HABERMAS E O DIREITO BRASILEIRO
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ICARDO DO DE SOUZA CRUZ ÁLVARO RICAR
Procurador da República em Minas Gerais. Mestre em Direito Econômico e Doutor em Direito Constitucional. Professor da Graduação e da Pós- Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
HABERMAS E O DIREITO BRASILEIRO 2a edição
EDITORA LUMEN JURIS Rio de Janeiro 2008
2008 by Álvaro Álvaro Ricardo de Souza Cruz Copyright © 2008 by Categoria: Direito Constitucional PRODUÇÃO EDITORIAL Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
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Impresso no Brasil Printed in Brazil
Angelina, Adenir e Maria; saudades que o tempo não pode apagar: o “cantinho”, o “nêgo preto” e o “cajuzinho”.
VERDADE DIVIDIDA A porta da verdade estava aberta mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só conseguia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia os seus fogos. Era dividida em duas metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era perfeitamente bela. E era preciso optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia. (Carlos Drummond de Andrade)
Sumário
Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Capítulo I – Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Capítulo II – Os Antecedentes no Projeto do Esclarecimento em Habermas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Capítulo III – Primórdios: A Teoria dos Interesses Imanentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
59
Capítulo IV – A Maturidade Intelectual: A Teoria do Agir Comunicativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Capítulo V – A Teoria Discursiva do Direito . . . . . . . . . .
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Capítulo VI – A Constelação Pós-Nacional . . . . . . . . . . .
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Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Prefácio “Suspeito, todavia, que o mal-estar e a inquietude atuais têm uma raiz mais profunda, a saber, o pressentimento e a suspeita de que, sob o signo de uma política completamente secularizada, o Estado de Direito não se pode manter sem democracia radical.” Jürgen Habermas
Todo processo de alteração de paradigma, quer seja na ciência, quer seja na vida, não se dá sem resistências. Afinal, não são todos os que, abertamente, reconhecem o esgotamento de uma concepção de mundo na qual cons truíram seu modo de compreender compreender o trabalho científico, assim como a si próprios. Um paradigma no qual nos movemos é constitutivo de nós mesmos. E saltar para além da linha de Rhodes, que um paradigma pode representar, implica reconhecer, por um lado, o caráter finito, falível e precário da condição humana, algo que exige um aprendizado crítico e reflexivo em face de tradições sempre caren tes de justificação , e por vezes abandonar aquilo que nos parece mais que óbvio, natural, certo e assentado. Por outro lado, implica reconhecer, com Hannah Arendt, que o que caracteriza a condição humana, não é ser o humano um ser-para-a-morte, como dizia Heidegger, mas um ser-natal, em aberto, cuja liberdade está em ser um ser com capacidade de inovar, de dar início ao novo, de renascer (n)um mundo que se constrói intersubjetivamente entre e em nós. Precariedade, aprendizado e renascimento: não há, pois, outro modo de garantir o prosseguimento, quer de uma ciência digna do nome, quer de uma vida autêntica, que só se constróem na luta, no reconhecimento recíproco e no debate intersubjetivo que as constituem. Em Habermas e o direito brasileiro, Álvaro Ricardo de Souza Cruz renova audaciosamente o seu compromisso xi
com o projeto jurídico-político de construção de uma Teoria da Constituição, marcada pelo giro lingüístico na Filosofia contemporânea e adequada ao Estado Democrático de Direito. Para isso, posiciona-se, com suas argutas reflexões, no atual debate, suscitado entre os constitucionalis tas brasileiros, brasil eiros, em torno t orno da Teoria Discursiva do Direito e do Estado Democrático de Direito, proposta por Jürgen Habermas, em que se destacam os nomes de Menelick de Carvalho Netto e Lenio Luiz Streck, dentre outros. E, em se tratando de um debate, toma criticamente como fio condu tor de suas análises as objeções de Lenio Streck, em Jurisdição constitucional e hermenêutica, às tentativas de recepção da obra habermasiana no debate constitucional brasileiro. Esse debate pode ser, num primeiro momento, resumido na controvérsia acerca de se a Teoria do Discurso, de Habermas, poderia contribuir ou não para a discussão acerca dos déficits de legitimidade e de efetividade consti tucionais, para além de alternativas, por quase todos descartadas, ou seja, as que representam a perspectiva de um constitucionalismo constitucionalismo meramente simbólico e a de um consti tucionalismo meramente programático. programático. Mas, no fundo, o que está em discussão, como em Carvalho Netto e em Streck, é a questão central acerca de como compreender adequadamente o projeto constituinte/constitucional de um Estado Democrático de Direito entre nós. Como Álvaro Souza Cruz bem considera, as objeções de Lenio Streck vão desde a simples afirmação de que a teoria habermasiana não não se apresentaria apresentaria adequada adequada à realidade brasileira, de terceiro mundo, já que desenvolvida no primeiro mundo, até a objeção mais profunda segundo a qual não haveria propriamente uma Teoria da Constituição para o constitucionalismo visto como fenômeno universal, já que assim se estaria desconsiderando, mais uma vez, a específica realidade social, econômica e política de xii
Estados que não teriam vencido as mesmas etapas históricas européias e norte-americanas. Em outras palavras, a teoria habermasiana, procedimentalista, desconsideraria as exigências substantivas para o real exercício de direitos fundamentais, na consolidação de democracias incipientes incipientes que, como o Brasil, não teriam efetivamente realizado as promessas de materialização próprias a um Estado Social digno do nome. Seria, pois, necessária a construção de uma Teoria da Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernid Mode rnidade ade Tardia ardi a (TCDAPMT) que, fundada numa supostamente possível leitura emancipacionista da Hermenêutica Ontológica, proposta por Martin Heidegger, fosse capaz de tomar a sério os obstáculos próprios à nossa facticidade histórico-social, removendo-os, por exemplo, através da defesa de uma postura ativista e axiologizante, a ser assumida pelo Poder Judiciário, com destaque para o Supremo Tribunal Federal, que seria condizente com um constitucionalismo da efetividade. Assim, para Lenio Streck, a saída para nossa histórica frustração constitucional e democrática seria a aposta na compreensão da Constituição como ordem concreta de valores e no seu guardião máximo, o Supremo Tribunal Federal, transfigurado em Corte Constitucional. Caberia, precipuamente, ao STF, o papel de uma espécie de regente em face da menoridade da nossa incipiente cidadania. A atuação da Corte seria a de preencher o hiato, entre Constituição formal e realidade político-social, deixado pela ação ou pela omissão dos demais Poderes da República e pela própria dinâmica de uma sociedade degredada e hipossuficiente, lançando mão de valores fundamentais, dentre eles, a dignidade humana. Sob as condições modernas de um mundo da vida plural e de uma sociedade descentrada, em que competem com a mesma dignidade vários projetos do que seja o florescimento humano, tal compreensão, apresentada por xiii
Streck, não somente parece chocar-se com o pluralismo político e de identidades individuais individuais e coletivas, próprio da modernidade e da tradição do constitucionalismo, como coloca em risco, com seu desprezo por nossas próprias vivências de cidadania, a democracia entre nós. Pois a democracia, como bem afirma Álvaro Souza Cruz, não pode ser concedida nem realizada mediante a tutela de quem quer que seja. Não há autonomia pública sem autonomia privada, e vice-versa, e as condições sob as quais o exercício da autonomia deve dar-se, como única fonte possível de legitimidade política moderna, só se estabelecem através de um processo de aprendizado social, sujeito a tropeços, a ser vivido pelos próprios cidadãos de uma República democrática. Como já afirmado por Souza Cruz, em Jurisdição constitucional democrática, o constitucionalismo constitucionalismo democrá tico necessita da atuação de uma jurisdição constitucional comprometida com a democracia, na garantia das condições processuais para o exercício da cidadania, que leva em consideração as desigualdades sociais e o pluralismo de identidades culturais e individuais, mas que não deve, nem precisa, ser um substituto para a cidadania que deve garantir. Menelick de Carvalho Netto vem destacando, ao longo de sua obra, a necessidade de superação do enfoque tradicionalmente dado ao tema da legitimidade e efetividade constitucionais, por exemplo, em Karl Loewenstein e em Biscaretti di Ruffia, e que, num certo sentido, também está presente em Lenio Streck, como Álvaro Souza Cruz nos chama a atenção. Tanto Loewenstein quanto Di Ruffia, ao tratarem da expansão do constitucionalismo moderno no pós-guerra, irão preocupar-se com o modo com que princípios constitucionais, originalmente próprios aos Estados da Europa ocidental (França e Inglaterra) e aos Estados Unidos da América, seriam vivenciados no sul e no oriente, marcados xiv
por diferentes contextos socioeconômicos e culturais. Para eles, haveria um hiato constante entre o ideal constitucional, importado do norte ocidental, e a realidade políticosocial concreta, posto que a própria realidade, quer meridional quer oriental, poderia constituir-se em obstáculo quase intransponível para a realização desses princípios. Todavia, Loewenstein e Di Ruffia não estariam, em princípio, ao denuciar o que seria esse hiato, ao sul e ao leste, propondo uma Teoria da Constituição ou uma Teoria Geral do Direito Público que não pudesse ser universal, ainda que se considerassem as especificidades do sul e do oriente, pois, por mais paradoxal que isso pudesse parecer, o critério normativo de referência para ambos permanecia sendo o constitucionalismo moderno ocidental. Loewenstein e Biscaretti não são, nesse sentido, Carl Schmitt, pois eles não têm a menor dúvida quanto à legítima função da Constituição e do Direito, própria do constitucionalismo moderno: a da garantia dos governados em face dos governantes. Eles permanecem, assim, diferentemente de Schmitt, como representantes da tradição do constitucionalismo liberal e social. O problema é que Loewenstein e Biscaretti não conseguem perceber que o próprio modo com que colocam o problema da legitimidade/efetividade constitucionais, o hiato entre ideal e real, contribui ainda mais para o agravamen to daquilo que se pretende denunciar. Ou seja, tanto ao idealizarem a realidade político-social dos países meridionais e orientais na forma quase-natural de um obstáculo intransponível, quanto ao sobrecarregarem os princípios constitucionais modernos, desconsideram exatamente o caráter vivido, ou melhor, o caráter hermenêutico das prá ticas jurídicas cotidianas. O Direito, como afirma Ronald Dworkin, é uma prática social, interpretativa e argumenta tiva, de tal modo que não há como compreendê-la da perspectiva de um observador externo que não leva a sério o xv
ponto de vista normativo dos implicados, das pretenções jurídicas levantadas pelos próprios participantes dessa prática. A realidade social é uma construção dinâmica, hermenêutica, histórica, social, da qual o Direito faz parte. O Direito não está pairando estaticamente sobre uma sociedade estática. E, como tal, deve lidar, inclusive, com o risco próprio a ele mesmo de ser descumprido a todo e qualquer momento. Álvaro Souza Cruz, na presente obra, mostra que mui tas das críticas de Lenio Streck à proposta de Habermas, assim como à possibilidade ou não de se lidar construtivamente, a partir dela, com os problemas de legitimidade e efetividade constitucionais, não são corretas. Não são corretas, inclusive, porque, como mostra o autor da presente obra, partem de uma compreensão equivocada de Habermas e de seu projeto filosófico de construção de uma teoria complexa, que toma por base a reconstrução filosófica das condições lingüísticas de entendimento, e dos potenciais de emancipação, já presentes no mundo moderno. Assim, Souza Cruz percorre o desenvolvimento do pro jeto habermasiano, desde obras como Técnica e ciência como ideologia e Conhecimento e interesse, até a monumen tal Teoria do agir comunicativo, assim como Facticidade e validade: uma teoria discursiva do direito e do Estado democrático de direito e A constelação pós-nacional. Para isso, na condição de um exímio jurista que bem se aventura em discussões filosóficas e sociológicas, revela todo o potencial do enfoque habermasiano, não somente para reconstruir, mas também criticar partes da história e da prática institucionais brasileiras. E o faz com toda audácia e ousadia, abertura ao diálogo respeitoso e à crítica honesta, como a seguir o lema do Iluminismo, Sapere aude! , como eternamente nos faz lembrar Imannuel Kant. No prefácio a Facticidade e validade, Habermas afirma que “há muito a Filosofia do Direito vem deixando de ser xvi
coisa tão-somente de filósofos”. Se por um lado, a discussão proposta por Álvaro Ricardo de Souza Cruz mostra que a Filosofia, para ser, hoje, Filosofia, deve, como afirma Habermas, deixar o seu lugar de indicador para as ciências e de tribunal supremo da cultura e, neste caso, aprender com a Teoria e com a Ciência do Direito; por outro lado, não precisa abandonar a pretensão de racionalidade, de verdade e de correção, afogando-se num misticismo ressentido como em Heidegger ou ceder cética ou cinicamente à polí tica como em Rorty. A Teoria do Discurso é uma das grandes possibilidades de resgate do papel da Filosofia na alta modernidade, como “guardiã de lugar da racionalidade científica e intérprete mediador do mundo da vida”. Na medida em que Álvaro Ricardo de Souza Cruz também pre tende fazer jus à necessidade de reconstruir “as sementes de liberdade mergulhadas em nossas tradições”, como nos convida Menelick de Carvalho Netto, resgatando e explici tando criticamente nossas próprias vivências constitucionais e democráticas, a obra Habermas e o direito brasileiro mostra que uma Teoria Discursiva da Constituição e do Direito inaugura um novo paradigma, capaz de lidar cons trutivamente com os problemas legados pela velha teoria constitucional, e pode contribuir decisivamente como chave interpretativa do Direito Constitucional, que sirva adequadamente de suporte para a perspectiva operacional de uma Dogmática Jurídica comprometida com o projeto constituinte/constitucional de um Estado Democrático de Direito entre nós. Belo Horizonte, 8 de outubro de 2004 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira
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Capítulo I Introdução
A quadra atual do constitucionalismo está marcada por uma crise de paradigmas que se manifesta através de uma disputa pela forma de compreensão dos espaços público e privado, pela primazia de um projeto de vida boa/digna e se dá em um contexto de legitimação de ações estatais coativas, dentro de um mundo no qual formas arcaicas e metafísicas de justificação do Direito não se prestam mais para tanto. Essa crise, se entendida em um contexto filosófico de embate entre uma compreensão do princípio da universalização científica que prefere a formulação de conceitos partindo do particular para o universal ou, contrariamente, do universal/múltiplo para o específico/uno, certamente não é uma novidade dos nossos tempos. Doutrina e jurisprudência alienígenas sobre uma hermenêutica indutivista, aporética e zetética e outra dedutivista, a priori e analógica constituem exemplos que confirmam essa situação.1 O conceito de paradigma foi constituído na década de 1960 por Thomas Kuhn. 2 Sinteticamente pode ser compreendido como uma realização científica universalmente reconhecida em um determinado período de tempo e que se altera por meio de rupturas nos aspectos centrais das visões de mundo até então dominantes. 3 Assim, o paradig1 2 3
Cf. Souza Cruz, Jurisdição Constitucional Democrática. Cf. Kuhn, A estrutura das revoluções científicas , p. 218. Tal noção apresenta um duplo aspecto. Por um lado, possibilita explicar o desenvolvimento científico como um processo que se verifica mediante rupturas, por meio da tematização e explicitação de aspectos centrais dos grandes esquemas gerais de pré-compreensões e visões de mundo, consubs1
Álvaro Ricardo de Souza Cruz
ma estabelece um conjunto de aspectos metodológicos, convenções lingüísticas e formas de realização/interpretação de experimentos, o que estabelece valores, crenças, técnicas, problemas e soluções modelares compartilhados por uma dada comunidade de cientistas. A noção de paradigma enterra qualquer possibilidade de se encarar a ciência nos padrões clássicos de neutralidade e objetividade. 4 Apesar do presente trabalho se deter com mais atenção à ciência jurídica, interessante observar que a noção de Kuhn envolve a idéia de mudança no padrão científico que ocorre de maneira sucessiva e progressiva, mas não sincrônica para todas as ciências. Mas, como o foco de interesse do presente trabalho se volta para a primeira, a crise atual representa a superação do modelo liberal e do paradigma da filosofia da consciência na forma de produção do Direito. No Brasil, a situação não é diferente. Por aqui, inegavelmente, o paradigma jurídico prevalecente ainda se dá sob bases do positivismo legalista, apoiado no exame dogmático de textos legislativos. Essa concepção se sustenta por meio da incorporação das noções clássicas (Locke e Montesquieu) da divisão qualitativa dos poderes, pela qual
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tanciados no pano de fundo naturalizado de silêncio assentado na gramática das práticas sociais, que a um só tempo tornam possível a linguagem, a comunicação e limitam ou condicionam o nosso agir e a nossa percepção de nós mesmos e do mundo. Por outro, também padece de óbvias simplificações, que só são válidas na medida em que permitem que se apresente essas grades seletivas gerais pressupostas nas visões de mundo prevalentes e tendencionalmente hegemônicas em determinadas sociedades por certos períodos de tempo e em contextos determinados (Carvalho Netto, O requisito essencial da imparcialidade para a decisão constitucionalmente adequada de um caso concreto no paradigma constitucional dos Estado Democrático de Direito, p. 78). Kuhn, com essa idéia, pretende sepultar, de uma vez por todas, a idéia de que a Ciência é neutra e impermeável a qualquer tipo de preconceito, pré-compreensões, visões de mundo e valores compartilhados pelos cientistas (Ommati, A igualdade no paradigma do Estado Democrático de Direito, p. 61).
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somente à legislação atribuir-se-ia um caráter de ação volitiva, ficando a jurisdição e a administração como ações meramente cognitivas. Logo, ao magistrado caberia tão-somente descobrir, por meios exegéticos, a vontade do legislador ou da própria lei, empregando-se, de modo geral, os métodos de Savigny, acrescidos da interpretação teleológica da obra de von Ihering. A Teoria da Decisão positivista tem por fim 5 a busca da certeza, da estabilidade e da predizibilidade. Perquire sentidos unívocos aos quais Wröblewski chama de “ideologia estática da interpretação jurídica”. 6 O positivismo não distingue o texto da norma jurídica. É incapaz de vislumbrar a indissociação do texto com seu contexto de aplicação. Não percebe o caráter meramente alográfico do texto da norma, vez que o mesmo somente se completa pela fusão de horizontes que se produz entre o texto e o intérprete. 7 Esse modo de compreensão do Direito cria um habitus na teoria e na prática da prestação das diferentes profissões jurídicas, ou seja, um conjunto de crenças que formam 5
6 7
Ideologia entendida como um “[...] discurso que oculta o sentido das relações entre sujeitos, com a finalidade de reproduzir os mecanismos das hegemonias sociais” (Grau, A ordem econômica na Constituição de 1988 , p. 175). Cf. Wröblewski (Constitución y teoria general de la interpretación jurídica, pp. 72-75). O texto, preceito ou enunciado normativo é alográfico. Não se completa com o sentido que lhe imprime o legislador. Somente estaria completo, quando o sentido que ele expressa é produzido pelo intérprete, como nossa forma de expressão. Assim, o sentido pelo texto já é algo novo, diferente do . É a norma. A interpretação do Direito faz a conexão entre o aspecto geral do normativo e a sua aplicação particular, ou seja, opera sua . As normas resultam sempre de interpretação. É a ordem jurídica, em seu valor histórico concreto, é um , ou seja, um conjunto de normas. O conjunto das disposições (textos, enunciados) é uma apenas , é um , um . O significado (ou seja, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa (Streck, Hermenêutica e(m) crise, p. 16, grifo do autor). 3
Álvaro Ricardo de Souza Cruz
preconceitos rotinizadores no ensino e na praxis. Esse habitus formado no nosso cotidiano absorve os juristas com noções que se assemelham à poesia de Cazuza, isto é, o futuro repetindo o passado e a constatação de que um museu possa estar cheio de grandes novidades. Atento ao problema, Streck critica operadores nacionais do direito que só conseguem trabalhar quando encontram uma decisão judicial ou um artigo doutrinário capaz de lhes tirar uma dúvida, vez que se sentem incapazes de qualquer raciocínio por conta própria. Pela história, Alá ditava o Corão para Maomé, que, por sua vez, ditava para Abdula, o escrivão. Em um determinado momento, Maomé deixou uma frase interrompida. Instintivamente, o escrivão Abdula sugeriu-lhe a conclusão. Distraído, Maomé aceitou como palavra divina o que dissera Abdula. Este fato escandalizou o escrivão, que abandonou o profeta e perdeu a fé. Abdula não era digno de falar em nome de Alá. Não há exagero em fazer uma analogia desta história com o que ocorre no cotidiano das práticas jurídicas. Assim como o personagem Abdula não tinha consciência de seu poder (e de seu papel), os operadores jurídicos também não sabem de sua força. Em sua imensa maioria, prisioneiros das armadilhas e dos grilhões engendrados pelo campo jurídico, sofrem dessa “síndrome de Abdula”. Consideram que sua missão e seu labor é o de – apenas – reproduzir os sentidos previamente dados/adjudicados/atribuídos por aqueles que têm o skeptron, é dizer, a fala autorizada. Não se consideram dignos-de-dizer-o-verbo. Perderam a fé em si mesmos. Resignados, esperam que o processo hermenêutico lhes aponte o caminho-da-verdade, ou seja, “a correta interpretação da lei”! Enfim, esperam 4
Habermas e o Direito Brasileiro
a fala-falada, a revelação-da-verdade (Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica, p. 35). No ensino as coisas não andam melhor. De forma geral, privilegiando uma formação dita ‘prática’, tanto as Escolas de Direito quanto os alunos desprezam disciplinas que pudessem lhes dar uma melhor formação crítica, fazendo com que os mesmos não tenham uma formação adequada, o que pode ser explicitado pelo baixo índice de aprovação nas provas para concursos públicos ou para habilitação junto à Ordem dos Advogados do Brasil. Como está o ensino jurídico no país? O relatório do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, do já longínquo ano de 1986, citado por Faria, acentuava que as faculdades de Direito funcionam como meros centros de transmissão do conhecimento científico. Neste sentido, a pesquisa nas faculdades de Direito está condicionada a reproduzir a sabedoria codificada e a conviver respeitosamente com as instituições que aplicam (e interpretam) o Direito positivo. O professor fala de códigos e o aluno aprende (quando aprende) em códigos. Esta razão, somada ao despreparo metodológico dos docentes (o conhecimento jurídico tradicional é um conhecimento dogmático e suas referências de verdade são ideológicas e não metodológicas), explica porque a pesquisa jurídica nas faculdades de Direito, na graduação e na pós-graduação, é exclusivamente bibliográfica e legalista, tal como é a jurisprudência de nossos Tribunais (Streck, Hermenêutica e(m) crise, p. 64, grifo do autor). O quadro descrito acima certamente não representa a totalidade do ensino jurídico no país, mas, infelizmente, permanece majoritário até os dias de hoje. É por isso que 5
Álvaro Ricardo de Souza Cruz
essa ótica mecanicista da Justiça, que imparcialmente deve encontrar a verdade, saúda, na atualidade, propostas favoráveis a efeitos vinculantes e concentradores das decisões judiciais de tribunais superiores, tais como as inovações legislativas recentes sobre o instituto do controle da constitucionalidade das leis. Essa vertente encontra séria oposição no país em uma das mais importantes correntes teóricas do moderno cons titucionalismo brasileiro, denominada por Cláudio Pereira de Souza Neto como o ‘constitucionalismo brasileiro da efetividade’: Com efeito, antes da adesão ao discurso da efetividade, a vertente do pensamento jurídico brasileiro situado à esquerda do espectro político, sobretudo de matriz marxista, entendia o estado ( sic) como um mero “comitê de representação dos interesses da burguesia”. Portanto, do Direito criado por esse estado burguês nada de avançado, nada de popular, poderia resultar. Esse ponto de vista parece ter predominado até pelo menos o início dos anos oitenta, inspirando as mais diversas correntes da chamada Teoria Crítica do Direito. No entanto, com o processo de reabertura democrática, o pensamento jurídico de esquerda passa a se convencer de duas coisas; primeiro – que os direitos e garantias individuais são conquistas da humanidade, cuja defesa deve também compor um “discurso de esquerda”; segundo – que a Constituição Federal de 1988 pode representar um instrumento de transformação social e, sobretudo, de promoção da dignidade humana: não é um simples reflexo dos “fatores reais de poder” e nem pode se converter em uma mera “folha de papel” (Souza Neto, Cláudio Pereira. Fundamentação e normatividade dos direitos 6
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fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do princípio democrático, pp. 289-290).
O ‘constitucionalismo brasileiro da efetividade’ permi tiu que se procedesse por aqui uma abertura de horizontes científicos na filosofia jurídica brasileira pela incorporação de elementos teóricos da Tópica, da Nova Retórica, da perspectiva da filosofia da linguagem 8 e das Teorias argumentativas do Direito, com destaque na obra de Alexy. Autores como Vianna 9 nomeiam essa corrente do constitucionalismo pátrio de substancialismo, Bonavides10 de constitucionalismo dirigente,11 enquanto Cattoni de Oliveira, Carvalho Netto e Cittadino preferem a designação de comunitarismo, reconhecendo influência decisiva nessa forma de pensar o Direito em estudos científicos oriundos de Portugal e da Espanha. 12 8
Particularmente, a obra de Streck é marcada por uma profunda compreensão do pensamento de Heidegger e de Gadamer. 9 Cf. Vianna; Carvalho; Melo; Burgos. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil, pp. 39-40. 10 Cf. Bonavides, Paulo. “Garcia – Pelayo e o Estado Social dos países em desenvolvimento: o caso do Brasil”. In: Constituición y Constitucionalis mo Hoy . Caracas: Fundación Manuel Garcia-Pelayo, 2000. 11 De fato, concordo com Canotilho quando diz que a Constituição dirigente entendida como receita omnicompreensiva e totalizante não tem (mais) sustentação. A Constituição dirigente não pode ser entendida como fundamento último, como ressurreição da sociedade ou como ultima ratio. Se assim se a entendesse, estar-se-ia retornando à metanarrativa marxista que vislumbra a desalienação do homem através da ditadura do proleta riado. Em síntese, isto seria acreditar nas filosofias historicistas, que acreditam num sentido irreversível da história. Nesse sentido, se se entender que as Constituições dirigentes proclama(va)m a revolução (socialista), fica inclusive difícil de enquadrar nesse conceito a Constituição brasileira, que aponta (tão-somente) para um reformismo social, a partir da instituição do Estado Social (art. 3 o da CF/88) (Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica, p. 123). 12 É possível afirmar que há semelhanças entre o que Cittadino chama de constitucionalismo comunitário com o que Vianna chama de substancia lismo. Ressalte-se que o constitucionalismo comunitário ‘toma a Constitui7
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Tendo como eixo principal de sua concepção da Constituição um reformismo tendente a transformar o Direito em instrumento de resgate da inclusão social, ligado ao cumprimento das promessas do Welfare State, nunca teriam sido efetivamente concretizadas em benefício do povo brasileiro, 13 os comunitaristas se vêem como “cruzados”, empenhados na luta de construção de alternativa para o neoliberalismo globalizante. Ao contrário do comunitarismo americano, 14 ligado às noções cooperativas entre as esferas múltiplas na sociedade, de modo a fazê-las compartilhar com o Estado a tarefa de proteger não apenas o bem-estar social, mas, essencialmente, o modo de vida de uma coletividade, como se exemplifica pelo american way of life, o comunitarismo brasileição como um conjunto de valores compartilhados por uma determinada comunidade política, e, segundo essa inspiração doutrinária, caberia ao Constituinte – seja ele originário, isto é, legislador de uma Carta sistemática de princípios, valores e instituições, ou permanente, como na criação jurisprudencial do direito – revelar, hermeneuticamente, a partir da sua imersão interpretativa no fundamento do ‘ existir comunitário’, os preceitos fundamentais à sua sociedade. Os comunitaristas contrapõem, portanto, uma concepção de Constituição como sistema aberto à que tem como sistema fechado, historicamente vinculado à imposição do liberalismo e às garantias da autonomia privada (Streck, Jurisdição constitucional e her menêutica, p. 159). 13 É por demais evidente que se pode caracterizar a Constituição brasileira de 1988 como uma “Constituição social, dirigente e compromissória”, ali nhando-se com as Constituições européias do pós-guerra. O problema é que, como alerta Guerra Filho, a simples elaboração de um texto constitucional, por melhor que seja, não é suficiente para que o ideário que o ins pirou se introduza efetivamente nas estruturas sociais, passando a reger com preponderância o relacionamento político de seus integrantes. Daí que a eficácia das normas constitucionais exige um redimensionamento do papel do jurista e do Poder Judiciário (em especial da Justiça Constitucional) nesse complexo jogo de forças, na medida em que se coloca o seguinte paradoxo: uma Constituição rica em direitos (individuais, coletivos e sociais) e uma prática jurídico-judiciária que, reiteradamente, (só)nega a aplicação de tais direitos (Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica, p. 15). 14 Cf. Souza Cruz, Jurisdição constitucional democrática. 8
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ro coaduna-se melhor com uma concepção estatizante e intervencionista, “jogando exclusivamente nas costas” do Estado tarefas positivas de promoção de prestações sociais por meio de serviços públicos 15 e de fomento à atividade econômica dos menos favorecidos, 16 com a finalidade de redução de desigualdades econômicas e regionais. A inclusão social e regional seria, pois, a função essencial do Estado brasileiro. Hoje, espera-se da Constituição dirigente uma força normativa suficiente para conduzir o Estado à promoção de serviços adequados de saúde, educação, previdência, transporte e habitação. De outro lado, as intervenções econômicas do Estado devem priorizar o pleno emprego e favorecer os economicamente hipossuficientes, tais como os acionistas minoritários, os micro e pequeno-empresários e as cooperativas.17 15 Os direitos sociais [...] são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais (Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 277). 16 Em certo sentido, pode-se admitir que os direitos econômicos constituirão pressupostos da existência dos direitos sociais, pois, sem uma política eco nômica orientada para a intervenção e participação estatal na economia, não se comporão as premissas necessárias ao surgimento de um regime democrático de conteúdo tutelar dos fracos e mais numerosos (Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 277). 17 Constituição é a marca jurídica do destino político de um povo. Tem o sentido de sua base política juridicizada para fazer-se impositiva em sua nor matividade e obrigatória em sua aplicação. Traz a revelação do fim político buscado pela sociedade para aperfeiçoar os objetivos de hoje na pers pectiva histórica do dever. Constituição é mais que dever ser, é também o que é feito ser e o que deverá ser. Informa e conforma o agir da sociedade agora para a proximidade histórica que com ela ou a partir dela poderá ser. Constituição foi concebida, modernamente, como ponto de chegada da luta de um povo pela liberdade de uma forma política de ser. Hoje a sua concepção incute-lhe o sentido de ponto de partida de novas e permanentes lutas pelas liberdades que são e daquelas que poderão ser na busca humana de ser mais em si e nos outros e com os outros (Rocha, Constituição e constitucionalidade, p. 25). 9
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A defesa da visão kelseniana do controle de constitucionalidade das leis como um processo objetivo, monológico, ou seja, sem partes e sem contraditório, dominante nas Cortes européias, certamente é outro ponto de distanciamento do comunitarismo nacional de seus congêneres americano/europeu. Lá, a noção de um procedimento dialé tico e “em contraditório” permeia integralmente as obras de Walzer, Taylor, Alexy e Zagrebelsky, por exemplo. Contudo, as diferenças param por aí, o que permite a comunhão de diversas idéias, especialmente no que pertine ao controle da constitucionalidade das leis e à teoria da divisão dos poderes. Mas, quais seriam esses pontos de vista comuns? É Cittadino quem responde: A dimensão comunitária do constitucionalismo brasileiro revela-se seja quando adota uma concepção de Constituição enquanto ordem concreta de valores, seja [...] enfim, quando atribui um papel preponderantemente político ao Supremo Tribunal Federal, que deve recorrer a procedimentos interpretativos de legitimação e aspirações sociais e orientar a interpretação constitucional pelos valores éticos compartilhados (Cittadino, Pluralismo, direito e justiça, p. 10, grifo nosso). Canotilho, Jorge Miranda, José Carlos Vieira de Andrade, em Portugal,18 e Pablo Lucas Verdú e Perez Luño na língua espanhola,19 influenciam significativamente o 18 Fazer ver que os direitos fundamentais não podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto faculdades ou poderes de que estes são titulares, antes valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins que esta se propõe a prosseguir (Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, pp. 144-145). 19 Los derechos fundamentales han dejado de ser meros limites al ejercicio del poder politico, o sea, garantias negativas de los intereses individuales, para devenir un conjunto de valores o fines directivos de la acción positiva de los poderes públicos (Perez Luno, Los derechos fundamentales , p. 21). 10
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comunitarismo nacional. Na perspectiva de ser a Consti tuição uma ordem concreta de valores, o princípio da dignidade da pessoa humana, tal qual na concepção do Tribunal Constitucional alemão, em função de sua abertura e desdobramento ligados aos conceito de pluralismo e de tolerância, tem sido entendido como um metavalor ou o elemento agregador da unidade axiológica da Constituição. Em outras palavras, a dignidade da pessoa humana constituir-se-ia no substrato material do princípio constitucional da unidade, sendo entendido como um centro ‘blindado’ contra qualquer agressão, seja pública ou privada, gerando uma perspectiva de um núcleo indisponível/absoluto dos direitos fundamentais, fórmula consagrada de forma majoritária entre os comunitaristas nacionais. Mas, ao lado dessa matriz substantiva, 20 deflui com força o princípio da proporcionalidade/razoabilidade e a ponderação de valores como procedimento metodológico de afirmação dos direitos fundamentais. Daniel Sarmento anota como, paulatinamente, o Supremo Tribunal Federal vem incorporando em sua hermenêutica o princípio da ponderação de valores como mecanismo de restrição de direi tos (ADIn n o 855-2, publicada no DJU de 01/10/93); como limite ao poder normativo estatal (ADIn n o 1.158-8);21 na razoabilidade do reajuste de mensalidades escolares (ADIn no 319-DF in RTJ, 149: 666/692); no exame de DNA em 20 Ao lado da Corte alemã, a Corte espanhola na Sentença n o 21/81 firmou idêntica posição em favor da noção da dignidade da pessoa humana como vértice de uma escala de valores garantidos pela Constituição. Veja: “Los derechos fundamentales responden a un sistema de valores y principios de alcance universal que subyacen a la Declaración Universal y a los diversos convenios internacionales sobre derechos humanos ratificados por España y que, asumidos como decisión constitucional básica, han de informar todo nuestro ordenamiento jurídico [...]” (Peces-Barba Martinez, Curso de derechos fundamentales , p. 417). 21 Cf. Barros, O princípio da proporcionalidade e o controle da constituciona lidade das leis restritivas de direitos fundamentais , pp. 124-125. 11
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investigação de paternidade ( Habeas Corpus no 71.373-4RS e 76.060-1-SC); e, em matéria criminal, tal como ocorrido no caso da cantora mexicana Glória Trevi, 22 que acusou policiais federais de ter sofrido estupro dentro de estabelecimento prisional. 23 A doutrina nacional tem travado enorme debate sobre a modulação da nulidade de provas obtidas por meios ilíci tos, por meio do emprego do “princípio da proporcionalidade”.24 Assim, nos mais distintos problemas, esse princípio, muitas vezes tratado pela noção de razoabilidade, tem ganhado relevância no cotidiano da magistratura nacional. 25 Por outro lado, a noção comunitarista de que a argumentação jurídica é um caso especial da discursividade prática geral, fundindo os discursos jurisdicionais e legisla tivos numa espécie única, aniquilou definitivamente a perspectiva clássica de divisão dos poderes, vez que não haveria distinção qualitativa na forma de argumentação condizente com provimentos legislativos e judiciários. 22 Cf. Mattos, Apontamentos críticos à ponderação de valores pelo Supremo Tribunal Federal, 2003. 23 A Corte vem utilizando o princípio, também, para invalidar leis que impõem ônus exagerado a um direito, como a que exigia a pesagem de botijões de gás à vista do consumidor, no ato da venda; ou para fulminar leis que instituam vantagens despropositadas a servidores públicos, como gratificação de férias a inativos. Ainda recentemente, declarou-se inconstitucional, sendo a falta de razoabilidade um dos fundamentos de tal deci são, a Medida Provisória que elevava a cinco anos o prazo decadencial para as pessoas jurídicas de direito público interno proporem ação resci sória (Barroso, Temas de direito constitucional, p. 158). 24 O texto constitucional parece, contudo, jamais admitir qualquer prova cuja obtenção tenha sido ilícita. Entendo, porém, que a regra não seja absoluta, porque nenhuma regra constitucional é absoluta, uma vez que tem de conviver com outras regras ou princípios também constitucionais. Assim, continuará a ser necessário o confronto ou peso entre os bens jurídicos, desde que constitucionalmente garantidos a fim de se admitir, ou não, a prova obtida por meio ilícito (Greco Filho, Manual de processo penal, p. 178). 25 Cf. Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil, p. 216. 12
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Logo, as Cortes Constitucionais assumem um caráter incondicionalmente político na condução de suas práticas hermenêuticas, especialmente no controle da constitucionalidade.26 Nesse sentido, o empenho dos comunitaristas em extinguir o Supremo Tribunal Federal e colocar no lugar uma Corte Constitucional justificar-se-ia pelo fato de acreditarem ser a única instituição que, na qualidade de guardiã dos valores constitucionais, poderia assumir a defesa da Constituição, tornando-se instrumento de inclusão social. O comunitarismo repudia o passivismo formalista dos nossos operadores do Direito, especialmente do Judiciário, cobrando o surgimento de uma magistratura comprometida com um ativismo em favor de causas sociais. Esse enga jamento da magistratura certamente é elemento essencial para a superação do Estado Social de Direito pelo Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, enquanto o Legislativo teve a supremacia no Estado Liberal e o Executivo no Estado Social, agora seria a vez do Judiciário. Esse quadro de preocupações do comunitarismo nacional se completa por meio de ventos ideológicos de um neoliberalismo tupiniquim que, dentre outras coisas, sus tenta a necessidade de uma privatização contínua do patrimônio público, realçando esse elemento ‘genético’ da cul tura nacional, de favorecimento da autonomia privada, especialmente em prol dos grandes conglomerados econômicos. Qualquer reação por parte do Judiciário ou do Ministério Público tem sido violentamente rejeitada, provocando propostas de alterações legislativas, algumas delas já aprovadas, tais como a proibição de concessão de decisões liminares contra a Fazenda Pública, a criação de privi26 O controle da constitucionalidade recebe o influxo da atividade política e passa a ter esta natureza quando aja para criar o Direito (Rocha, Constituição e constitucionalidade, p. 139). 13
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légio de foro na tramitação de ações de improbidade administrativa, outras em andamento no Congresso, como o ‘projeto de lei da mordaça’, outros sob julgamento no Supremo Tribunal Federal, como a proibição do Parquet de investigar. A minimização do Estado Social em um país subdesenvolvido, com grande massa de analfabetos e quase a metade da população abaixo da linha de pobreza, tem um viés ainda mais grave do que em países do G-7. Um Estado Social que no Brasil jamais se aproximou dos parâmetros dos norte-americanos ou europeus, pois não conseguiu dar fim à violência física, política e social. 27 Por aqui, os direi tos sociais e coletivos nunca passaram de promessas para parcela significativa da população, cuja cidadania jamais se concretizou. A questão da ineficácia das normas consti tucionais de cunho programático se enquadra justamente nessa seara. Portanto, o Estado Social de Direito seria uma etapa a ser ainda percorrida no Brasil, contrariamente ao ocorrido em países desenvolvidos que poderiam se dar ao luxo de vê-lo como um estágio já superado. Em busca de um ‘constitucionalismo adequado’ para a terra brasilis, desponta um dos nossos principais doutrinadores, Lenio Luis Streck, que compartilhando da opinião de Adeodato, 28 rejeita o neoliberalismo, dentre outras razões, por fazer parte de um arsenal científico concebido em países desenvolvidos e, por conseguinte, incompatível com um quadro dantesco em termos de injustiça e de exclusão social,29 propondo com isso um debate sobre a conforma27 Cf. Canotilho, O Estado adjetivado e a teoria da Constituição, p. 30. 28 Cf. Adeodato, Uma teoria (emancipatória) da legitimação para países subdesenvolvidos , p. 220. 29 É importante observar, no meio de tudo isto, que, em nosso país, há até mesmo uma crise de legalidade, uma vez que nem sequer esta é cumprida. As promessas da modernidade só são aproveitadas por um certo tipo de brasileiros. Para os demais, o atraso! O apartheid social! Os indicadores 14
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ção de uma Teoria da Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia (TCDAPMT). Forte nestas convicções, Streck vê o procedimentalismo de Jürgen Habermas dentro desse quadro de teorias alienígenas inadequadas às peculiaridades brasileiras. 30 Para tanto, desenvolve uma série de argumentos. Primeiramente, sustenta que o constitucionalismo demanda particularismos de forma a melhor se amoldar à identidade nacional. Logo, a pretensão universalista de Habermas se chocaria com a implementação de uma necessidade de vários constitucionalismos 31 que se encaixassem às necessidades de cada Estado. Nessa perspectiva, tal como visto, o constitucionalismo haveria de conformar-se dentro de uma sensibilidade social carente no projeto de Habermas, pois:
sociais apontam para um quadro dramático, a ponto de o novo governo federal, empossado em 2003, lançar o Programa Fome Zero, para antes de iniciar o necessário processo de inclusão de mais de 50 milhões de brasilei ros que vivem em condições de pobreza, alcançar uma ração mínima diá ria a essa população que representa mais da metade dos brasileiros. Observe-se que pesquisa recente mostra que os excluídos são 59% da população do país. Nessa categoria ‘excluídos’ estão as pessoas que estão à margem de qualquer meio de ascensão social. Na escola, a esmagadora maioria dessas pessoas (86%) não foi alem da 8 a série do 1o grau. De todos os segmentos sociais, são os que mais sofrem com o desemprego e a precarização do trabalho: 19% vivem de”bico” e 10% são assalariados sem registro algum. Como contraponto, o levantamento mostra que a elite se resume a 8% dos brasileiros. Essa elite concentra mais brancos do que qualquer outro segmento da sociedade. É, em conseqüência, o segmento onde há menos negros e pardos (Streck, Jurisdição constitucional e herme nêutica, p. 75). 30 Por tudo isso, a discussão acerca do papel do Direito e da justiça constitucional, a toda evidência, deve ser contextualizada, levando em conta as especificidades de países como o Brasil, onde – insisto – não houve a etapa do Welfare State , que Habermas considera superada (embora – justiça seja feita – Habermas, ao expor sua tese jamais se referiu a países como o Brasil) (Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica, p. 175). 31 Cf. Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica , p. 133. 15
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“[...] ao desvincular os valores do texto constitucional de sua ação/concretização (naquilo que a Constituição tem de substantividade), terminando por separar o ser do texto constitucional do (respectivo) ente, como se o ser pudesse subsistir sem ente, e este pudesse ser “apreendido” como ente. Portanto, o procedimentalismo, em certa medida, ao esquecer a diferença ontológica, objetifica o texto da Constituição, impedindo o ques tionar originário da pergunta pelo sentido do seu texto. Assim, a teoria procedimentalista atua como um método ou como uma ferramenta que está à “disposição” dos agentes sociais/jurídicos/políticos, com o que se afasta do paradigma hermenêutico (Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica, p. 172, nosso destaque). Esse afastar-se do paradigma hermenêutico contemporâneo pode ser entendido como uma incapacidade de Habermas de superar os limites clássicos da interpretação formalista, especialmente de compreender que o mundo se constitui na linguagem/intersubjetividade 32 (Heidegger) e que a compreensão se forma por meio de uma fusão de horizontes do autor de um texto e de seu leitor (Gadamer). Por outro lado, o procedimentalismo não teria como se sustentar em um país carente como o Brasil, pois, se ele se baseia na concepção da liberdade de autonomia de indivíduos como pressuposto da democracia, como seria possível uma teoria desejar um mínimo de concreticidade onde mais da metade da população está excluída de qualquer 32 […] Habermas não leva devidamente em conta a relevante circunstância de que o paradigma do Estado Democrático de Direito ancora-se em um modelo em que a resultante social que se estabelece a partir da noção de cidadania advém de uma intersubjetividade, em que a relação sujeito sujeito supera a serôdia relação sujeito-objeto, ultrapassando o monadis mo típico do paradigma da autoconsciência (Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica, p. 165). 16
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direito social?33 Ele se esqueceria que as elites nacionais jamais permitiram liberdade plena aos espaços púbicos de comunicação, de modo a que todos os segmentos sociais pudessem participar com iguais possibilidades de acesso ao jogo político. Com bases tão pouco sólidas, o procedimentalismo padeceria de uma contrafaticidade crônica especialmente se contrastado com a realidade de países emergentes como o Brasil. Primeiro, porque, na visão de Streck, Habermas supõe como etapa vencida o Estado Social de Direito, pois escreve exclusivamente tendo seus olhos/preocupações voltados para questões atinentes ao Primeiro Mundo. Logo, questões como ações reguladoras do Estado sobre o sistema econômico, especialmente sobre empresas transnacionais e o capital financeiro internacional, estariam muito distantes do interesse de Habermas. Para o povo brasileiro seria fundamental a garantia de mínimas condições de vida, coisa que jamais poderia passar pelas cogitações do autor alemão, pois este considera haver uma excessiva politização do Direito, levando-o a não compreender corretamente a ultrapassagem do modelo paradigmático do Estado Social para uma etapa mais evoluída, o Estado Democrático de Direito. Veja: É evidente – porque explicitamente presente nos seus textos – que Habermas trabalha com a noção de Estado Democrático de Direito; entretanto, não reconhece a necessária diferenciação que existe entre o modelo do Estado Social de Direito e o modelo do Estado Democrático de Direito, que, insisto, supera a noção de Estado Social. E aí começa o problema... [...] Ou seja, de certo modo, Habermas cai em um certo sociologismo ao ignorar a especificidade do jurídico 33 Cf. Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica , p. 174. 17
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presente nas Constituições, que gerou todo um processo de revitalização do jurídico, naquilo que diz respeito à função social do Direito. O constitucionalismo do Estado Democrático de Direito acrescenta um ‘mais’ ao Direito do Estado Social, porque estabelece no próprio texto constitucional – e esse é o ponto que Habermas deixa de considerar – os diversos mecanismos para o resgate das promessas da modernidade (Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica, p. 165). Essa incapacidade de Habermas perceber que a grande novidade trazida pelo Estado Democrático de Direito seria justamente essa nova forma de legitimidade que permite ao Direito assumir a condição de instrumento de transformação social deriva do fato do procedimentalismo ser tributário das teorias sistêmicas pelas quais a sociedade poderia ser compreendida como uma rede de comunicações, na qual seria mais relevante entender a ‘operacionalização do sistema jurídico’ do que questionar a ação individual do jurista. O Direito seria tão-somente entendido como mecanismo insípido de estabilização de comportamentos, redutor da complexidade social, desligado de outros sistemas de ação, tais como o econômico e o político. Como o operador do Direito não poderia trabalhar fora das características do sistema jurídico, sua comunicação somente poderia se efetuar nos termos estritos do que chama código binário, uma dualidade estrita de lícito/ilícito. 34 Essa concepção conteria, na opinião de Streck, o pressuposto de que seria possível separar o direito positivo de seus valores substantivos, o que no contexto atual não poderia ser entendido como mais do que uma miragem 35 pois, estaria, com isso, procurando desvincular os valores 34 Cf. Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica , p. 154. 35 Cf. Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica , p. 153. 18
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do texto constitucional de sua concretização. Seria por essa razão que o procedimentalismo habermasiano optaria pelo reconhecimento de uma natureza deontológica das normas jurídicas, rejeitando uma axiologia gradual e multipolar contida na noção de ponderação de valores. 36 Exatamente por isso Habermas não conseguiria ver a importância sem igual do papel das Cortes Constitucionais na atualidade. Preocupado apenas com a operacionalização do Direito, ele centrará suas atenções na manutenção dos procedimentos democráticos, especialmente no concernente ao controle abstrato da constitucionalidade das leis, o que poderia ser feito pelo próprio Legislativo, levando-o a concluir até mesmo que a existência dos Tribunais Constitucionais não fosse auto-evidente, 37 tal como pretende o comunitarismo. Habermas estaria, na visão de Streck, amarrado ainda a uma lógica de divisão dos poderes clássica, pela qual uma hermenêutica que se desse em condições ‘construtivas’ seria simplesmente uma invasão ilegítima de competências do Judiciário de atribuições típicas do Executivo e fundamentalmente do Legislativo. Destarte, Habermas estaria se opondo às noções mais caras do constitucionalismo da efetividade, especialmente à exigência de um Judiciário comprometido/engajado com causas sociais, pois os milhões de marginalizados no país estariam esperando pela materialização real de direitos sociais, coletivos e difusos, o que somente poderia ocorrer por meio de um claro ativismo da magistratura. São, portanto, diversas as observações colocadas por Streck. Contudo, as mesmas abrangem as linhas cardinais do projeto trabalhado por Habermas ao longo de toda sua trajetória acadêmica. Primeiramente quando percebe-se que o suporte heideggeriano das críticas tem como supos36 Cf. Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica , p. 156. 37 Cf. Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica , p. 158. 19
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to o fim da filosofia analítica e que o Dasein teria transformado a busca por um fundamento sólido para a razão uma tarefa quixotesca. Em outras palavras, que a razão seria apenas um modelo cultural e histórico e que não apresen taria qualquer superioridade sobre outros modelos historicamente concretos. De outro lado, afastando-se dessa posição própria do irracionalismo contemporâneo comum aos projetos de Rorty, Foucault e Derrida, dentre outros, as observações de Streck curiosamente – face seu marco teórico heideggeriano – se inserem também dentro da noção iluminista de racionalidade como elemento lastreador da democracia como um regime que se propõe à efetivação da justiça social. Nesse sentido, sua opção e a do constitucionalismo da efetividade têm sido pelo substancialismo implementado pela técnica hermenêutica da ponderação de valores. O objetivo desse trabalho é justamente verificar as bases de tal argumentação, procurando mostrar ao leitor a outra face da moeda: em outras palavras, que a contribuição do procedimentalismo de Habermas é universal e, por tanto, não pode ser desconsiderada para fins do enriquecimento do constitucionalismo nacional e para a praxis do jurista brasileiro. Para tanto, não seria possível estabelecer contrapon tos isolados de cada um dos argumentos de Streck, sob pena de não se conseguir dar uma noção mais unitária da obra de um dos mais importantes pensadores da atualidade. Dessa forma, o presente trabalho procederá ao exame sintético do que se considera essencial da obra de Habermas, tendo sempre como foco as críticas aqui apon tadas. Assim, o projeto do esclarecimento de Habermas será inicialmente contextualizado como uma proposta original de dar seqüência ao projeto iluminista de emancipação do homem, examinando para tanto, desde o racionalismo car20
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tesiano, a razão prática em Kant e em Hegel, o materialismo histórico marxista, chegando finalmente à primeira geração da Escola de Frankfurt. Lançadas as bases do pro jeto habermasiano, o trabalho trabalho se dividirá em quatro quatro partes de sua obra, partindo de “Conhecimento e Interesse” e passando respectivamente pela “Teoria do Agir Comunicativo”, pela “Teoria Discursiva do Direito” e chegando, finalmente, à “Constelação “Constelação pós-nacional”. Repita-se: não há, no trabalho, a intenção de sintetizar toda a obra de Habermas, mas apenas apenas a de reconstruí-la reconstruí-la de forma a permitir ao leitor uma visão distinta daquela ofereoferecida por um dos mais insígnes constitucionalistas constitucionalistas brasileiros, Lenio Luis Streck, de modo a permitir um juízo sobre a possibilidade do procedimentalismo procedimentalismo contribuir para o amadurecimento de nossas instituições democráticas e de nossa praxis constitucional. Isso permitirá ao leitor a visão da outra faceta da “verdade dividida”, tal como a concebe Carlos Drummond de Andrade.
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Capítulo II Os Antecedentes no Projeto do Esclarecimento em Habermas
As colocações feitas por Streck relativas à insensibilidade social de Habermas pela suposição de que o Estado Social seja uma etapa superada, indicando um divórcio irremediável com a realidade, especialmente com o quadro de miséria e descaso social típico do terceiro mundo e rela tiva à desconexão desconexão de sua obra obra com o paradigma paradigma hermenêuhermenêu tico contemporâneo, contemporâneo, de modo a atá-lo ao formalismo de uma divisão lockeana dos poderes, podem ser questionadas pelo simples exame da trajetória intelectual de Jürgen Habermas. Dessa forma, como já se disse, sem nenhuma pretensão de se fazer uma síntese exaustiva de toda a sua obra, o presente trabalho se propõe a reconstruir o projeto emancipatório do autor, que pode ser sintetizado por meio de uma reflexão crítica para a reconstrução da substância ética da idéia de vida boa, pelo fortalecimento de instituições capazes de orientar a modernidade em favor de uma postura humanista1 e não opressiva e, finalmente, pela pro1
Eu não iria opor-me, caso alguém afirmasse que minha concepção da linguagem e do agir comunicativo orientado orientado ao entendimento alimenta-se da herança cristã. O “ telos do entendimento”, ou seja, o conceito do acordo obtido discursivamente, discursivamente, que se mede pelo reconhecimento intersubjetivo, intersubjetivo, portanto pela dupla negativa de pretensões de validade criticáveis, ali menta-se da herança de um logos entendido ao modo do cristianismo, o qual se incorpora na prática comunicativa da comunidade (não somente na comunidade dos Quakers). A própria tessitura teórico-comunicacional teórico-comunicacional do conceito de emancipação, delineado em Conhecimento e Interesse foi ‘desmascarada’ ‘desmascarada’ como sendo uma tradução profanizadora de uma promes23
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cura de uma alternativa crítica favorável a uma resposta positiva no tocante a questões ecológicas e humanas em face da dominação irracional de um socialismo pan-óptico e de um capitalismo desumanizado levado às últimas conseqüências pela globalização. Ao contrário do que sustenta Streck, o projeto emancipatório habermasiano tem, desde o seu início, compromisso inafastável com a inclusão social através de uma conexão factível entre teoria e prática de modo universalista, ou seja, pertinente não apenas a países desenvolvidos, como a Alemanha ou os Estados Unidos, mas também a países como o Brasil. É o que se depreende dos escritos do jovem Habermas, nos quais fica claro seu esforço em torno de uma renovação democrática do marxismo, eis que ainda muito influenciado por seu mestre Adorno. Ao longo desta exposição poder-se-á ver que em toda a trajetór trajetória ia do autor autor a busca busca por por uma teor teoria ia que que se apro aproxim ximasasse ao máximo das especificidades da modernidade, aprimorando-se paulatinamente por meio de contínuas revisões, dotada de um enorme otimismo com a condição de “serhumano” do “ser humano”, faz com que sua obra tenha uma sensibilidade social nem de longe percebida por Lenio Streck e pelo comunitarismo nacional. Com esses objetivos passase, desde logo, ao desenvolvimento do presente trabalho. Nesse sentido, o presente trabalho procura demons trar que Habermas Haber mas é herdeiro do projeto da modernidamoder nidade de emancipação do homem por meio do esclarecimen sa de salvação (convém notar, notar, no entanto, que me tornei mais cuidadoso com o emprego da expressão”emancipação” expressão”emancipação” fora do âmbito do desenvolvi mento biográfico biográfico de pessoas individuais, individuais, pois não podemos podemos representar as coletividades sociais, os grupos ou comunidades como sujeitos superdi mensionados). mensionados). Pretendo afirmar apenas que a comprovação comprovação de que existe uma relação da minha teoria com uma herança teológica não me incomoda, enquanto ficar clara a diferença metódica entre os discursos, portanto enquanto o discurso filosófico obedecer à exigência de um discurso funda mentador (Habermas, mentador (Habermas, Era Era das transições , pp. 211-212). 24
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Aufklärung ), to 2 ( Aufklärung ), ou seja, que a única saída para a emancipação humana se centraria na razão. 3 No entanto, vai buscar uma justificativa distinta de alguns dos esforços mais instigantes feitos na história da filosofia. Assim, interessante fazer-se uma reconstrução sintética de alguns dos mais notáveis esforços que o Iluminismo 4 produziu e da qual a obra de Habermas é tributária. Nessa linha, é indispensável citar Descartes, vez que, ver-se-á mais tarde, um dos mais importantes representantes da Escola de Frankfurt, Horkheimer, atribui à sua obra a origem dos problemas de dominação e de exploração do homem. Todavia, o autor deve ser compreendido no horizonte científico e nas condições históricas que lhe são peculiares. Descartes não tolerava a idéia de incerteza na ciência. Seu projeto de emancipação humana buscava uma reflexão 2
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Considerando o esclarecimento um processo inacabado de argumentação argumentação que procura reiterar a mediação prática entre a razão e o seu “outro”, entre a razão e a não-razão, entre a razão instrumental e a razão comunicativa, entre as pretensões de validade do mundo objetivo, do mundo social-moral social-moral e do mundo estético, estético, Habermas opõe-se a uma tendência tendência contemporânea inspirada em F. Nietzche e na vanguarda estética, que pode ser caracterizada caracterizada como esclarecimento esclarecimento pós-estruturalista pós-estruturalista ou esclareci mento desconstrutivista da razão, na qual podem ser incluídos os nomes de M. Foucault, M. Heidegger e J. Derrida ( Siebeneichler Siebeneichler , , Razão Comu nicativa e emancipação, emancipação, p. 35). Desde o final do século século XVIII, XVIII, quando quando Kant Kant falou falou da saída saída do homem de sua “culposa minoridade”, os conceitos tais como “esclarecimento” e “emanci pação” referem-se referem-se a processos processos nos quais quais a gente gente experimenta experimenta em si mesma mesma como se transforma quando se aprende a se comportar racionalmente sob pontos de vista formais. formais. Esclarecimento Esclarecimento ( Aufklärung) é um reflexo da autoexperiência no decurso de processos de aprendizagem. [...] A [...] A emancipação emancipação é um tipo especial de auto-experiência porque nela os processos de autoentendimento se entrecruzam com um ganho de autonomia. Nela se ligam idéias “éticas” “éticas” e “morais” (Habermas, “morais” (Habermas, Pas Passado sado como futuro futuro,, p. 99). A vitória dos aliados não serviu apenas para abrir caminho para o desenvolvimento democrático na República Federal da Alemanha, no Japão e na Itália e, finalmente, também também em Portugal Portugal e na Espanha. Espanha. Todas Todas as legitimações que não prestassem homenagem – ao menos verbal e textualmente – ao espírito universalista do Iluminismo político foram então descartadas (Habermas, A (Habermas, A constelação pós-nacional pós-nacional,, p. 62). 25
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filosófica independente da fé. Criado num ambiente no qual o método experimental já se difundira entre cientistas como Bacon, Roberval, Torricelli e Pascal, comungava com Galileu a visão de que “a natureza está escrita em linguagem matemática”. É, pois, contemporâneo da revolução científica. Em novembro de 1633, estava prestes a lançar obra ligada à questão física da luz,5 vinculada às concepções heliocêntricas. Contudo, com a prisão de Galileu pelo Santo Ofício, simplesmente por ser adepto da mesma idéia, Descartes adiou o lançamento de sua obra. Assim, com o objetivo de preparar caminho para o lançamento do “Tratado da Luz”, escreveu o “Discurso do Método”. Com a obra em questão esperava justificar sua conduta científica, afirmando ter-se pautado exclusivamen te pela razão. Ironicamente sua obra-prima teve o objetivo de “preparar o terreno” para o lançamento do que considerava ser seu verdadeiro trabalho científico, ou seja, sua obra-prima. O “Discurso do Método” foi algo de revolucionário para o racionalismo filosófico. Descartes centrou suas preocupações na metodologia científica, julgando ser capaz de demonstrar qualquer hipótese racionalmente, inclusive a da existência de Deus. Ele não aceitava mais nenhuma verdade imposta apenas pela fé. 6 Partindo do suporte das 5 6
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Obra intitulada: “O Tratado da Luz”. [...] um Estado é muito mais bem regrado quando, tendo pouquíssimas leis, elas são rigorosamente observadas; assim, em vez desse grande número de preceitos de que a lógica é composta, acreditei que me basta riam os quatro seguintes, [...]. O primeiro era de nunca aceitar coisa algu ma como verdadeira sem que a conhecesse evidentemente como tal; [...]. O segundo, dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas fosse possível e necessário para melhor resolvê-las (ope rações matemáticas). O terceiro, conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer (método dedutivo). [...] E por último, fazer em tudo enumerações tão completas, e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir (Descartes, Discurso do método, pp. 22-23).
