assim, o faraó Amásis e Polícrates de Samos trocam cartas,62 mas Polícrates é um tirano, e os tiranos são pessoas entre a Grécia e a Ásia. Do mesmo modo, Histieu, o tirano de Mileto, quando quer ordenar a Aristágoras que lance a revolta da Jônia contra os persas, expede-lhe uma carta escrita no crânio de um escravo fiel, após ter-lhe raspado a cabeça e ter esperado que a cabeleira crescesse de novo. 6 3 Enfim, Demarato, para prevenir os lacedemônios dos projetos de Xerxes, recorre a uma carta secreta — mas Demarato, rei deposto de Esparta, encontra-se então refugiado na corte do Grande Rei.64 A carta transmite portanto informações ou instruções, trata-se de um modo secreto de se comunicar e, em suma, do exercício do poder.
279.
Dario manda instruções por carta a Megabazo, que permanece na Europa, após a expedição da Cítia.65 Uma carta é portadora, de modo muito forte, da vontade real, mas pode também desempenhar o papel de instrumento de vingança, matando seu destinatário: é o que acontece na história de Oretes, sátrapa de que Dario queria se desembaraçar. Um enviado de Dario vai a Sardes, levando muitas cartas reais. Conduzido à presença do sátrapa, dá as cartas ao secretário real, para que ele proceda a sua leitura. Vendo que os guardas testemunham o maior respeito por essas cartas, ele lhes dá uma onde estava escrito: " 'O rei Dario proíbe-vos de serem guardas de Oretes.' Logo eles depuseram suas lanças. Então lhes entregou ele uma última: 'O rei Dario ordena-vos matar Oretes.' Os guardas logo tomaram seus sabres e degolaram-no." 66 Tortuosa, secreta, ligada ao exercício do poder, a carta pode ser também instrumento de traição e meio para se tomar o poder. Hárpago incita Ciro a revoltar-se contra Astíages e a dominação dos medas, enviando-lhe uma carta escondida no ventre de uma lebre, que tinha sido aberto e, em seguida, cuidadosamente costurado de novo. Para assegurar-se da participação dos persas nesse empreendimento, Ciro escreve, por seu lado, uma carta falsa, em que diz que Astíages o designa, a ele, Ciro, governador da Pérsia. A partir de então, os persas passam a obedecê-lo. 67 Se a astúcia não se encontra ausente do mundo grego, esse uso ardiloso da escrita sob a forma de carta não é comum. Por exemplo, quando Temístocles, esse mestre nos ardis, escondidamente manda prevenir os medas de que os gregos projetavam fugir de Salamina (precisamente para impedi-los de fazer isso), utiliza um mensageiro e não uma carta secreta. 68 Ligada ao poder, forma de poder, a escrita parece ser antes de tudo assunto do secretário real: é ele j j u e m redige e lê as cartas. 69 Sobre o aprendizado da escrita no mundo grego, as Histórias não dão mais que duas indicações: em Quios, o teto de uma escola cai sobre as crianças que aprendiam a ler; 70 a mãe de Ciles, rei dos citas, era uma mulher de ístria (colónia de Mileto), tendo-lhe ensinado ela própria "a língua e as letras gregas"; 71 ela sabia, portanto, ler e escrever, ou pelo menos ler. A escrita encontra-se portanto bem presente nas Histórias, mas o interessante é a atitude de Heródoto em face da coisa 279.
escrita. O olho do viajante, vendo uma inscrição que lê ou que manda traduzir, sente-se mais seguro? A coisa escrita confere um "saber seguro" ou, em todo caso, um saber mais seguro que a narrativa oral? A resposta não é evidente. Heródoto viu inscrições e cita um certo número delas: inscrições no monumento dedicado ao pai de Creso, indicando quem contribuiu para sua ereção; inscrições nas estátuas erguidas por Sesóstris, no curso de suas campanhas, sobre a pirâmide de Queops, precisando (segundo o intérprete) quanto lhe custou a manutenção dos operários... 72 Mas em todos esses casos, a inscrição é considerada como uma coisa a mais: descrevendo-se um monumento, faz-se menção a ela. Todavia, ela não se encontra aí por si mesma. Além disso, uma inscrição pode mentir: encontra-se escrito, sobre um vaso de ouro em Delfos, que se trata de uma oferenda dos lacedemônios. Ora, isso é falso, pois foi Creso que o ofereceu ao deus. Sei mesmo quem fez a inscrição, mas não direi. 73 Assim, a escrita pode mentir. Em todo caso, Heródoto não encurrala a inscrição e não tem nada de um epigrafista às voltas com seu material de estampagem. A inscrição não é um arquivo. No Egito, pelo contrário, existem pessoas dedicadas ao livro. Os egípcios são povos de ciência muito antiga, os mais antigos ou quase os mais antigos dos homens, ou ainda, eles existem desde quando existem homens.74 Eles escrevem. Sabem, por exemplo, a idade dos deuses, o tempo transcorrido entre o deus mais jovem e o faraó Amásis. Heródoto referir-se-á a esses cálculos para sublinhar o despropósito das crenças dos zregos sobre a genealogia de Héracles: "Os egípcios, com efeito, dizem ter dessas cifras uma ciência segura, porque desde sempre contam o número dos anos, consignando-o por escrito." 75 Do mesmo modo, é a partir de um livro ( e k byblon) que os sacerdotes fornecem a seu visitante a lista dos reis do Egito: 76 no total, contam-se trezentos e trinta e um. Enfim, escrever é prever. Se os egípcios também descobriram mais presságios que todos os outros homens reunidos, é porque, quando acontece um prodígio, aguardam o que se segue, escrevendo-o (graphómenoi); e se, mais tarde, acontece alguma coisa de semelhante, julgam que o que seguirá será do mesmo gênero. 7 7
279.
Os egípcios são, pois, homens de memória: sabem, graças ã escrita, que não nasceram ontem e são os mais sábios (logiótatoi) de todos os homens em matéria de memória, 78 ao contrário das populações do Ponto Euxino, entre as quais não se conta nenhum "sábio" Uogíori), bem como dos citas, que se dizem os mais jovens dos homens. 79 Existe, pois, uma ligação entre escrita e saber: todavia, quem sabe escrever não tem necessariamente razão. Assim, o escriba do Tesouro de Atena, em Saís, pretende saber com exatidão ( a t r e k é o s ) onde se encontram as nascentes do Nilo, não passando, porém, aos olhos de Heródoto, de um engraçadinho: ele paízei, isto é, age como criança, não sabe o que diz. De um modo interessante, tem-se aí uma inversão da situação que se tornará clássica, na qual o viajante, como uma pessoa letrada, ouve a verdade do discurso do indígena; no presente caso, pelo contrário, tem-se um letrado que não sabe o que diz e um viajante que não é de todo um homem de letras, o qual separa o que há de verdade nas declarações de seu informante: "O que fica de suas declarações, na medida em que as compreendo", é que as nascentes do Nilo não são de todo insondáveis, mas antes, em conseqüência dos redemoinhos e dos turbilhões, que não se pode sondá-las. 80 Sobretudo, porém, é suficiente que os sacerdotes digam, o que não significa que tudo o que dizem é forçosamente verdadeiro, nem que eu creio em tudo o que dizem — mas não nos esqueçamos de que eu posso dizer: "eu sei por ter visto" ou "eu sei por ter ouvido"; já eles, para me falar de seu longínquo passado, lêem livros e fazem registros tão bem que talvez não poderiam mesmo fazer senão isso. Entretanto, para compor meu lógos, de que adianta ver e compulsar esses registros? Criticar Heródoto por não ter feito isso é desconhecer tanto que não tinha por que fazê-lo, quanto que não podia fazê-lo, pois a própria noção de arquivo não existia. Escreve Faye: A primeiríssima narrativa de historiadores em sua tentativa de reconstituir a história inteira do Egito, desde Min até Cambises, obteve um duplo e paradoxal resultado. O livro II das Histórias transmite até nós, com efeito, os nomes mais antigos da história humana. [...] Mas, ao mesmo tempo, o livro II dessa primeira
279.
história constitui a primeira coletânea de contos populares. [...] A história de Fero, o conto do arquiteto ladrão dos tesouros de Rampsinito ou a vingança de Nítocris pertencem ao inventário mundial dos contos populares, da mesma forma e no mesmo plano que as coletâneas de G. Maspero. Ao primeiro historéon, que "desejava saber" em primeira mão e pedia informações nos p r ó p r i o s l o c a i s — n o s a n t u á r i o de Ptah em Mênfis, em Saís, B u b á s t i s ou B u t o — a n a r r a ç ã o oral r e s p o n d e u ironic a m e n t e c o m f i c ç õ e s . Ironia ainda maior, a n o s s o s o l h o s , p o s t o q u e , n e s s a é p o c a , arquivos e d o c u m e n t o s já e x i s t i a m precisamente nos santuários egípcios, estando agora à disposição dos historiadores. Q u e o historiador inicial, aventurando-se na narração, tenha encontrado nela a ficção, não é um acidente fortuito: faz parte do p r o c e s s o fundamental. As "fontes" de Heródoto são fictícias, apesar de sua vontade de historiador querer "informar-se", porque a ficção faz parte do processo da narração primitiva que se faz. 81
Ironia, se se quiser, mas somente para nós, que temos em vista o processo da historiografia. Sabe-se bem que o arquivo r.ão existe em si, independentemente do historiador. Ele existe apenas a partir do momento em que se decide vê-lo como tal, quando o recorte de novos arquivos avança de par com a formulação de novas questões. No ponto de partida, para que haja arquivo, é preciso haver um homem letrado e, para utilizar os arquivos, trabalhar a partir de arquivos, é preciso, de uma maneira ou de outra, privilegiar o escrito como mais verdadeiro, mais autêntico, mais seguro que o oral (ficando bem entendido que o escrito pode mentir). Heródoto, entre o escrito e o oral, ouve pessoas que se servem dos livros, mas ele próprio não teria a idéia de "ir aos arquivos" do santuário áe Saís ou de Buto: "Sei por ter ouvido." Enfim, sua observação sobre o conhecimento da história egípcia, relacionada com a presença dos jônios naquele país, ajunta nova prova da "não-existência" cie arquivos e mesmo da superioridade do oral sobre o escrito: H na s e q ü ê n c i a de seu estabelecimento no Egito [isto é, do e s t a b e l e c i m e n t o dos jônios] e graças às r e l a ç õ e s que temos c o m eles, que s a b e m o s exatamente ( e p i s t á m e t h a atrekéos) [...] tudo o que se passou depois naquele país; pois eles s ã o os primeiros h o m e n s de língua estrangeira ( a l l ó g l o s s o i ) que se e s t a b e l e c e r a m lá. 82
279.
EU DIGO, EU ESCREVO Se essa é a atitude de Heródoto com relação à escrita, se não há arquivos propriamente ditos — o que acontece com Heródoto ao dizer ou escrever? Do mesmo modo que levantamos a questão do eu vi e do eu ouvi como marcas de enunciação e como sinais de pontuação da narrativa, examinemos agora o que acontece com o eu digo e o eu escrevo, tomados também como intervenções cio narrador na narrativa. Do ponto de vista do destinatário e do fazer-crer que o narrador quer transmitir, um é mais forte do que o outro? Eu escrevo é mais carregado de fé do que eu digo? De início, examinemos a questão do ponto de vista negativo: eu não digo ou eu não escrevo. Muitas vezes, quando aborda questões religiosas, Heródoto afirma que sabe das coisas, conhece as explicações, mas não quer," não lhe agrada ou não crê ser conveniente dizê-las. 83 Esse não dizer é, de fato, uma mensagem positiva para o destinatário e um modo de fazer-se crer: eu sei mais do que digo. Ora, de modo paralelo, ele utiliza a fórmula: eu sei, mas não escrevo. Falando da doutrina da metempsicose, que foi enunciada pela primeira vez pelos egípcios, mas que certos gregos, mais tarde, apresentaram como deles, conclui ele: "Sei seus nomes, mas não os escrevo." 84 Do mesmo modo, a propósito da maneira como Polícrates morre, ele precisa que "não convém relatá-la" (ouk axíos apegésios).85 Como último exemplo, registre-se o seguinte, que aponta na direção da escrita: entre as maneiras de caçar o crocodilo, Heródoto escreve, com efeito, aquela que "mais convém relatar" (axiotáte apegésios).86 Assim, como marcas negativas de enunciação, o eu não digo ou o eu não escrevo (ficando entretanto bem entendido que, num caso como no outro, eu sei) parecem ter o mesmo peso: destinam-se igualmente a fazer o destinatário crer. Agora positivamente: Heródoto acredita que "deve dizer o que se diz" (opheílo légein tà legómenà), acrescentando que esse princípio vale não somente para o momento em que faz tal observação, mas para a totalidade de seu lógos,87 portanto, para as Histórias em seu conjunto. Da mesma maneira, ele c o n h e c e duas narrativas sobre a forma como Cambises atravessou o deserto dos árabes para atacar o Egito: a 279.
primeira, mais persuasiva (pithanóteros), ele a relata; e a segunda, menos persuasiva, ele a relata igualmente, pois é preciso que seja dita, já que também é dita (dei ... epeíge dè légetai, rhethênai).88 O narrador, emprestando sua boca, faz-se arauto desses lógoi que, aqui ou ali, anonimamente ou não, se dizem e se repetem: ele é o "eco sonoro de seu século". Mas ele empresta, com a mesma desenvoltura, sua mão e sua pluma para transcrever essas mesmas narrativas: "escrevo o que se diz" (tà dè légetai gráphó).89 Afirma ainda, com relação ao Egito: "Proponho-me, ao longo de meu lógos, pôr por escrito, como ouvi (akoêi gráphó), o que dizem uns e outros." 90 Ou ainda: "escrevo o que dizem os gregos (katà tà legómena byp 'Hellénon egò gráphó)" .91 Dessa vez, o narrador se apresenta ao público como o simples escriba dessas narrativas, cujo ilho o rodeia: não faz mais que transcrevê-las, para repeti-las em seguida. Eles dizem, diz-se isso, isso é dito, eu escrevo: nenhuma distância entre dizer e escrever. Que me faça arauto ou escriba — e sou, de cada vez, um e outro — parece que, do ponto de vista do fazer-crer que produzo, direcionado ao destinatário de meu lógos, não há diferença importante. Tomados como marcas positivas de enunciação, eu digo e eu escrevo, a boca e a mão do narrador, equivalem-se: nos dois casos, meu lógos valida um primeiro dito, que autentifica e que o autentifica. De cada vez, trata-se de escrever _um_dito, jamais de transcrever um escrito. Há todavia um caso em que escrever parece pesar um pouco (muito pouco) mais do que dizer, comprometendo um pouco ( m i t o pouco) mais o narrador do que o simples dizer: trata-se JC quando ele tem uma função testemunhal. Com efeito, quando se trata de nomear, de dar os nomes ou de não dá-los, em Gês ocasiões, encontramos escrevera não dizer. Conheço os •ocnes dos gregos que pretendem ter inventado a doutrina tia metempsicose, mas não os escrevo. No momento da ré-. : Ita na Jônia, ele afirma que "não saberia escrever, com e n ú d ã o , quais dentre os jônios se mostraram fracos ou bravos." 92 durante o combate naval com os fenícios. Ou, a propósito do traidor das Termópilas, Efialtes: "Efialtes foi çr_.err_ serviu de guia, pela senda em torno da montanha, p n d o a ele que inscrevo como culpado (toüton aítion gráphó)."93 3 narrador ergue, em seu lógos, como que uma estela de 279.
infâmia que corresponde às inscrições gravadas em honra dos heróis tombados com Leônidas para defender o desfiladeiro. Mais amplamente, as intervenções do historiador em sua narrativa encontram-se ligadas a seu objetivo fundamental de "impedir "qmTcTque fizeram os homens, com o tempo, se apague da memória". Ele pretende, cada vez que pode, transmitir ou estabelecer quem obteve, num combate, o prêmio por seu valor,94 elaborando assim, para os gregos, um novo memorial. Saber nomear e nomear exige, pois, mais o eu escrevo que o eu digo — mais ainda, seríamos tentados a concluir, que o simples dizer, embora ele não afirme explicitamente, em parte alguma, como faz Tucídides, que seu escrito tenha o valor de um ktêma es aieí. entenda-se que eu escrevo, mas essa atestação, destinada a ser dita, não se apresenta como uma aquisição para sempre. Já Tucídides parece estar firme e plenamente do lado do escrito: "Tucídides de Atenas escreveu a guerra (synégrapsé)." Aproximando-se as duas aberturas, vê-se que a exposição Capódexis) herodotiana é substituída pela escrita ( s y n g r a p h é ) tucidideana. Quanto ao ktêma es aieí, não pode ele ser compreendido plenamente senão com referência ao contexto da escrita. 95 Com efeito, entende Tucídides que sua obra obedece a outras regras diferentes daquelas da composição oral, não pretendendo ele, de modo algum, fazer "uma produção de aparato para um auditório de momento". 9 6 A palavra proferida passa por ser necessariamente de circunstância, não podendo obedecer senão ao ouvido do público. A escrita, ao contrário, evita as ciladas e ultrapassa as limitações. Todavia, recusando de todo a oralidade, ele não consegue escapar totalmente dela, já que a destinação normal de uma obra é ser lida, portanto, dita diante de um público: destina-se ela "à audição" (es akróasirí). Corre-se, pois, o risco de haver uma distorção entre as regras de composição seguidas e o modo de comunicação a que se está submetido, podendo-se assim decepcionar o público: "Na audição, a ausência do maravilhoso nos fatos relatados parecerá sem dúvida diminuir-lhes o encanto." 97 Ktêma e escrita — vontade de escapar do mundo da oralidade, impossibilidade de subtrair-se totalmente dele. Mas o caso de Tucídides é mais complexo ainda. Para ele, a 279.
ópsis vale mais que a akoé. Mas a ópsis não é a recusa da oralidade, pelo contrário, pois ou eu próprio vi, ou interrogo alguém que tenha visto e critico seu testemunho. Nos dois casos, pode-se empregar a mesma palavra: ópsis. A ópsis impregna-se, portanto, de oralidade. 98 É justamente porque é necessário fazer essa verificação oral que a história é, antes de tudo, "visão". Por isso, fazer a história, a rigor, é fazer história contemporânea ou do imediato. Isso tanto é assim, que Tucídides, em suma, critica os logógrafos (especialmente Heródoto), por terem, ao mesmo tempo, abusado e usado mal da oralidade: abusaram dela, pois falaram para o ouvido do público; usaram-na mal, pois creram que poderiam, sem problema, falar de acontecimentos e de povos do passado. Há um bom e um mau uso da oralidade. Portanto, Tucídides também se encontra (sem dúvida de uma maneira diferente da de Heródoto) entre o escrito e o oral. Nas Histórias, entre o mundo que se conta e o mundo em que se conta, a escrita não constitui a demarcação de fronteiras: ela não é o que, por princípio, faz a diferença entre eles e nós, povos com ou sem escrita. Ao contrário, em Léry, a escrita tem essa função e apresenta-se como verdade de um discurso que, não sabendo o que diz, não passa de fábula. Com efeito, os tupis, em suas canções, mencionam como "as águas transbordaram de tal modo que cobriram toda a terra, tendo sido afogados todos os homens do mundo, exceto seus avós, que se salvaram sobre as árvores mais altas de seu país". Intervenção do narrador: é isso o que eles têm de mais próximo da Sagrada sendo verossímil, de fato, que, de pai para filho, tenham eles ouvido alguma coisa sobre o dilúvio universal e, [...] seguindo o costume dos homens que sempre corromperam e transformaram a verdade em mentira, ajuntando-se ainda [...] que, sendo desprovidos de qualquer espécie de escrita, lhes é difícil reter as coisas em sua pureza, acrescentaram essa fábula, como fazem os poetas, de que seus avós se salvaram sobre as árvores."
Sem dúvida, quando os egípcios falam do passado longínquo e das genealogias divinas, fundamentando-se em seus livros, Heródoto mostra-se disposto a dar-lhes razão contra os gregos. Assim, a propósito de Héracles, a narrativa feita pelos gregos 279.
é qualificada de mythos.w0 Entretanto, quando ele intervém em seu próprio nome, quando sustenta a posição de quem sabe o que são, no fundo, os outros discursos, jamais o faz em nome da escrita. Os citas, por exemplo, contam como ao norte de seu país não se pode ver o que quer que seja, nem mesmo caminhar, por causa das plumas que se espalham sobre a terra e no ar. Bem entendido, eles não sabem o que dizem e usam uma metáfora sem o saber, pois o que chamam de plumas é de fato neve. 101 Já Léry dará muito claramente uma "lição de escrita": Pelo que eu digo que, quem quiser amplificar essa matéria, se apresenta aqui um belo assunto, tanto para louvar e exaltar a arte da escrita, como para mostrar quanto as nações que habitam as três partes do mundo, Europa, Ásia e África, têm motivos para louvar a Deus, acima desses selvagens desta quarta parte dita América: pois, enquanto eles não podem comunicar nada senão verbalmente, nós, ao contrário, temos essa vantagem de, sem nos mexermos do lugar, por meio da escrita e das cartas que nos enviamos, podemos declarar nossos segredos àqueles que queremos, mesmo se estiverem longes até no fim do mundo. T a m b é m , além das c i ê n c i a s que a p r e n d e m o s nos livros, das quais os s e l v a g e n s s ã o s e m e l h a n t e m e n t e destituídos por c o m p l e t o , ainda essa i n v e n ç ã o de escrever, que nós temos, da qual eles se encontram inteiramente privados, deve ser posta na categoria dos dons singulares que os homens de aquém receberam de Deus. 102 •
í As palavras, abolidas tão logo produzidas, não vão longe; a escrita, ao contrário, guarda tudo intacto e transporta ao fim do mundo. Que a escrita seja valorizada como "dom singular" ou depreciada como "perfídia", 103 a lição de escrita, em todo caso, para a etnologia, desempenhará um pouco o papel de cena primitiva. Já Heródoto escapa dessa configuração e, deste ponto de vista, não é o pai da etnologia. No fim das contas, a escrita de Léry "inventa"o selvagem, enquanto a narrativa de Heródoto "inventa" o bárbaro - j - e o bárbaro não é o selvagem, já que, ao contrário deste, sabe escrever. O persa sabe escrever e faz da escrita, até na mutilação dos corpos, uma escrita do poder: ora, ele é o bárbaro por excelência. O egípcio sabe escrever e todavia é bárbaro. 104 Se, pois, selvageria e escrita se opõem, barbárie e escrita fazem par. 279.
Enfim, a^escrita é, para a etnologia, a medida de verdade da palavra selvagem, mas, ao mesmo tempo, há alguma coisa dessa palavra que sempre lhe escapa: M. de Certeau mostra isso muito bem com relação à palavra tupi que, "no escrínio da narrativa, figura como jóia ausente". 105 Ora, essa palavra, inatingível na medida mesmo em que é um objeto perdido, vem a ser o que indefinidamente faz escrever, o que produz o texto etnológico. Essa definição, contudo, não se aplica a Heródoto, para quem a palavra do outro não é, a um só tempo, objeto de discurso e vocação profunda desse mesmo discurso. De fato, não é isso que o faz escrever. A escrita entesoura, conserva, fazendo do etnólogo o primeiro ou, ao contrário, o último a ver tal cerimônia ou a ouvir tal canto (nesse domínio, os primeiros não são também os últimos?). Mas, antes de conservar, a escrita começa matando, como descreveu com minúcia Victor Segalen: a escrita destrói a oralidade dos taitianos, que não podem tornar-se outra coisa além de desmemoriados; aquele que, extraordinariamente, ainda se lembra dos ditos de outros tempos não é, daí em diante, mais que um pagão, isto é, um ignorante que ignora a doutrina cristã. A partir de então,j>qde ter início a conservação ou, sobretudo, o embalsamamento, pois, como experimenta o jovem Auté, o que a escrita recolhe são palavras mortas.106 Isso também não se aplica às Histórias. As Histórias não contêm lição de escrita, e Heródoto é um homem entre o oral e o escrito. Mas ele também pretende "conservar", pondo as Histórias por escrito. Tudo se passa como se, em seu prólogo, ele "acreditasse" rivalizar com a epopéia, quando, na realidade, faz outra coisa, embora não tenha palavras para dizê-lo. Ele pretende-se rapsodo, mas é um rapsodo em prosa. Fundamentalmente, seu projeto é outro e, escrevendo suas Histórias, produz ele um novo memorial,107 muito diferente da memória épica.
O J O G O DA ENUNCIAÇÃO Após ter passado em revista as quatro marcas de enunciação — eu vi, euouvi, eu digo, escrevo — abordadas do ponto de vista de seu impacto sobre o destinatário (que, no 279.
processo da narrativa, não intervêm no mesmo nível), vem a questão dos outros narradores ao lado do narrador principal e, correlativamente, se couber, a questão dos outros destinatários, ao lado do primeiro destinatário. Dito de outro modo: quem, em que momento, fala a quem? Quais os efeitos disso sobre a narrativa? Existe um primeiro narrador, onipresente e único sujeito da enunciação. Ele intervém na primeira pessoa do singular (eu sei, eu vi, parece-me...), mas usa também-a primeira pessoa do plural: "medimos nós mesmos", "vimos nós mesmos", "tanto quanto sabemos", "no nosso conhecimento". Estas expressões escandem de afirmações como: acima do país dos neuros, na direção norte, estende-se, "tanto quanto sabemos", um deserto vazio de homens; ou: Polícrates é o primeiro dos gregos, "no nosso conhecimento", que imaginou um império dos mares. 108 Nas margens de sua obra, há mesmo uma vez em que ele assina na terceira pessoa, usando seu nome próprio (Heródoto conta...); mas logo, no quinto parágrafo, é o eu que entra em cena para fechar o prólogo. Excetuando-se os discursos diretos, a segunda pessoa (tu/ vós) não é atestada, deixando o destinatário na sombra. Ao contrário, na Descrição do Mundo, Marco Polo, que utiliza com referência a si mesmo as primeiras pessoas do singular e do plural (eu/nós), bem como a terceira pessoa do singular (Marco Polo/ele), aloja o destinatário em sua narrativa, fazendo uso abundante da segunda pessoa ("ficai sabendo que...", "e vos digo que...", "queremos fazer-vos saber..."). O destinatário não se encontra todavia ausente da cena das Histórias, mas figura na terceira pessoa do plural (os gregos) e na primeira pessoa do plural (nós). "Nós" é o mundo em que se conta, em face do mundo que se conta — nós com relação a eles. Por exemplo: "O que nós chamamos de cinamomo é uma palavra aprendida dos fenícios;" 109 "o nome que nós damos aos arimaspos é cita"; 110 "eu ignoro a existência das Ilhas Cassiteridas, mas constato que o estanho e o âmbar nos vêm duma extremidade do mundo"; 111 "são as extremidades do mundo que contêm as coisas que MÓS julgamos as mais belas"; 112 "na Líbia, os auseus realizam uma cerimônia instituída por seus ancestrais em honra da divindade indígena que nós chamamos Atena". 113 Assim, o nósé tão maleável que 279.
pode encolher-se até o eu ou, ao contrário, dilatar-se até englobar todos os gregos. Entre a extrema contração e a expansão máxima, podem constituir-se, em função mesmo da escuta dos ouvintes, inúmeros subconjuntos. De fato, tenho sempre a faculdade de me compreender num nós. Sob a forma da terceira pessoa, o destinatário deixa-se apreender através das comparações ou dos paralelos: a Táurida, por exemplo, é evocada em termos antes de tudo destinados aos atenienses ou aos gregos da Apúlia.114 O destinatário pode também ser explicitamente os gregos. Com efeito, quando Heródoto relata o debate persa sobre o melhor regime a ser instaurado após o assassinato do usurpador Esmérdis, esclarece que essas posições, "incríveis para certos gregos", foram entretanto sustentadas. 115 Enfim, ajerceira pessoa é todo o resto, todos os que falam e dos quais eu falo, todos os que eu faço falar — mas também as as narrativas que se falam (légetai), aparentemente sem a boca de nenhum narrador, nem o ouvido de nenhum r-arratário.116 Tem-se aí uma multidão de narradores secundários, convocados durante um momento, os quais, tão logo termina sua fala, desaparecem. Eles encontram-se na posição i e sujeitos do enunciado, mas jamais da própria enunciação mesmo no discurso direto). Tomemos a origem dos citas: o primeiro narrador a intervir são os próprios citas (os citas drzem que...); os gregos do Ponto vêm depois e dizem, por sua vez, que...; depois são "gregos e bárbaros" que dizem que...: em último lugar, é Aristeas, o poeta, que diz que... 117 P z rranto, quatro narrações que se sobrepõem, produzidas por quatro narradores (coletivos e individuais), em face das quais o narrador principal ocupa, no momento em que são feitas, a posição de narratário. Talvez mesmo de segundo narratário, se admitirmos que essas versões não tenham sido produzidas especialmente para ele, mas que se dirigissem a um primeiro mrratário. Os gregos do Ponto, por exemplo, quando tentam compreender quem é Zálmoxis, buscam Pitágoras e operam segundo uma dialética do próximo e do longínquo.118 Podemos então pensar que tal esquema se destina, antes de tudo, aos próprios gregos do Ponto. Em todo caso, o importante é que s ó j ) narrador principal •em mobilidade: ele pode ocupar todas as posições discursivas. 279.
pode encolher-se até o eu ou, ao contrário, dilatar-se até englobar todos os gregos. Entre a extrema contração e a expansão máxima, podem constituir-se, em função mesmo da escuta dos ouvintes, inúmeros subconjuntos. De fato, lenho sempre a faculdade de me compreender num nós. Sob a forma da terceira pessoa, o destinatário deixa-se apreender através das comparações ou dos paralelos: a Táurida, por exemplo, é evocada em termos antes de tudo destinados aos a:enienses ou aos gregos da Apúlia.114 O destinatário pode também ser explicitamente os gregos. Com efeito, quando Heródoto relata o debate persa sobre o melhor regime a ser instaurado após o assassinato do usurpador Esmérdis, esclarece que essas posições, "incríveis para certos gregos", foram entretanto sustentadas. 115 Enfim, a terceira pessoa é todo o resto, todos os que falam e dos quais eu falo, todos os que eu faço falar — mas também : ; d a s as narrativas que se falam (légetai), aparentemente sem a boca de nenhum narrador, nem o ouvido de nenhum narratário. 116 Tem-se aí uma multidão de narradores secundários, convocados durante um momento, os quais, tão logo termina sua fala, desaparecem. Eles encontram-se na posição de sujeitos do enunciado, mas jamais da própria enunciação mesmo no discurso direto). Tomemos a origem dos citas: o primeiro narrador a intervir são os próprios citas (os citas dizem que...); os gregos do Ponto vêm depois e dizem, por sua vez, que...; depois são "gregos e bárbaros" que dizem que...; em último lugar, é Aristeas, o poeta, que diz que... 117 Portanto, quatro narrações que se sobrepõem, produzidas por quatro narradores (coletivos e individuais), em face das quais 3 narrador principal ocupa, no momento em que são feitas, a posição de narratário. Talvez mesmo de segundo narratário, se admitirmos que essas versões não tenham sido produzidas especialmente para ele, mas que se dirigissem a um primeiro narratário. Os gregos do Ponto, por exemplo, quando tentam compreender quem é Zálmoxis, buscam Pitágoras e operam segundo uma dialética do próximo e do longínquo..118 Podemos então pensar que tal esquema se destina, antes de tudo, aos próprios gregos do Ponto. Em todo caso, o importante é que sjó o narrador principal tem mobilidade: ele pode ocupar todas as posições discursivas. 279.
De narrador, pode-se fazer narratário; depois, de novo, quando quer, narrador. As diferentes narrações são como que estratos que têm cada um sua própria moldagem (um pouco como o esquema braudeliano da longa duração) e cada um desses estratos é posto em relação com os outros (caso seja necessário) pelo narrador principal, que intervém dispondo as marcas de enunciação. Relacionando-os, ao mesmo tempo ele interrompe alguns, prolonga outros, em suma, classifica-os do ponto de vista de seu fazer-crer. Bem entendido, a própria ordem de apresentação das versões sucessivas não é indiferente, revelando-se uma marca de enunciação implícita e mesmo uma modalização implícita (na medida em que é "anterior" a sua expressão lexical). 119 Os citas contam sua origem. Imediatamente, o narrador principal intervém, declarando, a propósito do nascimento do primeiro cita, que teve por pai Zeus e uma filha do rio Borístenes: "o que eles dizem para mim não é crível (emoi ou pistà légontes)". Depois a história prossegue. Em seguida, vem o que é dito dos gregos do Ponto, que não é interrompido por nenhuma intervenção do primeiro narrador. Então, relata-se aquilo que dizem os gregos e os bárbaros, o que, de imediato, é qualificado como a versão "à qual mais me inclino de boa vontade". Enfim, as opiniões sustentadas por Aristeas. Assim, pelo jogo dessas intervenções, a terceira versão apresenta-se como a mais crível — enquanto a primeira é diretamente rejeitada, bem como a segunda e a quarta o são indiretamente. Como marcas de enunciação, eu vie eu ouvi afetam tanto a relação do locutor com seu enunciado, quanto a escuta do destinatário. Portanto, elas têm já um valor modal, de tipo alético ou epistêmico. Eu digo e eu escrevo agem um pouco diferentemente. Com efeito, o que eu digo é o que se diz, e o que eu escrevo é o que se diz; meu lógos não é mais que a reprodução de um dizer original, que ele autentifica e que o autentifica: esses dizeres, eu asseguro a você que foram ditos e, portanto, você (destinatário) pode crer em mim; de outra parte, não faço mais que dizer o que é dito e, portanto, já que não busco fazê-lo crer, você pode crer em mim. Essa fidelidade a um dito primeiro é apresentada como um dever: se eu escrevo ou digo o que se diz, é porque "eu o devo": 279.
"Para mim, devo ( o p h e í l o ) dizer o que se diz [...] — e que o que digo aqui seja assim para toda minha história." 120 Ora, essa obrigação tem um corolário: eu digo, eu escrevo, mas cada um é livre para crer ou não crer no que é dito. Antes de tudo, eu sou livre para crer ou não crer, ou para crer em tal versão de preferência em outra, na medida em que, "na minha opinião" ( d o k e i moi),121 ela for mais "crível" ipithanós): eu devo dizer o que se diz, mas não devo crer nisso totalmente... Não sou, pois, nem crédulo, nem mentiroso — vocês podem, em conseqüência, crer em mim. Sou livre, mas a liberdade vale também para o destinatário: "Quem julga essas coisas críveis é livre para aceitar as narrativas dos egípcios; quanto a mim, o que me proponho ao longo de toda minha narrativa é pôr por escrito, como o ouvi, o que dizem uns e outros (akoêi grápho)."122 Vocês podem portanto crer ou não crer, crer no que eu creio ou crer em outra coisa. Como não busco fazê-los crer, vocês podem, em suma, crer em mim ainda mais. Esse empilhamento de narrações e o jogo de enunciação são fundamentais para que a narrativa possa fazer crer. O primeiro narrador, onipresente, mostra assim que sabe (às vezes sabe mais do que diz: a morte de Ciro, por exemplo, é objeto de numerosos lógoi, os quais ele conhece, não relatando todavia senão o mais crível, de acordo com o que '.he parece). 123 Ele mostra também que faz seu dever (eu devo dizer), não sendo nem crédulo, nem mentiroso — numa palavra: provando que é crível. Enfim, o fazer-crer da narrativa levanta a questão do querer-crer — ou ainda, a questão do ouvido do público. E bem difícil, no caso das Histórias, apreciar esse ouvido, contentando-me eu aqui com uma declaração geral e um único exemplo. O fazer-crer do narrador enxerta-se, com efeito, no querer-crer do público, do mesmo modo que em sua recusa de crer. Duas vezes Heródoto retorna, a propósito do debate persa, "àqueles dos gregos que se recusam a crer" que tal debate possa ter tido lugar na Pérsia. Por que essas intervenções e qual sua importância? Antes de tudo, quando falo dessa questão, sei o que digo. Em segundo lugar, sei muito bem que há gregos que não crêem nisso. Se persisto, apesar disso, é porque tenho "sólidas razões" e, portanto, vocês devem crer 279.
ainda mais em mim. A recusa de crer é, pois, recuperada e serve, no fim das contas, para reforçar o fazer-crer da narrativa. Kubilai Kan pergunta a Marco Polo se, voltando a Veneza, contará a seus compatriotas as mesmas histórias que lhe contava ali. Este último responde: Eu falo, falo, mas quem me escuta não retém senão as palavras q u e e s p e r a . Uma coisa é a d e s c r i ç ã o do m u n d o à qual tu prestas uma atenção benevolente; uma outra, aquela que dará a volta ao ajuntamento de estivadores e gondoleiros sobre os fondamenta diante de minha casa, no dia de meu retorno; uma outra ainda a que eu poderei ditar em minha velhice... O que c o m a n d a a narrativa não é a voz, é o ouvido.124
MYTHOS
4
E PRAZER O U
PHILOMYTHIA
Y
Jamais uma narrativa é um aparecimento original. Ela é sempre tomada de uma outra narrativa, e o percurso da narrativa de viagem é também percurso de outras narrativas. O sulco de descobertas do Pacífico, antes de transformar-se em escrita, começa recortando a escrita de narrativas anteriores. Do mesmo modo, Cristóvão Colombo embarcou com o livro de Marco Polo. / Essa narrativa anterior é uma peça entre as mãos do nWrácíor, no jogo da persuasão. Com efeito, uma forma de fazer crer na própria narrativa é indicar o que, na narrativa do outro, é "incrível", "mentiroso" ou "mítico'\.Heródoto não se esquece disso e pontua freqüenteméntétal ou tal lógos com emoi ou pistá, "da minha parte, não creio nisso". Não creio nos caldeus, quando dizem que o deus vem ao templo e se deita no leito que se encontra nele, com a mulher escolhida dentre todas. Não creio nos egípcios, quando dizem que a fénix transporta o cadáver de seu pai. Não creio nos fenícios, quando dizem que tiveram o sol à sua direita, ao completar o périplo da Líbia...125 Em oposição, constitui-se a categoria do crível (pithanós), com suas gradações, que são o comparativo (a mais crível de duas narrativas) e o superlativo (a narrativa mais crível dentre todas). 126 Se Heródoto usa o "crível", Tucídides usará a categoria do "verossimilhante" (eikós). 279.
Quando os gregos falam da vinda de Héracles ao Egito, falam "de modo leviano" (anepisképtos) e contam um mythos,127 Não, os egípcios não quiseram sacrificá-lo, eles que não podem sacrificar senão alguns animais, segundo um ritual muito estrito. O lógos grego está em contradição com os nómoi egípcios. De modo mais preciso ainda, as declarações de Hecateu sobre o Oceano são classificadas como mythos-. C o m o ele lançou seu mythos no invisível, não há prova (es aphanès tòn mython anenetkas onk ékhei élenkhorí). Com efeito, eu m e s m o não c o n h e ç o a existência de um rio O c e a n o . Penso que Homero ou algum dos poetas precedentes inventou esse n o m e e o introduziu na poesia. 1 2 8
O mythos, situado além do visível, escapa portanto à prova. Evocá-lo é convocar a figura do poeta. Por outro lado, cada vez que Hecateu é nominalmente citado por Heródoto, é qualificado de logopoiós: Hecateu, o "fazedor de lógos", do mesmo modo que Esopo, o fabulista. Com efeito, Esopo, referido uma só vez, incidentalmente, é chamado de "Esopo, o logopoiós" }29 A volta da mesma expressão não poderia ser indiferente. Recortar, num outro lógos, o mythos é, pois, uma maneira de pô-lo à distância de minha própria narrativa: o mythos é o que, na narrativa do outro, designo como outro da narrativa (es aphanés). E n f i m f o viajante escreve para denunciar as narrativas "Tfíéntirosas" de outros viajantes. Assim, Léry decide redigir sua Viagem especialmente após ter lido a Cosmografia de Thévet que é, segundo ele, toda "recheada de mentiras". Esse franciscano, que "busca bobagens no reino da lua", ainda por cima é um "mentiroso de marca maior": Irrita-me mais ainda não somente o fato de aquele de quem falo, por encontrar-se inchado com o título de Cosmógrafo do Rei, tirar disso dinheiro e crédito tão mal empregados, como, o que é pior, o fato de que, por essa razão, tolices indignas de serem postas numa simples carta sejam cobertas e autorizadas pelo n o m e real.
Cosmógrafo — isso quer dizer que, de fato, ele mentiu "cosmograficamente, isto é, a todo mundo": 279.
Se acontecer-vos de ouvi-lo discorrer longa e amplamente, direis que não somente viu, ouviu e observou por si mesmo todos os costumes e maneiras de agir dessa multidão de diversos povos selvagens que habitam nessa quarta parte do mundo, como também mediu todas as terras da índia ocidental...
quando, de fato, não ficou ali mais do que alguns dias e, ainda por cima, sem mexer-se, na ilhota de Villegagnon. 130 A mentira ou o mythos têm, pois, uma dupla função: são produtores de narrativas e permitem que as narrativas proliferem, na medida em que escrevo para denunciar a npxrativa do outro. Portanto, mentira e mythos fazem escrever^Fajem também crer, posto que designar a narrativa do outro como ficção é, ao mesmo tempo, da parte do narrador, validar sua própria narrativa como séria: ele quer nos fazer crer que viu, mas eu sei muito bem que não viu nada", pois_ eu, sim, vi realmente; é, pois, em mim que vocês devem crer. Se Heródoto, com insistência, chama Hecateu de logopoiós, ele próprio, muito rapidamente, submete-se ao mesmo tratamento: aparecerá como "contador de lógoi", "mentiroso", "contador de mythoi" ou "mitólogo". O que se passa é precisamente um desmoronamento do fazer-crer: sua narrativa não mais consegue fazer crer. O primeiro a operar este corte, marcando certa distância ao situar a narrativa herodotiana do lado do mythos, é seu continuador, aquele que retoma a história no ponto em que ele a havia deixado, Tucídides. Surge aqui, muito rapidamente, a figura do parricida: a arqueologia seria também isto, um assassinato! No começo do século IV, Ctésias de Cnido repete esse distanciamento, mas de um modo diferente. Ctésias, médico na corte do rei persa Artaxerxes, escreve uma obra intitulada Persiká, na qual começa por "fazer, em quase tudo, exatamente o contrário de Heródoto", o qual é considerado um mentiroso com relação a numerosos aspectos, merecendo bem ser tratado como logopoiós. Portanto, ruína do fazer-crer de Heródoto, denunciado como um simples fazer-crer no que não existe; em seguida, valorização do fazer-crer de Ctésias: ele realmente viu (autópsia) ou, na falta disso, ouviu o que escreve {syngrápsaí),131 Não será preciso esclarecer que se seguem as maiores mentiras. 279.
Isso feito, Heródoto, durante muito tempo, aparecerá como mentiroso, imagem que passa a integrar, daí em diante, a esfera das coisas bem conhecidas, tornando a denominação quase inevitável.132 Flávio José, no fim do século I d.C., faz um resumo dos fatos e, evocando a cadeia de críticas sucessivas que é a historiografia grega, lembra que há apenas uma única unanimidade: os ataques contra Heródoto. 133 Livros inteiros foram escritos contra ele. Maneton redigiu um Contra Heródoto, para denunciar suas mentiras sobre o Egito. Os retores, mais tarde, também fizeram sua parte: Sobre os Roubos de Heródoto, de Valério Pólio; Sobre as Mentiras de Heródoto, por Élio Harpocrátion. Libânio igualmente publicou um Contra Heródoto. Isso sem esquecer o texto mais famoso e o único que recebemos — o tratado de Plutarco Sobre a Malignidade de Heródoto. Mais ou menos na época em que Flávio José fazia esse balanço da historiografia grega, Plutarco escrevia seu panfleto, que se apresenta como uma dupla defesa; em primeiro lugar, de seus próprios ancestrais, os beócios, particularmente maltratados; em segundo, dos ancestrais de todas as cidades de que Heródoto falou mal. Seu postulado é simples: é coisa fora de dúvida que Heródoto é um mentiroso; mais que isso, entretanto, ele é um mentiroso mau, pois não conhece prazer maior do que falar mal das pessoas, quase sem parecer que o está fazendo. É exatamente isso que ele entende por malignidade (kakoétbeiá). Sua demonstração, para pôr o mentiroso em confusão, é também de todo simples: lembra, para opor-se a ele, a tradição das Guerras Médicas, no que elas têm de mais "patrioteiro", em virtude da íntima convicção de que "tudo é belo na história da luta vitoriosa dos gregos contra os persas, não tendo deixado os ancestrais senão grandes exemplos. (Quem tende a manchar o quadro luminoso dessa época brilhante é, portanto, contestável e deve ser apagado)." Mas a defesa da tradição deveria ultrapassar apenas as Guerras Médicas, pois nada escapa à malignidade de Heródoto. Desde seu prólogo, por exemplo, fala mal de Io, a qual "todos os gregos crêem que recebeu honras divinas entre os bárbaros"; mas, para ele, ela deixou-se engravidar pelo capitão de um navio fenício. Naturalmente, finge pôr essa narrativa mentirosa na boca dos próprios fenícios. Até a própria Guerra de Tróia, "a façanha maior e mais bela da Grécia", não aparece mais 279.
que como uma "estupidez", um empreendimento "por uma mulher que não valia a pena", considerando-se ainda que "essas mulheres não teriam sido raptadas a não ser que elas próprias quisessem". 134 Plutarco omite esclarecer que são os "sábios persas" que fazem essa observação sobre o rapto e não o próprio Heródoto, mas o mais provável é que ajuntasse que, na verdade, ele finge responsabilizá-los por essa calúnia. Mais grave ainda, "absolve" Busíris, o faraó egípcio, da prática de sacrifícios humanos e do assassinato de estrangeiros, mas, ao contrário, acusa disso Menelau, quando de sua estada no Egito. 135 Enfim, tudo o que diz sobre a influência da religião egípcia na religião grega é propriamente escandaloso: "Ele serve-se de charlatanices e de histórias mentirosas para derrubar as crenças mais veneráveis e mais sagradas da religião grega." 136 Afirma coisas que um sacerdote de Delfos, mesmo se fosse filósofo, não admitiria! Não respeita ninguém, nem mesmo a própria Pítia. De fato, faz com as pessoas o mesmo que Esopo faz com os animais em suas fábulas, fazendo-as dizer suas próprias invenções (plásmata). Com efeito, observa Plutarco, ele não se contenta apenas em fazer falar os citas, os persas e os egípcios, atribuindo-lhes suas próprias palavras, como Esopo faz corvos ou macacos falarem, mas não hesita em fazer o mesmo com a Pítia!137 Em suma, seriam necessários "muitos livros para passar em revista todas as suas mentiras e todas as suas invenções". 138 Quando Plutarco trata Heródoto de philobãrbaros é preciso compreender não que ele tenha uma fraqueza pelos bárbaros, mas que trai a Grécia. De outra parte, é ele verdadeiramente grego? Com efeito, "se alguns o consideram como de Túrio, ele próprio encontra-se realmente ligado à gente de Halicarnasso, esses dórios que atacaram os gregos, fazendo-se acompanhar de seu harém". 139 Esse tratado de Plutarco certamente representa um momento importante na construção e difusão da figura de Heródoto como mentiroso, figura que, além da Idade Média, atinge o Renascimento e os tempos modernos. De fato, a partir da Renascença, quando alguém pretende defender Heródoto, deve antes de tudo destruir as acusações de Plutarco. Procedimento que se explica pelo fato de Plutarco, entre 1450 e 1700, ter sido um dos autores gregos mais editados: contam-se, por 279.
exemplo, sessenta e duas edições das Vidas Paralelas, contra quarenta e quatro edições das Histórias}40 Todavia, para J. L. Vivès, no início do século XVI, Heródoto continua sendo, sem dúvida, o "pai das mentiras": "Heródoto deveria ser considerado mais verdadeiramente como pai dos mentirosos que, como alguns o chamam, pai da História."141 Nessa galeria dos retratos do mentiroso, eis um último quadro, devido ao Abade J . - B . Bonnaud, que publicou, em 1768, um livro intitulado Hérodote, Historien du Peuple Hébreu sans le Savoir (Heródoto, Historiador do Povo Hebreu sem o Saber). A obra apresenta-se, de fato, como uma "carta em resposta à crítica manuscrita de um jovem filósofo sobre a obra intitulada: Histoire Véritable des Temps Fabuleux (História Verdadeira dos Tempos Míticos), por M. Guérin du Rocher, padre".142 O abade Bonnaud pretende, pois, defender e justificar, baseando-se em Heródoto, a "felicíssima descoberta" de seu mestre Guérin du Rocher: a história do Egito de Heródoto é muito simplesmente uma "alteração grosseira" da história do povo hebreu. Com sua Histoire Véritable des Temps Fabuleux, o jesuíta Guérin du Rocher quer lutar contra a incredulidade de seu século. Contra aqueles que pretendem "confundir" a história sagrada com a "antigüidade mítica", esforça-se em fazer com que as próprias fábulas dêem testemunho da Sagrada Escritura, demonstrando que não são mais que um "travestimento" desta. Trata-se, de fato, de um velho processo, que começou com os Padres da Igreja, sobre o tema do "travestimento", da "alteração", do "plágio" da história sagrada pelos gregos, retomado, após tantos outros, pelos dois padres citados, na ânsia de "desvelar" a verdade dos tempos míticos.143 A história egípcia é considerada a mais antiga (na história profana), sendo normal começar-se por ela. Heródoto é o mais antigo historiador a tê-la contado, sendo, pois, inevitável basear-se sobretudo nele. 144 A origem do travestimento deve buscar-se nas próprias línguas e, sobretudo, na dificuldade que há em passar de uma língua para a outra: as "alterações" são o produto de "mancadas" de tradução ou da interpretação errada dos nomes próprios, como se a língua, escapando de seus usuários, engendrasse fábulas. Assim, o pesquisador erudito encontra na etimologia um método seguro de 279.
desvelamento, como faz o Padre Guérin du Rocher: detrás de Tebas, a cidade egípcia, deve-se reconhecer a arca de Noé, que em hebraico se diz Thbe, sob Menés, o primeiro soberano egípcio, deve-se perceber Noé, pois Noé se diz ne ou mnee em hebraico, sendo ele "o primeiro homem que reina, de qualquer modo, após o dilúvio"... 145 Com relação ao próprio Heródoto, o Abade Bonnaud não pode senão concluir: o pai da história é, de fato, o pai da mentira, mesmo se, escrevendo "sobre extratos truncados da Sagrada Escritura", que lhe "forneceram os sacerdotes de Mênfis", mentiu sem saber. Assim, ressalta-se claramente a "insignificância" da história profana, que não sabe o que diz, que diz de fato outra coisa diferente do que crê dizer e cuja única verdade, medida a partir da Sagrada Escritura, é precisamente ser uma fábula: A verdade histórica, que se erigiu c o m o certeza moral fundada n o testemunho dos homens, será portanto reduzida, quanto aos antigos anais profanos, a não ser, durante mais de dois mil anos, senão a sombra da verdade de nossas escrituras divinas. Assim, a primeira obra-prima do espírito humano no g ê n e r o histórico torna-se um insigne m o n u m e n t o ã ilusão q u e é o t e s t e m u n h o dos homens e, ao mesmo tempo, à insignificância da literatura profana.
Sic transita história profana, que se exaure em sua "fonte" e faz, daí em diante, parte da mitologia. Dissipada essa ilusão, subsistem apenas, para sempre infrangíveis, as Escrituras e a história sagrada, como a verdade de todos os outros discursos.146 Para o Abade Bonnaud, a história profana pertence à mitologia, e Heródoto, mentiroso sem saber, não é historiador, mas mitólogo, um contador de mythoi. Com efeito, minta sem saber ou finja mentir, é ele sempre representado como um mitólogo, isto é, um tipo de mentiroso — não só anteriormente ao Abade Bonnaud, como em contextos alheios a sua perspectiva apologética. Aristóteles designa Heródoto assim: ho mythológos.147 Aulo Gélio, seis séculos mais tarde, falará de homo fabulator.148 Quando Hecateu de Abdera passa em revista os conhecimentos sobre o Egito, afirma que, simplesmente, omitirá as histórias forjadas por Heródoto e alguns outros que "deliberadamente 279.
preferem dizer paradoxos (tò paradoxologein) e fabricar mythoi (mythousplãtteirí), em vez de dizer a verdade"; ele, ao contrário, não se baseará senão nos "arquivos escritos dos sacerdotes", acusando, pois, Heródoto de ter deliberadamente ignorado essa fonte e criticando o mythos em nome da verdade da escrita.149 Do mesmo modo, Estrabão denuncia nos autores antigos e, principalmente, em Heródoto, uma tendência à philomythía: eles têm inclinação para contar 1 5 0 histórias; bem entendido, essa philomythía exerce-se preferentemente com relação às zonas de confins e às épocas longínquas. 151 Quando Hesíodo fala de macrocéfalos ou de pigmeus, não se trata de "ignorância", mas simplesmente de uma escolha: ele optou pela "forma mítica" ( m y t h o u skhêma): Mas então n ã o se deve absolutamente acusar Homero, quando c o m p õ e fábulas o n d e se e n c o n t r a m t a m b é m pigmeus, nem Álcman, q u a n d o m e n c i o n a h o m e n s que fazem sombra para si c o m os pés, nem Ésquilo, quando fala de indivíduos com cabeça de cão, ou com os olhos no peito ou com um único olho, sobretudo porque não somos tão detalhistas com os autores que escrevem em prosa e utilizam a forma da história ( h i s t o r i a s skhêma), e s q u e c e n d o - s e de confessar que recorrem à fábula (mythographía). É notório, desde o c o m e ç o , que eles misturam e l e m e n t o s fabulosos intencionalmente: não é que ignorem a realidade, mas inventam sistematicamente o impossível, pelo gosto do maravilhoso e pelo d e s e j o de agradar; ora, eles dão a impressão de agir assim por ignorância, s o b r e t u d o porque apresentam, com persuasão, narrativas fabulosas em domínios que p e r m a n e c e m obscuros e ignorados ( p i t h a n ô s mytheúousi). T e o p o m p o c o n c o r d a com isso, dizendo muito simplesmente que contará também mythoi em sua História; trata-se de uma atitude melhor que a de fazer como Heródoto, Ctésias, Helânico e todos os historiadores das índias. 1 ' 2
Tanto é assim que, no limite, "é mais fácil crer" em Hesíodo, em Homero ou nos poetas trágicos do que em Ctésias, Heródoto, Helânico e os outros, 153 já que os primeiros escolheram deliberadamente a "forma do mythoi, enquanto os segundos, que escolheram a "forma da história", deslizam para a "forma mítica", fingindo sempre permanecer na "forma histórica". 279.
Qual é a causa dessa philomythíaí O prazer — e, de novo, quem mostra isso claramente é Tucídides. Falando do passado da Grécia, os logógrafos buscaram o decorativo mais que o verdadeiro, deixando-se guiar pelo prazer do ouvido. 154 Tucídides rechaça os discursos dos logógrafos como mythoi, denunciando-os como voltados apenas para o prazer: À audiência, a ausência de mythódes nos fatos relatados parecerá sem dúvida diminuir-lhes o encanto; mas, se alguém quer ver claro nos acontecimentos do passado e nos que, no futuro, em virtude de seu caráter humano, apresentarão similitudes ou analogias com os primeiros, então que sejam eles considerados úteis e isso será suficiente: e l e s constituem um t e s o u r o para s e m p r e , mais do q u e uma p r o d u ç ã o de a p a r a t o para um auditório de momento. 1 ' 5
Pois ele opõe o mythos, o ouvido, o instante e o prazer, ao verdadeiro, ao escrito, à aquisição para sempre, ao útil — pretendendo sua obra testemunhar a ruptura entres os dois domínios. Esse princípio do prazer é, na seqüência, reafirmado com constância por todos os que designam Heródoto como "mitólogo" ou como "mentiroso": tanto Hecateu e Estrabão, lembrados há pouco, quanto também os modernos, como Niebuhr, por exemplo. Nessa perspectiva, 156 é mítico o que se decide chamar assim e não há mythos senão por referência a um outro tipo de discurso, que se desenvolve a partir dessa partilha fundadora. Desde então, posso olhar esse mythos como objeto de derrisão, servindo-me dele para valorizar meu próprio discurso, ou tratá-lo como objeto científico e pô-lo em questão. O que permite designar uma história como "mítica" é precisamente o fato de que ela não faz mais crer. Desde Tucídides, não se crê mais em certas histórias contadas por Heródoto, que se torna então mitólogo, isto é, crédulo e mentiroso: ele creu quando não tinha necessidade disso (foi mentiroso sem saber); ele fingiu crer quando não devia (foi simplesmente mentiroso). O discurso mítico tem como princípio de organização o prazer: o prazer dos ouvintes, o prazer do narrador que se deixa conduzir ao prazer, seguindo adiante do prazer dos ouvintes. Discurso do prazer e prazer do discurso, o mythos surge, pois, como o outro do discurso historiográfico. 279.
Ao mesmo tempo em que se estigmatiza essa busca do prazer ou esse abandono ao prazer, que arruina a credibilidade de Heródoto, louva-se seu estilo. Ele é um mestre do dialeto jónico. Seu texto provoca inegável prazer, tornando-se perigoso justamente por isso, como denuncia, por exemplo, Plutarco. Com efeito, para Plutarco, seu discurso é tão mais perigoso quanto, à semelhança dos presentes dados pelos persas aos etíopes, é "enganoso": "Seu estilo simples, sem esforço, passando facilmente de um assunto a outro", enganou mais de um.157 Já Cícero, que aprecia o prazer provocado pelo texto, refere-se ao estilo "que corre como um rio calmo ( q u a s i sedatus amnis fluit)".158 Para Luciano, seria suficiente poder imitar não todas as qualidades de seu estilo, coisa impossível, mas uma só dentre elas, fosse a "beleza da dicção", "a ordem das palavras ou seu domínio do jônio". 159 Plutarco, também ele, na conclusão de seu tratado, reconhece que Heródoto "sabe escrever, que sua História é prazerosa, que suas narrativas são cheias de graça, de engenhosidade e de encanto", prosseguindo depois com uma citação da Odisséia: Ulisses canta, diz-lhe Alcínoo, "com tanta ciência quanto um aedo"; Plutarco retoma a fórmula para aplicá-la a Heródoto, com a diferença de que lhe nega a "ciência" para não lhe reconhecer senão a melodia e a elegância estilística: 160 ele é de todo como um aedo, salvo que não canta o verdadeiro. Essa aproximação com Homero seguramente não tem nada de fortuito. Do "mitólogo" ao poeta a passagem é fácil, o mitólogo não sendo, enfim, mais do que um poeta mascarado. O próprio Heródoto, no prólogo das Histórias, pensa na epopéia e pretende rivalizar com ela, fazendo eco ao início da Ilíada e da Odisséia. Como atesta Luciano, deu-se o nome das Musas a cada um dos nove livros das Histórias,161 Dionísio de Halicarnasso o vê como um "imitador de Homero": "Heródoto, grande imitador de Homero, dedicou-se a espalhar por sua História a maior variedade. Lendo-a, tudo nos encanta até a última sílaba e ficamos desejando que fosse mais longa." 162 Essa idéia persistirá, já que, no século XVIII, o Abade Geinoz a retoma e prolonga, fazendo o paralelo da Ilíada e da Odisséia com as Histórias de Heródoto. Segundo ele, tal teoria "não pode deixar de ser muito interessante para todos os que amam as belas-letras; e poderá mesmo ter alguma utilidade para 279.
aqueles que empreenderão escrever a História". 163 Mais geralmente, Estrabão julga que os primeiros logógrafos (Cadmo, Ferecides, Hecateu) procuraram imitar a forma poética, "quebrando o metro, mas conservando as outras características da poesia". 164 São, portanto, aedos ou rapsodos em prosa.
UMA NOVA CRENÇA Quando o século XV redescobre Heródoto, redescobre-o com prazer. A tradução de Lorenzo v^lla, antes mesmo de sua aparição, em 1474, causou grande impressão. Mas, ao mesmo tempo em que liam Heródoto, os eruditos do Quattrocento liam também seus críticos, muito particularmente Plutarco. Ao prazer da descoberta ajunta-se logo uma certa desconfiança, como se constata no prèfácio escrito por Pontano, para uma edição de Heródoto na tradução de Valia, que finalmente não apareceu. 165 Desconfiança que atinge seu ponto culminante, arruinando toda a crença em Heródoto, na frase de J.L. Vivès, já citada: mais pai da mentira que pai da história. No século XVI, entretanto, a situação muda. As defesas, de tímidas que eram, tornam-se mais ousadas _g_vêm a ser mesmo, com a famosíssima Apologia pro Herodoto, de Henri Estienne (15661, verdadeiros contra-ataques. Não, Heródoto não é um mentiroso. Estienne parte dessa figura do mentiroso, conhecida de todos e proverbial: "Quem é que desconhece o costume que tem Heródoto de inventar ficções, realçado pelo discurso de todos, agora como outrora, como se fosse quase um provérbio?"166 Do mesmo modo, num outro texto, publicado em língua vulgar sob o título de Introduction au Traité de la Conformité des Merveilles Anciennes avec les Modernes, ou 167 Traité Préparatif à VApologie pour Hérodote, parte ele da afirmação, bem conhecida, de que "Heródoto não faz mais que mentir". Por que as histórias que ele conta são "suspeitas"? Respondem muitos: "É que elas não são verossímeis": Ora, c o n s i d e r e m o s , leitor, eu vos p e ç o , se eles falam categ o r i c a m e n t e q u a n d o inferem que essas histórias não são verdadeiras porque não são verossímeis. Mas há bem mais. É que lhes nego totalmente o que eles consideram inteiramente 279.
c o n f e s s a d o e provado, a saber, que elas não são verossímeis. E se fosse assim, em que razões fundariam eles seu julgamento? Em duas r a z õ e s : p r i m e i r a m e n t e , a d e s m e d i d a m a l d a d e q u e se vê em alguns atos d e s c r i t o s por H e r ó d o t o e a d e s m e d i d a e s t u p i d e z q u e se vê em alguns outros ultrapassa sua c r e n ç a ; e m s e g u n d o lugar, v e n d o q u e uma g r a n d e parte d o q u e lemos nele n ã o se relaciona absolutamente c o m os costumes e as práticas de hoje em dia e não tem nenhuma conformidade c o m eles, estimam que as antigas histórias estão tão distantes da v e r d a d e q u a n t o o q u e l ê e m n e l a s está l o n g e d o q u e e s t ã o a c o s t u m a d o s a ver e a ouvir.
Estienne mostrará o despropósito dessas duas razões, recorrendo à comparação: no que concerne à estupidez e à maldade, fez-se tão bem e até melhor depois, no passado, em outros lugares, mas também entre nós e nos nossos dias ainda. Quanto aos costumes, Estienne acha "estranho que sejam considerados tão estranhos que não se possa crer neles: visto que, se vemos que diferença há entre os nossos e os dos povos vizinhos, não os consideraremos menos estranhos por seu lado..." Não há nem mesmo necessidade de evocar países selvagens. Também a conclusão da Apologia é absolutamente simples e firme: Digo, na verdade, c o m relação a seja o que for que li em Heródoto e em outros historiadores, coisas que podem parecer indignas de fé, não só haver exemplos de fatos semelhantes referidos por outros, que devem ser contados no número das coisas verossímeis, como também sua autoridade ser confirmada por outros que viram, do mesmo modo, em nosso século. 1 6 8
Assim, a autópsia contemporânea é invocada como garantia e como renovação da crença nas histórias contadas por Heródoto.169 E mesmo, indo mais longe, o thôma contemporâneo pode funcionar como critério de crença para as narrativas dos antigos, como aparece no texto de Léry (cuja primeira edição data de 1578): E, de fato, não terei nenhuma vergonha de confessar aqui que, depois que estive nesse país da América [...], sem aprovar as fábulas que se lêem nos livros de muitos [e, antes de todos, nos de seu inimigo, o franciscano Thévet], os quais, fiando-se nos relatos que lhe foram feitos ou em muito mais, escreveram 279.
coisas de todo falsas, retratei-me da opinião que tinha antes de Plínio e de alguns outros que descrevem países estranhos, porque vi coisas tão bizarras e prodigiosas quanto algumas que se têm por incríveis, às quais eles fazem menção. 1 7 0
as à autópsia, opera-se uma mudança de posições: com efeito, Thévet, o cosmógrafo, passa a ocupar a posição de mentiroso; e Plínio, até então considerado como tal, passa a ocupar a posição de autor digno de fé. O alargamento do mundo e das narrativas que o narram tornam, pois, possível e Tucídides e do tratado de Plutarco, os dois textos de Estienne são, do ponto de vista do fazer-crer de Heródoto, os mais importantes. Mas, na verdade, só o primeiro, a Apologia, é verdadeiramente dedicado a Heródoto. Com efeito, no Traité Préparatoire, Heródoto não passa de um pretexto e de um ponto de partida. 171 Antes de tudo, trata-se de atacar os papistas e de mostrar que as "maravilhas" da época não encontram nenhuma dificuldade em ultrapassar muito as da Antigüidade: no que diz respeito a maldade, crueldade, lubricidade... as pessoas da Igreja não temem ninguém. O livro, aparecido em Genebra, foi queimado publicamente e conheceu numerosas reimpressões durante o século XVI. Heródoto meteu-se, pois, num combate contemporâneo, não sendo sua defesa senão um modo de atacar a Igreja. Se, desde então, Heródoto não é mais esse mestre do erro e da falsidade — pelo menos até o empreendimento radical do Abade Bonnaud, que risca com um traço de pluma toda história profana, para não reconhecê-la senão como mitologia — terá ele ainda de suportar um fardo. E esse fardo, Herodotus burden, é Ctésias, seu velho rival. Na maior parte das vezes, com efeito, as edições dos séculos XVI e XVII — e mesmo do século XVIII — associam às Histórias os fragmentos de Ctésias; freqüentemente ainda, o volume termina com a Apologia de Estienne. Ironia do destino ou malícia dos editores, posto que estão reunidos aquele que o defende como não-mentiroso, aquele que, refinado mentiroso ele próprio, o denuncia como mentiroso — e ele, o pai da história e da mentira. O que podem, pois, eles, os três, no silêncio e no tédio das bibliotecas, cochichar uns aos outros, senão, talvez, histórias de mentirosos? 279.
C
A
P
Í
T
U
L
O
AS HimiAS COMO REPRESENTAÇÃO Ao atingirmos este último capítulo, voltemos um instante atrás, até a Cítia. Antes de tudo, com efeito, atravessamos passo a passo o lógos cita, interrogando sobre o "lugar" que ocupavam esses nômades no percurso das Histórias. Citas imaginários, citas no espelho de Heródoto: discurso sobre /o outro. De lá, fazendo uma generalização, esboçamos uma J j .retórica da alteridade, com suas figuras e seus procedimentos. •: Retórica significa arte de persuadir: como fazer-crer? Precisamente pela movimentação de figuras e procedimentos pelo narrador. Mas o fazer-crer encontra seu limite, que o nega enquanto tal, no não-mais-fazer-crer: é o verme no fruto', a instilação da dúvida que pode desenvolver-se sem limite ou, pelo menos, até apodrecer completamente o fruto, arruinando o edifício de baixo para cima. O narrador não é senão um mentiroso, e a narrativa não passa de ficção. Além do mais, se as marcas de enunciação que escandem o texto das Histórias não fossem senão fictícias, se eu vi, eu ouvi, ou eu digo, eu escrevo o que se diz não fossem mais que um ardil do narrador, isto é, procedimentos literários para fazer-crer, portanto para enganar o público — enfim, se deixássemos desenrolar-se essa espiral da ficção, ela logo abocanharia tudo, e as Histórias correriam o risco de tornarem-se tão inatingíveis e enigmáticas quanto uma novela de J.L. Borges. Por acaso estamos muito longe disso com o estudo de D. Fehling, que julga, após exame, que as fontes de Heródoto são apenas fictícias?1 Foi só para criar um efeito sério que ele teria dividido sua exposição entre as numerosas fontes que cita? Não se trata, pois, de historie, mas simplesmente de técnicas literárias ou, ainda, de um simulacro de historie, não sendo a obra mais que ficção total (Gesamtfiktiori).
Ressaltar o momento em que o fazer-crer se volta e se inverte em não-mais-fazer-crer é também observar que a narrativa de viagem, bem como o discurso historiográfico, são trabalhados pela alteridade: ambos põem a distância um outro que designam como mythos, precisamente para distinguirem-se dele e fazerem-se assim ainda mais críveis. A alteridade não é, pois, somente a questão dos outros. A historiografia, em seu próprio processo, elabora um outro discurso: um resto, um erro, uma ficção... Como fazer crer? Ou ainda, para ir até o fim, o que fazer crer e por quê? Essa dupla questão pode também ser formulada de outro modo: o que fazer crer e por quê, ou as Histórias como representação? Em seu horizonte ronda, pois, uma outra, mais geral ainda, mas que seria vão levantar abstratamente — a questão do estatuto do texto histórico e da função do hístor. Como? O senhor pretende abordar o estatuto das Histórias ou, como o senhor diz, as Histórias como representação, tendo falado apenas de passagem das Guerras Médicas, que todavia constituem o seu assunto? Se Heródoto é historiador, é, em primeiro lugar e antes de tudo, "o historiador das Guerras Médicas". 2 Sem dúvida, foi esse Heródoto que a historiografia conservou: aquele que relata os fatos e narra os acontecimentos militares e políticos. É este Heródoto citado, que é utilizado como fonte, sem hesitar-se em corrigir "seus erros" ou "seus exageros" (principalmente no caso de batalhas, com relação às forças presentes), chegando-se a investigar as suas próprias fontes. Desse Heródoto, é verdade que não falei mesmo, estando interessado no outro, o agrimensor da oikouméne e o rapsodo da alteridade, com o qual os helenistas muitas vezes não sabem o que fazer, buscando desqualificá-lo ou desculpá-lo. Portanto, um outro Heródoto, mas também o outro de Heródoto, sua parte de sombra. Parece-me que, situando-os nessa perspectiva, podemos compreender melhor os intermináveis debates entre partidários e adversários da unidade da obra: os primeiros lógoi foram compostos antes e separadamente Uógos lídio, babilónico, egípcio), sendo depois cosidos ao resto da obra; ao contrário, desde a origem, Heródoto tinha um projeto de conjunto. Discussões que tomam igualmente esta forma: Heródoto começou sendo geógrafo e etnógrafo, 279.
depois tornou-se historiador — o que é a posição de F. Jacoby. A história aparece então como fruto da maturidade que, bem evidentemente, não pode amadurecer senão em Atenas. Assim, o nascimento da história na Grécia inscreve-se no percurso biográfico do próprio Heródoto, o que permite, a um só tempo, celebrá-lo como pai da história e considerá-lo como pré-historiador ou até não-historiador (nos momentos em que é ainda etnógrafo ou somente geógrafo). 3 Mas em tudo que se escreveu nesse sentido, trata-se fundamentalmente de explicar, de rejeitar ou de conjurar essa parte das Histórias que se recorta como outra, como o lugar da fábula e a toca do mentiroso. Não é menos verdade que pouco falei das Guerras Médicas, a não ser na sua relação com a guerra cita, em que desempenham o papel de modelo de inteligibilidade. 4 Fique entendido que não tenho a intenção de tratar delas enquanto tais. Para fazê-lo, seria necessário ver como, passo a passo, para contá-las e sempre contando-as, Heródoto erige um novo memorial, uma outra memória, diferente da elaborada e transmitida pela poesia épica. Mas o que ponho em dúvida é o fundamento dessa divisão entre um Heródoto historiador das Guerras Médicas e um outro — ou o seu outro. Pode-se olhar com o mesmo olho e ler com a mesma voz a parte "etnográfica" e a parte "histórica", uma como a outra estando à mesma distância. Deslocá-las, fazer uma passar na frente da outra ou esconder uma atrás da outra é, no fim das contas, ser vítima de Tucídides, para quem a história é a história de uma grande guerra contemporânea, cabendo à história apenas contar um conflito maior. Por outro lado (e, neste sentido, sou sem dúvida um partidário da unidade), creio que o método é o mesmo. De fato, quando Heródoto investiga sobre as Guerras Médicas, elabora para os gregos uma representação de seu passado próximo; do mesmo modo, quando investiga sobre os confins do mundo e sobre os povos estrangeiros, constrói uma representação do mundo. Nos dois casos, o efeito do discurso é análogo. Propor a questão "o que fazer crer e por quê?" é igualmente perguntar pelo estatuto e função da obra, da recepção e do público? Momigliano, 5 interrogando-se sobre os historiadores e seu público, começa lembrando que a história ocupa uma posição singular no contexto dos demais gêneros literários, 279.
a qual se define precisamente pelo fato de não ter lugar próprio: Com efeito, os outros gêneros "eram escritos para uma dada situação e tinham intrinsecamente um caráter cerimonial..."; a atividade dos historiadores, ao contrário, "nunca se tornou uma profissão, nem adquiriu caráter cerimonial, não tendo os que dela se ocupavam nenhum tipo de conhecimento claramente definido que devessem descobrir e transmitir". 6 Refere-se ele também a uma pesquisa (então em curso), destinada a chegar a algumas conclusões precisas sobre a posição do historiador nas socidades grega e romana. A questão encontra-se, portanto, longe de ser revolvida, a partir do que confessa aquele que é o maior entendido contemporâneo na historiografia antiga. Bem entendido, há aqueles para os quais a questão já está resolvida, ou seja, na realidade, mal conhecida. Por exemplo: quem é Heródoto? "Viajante curioso? Mercador audacioso? Um dos primeiros historiadores? De fato, geógrafo, agente de informações do imperialismo ateniense." 7 Se deixamos de lado o contexto particular dessa citação, percebemos bem que o que se encontra implícito na proposta é a idéia de que o texto é reflexo da sociedade e das lutas que a animam. Em todo caso, o imperialismo é o que permite "sair" logo do texto, para reencontrar as lutas reais. Eis a função do texto — e o resto não passa de literatura! "Sair" do texto é também o que sugere Momigliano, mas de um modo completamente diferente. 8 Com efeito, como as próprias obras de Heródoto, Tucídides e outros não nos informam, de modo algum, sobre as relações que existem entre obras, autores e seu público, deve-se reunir todos os testemunhos, sobretudo literários (mas não exclusivamente), escritos no mesmo contexto sobre os historiadores e suas obras, a fim de que, indiretamente, possamos saber mais sobre sua posição na sociedade. Mas antes de "sair" — façamos isso deliberadamente ou sem saber — podemos tomar como hipótese que ainda há o que fazer no e com o próprio texto. Hipótese que, no caso da história antiga, pode-se transformar em necessidade: não somente há o que fazer com o texto, mas impõe-se fazer com, pois é quase impossível sair dele. Que se pense nos poemas homéricos: nesse caso, como usar o contexto e a 279.
intertextualidade? Não se pode compreender nada de O Mundo de Ulissetf senão a partir do momento em que se começa a tomar o texto seriamente e nada além dele; somente em seguida se levanta a questão do como: como tomá-lo seriamente? Isto é: que leitura? Bem entendido, a Ilíada e a Odisséia representam um exemplo no limite, mas não creio que com as Histórias se perde algo por trabalhar-se principalmente o texto, mesmo se o contexto não nos escapa totalmente e se recorrer à intertextualidade não é completamente impossível. Mas não sair, ou não "sair" às pressas, não significa, entretanto, "fechar-se" no texto, com todas as portas e janelas lacradas, como numa câmara de delícias; não se trata também de desenvolver um "culto" ao texto, que não será mais que "uma forma apenas modernizada do velho culto dos heróis". 10 Em suma, é nessa abordagem séria do texto (histórico ou não) e na elaboração dos procedimentos que ela implica que me parece residir a contribuição teórica que a história antiga pode fazer à história, induzindo à reflexão sobre o que se pode entender por documento e por fonte. Portanto, a questão do estatuto e da função das Histórias — ou seja, a questão sobre seu sentido — fica amplamente sem resposta. Se o contexto — biográfico antes de tudo (Heródoto nasceu em Halicarnasso, conheceu o exílio, viajou, passou por Atenas, estabeleceu-se em Túrio, compôs suas Histórias, morreu), mas também social, político e cultural — não nos escapa totalmente, permanece entretanto suficientemente desfocado. Se podemos descobrir um certo jogo de intertextualidade, circunscrever com precisão sua pertinência não é fácil.11 Quanto à posição das Histórias ao longo do tempo, encontram-se elas ligadas a essa imagem do mentiroso: índice da desconfiança que suscitaram, mas índice também do lugar que ocuparam, já que convinha, a cada vez, repetir e recordar as mentiras de seu autor. A simples consideração das intenções confessadas ou dos objetivos declarados pelo narrador não é sem dúvida suficiente. Com efeito, se desde o prólogo Heródoto pretende rivalizar com Homero e a epopéia, faz, na realidade, outra coisa, já que, no ponto em que o poeta invocava a Musa, de que não era mais que porta-voz, ele instala a historie, a investigação, 12 e, no fim dos nove livros, substituiu a memória 279.
épica por um novo memorial para a cidade. Sem dúvida, o catálogo do exército persa, no livro VII, "parece-se" com o das naus, no canto II da Ilíada, mas um é ditado pelas Musas, enquanto o outro se apresenta como simples transcrição de um cálculo. 1 3 Substituamos, pois (pelo menos provisoriamente), a questão do autor e do público pela do narrador e do destinatário, troquemos a questão da função da obra pela de seus efeitos e examinemos a fundo a intratextualidade. Como exemplo de levar o texto a sério, mas sem o menor culto, bem ao contrário, encontramos o trabalho de J.-P. Faye, que tenta compreender o ponto em que as estruturas narrativas — fictícias ou não — geram um processo e, por suas transformações, têm um efeito sobre um outro terreno: o da ação e de seus "interesses reais". 1,1 Mas, bem entendido, as transformações c o m b i n a d a s do discurso não são a ação. Não é a c o m b i n a ç ã o da narração de Saint-Just com a de Tallien, nem a série inteira dos discursos sucessivos, que detêm Robespierre, mas a mão dos guardas. [...] Mas um campo de linguagem constitui-se, o qual desemboca na aceitabilidade das decisões. O que se trata de explorar é a constituição desses campos, através daquilo que os clareia e os explora imediatamente: a função narrativa do d i s c u r s o i '
Sirva de exemplo o discurso proferido por Barnave, em 15 de julho de 1791, para defender o rei, após sua fuga, bem como a monarquia constitucional. Ele é antes de tudo uma narrativa da história em curso, após a noite de 4 de agosto, que esclarece também que "não são as idéias metafísicas que arrastam as massas no curso das revoluções, mas sim os interesses reais". Portanto, trata-se de um modo de reiterar que o nível narrativo e ideológico (entendido como enunciado de idéias) não é o da ação — um modo de sublinhar também que seu próprio discurso não é mais que a superfície ou a aparência do que é produzido num nível mais profundo ou mais "real". Mas, ao mesmo tempo, o discurso é o que envolve o real, contendo-o, já que o descobre e enuncia. Mais ainda, o discurso produz um efeito no próprio plano que acaba de desvendar: revelando à Assembléia Nacional os "interesses reais" de sua maioria, leva-a s i m p l e s m e n t e a votar o projeto de decreto preparado pelo relatório dos comitês. 279.
A p r o m u l g a ç ã o da Constituição, a e l e i ç ã o da a s s e m b l é i a legislativa, um ano de história efetiva e os efeitos que se seguirão, eis o que produz aqui a narração. 1 6
Apesar do esquematismo dessa análise do processo narrativo (acentuado por minha própria apresentação), é claro que Faye aponta algo importante. Não é menos claro que, para quem propõe a questão da Wirkung de uma narrativa, os discursos revolucionários fornecem um admirável terreno para experimentações. Mas a Revolução não é um espaço muito particular, em que poder e discurso remetem muito diretamente um ao outro, quando o poder do discurso transmuda em discurso do poder? Com efeito, a Revolução é o momento em que o poder está nas mãos daqueles que falam em nome do povo. O que, ao mesmo tempo, quer dizer que ele está no discurso, já que o discurso, público por natureza, é o instrumento que desvela o que desejaria p e r m a n e c e r e s c o n d i d o , portanto, nefasto; quer dizer também que o poder constitui um risco c o n s t a n t e entre os discursos, os únicos qualificados para apropriar-se dele, mas rivais na conquista desse lugar evanescente e primordial que é a vontade do povo. A Revolução substitui a luta dos interesses pelo poder por uma competição de discursos visando à apropriação da legitimidade. 17
Ora, Barnave, se produz efetivamente, por sua narração, um "ano de história efetiva", encontra-se também profundamente engajado nessa "competição dos discursos": produção e engajamento então são pares. Parece-me, pois, que o resultado das análises que levam em conta, antes de tudo, os discursos revolucionários (e não o discurso dos historiadores da Revolução, não confrontando, ao menos, os dois) não pode ser diretamente generalizado. 18 Retornemos às Histórias. Que efeitos elas produzem? Efeitos em quem e em quê? Elas atuam, antes de tudo, no destinatário: é para ele que o efeito é calculado pelo narrador ou, globalmente, é nele que o texto deve fazer efeito. Efeito em quê? Não no terreno da ação: Heródoto não faz fazer diretamente nada: ele não leva nem à guerra, nem à paz, nem à extensão da democracia... Acabamos de ver a que ponto as saídas apressadas do texto podem ser falsas, decorrendo, de fato, de uma entrada falsa no texto, pela obsessão de não se 279.
abandonar ou de reencontrar-se bem depressa o real ou a terra firme. Os efeitos que a obra produz, eu diria, atuam no imaginário, entendido como faculdade de representação. 19 Que efeitos? Entenda-se bem: o texto é transmissor de conhecimentos, fornecendo explicitamente informações novas. Mas prender-se apenas a esse efeito de conhecimento conduz a não levar-se em conta a organização do texto como narrativa, a deixar de considerá-lo como narrativa, para não reter senão um conteúdo discursivo (que o comentador recorta arbitrariamente, em função de critérios-implícitos, como o verossímil, o racional, a superstição...). Mas o efeito que eu viso é o que se produz no nível da estrutura da narrativa, ou melhor, daquilo que estrutura a narrativa: o que permite ao narrador construí-la, bem como, ao destinatário, "lê-la", calcular o sentido dos enunciados ou, ainda, os códigos implícitos que o organizam? Por exemplo, o lógos cita: o que o estrutura e, por assim dizer, o gera é a questão do nomadismo — o que é o nômade para alguém que vive na cidade? Ou, ainda por exemplo, a chave de leitura do sacrifício cita (que, de sacrifício, parece ter só o nome) é dada pelo sacrifício cívico do boi. 20 Seguramente, a palavra cita não é um significante novo, forjado por Heródoto. Pelo contrário, ela traz consigo, como numa rede, todo um saber compartilhado, para o qual, justamente, cita significa tanto povo do norte, quanto também nómade, apresentando-se juntos os dois sentidos, sem que se possa precisar qual seria o primeiro e qual o segundo. Para esse saber, o cita simboliza portanto o nômade. 2 1 Também o narrador, tão logo profere esse vocábulo, introduz de fato a questão do nomadismo em sua narrativa. Mas ele não se contentará de introduzi-la e de deixá-la inerte, trabalhando até fazer do sentido simbólico da palavra o código de seu lógos. Se, com efeito, para o saber compartilhado do século V, o cita representa o nômade, é claro que o lógos cita não dirá outra coisa, esforçando-se contudo em explicitar, em desdobrar no espaço esta equivalência simbólica: cita = nômade. Recordemo-nos: num primeiro tempo, o do inventário etnográfico, os citas são mais que nômades; num segundo tempo, o da guerra de Dario, eles não são senão nômades; e, finalmente, não podem ser senão nômades (pressão do sentido simbólico da palavra, mas também explicação da 279.
equivalência: o nomadismo, antes de ser um modo de vida, é uma estratégia). Esse é o efeito que produz o lógos cita no imaginário do destinatário. Efeito que se pode chamar de simbólico, para distingui-lo de um simples efeito de conhecimento, para marcar que ele não tem necessidade de ser formulado explicitamente e para sublinhar que é estruturante, pois faz ver os citas. Mas o que acontece com as Histórias em seu conjunto? É possível descobrir um efeito global ou uma série de efeitos que atravessem o conjunto da obra? Comecemos fazendo um desvio e procedendo a uma mudança de registro, através da metáfora do aquarelista. Tomemos um aquarelista num campo. Ele está trabalhando. No primeiro plano, sua mesa, e, fixa nela, uma moldura reticulada, através da qual ele olha o que está desenhando. E^se aparelho é descrito assim num tratado de perspectiva: "Certos artistas servem-se de uma moldura que contém uma aneliça de fios eqüidistantes, com a qual enquadram a natureza. |_] É a Albert Dürer que se deve esse modo de trabalhar. Pode-se substituir a treliça por um vidro no qual se traçam .irados." 22 Na aquarela acabada, a grade é invisível e o espectador não a vê. Entretanto, é através dela que o pintor e é ela que, implicitamente, faz o espectador ver o que o viu; ou: ela o faz crer que vê, sendo o que estrutura isão — e ele percebe isso tanto menos, quanto é muito ível que foi assim que aprendeu a ver. Há um meio de a prova, o qual consiste em fazer aparecer ou reaparecer de no próprio quadro. Independentemente de qualquer questão de perspectiva, acontece o mesmo com as Histórias? Com a diferença de grade e quadro se confundem. Mas, do mesmo modo a moldura do aquarelista reticula seu desenho, assim existem uma ou muitas "grades" nas Histórias. E er.:ende-se de duas maneiras: antes de tudo, a grade estrutura a narrativa chamada Histórias (as quais se então, na posição de um quadro, tratando-se, a de quadro, de tentar fazer aparecer a grade que é sua r rr;_ida, as próprias Histórias como grade, isto é, ^através do qual" o narrador vê e faz o destinatário § M d o , os outros, o passado da Grécia etc. — mas
também, pergunta que não se pode deixar de fazer, não funcionaram elas como grade, se posso assim dizer, além de si mesmas, ou, para voltar ao aquarelista, não há "aquarelistas" que, no transcorrer do tempo, tomaram as Histórias como "treliça" para ver o que desejavam desenhar? A metáfora do aquarelista encontra evidentemente seu limite no fato de que a grade é formada não de linhas ou de fios, mas de linguagem. E já que, como diria Montaigne, não existe dicionário pessoal, "completamente de si", a grade é moldada com o saber compartilhado. Com efeito, maneja e trabalha o saber compartilhado que, ao mesmo tempo, a torna possível: ela o corrige, o completa, e, sendo necessário, contribui para transformá-lo. Assim, o lógos cita, pelo código que o organiza, é uma retomada e uma elucidação do sentido simbólico da palavra cita no saber compartilhado pelos gregos do século V. Levanta-se, a partir daí, a questão do retorno: não mais do saber compartilhado para a obra, mas o caminho inverso, da obra ao saber compartilhado. De fato, nada impede que o código que organiza o lógos dos citas de Heródoto possa, de volta, enriquecer o saber compartilhado (citas nómades, via estratégia): trata-se da passagem da constituição (simbólica) da obra à obra como instituição (simbólica), isto é, como grade através da qual se vê, sem mesmo perceber-se. A questão levantada é bem a da "saída" do texto, mas de uma saída que se efetue pela linguagem, na linguagem, agindo no plano do imaginário. Se não se trata aqui de raciocinar em termos de influência ou de fazer história das idéias (a qual se encontra como que sobre "um colchão de ar" 23 ), defendendo que é assim que o mundo caminha, não se trata também de utilizar as palavras imaginário ou grade como miraculosas, como se seu simples uso fosse suficiente para resolver, isto é, ocultar o problema. Esforço-me simplesmente para cercar o que se pode entender, a propósito das Histórias, por efeito de uma narrativa, sendo, pois, muito deliberadamente que permaneço no nível do texto. Que os processos sejam mais complexos, estou de acordo e me contentarei em indicar isso, retornando, ainda uma vez, aos citas. O lógos cita enriquece o sentido simbólico da palavra cita, mas se notará que, para pensar a equivalência simbólica 279.
(citas = nômades), é necessária a referência às Guerras Médicas (os citas defendem a liberdade, e as Guerras Médicas funcionam como modelo de inteligibilidade da expedição de Dario à Cítia), bem como à estratégia pericleana (pelo menos através da metáfora da insularidade). Se, depois de Heródoto, os citas permanecem nômades, não é todavia seguro que, uma vez distanciado desse contexto (a um só tempo relativo aos acontecimentos, ao imaginário e ao simbólico), o "enriquecimento" herodotiano funcione no saber compartilhado. Considerando-se os citas de Éforo, ter-se-ia mesmo a tentação de chegar a uma conclusão negativa sobre isso. Com efeito, para este último, o importante não é pensar o nomadismo, mas ressaltar que, ao lado dos citas selvagens e antropófagos, existem outros, vegetarianos e justos, que ele aproxima dos sábios de Homero. 24 Assim, ele dá um sentido à observação de Homero e descobre uma continuidade entre os justos sábios e os virtuosos citas. Essa leitura poderia, provavelmente, ser repetida para cada um dos lógoi, mas o trabalho seria longo e correria o risco de ser enfadonho, bem como, quem sabe, de proveito limitado. Ora, parece-me que, no próprio lógos cita, aparece um elemento que vale para o conjunto das Histórias. A questão do nomadismo encontra uma outra: a do poder e da impossibilidade de pensar-se um poder nômade. Com efeito, o texto afirma, ao mesmo tempo, que o nomadismo (isto é, sua representação) exclui uma estrutura de poder, que o espaço é um espaço indiferenciado em que todos os pontos se equivalem e que os citas têm reis que se encontram no centro dos espaços social e geográfico. As representações do nomadismo e do poder real parecem excluir-se mas, apesar i s s o , a narrativa herodotiana os faz coabitar e elabora mesmo, entre as duas proposições, um compromisso que se exprime espacialmente: os reis encontram-se sim "no centro", mas somente depois de mortos e enterrados nos confins da Cítia.25 Por que, pois, a narrativa não pode fazer a economia dos reis? Porque os citas são "seres para a guerra", mas, fundamentalmente, porque são bárbaros. Essa é a hipótese que formulei, estando o bárbaro, com efeito, ligado à realeza. Ora, parece-me que a questão do poder, do poder bárbaro, portanto real, em face do mundo da cidade, atravessa o conjunto das Histórias 279.
e constitui uma peça importante de sua organização: assim como a grade do aquarelista recorta e organiza o espaço do quadro, a questão do poder estrutura (pelo menos parcialmente) o espaço das Histórias: há nelas um código do poder.
UMA REPRESENTAÇÃO DO PODER? Levantar a questão do poder não é uma forma de reintroduzir o debate interminável sobre as. posições de Heródoto? Ele, que teve a sorte de encontrar Atenas, era partidário da democracia? Talvez. Mas acontece de criticar esse regime. Seria então favorável à oligarquia? Não. Então, solução mediadora, defenderia uma democracia moderada? E, além disso: era verdadeiramente contrário à tirania? Sim, para alguns. Não, para outros. Etc. 26 Jean de Léry, no fim de sua viagem, "inventa" o selvagem que não sabe escrever, mas que faz escrever aquele que o descobriu e observou. Já Heródoto, "após ter percorrido, da mesma maneira, as cidades dos homens, grandes e pequenas", não traz de volta o selvagem, pois não há nele "lição de escrita". Se inventa alguém, é o bárbaro, que sabe, de qualquer modo, utilizar a escrita como forma de poder. Mas o que quer dizer "inventar" o bárbaro, já que o bárbaro se encontra de fato presente desde as primeiras palavras do prólogo? Já que Heródoto quer impedir que "as grandes e maravilhosas façanhas realizadas tanto pelos bárbaros, quanto pelos gregos não cessem de ser contadas"? Há, pois, os gregos, de um lado, os bárbaros, de outro, e nenhuma necessidade de explicar isso. Encontramo-nos na esfera do bem conhecido. Isso faz parte do saber compartilhado e, como observará Tucídides, os dois termos formam um par: com efeito, em Homero não há bárbaros, mas não há também gregos e, conseqüentemente, a afirmação de uns como gregos está ligada à constituição dos outros como bárbaros. Sem gregos, nada de bárbaros — e, nesse sentido, Heródoto não é o "inventor" do bárbaro. É com as Guerras Médicas, pode-se pensar, que o par se constitui e passa a integrar o saber compartilhado, vindo bárbaro a significar particularmente o persa. Ou ainda, persa é o sentido simbólico de bárbaro: o bárbaro é o persa. 279.
Indiscutivelmente, essa equivalência simbólica tem um papel nas Histórias, mesmo se numerosos bárbaros não são persas. Contudo, a narrativa a desenvolve e enriquece, segundo um processo que se pode esquematizar assim: persa e bárbaro equivalem-se simbolicamente; ora, os persas obedecem a um rei, sendo súditos daquele que se chama, em grego, o Grande Rei; portanto, os bárbaros conhecem o poder real ou, mais precisamente, há uma ligação entre barbárie e realeza, já que, entre os bárbaros, o modo normal de exercício do poder tende a ser a realeza; também, de modo recíproco, a realeza tende a ter alguma coisa de bárbaro e todo rei bárbaro, talvez mesmo todo rei, tende a assemelhar-se um pouco ao Grande Rei, isto é, àquele que é também ho bárbaros— ou o bárbaro por excelência. Que os bárbaros são reais ou, pelo menos, a maior parte deles, verifica-se nas Histórias. Os citas, viu-se, não escapam à realeza, a despeito das dificuldades em articular-se poder real e nomadismo. Com efeito, exerce-se como que uma injunção da realeza no mundo bárbaro, que transparece no julgamento relativo aos egípcios: "Libertados após o reinado do sacerdote de Efesto, os egípcios — por serem incapazes de viver, o menor tempo que fosse, sem rei — instituíram dozes reis..." 2 7 Assim acontece também com relação aos povos da Ásia que, lutando contra a dominação dos assírios, sacudiram a "servidão" ( d o u l o s y n e ) e "se tornaram livres"; todos, durante um tempo, foram "autônomos", mas muito rapidamente escolheram um novo tirano, na pessoa de Deioces, que desejava profundamente isso. 28 Nessa situação, os povos da Ásia mostram-se incapazes não de reivindicar a liberdade, mas de viver com ela. Além disso, todo poder bárbaro, sem maiores precisões sobre sua natureza e sobre a forma como é exercido, a partir do simples fato de que é poder, tende a manifestar-se como realeza. Assim, quando da assembléia dos povos do norte, no momento da invasão da Cítia por Dario, vê-se aparecerem os reis dos tauros, dos agatirsos, dos neuros, dos melanclenos, dos gelonos, dos budinos, dos sauromatas e mesmo dos andrófagos, povos dos quais é todavia dito, um pouco mais à frente, que não observam a justiça e não têm nenhuma lei.29 Tudo se passa como se uma assembléia, no mundo bárbaro, não pudesse reunir senão reis. 279.
Que os reis sejam bárbaros, isto é, que tenham algo a ver com o Grande Rei, trata-se de uma afirmativa que, para verificar-se, necessita antes que se pergunte pela natureza de seu poder. Mas, para conduzir a contento a questão, não se pode deixar de introduzir uma outra personagem, o tirano. Ele se encontra bem presente nas Histórias, e eu creio que o Grande Rei e o tirano formam um par. Com efeito, eies se espelham um no outro: o tirano é o espelho do Grande Rei. como o rei é o espelho do-tirano. A imagem do poder tirânico molda-se, pois, com relação ao poder real, e a imagem do poder real constitui-se com relação ao poder tirânico. Do cruzamento dessas duas imagens, constrói-se a representação do poder despótico. A essa imagem do espelho duplo onde se olham, respectivamente, o rei e o tirano, alguém poderia objetar, com base no famosíssimo debate persa:30 o senhor pretende que o bárbaro seja real e, todavia, Heródoto põe em cena persas que, sem dúvida, claramente, visam para seu país um regime de outro tipo; o senhor insinua que realeza e tirania remetem uma à outra e, todavia, o regime monárquico preconizado por Dario destaca sua originalidade e sublinha sua excelência. Após terem assassinado o usurpador, os conjurados se reúnem e debatem sobre o regime a implantar: Otanes é partidário da isonomia; Megabizo deseja uma oligarquia: e Dario (poderia ser de outro modo?) quer restabelecer a monarquia. Entre essas propostas, o texto sublinha que a de Otanes parece incrível para um certo número de gregos. Dito de outro modo, não podem eles crer que um bárbaro possa pensar em termos de poder popular. Ora, Heródoto insiste na veracidade dessas propostas (elas foram efetivamente defendidas), dando como prova a conduta de Mardônio, após a revolta na Jônia. Uma vez restabelecida a dominação persa, depôs ele os tiranos, para restabelecer regimes democráticos.3'Mas o que é que isso prova? Que um persa pode efetivamente conceber o que é a democracia, já que pode ser o promotor dela; mas, no caso, instaurá-la é também uma forma de desembaraçar-se de tiranos cuja revolta recente mostrou que não eram de confiança; ainda mais, sobretudo, embora a democracia seja concebível e mesmo aplicável, é concebível para cidades gregas e aplicável somente a elas. Assim, ess_ 279.
prova, exibida por Heródoto, é nada mais que uma prova de que Otanes "fala grego". Para ele, com efeito, não há monarquia que não seja tirânica: quem diz monarquia diz necessariamente tirania, e o retrato que ele traça do monarca não é outro senão o do tirano. 32 O próprio tirano define-se como o inverso do regime isonômico: não presta contas, condena à morte sem julgamento, não respeita os costumes dos ancestrais, viola as mulheres, cerca-se das piores pessoas e desembaraça-se das melhores etc. Tem-se aí o primeiro retrato do tirano, como o retomará a tradição, até Aristóteles. Para Megabizo, que toma a palavra em seguida, isso de fato acontece (monarquia = tirania), o que o leva a resumir toda essa parte da intervenção de Otanes nestes termos: "O que Otanes diz, aconselhando a abolir a tirania, considerai dito também por mim." 33 Na proposta de Otanes, Megabizo, portanto, entendeu que estava em causa a tirania. Como o primeiro, também ele julga que a mola desse regime é a hybris. Todos os dois "falam grego", falam completamente "do interior" da cidade: suas posições não têm sentido, com efeito, senão em relação com o modelo político da cidade. Em seguida, Dario toma a palavra e, bistoire oblige, tem a palavra final, pois todos sabem muito bem que foi ele que subiu ao trono. Para Dario, o que disse Megabizo sobre o "poder da multidão" parece bem dito, mas não o que concerne à oligarquia; quanto às palavras de Otanes sobre a monarquia-tirania, ele simplesmente não as entendeu. Se Otanes e Megabizo "falam grego", Dario fala, ao mesmo tempo, grego e persa. "Fala grego" quando explica que oligarquia e poder do povo engendram, em seu seio, uma luta pelo poder (stásis) que, cedo ou tarde, desemboca numa monarquia (vale a pena, portanto, economizar essas etapas); mas essa inevitável degenerescência, um grego poderia também chamar de instauração de uma tirania: um grego sim, mas não Dario. Para ele, monarquia significa poder de um só e é o melhor regime precisamente porque é o poder de um só (compreende-se, pois, que lhe seja impossível entender as declarações de Otanes). Pouco lhe importa como ela é instaurada e quem a instaura. Mas ele "fala persa" também na maneira como se refere a um passado que é o dos persas e a seus costumes. 279.
Enquanto, para Otanes, a monarquia é o que se opõe aos costumes dos ancestrais, ela é, para Dario, o que se conforma com eles: a contradição entre os dois argumentos desaparece, desde que se reconheça que se trata de dois mundos diferentes. Em suma, Dario não refuta a tese de Otanes (monarquia = tirania), demonstrando que a monarquia difere da tirania. Toda sua intervenção mostra como a questão, para ele, simplesmente não se levanta: a monarquia é o melhor regime porque é a monarquia — ponto final.34 O debate persa não destrói, pois, a hipótese do espelho duplo entre o rei e o tirano. Objetar-se-á então que isso é forçar o texto de Heródoto e que, além do mais, não existe, nesse momento, uma teoria da tirania. Assim, para K.H. Waters, Heródoto não manifesta uma recusa do tirano, nem alguma antipatia ideológica por essa instituição; nem busca ele usar a ascensão e queda [...] de tiranos como ilustração para nenhum esquema moral, nem mesmo para nenhum controle divino dos negócios humanos; eles, como todos os outros homens, têm seus êxitos e seus f r a c a s s o s , suas alegrias e suas misérias; trata-se, s i m p l e s m e n t e , da inexorável marcha dos eventos, a qual se manifesta em suas histórias. 35
E assim aconteceria também com relação aos Grandes Reis. Na base da posição de Waters está esta convicção simples: Heródoto é o pai da história, o que significa que se interessa, antes de tudo, pelos acontecimentos, não reconhecendo sua narrativa outra lei que a dos fatos. O real é, pois, muito diversificado para deixar-se inscrever numa teoria. Quanto à questão de uma representação do poder, simplesmente ela não se põe. A partir do momento em que se adota um pressuposto tão simplista, as conseqüências não o são menos. Sobre a tirania, as Histórias fazem declarações de fato explícitas. Após haver expulsado os Pisistrátidas de Atenas, os lacedemônios querem pô-los de novo sobre o trono. Por quê? De forma alguma, por um súbito amor pela tirania, mas porque compreendem que, sem um tirano, os atenienses correm o risco de se tornarem tão poderosos quanto eles (isóroppoi), ameaçando assim sua preeminência no continente. Também reúnem eles seus aliados, para propor-lhes uma 279.
expedição, visando a restabelecer o poder de Hípias. Toma então a palavra o coríntio Sósicles, que fala como especialista na questão: em Corinto, eles sabem o que é a tirania, pois tiveram os Cipsélidas e o famosíssimo Periandro. Mas, antes de simplesmente contar a história dos Cipsélidas, o orador faz um curto preâmbulo, em que explica que o tirano constitui a desordem do universo, e a tirania não mais que confusão. Instaurar uma tirania é, literalmente... deixar o kósmos sem pé nem cabeça: Na verdade, o céu irá meter-se debaixo da terra e a terra planar sobre o céu, os homens farão sua morada no mar e os peixes o n d e moram os homens, já que vós, arruinando os regimes igualitários ( i s o k r a t í a s ) , vos preparais para restabelecer, nas cidades, regimes tirânicos, o que há no mundo de mais injusto e de mais sangüinário. 3 6
Alguém poderia dizer: muito bem, mas é Sósicles, o coríntio, que fala, e não Heródoto. Sem dúvida. Todavia, Sósicles, contentando-se em relatar a tirania dos Cipsélidas, persuade os aliados. O efeito de seu discurso é que a expedição, afinal, não tem lugar.37 Dito de outro modo, no nível de sua narrativa, o narrador reconhece a força da intervenção de Sósicles (tanto que ela persuade os aliados); retomada na narrativa de Heródoto, essa intervenção não deve persuadir menos o destinatário das Histórias: ela vale, portanto, como argumento na estratégia do fazer-crer desenvolvido pelo narrador. Os lacedemônios julgam que o desaparecimento da tirania e o aumento do poderio de Atenas caminham juntos. Também com relação a isso, poder-se-ia objetar que se trata da opinião dos lacedemônios e não do narrador. Contudo, isso não seria correto, já que ele mesmo dá, sob a forma de lei, a explicação desse fenômeno: . Não é só num c a s o isolado, mas de uma maneira geral, que se manifesta a e x c e l ê n c i a da igualdade de palavra ( i s e g o r í e ) ; governados por tiranos, os atenienses não eram superiores na guerra a nenhum dos povos que habitavam em torno deles; libertados dos tiranos, passaram ao primeiríssimo lugar. Isso prova que, na servidão, agiam voluntariamente c o m o frouxos, p e n s a n d o que trabalhariam para um senhor ( d e s p ó t e s ) ; pelo 279.
contrário, uma vez libertados, cada um encontrou seu próprio interesse em cumprir zelosamente suas obrigações. 3 8
O tirano é, pois, o despótes para quem se faria muito mal em trabalhar. Em suma, um fator de desordem no kósmos. Retorno agora à hipótese do duplo espelho. No nível da narrativa, pode-se observar como o Grande Rei desempenha o papel de garantia, sustentação, defesa e refúgio tanto de tiranos, quanto de ex-tiranos que, por uma ou outra razão, perderam seu posto. Histieu, o tirano de Mileto, exprime cruamente essa situação, no momento em que Dario está na Cítia. Com efeito, os citas incitam os jônios a destruir a ponte sobre o Istro, à qual devem montar guarda, mas Histieu ressalta, para seus colegas, que cortar a ponte é serrar o galho em que se encontram assentados: se Dario desaparece, desaparece também a tirania deles.39- Polícrates, tirano de Samos, entende-se com Cambises: oferece-lhe uma frota para ajudá-lo a invadir o Egito, mas escolhe, para encher os barcos, os cidadãos dos quais quer livrar-se, recomendando ao rei que não os enviasse de volta. 40 Quando Hípias, o filho de Pisístrato, é expulso de Atenas, encontra muito naturalmente refúgio na Ásia, de onde faz tudo o que pode para que Atenas "lhe seja submetida e seja submetida a Dario" (além disso, é ele que, um pouco mais tarde, guiará os bárbaros em Maratona). 4 1 Heródoto menciona ainda os Pisistrátidas, instalados na corte, em Susa, que incitam Dario a invadir a Grécia, seguindo depois junto com o exército. 42 Mas o rei não acolhe somente tiranos ou ex-tiranos. Recebe também ex-reis: quando Demarato, rei de Esparta, é destronado, foge e, de etapa em etapa, termina finalmente em Susa; sua fuga termina quando chega junto de Dario, que "o recebe magnificamente e lhe outorga um território e cidades"; somente aí encontra ele segurança, sendo ainda reconhecido como o que não era mais na Grécia, como rei,43 o que implica, também: como vassalo do Grande Rei.44 O PODER DESPÓTICO Como observa Otanes, a monarquia-tirania tem como fruto a hybris, sendo a personagem do tirano nada mais que inveja, que se nutre a si mesma sem jamais saciar-se. Além do mais, 279.
o despótes é a presa do desejo (éros): desejo sexual e desejo do poder, amor ilegítimo e amor do poder. No conjunto das Histórias, o termo éros aplica-se apenas aos reis e aos tiranos: apenas eles experimentam esse desejo excessivo. 45 A tirania, como declara uma personagem, tem deveras muitos apaixonados (erastaO-46 Deioces, aquele que irá lançar os medas na escravidão, "deseja" tornar-se tirano. 47 Diz-se que Pausânias, o regente de Esparta, busca desposar a filha de um primo de Dario, pois tem o desejo de tornar-se tirano da Grécia. 48 Para os reis, como o éros não pode ser desejo do poder, é desejo do que é proibido: Cambises deseja sua irmã; Micerino, o faraó, teria desejado sua própria filha; Xerxes desejaria a mulher de seu filho. 49 Ariston, rei de Esparta, deseja uma mulher que, se não lhe é absolutamente proibida, é todavia a esposa de seu melhor amigo; além disso, ele já tem duas mulheres: esta será portanto a terceira e, para obtê-la, ele usa um estratagema. 50 Por sua vez, Candaulo, rei da Lídia, deseja sua própria mulher: portanto, não há aparentemente nada de ilegítimo desta vez, a não ser o fato de que, como o texto sublinha, seu amor é "excessivo", não podendo sobrevir-lhe senão infelicidade, 51 já que, com efeito, para um grego, não é essa espécie de desejo que deve presidir as relações entre os esposos. Se o poder despótico tem como fruto a hybrís e experimenta o éros, pode-se ajuntar ainda que a transgressão e a repetição são sua lei, que ele é exercido em segredo, que se manifesta pelo estigma e pela mutilação, que o fracasso é seu destino. Aqueles que transgridem, no sentido literal da palavra, repetindo a transgressão de geração em geração, em primeiro lugar e antes de tudo, são os Grandes Reis. Transgredir quer dizer sair, pela bybris, de seu espaço, para entrar num espaço estrangeiro, sendo a marca dessa saída a construção de uma ponte sobre um rio ou, pior ainda, sobre um braço de mar. Ciro, o fundador da dinastia, vai muito longe: lança uma ponte sobre o Araxes, para atacar os massagetas, ao norte, morrendo por isso. 52 Dario atravessa tanto o Bósforo, quanto o Istro: passa à Europa e ataca os nômades, sendo vencido. 53 Xerxes é obrigado a fazer isso duas vezes, para ligar as duas margens do Helesponto: tão logo construída, a primeira ponte é, com efeito, destruída pela tempestade. 54 Essa transgressão espacial 279.