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demonstrações matemáticas, Descartes construiu um raciocínio dedutivo, que começava por suposições indo até a demonstração de sua hipótese, via experimentações. Afastando a lógica aristotélica, descreveu um método que seria comum às ciências naturais e sociais. 7 A racionalidade cartesiana pretendeu ser absoluta. 8 Ao contrário de Tomás de Aquino, que buscou conciliar fé e razão, ao sustentar que uma não existe sem a outra, Descartes lançou as bases de uma ciência social, inclusive o Direito, desligada da Religião. Desconfiava de uma ciência baseada em evidências sensoriais e, por isso, concebeu uma nova visão do próprio homem com suporte num dualismo que dividia o espírito e o corpo. A visão, pois, de um direito material suposto inteiramente na razão teve suas bases em Descartes. Sua antropologia “[...] é guiada por um otimismo fundamental com respeito à natureza humana e à capacidade humana de conhecer e agir [...]” (Vaz, 1991, p. 85), e persistiria na filosofia de Kant, especialmente no seu esforço de formulação de leis universais nas ciências humanas. Kant daria seqüência ao trabalho de Descartes no sen tido da emancipação, pois, na visão de Weber/Habermas, ambos trabalharam no caminho do desencantamento/desmistificação do mundo, que anteriormente concebia um 7
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Essas longas cadeias de razões, tão simples e fáceis, de que os geômetros costumam servir-se para chegar às suas mais difíceis demonstrações, leva ram-me a imaginar que todas as coisas que podem cair sob o conhecimento dos homens encadeiam-se da mesma maneira [...] (Descartes, Discurso do método, p. 23). As atividades que nos levam ao conhecimento seguro são, pois, somente duas: intuitus e deductio. Entendo por intuitus não a fé flutuante dos sentidos ou o juízo falaz de uma imaginação que une desajeitadamente [aspectos diversos]; mas o conceito de uma mente pura e atenta, conceito tão fácil e distinto a ponto de não deixar margem a nenhuma dúvida daquilo que entendemos (Rovighi, História da filosofia Moderna: da revo lução científica a Hegel, p. 68). 27
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amálgama entre Direito, Moral e Religião. Descartes começou a apartação da religião. Kant distinguiu o Direito da Moral9 e concebeu uma sociedade pautada por princípios universais. Kant conclui a reviravolta fundamental do pensamento ocidental aberto por Descartes [...]. Projeta duas linhas de descendência: uma que resulta na diminuição ideal do direito, caracterizando uma ver tente axiológica cuja idéia central é a de liberdade, que no direito assume a forma da justiça; outra, que arremata o traço positivista do direito, cujo conceito basilar é a segurança (Salgado, Prefácio de, O funda mento de validade do direito: Kant e Kelsen, p. 9). A obra kantiana se centra na percepção de um hiato entre o inteligível e o empírico na construção do conhecimento. Nesse sentido, ele percebe a existência de um sujei to singular capaz de verificar a priori e de modo monológico a certeza/correção de um fenômeno. No monumental ‘Crítica da Razão Pura’, ele percebe que esses juízos abstratos sobre as coisas (juízos sintéticos a priori) não definem as coisas em si mesmas, mas unificam os dados da sensibilidade. 10 Em outras palavras, ele vê o O primeiro critério de distinção é puramente formal, não no sentido que diz respeito ao conteúdo, respectivamente da lei moral e da lei jurídica, mas exclusivamente quanto à forma de obrigação; e é o critério com base no qual Kant distingue moralidade de legalidade (Bobbio, Direito e Estado no pensamento de Immanuel Kant, p. 53). 10 Portanto, se um juízo é pensado com universalidade rigorosa, isto é, de modo a não lhe ser permitida nenhuma exceção como possível, então não é derivado da experiência, mas vale absolutamente a priori. Logo, a universalidade empírica é somente uma elevação arbitrária da validade, da qual para a maioria dos casos até a que vale para todos, como por exem plo na proposição: todos corpos são pesados. Ao contrário, onde a univer salidade rigorosa é essencial a um juízo, indica uma fonte peculiar de conhecimento do mesmo, a saber, uma faculdade de conhecimento a prio9
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objeto não como a coisa em si, mas como um fenômeno. Logo, não se é possível avaliar qualquer dado empírico sem a configuração de conceitos puros, sem a fixação de categorias. E tais categorias integram também os próprios objetos, posto que incapazes de existir de forma isolada. Dessa forma, é indispensável deixar claro que a ques tão essencial à visão do primeiro em relação à ciência pode ser resumida em um questionamento: “O que eu posso conhecer?”. Kant o responderá com a afirmação de que sem conceitos puros, isso é, sem categorias, não haveria objetos de experiência; e, que as categorias integrariam os objetos da experiência. Kant concebe uma razão atemporal capaz de unificar em si o intelecto e a intuição. Isso porque os elementos do mundo fenomênico somente poderiam ser apreendidos por meio da intuição humana, especialmente por meio de juízos sintéticos a priori, construídos em cima das noções de tempo e espaço, propriedade exclusiva da mente humana e elemento de distinção do homem para com os animais. Dentre os juízos sintéticos a priori11 incluir-se-iam as proposições matemáticas, já que qualquer proposição matemática algébrica, tal como toda equação (1+1=2) se daria em cima da relação temporal de sucessão; e, qualquer elemento da matemática euclidiana da geometria, como por exemplo “a menor distância entre dois pontos é uma reta”, fixar-se-ia dentro da relação sensitiva do espaço.
ri. Necessidade e universalidade rigorosa são, portanto, seguras caracte rísticas de um conhecimento a priori e também pertencem inseparavel mente uma à outra (Kant, Os pensadores , p. 55). 11 Kant chama tais juízos de “juízos sintéticos a priori”; sintéticos porque o predicado acrescenta uma noção nova à do sujeito, a priori porque são necessários e universais [...] uma vez que não há necessidade de verificações experimentais para saber que uma coisa é ela mesma (Rovighi, História da filosofia moderna, pp. 551-552). 29
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Dessa forma, o princípio da causalidade dependeria dessa percepção intuitiva presente apenas na razão humana, fato que, libertando-o do empirismo de Hume abriria espaço para a objetividade e a neutralidade científica, tão cara à filosofia da consciência. Ao mesmo tempo, o fato do conhecimento ser condicionado pelos dados espaciais e temporais da sensibilidade impediria o conhecimento de elementos da metafísica tradicional, tais como a percepção de que a alma seria uma coisa em si, de que o cosmos seria finito e de que Deus pudesse ser reduzido à realidade. Kant, por meio de sua dialética transcendental, acredi ta que essa metafísica busca algo inalcançável pela razão, vez que se colocará sempre diante de uma antinomia básica, isso é, diante de questões, tais como aquelas que versam sobre a existência de Deus, que admitem sempre mais de uma resposta lógica: sim e não. A intervenção da consciência/razão é essencial à constituição do objeto, mas não suficiente. Para tanto, ele acrescenta a sensibilidade,12 ou seja, a sua demonstrabilidade por via experimental. 13 Eis a distinção entre a razão 12 Vimos acima que sem as condições da sensibilidade nenhum objeto abso lutamente pode ser representado mediante conceitos puros do entendi mento, porque faltam as condições da sua realidade objetiva e neles não se encontra senão a simples forma do pensamento. Tais conceitos, não obstante, podem ser apresentados in concreto quando são aplicados aos fenô menos; nestes, com efeito, eles propriamente possuem a matéria para o conceito empírico que não é senão um conceito in concreto do entendi mento (Kant, Os Pensadores , p. 356). 13 A dedução transcendental demonstrou a intervenção do intelecto na constituição do objeto, mas a demonstrou apenas como atividade unificadora. Isso significa que o intelecto sozinho não é suficiente para representar um objeto, que há necessidade de um material para unificar, e esse material lhe é fornecido pela sensibilidade. Essa tese é expressa pela famosa frase: ‘Os pensamentos sem conteúdo são vazios, as intuições sem conceitos são cegas’.(...) De fato, as categorias e os princípios que nelas se baseiam, mesmo sendo do intelecto puro, portanto aplicáveis por natureza a qualquer realidade, não podem ser aplicadas ao que não é experimentável por 30
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teórica e a razão prática, essa última sempre dependente da sensibilidade. Assim, tudo, inclusive a moral, poderia ser deduzida pela razão,14 pois somente ela poderia impor regras à conduta humana,15 através de um critério de universalização denominado por Kant como “imperativos categóricos”. 16 E, será a partir dessa concepção, que ele definirá a distinção do direito com a moral. Isto significa que a representação de um dever só significa também a existência de um dever legítimo se este puder ser atribuído universalmente a qualquer ser racional, o que implica que a existência de um dever não pode se autocontradizer. É possível exemplificar essa situação dizendo que a representação de uma máxima segundo a qual seja permitido o furto não pode ser convertida em uma lei e deve ser, portanto, repelida, uma vez que tal máxima implicaria uma autocontradição de princípios: se me fosse permitido furtar, quer dizer que tal conduta seria permitida a qualquer um; e se o furto fosse permitido a qualquer um, eu não poderia gozar os benefícios de meu furto, vez que outra pessoa poderia, furtando-me, impedir que eu ficasse que, sem a contribuição da sensibilidade, não são capazes de representar um objeto (Rovighi, História da filosofia Moderna: da revolução científica a Hegel, pp. 560-561). 14 O dualismo Kantiano implica ser o homem racional e também sensível. Enquanto ser racional a lei moral, enquanto ser sensível não necessariamente obedece à lei moral, já que pode ser afetado pela sensibi lidade (Gomes, O fundamento de validade do direito: Kant e Kelsen, p. 63, grifo do autor). 15 A lei moral nada mais exprime do que a autonomia da Razão pura prática, isto é, da liberdade, e esta é mesmo a condição formal de todas as máximas, sob a qual, unicamente elas podem harmonizar-se com a lei prática suprema (Kant, Crítica da razão prática, p. 45). 16 Pergunta a ti mesmo se poderias ver a ação que tens em mente como pos sível mediante tua vontade, quando ela deveria acontecer segundo uma lei da natureza da qual tu mesmo és uma parte (Kant apud Rovighi, História da filosofia Moderna: da revolução científica a Hegel, p. 585). 31
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com o bem. Assim, uma autorização para furtar se autocon tradiria e não poderia, por isso mesmo, ser universalizada. 17 Os “imperativos categóricos” somente existem porque o homem pertence tanto ao mundo inteligível quanto ao mundo sensível, e somente se sustentam sob o pressupos to da liberdade humana. Logo, os imperativos categóricos são possíveis porque: [...] a idéia de liberdade faz de mim um membro do mundo inteligível; pelo que, se eu fosse só isto, todas as minhas ações seriam sempre conformes a autonomia da vontade; mas como ao mesmo tempo me vejo como membro do mundo sensível, essas minhas acções devem ser conformes a essa autonomia. E esse dever categórico representa uma proposição sintética a priori, porque acima da minha vontade afectada por apetites sensíveis sobrevém ainda a idéia dessa mesma vontade, mas como pertence ao mundo inteligível, pura prática por si mesma, que contém a condição suprema da primeira, segundo a razão [...] (Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes , p. 104). A distinção entre o Direito e a Moral não apenas se dá pela forma de obrigação, cogente apenas no Direito, mas pela dualidade interioridade/exterioridade,18 vez que ape17 Cf. Galuppo, Igualdade e diferença, p. 84, grifo do autor. 18 O fundamento do direito em Kant é a liberdade, entendida enquanto auto nomia da razão. [...] A liberdade fundamenta a existência de leis internas, que criam deveres internos, na forma de imperativos categóricos. Mas a mesma liberdade interna fundamenta a existência de leis exteriores, que tornam possível o convívio das liberdades individuais (arbítrio). . [...] Como somente no Estado Civil há direito positivo, isto é, há garantia do convívio das liberdades individuais mediante uma lei universal de liberdade, o homem tem o dever de sair do estado de natureza e a ele nunca voltar (Gomes, O fundamento de validade do direito: Kant e Kelsen, pp. 79-80, nosso destaque). 32
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nas a relação jurídica impõe a prática/omissão causadora de efeitos na realidade ôntica para se materializar, como bem adverte Baracho Júnior: A ação moral estaria, portanto, condicionada a três requisitos: 1. Ação moral é a que é realizada não para obedecer a uma certa atitude sensível, a um certo interesse material, mas somente para obedecer à lei do dever; 2. Ação moral é aquela que é cumprida não por um fim, mas somente pela máxima que a determina; 3. A ação moral é aquela que não é movida por uma inclinação a não ser o respeito à lei. [...] a norma jurídica, por seu turno [...] admite a simples conformação da ação à lei desconsiderando as inclinações e interesses que levam o indivíduo a cumpri-la (Baracho Júnior, Responsabilidade civil por dano ao meio ambiente, p. 40). Kant vê o Direito como mecanismo social de garantir o livre arbítrio humano com a liberdade, definida a partir de uma lei universal, o que plasmava o caráter ético da correção no Direito. 19 Harmonizava as liberdades individuais e viabilizava a vida na sociedade civil, enquanto sua falta privava o homem de sua liberdade. 20 Era isto o que levaria 19 Se minha ação pode conviver com a liberdade de todos, segundo leis universais, é ela justa; injusta (‘unrecht’) é a ação do outro que me impeça de praticá-la. Daí o imperativo universal do direito como aplicação do impe rativo categórico moral: . Disso conclui Kant que tudo o que constitui um obstáculo à liberdade (segundo as leis gerais) é injusto (‘unrecht’) e que o afastamento desse obstáculo é, pela mesma forma, justo” (Salgado, A idéia de justiça em Kant, p. 162, grifo do autor). 20 A liberdade é o fundamento do direito em Kant, sendo traduzida em fundamento transcendental, porquanto não pode ser demonstrada por não se dar na experiência. Somente sob o pressuposto da liberdade é que são pos síveis a moral e o direito. A moral constitui a legislação interna do homem, 33
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a comunidade dos homens a se organizar em uma forma especial de organização política: o Estado. 21 Esse Estado manifestava-se como legislador, que representava o próprio povo, garantindo o exercício da liberdade externa do indivíduo por meio de normas universalmente aplicáveis, e, com isso, o projeto emancipatório iluminista. Esse projeto tem seguimento na obra de Hegel. A visão emancipatória hegeliana supõe que a construção do espírito humano não se dá de forma solipsista como supunha Kant, mas algo que necessita de um balizamento em objetivações de outra natureza, qual seja, na relação do homem com o mundo. 22 Mas para que melhor se compreenda tal seguimento, é preciso perceber algumas mudanças essenciais entre o pensamento kantiano e o hegeliano. Se é possível traçar uma paralelo entre os dois, à pergunta “o que eu posso conhecer” como elemento central do pensa na forma de imperativos categóricos, enquanto o direito traduz-se na legislação externa, reguladora do convívio das liberdades individuais através da coação. A partir daí, tem-se o conceito de direito que é, portanto, a liberdade exteriorizada (Sá, O direito de morrer , pp. 89-90). 21 O ato pelo que o povo mesmo se constitui como Estado – ainda que, pro priamente falando, só à idéia deste, que é a única pela que se pode pensar a legalidade – é o contrato originário, segundo o qual todos (‘omnes et singuli’) no povo renunciam à sua liberdade exterior, para recobrá-la em seguida como membros da comunidade, quer dizer, como membros do povo enquanto Estado (‘universi’) (Kant, Crítica da razão prática, p. 146). 22 No entanto, diferentemente de Gehlen, Hegel insiste na seguinte condição: o sujeito autoconsciente não é obrigado a reconhecer nada que não possa aceitar como justificado pela própria razão.O Estado moderno tem ‘a imen sa força e a profundidade sobre cuja base o princípio da subjetividade pode se completar como extremidade autônoma da particularidade pessoal e retornar à unidade substancial’. (...) Esta idéia fundamental, anticartesia na, de Hegel, sobrevive, tanto na antropologia filosófica, como no pragmatismo e no historicismo. O espírito humano só pode se encontrar consigo mesmo de forma indireta, através de uma relação com o mundo, mediada através de símbolos; ele não existe ‘na cabeça’, e, sim, no conjunto de mani festações e práticas simbólicas acessíveis publicamente e compreensíveis intersubjetivamente (Habermas, Era das transições , pp. 83-84). 34
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mento kantiano, está por sua vez a afirmativa central na obra hegeliana de que “tudo é consciência”. Essa afirmativa resume bem o idealismo hegeliano que segue a linha cartesiana, mas de forma original. Ao contrário de Descartes, Hegel percebe que o conhecimento não prescinde do fenômeno, pois, conhecer é sempre conhecer a realidade, isso é, de forma metafórica, não é possível aprender a nadar sem entrar na água. No entanto, ao contrário do que supunha Kant, Hegel vê a identidade do sujeito com o objeto de forma distinta. Primeiro, porque tal identidade não é apenas ligada aos dados da sensibilidade (tempo e espaço), mas construída pela consciência humana. Para ele, “a razão é a certeza de que a consciência tem de ser toda a realidade”. Dessa forma, a autoconsciência do sujeito é capaz de discernir entre “o que é” e “o que não é” para conquistar “o que deve ser”. Em outras palavras, Hegel, por meio de sua dialética dos opostos, rompe com a base da lógica clássica, que afirmava: um ente não poderia simultaneamente “ser alguma coisa” e “não ser alguma coisa” ao mesmo tempo. Agora o ente se constrói através dessa “luta” entre “aquilo que é” e “aquilo que não é”. Isso se explica facilmente: se penso sobre o conceito do que é o “ser” não posso deixar de pensar ao mesmo tempo naquilo que não somos ou naquilo que fomos ou que deixaremos de ser no futuro. A tensão dialé tica entre “ser’ e “não ser” só pode solver-se pela noção do “transformar-se”. Dito de outro modo, a razão humana pode verificar as características universais de um ser, ou seja, aquilo que faz de um dado macaco pertencer à categoria “macaco”. O sujeito cognoscente pode perceber a consciência do objeto, distinguindo-o de si e de outros seres, tais como as carac terísticas que o distinguissem de, por exemplo, um leão, um elefante etc. Somente assim será possível a concretização de tal identidade e do conhecimento. 35
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Este supõe que o pensamento compõe tão-somente um elemento do objeto, pois além do inteligível haveria o elemento sensível, não podendo haver, por conseguinte uma identidade total entre sujeito e objeto. 23 O processo de cognição conduziria o homem à autoconsciência, ou seja, ao reconhecimento de que o conhecimento representa a identidade integral de sujeito e objeto. 24 Por conseguinte, se a identidade sujeito-objeto é cons truída por meio dessa concepção idealista de conhecimento, ou seja, conhecimento das essências, de certo, Hegel é crítico da dialética transcendental de Kant, pois agora seria possível deduzir racionalmente a existência de Deus. E ele o faz por meio do princípio leibziniano da razão suficiente, ou seja, a dedução de que qualquer ente finito depende de um fundamento, de uma origem, que para Hegel só pode ser Deus. Depois, a identidade sujeito-objeto em Hegel se afas ta da noção kantiana por ser algo que se dá a posteriori, e não a priori como pensava o segundo. Desse modo, tal 23 Certamente há momentos na filosofia kantiana em que parece que o pen samento quebra essa sua subjetividade: o próprio conceito de juízo sintético a priori que exprime a identidade – a priori , ou seja, necessária – do particular com o universal; o conceito de imaginação produtiva, que serve de ligação entre o intelecto e as intuições (e portanto implica uma profunda identidade destes), o juízo reflexivo na Crítica do Juízo; mas a subjetividade nunca é plenamente superada, porque ‘um intelecto que conhece apenas fenômenos é um nada em si, é ele mesmo um fenômeno e não é nada em si (Rovighi, História da filosofia Moderna: da revolução científica a Hegel, p. 714). 24 Consciência [...] é aquele momento em que se acredita que o objeto do saber esteja diante do saber, independentemente deste: é o que acontece na certeza sensível, na percepção, no intelecto (...). Mas nenhum desses tipos de saber basta a si mesmo: até o intelecto que busca a essência do real na força, na lei (alusão à física newtoniana) se contradiz: objeto não é algo estranho à consciência; é a própria consciência. ‘A consciência do outro, de um objeto em geral, é necessariamente autoconsciência’. A autoconsciência é a descoberta de que o em si do objeto é a própria consciência, (...) (Rovighi, História da filosofia Moderna: da revolução científica a Hegel, p. 718). 36
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identidade se molda por meio de um processo dialético de fusão entre uma proposição (hipótese) e sua contradição (antítese) para a construção da síntese. De tal forma que ao final do processo a síntese reinicie o processo na condição de hipótese. Dito de outro modo, a razão hegeliana é uma razão dinâmica e que age diante dessa tensão dialética/impasse que se estabelece entre os opostos e que se resolve por meio de uma mudança repentina. É o que Hegel denomina de “evolução dialética”. Tal visão de conhecimento faz com que a razão assuma uma condição temporal e eleva a história ao status de tribunal do mundo. Isso se explica pelo fato de que todas as idéias devam ser julgadas de acordo com as relações/condições sócio-culturais próprias de sua gênese. Tais relações se constroem em cima da atividade social do homem, na qual a socialização do estado de natureza passaria necessariamente pelo trabalho, pois somente por ele o homem poderia conhecer os objetos e a natureza. E, por via indireta, somente pelo trabalho o homem poderia conhecer a si próprio como sujeito individual e como integrante de uma sociedade. O conceito de trabalho hegeliano é elemento central de sua obra, vez que será a partir dele que se abrirá “[...] a perspectiva da formulação mais precisa desse novo conceito de justiça, a social, que depois se desenvolveria nas várias vertentes do pensamento contemporâneo [...]”.25 Nascido de família protestante em uma região da atual Alemanha (Caríntia) predominantemente católica, Hegel receberá/transmitirá significativa influência religiosa para sua obra. Certamente, sua idéia de trabalho se insere nesse contexto. No período medieval, o trabalho era visto como algo positivo e salutar. O movimento de Cluny, na própria Igreja 25 Salgado, A idéia de justiça em Hegel, p. 334. 37
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Católica, entendia o trabalho como a santificação da criatura. Ele era uma dádiva de Deus que proporcionava prazer e alegria, posto que fonte de libertação, crescimento pessoal e de purificação. No movimento da Reforma, Calvino entendia o trabalho como mecanismo de aperfeiçoamento pessoal e espiritual. Logo, a concepção hegeliana, que se afas ta da visão grega de aviltamento pessoal,26 reflete perfeitamente noções que eram comuns à sua época. Esse conceito influenciaria o materialismo histórico marxista e certamente a doutrina social da Igreja Católica, exemplificada nas Encíclicas Rerum Novarum, Quadragé simo ano e Mater et magistra, numa época que testemunhou exploração, sem igual, do homem pelo homem. O raciocínio dialético hegeliano emerge aqui como elemento fundamental para a formatação de seu projeto emancipatório. Os conceitos de hipótese, antítese e síntese são trabalhados de modo original. Para ele, dialética é realidade e essa somente permite a construção da identidade do objeto cognoscível face ao enfrentamento de uma essência com seu negativo. 27 26 Na Grécia Antiga o trabalho manual era considerado forma de sofrimen to moral, indigno, portanto, do homem livre. Ele era considerado uma forma de expiação e de castigo. O sentido etimológico da palavra ‘trabalho’ deriva do verbo ‘trabalhar’, que advém do latim vulgar tripaliar, que significa martirizar com um instrumento de tortura composto por três paus pontiagudos, com o qual os agricultores batiam as espigas de milho ou de trigo para debulhá-los (Tripaliu). Na própria Bíblia, Adão foi condenado por Deus pelo seu ato de desobediência, como se observa da seguinte passagem: Porque deste ouvido à voz de tua mulher e comeste da árvore que eu havia proibido comer, a terra será maldita por tua causa; com trabalho penoso tirarás dela o alimento todos os dias de tua vida. Produzir-te-ás abrolhos e espinhos e nutrir-te-ás com as ervas do campo; comerás o pão com o suor da tua fronte (Oliveira, Formação histórica do direito do trabalho, p. 32). 27 Nos termos mais amplos da concepção de Hegel da dialética do sujeito, é a negação que fornece o vínculo fundamental entre o estágio inicial, no qual emerge o sujeito como uma mera carência, como uma ausência, um hiato e o estágio final no qual o sujeito se torna substância, ou, em outras palavras, no estágio em que o sujeito torna-se um em si para si. Segundo 38
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Nesse sentido, negar não assume a forma de obstar ou de proibir. Ao contrário, a negação se traduz essencialmen te como um processo de enriquecimento trazido pela própria relação.28 A negação assume particularidade essencial no processo de conhecimento em Hegel, que pode ser exemplificado pela dialética do senhor e do escravo, ou seja, no jogo de duas autoconsciências descrito por ele. Esse jogo espelha a busca recíproca dessas autoconsciências de se afirmarem uma sobre a outra. A luta das mesmas leva a subjugação de uma sobre a outra, ou seja, que uma se torne escrava da outra. A vencedora se torna “o senhor” e aquela que se submeteu por medo da morte se torna “o escravo”. Contudo, o processo não se encerra aqui. Ao contrário, esse é apenas o primeiro ato desse drama metafísico de ilustração do método dialético. Agora, o escravo inverterá a situação por meio do trabalho. Isso se dá de forma original. Enquanto o senhor se torna cada vez mais dependente do a lógica dialética de Hegel, o sujeito primeiramente adquire a sua própria identidade mediante a negação dela não ser redutível aos objetos de seu desejo. Essa identidade inicial do sujeito, no entanto, é puramente negativa e oposional na medida em que enfoca aquilo que o sujeito não é, sem revelar o que ele é. Após haver emergido como pura negação, o sujeito hegeliano adentra o próximo estágio de sua evolução lógica em busca de uma identidade positiva. No curso dessa busca, o sujeito nega que ele seja simplesmente a ausência que surgiu no primeiro estágio e busca uma identificação positiva na multifacetada diversidade de suas manifestações concretas. Mas, ao passo que o sujeito acolhe essas manifestações, ele perde de vista a sua unidade e, assim, torna-se incapaz de apreender a sua nascente identidade positiva como sua mesma. Mais ainda, em razão dessa inca pacidade o sujeito hegeliano, mediante a negação da negação, finalmente assume sua própria identidade positiva, tornando assim para si o que ele é em si (Rosenfeld, A Identidade do sujeito constitucional, pp. 51-52). 28 (...) o negativo é ao mesmo tempo também positivo, ou seja, aquilo que se contradiz não se resolve no zero, no nada abstrato, mas só se resolve na negação de seu conteúdo particular(...). Esta negação é um novo conceito, mas um conceito que é superior e mais rico que o anterior (Rovighi, História da filosofia Moderna: da revolução científica a Hegel, p. 731). 39
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trabalho servil do escravo, o escravo se liberta por meio desse mesmo trabalho. Mas como se procede tal libertação? No trabalho o escravo descobre suas potencialidades criativas de transformação da natureza. Somente nesse processo de moldar as coisas o escravo descobre seu valor. Ele se liberta por sua alienação criativa, ou seja, o sair de si, pela negação do seu estado de natureza e pelo afirmarse como ser social . Com ele, o escravo se torna senhor da natureza e, o senhor, escravo de suas necessidades. Para Hegel, a dignidade humana encontra-se no pensamento. Essa consciência se tornará espírito por meio da razão prática. O espírito subjetivo se constrói pelo processo de estranhamento/alienação do homem,29 mas agora ele precisa de uma referência dialógica, o espírito objetivo, isto é, a consciência na comunidade civil. O espírito objetivo é a própria civilização, que subjaz no direito, nas instituições, nos costumes. Em outras palavras, o espírito do mundo passaria por três etapas para alcançar o nível mais elevado em direção à conscientização de si mesmo. Em primeiro lugar, ele toma consciência de si mesmo, tal como visto anteriormente no processo dialético. Depois, passa a um estágio mais elevado por meio da razão objetiva, ao integrar-se nas três formas de comunidade, família (afetividade), a sociedade civil (interesses práticos) e o Estado (realidade da idéia ética). Hegel vê a sublimação do espírito subjetivo por via da eticidade. O “cultivar” o espírito subjetivo se daria pela adesão/inserção 29 Já se disse que, para Hegel, tudo é idéia, o que significa: tudo é inteligível; mas a inteligibilidade do real não é dada de repente; atualiza-se progressivamente (e dialeticamente, por meio de negações), e sua atualização mais elevada é o espírito, a realidade que não apenas é inteligível, mas a inteligibilidade do real não é dada de repente: atualiza-se progressivamente (e dialeticamente, por meio de negações), e sua atualização mais elevada é o espírito, a realidade que não apenas é inteligível, mas inteligente (Rovighi, História da filosofia Moderna: da revolução científica a Hegel, p. 741). 40
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voluntária do indivíduo no espírito objetivo, materializado desde sua forma primeira, a família, passando pela sociedade e chegando à realidade ética maior, o Estado. Para Kant, a emancipação humana se daria por meio de uma obediência racional do homem a uma lei formal, ao dever simplesmente pelo dever, que se constrói na esfera da moralidade humana/razão prática, constituída pelos elementos da interioridade, intencionalidade e pelo caráter formalístico da lei. Ao contrário, Hegel entende que a elevação do espírito humano passaria pela superação de qualquer oposição entre a consciência individual e a consciência coletiva, vez que o Estado seria a concretização institucional da idéia ética, a expressão do espírito de um povo, a materialização dos valores mais caros à uma sociedade. Seu conceito/noção de alienação é claramente positivo, eis que se aproxima da perspectiva de Hobbes e Locke de passagem do estado da natureza para o estado civil por meio da “entrega” de parte de sua liberdade em favor do ente estatal. Nesse percurso do espírito do mundo, que pode se chamar de fenomenologia do espírito, a última etapa seria o alcançar-se o espírito absoluto, dividido também entre a arte, a religião e a forma verdadeira do saber, a filosofia. 30 30 Obviamente o espírito objetivo não açambarca a arte, a filosofia e a religião, que na obra de Hegel constituem o mais elevado grau de racionalidade humana, o espírito absoluto.Veja: O espírito absoluto opõe-se a si mesmo, na sua comunidade, como espírito finito; só é espírito absoluto quan-do é reconhecido como tal na comunidade. Como esse é o ponto de vista da arte, considerada na mais alta e verídica dignidade, logo aparece evidente que a arte se situa no mesmo plano da religião e da filosofia. Isto têm de comum a arte, a religião e a filosofia: exercer-se o espírito finito sobre um objeto que é a verdade absoluta. Na religião, o homem eleva-se acima dos seus interesses particulares, acima das suas opiniões, representações, tendências pessoais, acima do saber individual, para a verdade, quer dizer, para o espírito que é em si e para si. A filosofia tem por objeto a verdade; pensa a verdade e o seu único objeto é Deus. A filosofia é, essencialmente, teologia e serviço divino. Poderá ser designada se assim se qui41
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Como já se viu, o projeto emancipatório hegeliano con tribui diretamente para a concepção libertária de Marx. 31 Ele segue o raciocínio hegeliano de desobrigar a apresen tação da consciência presente na concepção kantiana e absorve a concepção dialética na abordagem do conhecimento. Contudo, Marx distingue a natureza do espírito, 32 “pois, fosse a natureza espírito no estado de sua absoluta renúncia, ela não teria sua essência e sua vida em si mesma mas, como espírito petrificado, fora de si” (Habermas, Conhecimento e Interesse, p. 44). Hegel concebe, na visão marxista, o Estado como finalidade última do espírito subjetivo, um norte ético para o indivíduo, para a família e para a sociedade civil. Marx cri tica o idealismo hegeliano exatamente por traduzir essa relação de forma intrinsecamente abstrata. Para Marx, o Estado deve ser analisado de modo concretista, examinando os meios de sua formação, de sua consolidação e de sua eventual superação. Desse modo, ele subverte a dialética hegeliana ao entender que seria a sociedade que moldaria o Estado e não o inverso. 33 Para o materialismo histórico são as condi ser, pelo nome de teologia racional, de serviço divino do pensamento. A arte, a religião e a filosofia só diferem quanto à forma; o objeto delas é o mesmo (Hegel, Os Pensadores , p. 120). 31 Cf. Marx, O Capital. 32 O modelo hegeliano de um espírito que se reconhece na natureza como seu outro combina dois momentos relacionais da reflexão, a saber: a relação, enraizada na auto-reflexão, de um sujeito solitário para consigo mesmo e aquela relação, firmada na intersubjetividade, de um sujeito que aceita e reconhece no outro também um sujeito, da mesma forma como, inversa mente, este também o reconhece e aceita enquanto sujeito.(...) Marx não concebe, em contrapartida, a natureza sob a categoria da alteridade sub jetiva mas avalia, inversamente, o sujeito sob a categoria de uma outra natureza. Esta é a razão porque ele entende a unidade de ambos, a qual somente pode ser construída por um sujeito, como sendo uma unidade não absoluta (Habermas, Conhecimento e Interesse, p. 50). 33 Mas, enquanto Hegel concebeu a negação da negação – de acordo com o aspecto positivo que nela repousa, como o verdadeiro e único positivo e, de 42
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ções materiais de vida, construídas/explicadas pelo modo de produção econômico que dariam o substrato (a estrutura) para a construção das instituições políticas (tal como o Estado), para o direito, para a arte, para a filosofia e para a religião, que tudo somado formaria a superestrutura social. Em outras palavras, o Direito e o Estado seriam obras do substrato ideológico constituído de classes sociais que expressariam distintos interesses econômicos no seio de uma dada sociedade, o que em absoluto não implica dizer que para Marx tal condicionamento fosse unidirecional da estrutura para a superestrutura. A proposta marxista vê ainda um outro problema na proposta hegeliana de emancipação. 34 A alienação trazida pelo processo do trabalho não poderia ser mais entendida como algo de positivo. Ao contrário, a alienação do trabalho e o fetichismo da mercadoria 35 seriam apontados por Marx acordo com o aspecto negativo que nela repousa, como o ato único e verdadeiro, como ato de auto-afirmação de todo o ser –, ele apenas encontrou a expressão abstrata, lógica, especulativa para o movimento da história, que não é ainda história efetiva do homem como sujeito pressuposto, mas apenas ato de geração do homem, história do nascimento do homem (Marx, Os pensadores , p. 194). 34 Um terceiro problema ainda pode ser apontado, mas de interesse lateral para o presente trabalho. Seria o fato de Hegel ter distinguido a classe dos proprietários rurais como a mais importante no seio social, uma vez que a propriedade seria o traço distintivo do Direito de participação política na construção de uma democracia representativa nos moldes lockeanos. No entanto, tanto Marx quanto Hegel, de diferentes ângulos, associam o conceito de individualismo ao de egoísmo. Para Hegel, individualista seria aquele espírito subjetivo incapaz de associar-se livremente ao projeto comunitário. Para Marx, o individualismo seria o agente motriz do capitalismo que transformaria o indivíduo em mônadas sociais movidas apenas em função da busca desenfreada pelo lucro, em um processo de concorrência infinito. 35 Finalmente, o trabalho que põe valor de troca se caracteriza pela apresentação, por assim dizer, às avessas, da relação social das pessoas, ou seja, como uma relação social entre coisas. Somente na medida em que um valor de uso se relaciona com um outro como valor de troca é que o traba lho das diferentes pessoas se relaciona entre si como igual e geral. Por isso, se é correto dizer que o valor de troca é uma relação entre pessoas, é pre43
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como a origem das desigualdades sociais, da coação e do vilipêndio à dignidade da pessoa humana. Ou seja, o trabalhador não afirmaria sua independência com o seu trabalho, mas se negaria como ser humano com a mortificação do seu corpo, pela destruição de suas relações familiares e pelo empobrecimento de seu espírito de criação. O trabalho alienado torna-se propriedade de outro homem. Essa expropriação só leva o trabalhador ao desespero, à fadiga, à fome, enfim, ao esgotamento de sua condição humana. 36 Mas, de que maneira se daria tal expropriação? Marx constrói sua teoria em cima do conceito de fetichismo da mercadoria, isto é, pela reificação das relações sociais. A evolução histórica no mundo ocidental separou coercitivamente os homens dos meios produtivos. 37 Marx ilustra essa evolução com o processo de cercamento de campos ocorrido na Inglaterra nos séculos XV e XVI. Naquele momento, as chamadas terras comunais que davam base de sustentação para parcela significativa da população inglesa foram apropriadas pelo Rei e distribuídas para grandes produtores de lã. A postura estatal atendia problemas políticos da época de consolidação de Henrique VIII e de sua filha, Elizabeth, a rainha virgem. De outro lado, atendia às necessidades de uma indústria têxtil nascente, na oferta tanto de matéria-prima quanto de mãode-obra. Para tanto, a rainha chegou a baixar atos normativos que criminalizavam a vadiagem, submetendo os ‘criminosos’ à prisão, açoite e, em caso de reincidência, à marciso, contudo, acrescentar: relação encoberta por coisas (Marx, Os pensadores , p. 40). 36 Em contraposição ao Hegel da Fenomenologia, Marx estava convencido de que a auto-reflexão da consciência colide com as estruturas subjacentes ao trabalho social, e nelas descobre a síntese do ser natural homem, objetivamente ativo, com a natureza que o circunda objetivamente (Habermas, Conhecimento e Interesse, p. 48). 37 Cf. Marx, 1998. 44
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cação por ferro à brasa. Desconectados de seu meio de sobrevivência, a última alternativa dos trabalhadores seria a de vender a única mercadoria que ainda dispunham: sua força de trabalho.38 O trabalhador coloca essa força de trabalho à disposição do capitalista por um preço: o salário. E acredita haver aí uma relação eqüitativa. Contudo, se esquece de que a força de trabalho seria uma mercadoria ímpar no mercado, porque seria a única capaz de agregar valor ao processo de produção. Assim, não percebe que o valor da mercadoria incorpora tanto sua remuneração quanto a mais-valia da qual o capitalista se apropria. Esse processo que conecta o trabalhador com a produção, com o objeto, com a coisa produzida, esconde essa relação social de exploração que sofre ao contratar seu trabalho com o capitalista. Esse processo de reificação e de alienação do homem fundaria o modo de produção capitalista. Destarte, o projeto emancipatório marxista envolve a superação do modelo acima sintetizado. E essa superação passaria necessariamente por transformar a classe proletária da condição de vítima para sujeito histórico, disposto a buscar sua felicidade pela ruptura revolucionária do status quo burguês.39 Em outras palavras, a tensão dialética se 38 A ação dissolvente do capital, diluindo os laços e entraves feudais e fazendo com que cada vez mais indivíduos livres e possessivos participassem do crescente mercado como proprietários, no mínimo do próprio corpo, ou seja, da força de trabalho que lhes possibilita o comparecimento cotidiano ao mercado enquanto proprietários de uma mercadoria a ser vendida (Carvalho Netto, Da responsabilidade da administração pela situação fali mentar de empresa privada economicamente viável por inadimplência ou retardo indevido da satisfação de valores contratados como contraprestação por obras realizadas , p. 128). 39 Marx, quando propunha uma crítica das ideologias das sociedades capita listas, pretendia, simultaneamente, denunciar o caráter explorador de uma classe sobre as demais, em nível econômico; e em nível político, social e cultural, colocar a nu a estrutura econômica dominante, subjacente a todas estas instituições, que assim ajudavam a perpetuar aquela domina45
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resolveria por meio de uma mudança repentina na estrutura da sociedade, uma mudança de cunho revolucionária. Marx centra seu projeto de esclarecimento no exame dos interesses humanos e na evolução dos modos de produção da economia. Assim, encontra os males da humanidade na reificação da mercadoria, identificando um antagonismo fidalgal entre a classe burguesa, expropriadora da mais-valia no processo produtivo, e a classe proletária, sub traída de sua humanidade pela pobreza imposta pela exploração de sua força de trabalho. Daí o apelo marxista no conhecido Manifesto Comunista lançado em 1848: Que as classes dominantes tremam diante da revolução comu nista. Os proletários não têm nada a perder além de seus próprios grilhões. Eles têm um mundo a ganhar! Proletários de todo o mundo, uni-vos! Para tanto, ele vê uma evolução em sentido único no movimento histórico dos modos de produção econômicos. Essa evolução é entendida como uma sucessão histórica dos modos de produção econômicos. Ele estabelece como estágio inicial o modelo antigo/feudal de produção comunal, no qual as relações de trabalho eram determinadas por parentesco ou por sistemas pessoais de lealdade. O esgo tamento desse modelo levou à edificação do capitalismo, não sem antes passar por um longo período de transição marcado pela acumulação primitiva de capital, vulgarmen te denominado mercantilismo. Incoerências internas desse novo modelo levariam também à sua superação, que deveria ser desencadeada ção. Sua intenção primordial imediata, portanto, era a superação do modo de produção capitalista como um todo, com toda sua face exploradora. Junto com o sistema econômico capitalista, dissolver-se-iam as formas de dominação política e a ideologia burguesas. Marx pretendia, dessa forma, lançar as bases para uma verdadeira revolução, uma mudança radical da sociedade capitalista, em todos os níveis (Aragão, Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo, p. 149). 46
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por uma ação revolucionária do proletariado. O fim do capi talismo e o surgimento do comunismo 40 deveriam ser encadeados também por um período de transição denominado socialismo. O materialismo histórico de Marx deixa uma marca indelével na história e no pensamento ocidental. Na história, porque o século XX é marcado pelo antagonismo entre os modos de produção capitalista e o socialista, pelo menos até a dissolução do império soviético e a queda do muro de Berlim. No entanto, o capitalismo resultante desse embate está, agora, profundamente afastado de suas concepções originais.41 Na filosofia, inúmeras serão as vertentes que darão seqüência ao projeto emancipatório marxista. De um lado, o materialismo histórico stalinista-leninis ta ( diamat), convencido de que a religião é o ópio do povo e que a filosofia, uma forma renovada de religião, se tornou no princípio do século XX um suporte para a construção pragmática da ideologia de ditaduras ferozes, como da 40 O comunismo como superação positiva da propriedade privada, enquanto auto-alienação do homem, e por isso como apropriação efetiva da essência humana através do homem e para ele; por isso, como retorno do homem a si enquanto homem social, isto é, humano; retorno acabado, consciente e que veio a ser no interior de toda a riqueza do desenvolvimento até o pre sente. Este comunismo é, como acabado naturalismo = humanismo, como acabado humanismo = naturalismo (Marx, Os pensadores , p. 168). 41 A vitória da União Soviética sobre Hitler foi uma realização do regime lá instalado pela Revolução de Outubro, como demonstra uma comparação do desempenho da economia russa czarista na Primeira Guerra Mundial com a economia soviética na Segunda Guerra (Gatrell & Harrison, 1993). Sem isso, o mundo hoje (com exceção dos EUA) provavelmente seria um conjunto de variações sobre temas autoritários e fascistas, mais que de va riações sobre temas parlamentares liberais. Uma das ironias deste estra nho século é que o resultado mais duradouro da Revolução de Outubro, cujo objetivo era a derrubada global do capitalismo, foi salvar seu antago nista, tanto na guerra quanto na paz, fornecendo-lhe o incentivo – o medo – para reformar-se após a Segunda Guerra Mundial e, ao estabelecer a popularidade do planejamento econômico, oferecendo-lhe alguns procedi mentos para sua reforma (Hobsbawm, Era dos extremos, p. 17). 47
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antiga União Soviética e da China. De outro, um marxismo mais humanista, que se espelhou sobretudo nos escritos iniciais de Marx e, portanto, mais próximo de Hegel, que se refletirá nas obras do italiano Antonio Gramsci, do alemão Ernst Bloch e do húngaro György Lukács. É exatamente nesse contexto, de procura por uma renovação humanizada do marxismo, que se encaixa a Escola de Frankfurt, 42 esforçando-se para dar uma interpre tação inusitada, tanto das ciências sociais quanto da filosofia, em torno de uma reconstrução da obra de Marx. Apesar de espelharem enorme desilusão e ceticismo com o progresso científico e social da humanidade, a Escola em questão teve como projeto uma renovação do materialismo histórico marxista 43 em sua procura pelo Aufklärung 44 e 42 A Escola de Frankfurt foi a nomenclatura tardia usada para designar um movimento intelectual alemão de orientação marxista heterodoxa, que tinha como sede o Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade de Frankfurt, e que publicava a Revista de Pesquisas Sociais. Tal movimento ganhou enorme projeção, não só pelas idéias revolucionárias que pregava em relação às ciências sociais e à filosofia, como pelo fato de todos os seus membros originais serem judeus e, portanto, terem sido perseguidos pelo nazismo, alguns mandados para campos de concentração, alguns mortos, e outros, com mais sorte, exilados em outros países, principalmente nos EUA (Aragão, Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo, p. 31). 43 De diferentes maneiras, traduziram a desilusão de grande parte dos inte lectuais com respeito às transformações do mundo contemporâneo, seu ceticismo quanto aos resultados do engajamento político revolucionário, mas também o desejo de autonomia e de independência do pensamento (Matos, A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo, p. 05). 44 O ano de 1941 é efetivamente aquele em que os primeiros massacres de judeus em grande escala tornam definitivamente impossível evitar por mais tempo a questão do anti-semitismo. Sob a influência do pensamento benjaminiano, Adorno percebe que o verdadeiro problema, nesse ponto, não é mais o fracasso da revolução marxista, mas o fracasso da própria civilização e o triunfo da barbárie. Não só Horkheimer se deixa convencer por essa visão das coisas, mas também, em 1942, decide empreender a redação de um livro em comum com Adorno, que propõe como título Dialektik der Aufklärung. [...] Aufklärung , nesse trabalho, não designa apenas o Século das Luzes, marcado pela grande ofensiva da razão, mas de modo geral, o movimento pelo qual esta última tende a comandar, des48
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pela emancipação social. Inaugurada na década de vinte do século passado, teve como expoentes Horkheimer, Adorno e Marcuse, todos de origem judaica. Como visto, não apenas a Escola de Frankfurt, mas também Gramsci e Lukács viam que o marxismo-leninismo transformara-se em um verdadeiro conjunto de dogmas e que, na prática, sua implementação não levava à consecução da justiça social. Logo, não parecia lógica/razoável a concepção de que uma consciência de classe pudesse nascer ou ter o potencial libertador nas camadas mais humildes da população da forma que previa o “Manifesto Comunista”. Nesse sentido, a referida Escola organizou-se em torno do Instituto para a Pesquisa Social que, desde o início de seus trabalhos, se preocupou em analisar o fracasso da razão em face do fenômeno do totalitarismo, especialmente fértil na Alemanha e naquela época de grandes transições políticas. Para eles, explicar as causas do “sucesso” do nazismo por razões ligadas à tradição militarista prussiana ou pela carência de uma herança democrática do país era absolutamente insuficiente. Leitores de Nietzsche, Schopenhauer e Freud, os frankfurtianos desenvolveram uma justificação absolutamente inovadora sobre o fenômeno: a razão instrumental. Horkheimer vê no cogito cartesiano a origem dessa razão. O projeto cartesiano de emancipação do arbítrio da Inquisição Medieval teria levado a humanidade à construção da bomba atômica e aos horrores de Auschwitz. A razão car tesiana procurava afastar o homem dos elementos sensoriais, uma vez que os sentidos seriam fonte de erros e ilude a Grécia Antiga, o conjunto da vida social e cultural do Ocidente. É, pois, uma “história da razão”, de Platão a Auschwitz , que os autores nos propõem (Delacampagne, História da filosofia no século XX , pp. 175-176). 49
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sões.45 Logo, para se libertar o homem precisava se voltar para a consciência pura em si mesma, ou seja, do puro cogito. Para tanto, o saber científico seria apenas aquele fruto do conhecimento demonstrativo, capaz de captar a natureza em sua forma abstrata, possibilitando ao homem seu controle. A ciência, destituída de qualquer emoção ou paixão, deveria observar a repetibilidade dos fenômenos naturais, de modo a descrevê-los matematicamente por meio de leis universais, explicativas de um universo uno 46 e mecanicista.47 Para Horkheimer, Descartes impôs a constituição de um sujeito que, geometrizando o mundo, estaria ao mesmo tempo desencantando-o, pois, a mesma razão exercida na ciência,48 se manifestaria na política, no direito, 49 no mer45 Pois, enfim, quer estejamos acordados, quer dormindo, nunca nos devemos deixar persuadir senão pela evidência de nossa razão. Há que se notar que digo de nossa razão, e não de nossa imaginação, nem de nossos sentidos. Assim, embora vejamos o sol muito claramente, nem por isso devemos julgar que ele seja apenas do tamanho que o vemos (Descartes, Discurso do método, p. 45). 46 No qual a exceção deveria ser considerada apenas como um acidente. 47 [...] de um lado o cujo existir se manifesta na evidência do Cogito; de outro, o obedecendo aos movimentos e às leis que impelem a máquina do mundo. [...] O mundo não é mais a physis antiga dotada de um princípio imanente de movimento (arqui kinêseôs, na definição de Aristóteles), mas a grande máquina, capaz de ser analisada pela razão e por ela reproduzida na forma de um modelo matemático (Vaz, Antropologia Filosófica, vol. I, p. 83, grifo nosso). 48 “O que eu quero realçar é que a ciência, em virtude do seu próprio método e dos seus conceitos, projectou e fomentou um universo no qual a domi nação da natureza se vinculou com a dominação dos homens – vínculo que tende a afectar fatalmente este universo enquanto todo. A natureza, com preendida e dominada pela ciência, surge de novo no aparelho de produção e de destruição, que mantém e melhora a vida dos indivíduos e, ao mesmo tempo, os submente aos senhores do aparelho. Assim, a hierarquia racional funde-se com a social e, nesta situação, uma mudança na direção do progresso, que conseguisse romper este vínculo fatal, influenciaria tam bém a própria estrutura da ciência – o projeto da ciência (Marcurse apud Habermas, Técnica e ciência como “ideologia” , pp. 50-51). 49 A nova física tem um significado filosófico, que interpreta a natureza e a sociedade em complementaridade com as ciências naturais; a física mo50
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cado e na história. 50 A lógica desumanizada e amoralizada da ciência51 teria se espalhado nos meandros de convivência social, liberando, segundo Marcuse, instintos sociais de destruição.52 Um mundo dominado pela indiferença, no qual todos os valores, sejam eles estéticos, sensoriais, morais ou éticos estariam moldados pelo valor de troca em um mercado. O esclarecimento trazido pela ciência procurava liber tar o homem de seus medos e mitos, 53 ou seja, o desencan-
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derna induziu, por assim dizer, a imagem mecanicista do mundo, própria do século XVII. A reconstrução do direito natural clássico foi empreendida neste enquadramento. O direito natural moderno tornou-se o fundamento das revoluções burguesas dos séculos XVII, XVIII e XIX, por meio das quais foram definitivamente destruídas as antigas legitimações da domi nação (Habermas , Técnica e ciência como “ideologia” , p. 67). A incapacidade de identificação foi, sem dúvida, a condição psicológica mais importante para que pudesse suceder algo como Auschwitz entre homens de certa forma educados e inofensivos (Adorno apud Matos, A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo, p. 57). Para o bem ou para o mal, somos os herdeiros do progresso técnico e do pensamento esclarecedor. Ambos desencadearam uma crise permanente, que não pode ser mitigada através de uma oposição a eles ou através de uma regressão a níveis mais primitivos ( Siebeneichler , Razão Comunicativa e emancipação, p. 11). O conceito de esclarecimento em Horkheimer e Adorno apóia-se na tese filosófico-histórica de que existe uma relação dialética entre pensamento, esclarecimento e mito, bem como um entrelaçamento entre racionalidade (Aufklärung) e realidade social. Noutras palavras: a humanidade procura emancipar-se constantemente do medo em relação ao mito e à dominação, seguindo os passos do saber e do esclarecimento racional, porém, ao tér mino de tudo recai no mito, na barbárie, na dominação. A causa desta recaída deve ser buscada, no entender de Horkheimer e Adorno, no próprio progresso da civilização e do esclarecimento burguês que, a partir de F. Bacon se volta para o saber, que é técnica e dominação da natureza e dos homens, apoiado no critério da utilidade e da calculabilidade, bem como no ideal de um sistema do qual tudo possa ser deduzido e que, a partir de Kant, formaliza inteiramente a razão humana, destruindo as últimas relíquias da fé no mundo burguês (Siebeneichler , Razão Comunicativa e emancipação, p. 19). Nas palavras de Kant, o esclarecimento “é a saída do homem de sua meno ridade, da qual é o próprio culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir de seu entendimento sem a direção de outrem. ‘ Entendimento sem 51
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tamento de um mundo povoado por seres transcendentais derivados do animismo humano. Contudo, o próprio esclarecimento torna-se um mito, apto a perpetuar a sujeição do ser humano, agora em bases renovadas; o médico, o cien tista e o psicólogo assumem o lugar do feiticeiro, do xamã e do padre na sociedade. Abordando essa questão pela ótica da psicanálise freudiana, os frankfurtianos destacam que a razão instrumental liberaria, a partir do inconsciente humano, instintos destru tivos, que se reproduziriam em práticas sociais até então inconcebíveis para a consciência humana fundada na razão iluminada,54 tal como se deu nos horrores das duas guerras mundiais e, por exemplo, na Guerra Civil espanhola. Transpondo a questão da liberação psíquica do indiví55 duo para a sociedade, eles chegaram à conclusão de que qualquer formação grupal se dá não apenas em torno de impulsos de solidariedade, mas também em seus reversos como vaidade, ciúme, inveja e egoísmo. Em uma sociedade capitalista, na qual as pessoas são julgadas em razão de a direção de outrem” é o entendimento dirigido pela razão. Isso significa simplesmente que, graças à sua própria coerência, ele reúne em um siste ma os diversos conhecimentos isolados (Adorno & Horkheimer, Dialética do esclarecimento, p. 19). 54 O problema dos instintos foi um tormento para Freud; ele forneceu diver sas sistematizações destes, que remanejou, antes de chegar à afirmação conclusiva de dois instintos primordiais: o Eros, ou instinto da vida, e o Thanatos, ou instinto de morte. O primeiro se exprime no amor e na construtividade; o segundo, no ódio e na destruição. O conflito entre esses dois instintos é inerente à atividade psíquica, à libido de natureza sexual ( Rovighi , História da filosofia contemporânea do século XIX à neoescolástica, p. 305). 55 Quase toda relação emocional muito íntima entre duas pessoas que dura algum tempo – casamento, amizade, relações entre pais e filhos – deixa sentimentos de aversão e de hostilidade que só escapam à consciência como resultado da censura, da repressão. Se tal aversão e hostilidade estão presentes até mesmo em relações íntimas, pode-se imaginar o quanto estão manifestas nas relações nas quais não se encontram ligações libidinosas, sensuais, primárias (Freud apud Matos, A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo, p. 37). 52
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seu sucesso ou insucesso num processo de incessante concorrência interpessoal, na qual a busca do lucro não encon tra limites éticos, o instinto de destruição das relações pessoais se potencializa. 56 E, ao contrário de Marx, julgado pelos frankfurtianos extremamente otimista,57 o modelo alternativo de sociedade socialista tampouco seria viável, uma vez que sufoca o instinto humano da vida, sem conseguir liberar a racionalidade estética, sensorial, fundada tanto na solidariedade quanto na criatividade humanas. Eles desconfiam de qualquer esforço que pudesse alcançar uma proposta definitiva para a resolução dos problemas. Em uma das suas últimas obras (“A dialética negativa”), Adorno afirma que o método dialético produz um conhecimento que jamais alcançará uma visão segura/definitiva da realidade.58 56 O individualismo, unido ao princípio de troca, gera uma sociedade antagô nica, na qual reina em todos os campos a concorrência, que se revela destrutiva de toda relação humana autêntica, porque faz com que cada homem veja no outro homem essencialmente um antagonista, um rival, um inimigo em potencial, não um semelhante com o qual pode estabelecer relações de respeito, de simpatia, de amizade e de colaboração. Os que não são eficientes ou são derrotados na concorrência [ou] são abandonados friamente a pagar as conseqüências. Nesta situação, principalmente na grande metrópole, o homem está cada vez mais só, justamente por ser obrigado a viver em meio a uma multidão de semelhantes que lhes são indiferentes ou hostis; e certamente não surpreende o alastrar-se da ansiedade, da insegurança, da neurose (Rovighi , História da filosofia contempo rânea do século XIX à neoescolástica, pp. 593-594). 57 Para a Teoria Crítica, o marxismo é por demais otimista: não teme, segundo a conjuntura, fazer apelo a uma racionalidade de tipo hegeliano, a uma concepção positivista da ciência e mesmo a um irracionalismo esponta neísta da violência, três elementos recusados pelos frankfurtianos. Tomando distância com relação àquelas teorias que se aliam a uma técnica totalitária da tomada e da conservação do poder, isto é, à recondução da dominação, os filósofos frankfurtianos suspeitam da dialética, da ciência e da fascinação marxista pela violência (Matos , A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo, p. 56). 58 A dialética negativa é um movimento permanente da razão na tentativa de resgatar do passado as dimensões reprimidas, não concretizadas no presente, transferindo-as para um futuro pacificado em que as limitações 53
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A origem do pessimismo da Escola encontra-se exatamente na perspectiva de que a razão instrumental, 59 como mecanismo de castração e dominação do homem, se reproduz e se fortalece sufocando todas as oportunidades na história em que o homem buscou uma sociedade mais fra terna.60 O mais recente fracasso seria o socialismo stalinista, que abandonara o proletariado em favor da elite partidária e de sua burocracia, impondo uma sociedade pan-óptica na qual o indivíduo e a família se desnaturam como meras “vaidades” burguesas. O socialismo deixa de ser uma aldo presente se anulem. A dialética negativa se confunde, assim, com a razão iluminista na conceituação de Kant e Hegel, ou seja, em sua versão emancipatória. Na leitura de Adorno (e Horkheimer) a razão iluminista tinha começo (na viagem de Ulisses em busca de Ítaca) em ambas as dimensões: a emancipatória e a instrumental. A sociedade burguesa, herdeira do Iluminismo, privilegiou o desdobramento da razão instrumental em detrimento da razão emancipatória que ficou reprimida e atrofiada. Ulisses, ao tentar dominar a natureza externa (o canto e a tentação das sereias), teve de subjugar sua natureza interna (prendendo-se ao mastro de seu navio). A astúcia da razão empregada por Ulisses volta-se contra seu idealizador, transformando sua natureza interna: a razão instrumental (evocada para dominar a natureza externa) subjuga a razão emancipató ria. O feitiço se vira contra o feiticeiro. A razão iluminista que entrou em cena para subjugar o mito, transforma-se, por sua vez, em mito (Freitag, A teoria crítica: ontem e hoje, pp. 48-49). 59 Sucessos da técnica, como o domínio da energia atômica e a viagem espacial tripulada, inovações, como a decodificação do código genético e a introdução de tecnologia genética na agricultura e na medicina, decerto modificam a nossa consciência do risco; elas afetam inclusive a nossa autocompreensão ética. Mas de certo modo mesmo essas aquisições espetaculares permanecem dentro de caminhos habituais. Desde o século XVII não se modificou a postura instrumental diante de uma natureza cientificamente objetivada (Habermas, A constelação pós-nacional, pp. 56-57). 60 (...) Marcuse (...) pergunta por que até hoje todas as revoluções foram ‘revo luções traídas’. Parece que um elemento de autoderrota está internalizado naqueles movimentos que lutam pela emancipação. (...) Das revoltas dos escravos no mundo antigo à revolução social de nosso tempo, a luta dos oprimidos terminou no estabelecimento de um novo e ‘melhor’ sistema de dominação; o progresso teve lugar através de um aperfeiçoamento das cadeias de controle. (...) A facilidade com que foram derrotadas exige explicação (Matos, A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo,p. 61). 54
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ternativa viável no instante em que se percebe que, tal como no capitalismo, Thanatos estaria sufocando os instin tos de solidariedade e criatividade (Eros). O horror dos gulags, dos campos de concentração, a Revolução Cultural maoísta, os campos de morte do Khmer Vermelho e as cen tenas de milhares de fuzilamentos ordenados por Fidel Castro são ilustrativos dessa desilusão. A proposta da Escola foi a de recuperar ao homem/indivíduo a condição de sujeito histórico. 61 A recuperação de sua autonomia, de seu senso estético, de seus sentimentos, especialmente da compaixão, o resgate da memória e da imaginação como suporte para o pensamento se tornou opção para frear o movimento de autodestruição reinante na 2a Grande Guerra e no período da Guerra Fria. A arte e a filosofia tornaram-se, então, o único refúgio para o pessimismo frankfurtiano em face da razão instrumental. 62 No que se refere a essa historicidade, temos para nós que os trabalhos recentes de Habermas no tocante ao seu 61 Como Horkheimer, Adorno acredita no indivíduo, e apenas nele. Admite pois que a ação individual não seja, a priori, inútil. “Pensar e agir de modo que Auschiwitz não se repita, que nada parecido aconteça”: esse é, depois de Hitler, o novo imperativo categórico – um imperativo tão obrigatório quanto o de Kant, mesmo que seja difícil encontrar para ele um fundamento absoluto, em razão da recusa de Adorno a qualquer transcendência. Deve-se admitir aqui que a ética, para fazer valer as suas exigências, não tem nenhuma necessidade de Deus nem de fiscal: cabe a cada um de nós – se quisermos dar um sentido à nossa existência – ser vigilante (Delacampagne, História da filosofia no século XX , p. 182). 62 Adorno e Horkheimer enclausuraram-se em” torres de marfim” (a filosofia, a arte), como último refúgio contra a unidimensionalização, o que lhes valeu a acusação de elitistas. Marcuse envolveu-se em lutas concretas, mas sua “grande recusa” tinha dimensões tão visionárias que foi chamado de utopista. [...] Contra todas essas críticas, é possível dizer que têm em comum um compromisso inquebrantável com a emancipação, apesar da solidez do mundo unidimensional, e com a razão, apesar do pessimismo final de Adorno, que exprime não a capitulação da inteligência, mas o reconhecimento da dificuldade para a razão de pensar e pensar-se a si mesma nas condições de alienação absoluta do real fetichizado (Freitag, A teoria Crítica: ontem e hoje, pp. 150-151). 55
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conceito de passado como algo que é reconstruído e que assim modifica as possibilidades do presente e do futuro 63 já estavam presentes na primeira geração da Escola com os escritos de Walter Benjamin. 64 Outra opção, ou seja, a do engajamento político, tornou o pensamento de Marcuse (tanto na obra O homem unidimensional quanto no seu último livro, A dimensão estética) central para o movimento estudantil de 1968, bem como para os movimentos alternativos da geração hippie.65 O movimento contracultural pode ser exemplificado pela metafórica mudança no significado do “V” da vitória, mar63 De fato, reconhece-se ainda algo de evidente mesmo na estrutura coagulada no existencial da historicidade: aberto ao futuro, o horizonte de expectativas determinadas pelo presente comanda nossa apreensão do passado. Ao nos apropriarmos de experiências passadas para a orientação no futuro, o autêntico presente se preserva como local de prosseguimento da tradição e da inovação, visto que uma não é possível sem a outra, e ambas se amalga mam na objetividade de um contexto histórico-receptivo. Ora, há diferentes versões dessa idéia de história da recepção, segundo o grau de continuidade e descontinuidade a ser garantido ou produzido: uma versão conservado ra (Gadamer), uma conservadora-revolucionária (Freyer) e uma revolucioná ria (Korsch). Porém o olhar orientado para o futuro dirige-se sempre do pre sente para um passado que está ligado, enquanto pré-história , a nosso res pectivo presente, como meio da corrente de um destino universal (Habermas, Jürgen, O discurso da modernidade, p. 21). 64 O que Benjamin tem em mente é a idéia altamente profana de que o universalismo ético também tem de levar a sério as injustiças já sucedidas e, evidentemente, irreversíveis; de que há uma solidariedade das gerações com seus antepassados, com todos aqueles que foram feridos pela mão do homem em sua integridade física e pessoal; e de que essa solidariedade apenas pela reminiscência pode ser efetuada e comprovada (Habermas, Jürgen, O discurso da modernidade, p. 22). 65 No horizonte da tese marcuseana, perfila-se assim a esperança de um mundo no qual Eros (o desejo) se libertaria do Logos (a razão repressora), e onde Thanatos (a pulsão suicida, transformada pelo recalque em agressividade para com o outro) seria canalizado para fins simbólicos, de modo a reduzir a massa das tensões conflituais que pesam sobre as relações sociais. Um mundo apaziguado, que permitiria enfim o pleno florescimento das potencialidades humanas, artísticas ou sexuais. Esse sonho será suces sivamente o da beat generation , nos anos 50, e o da geração hippie , dez anos depois (Delacampagne, História da filosofia no século XX , p. 214). 56
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ca registrada de Winston Churchill, durante a 2 a guerra, e esse mesmo “V” assumindo a superação de Eros sobre Thanatos no cumprimento hippie “paz e amor”. Apesar de tênue e quase metafísica, sem apontar qualquer elemento concreto para a efetivação desse dese jo, a proposta de uma renovação do conceito de razão, que absorvesse o sentido epistemológico da sensibilidade, da imaginação e da sensualidade – razão estética – não foi seu único legado. A proposta de preservar o ideal iluminista de emancipação, mesmo que em outras bases, e a abertura interdisciplinar são contribuições incontestáveis da Escola de Frankfurt e que pautarão também toda a obra de Jürgen Habermas.