é também transgressão de um espaço divino e agressão aos deuses. Agressão, pois, como diz Temístocles aos atenienses, "a inveja dos deuses e dos heróis não quis que um só homem reinasse sobre a Ásia e a Europa, um homem ímpio e criminoso". 55 Ela é agressão, também, por apontar algumas vezes uma ligação entre o mundo divino e o espaço político: assim, o incêndio, pelos atenienses, do templo da deusa "do país" (epikhórios), Cibebe (Cibele), em Sardes, será invocado, pelos persas, quando queimarão os santuários gregos na Grécia. 56 Do mesmo modo, no momento de ultrapassar a ponte, Xerxes convida os persas a suplicar aos deuses que receberam em partilha a terra da Pérsia ( P e r s í d a gên lelónkhasi):57 à parte, ao lote, à moira territorial, corresponderia portanto uma moira divina. O despótes não pode impedir-se de violar os nómoi, as regras sociais, religiosas e sexuais. Candaulo, por exemplo, pedindo a Giges que visse sua mulher nua, ordena-lhe que faça uma ação que escapa da regra ( á n o m o s ) , 5 8 pois, entre os bárbaros, ninguém deve mostrar-se nu. Já Cambises é provavelmente o violador de nómoi por excelência: por ocasião de sua campanha no Egito, destaca-se por não respeitar nem os nómoi egípcios, nem os persas. 59 De fato, ele não ataca absolutamente os nómoi egípcios para impor os costumes persas, mas transtorna loucamente uns e outros... Figuram também nesta galeria os tiranos de outrora, como Pisístrato ou Periandro. Pisístrato desposa a filha do Alcmeônida Megacles, mas, como não queria ter filhos, tem com ela relações ou katà nómon, isto é, que não são conformes ao nómos do casamento, feito para procriar filhos legítimos. 60 Quanto a Periandro, não contente de matar sua mulher, tem relações sexuais com ela depois de morta.61 Periandro representa, para os tiranos arcaicos, o que Cambises representa para os reis: o excesso de transgressão. Enfim, o despótes exerce seu poder sobre os corpos, que marca a seu modo, antes de tudo pelo chicote. Com efeito, os reis chicoteiam: o exército persa marcha sob o chicote e eles julgam que não se pode fazer nada de bom sem ele. Xerxes, recorde-se, chega a ponto de mandar chicotear o Helesponto. 62 Cambises manda chicotear os sacerdotes de Ápis.63 Um único grego usa, uma única vez, o chicote: trata-se de Cleômenes, 334
rei de Esparta. 64 O chicote é a arma do senhor sobre o corpo do escravo, como indica muito claramente, na narrativa, a história dos escravos citas. Na ausência dos maridos, as mulheres citas deitam-se com seus escravos. Quando retornam, vinte e oito anos depois, os citas encontram uma geração de jovens que se opõem a eles. Começam então a combater os filhos dos escravos, decidindo depois trocar as armas pelo chicote. À vista disso, os jovens cessam logo o combate e fogem. 65 O chicote, signo do senhorio, forçou-os, pois, a se reconhecerem como escravos, para os quais, daí em diante, a única arma é a fuga. O rei também corta, mutila, marca os corpos de seus súditos. No momento dos funerais do rei, a longa caravana de citas mutila-se, servindo os ultrajes que se infligem como inscrição que garante o pertencimento de cada um ao grupo, assinalando-os-como citas e como súditos. 66 Feretima, mulher de Bato, para vingar o assassinato de seu filho Arcesilau, pelos habitantes de Barca, na Cirenaica, conquista a cidade com um exército persa, manda empalar os homens em torno das muralhas e corta os seios das mulheres, com os quais guarnece também a volta dos muros. 67 Já Periandro avança sobre o corpo dos futuros cidadãos: com efeito, envia a Sardes trezentos jovens, tomados dentre as primeiras famílias de Corinto, para aí serem feitos eunucos; por esse poder exorbitante que se arroga sobre a reprodução, é o próprio corpo cívico que pretende controlar. 68 Quanto ao Grande Rei, corta o nariz, as orelhas, a cabeça 69 — um modo de exercício do poder reservado apenas ao soberano. Quando Zópiro, um dos principais persas, quer fazer os babilônios, assediados por Dario, acreditarem que ele é um trânsfuga, corta o nariz, as orelhas, raspa os cabelos e flagela o próprio corpo. Vendo-o, Dario fica indignado e pergunta quem teve a audácia de mutilar um homem da sua posição. Zópiro responde: "Não há homem, senão tu, que tenha tanto poder para pôr-me neste estado." 70 Recorde-se o tratamento infligido por Xerxes ao cadáver de Leônidas e a resposta de Pausânias ao egineta que lhe sugere fazer o mesmo com o cadáver de Mardônio: tal conduta convém aos bárbaros, não aos gregos. 71 Enfim, o rei marca seus súditos como o senhor marca seus escravos ou como a cidade impõe suas armas sobre os corpos dos escravos públicos: quando os tebanos se rendem aos persas, 335
são marcados com o estigma real. 72 Diz-se que Xerxes, não contente de ter mandado bater no Helesponto, mandou marcá-lo com ferro. A marca corporal, sempre ignominiosa, é sinal de escravidão.73 O poder despótico manifesta-se, em suma, como o poder do senhor sobre o escravo. Devemos então considerar a representação da relação senhor/escravo como o modelo do poder despótico, o que permite pensá-lo? Ou devemos contentarmo-nos em dizer que as duas representações remetem uma à outra: o poder do senhor de escravos funciona como símbolo do poder despótico, do mesmo modo que o poder despótico é símbolo do poder do senhor de escravos? Considerando-se o vocabulário, o termo despótes, nas Histórias, aplica-se igualmente ao senhor de escravos, ao tirano, ao rei, aos deuses e também, uma única vez, à lei.74 Para Xerxes, com efeito, os gregos, não estando submetidos ao chicote, não têm chance alguma de serem valentes, ao contrário dos persas que, sob os golpes de chicote, são obrigados a mostrarem-se mais valentes do que são. O que falta a esses homens, que não são povos do chicote, é um despótes. A isso, Demarato responde: de modo algum, eles têm um despótes, mas esse senhor é o nómos, a lei. Entende com isso precisamente o nómos guerreiro: o espartano não deve fugir do campo de batalha, mas manter-se em seu lugar na fileira (ménein). 7 5 Assim, no lugar do rei, põe-se o nómos — ou, no lugar de um poder despótico, põe-se outro? De modo algum, pois instaurar o nómos é expulsar o tirano. A lei não mutila, sendo mesmo a negação da transgressão, aquilo que substitui a hybris pela medida. 76 Rei/súdito, senhor/escravo — os dois pares, do ponto de vista do poder, podem ser sobrepostos: o rei é como um senhor de escravos e o senhor é como um rei. A essa primeira maneira de conceber o despótes, ajunta-se por acaso uma outra? Os destinos dessas personagens já não foram aproximados dos destinos dos heróis trágicos? Já não se falou dessas pequenas tragédias, incluídas na grande narrativa das Histórias?77 Creso, Candaulo, Polícrates de Samos, também Cleômenes de Esparta e Ciro, Cambises, Xerxes... não são todos eles heróis trágicos? 336
Foi já ressaltado, globalmente, o papel desempenhado pela tragédia no nascimento da história. Com A Tomada de Mileto e As Fenícias de Frínico, bem como com Os Persas de Ésquilo (472 a.C.), as Guerras Médicas tornaram-se um assunto possível para a tragédia: A derrota da Pérsia poderia ser equiparada com o destino dos Sete que marcharam contra T e b a s ou c o m as vicissitudes da casa de Atreu. Os gregos tinham realizado a proeza de que um acontecimento de seu próprio tempo fosse tão apropriado c o m o tema literário, quanto os eventos do passado distante. 78
A tragédia não se encontra na origem da história, mas simplesmente tragédias desse tipo criam um campo de aceitação, no qual se torna possível, para qualquer um, contar para seus contemporâneos as guerras entre gregos e bárbaros. E os principais atores do drama podem portanto ser heróis trágicos. Mas a tragédia é uma invenção da cidade por si mesma — e mesmo a invenção de uma cidade, Atenas, num momento preciso, o fim do século VI e começo do V. Ora, nas Histórias, o trágico é exterior à cidade, e os heróis trágicos são justamente déspotas, enquanto a cidade "funciona como uma máquina antitrágica".79 Tem-se, então, o seguinte paradoxo: é no mundo em que a tragédia existe efetivamente que ela não acontece, enquanto ela se encontra presente no mundo onde não existe. Ligada à cidade, ela não funciona, todavia, no espaço das Histórias, senão no mundo sem pólis, pondo em cena heróis que ignoram ou recusam seus valores. Mas o paradoxo é apenas aparente: a personagem trágica, com efeito, é um ser às voltas com a bybris,w de tal modo que a tragédia não pode desenrolar-se senão num mundo em que há lugar para a bybris. Ora, a cidade exige precisamente que se negue e se recuse a bybris, em proveito da medida, enquanto o poder despótico é o próprio lugar da bybris que, como mostra Otanes, vem a ser sua mola. Já que são movidos pela bybris, os representantes do poder despótico não podem ter outro comportamento além do trágico e, para eles, como para o Xerxes dos Persas, a d e s m e d i d a , a m a d u r e c e n d o , p r o d u z o fruto do erro e termina trazendo uma colheita de lágrimas. 81
funesto
337
De fato, os déspotas são pessoas que, conforme a fórmula de Heródoto, "devem acabar mal".82 Miltíades é um deles: com efeito, é preciso que acabe mal — embora seja ateniense e mesmo o estrategista da Batalha de Maratona; mas ele é também o tirano de Queronésia, resolvendo fazer uma expedição contra Paros, em seu próprio nome e por sua própria conta. 83 Ele passa, pois, do mundo "antritrágico" da cidade, ao mundo do despotismo e da hybris-, indo de um ao outro, finalmente morre, após ter cometido uma transgressão maior — penetrar no recinto de Deméter Tesmofória, que é um lugar interditado aos homens. Saltando o muro do santuário, desloca a coxa, e a gangrena toma-o pouco a pouco, até a morte, exatamente como ancontece com Cambises. 84 Nas Histórias, os esquemas trágicos servem, pois, como modelo de inteligibilidade do poder despótico, permitindo inscrevê-lo na narrativa, dar conta de seu funcionamento, explicar seu fracasso. Trata-se de um meio de que o narrador lança mão, para fazer o destinatário crer que tem acesso a esse mundo outro, distanciado no espaço ou no tempo. Mas as Histórias não são nem uma tragédia, nem uma montagem de tragédias. Com efeito, para que verdadeiramente haja tragédia, é preciso que se encontrem presentes tanto o mundo dos heróis, quanto o mundo da cidade, sendo o choque entre os dois que produz a situação trágica. 85 Ora, as Histórias separam o mundo da cidade do mundo dos heróis, ou, sobretudo, dos que se encontram no lugar destes, a saber: os déspotas. Nesse sentido, os heróis das Histórias são trágicos, se quisermos, na medida em que são movidos pela hybris inerente a seu poder, aparecendo alternadamente na cena, sempre que convocados pelo narrador. Entretanto, poderiam ser chamados, com mais propriedade, de heróis herodotianos. E, sobretudo, em vez de dizer que o universo despótico é trágico, é melhor escrever que se trata de um domínio em que há algo de trágico. O poder despótico tem como lei a transgressão. Mas duas personagens vivem no próprio excesso da transgressão e levam sua repetição até seu último termo: a loucura e a morte. Esses dois colegas de loucura são Cambises, o Grande Rei, e Cleômenes, o rei de Esparta. Um e outro são loucos: loucos 338
de nascença, para uns; ou ficando loucos mais tarde, para outros. 86 Ambos transgridem as leis sagradas: Cleômenes suborna a Pítia, corta as árvores de Elêusis, incendeia o santuário do herói Argos, quer sacrificar ele próprio a Hera, ainda que estrangeiro, manda chicotear um sacerdote... 87 Já Cambises vai ainda mais longe na transgressão, pois torna ridículos ( k a t a g e l â n ) os nómoi egípcios, e todo seu comportamento é contrário tanto aos costumes persas, quanto aos egípcios. Ele manda chicotear e queimar um cadáver, mata o touro de Ápis, ri das imagens nos templos e manda queimá-las.88 Em sua loucura, não sabe nem mais quem é: não é egípcio, nem é mais persa. Transgressão sexual também: o primeiro é acusado de freqüentar ( p h o i t â n ) a mulher de seu hóspede; 89 enquanto o segundo, Cambises, acumula à vontade todas as perversões: desposa a própria irmã, depois a mata, estando ela grávida,-e desposa uma outra irmã mais jovem. 90 Os dois morrem em conseqüência de sua loucura. Cambises fere-se na coxa, no mesmo lugar onde havia ferido Ápis, mas, tão logo se sabe condenado, recobra o bom senso. A gangrena toma conta dele e o mata.91 O outro, não somente não sabe mais quem é (ele bate com o cetro na cara dos espartanos), mas também se trata como se fosse um outro: quando se encontra preso, corta-se com uma faca. 92 Assim, o poder despótico, para pensar-se, remete às relações entre o senhor e o escravo, apelando para um modelo trágico. Mas seus heróis, os déspotas, são heróis herodotianos, no sentido em que Claude Lefort fala de herói maquiavélico, a propósito do César Borgia do Príncipe,93 Nessa galeria de déspotas, ao lado dos Grandes Reis, dos reis bárbaros e dos tiranos, figuram os reis espartanos, sendo que um deles, Cleômenes, ocupa uma posição importante, ao lado de Cambises. Isso não surpreende, já que observamos uma aproximação explícita entre os reis espartanos e os príncipes bárbaros, quando de seus funerais.94 Essa tendência à barbárie, que é própria deles, constitui, ao mesmo tempo, um indício de que deveriam constituir um verdadeiro problema para os outros gregos. Tanto é assim que, para considerar a realeza espartana, Heródoto sugere um desvio pela Ásia: desvio que impõe o estudo da representação do poder nas Histórias, bem como do código que a organiza. 339
Indício também de que todo rei, a partir do simples fato de que é rei, corre o risco de tornar-se despótico e bárbaro. Entre a cidade e os outros (e Esparta é uma cidade, mas tem reis), a separação principal encontra-se na forma de exercício do poder, sendo um dos efeitos das Histórias traduzir essa separação. Mais ainda, esse retrato do despótes como receptáculo de todas as perversões (que se encontram nele em potência, se não em ato) dá um rosto às tiranias arcaicas. Dispõe-se, daí em diante, de uma figura típica, que dá sentido às histórias que correm acerca dos tiranos. Para Heródoto, por exemplo, Periandro é um transgressor, um pouco como Cambises ou Cleômenes — e de modo algum um dos Sete Sábios. 95 Mas é verossímil pensar que essas histórias também contribuíram para traçar esse retrato que, mais adiante, será retomado pela tragédia, como também por outras obras e, principalmente, no século IV, por Platão e Aristóteles. 96 Não pretendo fazer aqui uma historiografia do tirano, nem pretendo afirmar que nela tenha havido alguma referência a Heródoto ou influência dele: por outro lado, sabe-se como influência é um vocábulo cômodo para indicar uma ligação, mascarando o desconhecimento. Pretendo simplesmente indicar que, neste ponto, a propósito do poder reconhecido como um elemento fundamental da constituição simbólica das Histórias, se descobre, talvez, a passagem da constituição (a grade das Histórias), às Histórias como instituição (como grade). Daí em diante, com efeito, no saber compartilhado, tanto o rei é déspota, quanto déspota é o tirano, isto é, essa figura imaginária, produzida pelo jogo do duplo espelho (rei = tirano), movida pela hybris, que se conduz como um senhor com relação a seus escravos. Assim, para Platão, o regime persa define-se por um excesso de servidão e um excesso de despotismo.97 Certas monarquias bárbaras, segundo Aristóteles, definem-se como tiranias hereditárias, conformes às leis. Mas a teoria da escravidão tendo progredido, ele ajunta: os bárbaros, sendo, "pelo caráter, naturalmente mais propensos à servidão que os gregos, do mesmo modo que os asiáticos são mais propensos a isso que os europeus, suportam o poder despótico sem nenhum lamento." 9 8 Ou ainda este exemplo, construído igualmente de acordo com o modelo do duplo espelho: a 340
maior parte das medidas que permitem conservar uma tirania foi fixada por Periandro, mas "muitos meios análogos podem ser também tomados do poder persa." 99 Juntos, portanto, o tirano e o rei.
HERÓDOTO, RAPSODO E AGRIMENSOR ...Quero, exijo que tudo em torno de mim seja, de agora em diante, medido, provado, certificado, matemático, racional. Será necessário proceder à mensuração da ilha, estabelecer a imagem reduzida da projeção horizontal de todas as terras, consignar esses dados num cadastro. Gostaria de que cada planta fosse etiquetada, cada pássaro marcado com um anel, cada mamífero marcado com ferro. Não cessaria até que esta ilha opaca, impenetrável, plena de surdas fermentações e de redemoinhos maléficos, fosse metamorfoseada numa construção abstrata, transparente, inteligível até os ossos. Tournier, M. Vendrecli ou les limbes du Pacifique (Sexta-feira limbo do Pacífico)
ou o
Assim, à pergunta: o que fazer crer? — podemos responder: as Histórias fazem crer que, entre gregos e bárbaros, a diferença é de poder. O código do poder é uma sorte de cadeia, através da qual pode passar a trama da narrativa, sendo a figura imaginária do déspota, ao mesmo tempo rei e tirano, um dos efeitos simbólicos que o texto produz. A esse primeiro efeito, pode-se ajuntar um segundo, menos geral. Para o destinatário, as Histórias, desdobram-se como uma representação do mundo habitado. Ainda hoje em dia, o leitor moderno, ao fechar o livro IX, retira de sua leitura um quadro do mundo: não somente um mapa, como o de Anaximandro ou de Hecateu, mas também um mapa em movimento. Com relação a isso, não se trata de fixar-se nos efeitos pontuais de conhecimento (tal povo habita em tal lugar, tal rio corre em tal direção...), mas deve-se buscar os grandes procedimentos de organização: medir, classificar, inventariar, ordenar; ao mesmo tempo, ver como, pelo jogo dessas operações, as Histórias se constroem. Se, apesar de sua insuficiência, retomarmos a metáfora da grade, poderemos escrever que o jogo da agrimensura, da classificação, do inventário, da ordenação forma uma das grades das Histórias, 341
que não pode deixar de produzir um efeito no destinatário. A partir daí, põe-se, de novo, a questão das Histórias como grade — ou do efeito que ultrapassa a elas próprias. O AGRIMENSOR A agrimensura tem suas alegrias, que Heródoto sabe saborear. Com efeito, ele gosta de dar as medidas de um prédio, de uma estrada, de um rio, de um mar ou de um país, mas agrada-lhe muito mais precisar que a medida foi feita por ele: fui "eu", fomos "nós" que tomamos as medidas. Assim acontece, por exemplo, com relação à pirâmide de Queops, 100 ou no que diz respeito às dimensões totais do Ponto Euxino: "Seu comprimento é de onze mil e cem estádios; sua largura, na parte mais larga, de três mil e trezentos." Mas a medida, neste caso, é resultado não de sua própria agrimensura, mas de seu próprio cálculo. Eu medi assim (moi memetréatai)-. sabendo que um navio leva "x" dias para atravessar o Ponto Euxino, sabendo, por outro lado, que um navio percorre "y" estádios por dia (distinguindo-se a distância percorrida durante o dia, da distância percorrida durante a noite, ligeiramente inferior), deduzi o comprimento e a largura totais. 101 Medir é também converter as medidas indígenas em estádios, é saber que a parassanga, medida persa, vale 30 estádios, ou que o esqueno, medida egípcia, vale 60102 — e que a estrada real, do mar até Susa, mede 13-500 estádios, enquanto a borda do mar egípcio mede 3-600. Dito de outro modo, trata-se de introduzir o estádio como medida comum de todos os percursos e, mais profundamente, já que a terra é "uma", 103 ressalta-se como o estádio dá conta de todo espaço, sendo todo espaço certamente mensurável em estádios. Se a mensuração se faz, em primeiro lugar, com relação ao espaço, pratica-se também com relação ao tempo. Quando, depois de Hecateu, Heródoto visita o tempo de Tebas, são-lhe mostradas as estátuas sucessivas dos grandes sacerdotes, convertendo ele essas medidas em anos: 341 estátuas = 341 gerações de homens, se posso assim dizer: de pais para filhos; se se computam três gerações por século, chega-se a 11.340 anos, sem nenhuma intervenção divina.104 Hecateu, com suas 16 gerações antes de encontrar um ancestral divino, parece bem 342
ingênuo. Essa agrimensura cronológica tem a particularidade de fazer-se visualmente: o olho do viajante, passando de uma estátua à outra, mede o tempo transcorrido. As alegrias da agrimensura são também indício de um poder. Como fazer crer melhor que se conhece um edifício ou um país, sobretudo se é longínquo, senão sendo capaz de fornecer suas medidas? Trata-se de uma operação de tradução: modo fácil de conduzir o outro ao mesmo. Na narrativa de viagem, a metrologia preenche indubitavelmente uma função séria. Uma anedota detalha bem a natureza do poder que supõe a ciência das medidas. Quando Creso, desejoso de testar a veracidade dos oráculos gregos, consulta a Pítia, ela começa assim sua resposta: "Sei o número dos grãos de areia e as dimensões do mar..." 105 — isto é, sou o oráculo que sabe mais extensamente, já que sei o número do que se considera incontável e as dimensões do que os homens julgam sem limite. Conhecer as dimensões do Ponto Euxino, não por inspiração, mas por cálculo, é, pois, demonstrar um saber excepcional, quase mais que humano. Além disso, esse saber supõe um certo poder, já que, com o conhecimento das dimensões e das distâncias, começa o domínio de um espaço: se eu sei o tempo que é preciso para ir de A a B, esse conhecimento constitui já uma forma de ter domínio sobre B. Quando esse saber se transmite, toma a forma de instruções naúticas e guia de viagem, constituindo o périplo, um gênero, por definição, ávido de medidas: a distância de A a B é de tantos estádios, ou de tantos dias ou noites de navegação. Mas o que caracteriza antes de tudo o périplo é a circularidade e a repetição. Circum-navegação, dispõe-se ele, com efeito, em curva sobre o espaço total do Mediterrâneo: partindo das Colunas de Héracles, volta-se de oeste a leste, até retornar ao ponto de partida, estendendo-se pela costa africana. Sua razão de ser é a repetição, já que não importa quem, após ter aprendido, deve poder repetir o percurso, fazer suas escalas, parar em suas etapas. Curvo, repetível, o périplo, como um vetor, é um percurso orientado e ordenado. Além disso, vai de um topónimo ao outro: avança não passo a passo, mas salta de um ponto a outro ponto, de um nome a outro nome. Sua preocupação é identificar e posicionar: identificar os pontos (lugar, cidade ou povo) e posicioná-los, um com relação
343
aos outros, ligando-os, concretamente, por um tempo de percurso — mas também, linguisticamente, pelo jogo, no discurso, de tudo o que indica um lugar (emprego de preposições, uso de prefixos, ordem das palavras etc.). 106 O périplo é, pois, o discurso de um percurso (enquanto o discurso dá-se como transcrição, faz crer que é imitação fiel do percurso), ao mesmo tempo em que é também percurso de um discurso (já que é a língua que "cria" o percurso). As Histórias também articulam discurso e percurso: "E avançarei na seqüência de minha narrativa, percorrendo igualmente as grandes cidades dos homens e as pequenas; pois, daquelas que antigamente eram grandes, a maior parte tornou-se pequena; e aquelas que se tornaram grandes em minha época, eram pequenas outrora." 107 Mas esse percurso, ao mesmo tempo espacial e temporal, faz-se segundo a escala do mundo habitado. Enquanto o périplo segue de nome em nome, de um topónimo a outro topónimo, sem preocupar-se com o que pode existir além, Heródoto, ao contrário, sente prazer em medir os lugares longínquos e em balizar os confins: medir o Egito, mas também o Ponto Euxino, também a Cítia ou a Líbia. O périplo não se preocupa com o que há entre-, o espaço entre dois topónimos é, no máximo, uma distância ou um tempo de viagem, se não é deixado em branco; já Heródoto preenche esse entre-dois, em que, muitas vezes, se observam outros nómoi. A separação profunda entre os dois tipos de discurso manifesta-se bem no estatuto diferente que atribuem à digressão: no périplo, a digressão é verdadeiramente desvio, parêntese, interrupção momentânea do percurso. Se, por exemplo, percorro uma costa, desvio-me dela apenas o tempo suficiente para assinalar as ilhas que estão além, retomando, logo em seguida, o fio de meu discurso; nas Histórias, a digressão é, ao contrário, a regra do percurso e a lei do discurso — fórmula que me parece menos exagerada, quando se lê esta declaração do próprio narrador: "Desde o começo de meu lógos, persegui digressões (prostékas edízetó)."108 Ou seja, elas não me são impostas, não as encontrei por acaso em meu caminho — pelo contrário, meu caminho consiste em persegui-las. Viu-se acima a ligação existente entre thôma e digressão: o thôma é o fio condutor da digressão, e a digressão a forma de exposição do thôma.m Mas esse é apenas 344
um modo da digressão, havendo ainda outros: os capítulos de 2 a 82 do livro IV, por exemplo, são nada mais que uma vasta digressão, inserida na narrativa da expedição de Dario, a qual trata da Cítia, de seus habitantes e de seus nómoi, terminando assim: "Retornarei à narrativa que me dispus a fazer no início deste discurso (anabésomai es tòn... lógori)"-. vou de novo "embarcar" em meu lógos.u0 Com esse exemplo, tem-se uma glosa do narrador com relação a sua própria narrativa, "em benefício dos ouvidos fracos e negligentes". 111 Balizando as bifurcações de seu texto, cumprindo o que Genette chama de sua "função de produção", 1 1 2 o eu do narrador intervém como ordenador das digressões, as quais introduz e interrompe à vontade; e, na intencional "variedade" de sua obra, 113 em que as narrativas se justapõem ou mesmo se encavalam e entrecruzam, é ele que indica ao destinatário o que é canal principal e o que é canal secundário. O RAPSODO Mas o agrimensor faz-se também rapsodo, no primeiro sentido da palavra: com efeito, ele é aquele que cose os espaços uns aos outros. Agente de ligação, que tem como tarefa ligar os espaços continuamente, até o limite do mundo habitado. Sabe ele, graças às viagens dos fenícios e de Cílax da Carianda, que a Ásia e a Líbia são contornadas por água: Cílax desembarcou no mesmo lugar onde os fenícios tinham embarcado. 114 Sabe ele que, do lado do levante, a índia é a última terra habitada e que além se estende um deserto de que ninguém nada pode dizer. 115 Em contrapartida, ele não sabe, nem ninguém, se existe um mar setentrional que banha a Europa. 116 Não sabe ele também, nem ninguém, como é realmente a extremidade da Europa na direção do poente: há aí um mar, ou não? 117 No interior desses limites postos ou supostos, conhece, por exemplo, as diferentes zonas que, sucessivamente, recortam a Líbia: o litoral ocupado pelos nômades, depois a região dos animais selvagens, depois o planalto arenoso, enfim um deserto, sem nenhum traço de vida. 118 Do mesmo modo, sabe os diferentes povos que, desde as margens do mar, ocupam toda a extensão da Cítia: a partir de Ólbia, por exemplo, encontram-se os calipidas, acima os alazões, mais acima ainda 345
os citas lavradores, enfim os neuros, além dos quais "não se encontra mais que um deserto desabitado pelos homens, pelo que sabemos". 119 De uma parte à outra desse conjunto, o narrador instala outras colunas de povos, desde a beira do mar até os desertos ou montanhas intransponíveis. Pois é importante enumerar, sem nada omitir, até que não se possa dizer mais nada, perdendo-se a palavra nos desertos ou empacando contra as paredes montanhosas: "Do que existe acima dos homens calvos, ninguém pode falar com exatidão (atrekéos)-, pois altas montanhas inacessíveis formam ali uma barreira que ninguém transpõe"; quanto ao que dizem os próprios homens calvos, trata-se de um discurso marginal, ao que não se deve dar verdadeiramente crédito. 120 Se o inventário se apresenta como um dever do narrador, é também um meio de dar mostras de saber, ou seja, de fazer o destinatário crer. Com efeito, o narrador é aquele que conhece o espaço e sabe os nomes: ...eis aqueles, dentre os líbios, que posso nomear; 121 ou: até os atlantes (povo líbio que habita a zona arenosa), posso dar a lista dos nomes (ékho tà ounómata... kataléxiá), mas a partir daí, acabou.122 Ele é, portanto, rapsodo também neste sentido: como aquele que canta a epopéia, ele também gosta dos catálogos. E, guardadas todas as distâncias, poderia ser seu este programa de Júlio Verne: "...Não mais esses grandes vazios nos mapas da África central, não mais brancos em tinta pálida, com linhas pontilhadas, não mais essas designações vagas, que desesperam os cartógrafos." 123 Ele pretende fixar os limites de uma região, a lista de povos que a habitam e as medidas de seu território. Faz assim com relação ao Egito, através da conversão das medidas egípcias e de cálculos empíricos: o país mede três mil e seiscentos estádios de largura no litoral por sete mil, novecentos e vinte estádios de comprimento, desde o mar até Elefantina; forma, em princípio, uma larga planície até Heliópolis (ou seja, uma distância quase igual à que existe do altar dos doze deuses, em Atenas, até o templo de Zeus Olímpico, em Pisa); em seguida, estreita-se a um comprimento de quatro dias de navegação e, no ponto mais estreito, não mede mais que duzentos estádios de largura — observando ainda o viajante: "pareceu-me" que depois ele se alarga de novo.124 Mais à frente, Heródoto faz o mesmo com relação à Cítia. Mas, se nos dois 346
Ponto Euxino FIGURA 7 - "Admitindo-se que a Cítia é um quadrado..."
347
casos, tem-se agrimensura e medidas, acredito que não se trata, de fato, do mesmo espaço, pois passa-se subrepticiamente de um espaço a outro: quero dizer, de um espaço concreto a um espaço abstrato, de um espaço de percurso a um espaço de saber. Com relação à Cítia, Heródoto pretende "indicar", "fazer saber", "revelar" (semaínein) as medidas. 125 Depois de ter esclarecido que ela é cercada de dois lados pelo mar, como a Ática, depois de ter fixado a posição da Táurida, que é como o Súnion com relação à Ática, depois, enfim, de ter relacionado os povos que a limitam "no alto" (isto é, ao norte), prossegue: "Admitindo-se que a Cítia é um quadrado (hos eoúses tetragónoii) que toca o mar por dois de seus lados, as dimensões são iguais em todos os sentidos, caso se penetre, desde a costa, no interior, caso se siga pela beira do mar." Que seja assim: vinte dias de caminhada; que seja ainda — como avalio um dia de caminhada em duzentos estádios — quatro mil estádios. A geometrização do espaço é indiscutível e o raciocínio, em grandes linhas, é o seguinte: se a Cítia é como (hos) um quadrado, tem dois lados iguais; ora, o comprimento do litoral é, com efeito, igual ao do interior, tratando-se portanto de um quadrado. Isso embora a igualdade dos lados seja implicitamente empregada tanto como prova de que se trata de um quadrado, quanto como conseqüência da proposição inicial: ela é como um quadrado. Através de um simples jogo de agrimensura, passa-se de "como um quadrado" a "eis o que são (efetivamente) suas dimensões". Um indício em favor desse duplo estatuto da medida é o "erro" de cálculo: de oeste a leste, a Cítia mede, com efeito, vinte dias de marcha — dez dias do Istro ao Borístenes e dez dias do Borístenes ao Palo Meótida. Ora, nos capítulos 18-19, tínhamos ficado sabendo que do Borístenes, o meio da Cítia, ao Gerro, que fica aquém da fronteira oriental, são necessários dezessete dias de marcha. Portanto, menos da metade do comprimento total seria, nesse caso, quase igual ao comprimento total? Impossível. Pode-se corrigir o manuscrito; pode-se também sustentar — como se sustentou — que Heródoto teria utilizado duas fontes diferentes, tendo-se "esquecido", no capítulo 101, do que havia dito antes. O "erro" seria então um defeito na rapsódia: uma junção esquecida, um buraco. 348
Pode-se mesmo provar que, no capítulo 101, ele utiliza um mapa, 126 o que não é absurdo. O interessante, contudo, é que ele, na sua narrativa, não marca a diferença entre o espaço concreto do percurso e o espaço abstrato da geometria. Pelo contrário, faz crer que se trata de um só e mesmo espaço. Como? Precisamente pela agrimensura. De fato, na narrativa de viagem a agrimensura funciona, junto do destinatário, como garantia de seriedade: eu meço o que percorro, eu domino os espaços que conto, você pode crer em mim. Aplicando a agrimensura num espaço abstrato, trato-o, no interesse do destinatário, como se fosse concreto: faço crer que meço a Cítia, enquanto caminho ao longo de uma figura de geometria. Não há, pois, propriamente falando, erro de cálculo, já que se trata de dois espaços diferentes — mas antes emprego da agrimensura, mistificação do narrador, que sobrepõe dois espaços, um sobre o outro, fazendo crer que não há problema nisso. Dessa geometrização do espaço, principalmente dos espaços longínquos, dá testemunho também a Líbia, cuja parte arenosa é balizada por uma sucessão de colinas de sal, separadas, umas das outras, por uma distância igual a dez dias de marcha, desde o Egito até além das Colunas de Héracles. 127 Ora, de todos os países lembrados nas Histórias, a Líbia é a região inacessível por excelência. 128 Entretanto, de modo geral, a indicação mais clara desse espaço do saber, não para esta ou aquela região, mas para a oikouméne em seu conjunto, é o princípio de simetria: com relação a uma linha imaginária que vale como um "equador", o Nilo e o Istro são, recorde-se, simétricos e representam os dois "trópicos", podendo eu demonstrar, a partir do curso do Istro, como é o curso do Nilo e onde ele nasce. 129 Também desta vez há superposição de dois espaços, já que, raciocinando no espaço regido pela geometria, faço crer que exploro o espaço concreto; ou, mais exatamente: faço crer que há não dois espaços, mas um só, geométrico de uma ponta à outra. Entenda-se bem: esse espaço abstrato, geométrico, é também orientado culturalmente. Essas "colunas" de povos, que o rapsodo se alegra em dispor, têm, com efeito, um sentido: distanciando-se do "equador", avança-se, em geral, do mais civilizado para o mais bárbaro — ou do menos 349
bárbaro para o mais selvagem, até serem atingidos imensos desertos, onde não há mais nada, onde o espaço se perde e as palavras desaparecem. A ORDEM DO DISCURSO Nesse espaço orientado culturalmente, inscrevem-se também direções, cujos principais pontos de referência são fornecidos pelos movimentos aparentes do sol e pelos ventos:130 nascente e poente do sol, indicando o leste e o oeste, o meio-dia, marcando a direção do sul; quanto ao norte, ele é apontado pela Ursa, mas, mais freqüentemente, pelo vento do norte, isto é, o Bóreas. Com efeito, o sol é mais utilizado nas determinações leste-oeste e recorre-se preferentemente aos ventos para a orientação norte-sul. No total, Heródoto menciona seis ventos: em primeiro lugar, o Bóreas; 131 depois, seu contrário, o Noto, o vento do sul; Zéfiro, o vento do oeste, pouco presente; Apeliótes é um vento do leste, enquanto o Euro marca sobretudo o sudeste; enfim, o Lips, vento do sudeste, aparece apenas uma vez.132 A essas direções, convém ainda ajuntar esses pontos particularmente importantes que são o nascente e o poente de inverno e de verão, isto é, para nós, os trópicos. Heródoto refere-se ao nascente de inverno, embora provavelmente sejam os cursos do Istro e do Nilo, esses dois rios importantes, que materializem essas linhas imaginárias: o Istro indicando o "trópico" de verão; o Nilo, o "trópico" de inverno. 133 Assim se organiza o espaço. O interessante, porém, é que esse espaço, que se apresenta como o espaço, na realidade é um espaço grego do saber. É evidente que uma construção desse tipo não é coerente senão a partir do momento em que pressupõe que a Grécia se encontra "no meio", que ela está, de acordo com a fórmula hipocrática, "a meio caminho entre os dois levantes do sol" (o de verão e o de inverno) 134 — em suma: no equador. Não é menos claro que, tomar os nomes dos ventos para indicar direções universalmente válidas, implica transformar um ponto de referência relativo (o Mar Egeu) num ponto de referência absoluto. Dizer o nótos é o "sul" é a mesma coisa que dizer que o estádio é a medida de todo espaço. Além disso, esse espaço do saber, para funcionar, inclui constantemente o observador ou quem o utiliza. Isso 350
Trata-se, ainda, de um trabalho de rapsodo, em que todas as possibilidades da língua não são muito para "colar" todos os pedaços do espaço, ou, mais exatamente, para fazer crer que eles se colam uns aos outros. Vê-se, assim, como se passa insensivelmente da expressão do espaço e do movimento, através da língua, ao espaço da língua como representação do espaço concreto, isto é, como imitação. Implicitamente, meu discurso supõe que a armação do espaço concreto corresponda aos recortes da língua, reencontrando-se a questão da homologia entre o visível e o dizível.137 Com efeito, a partir do momento em que, entre dizer e ver, não há nenhuma distância, é suficiente, no limite, dizer para fazer crer que se viu. Na realidade, contudo, a descrição da Cítia não se reduz a desdobrar o espaço da língua, inserindo-a no aparelho destinado a garantir a seriedade da narrativa ("...vamos relatar tudo o que pudemos saber, pela akoé, de informações precisas que se estendem o mais longe possível..."). A descrição da Cítia apela também para o espaço do saber. Ao lado das preposições e prefixos, recorre às determinações "cardiais" (do lado do Bóreas, do poente, da aurora, do meio-dia, do vento do leste). Ora, o interessante é que os dois sistemas são acionados em concorrência: de uma frase à outra, passa-se de um ao outro. Também no interior da mesma frase isso acontece; mais ainda, um faz o papel de duplo do outro: acima (katyperthe) dos citas reais e "do lado do Bóreas", habitam os melanclenos. 138 A justaposição dos dois espaços, no discurso, é um dos meios de que dispõe o narrador para fazer crer que não existe senão um único e mesmo espaço. A continuidade do discurso mascara a solução de continuidade entre o espaço da língua e o espaço do saber, mesmo se o segundo não pode dispensar o primeiro. Todavia, na fabricação desse espaço misto (que se nega como tal), os dois sistemas não desempenham um mesmo papel, pois as determinações fixadas pela língua são muito mais numerosas que as fornecidas pelo espaço do saber: 36 determinações lingüísticas, contra 14 não lingüísticas. No caso da segunda descrição, em que a Cítia é representada como um quadrado, o descompasso é ainda mais nítido: 48 determinações puramente lingüísticas, contra 5 unicamente "cardiais", ou seja, uma relação de 1 para 10 em favor do espaço da língua. A partir daí, de inventário do espaço pela agrimensura e pela medida, a rapsódia 352
transforma-se em invenção do espaço pela língua, em que cabe às determinações "cardiais" lastrar a descrição, produzindo um "efeito de realidade". Se o espaço do saber aloja o observador em si mesmo (a expressão "do lado do Bóreas" pressupõe a presença de um observador), acontece a mesma coisa com o espaço da língua. Primeiramente, de modo explícito, a descrição supõe um sujeito que percorre o território, sendo com relação a este que ela se desenrola: por exemplo, para quem transpõe tal rio (diabánti)..., para quem atravessa tal região (diexelthóntí)..., para quem se vira (apoklínonti)... 139 Esse sujeito lingüístico é aquele para quem e diante de quem se desenrola o espaço, constituindo também, ao mesmo tempo, o ponto de referência móvel nesse espaço que seu avanço baliza. Em segundo lugar, a descrição o pressupõe de uma outra maneira: se dizer que um povo encontra-se "acima" de um outro, para significar que está mais ao "norte", não nos causa nenhuma surpresa; usar a mesma expressão para indicar uma progressão para o sul, é mais espantoso. Por exemplo: "acima" dos líbios nômades e avançando-se para o interior (es mesógaiari), encontra-se a Líbia dos animais selvagens; "acima" desta, a região do planalto arenoso, com suas colinas dispostas de dez em dez dias; "acima" ainda, o deserto. 140 A estranheza desaparece de imediato se admitimos que a expressão é empregada por um sujeito que se encontra, por exemplo, em Cirene, ou que, em todo caso, está voltado para o interior do país. Então, as diferentes zonas da Líbia estão efetivamente "acima" de mim, seja eu viajante, observador ou simples usuário da língua. Fale eu do "norte" ou do "sul", parta eu das bordas do Ponto Euxino ou das margens do Mediterrâneo, katyperthe significa bem "acima". Entretanto, isso é verdade sucessiva e não simultaneamente: com esse operador, não posso, com efeito, construir, ao mesmo tempo, uma representação do espaço do norte e do sul. Construo um, depois o outro — mas não posso representá-los juntamente, já que a mesma palavra significa, num caso, "do lado do Bóreas", e, no outro, "do lado do Noto". Em suma, o que marca o limite de uma representação do mundo desse tipo é que o sujeito não pode abstrair-se: ele está, de um modo ou de outro, incluído no quadro que constrói, se é verdade que o espaço da língua o aloja, do mesmo modo que o espaço do saber.