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Capítulo III Primórdios: A Teoria dos Interesses Imanentes
Por sua vez, Habermas possui uma proposta emancipatória inovadora sob vários aspectos. Inicialmente, compartilha as propostas da Escola de Frankfurt. Na fase inicial de sua obra, que ele mesmo julga até hoje inacabada, propõe uma renovação/complementação do materialismo his tórico marxista, vez que considera que os efeitos da reificação não devem ser analisados no âmbito restrito de uma luta de classes, mas, de um modo geral, nos domínios estruturados comunicativamente das sociedades modernas.1 Como marca registrada desse projeto, lançará mão de recursos marcadamente interdisciplinares, tais como a sociologia e a psicanálise freudiana. Habermas considera insuficiente a visão marxista de subordinar a evolução das instituições sociais exclusivamente ao impacto que o progresso tecnológico traz ao modelo econômico, 2 além de não distinguir com clareza as 1
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Nas sociedades industriais avançadas do Ocidente, a contenção do conflito de classes pelo Estado do Bem-Estar Social põe em movimento a dinâ mica de uma reificação de áreas de ação comunicativamente estruturadas que, embora condicionadas por relações capitalistas, se expressa de maneiras que são cada vez menos específicas às classes (Habermas, Para a reconstrução do materialismo histórico, pp. 327-328). Mas, ao mesmo tempo em que Marx reduz a reflexão ao trabalho, ele ilude se acerca de seu alcance: Marx identifica ‘a supressão-superação como movimento objetivado que recupera a exteriorização em si’ com uma apro priação de forças essenciais, externadas na ação do trabalho sobre um material. Marx reduz o curso da reflexão ao nível do agir instrumental. (...) Para Marx, como para Kant, um critério de sua cientificidade é o progres so metodicamente assegurado do saber. Marx não subentendeu esse pro59
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particularidades entre as ciências da natureza e as ciências humanas. Assim, de modo sintético, definir as relações econômicas em cima de fórmulas matemáticas certamente seria um erro metodológico. Herdeiro das tradições frankfurtianas, ele construiu seu projeto emancipatório, não só sobre estudos notadamente interdisciplinares, mas especialmente com base no paradigma da comunicação. Ele percebe o esgotamento do paradigma da consciência trabalhado por seus antecessores no projeto do esclarecimento. Nas tentativas vistas anteriormente, a relação sujei to/objeto pautou a condição de possibilidade para o conhecimento, na qual a linguagem era entendida como mero requisito para a comunicação. Tinha-se, até então, uma postura objetivante que considerava a linguagem como elemento meramente informativo e que, portanto, a reduzia a um puro aspecto instrumental de designação dos objetos. A tradição de pensamento sempre pressupôs uma isomorfia entre realidade e linguagem: porque há uma essência comum a um determinado tipo de obje tos é que a palavra pode designá-los e assim aplicarse a diferentes objetos que possuem essa essência. A palavra designa, precisamente, não a coisa individual, mas o comum a várias coisas individuais, ou seja, sua essência. Para a metafísica clássica, o conhecimento verdadeiro consiste na captação da essência imutável das coisas, o que, precisamente, é depois comunicado pela linguagem. [...] Já que a linguagem não passa de um reflexo, de uma cópia do mundo, o decisivo é a gresso simplesmente como evidente, mas o avaliou de acordo com o grau de eficácia com que as informações científicas infiltram-se no fluxo da produção, ainda mais por estas não serem, segundo seu próprio sentido, outra coisa que um saber utilizável (Habermas, Conhecimento e Interesse, pp. 60-61). 60
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estrutura ontológica do mundo que a linguagem deve anunciar (Oliveira, Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, pp. 120-121). Nessa perspectiva, o mundo existiria independentemente da linguagem e, essa, por sua vez, cumpriria tãosomente a função designativa. O Tractatus de Wittgenstein, que procurava o ideal de uma linguagem que pudesse retra tar com perfeição/exatidão a estrutura ontológica do mundo, pode ser visto como o último grande esforço da filosofia nessa seara. É interessante observar que será o próprio Wittgenstein, agora já na obra Investigações Filosóficas , aquele que abrirá espaço para a desconstrução do paradigma da consciência. Fazendo duras críticas à sua primeira obra, constata inicialmente que a linguagem não possui função meramente designativa, pois existiriam outras atividades humanas da quais a linguagem se desincumbe. Para ele, o mundo não existiria mais fora da linguagem, sendo vão o esforço de se procurar uma essência das coisas e uma linguagem perfeita que a pudesse refletir com exatidão. O paradigma da consciência refletiria uma verdadeira onipotência da reflexão, na qual a racionalidade subjetiva do homem seria capaz de, não apenas conhecer o universo, mas também ser fonte de legitimidade de qualquer proposição assertória. A partir de então, o projeto do esclarecimento definiria as causas da violência e da dominação das relações humanas, apresentando as diferentes propostas acima sintetizadas como forma de emancipação do homem. Mas, qual critério teria a razão monológica e solipsis ta da filosofia da consciência para encontrar a justeza/correção das propostas de Descartes, Kant, Hegel e Marx? Desde o início de sua caminhada intelectual Habermas vai se esforçar para encontrar a resposta dessa questão. A primeira parte da obra Conhecimento e Interesse é composta justamente por uma análise sucessiva das críticas de 61
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Hegel a Kant, de Marx a Hegel, e finalmente dele próprio a Marx, especialmente no tocante à diferença entre ciência experimental estrita e a crítica.3 Em seguida, a obra apresenta uma evolução no quadro da filosofia nos séculos XIX e XX, na qual são analisados sucessivamente o positivismo, o pragmatismo, especialmen te na versão de Peirce e, por fim, a hermenêutica de Dilthey. Nesse sentido, a questão da auto-reflexão era central, vez que o positivismo a desconhecia, o pragmatismo não a tolerava como meio da análise da atividade comunicativa e a hermenêutica diltheyana não conseguia se livrar dos limites da filosofia da consciência (relação sujeito-objeto). Na década de 1960, embasado na crítica de Adorno ao neopositivismo, 4 que reduzia a filosofia a uma mera análise da metodologia,5 Habermas procurou valorizar o indutivis3
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(...) as ciências da natureza expressam-se pela atividade instrumental (relação sujeito-objeto), as ciências do homem, pela atividade comunica tiva (relação sujeito-sujeito); Mar x não distinguiu interação simbólica e trabalho, não distinguiu, assim, a racionalidade instrumental da racionalidade comunicativa – a do entendimento intersubjetivo, único que permite terminar o processo crítico de auto-reflexão (Rochlitz, Razão e racio nalidade em Habermas , p. 49). O neopositivismo procurava na matemática uma forma de saber seguro no qual se fundaria a lógica. Procurando desligar-se de quaisquer ques tionamentos metafísicos, o neopositivismo de Rudolf Carnap, de Moritz Schlick, de Hans Hahn e Otto Neurath adotou uma interpretação radical da filosofia de Brentano e Husserl, que buscava afastar os elementos intuicionistas da matemática kantiana. Dessa maneira: o caráter comum aos neopositivistas é sua formação científica (em geral matemática ou física) e o fato de terem iniciado de uma reflexão sobre a ciência: partindo da filosofia da ciência, o neopositivismo tornou-se filosofia científica, ou seja, uma filosofia que quer ser ciência, proceder com o método e o rigor da ciência [...][ou seja] excluir não apenas a metafísica, mas também todo discurso sobre as coisas, sobre a realidade (Rovighi, História da filosofia contemporânea do século XIX à neoescolástica, p. 474). Originalmente um membro do Círculo de Viena, Popper defende nesse texto um positivismo bastante sofisticado. [...] Sua postura ‘positivista’ se manifesta na defesa do método, ou seja, naquilo que Horkheimer chamara de “estrutura lógica da teoria tradicional”. Para Popper a “cientificidade” e “objetividade” do pensamento teórico estão asseguradas quando são res-
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mo na ciência, o redescobrir do papel da imaginação do homem/cientista e a inserção da intersubjetividade na comunidade científica (Peirce) para fins de obtenção da correção das assertivas/proposições ali formatadas. 6 O neopositivismo, chamado por Adorno de pensamen to unidimensional, foi alvo das críticas habermasianas basicamente por duas razões. Essa unidimensionalidade se traduziria na desconsideração de qualquer enfoque sobre o sujeito cognoscente, tomando a priori a razão humana, acreditando haver ainda espaço para a neutralidade científica, ou seja, desconhecendo que o processo de conhecimento pudesse ter não apenas sua faceta objetiva, mas seu lado subjetivo. Muito próximo da linha frankfurtiana, Habermas via o modelo positivista como uma herança da revolução copernicana que impôs as exigências metodológicas das ciências empírico-analíticas para as ciências sociais. Nesse sentido, as noções de neutralidade axiológica e objetividade traduzir-se-iam para Habermas como uma desconexão entre conhecimento e interesse, própria de uma ilusão ontológica de que fosse possível conceber-se uma teoria pura, isso é, desconectada dos elementos formativos da realidade. Desse modo, o esforço de Habermas deve ser compreendido dentro da procura por uma renovação das
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peitados os princípios básicos da lógica formal cartesiana: o princípio indutivo ou dedutivo, o princípio da identidade, a intersubjetividade e a coerência interna da teoria etc. Popper está interessado em uma “teoria” que nada mais é que um sistema de sentenças e hipóteses gerais, nas quais se inserem e integram os casos singulares. [...] Privilegia, no entanto, o procedimento dedutivo, não atribuindo valor especial ao dado empí rico (Freitag, A teoria crítica: ontem e hoje, pp. 44-45). Habermas chama de cientismo ou cientificismo a crença na validade exclusiva da ciência empírica e na redução da filosofia a uma mera análi se metodológica do procedimento científico O cientismo exclui qualquer tematização sobre o sujeito cognoscente (Aragão, Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo, p. 75). 63
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bases para se estabelecer kantianamente as condições de possibilidade do conhecer. A primeira proposta de Habermas foi exatamente a de analisar o sujeito cognoscente percebendo que o conhecimento se estabelece de forma condicionada por três formas de interesse: 7 de disposição técnica dos objetos, prático de intercompreensão e de emancipação. Por conseguinte, a teoria do conhecimento não poderia se dar mais a partir de um sujeito transcendental, anterior e prévio a qualquer experiência, mas sim por meio de um sujeito empírico que, de um lado, necessariamente se relaciona com os outros, e, de outro, não se desconecta de seus interesses. Nesse sentido, ele se vale do trabalho de Apel, que substituía a consciência monológica de Kant por meio de uma interpretação trabalhada lingüisticamente em torno da busca pelo consenso como condição de validade para qualquer proposição científica. Assim, a verdade deixaria seu invólucro positivista de uma concepção que corresponde à realidade (isomorfia entre o fato e uma proposição) e assume um caráter público de verdade, ou seja, um consenso duradouro e isento de coações sobre alguma assertiva científica. Por conseguinte, os interesses 8 que guiam o ser-nomundo se tornam o elemento chave para o conhecer. Em 7
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Paradoxal esta tentativa novamente se afigura porque Habermas não se volta à sociologia para, em um refluxo dialético, ativar seu nervo emanci patório, mas introduz Pierce e Dilthey em nível epistemológico. Sobretudo pela recorrência a esse último, Conhecimento e Interesse ratifica a conhecida distinção entre ciências da natureza e ciências do espírito na tradição filosófica alemã (...). Ao correlacionar então tal disjunção categorial com a diferença entre ação instrumental e ação comunicativa, Habermas consegue, sem dúvida, dinamizar em uma versão prático-social o que Dilthey ainda denominara de ciências do espírito. Com base na interação societá ria cumpre às ciências histórico-hermenêuticas exercitar um modus inter pretativo que evidencie o vínculo epistêmico entre conhecimento e interes se (Heck, Introdução à Conhecimento e Interesse, p. 17). Habermas afirma que o “conceito de ‘interesse’ não deve sugerir uma redução naturalista de determinações transcendentais e dados empíricos”.
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outras palavras, qualquer conhecimento, mesmo nas ciências empírico-analíticas, não se desconecta do interesse técnico. A aparente objetividade de experimentos se dissolve no instante em que a ciência percebe que supos tos/hipóteses e condições próprias da experiência não são cópias da natureza e, portanto, determinam com tal consciência o sucesso ou o fracasso da mesma. Assim, ficaria mais fácil perceber a presença constante do interesse prá tico nas ciências histórico-hermenêuticas – aquelas que, ao invés da observação, se preocupam com a compreensão do sentido que abre o acesso aos fatos – e do interesse emancipatório nas ciências de orientação crítica (economia, sociologia e política). Tendo em mente a tese central enunciada acima há, segundo Habermas, três interesses profundamen te arraigados na espécie humana, a saber: um interesse técnico, um interesse prático e um interesse emancipatório. Esses interesses correspondem aos meios de organização social, respectivamente, sob a forma do trabalho, da linguagem e da dominação. Assim, o interesse técnico de predizer ou controlar os acontecimen tos no ambiente natural está enraizado na necessidade de sobrevivência material, instrumentalizada através do trabalho. O interesse prático de assegurar e expandir uma autocompreensão e uma compreensão Interesses são “orientações básicas que aderem a certas condições fundamentais de reprodução e da autoconstituição possíveis da espécie humana: trabalho e interação”. Isto significa afirmar que, em primeiro lugar, as ciências da natureza organizam-se no quadro transcendental da atividade instrumental e, em segundo lugar, que as ciências do espírito organizam-se no quadro transcendental da atividade comunicativa. (...) Tais interesses têm uma forte raiz antropológica. Eles radicam na própria noção de espécie que tem que se reproduzir (Dutra, Delamar José Volpato. Razão e consenso em Habermas. A teoria discursiva da verdade, da moral, do direito e da biotecnologia. Florianópolis: UFSC, 2005, pp. 111-112). 65
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intersubjetiva, necessárias para a vida em sociedade, está fundamentado na capacidade da linguagem de criar relações sociais entre os indivíduos e produzir um mundo comum. O interesse emancipatório em relação a qualquer forma de coação, por sua vez, está vinculado à necessidade de superar todas as formas de dominação impostas aos homens (Aragão, Habermas: filóso fo e sociólogo do nosso tempo, p. 82, nosso destaque). Por conseguinte, a opção habermasiana se funda não mais em uma consciência desconectada das limitações e condicionamentos empíricos, como propunha Kant, mas em uma noção de interesses que em seu conjunto caracterizariam a reprodução da espécie humana, ou seja, a partir de uma visão renovada de uma antropologia transcendental. Logo, o conhecer é entendido por ele como um mecanismo de autoconservação da espécie. De outro lado, é possível afirmar que Habermas iden tificava o neopositivismo como manifestação da chamada razão instrumental que tanto atormentara os frankfurtianos. Uma razão que teria desumanizado a ciência por meio da imposição de uma forma de saber único, baseada no método matemático de descrição da natureza como algo dotado de causalidade, fundada na repetibilidade dos eventos naturais, mecânico, que esperava apenas a intervenção do intelecto humano para ser descrito por meio de leis universais e imutáveis. Por esse raciocínio o conhecimento técnico estaria, de um lado, imunizando-se de qualquer controle democrático e, de outro, transformando as decisões de fundo ético, pragmático e moral, em questões subordinadas/dependen tes apenas do conhecimento de especialistas. O primeiro problema se identifica com a época da teoria. A questão da tecnologia nuclear ter sido desenvolvida sem qualquer acesso crítico da sociedade, fechada em 66
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gabinetes de cientistas e de militares, teria alterado significativamente a importância da razão instrumental, eis que a sobrevivência da raça humana estaria em jogo: um poder técnico insensibilizado pela racionalidade das formas de vida ético-culturais de uma dada sociedade, moldada por interesses e objetivos irrefletidos e não devidamente depurados pelos valores democráticos, poderia agora apagar da face da terra a humanidade. Por outro lado, Habermas vê também o perigo da cien tificação da política como uma tendência cada vez mais real da competência técnica de funcionários/burocratas para a tomada de decisões estratégicas em todas as dimensões sociais, especialmente nos campos militar, sanitário e político-econômico. A política, afastada da autocompreensão cultural, se resumiria à solução de questões técnicas, ou seja, à autocoisificação dos homens. Desse modo, em função do enorme desenvolvimento das mais diversas áreas da ciência, é humanamente impossível que as decisões políticas (práticas) possam ser tomadas sem a colaboração (indução) de especialistas sobre o tema. Mesmo na política, entendida aqui em sentido estri to ao campo da disputa eleitoral, o conhecimento técnico estaria transformando os candidatos em “produtos”, submetendo o eleitorado a ver/votar em candidatos absolutamente “condicionados” pelos ditames dos especialistas em marketing da área. Desse modo, a população de uma forma geral correria o risco da tomada de decisões meramente plebiscitárias em torno de questões absolutamente relevantes, tal como se faz hoje, no Brasil, quando se estabelece as discussões sobre a independência do Banco Central e das agências reguladoras, a legalização da biosegurança que trata, entre outras matérias, do emprego medicinal de células-tronco de embriões humanos e do plantio de soja com sementes transgênicas. 67
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A comunicação entre os mandatários com poder político e os cientistas competentes nas diversas disciplinas que pertencem aos grandes institutos de inves tigação caracteriza a zona crítica da tradução das questões práticas para problemas que se põem em termos científicos e a retroversão das informações científicas para respostas às questões práticas (Habermas, Técnica e ciência como “ideologia” , p. 117).
O problema dessa “ideologia” de imunização da técnica e da ciência a qualquer controle ético por parte da sociedade é retomado por Habermas em sua obra O futuro da natureza humana, voltando agora seus olhos para questões ligadas ao biodireito. Agora, sua perspectiva de conhecimento ligada à noção de reprodução da espécie humana se amplia para indagações relativas à sobrevivência da própria espécie. Preocupado com o que denomina “eugenia liberal”, ou seja, com a possibilidade de o homem passar a “brincar de Deus” com o código genético das gerações futuras, nosso autor se opõe à perspectiva liberal de que a pesquisa científica deva seguir livremente seu curso, sem qualquer controle de natureza ética. 9 A premência dos investidores privados em um negócio que se avizinha como altamente rendoso10 estaria a prejudicar um debate mais rico e neces Práticas da eugenia de aperfeiçoamento não podem ser “normalizadas” de modo legítimo no âmbito de uma sociedade pluralista e democraticamente constituída, que concede a todo cidadão igual direito a uma conduta de vida autônoma, porque a seleção das disposições desejadas a priori não pode ser desatrelada do prejulgamento de determinados projetos de vida (Habermas, O futuro da natureza humana, pp. 91-92). 10 A pesquisa sobre células-tronco totipotentes também se move na perspectiva médica da prevenção de doenças. Pesquisas, indústrias farmacêuticas e políticas que visam tornar o mercado atraente para investidores nessas áreas despertam expectativas de superar em pouquíssimo tempo a escas sez de cirurgias de transplante por meio da produção de tecidos de órgãos específicos a partir de células-tronco embrionárias e, num futuro mais distante, evitar doenças graves, condicionadas monogeneticamente, por meio 9
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sário da esfera pública para fins de um esclarecimento racional e legitimado dos processos normativos que envolvessem o tema, de tal forma que uma nova “espécie de bomba atômica genética” possa, em um futuro próximo, alterar a autocompreensão ética da espécie, com o surgimento de seres humanos “artificialmente prefabricados”. 11 Para tanto, o discurso liberal de “não-limitação” da pesquisa científica ganha reforço considerável em termos de convencimento público, especialmente quando o tema se liga à noção de saúde pública e à perspectiva de cura de inúmeras doenças, tais como o câncer, a paralisia e as degenerativas do córtex cerebral, como a de Alzhaimer. 12 Esse argumento traz em si novos problemas, mas também a provável solução para tais questões: os limites extrede uma intervenção de correção do genoma (Habermas, O futuro da natu reza humana, p. 24). 11 Por que uma pessoa em crescimento não poderia se confrontar com um patrimônio genético manipulado da mesma forma como um inato? Por que, por exemplo, ela não deveria “deixar de lado” uma vocação para a matemática, se prefere a música ou os esportes de alto nível? Certamente, ambos os casos distinguem-se pelo fato de que a preferência dos pais de equipar seu filho com este e não com outro dom entra no âmbito de deci sões imputáveis. A expansão do poder de dispor do material genético de uma futura pessoa significa que cada pessoa, tenha ela sido programada ou não, pode considerar, a partir de então, a composição de seu genoma como resultado de uma ação ou omissão passível de críticas. O adolescente pode pedir explicações ao seu designer e querer saber das razões que levaram este último a decidir dotá-lo de dons matemáticos e recusar-lhe uma capacidade atlética ou um dom musical, que lhe teria sido muito mais útil para a carreira de atleta de alto nível ou de pianista a que ele de fato aspira (Habermas, O futuro da natureza humana, pp. 112-113). 12 O desejo por uma conduta de vida autônoma une-se sempre aos objetivos coletivos de saúde e de prolongamento da vida. Por essa razão, no que concerne às tentativas de uma “moralização da natureza humana”, o olhar da medicina histórica exorta ao ceticismo: “Desde as primeiras vacinações e operações feitas no coração e no cérebro, passando pelo transplante de órgãos e pelos órgãos artificiais, até chegar à terapia genética, sempre se discutiu se já não se havia alcançado o limite em que mesmo os fins tera pêuticos não podiam mais justificar outras tecnicizações do homem. Nenhuma dessas discussões deteve a técnica” (Habermas, O futuro da natureza humana, p. 35). 69
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mamente tênues entre uma eugenia terapêutica e uma eugenia liberal.13 Se, de um lado, a busca em favor da cura de doenças é legítima, de outro, os limites dessa procura são e continuarão a ser um problema, permitindo prever, em breve, tanto um ser humano repleto de próteses ou de microrobôs agindo para impedir o envelhecimento do corpo, como seres projetados com dons e aptidões antecipados pelos seus progenitores. Como exemplo desse “fio da navalha” tem-se a atual prescrição médica de hormônios do crescimento para crianças, na qual o limite entre a cura de uma doença e a vaidade em possuir uma estatura mais elevada acaba se confundindo. Nesse sentido, a evolução da espécie encontraria um novo portal absolutamen te distinto dos padrões naturais trabalhados pelo naturalismo darwiniano. Para Habermas, a legitimidade da ciência exige, para fins de sua concretização, um debate específico que certamente não se resolve em argumentos simplistas, tais como noções por demais abertas e polissêmicas como, por exemplo, a “dignidade da pessoa humana”. Nesse sentido, ele afasta de início qualquer argumento que pretenda garantir a proibição de pesquisas científicas (especialmente a medicinal) por meio de uma visão do direito à vida pré-natal como algo absoluto. Para ele existe uma dualidade conceitual: a 13 Por mais difícil que possa ser, no caso isolado, distinguir intervenções tera pêuticas e, portanto, que visam evitar males, de intervenções eugênicas, de aperfeiçoamento, a idéia reguladora a que obedecem as delimitações almejadas é bem simples. Enquanto a intervenção médica for dirigida pelo objetivo clínico de curar uma doença ou proporcionar uma vida saudável, o médico que realiza o tratamento pode supor o consenso do paciente preventivamente tratado. A subordinação ao consenso transforma a ação orientada por considerações egocêntricas em ação comunicativa. O geneticista que realiza intervenções em seres humanos, enquanto entende que está no papel de médico, não precisa examinar o embrião com a mesma atitude objetivante do técnico que observa uma coisa que será produzida, consertada ou direcionada a um rumo desejado (Habermas, O futuro da natureza humana, pp. 72-73). 70
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dignidade humana, dimensão dos membros de uma comunidade que dirigem uns aos outros ordens e proibições intersubjetivamente reconhecidas e a dignidade da vida humana, vinculada a certas etapas do homem que o excluem do discurso, mas que merecem a atenção do Direito: pessoas por tadoras de deficiência mental, pessoas em coma, os mortos e os embriões, alvo do interesse de pesquisa científica. Fosse a dignidade humana um conceito monolítico, investigações criminais da medicina-legal, pesquisas científicas e o ensino realizado em cima de cadáveres em todas as Faculdades de Medicina estariam proibidos. Tampouco, seu raciocínio pode ser utilizado como mecanismo para liberar inteiramente tais pesquisas, abrindo caminho para uma “dessensibilização do nosso olhar em relação à natureza humana” e para uma eugenia nos termos liberais. Desse modo, inadmissível uma noção de ponderação de valores entre o interesse do embrião e do indivíduo em busca da cura, de forma a privilegiar sempre o segundo. Inadmissível também para nosso autor o argumento, também liberal, da horizontalização dos direitos fundamentais como forma de preservação dos limites da autonomia privada familiar para permitir, em um futuro próximo, verdadeira produção de seres eugenicamente programados pelos pais. Esses argumentos “pecariam” por uma visão objetivante do embrião, que de forma alguma poderia ser visto/entendido como uma coisa manipulável pela ciência ou pela indústria. Desse modo, a eugenia terapêutica seria admissível apenas no instante em que o geneticista “trabalhasse” com o embrião sabendo que ali está presente a vida humana e não uma coisa manipulável por ele. Essa perspectiva deve estar em constante discussão para fins de verificar, no caso concreto, a legitimidade de cada passo dado pela ciência. Nesse sentido, favorável a uma maior ampliação das arenas de discussão sobre os efeitos práticos da ciência e 71
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da técnica como razão instrumental, Habermas aposta em mecanismos de correção do problema, como por exemplo, processos de tradução e de ampliação da acessibilidade da linguagem técnica, tanto para os mandatários do povo quanto para a população em si. Destarte, destaca nos Estados Unidos a manutenção da assessoria política das chamadas scientific agencies e o crescimento do número de revistas e congressos especializados para a troca de informações entre peritos e em favor de uma “tradução” do saber técnico para um saber prático acessível a todos. A necessidade de ampliação do debate público sobre a ciência pode se traduzir sobre diversos ângulos, dos quais, a título de exemplificação, podemos citar em termos simplificados: os estudos de impacto ambiental (EIA) traduzidos para o leigo por meio do Relatório de Impacto no Meio Ambiente (RIMA), o debate de congressistas e magistrados com peritos, as jornadas de trabalho da Corte Constitucional alemã e a colaboração do amicus curae para decisões a respeito da constitucionalidade de normas jurídicas envolvendo campos especializados do conhecimento, seriam exemplos a se acrescentar à proposta de Habermas. Essa forma insidiosa de dominação pela razão instrumental se traduziria em uma “ideologia” de que o progresso não poderia ser questionado ou debatido pela população, dando azo à manipulação por militares com valores humanos ancilosados ou por políticos movidos por ideologias caducas. De forma curiosa, a racionalidade cartesiana que se esforçou por desfazer sua ligação com mitos religiosos, acabou na atualidade por assumir uma condição “mitológica” de “tudo poder” ou de “poder remover céu e terra”. Como o progresso se transformou em regressão, e a razão no seu contrário? [...] a razão e seu contrário, o mito, longe de serem exteriores ou incomensuráveis um ao outro, nunca deixaram de manter relações dia72
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léticas de identificação mútua. Pois, se a razão nasceu ao se emancipar do mito [...] posteriormente, para melhor combater esse mito, ela teve que fazer-se mito, por sua vez. Entre esses “mitos racionais” [...] situa-se em primeiro lugar a crença moderna na onipotência da ciência e da técnica e no caráter ilimitado do seu progresso (Delacampagne, História da filosofia no século XX, p. 176). Além do que foi exposto, é preciso que fique claro que a teoria dos interesses imanentes ao conhecimento traz consigo o projeto habermasiano de transformação da filosofia, retirando-lhe seu caráter contemplativo de “árbitro universal” das ciências. Habermas propõe uma filosofia próativa,14 ou seja, ligada ao processo histórico de evolução da humanidade como instrumento crítico à qualquer forma de dominação, mediando/absorvendo o cotidiano humano e as distintas esferas científicas. 15 Habermas conecta-se com o paradigma da linguagem de uma maneira distinta de Gadamer. 16 Ambos reconhe14 Para Habermas, a idéia democrática nasceu com a sociedade moderna burguesa à qual é necessária, embora esta última tenha desenvolvido incessantemente os meios para retardar sua realização; assim, como sociedade fundamentada sobre a ciência e a técnica, corrompeu as atividades teóricas para desviá-las de seus verdadeiros fins práticos e emancipadores; trata-se, pois – o que é, antes de tudo, uma legitimidade polí tica –, de devolver a essas atividades teóricas seus verdadeiros fins, para o que a filosofia, que não é uma atividade teórica, por essência diferente de qualquer outra, possa atuar e permitir a cada ciência particular praticar uma auto-reflexão crítica (Rochlitz, Razão e racionalidade em Habermas, p. 51). 15 Isso impõe a Habermas a tarefa de não apenas enfatizar o quanto o saber tecnicista, por exemplo, denega o interesse pela emancipação, mas de detectar possiblidades histórico-reais onde esse interesse não é traído pela eficácia prática senão exercido em seu status teórico-orientador (Heck, Introdução a Conhecimento e Interesse, p. 17). 16 A compreensão, e esta é a tese central de Gadamer, não é a transposição para o mundo interior do autor e uma recriação de suas vivências, mas um 73
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cem que a linguagem é o campo de construção da consciência hermenêutica, mas Habermas acrescenta ao aspec to da intersubjetividade os elementos técnico e emancipa tório, indissociáveis em sua opinião, o que viria a ser ponto de discórdia com o primeiro. 17 Segundo sua perspectiva, o conhecimento deve ser encarado como um processo simultaneamente objetivo e subjetivo, já que o mundo não existe independentemente dos sujeitos que o produzem. Por isso mesmo, não é possível separar, ao contrário do que entender-se a respeito da “coisa”. Ora, a linguagem é o meio pelo qual se efetiva o entendimento entre os parceiros sobre a coisa em questão. Toda compreensão é interpretação, e toda interpretação se desenvolve no seio da linguagem, [...].Toda compreensão se faz no seio da linguagem, e isso nada mais é do que a concretização da consciência da influência da histó ria. Há, assim, uma relação essencial para Gadamer entre compreensão e linguagem. A tese de que a essência da tradição é caracterizada por sua dimensão lingüística (sua “lingüicidade”) tem, para Gadamer, conseqüências hermenêuticas. A tradição lingüística [...] não se trata, simplesmente, aqui, de algo que restou do passado. Tradição quer dizer entrega, trans missão (Oliveira, Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contem porânea, p. 233). 17 Hans-Georg Gadamer é um discípulo de Heidegger que contribuiu decisivamente para a discussão em torno da necessidade de se adotar métodos específicos para as ciências sociais, seguindo e ampliando os pressupostos da vertente hermenêutica inaugurada por Dilthey, que distinguia entre explicar e compreender. Há, entretanto, uma grande diferença entre a posição de Habermas e a de Gadamer, já que, se para o segundo os dois métodos acima explicados se excluem e, portanto, questões (filosóficas) relativas à verdade e as (científicas) referentes ao método devem ser radicalmente separadas; para o nosso autor não é possível buscar a verdade sem se utilizar do método, pois há que se ter critérios para poder distinguir entre uma compreensão válida e outra não válida nas ciências sociais.(...) Ainda podemos mencionar o fato de que, se para Gadamer a linguagem é a única dimensão possível de compreensão da realidade humana, para Habermas, além da dimensão hermenêutica da linguagem, a compreensão do humano exige a consideração do trabalho e da dominação, pois elas também são características universais da humanidade (Aragão, Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo, p. 79). 74
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propõe Gadamer e toda a tradição hermenêutica, verdade (como categoria determinante da abordagem filosófica) e método (como traço essencial da atividade científica). (...) Para o nosso autor, os compromissos, valores, regras, convenções, atitudes e esquemas de referência são tão constitutivos da ciência quanto as proposições protocolares, que exprimem dados observacionais de base (Aragão, Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo , pp. 79-80). Habermas acredita que apesar de um conceito central, a linguagem deve se conectar com o trabalho e o interesse emancipatório, vez que a comunicação livre e sem coação depende das condições de sobrevivência do indivíduo/personalidade e da coletividade. Logo, condições técnicas e o problema da superação da dominação seriam reciprocamente condição e condicionante da linguagem. De outro lado, percebendo que o conhecimento é um processo reciprocamente objetivo e subjetivo, seria preciso uma melhor compreensão dos aspectos psicológicos e sociológicos do sujeito da ciência, vez que o solipsismo do sujeito cognoscente da filosofia da consciência já não era capaz de fazer face ao caráter necessariamente intersubjetivo do conhecimento. Para tanto, vai lançar mão da psicanálise como modelo aplicável para todas as ciências críticas. 18 18 [...] no plano da metapsicologia os conflitos são compreendidos sob o ponto de vista da defesa, e as estruturas da personalidade entendidas de acordo com a relação recíproca do Eu, Id, Superego, esta história é apre sentada esquematicamente como um processo formativo que segue seu curso através das diversas etapas da auto-objetivação e que possui seu telos na auto-consciência de uma biografia, cuja apropriação se efetua pela auto-reflexão. Somente a pressuposição da metapsicologia permite uma generalização sistemática daquilo que, de resto, permaneceria mera história. A metapsicologia fornece uma série de categorias e de hipóteses fundamentais que, a rigor, englobam complexos de formação da linguagem e de patologia do comportamento (Habermas, Conhecimento e Interesse, pp. 274-275). 75
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Para ele, Marx fora incapaz de perceber tanto a dominação quanto a ideologia como formas de deformação na comunicação. Logo, não percebeu a necessidade de cen trar sua crítica na atividade comunicativa. E, para tanto, o caminho encontrado por ele para proceder a uma autoreflexão da linguagem sobre a linguagem seria por meio de uma hermenêutica crítica calcada na psicanálise freudiana. A última parte de Conhecimento e Interesse se dedica à proposta de uma metapsicologia ampliada que pudesse analisar a deformação da atividade comunicativa como elemento essencial à concepção da gênese das instituições e da dominação. Essa teoria sofreu diversos questionamentos e o detalhamento dos mesmos fugiria da proposta do presente trabalho. A principal delas insiste no fato de que a mesma estaria mal elaborada, vez que, até então, Habermas considerava que a superação da coação estaria na capacidade do homem examinar/refletir sobre os problemas trazidos pela relação trabalho/linguagem/emancipação, que Horkheimer e Adorno traduziram na sua concepção de razão instrumental. Contudo, tal reflexão não passaria também de um esforço solipsista e, portanto, incapaz de produzir compreensibilidade, correção, verdade e sinceridade na produção científica, como originalmente pensava o próprio Habermas. Outra objeção, e que levaria a uma autocrítica do autor, foi o fato de que a psicanálise, que busca como ciência um aprimoramento de uma reflexão interior, pudesse servir de parâmetro para as ciências críticas, que certamente possuem uma dimensão social muito mais complexa, como bem observou Gadamer. 19 19 No caso da psicanálise, o sofrimento do paciente e seu desejo de curarse dão apoio e fundamento à ação terapêutica do médico, que coloca em jogo sua autoridade, e que instiga sem coagir para elucidar as motivações recalcadas. Nessa situação, há uma subordinação voluntária de um 76
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De qualquer maneira, o leitor pôde observar que a crí tica de uma desconexão da obra de Habermas com o paradigma hermenêutico contemporâneo ainda poderia subsis tir, vez que, apesar de ter restado claro desde o início de sua trajetória, o esforço de nosso autor em superar os limi tes do paradigma da filosofia da consciência, até esse momento, tal não havia se dado com sucesso. Mas, ver-se-á que a busca pelo aprimoramento é um dos traços mais marcantes de Habermas.
ao outro, que constitui a base ou serve de supor te. Na vida social, ao con trário, a resistência do adversário e a resistência ao adversário são uma premissa admitida por todos. (...) No campo social, bem como no político, falta essa base especial da análise pela comunicação, a cujo tratamento o doente entrega-se voluntariamente, porque reconhece que está doente (Gadamer apud Rochlitz, Razão e racionalidade em Habermas, p. 54). Cf. tb. Aragão, Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo, p. 86. 77
Capítulo IV A Maturidade Intelectual: A Teoria do Agir Comunicativo
A solução para o impasse a que chegou sua proposta emancipatória foi encontrada apenas duas décadas mais tarde, com a teoria do agir comunicativo, com a qual pre tendeu construir uma validade do sentido intersubjetivamente constituída. Em outras palavras, Habermas se dá conta de que seu primeiro esforço foi incapaz de superar os limites do paradigma da consciência. Exatamente por isso, aproximando-se dos trabalhos de Karl-Otto Apel, vai se aprofundar em uma teoria pragmática da linguagem, com a qual conceberia a filosofia como um processo de cooperação dialética, coletiva e interdisciplinar. Para tanto, vai se utilizar de uma hermenêutica macroscópica capaz de examinar no âmbito social os meios de integração social produzidos pela comunicação lingüística, incorporando no seu esforço elementos econômico-sociológicos, pedagógicos, antropológicos, psicolingüísticos, psicanalíticos, dentre outros. No tocante ao aspecto econômico-sociológico, sua obra conta com a contribuição de Desencanto com o capita lismo de Durkheim e de Lukacs, bem como as teorias da modernidade de Parsons e Weber podem ser aqui inseridas. Com vistas à antropologia, Habermas busca na perspectiva de George Herbert Mead, com sua concepção de aceitação de papéis idealizados, suporte para o princípio de universalidade, no qual o sujeito que critica/postula do ponto de vista moral se coloca necessariamente no lugar daqueles necessariamente envolvidos com a crítica/propo79
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sição. Tudo, obviamente, (re)trabalhado sob a perspectiva da linguagem. Sob esse ponto de vista, a noção do aprendizado surge como uma das facetas mais importantes da linguagem. Destarte, no âmbito pedagógico, ele combina a psicopedagogia de Piaget,1 que supõe ser o processo de aprendizagem constituído de estágios sucessivos e progressivos de complexidade ascendente, 2 com o construtivismo pós-pia1
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A “l’âge de nature du nourrison” corresponde ao estágio “sensório-motor” no modelo psicogenético de Piaget e colaboradores. Baseado em observações detalhadas das formas de agir e reagir dos seus três filhos, Piaget reconhece nesse primeiro estágio seis momentos ou graus de evolução da inteligência infantil. De meros reflexos iniciais, a inteligência prática da criança vai construindo esquemas de ação complexos, nos quais as sensações vindas do mundo exterior são “retrabalhadas”, coordenadas e siste matizadas permitindo, no final desse estágio psicogenético, esquemas de ação que fazem supor um conhecimento prático de causalidade, constância de objeto, quantidade etc., mesmo que esse conhecimento ainda não adquira as formas de representações simbólicas ou conceituais (Freitag, Piaget e a filosofia, pp. 18-19). Em analogia aos estágios de consciência, por ele introduzidos, Piaget dife rencia um estágio motor da repetição de simples regularidades individuais, um estágio egocêntrico, no qual a criança “brinca sozinha com um mate rial social”, imitando, na sua fantasia, o modo de brincar dos adultos. Trata se de um terceiro estágio da orientação inicial na cooperação com outros, no qual a criança, no entanto, ainda não está em condições de “criar uma lei que fosse válida para a totalidade dos casos possíveis”. Há, finalmente, um quarto estágio, no qual a criança domina operações formais, podendo, por isso, abstrair de situações isoladas, de modo que consiga ter prazer em “prever todo tipo de casos possíveis e de codificá-los”. É característico para o comportamento de aplicação nesse estágio “a capacidade da criança de pensar formalmente, isto é, de familiarizar-se com as regras da razão, de tal modo que consegue aplicá-las a qualquer caso aleatório, inclusive a casos puramente hipotéticos” (Günther, Teoria da Argumentação no direito e na moral, p. 177 ). Exemplos ilustrativos desses estágios podem facilitar sua compreensão. Desse modo, o balançar o chocalho de uma criança de um lado para outro ilustra a etapa motora. No segundo estágio, encontram-se as bonecas e os brinquedos nos quais as crianças adoram “entrar”, tais como em uma casinha ou uma cabana. No terceiro estágio, as famosas brincadeiras de pique-esconde ou de cabra-cega. No último, o estágio caracterizado pelo estabelecimento de regras universais, encontra-se a expressão “estou de autas”, significando que o participante está temporariamente “fora do jogo”, seja ele qual for.
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getiano do francês Henri Wallon e do russo L. S. Vigotskii, suportando a visão de uma aprendizagem necessariamen te intersubjetiva, na qual a noção de pertencimento a grupos/coletividades e a visão recíproca/respeitosa da relação entre aquele que ensina e aquele que aprende se tornam a essência do magistério. A psicogênese da individualidade reconstrói etapas da formação da consciência da pessoa humana desde a primeira, o autismo, passando pelo egocentrismo e chegando após diversos degraus à autonomia. Esses estágios são uma seqüência necessária representando uma estrutura cognitiva, lingüística e moral específica. Assim, a criança inicia esse percurso sem sequer dar-se conta de si mesma (fase autista). Depois, passa a crer que o mundo e os outros giram em torno de si (egocentrismo) até perceber a necessidade de se afirmar como indivíduo para se relacionar adequadamente com os demais 3. Tal visão se soma à absorção da psicanálise de Freud, já anteriormente adotada pela Escola de Frankfurt, bem como à psicologia genética de Kohlberg e sua perspectiva 3
A psicogênese, neste modelo, é promovida pela criança. É o processo de formação do EU. É da criança que partem a necessidade, o desejo e a iniciativa de elucidar (para si mesma e para os outros) seu ponto de vista, de se fazer entender e de ser compreendida. Piaget, fortemente influenciado por Freud, admitia, como este, um estágio original do recém-nascido, caracterizado pelo “autismo”. Nesse estágio, o pensamento da criança permanece inconsciente e vinculado a imagens e alucinações. Não existe na criança o desejo de comunicar-se, pois ela se contenta consigo mesma, é associal. O egocentrismo infantil caracteriza o estágio intermediário da psicogênese, que substitui o autismo e antecede o pensamento comunicável e socializado. É a estrutura de pensamento típica da criança de 02 a 07 anos. Caracteriza-se pelo fato de a criança ainda não distinguir seu ponto de vista dos pontos de vista alheios, projetando seus próprios desejos no meio que a cerca. Não existe diferenciação entre o eu e o meio, sendo este último povoado pelos desejos, representações e necessidades da criança. O sujeito não se diferencia suficientemente do mundo exterior, projetando nesse mundo o conteúdo de sua subjetividade (Freitag, Bárbara. Dialogando com Habermas, pp. 115/116). 81
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evolutiva do homem como forma de aprendizagem, 4 indo de uma sociedade primitiva na qual as ações humanas eram avaliadas estritamente do ângulo de sua conseqüência (moralidade pré-convencional), passando por uma sociedade antiga/medieval, na qual essas ações tinham por balizamento sua conformidade com um sistema de regras previamente instituído pela autoridade da tradição (moralidade convencional) e chegando finalmente em uma sociedade moderna, em que não só as ações mas, principalmente, as normas de conduta precisavam ser justificadas do ponto de vista de princípios universais (moralidade pós-convencional).5 Por essa via, ele estrutura uma teoria da evolução social6 centrada no exame dos diferentes níveis de raciona4
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Kohlberg compreende a passagem de um para outro estádio como um aprendizado. O desenvolvimento moral significa que a pessoa em cresci mento transforma e diferencia de tal maneira as estruturas cognitivas já disponíveis em cada caso que ela consegue resolver melhor do que ante riormente a mesma espécie de problemas, a saber, a solução consensual de conflitos de ação moralmente relevantes (Habermas, Consciência moral e agir comunicativo, p. 154). No nível pré-convencional, são diferenciados dois estágios: o estágio 1 (a moralidade heterônoma) e o estágio 2 ( individualismo, intenção instru mental e troca ). Neste nível a criança é sensível às regras sociais, distingue o bem e o mal, o certo e o errado, mas interpreta essas caracterizações ou como conseqüências físicas ou hedonísticas da ação (punição, recom pensa, troca de favores), [...]. No nível convencional, Kohlberg diferencia o estágio 3 (expectativas interpessoais, relações e conformidade interpes soal) e estágio 4 (sistema social e consciência). Neste nível é considerado valioso em si preservar as expectativas da família, do grupo ou da nação a que pertence o sujeito. Trata-se não da conformidade mas da lealdade para com as expectativas pessoais e de ordem social. [...]. No nível pósconvencional ou nível regulado por princípios, são distinguidos os estágios 5 (contrato social ou utilidade e direitos individuais) e 6 ( princípios éticos universais). Neste nível, há o esforço visível de definir valores e princípios morais que tenham validade independentemente da autoridade de grupos ou pessoas que os sustentem e independentemente da identificação do sujeito com as pessoas do grupo (Freitag, Os itinerários de Antígona: a questão da moralidade, p. 203). Kohlberg distingue, de início, seis estádios do juízo moral que se podem compreender nas dimensões da reversibilidade, universalidade e reciproci-
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lidade da constituição das instituições sociais. Habermas ligará os elementos do construtivismo pedagógico de Piaget com o estruturalismo genético de Lawrence Kohlberg, de modo a demonstrar a evolução da humanidade como forma de aprendizado propiciado pela linguagem. (...) a transformação das instituições sociais deve ser buscada na evolução daquelas estruturas de racionalidade, cada vez mais complexas, que partem de níveis de consciência moral pré-convencional, avançam para o convencional e, posteriormente, deste para o pós-convencional. No primeiro nível, as ações e seus motivos são avaliados apenas por suas conseqüências; no segundo, pela sua conformidade a um sistema de normas; e, no terceiro, os sistemas de normas devem ser justificados a partir de pontos de vista universalistas. [...] Tais instituições nucleares teriam sido, nas sociedades primitivas, o sistema de parentesco; dade como uma aproximação gradual das estruturas da avaliação imparcial e justa de conflitos de ação moralmente relevantes: (...) Nível A. Nível (...):o direito é a obediência literal às regras Pré-convencional. e à autoridade, evitar o castigo e não fazer mal físico. (...) . (...):o que é direito é seguir as regras quando for de seu interesse imediato. O direito é agir para satisfazer os interesses e necessidades próprias e deixar que os outros façam o mesmo. (... ) Nível B. Nível Convencional. (...): o direito é desempenhar o papel de uma pessoa boa (...) estar motivado a seguir regras e expectativas. .. (...): o direito é fazer o seu dever na sociedade, apoiar a ordem social e manter o bem-estar da sociedade ou do grupo. (...) Nível C. Nível Pós-Convencional (...) : (...) o direito é sustentar os direitos, valores e contratos legais básicos de uma sociedade, mesmo quando entram em conflito com as regras e leis concretas do grupo. (...) . (...): no que diz respeito ao que é direito, o estádio 6 é guiado por princípios éticos universais: (...) a igualdade de direitos humanos e o respeito pela dignidade dos seres humanos enquanto indivíduos. Estes não são meramente valores reconhecidos, mas também são princípios usados para gerar decisões particulares [...] (Habermas, Consciência moral e agir comunicativo, pp. 153-155, nosso destaque). 83
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nas sociedades antigas, o Estado; e, nas sociedades capitalistas, a economia (Aragão, Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo , p. 141). Tudo isso antecipa o que de essencial ocorre nessa nova fase: a noção de que a linguagem é um mecanismo heurístico essencial à compreensão e ao conhecimento humanos.7 A teoria dos jogos lingüísticos de Wittgenstein e a teoria dos atos da fala da Escola de Oxford, onde se des tacam Austin e Searle, são essenciais à obra habermasiana. A concepção de que a linguagem a despeito de possuir uma dimensão atemática e a priori na sua aprendizagem e manuseio, tal como jogos, fruto da obra do primeiro, se soma ao estudo da pluridimensionalidade dos últimos, especialmente na dualidade da fala como comunicação e da fala como ação, ou seja, nas dimensões constatativa e performativa. Habermas percebe que a comunicação em si através da linguagem pressupõe sempre uma tentativa de consenso e de acordo mínimo entre os homens. Mesmo admitindo que a linguagem possa ser empregada como forma de manipulação alheia, seja para mentir ou para enganar, anota que se não fosse o interesse primário nesse entendimento recíproco a linguagem perderia o sentido e mesmo seu uso instrumental se tornaria impossível. 8 7
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O que vai mudar em Habermas? A partir de 1970 muda a sua posição com relação à psicanálise: ela não é mais tomada como modelo de orientação para a crítica da ideologia. Ela passa a servir apenas como ilustração. Além disso, a possibilidade de uma ciência emancipatória, na qual ele continua acreditando, vai ser apoiada na linguagem, porque Habermas descobre que o interesse em emancipação está inserido na própria estrutura da linguagem, em especial, nos atos de fala voltados ao entendimento e ao consenso (Siebeneichler, Razão comunicativa e Emancipação, p. 87). A prática cotidiana orientada pelo entendimento está permeada de idea lizações inevitáveis. Estas simplesmente pertencem ao medium da linguagem coloquial comum, através do qual se realiza a reprodução de nossa vida. É verdade que cada um de nós pode decidir-se a qualquer momento
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Dessa forma, a comunicação pressupõe o acordo sobre pretensões de validade expostas durante os atos de fala. Dessarte, a linguagem exige sempre a ‘visão do outro’, a constatação de que nossas opiniões, valores, idéias não são únicas e nem tampouco necessariamente as melhores. Logo, a linguagem traduz uma possibilidade de aprendizado, de refinamento, de evolução e do aprimoramento humano. Ademais, permite a superação da unilateralidade cognitiva contida nos conceitos a priori da razão prática kan tiana ou os conceitos abstratos da fenomenologia hegeliana, no instante em que busca a construção da validade no diálogo e em uma racionalidade intersubjetiva. A teoria do agir comunicativo constitui um esforço múltiplo do autor de construir simultaneamente uma teoria da racionalidade, uma teoria da sociedade e uma teoria da modernidade em cima de uma metalinguagem dos processos comunicativos, como desdobramento do projeto filosófico de uma pragmática universal. Somente mais tarde, em “Direito e Democracia”, e especialmente em “Verdade e Justificação”, a transcendentalidade de sua proposta começará a ser afastada em favor de uma proposta contrafática do discurso lingüístico. Tal esforço deveria ser capaz de constituir uma pragmática universal, que teria por pretensão identificar reconstrutivamente a racionalidade das regras que qualquer falante, independentemente da língua que utilizasse, deveria dominar para fins de se comunicar adequadamen te com alguém e, ao mesmo tempo, construir uma teoria da a manipular os outros ou a agir abertamente de modo estratégico. Contudo, nem todos conseguem portar-se continuamente dessa maneira. Caso contrário, a categoria “mentira” perderia seu sentido e, no final de tudo, a gramática de nossa linguagem desmoronaria. A apropriação da tradição e a socialização tornar-se-iam impossíveis. E nós teríamos que modificar os conceitos que utilizamos até aqui para caracterizar a vida social e o mundo social (Habermas, Passado como futuro, p. 98). 85
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modernidade que pudesse centrar-se na procura de uma validade do sentido intersubjetivamente constituída. Nas suas palavras: La pragmática universal tiene como tarea identificar y reconstruir las condiciones universales del entendimiento posible.9 Habermas importa de Austin10 a concepção de ação performativa, isto é, a idéia pela qual um ato de linguagem possa mais do que simplesmente comunicar uma idéia (ato locucionário), mas também realizar uma ação diferente da própria comunicação (ato ilocucionário). Como exemplo desse efeito denominado ilocução, Austin 11 menciona a expressão “aceito” pronunciada pelos nubentes numa cerimônia de casamento. Diferentemente da dimensão locucionária da fala, que se limita à afirmação de algo sobre determinado objeto, a dimensão ilocucionária faz a comunicação assumir seu espectro performativo por meio da expressão de um apelo, de uma ameaça, de uma advertência, de uma intenção 12 ou de um compromisso.
Habermas, Teoria de la acción comunicativa: complementos y estudios previos , p. 299. 10 A necessidade que tem Austin de abordar a distinção entre os atos cons tatativos e os realizativos a partir da distinção básica entre dizer e fazer, faz com que este filósofo da linguagem proceda à classificação das ações associadas a um proferimento lingüístico, ou seja, os atos de fala, separando-os em três espécies: os atos locucionários, os atos ilocucionários e os perlocucionários (Duarte, Teoria do Discurso, p. 129). 11 Austin, Quando dizer é fazer , pp. 24-25. 12 É considerando o próprio ato locucionário que Austin vai descobrir uma outra dimensão do ato de fala que ele denomina ato ‘ilocucionário’: no ato de dizer algo, fazemos também algo. Para poder determinar que ato ilocucionário está em questão, temos de nos perguntar como o ato ilocucioná rio é usado, isto é, se para informar, levantar uma questão, exprimir uma intenção, fazer um juízo, apelar, ameaçar etc. Assim, em nosso exemplo: o jacaré é perigoso, conhecemos bem a significação. Porém podemos perguntar sobre sua força ilocucionária, isto é, se a pessoa que disse isso pretendia informar, ou emitir um juízo, ou advertir etc. (Oliveira, Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, pp. 158-159). 9
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Já o conteúdo perlocucionário 13 seria uma “[...] tercei ra dimensão, ou um terceiro sentido, do ato de linguagem, que diz respeito às conseqüências ou aos resultados particu lares, não convencionais, do ato de linguagem”.14 Além disso, executando atos locucionários e ilocucionários podemos realizar ainda outra ação: é a terceira dimensão do ato de fala, que Austin denomina ato ‘perlocucionário’, isto é, provocar, por meio de expressões lingüísticas, certos efeitos nos sentimen tos, pensamentos e ações de outras pessoas. A expressão lingüística pode ser proferida tendo como finalidade produzir esses efeitos, isto é, exercer influência, de uma forma determinada (convencer, levar a uma decisão, levar a um protesto etc.) (Oliveira, Reviravolta lingüístico-pragmática na filoso fia contemporânea, pp. 159-160).15 Diante da expressão “o leão é perigoso”, a dimensão locucionária se divide em seu aspecto fonético (produção de sons), sintático/semântico (pela correção da frase na língua portuguesa) e assertiva (pela afirmação de uma carac terística do ente predicado). De outro lado, a dimensão ilocucionária exige para sua explicitação tanto da predicação quanto da intersubjetividade contextual. Veja: no tocante à 13 [...] Ao dizer a alguém: ‘prometo ajudá-lo na sua mudança’, estou fazendo uma promessa e ao fazer isso também posso surpreender, agradar ou assustar a pessoa a quem estou prometendo ajuda. Provocar estes efeitos ao se expressar é o que Austin chama de ato perlocucionário [...] (Alexy, Teoria da Argumentação, p. 59). 14 Cf. Magalhães, Filosofia analítica: de Wittgenstein à redescoberta da mente, p. 122. 15 O compreende (sucesso locucionário) e aceita (sucesso ilocucionário) a ordem de dar dinheiro a Y. O dá dinheiro a Y (sucesso perlocucionário) e alegra com isso a mulher dele (sucesso perlocucionário) (Habermas, Pensamento pós-metafísico, p. 73). 87
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predicação, a frase tem um sentido quando dirigida ao animal e outro, quando encaminhada pelo torcedor do Vila Nova, tradicional time de futebol da cidade de Nova Lima/MG, cujo símbolo é o leão (do Bonfim). 16 Quanto à intersubjetividade, o contexto da fala pode fazer a expressão ter sentidos diversos, como uma advertência ou um juízo informativo. Por fim, a dimensão perlocucionária, que age como conseqüência das dimensões anteriores, pois se traduz pelos efeitos, sentimentos e ações provocados em outros. No caso, uma reação seria a de afastar-se da jaula do leão, e outra, no caso do time de futebol, receio ou boce jos nos torcedores dos times adversários. A Escola de Oxford leva adiante a perspectiva aberta por Wittgenstein de superação da semântica tradicional, compreendendo que a linguagem é uma forma de ação, um “agir comunicativo”. Enquanto Wittgenstein procede de maneira assistemática equiparando a linguagem a um jogo, na qual o participante aprende as regras jogando, Searle aprofunda a questão ao anotar a existência de duas espécies de regras: as regulativas e as constitutivas. As “regulativas” são as regras de comportamento que existem independentemente delas. As “constitutivas” são aquelas que entram na própria constituição desses comportamentos, por exemplo, as regras do jogo de xadrez – sem elas não há jogo de xadrez, o que não é o caso, por exemplo, das regras de boa educação, que regulam comportamentos já existentes (relações intersubjetivas) (Oliveira, Reviravolta lingüístico-prag mática na filosofia contemporânea, p. 180).
16 O sentido ainda seria outro se o ente figurado fosse o “leão do imposto de renda”. 88
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Essas regras vão permitir a Habermas tanto conceber os elementos da ‘situação ideal de fala’ quanto, mais tarde, na teoria discursiva, perceber a conformação das regras constitutivas do Direito na forma de um código binário. A primeira interessa mais de perto por hora. Habermas distingue entre atos de fala ordinários e uma forma especial de comunicação, o discurso, que consiste na fala destinada à fundamentação de pretensões de validade das opiniões e normas sociais. 17 O discurso pressupõe essa ‘situação ideal de fala’ que, sinteticamente, exige como pré-requisitos contrafactuais imanentes à própria linguagem: a simetria de posições e a igualdade na oportunidade de fala; a idéia subjacente de ego e alter ego (como pressuposto da diferença e do pluralismo); o medium lingüístico [supondo uma dimensão sintática (gramaticalmente adequada à compreensão), uma dimensão semântica (o entendimento das expressões) e uma dimensão pragmática (que será adiante vista no que concerne ao conceito de mundo da vida)]; ilimitação de tempo para se obter o acordo; e, a sinceridade, ou seja, a crença naquilo que se fala e o intui to de levar o outro a uma decisão racionalmente motivada e a ausência de coação interna ou externa na execução do discurso. Desse modo, a ‘situação ideal de fala’ não deve ser associada a algum evento humano qualquer de modo a se aferir se as condições estão ou não sendo cumpridas. Ao 17 Este quadro consiste basicamente na contraposição entre duas formas de comunicação: 1) Atos comunicativos, através dos quais os participantes aceitam ingenuamente, sem discussão, pretensões de validade que for mam o consenso básico. 2) Discursos ou discussões, nas quais os partici pantes não trocam informações, não conduzem ou realizam ações, nem fazem experiências novas, mas procuram argumentos aptos a fundamentar pretensões de validade (Siebeneichler, Razão Comunicativa e Emancipação, p. 96). 89
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contrário, o discurso deve ser percebido em termos con trafactuais da antropologia humana, ou seja, condição de possibilidade para a comunicação. Nesse sentido, Habermas toma emprestado a fundamentação racional de Apel para a mesma, eis que a ‘situação ideal de fala’ não pode ser negada sem que haja uma contradição performativa daquele que a contesta. Dito de outro modo, qualquer um que deseje negar sustentando a ‘idealidade’ da mesma de plano já erra em dois pontos: primeiro porque parte de uma relação ideal/real de fundo platônico já de há muito superada na obra; depois, porque se alguém contesta uma assertiva ele já entrou no discurso sem se dar conta disso. O requisito da sinceridade, por sua vez, não deve ser confundido com ingenuidade ou ‘idealismo’. Sinceridade implica crença ou descrença em alguma coisa. No contexto discursivo permite a distinção entre duas formas de condução em uma comunicação: o agir comunicativo orientado pela procura de um entendimento que preenchesse as expectativas recíprocas de comportamento e, de outro lado, o agir racional teleológico, que se divide entre o agir instrumental e o agir estratégico que: [...] é aquele tipo de ação instrumental em que uma pessoa, em seu agir, utiliza outra pessoa como meio (instrumento) adequado à realização de um fim (sucesso pessoal). [...] Tal tipo de ação implica que aquele que age tentando influenciar perlocucionariamente um terceiro o faça da perspectiva de terceira pessoa, ou seja, sem se envolver diretamente com aquela, vez que a toma não como sujeito, mas como objeto. [...] o agir estratégico funciona por intermédio do engodo que o agente produz, indicando ilusoriamente um fim como objetivo de sua ação, mas dese90
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jando subjetivamente fim diverso (Galuppo, Igualdade e diferença, pp. 124-125).18 O embate fundamental em torno da integração de sociedades essencialmente plurais se daria entre o princípio da solidariedade social, promovida pelo agir comunica tivo das pessoas em busca de um consenso verdadeiro (racional), na qual predominam as formas tradicionais de integração social, e, de outro lado, pelo princípio da integração sistêmica, colonizada pela monetarização e pela burocratização da espontaneidade moral e estética da sociedade pelo emprego do chamado agir racional teleológico, na qual se situam o agir instrumental e o agir estratégico. O agir comunicativo é voltado para o entendimento mediado pela linguagem em busca de normas que possam valer obrigatoriamente e que preencham legitimamente as expectativas recíprocas de comportamento aceitas por no mínimo dois interlocutores. 19 O segundo modo de agir 18 Da citação, pode observar-se que Galuppo concebe os conceitos de ação estratégica como uma espécie da ação instrumental. Mais tarde ver-se-á que tal conclusão não se sustenta na própria obra de Habermas. Dessa forma, um conceito mais consentâneo do que se entende por ação estra tégica vem da obra do próprio Habermas: [...] na ação estratégica, um ator procura influenciar o comportamento de outro por meio de sanções ou da perspectiva de gratificação a fim de fazer com que a interação continue conforme o primeiro deseja, ao passo que, na ação comunicativa, um ator procura racionalmente motivar outro, acreditando no efeito compulsório da locução (Bindungseffekt) da oferta contida no ato de fala (Bronner apud Aragão, Habermas: filósofo e sociológo do nosso tempo, p. 115). 19 O conceito do agir comunicativo está formulado de tal maneira que os atos do entendimento mútuo, que vinculam os planos de ação dos diferentes participantes e reúnem as ações dirigidas para objetivos numa conexão interativa, não precisam de sua parte ser reduzidos ao agir teleológico. Os processos de entendimento mútuo visam a um acordo que depende do assentimento racionalmente motivado ao conteúdo de um proferimento. O acordo não pode ser imposto à outra parte, não pode ser extorquido ao adversário por meio de manipulações: o que manifestamente advém graças a uma intervenção externa não pode ser tido na conta de um acordo. Este assenta-se sempre em convicções comuns. A formação de convicções 91
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racional, o agir racional teleológico absorve mas não se confunde com a noção de racionalidade instrumental da Escola de Frankfurt. O agir instrumental de um indivíduo que levanta/aciona o interruptor para iluminar a sala de uma casa claramente se distingue do agir estratégico do subordinado que elogia seu superior tão-somente para obter uma promoção. Enquanto o agir instrumental se vale de utensílios para alcançar um controle mais eficiente do meio circundante, o outro – o agir estratégico – pauta-se pela escolha racional de preferências em um processo de adequação de meios a certos fins. 20 Habermas centra sua teoria na distinção entre os meros atos comunicativos e os discursos como mecanismo de construção de pretensões de validade 21 para fins de pode ser analisada segundo o modelo das tomadas de posição em face de uma oferta de ato de fala. O ato de fala de um só terá êxito se o outro aceitar a oferta nele contida, tomando posição afirmativamente, nem que seja de maneira implícita, em face de uma pretensão de validez em princípio criticável (Habermas, Consciência moral e agir comunicativo, p. 165). 20 Por [...] entendo ou a ou a escolha racional (agir estratégico) ou, uma combinação das duas. A acção instrumental orienta-se por regras técnicas que se apoiam no saber empí rico. [...] O comportamento da escolha racional orienta-se por que se baseiam num saber analítico. Implicam deduções de regras de pre ferência (sistemas de valores) e máximas gerais; estas proposições estão deduzidas de um modo correcto ou falso. A acção racional teleológica rea liza fins definidos sob condições dadas; mas, enquanto a organiza meios que são adequados ou inadequados segundo critérios de um controlo eficiente da realidade, a depende ape nas de uma valoração correcta de possíveis alternativas de comportamento, que só pode obter-se de uma dedução feita com o auxílio de valores e máximas (Habermas, Técnica e ciência como “ideologia” , p. 57, nosso destaque e acréscimo). 21 A pretensão de compreensibilidade, de inteligibilidade, da mensagem contida nos proferimentos comunicativos; a pretensão de verdade do conteúdo proposicional da mensagem, isto é, dos proferimentos cognitivos refe rentes ao mundo objetivo, que realizamos através de atos de fala constatativos; a pretensão de correção, de justeza do conteúdo normativo e valo rativo da mensagem, isto é, dos proferimentos referentes ao mundo social, que se dão através de atos de fala regulativos e valorativos; a pretensão de 92
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obtenção de um consenso verdadeiro, no qual a solidariedade seria condição indispensável para o êxito do mesmo. 22 Habermas acredita que a legitimidade de qualquer deliberação normativa só pode ser checada em face das condições ideais de fala, pressupostos à comunicação, distinguindo, com isso, um consenso racional de um pseudo-consenso. Logo, o critério de legitimidade do discurso se restringiria ao procedimento, afastando-se, pois, de qualquer noção de conteúdo a priori.23 Em sua proposta original, a teoria da competência comunicativa pretendia, pois, o resgate discursivo de pre tensões de validade normativas considerando a necessária precedência das ações comunicativas 24 sobre as estratégi sinceridade e autenticidade manifestada em proferimentos referentes ao mundo subjetivo e que se dão através de atos de fala expressivos (Sibeneichler, Razão comunicativa e Emancipação, p. 96). 22 Hablo de acciones comunicativas cuando las interaciones sociales no quedan coordinadas a través de cálculos egocêntricos del proprio êxito por parte de cada actor individual, considerado aisladamente, sino mediante operaciones cooperativas de interpretación de los participantes. En la acción comunicativa los actores no se orientan primariamente por su pro prio êxito, sino por la produción de un acuerdo que es condición para cada participante en la interación pueda perseguir sus próprios planos de acción (Habermas, Teoria de la acción comunicativa: complementos y estudios previos , pp. 453-454). 23 A ética do Discurso não dá nenhuma orientação conteudística, mas sim, um procedimento rico de pressupostos, que deve garantir a imparcialidade da formação do juízo. O discurso prático é um processo, não para a produção de normas justificadas, mas para o exame da validade de nor mas consideradas hipoteticamente. [...] Pois, é possível depreender do processo discursivo as operações que Kohlberg exige para juízos morais no plano pós-convencional: a completa reversibilidade dos pontos de vista a partir dos quais os participantes apresentam seus argumentos; a universalidade, no sentido de uma inclusão de todos os concernidos; final mente, a reciprocidade do reconhecimento igual das pretensões de cada participante por todos os demais (Habermas, Consciência moral e agir comunicativo, pp. 148-149). 24 No uso da linguagem orientada pelo entendimento, ao qual o agir comunicativo está referido, os participantes unem-se em torno da pretensa validade de suas ações de fala, ou constatam dissensos, os quais eles, de co93
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cas em uma ‘situação ideal de fala’, na qual, como se viu anteriormente, algumas condições deveriam estar preenchidas. Frise-se: a) Igualdade de chance no emprego dos atos de fala comunicativos por todos os possíveis participantes do discurso, incluindo aqui o direito de proceder a interpretações, fazer asserções e pedir explicações de detalhamentos sobre a proposição, dissentir, 25 bem como de empregar atos de fala regulativos; 26 b) Capacidade dos participantes de expressar idéias, intenções e intuições pessoais. Chegando ao desenvolvimento específico da teoria do agir comunicativo, Habermas vai procurar reconstruir todo o entendimento racional possível, introduzindo o conceito de mundo da vida como uma dimensão pragmática da linguagem. Para ele, a sociedade se constitui simultaneamente de um mundo da vida, na qual, de um lado, ampliam-se formas mum acordo, levarão em conta no decorrer da ação. Em qualquer ação de fala são levantadas pretensões de validade criticáveis, que apontam para o reconhecimento intersubjetivo. [...] A idéia da resgatabilidade de preten sões de validade criticáveis impõe idealizações, produzidas pelas pessoas que agem comunicativamente (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, pp. 36-37). 25 Quem rejeita uma oferta inteligível de ato de fala contesta a validade do proferimento sob pelo menos um desses três aspectos da verdade, da correção e da sinceridade. Com esse ‘não’, ele dá expressão ao fato de que o proferimento não preenche pelo menos uma de suas funções (da representação de estados de coisas, do asseguramento de uma relação interpessoal ou da manifestação de vivência), porque ele ou bem não se harmoniza com o mundo dos estados de coisas existentes, ou bem com o nosso mundo de relações interpessoais legitimamente ordenadas, ou bem com o mundo particular das vivências subjetivas (Habermas, Consciência moral e agir comunicativo, p. 168). 26 Atos de fala regulativos compreendem o direito de opor-se, de permitir, de proibir ou de ordenar. 94
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de solidariedade, comunicação e entendimento, e, de outro, pululam sistemas cada vez mais controlados por imperativos funcionais e formais, materializados por estímulos de procura pela eficiência/sobrevivência concorrencial em prol de atividades lucrativas, bem como do hedonismo corpora tivo da burocracia. [...] o mundo da vida constitui o horizonte de uma práxis do entendimento mútuo, em que os sujeitos que agem comunicativamente procuram, em conjunto, chegar a bom termo com seus problemas cotidianos. Os mundos da vida modernos diferenciam-se nos domínios da cultura, da sociedade e da pessoa. A cul tura articula-se – segundo os aspectos de validade das questões sobre verdade, justiça e gosto – nas esferas da ciência e da técnica, do direito e da moral, da arte e da crítica da arte. As instituições básicas da sociedade (como a família, a Igreja e a ordem jurídica) geraram sistemas funcionais que (como a economia moderna e a administração do Estado) desenvolvem uma vida própria por meios de comunicação próprios (dinheiro e poder administrativo). As estruturas da personalidade, por fim, nascem de processos de socialização que equipam as jovens gerações com a faculdade de orientar-se de maneira autônoma num mundo tão complexo (Habermas, Verdade e Justificação, p. 320, nosso destaque). O conceito habermasiano de mundo da vida é bastan te complexo,27 pois envolve o horizonte de consciência 27 El mundo de la vida aparece como um depósito de autoevidencias o de convicciones incuestionadas, de las quelos participantes en la comunicácion hacen uso en los procesos cooperativos de interpretación (Habermas, Teoria de la acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista , vol. II, p. 176). 95
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individual e da coletividade na qual esse indivíduo se insere. Superando o pensamento husserliano, 28 de modo a afas tar o conceito de sua visão ainda estacionada na filosofia da consciência, Habermas o percebe como um horizonte que compreende a cultura, as tradições, sua percepção de pertencimento a um determinado grupo ou alguma instituição social, bem como a capacidade do indivíduo de agir e de se comunicar. 29 O mundo da vida pessoal de alguém incapaz de ler ou de escrever é bastante diferente daquele versado nas letras, o que permite dizer que a linguagem define/circunscreve o mundo da vida individual. A dimensão transcendente de contexto do mundo da vida constitui um pano de fundo 30 no qual a humanidade se 28 Edmund Husserl é o precursor de uma fenomenologia (ontologia pura das essências) atemporal, que se distancia da dimensão histórica do conceito hegeliano, capaz de fornecer à filosofia alicerces cientificamente rigorosos. Para tanto, retoma o conceito transcendental das cogitationes (pensamentos) cartesianos de forma original, pois os mesmos não aparecem como um “eu” empírico, mas como uma consciência “pura” ( epochè) dotada da capacidade de buscar objetivamente as essências das coisas. Como exemplo, não a cor vermelha de uma dada maçã, mas a cor vermelha em si. Essa consciência “evoluiria” no momento de sua constituição para escapar ao solipsismo kantiano. Finalmente, em uma terceira etapa do seu idealismo transcendental, Husserl sustenta que “ [...] a consciência redescobre em si mesma, aquém das idealidades culturalmente produzidas pelo trabalho do pensamento científico, o “mundo vivido” ( Lebenswelt) , necessariamente intersubjetivo, que coincide com o “solo” originário no qual essas idealidades se enraízam ( Delacampagne , História da filosofia no século XX, p. 31). 29 O mundo da vida, que está centrado em processos de comunicação voltada (sic) ao entendimento e ao consenso, necessita de uma infra-estrutura comunicativa, de uma tradição cultural. Esta é ameaçada, e até deformada, por duas tendências entrelaçadas que se reforçam mutuamente: a rei ficação induzida sistemicamente, ou seja, a racionalização unilateral da praxis comunicativa normal e o empobrecimento cultural, que leva à morte de tradições culturais importantes. Disto resulta que a crise atinge todos os setores: a arte, o direito, a religião, a política etc. (Siebeneichler, Razão Comunicativa e Emancipação, p. 40). 30 A tensão ideal que irrompe na realidade social remonta ao fato de que a aceitação de pretensões de validade, que cria fatos sociais e os perpetua, 96
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insere de forma intersubjetivamente compartilhada, o que transforma aquele que participa de um discurso em alguém que “está-envolvido-numa-comunicação-lingüística-voltada-para-o-consenso”. Apesar de próximo do horizonte hermenêutico de Gadamer,31 o conceito em exame, originalmente, diferia profundamente do primeiro. Isso porque o horizonte gadameriano era concebido por Habermas como um problema limitador do processo de conhecimento. Após o conhecido debate entre os autores, Habermas recua de seu ponto de vista e assume a noção gadameriana como uma pré-condição para a comunicação, não alterando essencialmente a distinção e a indispensável interlocução da dimensão transcendente e empírica do mundo da vida. Esta última permite ao indivíduo uma relação crítica e interativa com a repousa sobre a aceitabilidade de razões dependentes de um contexto, que estão sempre expostas ao risco de serem desvalorizadas através de argumentos melhores e processos de aprendizagem que transformam o contexto. Tais qualidades estruturais da socialização comunicativa [...] permitem entender por que não é possível estabilizar definitivamente expectativas de comportamentos sociais, que dependem de suposição de validade falíveis e precárias. [...] É certo que os argumentos só valem quando confrontados com ‘standards’ de racionalidade dependentes de um contexto que funciona como pano de fundo; [...] (Habermas , Direito e democracia, vol. I, p. 57). 31 O círculo hermenêutico representa o momento ontológico da compreen são, onde há um enlace dos movimentos da tradição (histórica), do intér prete (fusão de horizontes) e da pré-compreensão. Daí em diante, a com preensão vai se moldando a partir da consciência histórica do intérprete e do mostrar-se do objeto. O intérprete não acede a um objeto que lhe é previamente dado, mas participa na própria constituição do seu sentido, a partir de uma estrutura de mediação, própria da compreensão como um fenômeno histórico, no qual a linguagem mediatiza o passado e o presente através do sujeito e objeto. Configura-se, aqui, uma interferência recí proca entre a tradição e o movimento do intérprete. Tal processo herme nêutico não é um círculo que se fecha ao redor de si. É, antes de tudo, um acontecimento em espiral, na qual um elemento continua dialeticamente a se determinar e se formar no outro (Diniz, Constituição e hermenêutica constitucional, pp. 220-221). 97
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primeira, de forma a possibilitar uma evolução pessoal do mesmo em termos de posições e opiniões pessoais. Dessa maneira, de uma forma metafórica, a pessoa pode caminhar, mas dentro de um horizonte (gadameriano) lingüístico, ou seja, dentro da dimensão do arco de suas pernas (dimensão transcendente do mundo da vida). Por conseguinte, o conceito de mundo da vida não pode ser entendido como um dado a priori, visto que sua dimensão empírica permite o rompimento/superação de condicionan tes impostos por esse pano de fundo lingüístico-cultural que envolvia os interlocutores do discurso. Entre o mundo da vida como ressource de agir comunicativo e o mundo da vida como produto desse agir introduz-se um processo circular, no qual o sujei to transcendental desaparecido não deixa nenhuma fresta. A guinada lingüística havida na filosofia preparou os meios conceituais através dos quais é possível analisar a razão incorporada no agir comunicativo (Habermas, Pensamento Pós-metafísico, p. 53). O mundo da vida não apenas é o pano de fundo que permite o entendimento, mas algo que absorve o risco do dissenso, equilibrando a dimensão de validade da fala e a faticidade das diferentes formas de vida concretas, o que confere à fala enorme força estabilizadora/integradora das relações sociais. Los agentes comunicativos se mueven siempre dentro del horizonte que es su mundo de la vida; de él no pueden salirse.32 Mas, além desse elemento, Habermas percebe, como já visto, que a “situação ideal de fala” ainda exigiria con trafaticamente outras condições, tais como a ausência total 32 Cf. Habermas, Teoria de la acción Comunicativa: Crítica de la razón funcionalista, vol. II, p. 179. 98
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de coação interna ou externa ao discurso, um medium lingüístico comum33 que permitisse que os interlocutores entendessem adequadamente os termos do debate, bem como um conhecimento ilimitado sobre o tema em questão e tempo também ilimitado para que o consenso pudesse surgir de modo que todos os interessados 34 pudessem concordar com seu conteúdo final. 35 Obviamente o próprio autor percebe que sua teoria deixava aberto o flanco para críticas no tocante a seu cará ter transcendental, o que dará causa à seqüência de sua obra através da teoria discursiva do Direito. Contudo, mesmo antes disso, a despeito de perceber que na realidade os debates reais fogem às condições ideais de fala, ele 33 A idealidade da generalidade do significado marca os contextos do agir comunicativo na medida em que os participantes não conseguem formu lar a intenção de entender-se entre si sobre algo no mundo, nem atribuir às expressões utilizadas significados idênticos, caso lhes seja vedado apoiar-se numa linguagem comum (ou traduzível). E os mal-entendidos só podem ser descobertos como tais, quando esta condição estiver preenchida. A suposição da utilização de expressões lingüísticas com significado idêntico pode às vezes parecer errônea na perspectiva de um observador, e, inclusive, parecerá sempre errônea à luz do microscópio dos etnometodólogos; entretanto tal pressuposto é necessário, ao menos contrafactual mente, para todo o uso da linguagem orientada pelo entendimento (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 38). 34 Para mim, é todo aquele cujos interesses serão afetados pelas prováveis conseqüências provocadas pela regulamentação de uma prática geral através de normas. E é toda tentativa de entendi mento sob pretensões de validade problemáticas, na medida em que ele se realizar sob condições de comunicação que permitam o movimento livre de temas e contribuições, informações e argumentos no interior de um espaço público constituído através de obrigações ilocucionárias. Indiretamente a expressão refere-se também a negociações na medida em que estas são reguladas através de procedimentos fundamentados discur sivamente (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 142, grifo do autor). 35 A legitimidade do direito apóia-se, em última instância, num arranjo comunicativo: enquanto participantes de discursos racionais, os parceiros do direito devem poder examinar se uma norma controvertida encontra ou poderia encontrar o assentimento de todos os possíveis atingidos (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 138.) 99
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entende que tais parâmetros não apenas podem perfeitamente colaborar para o exame da verdade, correção e autenticidade dos acordos tomados no plano privado ou institucional, mas também são pressupostos inerentes à própria comunicação.36 Com isso, rompe com a perspectiva platônica de um distanciamento entre ideal e real, entre teoria e prática, ínsita ao discurso daqueles que criticam a teoria do agir comunicativo. Isso inicia sua ruptura com Apel, que permanecerá aferrado à noção de um metadiscurso transcendental, fazendo com que a 2 a geração da escola de Frankfurt se dividisse radicalmente. Ademais, Habermas sustenta que o discurso prático pressupõe tais condições, ainda que estas sejam contrafá ticas.37 Exemplo interessante pode ser dado no tocante ao medium lingüístico. Esse requisito supõe que os interlocu tores do discurso falem por meio de uma linguagem de conhecimento comum. Contudo, é por demais sabido que o exame de um dicionário levará à conclusão de que toda palavra, da língua portuguesa ou de qualquer outra, tem múltiplos significados. Ou seja, que a possibilidade de 36 Com isso eu quero apenas dizer o seguinte: quando eu falo de idealizações, não me refiro a idéias que o teórico solitário erige contra a realidade tal qual é; eu apenas tenho em mente os conteúdos normativos encontráveis em nos sas práticas, dos quais não podemos prescindir, porque a linguagem, junto com as idealizações que ela impõe aos falantes, é constitutiva para as for mas de vida socioculturais (Habermas, Passado como futuro, p. 98). 37 Quem argumenta sempre já pressupõe duas coisas: primeiramente, uma comunidade de comunicação real, da qual ele mesmo se tornou membro através de um processo de socialização, e, em segundo lugar, uma comu nidade de comunicação ideal que, em princípio, estaria em condições de entender adequadamente o sentido de seus argumentos e de avaliar defi nitivamente a verdade. O notável e dialético dessa situação reside, no entanto, no fato dele pressupor, de certa forma, a sociedade ideal na real, ou seja, como possibilidade real da sociedade real” (Apel, O a priori da comunidade de comunicação e os fundamentos da ética. O problema de uma fundamentação racional na era da ciência. Estudos de moral moder na, p. 155). 100
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enganos e de desentendimentos é uma realidade. Isso se explica exatamente pela dificuldade da palavra significan te “segurar” o significado correspondente, fato que se agrava com o tempo, que faz com que palavras caiam no desuso e desapareçam do vocabulário popular, dando lugar ao surgimento de outras. Ora, mesmo com a permanente possibilidade de desentendimentos, as pessoas iniciam discussões com a pretensão de que o ouvinte vai entender exatamente aquilo que o falante pretendia expressar. Habermas esclarece-nos dizendo que não podemos considerar a situação ideal um fenômeno empírico, um consenso fático. Tampouco é um simples cons tructo racional. Ela constitui uma suposição ou antecipação contrafática que fazemos necessariamente sempre que entramos num processo discursivo argumentativo: “A situação de fala ideal não é um fenômeno empírico, nem tampouco um simples constructo, mas uma suposição que fazemos inevitavelmente quando entramos em discursos” (Siebeneichler, Razão Comunicativa e Emancipação, p. 104, nosso destaque). É possível afirmar, sem qualquer perspectiva transcendentalista, tal como em Apel, que se pode reconstruir esse conjunto de pressupostos contrafactuais que a “situação ideal de fala” representa, como critério crítico para se avaliar a legitimidade do acordo/consenso firmado pela Sociedade ou pelo Estado, fazendo com que a mesma assuma a condição de uma medida crítica de avaliação/diferenciação entre consensos verdadeiros/legítimos e falsos/ilegítimos. O problema da modernidade estaria justamente na incapacidade das esferas de solidariedade social agirem comunicativamente em razão da colonização do mundo da vida pelos sistemas burocrático e econômico. Nesse sentido, é importante ilustrar/descrever sinteticamente o fenômeno em questão. 101
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O pós-segunda grande guerra trouxe inúmeras novidades nas sociedades contemporâneas. A primeira delas se manifesta como uma verdadeira desilusão humana com a própria condição de ser humano. 38 O genocídio de um milhão e meio de armênios pelos turcos entre os anos de 1912 e 1915 não foi fato isolado no século vinte. Os campos de concentração nazistas e os gulags soviéticos do período stalinista assassinaram perto de vinte milhões de seres humanos. O emprego desnecessário das bombas atômicas em Hiroxima e Nagasaki, bem como o bombardeio aliado à cidade alemã de Dresden e o uso indiscriminado de napalm no Vietnã são exemplos de uma barbárie até então sem precedentes na história. Mas esses exemplos ainda podem ser acrescidos por outros. A violência ideológica da ditadura maoísta durante a chamada “Revolução Cultural”, os massacres étnicos na Bósnia, no Kosovo e na África, a tortura das prisões de Fidel Castro, Pinochet e das ditaduras latino-americanas, como na ditadura militar no passado recente brasileiro, se somam às lutas pela autodeterminação dos povos colonizados, das quais podem ser lembradas, a título de exemplificação, tanto a guerra da Argélia quanto a da Indochina, na qual pereceram mais de um milhão de pessoas. 38 (...) uma era que ‘inventou’ a câmara de gás e a guerra total, o genocídio levado a cabo pelo Estado e o campo de extermínio, a lavagem cerebral, o sistema de segurança estatal e a vigilância pan-óptica de populações inteiras. Esse século ‘ produziu’ mais vítimas, mais soldados mortos, mais cidadãos assassinados, civis mortos e minorias expulsas, mais torturados, violentados, famintos e mortos de frio, mais prisioneiros políticos e fugitivos do que se pôde imaginar até então. Os fenômenos de violência e bar bárie determinam a assinatura dessa era. Desde Horkheimer e Adorno até Baudrillard, de Heidegger até Foucault e Derrida, os traços totalitários da era ficaram gravados na estrutura mesma dos diagnósticos do período. Isso me permite perguntar se essas interpretações negativistas, que se dei xam aprisionar pelo terror das imagens, eventualmente não deixam esca par o outro lado dessas catástrofes (Habermas, A constelação pós-nacio nal, p. 60). 102
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A violência armada não foi a única nesse período. Nunca se assistiu a uma época em que tantas pessoas morreram de fome. Recentemente, a Coréia do Norte e a África foram palco de cenas indizíveis de fome, algo com que parcela significativa de brasileiros convive no seu dia a dia. E, é importante que se diga, nunca o mundo produziu tanto alimento e nunca se desperdiçou tanto. A violência contra as minorias é uma constante. Por mais que se façam convenções internacionais de proteção aos negros, às mulheres, às crianças, aos idosos, aos homossexuais e aos portadores de deficiência, a verdade é que se está muito longe da superação mínima de tais problemas. O panorama exposto tem gerado duas espécies de reação na modernidade. A primeira delas pode ser retratada pela indiferença dos grandes e ricos condomínios urbanos, pelo vidro fechado dos automóveis diante de crianças pedintes (o que certamente pode traduzir receio da violência e não apenas indiferença) e pelo desinteresse pelas questões políticas (o que certamente pode traduzir descrença e revolta para com a estrutura política atual, na qual prevalecem o descaso, a infidelidade partidária e a corrupção). Essa indiferença tem gerado também um profundo interesse por novas formas de religião, especialmente as orientais. No Brasil, as religiões têm se envolvido mais com questões espirituais, em especial as seitas protestantes e a facção carismática do catolicismo, e menos com os problemas sociais. A fundação de comunidades esotéricas isoladas dos problemas mundanos tem sido cada vez mais uma opção de vida para as pessoas. Esse comportamento tem muitas vezes explicado o descompromisso com o exercício de direitos fundamentais, tal como aqueles ligados à soberania política do cidadão através do direito de voto, visto como uma obrigação insuportável em países, como o Brasil, em que esse direito é também um dever. Da mesma forma, 103
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o crescente uso de entorpecentes pode ser enquadrado na perspectiva de desconexão do homem com a realidade. Nesse sentido, a desilusão com o homem pode ser traduzida pelo niilismo de Nietzsche e, no pós-segunda guerra, tanto pelo pessimismo das artes quanto pelo movimen to existencialista. O primeiro resulta no teatro do absurdo de Ionesco, de Adamov, e de Beckett. No cinema, pela incomunicabilidade de Antonioni e de Renais. A recusa à civilização era o ponto estético em comum do período. Por sua vez, o existencialismo (filosofia da existência), que tem suas origens remotas na fenomenologia de Husserl, nas obras neokantianas e em Kierkegaard, 39 sendo esse último o melhor exemplo, pois se opõe à concepção hegeliana de que todos os fatos e ações humanas estão predeterminados na consciência e na lógica humanas. Logo, não há nenhum destino traçado para ninguém, não há um projeto básico para o homem. Nascido em Copenhague em 1813, Sören Kierkegaard foi um severo crítico tanto do idealismo quanto do hegelianismo, por entender que ambos perdiam a perspectiva da importância do indivíduo. Em relação ao último, Kierkegaard se irritava com a noção de “verdades objetivas”, pois o que interes39 Kierkegaard foi o primeiro a responder à questão ética e fundamental sobre os êxitos e fracassos da própria vida com um conceito pós-metafísico do “poder ser si mesmo”. Para os filósofos seguidores de Kierkegaard, como Heidegger, Jaspers e Sartre, esse protestante atormentado pela questão luterana sobre o Deus misericordioso é certamente um osso duro de roer. Na discussão sobre o pensamento especulativo de Hegel, Kierkegaard deu à questão sobre a vida correta uma resposta se bem que pós-metafísica , porém ainda assim profundamente religiosa e, ao mesmo tempo, teológica. No entanto, os filósofos existencialistas, comprometidos com um ateísmo metódico, reconheceram em Kierkegaard o pensador que reformula a questão ética de um modo surpreendentemente inovador e a responde de maneira substancial e com formalismo suficiente – este últi mo no sentido de um legítimo pluralismo ideológico que proíbe qualquer tutela em questões genuinamente éticas (Habermas, O futuro da natureza humana, pp. 8-9). 104
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sava era a busca pela verdade de cada uma das pessoas. Assim, por mais importante que seja a correção de uma equação matemática, diante da morte, ninguém de nós estará ocupado com a sua solução ou com a divulgação de sua importância. Da mesma forma, se alguém está se afogando, não vai se preocupar se a bóia que lhe atiram é da cor azul ou vermelha, por mais objetiva que possa ser a informação. Nesse sentido, o homem pode passar por três estágios na sua vida. O primeiro, denominado “estético”, faz com que o homem fique escravo de seus próprios prazeres, envolvido naquilo que é belo ou agradável aos sentidos. Contudo, esse estágio “pode” levar ao homem a uma “situação existencial” – daí a origem do existencialismo – de medo e de vazio, que lhe permitirá, caso ele assuma, a decisão de “saltar” para outro estágio, dito “ético”. Esse estágio se aproxima muito das noções da moralidade kantiana. Mas, Kierkegaard acredita que o homem só pode se reconciliar com sua própria vida se saltar para o terceiro estágio, o “religioso”, na qual a fé precede a razão. Profundamente cristão, acredita que ou Jesus ressuscitou na Páscoa ou não. Mas se ele realmente o fez, isso é algo tão espetacular que ninguém pode ficar imune às suas conseqüências. Para Jean Paul Sartre (1905-1980) – outro existencialista que bem ilustra a época – não há nenhum Deus que tenha preconcebido o homem e, portanto, não existe uma natureza humana a ser respeitada a priori. O homem está livre e essa liberdade faz com que ele seja o único responsável pelo que faz de si mesmo. Dessa forma, suas ações ou omissões não serão premiadas ou punidas respectivamen te no céu/inferno cristãos. Essa liberdade envolve riscos em cada decisão. E tais riscos envolvem paixão e medo (a náusea sartreana) trazidos pela incerteza. Em Heidegger, essa angústia se amplia pela certeza da provisoriedade humana, que existe somen te entre o nascimento do homem e sua morte inevitável. 105
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Logo, devemos existir no aqui e agora, devendo nos afastar de tudo o quanto seja supérfluo, estando constantemente preparados para a morte. 40 É essa angústia que revela o ser autêntico e que permite o homem governar a si mesmo. 41 Em Sartre (O ser e o nada), essa angústia se amplia, pois não se liga apenas à noção da provisoriedade humana, mas à própria condição do Ser Humano, responsável não apenas por si, mas pelo próprio mundo, exigindo, pois, um engajamento absoluto do homem contra toda forma de injustiça, levando-o não apenas a denunciar o antisemitismo (Reflexões sobre a questão judaica), o colonialismo, o sexismo, mas também transformando-o em um dos primeiros intelectuais europeus a se preocupar com o destino dos países do terceiro mundo. A colonização do mundo da vida se traduz também por alterações sérias no processo de comunicação pública, que subverte qualquer elemento estético mais refinado em favor de uma sociedade massificada e consumista de bens culturais descartáveis. A cultura e a arte, definidos por Habermas como formas de estilo e de expressão não-discur sivas, pré-lingüísticas ou extralingüísticas, ritualizadas, 40 Á pré-sença dos outros, com sua totalidade alcançada na morte, também constitui um não-mais-estar-presente, no sentido de não-mais-ser-no mundo. Morrer não significa sair do mundo, perder o ser-no-mundo? Levando-se ao extremo, o não-ser-mais-no-mundo do morto ainda é tam bém um ser, na acepção do ser simplesmente dado de uma coisa corpórea. Na morte dos outros, pode-se fazer a experiência do curioso fenômeno ontológico que se pode determinar como a alteração sofrida por um ente ao passar do modo de ser da pré-sença (a vida) para o modo de não-ser mais-pre-sente. O fim de um ente, enquanto pré-sença, é o seu princípio como mero ser simplesmente dado (Heidegger, Ser e tempo, vol. II, p. 18). 41 A forma específica da temporalidade do homem enquanto cuidado só se revela, plenamente, na morte: (...). Somente da morte compreende-se um poder-ser-total que, entretanto, nunca se realiza: ou ainda não somos totais, ou então, quando totais, não mais nos podemos compreender. A temporalidade emerge, assim, como o sentido do ser do eis-aí-ser e, por conseguinte, como o horizonte de sentido do próprio ser (Araújo, Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea, p. 211). 106
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cunhadas de modo plástico, cujo conteúdo significativo significati vo per formativo ou pré-predicativo ainda está, por assim dizer, à espera de uma explicação através do medium lingüístico,42 deixam com isso de se tornar elementos de educação popular e se tornam formas de entretenimento que colaboram para a perda da capacidade crítica da população, colocando-a em uma posição passiva de consumir/digerir tudo que interessa à indústria em questão. O interesse em torno do lucro impede o aparecimento de programas de rádio e de televisão que permitam um aprimoramento do senso crítico do indivíduo, seccionando a população entre uma minoria de experts e de intelectuais e a grande massa de consumidores, em um processo espiral em detrimento do senso estético e em favor da concorrência capitalista. O amadorismo esportivo desaparece, desaparece, os artistas passam a depender mais de seus marchands do que de seu talento, a cultura popular cede espaço para uma única e globalizada forma cultural que, em países de terceiro mundo, como o Brasil, chega até mesmo a ‘ameaçar’ a língua pátria, por meio da linguagem universal do pop, do rock e de Hollywood. Dessa forma, os estímulos da integração sistêmica do dinheiro e da burocracia trabalham no sentido de homogenização cultural, sufocando formas de vida pluralizadas em favor de um modelo universalizado de consumo. Essa colonização assume uma última faceta, a de refuncionalizar refuncionalizar a autonomia pública e a autonomia privada. Primeiro, Primeiro, pela privatização da esfera pública, tal como visto acima na questão cultural, mas especialmente na distorção da democracia representativa. Esse processo pode ser ilus trado pela transformação de partidos políticos, que por definição deveriam ser canais de interlocução entre o governo e as diferentes formas de postura político-ideoló42 Cf. Habermas, Era Habermas, Era das transições , p. 88. 107
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gica, em balcões de negociação de interesses particulares de parlamentares e de lobistas. Os políticos profissionais tornam os partidos em instrumento de manobra de seus próprios interesses, deixando a massa dos indivíduos à margem de qualquer deliberação. O sistema burocrático se descola do governo e dos interesses coletivos e passa a auto-reproduzir interesses classistas por meio de uma lógica kafkaniana, especialmente na perspectiva de que o serviço público deveria servir ao público e não se servir dele, por meio de ações corporativistas cada vez mais ativas. A complexidade da burocracia contemporânea é de tal natureza que os estamentos da burocracia criam procedimentos próprios fundados em relação de conveniência pessoal em detrimento da racionalidade legal.43 No Brasil, a obtenção de um benefício de aposentadoria ou um atendimento médico impõe um sofrimento dantesco ao cidadão. Enquanto na Austrália um empresário gasta cerca de 48 horas para processar a documen tação para fins de legalização legali zação para a entrada em funcionamento de sua empresa, por aqui o prazo chega a 150 (cento e cinqüenta) dias. A burocracia ganha vida própria e se descola de sua razão de ser. No Estado de Minas Gerais, quase 15% (quinze por cento) de todas as leis votadas pelo parlamento estadual tem como conteúdo o regramento do serviço público ou trata de vantagens dos servidores estaduais. 44 Depois, o fenômeno pode ser exemplificado pela socialização dos prejuízos pela sociedade pela gestão temerária de empresas. Essa questão é comum em países como o Brasil. Os pacotes de auxílio ao empresariado nacional, seja pela criação de ‘cartórios’ materializados por políticas 43 Cf. WEBER, Economia WEBER, Economia e Sociedade Sociedade,, vol. 2, pp. 117-153. 44 Cf. Jornal Estado de Minas publicado Minas publicado em 21 de junho de 2004, página 07. 108
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de protecionismo econômico irracionais, 45 ou, como recen temente, pacotes de empréstimos empréstimos gigantescos para o sis tema financeiro por organismos organismos governamentais têm sido comuns por aqui. Hoje, fala-se em empréstimos milionários para grandes redes de televisão e para companhias de aviação, todas elas deficitárias. Desde a crise de 1929, quando o preço do principal produto de nossa economia à época, o café, foi atingido gravemente, o intervencionismo estatal tem procurado afastar o risco do empreendimento privado às custas do erário público. Já a autonomia privada pode se refuncionalizar em favor da pública. Foi esse fenômeno que fez também com que a família burguesa se transformasse de uma unidade centrada no auxílio recíproco recíproco em termos ter mos de laços desinteresdesinteressados de amor e fraternidade, em uma unidade jurídica de reprodução do modelo econômico patrimonialista calcado na preservação da propriedade privada, garantido por legislações civis que se espelhavam no Código Civil napoleônico. Entretanto, a modernidade não trouxe consigo apenas a desilusão, a indiferença ou uma postura cínica de omissão diante daquilo que se julga inevitável. O mundo não se resume a um incessante jogo de poder, tal como supunha Foucault. Fosse assim, figuras como madre Teresa de Calcutá, Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Nelson Mandela não teriam deixado qualquer legado para a humanidade. No entanto, suas vidas se dedicaram à consolidação do direito à diferença, do respeito ao pluralismo étnico, religioso, religioso, político, moral e ético. 45 Certament Certamentee não se critica critica aqui aqui todas todas essas políti políticas, cas, vez vez que conside consideraramos razoável, por exemplo, a política varguista de substituição de impor tações racional para as necessidades de sua época. O que se critica é, por exemplo, a reserva de mercado para a informática, gestado nos gabinetes da ditadura militar de 1964, de lembrança tão danosa para nossa economia. 109