353
O espaço da língua é como uma grade que se aplica sobre o espaço concreto: de uma dispersão inatingível, faz-se um quebra-cabeça, em que as peças se encaixam umas nas outras. Todavia, encontramo-nos ainda no primeiro estágio: o das expressões de lugar e de movimento em grego. Vêm em seguida as frases que formam enunciados (manifestações concretas da língua), de cuja coleção se constitui, finalmente, o discurso de Heródoto sobre o espaço, em que se cruzam e se combinam o espaço concreto, o espaço da língua e o espaço do saber. Há, portanto, também um espaço do discurso, em que se aloja, desta vez, o narrador-rapsodo. O narrador é, pois, agrimensor, rapsodo em muitos sentidos, mas igualmente aedo, na medida em que o inventário da oikouméne é infalivelmente também invenção do mundo: isso não acontece só pelo jogo do espaço da língua, mas existem correlações entre a "ordem do discurso" e a ordem do mundo. Heródoto pensava que Hesíodo e Homero, mais velhos que ele quatrocentos anos, tinham fixado, para os gregos, uma teogonia: "Eles atribuíram aos deuses seus qualificativos, distribuíram entre eles as honras e funções, desenharam suas figuras ( e í d e a semaíneiri)."ux Fazendo um inventário dos deuses, inventaram, ao mesmo tempo, o panteão: puseram em ordem o mundo divino. Não se pode pensar que Heródoto fez o mesmo com relação ao mundo humano? Fazendo o inventário dos povos longínquos e dos confins da terra, ele inventa a oikouméne: ordena o mundo humano. O espaço da narrativa apresenta-se como representação do mundo, sendo o rapsodo aquele que eídea semaínein, que desenha as figuras, que faz ver, que revela 142 — em suma, que sabe. É evidente que todos esses espaços, a cujo discernimento se procede durante a análise, não se encontram jamais isoladamente. Pelo contrário, eles só existem e funcionam quando combinados uns com os outros. Mas, mesmo assim dispostos no discurso e pelo discurso, não são ainda, se posso assim dizer, mais que molduras vazias. Falta preenchê-los e animá-los — o que cabe à narrativa. Com efeito, eles são atravessados por agentes, viajantes ou soldados, ocupados por povos que podem deslocar-se, são o local de ações, encontros ou batalhas — em resumo, a todos esses espaços é preciso ainda acrescentar um espaço da narrativa. Assim, o 354
espaço cita, produto do entrecruzamento dos diversos espaços acima descritos, é alguma coisa a mais: espaço do nomadismo, isto é, um espaço que não se deixa capturar. Essa singularidade do país dos citas é instituída apenas pela narrativa, ao descrever os funerais dos reis citas, ou, melhor, ao contar a guerra de Dario. 143 Portanto, o espaço da narrativa não é somente a resultante de todos os espaços descritos há pouco. Eis, pois, que, com relação às Histórias em si mesmas, o espaço do discurso se apresenta como decalque fiel do espaço concreto (o discurso imita o mundo), valendo o discurso como representação do mundo. Mas o que acontece além das Histórias em si mesmas? Os viajantes e outros agrimensores não tenderão a ver o mundo através dos óculos de Heródoto? As Histórias não se tornarão esse espelho em que eles verão o mundo, crendo descrevê-lo. Como-no caso do poder, a questão diz respeito à passagem da constituição (a grade da obra) para a instituição (a obra como grade), ou a questão das Histórias como dispositivo destinado a fazer ver. Trata-se, portanto, de avaliar o efeito do texto no imaginário dos gregos. Por efeito, entendo não o efeito de conhecimento, mas aquilo que modela — mesmo sem que se saiba, eventualmente — a representação que se faz do mundo. De novo, não se trata.de defender que isso é suficiente para elaborar uma representação do mundo, a qual, assim, evoluiria como que sobre um "colchão de ar", depois se transmitiria ou se transformaria e daí por diante, sempre sobre um "colchão de ar". Meu único objetivo é tentar precisar o que se pode considerar como efeito do texto — pois, se efeito servir apenas para substituir a palavra influência, o ganho será pequeno. 144 Dos efeitos, considerarei dois. O primeiro exemplo, muito próximo de Heródoto, é antes de tudo um indício: Tucídides, que pretende romper com seu predecessor tão profundamente, não o critica com relação a esse ponto, não se preocupando em elaborar uma outra representação do mundo. Sem dúvida, seu assunto não exige que o faça (não mais a narrativa das Guerras Médicas), mas isso não implica também reconhecer que não existe mais espaço para voltar-se a essa questão, que ela já está regulada? O que acontece além das fronteiras do mundo grego não interessa a Tucídides, não passando de 355
tempo perdido o método etnográfico, já que, segundo ele, "o mundo grego antigo vivia de maneira análoga ao mundo bárbaro atual". 145 Ele opera, portanto, um movimento de rotação, temporalizando o que a etnografia espacializa, pois inscreve, num ponto do tempo, o que a etnografia desenrola através do espaço. Por essa projeção no tempo, que instaura a superioridade dos gregos sobre os bárbaros (já que os bárbaros de hoje vivem como os gregos de outrora), suprime ele todo interesse pela etnografia: com efeito, para que recolher a diversidade espacial dos nómoi se, no fim das contas, não se encontra mais que aquilo que os gregos conheciam outrora? Do mesmo modo, não existe mais a idéia de que um desvio pelos bárbaros possa valer a pena para conhecer-se melhor os gregos de outrora. Decididamente, se o passado não pode ser verdadeiramente conhecido, não é verdadeiramente interessante em si mesmo. O segundo exemplo, um pouco mais adiante, põe em cena Nearco, almirante e companheiro de Alexandre, que escreveu um livro que conhecemos apenas indiretamente, através de Arriano e Estrabão. Essa obra, de título incerto, conta sua navegação da índia à Arábia e compreende uma descrição da índia. 146 Ora, Nearco, que foi à índia, vê o país ou, pelo menos, o faz ver através dos óculos de Heródoto. Em seu livro, provavelmente escrito em jônio, refere-se não somente aos capítulos das Histórias consagrados diretamente aos hindus, mas também ao livro II (inteiramente consagrado ao Egito): ele vê a índia como Heródoto via o Egito e quer, sem dúvida, fazer com relação à índia o que Heródoto fez com relação ao Egito. Do mesmo modo, o que informa implicitamente sua visão é a representação herodotiana do mundo. Falar da índia é nomear os rios que a atravessam e, particularmente, o Indo. Ora, como falar do Indo, senão comparando-o ao Nilo e ao Istro, esses dois rios de que se sabe a posição privilegiada que ocupam na geografia de Heródoto? 147 Mais precisamente ainda, é recorrer à analogia: a índia é, com relação ao Indo, o que o Egito é com relação ao Nilo, a saber, de acordo com a fórmula de Heródoto, um "dom do rio". 148 Se o Egito explica a índia, a índia explica também o Egito. Em vista disso, Nearco julga dar uma nova explicação para a enchente estival do Nilo: na índia, chove no verão e os rios enchem; portanto, acontece o mesmo no 356
Egito, pois "é verossímil que chova, no verão, nas montanhas da Etiópia, sendo, portanto, engrossado por essas chuvas, que o Nilo transborda de seu leito e invade a planície egípcia".149 O que vale para a índia vale também para o Egito — e eis resolvida, de modo satisfatório, essa questão que embaraçava muito Heródoto: por que o Nilo comporta-se "ao inverso" (émpalin) dos outros rios?150 Dessa escrita nas margens de Heródoto, podemos ainda dar dois exemplos. Nearco conta que, no curso de sua navegação, viram eles o sol ao norte: "Quando avançavam longe no mar, na direção do meio-dia, as sombras apareciam voltadas também para o meio-dia..." 151 A declaração é inadmissível, pois, de fato, Nearco permaneceu todo o tempo aquém do equador, ao norte mesmo do Trópico de Câncer. Entretanto, torna-se, pelo menos, compreensível, se aproximada da opinião de Heródoto com relação ao périplo dos fenícios: ele não crê que, dando a volta à Líbia, possam ter tido o sol à sua direita (isto é, ao norte). 152 Portanto, para Nearco, trata-se de uma forma de validar sua própria narrativa, jogando com o texto herodotiano: nós experimentamos o que ele julga incrível, sem ter ido lá, logo, eu digo a verdade; afirmando o que ele recusa a crer, faço o destinatário crer na minha própria narrativa (o que supõe que este conheça Heródoto). A referência pode agir diferentemente, como no caso das formigas gigantes. Com efeito, segundo Heródoto, existem na índia formigas menores que um cão e maiores que uma raposa, que buscam ouro sem saber, pois, cavando a terra, jogam para fora areia e ouro. 153 O que escreve Nearco?: "Com relação às formigas, Nearco diz não tê-las visto pessoalmente, embora tenha visto muitas vezes as peles trazidas ao campo macedónio." 154 Portanto, ele identifica o significado disponível, formiga, com esse significante que são as peles: ele vê ou, em todo caso, faz ver essas peles como sendo das "formigas". Sem dúvida, todo viajante que fosse à índia, nessa época, não poderia evitar a questão das formigas: isso dizia respeito à seriedade de seu empreendimento. Enfim, Nearco cita Heródoto, sendo as Histórias esse pattern em função do qual se organiza seu próprio texto. Esses dois exemplos — um a contrario e próximo no tempo, o de Tucídides, o outro mais distante e positivo — são suficientes para 357
mostrar como a representação herodotiana do mundo se institui: Tucídides, apesar de seu evidente desejo de ruptura, não rompe com relação a esse ponto; já Nearco viaja com Heródoto em seu bolso. Trata-se bem dos óculos e do espelho: óculos que põe e espelho no qual olha aquele que, de volta de uma longa viagem, deseja "traduzir" sua experiência dos países longínquos e dos outros espaços. Óculos que ele não pode deixar de pôr e espelho em que não pode deixar de olhar, mesmo se for para finalmente quebrá-los. Representação herodotiana do mundo. Muito bem. Mas não há nisso ilusão retrospectiva e abuso da linguagem? A partir do fato de ser ele o único autor de seu tempo que temos tão completamente, o senhor não foi conduzido a exagerar sua importância? E, além do mais, o que o senhor chama representação herodotiana do mundo era, talvez, a coisa mais bem compartilhada do mundo, pelo menos-entre os "intelectuais". Essa representação deve muito à ciência jónica etc. Talvez, entretanto, não seja completamente por acaso que o único que temos seja justamente ele. Além disso, não pretendo que tenha sido preciso esperar Heródoto para construir uma representação do mundo, como não pretendo também que ele seja o inventor de uma representação do mundo. Creio apenas que há sim, nas Histórias, uma representação do mundo, que se organiza em torno de um código espacial (o código espacial não sendo mais que o jogo dos diferentes espaços analisados, desde o espaço concreto até o espaço do discurso). Esse código, que não se manifesta no mundo discursivo, encontrando-se amplamente implícito, é como que a armação ou a grade dessa representação do mundo. Parece-me que é nesse nível e através dele que o texto produz efeito no imaginário do destinatário, produz efeito além de si mesmo, o que traduz, de qualquer modo, a metáfora dos óculos de Heródoto. Voltemos à pergunta: o que fazer crer ou as Histórias como representação? A resposta: de modo bem preciso, existe, atravessando o conjunto do texto, uma representação do poder e uma representação do mundo. Sem dúvida, há outras, mas essas duas e os códigos que as organizam (o código do poder e o código espacial) parecem-me produzir mais efeitos que outras. Se eu as distingui claramente, foi 358
por comodidade, pois é evidente que há interferência entre o espaço e o poder: não há representação do mundo completa sem representação do poder, como não há representação do poder que valha sem representação do mundo. Estas páginas sobre a representação, no fundo, são uma reflexão suscitada pela metáfora do aquarelista, que vê e faz ver através de seu dispositivo, reflexão que se desenvolve em torno da mesma metáfora: a "grade" das Histórias e as Histórias como "grade"; as Histórias como máquina para fazer ver e Heródoto como mestre do ver. Tenho plena consciência de que falar de grade não resolve a questão, não me esquecendo de que não se trata senão de uma metáfora. Esta, entretanto, tem antes de tudo a vantagem de fazer ver o que se quer dizer, permitindo, em seguida, que se levante uma outra questão, mais difícil: a do efeito do texto (o que é que, do texto, faz efeito? até onde? como? etc.). E isso, escapando da solução fácil de reduzir o efeito à influência, bem como evitando-se as "saídas" precipitadas do texto, antes referidas. Aqui, a questão se põe com toda a exatidão. , FAZER CRER PARA QUÊ? — O EFEITO DO TEXTO Resta enfim, última questão, a questão do para quê: como fazer crer, o que fazer crer e fazer crer para quê? Globalmente, trata-se da questão do lugar das Histórias e de sua função — antes de tudo na Grécia do século V. Trata-se também da questão do estatuto do hístor. Uma primeira resposta, à qual não voltarei mais, é a dada por Díilo, Luciano, Plutarco, Eusébio e alguns outros, portanto, por uma tradição indireta e amplamente posterior: Heródoto fazia conferências. Recitou ou leu ele, efetivamente, passagens das Histórias, em Atenas, Corinto, Tebas e Olímpia? Foi ele efetivamente pago por isso?155 Não existindo a história, nem tendo o historiador uma profissão, ocuparia ele um lugar intermediário entre o sofista, comerciante do saber, e o rapsodo, comerciante de histórias. Era um rapsodo em prosa, se se quer. 156 A segunda abordagem é negativa, procedendo por eliminação e por confrontação com outras figuras referidas ao longo destas páginas, que pertencem ou não às Histórias. Não para que ele faz crer, mas para que não faz crer. 359
Quando, no momento da revolta da Jônia, Aristágoras, tirano de Mileto, vem pedir o apoio dos espartanos, traz consigo uma "prancha de couro, onde estavam gravados os contornos de toda a terra, todo o mar e todos os rios".157 Após ter insistido na fraqueza dos persas (que não sabem combater) e em sua riqueza, faz ver, no mapa, que a operação seria fácil, já que, das cidades jónicas até Susa, a capital do Rei, todos os povos "se tocam". O mapa encontra-se aí para fazer Cleômenes, seu interlocutor, crer que o espaço concreto corresponde efetivamente ao espaço da língua, isto é, ã enumeração que ele faz dos povos sucessivos, sem silêncio, sem intervalo de um a outro: os lídios "tocam" ( é k h o n t a i ) nos jônios, os frígios orientais "tocam" nos lídios, os capadócios "tocam" nos frígios, os cilícios "confinam" ( p r ó s o u r o i ) com os capadócios... e assim adiante, até Susa. Aristágoras finge crer que esse mapa é uma representação em tamanho real, como se Anaximandro, na esteira dos cartógrafos referidos por Borges, houvesse feito um mapa "que tivesse o formato do Império e que coincidisse com ele ponto a ponto". Para funcionar, essa armadilha supõe que Cleômenes não saiba "ler" um mapa e que creia no que vê, isto é, de fato nas palavras que ouve. Com efeito, a autópsia proposta não passa de ilusão, já que não é, na realidade, senão uma akoé. Mas Cleômenes não entra finalmente no jogo e, em vez de pedir, por exemplo, precisões relativas à escala do mapa, faz brutalmente uma pergunta imprevista: quantos dias de marcha seriam necessários? Aristágoras, surpreso, que "até então tinha-se mostrado hábil (sophós) em enganá-lo, deu um passo em falso", respondendo três meses. Clêomenes expulsou-o então. Assim, para Aristágoras, é claro que a geografia pode servir, se não para "fazer a guerra", pelo menos para fazer fazer a guerra — não informando os estados-maiores, 158 mas, ao contrário, mistificando. Ele é um adepto convicto e praticante, em suma desastrado, da mentira performática. O que pensaria Anaximandro de uma tal utilização de seu trabalho? Já Heródoto faz fazer a guerra? O saber contido nas Histórias sobre os bárbaros é utilizado, de boa ou má fé, por algum Aristágoras, para fazer ou fazer fazer a guerra? No século V e no começo do século IV, não o creio. Em contrapartida, a questão pode ser posta da perspectiva do papel desempenhado 360
pelo texto de Heródoto nos projetos da expedição de Filipe e na preparação das conquistas de Alexandre. 159 Ele não ocupa também um lugar comparável ao de seu predecessor, Hecateu de Mileto, que é contado entre os partidários (stasiotéon) de Aristágoras. Quando se trata, no correr de uma reunião, de decidir pela revolta ou não, serve-se Hecateu de seu saber, para persuadir os conjurados a não se revoltar: T o d o s opinaram no mesmo sentido, incitando à revolta, salvo Hecateu, o logopoiós. De início, desaconselhou empreender uma guerra contra o Rei, enumerando (katalégon) todos os povos sobre os quais reinava Dario e as forças de que dispunha; em seguida, c o m o não pudesse convencer os assistentes, incitou-os a assegurar, com seus navios, o domínio do mar. 160
Hecateu também sabe bem os nomes. Do mesmo modo, quando a revolta acabar mal, ele dará de novo um conselho a Aristágoras que, de novo, não será seguido. 161 Sem dúvida, Hecateu fala com base em sua competência (no mais, sem o menor sucesso, como sublinha Heródoto a cada vez). Mas se ele pode falar, é primeiramente e antes de tudo porque é cidadão de Mileto, pertencendo a uma família aristocrática. Já Heródoto é um exilado: exilado de Halicarnasso, torna-se, desde então, em todos os lugares, um estrangeiro, em Samos como no Egito, no Ponto Euxino como em Atenas. Estrangeiro, no máximo um meteco. Pelo menos até sua chegada a Túrio, 162 encontra-se excluído da política e seu saber não pode transformar-se diretamente em poder: sua palavra não é diretamente política. Viajante, ele não o é do modo como o será Marco Polo, o qual, antes de ditar suas memórias no torreão de Gênova, foi o olho do Kan nas províncias longínquas de seu império. Com efeito, no curso de suas missões, ele sabia ver o que o Kan queria saber: Como um conselheiro e como alguém que sabe todos os hábitos do senhor, sacrificava-se muito para aprender e entender tudo o que sabia que devia agradar ao Grande Kan. Cumpria bem sua função, graças a Deus, e sabia dizer inúmeras coisas novas e estranhas. E ao Grande Kan, a conduta de Monsenhor Marco Polo agradava tanto, que ele lhe queria muito bem... 1 6 3
361
Já Heródoto não é diretamente o olho de ninguém: nem encarregado de missão, nem cosmógrafo de um príncipe. Ele não é também, de modo algum, o historiador de um príncipe. Mais amplamente, não existe nenhum contrato com um poder que o autorize e que tenha necessidade dele para escrever sua história.164 Sua posição, por exemplo, nada tem de comparável com a de Guilherme, o Bretão, que, sendo capelão de Filipe Augusto, é o primeiro a fazer da Batalha de Bouvines um acontecimento. 165 Contrariamente ao que se possa escrever, ele não era uma pessoa devotada a Péricles, o defensor de sua política imperialista, em nome do glorioso passado da cidade, ou, como fazia Jacoby, o arauto de Atenas, no momento em que se prepara a Guerra do Peloponeso. 166 Ele não é, pois, nem cosmógrafo, nem historiador, nem conselheiro de um príncipe ou de uma cidade. Inclusive, se remetemos para a leitura que Plutarco'fazia das Histórias, sua "malignidade" não poupava ninguém — indivíduo, família ou cidade (compreendendo Atenas e os Alcmeônidas) — e seu filobarbarismo fazia dele um verdadeiro traidor dos gregos.167 Eis, pois, tanto determinações negativas, quanto lugares que ele não ocupa. Eis portanto "razões" suficientes pelas quais ele não faz crer. Em suma, a dificuldade da questão advém do fato de que o pai da história não é um historiador. E se é exato que o lugar " p e r m i t e " um tipo de produção e " interdita outros",168 não podemos, neste caso, pôr diretamente em relação um texto e um lugar; não para reduzir o texto ao lugar, mas para tentar, ao aproximá-los, fazer aparecer uma das leis organizadoras de seu discurso. Mas, do não-lugar espacial, não devemos passar ao não-lugar judiciário: caso encerrado por falta de provas. De fato, até agora, a questão do para quê (fazer crer para quê?) levou a dois tipos de resposta, ambas insatisfatórias: uma, porque apela para uma tradição externa e claramente posterior; a outra, porque se contenta em abordar a questão negativamente (por que ele não faz crer?). Mas oferece-se ainda uma terceira via, aquela que as páginas precedentes sugerem, apostando no próprio texto. Com efeito, creio que os resultados dos capítulos anteriores oferecem elementos de resposta à questão do para quê. Não se trata do que diz explicitamente Heródoto sobre si mesmo e sobre sua função — até porque, 362
fora do prólogo, ele não diz nada (não sendo esse silêncio sem dúvida indiferente) — mas antes do efeito do texto nos destinatários, efeito que se pode avaliar principalmente a partir das funções que se atribui o narrador na narrativa e por todo o jogo de marcas de enunciação. Portanto, não se trata de pôr em relação um lugar e um texto, ou de reduzir o texto ao lugar, mas de delinear o lugar do narrador no interior da narrativa, o que, extrapolando o texto, pode apontar um lugar e "interditar" outros — ou circunscrever um lugar. O prólogo é uma retomada de Homero, sendo claro que o modelo épico desempenha um papel no empreendimento de Heródoto. Todavia, se a epopéia é aquilo com o que é preciso rivalizar, é também aquilo de que é preciso distinguir-se: o narrador é talvez um rapsodo, até um aedo, mas é um rapsodo em prosa. E o fazer-crer de um texto e de outro procede por vias diferentes: é a Musa que, num caso, é a última garantia;169 no outro, o narrador. "Sei por ter visto" — temos a autópsia; "sei por ter ouvido" — temos a investigação (historie). Na epopéia, é a Musa que fala pela boca do poeta; é o narrador que, nas Histórias, diz "eu digo, eu escrevo" — sendo, diferentemente de na epopéia, o único sujeito da enunciação. O hístorvê e ouve, diz e escreve — enquanto o narrador não existe senão nas diferentes marcas de enunciação, que são a mola do fazer-crer, fazer o destinatário crer em seu texto. Único sujeito da enunciação, Heródoto é aquele que sabe. Do mesmo modo que Homero e Hesíodo puseram ordem no mundo divino e "delinearam" a figura dos deuses, ele localiza os diversos povos, distribui os papéis e fixa as fronteiras. Faz coincidir visível, mensurável e dizível. Constrói uma representação do mundo que é, ao mesmo tempo, saber e poder (dynamis). Saber-poder do lado do narrador seja quando ele o afirma, seja quando o reivindica pela própria representação da produção; mas saber-poder também do lado do destinatário, ou dos destinatários sucessivos, conforme "leiam" eles essa representação. A palavra que, do lado do narrador, resume melhor esse saber-poder é semaínein. Com efeito, através de todas as intervenções, diretas ou indiretas, na narrativa, o narrador visa a semaínein, a fazer ver e a fazer saber. Pois semaínein é fazer ver e fazer saber a pessoas que não viram por si mesmas coisa alguma: assim acontece 363
com relação ao vigia instalado sobre um promontório, que vem advertir sobre os movimentos da frota inimiga. 170 Reencontramos, portanto, a autópsia. Mas é também fazer ver e fazer saber a pessoas que não possuem esse tipo de saber: saber acima do humano, de caráter oracular, por exemplo, como o de Tritão; 171 saber excepcional, como o que invoca Creso para dar conselhos a Ciro; 172 ou, ainda, saber do hístor, de quem investigou e sabe os erros cometidos por seus predecessores, 173 ou o nome de quem tomou a iniciativa das hostilidades entre os gregos e os bárbaros,174 ou a extensão do litoral da Cítia, ou ainda a medida precisa da estrada real desde o mar até Susa.175 Entre a ciência do agrimensor e o saber da Pítia, existe uma relação metafórica, se é verdade que a Pítia se designa, na resposta aos enviados de Creso, como a que sabe o número dos grãos de areia e as medidas do mar. Semaínein, portanto, quer dizer precisamente que o narrador é, a um só tempo, rapsodo e agrimensor. Único sujeito da enunciação, o narrador é o tradutor da diferença: ele é o condutor entre lá e aqui —- ou poros entre o mundo em que se conta e o mundo que se conta. Para fazer crer, no mundo em que se conta, no mundo que se conta, não pode ele fazer outra coisa senão desenvolver e manobrar toda uma retórica da alteridade, cujas figuras e procedimentos repousam, em última instância, na polaridade de dois termos: "eles" e "nós", os "outros" (ainda que tão diversos) e os "gregos". Funcionam, assim, a comparação, a analogia, mas também o thôma (eu sou o real do outro), a tradução, a inversão, que representa o limite, se é verdade que eles são nosso inverso, que eles não são mais que nosso inverso. A estabilidade dessa polaridade (eles/nós) é tão grande, que extravasa a mera expressão através das figuras de retórica, já que é ela, enfim, que justifica a leitura do lógos cita de acordo com o princípio do desvio sistemático: não se tem nenhuma chance de compreender os nómoi citas, a não ser a partir do momento em que se admite a hipótese de que são os nómoi gregos que os informam. A conjugação desses nómoi e de seu "modelo ausente" produz desvios, cuja leitura, num segundo tempo, tenta precisar o sentido, buscando a lei que os organiza. Assim aconteceu com os funerais dos reis, com as práticas sacrificais, culminando nessa imagem bizarra 364
do boi que se cozinha a si mesmo ou ainda nas práticas guerreiras que se organizam em torno da figura de Ares. Há eles — e eles são seguramente diversos: os persas, evidentemente, são diferentes dos egípcios que, de sua parte, se distinguem completamente dos citas etc. Mesmo no interior dos povos nômades, encontram-se diferenças no gênero de vida. Entretanto, ao mesmo tempo, a narrativa é secretamente trabalhada pela exclusão do terceiro. 176 Assim acontece no caso dos citas e das amazonas: com efeito, a alteridade cita apreende-se com relação aos gregos que, segundo termo implicitamente presente no saber compartilhado pelo destinatário, intervêm como termo de referência; mas, tão logo entram em cena as amazonas, o dispositivo muda imperceptivelmente, tornando-se os citas quase-gregos. Tudo se passa como se a narrativa fosse incapaz de pensar a alteridade em segundo grau das amazonas, assim definida com relação à alteridade cita, a qual já fora apreendida com relação ao mundo grego. "Desse modo, para tornar apreensível para o destinatário a essa outra alteridade, não pode a narrativa fazer mais que restabelecer uma estrutura binária: eles/nós, isto é, elas/ ^citas — quase-nós. Essa polaridade nós já encontramos com os persas de Dario, na Cítia. Na Cítia, os persas se conduzem como quase-hoplitas, enquanto na Grécia se conduzem como bárbaros, não sabendo combater. 177 Esse comportamento é ainda mais surpreendente na medida em que a lógica da narrativa faz dos citas uma espécie de atenienses defensores da liberdade. Temos, pois, quase-hoplitas opostos a quaseatenienses? De fato, como considerar a alteridade da estratégia cita, em face da alteridade da maneira de combater dos persas? Pois uma e outra se apresentam tendo como referência o modelo grego (aporia/ausência de táxis). Mas como pensá-los um com relação ao outro? Como "capturar" a aporia e a ausência de táxis? Como fazer ver e fazer crer? A narrativa elimina aquele dos dois termos que contém menos alteridade: neste caso, os persas, que se tornam quase-hoplitas. Resta então a aporia (promovida ao posto de verdadeira estratégia) em face da falange, o que ressalta ainda mais sua alteridade. Dizer o outro, enfim, é muito evidentemente uma forma de falar de nós, se é verdade que a narrativa não pode escapar 365
da polaridade eles/nós, a qual constitui sua armação infrangível. Um dos efeitos do texto é, portanto, contribuir para cercar o nós}78 Dizer os outros, com efeito, é fazer ver uma representação do mundo, fixar seus limites e inventariar os povos que o habitam — mas é também pressupor que os gregos ocupam uma posição mediana: que se recorde a geografia das Histórias, o curso do Nilo e do Istro, com a aplicação do princípio de simetria. É o fato de construir essa representação em função de um espaço grego do saber que, implicitamente, aloja sempre o observador (grego) em si mesmo. Dizer o outro é fazer saber que entre eles e nós, além da variedade de nómoi, a diferença mais profunda é política ou de poder: à isonomia opõe-se a monarquia-tirania. O outro é real. Mais precisamente, é construir uma representação, que se desenvolve em torno de um elemento que vem a ser uma questão para o nós, ou mesmo que o questiona. Assim acontece com o lógos cita. As práticas citas, as figuras e procedimentos que, na narrativa, referem-se a elas, organizam-se todas, no seu conjunto, em torno desta questão fundamental: mas c o m o se pode ser nômade? Quem é esse estranho, escandaloso para nós, pessoas acostumadas com a vida na cidade? Se, para o narrador das Histórias, o nomadismo não se resolve como um não-ser, é porque, graças à metáfora da insularidade, ele pode ser traduzido em termos de estratégia, da nossa estratégia. Pois se o texto funciona etnocentricamente — eles e nós, eles com relação a nós, mundo que se conta traduzido no mundo em que se conta — tem isto de particular: não ser nem deliberadamente, nem sistematicamente helenocêntrico. Nós não somos o futuro deles: Heródoto não crê, como Tucídides, que os bárbaros de hoje vivam como os gregos de outrora. 179 Ele não pretende também, em face deles, dar-lhes uma lição de escrita: sua escrita não é a verdade dos discursos bárbaros, reduzidos, por isso, à condição de fábulas. Inversamente, o outro não é também a verdade para nós: ele não é o modelo de alguma via segundo a natureza, que é preciso imitar. O Anácarsis de Heródoto não se encontra nem na escola da Grécia, nem é um mártir do helenismo, mas não é também um representante da via cínica, que denigre a frouxidão da 366
vida na cidade; ele não é um modelo na escola de quem deveriam entrar os gregos; 180 não, como seu compatriota Ciles, trata-se de um transgressor que crê poder ultrapassar impunemente as fronteiras, "esquecendo-se" de que entre eles e nós existem fronteiras. Assim, em suma, existem elese nós, não se apresentando Heródoto nem como zelador da cultura, nem como advogado da natureza. f
Os outros, eles, estão presentes na narrativa sob a forma da terceira pessoa, isto é, da não pessoa. 181 Nada de surpreendente nisso: introduzidos pelo narrador, em sua narrativa, como sujeito do enunciado, mas jamais da enunciação, eles são produzidos por nós (eu + vocês). Mas o espantoso é que, na maioria das vezes, a primeira pessoa do plural, nós, é efetivamente substituída pela terceira: não nós, mas os gregos, portanto a forma da não-pessoa — os outros e os gregos, os gregos e os bárbaros, eles e eles,182 O que designa essa denominação? O narrador fala dos gregos quanto relata acontecimentos que tiveram lugar na Grécia de outrora: os gregos fizeram isso ou aquilo, julgaram tal ou tal coisa... Gregos significa também certos gregos, que habitam esta ou aquela região (os gregos do Ponto, por exemplo), ou que têm esta ou aquela opinião, que Heródoto considera como erro ou tolice. 183 Dizer os gregos é, em suma, uma maneira, para o narrador, de pôr-se à parte. Com efeito, se nós é eu + vocês, isto é, "uma globalidade indistinta de outras pessoas", 184 dizer os gregos é um modo de reforçar a posição do narrador como único sujeito da enunciação, único sujeito que sabe e diz. Mestre do ver, mestre do saber, mestre do crer pelo uso das figuras e procedimentos de uma retórica da alteridade, postos em movimento pelo jogo das marcas da enunciação, Heródoto nomeia, inventaria, classifica, conta, mede, dimensiona, põe em ordem, traça os limites, distribui louvor e censura, diz menos do que sabe, lembra-se. Ele sabe. Ele faz ver, faz saber, faz crer.
367
CONCLUSÃO A HISTÓRIA DE UMA PARTILHA Os citas, os outros. Heródoto viajante e contador de narrativas de viagem. Heródoto etnógrafo ou etnólogo. Heródoto agrimensor da alteridade e rapsodo da oikouméne. Sem dúvida, foi com ele que caminhamos ao longo destas páginas. Mas a questão que, de volta, desde então, se põe, é esta: este Heródoto representa um outro Heródoto? É verdadeira e profundamente diferente do Heródoto "historiador das Guerras Médicas"? Ou, se avançarmos mais: é ele efetivamente um outro Heródoto, sua parte de sombra? A essa questão, não se pode responder simplesmente sim ou não — e responder com precisão requereria considerar o conjunto da historiografia de Heródoto ou fazer a história das interpretações sucessivas de sua obra. Todavia, se seguirmos a tradição do mentiroso, da forma como a delineei, descobriremos que não há, nem de imediato, nem sempre, superposição da figura do mentiroso à do etnógrafo (ou do Heródoto dos outros): ele não é "mentiroso" porque fala dos não-gregos ou somente quando fala deles. Para Tucídides, com efeito, o mythôdes fabricado pelos logógrafos aplica-se tão bem aos ditos sobre os bárbaros, quanto às narrativas de guerra, mesmo próximas, e, talvez mais a essas últimas, na medida em que procedem quase que exclusivamente da akoé. Ctésias, por razões evidentes, visa antes de tudo as declarações feitas com relação aos persas. Já Plutarco, por razões não menos evidentes, pretende denunciar as mentiras mais "malignas" e mais graves, portanto, aquelas que, mais que tudo, dizem respeito aos próprios gregos. Em sua Apologia, Estienne, que não fala diretamente das Guerras Médicas, interessa-se sobretudo pelo Heródoto dos outros: para defendê-lo, apela para exemplos análogos,
tomados de muitos autores gregos e latinos, utilizando a comparação. A inverossimilhança de tal costume, relatado outrora por Heródoto, desmancha-se a partir do instante em que se queira olhar com o mesmo olho tal costume presente hoje na Itália, na Germânia, em Flandres ou na Espanha; do mesmo modo, a inverossimilhança do que é relatado, em certos momentos, sobre os persas, adelgaça-se de imediato, quando posta em paralelo com o que se sabe hoje dos turcos e do Tamerlão.^Enfim, se, para o Abade Bonnaud, Heródoto é um mentiroso, é por uma questão de princípio, que o ultrapassa singularmente, mesmo sendo ele o primeiro historiador: a história profana, de fato, não pode ser senão mentirosa — ou mitológica. Se atentarmos agora na esfera do historiador das Guerras Médicas — sobretudo, do modo como os modernos construíram sua figura, constataremos que, até o fim do século XVIII, sua narrativa das operações de guerra não foi seriamente contestada. 2 Com o século XIX e a pesquisa das fontes, a situação mudará, prevalecendo a suspeita. De tanto descobrirem as fontes, de toda espécie, em que ele bebeu, os eruditos terminaram fazendo desaparecer o texto das Histórias, se é verdade que Heródoto viveu de empréstimos, se não de pilhagem. Hauvette resume assim a situação em 1894: Todos os eruditos até aqui enumerados — Niebuhr, Nitzch, Wecklein, Delbrück — admitem que Heródoto buscou sua história das Guerras Médicas numa tradição oral ou, pelo menos, quase que exclusivamente oral. [...] Rejeitam assim a idéia de que Heródoto tenha reproduzido, em seu livro, uma história já feita. [...] Uma teoria contrária, apresentada já no começo do século por Creuzer e defendida depois por alguns eruditos, ganhou em nossos dias, principalmente nos últimos dez anos, uma posição preponderante. [...] Consiste em sustentar, com maior ou menor consideração, que o historiador compilou, sem dizê-lo, um grande número de trabalhos anteriores, tendo verdadeiramente pilhado seus a n t e c e d e n t e s . Aplicada, de início, de modo geral, a todo o livro de Heródoto, essa teoria foi usada, apenas recentemente, com relação à parte da obra que trata das Guerras Médicas. 3
Os promotores mais perspicazes dessa posição foram Sayce, Diels, Panofsky e Trautwein.4 Assim, Heródoto inventa tradições orais que jamais existiram ou dissimula fontes escritas que, 370
por seu lado, existiam muito bem. A Quellenforschung portanto um novo avatar do mentiroso.
produz
Pouco depois, em 1909 e 1913, F. Jacoby renova profundamente a questão. 5 Para ele, com efeito, a pergunta é, antes de tudo, relativa ao nascimento da história: quando e como os gregos se tornaram historiadores? Que lugar ocupa Heródoto nessa evolução? Não é, pois, a figura do mentiroso que interessa, mas a do pai; não são as mentiras, mas a paternidade que ele questiona. Recordem-se suas conclusões: Heródoto, de início etnógrafo e geógrafo, tornou-se historiador apenas depois de sua estada em Atenas. Sua obra guarda, portanto, os traços de um "corte epistemológico": antes, quando ele ainda não era historiador; e depois, quando o é verdadeiramente. O Heródoto dos outros, dos primeiros livros, pertence justamente a esse mundo de antes. Trata-se de um modo, portanto,- de preservá-lo, pondo-o a distância: ele é, de fato, um outro Heródoto. Uma vez fixado esse critério, daí em diante é com relação a ele que os comentadores e historiadores tomarão posição — aceitando-o, modificando-o ou contestanto-o. 6 Assim, K. von Fritz, que adota esse ponto de vista evolutivo, irá refiná-lo, identificando um primeiro "corte" (epistemológico) durante a viagem ao Egito, que data, com precisão, por ocasião da visita ao labirinto: O ponto de virada é provavelmente marcado por sua visita a Fayum, onde o assim chamado Lago de Méris e o Labirinto lhe causam uma enorme impressão no espírito. A partir desse momento, ele parece ter desenvolvido um verdadeiro interesse pelos costumes e pela religião dos egípcios. 7
Todavia, esse alargamento de interesses não é ainda verdadeiramente história, pois, "no fim de sua jornada, ele parece ainda não ter-se dado conta da necessidade de uma ordem cronológica. Ele não tinha ainda descoberto que isso é uma base indispensável para a verdadeira historiografia." 8 Sob o viajante, manifesta-se já o historiador — e a fronteira da alteridade recua! Mas, em resumo, a Entivicklungstheorie não deixa também de dividi-lo em dois. Sem levantarem a questão da historiografia grega, nem o problema da paternidade da história ou das mentiras, 371
examinando apenas as Histórias, certos autores concluíram, ao contrário, pela unidade da obra, 9 que liam como sendo "um único lógos".]0 Desde então, a dualidade desmoronou, e os lógoi etnográficos deixaram de ser tratados apenas como digressões pré-históricas. Eis pois, de modo esquemático, como se apresentou, em geral, a questão do mentiroso e do Heródoto dos outros, do historiador e do etnólogo. Mas como se apresenta ela para nós, levando-se em conta as páginas precedentes? Segundo que critério formular o que, para nós, constitui de novo um problema? Antes de tudo, a consideração das injunções narrativas mostrou, a partir de um exemplo preciso, como a separação da obra em duas partes não procede. A guerra de Dario na Cítia remete à expedição de Xerxes na Grécia: a segunda é necessária para a inteligibilidade da primeira, que é, ela própria, uma repetição geral da Segunda. 11 De mais a mais, ao longo das Histórias, trata-se sempre d eles, os outros, e de nós, os gregos, mesmo se a mise en scène varia de um livro para o outro; mesmo se, no /ógos dos outros, o nós está muitas vezes presente apenas de modo implícito, ele é esse espectro perpétuo que, imperceptivelmente, se insinua na narrativa. E esses lógoi são também um modo de cercar o nós. Já a história das Guerras Médicas põe explicitamente em cena o nós em sua luta contra eles e, fazendo isso, constrói para nós uma representação do passado próximo, elaborando uma nova memória em torno de tò Hellenikón.12 Pelo menos implicitamente, num caso, explicitamente, no outro, o nós está sempre presente na narrativa. O que provavelmente varia, entre os lógoi consagrados aos outros e os reservados às Guerras Médicas, é a posição do destinatário: sem dúvida, ele sabe mais sobre as guerras que sobre os outros. Com relação às guerras, o mundo que se conta encontra-se no mundo em que se conta. Vimos, todavia, na maneira como o texto faz crer, que não é tanto a quantidade de informação nova que deve-se levar em conta, mas seu tratamento pelo narrador (dizer sim o que se diz, mas dizê-lo de um certo modo, dizendo o que é "notável"). A questão que retorna pode, daqui para a frente, ser formulada assim: se o fazer-crer opera bem através das 372
intervenções do narrador na narrativa, c o m o Heródoto intervém na exposição das Guerras Médicas? Ele se encontra mais ou, ao contrário, menos presente? Ele está presente de um modo diferente daquele como esteve nos lógoi dos outros? A essa questão, três sondagens, à guisa de resposta. A primeira diz respeito ao thôma e aos érga thomastá-. o que acontece na narrativa das guerras, se é verdade que o thôma constitui uma rubrica da narrativa de viagem e que a maravilha requer o olho-medida do viajante, se é verdade também que as Histórias pretendem justamente impedir que os érga megála te kai thomastá cessem de serem contados (tornem-se akléa')? No caso das guerras, érgon notável ou admirável não é mais um rio, um lugar ou um monumento, mas, antes de tudo, uma façanha. Entretanto, uma vez feita essa diferença, é surpreendente constatar que o érgon thaumastón é apreendido, construído e, enfim, dito de acordo com os mesmos procedimentos utilizados nos lógoi dos outros. Os dois espartanos, Esperties e Bulis, tiveram uma conduta "digna de admiração" ( a x í e thómatos), do mesmo modo como é "digno de admiração", por sua altura e espessura, um dique da Babilônia. 13 Lembre-se como o labirinto do Egito provoca um thôma "além do dizível" ( l ó g o u mézó), do mesmo modo que a ação do adivinho Hegesístrato que, para escapar, não hesita em cortar seu pé preso nos entraves, provocando também um thôma mézon lógou}4 Ou ainda, descrevendo a colheita dos arômatas, o narrador realiza de fato uma classificação, em função de uma escala implícita do thôma, que vai do menos "extraordinário" ao mais "extraordinário"; ora, existe também, na narrativa das guerras, uma certa gradação do thôma, que se expressa principalmente pelo emprego do superlativo.15 Enfim, do mesmo modo que o olho do viajante é o que garante o thôma, assim também o narrador é, em muitos casos, a referência do thôma (thôma mói-, é um thôma para mim 16 ) — mesmo se, no primeiro caso, o olho o atinge, rodeia, avalia e mede, enquanto, no segundo, a intervenção do moi sublinha, ao contrário, o lado espantoso ou incompreensível do fenômeno relatado, o fato de que ele não se deixa capturar. Em todo caso, sou eu que sou o juiz.17 Segunda sondagem: o notável ou, segundo a expressão de Heródoto, "o que é digno de ser relatado" ( á x i o s apegésios). 373
Com esse mesmo instrumento, o autor recorta o tecido de todas as coisas dignas de serem ditas ou escritas, que existem tanto junto dos outros, quanto junto de nós: de todas as maneiras de caçar o crocodilo, "escreve" a que lhe parece "a mais digna de ser relatada" ( a x i o t ã t e apegésios); do mesmo modo, com relação aos acontecimentos que tiveram lugar em Atenas, desde o fim da tirania, até a época da revolta da Jônia, afirma que irá "dizer os mais dignos de serem relatados" (axiókhrea apegésios).™ A retomada dessa expressão parece indicar que a abordagem do narrador não varia, trate-se de hábitos longínquos ou de acontecimentos passados, dispondo-se ele a tratá-los do mesmo modo. Enfim, de uma ponta à outra da narrativa, ele é aquele que faz ver e que faz saber: aquele que semaínei. Sei quem tomou a iniciativa dos atos injustos contra os gregos e vou dá-lo a conhecer ( s e m a í n e i n ) . Após o que, "avançarei na seqüência de meu lógos", ou seja, eu próprio cumprirei o percurso que é meu discurso e, ao mesmo tempo, serei o guia. Assim, não parece delinear-se um lugar diferente do narrador na narrativa, uma diferença entre o rapsodo da alteridade e o historiador das guerras. Pelo contrário, ele parece passar do outro ao próprio, permanecendo completamente o mesmo — sendo provável que o Heródoto dos outros não seja um outro Heródoto, ou que esse outro Heródoto, que existe todavia, seja um produto das interpretações de Heródoto: ele pertence antes à historiografia de Heródoto e é veiculado por ela. Escrever isso, entretanto, não significa pretender que, além dessa perspectiva diacrônica, encontrarei o texto, isto é, o verdadeiro Heródoto: pretensão ao mesmo tempo tola e errada.19 Simplesmente, o que torna possível essa abordagem ou esse retorno a Heródoto é um deslocamento do campo histórico, marcado, muito grosseiramente, tanto pelo recuo da história fática e política (ou de uma certa história política), quanto pelo impulso da antropologia histórica ou da etno-história (da qual Heródoto pode mesmo tornar-se o pai), bem como pelas interrogações recentes sobre o imaginário das sociedades. É isso que, no campo da história antiga, permite que nos livremos do constrangimento de olhar as Histórias através de A Guerra do Peloponeso— ou Heródoto como, sem dúvida, o primeiro historiador, mas também como o predecessor de 374
Tucídides. O que permite igualmente ler o lógos cita como um discurso sobre os citas imaginários. Resta o fato de que os julgamentos emitidos sobre ele — aqueles a que nos referimos acima, mas também outros — mostram como é, de fato, um ponto de inquietação, talvez em vista da incerteza sobre o lugar que ocupa. Quem é ele? Onde está? Rapsodo? Sofista? Historiador? Mas isso não é uma profissão. Donde a incerteza, que nos esforçamos para reduzir. Daí a inquietação, que cuidamos de conjurar. Sem dúvida, ele pretende dizer lógoi, mas, de fato, seus lógoi são provavelmente mythoi — e assim reencontramos a imagem do ingênuo; outra alternativa: ele transmite como lógoi histórias que são de fato mythoi, isto é, pseúdea, mentiras — e reencontramos a imagem do mentiroso. Afinal, é tranqüilizador que ele seja mentiroso: pelo menos sabemos com o que lidamos, podendo o intérprete dar mostras de sua perspicácia. Ou, no lugar do intérprete, o pesquisador e seu duplo, o mitólogo. Ou o contador de mythoi, duplicado em seu outro, o historiador. O prestígio da expressão isto aconteceu produz o mais seguro efeito de realidade no discurso histórico; 20 mas, no caso das Histórias, o efeito de realidade é minado pela dúvida: a partir daí, temos não mais o prestígio do isto aconteceu escorando o discurso, mas, ao contrário, solapa-o a inquietude do isso não aconteceu, ou não aconteceu assim. A guerra cita aconteceu mesmo? Desenrolou-se assim? Indo ainda mais longe, põe-se a questão do real. Na prática do historiador, a posição do real é dupla: O real enquanto o conhecido (aquilo que, de uma sociedade passada, o historiador estuda, compreende ou "ressuscita"); e o real enquanto o implicado pela operação científica (a sociedade presente, à qual se referem a problemática do historiador, seus procedimentos, seus modos de c o m p r e e n s ã o e, finalmente, uma prática do sentido). De um lado, o real é o resultado da análise; de outro, é seu postulado,2'
No caso de Heródoto, contudo, o real não seria alcançável nem no ponto de partida, nem no ponto de chegada, nem como postulado (pela incerteza do lugar que Heródoto ocupa), nem 375
como resultado lógoi/mythoi).
(em vista da inquietude com relação a seus
Num sentido amplo, a maneira mais eficaz de conjurar essa inquietude foi fazer dele o pai da história. Com efeito, trata-se de um modo de atribuir-lhe um lugar, mas também modo de pô-lo à parte. De mais a mais, instalado no limiar da história, velho ídolo enegrecido que se saúda ritualmente, sua invocação tem virtudes apotropaicas: ela assegura, ao meu destinatário, que meu próprio texto, por seu lado, não é mentiroso. Finalmente, sua posição resume-se no seguinte paradoxo: sendo sem dúvida o pai da história, não é verdadeiramente um historiador, como se a paternidade devesse necessariamente comportar uma parte inacabada. Cícero, que é o primeiro autor que conhecemos a reconhecer-lhe o título de pai, começa lembrando a diferença entre história"e poesia: uma tem em vista a verdade, enquanto a outra tem em vista o prazer (delectatió). Logo, entretanto, ele tem de pôr à parte Heródoto, que é, de qualquer modo, anterior a essa classificação, pois se encontra, ao mesmo tempo, no lado da verdade e no lado do prazer. Sem dúvida, a distinção entre história e poesia é bem a que acabei de dizer, "ainda que em Heródoto, pai da história, [...] haja inumeráveis fábulas" ( q u a m q u a m et apud Herodotum, patrem historiae[...]sunt innumerabilesfabulae).22 Ele embaralha as categorias, escapa às leis do gênero e transgride as regras do ofício. Quando Vivès declara que mais valeria chamá-lo pai das mentiras, que pai da história, trata-se de uma piada. Mas a aproximação, pela historiografia, dessas duas figuras não acontece provavelmente por acaso: por que elas retornam, uma ou outra, uma e outra, tão constantemente? Ver nele o pai, de um lado, e, infelizmente, também o mentiroso, do outro, um duplo vergonhoso que ele arrasta atrás de si, é, de fato, muito simplista. Não, ele é, a um só tempo, pai e mentiroso, pois justamente na medida em que ocupa esse lugar à parte, próprio do pai, escapa, em parte, das leis do gênero de que se lhe reconhece a paternidade, podendo ser também o mentiroso. O pai não é necessariamente o mentiroso, mas é porque ele é o pai, que surge igualmente como o mentiroso. Olhando-os assim, Heródoto e a seqüência de suas interpretações formam um espelho que aumenta as 376
coisas, através do qual se pode propor esta questão, velha como Heródoto, a qual atualmente se propõe de novo para nós e nos concerne: a questão da história e da ficção. Ainda mais que o torniquete da ficção não pára por aí: se é verdade que o próprio Heródoto constitui como mythostudo aquilo que, em seu texto, põe a distância; se é também verdade que ele é logo classificado como mitólogo por seus sucessores — inversamente, na época helenística, não é menos verdade que os autores de romances o utilizam, justamente para conferirem a seus textos um efeito de realidade. Este é o caso, por exemplo, das Efesíacas de Xenofonte, dito de Éfeso. Demonstrou-se que o próprio autor não conhecia a cidade de Éfeso (onde se desenrola a ação), tendo tomado emprestado de Heródoto um certo número de detalhes topográficos, assim como nomes de personagens. 23 O mentiroso vai em socorro da ficção, para torná-la crível! Pai e mentiroso, história e ficção — mais concretamente: como fazer história com um texto como as Histórias, se é verdade que, segundo a fórmula atribuída a Fustel de Coulanges, "a história se faz com textos"? 24 Questão que se formula também assim: como ler? Questão à qual este livro tentou dar uma resposta. Mas, de modo mais abrangente, uma leitura desse tipo obriga-nos a nos interrogarmos sobre o documento: 25 o que é um "documento", tomado e retomado por vinte e cinco séculos de bibliografia, moldado e trabalhado por vinte e cinco séculos de historiografia? Ou ainda: o que é um texto histórico? O que o constitui como tal? A partir de que pode ser reconhecido? De qual efeito (particular) é portador?
377
N
O
T
A
S
PREFÁCIO 0 VELHO HERÓDOTO 1
Ver, por exemplo, a edição que vem sendo publicada sob os auspícios da Fundaçãp Lorenzo Valia, Mondadori Editore: o primeiro volume, datado de 1988, com texto e comentários de D. Asheri, traz uma substancial introdução e uma breve bibliografia geral.
2
L'annéphilologique, que elenca as publicações na área dos estudos clássicos, é um meio fácil de avaliação. Nos últimos dez anos, pode-se encontrar uma média de setenta itens por ano, consagrados em parte ou no todo a Heródoto. Ou seja: para tomar um simples ponto de referência, em torno de setecentas publicações desde a aparição da primeira edição de O espelho de Heródoto.
3
Toda a obra de A. Momigliano poderia ser citada aqui; ver, por último, The Classical Foundations ofModem Historiography (University of Califórnia Press, 1990): ver ainda, em francês (enquanto se esperam outras publicações), Problèmes d'historiographie ancienne et moderne. Paris: Gallimard, 1983.
4
DANOU, P. C. F. (discípulo de Volney, representante da Ideologia). Cours d'études historiques. Paris: Gallimard, 1842. p.XXXIII.
5
DE CERTEAU, M. La fable mystique. Paris: Gallimard, 1982. p.105: "Da interferência entre práticas discursivas e a nomeação de um lugar, nasceu uma nova disciplina." Em O discurso da história, Barthes chamou a atenção para os mecanismos de embreagem do discurso histórico e, sobretudo, para seus protocolos de inauguração. (BARTHES, R. Le bruissement de langue. Paris: Le Seuil, 1984. p. 154-159.) Historie é a forma jónica para historia.
6
PRESS, G. A. The Development of the Idea ofHistory in Antiquity. McGill-Queen's University Press, 1982.
7
HERÓDOTO, I, 1.
8NAGY, 9
G. Herodotus the Iagios. Arethusa, v.20,1-2, p.175-184,1987.
VERNANT, J.-P. L'individu, la mort, l'amour. Paris: Gallimard, 1989p.94.
10
Ibidem, p.114.
1HORAUX,
N. Mourir devant Troie, tomber pour Athènes: de la gloire du héros à l'idée de cité. In: GNOLLI, G., VERNANT, J.-P. La mort, les morts dans les sociétés anciennes. Cambridge: Cambridge University Press; Paris: Maison des Sciences de l'Homme, 1982. p.27-43.
12
HERÓDOTO, I, 5.
13 Encontram-se
de novo persas falando "grego" por ocasião do famoso debate constitucional (HERÓDOTO, III, 80-82). Mas, desta vez, não são mais os raptos que são constituídos em série, mas as constituições.
14
A versão fenícia é ainda pior: não só o papel de amante não é mais representado por Zeus (mas pelo capitão do navio), como Io foge porque está grávida.
15
Mesmo se parece, mais à frente ( HERÓDOTO, II, 113 et seq.), que, sobre Helena e a Guerra de Tróia, confia ele no saber dos egípcios, que combina historie com ciência certa (atrekéos). Heródoto não pode, pois, adotar a versão persa.
16
Limitar-me-ei aqui a esta única pista. A obra de G. A. PRESS, The Development of the Idea ofHistory in Antiquity, sugere outras vias de aproximação desta noção.
17
HOMERO. Ilíada, XIX, 258 et seq.
18
BENVENISTE, É. Le vocabulaire des institutions indo-européennes. Paris: Minuit, 1969. t. II, p. 173- CHANTRAINE, P. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris: Klincksieck, 1974, s.v. oîda.
19
SAUGE, A. De l'épopée à l'historié. Fondement de la notion de historie. Gèneve, 1991. (Tese).
20
HOMERO. Ilíada, XXIII, 485-487.
21 Ibidem. 22
XVIII, 498-508.
BENVENISTE, É. Le vocabulaire des institutions Paris: Minuit, 1969. t. II, p.174.
380
indo-européennes.
23
HERÓDOTO, I, 23-24.
24
Para outras ocorrências de historie, ver, sobretudo, HERÓDOTO, III, 99, 119...
25
Fr. Gr. Hist., 1 F1 (JACOBY), DETIENNE, M. L'invention de la mythologie. Paris: Gallimard, 1981. p.134-145; HARTOG, Fr. Écritures, généalogies, archives, histoires en Grèce ancienne. In: Mélanges Pieire Lévêque. Besançon: Université de Franche - Comté, 1991. v.V, p.181-183.
26
SVENBRO, J. Phrasikleia. Anthropologie de la lecture en Grèce ancienne. Paris: La Déconverte, 1988, especialmente p.74-76, 166, onde se encontrarão observações sutis e esclarecedoras sobre a voz, a escrita e o nome próprio.
27
BENVENISTE, É. Problèmes de linguistique générale. Paris: Gallimard, 1966. p.228: "A terceira pessoa não é uma pessoa; é mesmo a forma verbal que tem como função exprimir a nãopessoa."
28
Encontra-se uma mudança de registro análoga em Hecateu de Mileto: depois do nome próprio inicial e da terceira pessoa ("Hecateu conta..."), passa ele à primeira pessoa ("escrevo...").
29
HOMERO. Odisséia, 1,1. Sobre a enunciação, ver a mise anpointe as observações agudas de CALAME, Claude. Le récit en Grèce ancienne. Paris: Klincksieck, 1986, especialmente p.69-81.
% VERNANT, J.-P Mythe et pensée chez les grecs. Paris: La Déconverte, 1988. p.111-112. 31
HOMERO. Odisséia, VIII, 487-492: "como alguém que tivesse estado presente", com a distinção entre o olho e a orelha. Esta passagem poderia representar a primeiríssima narrativa de um historiador (Ulisses, ouvindo a evocação de seus próprios feitos na terceira pessoa — como se estivesse morto — não pode, por outro lado, reter as lágrimas), salvo que o aedo não é um voyeur, mas um vidente.
32
HESÍODO. Teogonia, 1-34.
33
Ibidem. 31.
34
HOMERO. Ilíada, II, 485-486.
35
Tucídides mesmo sucumbirá a isso, pois a terceira pessoa inicial (no nominativo) dá lugar, no parágrafo seguinte, a uma marca de primeira pessoa (no dativo, é verdade, e sob a forma de um "a mim que observo": skopoímtímoi( TUCÍDIDES, I, I, 2).
381
«
36
Simples indicações dando o tom (ressaltando o que G. Genette chamou indicações de produção) ou esboços de comentários, todas essas marcas de enunciação foram bem estudadas: além de CALAME, Cl. Le récit en Grèce ancienne. Paris: Klincksieck, 1986, ver também BELTRAMETTI, A. Erodoto: una storia governata dal discorso. Il raconto morale come forma delia memoria. Firenze: La Nuova Italia, 1986.
37
CALAME, Cl. Le récit en Grèce ancienne. Paris: Klincksieck, 1986. p.78-79: "Em compensação, a substituição [...] do vós das Musas pelo ele/lógos revela-se muito mais significativa: marca provável da descoberta do documento, mesmo se ainda não definido enquanto tal; descoberta de um discurso assumido por um eles coletivo, a despeito dos atos de sanção de que por vezes é objeto da parte do eu. Esse eu, mostrando os signos de sua autonomia, constitui-se, assim, nos e pelos lógoi dos outros — com o risco de, no ensejo, distanciar-se de si." Nessa relação de interlocução, indica-se um outro aspecto da constituição do eu.
38
TUCÍDIDES, I, XXII, 2. LORAUX, N. Thucydide a écrit la guerre du Péloponnèse. Métis, v.l, p,139-l6l, 1986; HARTOG, Fr. L'oeil de Thucydide et l'histoire véritable. Poétique, 49, p.22-30, 1982.
39
HARTOG, Fr. LeXD? siècle et l'histoire. Le cas de Fustel de Coulanges. Paris: P.U.F., 1988. p.148-155.
40
Syngrapheús, que pode ter o sentido técnico daquele que redige os projetos de lei ou um contrato, designará também o escritor em prosa e, mais particularmente, o historiador.
41
WHITE, H. The Content of the Form. Narrative Discourse and Historical Représentation. The Johns Hopkins University Press, 1987.
42
Para uma perspectiva diferente sobre a citação (com a qual não estou de acordo), ver GINZBURG, C. Montrer et citer, la vérité de l'histoire. Le Débat, n.56, p.43-54, 1989-
43
DE CERTEAU, M. L'écriture de l'histoire. Paris: Gallimard, 1975. p.lll.
INTRODUÇÃO 0 NOME DE HERÓDOTO 1
O último levantamento dos estudos sobre Heródoto foi feito por BERGSON, L. Herodot 1937-1960. Lustrum, v.ll, p.71-138, 1966
382
(onde se encontram as referências das bibliografias anteriores). Ver também GRIFFITH, G.T. The Greek Historians. In: Fifty Years (and twelve) of Classical Scholarship. Oxford, 1968. p.182-241. Além das bibliografias parciais existentes nos livros e artigos referentes a Heródoto, aparecidos desde então, pode-se consultar as observações de VERDIN, H. Hérodote historien? Quelques interprétations récentes. L'Antiquité Classique, p.668-685, 1975. Agradeço a todos que, durante o desenvolvimento deste trabalho (defendido como tese de Doutoramento de Estado na Universidade de Franche-Comté, em junho de 1979), demonstraram-me sua amizade, emprestando-me seus olhos e ouvidos, e, muito particularmente, a Michel de Certeau, Marcel Detienne, Jean-Louis Durand, Pierre Lévêque, Éric Michaud, Jacques Revel, Jean-Pierre Vernant, Pierre Vidal-Naquet. *
2
LEFORT, C. Le travail de l'oeuvre. Machiavel. 1972. p.24.
Paris: Gallimard,
3
Uma forma de eludir a questão consiste em brincar com o parentesco. Assim, MARROU, H.-I. (De la connaissance historique. Paris, 1954. p.27): "Heródoto nos aparece menos como o 'pai da história', que como um avô um pouco recaído na infância, e a veneração que professamos por seu exemplo não é isenta de algum sorriso protetor."
4
Por exemplo, BAUER, A. Herodotos Biographie. Wien, 1878. Sobre a biografia, pode-se consultar LEGRAND, P.-E. Introduction et commentaires. In: HÉRODOTE. Histoires. Paris, 1955. p.5-37. (Collection des Universités de France)
5
Túrios, colônia pan-helênica fundada em 444-443; cf. WILL, E. Le monde grec et l'Orient. Paris, 1972. p.276-282.
6
As viagens de Heródoto foram também colocadas em dúvida: ele teria simulado viagens que não fez ou que fez apenas parcialmente; o mestre neste ponto de vista é SAYCE, A. H. The Ancient Empires o/East, Herodotus/-///. London, 1883. p.XXV-XXX.
7
Sucia, s.v. Herodotos; MARCELINO. Vida de Tucídides, 17, precisa inclusive que os túmulos de Heródoto e de Tucídides são vizinhos!
8
Encontrou-se até um gramático (do tempo de Nero) que sustentava que o prólogo não era de Heródoto, mas de seu amigo, o poeta Plesíroo (FÓCIO. Biblioteca, 148 b).
9
Sobre a noção de horizonte de expectativa, ver JAUSS, H. R. Pour une esthétique de la réception. Paris, 1978. p.49, 257-262. 383
10
RIEMANN, K. Das Herodoteische München, 1967. (Tese).
11
MOMIGLIANO, A. The Place of Herodotus in the History of Historiography. In: Studies in Historiography, London, 1969p. 127-142, onde se traça, de modo admirável, o itinerário do nome de Heródoto.
12
VOLTAIRE. Le pyrrhonisme en histoire... In: Oeuvres Mélanges VI. Paris: Garnier, 1879- p.246.
13
Geschichtswerk
in der Antike.
complètes.
BARTHÉLEMY, A. Voyage du jeune Anacharsis en Grèce. Paris, 1788. t. III, p.458.
14
VOLTAIRE. Le pyrrhonisme en histoire... In: Oeuvres complètes. Mélanges VI. Paris: Gamier, 1879. p.236. Ch. Rollin foi o autor de uma Histoire ancienne (1730-1738).
15
Mesmo se esses discursos não se devem'a estrangeiros.
16
VOLTAIRE. Le pyrrhonisme en histoire... In: Oeuvres complètes. Mélanges VI. Paris: Garnier, 1879- p.247.
17
Tucídides tentou minimizar as Guerras Médicas em comparação com a Guerra do Peloponeso (TUCÍDIDES, I, 23) mas, quanto a isso, não foi seguido pela posteridade, para a qual as primeiras simbolizam, pouco ou muito, a vitória da liberdade sobre a Ásia escrava. Assim para Hegel, essas batalhas "não somente vivem imortais, na lembrança da história dos povos, mas também na lembrança da ciência e da arte, do nobre e do moral em geral. Pois são vitórias históricas, de amplitude universal; elas salvaram a civilização e tiraram todo vigor do princípio asiático..." (HEGEL, G. H. F. Leçons sur la philosophie de l'histoire. Paris, 1963. p.197). Ainda Mill: The battle of Marathon, even as an event in English history, is more important than the battle of Hastings. If the issue of that day had been different, the Britons and the Saxons might still have been wandering in the woods. (MILL, J. S. Discussions and Dissertations, v.11, p.283, 1859).
18
Ver figura 1.
19
Dictionnaire
20
Hérodote, historien des Guerres Médiques, Paris, 1894, é o título do livro, importante em sua época, de A. Hauvette.
21JACOBY, 22
des antiquités grecques et romaines, s.v. Muses.
F. R. E, Suppl. II, 205-520.
POHLENZ, M. Herodot, dererste Leipzig, 1937.
384
GeschichschreiberdesAbendlandes.
23
MYRES, J. L. Herodotus Father of History. Oxford, 1953.
24IMMERWAHR,
H. R. Form and Thought in Herodotus. Cleveland - Ohio, 1966. p. 10: Thus we have tried, where possible to avoid discussions involving historical facts, treating the work as an organic unit intelligible by itself.
25
Ver, por exemplo, BENARDETE, S. Herodotean Inqiures. La Haye, 1969. p.1-6.
PARTE 1 OS CITAS IMAGINÁRIOS: ESPAÇO, PODER E NOMADISMO OS CITAS DE HERÓDOTO: O ESPELHO CITA 1
HERÓDOTO, IV, 1-144.
2
Ibidem. II, 35; IV, 82.
3
ROSTOVTZEFF, M. Iranians and Greeks in South Rússia. Oxford, 1922. p.44; cito-o como exemplo, não como testemunha do estado da arqueologia cita. Para uma bibliografia recente, ver HARMATTA, J. Herodotus, Historian of the Cimerians and the Scythians. Entretiens sur l'Antiquité Classique, Genève, v.35, p.115-130, 1990; VINOGRADOV, J. Bulletin épigraphique. Revue des Études Grecques, p.531-560, juil./déc. 1990.
4
Cf. Parte 1, capítulo IV: O corpo do rei: espaço e poder.
5
Ver, por exemplo, Or des Scythes, Paris, 1975, carte p. 118-119.
6
DUMÉZIL, G. Romans de Scythie et d'alentour. Paris, 1977. p.9.
7
Ibidem, p.12.
8
TODOROV, T. Symbolisme et interprétation, Paris, 1978. p.28 (os indícios sintagmáticos).
9
HERÓDOTO, IV, 83-144.
10
SPERBER, D. Le symbolisme en général. Paris, 1974; Rudiments de rhétorique cognitive. Poétique, n.23, p.390-415, 1975.
11
FLAHAUT, F. La parole intermédiaire.
Paris, 1978. p.37jfr'"
12 Sobre
o nome próprio, cf. Parte 2, capítulo I: Uma retórica da alteridade. De modo mais geral, LYONS, J. Éléments de sémantique. Paris, 1978. p.176-182. 385
13
Predicados tornados num sentido amplo: o que são, mas também o que fazem os citas.
14
Cf. Parte 1, capítulo V: O espaço e os deuses: o boi que "cozinha a si mesmo" e as "bebidas" de Ares.
15
Cf. Parte 2, capítulo II: O olho e o ouvido.
16
DETIENNE, M., VERNANT, J.-P. La cuisine du sacrifice en pays grec. Paris: Gallimard, 1979.
17
LORAUX, N. L'autochtonie: une topique athénienne. AnnalesE.S.C., v.l, p.3-26, 1979. Ver também LORAUX, N. Les enfants d Athéna. Paris, 1981. p.35-75.