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O compromisso com a inclusão do outro, com a manu tenção de formas tradicionais de cultura e das noções de pertencimento a um grupo social, o desenvolvimento do senso estético nas artes plásticas, na música, na poesia conformam o reverso da medalha de um mundo materialis ta dominado pelos imperativos sistêmicos. sistêmicos. É preciso reconhecer que formas tradicionais de cultura, diferenciadas por aspectos regionais, étnicos e religiosos insistem em se reproduzir à margem do sistema econômico. Nesse sentido, acredita-se que o ideal olímpico de integração da humanidade, mesmo maculado e menosprezado pelo cinismo contemporâneo, permanece vivo em torno de conceitos como a coexistência coexistência pacífica, do mens sana in corpore sano, de igualdade entre os povos e de preservação da dignidade da pessoa humana, atuando em favor da preservação do mundo da vida integrado socialmente por noções de solidariedade e de compaixão. Mesmo no tocante às questões, como a da fragilidade de institutos ligados à democracia representativa, 46 ou a dos partidos políticos, tem sido superada em momentos importantes da história, como se exemplifica através de notáveis mudanças ocorridas na legislação civil pátria, em torno de uma pessoalização do direito privado, favorecen46 Na década de 80, o autor não creditava creditava à atividade atividade parlamentar a possibi lidade de exercer exercer essas funções, funções, pois os partidos políticos, outrora outrora partidos partidos de opiniões [...] agora se reestruturaram sobre uma base de massa, com um funcionamento deslocado de suas origens, burocratizado, voltando-se para a integração ideológica ideológica e a mobilização política política das grandes massas de eleitores.[...] Já na linha da sua teoria do discurso, [...], Habermas parece ser mais condescendente em sua avaliação da representatividade política. Ali – embora todo poder político emane do poder comunicativo dos cidadãos, pois somente a totalidade destes últimos tem a capacidade de gerar o poder comunicativo de convicções comuns, definindo, por esse meio, o princípio da soberania do povo – o sistema parlamentar de repre sentação de uma esfera pública genuína passa a ser admitido como uma alternativa satisfatória, satisfatória, desde que passe a respeitar o princípio do discur so (Aragão, Habermas: (Aragão, Habermas: filósofo filósofo e sociológo do nosso tempo, tempo, p. 188). 188). 110
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do agora o desenvolvimento de novas modalidades do ins tituto da família, pelo reconhecimento reconhecimento de relações homossexuais e pela extinção de qualquer elemento discriminatório contra filhos havidos fora do casamento. O surgimento de famílias monoparentais, a negação de qualquer possibilidade da patrimonialização do afeto dos pais em relação aos filhos, ou vice-versa, são exemplos de mecanismos de integração social sustentados pela fraternidade humana, mesmo a despeito de toda influência massiva do sistema econômico. A notável mudança qualitativa do Código Civil Brasileiro de 2002 em torno da valorização da pessoa humana é um exemplo significativo da potencialidade do agir comunicativo. De qualquer maneira, a questão da democracia representativa continua ainda a ser um desafio no Brasil, vez que os partidos políticos jamais conseguiram expressar uma linha ideológica clara para o eleitorado, o que faz com que uma reforma política que possa depurar tal situação seja mais do que premente. Da mesma forma, todos os ins titutos que possam aprimorar aprimorar a democracia representativa representativa de modo a aproximá-la do ideal de democracia participativa, tal como, por exemplo, o da iniciativa legislativa popular, devem ser interpretados de modo a permitir que de fato o povo possa participar dos debates legislativos de seu próprio interesse. O recente interesse, especialmente na Europa, pelo destino econômico de países subdesenvolvidos, envolvendo não apenas questões humanitárias, mas também ligadas a direitos difusos de preservação do patrimônio histórico e ecológico, tem alterado o viés/norte de discussão em importantes arenas internacionais, como o fórum econômico mundial de Davos, as reuniões do G-7 e os debates sobre a integração econômica da ALCA ou da Comunidade Européia. Isso demonstra que o princípio da integração social não é um delírio lírico ou um sonho de verão. 111
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Habermas desloca a questão da emancipação humana, que no materialismo histórico se centrava no modo de produção econômico que se reproduzia pela reificação das relações de mercancia, cuja única forma de liberação seria a luta de classes, pela disputa incessante dos mecanismos de integração social, apostando no potencial libertador do Estado do Bem Estar Social, capaz de resgatar a dignidade da pessoa humana por meio de políticas redistributivas47 e de regulação do mercado, vez que a consciência social dificilmente surge em seres aviltados pela miséria. Para ele, a idéia marxiana de luta de classes se defez no tardo-capitalismo, vez que os interesses e as lealdades entre os indivíduos não podem mais ser demarcados transversalmente pela concepção de uma sociedade segmentada em classes. É certo que essa sociedade não fez desaparecer uma divisão entre parcelas da população privilegiadas e grupos marginalizados (subprivilegiados), não desaparecendo em potência a possibilidade de conflitos entre os mesmos, especialmente em países do terceiro mundo, nos quais as políticas compensatórias do Estado Social não reproduziram nem de longe as conquistas e a elevação do nível/qualidade de vida, como na Europa e nos Estados Unidos. 48 47 Na verdade, após a bancarrota do socialismo de Estado restou apenas essa perspectiva: por meio da promoção do status do trabalho assalariado dependente, alcançado com o acréscimo de direitos de compartilhamento e participação política, cabe à massa da população a chance de viver com expectativas bem fundadas de contar com segurança, justiça social e bem-estar. As injustas condições sociais de vida da sociedade capitalista devem ser compensadas com a distribuição mais justa dos bens coletivos. Esse fim é plenamente conciliável com a teoria do direito, porque os “bens fundamentais” (tal como acontece com dinheiro, tempo livre ou prestações de serviço), ou são utilizados individualmente (tal como se dá com as infraestruturas do sistema viário, de saúde e educação), e portanto se pode pre servá-los sob a forma de reivindicações individuais de benefícios (Habermas, A inclusão do outro, p. 231). 48 Cf. Habermas, Técnica e ciência como “ideologia”, pp. 78-79. 112
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De certo, sua noção de Estado do Bem Estar Social não passa por uma perspectiva paternalista de redução dos cidadãos à condição de clientes ou de incapazes que ficam à espera de uma atitude “ativista/progressista” como sus tenta ao longo de sua obra o próprio Streck, especialmente no tocante à atuação do Judiciário. É preciso compreender que a inclusão do outro é a única forma de legitimar as relações sociais e que a linguagem é um processo que envolve a capacidade de falar e especialmente a de ouvir, tal como preconiza Rouanet (1990). Assim, se se souber ouvir as pessoas mais carentes social, pedagógica e economicamente, os representantes das minorias religiosa, étnica, de origem, de gênero, as crianças, os idosos e até mesmo os portadores de deficiência, não se terá praticado caridade e sim concretizado uma exigência/dever49 do princípio da integração social consti tuidor da legitimidade, da democracia e do Estado de Direito.50 A democracia se torna elemento de integração 49 A distribuição eqüitativa de liberdades comunicativas no discurso e a exigência de sinceridade em favor do discurso significam deveres e direitos argumentativos, e de forma alguma morais (Habermas, A inclusão do outro, p. 59). 50 As fontes da solidariedade social secam, de tal modo que as condições de vida existentes até então no Terceiro Mundo expandem-se nos grandes centros do Primeiro. Essas tendências intensificam-se no fenômeno de uma nova ‘subclasse’. Com esse singular que pode induzir a erros, os sociólogos sintetizam um conjunto de grupos marginalizados, que amplas parcelas da sociedade tratam de segmentar e isolar. A essa underclass pertencem os grupos pauperizados que se vêem abandonados a si mes mos, embora não tenham mais condições de alterar, com as próprias forças sua situação social. Eles não dispõem de nenhum potencial de ameaça, da mesma forma que se dá com as regiões miseráveis em face das regiões desenvolvidas de nosso mundo. No entanto, sem que isso tenha conseqüências políticas. (...) Pois decisões de maioria estabelecidas de maneira formal mente correta e que apenas refletem os temores pela manutenção do sta tus e reflexos de auto-afirmação por parte de uma classe média ameaçada pela descensão social corroem a legitimidade dos procedimentos e institui113
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social quando afasta do governo e dos políticos práticas meramente plebiscitárias diante da população mais carente. O exemplo do sucesso da inclusão/participação de comunidades de pescadores em quase todo o litoral de um país continental em prol da preservação e da conservação das espécies de tartaruga marítima (Projeto Tamar), bem como as ações públicas em que se associam a municipalidade e as associações de moradores de favelas, como no caso do morro da Mangueira, no Rio de Janeiro, ilustram de forma candente essa perspectiva habermasiana aqui mesmo no Brasil. Nesse sentido, Rouanet (1990) propõe que o discurso habermasiano vá além de um procedimento argumentativo sobre a legitimidade de normas, pretendendo estendê-lo ao debate sobre valores próprios de grupos étnicos distintos, tal como se dá com a questão indígena. 51 Na medida em que eles aceitam entrar numa práxis de entendimento cooperativo, também aceitam tacitamente a condição da consideração simétrica ou ções. Por essa via, desvirtua-se a verdadeira conquista do Estado nacional, que tratou de integrar sua população por meio da participação democrática (Habermas, A inclusão do outro, p. 141). 51 (...) Rouanet (1990) sugere a instauração de um quase-discurso, que envolva o pesquisador e o pesquisado numa situação dialógica, que permita submeter a um processo discursivo a validade normativa dos dois sistemas: a do Ianomâmi e a do pesquisador (oriundo da cultura ociden tal). Para Rouanet, o quase-discurso envolve a dimensão teórica e prática. A pretensão de verdade de que o Ianomâni estaria “assassinando” seu inimigo precisa ser questionada, não somente a partir do “outro” que denunciaria como “falsa” essa afirmação. A afirmação não seria “falsa”, nem “verdadeira”, pois seria necessário envolver, no processo argumen tativo, a questão da validade do sistema normativo de uma e outra cul tura (discurso prático). O Ianomâmi tem condições de demonstrar a ilegi timidade das normas dos brancos (garimpeiros, seringueiros ou antropólogos), que aceitam a depravação das florestas, o extermínio de animais e índios, assim como o pesquisador branco pode questionar (...) a validade do sistema normativo que rege a vida da tribo Ianomâmi, quando esse implica matança e violência contra mulheres e crianças de outras tribos” (Freitag, Dialogando com Jürgen Habermas , pp. 151-152). 114
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uniforme dos interesses de todos. E como essa práxis só pode ser bem-sucedida se todos e cada um estiverem dispostos a convencer os outros e a se deixarem convencer por outros, todo participante sério precisa examinar o que é racional para ele naquelas condições de consideração simétrica e uniforme dos interesses. Mediante o recurso metódico à possível intersubjetividade do entendimento mútuo [...] os fundamentos pragmáticos ganham um sentido epistêmico. Com isso transcendem-se as cancelas da razão instrumental (Habermas, A inclusão do outro, p. 36, nosso destaque). Certamente em um país como o nosso, parcela significa tiva da população encontra-se à margem do processo decisório dos rumos da autonomia pública. E, sendo assim, o desafio da modernidade aqui se dá de forma distinta em relação aos problemas vividos em países do chamado Primeiro Mundo. Mas, essa peculiaridade não torna impraticável a visão habermasiana, por supô-la idealista, tal como faz Streck. Neste sentido, tornou-se lugar comum taxar a concepção da “situação ideal de fala” como um conceito vazio e desconectado da realidade brasileira. A crítica não merece prosperar basicamente por duas razões. Primeiro, porque desde os anos 1970, Karl-Otto Apel demontrou sobejamente que infirmar o discurso como “condição de possibilidade” da comunicação humana implica uma contradição performativa. Assim, quem afirma que “o discurso e seus elementos são ideais” já caiu nessa contradição. Veja: ao dizer que não crê na teoria do discurso, essa assertiva em si já é um discurso, eis que com ela se está afirmando uma sentença de cunho opinativo de caráter assertivo; com ela o falante pretende obter o convencimento alheio sem tentar coagir o leitor ou seu ouvinte, ou seja, deseja convencê-lo pelo melhor argumento e proferiu a sentença por meio de um médium lingüístico. Assim, pobre ou rico, brasileiro ou estrangeiro, participam do discurso, eis que a “situação ideal de fala” faz parte da 115
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antropologia destranscendentalizada da “condição humana”. Em outras palavras, o discurso tem pretensão universalizante em torno da própria condição de ser humano, pois a comunicação entre os homens se estrutura pela “situação ideal de fala” que, certamente, terá seus elementos melhor ou pior percebidos pela competência lingüística dos participantes. Nes te sentido, a pobreza, as questões socioeconômicas, ideológicas e políticas são fundamentais para uma melhor ou pior fil tragem da razão estratégica durante qualquer discurso. De outro lado, sustentar que a “situação ideal de fala” seja teórica liga-se a uma dicotomia real/ideal, ainda tributária da filosofia clássica, ligada aos primórdios da metafísica platônica, o que, por si só, deve ser descartado em um contexto de reviravolta lingüística-pragmática. Desse modo, entendemos que eventuais objeções à obra de Habermas devem se aprimorar, de modo a não estabelecermos posições e críticas ligadas a debates já superados na Europa trinta ou quarenta anos atrás. Superada a crítica, é preciso dizer, por outro lado, que a exclusão de significativa parte dos brasileiros dos grandes debates nacionais se dá mais por uma postura elitizan te de uma minoria que assume duas posições: a primeira que faz com que “os políticos”/o governo finjam escutá-los, mas o fazem de uma perspectiva meramente plebiscitária 52 e, de outro lado, aquela que inviabiliza até mesmo essa oitiva por entender que a maioria excluída seria incapaz de opinar sobre questões técnicas. Contudo é preciso perguntar: 52 O poder comunicativo só se forma naqueles espaços públicos que produzem relações intersubjetivas na base do reconhecimento mútuo e que possibilitam o uso das liberdades comunicativas – que possibilitam, portanto, posicionamentos sim/não relativamente a temas, razões ( Grunde ) e informações livremente flutuantes. Se estas formas individualizantes de uma subjetividade intacta estão destruídas, emergem massas constituídas de indivíduos isolados e “abandonados uns pelos outros” que então podem ser doutrinados e postos em movimento por líderes plebiscitários, promovendo ações de massas (Habermas, Uma conversa sobre questões da teoria política, p. 93). 116
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será que alguém seria incapaz de traduzir em palavras sua carência de proteínas, de habitação, vestuário, educação, lazer, enfim de suas condições de vida? 53 Por conseguinte, tanto a postura excludente quanto a paternalista54 acarre tam prejuízos para a legitimidade da ação social, vez que ou ignoram ou abafam a existência do outro como legítimo interlocutor do processo democrático. Evidentemente, a almejada equiparação de situações de vida e posições de poder não pode levar a um tipo de intervenção “normalizadora” que acabe por limitar o espaço de atuação de seus prováveis beneficiários, no que se refere à concepção autônoma dos projetos de vida de cada um deles (Habermas, A inclu são do outro, p. 295). 53 A teoria do discurso não torna a efetivação de uma política deliberativa dependente de um conjunto de cidadãos coletivamente capazes de agir, mas sim da institucionalização dos procedimentos que lhe digam respeito (Habermas, A inclusão do outro, p. 280). , por um cidadão que se fez 54 Assim, sujeito de direito, que, agindo estrategicamente, persegue seus interesses privados. Essa é a causa pela qual é necessária uma legislação social que seja marcada pela tentativa de dar respostas pontuais a sujeitos individuais, uma vez que tal legislação tem como fim responder concretamente a problemas específicos. [...] Aqui surge, no entendimento de Habermas, a grande ambigüidade dessa etapa de juridicização do Estado Social. Ora, a partir do momento em que as políticas sociais desse Estado vão além da simples pacificação dos conflitos de classe surgidos no proces so produtivo, à medida que se desenvolve uma onda de monetarização e burocratização das esferas nucleares do mundo da vida e que os cidadãos, que outrora se caracterizavam pelo exercício do poder político, transforma ram-se em clientes, surgem os efeitos colaterais da presente juridicização. O paradoxo é o seguinte: as políticas do Estado Social e democrático visavam à integração social, no entanto, o processo de juridicização baseava-se, fundamentalmente, nos meios do dinheiro, através do processo produtivo e do poder fundado na burocracia, o que ocasionou uma desintegração do modo de reprodução do mundo da vida, pois suas esferas de sociabilidade básica são reduzidas, paulatinamente, ao modelo jurídico empregado (Moreira, Fundamentação do Direito em Habermas , pp. 57-58, nosso destaque). 117
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Certo é que a participação do interessado na prática de um provimento estatal é indispensável para a legitimidade do mesmo. Garantir essa participação da forma e nas condições que forem factíveis é uma exigência para a validade desse provimento e conseqüentemente das condições regulatórias do Estado.55 A postura excludente leva à falência do processo democrático e a postura paternalista se converte em uma nova espécie de discriminação por ignorar o outro, coisificando-o no caminho da compensação de danos e promovendo o fortalecimento de esteriótipos de identidade. 56 Essa dualidade de princípios integrativos, os da solidariedade e os sistêmicos, promove uma tensão permanen te na modernidade, cada um usando suas ‘armas’ para prevalecer. Em favor do primeiro, Habermas destaca um elemento fundamental: a esfera pública, que afastada de sua concepção burguesa,57 deve ser entendida como um espa55 O Estado de Direito, tal como reconstruído por Habermas, conforme o paradigma lingüístico, deve garantir o exercício de fato dos direitos fundamentais por meio dos procedimentos jurídicos que permitam que a for mação racional da vontade e da opinião se manifeste. O Estado de Direito deve encontrar expressão na formação de programas jurídicos concretos (isto é, produção de leis), na implementação desses programas pelas vias administrativa e judicial, e, sobretudo, desenvolver a capacidade de integração social pela estabilização de expectativas e efetivação coletiva des ses programas (Repolês, Habermas e a desobediência civil, pp. 126-127). 56 Tais esteriótipos de identidades podem ser ilustrados. Dentre os exemplos possíveis, tem-se a alegação da incapacidade do analfabeto de participar de debates acerca de questões orçamentárias, simplesmente porque não teria um cabedal de conhecimentos técnicos suficientes. Mas, será que ele não saberia dizer quais suas necessidades mais prementes? Ou que o negro não possa se integrar em igualdade de condições sem uma política temporária de cotas. Em verdade, tais políticas redistributivistas podem ser aplicadas, desde que afastada a perspectiva paternalista, pois, caso contrário as mesmas se tornariam mecanismos de perfumaria, projetos “‘politicamente corretos” que agradam parcela significativa da opinião pública e que não trazem nenhum benefício concreto para a sociedade. 57 A esfera pública burguesa desenvolve-se no campo de tensões entre Estado e sociedade, mas de modo tal que ela mesma se torna parte do setor privado. A separação radical entre ambas as esferas, na qual se fundamenta a esfera pública burguesa, significa inicialmente apenas o des mantelamento dos momentos de reprodução social e de poder político con118
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ço vital de formação de uma opinião pública que identifica e tematiza problemas com o objetivo de influenciar/legitimar a ação do aparato do mercado e do Estado. A esfera pública habermasiana: [...] é um fenômeno social elementar, do mesmo modo que a ação, o ator, o grupo ou a coletividade; porém, ele não é arrolado entre os conceitos tradicionais elaborados para descrever a ordem social. A esfera pública não pode ser entendida como uma instituição, nem como uma organização, pois, ela não constitui uma estrutura normativa capaz de diferenciar entre compe tências e papéis, nem regula o modo de pertença a uma organização, etc. Tampouco constitui um sistema, pois, mesmo que seja possível delinear seus limites internos, exteriormente ela se caracteriza através de horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis. A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são fil trados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. [...] A esfera pública constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem com os conteúdos da comunicação cotidiana (Habermas, Direito e democracia , vol. II, p. 92). A esfera pública constituir-se-ia de foros, arenas e palcos que dariam consistência à formação discursiva de opi jugados na tipologia das formas de dominação da Idade Média avançada. [...] À medida que é intermediada pelo sistema de trocas, a produção liberta-se de competências da autoridade pública – e, por outro lado, a admi nistração descarrega-se de trabalhos produtivos (Habermas, Mudança estrutural da esfera pública, p. 169). 119
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niões, 58 podendo se materializar dentro das universidades, na produção acadêmica, associações com interesses claramente definidos, tais como sindicatos e partidos políticos, Igrejas, instituições pias e assistenciais, “ public interest groups” formadoras do chamado terceiro setor, 59 tais como as organizações não governamentais, no trabalho da imprensa livre nas diversas formas de expressão literária, artística ou estética, difundidas pelos diversos mecanismos de comunicação de massa, 60 até mesmo na comunicação difusa propiciada pela internet. 61 58 Na esfera pública, as manifestações são escolhidas de acordo com temas e tomadas de posição pró ou contra; as informações e argumentos são elaborados na forma de opiniões focalizadas. Tais opiniões enfeixadas são transfor madas em opinião pública através do modo como surgem e através do amplo assentimento de que ‘gozam’. Uma opinião pública não é representativa no sentido estatístico. (...); por isso , ela não pode ser confundida com resultados da pesquisa de opinião. (...) Por isso, o sucesso da comunicação pública não se mede per se pela ‘produção de generalidade’, e sim, por critérios formais do surgimento de uma opinião pública qualificada. As estruturas de uma esfera pública encampada pelo poder excluem discussões fecundas e escla recedoras. A ‘qualidade’ de uma opinião pública constitui uma grandeza empírica, na medida em que ela se mede por qualidades procedimentais de seu processo de criação. Vista pelo lado normativo, ela fundamenta uma medida para a legitimidade da influência exercida por opiniões públicas sobre o sistema político (Habermas, Direito e democracia, vol. II, p. 94). 59 Uma esfera pública aberta inclusive aos sistemas da autonomia pública e privada, de modo a não se tornar, ela também, mecanismo/instrumen to do agir estratégico da criminalidade. No Brasil, uma proposta interessante seria a de obrigar as organizações não governamentais a se regis trarem junto ao Banco Central, de maneira a permitir um controle sobre a sua movimentação financeira, evitando com isso a costumeira acusação de que as mesmas estariam atuando a favor da lavagem de dinheiro. 60 A consciência do espaço e do tempo é afetada de um outro modo pelas novas técnicas de transmissão, armazenamento e elaboração de informações. Já na Europa do final do século XVIII a impressão de livros e jornais contribuiu para o surgimento de uma consciência histórica global e orientada para o futuro; [...] Também a imprensa de massa é um fruto do sécu lo XIX; mas o efeito de máquina do tempo da mídia impressa é intensificado no correr do século XX graças à fotografia, ao cinema, ao rádio e à televisão (Habermas, A constelação pós-nacional, pp. 57-58). 61 A comunicação digital finalmente ultrapassa em alcance e em capacidade todas as outras mídias. Mais pessoas podem conseguir e manipular quan120
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Habermas constrói então uma teoria crítica da sociedade a partir de uma pragmática lingüística formuladora de sua concepção de racionalidade. Mas, com isso, ela também permite a construção de uma visão própria da moral, do direito e da democracia. Nesse sentido, a questão da fundamentação do Direito no âmbito da teoria do agir comunicativo se situa exatamente na seara dos estímulos sistêmicos sobre o mundo da vida. O sistema jurídico mantém uma relação biunívoca com as diferentes formas de agir. De um lado, o Direito, por meio das obrigações contratuais e do direito de propriedade possibilita a ação estratégica no sistema capitalista. 62 Por outro, as noções de autonomia e de dignidade são base para a ação comunicativa. Contudo, o Direito sofre também as conseqüências dessa dualidade de ações, sendo que sua legitimidade estaria justamente na predominância da segunda. Para Habermas, o sistema jurídico pode se tornar um elemento de colonização desse mundo vital, 63 caso fosse tidades maiores de informações múltiplas e trocá-las em um mesmo tempo que independe das distâncias. Ainda é difícil de se avaliarem as conseqüências mentais da Internet, cuja aclimatação no nosso mundo da vida resiste de um modo mais enérgico do que a de novo utensílio doméstico (Habermas, A constelação pós-nacional, p. 58). 62 O conceito que faço disso é um pouco diferente: a saber, penso que o mecanismo do mercado se institucionaliza em função dos elementos básicos do direito privado (contrato e propriedade). Essa institucionalização jurídica é concebida – permita-me descrevê-la deste modo – para que os participantes do mercado possam agir estrategicamente. Eles são livres para fazer o que quiserem (Habermas, A ética da discussão e a questão da verdade, pp. 38-39). 63 Quer Habermas entender esse processo de juridicização como a tendência, presente nas modernas sociedades, do crescente aumento das tipificações das condutas tidas como jurídicas, ou seja, do avassalador aumento do ordenamento jurídico, visto que as matérias que compõem o quadro de reprodução material e simbólica da vida, que outrora tinham uma regulação informal ou mesmo que eram regidas por um recurso à tradição, agora passam a manifestar-se através da codificação, ou seja, são traduzidas e expressas por uma legislação pertinente, acarretando um crescimento assustador do aparato jurídico escrito (Moreira, Fundamentação do direito em Habermas , p. 51). 121
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entendido por meio de uma perspectiva maxweberiana de redução do mesmo ao status de um medium regulativo, dotado do monopólio de sanção e que se legitimaria tãosomente por meio do recurso à positividade. Para Weber, o Direito possuía autonomia em relação à moralidade. O Direito seria fruto da criação normativa do Poder Legislativo, desde que satisfeitas as condições processuais exigidas pelo contrato social. A ligação da moral com o Direito era compreendida como mecanismo de enfraquecimento de coercibilidade do último. Assim, entendia o Direito dentro de uma racionalidade neutra no tocante à moralidade, que se sustentaria exclusivamente em seus aspectos formais: a) em sua sistematicidade conceitual; b) no Direito como um conjunto de normas, que protegeriam as liberdades negativas em face do Estado; e, c) na institucionalização de procedimentos que permitiriam um grau de previsibilidade das relações sociais. Habermas conecta o pensamento de Kohlberg com a teoria maxweberiana de modernidade, sustentada em uma concepção de valoração hierocrática de diferenciação da economia capitalista e do Estado moderno, que se integra e organiza pelo direito formal, superando o encantamento que o sagrado das tradições religiosas impunha às sociedades arcaicas pela homogeneização da visão de mundo. 64 Para Weber será justamente essa racionalização somada à ética protestante que estruturarão a modernidade, levando a uma dicotomia entre moral, ética e o direito posi tivado. Desse modo, sua perspectiva abriu espaço à visão 64 Em sociedades tribais da era do neolítico [...] o direito permanece ligado tão estreitamente ao costume e às representações religiosas, que é difícil distinguir entre fenômenos genuinamente jurídicos e outros fenômenos relativos aos costumes. Os conceitos de justiça, que estão na base de todas as formas de regulação de conflitos, se entrelaçam com a interpretação mítica do mundo. A vingança, a retribuição e a compensação servem para a reconstituição de uma ordem estremecida (Habermas, Direito e Democracia, vol. II, p. 235). 122
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de que o Direito poderia obter sua legitimidade dentro de seu próprio formalismo, dentro de uma visão autopoiética presente tanto no positivismo quanto no normativismo jurídico, ao buscar referências de sua legitimidade na legalidade do próprio sistema jurídico. 65 Ao contrário, Habermas considera que a positividade e o formalismo são elementos insuficientes para a legitimação do Direito, pois aos mesmos deveria se associar a “fundamentação”, elemento que impediria/atenuaria o papel do Direito de dominação do mundo da vida. Não fosse assim, o Direito, por imperativos sistêmicos, facilitaria a dominação do mundo da vida pelo mercado e pela burocracia. 66 Somente essa fundamentação permitiria ao Direito ser instrumento de continuidade do aspecto ético das noções de universalidade e aceitabilidade racional embutidas no agir comunicativo, assumindo com isso o papel de integração social. 67 65 Aqui também caberia a crítica de Habermas à chamada “desmistificação do mito iluminista” de uma sociedade composta por homens feita por Luhmann. Esse, com sua nova “teoria dos sistemas”, por reduzir a normatividade à expectativas cognitivas, que em caso de decepção, não poderão ser corrigidas, acaba ignorando qualquer papel de legitimidade no exercício do código binário do direito (Cf. Cometti, Jürgen Habermas e o pragmatismo, p. 83). 66 Nesse contexto, são claras as reservas de Habermas ao direito em geral. Parece-lhe, na verdade, que o direito contribui para a “colonização” do mundo vivido social, apoiando-se sobre mecanismos sistêmicos responsáveis pela economia do entendimento através da linguagem (Rochlitz, Razão e racionalidade em Habermas, p. 17). 67 Na interpretação de Habermas, o quadro é o seguinte: vivemos numa sociedade civil em que se age estrategicamente possibilitado por uma domesticação do mundo da vida efetuado pela esfera jurídica, ou seja, a área de atuação do Direito privado. Por outro lado, temos os órgãos de Estado que se constituem enquanto estruturas, aos quais se pode recorrer toda vez que surge um conflito. Dito de outro modo, rompida a sociabilidade originária, o Estado é aquela esfera na qual se busca a solução para os conflitos, fazendo ressurgir o consenso, logo, o domínio do Direito Público. Assim, com a positivação do Direito, os caminhos que conduzem à sua legitimação duplicam-se. Decisões estritamente legais aliviam o Direito moderno do peso da fundamentação. Entretanto, segundo sua opi nião, com o fenômeno da positividade, as possibilidades de crítica ao orde123
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Essa exigência de fundamentação coloca a teoria do agir comunicativo próxima da noção da razão prática kan tiana, pois submete o Direito a um critério de validade obtido na esfera moral. Em outras palavras, a moral continuava a ser o elemento condicionante do Direito, e, por conseguinte, o peso da integração social sobre a solidariedade social permanecia ligado às exigências morais, pois a legi timidade da legalidade só se daria por sua abertura à dimensão da moralidade.68 Habermas percebe que o modelo da verdade consensual estabelecido pelo agir comunicativo supriria apenas parcialmente o aspecto cognitivo da questão da integração social, vez que, aferrada tão-somente à argumentação moral, não superaria o espectro do paradigma da consciência,69 posto que vinculado à razão prática kantiana. 70 namento jurídico e a necessidade de se justificar a decisão de se converter em lei este ou aquele enunciado conduzem, invariavelmente, ao problema da fundamentação. Daí que, segundo Habermas, o princípio de positivação, característico do Direito moderno, implica, por sua vez, o princípio de fundamentação. Logo, positivação e fundamentação, para o Direito Moderno, se pressupõem mutuamente (Moreira, Fundamentação do direito em Habermas , pp. 48-49). 68 O que nos torna seres morais? É, sem dúvida, o fato de existirem ações em relação às quais sabemos que deveríamos antes morrer do que fazer algo parecido. Ora, suponhamos que alguém fez isso – e continua vivendo. O atingido encontra-se, então, perante a escolha entre o suicídio ou uma vida sem auto-respeito, e, de outro lado, a tentativa de continuar levando a vida de tal modo que o seu propósito ‘de jamais fazer isso de novo’ adquira credibilidade (Habermas, Era das transições , p. 186). 69 Cf. Moreira, Fundamentação do direito em Habermas , p. 111. 70 Isso porque só eram legítimas as normas legais que obrigavam, na pers pectiva moral, todos os membros de uma comunidade jurídica. Então, a normatividade do jurídico representava o apelo a uma medida de validade deontológica em sentido prático-moral. Daí que a relação de comple mentariedade entre o jurídico e o moral significava que, em última instância, o critério de validade é dado pela medida moral que perpassa o orde namento jurídico. Assim, a complementariedade assume uma função deontológica, pois a moralidade é designadora do grau de legitimidade do Direito positivo. Em uma palavra, a complementariedade moral em relação ao Direito representa a equiparação da ordem jurídica que lhe é supe124
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Ademais, ele reconhece que os discursos práticos que envolvem essa questão demandam o suprimento de outros elementos além do cognitivo, tais como o motivacional e o operacional. O primeiro reduz o risco do dissenso, pois facilita a estabilização de expectativas de comportamento ao incluir questões concretas da existência, tais como problemas éticos-políticos e pragmáticos. Quanto ao segundo, o critério da ‘situação ideal de fala’, como medida de verificação da legitimidade dos discursos, sem limitação de tempo, transformaria as relações humanas em “um seminário universal de discussão ininterrupta”, longe, portanto, de qualquer possibilidade prática, 71 eis que não operacionalizável. Todos esses elementos o levarão à formulação da Teoria Discursiva do Direito.
ção ao Direito representa a equiparação da ordem jurídica que lhe é supe rior. Portanto, com a relação de complementariedade, assume-se uma dimensão normativa para o Direito no sentido da razão prática. [...] Assim, a complementariedade significa uma posição geneticamente ascendente da Moral em relação ao Direito (Moreira, Fundamentação do direito em Habermas , pp. 170-171). 71 Cf. Siebeneichler, Jürgen Habermas: Razão Comunicativa e emancipação, p. 107. 125
Capítulo V A Teoria Discursiva do Direito
O horror da Segunda Grande Guerra e do holocausto, o aparecimento da tecnologia das bombas atômica e de hidrogênio, a construção de dezenas de milhares de ogivas nucleares capazes de destruir o planeta, não apenas uma vez, mas várias, provocou reações das mais variadas, especialmente na sociedade ocidental. Uma das mais importan tes teve reflexo direto na tentativa de (des)construção da filosofia iluminista contemporânea. Essa desconstrução centrou-se sobre a dúvida fundamental acerca da civilização humana e de sua base, ou seja, sobre a razão. Instalou-se, pois, uma desconfiança sobre as possibilidades de ações racionais de um mundo que beirava sua própria autodestruição. Logo, sentindose impotentes para agir em favor da melhoria dessa condição humana, o caminho aberto seria o da mera observação para, no máximo, tentar compreendê-lo. Nessa linha encontram-se intelectuais do porte de Michel Foucault (1926-1984), Jacques Derrida (1952-2004) e Richard Rorty (1931-2007). A despeito da desconfiança do engajamento de Sartre, e – porque não dizer –, também da Escola de Frankfurt, Foucault é um obcecado pela história. Seduzido por Nietzsche e pela revolucionária história dos Annales (Marc Bloch e Lucién Fébvre), Foucault pretende implodir a noção positivista de que o saber/a razão pudesse se fundar em elementos perenes. Neste sentido, tanto em a História da Loucura quanto em Vigiar e punir, demonstra respectivamente como con127
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ceitos como a “loucura” 1 e a “prisão”,2 assim como grande parte de conceitos das ciências sociais, teriam justificativas que se distinguem conforme as necessidades da cultura e da sociedade ocidental. Dessa forma, o pensamento, em função da estrutura (episteme) 3 subjacente à cultura e às formas do saber, seria prisioneiro dos limites de sua época. E, a verdade, algo que se definira em função das necessidades políticas ou práticas das diferentes e renovadas formas de poder. 1
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Considerado como portador de um sinal sagrado, beneficiário de uma eleição divina, o louco é durante a Idade Média, livre e tolerado. Com a conso lidação da monarquia absoluta, com a instalação de um Estado centralizador que se livra da tutela da Igreja, ele se torna um fator de desordem social. Mas o “grande internamento” realizado no século XVII não basta para isolar a loucura, em relação a outras formas de desvio. Será preciso esperar o fim da era clássica, nos anos 1780-1820, para que a loucura seja redefinida em termos de “doença mental” pela instituição médica. Ela se torna então objeto de um saber positivo, a psiquiatria, que acaba de se constituir como ramo da medicina durante o século XIX, dando assim uma legitimação teórica a conduta de internamento – garantia da ordem fami liar e fonte de muitos abusos de poder (Delacampagne, História da filoso fia no século XX , p. 250). Na esteira de História da Loucura , esse novo livro tenta descrever as mutações que, na ordem das ciências – ou das pseudociências – do fim do século XVIII, de um sistema de “adestramento” dos corpos, graças ao qual o Estado centralizador conseguiu estender o seu domínio sobre o resto da sociedade. Em ruptura com a prática dos “suplícios”, cara ao Ancién Régime, esse sistema tem como finalidade a “reeducação” do condenado, submentendo-o pela força a uma “pedagogia” disciplinar e punitiva, da qual a prisão moderna, oriunda do “Pan-óptico ” de Bentham, constitui o instrumento privilegiado. Mas, desta vez, o tema é mais abertamente subversivo do que na obra de 1961: a prisão, mais ainda do que o hospital, não é o próprio símbolo de uma ordem burgue sa ansiosa por reprimir qualquer desvio? [...] Vigiar e punir se tornará assim, na Europa e ainda mais nos Estados Unidos, o breviário de um novo “esquerdismo”, centrado na crítica de qualquer forma de autoridade, policial ou simbólica, mas relativamente indiferente às condições sócio -econômicas que perm item que essa autoridade se exerça (Delacampagne, História da filosofia no século XX , p. 253). A despeito de próximo, o conceito de episteme não se confunde com o conceito de paradigma, de Thomas Kuhn, por se limitar à questão cultural européia, não incorporando elementos econômicos e ideológicos.
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Dando seguimento a seu projeto, Foucault avançaria ainda mais com a Microfísica do poder, no qual a razão se desfaz completamente – ou pelo menos desemboca em uma crise irreversível – diante do jogo plural e difuso do poder, que se manifestando das mais diversas formas e nuances, conectado por maneiras distintas, como o conhecimento, o dinheiro, a fé, o mito da autoridade e até a força bruta, se especializa em impedir os oprimidos de “falar” e de “saber”.4 Discípulo de Foucault, Derrida sustenta que a opção da virada lingüística como saída para o iluminismo seria falsa. Para ele, o logocentrismo – esforço de centrar a atividade humana no discurso racional –, tal como empreende Habermas, seria incapaz de superar a crítica heideggeriana de separar o Ser do ente. Em seu Da Gramatologia, Derrida se esforça para desconstruir os elementos binários da linguagem como significado-significante, palavra-escrita, com o objetivo de desconstruir a ilusão metafísica da racionalidade. Em seu Espectro de Marx, considera que a queda do comunismo não é o fim da história e que o capitalismo, mesmo “temperado” pelo Estado Social, jamais poderá abrandar a miséria e as injustiças sociais no Ocidente. 4
A história do presente, da nossa identidade, formula-a Foucault como aná lise das relações saber-poder na nossa sociedade. A hipótese geral do seu trabalho seria a de que as relações, as estratégias e as tecnologias de poder que nos constituem, nos atravessam e nos fazem, são acompanhadas, permitem e produzem formações de saber e de verdade que lhes são necessárias para se consolidarem como evidentes, naturais e se tornarem, dessa maneira, invisíveis. Inversamente, análise do saber, das formações discursivas e dos seus enunciados deve ser feita em função das estratégias de poder que, numa dada sociedade, investem os corpos e as vontades [...] Foucault mostra deste modo como a concepção jurídica do poder (poder lei, poder repressão, poder-interdito) esconde o seu funcionamento produtivo e eficaz, os seus avanços e as suas cristalizações. [...] A questão do poder é, indissociavelmente, a das resistências ao poder. “Onde há poder há resistência” e o poder vive no elemento da “batalha perpétua” (Ewald, Foucault: a norma e o direito, pp. 11-12). 129
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Tampouco acredita na possibilidade de que o discurso habermasiano possa conduzir ao consenso ou mesmo a algum acordo, pois os interesses humanos, pessoais ou coletivos, imporiam o dissenso ou a supremacia de “alguém” pela força das armas, tal como se vê ao longo da história da humanidade. Rorty (Linguistic turn) vai além, afirmando ser ilusória e irrealizável a tentativa de firmar a racionalidade em qualquer solo, inclusive no da intersubjetividade da comunicação. Para ele, o mesmo problema que se apresenta no solipsismo do agente cognoscente da filosofia da consciência em sua relação com o mundo fenomênico se aplicaria, agora, na primeira pessoa do plural em um ambiente comunicativo. 5 Para Rorty, o conceito de verdade é um conceito supérfluo, eis que inatingível. Percebe que a idéia positivista de verdade, como a de uma correspondência da proposição com o mundo dos fatos, inerente tanto à filosofia escatológica quanto à filosofia da consciência, está superada. Mas segue afirmando que qualquer tentativa de representação, lingüística ou não, de algo no mundo seria uma ilusão, certo de que o conhecimento humano é sempre provisório, relativo e falível.6 5
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Para Rorty, todo tipo de representação de algo no mundo objetivo é uma perigosa ilusão. Ora, certamente também é verdade que, com a virada pragmática, a autoridade epistêmica da primeira pessoa do singular, que inspeciona seu interior, é transferida para a primeira pessoa do plural, para o “nós” de uma comunidade lingüística, diante da qual cada um justifica suas concepções ( Habermas, Verdade e Justificação, p. 254). (...) a posição que consiste em sustentar, como faz Rorty, a inutilidade de uma concepção do verdadeiro como algo a mais do que o justificado, já que não dispomos de truth makers cuja ação miraculosa nos permitiria estar certos de que o que dizemos não se limita a ser justificado a nossos próprios olhos e aos de nossos pares culturais, mas tem também relação com alguma coisa que não dependeria de nós, de nossa linguagem, de nossas crenças ou dos padrões de nossa cultura; (...) Vamos observar que, de maneira menos imediatamente visível, a adesão de Rorty às teses de Davidson leva-o a admitir que a significação de nossos enuncia-
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Logo, se a “verdade” é inalcançável, seria preciso um esforço de reeducação, pois a “verdade” deveria ser compreendida apenas como o “conjunto de enunciados que se revelariam mais úteis para se viver melhor”. 7 Tal limite se explicaria também pelo fato de que a “situação ideal de fala” não concretizaria jamais um acordo e, muito menos, um consenso, pela incapacidade do homem de se desligar de seus valores éticos, ou seja, de seu etnocentrismo. 8 Em outras palavras, Rorty não percebe o contacto íntimo que os atos de fala têm com o mundo sensível, pois não entende que a fala possui uma dimensão performativa de ação factual simultânea à dimensão constatativa. 9 Tam-
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dos entra em relação com o sistema de nossas relações causais com o mundo, de maneira que a linguagem, e apenas a linguagem, não é capaz de decidir o que devemos considerar como justificado, e até como verdadeiro (Cometti, Jürgen Habermas e o pragmatismo, p. 68). Rorty [...] defende uma reeducação. Devemos nos habituar a substituir o desejo de objetividade pelo de solidariedade e, a exemplo de William James, não compreender a “verdade” senão como aquilo em que, para “nós”, os membros liberais da cultura ocidental ou das sociedades ocidentais, é bom acreditar (Habermas, Verdade e Justificação, p. 246). Não vejo o que “aceitabilidade racional idealizada” possa significar, exceto “aceitabilidade para uma comunidade ideal”. Tampouco vejo, dado que tal comunidade terá a visão do olho de Deus, como essa comunidade ideal pode ser algo mais que nós mesmos, tal como gostaríamos de ser. Nem vejo o que “nós” pode significar aqui, exceto um nós liberais, educados, sofisticados, tolerantes, permissivos, pessoas que estão sempre querendo ouvir o outro lado, imaginar todas as suas implicações, etc. (Rorty apud Habermas, Verdade e Justificação, p. 254). A linguagem , da qual não podemos “sair”, não pode ser compreendida em analogia com a interioridade de um sujeito representativo, que está como que isolado do mundo externo de objetos representados. A relação entre justificabilidade e verdade, que deve ser elucidada, não assinala nenhum abismo entre interior e exterior, nenhum dualismo que deva ser transposto e possa invocar a questão cética de saber se nosso mundo como um todo é uma ilusão. A virada pragmática retira os alicerces desse ceticismo. Há para isso uma simples razão. Na práxis cotidiana não podemos usar a linguagem sem agir. A própria fala se realiza no modo de atos de fala que, por sua vez, estão engastados em contextos de interação e entrelaçados com ações instrumentais. Como atores, isto é, como sujeitos interagentes 131
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pouco, tal como Foucault e Derrida, aposta na capacidade do agir comunicativo existir/sobrepujar, o agir estratégico nas relações humanas, reduzindo-as a meros “jogos de poder”. Enfim, descrê da razão como suporte do projeto iluminista de emancipação da humanidade, certo de que os valores éticos de cada comunidade seriam impermeáveis a uma argumentação universalista de uma moral pós-convencional. A teoria discursiva surge, pois, com a pretensão de ajustar definitivamente a proposta de Habermas à filosofia da linguagem, de forma a enquadrar-se em uma linha de pensamento alternativa ao irracionalismo e suas objeções à razão como parâmetro para a civilização. 10 Ao mesmo tempo, imiscuir-se no projeto racionalista como uma alterna tiva à uma ética substantivista neo-aristoteliana, própria do comunitarismo, ou da ética lockeana, afeta ao liberalismo econômico, na concepção das sociedades contemporâneas e de seus respectivos ordenamentos jurídicos. Contudo, man tém-se ainda firme em seus pressupostos anteriores de uma concepção consensual de verdade. Assim, a verdade ainda é suposta na dimensão pragmática de significado dos atos de fala de modo a possibilitar que os participantes do discurso possam reconhecer alguma assertiva como verdadeira. Entretanto, na atualidade a teoria discursiva do Direito precisa ter sua leitura atualizada pela revolução e interventores, já estamos em contato com as coisas sobre as quais pode mos fazer enunciados ( Habermas, Verdade e Justificação, p. 244). 10 As vantagens dessa concepção são muitas, e a principal [...] é salvar a razão contra filósofos (nietzscheanos, heideggerianos, subjetivistas ou “pós-estruturalistas”) que se obstinaram em criticá-la, de Foucault e Lyotard a Derrida e Rorty. [...] A Lyotard, ele opõe a necessidade de privilegiar o consenso contra o “dissenso”. Acusa Derrida, assim como Gadamer e o próprio Adorno, de fechar-se em uma visão estetizante do real, que equivale a evitar a história. Contra Rorty, ele não cessa de sublinhar a natureza contraditória de uma posição que, rejeitando a priori o conceito de fundamento, priva-se a si mesma de uma base sólida, sem opor uma resistência válida à ameaça que constitui, neste fim do século XX, o forte retorno de um irracionalismo difuso e polimorfo (Delacampagne, História da filosofia no século XX, pp. 277-278). 132
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copernicana trazida pela obra “Verdade e Justificação”. Agora, nosso autor retoma a questão antropológica das condições para o conhecimento esquecidas desde “ Co nhecimento e Interesse” e assume uma nova perspectiva para a noção de aprendizagem que se desvincula de uma construção ligada tão-somente à uma teoria da sociedade, tal como na ‘ Teoria do agir comunicativo’ passando agora para uma condição antropológica da espécie huma na. A noção de aprendizagem se explicitará como supor te para uma teoria da racionalidade, permitindo com que Habermas concebesse os pressupostos de uma hermenêutica livre dos pressupostos da metafísica, isso é, trabalhasse os pressupostos do conhecimento independen temente de condições transcendentais ou, melhor dizendo, que as mesmas se dessem como um dado a priori. Habermas percebe que a pressuposição de uma verdade consensual poderia autorizar mentiras formalmente consentidas, ou que a factível ausência de consenso poderia ser interpretada como a inexistência sobre a verdade. Nesse sentido, Habermas agrega a teoria de Popper a seu conceito de compreensão da passagem do conceito de ob jetividade para o de aprendizagem como centro da teoria do conhecimento. Dito de outra maneira, a natureza só pode ser percebida pelo homem por meio da cultura (linguagem). Contudo, é sabido que ela existe independentemente da linguagem. Veja: é possível designar o interruptor de um abajur nas mais distintas línguas (português, alemão, mandarim etc.). O funcionamento em si do mesmo independe da designação que se der a ele. 11 Ora, isso é uma limitação inexorável 11 O pragmatismo kantiano explica ambas as coisas: a experiência de senso comum de ter de lidar com a resistência de uma realidade decepcionante e o fato de que não temos nenhum acesso imediato a uma realidade não interpretada ou “nua”. Há duas idéias que têm de ser integradas na mes ma estrutura conceitual. Por um lado, o viés pragmático não nos permite 133
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do conhecimento, vez que o homem jamais terá acesso pleno (fora da linguagem) à natureza. Como não é possível sair dos limites da linguagem, a busca de Karl-Otto Apel – na obra Mit Habermas gegen Habermas denken12 – por uma fundamentação última do conhecimento é absolutamente vã.13 Por outro lado, Habermas superava tanto o modelo representacional do conhecimento, no qual a “verdade” se traduziria pela correspondência entre a proposição/representação e o fato/objeto, próprio do paradigma filosófico metafísico e ainda dominante no paradigma do sujeito cognoscente. duvidar da existência de um mundo percebido independentemente de nossas descrições e visto como o mesmo para todos nós. Por outro lado, não nos é possível sair do círculo da “nossa” linguagem, de modo que nosso conhecimento falível não pode ter justificações fundamentais. [...] As condições transcendentais funcionam agora para nós como um dado a priori , uma vez que partimos do nosso envolvimento numa forma cultural de vida; mas já não se afirma que elas se localizam num mundo inteligível que não teve origem nem no espaço nem no tempo. Dessa maneira, com patibilizam-se Kant e Darwin (Habermas, A ética da discussão e a questão da verdade, pp. 55-56). 12 Quando interrogado sobre essa controvérsia, durante uma entrevista concedida ao Monde de l’Éducation, Habermas a minimizou e a classificou como sendo uma “briga de família”. É necessário levar em conta essa resposta, que vem confirmar a atitude de Habermas desde o início dos anos 1990; evidentemente, respondeu a Apel, e às vezes de maneira veemente, sem todavia tomar a iniciativa de um contra-ataque. Diante das objeções que lhe eram feitas, não abrandou sua posição; ao contrário, parece ter desejado aumentar a distância existente entre os dois autores. Não se fez de desentendido; tentou revelar-lhe as fraquezas; como resul tado, as diferenças revelaram-se mais marcantes entre duas posições que me parecem, a par tir de agora, corresponder a coerências explicitamente diferentes (Bouchindhomme, A origem da controvérsia entre Apel e Habermas, p. 28). 13 Se a linguagem e a realidade se interpenetram de uma maneira que para nós é indissolúvel, a verdade de uma sentença só pode ser justificada com a ajuda de outras sentenças já tidas como verdadeiras. Esse fato aponta para uma concepção antifundacionista do conhecimento e da justificação e, ao mesmo tempo, para a noção de verdade como coerência (Habermas, A ética da discussão e a questão da verdade, p. 59). 134
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Habermas procurou um modelo alternativo ao naturalismo de Quine 14 e ao idealismo da história do Ser de Heidegger, que também procuravam se livrar dos elemen tos metafísicos da distinção entre o eu e o mundo, entre o intramundano e o mundo, entre ciências empíricas e ciências sociais.15 Dessa forma, Habermas procura configurar o 14 O naturalismo de Quine preconiza a redução de todo o conhecimento aos procedimentos das ciências empíricas, ou seja, uma assimilação objetivista das práticas sociais, de modo a suprimir a distinção entre o dualismo metodológico, entre o exame das condições de constituição do mundo e o estudo dos estados e eventos que se manifestam no mundo fenomênico. Contudo, à supressão da distinção entre enunciados (kantianos) analíticos e sintéticos, Quine propugna a substituição da hermenêutica e da linguagem pelo conceito behaviorista de significação-estímulo, enxergando as relações sociais por meio de um sofis ticado processamento de estímulos sensoriais. Habermas considera o descarte de qualquer intuicionismo dos indivíduos, o calcanhar de Aquiles dessa teoria, vez que os mesmos não se encaixam nessa descrição objetivante. 15 [...] Heidegger concebe a diferença transcendental entre mundo e intra mundano como diferença ontológica entre ser e ente, e põe a compreen são dominante do ser na dependência do a priori do sentido, próprio da abertura lingüística ao mundo. Com isso, a consciência invariante do sujeito transcendental dissolve-se na mutação histórica das “ontologias” gramaticalmente inscritas nas línguas a cada vez dominantes. A concepção da história do Ser toma emprestado do modelo da história intramundana os aspectos de um acontecer contingente em que estão enredados os sujeitos capazes de falar e agir. Mas tal concepção localiza os “eventos” das interpretações epocais do mundo no nível transcendental de uma instauração a priori do sentido, do qual os contemporâneos não podem se subtrair. Os sujeitos capazes de falar e agir estão entregues à história do Ser como a uma fatalidade. Com essa concepção, Heidegger [.. .] mantém, com a diferença transcendental entre mundo e intramundano, a diferença metodológica entre investigações ontológicas e ônticas. [...] Por outro lado, salta aos olhos o preço que os sujeitos que dizem “sim” e “não” devem pagar por esse fatalismo do Ser. A “recordação” esotérica que, em face de um destino “imemorial”, se sabe liberta dos deveres da justificação inerentes à fala motivadora e ao pensamento discursivo invoca um acesso privilegiado à verdade. Para a autocompreensão de seres autôno mos que se deixam levar por razões a tomadas de posição racionalmente motivadas, essa pretensão é uma hipoteca não menos pesada que a nive lação naturalista de nossa autocompreensão normativa (Habermas, Verdade e Justificação, pp. 33-34). 135
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paradigma filosófico da viragem lingüística fora de qualquer pragmatismo transcendental. A faceta subjetiva do conhecimento descrita em “Conhecimento e Interesse” pressupõe agora uma continuidade entre natureza e cultura, denominada por Habermas “naturalismo fraco”, alternativa apresentada por ele mesmo com o fim de evitar a integração/subordinação da perspectiva interna do sujeito ao ponto de vista externo do mundo objetivo. A concepção do conhecimento pela via do “naturalismo fraco” procura superar as diferenças transcendentais acima assinaladas, ao perceber que o modelo de ciência como “um espelho da natureza”, isso é, do pensamento que capta a essência do universo, não tem mais espaço, não tem mais espaço para sua subsistência. Dessa forma, opta pela perspectiva de uma analogia entre a evolução natural das espécies com os processos de aprendizagem, entendidos como uma seqüência de solução de problemas, nas quais os erros ensinam/encaminham os próximos passos a serem dados pela pesquisa. O conhecimento resulta do trato inteligente dado às decepções inerentes ao choque entre as hipóteses levantadas e o mundo circundante. O vocabulário do aprendizado [...] não pode, por sua vez, ser simplesmente reinterpretado na concei tualidade neodarwinista. Do contrário, o naturalismo perde sua essência. [...] Pois a concepção da evolução natural como um processo análogo ao aprendizado assegura um conteúdo cognitivo às próprias estruturas que têm uma gênese natural e possibilitam nossos processos de aprendizado. Isso, por sua vez, explica por que a universalidade e a necessidade de “nossa” visão do mundo objetivo não têm necessariamente de ser prejudicadas pelas circunstâncias contingentes de sua gênese. Se a evolução natural é observada do 136
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ponto de vista de capacidades crescentes de solução de problemas, as propriedades que emergem a cada vez recebem um valor cognitivo que, de “nossa” perspectiva, se apresenta como acréscimo de saber. [...] A analogia do aprendizado, que aplicamos aos desenvolvimentos governados por mutação, seleção e estabilização, qualifica o equipamento do espírito humano como uma solução inteligente de problemas, ela mesma descoberta sob as limitações impostas pela realidade. Essa visão derruba os alicerces da idéia de uma visão de mundo relativa à espécie (Habermas, Verdade e Justificação, pp. 37-38). Em absoluto, não se trata de uma adoção pura e simples da teoria do conhecimento de Popper, eis que, de um lado, essa pauta-se exclusivamente por um raciocício dedutivista ligado a um conceito de ciência avalorativa e neutro em relação aos interesses imanentes da sociedade, e, por outro, não incide no problema de uma falácia naturalista, pois o conhecimento assume com ele perspectivas de uma correção normativa distinta entre proposições empíricas – aferíveis empiricamente – para proposições culturais, que demandariam elementos ainda presentes na teoria discursiva. Com isso, o centro de gravidade da pragmática universal deixa de ser a verdade e passa a ser a aceitabilidade racional, eis que a mesma se desvincula de sua suposição anterior ligada ao êxito do acordo racional. As mudanças operadas por Habermas no conceito discursivo de verdade são de dois aspectos: de um lado, a desvinculação do conceito de verdade como asseverabilidade ideal; e, de outra banda, a relação do conceito discursivo de aceitabilidade racional com um conceito não epistêmico de verdade, concebido em termos pragmatistas de disponibilidade técnica sobre o ambiente. 137
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Nos termos da teoria pragmática da verdade, assim como Habermas a compreende, as afirmações que recebem uma fundamentação racional no nível discursivo acabam sendo traduzidas para o âmbito da ação, de tal sorte que tais proposições se convertem num conjunto de conseqüências práticas. Essas conseqüências práticas é que encontram a resistência de um mundo idêntico a todos, indisponível e independente e, se forem malsucedidas, se fracassarem, acabarão por forçar a uma nova discussão das proposições da quais se originaram. O fracasso significa que o mundo deixa de colaborar no sentido da ação pretendida. Trata-se da resistência de um mundo idêntico a todos, indisponível e independente. Equacionando a problematicidade a partir de novas razões e argumentos, a proposição estará apta a gerar um novo conjunto de conseqüências práticas, voltando a mergulhar na ingênua relação com o mundo, própria do domínio da ação. No mundo vivido, em razão da premente necessidade da ação, vige uma concepção realista de conhecimen to, pois, não se pode dar ao luxo de uma perspectiva falibilista, confortável no nível do discurso, pois distante das necessidades do agir. O conceito pragmático de verdade tem, por conseqüência, uma face de Janus, uma voltada para o mundo vivido e outra para o discurso (Dutra, Razão e consenso em Habermas, pp. 141/142). De certo, a resistência operada empiricamente nesse mundo indisponível ao homem, eis que o mesmo só pode acessá-lo indiretamente por via da linguagem, é distinta da resistência materializada por um dissenso normativo, seja na Moral ou no Direito. Logo, a aprendizagem teórica se distingue da aprendizagem moral, entendida aqui como uma ampliação de perspectivas no esforço de inclusão das minorias dissidentes em um acordo normativo. Se o primeiro se traduz por um conjunto de ações pragmáticas do homem com/sobre o mundo indisponível, a aprendizagem moral se 138
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traduz por uma ampliação nas proposições valorativas que guiam a ação humana.
Com tais considerações, torna-se possível uma releitura da Teoria Discursiva do Direito. Assim, no estágio atual da trajetória de Habermas, estava claro que a legitimidade do ordenamento jurídico não poderia mais recuar ante as noções da metafísica dos costumes, ou seja, na força dos elementos divinatórios e sagrados de uma religião dominante. No mundo contemporâneo, as cosmovisões metafísicas ou religiosas são incapazes de providenciar tal legitimidade. A irrupção do individualismo, exacerbado pela Reforma Protestante, pelo capitalismo e o racionalismo trazido pela Revolução Científica e pelo humanismo, fundaram uma sociedade de cosmovisões heterogêneas, com concepções díspares do que seja uma “vida digna”, tanto no plano individual quanto no coletivo. Tampouco, como já se viu, a concepção maxweberiana de uma ordem jurídica estabilizada numa forma de dominação coletiva, instituída pela racionalidade administrativa/judicial e vinculada a uma estrutura abstrata de uma legalidade arbitrária, posto que desconectada da moral, ancorada puramente em elementos formais, era incapaz de promover a integração social exigida pelas sociedades modernas. Para a concepção habermasiana, a sociedade atual, multicultural e racionalista, rejeita tanto a metafísica religiosa dos antigos, quanto o apelo à legalidade/discricionariedade do positivismo, como mecanismos de legitimação do Direito. Em tal situação, agudiza-se o seguinte problema: como integrar socialmente mundos da vida em si mesmos pluralizados e profanizados, uma vez que cresce simultaneamente o risco de dissenso nos domínios do agir comunicativo desligado de autoridades sagradas 139
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e de instituições fortes? (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 46). Por conseguinte, o papel do sagrado será substituído pela ação simultânea e co-originária da Moral e do Direito. 16 Para tanto, afastando-se de qualquer postura jusnaturalista, percebe que a legitimidade do Direito só poderia advir da seguinte relação: a faticidade da imposição coercitiva do Direito pelo Estado deveria estar conectada a um processo de normatização racional do direito, pois a coerção e a liberdade são componentes essenciais à dupla dimensão da validade jurídica. 17 Ele percebe que a legitimidade do Direito não se resolve num momento único de entrega de parcela de sua liberdade ao Estado, tal como no pacto social hobbesiano. Tampouco como institucionaliza16 O direito é introduzido nessa concepção como um modo originário de dirimir conflitos paralelamente à moral, da qual não é dedutível. Neste caso, já não é considerado um meio que favorece a intrusão dos sistemas sociais no ‘mundo vivido’ que, por sua vez, já não se encontra em situação de ‘resistência’ à jurisdicização. Pelo contrário, o direito é um meio que permite aos cidadãos, sujeitos de direito, fazer valer eficazmente seus interesses legítimos, no caso de apoderamento por parte do mercado, ou do Estado (Rochlitz, Razão e racionalidade em Habermas, p. 20). 17 Porém, o sentido desta validade do direito somente se explica através da referência simultânea à sua validade social ou fática (‘ geltung’) e à sua validade ou legitimidade (‘ gültigkeit’). A de normas do direito é determinada pelo grau em que consegue se impor, ou seja, pela sua possível aceitação fática no círculo dos membros do direito. Ao contrário , o direito normatizado não se apóia sobre a facticidade de formas de vida con suetudinárias e tradicionais, e sim sobre a definidas conforme o direito e que podem ser impostas pelo Tribunal. Ao passo que a legitimidade de regras se mede pela razoabilidade discursiva de sua pretensão de ; e o que conta, em última instância, é o fato de elas terem surgido num ” (Habermas, Direito e Democracia , vol. I, p. 50, grifo nosso). 140
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ção do Direito Natural 18 em liberdades subjetivas fundadas na autonomia moral, como propôs Kant. 19 Kant procurou a legitimidade do Direito num caminho inverso ao procurado por Weber, ou seja, numa fundamen tação essencialmente moral do Direito. O homem não se conduziria pela autoridade das instituições estatais para fazer cumprir suas normas, mas também e principalmente pela racionalidade prática de uma ação intra-subjetiva da ética e da moral. Todavia, num mundo plural, com distintas construções de fundo ético, com valores substantivos diversos e às vezes contraditórios, como a moralidade poderia sustentar a legitimidade do Direito? Como ela poderia garantir a integração social e a estabilização de múltiplas e diferentes expectativas de comportamento? Na modernidade, o consenso valorativo material de formas específicas de vida reduz-se ao campo da ética, mas não tem condição de, por si só, racionalmente, fundamen18 A autonomia do sistema jurídico consiste justamente em sua emancipação das exigências de fundamentação em termos de Direito natural. A validade do código “lícito/ilícito” ( recht/unrecht ) independe inclusive de norma básica positiva (Kelsen), assim como de uma regra de cognição (HLA Hart) (Günther, Teoria da Argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação, p. 382). 19 Ele (Kant) parte do conceito fundamental da lei da liberdade moral e extrai dela as leis jurídicas, seguindo o caminho da . A teoria moral for nece os conceitos superiores: vontade e arbítrio, ação e mola impulsionadora, dever e inclinação, lei e legislação, que servem inicialmente para a determinação do agir e do julgar moral. Na doutrina do direito, esses conceitos fundamentais da moral são reduzidos a três dimensões. Segundo Kant, o conceito de direito não se refere primariamente à vontade livre, mas ao dos destinatários; abrange a de uma pes soa com outra; e recebe a que um está autorizado a usar contra o outro, em caso de abuso. O princípio do direito limita o princípio da moral sob esses três pontos de vista. A partir dessa limi-s tação, , a moralidade na legalidade, os deveres éticos nos deveres jurídicos, etc. (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 140, grifo e acréscimo nossos). 141
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tar a praxis jurídica. Por conseguinte, a moralidade deve transcender as diversas visões de mundo, com enunciados derivados de um diálogo/discurso público e racional, incluindo tanto concepções individuais quanto coletivas sobre a noção de vida digna. Tais concepções não devem constituir-se no interior de um único mundo da vida, ou seja, sob a ótica de uma ética/moralidade padrão, mas a partir de uma deliberação racional baseada na universalização dos interesses em questão.20 A ética monológica kantiana21 é substituída por uma ética discursiva e deontológica de caráter universalista por Habermas. Ele, com isso, procura alcançar o objetivo kan tiano de uma lógica formal que se afaste de qualquer con teúdo a priori material. Na obra de Kant, esse objetivo se concretiza, no máximo, de forma aproximada, vez que a razão prática, que possibilitaria o “encaixe” das condutas em um imperativo categórico de agir, de tal maneira que seu comportamento pudesse ser universalizado, pautar-seia por uma consciência monológica. Essa concretização, no máximo, se aproxima do objetivo de obtenção de um critério para a definição de uma ética puramente formal, ou seja, o princípio da universalização esbarraria exatamente 20 Cf. Carracedo, Ética constructivista y autonomia personal, p. 99. 21 A distinção kantiana entre os imperativos hipotéticos, nos quais o indivíduo age segundo fins, e os imperativos categóricos, nos quais o indivíduo age segundo o dever pelo dever, não evita na leitura habermasiana que a concepção ética de Kant seja considerada em seu todo como teleológica. Observe: A intersubjetividade da validez das leis morais, admitida a priori mediante a razão prática, permite a redução do agir ético a acção monológica. A relação positiva da vontade com as vontades dos outros é subtraída à comunicação possível e substituída pela concordância transcendentalmente necessária de actividades teleológicas isoladas, que obedecem a leis universais abstractas. Sendo assim, -s mutatis mutandis (Habermas, Técnica e ciência como “ideologia” , p. 22, nosso destaque). 142
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em seu caráter solipsista. Por conseguinte, certamente, as máximas22 obtidas por tal princípio de universalização acabam sendo necessariamente tingidas pelos valores pessoais do indivíduo que as formula. 23 Desse modo, se cada um de nós supor, com base em valores que compõem seu ethos particular, que a obrigação possa ser universalizada, sem poder submetê-la à intersub jetividade (críticas, dissenso, etc.), a lógica kantiana acaba por esbarrar exatamente naquilo que procurava eliminar: uma moralidade substantiva. Dito de outro modo, o fato de a razão prática de Kant não se livrar do encapsulamento da filosofia da consciência, não permite com sua noção de princípio da universalização alcance uma dimensão procedimentalizada. 22 A máxima é um princípio de ação do sujeito e não apenas o impulso da ação, que também possui o animal, um princípio de ação que media a lei moral abstrata e a ação concreta do indivíduo (Salgado, A idéia de justiça em Kant, p. 197). 23 Gostaria de esclarecer desde já que a interpretação intersubjetivista do Imperativo Categórico não tem a intenção de ser outra coisa senão uma explicação de seu significado fundamental, e não uma interpretação que dá a esse significado uma nova direção. A transição da reflexão monológica para o diálogo explica uma característica do procedimento de univer-salização que permaneceu implícita até o surgimento de uma nova forma de consciência histórica, na virada do século XVIII para o XIX. Quando toma mos consciência de que a história e a cultura são as fontes de uma imensa variedade de formas simbólicas, bem como da especificidade das identidades individuais e coletivas, percebemos também, pelo mesmo ato, o tama nho do desafio representado pelo pluralismo sistêmico. [...] É essa multiplicidade de perspectivas interpretativas que explica por que o sentido do princípio de universalização não se esgota numa reflexão monológica segundo a qual determinadas máximas seriam aceitáveis como leis univer sais do meu ponto de vista. É só na qualidade de participantes de um diá logo abrangente e voltado para o consenso que somos chamados a exercer a virtude cognitiva da empatia em relação às nossas diferenças recíprocas na percepção de uma mesma situação. Devemos então procurar saber como cada um dos demais participantes procuraria, a partir do seu próprio ponto de vista , proceder à universalização de todos os interesses envolvidos (Habermas, A ética da discussão e a questão da verdade, pp. 9-10). 143
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Com isso, em nossa opinião, o fato de Kant entender a religião como o conhecimento de deveres que assumem a condição de mandamentos divinos, ou seja, no âmbito da moral, especialmente ligada ao evangelho de São Mateus, atesta que ele acreditava que as normas do cristianismo reformado poderiam se encaixar como obrigações universalizáveis. Da mesma forma, no instante em que Kant vê a impossibilidade de a mulher participar como cidadã de uma democracia representativa pode ser encaixado como crítica a uma visão solipsista que pretende universalizar condutas humanas. Em face do fracasso do princípio da universalização Kantiano em construir uma moral puramente formal, isso é, afastada de elementos éticos, religiosos e culturais de uma sociedade específica, Habermas aposta no procedimentalismo para encontrar a chamada moralidade pós-convencional. Em oposição à produção interior e monológica de normas jurídicas, pautada por uma moral convencional, ele propõe um procedimento dialógico/discursivo fundado no “princípio da moralidade”: a moral 24 transforma-se num procedimento para a avaliação imparcial de questões difíceis, um procedimento fundado na noção de reciprocida24 Tal como visto no desenvolvimento da teoria do agir comunicativo, Kohlberg anota a existência de três níveis, como bem observa Galuppo (2002), ou seja, o pré-convencional, o convencional e o pós-convencional: “O termo significa para Kohlberg [...] No nível pré-convencional , o indivíduo não chega a compreender as regras e valores em que se baseiam tal acordo, e as reificam. No nível pós-convencional, os indivíduos percebem que esses acordos, por seu turno, baseiam se em princípios que, inclusive, podem fundamentar alterações desses acordos. O nível pós-convencional [...] é dividido em dois estágios: o estágio 5 (nível do contrato social ou da utilidade e dos direitos individuais) e o estágio 6 (nível dos princípios éticos universais)” (Souza Cruz, O direito à diferença, p. 96, grifo nosso). 144
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de,25 de maneira a permitir/garantir o florescimento de dis tintos projetos de vida. O “princípio da moralidade”, tal como reconstruído por Habermas em sua dimensão discursiva, contribui para retirar do indivíduo o peso cognitivo da formação solipsis ta do juízo moral. É preciso recordar que a moralidade habermasiana encontra importantes subsídios no pensamento de Kohlberg e este, por sua vez, na obra de Piaget, estabelecendo um paralelo entre níveis distintos de moralidade e o processo de aprendizagem. 26 Na etapa pré-convencional da sociedade, a comunidade ainda não possui valores próprios, vez que as tradições/costumes ainda não se consolidaram. Da mesma forma que uma criança procura aprender padrões lingüísticos estabelecidos ou compreender regras de comportamento social, a comunidade está ainda estabelecendo normas de comportamento social. A fase convencional corresponde ao momento em que os valores éticos, religiosos, sociais, políticos e econômicos já estão estabelecidos, firmando um status quo social. Comparada à aprendizagem, a criança já compreendeu as regras sociais, delas sabendo utilizar-se. Assim, se na 25 [...] é preciso que cada pessoa possa colocar-se no papel dos outros envolvidos e pensar a solução da perspectiva de cada envolvido [...]. Por isso, afirma Kolhberg: “Uma solução justa para um dilema moral é uma solução aceitável para todas as partes, cada qual considerada livre e igual e na suposição de que nenhuma saiba que papel viria assumir na situação” [...] (Kohlberg apud Habermas, 1998) (Galuppo, Os princípios jurídicos no Estado Democrático de Direito: ensaio sobre o modo de sua aplicação, p. 202). 26 Os estádios do juízo moral formam uma seqüência de estruturas discretas que é invariante, irreversível e consecutiva. Com essa suposição fica excluído: que os diferentes sujeitos testados alcancem o mesmo objetivo por diferentes vias de desenvolvimento; que os mesmos sujeitos regridam de um estádio superior a um estádio inferior; que saltem um estádio no curso de seu desenvolvimento (Habermas, Consciência moral e agir comu nicativo, p. 157). 145
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etapa anterior ela não sabia mentir, ou se considerava negativa toda e qualquer mentira, agora ela já conhece o valor da chamada “mentira social”. Na etapa pós-convencional, os indivíduos, mesmo detentores de uma herança cultural, conseguem identificar os valores que formam sua identidade e passam a ter juízos de valor críticos sobre os mesmos, por meio do reconhecimento dos direitos individuais e de princípios universais. Numa metáfora, poder-se-ia dizer que na moralidade préconvencional o indivíduo está aprendendo as regras do jogo. Na etapa convencional, ele está apto a jogá-lo. Finalmente, na fase pós-convencional ele se torna capaz de criticar tais regras. Eis aqui uma distinção notável entre o procedimentalismo de Habermas e o substancialismo que pressupõe, como suposto de sua compreensão normativa, uma interpretação teleológica de mandamentos morais baseada em éticas substantivas distintas, de maneira a admitir a colisão/ponderação entre valores. Esses, por sua vez, exprimem bens/interesses ambicionados/preferidos por pessoas, individualmente ou por coletividades. 27 A ponderação de valores reelabora o pensamento de Aristóteles ao trabalhar no campo de uma moralidade 27 Princípios deontológicos da teoria moral impedem ‘ a limine’ qualquer interpretação teleológica de mandamentos morais [...]. Nós seguir mandamentos morais porque os temos como certos e não porque espera mos obter, através deles, a realização de certos fins – mesmo que esses fins visem à felicidade pessoal suprema ou o bem estar coletivo. [...] Essas nor mas, por sua vez, têm que passar por um teste de generalização que exa mina o que é igualmente bom para todos. Assim como é um predicado para a validade de proposições assertóricas, é um predicado para a validade das proposições normativas gerais que expressam mandamentos morais. [...] As normas morais também incorporam valores ou interesses, porém somente os que são generalizáveis, levando em conta a respectiva matéria. Essa pretensão à universalidade exclui a interpretação teleológica de mandamentos morais, ou seja, a interpretação que leva em conta a vantagem de certos valores ou interesses (Habermas, Direito e Democracia, vol.I, p. 193, grifo do autor). 146
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ainda convencional, ou seja, nos estágios 3 e 4 de kolhberg. A distinção entre a moralidade convencional, pautada em valores sociais, emergidos historicamente de tradições cul turais, lingüísticas e religiosas, e a moralidade pós-convencional, aspecto procedimental de valores, que filtra por meio da reciprocidade somente valores absolutos e universais, é essencial para a compreensão da crítica à ponderação de Alexy ( Teoria da Argumentação). Um bom exemplo são as questões que envolvem a homossexualidade. A tradição judaico-cristã vê o homossexual como um desviado da conduta normal. Por definição, a homossexualidade aproxima-se da doença, da imoralidade e da repugnância. Logo, julgamentos pautados em valores podem colocá-los como párias da sociedade. Assim, no tocante à adoção de crianças/menores, o interesse/valor coletivo de preservação da família ou da educação da criança, em regra podem servir de óbice ao reconhecimen to de tal direito aos homossexuais. Já com a moralidade pós-convencional, a decisão teria outros parâmetros, pois ela se pauta em termos de reciprocidade. Assim, seria necessário perguntar como cada um se sentiria se fosse punido criminalmente, se buscasse prazer em relações sexuais que bem entendesse? Ou, como cada um se sentiria se não pudesse criar filhos? 28 Autores contemporâneos como Alexy, apesar de tentarem se afastar de Kant, ao adotarem um procedimento dialógico, plural e em contraditório, fracassam também na ten tativa de se libertar da visão de uma moralidade substan tiva/relativa, simplesmente porque não trabalham com uma concepção procedimentalista e deontológica de moralidade e do direito, que diferencia de modo cabal, por um 28 Para maiores detalhes recomendamos a leitura de nossa obra anterior “O Direito à Diferença”. 147
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lado, aquilo que é justo do que é injusto, e, por outro, o que é lícito do que é ilícito. 29 O comunitarismo, em especial Alexy, ainda foca suas preocupações em uma perspectiva etnocêntrica da sociedade. Ao admitir a superação de um valor em detrimento do outro, mesmo esforçando-se para caracterizar sua principiologia em bases deontológicas, ele fracassou no esforço de trabalhar com uma moralidade pós-convencional. [...] ele sugere aí uma interpretação de normas jurídicas que foi criticada por Klaus Günther e por mim. Segundo essa interpretação, a compreensão deontológica de normas deve permitir que se chegue a uma compreensão equivalente de conteúdos de valor correspondentes. Alexy vê muito bem a diferença entre os dois modos de observação: “O que prima facie parece ser o melhor no modelo de valores é o que se deve cumprir prima facie no modelo de princípios; e o que é definitivamente o melhor no modelo de valores é o que se deve cumprir em definitivo no modelo de princípios. Portanto, princípios e valores diferem apenas devido a seu caráter deontológico, por um lado, e a seu caráter axiológico, por outro.” Mas a disputa gira em torno do “apenas” (Habermas, A inclusão do outro, p. 355, nosso destaque). Alexy procurou, mas não superou o aspecto etnocên trico de sua teoria. Ao admitir a superação de um valor em detrimento do outro, mesmo esforçando-se para caracterizar sua principiologia em bases deontológicas, ele fracassou no esforço de trabalhar com uma moralidade pós-convencional. Em outras palavras ele, assim como Kant, supôs 29 E é essencial compreender que a supremacia da Constituição é elemen to fundamental à configuração de tal código. 148
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uma errônea subordinação do Direito a uma moralidade ainda monológica. Crítico de tal visão, Habermas acredita que o homem é capaz de superar os limites tanto da moralidade convencional quanto da monológica, ou seja, capaz de superar/fil trar seus limites culturais/valorativos pessoais por meio de princípios universais. Como observou, os discursos jurídicos não podem ser compreendidos como um caso especial da argumentação moral geral, tal como preconizava Alexy: Não é mais preciso limitar os discursos jurídicos através de uma restrição lógica dos conteúdos morais. Eles não constituem casos específicos de argumentações morais, ligados ao direito vigente, limitados, por isso, a uma parte daquilo que é moralmente permitido ou necessário. Eles são, ao invés, referidos naturalmente ao direito gerado democraticamente e institucionalizados juridicamente (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 292). Para Habermas, assim como para parcela notável da doutrina comparada,30 a ponderação de valores não consegue se ver livre de uma irracionalidade metodológica e de um decisionismo que são capazes de transformar a atividade jurisdicional em Poder Constituinte Originário. 31 30 Cf. Souza Cruz, Jurisdição Constitucional Democrática. 31 Princípios ou normas mais elevadas [...] possuem um sentido deontológico, ao passo que os valores têm um sentido teleológico. Normas válidas obrigam seus destinatários, sem exceção e em igual medida [...], ao passo que valores devem ser entendidos como preferências compartilhadas intersub jetivamente [...]. Normas surgem com uma pretensão de validade binária, podendo ser válidas ou inválidas; em relação a proposições normativas, [...] nós só podemos tomar posição dizendo “sim” ou “não” [...]. Os valores, ao contrário, determinam relações de preferência, as quais significam que determinados bens são mais atrativos do que outros [...]. Posso orientar o meu agir concreto por normas ou por valores, porém a orientação da ação não é a mes ma nos dois casos. A pergunta: “o que eu devo fazer numa 149
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Lastreado em posições de Cortes Constitucionais européias, os comunitaristas defendem-se, entendendo como forma legítima de operação do Direito, a “Jurisprudência de Valores”, vez que assumem como metavalor a dignidade da pessoa humana. Assim, nenhuma ponderação poderia violá-lo tornando, a seus olhos, legítima a ponderação de valores. O princípio da dignidade da pessoa humana identificaria um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só exis tência no mundo. O respeito a seu núcleo central deveria pautar a criação/aplicação normativa, independentemente da crença que professe ou da origem do responsável pela prática do provimento estatal. A dignidade relacionar-se-ia tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência. 32 Em outras palavras, o conteúdo do valor da dignidade humana seria um norte seguro para que as decisões judiciais fossem sempre racionais e ao mesmo tempo consen tâneas com os valores mais caros à humanidade. Por meio dele, o intérprete seria capaz de alcançar a resposta corre ta. Dessa forma, o elemento monológico de uma ética subs tantiva manifesta-se com toda sua força novamente. Entretanto, na visão da teoria discursiva a questão não é tão singela como poderia parecer, pois a ponderação de valores avalizada pelas Cortes Constitucionais européias, ligada aos padrões da moralidade convencional, cer tamente dificulta a configuração de uma resposta correta
situação dada?” não se coloca [...] nem obtém a mesma resposta. [... ] No caso de normas, “correto” é quando partimos de um sistema de normas válidas, e a ação é igualmente boa para todos; ao passo que, numa constelação de valores, típica para uma cultura ou forma de vida, é ‘correto’ o comportamento que, em sua totalidade e a longo prazo, é bom para nós (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, pp. 316-317). 32 Cf. Sarlet, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988 , p. 503. 150
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no ato decisional. Dito de outro modo, a dignidade da pessoa humana, tomada apenas como um valor, mesmo que entendido como supremo, seria critério suficiente de racionalidade para a tomada de decisões jurídicas? Por conseguinte, torna-se oportuna a análise de alguns julgados que têm sido aplaudidos pela doutrina comunitarista nacional e que, em nossa opinião, estariam carentes da necessária racionalidade argumentativa. Streck33 aplaude decisão do Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de inconstitucionalidade n o 1158-8/AM, de 19.12.94 , ao anular legislação estadual que concedia gratificação de férias aos servidores inativos. Entendeu o tribunal, com a anuência entusiasmada do doutrinador, que tal vantagem pecuniária ofenderia o princípio da razoabilidade incidindo ‘o legislador comum em desvio ético-jurídico’. Contudo, é preciso indagar: não é a própria Constituição Federal (art. 40, § 4 o) que determina que os proventos de aposentadoria serão revistos na mesma proporção que a remuneração dos servidores da ativa? Qual a razão de tal dispositivo? Não será porque parte significativa da remuneração dos servidores públicos está concentrada em gra tificações? E, que a criação de benefício remuneratório para os servidores da ativa que não se estende aos aposentados é mecanismo certo de vilipendiar os últimos? Fica a pergunta: quem define o que é ‘desvio ético-jurídico’? O magistrado pode livremente superpor seus valores pessoais sobre aqueles aprovados na Assembléia Constituinte? Sarlet,34 outro notável comunitarista nacional, ressalta que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em acórdão relatado pelo desembargador Osvaldo Stefanello, que tra tava de causa relativa a concurso de credores falimentar, 33 Cf. Streck, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, p. 91. 34 Cf. Sarlet, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988 , pp. 86-87. 151
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subverteu a prioridade legal dos créditos fiscais/previdenciários em favor dos créditos trabalhistas, sob o fundamen to de que os últimos seriam indispensáveis à sobrevivência do ser humano. Em outras palavras, o Tribunal entendeu, sob o aplauso de um dos mais insignes constitucionalistas brasileiros, Ingo Wolfgang Sarlet, que o direito social ao trabalho se situaria em posição mais próxima da noção da dignidade da pessoa humana do que da pretensão creditícia da Fazenda Pública. Contudo, é preciso indagar: seria lícito ao Judiciário inverter uma prioridade estabelecida pelo legislador democrático baseado meramente em preferência pessoal dos magistrados? Ficaria posta a questão: o crédito previdenciário não seria suporte financeiro também para os direitos sociais de aposentados? Qual a racionalidade de uma decisão que julga o salário do trabalhador mais próximo do núcleo da dignidade humana do que a pensão de um aposentado? Não teria sido mais adequado que o julgador tivesse respeitado a opção do legislador político? Da mesma maneira encontra-se a decisão do Juízo de Direito da Vara da infância e Juventude da comarca de Joinville, Santa Catarina, nos autos 038.03.008229-0, que implementou a demanda do Ministério Público Estadual que pretendia incluir no orçamento municipal verba destinada à construção de estádio de futebol em detrimento da educação local, deficiente em um total de cinco mil vagas do ensino básico. À primeira vista a atitude do magistrado é louvável, vez que opta por uma melhor qualidade da educação local. Contudo, permanece a dúvida: o lazer e a cul tura também não seriam valores tutelados pela Consti tuição da República? Certamente, na escala de valores do juiz, esses seriam inferiores à educação. Mas, restaria a questão: porque a opção pela educação e não pela saúde, moradia, assistência social, certamente também deficitárias? Esses valores também seriam inferiores em caso de 152
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ponderação? O princípio da razoabilidade, suporte da argumentação do magistrado, é suficiente para garantir a legi timidade da decisão?35 Do exposto cabe indagar: a escolha referente à alocação de recursos orçamentários deve ser feita por representantes do povo (ou por ele diretamente, na hipótese de um orçamento participativo) ou por um magistrado? O mesmo ocorre com decisão da 5 a Câmara Criminal no Tribunal acima mencionado (TJRGS) que considerou o insti tuto da reincidência para fins de dosimetria penal inconsti tucional por violar o mesmo princípio da razoabilidade/proporcionalidade. Tal decisão mereceu saudação de Streck 36 ao entender que o mecanismo/ meio da reincidência carac terizaria um bis in idem indevido para fim de uma política penal mínima. Contudo, é preciso indagar: essa decisão não estaria transformando o julgador em um legislador? 37 Para Habermas, meios e fins, por uma exigência democrática, são definidos originariamente pelo legislador polí tico. Ao Judiciário, dentro das noções do senso de adequabilidade, cabe tão-somente verificar se a medida tem cará35 Por meio da razoabilidade, a Constituição escrita se esvaziou de conteúdo, pondo em crise os seus fundamentos teóricos. Com efeito, o reconhecimento de um princípio como a razoabilidade abre janelas de incertezas nos discursos de aplicação constitucional, a ponto de não sabermos precisar, com alguma segurança, as fronteiras entre o terreno constitucionalmente protegido e a zona constitucionalmente proscrita. Pior ainda, tanto a escritura quanto a supremacia da Constituição e os confins dos poderes estatais vão habitar o mesmo pântano de névoas e incertezas. Ter ou não ter Constituição escrita, o que antes parecia limite bastante e seguro aos poderes do Estado, não faz diferença, porque é a razoabilidade que o defi ne a posteriori e concretamente (Sampaio, O retorno às tradições: a razoa bilidade como parâmetro constitucional, p. 94). 36 Cf. Streck, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, p. 91. 37 Recomenda-se a leitura de duas outras obras que envolvem o exame desses mesmos casos. A primeira, Verdade e Consenso, na qual nosso amigo Lenio Streck apresenta robusta réplica contra nossos argumentos. De outra banda, recomendamos também a leitura de Hermenêutica e(m) debate, na qual temos a oportunidade de sustentar nossa tréplica. 153
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ter discriminatório, ou seja, se a medida viola a noção de reciprocidade inerente ao princípio da moralidade (e, pos teriormente constatar-se-á, também ao princípio da democracia), ou se ela viola direitos fundamentais, que, ver-se-á mais tarde, concebe-se a partir do discurso. Tal jurisprudência de valores levanta realmente o problema da legitimidade, [...]. Pois ela implica um tipo de concretização de normas que coloca a jurisprudência constitucional no estado de uma legislação concorrente. Perry chega a essa conclusão, reinterpre tando arrojadamente os direitos fundamentais, que deixam de ser princípios deontológicos do direito para se tornarem bens teleológicos do direito, formando uma ordem objetiva de valores, que liga a Justiça e o legislador à eticidade substancial de uma determinada forma de vida [...] (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 320). É preciso deixar claro que Habermas reconhece o fato de que as normas jurídicas, e em especial os princípios, podem conter em si valores. Ao contrário, nem de longe ele supõe um ordenamento jurídico vazio, formalista ou mesmo insensível, pois os valores são da essência da humanidade. A diferença está em perceber que os princípios não podem ser tratados como se fossem meramente valores. Eis o que os comunitaristas não percebem... No instante em que o Judiciário julga poder aplicar o direito com suporte em valores, não percebe estar assumindo indiretamente a condição de refém de argumentos axiológicos, tais como os que dizem respeito à impossibilidade de se declarar a inconstitucionalidade de leis (especialmente as que mais interessam à sanha arrecadatória do Governo) de “lacunas perigosas”, de “prejuízo financeiro”, de “dano econômico irreversível” e da “reserva do possível”. 154
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No debate atual sobre a efetividade dos direitos sociais, esta tem sempre esbarrado no argumento da reserva do possível e no princípio da reserva parlamentar em matéria orçamentária. Em outras palavras, as prestações positivas exigíveis ao Estado no tocante à direitos sociais e econômicos se submeteriam necessariamente aos seguintes condicionamentos: a) gradualidade na sua concretização; b) disponibilidade financeira/orçamentária prévia; c) liberdade de conformação pelo legislador; d) insuscetibilidade de controle jurisdicional de programas políticos legislativos. 38 Ao invés de examinar se os mesmos violam os direi tos fundamentais, o raciocínio se inverte e a prioridade se torna a viabilização da política econômico-financeira do Estado. O Judiciário, preocupado com os arbítrios cometidos pelo Estado, procura saná-los com sua decisão, mesmo que “alguns” direitos fundamentais sejam violados. Essa atitude por parte das Cortes Constitucionais é adjetivada como postura “responsável”, ou seja, o Judiciário não “quebrou o Estado”, não fez a “inflação explodir”. Ao contrário, ele se coloca na posição de reparar os erros do Executivo e do Legislativo. Contudo, o comunitarismo não questiona o fato de essa postura do Judiciário vir a chancelar implicitamente os abusos dos governantes. Ele não percebe que sua postura intransigente em favor de um ativismo do Judiciário pode levar a tais distorções. Com isso não se fala em punição de governantes irresponsáveis e tudo continua como antes... 38 Com isso não se quer dizer que o judiciário não possa “constituir” direi tos fundamentais levando em conta a circunstância relevante da limitação do erário público. Não é recomendável constituir direitos prestacionais de forma individual esquecendo-se irresponsavelmente que os mesmos não podem ser estendidos ao restante da população. Simplesmente o que se critica é o raciocínio inverso: negar o reconhecimento de um direito já constituído por dificuldades orçamentárias do Estado. 155
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Nesse sentido, a Corte alemã já deixou de determinar a devolução retroativa de impostos tidos por inconstitucionais, preocupada com as contas do governo. Assim, reconhece que o princípio do equilíbrio orçamentário deveria ser ponderado em face do princípio da supremacia da Constituição, vez que seriam considerados valores concorrentes e que ambos deveriam ser obrigatoriamente considerados. 39 A teoria discursiva, tal qual a compreendemos, não tolera essa condescendência. A democracia radical exige o direito de todos participarem das deliberações que certamente influenciam seu cotidiano e sua visão de vida digna. Assim, não há como tolerar que discursos de fundamentação (legislação) e de aplicação (jurisdição) não sejam necessariamente filtrados pelos direitos fundamentais, nos quais certamente se insere a perspectiva renovada do conceito de mínimo existencial do indivíduo. Os direitos fundamentais sociais são requisitos procedimentais da democracia, como bem alerta Souza Neto. 40
39 Cf. Weber, Economia e Sociedade, p. 83. 40 [...] ao conceito de mínimo existencial, deve-se agregar outro, alicerçado no de condições sociais da democracia, estabelecendo-se, com isso, crité rios um pouco mais alargados para se definir a esfera de sua justiciabilidade. O conceito de mínimo existencial, tal qual formulado tradicionalmente, se restringe a propugnar pela possibilidade de concretização judicial dos direitos sociais que configurem condições materiais da autonomia privada. A teoria democrático-deliberativa chama justamente a atenção para a necessidade de que o Judiciário possa concretizar, além desses, também os direitos sociais que são condições para uma participação igua litária na vida pública. Observe-se que essa igual possibilidade de partici par não assume no âmbito dessa teoria um caráter meramente formal, de igual tratamento legal pelo Estado, independentemente das condições reais de existência. [...] Mas, note-se bem: o tipo de igualdade material exigido pela democracia não é uma igualdade absoluta, mas a igualdade material relativa suficiente para que possamos deliberar quais são as dife renças que consideramos justas (Souza Neto, Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do princípio democrático, p. 324). 156
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É preciso compreender que a supremacia da Constituição não é um princípio e que tampouco pode ser ponderada, visto ser elemento essencial à constituição do código de funcionamento do Direito: um código binário que separa o lícito/constitucional do ilícito/inconstitucional. Por conseguinte, em termos apelianos, a supremacia da Constituição deve ser entendida como uma condição de validade do sis tema jurídico. Isso porque se ele deixa de ser considerado, o que se afastará é o próprio Direito. A Corte assume uma decisão de caráter estritamente político! A solução não está em ponderar/optar por uma visão de vida ou um valor, tal como propõe o comunitarismo. Mas, a noção de que a sociedade moderna é plural e, por conseguinte, vazada em um dissenso no nível moral subs tantivo, não pode ser justificativa para que a atividade judicial desistisse da busca pela resposta correta. 41 Porque no instante em que os cidadãos não assumissem “[...] como ponto de partida que os problemas políticos e jurídicos con41 Muitas pessoas, que agora tenho em mente, dizem-me que não existe uma única resposta correta para questões tão difíceis com as quais a Suprema Corte lida. Eu, então, indago: por que isso? E falo sobre a interpretação, de como ela relaciona Direito, Moral e Política. E, aí, os alunos respondem: “Arra! Bem que nós dissemos. Pois agora você diz que o Direito depende de justiça e todos sabem que a justiça é apenas subjetiva.” Então indago a eles: vocês têm uma opinião formada a respeito do aborto enquanto questão moral? Aí cada um tem uma opinião diferente. Muitos dizem: “O aborto é um crime.” A maioria costuma dizer: “A legislação antiaborto é tirânica.” E eu digo: vocês efetivamente acreditam nessas opiniões? E eles res pondem: “Claro que sim, inclusive vou participar de uma passeata esta tarde carregando faixas defendendo essas opiniões.” Replico: “Mas vocês disseram que não existe uma resposta correta em matéria política, que esta não passa de uma questão de opinião.” Bem, a contradição é evidente, não é mesmo? Com certeza é logicamente possível assumir uma posição abso lutamente cética sobre o aborto, ou sobre qualquer outra matéria referente à justiça política ou social. Mas aí é preciso que você desista de sua opi nião pessoal. E a maioria das pessoas confrontadas com essas questões vão preferir desistir da filosofia ruim a deixar de sustentar intensamente suas convicções (Dworkin, Direito, filosofia e interpretação, pp. 67-68). 157
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troversos podem ter para si uma solução ‘correta’, então a disputa política abrandaria seu caráter deliberativo e dege neraria a ponto de se tornar uma luta exclusivamente estratégica pelo poder”.42 A resposta correta é uma exigência contrafática da legitimidade da coação estatal face à normatização das expectativas sociais de comportamento e do Estado Democrático de Direito. Mas, apesar de contrafática, ela não é uma quimera ou se confunde com um conceito metafísico de Justiça. Ao contrário, o procedimentalismo fornece indicativos concretos para o balizamento dessa legitimidade, que podem ser encontrados ao longo deste trabalho, tais como o senso de adequabilidade,43 a exigência de coe42 Cf. Habermas, A inclusão do outro, pp. 315-316. 43 Kaufmann (1998, p. 37) anota que a teoria discursiva se mostra adequada apenas no plano da macroética posto que incapaz de resolver ques tões ligadas a microética, ou seja, “não auxilia a tomada de decisões imediatas, como, por exemplo, a que deve adotar um médico diante de dois feridos graves e apenas um aparelho de reanimação na escolha que deve fazer sobre qual dos dois morrerá e qual sobreviverá (Sampaio, Direitos Fundamentais, p. 116). A presente crítica, a nosso ver, não procede. Distinção entre questões ligadas à macroética ou microética podem ser conectadas também à idéia de que o Judiciário seja incapaz de examinar questões do que se chama de macrojustiça e microjustiça (Amaral, Direito, Escassez & Escolha, p. 34), na qual um magistrado se coloca dian te de um pedido milionário para tratamento médico experimental de uma criança. De um lado, coloca-se a vida do menino e, de outro, a questão orçamentária envolvendo milhares de pessoas que são cotidianamente privadas de saneamento básico e de outras ações médicas preventivas. Ora, a teoria discursiva apresenta a seguinte resposta: em primeiro lugar nenhuma teoria da sociedade pretende ser um catálogo/manual de condutas éticas. Nem de longe Habermas teve tal pretensão. Depois, a dis tinção entre micro e macroética/justiça parece ser um falso problema. Em verdade, tanto o operador do Direito quanto o médico devem necessariamente avaliar todas as situações fáticas relevantes ao caso. A ampliação da descrição situacional permitirá aos mesmos avaliar a questão de novos ângulos que, inicialmente, não lhes passavam na cabeça. Tampouco, a solução do problema passaria pela necessidade de ponderar valores, pois essa se daria na etapa da pré-compreensão hermenêutica do texto e da seleção de circunstâncias fáticas relevantes. Dessa forma, se o médico considerar como válida norma do Código de Ética “a 158
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rência/racionalidade dos argumentos, o respeito ao código binário do Direito, a integridade dworkiana face às decisões passadas (precedentes) e suas conseqüências futuras,44 o emprego da moralidade pós-convencional, o respei to ao agir comunicativo e, como se verá mais adiante, a compreensão do procedimento como mecanismo depurador do agir estratégico das partes litigantes. Nesse ponto, a noção de resposta correta (aceitabilidade racional) permeia sem se confundir com o conceito de verdade. 45 Para Habermas, assim como para Rorty, a verdade deve ser entendida como algo falível e provisório. Mas as semelhanças entre os pontos de vista acabam por aqui, pois de maneira alguma Habermas assume o relativismo rortyano, eis que correto é aquilo que pode ser racionalmente aceito em cima dos elementos acima assinalados, e não algo que deva ser cinicamente conveniente para uma dada comunidade. Ademais, a “situação ideal de fala” não se aproxima da noção de Pierce ou de Apel, isso é, um acordo fundado por uma comunidade ideal/fantástica de experts , tal como pretende a crítica de Rorty. obrigação de salvar vidas da melhor maneira que puder”, ele poderá considerar como standard de avaliação o critério de operar aquele que tiver melhores condições de escapar (Cf. Günther, Teoria da Argumentação, pp. 357-400). 44 Entre as possibilidades que se mostram aceitáveis para um determinado caso, o juiz Hércules deverá optar por aquela leitura interpretativa que melhor satisfaça ao ideal de integridade. Trata-se daquela interpretação mais bem fundamentada. Para tanto, recapitulando, Hércules deve percorrer todo o Direito para o alcance de sua solução: as leis, os preceden tes, a Constituição, etc. (Chamon Júnior, Tertium non datur, p. 100). 45 Até há pouco tempo, eu procurava e xplicar a verdade em função de uma justificabilidade ideal. De lá para cá, percebi que essa assimilação não pode dar certo. Reformulei o antigo conceito discursivo de verdade, que não é errado, mas é pelo menos incompleto. A redenção discursiva de uma alegação de verdade conduz à aceitabilidade racional, não à verdade. Embora nossa mente falível não possa ir além disso, não devemos confundir as duas coisas ( Habermas, A ética da discussão e a questão da verdade, p. 60). 159
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No entanto, o fato de que decisões tomadas hoje possam ser revistas amanhã (falibilismo temporal) não torna a busca pela resposta correta algo inatingível, como pensa Rorty, vez que todos os discursos reais são “provincianos em relação ao futuro”.46 Primeiro, porque a questão da con trafaticidade do conceito de “situação ideal de fala” já foi por demais esclarecido. 47 Depois, porque Habermas entende que a possibilidade do erro não tem o condão de impedir a humanidade de buscar o acerto, simplesmente porque o consenso/acordo sobre qualquer proposição é provisório. A falibilidade não é um pecado, e sim condição humana para todas as práticas sociais. 48 46 No mundo da vida, os agentes dependem das certezas de ação. Aqui eles têm de chegar a bom termo com um mundo suposto como objetivo e, por isso, operar com a distinção entre crença e saber. Há a necessidade prática de confiar intuitivamente no tido-por-verdadeiro de maneira incondicional. No nível discursivo, essa modalidade do ter-por-verdadeiro se reflete nas conotações de pretensões de verdade que apontam para além do contexto de justificação dado a cada vez e levam à suposição de condições ideais de justificação (Habermas, Verdade e Justificação, p. 259). 47 Este quadro conduz ao erro em dois aspectos. De um lado, é sugerido que a verdade possa ser concebida como assertabilidade ideal, por meio da qual esta, em compensação, se limita a um consenso alcançado sob condições ideais. [...]Um auto-entendimento falibilista, que se expressa no “uso preventivo” do predicado “verdadeiro”, refuta isto. Como inte lecção última, não podemos prever a alteração das condições epistêmicas, e assim também não podemos excluir que uma afirmação justificada ainda que idealmente seja, um dia, salientada como falsa. Desrespeitadas estas objeções contra uma versão epistêmica dos conceitos de verdade, e ininterrompido a cada vez mantém, todavia, tam bém depois da exoneração das fundamentações fundamentalistas, um papel importante para o esclarecimento – se não da , ainda assim – da (Habermas, Agir comunicativo e razão destrancendentalizada, p. 58). 48 Nosso autor não pode concordar com a orientação pierceana de que uma “Comunidade de Investigadores” ideal, ilimitada no tempo e no espaço, tenha a “opinião final” sobre o que é real, como resultado de um progres so do conhecimento orientado para a verdade, em que esta passa a ser identificada com “assertabilidade ideal”. Habermas pretende deslocar o acento sobre o instante último, que é “contrafático” – pois nesta idéia estão 160
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Dizer, tal como Rorty, que a procura pela distinção entre o erro e o acerto, entre o certo e o errado, entre o falso e o verdadeiro é uma ilusão, significa aniquilar qualquer possibilidade de conhecimento, ou seja, da ciência. 49 Significa também legitimar apriorísticamente qualquer espécie de conduta humana, pois independentemente de sua cons trução/execução ou, por que não dizer, de seu conteúdo, ela poderá ser legítima/verdadeira, posto que conveniente para uma dada comunidade. De outro lado, a possibilidade do dissenso não subtrai da humanidade a do consenso e, quando não, ao menos do acordo. “Crer” que existem respostas melhores do que outras (aceitabilidade racional) impede uma postura cínica diante de questões fundamentais como os direitos humanos e a democracia. Mas, é preciso deixar claro que essa crença que se apresenta no discurso não se faz da mesma forma que lidamos com o mundo objetivo. Quando alguém entra em um avião, ele crê (quase que cegamente) que irá chegar a seu destino. No discurso, os participantes assumem uma postura hipotética e falibilista de modo a separar as crenças questionáveis e desqualificadas daquelas que, por um certo tempo, recebem licença para voltar ao status de conhecimento não-problemático.50 Na primeira – embutidas exigências de incondicionalidade que transcendem as condições de justificação possível – para o próprio processo de justificação da verdade através do discurso racional, pelo qual as afirmações verdadeiras devem resistir sempre a todas as objeções levantadas até aquele momento. Isto lhe permite denunciar o uso regulativo que o pragmatismo faz do conceito de verdade e indicar como preferível um “uso preventivo”, em que a possibilidade de revisão de cada acordo alcançado deve sempre ser mantida e uma limitação das formas de entendimento atuais em relação a espaços sociais, tempos históricos e competências factuais deve sempre ser ampliada. Com esta atitude, por um lado, deseja defender a vigência de uma consciência falibilista em relação aos fatos e à sua interpretação (Aragão, Prefácio de Agir comunicativo e razão destranscendentalizada, pp. 13-14). 49 Mesmo que o matemático Lukasiewicz tenha encontrado um terceiro valor, independente do verdadeiro e do falso, para cálculo algébrico em 1920. 50 Cf. Habermas, A ética da discussão e a questão da verdade, pp. 62-63. 161
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crença na ação – o homem associa a “verdade” em função dos dados justificativos disponíveis (estatísticas de acidentes aéreos) e, na segunda, crença no discurso, o papel transitório da verdade permite que os participantes do discurso saibam que o produto do mesmo seja simplesmente “tido por verdadeiro”. O que importa ao mundo da vida é o papel pragmático de uma verdade bifronte, que serve de intermediária entre a certeza da ação e a assertibilidade discursivamente justificada. Na tessitura das práticas habitualizadas, as pretensões de verdade implicitamente erguidas, que são aceitas contra um vasto pano de fundo de convicções intersubjetivamente partilhadas, constituem por assim dizer os trilhos para as cer tezas que guiam a ação. Mas tão logo perdem seu suporte no corselete dessas evidências, as certezas afugentadas se transformam em igual quantidade de incertezas, que com isso se tornam temas. Na transição do agir para o discurso, o ter-por-verdadeiro inicialmente ingênuo51 se liberta do modo da certeza da ação e toma a forma de um enunciado hipotético, cuja validade fica suspensa durante o discurso. A argumentação tem a forma de um concurso que visa aos melhores argumentos a favor de ou contra pretensões de 51 Embora saibamos, em atitude reflexiva, que todo saber é falível, não pode mos viver no cotidiano unicamente com hipóteses, ou seja, de modo total mente falibilista. [...] Por certo, nele devemos tomar decisões com base em informações incompletas; e riscos existenciais como a perda do próximo, doença e morte são a marca da vida humana. Mas as rotinas do dia-a-dia repousam, a despeito dessas incertezas, na confiança irrestrita no saber tanto de leigos como de especialistas. Não pisaríamos em nenhuma ponte, não utilizaríamos nenhum carro, não nos submeteríamos a nenhuma cirurgia, nem sequer levaríamos à boca uma refeição de preparo sofisticado, se não considerássemos certos os conhecimentos empregados, se não tivésse mos por verdadeiras as suposições consumidas na produção ou na execução (Habermas, Verdade e Justificação, pp. 250-251). 162
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validade controversas controversas e serve à busca cooperativa da verdade (Habermas, Verdade e Justificação, pp. 249250, nosso destaque). Por outro lado, a consciência da falibilidade da respos ta correta implica dizer que a mesma não pode ser encon trada no princípio da inércia de Perelman Perelman ou na noção de saturação de Alexy. Alexy. Dessa forma, a idéia de certeza, implícita na noção de justificação de Habermas, implica a necessária e permanente abertura para novos argumentos, argumentos, o que se coaduna com a perspectiva de questionamento até mesmo da coisa julgada inconstitucional por vias que não a da Ação Rescisória e da Revisão criminal. A procura por uma resposta correta para a apreciação de conflitos de interesses nas relações humanas se insere, pois, na noção de legitimidade nascida da positividade do ordenamento jurídico. Contudo, ao invés de propor um respeito acrítico à autoridade estatal, tal como se depreende da sugestão de súmulas vinculantes na atual reforma do Judiciário brasileiro, Habermas encaminha seu pensamen to para a legitimidade das condições processuais processuais da criação/aplicação normativa. Nesse sentido, o emprego de princípios não pode ser desconectado do restante do ordenamento jurídico (regras) e, especialmente, das circunstâncias fáticas do caso concreto que permitirão ao julgador encontrar a resposta adequada ao problema. 52 Inclusive é dessa forma que Habermas alivia a moral de ser o único esteio integrativo da sociedade e, dando um passo à frente em relação à teoria do agir comunicativo, 52 Isso não exclui, naturalmente, a possibilidade do falibilismo, falibilismo, pois a busca da única resposta correta não é capaz de garantir, garantir, por si mesma, um resultado correto. Somente o caráter discursivo do processo de deliberação é capaz de fundamentar a possibilidade de autocorreções reiteradas e, destarte, a perspectiva de resultados racionalmente aceitáveis (Habermas, Era das transições , p. 162). 163
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percebe seu caráter de co-originariedade com o direito, entendido como uma relação de dependência recíproca: 53 O direito não representa apenas uma forma de saber cultural, como a moral, pois forma, simultaneamente, um componente importante do sistema das ins tituições tituições sociais. sociais. O direito direito é um sistema sistema de saber saber e, ao mesmo tempo, um sistema de ação. Ele tanto pode ser entendido como um texto de proposições e de interpre tações normativas, normativas, ou como como uma instituição, instituição, como um complexo de reguladores da ação. E dado que motivos e orientações axiológicas encontram-se interligados no direito interpretado como sistema de ação, as proposições do direito adquirem uma eficácia direta para a ação, o que não acontece nos juízos morais. De outro lado, as instituições jurídicas distinguem-se de ordens institucionais naturais através de seu elevado grau de racionalidade; pois, nelas, se incorpora um sistema de saber mantido dogmaticamente, isto é, articulado, trazido para um nível científico e interligado com uma moral conduzida por princípios (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, pp. 110-111). Dessa forma, o racionalismo habermasiano encontra a resposta correta nas condições procedimentais de institu53 O Direito resolve esse problema “sistemicamente”, pelo monopólio estatal da força, que lhe permite instituir sanções que possam coibir comporta mentos desviantes. Para Para o Direito não importam os motivos e pontos de vista pelos quais os sujeitos são compelidos a agir, basta a análise das con seqüências: seqüências: agiu-se agiu-se ou não conforme conforme a norma. norma. A moral moral institui institui suas normas normas tendo como base a consciência de que se deve agir compelido pelo consen so de que um determinado comportamento comportamento passa passa pelo crivo da universaliuniversalidade. Só que ela não tem meios de exigir das consciências que elas ajam de certa maneira. O Direito garante maior aderência a suas normas por meio das sanções, que não passam pelo crivo da universalidade, mas sim pelo da legitimidade legitimidade (Repolês, Habermas (Repolês, Habermas e a desobediência desobediência civil civil,, p. 108). 164
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cionalização jurídica das formas de comunicação e de jus tificação necessárias necessárias aos discursos discursos de de fundamentação e de aplicação. Para tanto, vê como necessária a interação do Direito com os demais sistemas sociais. Com a Política essa interação se perfaz por meio dos princípios da democracia54 e da política deliberativa que, ao incorporar argumentos não morais à discussão, incrementa o grau de coesão e de aceitação do ordenamento jurídico. Por conseguinte, o Direito, na condição de um sistema social, não cumpriria apenas a função de estabilização de expectativas de comportamento, tal como supunha Luhmann, mas seria um sistema especial capaz de interpretar as diferentes linguagens dos sistemas parciais (polí tico, econômico, científico) de modo a redirecioná-los redirecioná-los em favor de uma coesão social regulada em bases legítimas. 55 A nova teoria dos sistemas de Niklas Luhmann imporia ao Direito uma condição de absoluta impotência diante dos demais sistemas sociais. Para ele, a sociedade é um 54 Exatamente nesse ponto uma das principais principais objeções objeções postuladas por Apel em seu debate com Habermas. Para o primeiro, se o discurso é moralmente neutro, como ele poderia ser a base normativa do princípio da moralidade e ao mesmo tempo do princípio jurídico e democrático? Nesse sentido a observação de Moreira: Basicamente, para Apel, o problema de Habermas decorre do emprego da racionalidade comunicativa e sua conexão com o mundo da vida e a neutralidade do princípio do discurso. Segundo Apel, o recurso habermasiano incorre em perda profunda de criticidade, o que identifica a proposta de Habermas com um dogma tismo pré-crítico pré-crítico (Moreira, Com Habermas, contra Habermas, p. 18). 55 Mesmo admitindo o crescimento da complexidade das tarefas do Estado, é possível elaborar uma periodização aproximada, segundo a qual o Estado tem que especializar-se, especializar-se, em primeiro lugar, na tarefa clássica de manutenção manutenção da ordem; a seguir, seguir, na distribuição justa das compensações sociais; e, finalmente, na tarefa de dominar as situações de perigo coletivo. A domesticação de poder do Estado absolutista, a superação da pobreza produzida pelo capitalismo e a prevenção contra os riscos gerados pela ciência e pela técnica fornecem os temas e os fins: segurança jurídica, bem estar social e prevenção. E as formas do Estado ideal – o Estado de direito, o Estado social e o Estado securitário, devem estruturar-se de acordo com esses objetivos (Habermas, objetivos (Habermas, Direito Direito e Democracia Democracia,, vol. II, pp. 178-179). 165
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sistema global composto por subsistemas sociais. Estes, por sua vez, não seriam constituídos por pessoas, mas por formas operacionais de comunicação estabelecidas de modo autopoiéticas. Os indivíduos não passariam do ambien te no qual o sistema social promoveria promoveria suas operações. 56 Tal comunicação, que se basearia em operações auto-referenciais, se traduz em uma linguagem binária própria de cada sistema (lucro/prejuízo, maioria/minoria, verdadeiro/falso, lícito/ilícito). Logo, todas as atividades do sistema estariam voltadas e determinadas para dentro, o que Luhmann denomina de um fechamento operacional. Obviamente, tais sistemas sofreriam “irritações” externas pelo fato de se comunicarem com seu entorno. Por conseguinte, conquanto fechados, eles pressupõem adaptações aos demais sistemas sociais, chamadas de acoplamentos estruturais. Desse modo, entre o Direito e a Economia estaria o “contrato”; entre o Direito e a Política estaria a “Constituição”; entre a Economia e a Política estaria o “tributo”. Tais acoplamentos estruturais permitiriam que um sistema pudesse sofrer influências externas (irritações) de modo a se modificar/evoluir. Habermas, todavia, concebe uma teoria sistêmica de sociedade bem distinta do modelo de Luhmann. Enquanto Luhmann vê o Direito ocupando uma posição periférica/marginal na sociedade, podendo, quando muito, regular a sociedade em um sentido metafórico, 57 Habermas, de 56 O que é mais chocante e inovador nessa poeira teórica é que os indivíduos não se situam dentro do sistema, pois aqui há apenas ‘comunicações’, mas sim no seu entorno, de modo que a efetivação dos direitos somente se pode dar por meio de provocações ou irritações mediadas por acoplamentos estruturais, gerados pelos movimentos sociais no sistema, numa espécie de ‘escândalo gerador de normas’. São as reações normativas que encontramos quando ocorrem as deportações massivas, os desaparecimentos forçados, a tortura e o assassinato de políticos importantes [Luhmann] (1993:28) (Sampaio, Direitos (Sampaio, Direitos fundamenta fundamentais, is, pp. 102-103). 57 Do ângulo sociológico sociológico alienante, o direito, que se retirou para um sistema autopoiético, autopoiético, é despido de todas as conotações normativas, normativas, que se refe166
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modo inteiramente distinto, concebe um sistema composto por indivíduos dotados da capacidade de aprendizagem, no qual o Direito passa a ser o sistema que possibilita a organização da sociedade em bases legítimas. Luhmann percebe o Direito por meio da noção de estabilização de comportamentos, entendendo o Direito como um sistema que se caracterizaria exatamente por permanecer em funcionamento, mesmo com a constante e persis tente frustração de expectativas sociais. Em outras palavras, um sistema “burro” que seria incapaz de induzir mudanças na sociedade. Por conseguinte, a perspectiva sistêmica de Habermas não pode ser interpretada como idêntica à visão luhmaniana, ou seja, como mecanismo de manutenção do status quo vigente de injustiça social, 58 tal como na leitura de Streck. 59 riam, em última instância, à auto-organização auto-organização de uma comunidade de direito. Sob a descrição de um sistema autopoiético, autopoiético, o direito marginalizamarginalizado narcisísticamente só pode reagir a problemas próprios, que podem, quando muito, ser provocados a partir de fora. Por isso, ele não pode levar a sério nem elaborar problemas que oneram o sistema da sociedade como um todo. Ao mesmo tempo, ele precisa, de acordo com sua constituição autopoiética, autopoiética, desempenhar todas as tarefas servindo-se de fontes produzidas por ele mesmo. O direito tem que deduzir sua validade de modo positivista, a partir do direito vigente, ele lança fora todas as pretensões de validade que ultrapassam este nível, como se pode ver, segundo Luhmann, Luhmann, no processo judicial. Não Não há um output que o sistema jurídico pudesse for necer na forma forma de normatizações: normatizações: são-lhe são-lhe vedadas intervenções intervenções no mundo mundo circundante. circundante. Nem há um input que o sistema jurídico receba na forma de legitimações: o próprio processo político, político, a esfera pública e a cultura política formam mundos circundantes, cujas linguagens o sistema jurídico não entende (Habermas, Direito (Habermas, Direito e Democracia, Democracia, vol. I, p. 76). 58 Anote-se aqui, em sentido sentido contrário, contrário, o notável notável trabalho de Magalhães, entendendo entendendo a teoria sistêmica de Luhmann como elemento crítico às teorias normativas, de forma a explicar a incapacidade do Direito como mecanismo de integração social, especialmente em países, como o Brasil, onde a exclusão é uma tônica (Cf. Magalhães, 1998). 59 Habermas, citando citando Ulrich Press, observa a importância importância de políticas de de compensação social com camadas menos desfavorecidas da sociedade. Observe: O ponto de partida último de qualificação ao título de cidadão é (hoje em dia) a liberdade igual de cada cidadão, independentemente independentemente de 167