CAPÍTULO I ONDE É A CÍTIA? 1
ÉSQUILO. Prometeu acorrentado,
2
ARISTÓFANES. Acarnenses, 702-703: "Que indignidade que um homem tão velho, da idade de Tucídides, se veja feito em frangalhos nas mãos deste deserto cita [isto é: Euatlo]." Trata-se de fato de um processo. O escólio ao verso 703 dá "selvageria" como equivalente da expressão "deserto cita": symplakénta têiS. eremíai: symplakénta agriotéti; toúto gàrdeloteS. eremía. TAILLARDAT (Les images de Aristophane. Lyon, 1962, paragr. 428), referindo-se a Hesíquio, para quem a expressão é uma forma de designar "pessoas abandonadas" (epitôn eremouménon hypò tinôrí), compreende que Evatlo (talvez de origem cita) não é mais que "um bruto sem amigos".
3
QUINTO CÚRCIO, VII, I, 23-
4
LEUTSCH, E., SCHNEIDEWIN, F. G. Corpusparoemiographorum graecorum, 1.1, p.453; t. II, p.208, p.643. Como outro exemplo de emprego proverbial (DEMÓST. APOL., t. IV, 284 R).
5
HIPÓCRATES. Dos ares, das águas e dos lugares, 18: e dè Skythéon eremíe kaleuménepedias esti kai leimakódes kaipsilè kai énydros metríos.
6
ÉSQUILO. Prometeu acorrentado,
7
ROBERT, L. Opera minora selecta. Amsterdam, 1969. p.305.
8
HERÓDOTO, IV, 25-27.
386
1-2.
416-447.
9
MYRES, J. L. An attempt to reconstruct the maps used by Herodotus. Geographical Journal, v.VI, p.606-631, dec. 1896. Ver também JACOB, C. Géographie et ethnographie en Grèce ancienne. Paris, 1991.
10 Cf.
Parte 2, capítulo I: Uma retórica da alteridade; cf. também Dos ares, das águas e dos lugares.
"HERÓDOTO, II, 22. 12
Ibidem. II, 26. Segundo Heródoto, é o sol que explica o regime particular do Nilo; Bóreas é o vento do norte, Notos o do sul; Istro é o antigo nome do Danúbio.
13
HEIDEL. The Frame of the Ancient Greek Maps. New York, 1937. p.21.
14
HERÓDOTO, II, 33-34.
15
Ibidem. II, 2. Psamético fez criar dois recém-nascidos à parte, e a primeira palavra que eles pronunciaram foi becos, que, em frígio, significa pão. Concluiu ele então que os frígios foram os primeiros homens. Quanto a Heródoto, considera que os egípcios existiram sempre, pelo menos desde quando existe a raça dos homens (aieí te eînai ex hoû anthrópon génos egénetó). (HERÓDOTO, II, 15)
16
Ibidem. IV, 5.
17
"De uma maneira geral", porque Heródoto excetua precisamente dessa ignorância completa os citas e Anácarsis (HERÓDOTO, IV, 46). Cf. Parte 1, capítulo III: Fronteira e alteridade.
18
HERÓDOTO, IV, 94-95.
19
Ibidem. II, 91; IV, 76: "Aos citas, também a eles (kaîhoûtoî), repugna terrivelmente a adoção de costumes estrangeiros, sejam os de outros povos, sejam sobretudo os gregos." Legrand observou que esse "também eles" parece remeter à fórmula empregada para designar a atitude dos egípcios em face dos nómoi estrangeiros.
20 HERÓDOTO,
II, 103.
21
Ibidem. I, 105.
22
Ibidem. II, 16-17.
23
Cf. infra p. 69 et seq.
24
HERÓDOTO,II,108: tò prin hamaxeuoménen pâsan.
25
Ibidem. II, 109.
eoílsan
hippasímen
kai
387
26
HERÓDOTO, II, 108.
27
Ibidem. IV, 2.
28
Ibidem. IV, 47. A descrição do território retoma praticamente os mesmos termos que aparecem na definição dada pelo tratado Dos ares, das águas e dos lugares.
29
Ibidem. IV, 62, 66.
30
Cf. Parte 1, capítulo II: O olho e o ouvido.
31
Trata-sè do atual Dniéper.
32
HERÓDOTO, IV, 5-7.
33
BENVENISTE, É. Traditions indo-iraniennes sur les classes sociales. Journal Asiatique, n.230, p.532-534,1938. DUMÉZIL, G. Romans de Scythie et d'alentour. Paris, 1977. p. 172, faz referência a um texto de Quinto Cúrcio que confirma essa interpretação: enviados citas tentam convencer Alexandre a não repetir a experiência infeliz de Dario: "Saiba que recebemos como dom: o jugo de boi, a charrua, uma lança, uma flecha, uma taça. Nós nos servimos deles com nossos amigos e nossos inimigos. A nossos amigos damos os frutos da terra que nos fornece o trabalho dos bois; com eles ainda, servimo-nos da taça, para oferecer aos deuses libações de vinho; quanto aos inimigos, nós os atacamos de longe com a flecha e de perto com a lança."
34
DUMÉZIL, G. Romans de Scythie et d'alentour. Paris, 1977. p. 178-192.
35
HERÓDOTO, IV, 7.
36
Ibidem. IV, 5.
37
Ibidem. IV, 8-10. Mais à frente, quando Heródoto fala dos agatirsos e dos gelonos, não retorna a seus ancestrais, sendo mesmo os gelonos apresentados como "antigos gregos".
38
APOLODORO, II, 5, 10. Na Teogonia, Eritia está situada "além do ilustre Oceano"(HESÍODO. Teogonia, 294).
39
HERÓDOTO, IV, 9.
40
Cf. Parte 1, capítulo III: Fronteira e alteridade.
41
HESÍODO. Teogonia, 295-305.
42
Uma outra personagem qualificada como mixopárthenosé a Esfinge (EURÍPIDES. Fenícias, 1023), que é exatamente uma filha da Equidna e de Tífon.
43
ESCHER. R. E., col. 1917-1919.
388
44
O país dos arimos é também onde mora Tifeu. HOMERO. Ilíada, II, 783.
45
DIODORO, II, 43, 3.
46
Cf., no contexto babilónico, a análise da personagem Enkidu, criança híbrida, por CASSIN, E. Le semblable et le différent: Babylone et Israël. Hommes et bêtes. Paris: La Haye, 1975. p.115-127.
47
LACROIX, L. Héraclès héros voyageur et civilisateur. Bulletin de la Classe de Lettres de l'Académie Royale de Belgique, n.60, p.34-59,1974.
48
PÍNDARO. Neméia, 26.
49
LACROIX, op. cit. p.38-39; na região do Ponto, ele figura como ktístes nas moedas de Heracléia do Ponto e da Calátida. Ele fundou cidades mesmo na índia: Heracléia, no país dos sibos; Palíbotra, junto ao Ganges.
50
Fragmente der griechischen LYCOPHRON, 662 et seq.
51
PÍNDARO. Neméia, 60 et seq.
52
EPICARMO, fr. 21, Kaibel (= ATENEU, X, 411 d)- ARISTÓFANES. Vespas, 60; Paz, 741. Cf. ESSARTS, E. des. Du type d'Hercule dans la littérature grecque. Paris, 1871. p.109 et seq.
53
SEGAL, Ch. Mariage et sacrifice dans les Trachiniennes. Classique, n.44, p.31, 1975.
54
BICKERMANN, E. J. Origines gentium. ClassicalPbilology, n.47, p.65 et seq., 1952.
55
HERÓDOTO, I, 7.
56
A seqüência da genealogia é precisada a propósito de Leônidas (HERÓDOTO, VII, 204).
57
Heródoto, IV, 11-13.
58
Ibidem. IV, 5: neótaton hapánton ethnéon. JUSTINO, II, 1, lhes atribui a opinião oposta.
59
Ibidem. IV, 7.
60
Ibidem. II, 145.
Historiker, PHÉRÉCYDE, 3 F 19,
L'Antiquité
-6l ROUSSEL, P. Essai sur le principe d'ancienneté dans le monde hellenique du Ve siècle avant Jésus-Christ à l'époque romaine. Mémoires de l'Académie de Inscriptions et Belles-Lettres, v.42, n.2, p.123-165,1951. Acontece entre os citas, do ponto de vista da realeza, o mesmo que 389
entre os deuses: o mais jovem exerce o poder (Crono é o mais jovem dos titãs; Zeus é o mais jovem dos deuses olímpicos). 62
Cf. p.57, Pane 1, capítulo I.
63
HERÓDOTO, IV, 30.
64
Ibidem. IV, 28-29.
65
Encontra-se o mesmo termo (HERÓDOTO, I, 4), por exemplo, empregado para indicar, segundo os persas, a separação entre a Ásia (que é seu domínio) e a Europa (que é domínio dos gregos); ou ainda em HERÓDOTO, III, 20, a propósito dos etíopes, que têm nómoique os distinguem de todos os homens.
66
HERÓDOTO, IV, 28. O excesso é marcado pelo emprego de dyskheímeros.
67
ELLINGER, P. Le gypse et la boue. Quaderni Urbinati de Cultura Classica, 29, p.32, 1978.
68
Cf. Parte 2, capítulo I: Uma retórica da alteridade.
69
O texto que leva mais longe esta teoria dos climas é, evidentemente, o tratado mencionado.
70
Fr. Gr. Hist., 1 F 185, 190, 193 (JACOBY).
71
Dosares, das águas e dos lugares, 13. (Meótida ou Palus Moeotis é o nome antigo do Mar de Azov - N. T.)
72
Dos ares, das águas e dos lugares, 17.
73
HERÓDOTO, IV, 45.
74
MYRES, J. L. An attempt to reconstruct the maps used by Herodotus. GeograpbicalJournal, v.VI, p.606-631, Dec. 1896. HERÓDOTO, IV, 57: "Na origem de seu curso, o Tânais sai de um grande lago e desemboca em outro ainda maior, chamado Meótida..."
75
HERÓDOTO, IV, 45.
76
Ibidem. IV, 38.
77
Ibidem. I, 103.
78
Ibidem. IV, 84.
79
Ibidem. III, 134: "Zeúxasgéphyran ek têsde têsepeírou es tèn betéren épeiron."
80
Ibidem. IV, 21.
390
81
HERÓDOTO IV, 116.
82
Ibidem. I, 106.
83
Ibidem. IV, 1.
84
Subsistem todavia dificuldades relativas à organização dos confins norte-orientais, relativas à localização do Araxes. Em IV, 11, Heródoto diz que os citas, "pressionados pelos massagetas, atravessaram o rio Araxese partiram para a Ciméria", como se a ultrapassagem do Araxes os fizesse passar para a Europa. O Araxes é um rio de que um braço termina no Mar Cáspio (HERÓDOTO, I, 204). Os massagetas habitam "além do Araxes" (péren), "em face" dos issedons ( a n t í o n ) (HERÓDOTO, I, 201). "Do lado do poente, este mar que se chama Cáspio é pois limitado pelo Cáucaso; do lado da aurora e do levante, uma planície se segue, estendendo-se a perder de vista, sendo que uma grande parte dela ocupam os massagetas..."(HERÓDOTO, I, 204). Pode-sepois pensar que o Araxes se situa a leste do Cáspio e corre do oeste para o leste. DIODORO, II, 43, afirma que os citas habitaram primeiro ao longo do Araxes; eram então pouco numerosos e pouco conhecidos; depois, pouco a pouco, estenderam-se para o oeste, até o lago Meótida, o Tânais e a Tracia; até o Egito, na direção do sul; e até às margens do Oceano, no leste.
C A P Í T U L O 0
II
C A Ç A D O R
C A Ç A D O :
PÓROS
E
A P O R I A
1
LEGRAND, P.-E. Introduction et commentaires. In: HÉRODOTE. Histoires. Paris: Les Belles-Lettres, 1955. Livro IV. p.27. Ver também LEGRAND, E. Hérodote, historien de la guerre scythique. Revue des Études Anciennes, p.219-226, 1940; MOMIGLIANO, A. Dalla spedizione scitica di Filippo alla spedizione scitica di Dario, V, Contributo, 1, Rome, p.500, 1950; a que se pode ajuntar ainda BALCER, J. B. The Date of Herodotus'IV Darius Scythian Expédition. HarvardStudy in ClassicalPbilology, v.76, p.99-132, 1972.
2
BURY, J. B. The European Expédition of Darius. Classical Review, n.ll, p.227, 1897.
3
MOMIGLIANO, A. Dalla spedizione scitica di Filippo alla spedizione scitica di Dario, V, Contributo, 1, Rome, p.505, 1975.
391
4
BALCER, J. M. The Date of Herodotus' IV Darius Scythian Expédition. Harvard Study in Classical Philology, v.76, p.132, 1972. Esta era a conclusão à qual já havia chegado Bury.
5
DUMÉZIL, G. Romans de Scythie et d'alentour. Paris, 1977, consagra um capítulo a esta expedição, que intitula, com humor, "La grande armée" (p.327-338): "Já que o relato que faz Heródoto desta expedição não é 'história' e, entretanto, já que ele é formado de episódios precisos e pitorescos, não proviria de uma versão 'indígena', anotada por Heródoto em Ólbia ou numa cidade vizinha, uma versão formada nos anos que se seguiram ao acontecimento, com a ajuda de temas próprios da epopéia cita, tal como nos é ainda acessível através da epopéia osseta?" De fato, os ossetas contam uma expedição maravilhosa, a de Nasran Aeldar, senhor dos nartas, contra o senhor do Egito, onde se encontram "os temas da grande coalizão, compreendendo seres de fantasia, o do enigma ou da aporia tripla 'céu-terra-mar', e o dos fogos enganadores no campo vazio".
6
Traduzo por "injunções narrativas" a expressão francesa "contraintes narratives", cujo sentido o autor define logo a seguir. Haveria várias possibilidades de versão em português: imposições ou exigências narrativas; comandos, controles ou requisitos narrativos. Penso em expressões como "contraintes de la rime", exigências, imposições, requisitos — em suma: injunções da rima. Injunção tem a vantagem de significar tanto "imposição", quanto "pressão das circunstâncias" — no presente caso ambos os sentidos dizendo respeito à própria narrativa (N. T.).
7
HERÓDOTO, I, 4: a Ásia é como seu oîkos, mas tèn Európen kal tò Hellenikòn hégentai kekhorísthai.
8
Ibidem. VII, 20.
9
AMANDRY, P. Athènes au lendemain des guerres médiques. Revue de l'Université de Bruxelles, p. 198-223,1961; LORAUX, N. Marathon ou l'histoire idéologique. Revue des Études Anciennes, p.13-42,1973; LORAUX, N. L'invention d'Athènes. Paris/Berlin: La Haye, 1980. p.157-173-
10
HERÓDOTO, IV, 87.
11
Ibidem. IV, 85 e VII, 46; IV, 142; VII, 101.
12
Ibidem. IV, 84. Heródoto não apresenta a cena como um sacrifício; contenta-se em observar-lhe a barbárie, principalmente pelo emprego irônico de metríon.
392
13
HERÓDOTO, VII, 38-39; MASSON, O. À propos d'un rituel hittite pour la lustration d'une armée... . Revue d'Histoire des Religions, n.137, p.5-25, 1950.
14
Ibidem. VII, 18: "...lembrando-me, diz Artábano, a conclusão da campanha de Ciro contra os massagetas, de Cambises contra os etíopes, tomei parte na de Dario contra os citas...": ele dá a lista de todas as guerras excessivas empreendidas pelos reis.
15
Ibidem. VII, 10
16
Ibidem. IV, 134.
17
Ibidem. VIII, 26.
18 Ibidem.
IV, 1.
19
Pode-se observar que Heródoto faz Xerxes assumir igualmente a herança da Guerra de Tróia; antes de passar para a Europa "ele sobe a Pérgamo de Príamo, que tinha um grande desejo de ver; depois de tê-la contemplado e de ter-se informado de tudo detalhadamente, ofereceu a Atena, a troiana, um sacrifício de mil bois, os magos tendo feito libações em honra dos heróis"(HERÓDOTO, VII, 43). Não se sabe por que Phóbos se espalhou no campo na noite seguinte a essas cerimônias.
20
HERÓDOTO, IV, 118.
21
HERÓDOTO, VII, 157; VII, 138 et seq., dá uma estimativa dos verdadeiros objetivos de Xerxes.
22
Ibidem. IV, 118.
23
Ibidem. VII, 139; IX, 11; VIII, 62.
24
Ibidem. IV, 118.
25
Ibidem. VIII, 142.
26
Ibidem. IV, 106.
27
Ibidem. IV, 120.
28
Ibidem. VII, 139.
29
Ibidem. VII, 103-
30
Ibidem. IV, 127.
31
Ibidem. IV, 128.
32
Salvo, por exemplo, os getas, mais precisamente; cf. Parte 1, capítulo III: Fronteira e alteridade. 393
33
HERÓDOTO, I, 73- O texto fala de íle, ao mesmo tempo tropa e rebanho; um dia em que não haviam caçado nada, tendo Ciaxares lhes criticado gravemente, serviram a este, como comida, um de seus próprios filhos, o qual estava com eles como aprendiz.
34
Ibidem. IV, 120. Para todo este vocabulário cinegético, cf. CHANTRAINE, P. Études sur le vocabulaire grec. Paris: Klincksiek, 1956; XÉNOPHON. L'art de la chasse. Traduzido e comentado por A. Delebecque. Paris. (Coll. Des Universités de France).
35
HERÓDOTO, IV, 120.
36XENOFONTE.
Cinegético, V, 32.
37
VERNANT, J.-P, DETIENNE, M. Les ruses de l'intelligence, la métis des grecs. Paris, 1975. p.49.
38
HERÓDOTO, IV, 120.
39
Ibidem. IV, 125.
40
O termo habitualmente empregado para designar a ação de pôr ao abrigo (mulheres e crianças) é hypektíthestbai(IIERÓDOTO, VIII, 4, 41).
41
HERÓDOTO, IV, 122.
42
Ibidem. IV, 134.
43
HERÓDOTO, VII, 57.
44
DETIENNE, M. Dionysos mis à mort. Paris, 1977. p.87.
45
Fr. Gr. Hist., 688 CTÉSIAS, F 13 (JACOBY).
46
HERÓDOTO, III, 21: "O rei dos etíopes deu ao rei dos persas este conselho: quando os persas retesarem tão facilmente quanto eu faço arcos tão grandes quanto este, que então marchem, com forças superiores, contra os etíopes macróbios."
47
Cf. p.93-96, Pane 1, capítulo II.
48
ESTRABÃO, VII, 3, 14. A expressão he tôn Géton eremía evoca he tôn Skython eremía.
49
Ibidem. Encontra-se a mesma palavra em VI, 1,12, para descrever Mílon prisioneiro da árvore que ele quis rachar; ele é aprisionado nessa armadilha como numa rede.
50
HERÓDOTO, V, 97.
51
Ibidem. IX, 63.
394
52
HERÓDOTO, IX, 62.
53
A descrição do armamento persa é feita em HERÓDOTO, VII, 6l: "Os persas tinham sobre a cabeça barretes de feltro mole que se chamam tiaras; em torno do corpo, túnicas guarnecidas de mangas, de cores variadas, e couraças formadas de escamas de ferro semelhantes a peixes; nas pernas, anaxyrídes; em lugar de escudo, gerras de vime, sob as quais se penduravam suas aljavas, de lanças curtas, arcos de grande dimensão e flechas de caniço; com isso, adagas pendidas da cintura ao longo da coxa direita." Sobre a oposição arqueiro/ hoplita, cf. EURÍPIDES. Héracles, 153,164; e VERNANT, J.-R, VIDALNAQUET, P. Mythe et tragédie en Grèce ancienne. Paris, 1972. p.171.
54
HERÓDOTO, IX, 62; VII, 211.
55
ARISTÓFANES. Vespas, 1081-1083.
56
HERÓDOTO, I, 136.
57
WARDMAN, A. E. Tactics and the Tradition of the Persian War. História, p.49-60, 1959.
58
VIDAL-NAQUET, P. La tradition de l'hoplite athénien. In: Problèmes de la guerre en Grèce ancienne. Paris, 1968. p.l69; VIDAL-NAQUET, P. Le chasseur noir. Paris, 1981. p.125-151.
59
HERÓDOTO, VII, 9.
60
DETIENNE, M. La phalange. In: Problèmes de la guerre en Grèce ancienne. Paris, 1968. p.123.
61
HERÓDOTO, IV, 87.
62
Ibidem. IV, 128.
63
Ibidem. IX, 56.
64
Ibidem. IV, 136.
65
Ibidem. VII, 64, dá o armamento dos sacas, que não são então, no "grande exército" de Xerxes, senão cavaleiros e arqueiros entre outros: "Os sacas — que eram citas — traziam na cabeça barretes terminados em ponta, que se mantinham direitos e rígidos; vestiam anaxyrídes, tinham arcos de seu país, punhais e, mais ainda, machados, chamados de sagãris. "
66
Ibidem. IV, 126.
67GARLAN,
Y. Recherches
depoliorcétique
grecque.
Paris, 1974.
p.20-44. 395
68
GARLAN, Y. Recherches de poliorcétique grecque. Paris, 1974. p.27.
69
Ibidem, p.22 et seq.
70
HERÓDOTO, IV, 120; sobre o pôr-se a salvo como prática corrente na época clássica e helenística, cf. DUCREY, P. Le traitement des prisonniers de guerre dans la Grèce antique. Paris, 1968. p.90, n.4; tem-se ura exemplo dessas incursões na forma como Aliata faz guerra contra Mileto (HERÓDOTO, 1,17).
71
HERÓDOTO, IV, 123.
72
GARLAN, Y. Recherches p.33.
73
HERÓDOTO, IV, 124.
74
Ibidem. IV, 131-132. Encontra-se uma outra versão desses presentes, transmitida por Ferecides (JACOBY. Fr. Gr. Hist. 3 F 174), com uma rã, um pássaro, uma flecha e uma charrua.
75
GARLAN, Y. Recherches de poliorcétique grecque. Paris, 1974. p.29.
76
HERÓDOTO, VII, 140.
77
Ibidem. VII, 141.
78
Poder dizer que seu território era apóthertos, era a principal glória de uma cidade; cf. GARLAN, Y. Recherches de poliorcétique grecque. Paris, 1974. p.20.
79
HERÓDOTO, VII, 142.
80
Ibidem. VIII, 61: é o sentido da resposta de Temístocles ao coríntio Adimanto, quando este o censura por ser, daí em diante, um indivíduo ápolis.
81
GARLAN, Y. Recherches p.44-65.
82
TUCÍDIDES, I, 143.
83
HERÓDOTO, IV, 128.
84
PLATÃO. Laques, 191 a-h.
85
VIDAL-NAQUET, P. La tradition de l'hoplite athénien. In: Problèmes de la guerre en Grèce ancienne. Paris, 1968. p.174.
86
FÓCIO. Lexikon, s.v. synéphebos-, "toùs dè epheboùs Hleîoi mèn Skythas kaloûsin, Spartiâtai dèsideûnas".
87
PELIKIDIS, C. Histoire de l'éphébie attique. Paris, 1962. p.42.
396
de poliorcétique
de poliorcétique
grecque.
grecque.
Paris, 1974.
Paris, 1974.
88
PLASSART, A. Les archers d'Athènes. Revue des Études Grecques, n.26, p.151-213, 1913.
89
Ibidem, p.212-213, 1913-
90
Ibidem, p.175, 1913-
91
LISSARAGUE, F. L'autre guerrier. Archers, peitastes, cavaliers dans l'imagerie antique. Roma/Paris, 1990.
92
No mesmo sentido, encontra-se no léxico de Hesíquio: Skythrax: meîrax, éphebos. Meîrax significa moça, mocinha (por exemplo, ARISTÓFANES, Tesmofórias, 410; Assembléia de mulheres, 6ll; Pluto, 1071-1079). Mais tarde, anota Liddell-Scott, significará também moço.
93
HERÓDOTO, IV, 3.
94
PELIKIDIS, C. Histoire de 1'éphébie attique. Paris, 1962. p.47-49.
95
VIDAL-NAQUET, P. Le philoctète de Sophocle et 1'éphébie athénienne. In: VERNANT, J.-P, VIDAL-NAQUET, P. Mythe et tragédie en Grèce ancienne. Paris, 1972. p.l6l.
96
HERÓDOTO, IV, 128.
97
VIDAL-NAQUET, P. Le chasseur noir et l'origine de l'éphébie athénienne. Annales E.S.C., n.5, p.947-964, 1968.
98
HERÓDOTO, IV, 127. Mas seria diferente se os persas encontrassem os túmulos dos reis, que são o verdadeiro omphalósda Cítia.
99
Ibidem. IV, 127. Ibidem. IV, 132.
100 101
Ibidem. IV, 46. TUCÍDIDES, II, 97, retoma esse ponto de vista sobre a superioridade militar dos citas, mas sem relacioná-la com a estratégia.
102
Sobre o ápolis, ver, por exemplo, ARISTÓTELES. Política, 1,1, 9-10.
103
HERÓDOTO, VII, 10.
104
Ibidem. VII, 50.
105
SERRES, M. La distribution. Paris, 1977. p.200.
106
HERÓDOTO, III, 134.
107
Ibidem. IV, 87-88.
Ibidem. IV, 89- Saliente-se como, o mais freqüentemente, a parte do exército encarregada de providenciar a construção das vias de comunicação é grega.
108
397
109
HERÓDOTO, IV, 97.
1,0
Ibidem. IV, 83.
111
Ibidem. VII, 10.
1,2
Ibidem. IV, 46. Ibidem. IV, 120,122,135. No vocabulário da caça, emprega-se pláne para indicar que os caminhos da lebre não são retos, mas entrelaçados; a palavra designa igualmente o desvio do cão; enfim, parece que pláne está associada com a idéia de descrever um círculo.
113
1,4
Ibidem. IV, 136. XENOFONTE. Cinegético, V, 17: as lebres conhecem os "atalhos do caminho" (syntoma têshodoü). HERÓDOTO, IV, 140; VII, 10, onde a ponte é expressamente designada como poros.
115
Ibidem. IV, 127: "A ti declara Idantirso: em-vez de (anti) te fazer dom da terra e da água, enviarei presentes como te convém receber; e para pagar-te por ter pretendido ser meu mestre, digo: vai chorar." O discurso de Idantirso termina com "eis o que os citas mandam dizer-te" ( h e apò Skythéon rhêsis), uma expressão proverbial que Heródoto insere em sua narrativa (cf. LEUTSCH, E., SCHNEIDEWIN, F. G. Corpus paroemiographornm graecornm, 1.1, p.250).
116
1.7
HERÓDOTO, IV, 136.
1.8
Ibidem. IV, 139-
CAPÍTULO III FRONTEIRA E ALTERIDADE 1
Mesmo se, para Heródoto, Zálmoxis é geta e não cita — sendo os getas trácios, creio ser legítimo considerar em conjunto os capítulos consagrados a Anácarsis e Ciles, bem como os devotados a Zálmoxis. Antes de tudo, a história de Zálmoxis não só faz parte do lógoscixz, como está mesmo incluída na narrativa da expedição de Dario contra os citas: uma vez transposto o Bósforo, o exército persa põe-se em marcha e submete os povos que encontra pelo caminho, particularmente os getas, que são os únicos que ousam resistir, justamente por causa de Zálmoxis. O /dgosvence, em suma, o éthnos. Além disso, muitos textos posteriores (Luciano, Suda) farão de Zálmoxis um cita.
398
Por outro lado, os dois episódios — (Anácarsis+Ciles) e (Zálmoxis) — são solidários do ponto de vista do questionamento das fronteiras. 2
HERÓDOTO, IV, 76-80. O episódio é um exemplo de composição circular, cf. BECK, I. Die Ringkomposition bei Herodot und ibre BedeutungfürdieBeweistecbnik. New York, 1971.
3
HERÓDOTO, IV, 76. O texto diz "também eles" (kaihoütoiQ. Como observa Legrand, esse hoütoi remete provavelmente aos egípcios, de que se diz que "repudiam adotar os costumes dos gregos e, para dizer tudo numa única palavra, não querem adotar os de nenhum povo" (HERÓDOTO, II, 95). Essa indicação do texto mostra de novo os laços que unem egípcios e citas, os quais formam uma espécie de par.
4
Ibidem. IV, 76.
5A
esse primeiro modo de abordar a genealogia de Anácarsis, Heródoto ajunta um outro, como se quisesse verificar, seguindo uma outra seriação, seu resultado: Anácarsis é filho de Gnuro; seria então preciso demonstrar que Sáulio era também filho de Gnuro, o que Heródoto não faz.
6
HERÓDOTO, I, 130.
7
Ibidem. IV,78.
8
Idem. IV, 78.
9
Idem. IV, 78.
10
Pode-se encontrar uma confirmação dessa equivalência na tradição relativa a Anácarsis. DIÓGENES LAÉRCIO, I, 101, atribui-lhe uma mãe grega e faz dele uma personagem bilíngüe, como que "transferindo-lhe" um elemento "emprestado" da biografia de Ciles e como se fosse necessário duplicar a "viagem" que não era mais, daí em diante, suficiente para fazer dele uma personagem à parte.
11
HERÓDOTO, IV, 78.
12
Ibidem. IV, 79-
13
Sobre o Istro como fronteira, ver Parte 1, capítulo II: O caçador caçado: poros e aporia.
14
Ibidem. IV, 80.
15
Ibidem. IV, 76.
16
Ibidem. IV, 78.
399
17
HERÓDOTO, IV, 78. É impossível ver em seu nome um jogo de palavras? Isto é: opoía, qual ou de qual espécie, qual é minha identidade?
18
Ibidem. IV, 9, 18, 54, 55, 76.
19
POMPÔNIO MELA, II, 5.
20
VALÉRIO FLACO. Argonáuticas, VI, 76.
21NEANTES
DE CIZICO, Fr. Gr. Hist, 84 F 39 (JACOBY): "Os argonautas, a caminho do Fásis, edificaram o templo dedicado à deusa mãe do monte Ida, nos arredores de Cizico."
22
APOLÔNIO DE RODES, I, 1053-1152. Nas moedas de Hierápolis Castábala, Cibele aparece associada ao pinheiro.
23
HERÓDOTO, IV, 76.
24
GRAILLOT, H. Le culte de Cybèle. Paris, 1912.p.200.
25
DIODORO, III, 55, 8: A amazona Mirina invoca-a. APOLÔNIO DE RODES, I, 1098-1099-
26
BULLETIN DE CORRESPONDANCE HELLÉNIQUE, v.23, p.591, 1899.
27
HERÓDOTO, IV, 2.
28
Ibidem. IV, 78.
29
Sobre as relações entre Mileto, a metrópole, e suas colônias de Cizico e de Ólbia, ver BILABEL, F. PhilologusSupplement, n.14,1, p.46/70/ 120/140, 1920; BRAVO, B. Une lettre de plomb de Berezan: colonisation et modes de contact dans le Pont. Dialogues d'Histoire Ancienne, p.111-187, 1974, fornece numerosas informações sobre Ólbia. Ver também WASOWICZ, A. Olbia Pontique et son territoire. Paris, 1975.
30
Narrativa no sentido em que a define BENVENISTE, É. Problèmes de linguistique générale. Paris: Gallimard, 1966. p.225 et seq.
31
HERÓDOTO, IV, 79.
32
O fato de o assassinato ter sido cometido pelo irmão torna-o um assassinato eminentemente trágico. Trata-se igualmente, no nível da ação, de uma citação do código trágico.
33
HERÓDOTO, IV, 77. É a primeira vez que Anácarsis é apresentado como discípulo da Grécia — e deve-se observar que Heródoto não levavem conta esta versão de suas aventuras.
34
Ibidem. IV, 76.
400
35
HERÓDOTO, IV, 59.
36
Ibidem. IV, 59; cf. Parte 1, capítulo V: O espaço e os deuses: o boi que "cozinha a si mesmo" e as "bebidas" de Ares.
37
É útil precisar que esta lógica implícita do comportamento cita remete à enciclopédia grega? Ela nos informa, pelo contrário, sobre o estatuto da iniciação.
38
HERÓDOTO, IV, 79- À idéia de destruição, diaphtheíro, pode-se ajuntar a de corrupção e de desvario: incerteza que aumentaria a carga polissêmica da enunciação.
39
Idem. O emprego, para referir-se a esta casa, da expressão "da qual fiz menção um pouco acima" indica que ela devia fazer parte das curiosidades de Ólbia.
40
HERÓDOTO, III, 116; IV, 13, 27, 29.
41
Ibidem. IV, 79: estaúten parece-me remeter mais ao recinto fechado pelo muro que à casa propriamente dita.
42
O fato de que, no caso de Ciles, trata-se de um meio-irmão não muda nada.
43
Anácarsis, emboscado por seu irmão, é morto por uma flecha, como um animal que se caça, enquanto Ciles tem a cabeça cortada. Note-se que o castigo de Ciles é o mesmo inflingido a quem é condenado por perjúrio, pondo em perigo a casa real (HERÓDOTO, IV, 60).
44
HERÓDOTO, IV, 76.
45
Sobre Cibele e Cizico, ver HASLUCK, W. Cyzicus. Cambridge, 1910. Observe-se que Heródoto não se refere a seu culto nem em termos de "iniciação", nem em termos orgiásticos. Trata-se de uma festa (horté), de um sacrifício (thúsein) e de uma vigília noturna (pannykhís.); encontra-se a palavra pannykhís, para designar uma vigília em honra da Mãe, particularmente em EURÍPIDES. Helena, 1365.
46
HERÓDOTO, I, 80.
47
Ibidem. V, 102.
48
Idem. Há uma recordação desse argumento em VI, 101, por ocasião da tomada de Erétria pelos persas: os santuários são queimados "como represália do incêndio de Sardes", "conforme as ordens de Dario".
49
Ibidem. VII, 53.
401
50
Os outros deuses são Plístoro (HERÓDOTO, IX, 119) e Zálmoxis (HERÓDOTO, IV, 94).
51
HERÓDOTO, II, 29.
52
Ibidem. III, 97.
53
Ibidem. III, 8.
54
Ibidem. II, 144.
55
Ibidem. V, 7. Para Rohde, as origens de Dioniso são trácias.
* Ibidem. VII, 111. 57
Ibidem. IV, 108.
58
Ibidem. IV, 87.
59
HERÓDOTO, I, 150.
60
Ibidem. V, 67.
61
Ibidem. VIII, 65. Sobre o afastamento Íaco/Dioniso, ver BOYANCÉ, P. Le culte des muses. Paris, 1937. p.26, n.3.
62
HERÓDOTO, II, 145.
63
Ibidem. II, 146; III, 111.
64
Ibidem. II, 145.
65
Ibidem. II, 123.
66
Ibidem. II, 50.
67
Ibidem. II, 49.
68
Ibidem. II, 145.
69
Ibidem. II, 146.
70
Ibidem. II, 49.
71
Ibidem. IV, 108.
72
PIPPIDI, D. M. I Greci nello Basso Danúbio. Milano, 1971: Per i Greci della Dobrugia, che l'avevanoportato con le loro nam Dionisio è un dio pátrio, adorato in forme de tradizione secolare, con epiteti che ritroviamo a Megare o in Asia Minore.
73
PIPPIDI, D. M. Acta antiqua Academiae Scientiarum n.l6, p.191-195, 1968.
74
Cf. também HIRST, G. M. The Cults of Olbia. Journal of Hellenic Studies, n.23, p.24-53, 1903.
402
Hungaricae,
75
LUCIANO. Sobre a dança, 79-
76
Sobre a obscuridade das primeiras teorias, cf. FESTUGIÈRE, A. J. Études de religion grecque et hellénistique. Paris, 1972. p.14 et seq. Os tbiasótai das Rãs incluíam tanto homens, quanto mulheres.
77
HERÓDOTO, I, 1 50.
78
HASLUCK, W. Cyzicus. Cambridge, 1910. p.215.
79 Escólio
a ARISTÓFANES. Aves, 877; JÂMBLICO. Sobre os mistérios, III, 10.
80
Suda, s.v.; FÓCIO, s.v. Metragyrtes. Ver também FOUCART, P. Des associations religieuses chez les grecs. Paris, 1873, p.64, para quem isso acontece por volta de 430. PLUTARCO. Nícias, 13, cita, entre os presságios desfavoráveis acontecidos antes da expedição da Sicília, este: "Fecham os olhos sobre o que se passou no altar dos doze deuses: um homem saltou de repente sobre o altar e, após ter-lhe feito a volta, cortou com uma pedra seus orgãos genitais."
81
Sobre o problema que o Metrôon levanta, ver MARTIN, R. Recherches sur l'agora grecque. Paris, 1951, p.328 et seq., segundo quem, "já que a tradição literária e os dados arqueológicos" concordam tão bem, "por que não se admitir que a divindade pode ter-se instalado na sala hipostila de caráter eleusino (que existia já na ágora e servia de sala de reunião para a Boulé), enquanto o Conselho recebia enfim uma sala de reuniões independente (o novo prédio construído no final do século V)?" Encontra-se a mais antiga referência literária ao Metrôon e a sua função num texto de Quemaleão do Ponto (ATENEU, IX, 407 c).
82
Sobre a Mãe dos Deuses, ver WILL, E. Éléments orientaux dans la religion grecque ancienne. Paris, i960, p.95-111, para quem o culto da Grande Mãe procede da Jônia, penetrando na Grécia continental a partir do século VI. Píndaro invoca-a e interessa-se por seu culto (Píticas, III, 77; Fragmentos 48 e 63 Bõckh). Cf. igualmente DUPONT-SOMMER, A., ROBERT, L. LaDéesedeHierapolisCastabala. Paris, 1964.
83
CLEMENTE DE ALEXANDRIA. Protréptico, 24, 1.
84
EURÍPIDES. Bacantes, 912 et seq.; JEANMAIRE, H. Dionysos. Paris, 1970. p.105-156.
85
EURÍPIDES. Bacantes, v. 1297.
86
BOYANCÉ, P. Le culte des muses chez les philosophes grecs. Paris, 1937. p.65 et seq, n.3.
87
EURÍPIDES. Bacantes,
912.
403
88
HERÓDOTO, IV, 79: "Eles dizem que não é verdade que se possa encontrar um deus que leve os homens à loucura." Trata-se, pois, de uma intervenção do narrador.
89
Ibidem. IV, 31. Cf. DUMÉZIL, G. Romans de Scythie et d'alentour. Paris, 1977. p.339-351.
90
ELIADE, M. DeZalmoxis à Gengis-Khan. Paris: Payot, 1970. p.79-80.
91
HERÓDOTO, IV, 94-96.
92
FROIDEFOND, C. Le mirage égyptien dans la littérature d'Homère à Aristote. Grap, 1971.
93
HERÓDOTO, II, 2.
94
Ibidem. IV, 46: O Ponto tem as populações "mais ignorantes".
95
Ibidem. IV, 7; encontra-se aí a verdadeira fascinação exercida pelo Egito sobre os gregos e os problemas que ela levanta: os egípcios admitindo, com efeito, serem os "ancestrais", não são por isso menos não-gregos.
96
ESTRABÃO, VI, 5; observe-se que, de um certo modo, Pitágoras serve para "1er" a religião egípcia; cf. HERÓDOTO, II, 37, II, 81.
97
HERÁCLIDES, fr. 89 W = DIÓGENES LAÉRCIO, VIII, 4.
98
DIÓGENES LAÉRCIO, VIII, 11; JÂMBLICO. Vida de Pitágoras, 28, éd. Deubner.
99
DETIENNE, M. Delapensée religieuse à lapenséephilosophique notion de Daimôn dans le pythagorisme ancien. Paris, 1963.
100
Cf. JÂMBLICO. Vida de Pitágoras, 31, éd. Deubner.
101
HERÓDOTO, IV, 94.
102
Idem.
103
Idem.
104
Ibidem. IV, 95.
105
ARISTÓTELES. História dos animais, IX, 17, 3.
grecque
: la
HERÓDOTO, IV, 95: hâte dè kakobíon teeónton tôn Threíkon kaï hypaphronestéron, tòn Sálmoxin toûton epistámenon díaitán te Idda kaï éthea bathytera...
106
HERÁCLITO, 22 B 45 Diels-Kranz, fala de bathyn lógon, PÍNDARO. Neméias, III, 53: Quíron é chamado de bathymétes; Neméias, VII, 1:
107
404
as Moiras são chamadas de bathyphrones; encontra-se também em ÁLCMAN a expressão batbypbron; SÓLON, 23, 1. In: DIEHL, Anthologia lyrica graeca , escreve ironicamente a respeito de si mesmo: "Sólon não é um homem nem esperto (batbypbron), nem astucioso (bouléeis)." ,08
PÍNDARO. ístmicas, V, 36.
109
Reso, 949.
110 JÂMBLICO.
Vida de Pitágoras, 200.
1,1
HERÁCLITO, 22 B 40 (D.K.).
112
EMPÉDOCLES, 31, B 129 (D.K.); ION DE QUIOS, 36 B 2 (D.K.).
1.3
HERÓDOTO, IV, 93.
1.4
Ibidem. V, 4. Cf. LINFORTH, I. M. Classical Pbilology, n.13, p.23-33, 1918: boi atbanatízontes. PLATÃO. Cármides, 156 d; DIODORO, I, 94; ARRIANO. Anábase, 1,3, 2; FÓCIO, Suda, Etym. Magn., s.v. Zalmoxis; LUCIANO. Cita, I, 860; LUCIANO. Assembléia dos deuses, IX, 533-
115
LINFORTH, I. M. Classical Pbilology, n.13, p.27, 1918, traduz athanatízein por "make immortal and divine, deity", quando o verbo é transitivo; e por "act the part of a being immortal and divine", quando é intransitivo.
116
BOYANCÉ, P. Le culte des muses chez les philosophes grecs. Paris, 1937. p.144.
117
LINFORTH, I. M. Classical Pbilology, n.13, p.31, 1918.
1,8
Cf. também este fragmento do poeta cômico Aristofonte: uma das personagens do Pitagórico diz "que, tendo descido na toca dos de baixo, viu cada um e observou que os pitagóricos são muito mais importantes que os outros mortos, pois são os únicos que têm o privilégio de comer com Plutão". O verbo empregado é syssíteiri (= DIÓGENES LAÉRCIO, VIII, 37).
119
Uma citação que, como indica DE CERTEAU, M. (L'écriture de l'histoire. Paris: Gallimard, 1975. p.111), "é, ao mesmo tempo, capaz de 'fazer vir' uma linguagem referencial que age como realidade, bem como de julgá-la na qualidade de um saber".
120
121
HERÓDOTO, IV, 93.
122
Cf. ROHDE. Psyché. Paris, 1928. p.291.
405
POMPÔNIO MELA, II, 2: "alii redituras putant animas adeuntium, alii, etsi non redeant, non extingui tamen, sed ad beatiora transire, alii, emori quidem, sed id melius esse quam vivere".
123
124
No original, a distinção se faz entre os termos franceses lâche e méchant. Legrand utiliza, em sua tradução, este último. (N. T.)
125 JÂMBLICO.
Vida de Pitágoras, 232.
126 JÂMBLICO.
Vida de Pitágoras, 85.
DETIENNE, M. La cuisine de Pythagore. VConvegno di studisulla Magna Grécia. Napoli, 1969- p. 149-156; DETIENNE, M. La cuisine de Pythagore. Arch. Sociol. desRel., n.29, p.146-148, 1970.
127
128
PLATÃO. Leis, 636 a.
129
Ibidem. 633 a.
Exemplos do andreón em Heródoto como sala dos homens. HERÓDOTO, I, 34: em seguida ao sonho que teve, Creso manda tirar, ek tôn andreónon, as armas, para evitar que seu filho corra o risco de ferir-se; HERÓDOTO, III, 77, 78: os conjurados (persas) penetram eis tòn andreôna para matar os magos; HERÓDOTO, III, 121: Polícrates de Samos está deitado en andreôni com Anacreonte de Teos; HERÓDOTO, III, 123: o mobiliário do andrón foi consagrado ao Heráion após o assassinato de Polícrates.
130
131JEANMAIRE, 132
BOYANCÉ, P. Le cidte des muses chez les philosophes grecs. Paris, 1937. p.134.
133 JÂMBLICO. 134
H. Conroiet courètes. Lille/Paris, 1939. p.85, 423, 483.
Vida de Pitágoras, 96-100.
HERÓDOTO, IV, 95.
DELATTE, A. Essai sur la politique pythagoricienne. Liège/Paris, 1922; e, mais recentemente, FRITZ, K. von. R.E., 1963, s.v. Pythagoras, C. 171-300.
135
136 137
DIÓGENES LAÉRCIO, VIII, 3DELATTE, A. La vie de Pythagore de Diogène Laërce. Bruxelles, 1922. p.154.
138 JÂMBLICO.
Vida de Pitágoras, 254.
139
HERÓDOTO, IV, 95.
140
Suda, s.v. Zálmoxis.
406
141
Cf. também POMPÔNIO MELA, citado anteriormente, a propósito das relações entre andreíae imortalidade.
142
CUMONT, F. À propos des dernières paroles de Socrate. Compte Rendu de l'Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, n.4, p.122, 1943.
143
JÂMBLICO. Vida de Pitágoras, 85; cf., igualmente, Apologia de Sócrates, 40 e-. Metoíkesis têi psykhêi toû tópou tôn enthénde eis állon tópon. ESTRABÃO, VII, 3, 5.
144 145
BOYANCÉ, P. Le culte des muses chez les philosophes grecs. Paris, 1937, p.134: "Talvez [...] sabemos o suficiente para estabelecer que a vida pitagórica era bem, em seu conjunto, uma preparação para a morte e, de outra parte, que os pitagóricos se distinguiam pela pretensão de conhecer a ciência dos ritos que lhes assegurariam uma sorte privilegiada no além."
146 BOYANCÉ, P. Le culte des muses chez les philosophes grecs. Paris, 1937. p.137; JÂMBLICO. Vida de Pitágoras, 257. 147
PLATÃO. República, 364 b.
148
PLATÃO. Leis, XI, 918 det seq.
149 JÂMBLICO.
Vida de Pitágoras, 69; ver também ÁLEXIS, em ATENEU, 4,161 b-, e Aristofonte, em ATENEU, IV, 238 c-d.
150
DIÓGENES LAÉRCIO, VIII, 21.
151
Ibidem. VIII, 41.
152
DELATTE, A. La vie de Pythagore de Diogène Laërce. Bruxelles, 1922. p.245. BURKERT, W. Lore and Science in Ancient Pytbagorism. Harvard University Press, 1972. p. 158-159-
153
154
Na narrativa de Hermipo, Pitágoras retorna do além trazendo uma mensagem (e é essa mensagem que gera a crença), enquanto, no texto de Heródoto, não há mensagem propriamente dita: é por sua simples presença que Zálmoxis infunde a crença. Além do mais, Heródoto era cidadão de Túrios: evocar Zálmoxis através de Pitágoras pode também ser uma maneira de endereçar-se ele a um público "italiano".
155
156
ELIADE, M. Zálmoxis,
p.57.
407
A única palavra que poderia ter uma vaga conotação ritual seria penteterís; quanto a apopémpein, é talvez mais solene que o simples pémpein.
157
HERÓDOTO, IV, 26.
158
Encontra-se, em DIÓGENES LAÉRCIO, VIII, 1, a equivalência entre Zálmoxis e Crono, que é, além disso, falsamente atribuída a Heródoto.
159
HERÓDOTO, IV, 59.
160
'
LINFORTH, I. M. Greek Gods and Foreign Gods in Herodotus. University of Califórnia Publications in Classical Philology, v.9, p.1-25, 1926. Três divindades somente escapam de qualquer assimilação: Plístoro, divindade dos trácios, Cibele e Zálmoxis.
161
162
ROHDE. Psyché. Paris, 1928. p.286, n.2.
163
HERÓDOTO, IV, 79.
Ibidem. IV, 45: "Não posso também compreender em qual ocasião a terra, que é uma (mia), recebeu três denominações distintas..." etc.
164
165 VEYNE, P. Comment on écrit l'histoire. Paris, 1971. p.141: "Os deuses são os mesmos (na Antigüidade) para todos os homens; no ipnáximo, cada povo os nomeia em sua língua; o que significa que os nomes dos deuses podem ser traduzidos de uma língua para a outra, como os nomes comuns." Ajunte-se que tudo o que, nos ensinamentos de Pitágoras, concerne à abstinência do "assassinato" é, precisamente, o contrário desse "sacrifício" humano.
166
167
GENETTE, G. Figures III. Paris, 1972. p.186.
No original, "indication de 'régie'", expressão emprestada da linguagem teatral e cinematográfica, em que "régie" compreende a "direção dos serviços internos de um teatro ou de uma produção cinematográfica", incluindo o fornecimento de recursos, a contratação do diretor e a realização do filme. O autor usa o conceito no sentido de GENETTE, G. Figures III. Paris, 1972. (N. T.)
168
BENVENISTE, É. Problèmes de linguistique générale, Gallimard, 1966. p.239.
169
I. Paris:
Ibidem, p.242: "A enunciação histórica e a do discurso podem, algumas vezes, se conjugar num terceiro tipo de enunciação, em que o discurso é produzido em termos dos acontecimentos e
170
408
transposto para o plano histórico; é isso que é comumente chamado 'discurso indireto'." O estilo indireto livre é ainda mais difícil. 171
BENVENISTE, É. Problèmes de linguistique générale, Gallimard, 1966. p.242.
I, Paris.-
Ibidem, p.241: "(na narrativa) os acontecimentos são dispostos como aparecem no horizonte da história. Ninguém fala aqui; os acontecimentos parecem contar-se por si mesmos. O tempo fundamental é o aoristo, que é o tempo do acontecimento fora da pessoa dum narrador".
172
Estas páginas retomam (numa forma modificada) artigo publicado nos Annali delia Scuola Normale Superiore di Pisa, 8, 1, p.15-42, 1978.
173
HERÓDOTO, III, 38; "Dario, no tempo em que reinava, chamou os gregos que estavam junto dele e lhes perguntou a que preço consentiriam em comer seus pais mortos; eles declararam que não o fariam por nenhum preço. Em seguida, Dario chamou os hindus que se chamam calátias, os quais comem seus pais; e, em presença dos gregos que, através de um intérprete, compreendiam o que se dizia, ele perguntou-lhes a que preço aceitariam queimar seus pais mortos; eles gritaram alto e suplicaram a Dario que não pronunciasse palavras de mau agouro. Tal é, nesse caso, a força do costume; e, na minha opinião, Píndaro disse a verdade em seus poemas, quando declarou que 'o costume é o rei do mundo'."
174
O fato de poder ver o zalmoxismo como um avatar do pitagorismo reflete, de volta, no pitagorismo: efeito de espelho; do ponto de vista do saber compartilhado dos gregos, é preciso, com efeito, que uma aproximação entre os dois seja pelo menos admissível, mesmo se se trata dos longínquos cidadãos de Ólbia e se Zálmoxis foi escravo de Pitágoras.
175
CAPÍTULO IV 0 CORPO DO REI: ESPAÇO E PODER 1
HERÓDOTO, IV, 68.
2
HESÍODO. Os trabalhos e os dias, 225-237; cf. também HOMERO. Odisséia, IX, 109-114.
3
Sobre os diferentes ritos reais ver ROUX, R. Le problème des Argonautes. Paris, 1949. Do lado persa, pode-se citar esta prece do
409
rei Dario: "Possa Ahuramazda trazer-me socorro com todos os outros deuses e proteger este país do exército inimigo, da má colheita, da mentira." 4
HERÓDOTO, IV, 70. No juramento entre os lídios, fazem-se igualmente incisões e lambe-se o sangue (HERÓDOTO, I, 74). Entre os árabes, corta-se com uma pedra o interior das mãos dos contratantes, mas não se bebe o sangue (HERÓDOTO, III, 8).
5
LUCIANO. Toxáris, 37. DUMÉZIL, G. Légende sur les Nartes. Paris, 1930, p.165, relata assim o ritual do juramento de confraternização: "Os dois contratantes enchem uma taça de aguardente ou de cerveja, jogam dentro uma moeda e cada um deles bebe três vezes, jurando ser fiel; as fórmulas são, por exemplo: 'Que essa bebida se me torne veneno! Que este dinheiro se me torne cólera se eu não te amar mais que a um irmão!'; ou ainda: 'Juro fidelidade por este dinheiro, por este ouro'..." — o dinheiro sendo, aos olhos dos ossetas, "alguma coisa de sagrado, tendo poder próprio para castigar".
6
GLOTZ, G. La solidarité de la famille en Grèce. Paris, 1904. p.lóO.
7
GAIDOZ, H. (Org.). Mélusine. Recueil de mithologie, littérature populaire, tradutions et usages.
8
DAVY, G. La foi jurée. Paris, 1922. p.43 et seq.
9
Ibidem.1 p.49.
10
DAREMBERG, SAGLIO. Dictionnaire des antiquités, s.v. jusjurandum.
11
BENVENISTE, É. Le vocabulaire des institutions Paris: Minuit, 1969. t. II, p.l68.
12
Ver as referências em CASABONA, J. Recherches sur le vocabulaire des sacrifices en grec. Paris, 1967. p.212 et seq. (Tese).
13
CASABONA, J. Recherches sur le vocabulaire des sacrifices en grec. Paris, 1967. p.214. (Tese).
14
Para os juramentos de caráter privado, observa Casabona, Heródoto emprega ómnymi. A única exceção é constituída pelo juramento cita, que parece entretanto ser feito entre particulares: porventura isso indicaria que a distinção público/privado não se aplicaria à sociedade cita?
15
CASABONA, J. Recherches sur le vocabulaire des sacrifices en grec. Paris, 1967. p.219. (Tese).
410
indo-européennes.
16
RUDHARDT, J. Notions fondamentales de la pensée religieuse et actes constitutifs du culte dans la Grèce classique. Genève, 1958. p.282; cf. também GERNET, L. Sur le symbolisme politique: le foyer commum. In: Anthropologie de la Grèce antique. Paris, 1968. p.214.
17
A cena paródica do juramento (ARISTÓFANES. Lisístrata, 181 et seq.) remete seguramente ao presente capítulo de Heródoto. Para uma explicação (quão discreta!) dessa passagem, ver CASABONA, J. Recherches sur le vocabidaire des sacrifices en grec. Paris, 1967. p.323-326. (Tese)
18
HOMERO. Ilíada, II, 339 et seq.; XIII, 245 et seq.; IV, 158 et seq.
19
GERNET, L. Anthropologie de la Grèce antique. Paris, 1968. p.211.