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Mas, para isso, o Direito recebe influxos externos ( out puts ) de outros sistemas que reelabora para fins de que a sociedade se organize sob bases legítimas. Essa abertura faz com Habermas construa o chamado princípio da democracia que garante que o discurso jurídico se abra ao emprego de argumentos pragmáticos e para o uso éticopolítico da razão comunicativa, utilizando-se dela em toda a sua extensão.60 Seria irracional considerar que o legislador não se pautasse pela dependência contextual levandoo a trabalhar sem argumentos não-morais no momento voli tivo da normatização do Direito. 61 Os argumentos não morais envolvem tanto os pragmá ticos quanto os ético-políticos. Os pragmáticos ligam-se à definição de meios necessários/adequados à realização de preferências ou objetivos da comunidade. Com eles se avaliam não apenas os meios, mas também os fins. É, pois, um seus dons naturais, capacidades ou capacidades de realização ... Não ape nas o indivíduo está interessado nisso..., porém a própria sociedade democrática como um todo não sobreviverá, se as decisões tomadas pelas pes soas não tiverem uma certa qualidade, que pode ser definida de várias maneiras. Através disso, ela também está interessada na capacidade de refletir e de levar em conta as conseqüências de decisões políticas relevantes, em sua vontade de formular e impor interesses levando em conta os interesses de seus concidadãos e das gerações futuras, numa palavra, ela está interessada em sua ‘competência comunicativa’ .. ( Habermas, Direito e Democracia, vol. II, p. 158, grifo nosso). 60 Os argumentos que justificam regras morais levam a um acordo racional mente motivado; a fundamentação de normas serve para uma negociação racionalmente motivada. No primeiro caso, nós nos convencemos dos ; no segundo, das (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 197, grifo do autor). 61 Na política legislativa, a adução de informações e a escolha pragmática dos meios estão entrelaçadas com o balanceamento de interesses e a for mação de compromissos, com o auto-entendimento ético e a formação de preferência com a fundamentação moral e o exame jurídico da coerência (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 352). 168
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elemento teleológico, finalístico, no qual se colocam discursivamente comparações e ponderações diante de alternativas para as técnicas/estratégias de ação. Já os argumentos ético-políticos envolvem debates sobre os ideais que pautam os projetos comuns de vida dessa comunidade, fixando os valores que a mesma realmente deseja para sua constituição. 62 Denomino éticas, nesse contexto, todas as ques tões que se referem a concepções do bem viver ou da vida não-malograda. Questões éticas não se deixam julgar sob o ponto de vista “moral” que se pergunta se algo é “igualmente bom para todos”; sob o fundamen to de valorações intensas, pode-se avaliar bem melhor o julgamento imparcial dessas questões com base na autocompreensão e no projeto de vida respectivo de grupos em particular, ou seja, com base no que seja “bom para nós”, mas a partir da visão do todo manifestada por esses grupos. Gramaticalmente, o que está inscrito nas questões éticas é a referência à primeira pessoa, e com isso a remissão à identidade (de um indivíduo ou) de um grupo (Habermas, A Inclusão do outro, p. 243). Obviamente, em sociedades multiculturais, como o Brasil, esses elementos éticos só podem tolerar formas de 62 A questão ético-existencial: Quem sou? Quem desejo ser? Que tipo de vida é boa para mim?, colocada no singular, repete-se no plural, modificando, desta forma, o seu sentido. A identidade de um grupo refere-se às situações nas quais os membros podem dizer enfaticamente nós; [...]. O modo como nós nos apropriamos das tradições e formas de vida nas quais nascemos e como as continuamos seletivamente decide sobre quem nós somos e queremos ser enquanto cidadãos. Decisões axiológicas graves resultam da autocompreensão cultural e política de uma comunidade histórica e se transformam junto com ela (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 201). 169
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vida articuladas em uma perspectiva não fundamentalista, ou seja, calcadas na tolerância e no reconhecimento recíproco da diversidade cultural. 63 Aqui, novamente, a analogia com o pluralismo revela-se instrutiva. Como nos recordamos, em seu momento positivo o pluralismo deve reincorporar as concepções de bem anteriormente excluídas em seu momento negativo. Mas quais dessas concepções de bem deverão ser reincorparadas, e em qual medida é algo que é determinado pelos critérios normativos impostos pelo pluralismo, tornando claro, assim, que a tolerância do pluralismo das diversas concepções de bem resulta de uma posição ativa e não de uma postura passiva (Rosenfeld, A Identidade do sujeito constitucional, p. 57). A incorporação de argumentos ético-políticos e pragmáticos permite maior adesão da cidadania à normatividade jurídica, algo que o debate meramente moral não permi te. Assim, não há que se falar em uma prevalência necessária dos argumentos morais sobre os não morais, 64 espe63 Por isso, o teor ético de uma integração política que unifique todos os cidadãos precisa ser “neutro” em face das diferenças que haja no interior do Estado entre comunidades ético-culturais que se integram cada qual em torno de uma respectiva concepção própria do que seja o bem (Habermas, A Inclusão do outro, p. 257). 64 Ou seja, a obrigatoriedade de normas jurídicas não se apóia somente na compreensão daquilo que é igualmente bom para todos, mas também nas decisões coletivamente obrigatórias (éticas) de instâncias que criam e aplicam o direito (Habermas, Era das transições , p. 172, nosso acréscimo). Contudo, é preciso anotar que no instante em que determinado assunto demandar a incidência da argumentação moral, essa deverá prevalecer. Veja: [...] o direito precisa da moral. Inicialmente porque (pragmáticos e ético-políticos) nos discursos jurídicos, por serem dotados de maior força fundamentadora, uma vez que realizam mais plenamente as condições pragmáticas dos discurso (especialmente a condição de igualdade) (Galuppo, Igualdade e diferença, p. 160, nosso destaque). 170
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cialmente no âmbito da legislação, na qual, apesar de manifestar com todo o vigor o requisito da universalidade normativa,65 não é possível depreender-se uma primazia unívoca/solipsista dos argumentos morais nos discursos de fundamentação, distintamente do que ocorre nos discursos de aplicação. A questão pode ser vista de forma sucessiva, vez que eventuais conflitos sobre o direcionamento de recursos ou sobre a preferência em termos de política socioeconômica podem ser resolvidos apenas por um consenso pragmático. Quando não, entram em ação os argumentos éticos e, assim, sucessivamente, com os morais, de modo a garantir a higidez do sistema jurídico também nos discursos de aplicação ou, em última instância, por meio da desobediência civil.66 65 Embora determinadas características formais distingam o direito moder no da moral racional pós-tradicional, o sistema de direitos e os princípios do Estado de direito, em razão de seu teor universalista, estão em conso nância com essa moral. Ao mesmo tempo, como já vimos, ordens jurídicas são “eticamente impregnadas” na mesma medida em que nelas se refletem a vontade política e a forma de vida de uma comunidade jurídica concreta (Habermas, A Inclusão do outro, p. 256). 66 Minhas reflexões ligadas à teoria do discurso encaminham-se para a auto seletividade dos questionamentos: A reflexão a seguir serve apenas como uma ilustração disso. À medida que na articulação e ponderação de políticas [argumentos pragmáticos] seja relevante a escolha de recursos e estratégias racional-finalistas [...] é preciso já terem sido dadas preferências suficientemente claras e capazes de proporcionar o consenso. [...] No entanto, se, em vez de haver pouca clareza em relação às preferências, realmente ocorrer que elas sejam controversas, então cabe aos envolvidos, em discursos éticos, chegar a acordos mútuos sobre sua forma de vida e identidade coletiva, a fim de que eles garantam para si mesmos orientações comuns de valor. Se em vez de conflitos de interesse carentes de ajustes houver conflitos de valor insolúveis, aí as partes preci sam abandonar o plano em que se encontram para alcançar posições únicas, sob um ponto de vista moral acerca das regras de convívio; [...] ; elas decorrem muito mais da lógica do questionamento de um discurso em particular, e têm como resultado que se privilegie o que seja bom 171
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Em nossa concepção, tal raciocínio pode ser exemplificado. Diante da carência de recursos orçamentários, por exemplo, é legítimo o debate parlamentar sobre despesas prioritárias dentre os objetivos constitucionais em favor dos distintos direitos fundamentais. Logo, um Governo pode priorizar legitimamente a alocação de recursos em uma lei orçamentária para a saúde em detrimento da educação ou vice-versa. A questão nesse plano poderá se cingir ao plano dos argumentos pragmáticos, desde que não haja violação ao código binário do direito, ou seja que os valores em questão estejam todos resguardados pela norma constitucional. Dessa forma, qualquer intromissão por parte do Judiciário, de forma a impor suas prioridades com base em preferências ou em torno da visão da Constituição com uma tábua de valores é integralmente repudiada pelo procedimentalismo. Da mesma forma, questões como as que impedem a legalização de matrimônios entre irmãos (incesto) ou que criminalizam (estupro presumido) a pedofilia, ou que dis tinguem entre drogas socialmente aceitáveis ou não pela sociedade, como a nicotina e o álcool de um lado e, de outro, a maconha, por exemplo, exigem a discussão no plano dos argumentos éticos, que serão necessariamente prevalecentes aqui. É o ethos social que explica a admissão da poligamia em países mulçumanos e sua não-tolerância nos ocidentais. Obviamente, tanto os argumentos pragmáticos quan to os éticos devem preencher a pretensão de universalidade contida pelos argumentos morais, fazendo com que, eventualmente, tais condutas possam não ser julgadas em face do que seja propositado, e o que seja justo em face do que seja bom. No caso de uma colisão, as razões morais “fisgam” as razões éticas, e as razões éticas, as pragmáticas (Habermas, A inclusão do outro, pp. 359-360, acréscimo nosso). 172
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como reprováveis em casos concretos (discurso de aplicação). Desse modo, quem julgaria como criminoso um árabe casado com mais de uma mulher que viesse morar no Brasil, ou condenaria por estupro um índio que se casasse com uma menina de 13 (treze) anos em consonância com as tradições de sua tribo? A soma de tais argumentos e da incidência de mais de uma espécie de discurso são essenciais para o exercício da autonomia política, que se manifesta para a composição de normas jurídicas de constituição, definidoras de competências, atribuições e procedimentos com vistas à canalização da vontade da comunidade, bem como da aplicação das mesmas aos distintos casos e contextos concretos. No entanto, tais considerações não permitem a conclusão de que o Direito possa ceder lugar à política através de uma ponderação de valores, tal como preconiza o comunitarismo. Para que a argumentação pragmática e éticopolítica não se desnature em considerações meramente teleológicas, como normalmente ocorre com a aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, é preciso que as mesmas sejam formuladas na linguagem jurídica, compatibilizando-as simultaneamente através do discurso jurídico e do princípio da soberania popular. Pelo princípio da soberania popular entende-se a exigência de que a legislação expresse a vontade da totalidade dos cidadãos, ou seja, que deixem de ser meramente destinatários do Direito, mas tornem-se seus co-autores. 67 Aqui, através de uma nova concepção de paradigma jurídico, Habermas reconstrói a relação entre a autonomia priva67 A chave normativa da concepção de justiça inscrita no paradigma procedimental do direito proposto por Habermas , . [...] Quando os cidadãos vêem a si próprios não apenas como os destinatários, mas também como os autores do seu direito, eles se reconhecem como membros livres e iguais de uma comunidade jurídica (Cittadino, Pluralismo, direito e justiça distributiva, p. 209). 173
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da e a autonomia pública, dissociadas, até então, nas concepções liberal e comunitarista.68 De maneira sintética, pode-se dizer que o pensamen to liberal concebia a política como mecanismo de institucionalização/licenciamento do uso do poder administrativo por meio de uma ideologia vitoriosa no processo eleitoral. Todavia, o centro de preocupações desse Estado seria as necessidades da autonomia privada, aqui compreendida como sinônimo de mercado, o que imporia a prevalência de direitos negativos cerceadores da ação estatal. Para o liberalismo os direitos humanos antecederiam ao Estado e, portanto, fixariam os limites tanto do espaço público quanto da liberdade de ação entre os particulares. Vale o adágio: “a liberdade de um termina onde começa a liberdade do outro”. 69 68 Os paradigmas do direito permitem diagnosticar a situação e servem de guias para a ação. Eles iluminam o horizonte de determinada sociedade, tendo em vista a realização do sistema de direitos. Nesta medida, sua função principal consiste em abrir portas para o mundo. Paradigmas abrem perspectivas de interpretação nas quais é possível referir os princípios do Estado de direito ao contexto da sociedade como um todo. [...] Além do mais, o paradigma procedimental do direito resulta de uma controvérsia acerca de paradigmas, partindo da premissa, segundo a qual o modelo jurídico liberal e o do Estado social interpretam a realização do direito de modo demasiado concretista, ocultando a relação interna que existe entre autonomia privada e pública, e que deve ser interpretada caso a caso (Habermas, Direito e Democracia, vol. II, pp. 181-182) 69 A diferença decisiva reside na compreensão do papel que cabe ao proces so democrático. Na concepção “liberal” esse processo cumpre a tarefa de programar o Estado para que se volte ao interesse da sociedade: imagina se o Estado como aparato da administração pública, e a sociedade como sistema de circulação de pessoas em particular e do trabalho social. [...] Segundo a concepção liberal, determina-se o status dos cidadãos confor me a medida dos direitos individuais de que eles dispõem em face do Estado e dos demais cidadãos. [...] Direitos subjetivos são direitos negativos que garantem um espaço de ação alternativo em cujos limites as pes soas do direito se vêem livres de coações externas. Direitos políticos têm a mesma estrutura: eles oferecem aos cidadãos a possibilidade de conferir validação a seus interesses particulares, (...). (Habermas, A Inclusão do outro, pp. 271-273). 174
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Na concepção comunitarista, a autonomia pública torna-se o centro das preocupações, vez que somente ela permitiria a consolidação de uma reflexão sobre o ethos da vida ética manifestada pela autodeterminação democrática dos cidadãos.70 Dessa maneira, o Estado somente existiria como mecanismo de institucionalização de canais discursivos, nos quais prevalecem a concepção de direitos humanos construídos a partir de tais deliberações. A sociedade se constitui por meio do Estado que admite primariamente a existência de direitos positivos de participação política. 71 É curioso observar uma peculiaridade do comunitarismo nacional que, cansado de uma postura autocrática do Executivo e absenteísta/adesista do Legislativo, grava todas as suas esperanças no vigor ético de uma nova magistratura, capaz de concretizar “as promessas do Welfare State na terra brasilis ”.72 De todo modo, mantém 70 Segundo a concepção “republicana”, [...] concebe-se a política como forma de reflexão sobre um contexto de vida ético. Ela constitui o medium em que os integrantes de comunidades solidárias surgidas de forma natural se conscientizam de sua interdependência mútua e, como cidadãos, dão forma e prosseguimento às relações preexistentes de reconhecimento mútuo, trans formando-se de forma voluntária e consciente em uma associação de jurisconsortes livres e iguais (Habermas, A Inclusão do outro, p. 270). 71 De acordo com a concepção ‘republicana’, o status dos cidadãos não é determinado segundo o modelo das liberdades negativas, que eles podem reivindicar como pessoas em particular. Os direitos de cidadania, direitos de participação e comunicação política são, em primeira linha, direitos positivos. Eles não garantem liberdade em relação à coação externa, mas sim a participação em uma praxis comum, por meio de cujo exercício os cidadãos só então se tornam o que tencionam ser – sujeitos politicamente responsáveis de uma comunidade de pessoas livres e iguais (Habermas, A Inclusão do outro, p. 272). 72 Por isso, é possível sustentar que, no Estado Democrático de Direito, há – ou deveria haver – um sensível deslocamento do centro de decisões do Legislativo e do Executivo para o Judiciário. (...) Pode-se dizer, neste sentido, que no Estado Liberal, o centro de decisão apontava para o Legislativo (o que não é proibido é permitido, direitos negativos); no Estado Social, a primazia ficava com o Executivo, em face da necessidade de realizar políticas públicas e sustentar a intervenção do Estado na eco175
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intacta a perspectiva de voltar para o Estado o centro de suas preocupações. Habermas pretende solucionar o problema da relação entre a autonomia privada e a pública, partindo do pressuposto de que o elemento essencial da integração da sociedade e do Estado está em sua nova visão da esfera pública, anteriormente explicitada, como elemento depurador da política deliberativa, que permitiria ao cidadão através da noção de moralidade pós-convencional e de universalidade normativa se sentir verdadeiro participante da cons trução do ordenamento jurídico. A integração social não ficaria dependente de se conceber um direito natural antecedente ao Estado ou da materialização de virtudes éticas no conjunto de cidadãos capazes de agir, 73 vez que a mesma se faria pela institucionalização de procedimentos de criação e aplicação normativa,74 cuja racionalidade nomia; já no Estado Democrático de Direito, o foco de tensão se volta para o Judiciário. Dito de outro modo, se com o advento do Estado Social e o papel fortemente intervencionista do Estado o foco de poder/tensão pas sou para o Poder Executivo, no Estado Democrático de Direito há uma modificação de perfil. Inércias do Executivo e falta de atuação do Legislativo passam a poder ser supridas pelo Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito (Streck, Hermenêutica jurídica e(m) crise, pp. 37-38). 73 O modelo republicano tem vantagens e desvantagens. Vejo como vantagem o fato de ele se firmar no sentido radicalmente democrático de uma auto-organização da sociedade pelos cidadãos em acordo mútuo por via comunicativa e não remeter os fins coletivos tão somente a um ‘deal’ (negociação) entre interesses particulares opostos. Como desvantagem, entendo o fato de ele ser bastante idealista e tornar o processo democrático dependente das virtudes de cidadãos voltados ao bem comum. (...) O erro reside em uma condução estritamente ética dos discursos políticos (Habermas, A Inclusão do outro, p. 276). 74 O Direito deve fundar-se tão somente no princípio democrático, não mais compreendido como mecanismo liberal de decisão majoritária ou a partir de uma pretensa ‘vontade geral’ republicana, mas como institucionalização de processos estruturados por normas que garantam a possibilidade de participação discursiva dos cidadãos no processo de tomada de deci sões (Cattoni de Oliveira, Devido Processo Legislativo, p. 93). 176
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argumentativa permitiria a todos perceberem-se não apenas como destinatários, mas como verdadeiros autores do ordenamento jurídico. 75 Dessa forma, o centro de preocupações de Habermas volta-se para essa cidadania ativa, elemento único para a (re)construção da sociedade e do Estado, vez que a noção de direitos humanos e a de soberania popular não mais se concebem de forma apartada como nos modelos anteriores. A teoria política deu uma resposta dupla à ques tão da legitimidade através da soberania do povo e dos direitos humanos. O princípio da soberania do povo estabelece um procedimento que, a partir de suas características democráticas, fundamenta a suposição de resultados legítimos. Esse princípio expressa-se nos direitos à comunicação e à participação que garantem a autonomia pública dos cidadãos. Em contraposição a isso, aqueles direitos humanos clássicos que garantem aos membros da comunidade jurídica vida e liberdade privada para seguir os seus projetos pessoais, fundamentam uma soberania das 75 Esse processo de institucionalização social certamente tem a influência do contrutivismo piagetiano. Observe: o construtivismo explica os proces sos de desenvolvimento e aprendizagem como resultados da atividade do homem na interação com o ambiente. Piaget explica esta interação valendo-se dos conceitos de assimilação, acomodação e adaptação, termos tomados da Biologia. (...) Transferindo os conceitos para o plano psicológico, usemos o seguinte exemplo: o leitor deste texto, à medida que faz a sua leitura, vai assimilando o conteúdo, isto é, vai se apropriando dele e procu rando entendê-lo de conformidade com o que conhece sobre este assunto (assimilação). Ao mesmo tempo, contudo, a nova leitura vai determinando alterações na organização do seu conhecimento sobre o assunto (acomodação). Muitas aquisições feitas resistem aos esquemas a que a criança está acostumada e impõem mudanças a esses esquemas; outras, produzem novos resultados, que enriquecem o alcance ou a gama dos esquemas. A criança é, pois, o próprio agente de seu desenvolvimento (Goulart, Piaget. Experiências básicas para utilização pelo professor , pp. 14-15, nosso destaque). 177
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leis que as torna legítimas a partir de si mesmas. Sob esses dois pontos de vista normativos deverá legitimar-se o Direito codificado, portanto, modificável, como um meio de garantir uniformemente a autonomia privada e pública do indivíduo. [...] O nexo interno que se buscava entre direitos humanos e soberania do povo consiste, pois, em que os direitos humanos insti tucionalizam as condições de comunicação para formar a vontade de maneira política e racional. Direitos que possibilitam o exercício da soberania do povo, não podem, a partir de fora, ser impostos a essa prática como restrições (Habermas, Jürgen. Sobre a legitimação de direitos humanos , pp. 69-71). Mas, se esse raciocínio é convincente para os direitos políticos não o são para os direitos clássicos à liberdade que garantem a autonomia privada dos indivíduos. Contudo, é preciso ter em mente duas coisas: primeiro, a obra de Habermas não pode ser reduzida a uma perspectiva formalista como pretendem os comunitaristas, pois sua noção de procedimento não se desconecta em nenhum momento dos direitos fundamentais; depois, esses direitos são estendidos a todos como garantia de participação discursiva na construção substantiva desses próprios direitos, ou seja, da elaboração do código jurídico. Logo, os direitos fundamentais são simultaneamente condição e conseqüência desse procedimento discursivo. Mas, como isso ocorre? Essa releitura discursiva retira de tais direitos sua dimensão substantiva clássica. A liberdade, por exemplo, resumir-se-á à perspectiva do indivíduo de participar na implementação dos discursos sociais de fundamentação e aplicação de normas jurídicas. A dignidade da pessoa humana passa a ser compreendida pelo fato de todos poderem participar em simétricas condições no discurso com todos os demais interessados. Dessa forma, enquanto os 178
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direitos fundamentais atuam como condição para o discurso, não se sustentam sobre valores substantivos. Ao con trário, são entendidos como regras de comunicação (discursivas). Contudo, tão logo os discursos legislativos e jurisdicionais tenham se concluído, aí sim, os direitos fundamentais assumem uma dimensão substantiva. No instante em que os direitos fundamentais 76 consti tuem o substrato e o limite das argumentações não-morais, o princípio da democracia (participativa) coloca-se ao lado do princípio da moralidade, permitindo que a legitimidade surja da legalidade. Repita-se, não se tem aqui um retorno ao positivismo. Note, a legalidade limitava-se ao formalismo e à faticidade das medidas sancionatórias. Agora, Habermas acrescentou a validade oriunda da gênese discursiva e racional da legislação. Direito legítimo, moral pós-convencional e política deliberativa são conceitos que se pressupõem mutuamen te, numa relação de co-originariedade, que permite a configuração de uma legislação racional. Logo, o Direito situa-se entre a moral e a política. Uma moral que abandonou qualquer elemento da ética substantiva, resumindo-se agora a um procedimento de direitos admissíveis em função da sua universalidade, aceitabilidade e de sua reciprocidade. Uma política que se caracteriza pela consideração imparcial de valores e da escolha racional dos meios colimados aos fins desejados pela comunidade. Mas, quais os direitos fundamentais que realizam a configuração do medium argumentativo do “princípio da democracia”? Em outras palavras, quais são os direitos admissíveis pelo filtro do “princípio da moralidade”? Eles 76 Para Habermas, a despeito da gênese histórica dos direitos fundamen tais ter-se dado no Ocidente, especialmente na América e Europa, ele acredita que os mesmos têm pretensão de universalidade, ou seja, de serem capazes de passar no teste de reciprocidade, imposto pelo “princípio da moralidade”. 179
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são os direitos fundamentais universais, que Habermas divide em cinco categorias. Os primeiros seriam derivados da configuração politicamente autônoma do “direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação”, que podem ser exemplificados tanto através de uma releitura discursiva dos direitos liberais clássicos ligados à liberdade, à vida, à integridade física, à propriedade, à intimidade, quanto aos direitos sociais como o direito do trabalho e à dignidade da pessoa humana.77 Depois, ter-se-iam os “direitos ligados ao status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direi to”, nos quais se encontram a proibição de extradição, o direito de asilo, os direitos políticos e os direitos sociais e coletivos.78 O somatório desses dois direitos estabelece o código do direito, determinando a licitude de normas que permi tem/garantem seu adimplemento e a ilicitude de normas que os aniquilam/desnaturam. Esse código binário, composto também pelo reconhecimento da supremacia consti tucional, que permite a distinção entre as normas constitucionais e as inconstitucionais, é elemento essencial para a legitimação do sistema jurídico. Sem as duas primeiras categorias de direitos fundamentais não há direito legítimo! Tal postura afasta qualquer hipótese de se considerar que Habermas desconheça preocupações sociais. O fato dele ter em mente um paradigma jurídico calcado na autonomia, de forma alguma leva o pensamento procedimentalista a uma postura de insensibilidade. Isso se explica facilmente: ele sustenta como direito fundamental essencial o direito à participação, o 77 Cf. Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 162. 78 Cf. Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 163. 180
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que certamente levará à discussão de temas ligados a direitos sociais, econômicos e coletivos. A terceira categoria de direitos fundamentais liga-se à “possibilidade de postulação judicial de direitos”. São direitos que se sustentam na pretensão de uma justiça independente e imparcial nos seus julgamentos, de forma a protegê-los por meio do poder de sanção do Estado. São, pois, não apenas garantias processuais fundamentais, mas também princípios de direito, tais como o da irretroatividade legislativa, o da vedação ao bis in idem penal e tributário, o da independência do Judiciário e do Ministério Público, por exemplo. O exame dos mesmos será melhor realizado no item referente aos discursos de aplicação. Contudo, inegavelmente, a concretização dos direitos fundamentais se dá pelo entrelaçamento da autonomia daquele que leva sua pretensão ao Judiciário e da autonomia do juiz, que deverá operar discursivamente, ou seja, imparcialmente, respei tando a conformação dos direitos fundamentais definidos nas categorias anteriormente citadas. A quarta categoria diz respeito aos “direitos de participação nos processos de formação da opinião e da vontade”. Tais direitos permitem uma modificação profunda no conceito de democracia. A quinta e última categoria de direitos fundamentais79 liga-se “às condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente”, na qual o autor abre espaço para direitos difusos ligados ao patrimônio histórico-cultural, ao meio ambiente, ao biodireito, ao 79 A assunção dos direitos fundamentais foi feita por Habermas a partir de um padrão procedimental que tem por base o “princípio da moralidade”. A despeito disso, Rawls sustenta seu fracasso, ao afirmar que a conexão entre essa ética, que ele considera substantiva, demonstraria um retorno aos supostos da moral de Kant. Ele se esquece, entretanto, de notar o padrão absoluto de universalização tomado por Habermas, o que o leva erroneamente a tais críticas (Cf. RAWLS, Liberalismo político, pp. 170 et seq .). 181
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direito virtual e às novas áreas da ciência cujas expectativas comportamentais o direito estabilizará. Para Habermas, o fundamento desses direitos fundamentais não é um conjunto de valores que constituiria um direito natural superior e transcendente ao ser humano, o que poderia conduzir a uma perspectiva de que seu procedimentalismo pudesse ter “pés de barro”, ou seja, embasado em condições substancialistas. 80 Sua explicação é simples: se se examinar com atenção sua teoria da ação comunicativa, ver-se-á que tais direitos são componentes da estrutura do discurso, isso é, concebidos de forma procedimentalista. Afinal de contas, a liberdade subjetiva de ação, o status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito e as condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente são elementos da “situação ideal de fala”. De um lado, a possibilidade de postulação judicial de direitos e de participação nos processos de formação da opinião e da vontade são elementos do discurso institucionalizado no âmbito da autonomia pública. De outro, se tais direitos são elementos do discurso, certamente o produto final de tais debates, envolvidos pelos condicionantes históricos e culturais do mundo da vida, produzirão necessariamente decisões valorativas com conteúdo e substância, que terão caráter constituinte por 80 Michel Rosenfeld sustenta ser o procedimentalismo de Habermas uma forma de procedimentalismo derivada, posto que dependente de suposições de fundo e condições materiais como requisitos para a dinâmica funcional de sua teoria. Veja: Consistent with this, I argue that Habermas’ proceduralist paradigm of law ultimately fails to generate pure procedural justice and that it falls shortly of furnishing a comprehensive resolution of the conflict between democracy and justice (Rosenfeld, Michel. Can rights, democracy and justice be reconciled through discourse theory? Reflections on proceduralist paradigm of Law , p. 793. Tradução para fins acadêmicos por Emílio Peluso Neder Meyer): “Consistente com isso, irei argumentar que o paradigma procedimental do direito de Habermas falha em gerar a justiça procedimental pura e que é insuficiente para guarnecer uma resolução compreensiva do conflito entre democracia e justiça.” 182
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serem o centro ou o entorno dos direitos fundamentais clássicos, ou mesmo da legislação infraconstitucional. Em outras palavras, de um lado, os direitos fundamen tais, como condição do procedimento discursivo, são pressupostos da comunicação e, portanto, despidos de conteúdo substantivo. Contudo, de outro lado, os direitos fundamentais, entendidos como conseqüências/produtos do procedimento discursivo, certamente estão repletos de subs tância.81 Mesmo porque, a fundamentação e a aplicação do direito implicam o reconhecimento de situações ou a impu tação de obrigações de fundo substantivo. Nesse sentido, como exemplo, a liberdade passa a ser “liberdade de con tratar” ou “liberdade de locomover-se”. A conexão imposta pelo discurso entre direito, moral e política impõe necessariamente a conclusão de que a legi timidade do primeiro depende da democracia, requerendo um novo paradigma constitucional, o do Estado Democrático de Direito que, ao contrário do que pensa Streck, Habermas não o ignora, mas o tem como um plus qualitativo ao Estado Social de Direito, como idéia de auto-organi81 É importante lembrar que esse cenário, destinado a se cristalizar numa prática deliberativa, transcorre numa certa linha conceitual. Até o momento, nada aconteceu de modo real. E nem poderia ter acontecido, pois, antes de determinar o primeiro ato de criação do direito, os partici pantes têm que obter clareza sobre o empreendimento pelo qual se decidiram, ao entrar numa prática constituinte. Porém, a partir do momento em que explicitam o sentido performativo dessa prática que já conheciam intuitivamente, eles sabem que têm que criar, como se fosse de um só golpe, as categorias de direitos elencadas há pouco. . Por isso, os participantes que entraram em si mesmos através da reflexão e que até agora estavam ocupados com um esclarecimento conceitual que beirava a filosofia têm que lançar fora o véu da ignorância do não-saber empírico, que eles mes-mos teceram, e captar aquilo que, nas circunstâncias histó ricas dadas, deve ser regulado e determinar que direitos são exigidos para matéria carente de regulamentação (Habermas , Era das transições , p. 170, nosso destaque). 183
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zação política de uma comunidade. Tal concepção tem um caráter universalista podendo ser aplicado tanto no primeiro mundo, quanto em países como o Brasil, no qual a esfera pública não possui densidade suficiente para impedir adequadamente a colonização do mundo da vida. Streck supõe que Habermas desconheça a situação de países subdesenvolvidos como o Brasil, que não cumpriram, nem de longe, os desígnios do Estado Social, especialmente no tocante à questão da inclusão social e da materialização mínima dos direitos sociais e coletivos, tomando por base um modelo que se encaixaria bem nos Estados Unidos ou na Europa Ocidental. Contudo, não é isso que se depreende da leitura de nosso autor. E o fato de perceber que o Estado, 82 e não apenas o Estado Social, 83 não se materializou da mesma maneira no mundo não abala as pretensões universalistas de sua obra, vez que os objetivos do Estado permanecem os mesmos em toda parte: O Estado constitucional democrático é, segundo a sua idéia, uma ordem desejada pelo povo e legitimada pela sua livre formação de opinião e de vontade, que 82 Mesmo se hoje em dia alguns Estados lembrem antigos impérios (China), cidades-Estado (Cingapura), teocracias (Irã) ou organizações tribais (Quênia), ou se eles acusam marcas de clãs familiares (El Salvador) ou de empresas multinacionais (Japão), ainda assim, de qualquer modo, os membros da “United Nations Organization” constituem uma união de Estados nacionais (Habermas, A constelação pós-nacional, p. 80). 83 Como Estado Administrativo com uma função específica, o Estado moder no diferenciou-se da circulação da economia de mercado institucionalizada legalmente; ao mesmo tempo, como Estado Fiscal , ele se tornou dependente também da economia capitalista. Ao longo do século XIX ele se abriu como Estado nacional , para formas democráticas de legitimação. Em algumas regiões privilegiadas e sob condições propícias do pósguerra, o Estado nacional , que entrementes se tornara um modelo para o mundo pôde se transformar em Estado Social – graças à regulação de uma economia política, no entanto, intocável no seu mecanismo de autocontrole (Habermas, A constelação pós-nacional, p. 69, nosso destaque). 184
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permite aos que são endereçados pela justiça sentirem-se como os seus autores. [...] Não pode existir perseguição e discriminação sistemáticas que privem as chances dos membros de grupos menos privilegiados de efetivamente utilizar os direitos formais divididos igualmente. É na dialética da igualdade jurídica e desigualdade fática que se fundamenta a tarefa do Estado Social de atuar no sentido de garantir as condições de vida – em termos sociais, tecnológicos e ecológicos – que tornam possível um uso igualitário dos direitos civis divididos de modo igual. O intervencionismo do Estado Social, fundamentado na própria Constituição, expande a autolegislação democrática dos cidadãos (em outras palavras, a inclusão social dos hipossuficientes) de um Estado nacional no sentido de uma autocondução democrática de uma sociedade definida como Estado nacional (Habermas, A constelação pós-nacio nal, pp. 83-84, acréscimo e destaque nossos). Streck e os comunitaristas nacionais vêem o Estado Social de Direito como uma etapa ainda a ser cumprida no Brasil, garantindo a inclusão social por meio de ações afirma tivas do Estado. Está claro que o Brasil está ainda longe de implementar as exigências inclusivas do modelo paradigmá tico de Estado Democrático de Direito, tal como concebido também pela perspectiva crítico-deliberativa de Habermas. Até mesmo a implantação do État Gendarme em território nacional ocorreu em parâmetros distintos daqueles verificados em países de primeiro mundo. Assim é que, o Estado Liberal brasileiro implantou-se com os limites da escravidão, da ação do Poder Moderador, do sufrágio censitário estabelecidos pela Constituição Imperial de 1824, muito mais como um beneplácito (outorga) do Imperador do que como fruto da racionalidade social/manifestação da Soberania Popular. A reprodução dessa herança cultural 185
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como mundo da vida de nossa sociedade é que mantém vivos os alicerces do positivismo jurídico brasileiro, ainda lastreados na influência francesa do positivismo filosófico de Comte, exposto na máxima contida em nossa bandeira nacional: “Ordem e Progresso”. O mesmo ocorreu com a implantação do Welfare State, saudada por diversos autores brasileiros, com o advento de normas programáticas relativas à educação, saúde, previdência e assistência sociais, algo que se deu de maneira descolada da realidade. Tanto é assim, que o país ainda apresenta elevados índices de analfabetismo, que a saúde somente se tornou um direito fundamental não contraprestacional em 1988 e que a Previdência Social alcançou a população rural recentemente. Em verdade, mesmo no período liberal, o Brasil expõe um inchamento e dimensões anormais em favor do Executivo, características ainda hoje presentes no modelo constitucional vigente, como se depreende dos objetivos explícitos da Emenda Constitucional n o 32/2001. No Brasil, o Welfare State manifesta-se menos pelo lado social, onde se destaca a legislação trabalhista e o aparecimento da Justiça do Trabalho, e mais por sua face ta econômica, amplamente demonstrada pela intervenção do Estado no domínio econômico, seja por vias diretas (criação de paraestatais), ou indiretas, através da normatização (planejamento econômico v.g.) e da regulação da atividade econômica (CIP, SUNAB, SUMOC e os atuais Banco Central, Comissão de Valores Mobiliários e Agências Governamentais de Regulação). Os comunitaristas nacionais, diante desse quadro, acreditam que a regulação do modo de produção capitalis ta passa necessariamente por medidas intervencionistas capazes de reduzir o enorme fosso social presente na sociedade brasileira. Habermas não se opõe a tais medidas, como pretende fazer crer Streck, pois tem absoluta noção de que o Estado 186
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do Bem Estar Social se desenvolveu de forma distinta em países desenvolvidos e em países de terceiro mundo. Ao contrário, sustenta que o Estado Social viabiliza a inclusão de uma parcela da sociedade que, por si só, jamais conseguirá superar a degradação física e moral a que se encon tra submetida. Logo, a crítica assestada pelos comunitaristas não apenas não procede como também está mal colocada. A questão não é apenas “o que fazer ?” e, sim, “como fazêlo?”.84 Para tanto, é preciso indagar se o leitor acredita ser importante consultar/ouvir/dialogar com as pessoas excluídas sobre a melhor forma de se proceder a tal intervenção; se tais ações deverão ser estabelecidas através de um código de ética individual ou por meio de um consenso intersubjetivamente compartilhado; e, caso estejam de acordo com a necessidade do diálogo cabe, então, nova pergunta: ouvir as minorias e/ou os hipossuficientes deve ser encarado como um ato de caridade/pena ou como um mecanismo de integridade da própria democracia? Essa perspectiva impede que ações sociais de inclusão se tornem instrumentos de perpetuação do “mando” político das elites/oligarquias dominantes, tal como, por 84 Entretanto, fenômenos da juridicização que examino sob o título de “paternalismo do Estado de bem-estar-social” permanecem, para mim, relevantes como antes, porque quero mostrar que o hoje apregoado retor no ao modelo liberal – sob o título de “sociedade de direito privado” – não apresenta qualquer saída para o dilema de que uma liberdade assegurada paternalisticamente significa ao mesmo tempo subtração de liberdade. A partir desta colocação do problema, eu desenvolvo o modelo procedural do direito. Nas condições complexas do Estado de bem-estar social, os sujeitos privados do direito não poderão, de forma alguma, chegar a gozar de liberdades subjetivas iguais se, no âmbito de seu papel político como co-legisladores, não fizerem uso de suas liberdades comunicativas e não participarem do debate público sobre a interpretação de neces sidades, de tal forma que o próprio cidadão político desenvolva os parâmetros e critérios sob os quais o igual deva ser tratado igualmente e o desigual, desigualmente (Habermas, Jürgen. Uma conversa sobre questões da teoria política, pp. 99-100, nosso destaque). 187
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exemplo, ocorre com a chamada “indústria da seca do Nordeste brasileiro”. Tais intervenções devem ser precedidas de um planejamento, pois seus agentes devem saber de antemão que as mesmas devem ter um caráter essencialmente temporário. Caso contrário, a situação de dependência se perpetua e, tanto a inclusão social quanto a democracia jamais se concretizarão. Esse tem sido exatamente, ao lado da corrupção, o maior dos problemas para a implementação de programas sociais no Brasil, tais como o “Bolsa-Escola”, o “Bolsa-Família”, o “vale-gás”, etc. Dessa maneira, e com esse propósito, é que Habermas vê o agir comunicativo como elemento de integração social. Mas o mesmo demanda uma operacionalização que se dará por via procedimental, que se divide em duas estruturas discursivas, a de fundamentação e a de aplicação. Esse mecanismo faz com que a noção de validade de uma norma de ação possa se sustentar tão-somente pelo resgate argumentativo, imposto pelos princípios da moralidade e da democracia. Especialmente o primeiro, que impõe que as conseqüências da observância geral de uma norma sejam compatíveis com a reciprocidade e a universalização de interesses. Assim, uma norma que prescrevesse: promessas devem ser mantidas, passaria pelo filtro da moralidade pós-convencional, ao passo que outra que determinasse: sempre que for mais vantajoso é devida a quebra de uma promessa, certamente não cumpriria o ideal de estabilização/segurança das expectativas sociais. 85 Alguém poderia objetar que uma emergência implicaria a exigência de quebra de uma promessa. Contudo, o 85 Os exemplos são idênticos aos de Günther (Uma concepção normativa de coerência para uma teoria discursiva da argumentação jurídica , p. 89). Veja também o seguinte trecho: O exemplo padrão é o caso de (X) que fez a promessa a Smith de aceitar um convite para a sua festa, mas que, entre mentes, é informado de que o seu melhor amigo, Jones, adoeceu grave mente e necessita da sua ajuda (Günther, Teoria da Argumentação no direito e na moral, p. 305). 188
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“discurso de fundamentação/justificação” pressupõe circunstâncias iguais, constantes, regulares, e não excepcionais,86 não se exigindo dele uma previsão exaustiva de todas as possíveis circunstâncias da realidade. 87 Na mesma linha de Günther, Habermas deixou claro que a validade de uma norma jurídica não dependeria do fato de que a mesma pudesse prever todas as constatações de singularidades ou de circunstâncias excepcionais ligadas a ela, pois reconhece que as normas válidas são aplicáveis somente prima facie, ou seja, na medida em que as circunstâncias contextuais tenham sido previstas pela legislação, dentro do que seja possível. Contrariamente a Kant, que julgava possível um princípio da universalização denso, pelo qual a norma deveria ser capaz de aplicação em qualquer circunstância, Günther e Habermas fixam-se em uma versão branda do princípio, o que lhes permitirá 86 A norma que for justificada segundo ‘U’, representa, no momento atual e segundo o estágio do conhecimento, um interesse comum, ou seja, ela é válida para qualquer um. Ainda que em ‘U’ se fale de “observância geral”, o critério de validade não se refere a todas as situações previsíveis a partir de um ponto de vista absoluto, mas sim às conseqüências e aos efeitos colaterais previsíveis no momento atual, conforme forem relevantes para os interesses atuais de cada indivíduo e puderem ser aceitos por todos em conjunto. Por isso, sugiro a seguinte “versão mais fraca” de ‘U’: Uma norma é válida se as conseqüências e os efeitos colaterais de sua observância puderem ser aceitos por todos, sob as mesmas circunstâncias, confor me os interesses de cada um, individualmente. Portanto, não podemos excluir a possibilidade de sermos surpreendidos no momento seguinte a uma situação, na qual descobrimos outros sinais característicos daqueles que até então prevíamos e que, à luz de outros interesses, interpretamos de modo diferente daquilo que até então interpretávamos (Günther , Teoria da Argumentação no direito e na moral, p. 67). 87 O discurso sobre a validade não requer que levemos em consideração aquelas circunstâncias que são diferentes em todos os casos de aplicação. Num discurso sobre a validade, só podemos examinar aquelas características da descrição de uma situação que são iguais em todos os casos de aplicação (Günther, Uma concepção normativa de coerência para uma teoria discursiva da argumentação jurídica, p. 90). 189
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distinguir mais tarde o discurso de fundamentação do discurso de aplicação. A título de exemplificação: a norma que estabelecia a proibição de cães domésticos no metrô, vez que os mesmos estariam causando distúrbios e sujeira em área de circulação para a população. Certamente a norma, que é válida, não poderá fazer com que seu aplicador trate igualmente o cão da raça poodle de companhia de uma senhora e o cão da raça pastor alemão especialmente treinado para guia de um cego. Outro exemplo interessante sobre essa versão tênue do princípio da universalização para critério de validade das normas jurídicas é narrado pelo próprio Günther. Certa vez, Kant lecionando em Köninsberg, foi abordado em sala de aula por um estudante fugitivo da polícia política do imperador, pedindo-lhe abrigo momentâneo. Sabendo que o aluno nada fizera de criminoso além de uns poucos panfletos críticos ao governo, Kant permitiu que o mesmo se escondesse debaixo da mesa em que trabalhava. Sendo a mesma fechada e de madeira, o local tornou-se um ótimo esconderijo, vez que em razão da autoridade que Kant impunha a todos, era inimaginável que a polícia pedisse que ele se levantasse para procurar ali debaixo. Contudo, na saída, um dos policiais indagou a ele se o mesmo conhecia o paradeiro do infeliz estudante. Ora, Kant acreditava em uma versão forte do princípio da universalização 88 e, 88 Dentro da tradição kantiana, as éticas universalistas chegaram a uma conclusão lógica a partir da desvalorização e do enfraquecimento moral dos modos de vida, passando a negligenciar a definição precisa da faculdade de julgar e a perquirir as condições para fundamentar com correção as normas morais. , mas, como afir mam as diferentes versões, é unicamente da provável universalização da norma ou da máxima que decorre a possibilidade de seu cumprimento, se estivesse em uma semelhante e/ou na de alguém que fosse atingido pela ação pela qual optei, ou se todos os demais concordassem real ou virtualmente. [...] Nestes ca190
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logo, julgava que ‘ não mentir’ fosse um imperativo categórico, aplicável, pois, em qualquer situação. Kant disse a verdade e o rapaz foi preso. Desse modo, Kant não percebe que o operador do Direito deve saber, de antemão, que nem sempre o contex to do caso concreto se adequa perfeitamente à norma. Assim, ele deve saber que será preciso argumentar favoravelmente ou contrariamente à incidência da norma como elemento de justificação de uma decisão. No discurso de aplicação, o operador do Direito pressupõe que as normas legisladas são válidas. O que se discute, em regra, é sua referência/adequação a uma situação concreta. Ele deverá examinar a identidade, ou não, do significante contido nas expressões incluídas na norma dian te dos elementos descritivos do caso. No exemplo dado, teria sido preferível que Kant tivesse escolhido outra norma também válida e, no caso, mais adequada: não delatar. Nessa tarefa é proposta inicialmente uma justificação externa, em termos de um exame semântico dos textos do ordenamento jurídico, de forma a analisar as diferentes normas que concorreriam para sua aplicabilidade ao caso concreto, sem se esquecer de referências a precedentes judiciais e à doutrina. Mas isso não é suficiente. É indispensável que o operador do direito justifique os elementos/aspectos descritivos da realidade fática, pois certamente assim agindo, ele selecionará características do caso, as quais considera relevantes e outras tantas que sos, e obstinado, que é utilizada como uma máxima concreta de atuação [...] O exemplo da mentira pode ser compreendido sem nenhuma dramaticidade, se entendido apenas como teste para a possibi lidade de generalização da máxima de nunca mentir, ainda que seja de difícil aceitação o simples fato de se imaginar que o seu cumprimento possa resultar em se entregar, sem necessidade, um perseguido inocente à morte (Günther, Teoria da Argumentação no direito e na mora l, pp. 26-27, nosso destaque). 191
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ele desconsiderará. 89 Nesse sentido, essa seleção há de ser justificada. For this, we need a complete description of the situation even though it is often the case that this can only be discovered by our determining the extension of possible semantic variants. Precisely because selec ting this or that feature of a case’s circunstances is always connected with the determination of a meaning, this decision on selection has to be able to be jus tified with respect to all the other features of the situa tion. [...] The principle of impartial norm application thus states in this case that the norm is to be applied on exhausting all the semantic possibilities which can be obtained in a complete description of the situation (Günther, The sense of appropriatness. Aplication discourses in morality and law , pp. 235-236). 90 Dessa forma, todas as possibilidades semânticas do texto devem cruzar-se com todos os elementos das circuns tâncias fáticas do caso, num método concretista de aplicação imparcial das normas. A adequação da norma orientase em função do problema. Ao contrário do que supunha o positivismo, o operador do Direito precisa estar ciente de 89 Cf. Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 151. 90 Para isso, precisamos de uma completa descrição da situação – mesmo que normalmente isso geralmente só possa ser descoberto por meio de uma definição do conteúdo das possíveis variações semânticas. Precisamente porque as relações desse ou daquele elemento das circuns tâncias fáticas estão sempre conectadas com a fixação de um sentido, essa decisão de selecionar tem que ser apta a justificar-se em relação a todos os outros elementos da situação. [...] O princípio da aplicação normativa imparcial pretende, com isso, que a norma deva ser aplicada através de um exaurimento de todas as possibilidades semânticas que podem ser obtidas em uma completa descrição da situação (Günther, The sense of appropriatness. Aplication discourses in morality and law , pp. 235-236, tradução nossa). 192
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que mais de uma norma válida pode concorrer prima facie como a mais adequada ao problema. No exemplo trabalhado anteriormente, reconheceu-se o fato de que a norma “Promessas devem ser mantidas” (N.I) era uma norma válida. Contudo, o mesmo discurso de fundamentação poderia consignar também a validade da seguinte norma (N.II): “ No caso de uma emergência, você deve ajudar seu próximo.” Assim, se alguém quebrasse um contrato em função de uma emergência, seria possível sustentar que sua conduta foi adequada, visto que a mesma teve o propósito de realizar um resgate salva-vida. A adequação permite ao operador do Direito determinar um âmbito/grau de restrição à aplicação de uma norma, sem absolutamente ques tionar sua validade. Não se trata de ponderação de princípios.91 Trata-se de encontrar a norma adequada, a “chave única que poderá abrir uma porta”. 92 91 A colisão de normas não pode ser reconstruída como um conflito de pleitos de validade, porque as normas em colisão ou as variantes de significado concorrentes somente se correlacionam em uma situação concreta. [...] O critério, segundo o qual nos orientamos na ponderação de normas em colisão, não poderá, por sua vez, conter uma prerrogativa material que qualifique determinados pontos de vista normativos como precedentes a outros. A concepção dos princípios de Alexy, como mandamentos de oti mização, havia-nos alertado quanto ao perigo que poderá surgir ao se pro jetar, por exemplo, um modelo de valor em uma teoria de estrutura de norma. A decisão por uma norma adequada se reduz, neste caso, a uma decisão pelo estado relativamente melhor que, na respectiva situação, também será o ótimo. O problema assim aludido consiste no perigo de se introduzir, no momento de determinar a estrutura de argumentação, os critérios materiais que por si próprios, deveriam constituir tema de uma argumentação de adequação (Günther, Teoria da Argumentação no direito e na moral, pp. 351-353). 92 Uma norma (Nx) será adequada na situação (Sx) se ela for compatível com todas as outras variantes (NBn) de significado aplicáveis em (Sx) e com todas as normas (Nn); e se a validade de cada uma das variantes de signi ficado e de cada uma das normas puder ser justificada em um discurso de fundamentação. A desvantagem desse critério é que nunca saberemos que normas em uma situação serão, em algum momento, passíveis de justificação em um discurso de fundamentação (Günther, Teoria da Argumentação no direito e na moral, p. 355). 193
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Por conseguinte, poderá ser encontrada uma norma (N.III), agora de caráter individual, tal como: “ É possível a quebra de uma promessa para ajudar um amigo que está numa emergência.” Desse modo, alcançamos o ideal de uma norma perfeita por via indireta: apenas o dividimos em duas etapas distintas. Não antecipamos todas as características de cada situação a um único momento, mas em cada situação, em um determinado momento, todas as suas características. Então, o problema pode ser resolvido pela aceitação de algumas normas como válidas, apesar de sabermos que elas irão colidir com outras normas válidas em alguns casos (Günther, Uma concepção normativa de coerência para uma teoria discursiva da argumentação jurídica, pp. 90-91). Esse desdobramento nas etapas de fundamentação e de aplicação das normas permite que as limitações da comunidade ideal de comunicação sejam melhoradas. Não é mais necessária uma abstração em termos de conhecimento ilimitado dos fatos ou de tempo absoluto como indispensáveis à aceitação assertórica da validade de uma norma.93 A saturação que se faz “possível” no debate produz-se diante de uma infinidade (quantidade significativa) 93 Se o conceito de validade é restrito àquelas circunstâncias pressupostas como constantes, agora compreendemos porque os casos interes santes de colisão não têm nada a ver com a , mas com a de uma norma que é “ aplicável. O erro que fizemos com o ideal de uma norma perfeita foi ter subsumido o conceito de ao conceito de . Esta diferença tem um efeito colateral que pretendíamos alcançar: estamos agora prontos a dispensar as condições de conhecimento ilimitado e tempo infinito como requisitos necessários dos discursos de validade (Günther, Uma concepção nor mativa de coerência para uma teoria discursiva da argumentação jurídica, p. 91, grifo do autor). 194
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de casos concretos, 94 para cada um dos quais a “resposta correta” deverá ser encontrada. 95 O problema da transcendentalidade da teoria do agir comunicativo desaparece com a institucionalização dos procedimentos estatais inerentes à perspectiva contrafática da teoria discursiva do direito. Mas não é somente esse problema que a teoria discursiva supera. O esforço contínuo de Habermas por quatro décadas de encetar um modelo que escapasse ao paradigma da consciência e da subordinação do direito à moral também é alcançado. Habermas opôs-se, diametralmente, a tal concepção. Nesse sentido, operou uma visão renovada de uma teoria da legislação e da sociedade, de forma a perceber a possibilidade de um discurso de fundamentação capaz de extrair a legitimidade da legalidade. Isso lhe 94 Certa vez um aluno propôs a seguinte questão: se dois juízes seguirem estritamente as propostas procedimentais de Habermas e chegarem a conclusões diversas diante de um mesmo caso, é possível dizer que um deles não chegou à resposta correta? A pergunta é por demais interessante, pois é lugar comum entre aqueles que estão a transitar entre propostas paradigmáticas de operação do Direito. Nesse sentido, é preciso dizer que a resposta correta não se apura de forma conteudística. Ambas as decisões podem e devem ser sempre reconstruídas/discutidas porque certamente nenhuma delas de forma isolada é capaz de verificar e de avaliar “perfeitamente” as situações fáticas relevantes diante do universo de normas válidas. Talvez uma mereça ser inteiramente reformada e a outra um mero reparo. Mas o importante é perceber que nenhuma delas representa a resposta substancialmente e definitivamente correta. 95 A tensão ideal que irrompe na realidade social remonta ao fato de que a aceitação de pretensões de validade, que cria fatos sociais e os perpetua, repousa sobre a aceitabilidade de razões dependentes de um contexto, que estão sempre expostas ao risco de serem desvalorizadas através de argumentos melhores e processos de aprendizagem que transformam o contexto. Tais qualidades estruturais da socialização comunicativa [...] permitem entender por que não é possível estabilizar definitivamente expectativas de comportamentos sociais, que dependem de suposição de validade falíveis e precárias. [...] É certo que os argumentos só valem quando confrontados com “standards” de racionalidade dependentes de um contexto que funciona como pano de fundo; [...] (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 57). 195
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permitiu conceber um discurso jurídico autônomo, próprio, não subordinado à argumentação moral. O uso de argumentações ética, política e pragmática, filtradas pelo “princípio da democracia”, permite tal distinção, como assume Gunther Teubner: Todo o ato jurídico é, uno actu, um evento de comunicação geral. O mesmo evento comunicativo está engatado em dois discursos sociais distintos, ou seja, no discurso jurídico especializado, institucionalizado e numa comunicação geral difusa. A interferência do direito em outros discursos sociais não significa que estes se diluam num superdiscurso multidimencional e também não significa que haja uma troca de informações entre eles. Pois, em cada discurso, a informação é constituída de modo novo, e a interferência não acrescenta ao todo nada além da simultaneidade de dois eventos comunicativos (Teubner apud Habermas, Direito e Democracia , vol. I, p. 79). Assim, se o discurso de fundamentação não deve ser entendido como um caso especial da argumentação prática geral, tampouco o discurso de aplicação deverá sê-lo. E as razões são ainda mais evidentes. Em primeiro lugar, é preciso considerar o modo procedimental de sua comunicação. Alexy menciona o fato de o mesmo dar-se nos limites de um processo. Contudo, apesar de mencioná-lo, não foi capaz de aperceber-se do fosso existente entre uma argumentação (jurídica) pautada/regrada por um processo e uma argumentação moral em geral. 96 96 Do ponto de vista conceitual, a primeira crítica que se pode fazer à tese do caso especial é que ela é ambígüa e por partida dobrada. Uma primeira ambigüidade deriva do fato de a ênfase da tese poder ser posta ou na circunstância de que o discurso jurídico seja um caso do discurso prático geral, o que destaca o caráter racional da argumentação jurídica, sua pro196
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De plano percebe-se que, em sua argumentação jurídica, as partes não estão obrigadas à busca cooperativa da verdade. Enquanto na argumentação moral predomina o “agir comunicativo”, num processo judicial as partes introduzem “estrategicamente” argumentos capazes de conduzir a uma decisão que lhes seja favorável. 97 Mesmo assim, ximidade em relação ao discurso moral, ou então no fato de que se trata de um caso especial, o que ressalta as deficiências de racionalidade do discurso jurídico (cf. Neumann, 1986, pp. 90-1). O segundo tipo de ambigüidade consiste – como já indiquei antes – na falta de clareza quanto ao que Alexy entende por argumentação jurídica ou discurso jurídico: em sentido estrito, o discurso jurídico seria um procedimento não-institucionalizado que se situa entre o procedimento de estabelecimento estatal do Direito e o processo judicial; em sentido amplo, também se argumenta juridicamente no contexto desses últimos procedimentos, embora Alexy reconheça que, neles, não só é questão de argumentar como também de decidir. E aqui, a propósito do que chamei de e que Alexy chama de (1989a, p. 312), surge, de novo, uma certa ambigüidade. Por um lado Alexy indica que esse – o discurso jurídico como tal – é um tipo de procedimento não institucionaliza-do (para ele isso significa – é preciso lembrar – que não está regulado por normas jurídicas que assegu rem a chegada a um resultado definitivo e que seja, além disso, obrigatório, o que faz pensar que com isso ele está se referindo basicamente à argumentação da dogmática jurídica). Mas, por outro lado, quando Alexy contrapõe o ao discurso no processo judicial (ibid ), ele inclui, nesse último item, as argumentações que as partes do processo empreendem, ao p asso que a argum entação levada a efeito pelo juiz pertenceria ao primeiro contexto (que – lembre-se – ele havia caracterizado como ) (Atienza, As razões do direito. Teorias da argumentação, p. 289, grifo do autor). 97 Em primeiro lugar, a existência de uma pretensão de correção é, sem dúvida, mais fácil de aceitar em certos âmbitos da argumentação jurídica do que em outros. E onde é mais duvidoso que ocorra essa pretensão é na argumentação empreendida pelas partes num processo. Não se trata apenas do fato de haver, nessa situação, uma distribuição assimétrica de papéis e limitações de caráter temporal e de objeto (que significaria infringir as regras de razão), e sim que, além disso, o que em geral parece motivar a conduta das partes não é tanto que o julgamento seja justo ou correto, e sim que o resultado a que chegue lhes seja vantajoso; o que as leva a agir não é a busca cooperativa da verdade e sim a satis fação de seus interesses (Atienza, As razões do direito. Teorias da argu mentação, p. 291). 197