20
Por exemplo, HOMERO. Ilíada, III, 296.
21
HERÓDOTO, III, 11.
22
ÉSQUILO. Sete contra Tebas, 42-48; cf. também XENOFONTE. Anábase, II, 29, em que os mercenários mergulham não suas mãos, mas suas espadas, num escudo cheio de sangue: "Este juramento foi proferido depois de, sobre um escudo, ter sido degolado um touro, um javali e um carneiro, tendo os gregos mergulhado no sangue um gládio e os bárbaros uma lança." Os reis de Atlântida bebiam igualmente uma mistura de sangue de touro, de vinho e de água (PLATÃO. Crítias, 119 d et seq.).
23
GLOTZ, G. L'ordalie dans la Grèce primitive. Paris, 1904. p.112, onde se ajuntam os exemplos.
24
HESÍODO. Teogonia, 135 et seq.
25
BENVENISTE, É. Le vocabidaire des institutions Paris: Minuit, 1969. p.170.
26
HERÓDOTO, VI, 86. Esta declaração ecoa em muitos versos de Hesíodo (HESÍODO. Teogonia, 231-232; Os trabalhos e os dias, 219, 282 et seq, 321 et seq.).
27
DEMÓSTENES, XLVIII, Contra Olímpio, 52.
28
BENVENISTE, É. Le vocabulaire des institutions indo-européennes. Paris: Minuit, 1969- p. 175. Cf. também GLOTZ, G. La solidarité de la famille en Grèce. Paris, 1904. p.574; LICURGO. Contra Leôcrates, 79-80: "Um perjuro não pode ocultar-se dos deuses, nem evitar sua vingança."
indo-européennes.
411
29
Ver imprecações contra o perjúrio em RUDHARDT, J. Notions fondamentales de la pensée religieuse et actes constitutifs du culte dans la Grèce classique. Genève, 1958. p.208, n.4.
30
HERÓDOTO, VI, 86.
31
Ibidem. IV, 59: "As únicas divindades às quais eles dirigem preces são as seguintes: em primeiro lugar, a Héstia, depois a Zeus e à Terra (eles pensam que a Terra é esposa de Zeus), em seguida a Apolo, Afrodite Urânia, Héracles e Ares..."; cf. Parte 1, capítulo V: O espaço e os deuses: o boi que "cozinha a si mesmo" e as "bebidas"de Ares. Héstia não aparece senão muito pouco nas Histórias; além de nessa passagem sobre os citas, diz-se que os egípcios ignoram Héstia (HERÓDOTO, II, 50) — e é tudo.
32
Ibidem. IV, 127.
33
Idantirso lembra, entretanto, que Zeus é seu ancestral.
34
HERÓDOTO, IV, 59.
35
DUMÉZIL, G. Romans de Scythie et d'alentour. Paris, 1977. p.143. Dumézil aproxima Tapati, indiana e filha do sol, e Acirux, osseta, igualmente filha do sol, da Héstia-Tabiti da narrativa herodotiana.
36
DUMÉZIL, G. Légendes sur les Nartes. Paris, 1930. p.154; também DUMÉZIL, G. Religion romaine archaïque, p.318: "Entre os ossetas modernos, últimos descendentes dos citas, é também pelo gênio do fogo que termina a 'prece geral', endereçada a quatorze deuses ou gênios, que serve de referência para todas as liturgias particulares."
37
WIDENGREN, G. Les religions de l'Iran. Paris, 1968. p.351.
38
VERNANT, J.-P. Hestia-Hermès. In: Mythe et pensée chez les grecs. Paris, 1971. t. II, p.124 et seq.
39
Hino homérico a Héstia, I, 1-3.
40
Hino homérico a Afrodite, 30.
41
VERNANT , J.-P. Hestia-Hermès. In: Mythe et pensée chez les grecs. Paris, 1971. t. II, p.126: "Héstia não constitui somente o centro do espaço doméstico. Fixado no solo, o lar circular é como que o umbigo que enraíza a casa na terra. Ele é símbolo e penhor de fixidez, de imutabilidade, de permanência."
42
HERÓDOTO, IV, 46.
412
43
Sobre Hermes, além da análise de VERNANT, J.-P. Hestia-Hermès. In: Mythe et pensée chez les grecs. Paris, 1971. t.II; ver também KAHN, L. Hermès passe. Paris, 1978.
44
CHANTRAINE, P. Études sur le vocabulaire grec. Paris: Klincksieck, 1956. p.34-35.
45
VERNANT, J.-P. Hestia-Hermès. In: Mythe et pensée chez les grecs. Paris, 1971. t. II, p.128.
46
Idem.
47
GERNET, L. Sur le symbolisme politique: le foyer commum. Anthropologie de la Grèce antique. Paris, 1968. p.387.
48
ÉSQUILO. Suplicantes, 365 et seq.
49
Invocam-se sobretudo Zeus, Apolo, Deméter, ou Zeus, Posseidon, Deméter; cf. RUDHARDT, J. Notions fondamentales de la pensée religieuse, et actes constitutifs du cidte dans la Grèce classique. Genève, 1958. p.204.
50
ÉSQUINES II. Sobre a embaixada, 45. HARPOKRATION, s.v. Boulaia. PREUNER, A. Hestia-Vesta. Tübingen, 1864. p.118 et seq.
51
VERNANT, J.-P. Hestia-Hermès. In: Mythe et pensée chez les grecs. Paris, 1971. t. II, p.l67: "...A polaridade que marca, sobre todos os pianos, as relações da deusa com Hermes, é um traço tão fundamental deste pensamento arcaico que a encontramos no próprio interior da divindade do lar, como se, necessariamente, uma parte de Héstia pertencesse já a Hermes."
52
DUMÉZIL, G. Légendes sur les Nartes. Paris, 1930. p.155.
53
Encontra-se o mesmo "esquecimento" a propósito de Sálmoxis (HERÓDOTO, IV, 95), que convida os primeiros dos astoípara as refeições comuns que organiza entre os getas.
54
KANTOROWICZ, E. H. TheKing's TwoBodies. p.13-
55
HERÓDOTO, IV, 67.
56
AMIANO MARCELINO, XXI, 2, 24.
57
DUMÉZIL, G. Romans de Scytbie et d'alentour. Paris, 1977. p.121 et seq. Entre os ossetas, os feiticeiros são muito estimados. Eis o que afirma Koviev: "Cada feiticeiro tem quatro varinhas das quais a ponta é fendida. Elas lhe servem para adivinhar o sentido de todos os
Princeton, 1957.
413
acontecimentos. [...] O feiticeiro chega perto do doente, assenta no chão e pede uma almofada de uma certa cor e um lençol ou um tapete próprio, que ele estende; sempre recitando uma fórmula, ele tira quatro varinhas de seu bolso, põe-nas no solo em dois pares e as ajunta duas a duas por sua ponta fendida. Quanto às duas pontas livre de cada par, uma é apoiada na almofada, a outra fica numa das mãos do feiticeiro. Tendo assim em cada mão uma ponta de cada par de varinhas, o feiticeiro profere, em voz alta, os nomes de diversos gênios suscetíveis de ter enviado a doença. A cada nome, pede que, se esse é o nome bom, se eleve seja o par de varinhas da esquerda, seja o da direita, e, bem entendido, no momento escolhido pelo charlatão, habilmente, imperceptivelmente, ele próprio eleva o par necessário..." 58
CRAHAY, R. La bouche de vérité. In: VERNANT, J.-P. (Org.). Divination et rationalité. Paris, 1974. p.204: "Thespízo liga-se, parece, ainda que de modo bastante obscuro, a tbeós, o deus, e a um verbo declarativo atestado sob a forma de ennépo,'aoristo éspon. (Ver também thespésios, de voz divina.) O termo significaria portanto: proferir palavras divinas. Do mesmo modo kbráo, 'oriundo de khré' (é preciso, é normal), seria um 'verbo delocutivo' significando 'dizer khré'."
59
VERNANT, J.-P. Divination et rationalité. Paris, 1974. p.18: "Os gregos valorizaram a adivinhação oral; às técnicas de interpretação dos signos, aos procedimentos de tipo aleatório, como o jogo de dados, que consideraram como formas menores, preferiram o que R. Crahay chama o diálogo oracular, em que a palavra do deus responde diretamente às questões do consulente. Esta preeminência da palavra como meio de comunicação com o além concorda com o caráter eminentemente oral de uma civilização em que a escrita não é apenas um fenômeno recente, mas em que, por seu caráter inteiramente fonético, a escrita prolonga a língua falada..."
60
HERÓDOTO, III, 1; III, 130.
61
DETIENNE, M. Les maîtres de vérité dans la Grèce archaïque. Paris, 1967. p.29-50.
62
GLOTZ, G. L'ordalie dans la Grèce primitive. Paris, 1904. p.5. Pode-se também lembrar o costume megárico, relatado por Teógnis: "É preciso que eu dê eqüitativamente o devido às duas partes, recorrendo aos adivinhos, aos pássaros, aos altares em chama, para poupar-me a vergonha de uma falta." (TEÓGNIS, 543 et seq.)
414
63
DETIENNE, M. Les maîtres de vérité dans la Grèce archaïque. 1967. p.49.
Paris,
64
GERNET, L. Sur le symbolisme politique: le foyer commun. In: Anthropologie de la Grèce antique. Paris, 1968. p.269.
65
HERÓDOTO, IV, 68: "Prende-se logo e conduz-se aquele que eles disseram ter cometido perjúrio. Quando ele chega, os adivinhos o acusam: a adivinhação, dizem eles, revelou que ele cometeu perjúrio, jurando pelos lares reais. E esta é a razão pela qual o rei está sofrendo dores. Mas ele assegura que não prestou falso juramento e indigna-se. Diante dessa denegação, o rei manda procurar outros adivinhos em número duplo; se estes também, recorrendo à adivinhação, demonstram que o homem é culpado de perjúrio, corta-selhe a cabeça incontinenti. E os primeiros adivinhos repartem os bens do morto entre si. Se, ao contrário, os adivinhos vindos em segundo lugar o declaram inocente, outros são chamados e outros ainda. E se a maioria-declara que o homem não é culpado, a conseqüência é que são os primeiros adivinhos que devem, eles próprios, morrer."
66
GERNET, L. Sur le symbolisme politique: le foyer commun. In: Anthropologie de la Grèce antique. Paris, 1968. p.213.
67
HERÓDOTO, IV, 68: esorôntes es tèn mantikén. Encontra-se um emprego equivalente desse verbo em HERÓDOTO, VII, 219, em que o adivinho Megístias, "depois de ter esidòn esta irá, anuncia que...".
68
Pode-se apontar uma dificuldade na maneira como Heródoto apresenta as coisas: o rei convoca três adivinhos, depois seis; se os seis confirmam a adivinhação dos primeiros, o homem é executado; se a anulam, o rei faz vir outros até que se deduza uma maioria. Mas há já uma maioria no momento em que se pronunciam os seis?
69
ARISTÓTELES. Política, II, VIII, 20, 1269 a (plêthós ti martyrori).
70
O costume limita-se a fixar o número necessário de pessoas para o juramento em grupo; pode estar em causa também o critério de maioria: como indica uma disposição (lacunar) da lei de Gortina — a vitória está do lado daquele para quem jurou o maior número (niken d'ôtera k'hoip[lieso] mósontí)-, ver SAUTEL, G. Les preuves en droit grec archaïque. Recueils de la SociétéJ. Bodin, v.l6, p.135-141,1965.
71
GERNET, L. Sur le symbolisme politique: le foyer commun. In: Anthropologie de la Grèce antique. Paris, 1968. p.245.
72
Encontra-se a expressão alethemántis, (ÉSQUILO. Agamêmnon, 1241).
a propósito de Cassandra
415
73
HERÓDOTO, IV, 64.
74
Ibidem. IV, 80.
75
Ibidem. IV, 69.
76
DETIENNE, M. Les maîtres de vérité dans la Grèce archaïque. Paris, 1967. n.lll, p.50. Sobre Tirésias, ver BRISSON, L. Le mythe de Tirésias. Leyde, 1976. Sobre o estatuto da bruxaria, AUGÉ, M. Les croyances à la sorcellerie. In: La construction du monde. Paris, 1974. p.52-70.
77
Há muitos textos a propósito dos enareus: HERÓDOTO, I, 105; IV, 67. HIPÓCRATES. Dosares, das águas e dos lugares, XXII. Para este último, os enareus são homens que ficaram impotentes, vivendo e se vestindo como mulheres, não sendo absolutamente adivinhos. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, VII, 7. Ver igualmente BRISSON, L. Bi-sexualité et médiation en Grèce ancienne. Nouvelle Revue de Psychanalyse, Paris, printemps, p.27-48,1973-
78
MARCO POLO. La description du monde, chap. 69.
79
DURKHEIM, É. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris, 1912. p.557 et seq.
80
HERÓDOTO, IV, 71-73.
81
LUCIANO. Do luto, 21. Note-se que Luciano atribui aos hindus (a colocação sob vidro) o que Heródoto reconhece como sendo a prática dos etíopes (HERÓDOTO, III, 24) — e aos citas, o que Heródoto atribui aos hindus. Tem-se, pois, um conjunto de termos cuja repartição pode variar entre "os outros"; o estoque de traços é fixo, mas a distribuição varia.
82
KURTZ, D., BOARDMAN, J. Greek Burial Customs. London, 1971. p.91 et seq.
83
PAUSÂNIAS, I, 43, 2.
84
PLUTARCO. Vida de Licurgo, 27. Licurgo opõe-se duplamente à regra: permite enterrar na cidade, e também perto dos templos.
85
PLUTARCO. Vida de Licurgo, 27.
86
Pode-se reconstituir a lista deles a partir das indicações dadas por ROHDE. Psyché. Paris, 1928. p.132-134; PFISTER F. Der Reliquienkult im Altertum. Giessen, 1912; MARTIN, R. Recherches sur l'agora. Paris, 1951. p.194 et seq.
87
HERÓDOTO, V, 67.
416
88
PLUTARCO. Vida de Cimon, 8; Vida de Teseu, 36; PODLECKI, A. Cimon Skyros and Theseus, Bones. JournalofHellenic Studies, n.91, p.141,1971. Os outros reis míticos de Atenas, quando têm um espaço próprio, encontram-se na Acrópole: é o caso de Erecteu, de Cécrops e de Pandíon.
89
PÍNDARO. Píticas, V, 87 et seq.
90
TUCÍDIDES, I, 138; V, 11.
91
Escólio a PÍNDARO. Olímpicas, 1,149.
92
PAUSÂNIAS, V, 44.
93
BÉRARD, C. Eretria III, l'Herôon à la porte de l'Ouest. Berne, 1970. p.70; e Actes du colloque sur l'idéologie funéraire, Ischia, 1977 ( a ser publicado pela C.U.P, 1980).
94
PAUSÂNIAS, VIII, 26, 3-
95
Ibidem. X.-27,1.
96
No caso dos dois Corebos, trata-se de território e não de cidade.
97
HERÓDOTO, I, 67-68. Para um levantamento completo das transferências, ver ROHDE. Psyché. Paris, 1928. p.133.
98
PLUTARCO. Vida de Teseu, 35.
"PAUSÂNIAS, 1,15, 3. 100
DIÓGENES LAÉRCIO, I, 96.
101
Fr. Gr. Hist., 60 F 60 (JACOBY).
102
PLUTARCO. Sobre o oráculo da Pítia, 27.
103
SÓFOCLES. Édipo em Colono, 1518 et seq.
104
Ibidem. 1522-1524. Pausânias conhece dois túmulos de Édipo: um encontra-se situado no Areópago, no próprio interior do santuário dos Senrooí (PAUSÂNIAS, I, 28, 7); o outro está em Colono, onde existe um berôon de Pirítoo, Teseu, Ádrasto e Édipo.
105
VERNANT, J.-P, VIDAL-NAQUET, P. Mythe et tragédie en Grèce ancienne. Paris, 1972. p.101 et seq.
106
HERÓDOTO, IV, 71.
107
HERÓDOTO, IV, 56; cf. Figura 2.
108
Ibidem. IV, 53.
109
I b i d e m . IV, 121. 417
110
HERÓDOTO, IV, 127.
1.1
Ibidem. IV, 101.
1.2
KURTZ, D , BOARDMAN, J. Greek Burial Customs. Londres, 1971. p.144.
ALEXIOU, M. The Ritual Lament. Cambridge, 1974. p.7: Attic vase painting confirms that, in the geometric and archaic periods, the ekphora had been a magnificent, public affair, with the bier earned on a waggon and draivn by two horses, followed by kinswomen, professional mourners and armed men.
1.3
HERÓDOTO, IV, 73. Acredito ser melhor traduzir phílous por parentes.
114
HERÓDOTO, IV, 71.
1,5
Katamysso é um hápax em Heródoto. Perikeíro é igualmente empregado em HERÓDOTO, III, 154, quando o persa Zópiro se mutila. Peritámnoé empregado, especialmente em IV, 64, a propósito da maneira como os citas praticam o escalpe; e em II, 162, a propósito da mutilação de um egípcio pelo faraó. Apotámno figura no mesmo registro (corte de um braço, do nariz, das orelhas, da cabeça).
116
GERNET, L. Recherches sur le développement de la pensée juridique et morale en Grèce. Paris, 1917. p.211-252.
1,7
HERÓDOTO, II, 85. "O luto comporta toda uma série de meios rituais (aspersão de poeira, arranhões, ferimentos) que traduzem, a um só tempo, a dor obrigatória dos parentes e a diminuição social que publicamente os atinge, tendo como efeito diminuí-los, abatê-los em sentido religioso." (GERNET, L. Recherches sur le développement de la pensée juridique et morale en Grèce. Paris, 1917. p.218.)
118
PLUTARCO. Vida de Sólon, XII, 8.
1,9
PLUTARCO. Vida de Sólon, XXI, 6. Flacelière traduz não como "lamentações afetadas", mas como "lamentos versificados", cf. REINER, E. Die rituelle Totenklage Stuttgart/Berlin, 1938. p.4.
120
121
HOMERO. Ilíada, XXIII, 6 et seq.
122
HOMERO. Ilíada, XXIII, 140.
123
EURÍPIDES. As suplicantes, 836.
Recueil des inscriptionsjuridiques grecques, 1er fase., n.2, p.ll: "As mulheres que irão à cerimônia voltarão do monumento antes dos
124
418
homens. [...] Na casa do morto, não entrará, depois da saída do corpo, outra mulher além daquelas que estão impuras...". 125
HERÓDOTO, IV, 71.
126
Ibidem. II, 86. O incenso aparece também em I, 183; II, 40; IV, 97.
LEMBACH, K. Die Pflanzen bei Tbeokrit. Heidelberg, 1970. p.35, 44.
127
MURR, J. Die Pflanzenwelt in der griechischen Groningue, 1969-
128
Mythologie.
PLUTARCO. Vida de Timoleonte, 26; Timoleonte responde que não se trata absolutamente de um signo inquietante, já que o aipo tinha sido empregado para fazer as coroas nos jogos ístmicos. Cf. também LEUTSCH, E , SCHNEIDEWIN, F. G. Corpus paroemiographorum graecorum, II, p.639.
129
130
PLÍNIO. História natural, XX, 113.
131
HERÓDOTO, I, 140.
132
Ibidem. II, 86.
133
Ibidem. II, 136.
134
LORAUX, N. L'invention d'Athènes. Paris/Berlin, 1980.
135
HERÓDOTO, IX, 25.
136
CLASTRES, P. La société contre l'État. Paris, 1974. p.5, 152 et seq.
137
DÜRKHEIM, É. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris, 1912. p.333-
138
DUCREY, P. Le traitement des prisonniers de guerre dans la Grèce antique. Paris, 1968. p.215.
139
HERÓDOTO, IV, 71.
140
Ibidem. IV, 72.
141
PLUTARCO. Vida de Sólon, 21.
A diferença de status social não basta para explicar o desvio; remete-se aos funerais aristocráticos, contra os quais a cidade quis precaver-se.
142
KURTZ, D., BOARDMAN, J. GreekBurialCustoms. London, 1971. p.79 et seq., 105 et seq.
143
Äpries foi estrangulado pelos egípcios (HERÓDOTO, II, 169); os babilônios sufocam as mulheres (HERÓDOTO, III, 150); os citas
144
419
estrangulam o animal sacrificado (HERÓDOTO, IV, 60); Arcesilas, filho de Bato, é estrangulado por seu irmão (HERÓDOTO, IV, l60). Cf. GERNET, L. Anthropologie de la Grèce antique. Paris, 1968. p.302, "sobre a execução capital". 145
HERÓDOTO, IV, 60.
MÊ
P L U T A R C O .
Vida de Sólon,
2 1 .
HOMERO. Ilíada, XXIII, 175. Nos dois casos, trata-se de agradar ao morto: seja sacrificando seus amigos, seja sacrificando seus inimigos, a função é a mesma.
147
São citas de nascença; são domésticos do rei, aqueles a quem ele próprio dava ordens, já que os citas não têm domésticos comprados (argyrónetoi therápontes). Esse detalhe sobre a escravidão é interessante por mostrar que, para Heródoto, um escravo, normalmente, se compra e não é engenés.
148
149
HERÓDOTO, IV, 73-75.
150
MEULI, K. Scythica. Hermes, n.70, p.122, 1935.
151
Escólio a ARISTÓFANES. Nuvens, 838.
152
Ver a nota n.4, de Legrand, ao capítulo 73 de HÉRODOTE. Histoires. Katharai kai lampraí— não se pode todavia excluir o sentido de pureza.
153
154
HERÓDOTO, III, 107.
155
Ibidem. IV, 75.
HOMERO. Odisséia, V, 64; R. E., s.v. Kypressus, especialmente quanto aos valores funerários.
156
157
TEÓCRITO. Epigramas, VIII, 4.
158
HERÓDOTO, IV, 75.
159
Ibidem. III, 117.
160
MEULI, K. Scythica. Hermès, n.70, p.125, 1935.
Sobre a diferença entre os funerais atenienses e espartanos, ver LORAUX, N. L'invention d Athènes. Paris/Berlin, 1980.
161
162
HERÓDOTO, VI, 58.
163
Ibidem. VI, 59.
164
Ibidem. VI, 60.
420
165
PLUTARCO. Vida deAgésilas, XL, 4.
166
DIODORO, XV, 93, 6.
167
PLUTARCO. Vida deAgésilas, XL, 4; NEPO, C. Agésilas, VIII, 7.
168
XENOFONTE. Helénicas, V, 3,19.
169 TIRTEU, fr. 5 DIEHL. PLATÃO. Leis, XII, 958 det seq.
170
171 Escólio
a PÍNDARO. Neméias, VII, 155.
172
HERÓDOTO, II, 60.
173
Ibidem. III, 66.
174
Ibidem. VIII, 99.
175
Ibidem. IX, 24.
176
Sobre essa questão do thrênos, ver LORAUX, N. L'invention d'Athènes. Paris/Berlin, 1980; PÓLUX, VI, 202.
177
TUCÍDIDES, II, 34. FINLEY, M. I. Sparta. In: Problèmes de la guerre en Grèce ancienne. Paris, 1968. p. 143 et seq.
178
PLUTARCO. Sólon, XXI, 1; DEMÓSTENES. Contra Léptines, 104; Contra Boeto, II, 49.
179
XENOFONTE. República dos lacedemônios, XV, 9; Helénicas, III, 31: ouk bôs anthrópous, ail'bôshéroas tousLakedaimoníon basileis protetimékasin-, ou, a propósito de Ágis: étykhe semnotéras è kat'dnthropon taphés.
180
181
HERÓDOTO, I, 73-
182
Ibidem. IV, 64-66.
183
Ibidem. IV, 64.
184
Cf. Parte 2, capítulo III: As Histórias como representação.
HERÓDOTO, IV, 103. Eles dizem que as cabeças são "guardiões" que tomam conta de suas casas. Trata-se, pois, de um uso diferente do dos citas.
185
186
HERÓDOTO, III, 79.
187
Ibidem. VI, 30.
188
Ibidem. VII, 238. 421
189
HERÓDOTO, V, 114.
190
Cf. p.161-164, Parte 1, capítulo IV.
HERÓDOTO, VII, 238. Bem entendido, é necessário aproximar essa passagem de IX, 78, onde Pausânias recusa-se a mandar empalar (crucificar) o cadáver de Mardônio, como lhe propõe Lámpon, para vingar Leônidas: "Tal conduta convém aos bárbaros mais que a gregos; e, a eles, nós os criticamos por isso."
191
O simples skythízo(tardio) significa "beber em excesso", "raspar" (EURÍPIDES. Electra, 241: "E minha cabeça raspada à moda dos citas..."), em sinal de luto (Epigrammata graeca, 790-798), além de "falar cita".
192
193
EURÍPIDES. As troianas, 1026.
194
ATENEU, XII, 524 f.
195
ESTRABÃO, XI, 14, 14.
196
ARISTÓFANES, I, 521, KOCH; XENOFONTE.Ciropedia, I, 3, 5.
197
Tragicornm Graecornmfragmenta, 432; cf. ATENEU, IX, 410 c.
198
HESÍQUIO. Léxico, s.v. Skythisti kheirómaktron: oi Skythai tôn lambanoménon (polemíon) hôn tàskepbalàsekdérontes[êsan] anti kheirómaktron ekhrônto.
REINACH, A. Les têtes coupées et les trophées en Gaule. Revue Celtique, p.38-60, 1913; BENOÎT, F. Le sanctuaire aux "esprits" d'Entremont. Cahiers Ligures de Préhistoire et d'Archéologie, v.4, p.38-70, 1955.
199
Por exemplo, para designar as cabeças, Diodoro emprega a palavra akrothínion, que significa "primícias" — exatamente o alto da pilha de despojos; essas primícias são afixadas pelos gauleses no portal de suas casas, enquanto na Cítia a cabeça é levada para o rei.
200
HERÓDOTO, IV, 65. Heródoto absolutamente não esclarece por que esse tratamento é reservado aos piores inimigos e aos parentes (que são portanto suscetíveis de pertencer à categoria dos piores inimigos). Note-se também a maneira como, na sociedade cita, se traduz a diferença rico/pobre. Os citas são os únicos a beber em crânios; os issedons conservam a cabeça de seus parentes mortos: limpam-na, depilam-na, douram-na e tratam-na como ágalma nas cerimônias anuais em honra do morto.
201
202
ESTRABÃO, VII, 3, 6.
422
PLÍNIO. História natural, VII, 2, 12; ARISTÓTELES. Política, VII, 1324 bl7.
203
HERÓDOTO, IV, 64: Katáper baítas; baíte = capa de pastor, roupa feita de pele de animal. Observe-se a função da comparação: os citas são pastores que usam vestes de pele, mas de peles de homens. DUMÉZIL, G. Legendes sur les Nartes. Paris, 1930, p.153, aproxima este capítulo da vida de Baraz, em que "ele reúne as mulheres e os filhos dos nartas e lhes ordena que lhe costurem um manto com a pele das cabeças que lhes traz; enquanto isso, as desgraçadas lamentam: 'É a pele da cabeça de meu pai' — dizia uma; 'de meu noivo', 'de meu irmão' — diziam as outras".
204
designa aqui o esfolamento de um cadáver (HERÓDOTO, V, 25): Dario mandou esfolar um juiz real. Mas, em II, 40-42, e em IV, 60-61, trata-se de "esfolar" um animal sacrificado. Do mesmo modo, ekdeíroQi parte este exemplo e VII, 26, onde se trata do "odre" feito com a pele do sileno Mársias) designa o esfolamento de um animal.
205 Apode iro
206
HERÓDOTO, IV, 64. A presença do imperfeito ên indica uma interferência do narrador na narrativa: dérma dè anthrópou kaàpakhy kai lampròn ên ára...
207
HOMERO. Ilíada, I, 124; DETIENNE, M. Les maîtres de vérité dans la Grèce archaïque. Paris, 1967. p.84-85. HOMERO. Odisséia, IX, 39-42.
208
HERÓDOTO, IX, 81. Sobre a questão do butim, ver PRITCHETT, W. K. The GreekState at War. University of Califórnia Press, 1974. p.53-84. Sobre a partilha do butim, pode-se ainda lembrar a regra que prevalecia no Exército dos Dez Mil: toda aquisição feita por um soldado em pilhagem lhe pertencia; pelo contrário, "quando as tropas saíam, o que cada indivíduo isolado conseguisse pegar considerava-se pertencer à massa". (XENOFONTE. Anábase, VI, 6, 2-10)
209
2.0
PRITCHETT, W. K. The Greek State at War. University of Califórnia Press, 1974. Aristéia in warfare, p.76-290. HERÓDOTO, IV, 64.
2.1
Ibidem. IV, 54. ROBERT, L. Laodicée du Lycos. Paris, 1969. p.307, n.2: "A palavra andragathía, como andreía, não designa vagamente o mérito", mas muito precisamente a coragem física (atletas etc.) e sobretudo militar — e andragathía designa as ações gloriosas na guerra e não os méritos.
212
423
2,3
PRITCHETT, W. K. The Greek State at War. University of California Press, 1974. Aristéia in warfare, p.285, dá o quadro da aristeíaem Heródoto. Heródoto é o único historiador a ter tanto cuidado com isso: porventura, como sugere Romilly, faz isso porque "seu modelo continua sendo a epopéia"? (ROMILLY, J. de. Histoire et raison chez Thucydide, p.113). Pensa ele, em todo caso, que é seu dever informar-se dos nomes daqueles que provaram a maior coragem; assim, ele conhece, mesmo se não os dá, os nomes de todos os que tombaram nas Termópilas: "Informei-me de seus nomes, como nomes de homens dignos de memória" (de fato, hos andrôn axiôngenoménorí); "informei-me mesmo dos nomes de todos os trezentos". (HERÓDOTO, VII, 224) HERÓDOTO, III, 104; DETIENNE, M. La phalange. In: Problèmes de la guerre en Grèce ancienne. Paris, 1968. p.128.
211
HERÓDOTO, IX, 71.
2,5
Aristodemo, o único sobrevivente dos trezentos, vivia desde então em Esparta, no opróbrio e na degradação (óneidos kat atimíe).
216
Heródoto, por seu lado, estima que é Aristodemo que foi o mais valente — e muito mais.
217
HERÓDOTO, VIII, 123; PRITCHETT, W. K. The Greek State at War. University of California Press, 1974. Aristéia in warfare, p.288.
218
PRITCHETT, W. K. The Greek State at War. University of California Press, 1974. Aristéia in warfare, p.289-
219
220 221
HERÓDOTO, VIII, 124.
SEGAL, Ch. The Theme of the Mutilation of the Corpse in the Iliad. Leyde, 1971. p.20.
222
HOMERO. Ilíada, XVII, 126-127.
223
FINLEY, M. I. Le monde d'Ulysse. Paris, 1978. p.147.
224
GLOTZ, G. La solidarité de la famille en Grèce. Paris, 1904. p.63.
225
ROHDE. Psyché. Paris, 1928. p.599-603.
226
GERNET, L. Recherches sur le développement de la pensée juridique et morale en Grèce. Paris, 1917. p.216.
227
HERÓDOTO, IV, 66.
228
É a única aparição dessa personagem em todo o
424
lógoscita.
DUMÉZIL, G. Romans de Scythie et d'alentour. Paris, 1977, p.227 et seq., aproxima essa cratera de uma taça que aparece nas lendas dos nartas; essa taça, o nartamongae, "reveladora" dos nartas confirma ou infirma, por um sinal sensível, as declarações que fazem os nartas sobre suas façanhas.
229
230
HERÓDOTO, I, 71.
231
Ibidem. I, 126.
232
Ibidem. III, 23.
233
Ibidem. III, 22.
234
Ibidem. I, 207.
235
Ibidem. I, 216.
236
Ibidem. I, 212.
237
Ibidem. I, 214. KIRCHER, K. Die sakrale
238
Bedeutung
des Weines
im
Altertum.
Giessen, 1910. p.82 et seq.; GERNET, L. Anthropologie de la Grèce antique. Paris, 1968, p.210: "Um equivale ao outro (o vinho e o sangue); os dois pertencem a um mesmo complexo, claramente oposto àquele em que figuram as libações de leite e de mel...". 239
HERÓDOTO, IV, 64.
240
Ibidem. IV, 2.
241
ESTRABÃO, VII, 3, 7; HOMERO. Ilíada, XIII, 5-6.
242
ESTRABÃO, VII, 3, 7.
243
Fragmento 198, NAUCK.
244
HIPÓCRATES. Dosares,
das águas e dos lugares,
18.
^ESTRABÃO, VII, 3, 9; VIDAL-NAQUET, P. Valeurs religieuses et mythiques de la terre et du sacrifice dans l'Odyssée. Annales E. S. C., n.5, p.1287, 1970. 246
Éforo não precisa o que eles bebem; poderia ser sangue, vinho — mas também leite.
247
ATENEU, X, 441 d.
DIÓGENES LAÉRCIO, I, 104. Há numerosas observações sobre o vinho e a embriaguez no capítulo consagrado a Anácarsis.
248
425
LEUTSCH, E., SCHNEIDEWIN, F. G.
249
graecorum, gàrSkytbai
II, p.166: Episkytbison:
Corpusparoemiographorttm
epl tôn akrátoi
kbroménon;
boi
akratopótai.
HERÓDOTO, VI, 84. Pode-se também ajuntar que os citas recusam Dioniso precisamente com o pretexto de que ele faz ficar louco.
250
ANACREONTE, fr. 63 (= ATENEU, 427 a-b>, CAMALEO (ATENEU, 427 b) conta também a história de Cleômenes; AQUEU, in Tragicorwn
251
Graecorum
fragmenta,
748 (= ATENEU, 427 c).
ATENEU, XI, 4 9 9 f
252
PLATÃO. Leis, 637 e. A relação dos citas com o vinho é também objeto de um problema aristotélico (ARISTÓTELES. Problemas, III, 7): os citas gostam de vinho porque são, ao mesmo tempo, "quentes" e "secos", enquanto as crianças, que são igualmente "quentes", mas "úmidas", não gostam.
253
HOMERO. Odisséia, IX, 353 et seq.: "...de novo, eu lhe enchi sua manjedoura (kissybion = vaso para beber, vaso para ordenhar) de vinho de fogos sombrios; três vezes levei o odre e três vezes, como um louco, ele engoliu duma vez! Eu vi logo o vinho invadi-lo até o coração." (360-362). Esse vinho é um presente de Maro, sacerdote de Apolo em ísmaro, "para bebê-lo, vinho tinto, tão doce quanto o mel, era preciso vertê-lo numa taça cheia com vinte medidas de água". (IX, 208-210). Ao contrário, "puro, ele era bebida de deus", (IX, 205) o que se deve entender literalmente: os homens mortais não podem suportá-lo.
254
255
HERÓDOTO, IV, 62.
CAPÍTULO V 0 ESPAÇO E OS DEUSES: O BOI QUE "COZINHA A SI MESMO" E AS "BEBIDAS" DE ARES 1
Este texto apareceu, sob forma ligeiramente diferente, em DETIENNE, M., VERNANT, J.-P. La cuisine
du sacrifice
en pays grec.
Paris:
Gallimard, 1979. p.251-269. 2
VERNANT, J.-P. Entre bêtes et dieux. In: Mythe et société. Paris, 1974. p.171; cf. também DURAND, J.-L. Le corps du délit. Communications, n.26, p.46-60, 1977.
426
3
HERÓDOTO, IV, 61-62.
4
Ibidem. IV, 59-
5
LINFORTH, I. M. Greeck Gods and Foreign Gods in Herodotus. University of Califórnia
Publications
in Classical
Philology,
v.9,
p.6-7, 1926. 6
HESÍODO. Teogonia, 454.
7
Cf. Parte 1, capítulo 4: O corpo do rei: espaço e poder.
8
HERÓDOTO, II, 53.
9
Heródoto considera que Hesíodo e Homero viveram quatrocentos anos antes dele.
10
HERÓDOTO, II, 52.
11
Ibidem. IV, 59.
12
Ibidem. 1,131.
13
Ibidem. IV, 108. Na definição do tòHellenikón dada pelos atenienses em VIII, 144, encontra-se justamente menção dos edifícios dedicados aos deuses e dos sacrifícios: nós temos "santuários e sacrifícios comuns" ( t b e ô n idrymatá
te koinà kài
thysíai).
14
HERÓDOTO, II, 4.
15
Ibidem. IV, 59-
16
PLATÃO. Protágoras, 322 a.
17
HERÓDOTO, III, 18; ver DETIENNE, M, VERNANT, J.-P. La cuisine du sacrifice en pays grec. Paris: Gallimard, 1979- p.239-249.
18
HERÓDOTO, IV, 60. CASABONA, J. Recherches sur le vocabulaire des sacrifices en grec. Paris, 1967, p.6l, mostra que, em Heródoto, érdo é equivalente de poiéo: "Ver-se-á no modo como Heródoto emprega érdo, mesmo com um valor religioso, um desses homerismos de vocabulário de que falam os antigos."
19
HERÓDOTO, II, 39.
20
Os persas, que também não levantam nem templos nem altares, escolhem todavia, para sacrificar, um "lugar puro" (khôron katbarórí) (HERÓDOTO, I, 132). Seu espaço cinde-se, pois, em zonas de qualidades diferentes.
21
HERÓDOTO, IV, 60: ...ka\ apopnígei, katarxãmenos
oút'
oúte pyr anakaúsas
oúte
epispeísas. 427
22
HERÓDOTO, I, 132.
23
Segundo CASABONA, J. Recherches sur le vocabulaire des sacrifices en grec. Paris, 1967, p.249, epispéndo, em Heródoto, significa "verter libações sobre algo e designa mais um gesto que uma cerimónia. Equivale a kataspéndo, que Heródoto emprega num outro sentido".
24
HERÓDOTO, II, 39.
25
Ibidem. IV, 62.
26
Ibidem. IV, 61; cf. também III, 24.
27
Ibidem. IV, 188.
28
Ibidem. IV, 103.
29
Ibidem. II, 45: para Heródoto, trata-se de "tolices" contadas pelos gregos.
30
HOMERO. Odisséia, III, 445.
31
DURAND, J.-L. Le corps du délit. Communications, 1977. DURAND, J.-L. Sacrifice
et labour
n.26, p.51-59,
en Grèce ancienne.
Paris,
1986. 32
VERNANT, J.-P Mythe et société. Paris, 1974. p.191; DETIENNE, M., VERNANT, J.-P. La cuisine du sacrifice
en pays grec. Paris: Gallimard,
1979. p.58-63. 33STENGEL,
P. Opferbraüche der Griecben. Leipzig/Berlin, 1910. p.155
et seq. 34HERÓDOTO,
I, 216. ESTRABÃO, XI, 8, 6, retoma essa informação. Além disso, de maneira de todo excepcional, os persas sacrificam uma vez cavalos: para obter presságios favoráveis, os magos degolaram nas águas do Estrímon, cavalos brancos (HERÓDOTO, VII, 113).
«PAUSÂNIAS, I, 21, 6. 36
HERÓDOTO, IV, 60.
37
Ibidem. II, l69. Ápries é estrangulado pelos egípcios que, após terem-se levantado contra ele, o venceram.
38
Ibidem. III, 150. Os babilônios, no momento de revoltar-se, estrangulam as mulheres.
39
Ibidem. IV, l60. Arcésilas é estrangulado por seu irmão.
65
Ibidem.IV,3:históriacita,sesequer,masàmaneiragrega.
428
41
HOMERO. Odisséia, XXII, 471-473 (tradução portuguesa de Carlos Alberto Nunes). Essa morte parece ser equivalente a que é infligida a Melântio, de quem se cortam o nariz, as orelhas, o sexo (que é dado aos cães), as mãos e os pés (XXII, 474-477).
42
EURÍPIDES. Andrômaca,
43
SÓFOCLES. Édipo rei, 1374: érga
412. estïkreísson'ankhóneseirgasména.
Há provavelmente uma relação entre o enforcamento e o sangue, ou o medo do sangue; assim, nas Suplicantes: "Eu queria, enforcada, encontrar a morte num laço, antes que um marido execrado pusesse a mão em meu corpo." (EURÍPIDES. Suplicantes, 788) 44
HERÓDOTO, II, 39.
45
Ibidem. IV, 188: apostréphousi
46
Ibidem. IV, 188; ómon (ombros) é uma conjectura, já que os manuscritos trazem dómoti (casa).
47
Ibidem. I, 132: nem altar, nem fogo, nem libação, nem flauta, nem ornamentos, nem cevada — e entretanto os persas não são apresentados como nômades, embora haja "tribos" nômades entre eles: os daos, os mardos, os drópicos, os sagárcios (HERÓDOTO, I, 125).
48
tòn
aukhéna.
DURAND, J.-L. In: DETIENNE, M., VERNANT, J.-P. La cuisine du sacrifice
en pays grec. Paris: Gallimard, 1979- p. 139.
49
Concretamente, a carne de um boi não sangrado seria imprópria para o consumo. Por esse detalhe do sangue, vê-se ainda mais como, com relação a Ares, passa-se para um espaço diferente: para Ares o sangue correrá.
50
HERÓDOTO, IV, 60, 61.
51
RUDHARDT, J. Notions fondamentales actes constitutifs
de la pensée
du culte dans la Grèce classique.
religieuse
et
Genève, 1958.
p.262. 52
HERÓDOTO, IV, 76.
53
Ibidem. IV, 62.
54
Ibidem. IV, 69-
55
ARISTÓTELES. Sobre as partes dos animais,
6 6 l b 1 et seq. ; 673 b 1
et seq.: os splãnkbna são as partes "vitais" do animal e compreendem o fígado, os pulmões, o baço, os rins e o coração. Cf. DETIENNE, M.
429
Dionysos mis à mort. Paris, 1977. p.177-178; e DETIENNE, M., VERNANT,J.-P. La cuisine du sacrifice en pays grec. Paris: Gallimard, 1979. p.139-150. 56
Essa questão diz respeito ã representação cultural do cozido em oposição ao assado: "Do mesmo modo que o cozido, de modo geral" — escreve Detienne — "distingue o homem do animal que come cru, o cozido em fervura separa o verdadeiro civilizado do rústico condenado aos grelhados". (DETIENNE, M., VERNANT, J.-P. La cuisine du sacrifice en pays grec. Paris: Gallimard, 1979. p.182). Seria de esperar, portanto, que os citas praticassem mais o assado que o cozido, mas não é isso que acontece: eles ignoram o assado (pelo menos parece) e não conhecem senão o cozido. Do mesmo modo que os persas, quando sacrificam, fervem as carnes para cozê-las (HERÓDOTO, I, 132); mas eles conhecem também o assado, que empregam por ocasião das refeições de aniversário. Entre os etíopes, a mesa do Sol comporta carnes cozidas (HERÓDOTO, III, 18). Não se detalha nada com relação ao sacrifício líbio. Quanto ao sacrifício egípcio, nada se diz explicitamente, mesmo se aparece, em outra parte, que os egípcios conhecem o processo de assar e de cozinhar por ebulição (HERÓDOTO, II, 77). Pode-se ainda lembrar os hindus, que se alimentam de ervas ( p o i e p h á g o u s í ) e cozem uma semente com sua casca, a qual comem (HERÓDOTO, III, 100): eles comem cru ou cozido, portanto. Os massagetas, quando sacrificam os velhos e misturam sua carne com a dos próbata, cozem o conjunto (HERÓDOTO, I, 216): eles são galactófagos.
57
HERÓDOTO, IV, 61.
58
Idem.
59
MENANDRO. O misantropo, 456, 519-
60
HESÍODO. Teogonia, 538-539; cf. VERNANT, J.-P. La guerre des cités. In: Mythe et société. Paris, 1974. p. 188. Os pretendentes têm, no fogo, "ventres (gastéres) de cabras recheados de gordura e de sangue" (HOMERO. Odisséia, XVIII, 44-45): trata-se de uma espécie de chouriço. METRODORO, Fr. Gr. Hist. 43 F 3, relata que o povo de Esmirna, eólios de origem, sacrifica a Bubróstis um touro negro que, após terem partido, cozinham inteiramente dentro de sua própria pele (autódoron); trata-se, pois, de uma outra coisa (holocausto).
61
HERÓDOTO, IV, 61: ho thysas tôn kreôn kai tôn aparxámenos.
430
splánkhnon
62
PORFÍRIO. Sobre a piedade, fr. 18. A única vez em que Heródoto fala de dais, festim, é a propósito do sacrifício egípcio; nada se diz sobre os líbios; entre os persas, precisa-se que o sacrificante "leva a carne para casa e a usa como bem entende" (HERÓDOTO, I, 132).
63
Curiosamente, RUDHARDT, J. Notions fondamentales de la pensée religieuse et actes constitutifs du culte dans la Grèce classique.
Genève, 1958, p.220, serve-se desse exemplo cita para mostrar que se trata de uma prática grega normal. 64
HERÓDOTO, II, 41: tendo outros costumes sacrificais, os egípcios não gostariam de "nem beijar um grego na boca, nem se servir do cutelo de um grego, ou de seus espetos, ou de seu caldeirão, nem mesmo de comer a carne de um boi isento dos signos, se foi partido com um cutelo grego".
65
Ibidem. I, 73: bósper eóthesan
66
Ibidem. 1,119: Astíages, rei dos medas, "tão logo o filho de Hárpago chegou a sua casa, mandou degolá-lo, parti-lo em pedaços, assar uma parte das carnes e cozinhar o resto...".
67
LUCIANO. Sobre os sacrifícios,
68
HOMERO. Ilíada, XIII, 301; Odisséia, VIII, 361; SÓFOCLES. Antígona,
kai tà tbería
skeuázein.
13-
970; Édipo rei, 196. 69
APOLÔNIO DE RODES. Argonáuticas, II, 989 et seq.: as amazonas "não amam senão a funesta desmedida e os trabalhos de Ares, pois são da raça de Ares e de Harmonia, esta ninfa que gerou para Ares filhos belicosos...".
70
HERÓDOTO, V, 7.
71
Ibidem. II, 63: um grupo defende a entrada do templo, enquanto outro esforça-se para penetrar nele. Conforme o povo do lugar, a origem desse combate é a seguinte: a mãe de Ares morava naquele lugar, tendo sido Ares criado separadamente; homem feito, ele retorna desejando visitar — unir-se (symmeîxai) — com a mãe. Os servidores queriam impedi-lo de entrar, donde o combate. Além disso, há um oráculo de Ares, também no Egito (HERÓDOTO, II, 83) e um outro entre os trácios (HERÓDOTO, VII, 76).
72
Ibidem. VII, 140; VIII, 77.
73
Ibidem. IV, 62: thusías... proságousi probáton kai bíppon (cf. CASABONA, J. Recherches sur le vocabulaire des sacrifices en grec.
Paris, 1967. p.135. (Tese). 431
74
HERÓDOTO, IV, 62.
75
Madeira que, além do mais, não serve para nada, já que os sacrifícios não prevêem nenhum cozimento. Marae por "analogia" com os santuários polinésios.
76
DUMÉZIL, G. Romans de Scythie et d'alentour. Paris, 1977. p.31-32.
77
HERÓDOTO, IV, 62, 71, 101.
78
Ibidem. VII, 54, onde akinákesé definido como uma espada persa. Além disso, existe uma ligação entre o ferro e a Cítia. O coro de Os sete contra Tebas associa, muitas vezes, os dois: "Aquele que agita os dados, o estrangeiro, Cálibo, emigrado da Cítia, duro repartidor de patrimônios, o ferro de coração cruel..." (ÉSQUILO. Os sete contra Tebas, 726-730). "Cruel foi o árbitro do debate (entre Etéocles e Polinices), o estrangeiro do Ponto, o ferro que sai aguçado da chama; cruel o duro repartidor do patrimônio deles, Ares, que realiza hoje a imprecação do pai deles" (942-946). Pode-se, pois, associar a Cítia ao ferro e a Ares; compreende-se melhor ainda em que condições os citas podem ser vistos como "seres para a guerra" e como um sabre pode representar um ágalmade Ares.
79
HERÓDOTO, II, 63.
80
SÓFOCLES. Édipo rei, 215.
81
HERÓDOTO, IV, 62.
82
HERÓDOTO, IV, 103.
83
Ibidem. IX, 119.
84
DUCREY, P. Le traitement des prisonniers de guerre dans la Grèce antique. Paris, 1968. p.204-205: sacrifícios realizados em honra de um morto (Pátroclo, Aquiles, Filopêmeno) ou antes de uma batalha (os três persas que foram degolados sobre o altar por Temístocles).
85
CASABONA, J. Recherches sur le vocabulaire des sacrifices en grec. Paris, 1967. p. 167, assinala que não há senão dois empregos de apospházein referentes ao sacrifício: o presente e o registrado em ARISTÓFANES. /Is mulheres que celebram as Tesmofórias, 750; entretanto, veja-se DETIENNE, M., VERNANT, J.-P La cuisine du sacrifice en pays grec. Paris: Gallimard, 1979. p.223, n.3.
86
HERÓDOTO, IV, 62. Sobre o sentido de aperçantes, ver CASABONA, J. Recherches sur le vocabulaire des sacrifices en grec. Paris, 1967, p.65, para quem apérdoé um equivalente de apergdzomai.
432
87
VERNANT, J.-P. La morte héroïque. Actes du Colloque sur l'Idéologie Funéraire. Ischia: C.U.P., 1980; VERNANT, J.-P. L'Individu, la mort, l'amour. Paris, 1989- p.4l-101.
88
Cf. ROSCHER. Lexicon, s.v. Ares.
89
Cf. nota 71, deste capítulo. Se se admite que symmeîxai possa significar que ele desejava unir-se com sua mãe.
CONCLUSÃO A QUESTÃO DO NOMADISMO 1
ÉSQUILO. Prometeu acorrentado,
707-712.
2
ARISTÓFANES. As aves, 941-942; escólio a As aves, 942-943. Píndaro, fr. 105 b 1, ed. SNELL. Pode-se ainda acrescentar HIPÓCRATES. Dos ares, das águas e dos lugares, 18.
3
ESTRABÃO, I, 2, 27.
4
Suda, s.v. Nomádes. ESTÊVÃO DE BIZÂNCIO. Ek tôn ethnikôn, ed. Meineke, s.v. Skythai: éthnos thrákion; ekaloûnto dè próteron Nomaíoi, isto é, povo das pastagens, mas também que se desloca de pastagem em pastagem. ARISTÓTELES. Das panes dos animais, 682 b 7, define assim o nomadikòs bios dos insetos: aqueles que, para encontrar alimento, têm de ir ao exterior (dià tèn tropbèn anankaíon ektopízeiri). Para um exame de conjunto, ver LAROCHE, E. Histoire de la racine "Nem" en grec ancien. Paris, 1949; sobre o sentido de némo/némomaie.m Heródoto, cf. p.18-21; sobre o sentido dos quatro derivados nomé, nomeiis, nómos, nomás, cf. p.115-129; por exemplo, p. 117: "Em definitivo, nomós não designa outra coisa que uma pastagem para os animais ou um habitat sem limites reconhecidos para os homens (o nome enquanto divisão administrativa é uma palavra técnica desde Heródoto... os compostos nomárkhesetc. não levantam nenhuma dificuldade. HERÓDOTO, IV, 66 etc.). Se se quer que rcomósseja derivado de némo, 'eu partilho', essa não pode ser senão uma interpretação recente, de uma época em que némo se aplica também às divisões territoriais, isto é, no curso do século V."
5
HERÓDOTO, I, 125, 215, 216; II, 29; III, 98, 99; IV, 106, 109, 181, 186, 190.
6
Os issedons fazem igualmente um banquete com seus parentes mortos e não são nómades (HERÓDOTO, IV, 26). 433
7 Cf.
Parte 1, capítulo I: Onde é a Cítia?
8
HERÓDOTO, IV, 16: All' hóson mèn hemeis atrekèos epí hoioí te egenómetba akoêi exikésthai, pân eirésetai.
9
Ibidem. IV, 17-20.
makrótaton
10
Como se pode, ao mesmo tempo, semear o trigo e não comer pão? Resposta: eles o vendem. Habitando próximo de Ólbia, os citas lavradores "conhecem" o trigo, mas não são, por isso, comedores de pão.
11
Os georgoíocupàm um território que, na direção do norte, estende-se por onze dias de navegação (dez dias em HERÓDOTO, IV, 53) e quatro dias de marcha na direção do leste, ou seja, até o rio Pantícapes. Esclarece-se que o Borístenes (fronteira ocidental para aquele povo) fornece excelentes pastagens e que tudo que se semeia às suas margens cresce bem (HERÓDOTO, IV, 53).
12
HERÓDOTO, IV, 2.
13
Ibidem. IV, 11.
14
Ibidem. IV, 123.
15
Ibidem. IV, 121.
16
HERÓDOTO, IV, 127. Pode-se ainda acrescentar que, na história de Ciles, os citas são nômades.
17
Cf. Parte 1, capítulo II: O caçador caçado: poros e aporia.
18
ÉSQUILO. As Eumênides, 700-703: Atena instituindo o Areópago, afirma: "Vós tendes nele uma muralha tutelar de vosso país e de vossa cidade (éryma kaisotériorí) como nenhum povo possui, nem na Cítia, nem sobre a terra de Pélops." Pode-se compreender que a muralha dos citas é precisamente sua aporia.
19
Pode-se também lembrar que as práticas sacrificais não os fazem apresentar-se senão como nômades: o ritual não retoma, nessa ocasião, a distinção entre citas lavradores, agricultores e nômades; todos ignoram a agricultura.
20
HERÓDOTO, II, 108-109.
21
Ibidem. II, 147: oudéna gàr khrónon hoioi te êsan áneu diaitãstbai.
65
Ibidem. IV,3:históriacita,sesequer,masàmaneiragrega.
434
basiléos
23
GARLAN, Y. Recherches depoliorcétiquegrecque. et seq.
24
TUCÍDIDES, I, 143, 5. Encontra-se essa mesma metáfora na Constituição de Atenas do Pseudo-Xenofonte: "Se fosse como insulares que os atenienses exercessem sua talassocracia, lhes seria possível causar todo mal a quem quisessem, sem sofrerem, enquanto durasse seu senhorio do mar, nem pilhagem de seu território, nem invasão inimiga..." (PSEUDO-XENOFONTE. Constituição de Atenas, II, 14).
25
Por "princípio metafórico" de inteligibilidade quero simplesmente dizer que seu modo de intervenção se produz no registro da metáfora.
26ARRIANO,
Paris, 1974. p.44
fr. 54, p. 218, ed. G. WIRTH, v.II.
27
TUCÍDIDES, I, 2; cf. também COLE, T. Democritus and of Greek Anthropology. 1967. p.29.
28
EURÍPIDES. O ciclope, 119-120: nomádes akoúei d'oudèn oudenós.
29
ARISTÓTELES. Política, 1250 a, 31-35.
30
HESÍODO. Os trabalhos e os dias, 42 et seq.
31
NICOLAU DE DAMAS. Fr. Gr. Hist., 90 F 103 (JACOBY).
32
Suda, s.v. Nomádon; HESÍQUIO, Léxico, s.v. Nomádon; Nomádes. emérai ai phtínontos toü menos.
theSources oudeis
s.v.
PARTE 2 HERÓDOTO, RAPSODO E AGRIMENSOR GENERALIZAR 1
HERÓDOTO, IV, 2; DUMÉZIL, G. Romans de Scytbie et d'alentour. Paris, 1977. p.309.
CAPÍTULO I UMA RETÓRICA DA ALTERIDADE 1
LYOTARD, J.-F. Discours, figures. Paris, 1971. p.142.
2
HERÓDOTO, II, 35. 435
3
HERÓDOTO, II, 35. Cf. FROIDEFOND, C. Le mirage égyptien dans la littérature grecque d'Homère a Aristote. Paris, 1970. p.129-136; e sobretudo PEMBROKE, S. Women in Charge: The Function of Alternatives in Early Greek Tradition and the Ancien Idea of Matriarchy. Journal of the Warburg and Courtland Institute, n.30, p.17, 1967.
4
Outros exemplos de inversão: às duas estátuas que se encontram diante dos propileus do santuário de Efesto os egípcios chamam, respectivamente, verão, a que está do lado do Bóreas; inverno, a que está do lado do Noto (HERÓDOTO, II, 121). A inversão permite que se compreenda o efeito do sol entre os hindus (portanto, no extremo leste): "O sol é muito quente durante a manhã — não ao meio-dia como junto de todos os outros povos [universalidade], mas desde o momento em que aparece no horizonte até a hora em que se fecha o comércio [referência particular em torno da qual se articula o esquema da inversão]: durante esse tempo, ele queima bem mais do que ao meio-dia na Grécia, a ponto de as pessoas ficarem então, diz-se, mergulhadas na água; ao meio-dia, ele queima mais ou menos igualmente os hindus e os outros homens; durante o declínio da tarde, o sol torna-se, para os hindus, o que é, em outros lugares, pela manhã; e, na medida em que se distancia, há niais e mais frescor..." (HERÓDOTO, III, 104). Último exemplo, sempre com o sol, mas desta vez no sul da Líbia, na fonte do sol, entre os amônios: "A água é tépida ao nascer do dia e mais fresca na hora em que o mercado encontra-se cheio; quando chega o meio-dia, a água encontra-se de fato fria; é então que os amônios molham seus jardins; na medida em que o dia declina, ela perde seu frescor, até o momento em que o sol se põe, quando a água se toma tépida; ela vai esquentando quanto mais se aproxima o meio da noite, hora em que chega a ferver; depois da meia-noite, sua temperatura diminui até a aurora." (HERÓDOTO, IV, 181). Considere-se ainda o mecanismo de tomada de decisão entre os persas em função da embriaguez (HERÓDOTO, I, 133, 140).
5
Cf. Parte 1, capítulo I: Onde é a Cítia?
6
Em Heródoto, a inversão não serve, como nos dissoi lógoi, para levantar dúvidas: se duas condutas inversas fossem, em dois lugares diferentes, consideradas como justas, então tudo seria justo ou nada o seria. Entende-se bem que esse uso da inversão como uma figura do discurso sobre o outro remete ao esquema do pensamento grego arcaico que Lloyd chama "polarity" (cf. LLOYD, G. Polarity and Analogy. Cambridge, 1966).
436
7
LÉRY, J. de. Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil. Préf. Éd. Contât, p.28.
8
Contrariamente ao que escreve PANOFF, M. Ethnologie, le deuxième souffle. Paris, 1977. p.38.
9
Cf. Parte 1, capítulo V: O espaço e os deuses: o boi que "cozinha a si mesmo" e as "bebidas"de Ares.
10
Cf. Parte 1, capítulo IV: O corpo do rei: espaço e poder.
11
CARLIER, J. art. Amazones. In: BONNEFOY, Y. (Org.). de mythologies. Paris, 1981.
12
VERNANT, J.-P. La guerre des cités. In: Mythe et société. Paris, 1974. p.38.
13
ESTRABÃO, XI, 5, 1.
14
DIODORO, III, 53: "Diz-se que existia, a oeste da Líbia e nas fronteiras do mundo habitado, um povo em que as mulheres exerciam o poder [ginecocracia] e cujo gênero de vida diferia do nosso. Entre eles, com efeito, a regra era que as mulheres fizessem a guerra e cumprissem o serviço militar durante um dado tempo em que permaneciam virgens. Mas, uma vez acabado esse período de serviço ativo, tinham elas relações sexuais com os homens a fim de pôr crianças no mundo, mas eram elas que exerciam as magistraturas e administravam todos os negócios comuns. Os homens, pelo contrário, como as mulheres casadas entre nós, ficavam no interior da casa e executavam as ordens que lhes davam suas esposas. Eles absolutamente não participavam do exército, nem das magistraturas, e não podiam tomar a palavra na assembléia sobre os negócios da cidade, direito que poderia fazê-los presunçosos e levá-los a revoltar-se contra as mulheres. Após seu nascimento, os bebês eram confiados aos homens, que os alimentavam com leite e com tudo que convém às crianças pequenas. Mas, quando se tratava de uma menina, seus seios eram queimados, a fim de que não pudessem desenvolver-se na adolescência, pois elas pensavam que um peito desenvolvido representava um incômodo quando se queria combater. Aliás, é porque elas são 'sem seios' que os gregos as chamam de 'amazonas'."
15
HERÓDOTO, IV, 110-117.
16
Os parênteses indicam que os gregos podem não estar explicitamente presentes sobre a cena.
17
Sobre o presente e a descrição, cf. Parte 2, capítulo I: Uma retórica da alteridade.
Dictionnaire
437
18
Symbalésthai: eles não tinham nada que pudesse servir de elemento de comparação, encontrando-se em face do desconhecido.
19
Toda essa narrativa depende de um légetai, diz-se, inicial — e o estilo indireto livre faz com que seja quase impossível distinguir o que é reflexão dos citas do que é intervenção do narrador: são os citas que justificam eles próprios sua conduta ou é o narrador que a explica a seus ouvintes, pondo em funcionamento, implicitamente, o esquema guerra/casamento? É tanto uma coisa quanto outra.
20
Bem entendido, sou eu que os chamo assim. O texto não se refere a eles senão como "jovens". Colocar alguma coisa como a efebia nas bordas dessa história confere-lhe uma inteligibilidade maior para um ouvinte grego. É isso que eu suponho.
21A
narrativa insiste sobre o casamento: enviam-se tantos jovens quantas moças se pensa que há; cada homem permanece em seguida com a mulher com a qual fez amor pela primeira vez. Em resumo, há um esforço para afastar-se claramente do modelo de promiscuidade em que se acasala "como os animais". Trata-se de um casamento monogâmico, legítimo.
22
Fazer amor à luz do dia e à vista de todos representa uma transgressão com relação às práticas ordinárias da cidade.
23
Que são bem os esposos que deixam o oíkos paterno, o texto insiste em marcar: "Nós temos medo e ficamos apreensivas — dizem as amazonas — ao pensar que deveremos morar neste país, depois de vos ter separado de vossos pais e de ter feito muitos estragos em vosso território."
24
Cf. Parte 1, capítulo IV: O corpo do rei: espaço e poder.
25
Sobre o que qualifica alguém como guerreiro e sobre a diferença entre combatente e guerreiro, ver CLASTRES, P. Libre 2. Paris, 1978. p.69 et seq. Do mesmo modo, para HIPÓCRATES. Dos ares, das águas e dos lugares, 17, uma amazona não pode casar-se antes de ter matado três inimigos. Ver CLASTRES, P. Recherches d'anthropologie politique. Paris, 1980. p.209-242.
26
A mesma expressão, para descrever a conduta dos maridos, retorna em dois momentos: epeíthonto kai (epoíesan) taûta boi neenískoi.
27
Após a batalha do Termodonte, "os gregos voltaram ao mar, conduzindo em três navios todas as amazonas que puderam capturar vivas. Mas elas, em alto mar, atacaram os homens e os massacraram. Elas não conheciam a navegação e não sabiam utilizar o leme, nem as
438
velas, nem os remos. Depois de massacrar os homens, foram levadas ao sabor das ondas e dos ventos." 28
Heródoto dá a "etimologia" cita do nome delas, mas não faz nenhuma alusão ã "etimologia" grega (a-mazós, aquela que não tem seios).
29
VERNANT, J.-P, DETIENNE, M. Les ruses de l'intelligence, la métis des grecs. Paris, 1975. p.176-241. Não há proximidade entre as amazonas e Atena, que todavia é virgem e guerreira.
30
KRANZ, W. Gleichnis und Vergleich in der Fruhgriechischen Philosophie. Hermès, n.73, p.92-132,1938; SNELL, B. TheDiscovery oftheMind. New York, i960, p.191-227.
31
LLOYD, G. E. Polarity and Analogy. Cambridge, 1966. p.209, 305, 345.
32
Tomo emprestada de J. de Léry essa distinção entre o mundo de "aquém" (aqui) e o mundo de "além" (o Brasil).
33
Um exame sistemático dos segundos termos das comparações poderá teoricamente dar alguma informação, senão sobre o público, pelo menos sobre o destinatário das Histórias. Encontram-se, especialmente, os gregos, a Cilicia, o Meandro (II), ílion, Teutrania, Éfeso, Cirene (o lótus), a Ática, a Iapígia.
34
HERÓDOTO, I, 202.
35
Ibidem. II, 29.
36
Por exemplo, HERÓDOTO, I, 203-
37
HERÓDOTO, I, 94.
38
Ibidem. IV, 169.
39
Ibidem. I, 94; ver também I, 35; II, 92; IV, 26.
40
Ibidem. VIII, 98.
41
Ibidem. IV, 26.
^ketórica a Herênio, IV, 46; ver CHARLES, M. Bibliothèques. Poétique, n.33, p.19-20, fév. 1978. FONTANIER. Lesfigures du discours, define assim o paralelo: "O paralelo consiste em duas descrições consecutivas ou misturadas, pelas quais se aproximam um do outro, do ponto de vista de suas relações físicas ou morais, dois objetos dos quais se quer mostrar a semelhança ou a diferença." 43
HERÓDOTO, IV, 99.
44
I d e m . Lego
dè hos eînai
taûta
smikrà
megáloisi
symbaleín.
439
45
Outro exemplo de paralelo, HERÓDOTO, II, 10.
46
DILLER, H. Ópsisadélon tàphainómena.
47
LLOYD, G. E. Polarity andAnalogy. Cambridge, 1966. Sobre o poder da analogia, ver FOUCAULT, M. Les mots et les choses. Paris, 1966. p.36: "Velho conceito, já familiar à ciência grega [...] Seu poder é imenso, pois as similitudes de que trata não são aquelas visíveis, maciças, das próprias coisas; é suficiente que sejam as semelhanças mais sutis das relações...".
48
HERÓDOTO, II, 33-34.
49
Idem. Hos egò symbállomai toísi empbanési tà mè ginoskómena tekmairómenos, expressão que ecoa a fórmula de Anaxágoras.
50
JACOBY, F. R. E., Suppl. II, 331-332.
51
HERÓDOTO, II, 93: thómata dègêbeLydíe
52
HERÓDOTO, IV, 82: "Com relação a maravilhas, essa região não possui nenhuma, a não ser que seus rios são em muito os maiores e mais numerosos...".
53
Para um exame do sentido de érgon, ver IMMERWAHRH. R. Ergon, History as a Monument. American Journal ofPbilology, n.81, p.263264, 1960; o artigo de BARTH, H. Zur Bewertung und Auswahl des Stoffes durch Herodotus (Die Begriffe, thôma, tbomázo, tbomásios und tbomastós). Klio, n.50, p.93-110, 1968, contribui também para a determinação do sentido dessa expressão.
54
HERÓDOTO, III, 106; 116, respectivamente.
55
NENCI, G. La concezione dei miracoloso nei poemi homerici. Atti Accad. Scienzede Torino, v.92, p.275-311, 1957-1958; NENCI, G. La concezione dei miracoloso in Esiodo. Critica Storica, n.31, p.251257, 1962.
56
HERÓDOTO, III, 107-112.
57
Ibidem. II, 35.
58
Ibidem. IV, 30; o texto continua: "Segundo os próprios habitantes de Élis, a impossibilidade de que mulas sejam procriadas entre eles é conseqüência de uma maldição."
59
Ibidem. IV, 30: "Pergunto-me com surpresa, pois desde o começo de meu /dgosbusquei digressões, porque...".
65
Ibidem. IV,3:históriacita,sesequer,masàmaneiragrega.
440
Hermes, n.67, p.14-42,1932.
essyngraphen...
61
HERÓDOTO, IV, 82.
62
Ibidem. IV, 8-10; cf. Parte 1, capítulo I: Onde é a Cítia?
63
NENCI, G. La concezione dei miracoloso in Esiodo. Critica Storica, n.31, p.254, 1962.
64
Exemplos de transcrições manifestas do thôma numa grandeza mensurável: HERÓDOTO, 1,184,185; II, 111,148,149,155,156,163, 175,176; III, 113; IV, 82, 85, 199...
65
HERÓDOTO, II, 148.
66
HESÍODO. Teogonia, 743-744.
67
HERÓDOTO, I, 194; III, 12; IV, 129.
68
Ibidem. II, 35.
69
Hesíodo menciona, por exemplo, a propósito de Cérbero, o caráter indizível (oú tiphateíorí) do thôma; cf. NENCI, G. La concezione dei miracoloso in Esiodo. Critica Storica, n.31, p.255, 1962.
70
Definição de "traduction" dada pelo dicionário Robert.
71
DE CERTEAU, M. L'écriture de l'histoire. Paris: Gallimard, 1975. p.233.
72
Ibidem, p.232; título do capítulo de Jean de Léry: "Colóquio de entrada ou de chegada na terra do Brasil, entre os povos chamados tupinambults... em língua selvagem e francês." (A referência de M. de Certeau a "un Assimil" diz respeito à conhecida série de livros destinados ao ensino de línguas estrangeiras, a qual usa o método direto. N. T.)
73
DE CERTEAU, M. L'écriture de l'histoire. Paris: Gallimard, 1975. p.232.
74
LEGRAND. Introduction et commentaires. In: HÉRODOTE. Histoires. Paris: Les Belles-Lettres, 1955. p.75; também nota ao livro 1,139.
75
MOMIGLIANO, A. The Fault of the Greeks. Daedalus, v.104, n.2, p.12/15, 1975.
76
HERÓDOTO, II, 125. Parece que a tradução não pode ser senão fantasista.
77
Ibidem. III, 38, 140.
78
Ibidem. VI, 29. Ao contrário, quando de um banquete oferecido em Tebas a Mardônio, um persa dirige-se a seu vizinho grego em grego.
79
Ibidem. II, 154.
65
Ibidem.IV,3:históriacita,sesequer,masàmaneiragrega. 441
81
HERÓDOTO, IV, 110. Legrand, baseando-se em Benveniste, qualifica essa tradução de fantasiosa. Outro exemplo de tradução encontra-se em IV, 27: "O nome que damos aos arimaspos é cita: arima significa, em cita, 'um'; e spou, 'olho'."
82
A "etimologia cita" pode evocar ou lembrar, no contexto do saber compartilhado pelos gregos, a denominação homérica. Diz Homero que as amazonas são antiáneirai, isto é, jogando com os sentidos do prefixo anti, a um só tempo "iguais" e "inimigas dos machos".
83
HERÓDOTO, IV, 155. O divertido desse exemplo é que a designação é singular (trata-se da mesma pessoa), mas o mesmo nome, Báttos, para um grego é uma denominação, enquanto é uma descrição para um líbio (se seguirmos Heródoto) — e inversamente. Ver DESCOMBES, V. Une supposition très singulière ou comment désigner la porte d'Ali Baba. Critique, p.467-492, mai 1978.
84
Aos quais se deve ajuntar HERÓDOTO, 1,110; II, 30, IV, 52,192; III, 26; IV, 119; VIII, 85; II, 143; IX, 110.
85
Em francês, a oposição se faz entre thème (texto que um estudante deve traduzir da língua que ele fala para uma língua estrangeira), operação que corresponde, em português, ao que se chama versão, em sentido especializado pelo uso escolar; e version (tradução de uma língua estrangeira para a língua materna), o que, também na esfera escolar, se chama, em português, propriamente de tradução. Apenas em benefício da clareza e por analogia com o primeiro, acrescentei o segundo parêntese à frase em pauta: "Parte-se do nome em língua bárbara, dando-se em seguida o nome grego." (N. T.)
86
HERÓDOTO, II, 144 (Hórus=Apolo); II, 137 (Bubástis=Ártemis); II, 59 (ísis=Deméter); II, 144 (Osíris=Dioniso); II, 153 (Ápis=Épafo).
87
Ibidem. IV, 59; outros exemplos de "tradução": I, 131; II, 42, 46, 79; III, 8.
88
DEMÓCRITO, 68 B 142 (D.K.).
89
GOLDSCHMIDT, V. £ S S « J surfe Cratyle. Paris, 1940. p.27; BOYANCÉ, P. La doctrine d'Eutiphron dans le Cratyle. Revue des Études Grecques, p.143-175, 1941; BURKERT, W. La genèse des choses et des mots. Le papyrus de Derveni entre Anaxagore et Cratyle. Les Études Philosophiques, n.4, p.443-455, 1970.
90
DIÓGENES LAÉRCIO, VI, 17.
9]
PLATÃO. Crátilo, 397 c-408 d.
442
92
HERÓDOTO, II, 50. Sobre esse assunto, o artigo melhor ainda me parece ser o de LINFORTH, I. M. Greek Gods and Foreign Gods in Herodotus. University of California Publications in Classical Philology, v.9, p. 1-25, 1926. Além disso, ver LATTIMORE, R. Herodotus and the Name of Egyptian Gods. Classical Philology, v.34, p.357-365,1939; e a resposta de LINFORTH, I. M. Classical Philology, v.35, p.300,1940; ainda LLOYD, A. B. Herodotus Book II, Comentary. Leyde, 1976.
93
LINFORTH, I. M. Greek Gods and Foreign Gods in Herodotus. University of California Publications in Classical Philology, v.9, p.11, 1926: "Do mesmo modo que bydor e aqua significam a mesma coisa, de modo que um grego, escrevendo em grego, emprega a palavra hydor, enquanto um romano, escrevendo em latim, empregará aqua, do mesmo modo Zeus e Amon significam a mesma coisa e Heródoto, escrevendo em grego, emprega a palavra Zeus, como é natural."
94
MOUNIN, G. Lesproblèmes 1963. p.26.
95
LÉVI-STRAUSS, C. Lapenséesauvage.
96
Mesmo quando há tradução, não há o estabelecimento de uma série, salvo em HERÓDOTO, 1,131, Afrodite Urânia=Milita=Alilat=Mitra.
97
HERÓDOTO, V, 102.
98
Ibidem. IX, 119.
99
Ibidem. IV, 94-96.
théoriques
de la traduction.
Paris,
Paris, 1962. p.240, 248, 285.
Restariam o caso de Ares e do daímon dos tauros. A Ares se oferecem sacrifícios humanos, embora ele tenha um nome "grego" sem equivalente em cita (contra Plístoro); cf. Parte 1, capítulo 5: O espaço e os deuses: o boi que "cozinha a si mesmo" e as "bebidas" de Ares. A seu daímon os tauros sacrificam prisioneiros — assimilando-o a Ifigênia, embora Heródoto precise bem que são efes que fazem essa tradução.
100
101
HERÓDOTO, I, 126 (massagetas); III, 8 (árabes); 1,131 (persas); II, 29 (etíopes); IV, 59 (citas); V, 7 (trácios).
102
Ibidem. I, 131.
103
Ibidem. IV, 180.
104
Ibidem. II, 79-
65Ibidem.
IV,3:históriacita,sesequer,masàmaneiragrega.
443
106
HERÓDOTO, VII, 53.
107
Ibidem. IV, 185; também IV, 197.
"Essencialmente, os navegadores de Júlio Verne são nomeadores: eles participam da gênese do mundo pela nomeação [...] os navegadores semantizam os buracos do universo." (DE CERTEAU, M. In: JULES VERNE. Les grands navigateurs du XVIIIe siècle. Paris, 1977. p.IX). Ver ainda DE CERTEAU, M. L'invention du quotidien. Paris, 1990. p.170-191.
108
Refiro-me a um colóquio acontecido em Urbino (em julho de 1977) sobre a descrição e, principalmente, às intervenções de C. Imbert e P. Hamon.
109
110
Cf. Parte 1, capítulo III: Fronteira e alteridade.
111
Cf. Parte 1, capítulo IV: O corpo do rei: espaço e poder.
1,2
HERÓDOTO, II, 71.
113
Ibidem. II, 68.
LÉRY, J. de. Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil. Éd. M. Contât, p.105.
114
DESCARTES. Meditações, I: "Verdadeiramente pois os pintores, mesmo quando se esforçam com o máximo de artifício para representar sereias e sátiros em formas extravagantes, não podem, mesmo assim, atribuir-lhes formas e naturezas inteiramente novas, fazendo somente uma certa mistura e composição dos membros dos diversos animais; entretanto, se sua imaginação fosse bastante extravagante para inventar alguma coisa de tão novo que jamais tivéssemos visto nada de semelhante, representando assim sua obra uma coisa puramente inventada e absolutamente falsa, pelo menos, sem dúvida, as cores com as quais pintam deveriam ser verdadeiras."
115
LÉRY, J. de. Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil. Éd. M. Contât, p.179.
116
HERÓDOTO, IV, 74: "Nasce entre eles o cânhamo, que parece de fato com o linho, exceto pela grossura e pela altura, pois, com relação a isso, o cânhamo é muito maior. Esse cânhamo brota por si mesmo ou é semeado. Os trácios fazem com ele roupas em tudo semelhantes às feitas com linho; quem não tiver muita experiência (tríbon) não conseguirá distinguir se são de linho ou de cânhamo; e quem ainda não viu (eíde) um tecido de cânhamo crerá que a roupa é de linho."
117
444
DE CERTEAU, M. L'écriture de l'histoire. Paris: Gallimard, 1975. p.235: "...Os objetos repartem-se num espaço regido não pelas localizações e percursos geográficos (essas indicações são raríssimas e sempre vagas), mas por uma taxionomia dos vivos — por exemplo, quando trata dos pássaros, Léry remete para a célebre História da natureza dos pássaros, Paris, 1555, de P. BELON, um inventário sistemático de 'questões' filosóficas etc., em suma, a 'tábula' racional de um saber."
118
119
HAMON, P. L'appareil descriptif du texte naturaliste, Colóquio de Urbino, 1977. O exemplo mais chocante de passagem à taxionomia é sem dúvida fornecido pela vigia do Nautilus, em Vinte mil léguas submarinas, de Júlio Verne, por onde desfilam todos os peixes e animais marinhos repertoriados e classificados nas enciclopédias. Pode-se questionar esse procedimento do fazer crer, fundamental para a descrição, tomando-se, por exemplo, textos que pretendem ter visto e em que, todavia, não se acredita: Ctésias etc.
120
121
HERÓDOTO, IV, 71.
122
Ibidem. IV, 28.
123
Ibidem. IV, 53-
Ibidem. IV, 72; além disso, toioútous corresponde, em forma conclusiva, ao Mífecolocado pouco antes.
124
125
LINFORTH, I. M. Greek Gods and Foreign Gods in Herodotus. University of Califórnia Publications in ClassicalPhilology, v.9,1926.
126
BENVENISTE, É. Problèmes de linguistique générale. Paris: Gallimard, 1966. t. I, p.262.
127
GENETTE, G. Figures III. Paris, 1972. p.228.
128
GREVISSE, M. Le bon usage, § 115.
129
WEINRICH, H. Le temps. Paris, 1973- p.39.
130
Sobre os dêiticos, ver as observações de BENVENISTE, É. Problèmes de linguistique générale. Paris: Gallimard, 1966. t.I, p.252-257.
131
GENETTE, G. FiguresIII. Paris, 1972. p.262.
132
CALVINO, I. Lecittà invisibili. Torino, 1972. p.94.
HERÓDOTO, IV, 60. Poder-se-ia argumentar que essa descrição não se organiza em torno de um olho fundador. Todavia, na medida em que aparece a negação, isso supõe, pelo menos de forma mediata, um olho como referência, ao qual cabe fornecer a medida dos desvios.
133
445
Nos dois sentidos da expressão: o narrador mostra que é sábio, portanto, crível; e a descrição faz o destinatário "ver" a cena.
134
135
Cf. Parte 1, capítulo II: O caçador caçado: póros e aporia.
136
Cf. Parte 2, Introdução - Generalizar.
CAPÍTULO II 0 OLHO E O OUVIDO 1
Para o conjunto deste capítulo, remeto a HAIBLE, F. Herodotus und die Wahrheit: Wahrheitsbegriff, Kritik und Argumentation bei Herodot, Tübingen, 1963. Inaugural Dissertation.
2
BENVENISTE, É. Le vocabulaire des institutions indo-européennes. Paris: Minuit, 1969. t. II, p.173- Ao contrário, em latim, se se invoca os deuses por ocasião de um juramento, pede-se-lhes que "ouçam" (audí): "Para um romano, que valoriza tanto o enunciado das fórmulas solenes, ver é menos importante que ouvir." Sobre o historcomo "Richter", ver HOHTI, P. Arctos, v.10, p.37-48, 1976.
3
NENCI, G. II motivo delfautopsia nella storiografia greca. Studi Classici e Orientali, v.3, p. 14-46, 1953-
4
RIVIER, A. Remarques sur les fragments 34 et 35 de Xénophane. Études de littérature grecque. Genève, 1975. p.344.
5
Idem. Encontram-se, nas notas, as referências à bibliografia anterior.
6
ARISTÓTELES. Metafísica, 980 a 25.
7
HERÁCLITO, 22 B 101 a(D.K.). Podemos ainda ajuntar esta anedota relativa a Tales: a alguém que lhe havia perguntado qual era a distância entre a verdade e a mentira, o milesiano teria respondido: "Tão grande quanto a que há entre o olho e o ouvido" (ESTOBEU. Florilégio, III, 12, 14 Wachsm.). Formulação evidentemente ambígua, posto que a distância é, ao mesmo tempo, mínima e enorme. Nenci, que comenta a fórmula, inclui também em seu dossiê sobre a autópsia o princípio das Tesmofórias, em que Aristófanes faz a caricatura desse tipo de discussão relativa ao olho e ao ouvido: — Não tens necessidade de ouvir tudo o que verás com teus olhos. — O que dizes? Repete. Eu não preciso ouvir?... — Não o que tu verás.
446
— E não preciso também de ver?... — Não o que ouvirás. — Que recomendação me dás! Entretanto, falas com habilidade. Pretendes que não devo nem ouvir, nem ver? — Pois se são coisas naturalmente distintas!... (ARISTÓFANES. Tesmofórias, 5-18; NENCI, G. Il motivo dell'autopsia nella storiografia greca. Studi Classici e Orientali, v.3, p.27, 1953.) 8
SCHEPENS, G. Éphore sur la valeur de l'autopsia. Ancient History, p.66,1971. Encontram-se, neste artigo, bibliografia sobre o problema da autópsia e discussão do ponto de vista defendido por Nenci, relativo à indiferença dos historiadores posteriores a Tucídides em face da autópsia. Ver também SCHEPENS, G. L'autopsie dans la méthode des historiens grecs au Ve siècle avantJ.-C. Bruxelles, 1980.
9
HERÓDOTO, I, 8.
10
Ibidem. II, 29; cf. também II, 99, 156; IV, 16.
11
Lescarbot, citado por DUPRONT, A. Espace et humanisme. Bibliothèque d'Humanisme et Renaissance, Paris, 1946. t. VIII, p.95.
12
Ibidem, p.25 et seq., onde Dupront analisa a curiosidade do referido viajante.
13
HERÓDOTO, VIII, 80.
14
Ibidem. IV, 195; sobre o sentido forte que tem oikóta, ver RIVIER, A. Remarques sur les fragments 34 et 35 de Xénophane. Études de littérature grecque. Genève, 1975. p.352.
15
RIVIER, A. Remarques sur les fragments 34 et 35 de Xénophane. Études de littérature grecque. Genève, 1975. p.345; cf. também JACOBY, J. Atthis, p.2l6 (e nota 3), p.389. As passagens em que Tucídides exprime suas posições são: TUCÍDIDES, 1,1,1, 21,1, 22; I, 73, 2.
16
FINLEY, M. I. The Use and Abuse of History. London, 1975. p.31.
17
COLLINGWOOD, R. G. The Idea of History. Oxford, 1946. p.26.
18
MOMIGLIANO, A. Studies in Historiography. London, 1966. p.218.
19
Relatório ao Ministro sobre os estudos de história (1867), citado por NORA, P. Le retour de l'événement. In: Faire de l'histoire. Paris, 1974. t. I, p.211.
447
20
NORA, P. Le retour de l'événement. In: Faire de l'histoire. Paris, 1974.1.1, p.218. Ao que se pode ajuntar esta frase de Borges: "Desde aquele dia [a época de Valmy], as efemérides históricas tornaram-se abundantes e uma das funções dos governantes (especialmente na Itália, na Alemanha e na Rússia) passou a ser fabricá-las ou simulá-las, com o auxílio de uma propaganda anterior e de uma publicidade persistente. Tais efemérides, em que se observa a influência de Cecil B. De Mille, têm menos a ver com a história do que com o jornalismo. A suspeita que me toma é de que a história, a verdadeira história, é mais pudica, podendo suas datas essenciais permanecerem secretas durante muito tempo." (BORGES, J. L. Enquêtes, p.249)
21
HEGEL, G. W. F. La raison dans l'histoire. In: Leçons sur la philosophie de l'histoire. Paris, 1963-
22
POMIAN, K. Entre l'invisible et le visible. Libre 3- 1978. p.23. Também POMIAN, K. L'ordre du temps. Paris, 1984. p.23-26.
23
DE CERTEAU, M. L'écriture de l'histoire. Paris: Gallimard, 1975. p.72-73-
24
FOUCAULT, M. Les mots et les choses. Paris, 1966. p.55.
25
RIVIER, A. Remarques sur les fragments 34 et 35 de Xénophane. Études de littérature grecque. Genève, 1975. p.364.
26
Como também a palavra "visão", no sentido de ter uma visão, o que não implica necessariamente ter visto; ópsis designa ainda a visão do iniciado num culto de mistérios, a epopteía.
27
HERÓDOTO, I, 34, 38 (com relação a Creso), 107, 108 (Astíages), 209 (Ciro); II, 139 (o etíope), 141 (Setos); III, 30, 65 (Cambises), 124 (a filha de Polícrates), 149 (Otanes); IV, 172 (os nasamões); V, 56 (Hiparco); VI, 107 (Hípias), 118 (Dátis), 131 (Agarista); VII, 12, 15, 18, 19 (Xerxes); VIII, 54 (de novo Xerxes).
28
Ibidem. VII, 12-18.
29
A única personagem grega, nas Histórias, que recebe um sonho, excetuando-se os tiranos, é Agarista, neta de Mégacles: estando grávida, ela viu, em sonhos, que dava à luz um leão; pouco depois, teve Péricles.
30
FOUCAULT, M. Les mots et les choses. Paris, 1966. p.96.
31JACOBY, 32
J. Atthis, p.2l6 et seq.
HERÓDOTO, II, 148.
448
106
HERÓDOTO, VII, 53.
34
Fr. Gr. Hist., CTÉSIAS, 688 T 8 (JACOBY).
35
HERÓDOTO, IV, 16; III, 115: "Não ouvi de ninguém que o tivesse visto com seus próprios olhos a afirmativa de que haja um mar no norte da Europa."
36
Ibidem. II, 32.
37
Ibidem. II, 3; entre os sacerdotes, os de Heliópolis são considerados os mais sábios (logiótatoi) dos egípcios. Entre os egípcios, os que habitam "na região onde se semeiam os grãos" são muito mais sábios (logiótatoi) no que diz respeito ao passado (II, 77). A respeito das causas antigas da hostilidade entre gregos e bárbaros, "os sábios (,lógioi) persas dizem que..." (1,1).
38
Ibidem. II, 99; ainda, a propósito do passado dos cários, "tão longe quanto pude saber por akoé..." (1,171).
39
Para os vestígios da enunciação, ver, por exemplo, a história de Zálmoxis, na Pane 1, capítulo III: Fronteira e alteridade.
40
Seria necessário examinar praticamente cada caso, dos quais se encontra uma lista em JACOBY. R.E., 399- Para um exame do emprego de légetai em Tucídides (em parte diferente do de Heródoto), ver WESTLAKE, H. D. Mnemosyne, 4, p.345-362, 1977.
41
MARCO POLO, p.l.
42
TUCÍDIDES, I, 20, 1; I, 73, 2.
43
HERÓDOTO, I, 20; II, 52; encontra-se a expressão autoptéo em IV, 16.
eidénai
44 JACOBY, J.
Atthis, p.391, n.l6: The use of the etymological connexion betiveen oîda and ideîn may appear justified in regard to Thukydides, because of that historian's use ofópsis and akoé, but the application to Herodotus is misleading. The latter does not base his 'knowledge' on ópsis in particular... becausefor him akoé, ópsis and even gnóme are sources of 'knowledge ' of equal reliability, that is when he trusts the narrative of his authorities.
45
DETIENNE, M. École pratique des hautes études, Ve section, t. 85, p.286. Ver HAVELOCK, E. A. Preface to Plato. Oxford, 1963; também, por último, LANZA, D. Lingua e discorso nell'Atene delleprofessioni. Torino, 1979- p.52-87.
449
46
FURET, F., OZOUF, J. Lire et écrire. Paris, 1977. t. I, p.352-353. A conclusão da obra analisa, com rigor, tudo o que é necessário para que se dê a passagem do oral ao escrito e tudo o que significa essa passagem. Nas páginas 358-359, os autores examinam as relações entre escrita e história, a escrita permitindo o estabelecimento do pastness of thepast. Eles acrescentam: "Mesmo quando a história preserva muitos elementos da tradição oral ou da mitologia, é levada, simplesmente porque é escrita, a racionalizar o tempo. Heródoto prepara Tucídides." Sem dúvida. Mas Tucídides tirará precisamente da experiência de Heródoto a conclusão de que não se pode fazer história do passado. Sobre a escrita, ver GOODY, J. La raison graphique. Paris, 1979; DETIENNE, M. (Org.). Les savoirs de l'écriture en Grèce ancienne. Lille, 1988.
47
Encontra-se uma retomada desses testemunhos em CANFORA, L. II ciclo storico. Belfagor, n.26, p.658-660,1971; CANFORA, L. Storici e societa ateniense. Istituto Lombardo (Rend. Lett.), v.107, p.1158, 1973; MOMIGLIANO, A. The Historians of the Classical World and their Audiences: Some suggestions. Annali delia Scuola Normale Superiore di Pisa, v.8, 1, p.59-75, 1978.
48
LUCIANO. Heródoto, I, em que Heródoto é apresentado como um agonistés preparando-se para cantar suas Histórias (agonisten Olympíonpáreikhen heautõn ãidon tàs historias).
49
Suda, s.v. Thoukydides.
50
LEUTSCH, E., SCHNEIDEWIN, F. G. Corpus Paroemiographorum Graecorum, 1.1, p.400: "[diz-se] daqueles que não terminam o que propuseram. Conta-se que Heródoto, o logógrafo, querendo apresentar suas Histórias durante os jogos olímpicos, adiava isso dia após dia, dizendo que o faria quando houvesse sombra no santuário de Zeus. De fato, o lugar fica em pleno sol. A festa terminou antes mesmo de que ele pudesse dar-se conta de que não tinha apresentado sua obra."
51
ARISTÓFANES. Acarnenses, 523-529. DREWS, R. The GreekAccounts of Eastern History, p.90, observa que Aristófanes ri com Heródoto — e não de Heródoto. Encontra-se uma lista das alusões de Aristófanes às Histórias em RIEMANN, K. Das Herodoteiscbe Geschichtswerk. München, 1967. p.9-10. (Tese)
52
GRONINGEN, Van. La composition littéraire archaïque. Amsterdam, 1958, que pode servir de referência, mesmo que, em sua análise, o autor não considere as Histórias. IMMERWAHR, H. R. Form and Thought in Herodotus. Cleveland - Ohio, 1966. p.46-79-
450
106
HERÓDOTO, V I I , 53.
54
HERÓDOTO, VI, 43.
55
HAVELOCK, E.A. Préfacé to Plato. Oxford, 1963. p.54, n.8. Encontramos o termo apódeixis em Tucídides, principalmente em I, 97, para designar a exposição que ele terminou de fazer sobre o desenvolvimento do império (kal tês arkhês apódeixin ékhei tês tôn athenaîon en hoîoi trópoi katéstê).
56
HERÓDOTO, 1,1 e 6; HOMERO. Ilíada, I, 8; Odisseia, I, 3.
57
Observação feita por GRONINGEN, Van. La composition littéraire archaïque. Amsterdam, 1958. p.65. Ele observa ainda que cabeçalhos deste tipo se parecem muito com o princípio de uma carta.
58
HERÓDOTO, V, 58.
59
Ibidem. II, 46; IV, 36; III, 136.
60
Ibidem. I, 47; VII, 142; VIII, 135.
61
Ibidem. I, 93; II, 106; II, 125; IV, 87; VII, 30; VII, 228.
62
Ibidem. III, 40, 42.
63
Ibidem. V, 35.
64
Ibidem. VII, 239.
65
Ibidem. V, 14.
66
Ibidem. III, 128.
67
Ibidem. I, 123-125. Pode-se ainda citar o exemplo de Deioces (HERÓDOTO, I, 100): escolhido como rei dos medas, manda construir um palácio de onde, invisível, exerce o poder; para executar a justiça, manda que lhe façam um relatório escrito dos processos.
68 Ibidem.
VIII, 75. Quando ele pretende incentivar a deserção dos jônios, não envia cartas nem aos jônios, nem aos persas, prevenindo que desconfiem dos jônios, mas coloca inscrições junto das fontes de água potável (HERÓDOTO, VIII, 22), visíveis para os jônios e para os persas.
69
Ibidem. VII, 100; VIII, 90; III, 128. Policrates tem também um secretário, cf. III, 123.
70
Ibidem. VI, 27. Cf. MARROU, H.-I. Histoire de l'éducation dans l'antiquité, p.83. Sobre a questão da leitura e da leitura silenciosa, ver a mise au point de KNOX, B. Silent Reading in Antiquity. Greek, Roman and Byzantine Studies, n.9, p.421-435,1968. Ver SVENBRO, 451
J. Pbrasüdeia. Anthropologie de la lecture en Grèce ancienne. Pans La Découverte, 1988. 71
HERÓDOTO, IV, 78.
72
Ibidem. I, 93; II, 106, 125. Encontram-se, no total, vinte e quatro inscrições, das quais onze em "línguas estrangeiras". Ver VOLKMANN, H. Die Inschriften im Gesrchichtswerk des Herodot. Convivium. Stuttgart, 1954. p.4l-63.
73
HERÓDOTO, I, 50.
74
Ibidem. II, 15.
75
Ibidem. II, 145: atrekéos phasi epístasthai, aieí te logizõmenoi kal aieí apographómenoi tà étea. O Egito é a terra do papiro (HERÓDOTO, II, 92); diferentemente dos gregos, os egípcios escrevem da direita para a esquerda (HERÓDOTO, II, 36).
76
Ibidem. II, 100.
77
Ibidem. II, 82.
78
Ibidem. II, 77.
79
Ibidem. IV, 46.
80
Ibidem. II, 28.
81
FAYE, J.-P. Théorie du récit. Paris, 1972. p.111-112. MOMIGLIANO, A. Study in Historiography. London, 1966. p.135, observa a propósito dos arquivos: The preeminence of personal observations and oral evidence lasted until historians decided to go to the record office. Familiarity with the record office, as we all know, is a recently acquired habit for the historian, hardly older than a century. Ainda MOMIGLIANO, A. Historiography on Written Tradition and Historiography on Oral Tradition. In: Study in Historiography. London, 1966. p.211-220. POSNER, E. Archives in the Ancient World. Cambridge - Mass, 1972. Ver os livros seria lê-los, portanto: aprender a língua em que se encontram escritos; todavia, para que aprender uma língua estrangeira, se o dizer (em certas condições, historéorí) vale tanto quanto o vet? Paradoxalmente, é talvez porque o mundo de Heródoto não é um mundo da escrita que ele não sente necessidade de aprender línguas estrangeiras.
82
HERÓDOTO, II, 154.
83
Por exemplo, HERÓDOTO, II, 46, 47, 65.
84
HERÓDOTO, II, 123.
452
85
HERÓDOTO, III, 125.
86
Ibidem. II, 70.
87
Ibidem. VII, 152.
88
Ibidem. III, 9-
89
Ibidem. IV, 195.
90
Ibidem. II, 123.
91
Ibidem. VI, 53.
92
Ibidem. VI, 14.
93
Ibidem. VII, 214.
94
Por exemplo, HERÓDOTO, VII, 227; VIII, 11; IX, 71.
95
HAVELOCK, E. Préfacé to Plato. Oxford, 1963. p.54, n.8.
96
TUCÍDIDES, XXII, 4.
97
HERÓDOTO, I, 97; observe-se o emprego de apõdeixis.
98
TUCÍDIDES, XXII, 2.
99
LÉRY, J. de. Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil Éd. M. Contât, p. 198. HERÓDOTO, II, 45.
100 101
HERÓDOTO, II, 7, 31. DUMÉZIL, G. Romans de Scythie et d'alentour. Paris, 1977. p.339-351, mostra, invocando especialmente a tradição abkhaz, que as plumas devem ter uma "dignidade mítica", fazendo parte da narrativa das origens do povo cita.
102
LÉRY, J. de. Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil. Éd. M. Contât, p.188. DE CERTEAU, M. L'écriture de l'histoire. Paris: Gallimard, 1975. p.222-226, analisa esse texto.
103
LÉVI-STRAUSS, C. Tristes tropiques. Paris, 1955. Leçon d'écriture.
Por exemplo, HERÓDOTO, II, 50: "Quase todas as personagens divinas vieram para a Grécia do Egito. Que vieram de junto dos bárbaros, isso minhas investigações me levaram a constatar: e penso que vieram sobretudo do Egito."
104
DE CERTEAU, M. L'écriture de l'histoire. Paris: Gallimard, 1975. p.221.
105
106
SEGALEN, V. Les immémoriaux.
Paris, 1956. 453
Sobre esse novo memorial que, ao mesmo tempo, se assemelha à epopéia e é profundamente diferente dela, ençontram-se elementos no livro de DREWS, R. The Greek Accounts of Eastern History.
107
Casos em que "nós" = "eu": HERÓDOTO, II, 127, 131; III, 122; IV, 16, 20,46... Pode-se, algumas vezes, hesitar com relação à extensão exata do "nós": é simplesmente coextensivo ao "eu" ou ultrapassa-o, designando o grupo daqueles que sabem, do qual "eu" faço parte?
108
109
HERÓDOTO, III, 111.
1,0
Ibidem. IV, 27.
111
Ibidem. III, 115.
112
Ibidem. III, 116.
113
Ibidem. IV, 179.
114
Ibidem. IV, 99.
1,5
Ibidem. III, 80; VI, 43. A propósito dos romanos, Condorcet observava: "Um diz-se, relata-se, colocado no começo da frase, parece-lhes suficiente para precaverem-se do ridículo de uma credulidade pueril. É sobretudo à desgraça de ignorarem a arte da tipografia que se deve atribuir essa indiferença, que corrompeu entre eles a arte da história e se opôs a seu progresso no conhecimento da natureza." (CONDORCET. Esquisse d'un tableau historique des progrès de l'esprit humain. Paris, 1970. p.88.)
116
117
Cf. Parte 1, capítulo I: Onde é a Citia?
118
Cf. Parte 1, capítulo III: Fronteira e alteridade.
Entendem-se por modalidades aquilo que afeta a relação do locutor com seu enunciado. Elas compreendem as características que atribuem às proposições um valor de verdade ou de existência (modalidades aléticas), um valor de conhecimento ou de saber (modalidades epistêmicas), ou, enfim, um valor referente ao dever-fazer (modalidades deônticas).
119
120
HERÓDOTO, VII, 152; também III, 9-
E evidente que é preciso levar em conta as modalizações que relativizam o "eu" (parece-me...; creio que...), refinando ainda as relações entre o locutor e seu enunciado, no próprio interior das grandes marcas de enunciação que ressaltei. Posso também suspender ou fingir que suspendo minha crença. Cf. a existência de Zálmoxis,
121
454
na Parte 1, capítulo III: Fronteira e alteridade; os getas crêem que ele é um ser divino, os gregos do Ponto dizem que ele foi escravo de Pitágoras e contam a história da morada subterrânea. Para mim, não creio (apistéo) na morada subterrânea, nem creio muito (pisteúo ti líeri), mas parece-me (dokéo) que Zálmoxis é anterior em muitos anos a Pitágoras. Se foi um homem, ou se é um ser divino do país dos getas — deixemos isso de lado (khairéto). 122
HERÓDOTO, II, 123; V, 45 (a propósito do desacordo entre os sibaritas e os crotonenses): "Tais são os testemunhos que produzem uns e outros; cada um é livre para aliar-se à opinião daqueles que o convencerem..."; III, 122 (a propósito da morte de Polícrates): "Tais são as duas explicações que se dão da morte de Polícrates; cada um é livre para crer na que quiser"; II, 146 (a propósito de Héracles): "Entre esses dois grupos de alegações [as dos gregos e as dos egípcios], cada um é livre para adotar o que achar mais convincente, para mim...".
123
Ibidem. í, 213.
124
CALVINO, I. Lecittà invisibili. Torino, 1972. p.143. HERÓDOTO, I, 182; II, 73; IV, 42. Ao que se pode ajuntar II, 121; V, 86; VIII, 119. Uma outra expressão empregada por Heródoto é mátaios lógos, "declaração vã" (II, 2; II, 118; III, 56). O exemplo de II, 118 é particularmente interessante, pois trata da Guerra de Tróia: "Perguntei aos sacerdotes se os gregos dizem ou não tolices (mãtaion lógorí) quando falam da Guerra de Tróia; eles me responderam o que segue..." Sobre esse ponto fundamental, Heródoto crê útil, interessante em todo caso, interrogar a ciência dos sacerdotes egípcios.
125
126
Ibidem. I, 214; II, 123; III, 3, 9; IV, 95.
,27
Ibidem. II, 45. Ibidem. II, 23. Sobre o Oceano, cf. também IV, 8 e IV, 36. Além de tudo, falar de mythos a propósito de Hecateu poderia parecer normal, posto que ele mesmo começa suas histórias-genealogias por "Hecateu de Mileto mytheítai..." Com relação a ele, pode-se muito bem associar mythos, investigação sobre os lógoi dos gregos e escrita; enquanto para Heródoto mythosé logo associado a aphanés, invisível e sem provas.
128
HERÓDOTO, II, 134, 143; V, 36, 125. Ver FRITZ, K. von. Die Sogenannten logographen, logopoioi und logioi. Die Griechische
129
455
Geschichsschreibung. Berlin, 1967. t. II, p.337-347; SVENBRO, J. La parole et le marbre. Lund, 1976. p.208-211, sublinha que Heródoto é a primeira testemunha de um uso crítico do poieîn poético. Estas citações de Léry são todas tomadas do prefácio de sua obra (LÉRY, J. de. Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil. Éd. M. Contât). Sobre Thévet e a cosmografia, ver LESTRINGANT, Fr. L'atelier du cosmographe ou l'image du monde à la Renaissance. Paris, 1991.
130
131
Fr. Gr. Hist., 688 T 8 (JACOBY).
Sobre Heródoto na historiografia, além de HAUVETTE, A. Hérodote, historien des guerres médiques. Paris, 1894, que consagra a primeira parte de seu livro a esta questão, e SCHMID, W. Gescbichte der griechischen Literatur, II, 1934. p.665 etseq, pode-se consultar ainda RIEMANN, K. A. Das Herodoteische Geschichtswerk in derAntike. München, 1965, e, menos extensamente, EVANS, J. Father of History or Father of Lies; the Réputation of Herodot. Classical Quartely, v.64, p.11-17, 1968. Enfim, MOMIGLIANO, A. The Place of Herodot in the History of Historiography. Studies in historiography, London, 1966, e ainda MOMIGLIANO, A. Erodoto e la storiografia moderna: alcuni problemi presentati ad un convegno di umanisti. Aevum, n.31, p.7484, 1957.
132
FLÁVIO JOSÉ. Contra Ápion, I, 3: sobre as contradições dos historiadorés gregos, "será supérfluo dizer aos leitores, que o sabem melhor do que eu, quanto Helânico difere de Acusilau sobre as genealogias, quais correções Acusilau faz a Hesíodo, como os erros de Helânico são ressaltados por Éforo com relação a quase todos os aspectos, os de Éforo porTimeu, os de Timeu por seus sucessores — e os de Heródoto por todo mundo".
133
134
PLUTARCO. Sobre a malignidade
de Heródoto, 856 E.
Ibidem. 857 A-B. Na verdade, Heródoto não fala de Busíris (HERÓDOTO, II, 45).
135
136
PLUTARCO. Sobre a malignidade
de Heródoto, 857 E.
PLUTARCO. Sobre a malignidade de Heródoto, 871 D (o entrecho trata da questão do prêmio atribuído aos eginetas ou aos atenienses, pela coragem em Salamina).
137
138
Ibidem. 854 F.
139
Ibidem. 868.
456
O tratado Sobre a malignidade de Heródoto não faz parte das Vidas paralelas, mas isso não impede que Plutarco seja um dos autores mais conhecidos. Flávio José é o autor grego mais editado durante o mesmo período (setenta e três edições das Antigüidades judaicas e sessenta e oito de A guerra dos judeus). Mas contam-se duzentas e oitenta e duas edições de Salústio, o primeiro dos autores latinos. Cf. BURKE, P. Popularity of Ancient Historians. Historyand Tbeory, n.5, p.136, 1966.
140
141 fjerodotus quam verius mendaciorum patrem dixeris quam quomodo illum vocant nonnulli, parentem historiae: VIVÈS, J. L. De disciplinis libri XII, Lugduni Batavorum, 1636. p.155 (.de causis corruptarum artium liber II), p.627 (de tradendis disciplinis liber V). Vivès refere-se de novo a essa paternidade, que explica retomando Cícero, por razões de estilo: Herodotus pater nominatus historiae, quod primus ad rerum narrationem, elegantiam, et nitorem orationis adjunxit. Habet fabulosa permulta, sed operis titulo excusatur, inscripsit enim musas: quo significavit quaedam dici licentius. ,4-
BONNAUD, Abbé. Hérodote, historien du peuple hébreu sans le savoir. La Haye, 1786; GUÉRIN DU ROCHER. Histoire véritable des temps fabuleux. Paris, 1776. Esses dois, que desempenharam seu papel na oposição católica à Revolução Francesa, morreram em setembro de 1792. MANUEL, F. E. The Eighteenth Century Confronts Cambridge - Mass., 1959. p.112-115.
143
144
the Gods.
GUÉRIN DU ROCHER. Histoire véritable des tempsfabuleux. Paris, 1776. p.XXIX, 91: a história do Egito é uma "tradução alterada" da história sagrada desde Noé até o fim do cativeiro dos judeus na Babilônia. Ibidem, p.126.
145 146
BONNAUD, Abbé. Hérodote, historien du peuple hébreu sans le savoir. La Haye, 1786. p.3, 276. (éd. Liège, 1790)
ARISTÓTELES. Da geração dos animais, III, 5, 756 b6 (a propósito da aparente ausência de copulação entre os peixes, todo mundo repete o que contou Heródoto, ho mythológos).
147
148
AULO GÉLIO. Noites áticas, III, 10.
149
DIODORO, V, 69, 7.
457
ESTRABÃO, XI, 6, 2.
150
151
/ /J
ESTRABÃO, por exemplo, XII, 3, 21: "Alguns chamam os citas cie além do Borístenes de alorzões, ou de calípidas ou de outros nomes ainda — nomes que Helânico, Heródoto e Eudoro nos 'contaram' ( k.a teph lyá resa n hemôri)."
5 ^:STRABÃO,
I, 2, 35.
153
Ibidem. XI, 6, 3.
154
TUCÍDIDES, I, 21.
155
Ibidem. I, 22, 4.
156 Para uma
perspectiva mais ampla sobre a mitologia, ver DETIENNE, M. La mithologie scandaleuse. Traverses, n.12, p.3-20, sept. 1978. Do mythos como um outro do discurso historiográfico, ao mito como discurso selvagem, a passagem é fácil: ele é esse discurso que não sabe o que diz e que, ao mesmo tempo, enleva; ele é aquilo que faz o mitólogo escrever: como se fosse para "esquecer" que não pode crer nisso. Ver também DETIENNE, M. L'invention de la mythologie. Paris: Gallimard, 1981. p.87-123. PLUTARCO. Sobre a malignidade de Heródoto, 863 E (cf. HERÓDOTO, III, 20-22) e 854 F. Sabe-se que Aristóteles faz dele o modelo da léxiseiroméne, isto é, do estilo "cosido", "de enfiada", em que se diz uma coisa, depois uma outra e uma outra ainda... Traduz-se por estilo "coordenado". Para Aristóteles, esse estilo antigo, não mais empregado em seu tempo, não era agradável (ARISTÓTELES. Retórica, III, 9, 1409 a 27).
157
CÍCERO. Orador, 39; Do orador, II, 55, evoca o prazer de sua eloqüência: tanta est eloquentia magno opere delectat. Encontra-se o conjunto dos textos em RIEMANN, K. A. Das Herodoteische Geschichtsiverk in der Antike. München, 1965. (Tese)
158
159
LUCIANO. Heródoto ou Aétion, 1.
160 PLUTARCO. Sobre a malignidade de Heródoto, 874 B: "graphikòs anér, kai hedys ho lógos, kai kháris épesti kai deinótes kai óra toîs diegémasi mython d'hos ot'aoidôs, epistaménos mèn ou ligyrôs te kaï glaphyrôs egóreuken". 161
LUCIANO. Heródoto ou Aétion, 1.
162
DIONÍSIO DE HALICARNASSO. Carta a Cn. Pompeu,
458
GEINOZ, Abbé. Defénse d'Hérodote contre les accusations de Plutarque. Mémoires Acad. Inscript., v.19, p.115-145, 1753; n.21, p.120-144, 1754; n.23, p.101-114, 1956.
163
ESTRABÃO, I, 2, 6.
164
165 PONTANO. Opera III. Venise, 1516. p.298: ...et Musis aliquanto etiam liberius, utscitis, loqui concessum est; cf. MOMIGLIANO, A. Erodoto e la storiografia moderna: alcuni problemi presentati ad un convegno di umanisti. Aevnm, n.31, p.81,1957. I« Herodoti fabidositatem ita omnium sermonibus fuisse jam olim jactatam ut inproverbiumpropemodum abieris, qin est qui nesciat? O título completo da defesa é: H. Stephani Apologia pro Herodoto sive Herodoti historia fabulositatis accusata. Prefácio a sua edição de Heródoto na tradução de Valia. 167 Introdução
ao tratado sobre a conformidade das maravilhas antigas com as modernas ou Tratado preparatório para a Apologia de Heródoto. (XT.)
168 Jam
vero quaedam etiam legi apudHerodotum aliosque dico, quae quamvis afide abhorream, non solum exemplis factorum quae alii referunt, verisimilia redduntur, sed authoritate qui nostro século eadem apud alios confirmantur.
historicos similium et eorum viderunt,
A Apologia e a Épître au lecteur do Traité enumeram um certo número de exemplos das Histórias que não mais fazem crer e dedicam-se a mostrar que sua inverossimilhança não tem nada que os impeça de serem verdadeiros.
169
LÉRY, J. de Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil. Éd. M. Contât, p.28. ESTIENNE. Traité, I, p.31: "Em especial, aqueles que escrevem hoje as histórias dos países bárbaros nos informam certas maravilhas das quais não se aproximam absolutamente às de Heródoto: ouço maravilhas tanto com relação à natureza, quanto com relação aos homens, tanto no que diz respeito a seus costumes, quanto a sua compleição."
170
171
ATKINSON, G. Les nouveaux horizons de la Renaissance Paris, 1935. p.424-425.
française.
459
CAPÍTULO III AS HISTÓRIAS COMO REPRESENTAÇÃO 1
FEHLING, D. DieQuellenangaben beiHerodot. Studien zur Erzáhkunst Herodots. Berlin/New York, 1971.
2
O livro de HAUVETTE, A. Hérodote, historien des guerres médiques. Paris, 1984, é uma resposta à questão, posta no concurso de 1891, pela Académie des Inscriptions et Belles-Lettres: "Estudar a tradição das Guerras Médicas; determinar os elementos de que ela se formou, examinando a narrativa de Heródoto e os dados fornecidos por outros escritores."
3
JACOBY. R. E., 352-360. Ver REDFIELD, J. Herodotus the Tourist. ClassicalPhilology, v.80, p.97-118, 1985.
4
Cf. Pane 1, capítulo II: O caçador caçado: pórose aporia.
5
MOMIGLIANO, A. The Historians of the Classical World and their Audiences: Some Suggestions. Annali delia Scuola Normale Superiore di Pisa, v.8, I, p.59-75, 1978.
6
Ibidem, p.59-60, 1978.
7
LACOSTE, Y. Hérodote, 1976,1, p.5, 1976. Não interessa aqui que Lacoste não seja "especialista" em história antiga, nem que seu propósito seja falar da geografia e não do próprio Heródoto. É, por outro lado, curioso constatar que Lacoste e sua equipe escolheram, para título de uma revista crítica, que pretende trabalhar numa arqueologia da geografia, o nome de Heródoto — precisando-se, ao mesmo tempo, que Heródoto (como Lacoste esclarece) era já plenamente um geógrafo, isto é, alguém a serviço do estado-maior.
8
MOMIGLIANO, A. The Historians of the Classical World and their Audiences: Some Suggestions. Annali delia Scuola Normale Superiore di Pisa, v.8, I, 1978.
9
FINLEY, M. I. Le monde d'Ulysse. Paris, 1978.
10
FAYE, J.-P. Théorie du récit. Paris, 1972. p.130: "Além dos escolhos simétricos — a concepção ingenuamente mecanicista do 'determinismo econômico', atribuída erroneamente a Marx, e o culto ao 'texto', forma apenas modernizada do velho culto dos 'heróis' — um método capaz de avançar nas duas vertentes, ao mesmo tempo como uma sociologia das linguagens e como uma semântica da história, se ocuparia de decifrar a materialidade do sentido, no ponto
460
em que esse sentido vem justamente, conforme a expressão de Pasternak, encher o século inteiro." 11
TODOROV, T. Symbolisme et interprétation. Paris, 1978. p.60-6l.
12SVENBRO,
J. La parole et le marbre. Lund, 1976.
13
HOMERO. Ilíada, II, 484 et seq.; HERÓDOTO, VII, 60 et seq.
14
A expressão é tomada emprestada a Barnave (discurso de 15 de julho de 1791): "Não são as idéias metafísicas que arrebatam as massas no curso das revoluções, mas sim os interesses reais." Mais precisamente, dizendo isso, ele produz um efeito nesse plano (ele revela à Assembléia seus próprios interesses reais).
(^AYE,J.-P. Théorie du récit. Paris, 1972. p.112.
:
16
Ibidem, p.107.
17
FURET, F. Penser la Révolution Française. Paris, 1978. p.73.
18
FAYE, J.-P. Théorie du récit. Paris, 1972. p . l l l , aborda bem a história e seu "processo fundamental", desde a narração primitiva até a "narrativa histórica" (isto é, a narrativa do historiador): "Nas duas pontas da cadeia e envolvendo os níveis sobrepostos e conexos, ou encadeados, de história em ato, estão: de uma parte, a trama das narrações primitivas ou imediatas, articulando e produzindo o processo fundamental; de outro, a narrativa histórica, que reduz a uma só as diversas variantes do mesmo fato" e "que apaga, sob a narrativa verdadeira, a trama permanente e eficaz da narração primitiva". Mas ele estuda mais precisamente a primeira "ponta da cadeia" (Barnave) do que a segunda; ou, sobretudo, ele a evoca tomando Heródoto como exemplo, cuja narrativa, em grande medida, escapa dessa definição de narrativa "verdadeira" como apagamento da narração primitiva. Com toda razão, parece-me, Faye faz começar a "idade clássica" da história com Tucídides.
y Efeito: pode-se pensar também na metáfora da bola de bilhar, à qual àe imprime um certo efeito, a fim de que ela própria, vindo a bater na outra bola, a impulsione na direção calculada. Imaginário: uma palavra que os historiadores começam a empregar de bom grado. Passa-se de uma história das mentalidades para uma história do imaginário. Essa palavra, tendo a vantagem de ser ainda mais vaga (portanto, potencialmente mais ampla) que a precedente, permite construir novos objetos da história. Pelo menos até o ponto em que o excesso de indeterminação prejudica.
461
20
Cf. Parte 1, capítulo V: O espaço e os deuses: o boi que "cozinha a si mesmo" e as "bebidas" de Ares.
21
TODOROV, T. Symbolisme et interprétation. Paris, 1978. p.11.
22
TUBEUF, G. Traité de perspective. Paris, p.208.
23
Tomo a expressão "colchão de ar" (coussin d'air) de VOVELLE, M. Dictionnaire de la nouvelle histoire. Paris, 1978. p.343: "P. Ariès faz a evolução das atitudes diante da morte mover-se sobre um colchão de ar, em função do dinamismo próprio de um 'inconsciente coletivo', que ele não define de outro modo." Para uma crítica da noção de influência, ver, por exemplo, FOUCAULT, M. Archéologie du savoir. Paris, 1969. p.32.
24
ÉFORO. Fr. Gr. Hist., 70 F 42 (JACOBY). Éforo é o primeiro historiador (século IV) a escrever uma história universal.
25
Cf. Parte 1, capítulo IV: O corpo do rei: espaço e poder.
26
Como exemplo desse tipo de julgamento, pode-se lembrar o de WATERS, K. H. Herodotus and Politics. Greece and Rome, 1972. p. 150: Heródoto "não hierarquiza as constituições; o tradicional ódio da tirania parece ser uma miragem; a admiração pela democracia, restrita"; ou ainda WUST, K. PolitischesDenken beiHerodot. München, 1935. (Tese)
27
HERÓDOTO, II, 147.
28
Ibidem. I, 96.
29
Ibidem. IV, 102,106. No sul, os líbios têm reis (IV, 159); os hindus, ao leste, aparentemente não têm, mas alguns dentre eles estão sujeitos ao Grande Rei. Dos celtas, a oeste, não se diz nada.
30
Ibidem. III, 80-82. Sobre este texto, a bibliografia é extremamente abundante; pode-se consultar, em primeiro lugar, o artigo de LASSERE, F. Hérodote et Protágoras: le débat sur les constitutions. Muséum Helveticum, n.33, p.65-84, 1976, com indicações bibliográficas.
31
HERÓDOTO, I, 43. Note-se que Heródoto emprega o verbo demokrathésthai, o que significa que, para ele, a isonomia de Otanes é igual à democracia.
32
Otanes emprega, antes de tudo, os termos moúnarkhos mounarkhíe, depois tyranos, antes de retornar a moúnarkhos.
33
Quando Otanes fala de monarquia, Megabizo entende tratar-se igualmente da tirania; mas quando evoca a isonomia, entende então
462
e
o "poder da multidão" (plêthos), o que, segundo ele, é uma tirania ainda pior que a verdadeira tirania, pois se trata de lidar com uma hybris ignorante. No que diz respeito ao segundo ponto, Dario "entende" também a mesma coisa. 34
A Otanes, que diz que ao "melhor" (á ristos), investido do poder monárquico, não resta alternativa senão tornar-se um tirano, Dario responde, ou antes não responde: "Nada poderia ser preferível a um único governante, se ele é o melhor." (HERÓDOTO, II, 82)
35
WATERS, K. H. Herodotos on Tyrants and Despots, a Study in Objectivity. Wiesbaden, 1971. p.4l (com a bibliografia sobre esta questão). Waters lembra justamente o debate persa, para mostrar que não há nele nenhuma consistência no emprego do vocabulário do poder (para uma posição contrária, ver FERRILL. A. Herodotus on tyranny. Historia, n.27, p.385-399,1978). Comenta ainda Waters, p. 100: Tbe detailed study of hist treatment of tyrants and of handling of the king of Persia, only proved a completely objective stance, a concern with facts and their rational causal relations, becoming a true historian.
36
HERÓDOTO, V, 92.
37
Ibidem. V, 93.
38
Ibidem. V, 78.
39
Ibidem. IV, 137.
40
Ibidem. Ill, 44.
41
Ibidem. V, 96; VI, 107.
42
Ibidem. VII, 6; VIII, 52.
43
Ibidem. IV, 70. Sabe-se do papel de "intérprete" que ele desempenha em seguida junto de Xerxes: não compreendendo o comportamento dos gregos, Xerxes, em muitas ocasiões, pede-lhe a "tradução", ouve-a com atenção, mas não crê nela (HERÓDOTO, VII, 101, 209, 234).
44
No dossiê sobre as relações entre reis e tiranos, podem figurar também as narrativas de infância: aproximação, por exemplo, entre a infância de Ciro (HERÓDOTO, I, 107 et seq.) e a de Cípselo (HERÓDOTO, V, 92); cf. DELCOURT, M. Oedipe ou la legende du conquérant. Paris, 1944.
45
BENARDETE, S. Herodotean Inquiries. La Haye, 1969- p.137.
46
HERÓDOTO, III, 53463
47
HERÓDOTO, I, 96.
48
Ibidem. V, 32.
49
Ibidem. III, 31; II, 131; IX, 108.
50
Ibidem. VI, 62: ele promete ao amigo que lhe dará qualquer "objeto" que ele escolha dentre seus bens, fazendo-o prometer-lhe a mesma coisa (não é preciso dizer que, então, dentre os "objetos" do amigo, escolhe a mulher). Encontra-se de novo um rei espartano na companhia dos reis e dos tiranos.
51
Ibidem. I, 8. Ele elogia-a excessivamente e, crendo que é a mais bela mulher do mundo, faz com que Giges, seu confidente, a veja nua.
52
Ibidem. I, 205. Já Cambises pretende atravessar o deserto, que é uma espécie de mar, para atacar os etíopes macróbios (HERÓDOTO, III, 25):
53
Cf. Parte 1, capítulo 2: O caçador caçado: pórose aporia.
54
HERÓDOTO, VII, 34. A esses valentes "construtores de pontes" poderia ainda ajuntar-se Creso (I, 75), que, atravessando o Hális, fronteira com os Medas, destruiu um "grande império", o seu.
55
Ibidem. VIII, 109.
56
Ibidem. V, 102.
57
Ibidem. VII, 53.
58
Ibidem. I, 8.
59
Ibidem. III, 16, 27, 30, 37...
60
Ibidem. I, 61.
61
Ibidem. V, 92.
62
Ibidem. VIII, 109. O chicote é referido também em III, 130; VII, 35, 54; VII, 22, 56, 223. Ciro, ainda oficialmente filho do vaqueiro, é escolhido como rei pelos meninos com os quais brinca: logo ele chicoteia o filho de um nobre meda, que não obedece a suas ordens; esse comportamento tipicamente "real" faz com que Astíages o reconheça (HERÓDOTO, I, 114-116).
63
HERÓDOTO, III, 16, 29.
64
Ibidem. VI, 81.
65
Ibidem. IV, 3: história cita, se se quer, mas à maneira grega.
464
66
HERÓDOTO, IV, 71-73; cf. Parte 1, capítulo IV: O corpo do rei: espaço e poder.
67
Ibidem. IV, 202. Após tais excessos de vingança, sobretudo da parte de uma grega, Feretima acabou mal: ainda viva, formigava de vermes. Outros exemplos de empalação: III, 132, 159 (Dario); IV, 43; IX, 78 (Xerxes).
68
Ibidem. III, 48. SCHMITT-PANTEL, P. Histoire de tyran ou comment la cité construit ses marges. In: Les marginaux et les exclus dans l'histoire. Paris, 1979. p.217-231. Sobre um comerciante de eunucos e sobre os dissabores que há na prática dessa profissão, "a mais ímpia", HERÓDOTO, VIII, 105-106.
69
HERÓDOTO, III, 69, 79; VII, 35, 238; VIII, 90 (118); IX, 172.
70
Ibidem. III, 154-155. Cf. também III, 118, em que um persa arroga para si esse direito real e o que isso lhe custa.
71
Ibidem. IX, 78-79-
72
Ibidem. VII, 233-
73
Salvo para os trácios, para os quais ser marcado (stízein) é sinal de nobreza (eugenés) — sendo a ausência de marca, pelo contrário, sinal de uma origem ignóbil (HERÓDOTO, V, 6).
74
Por exemplo, HERÓDOTO, VI, 83 (os escravos rebeldes de Argos e seus mestres); V, 78 (Atenas liberada dos tiranos); IV, 127 (a Dario, que pede que o reconheça como despotes, o rei dos citas responde que não reconhece como despotes ninguém além de Zeus e Héstia); I, 212 (do mesmo modo, os massagetas reconhecem o sol como despotes)-, enfim, VII, 104 (a liberdade da lei constrange os espartanos muito mais seguramente que o medo constrangeria os súditos do rei). Parece que só os bárbaros mantêm com os deuses relações como as referidas acima: indício a mais de que todo poder, nesse mundo, não pode ser pensado senão a partir do modelo do poder do rei.
75
HERÓDOTO, VII, 104.
76
Ibidem. III, 80, 142; VERNANT, J.-P. Mythe et pensée chez les grecs. Paris, 1965.1.1, p.185-229.
77
WATERS, K. H. Herodotos and Tragedy. In: Herodotos on Tyrants and Despots, a Study in Objectivity. Wiesbaden, 1971. p.86 et seq., com a bibliografia. Waters é, sem dúvida, contrário a esta visão:
465
Heródoto escreve história e não literatura — " vivant res, pereant tragoediae poderia ter sido seu lema" (isto é, "vivam as coisas, pereçam as tragédias"). 78
DREWS, R. The Greek Accounts of Eastern History, p.35.
79
VIDAL-NAQUET, P. Préface. In: SOPHOCLE. Tragedies. Paris, 1973p.17.
80
GERNET, L. Recherches sur le développement de la pensée juridique et morale en Grèce. Paris, 1917; ATKINS, A. Moral Values and Politicai Behaviour in Ancient Greece. London, 1972.
81
ÉSQUILO. Os persas, 821-822.
82
HERÓDOTO, I, 8 (Candaulo); II, 6l (Ápries); III, 40, 43, 124, 125 (Polícrates); IV, 79 (Ciles), 205 (Feretima apéthane kakôs); VI, 84 (Cleômenes apéthane kakôs), 135 (Miltiades); IX, 109 (a casa de Massistes); III, 65 (Cambises — a natureza humanajiào pode desviar o que deve acontecer).
83
Ibidem. VI, 132-136; ver VIDAL-NAQUET, P. Préface. In: SOPHOCLE. Tragédies. Paris, 1973- p. 18.
84
HERÓDOTO, III, 66.
85
VERNANT, J.-P, VIDAL-NAQUET, P. Mythe et tragédie en Grèce ancienne. Paris, 1972.
^HERÓDOTO, III, 33; V, 42. Poderíamos escrever duas "vidas paralelas" desses dois companheiros de transgressão. 87
Ibidem. VI, 75.
88
Ibidem. III, 16, 27 et seq., 37.
89
Ibidem. V, 70.
90
Ibidem. III, 31-33-
91
HERÓDOTO, III, 64.
92
Ibidem. VI, 75.
93
LEFORT, C. Le travail de l'oeuvre. Machiavel. Paris, 1972. p.68: "O César Borgia do Príncipe é um herói maquiavélico, que leva a pensar sobre a função do príncipe, cujos traços não são significativos senão porque se distinguem dos de outras personagens maquiavélicas, de Giovompagolo Baglioni ou de Francesco Sforza, por exemplo." Mas também herói maquiavélico num outro sentido: não mais diferença
466
entre personagens no interior da obra, mas diferença entre o herói e o "César Borgia histórico" — os desvios e deformações são "um indício precioso da constituição simbólica da obra". Do mesmo modo, se o Cambises de Heródoto é louco, o "Cambises histórico" não parece ter sido. 94
Cf. Parte 1, capítulo IV: O corpo do rei: espaço e poder.
95
NICOLAU DE DAMAS, Fr. Gr. Hist., F 58 (JACOBY), é que faz alusão a um Periandro entre os Sete Sábios, o que, por outro lado, ele recusa-se a admitir.
96
Ver principalmente EURÍPIDES. Suplicantes, 452 et seq.; PLATÃO. República, 565 d et seq, 615 cet seq.; ARISTÓTELES. Política, livro V.
97
PLATÃO. Leis, 694 a et seq.
98
ARISTÓTELES. Política, 1285 a 20.
"Ibidem. 1313 a A. HERÓDOTO, II, 127. Sobre o aspecto técnico das medidas (qual seria o comprimento do estádio etc.), ver o quadro em OERTEL, Fr. Herodotos ägyptischer logos. Mit einem metrologischen Beitrag und Anhang. Bonn, 1970.
100
HERÓDOTO, IV, 85. Outros exemplos de medida: I, 93; II, 31,149; V, 52.
101
102
Ibidem. II, 6; V, 53-
103
Ibidem. IV, 45.
104
Ibidem. II, 142, 143.
105
Ibidem. I, 47.
106
Por exemplo, HECATEU, Fr. Gr. Hist. 1 F 49, 113 a, 166, 207, 299-
107
HERÓDOTO, I, 5.
Ibidem. IV, 30. Sobre a digressão, ver JACOBY. R.E., 379-392; LEGRAND. Introduction et commentaires. In: HÉRODOTE. Histoires. Paris: Les Belles-Lettres, 1955. p.234-235; COBET, J. Herodots Exkurse und die Frage der Einheit seines Werkes. Historia, n.17,1971.
108
109
Exemplos de digressão: HERÓDOTO, II, 35; III, 60; IV, 30.
HERÓDOTO, IV, 82. Outros exemplos: I, 40 ( á n e i m i e s t ò n lógon); VII, 137 (epáneimi), 239 (áneimi).
110
467
MONTAIGNE. Essàis, deseja justamente evitar essas glosas (a "matéria" devendo ser suficiente por si mesma); ver CHARLES, M. Bibliotèque. Poétique, 33, p-15, fév. 1978.
111
GENETTE, G. Figures III. Paris, 1972. p.262.
1,2 m
DIONÍSIO DE HALICARNASSO. À Pompée, 3: poikílen poiêsai tèn grapbén.
114
HERÓDOTO, IV, 44.
1,5
Ibidem. IV, 40.
116
Ibidem. IV, 45.
1,7
Ibidem. III, 115.
118
Ibidem. IV, 181, 185.
119
Ibidem. IV, 17.
120
Ibidem. IV, 25.
121
Ibidem. IV, 197.
122
Ibidem. IV, 185.
eboúlehte
VERNE, J. Roburle conquérant; trata-se justamente do programa que poderia conduzir, com sucesso, um geógrafo que tivesse o Albatroz a sua disposição.
123
124 HERÓDOTO,
II, 6-9. LLOYD, A. B. HerodotusBookII, Commentary. Leyde, 1976. p.4l-59, examina as dificuldades levantadas por essas medidas.
125
HERÓDOTO, IV, 99-101.
126
LEGRAND. Notice au livre IV, p.40.
127
HERÓDOTO, IV, 181, 185.
128
Ibidem. III, 25, 26; IV, 150, 179.
129
HERÓDOTO, II, 33-34.
REHM, A. Griechische Windrosen. Sizungbericbte derBayeriscben Akademie, v.3, p.1-104,1916; o problema foi retomado por NIELSEN, K. Les noms grecs et latins des vents. Classica etMedievalia, n.7, p.l113, 1945.
130
Para Heródoto, o Bóreas é o vento do norte ou do setor norte, e não um vento do nordeste, como no texto hipocrático Peri bebdomádorr, cf. HERÓDOTO, II, 26 (suponhamos que se invertessem o Bóreas e o Noto), III, 102; IV, 99.
131
468
132
HERÓDOTO, II, 25.
133
Ibidem. II, 26.
Dos ares, das águas e dos lugares, 12 (trata-se da Grécia da Ásia Menor).
134
135
HERÓDOTO, IV, 42.
136
Ibidem. IV, 17-25, 99-101.
A título de exemplo: em HERÓDOTO, IV, 17-25, o autor utiliza apó (3 vezes), hypér(3), katyperthe (8), parei (X), epí(T), aná(l), metá (2), mékhri(3), ek (1), es (1), émprosthe (1), péren (1), synekhées (1). A isso deve-se ajuntar os verbos compostos como hyperoikein, diexelthein, diabaínein — ou seja, 36 determinações espaciais desse tipo.
137
138
HERÓDOTO, IV, 20.
139
Ibidem. IV, 19, 21, 22, 23.
140
Ibidem. IV, 181, 185.
141
Ibidem. II, 53. Sobre semaínein como termo que pode designar um saber particular, ver HERÓDOTO, II, 53; IV, 179; V, 54; VIII, 41. Recorde-se também a fórmula de Heráclito, a propósito do senhor de Delfos, que "não diz, nem oculta, mas significa (semaíneí)" (HERÁCLITO, fr. 93), considerando-se, além do mais, a relação, pelo menos metafórica, entre o saber do agrimensor e o saber da Pítia, apontada antes (ver p. 343, deste capítulo.
142
Cf. Parte 1, capítulo II: O caçador caçado: poros e aporia.
143
Para uma maneira de colocar-se o problema do efeito no campo da história literária, verJAUSS, H. R. Pour une esthétique de la réception. Paris, 1978.
144
145
TUCÍDIDES, I, 6, 6.
Fr. Gr. Hist., 133 F 128 (JACOBY); PEARSON, L. The Lost Histories of Alexander tbe Great. London, 1960. p.112-149; mais geralmente, MURRAY, O. Herodotus and Hellenistic Culture. Classical Quartely, 22, p.200-213, 1973.
146
HERÓDOTO, II, 5; NEARCO, Fr. Gr. Hist., 133 F 17; ARRIANO. Anábase, V, 6, 6-8; ARRIANO. A índia, II, 5-6: "A oeste da índia, o limite é o rio Indo, até o Oceano, onde ele se lança através de duas
147
469
embocaduras; não são elas tão vizinhas uma da outra como as cinco embocaduras do Istro, mas, como as do Nilo formam o delta do Egito do mesmo modo o Indo forma, numa parte do território da índia, o delta indiano, que não é menor que o do Egito." Ou ainda, ARRIANO. A índia, III, 9: o Indo é maior que o Nilo e o Istro reunidos. 148
HERÓDOTO, II, 5.
149
ARRIANO. A índia, VI, 5-8.
150
HERÓDOTO, II, 19-28.
151
ARRIANO. A índia, XXV, 5.
152
HERÓDOTO, IV, 42.
153
Ibidem. III, 102.
154
ARRIANO. A índia, XV, 4.
Ver, por último, MOMIGLIANO, A. The Historians of the Classical World and their Audiences: Some Suggestions. Annali della Scuola /tórmas&Jfr/terrcrr&at Yfsa; i :S; /, p. spzs:
155
Conhecem-se os sofistas. Fala-se dos rapsodos na época clássica (por exemplo: RICHARDSON, N. J. Homeric Professors in the Age of the Sophists. Proc. Cambr. Philol. Soc., p.65-81, 1975; SEALEY, R. From Phemios to Ion. Revue desEtudes Grecques, v.70, p.312-351, 1957), mas não se aborda a questão do lugar de Heródoto com relação a esses dois grupos.
156
HERÓDOTO, V, 49-50.
157
LACOSTE, Y. La géographie, Paris, 1976.
158
159
ça sert, d'abord, àfaire
MURRAY, O. Herodotus and Hellenistic Culture. 22, n.l, p.206, 1972.
la guerre.
ClassicalQuartely,
160 HERÓDOTO,
V, 36. Ver NENCI, G. Le fonti di Erodoto sull'insunezione ionica. Accademia Nazionale deiLincei(Rendiconti), v.5, p. 106-118, 1950.
161
HERÓDOTO, V, 124.
MOMIGLIANO, A. The Historians of the Classical World and their Audiences: Some Suggestions. Annali della Scuola Normale Superiore di Pisa, v.8, 1, p.61, 1978. Para a tradição indireta, Heródoto é de Túrio e não de Halicarnasso: essa "hesitação" com relação a sua identidade não é indiferente.
162
470
MARCO POLO, p.14. Éd. L. Hambis.
63 64
Ver a análise de MARIN, L. Le récit est un piège. Paris, 1978; e MARIN, L. Pouvoir du récit et récit du pouvoir. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n.25, p.23-43, jan. 1979. DUBY, G. Le dimanche
65
de Bouvines. Paris, 1973- p.14-18.
STRASBURGER, H. Herodot und das perikleiche Athen. In: Hérodote. Wege der Forschung. Darmstadt, 1965. v.XXVI. p.574-608; FORNARA, C. Herodotus. An Interprétative Essay. Oxford, 1971. p.37-58.
66
Cf. Parte 2, capítulo II: O olho e o ouvido.
67
DE CERTEAU, M. L'écriture de l'histoire. Paris: Gallimard, 1975. p.15.
68
69
SVENBRO, J. La parole et le marbre. Lund, 1976. Ver ainda CALAME, C. Le récit en Grèce ancienne. Paris: Klincksieck, 1986. p.70-79.
70
HERÓDOTO, VII, 92, 219-
71
Ibidem. IV, 179.
72
Ibidem. I, 89-
73
Ibidem. II, 20.
74
Ibidem. I, 5.
75
Ibidem. V, 54.
76
Cf. Parte 2, capítulo I: Uma retórica da alteridade.
77
Cf. Parte 1, capítulo II: O caçador caçado: poros e aporia. Não se contam menos do que l60 ocorrências, nos quatro primeiros livros.
78
79
TUCÍDIDES, I, 6, 6.
80
DIÓGENES LAÉRCIO. Vida dos filósofos, I, 101.
81
BENVENISTE, É. Problèmes de lingiústiquegénérale. Paris: Gallimard, 1966. t. I, p.228.
82
Segundo Powell, não se contam menos de 539 ocorrências de Héllen e Héllenes; mesmo se todas não devem ser postas no mesmo plano, a cifra global não é menos significai''va.
83 84
HERÓDOTO, II, 2, 10, 45, por exemplo. BENVENISTE, É. Problèmes de linguistique générale. Paris: Gallimard, 1966. 1.1, p.235. 471
CONCLUSÃO A HISTÓRIA DE UMA PARTILHA 1
Ou este outro exemplo de comparação: "O que é mais incrível? Que o Grande Rei se faça acompanhar por sua água, particular e reservada, buscada no rio Coaspes, ou que um cardeal se faça acompanhar, da França a Roma, por alguns milhares de garrafas?"
2
HAUVETTE, A. Hérodote, historien desguerres médiques. Paris, 1984. p. 114-115. As preocupações essenciais dos eruditos eram outras: buscavam pôr os textos gregos sobre as dinastias orientais de acordo com os dados cronológicos dos livros sagrados. Por exemplo, Scaliger, Petau ou o presidente Bouhier.
3
Ibidem, p.158-159-
4
SAYCE, A. H. The Ancient Empires of the East, Herodotos, /-///. London, 1883; DIELS. Herodot und Hekataios. Hermes, n.22, p.4ll et seq, 1887; PANOFSKY, H. Quaestionum de historiaeherodotaefontibus pars prima. Berlin, 1885. (Tese); TRAUTWEIN, P. Die Memoiren des Dikaios, eine Quelle des herodoteischen Geschitswerkes. Hermes, n.25, p.527-566, 1890.
5 JACOBY,
F. Uber die Entwicklung der griechischen Historiographie und den Plan einer neuen Sammlung der griechischen Historikerfragmente. Klio, n.9, p.80-123, 1909; JACOBY. R. E., especialmente 352-360: ...Er hat nicht für Perikles geschrieben, sondern für sein neues grosses Vaterland, für Athen.
6
DREWS, R. The Greek Accounts of Eastern History, p.36-39.
7
FRITZ, K. von. Herodotus and Greek Historiographie. Transactions of the American Philological Association, v.67, p.337, 1936. Se é próprio do filósofo "espantar-se", não é menos próprio do historiador!
8
Ibidem, p.338,1936. O artigo começa com estas palavras: Herodotus is called the father of history. Yet whereas the work of Thucydides corresponds rather exactly to our conception of historiography, the work of Herodotus does not.
9
Especialmente M. Pohlenz, J. L. Myres, H. Immerwahr.
10
IMMERWAHR, H. R. Form and Thought in Herodotus. Cleveland Ohio, 1966. p.79.
11
Cf. Parte 1, capítulo II: O caçador caçado: pórose aporia; BORNITZ, H. F. Herodot-Studien. Berlin, 1968. p.l 11-136.
472
12
HERÓDOTO, I, 4, 58, 60; VII, 139, 145; VIII, 12, 144 (segundo a célebre definição que Heródoto põe na boca dos atenienses: "mesmo sangue (homaímon) e mesma língua (homóglosson), santuários e sacrifícios comuns (theôn idrymatá te koinà kai thysíai), costumes e práticas semelhantes (éhteá tehomótropà)." NENCI, G. Significato etico-politico ed economico-sociale delle guerre persiane. In: La Grécia nell'eta diPericle. Milano, 1979- p.12-16.
13
HERÓDOTO, I, 185; VII, 135.
14
Ibidem. II, 148; IX, 37.
15
Ibidem. VII, 204; VIII, 135.
16
Ibidem. VI, 117, 121; VII, 99, 153; VIII, 135; IX, 65.
17IMMERWAHR,
H. R. Ergon; History as a monument in Herodotus and Thucydides. American Journal of Philology, n.81, p.266, I960, observa: ...The conception offame underlying both monuments and deeds is exactly the same...-, p.268: The vocabulaty of words associates with érgon andmnemósynon shoivs that Herodotus looks at deed as if it were a monument.
18
HERÓDOTO, II, 70; V, 65; encontramos ainda a expressão em III, 125, a propósito da maneira como morreu Polícrates, que não é "digna de ser relatada". Ver DREXLER, H. Herodot-Studien. Hildesheim/New York, 1972. p.185, o qual, do estudo dessas expressões, concluirá que Heródoto não é historiador.
19
Ver a crítica a essa "filologia que permaneceu mais ou menos platónica" em JAUSS, R. Pour une esthétique de la réception. Paris, 1978. p.58-63.
20
BARTHES, R. Le discours de l'histoire. Social Science Information, v.4, n.4, p.71,1967. Texto retomado em BARTHES, R. Le bruissement de la langue. Paris: Seuil, 1984. p.153-166. Com as observações críticas de DE CERTEAU, M. L'écriture de l'histoire. Paris: Gallimard, 1975. p.53-57.
21
DE CERTEAU, M. L'écriture de l'histoire. Paris: Gallimard, 1975. p.46-47.
22
CÍCERO. Leis, I, 1, 5.
23
LAVAGNINI, B. Studi sul romanzo greco. Firenze, 1950. p.145156. Mais amplamente, PERRY, B. E. The Ancient Romances, a Literary Historical Account of their Origins. Berkeley/Los Angeles,
473
1967. p.167-170, observa que, na Siida, os autores de romances são designados como historikoí e que títulos como Efesíacas e Babilónicas não dizem nada quanto ao conteúdo do livro:... We see that ethnographical titles were conventional in the titling of Greek romances, that the authors professed to be writing history (of a kind), and were classified as historians by ancient scholars who had no more exact term for romance as a literary form. 24
Citada por MARROU, H.-I. Dela connaissance historique. Paris, 1954. p.77, que a colhe em Febvre, que, por sua vez, sublinha seu caráter restritivo. Para Marrou, "se a história não se faz unicamente com textos, faz-se sobretudo com textos, de que nada pode substituir a precisão".
25
Ver LE GOFF, J., TOUBERT, P. Une histoire totale du Moyen Âge est-elle possible? Actes du 100e Congrès National des sociétés Savantes. Paris, 1977. p.38-40. No Dictionnaire de la nouvelle histoire. Paris, 1978. p.238, LE GOFF inclui, no rol das tarefas a serem cumpridas, a elaboração de uma nova concepção de documento.
474
Í
N
D
I
C
E
A Adivinhação -154-158 Agrimensor - 215, 249, 251, 341-345, 349-351, 363-364 (ver Narrador) Alteridade - 37, 85, 87, 97-140, 155, 158, 161, 171, 177, 180, 186, 227, 229 et seq., 268-271, 316, 364-367
R
E
M
I
S
S
I
V
O
Atenas - 38, 52, 76, 78, 87, 89, 93, 113, 169, 171, 179, 222, 330-332 Athanatízein
- 121
Autópsia - 273-280, 313 B
Amazonas - 232-240, 254, 271
Bárbaro - 177, 182-183, 219, 296, 326 et seq., 350, 365, 422 nota 191
Anácarsis - 97-116, 366
BARTHÉLEMY (Abade) - 384
Analogia - 244
nota 13
ANAXÁGORAS - 244,440 nota 49
Bato - 255
Andreia - 122-125
BENARDETE, S. - 385 nota 25, 463 nota 45
Andrófagos - 77, 214 Aporia - 94-96, 218-221, 365 Arco - 82-84 Ares - 147, 192, 198-199, 207211, 220
ARISTÁGORAS DE MILETO 82, 360 ARISTÓFANES - 213, 285, 446 nota 7 ARISTÓTELES -119, 224, 274,340 Arquivo - 289-291
BENVENISTE, É. - 145-147, 274, 388 nota 33, 400 nota 30, 408 notas 169, 170 e 171, 410 nota 11, 411 notas 25 e 28, 446 nota 2 BONNAUD, J.-B. (Abade) 307-308, 314, 370, 457 notas 142 e 146 BOYANCÉ, P. - 125, 402 nota 61, 403 nota 86, 405 nota 117, 406 nota 132, 407 notas 145 e 146 Budinos - 85, 197
ARRIANO - 222 Artábano - 75-76, 93
C
Ásia - 69-71, 74, 327, 345
Caça - 76,79-82,90,180 et seq, 193
Cambises - 81, 178, 188, 333334, 338-340 Casamento - 232-240 CERTEAU, M. DE - 297, 441 notas 71, 72 e 73, 444 nota 108, 453 notas 102 e 105, 473 nota 21 Cibele - ver Mãe dos Deuses CÍCERO - 311, 376, 458 nota 158, 473 nota 22 Ciles - 97-116, 159, 367 Ciro - 94, 188-189, 288, 333, 464 nota 62 Citas: lógos cita - 45-52, 77, 322325 (ver também Texto); origens 59-66, 70, 215, 299-300; juventude - 66, 89; estratégia - 82 et seq.; inventário - 215-216; o que eles bebem -190-192; reis -143193 (ver também Poder) Cítia: descrição - 53-59, 348-349, 352 (ver também eskhatiá); clima - 67-68, 248 Cizico - 98, 103-104, 108, 113, 140 CLASTRES, P. - 419 nota 136, 438 nota 25 CLEMENTE DE ALEXANDRIA -114 Cleômenes - 191, 334-340 Comparação - 240-244 Cotitraintes narratives: ver Injunções narrativas Crer, crível, fazer crer - 62, 264, 270, 275-276, 283, 292, 300-302, 304, 310, 315, 331, 338, 341, 352, 357, 362-363, 365, 367, 372 CTÉSIAS DE CNIDO - 81, 281, 304, 314, 369, 394 nota 45, 449 nota 34 476
D Dario - 70-71, 74-76, 83-85, 87, 90-96, 216-217, 254, 327-330 Debate persa - 286, 299, 301, 328, 330 Demarato - 186, 332, 336 Descrição - 261-270, 351-353 Despótes: - 78, 149, 186, 193, 333-340 (ver também Poder e Tirano) Destinatário - 49, 98, 297 (ver também Narrador e Texto) DETIENNE, M. - 123, 204, 386 nota 16, 404 nota 99, 414 nota 61, 415 nota 63, 430 nota 55 Digressão - 248, 344-345 Dioniso - 66, 98,
104-115,
139-140 Dizer - 275, 280, 290, 292-301 DREWS, R. - 450 nota 51, 454 nota 107, 466 nota 78 DUBY, G. - 471 nota 165 DUMÉZIL, G. - 47, 60, 149, 152, 209, 385 nota 6, 388 nota 34, 392 nota 5, 404 nota 89, 412 notas 35 e 36, 413 notas 52 e 57, 423 nota 204, 425 nota 229, 432 nota 66, 453 nota 101 DUPRONT, A. - 447 nota 11 DURAND, J.-L. - 429 nota 48 DURKHEIM, É. - 172, 418 nota 137 E Efebo - 89-91, 235
Efeito (das Histórias) - 33, 39, 245, 251, 268-269, 321 et seq., 341 et seq., 353, 355-359, 363, 375, 377 Éforo - 190, 325
Estrangulamento - 174, 202-203
Egito- 36, 55-59, 110-111, 117, 177-178, 198, 208, 230, 251, 254, 262, 282, 289-291, 293, 346, 349, 356-357
Europa - 69-71, 74
ELIADE, M. - 116, 134, 404 nota 90, 407 nota 156 Embalsamamento - 170 et seq., 177 Enunciação - 105, 135, 137, 264-269, 273 et seq., 297-301 (ver também Narrador) Epopéia: ver Prólogo e Homero. Éros - 333 Escalpelar - 181-183 Escravo - 266, 335-336 Escrita - 284, 287-292, 294297, 309 Eskhatiã (confins, lonjura) - 46, 53-54, 165, 246 Esparta - 77, 84, 161-163, 170, 176-180, 186, 191, 332, 340 Espelho - 37-38, 52, 328, 332, 355, 409 nota 175 ÉSQUILO - 53, 82, 146, 337, 386 nota 1, 411 nota 22, 433 nota 1, 466 nota 81
Etíopes macróbios - 81, 109, 188, 198
EURÍPIDES - 403 notas 84, 85 e 87 Expedição cita - 48, 70, 73-96 (ver também Dario) F FAYE, J.-P. - 290, 320-321, 452 nota 81, 460 nota 10, 461 notas 15 e 18 Ficção - 33, 315, 377 FINLEY, M.I. - 39, 277, 421 nota 178, 424 nota 223, 447 nota 16 FLÁVIO JOSÉ - 456 nota 133 Fonte - 47, 315, 319, 370 et seq. FOUCAULT, M. - 279, 448 notas 24 e 30 FRITZ, K. VON - 371, 472 notas 7 e 8 Fronteira - 69, 90, 97-141, 162 Funerais - 46, 160-180, 232, 264-265 (ver também Túmulos) FURET, F. - 450 nota 46, 46l nota 17 G
ESTIENNE, H. - 312-314, 369, 458 nota 170
GARLAN, Y. - 85-86, 395 nota 67, 396 notas 68, 72, 75, 78 e 81
ESTRABÃO - 81, 184, 190, 233, 309, 394 nota 48, 422 nota 202, 425 notas 241, 242 e 245, 433 nota 3, 437 nota 13, 458 notas 150, 151 e 152
GEINOZ (Abade) - 311, 459 nota 163 Gelonos - 111, 260 GENETTE, G. - 268, 408 nota 167, 445 notas 127 e 131 477
GERNET, L. - 187, 411 nota 19, 413 nota 47, 415 notas 64, 66 e 71, 418 notas 117 e 118, 419 nota 144, 424 nota 226 Gerro - 164-165, 168, 265 Getas - 116 et seq., 266 Giges - 275, 334 GLOTZ, G. - 144, 147, 156, 410 nota 6, 411 nota 23, 414 nota 62, 424 nota 224 Grade - 260, 323-324, 354-359 (ver também Efeito e Texto) GUÉRIN DU ROCHER (Abade) 307-308, 457 notas 142 e 144 Guerras Médicas - 32-36, 48, 7478, 316-317, 369-370, 372-373 H HAUVETTE, A. - 384 nota 20, 456 nota 132, 460 nota 2, 472 nota 2 HAVELOCK, E. A. - 449 nota 45, 451 nota 55 HECATEU DE MILETO - 69, 287, 303-304, 361, 455 nota 128 Helenocentrismo - 66, 366 Héracles - 62-65, 200, 249 HERÓDOTO: etnógrafo - 36-38, 131-141, 214-216, 351, 369-374; "historiador das Guerras Médicas" 36-38, 316-317, 369-374; pai da história - 31-34, 37, 316-317, 330, 3 7 6 - 3 7 7 (ver também Mentiroso)
HIPÓCRATES - 68, 190, 386 nota 5, 390 nota 69 Histieu de Mileto - 253, 332 Hístor - 38, 274, 283, 359-367 Historie- 32, 36-37, 277, 286, 319 HOMERO - 185, 187, 196, 274, 311, 319, 354 Hoplitas - 82-84, 86-87, 90, 270 I Idantirso - 91, 165, 217, 220 IMMERWAHR, H. - 385 nota 24, 472 nota 10, 473 nota 17 índia - 356-357, 409 nota 174, 469 nota 147 Injunções narrativas - 74-78, 218 (ver também Texto) Inversão - 57, 67-68, 229-240, 248, 269 Issedons - 66, 69, 242 Istro - 55-57, 94-95, 97, 100, 244, 350
J
JACOBY, F. - 317, 362, 371, 384 nota 21, 448 nota 31, 449 nota 44, 472 nota 5 JAUSS, H. R. - 383 nota 9, 473 nota 19 Jônios - 57, 94, 240, 258, 311, 356, 360
Herói - 161-164, 166
Juramento - 144-148, 152, 189
HESÍODO - 63, 196, 246, 354, 388 nota 41, 427 nota 6
K
Héstia - 136, 148-153, 160
KANTOROWICZ, E. - 413 nota 54
Hiléia - 63, 101-102, 104
Katyperthe-
478
77, 351-353
L LEFORT, C. - 339, 383 nota 2, 466 nota 93 LEGRAND, P. - 383 nota 4 Leite - 190, 192 LÉRYJ. DE- 231, 252-253, 26l263, 275, 295-296, 303, 313, 444 notas 114 e 116, 453 notas 99 e 102, 456 nota 130, 459 nota 170 LÉVI-STRAUSS, C. - 257, 453 nota 103 Líbia - 55-57, 200, 202, 214, 258, 345, 349, 353 LINFORTH, I. M. - 256, 405 nota 116, 443 nota 93, 445 nota 125 LLOYD, G. E. - 439 nota 31, 440 nota 47 Logopoiós - 303-304, 361 (ver também Mentiroso) LORAUX, N. - 171, 386 nota 17, 419 nota 134, 420 nota 161 LUCIANO - 112, 144, 161, 207, 274, 285, 311
441 nota 75, 452 nota 81, 460 nota 5 Mulheres - 169, 178-179, 230, 233-240 Musas - 32, 35, 285-286, 311, 319-320 (ver também Prólogo) Mutilação -168 et seq., 179,187, 335 MYRES, J. - 37, 55, 385 nota 23, 387 nota 9 Mythos- 34, 296, 302-314, 316, 375-377 N Narrador - 97,110,135, 140-141, 168, 251, 265-266, 297-302, 319, 344 et seq., 363-364, 373 (ver também Enunciação) NEARCO - 356-357 NENCI, G. - 440 nota 55, 441 nota 63, 446 nota 3, 473 nota 12 NICOLAU DE DAMAS - 224, 435 nota 31 Nilo - 55-57, 244, 282, 290, 350
M Mãe dos Deuses - 98, 101, 103106, 108, 111, 113-114, 140, 258, 334 MARROU, H.-I. - 383 nota 3 Massagetas - 66, 189, 201, 259, 430 nota 56
Nômade - 58-59, 61, 64, 66, 91, 93-94, 150 et seq., 159, 167, 172, 195, 206, 213-224, 322, 325 Nome próprio - 254-261 Nomeação - 259-261 (ver também Rapsodo)
319, 369-371, 375-377
Nomos - 57, 77, 106-108, 139, 182, 231, 303, 334, 336, 356, 364 (ver também Fronteira)
Miltíades - 338
NORA, P. - 278, 448 nota 20
Mentiroso - 33-34, 38, 303-314,
Mixopárthenos
- 63-64
MOMIGLIANO, A. - 31, 73, 253, 317, 384 nota 11, 391 nota 3,
Nós - 259, 261-262, 265-266, 295, 298-299, 364-367, 372
479
Poros - 92, 94-96, 26l
o Ólbia - 100-104, 106-108, 112113, 139 Olho - 263-270, 273 (ver também Autópsia) Onésilo - 182 Oral - 267, 284-302 Ossetas - 46-47, 149, 152, 154 Ounómata
- 255-257
Ouvido - 34, 295, 301, 310 OZOUF, J. - 284, 450 nota 46 P
Prazer - 310-311, 376 Prólogo (das Histórias) - 246, 250, 285-286, 297-298, 311, 319, 363 R Rapsodo - 345-350, 359, 363, 374-375 Refeição em comum - ver Syssitía Rei - ver Poder e Despóstes RIVIER, A. - 446 notas 4 e 5, 447 notas 14 e 15, 448 nota 25
Periandro - 334-335, 340-341
S
Péricles - 38, 86-87, 221-222, 448 nota 29
Sacrifício - 50, 75, 134, 146, 174,
Périplo - 243, 343-344
Sálmoxis - ver Zálmoxis Sangue - 144-147, 188-190, 192, 202-203, 210, 238 Sauromatas - 69-70, 77 (ver também Amazonas)
Persas - 59, 78-86, 170, 177, 182, 188, 197, 199, 296, 326 et seq. (ver também Poder e Despotes) Pitágoras - 116-139 PLASSART, A. - 89, 397 nota 88 PLATÃO - 88, 128, 191, 256, 340, 396 nota 84, 407 nota 147, 426 nota 253, 442 nota 91, 467 nota 97 Plístoro - 258 PLUTARCO - 305-306, 457 nota 140, 458 nota 160 Poder - 59, 6l, 75, 143-193, 218, 220, 326-341, 366 POLO, M. - 250, 252, 261, 268, 275, 280, 282, 298, 302, 361, 449 nota 41, 471 nota 163 Ponte - 74, 93-96
480
195-211
SEGALEN, V. - 297, 453 nota 106 Semaínein
- 348, 354, 363-
364, 374 Sesóstris - 57-58, 218 Simetria - 49, 55, 57, 349, 366 Sósicles - 331 Syssitía - 124-126, 128 2 Tauros - 181-182, 242 Temístocles - 93, 288 Texto - 37-38, 45, 51, 318 et seq., 374, 377 (ver também Narrador)
THÉVET, A. - 252, 303 Thôma - 245-251, 373 Tirano - 219, 280, 328-341, 448 nota 29 Trácios - 118-119, 121, 208, 210, 258 (ver também Getas) Tradução - 50, 106, 229, 251-261 Tragédia - 105, 107, 169, 178, 202, 336-338
X
XENOFONTE -180, 421 nota 180 Xerxes - 74-76, 81, 93-94, 181182, 254, 260, 333 et seq. Z Zálmoxis (Zámolxis, Sálmoxis) 57-141, 258, 264, 266, 270
TUCÍDIDES - 34, 223, 277-278, 285, 287, 294-295, 302, 310, 317, 326, 355, 357-358, 369, 375, 384 nota 17, 397 nota 101, 435 nota 27, 447 nota 15, 450 nota 46, 469 nota 145, 471 nota 179 Túmulos - 161-167, 170, 219 (ver também Funerais) V Verdade - 34, 37, 154 et seq, 158-159, 168, 308, 376 VERNANT, J.-P. - 386 nota 16, 412 notas 38 e 41, 413 notas 43, 45 e 51, 414 nota 59, 417 nota 105, 426 nota 2, 428 nota 32 VIDAL-NAQUET, P. - 395 nota 53, 396 nota 85, 397 nota 97, 466 nota 79 Vinho - 144-146, 187-192, 210 VIVES, J.-L. - 307, 376, 457
WATERS, K. - 330, 463 nota 35, 465 nota 77 481
H
U
M
A
N
I
T
A
DIRETORA DA COLEÇÃO Heloísa Starling
1.
DO SÓTÃO À VITRINE, memórias Maria José Motta Viana
de
mulheres
2.
A IDÉIA DE JUSTIÇA EM KANT, seu fundamento e na igualdade Joaquim Carlos Salgado
3.
ELEMENTOS DE TEORIA GERAL DO DIREITO Edgar da Mata Machado
4.
O ARTESÃO DA MEMÓRIA NO VALE DO JEQUITINHONHA Vera Lúcia Felício Pereira
5.
OS CINCO PARADOXOS DA MODERNIDADE Antoine Compagnon
6.
LIÇÕES DE ALMANAQUE, um estudo Vera Casa Nova
7.
MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE EDUCAÇÃO E CULTURA Juarez Dayrell (Org.)
8.
ANTROPOLOGIA DA VIAGEM, escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX Ilka Boaventura Leite
9.
O TRABALHO DA CITAÇÃO Antoine Compagnon
na
liberdade
semiótico
10. IMAGENS DA MEMÓRIA, entre o legível e o visível César Guimarães 11. AO LADO ESQUERDO DO PAI Sabrina Sedlmayer 12. NAVEGAR É PRECISO, VIVER: escritos para Silviano
Santiago
Eneida Maria de Souza e Wander Melo Miranda (Org.)
13. ADORNOS: nove ensaios sobre o filósofo Rodrigo Duarte
frankfurtiano
14. A ONTOLOGIA DA REAÜDADE Humberto Maturana 15. VÍSCERAS DA MEMÓRIA, uma leitura da obra de Pedro Antônio Sérgio Bueno 16. NA TESSITURA DA CENA, A VIDA: sociabilidade e política Maria Céres Pimenta Spínola Castro
Nava
comunicação,
17. NAVEGANTES DA INTEGRAÇÃO, os remeiros do rio São Francisco Zanoni Neves 18. PÉ PRETO NO BARRO BRANCO, a língua dos negros da Tabatinga Sônia Queiroz 19. JORNALISMO E VIDA SOCIAL, a história amena jornal mineiro Vera Veiga França
de um
20. EMOÇÕES E LINGUAGEM NA EDUCAÇÃO E NA POLÍTICA Humberto Maturana 21. HANNAH ARENDT E A BANALIDADE DO MAL Nádia Souki 22. PONTOS E BORDADOS, escritos de história e política José Murilo de Carvalho 23. A DEMOCRACIA CONTRA O ESTADO, Marx e o maquiaveliano Miguel Abensour
momento
24. O LOCAL DA CULTURA Homi K. Bhabha 25. LUZES E TREVAS, Minas Gerais no Século XVIII Fábio Lucas 26. LÚCIO CARDOSO: a travessia da Ruth Silviano Brandão
escrita
27. FILOSOFIA ANALÍTICA, PRAGMATISMO E CIÊNCIA Paulo Roberto Margutti Pinto, Cristina Magro, Ernesto Perini Frizzera Santos e Lívia Mara Guimarães (Org.) 28. BELO, SUBLIME E KANT Rodngo Duarte (Org.)
29. A FORMAÇÃO DO HOMEM MODERNO VISTA ATRAVÉS DA ARQUITETURA Carlos Antônio Leite Brandão 30. A PEDRA MÁGICA DO DISCURSO Eneida Maria de Souza 31. O FILME DENTRO DO FILME Ana Lúcia Andrade 32. O ESPELHO DE HERÓDOTO, ensaio sobre a do outro François Hartog
representação
_^E[ançois Hartog define O Espelho de Heródoto como uma experiência de leitura. Ela corresponde a um tempo em que os historiadores, cansados de contar, aprendem a ler, preocupando-se mais com as margens que com o centro e enfrentando os problemas da enunciação. Propõe-se o seguinte paradoxo: sendo o pai da história, Heródoto não é um verdadeiro historiador, já que mentiroso, como se a paternidade comportasse algo inacabado. Pai e mentiroso, história e ficção — como fazer história com um texto como as Histórias? Dito de outro modo: como ler? Ou ainda: o que é um texto histórico? O que o constitui? Como pode ser reconhecido? Qual seu e f e i t o ? Esses problemas, de extrema atualidade, são debatidos neste livro, que agora se oferece, em tradução, ao leitor brasileiro.