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para Habermas, a despeito do “agir estratégico” das par tes, em razão do elevado grau de racionalidade do processo, a prática decisional permitirá ao juiz a formação de um juízo de aplicação imparcial.98 As ordens dos processos judiciais institucionalizam a prática de decisão judicial de tal modo que o juízo e a fundamentação do juízo podem ser entendidos como um jogo de argumentação, programado de uma maneira especial. [...] O direito processual não regula a argumentação jurídico-normativa enquanto tal, porém assegura, numa linha temporal, social e material, o quadro institucional, que obedece à lógica de discursos de aplicação (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 292). O discurso de aplicação viabiliza uma decisão imparcial, a partir de ações comunicativas ou estratégicas, por meio de um mecanismo de depuração: o processo. Logo, afasta-se de uma argumentação exclusivamente moral, que deve susten tar-se, tão-somente, na ação comunicativa dos falantes. Depois, é preciso destacar que o discurso de aplicação (jurisdição) afasta-se do discurso de fundamentação (legislação), em função das “formas de comunicação e dos 98 Mesmo que não haja, legalmente, nenhuma duração máxima para os processos, há prazos (especialmente nas instâncias dos tribunais de revisão e apelação) que impedem que questões conflitantes sejam tratadas de modo ditatório e fora do direito. Além disso, a distribuição dos papéis sociais no processo produz uma simetria entre a promotoria e a defesa [...] ou entre a acusação e o acusado. [...] Os papéis da participação no processo são definidos de tal maneira que o levantamento de provas não está estrutu rado discursivamente no sentido de uma busca cooperativa da verdade. Porém, como acontece no processo do júri anglo-saxão, os espaços da ação estratégica estão organizados de tal forma que possivelmente todos os fatos relevantes para a constituição do estado de coisas são tematizados. O Tribunal apóia neles a sua avaliação dos fatos e seu julgamento jurídico (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 293). 198
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potenciais de argumentos correspondentes”. 99 No discurso de fundamentação, o “agir comunicativo” dos participan tes faz-se necessário para a racionalidade e legitimidade da normatização jurídica. O processo legislativo não é capaz de excluir todo o “agir estratégico”,100 que se manifesta, entre outros meios, por lobbies e grupos de pressão. Contudo, caso a influência do dinheiro e da burocracia prevaleçam sobre a solidariedade e a racionalidade argumen tativa, o discurso de fundamentação desnatura-se, tornando-se incapaz de conferir legitimidade à legalidade. Ao contrário, como se viu no discurso de aplicação, o processo judicial permite/depura as ações estratégicas das partes envolvidas. A imparcialidade no discurso de aplicação independe do “agir comunicativo” das partes interessadas, ao contrário do discurso de fundamentação, que precisa do “agir comunicativo” como pressuposto de sua validade. Dessa maneira, o discurso de aplicação “liberta” o discurso de fundamentação de mais uma das condições transcendentais da teoria do agir comunicativo, qual seja, da inexistência de ideologia conduzindo o discurso das partes envolvidas, vez que, de antemão, o processo judicial já supõe que as partes agem estrategicamente, colacionando argumentos que possam trazer-lhes uma decisão favorável. O discurso de aplicação aparta-se da argumentação prática geral por uma terceira questão: primeiro, não admi te o livre trânsito de argumentos pragmáticos, ético-políticos, como advoga Alexy. Tampouco tem, tal como o legisla99 Do ponto de vista da lógica da argumentação, a separação entre as com petências de instâncias que fazem as leis, que as aplicam e que as executam, resulta da distribuição das possibilidades de lançar mão de diferentes tipos de argumentos e da subordinação de formas de comunicação cor respondentes que estabelecem o modo de tratar esses argumentos (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 239). 100 Cf. Habermas, A Inclusão do outro, p. 277. 199
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dor político, poder ilimitado para lançar mão dos mesmos, não podendo, com isso, dispor deles de forma arbitrária. 101 Em outras palavras, enquanto os comunitaristas supõem uma identidade, Habermas defende a tese de que a jurisdição exerce uma função distinta daquela exercida pelo legislador! Logo, o Judiciário e em especial as Cortes Constitucionais não podem ser entendidos como um legislador concorrente ou um Poder Constituinte Originário anômalo!102 Isso, de um lado, afasta qualquer perspectiva ativis ta/maximalista ínsita, no Brasil, ao discurso da corrente do constitucionalismo da efetividade. Contudo, de outro, Habermas critica e se opõe à visão liberal de uma hermenêutica minimalista das Cortes Constitucionais. É preciso explicar isso melhor. Certamente o Judiciário deparar-se-á com questões políticas e pragmáticas em sua tarefa judicante. Ele não sustenta, tal como os liberais, que tais ques tões possam ser ‘ignoradas’, tal como se faz pela exigência às Cortes Constitucionais da existência de “espaços vazios na jurisdição”. Ao contrário, a jurisdição precisa enfrentar todos os temas inerentes ao mundo da vida. 103 Evidentemente a jurisdição não pode furtar-se à apreciação de tais questões. Contudo, as argumentações prag101 Cf. Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 239. 102 O fato de o Tribunal constitucional e o legislador político ligarem-se às nor mas processuais não significa uma equiparação concorrente da justiça com o legislador. Os argumentos legitimadores, a serem extraídos da Constituição, são dados preliminarmente ao Tribunal constitucional, na perspectiva de um legislador, que interpreta e configura o sistema dos direitos, à medida que persegue suas políticas (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 324). 103 Nos discursos jurídicos, surgem não somente argumentos imanentes ao direito, mas também argumentos éticos, empíricos e pragmáticos. Quando se considera a gênese democrática do direito pelo ângulo da aplicação do direito, relevam-se novamente os diferentes aspectos sob os quais é possível dissolver, classificar e diferenciar a síndrome da política deliberativa (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 352). 200
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mática e ético-política, construídas pelo legislador político, frutos do balanceamento de valores e interesses, devem ser, em regra, tomadas como válidas prima facie pelo Judiciário. Ele não pode proceder a um novo discurso de fundamentação. Ao contrário, deverá examinar apenas a adequação da norma às circunstâncias do caso concreto. Entretanto, a regra exposta acima, no que pertine ao controle da constitucionalidade das leis, exige uma interpretação cum granus salis . Nesse, o Judiciário deixa de aplicar uma norma ordinária, válida prima facie , para aplicar diretamente a norma constitucional ao caso concreto. Contudo, tal aplicação não pode se dar a partir da construção de novos argumentos pragmáticos ou ético-políticos. Ao contrário, o controle da constitucionalidade somente se justifica pela aplicação estrita do “princípio do discurso”, no qual, em nossa opinião, o “princípio da moralidade” se manifesta ainda com maior vigor do que nos discursos de fundamentação. Em outras palavras, a jurisdição afasta a norma pelo fato de a mesma ter se pautado por argumentos pragmáticos/ético-políticos não devidamente depurados pelo “princípio da democracia”, ou seja, pela ilegitimidade da norma jurídica, seja pelo desacato aos direitos fundamentais, seja pela violação do Código Binário do Direito. O Tribunal torna a desamarrar o feixe de argumentos com os quais o legislador legitima suas resoluções, a fim de mobilizá-los para uma decisão coerente do caso particular, de acordo com princípios do direito vigente; todavia, ele não pode dispor desses argumen tos para uma interpretação imediata do Tribunal e para uma configuração do direito e, com isso, para uma legislação implícita (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, pp. 324-325). 201
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O tema da potencial argumentação merece ainda algumas considerações. A primeira representa uma revisão conceitual de minha concepção entre a proximidade da integridade dworkiana e a teoria discursiva do direito. Mesmo reconhecendo que Dworkin tratava os direitos fundamentais de forma deontológica, incluía-me entre os autores que, como Aarnio, 104 consideravam que Dworkin trazia em sua teoria elementos de uma ética substantiva. Ora, uma tal concepção o afastaria significativamente de Habermas, pois o mesmo propõe um esforço de caráter procedimental no emprego dos direitos fundamentais, pela configuração do “princípio da democracia” e da discursividade jurídica. No entanto, reconheço agora que a discussão sobre a supremacia necessária em um confronto entre “argumen tos de princípio” e “argumentos de policy” (diretrizes polí ticas) em favor dos primeiros, não precisa ser encarada como uma postura liberal de Dworkin. Ao contrário, pode ser compreendido como uma indispensável observância do aplicador do direito ao Código Binário. Mesmo porque tais diretrizes políticas quase sempre envolvem a materialização de direitos sociais e coletivos, tão fundamentais quan to os individuais, ou melhor dizendo, que não se dissociam dos individuais em uma concepção mais lata da questão. Da mesma forma, a figura do Juiz Hércules não precisa ser vista como uma postura solipsista da hermenêutica dworkiana, mas como uma construção metafórica da “situação ideal de fala” em sua procura pela resposta correta. Por conseguinte, a disposição das espécies de argumentação permitem à Habermas uma retomada do princípio da divisão dos poderes, não pelos padrões classicistas, 104 Aarnio ( Lo racional como razonable: un tratado sobre la justificación jurídica, pp. 216-217) considera que Dworkin trabalha com uma noção de valores absolutos em sua noção de direito como integridade. 202
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como parece supor Streck, mas de uma forma original. 105 Certamente essa divisão não se conforma aos limites clássicos. No aspecto funcional, quando Habermas trata dos discursos de fundamentação, ele tem em mente que essa função será exercida preferencialmente pelo Parlamento. No entanto, se o legislador político não for o Parlamento, ou seja, se o Executivo assumir tal papel, todos os elementos do discurso de fundamentação devem ser integralmente mantidos. De outro lado, quando Habermas fala dos discursos de aplicação, ele concebe primariamente o Judiciário no exercício de tal atribuição. Entretanto, isso não implica a ilegitimidade de um Tribunal Especial composto de Senadores, tal como ocorre no julgamento dos crimes de responsabilidade ( impeachment). Contudo, segundo Habermas, o fundamental é entender que essa divisão se pautará essencialmente pela teoria discursiva da gênese democrática de direito, na qual diferentes tipos de argumentação e formas de comunicação se fazem presentes. Dessa maneira o discurso de fundamentação assume um papel central, vez que harmoniza preferências concorrentes e fixa a identidade pessoal/coletiva de uma sociedade, na qual concorrem discursos de auto-entendimento e negociações/barganhas de interesses. Os valores fundamentais de uma sociedade são identificados, ponderados e acomodados entre si. O legislador político constrói essa identidade lançando mão de forma irrestrita de argumen tos normativos e pragmáticos, por meio do consenso ou de negociação eqüitativas.106 Contudo, essa irrestrição não é absoluta, como pensava Alexy, vez que presentes se farão tanto a ação comuni105 Cf. Galuppo, Igualdade e diferença, p. 144. 106 No consenso, todos os falantes estão de acordo com uma asserção com base numa mesma justificação. Em uma negociação, a deliberação sus tenta-se por meio de justificações distintas. 203
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cativa dos participantes, quanto os “princípios da moralidade, da democracia e do discurso jurídico”. 107 O discurso de aplicação, quando realizado pelo Judiciário, permite reexame dos argumentos empregados no discurso de fundamentação, seja para descobrir a norma adequada, seja para reconhecer a própria invalidade da mesma, mediante o processo de controle da constitucionalidade das leis. Limita também o discurso de intangibilidade de atos administrativos até então “protegidos” pelo véu da teoria da “discricionariedade” e por uma visão clássica/caduca de divisão dos poderes. Para a Administração, o discurso de aplicação da lei não se centra exclusivamente na primeira tarefa, vez que, via de regra, os argumentos pragmáticos são dominantes no agir da Administração, cabendo-lhe a livre possibilidade de reconstruir estratégias de ação. 108 Em síntese: [...] no Estado democrático de direito, compete à legislação política a função central. Dela participam, não somente partidos, eleitorado, corporações parlamen tares e governo, mas também a prática de decisão dos Tribunais e das administrações, na medida em que estes se autoprogramam. A função da aplicação de leis não é assumida apenas por instâncias da jurisdição no horizonte da dogmática jurídica e da esfera 107 Quando tais restrições se ausentam, ou seja, no momento em que argumentos oriundos da influência do mercado ou da burocracia superam a racionalidade comunicativa dos participantes, tem-se uma norma inválida/ilegítima. 108 A administração não constrói argumentos normativos, ao contrário do que ocorre com o legislativo e a jurisdição. As normas sugeridas amarram a persecução de fins coletivos a premissas estabelecidas e limitam a atividade administrativa no horizonte da racionalidade pragmática. Elas autorizam as autoridades a escolher tecnologias e estratégias de ação, com a ressalva de que não sigam interesses ou preferências próprios – como é o caso de sujeitos do direito privado (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 239). 204
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pública jurídica, mas também, implicitamente, por administrações. A função de execução das leis é exercida pelo governo e pela administração, indiretamen te também por Tribunais. Uma parte dessas funções jurídicas é delegada pelos órgãos do Estado a corporações privadas ou semipúblicas (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 243). Habermas deixa claro entender haver uma distinção entre os limites do discurso de aplicação realizado pela Administração e pelo Judiciário. Contudo, em nosso entender, sua obra não traz elementos suficientes para que essa distinção fique clara. No entanto, a partir de uma leitura sistemática do seu todo, é admissível supor que o fato de a Administração, no ato de aplicação do direito, não poder “recompor” o feixe de argumentos, tal como faz a Jurisdição, não significa dizer que a mesma fique amarrada ao cumprimento cego de normas inconstitucionais. Em outras palavras, a Administração, incluindo aqui organizações parajudiciais e, até mesmo, os Tribunais de Contas, pode declarar a inconstitucionalidade de atos normativos e, por conseguinte, negar sua eficácia. Contudo, se o Judiciário recompõe argumentos trazidos pelo discurso de fundamentação pelo filtro do código binário do Direito, por intermédio, por exemplo, das técnicas de interpretação conforme ou das sentenças do tipo adititivo,109 o discurso de aplicação da Administração não poderá recompô-los, ficando, pois, por exemplo, sujeito às 109 Em trabalho anterior ficou patente a admissibilidade de parte do atual arsenal de técnicas decisionais no controle da constitucionalidade das leis. Dentre elas, concluiu-se pela compatibilidade com o código binário do Direito as decisões de interpretação conforme, as sentenças aditivas, a modulação do efeito repristinatório, desde que a norma que venha a sofrer o efeito seja também inconstitucional, e a inconstitucionalidade fática/progressiva (Cf. Souza Cruz, Jurisdição Constitucional Democrática, p. 448). 205
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técnicas hermenêuticas clássicas de reconhecimento puro e simples da inconstitucionalidade da norma. Nesse contexto de uma divisão discursiva de poderes, Habermas vê o controle da constitucionalidade, quando exercido pelo Judiciário, como um discurso de aplicação e, como tal, essencialmente concreto, ou seja, do exame da adequação das normas às circunstâncias de um caso concreto. Ao contrário da visão comunitarista, que nega a condição de a via difusa/concreta constituir-se em verdadeira forma de Jurisdição Constitucional, Habermas vê o judicial review como mecanismo fundamental para o surgimento de uma cidadania ativa, em defesa do “princípio da democracia” e dos direitos fundamentais. Pois, esse controle concreto, seja nos clássicos modelos americano (difuso) ou alemão (concentrado ou via recurso constitucional), impõe debates argumentativos impossíveis ao discurso de fundamentação, posto que este último não pode antecipar todas as constelações de circunstâncias concretas a serem regradas.110 Todavia, essa argumentação pode influenciar o legislador político, de modo que ele, por meio não apenas de um autocontrole, mas também por influência reflexiva das decisões judiciárias, modifique/aperfeiçoe seu discurso de fundamentação. Essa tarefa, especialmente quando se impõe uma concorrência principiológica, pode realizar110 A defesa habermasiana do instituto do “ judicial review”, diferentemente da postura comunitária que o identifica como entrave ao processo democrático, fundamenta-se na vinculação constitucional e normativa entre Estado de Direito e Democracia Radical. Da relação co-original entre a autonomia privada e a autonomia pública resulta que os direitos do cidadão não lhes foram atribuídos senão por eles mesmos enquanto co-legisladores. Conseqüentemente, se a gênese democrática do sistema de direitos ancora-se necessariamente em uma cidadania ativa, isto significa que o legislador político, nem na Alemanha nem em nenhuma parte, tem faculdade para restringir ou abolir direitos fundamentais (Cittadino, Pluralismo, direito e justiça distributiva, p. 214). 206
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se também por meio de um Tribunal Constitucional, a despeito de o mesmo não ser indispensável. 111 Em oposição à corrente comunitarista, que apregoa a realização do controle de constitucionalidade exclusivamente pelas Cortes Constitucionais, Habermas impõe ácida crítica, especialmente ao fato de tais Cortes, via “Jurisprudência de Valores”, arrogarem-se o papel de definição dos discursos de fundamentação, tornando-se, por vezes, um Poder Constituinte anômalo e permanente. Para ele: [...] o controle abstrato de normas é função indiscutível do legislador. Por isso, não é inteiramente destituído de sentido reservar essa função, mesmo em segunda instância, a um autocontrole do legislador, o qual pode assumir as proporções de um processo judicial. A transmissão dessa competência para um Tribunal Constitucional implica uma fundamentação complexa (Habermas, Direito e Democracia , vol. I, p. 301). Dessa forma, é inaceitável entender a teoria discursiva como avessa ao controle da constitucionalidade das leis pelo Judiciário, como suportava a compreensão de Streck. Mas as bases desse controle são mais limitadas do que aquelas propostas pelo comunitarismo, e, por conseguinte, menos sedutoras para a magistratura, muito mais propensa à soluções ativistas, que julgam comprometidas com as necessidades do povo, esquecendo-se de que o ativismo pode ter também componentes conservadores, o que, em nossa opinião, explica a longevidade da discussão por aqui 111 A existência de Tribunais Constitucionais não é auto-evidente. Tais instituições não existem em muitas ordens do Estado de direito. E, mesmo onde eles existem [...] há controvérsias sobre o seu lugar na estrutura de competências da ordem constitucional e sobre a legimitidade de suas deci sões (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 298). 207
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da inefetividade das normas constitucionais tidas por programáticas. Nascida como um mecanismo de tornar a Constituição instrumento de melhoria da qualidade de vida no Brasil, passou a ser empregada na jurisprudência como mecanismo de sonegar os direitos sociais. Pela mesma maneira a “Jurisprudência de valores”, que se viu importada para o país como forma de superação dos limites da praxis positivista, se transformou em justificativa dada pelo Judiciário, especialmente pelo Supremo Tribunal Federal, para dar suporte a planos econômicos inconstitucionais ou para garan tir a inefetividade dos direitos sociais, em razão da “reserva orçamentária” ou do princípio da “reserva do possível”. Habermas, assim como Dworkin, considera que a jurisdição não é procedimento adequado para a sobreposição de convicções ético-políticas próprias do magistrado sobre as definidas no discurso democrático de fundamen tação. Dessa maneira, inaceitável que o mesmo assuma um viés de considerar sempre os desígnios das autoridades eleitas, em uma postura passivista e tão do agrado do pensamento positivista. O Judiciário deve saber que seu papel essencial é a da estabilização de expectativas de compor tamento, que somente se concretiza pela garantia dos direitos fundamentais. De outro lado, tampouco deve o Judiciário assumir uma postura ativista, tal como preconizado pelos comunitaristas, de modo a pretender usurpar as funções de legislador político. Tarefa árdua em um país cujo mundo da vida envolve tradições pouco democráticas, na qual a administração é assenhorada pelos titulares dos cargos públicos como algo particular e onde a magistratura, de uma forma geral, confunde a jurisdição com a figura mitológica de Zeus atirando seus raios de saber, de cultura e de uma ética divinizada sobre os mortais. Certamente, uma teoria que procura impor limites à jurisdição assume a forma de um remédio amargo para nos208
Habermas e o Direito Brasileiro
sos operadores do direito. Esses, de um lado, preferem a “segurança do conhecido e velho formalismo” positivista, e, por outro, a novidade “ativista” da ponderação de valores que poderia não satisfazer à necessidade urgente de “salvação da pátria”, esquecem-se de que esses caminhos levam, ao contrário do que pensam, à falência da democracia. O projeto de Habermas se afasta tanto do passivismo formalista quanto do ativismo comunitarista, exigindo do operador do direito uma postura interpretativa construtivista e reflexiva, de tal maneira a vislumbrar as possibilidades sintáticas, semânticas e pragmáticas do texto/contex to, checando sempre seus limites, para que sua atividade não desemboque em puro arbítrio, seja por uma omissão, seja por um excesso/desvio dos limites da jurisdição. O argumento de que as teorias hermenêuticas con temporâneas são “refinadas” demais para um universo no qual os juízes vivem “abarrotados” de processos não nos convence. Primeiro, porque é a visão positivista que os impede de apreciar com mais freqüência as ações de tutela coletiva/difusa, tais como a ação popular e a ação civil pública. Depois, porque o formalismo positivista os impede também de dar uma maior agilidade ao processo ao se negarem, por exemplo, a aplicar sanções à recursos claramente procrastinatórios, tais como as previstas nos artigos 17 e 18 do Código de Processo Civil pátrio. Por último, os recursos orçamentários do Judiciário, tão escassos em um país pobre como o nosso, não deveriam ser aplicados para a construção de suntuosos “palácios da justiça” e, sim, em favor da ampliação de meios de comunicação processual informatizada e pelo acréscimo do número de magistrados e serventuários. Por fim, é importante que se diga que o Judiciário, contrariamente do que pregam os comunitaristas, e a despeito de sua importância fundamental no constitucionalismo contemporâneo, especialmente no tocante à hermenêu209
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tica, não é o centro único das atenções da obra de Habermas, vez que sua visão de eqüiprimordialidade entre a autonomia pública e privada impede uma concepção ainda vazada na diferenciação clássica entre Estado (do qual o Judiciário faz parte) e Sociedade. O eixo do seu pensamento é a autonomia do cidadão, autonomia essa que autoriza inclusive a desobediência civil 112 como instrumen to de avanço no projeto constitucional, que, como se sabe, é um processo permanente e que está sempre em construção.113 Somente por meio de uma esfera pública ativa, não apenas o Judiciário, mas o Executivo e o Legislativo voltarse-ão para a implementação racional e inclusiva do ordenamento jurídico. Está claro que os “céticos de plantão” poderiam obje tar: as elites dominantes do Brasil jamais permitirão que a esfera pública possa se desenvolver a ponto de se tornar um processo de depuração dos procedimentos e instituições dos espaços públicos e privados. Logo, a teoria discursiva é imprestável/inaplicável por essas bandas. 114 112 Repolês ( Habermas e a desobediência civil, p. 21) faz interessante distinção entre o direito de resistência, pelo qual o indivíduo luta pela alteração do regime político de governo, tal como se deu com Gandhi em relação ao colonialismo britânico na Índia, e a desobediência civil, como ins trumento último da cidadania de protestar contra discursos de fundamentação ou de aplicação inadequados em razão dos princípios do discurso, da moralidade e da democracia. 113 A justificação da desobediência civil apóia-se, além disso, numa com preensão dinâmica da constituição, que é vista como um projeto inacabado. Nesta ótica de longo alcance, o Estado Democrático de Direito não se apresenta como uma configuração pronta, e sim, como um empreendimento arriscado, delicado e, especialmente, falível e carente de revisão [...] (Habermas, Direito e Democracia, vol. I, p. 118). 114 As regras do discurso, admitindo-se, de princípio, que sejam corretas, são, todavia, abertas em sua semântica e assumidamente não têm reprodução integral na realidade; são sempre aproximações e, contra a assunção expressa de Habermas, idéia reguladora, nada dizendo sobre como ou o que devemos fazer (Weinberger). Como não tem existência real, o “discurso idealizado” pode não passar de um processo mental monológico, pois apenas será construído ou reconstruído na cabeça do gênio que 210
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A resposta a tal objeção não é das mais difíceis. Em primeiro lugar, essa exposição já demonstrou sobejamente que Habermas reconhece a possibilidade de desvios do discurso, mas ele o concebe de forma a que o mesmo possa se prevenir e se reposicionar permanentemente contra tais manipulações. É isso que lhe permite se tornar um elemen to de identificação constante de opressões oriundas do mercado ou da burocracia. Em segundo lugar, qual seria a alternativa senão colocar o destino nas mãos dos seus próprios titulares? A “medida” da nossa democracia tanto mais se aprofunda quanto mais se desenvolve a autonomia do cidadão. Por último, é inegável a concretude das conquistas sociais trazidas pelo crescimento/consolidação de uma esfera pública em uma sociedade cada dia mais urbanizada e escolarizada quanto a nossa. O simples fato de ter sido eleito um presidente (Lula), oriundo do sindicalismo e por um partido político com suas origens ligadas “à esquerda do espectro político”, demonstra que não há imobilismo sócio-político da forma como entendem os céticos. Se o país ainda está distante das conquistas políticas, sociais e econômicas daqueles do norte desenvolvido, não resolve colocar os agente morais, os “sujeitos comunicantes”, naquela situação imaginária, por simples especulação ou para comparar a realidade ou o “consenso real” com o suposto consenso verdadeiro, autêntico ou normativamente correto. (...) Uma adicional observação ainda deve ser feita, tomando de empréstimo os argumentos de Young (2001) e Rancière (1996), sobre a condição igualitária dos falantes imprescindível para lançar-se nas interações humanas discursivas, desde as mais banais, claro está, se orientadas para o entendimento, às que se desenvolvem nos processos de deliberação pública. Até em sociedades relativamente homogêneas, a aproximação real e faticamente inevitável do que se exige em tese traz o risco de escamotear assimetrias e relações de dominação sociais (Fraser,1991:56 et seq.; Zizek, 2002:12), o que se torna ainda mais grave nas sociedades em que há um profundo desnível não apenas econômico, mas até de compreensão da importância de um comprometimento dos interlocutores com a veracidade, correção norma tiva e autenticidade de seus atos de linguagem sob o peso do melhor argumento (Sampaio, Direitos Fundamentais, pp. 115-116). 211
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é mais possível negar o quanto se avançou. Um olhar retrospectivo nos últimos cinqüenta anos de nossa história atesta uma evolução significativa. Por conseguinte, a perspectiva de consolidação tanto da “inclusão social” quanto da “democracia participativa” não pode ser conceituada/rotulada de mera quimera. No máximo, poder-se-ia dizer que ela está em um fio da navalha, qual seja, está entre a validade e a faticidade das formas e procedimentos de nossa organização social.
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Capítulo VI A Constelação Pós-Nacional
Como se viu, uma das preocupações centrais do cons titucionalismo contemporâneo se dá em torno do princípio do não-retrocesso social, calcado principalmente diante da proposta neoliberal de desconstrução das conquistas do Estado Social. Se em países desenvolvidos a questão já chega a preocupar,1 nos subdesenvolvidos como o Brasil, a questão ganha contornos de dramaticidade. É nesse contexto que se encontram os debates no nosso Congresso Nacional sobre a chamada “flexibilização das relações trabalhistas”, nas quais cada vez mais as obrigações regulares do empregador no contrato de trabalho são esvaziadas pelo discurso neoliberal que se diz favorável tanto à manutenção do emprego e quanto ao próprio trabalhador”. Da mesma maneira, os projetos de reforma constitucional alterando o regime previdenciário dos servidores públicos se somam às propostas de despir a magis tratura e o Ministério Público de suas atribuições institucionais. É o mesmo pano de fundo que permeia as questões ligadas à privatização do patrimônio público e à facilitação da entrada e saída do capital financeiro especulativo. Todos esses problemas seguramente afetam a questão da integração social, visto que aprofundam a colonização 1
Mesmo se na Alemanha ainda não se pode falar propriamente em uma “desmontagem do Estado social”, como nos casos da Inglaterra e dos EUA, pode-se comprovar de um modo geral nos países da OCDE, desde meados dos anos 1970, tanto uma regressão dos investimentos sociais, quanto um aumento do rigor no que tange às condições de acesso ao sistema de segu rança social (Habermas, A constelação pós-nacional, p. 99). 213
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do mundo da vida feita basicamente pelo sistema econômico. A teoria discursiva, apesar de perpassar pela questão, certamente não a abordou adequadamente. Exatamente por isso, e em razão do seu esforço permanente pelo aperfeiçoamento de sua obra, Habermas passa agora a centrar suas preocupações nos efeitos trazidos pela globalização 2 no ambiente nacional, vindo a propor/indicar soluções para seu enfrentamento no âmbito de uma nova esfera internacional que denomina constelação pós-nacional. Assim, longe de qualquer perspectiva neoliberal, o que contrariaria toda sua trajetória intelectual, nosso autor dimensiona o problema de forma mais ampla do que a tratada pelo cons titucionalismo da efetividade nacional. Entendendo-a como um processo cuja arte final ainda estaria longe de se visualizar, Habermas a trabalha essencialmente na esfera do sistema econômico, a partir do incremento espetacular na circulação de empresas, mercadorias, tecnologia e capital em termos mundiais, como um fluxo quase irresistível para os tradicionais mecanismos de controle/regulação dos Estados Nacionais, como rios que transbordam com facilidade velhos diques e eclusas. Logo, a globalização seria um processo que, dentre outras conseqüências, estaria paulatinamente aniquilando a capacidade do Estado Nacional de proteger seus cidadãos dos efei tos de decisões tomadas fora do âmbito de sua soberania, 3 2
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Utilizo o conceito “globalização” para a descrição de um processo, não de um estado final. Ele caracteriza a quantidade cada vez maior e a intensi ficação das relações de troca, de comunicação e de trânsito para além das fronteiras nacionais (Habermas, A constelação pós-nacional, p. 84). No passado, o Estado nacional guardou de forma quase neurótica suas fronteiras territoriais. Hoje em dia, processos supranacionais irrefreáveis malogram esses controles em diversos pontos. A. Giddens definiu globalização como o adensamento, em todo o mundo, de relações que têm por conseqüência efeitos recíprocos desencadeados por aconteci mentos tanto locais quanto muito distantes (Habermas, A inclusão do outro, p. 138).
Habermas e o Direito Brasileiro
sendo, pois, especialmente “madrasta” para os povos emergentes. 4 A grande questão colocada no constitucionalismo atual seria, então, de se saber se o mundo da vida e as formas de integração social baseadas no agir comunicativo, dependentes dos procedimentos de uma rede de comunicação ativa e de procedimentos institucionalizados no Estado Democrático serão capazes de suportar as crescen tes e variadas formas de colonização oriundas do modelo atual de capitalismo internacional. Nesse sentido, as recentes crises econômicas mexicana, argentina, russa dos anos 1990 e a expectativa sempre renovada pelos pronunciamentos do Federal Reserve sobre os patamares da taxa de juros mostram, cada vez mais, como a economia de um país está conectada a um sistema que ultrapassa as fronteiras nacionais. Destarte, as cotações das bolsas de valores e as avaliações do chamado risco-país por empresas de auditoria financeira e bancária por todo o mundo têm praticamente “assumido” a condução ou, pelo menos, o padrão da condução das políticas econômica, monetária e cambial nacionais. Esse processo, repita-se, especialmente em países emergentes como o Brasil, 5 tem aprofundado o fosso social entre as camadas mais ricas e as mais pobres da popula4
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É verdade que o crescimento explosivo da economia mundial, a quadruplicação da produção industrial e a decuplicação do comércio internacional com produtos industrializados, apenas entre os inícios dos anos 1950 e 1970, também promoveram disparidades entre as regiões pobres e as ricas do mundo (Habermas, A constelação pós-nacional, pp. 63-64). Sentimos também como desafio a desigualdade de bem-estar, que ainda aprofunda-se entre o norte rico e o caos e a autodestruição das regiões aflitas e pobres do sul, ou os conflitos culturais que se delineiam entre um Ocidente mais secularizado e, por um lado, o mundo islâmico movimentado pelo fundamentalismo e, por outro, as tradições sociocêntricas (soziozentrisch) do Extremo Oriente – sem falar dos sinais de alarme das regiões que cederam às guerras civis e aos conflitos etno-nacionais, etc. (Habermas, A constelação pós-nacional, pp. 76-77). 215
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ção. A globalização tem influência direta na economia de todos os países, com lamentáveis conseqüências para a massa salarial, para o nível de emprego, e, conseqüentemente, para a segurança social em razão do exponencial crescimento da marginalidade, bem como para a integração social como um todo, haja vista os alarmantes dados sobre o consumo de drogas e de bebidas alcoólicas. Esses fatores retroalimentam a globalização de forma perversa, trazendo consigo a mundialização do crime organizado que se materializa por meio do tráfico de drogas, de armas e, particularmente nos países do terceiro mundo, o tráfico de mulheres, de órgãos, de crianças e de biogenética (plantas e animais). As chamadas máfias italiana, colombiana, russa, chinesa e japonesa atuam praticamen te a nível global. O problema é tão sério que a corrida armamentista que pautou o que Hobsbawn chama de “breve século XX”,6 primeiro entre as potências centrais e a Inglaterra, França e Estados Unidos, e depois durante o equilíbrio atômico de terror da guerra fria entre leste/oeste, foi deslocada para uma zona de tensão norte/sul, exemplificadas pelo auxílio norte-americano a países sul-americanos e do caribe no combate à criminalidade organizada. A globalização tem efeitos marcantes também nos aspectos tecnológico, cultural e ecológico.7 A publicidade, a comunicação e o turismo de massa têm trabalhado de forma a estabelecer uma cultura consumista de forma mundializada. A forma de se vestir, o gosto por literatura, cinema, música têm sido balizados por estratégias de markting 6 7
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Cf. Habermas, A constelação pós-nacional, p. 64. Os processos de globalização – que não são apenas de natureza econômica – acostumam-nos mais e mais a uma outra perspectiva, a partir da qual fica cada vez mais evidente a estreiteza dos destinos coletivos. Enquanto a aceleração e condensação da comunicação e do tráfego faz com que as distâncias espaciais e temporais se atrofiem, a expansão dos mercados atinge as fronteiras do planeta e a exploração dos recursos, os limites da natureza (Habermas, A constelação pós-nacional, p. 72).
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que tudo reduzem à condição de bens de consumo, fazendo com que jovens japoneses, americanos, sul-africanos ou brasileiros tenham as mesmas preferências sobre calças jeans, marcas de tênis, música pop/techno ou livros (Harry Potter, por exemplo). Fenômenos como a preservação das florestas amazônica e a temperada nas Américas, desastres como o de Chernobyl ou dos seguidos derramamentos de óleo nos oceanos, a preservação de espécies animais contra a caça/pesca predatórias, a emissão de gases poluentes e o “buraco de ozônio” na atmosfera são exemplos simples que demonstram o entrelaçamento do destino do homem provocados pela globalização que certamente não podem ser resolvidos nos limites clássicos do Estado nacional. Diante do quadro, Habermas resume a três as corren tes que concorreriam para a solução dos impasses trazidos pela globalização: a supressão do Estado Social, a (re)constituição do Estado Social e a suprassunção internacional do Estado Democrático. A primeira delas, a da supressão do Estado Social, tem como substrato ideológico “os ventos” do neoliberalismo, pois o Estado nacional deveria tão-somente se preocupar com a preparação dos “homens” para o mercado. Os defensores dessa proposta, céticos em relação à efetividade de qualquer regulação estatal sobre a economia, acreditam que a mesma reduz a eficiência do sistema capitalista, sorvendo recursos da poupança, que poderiam se destinar aos investimentos e à criação de empregos, para uma burocracia inepta, corrupta, corporativa e crescente. No âmbito da concorrência internacional, a redução da burocracia deveria ser acompanhada por investimentos estatais exclusivamente em infra-estrutura (energia, transporte, melhoria das instalações portuárias etc). Tudo isso associado ao estímulo do comércio internacional, bem como à facilitação dos investimentos estrangeiros diretos 217
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na economia, passando necessariamente por uma autolimi tação do Estado Social, tanto pela redução da carga tribu tária como pela desregulamentação da política de câmbio, redução das tarifas aduaneiras e de quaisquer barreiras comerciais. 8 Somente a desregulamentação da economia poderia trazer justiça social, apesar de estar claro que a mesma viria a reboque do crescimento econômico, vez que as preocupações dos neoliberais não se voltam essencialmente para tais questões, pois os agentes econômicos não precisam se preocupar com o outro, bastando, para tanto, cuidar de si mesmos, vez que a mão invisível do mercado trará por si só justiça para todos. 9 Direitos trabalhistas e 8
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A tomada de partido em favor da globalização e da desterritorialização apóia-se numa ortodoxia neoliberal que encaminhou, durante as últimas décadas, a mudança de políticas econômicas voltadas para a oferta. Até hoje, não existiu uma comunidade epistêmica mais influente do que a Escola de Chicago. Ela recomenda a subordinação do Estado aos imperativos de uma ampla integração societária mundial através dos mercados, sugerindo um Estado empreendedor , que deveria abandonar a idéia de que o Estado deve proteger as fontes do mundo da vida. O Estado aferrolhado pelo sistema econômico transnacional libera seus cidadãos para as liberdades negativas seguras de uma competição em escala mundial, restringindo-se, em sua essência, ao trabalho empresarial de preparar infraestruturas que tornem atrativa a própria praça ou sede da Nação como locus econômico levando em conta apenas critérios de rentabilidade, que são os únicos capazes de promover atividades empresariais (Habermas, Era das transições , p. 110). Na base do princípio fundamental do neoliberalismo encontra-se um conceito de justiça de troca advindo do modelo processual do direito contratual. Em uma operação de troca, o rendimento, a aquisição e o lucro – ou seja, aquilo que se recebe – encontram-se em uma relação de equivalência com aquilo que se dá, ou seja, com a despesa, a oferta e o depósito, sobretudo se o acordo, nomeadamente o consentimento de ambos os lados, concretiza-se sob certas condições padronizadas: os envolvidos devem ter a mesma liberdade para decidir conforme as preferências próprias de cada um. Um mercado que, juntamente com o meio monetário, é institucionalizado com base nos direitos igualitários privados à liberdade e, em particu lar, assenta-se na liberdade contratual e nos direitos à propriedade, assegura um procedimento para a troca de equivalentes que, nesse sentido, é “justa” quando e à medida que efetivamente possibilita uma competição
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previdenciários “flexibilizados” protegeriam muito mais o trabalhador do desemprego do que “petrificados” em um texto constitucional... Tanto os comunitaristas quanto Habermas se opõem acidamente a tais propostas pelas mesmas razões, posto que o neoliberalismo assume posturas que vão desde a indiferença ao cinismo com relação às questões sociais, relegando o problema à ação do aparato policial e da Justiça, típicas do État Gendarme. A mera constatação do crescimento de bolsões de miséria (guetos/favelas), mesmo em países desenvolvidos, demonstra uma fragmen tação e uma injustiça social crescentes, castrando gerações de pessoas marginalizadas, que jamais terão qualquer chance de se realizarem como seres humanos. Tudo isso nega a idéia de que a visão liberal de justiça social possa por si só criar inclusão social. 10 O neoliberalismo não liberta o Estado para o investimento em infra-estrutura econômica, visto que a ausência de gastos em prestações sociais positivas implica, como efeito colateral, despesas com a construção de penitenciárias e de internatos/creches para crianças abandonadas, bem como para o custeio crescente do aparato estatal de segurança pública. “livre” – no sentido rigorosamente normativo da mesma liberdade privada para todos. Aqui vale também o pagamento justo com relação ao desem penho como um caso especial de justiça de troca baseada no pressuposto da existência de liberdade de arbítrio recíproca (Habermas, A constelação pós-nacional, pp. 118-119). 10 São indubitáveis os indicadores de aumento de pobreza e de insegurança social devido ao crescimento de disparidades salariais, e também são inegáveis as tendências de desintegração social. Aumenta o abismo entre as condições de vida dos empregados, dos parcialmente ocupados e dos desempregados. Onde pululam as exclusões – do sistema de emprego e de educação, dos serviços estatais de financiamento ( Transferleistungen ), do mercado imobiliário, dos recursos para a família etc. – surgem classes “subalternas”. Esses grupos pauperizados e amplamente segregados do resto da sociedade não podem mais reverter por conta própria a sua situação social (Habermas , A constelação pós-nacional, p. 66). 219
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A abertura do mundo da vida às exigências do sistema capitalista internacional, encarada pelos neoliberais como “progressista”, não demonstra capacidade de produção de legitimidade social, pois faz desaparecer qualquer elemento de solidariedade para fins de integração da sociedade. O código da comutatividade contratual, baseado estritamente na linguagem do lucro, da concorrência e da eficiência não dão respostas adequadas aos reclamos da sociedade contemporânea, especialmente de universalização dos direitos humanos. A alternativa neoliberal mencionada alude à antiga controvérsia quanto à relação da justiça social com a eficiência do mercado. Praticamente não tenho aqui aporte novo para o esclarecimento dessa louvável briga de dogmas. Deve-se levar em conta que um mercado de trabalho amplamente desregulamentado e a privatização da assistência à saúde, aos idosos e ao desemprego faz com que surjam – no âmbito dos pior assalariados e dos que possuem relações de ocupação mais inseguras – meios empobrecidos reduzidos ao mínimo para a existência. Mesmo se, então, a maioria dos contentes (e dos não-tão-contentes) pudessem lidar com essa situação e entregar, na qualidade de problema de segurança interna e de amparo à pobreza, o resto da população condenada a ser “supérflua” – também segmentada pelo processo político – a um Estado repressivo, o processo forçado de perda da solidariedade permaneceria como um espinho encravado na carne da cultura política. Uma justificativa funcional não é suficiente para tornar aceitável de modo normativo diferenças sociais muito gritantes em uma sociedade civil constituída democraticamente (Habermas, A constelação pós-nacional, p. 118). 220
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A segunda alternativa para o enfrentamento da globalização é exatamente a (re)constituição do Estado Social, ou seja, a preservação da promessa republicana de inclusão social pela garantia do direito à igualdade de oportunidades de fazer valer os direitos fundamentais clássicos, incluindo obviamente os sociais, coletivos e difusos. Está claro para essa corrente que tais promessas se deram de maneira não uniforme na face do globo. Daí entenderem que em alguns países, como de certo o Brasil, o desafio seria ainda o da constituição do Estado social. É certo que somente a solidariedade cívica estabelecida pelo Estado nacional conseguiu formar um estatuto republicano, ou seja, uma solidariedade abstrata que se instala entre estranhos que se identificam pela noção de pertencimento a um mesmo grupo, a uma mesma nação. Inicialmente consolidado no Ocidente pelas revoluções americana e francesa no século XVIII e seus desdobramen tos na América Latina, instalou-se nos países de formação tardia pelas conseqüências das revoluções de 1848, como Alemanha e Itália e, finalmente, nos Estados nacionais de formação recente, pelo movimento anti-colonialista da segunda metade do século passado. Será justamente esse espírito de doação do cidadão de uma cota de sacrifício (nacionalismo) que permitirá ao Estado a imposição de obrigações estatais como, por exemplo, os serviços militares obrigatórios e a noção de solidariedade fiscal, permitindo que os mais abastados (indivíduos ou regiões) aceitassem sacrifícios maiores em favor dos marginalizados socialmente. Dotado desse orçamento, o Estado nacional, sob distintas intensidades, pôde materializar políticas de infra-estrutura, de emprego, de salários, de distribuição de renda, securitárias e assistenciais, em favor da saúde pública e do direito de moradia, transformando-se, assim, na forma constitucional do Estado Social de Direito. 221
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Dessa forma, o Estado tornou-se a um só tempo, de um lado, uma alavanca para o desenvolvimento sustentado da economia, pelo financiamento de empreendimentos privados, pela instalação de infra-estrutura ou até mesmo pela assunção da atividade empresarial (empresas públicas ou de economia mista), e, por outro, mecanismo de integração social viabilizada pelas políticas de inclusão acima descritas. A postura de (re)constituição do Estado Social não se exime da apreciação das críticas do neoliberalismo, referentes à deformação dos objetivos da política inclusiva, face tanto aos custos de uma atrofia da autonomia individual trazida por uma postura paternalista do Estado, quan to do surgimento de interesses burocráticos concorrentes dos interesses da sociedade. Em especial, os comunitaris tas consideram tais questões irrelevantes se sopesadas diante dos benefícios trazidos pelo Estado Social e do custo que a desconstrução do mesmo traria para as sociedades de uma forma geral. Esse “partido da territorialidade” se apega aos fundamentos igualitários e universalistas dos direitos humanos, mas, todavia, sob uma lente etnocêntrica, chegando em alguns países, especialmente os mais desenvolvidos, à condição de xenofobia. Para tanto, contrapõe ao ofensivismo desregulador do neoliberalismo uma atitude defensivis ta de proibição do retrocesso social, como forma de “domesticar” o capitalismo internacional, ou, pelo menos, de amenizá-lo no âmbito interno. Esse “fechamento” do Estado nacional assume a figura metafórica de um “porco espinho” ( Politik des Einigelns ) que se fecha sobre seu próprio corpo quando atacado por outros animais. Da mesma forma, políticas voltadas para o controle da remessa de lucros ao exterior, do controle do abuso do poder econômico de empresas transnacionais, de defesa do capital interno, em especial de microempresas, 222
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cooperativas, pequenos acionistas, garantia dos direitos sociais e coletivos por via do seu enquadramento como cláusulas pétreas da Constituição deveriam ter sempre como guardião maior o Poder Judiciário, no qual os valores éticos e morais de seu ativismo poderiam salvar/impor as conquistas do Estado Social. 11 No plano internacional, os organismos criados no pósguerra (1945) poderiam ser influenciados pelos próprios Estados nacionais de forma a colaborarem com o esforço de preservação tanto da identidade nacional quanto dos ganhos de uma política intervencionista. Tudo convergindo para uma política econômica de raiz notadamente keynesiana de intensificação do potencial interno (política de substituição de importações e de qualificação da mão-deobra) e de redução do tempo de trabalho. Contudo, o que se verifica é que tal política terá fôlego curto na quadra atual do capitalismo internacional, pois o alcance/efetividade de tal política econômica não tem a elasticidade necessária como supõem seus defensores. Especialmente em países pobres, dependentes da poupança externa para manter um nível equilibrado de investi11 Em sistemas políticos, tais como o dos Estados Unidos e o da República Federal da Alemanha, que prevêem uma instituição independente para examinar a constitucionalidade das leis emitidas pelo Congresso, desencadeiam-se debates sobre a relação entre democracia e Estado de Direito e sobre a função e a posição do Tribunal Constitucional, de grande influência política. [...] Frank Michelman pensa que essa problemática está per sonificada em William J. Brennan, grande figura da jurisprudência americana mais jovem. Ele descreve Brennan, de um lado, como um liberal que defende direitos de liberdade individuais, numa versão fortemente moral, e, de outro, como um democrata que radicaliza os direitos de participação e de comunicação, com a intenção de dar chances tanto aos silenciados e marginalizados, como é o caso dos opositores e dos que têm um comporta mento desviante. Finalmente, como um social-democrata altamente sensível às questões da justiça social e como um pluralista, que, ultrapassando a compreensão liberal da tolerância, engaja-se numa política sensível às diferenças, capaz de reconhecer as minorias culturais, raciais e religiosas (Habermas , Era das transições , p. 157). 223
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mentos, o protecionismo econômico é um veneno para a própria economia, pois acarreta, como efeito colateral, a fuga dos capitais estrangeiros. Assim, a “guerra fiscal” se impõe entre esses países que utilizam a desregulamentação da economia como ins trumento de barganha para captar um volume maior tanto de investimentos diretos quanto de capital financeiro especulativo. Guerra essa que se agrava quando o país assume a forma federativa, na qual suas unidades autônomas (Estados, Distrito Federal e Municípios) competem entre si pela captação de recursos/capitais estrangeiros. Mas, se a redução da carga tributária diminui, ao mesmo tempo, a margem de manobra do Estado nacional, que, privado de recursos tributários, fica incapacitado de investimentos tanto em infra-estrutura, para o crescimento do emprego, quanto em políticas sociais. Da mesma forma, organismos internacionais, como o FMI ou o Banco Mundial, que na visão comunitarista poderiam fechar algumas brechas de eficiência da perda de autonomia dos Estados nacionais, de início, com a reunião de Bretton Woods, quase sempre atuaram em favor das grandes economias capitalistas, e, agora, que parecem se debruçar com mais atenção sobre as necessidades dos países pobres, têm uma capacidade de ação limitada pela própria globalização e pelo entrelaçamento das relações econômicas em nível mundial. Se, por um lado, o neoliberalismo “peca” por confiar excessivamente nos benefícios do sistema econômico, esquecendo-se de qualquer pretensão normativa de legitimidade, por outro, o comunitarismo “peca” por atribuir uma capacidade de ação inalcançável ao sistema jurídico, deixando de considerar adequadamente os impulsos advindos da atividade econômica. Habermas tem consciência das limitações da proposta de (re)constituição do Estado Social, pois a mesma parece 224
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desconsiderar limitações práticas advindas do sistema econômico e, como o direito ainda não se transformou em uma “vara de condão capaz de multiplicar os pães”, a proposta comunitarista traz descrédito ao Direito, já que seu discurso em prol das virtudes do ativismo judicial não é capaz de, por exemplo, impedir que os “dólares” do capital especula tivo migrem para países com baixa regulação estatal.12 A despeito disso, ele entende preferível a segunda alternativa à insensibilidade neoliberal, certamente com todas as ponderações e advertências estabelecidas no curso da exposição da teoria discursiva do direito. Contudo, face às limitações anotadas, ele o faz como opção provisória que ainda possa se amoldar a alguns países, visto que a mesma não pode, no longo prazo, ser a respos ta adequada ao desafio da globalização.13 Destarte, trabalha para a construção de um projeto altenativo, que nomeia de suprassunção do Estado nacional, que rejeita a pura e simples extinção do Estado nacional e, por tabela, do Estado social, mas que não assume a postura defensivista dos comunitaristas. 14 Por meio dele 12 A Constituição canaliza e viabiliza a democracia, mas se se espera que ela, unicamente por suas normas, possa substituir, apenas a título de exemplo, o tratamento político dos problemas políticos e o cuidado econômico das questões econômicas por imperativos constitucionais cogentes que dis pensem o jogo democrático e a condução concreta de políticas econômicas e sociais, terminar-se-á por pagar o preço do incremento da desestima constitucional a corroer toda a sua potencial força normativa e a gerar a ineficácia de suas normas, produzindo, na prática, efeitos opostos aos almejados (Carvalho Netto, A constituição da Europa, p. 282). 13 Nem seria possível eliminá-lo tão cedo.[...] No entanto, isso não muda nada nas novas relações de dependência que as condições da economia mundial, profundamente modificadas, impõem ao Estado. A questão é saber se a constelação pós-nacional não necessita de maior número de atores, com maior capacidade de ação (Habermas, Era das transições , pp. 25-26). 14 O discurso sobre a superação do Estado nacional é ambíguo. De acordo com uma maneira, por assim dizer, pós-moderna de entender a questão, o fim do Estado nacional leva-nos também à separação do projeto de auto nomia para o Estado de cidadãos que, segundo essa visão, estourou seu 225
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procura traçar as bases de uma integração socialmente discursiva no plano internacional, ou seja, a adaptação da teoria discursiva de modo exógeno ao Estado nacional. 15 Nosso autor tem consciência de que esse projeto não amadureceu suficientemente para se apresentar como uma verdadeira alternativa. No entanto, procura se certificar que a mesma não é um simples devaneio/utopia discutindo suas bases, algumas propostas e as dificuldades que terá de superar para se efetivar, 16 Esse projeto contém diversas propostas que se somam com vistas a proporcionar uma nova perspectiva à situação. A primeira delas se dá ainda no plano interno: o incentivo à pesquisa e ao desenvolvimento pela educação/qualificação da mão-de-obra e do empresariado para uma melhor aclimatação ao ambiente de concorrência internacional. 17 A proposta em si contém, por um lado, uma preocupação em termos de solidariedade social desconsiderada pelo neolicrédito sem esperanças de recuperação. Para a outra maneira de entender a questão, não derrotista, ainda há chance para o projeto de uma sociedade apta a aprender e capaz de agir sobre si mesma por meio da vontade e da consciência política, mesmo para além de um mundo constituído por Estados nacionais (Habermas, A inclusão do outro, p. 142). 15 Ele propõe, por isso, uma política deliberativa “ofensiva” não orientada pela lógica do mercado. Por este caminho é possível criar unidades políticas maiores que o território nacional. Ou seja, a política apoiada no princípio do discurso pode ter chances de enfrentar os mercados globalizados, caso consiga sustentar uma política interna voltada para o mundo e vinculada aos processos democráticos de legitimação, que derivam de uma formação racional e discursiva da opinião e da vontade dos cidadãos e da inclusão de todos os possíveis envolvidos, mesmo dos estrangeiros (Siebeneichler. Prefácio, Era das transições , p. 15). 16 Cf. Habermas, A constelação pós-nacional, p. 71. 17 Sob as condições de uma economia globalizada, o “keynesianismo em um país” não funciona mais. É mais promissora uma política antecipadora, inteligente e cuidadosa de adaptação das condições nacionais à competição global. Fazem parte dessa política as conhecidas medidas de uma política industrial prospectiva, o incentivo a reserch and development , e, portanto, às inovações futuras, a qualificação da força de trabalho com base em uma melhor formação e especialização [...] (Habermas, A constelação pós-nacional, p. 68). 226
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beralismo e, por outro lado, procura preparar o ambiente nacional à concorrência externa, sabedor de que uma política de fechamento da espécie de uma “reserva de mercado” tem fôlego curto, pois encarece os bens e incrementa a defasagem tecnológica, tal como visto por aqui, na década de 1990, no mercado de automóveis e de informática. Um segundo indicativo seria trabalhar em favor de uma institucionalização jurídica no plano mundial de forma a corrigir as mazelas do trânsito comercial globalizado. Isso permitiria o estabelecimento de um fórum que permitisse o debate sobre os limites da desregulamentação do Estado nacional, tornando menos irracional e predatória a concorrência entre os diversos países. Essa abertura não impediria simplesmente tais práticas, posto que, para os países emergentes, as mesmas são o único “chamariz” para os investimentos diretos estrangeiros. 18 Mas, sem dúvida alguma, poder-se-ia estabelecer limites a uma “guerra fiscal” na qual o capital sempre ganha e os Estados nacionais sempre perdem, ou seja , uma “ race to the bottom” . De outro lado, a ação de empresas transnacionais seria melhor fiscalizada, vez que práticas de abuso do poder econômico poderiam ser examinadas a nível global, sem as restrições das atuais fronteiras nacionais, que servem para impedir a punição de condutas restritivas da concorrência e abusivas, derivadas da formação de grupos econômicos de coordenação ( pools , cartéis, konzerns , zai batzus etc.) ou de subordinação ( trusts e holdings ). Nesse sentido, a presente proposta não chegaria a postular pela construção de um Estado mundial, 19 mas cer18 Países com alto nível social temem o risco de uma nivelação para baixo; países com uma proteção social relativamente fraca temem perder as vantagens dos seus baixos custos com a introdução de padrões mais elevados (Habermas, A constelação pós-nacional, p. 123). 19 A institucionalização de procedimentos para a sintonização dos interes ses, para a universalização dos interesses e para a construção criativa de interesses comuns não poderá se consumar na figura organizadora de um 227
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tamente passaria por alterações significativas nos organismos internacionais, 20 de modo que os mesmos não refletissem tão-somente a representação dos governos nacionais, mas a voz das diversas comunidades/sociedades do globo, com a participação de organizações não governamentais, garantida pelo aprofundamento de uma esfera pública mundial transformada, respectivamente, em uma arena de debates de temas de interesse global. Assim, essa remodelação dos organismos internacionais poderia superar a deficiência de legitimidade democrática da qual padecem na atualidade todos eles. 21 Essas transformações levariam necessariamente a uma discussão dos limites da soberania dos Estados nacionais, que seguramente teriam que ceder parcela de suas antigas atribuições para esses organismos internacionais, tendo como norte, o princípio da subsidiariedade. 22 Dentre essas Estado mundial (tampouco desejável); esse processo terá de levar em conta a independência (Eigenständigkeit) , os caprichos (Eigenwilligkeit) e a peculiaridade (Eigenart) dos Estados outrora soberanos (Habermas, A constelação pós-nacional, p. 74). 20 Uma ordem mundial e uma ordem econômica global mais pacífica e mais justa não podem ser concebidas sem instituições internacionais capazes de agir, nem sem processos de conciliação entre os regimes continentais, ora emergentes, nem tampouco sem políticas que provavelmente só pode rão se impor sob a pressão de uma sociedade civil capaz de transitar em esfera global. Isso já sugere a outra maneira de ler a questão, segundo a qual o Estado nacional teria sido antes “suprassumido”, e não extinguido (Habermas, A inclusão do outro, p. 145). 21 A coordenação de novos domínios políticos traz consigo, necessariamente, uma concentração de competências e, com isso, um novo problema, pois o déficit democrático das autoridades de Bruxelas desencadeia uma crescente insatisfação política em amplas camadas da população (Habermas, Era das transições , p. 136) 22 “Subsidiariedade” é um princípio funcional, muitas vezes invocado, capaz de fazer jus à autonomia dos Estados nacionais. Quanto maiores as dife renças no território e no número de habitantes, no poder político e no nível de desenvolvimento econômico, na cultura e nas formas de vida, tanto maior é o perigo de que as decisões da maioria firam o princípio da coexistência com igualdade de direitos. Por isso, todos os domínios sensíveis à conservação da integridade nacional têm que ser subtraídos ao princípio 228
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instituições não se enquadram apenas as de Direito Internacional clássico, como a ONU, a OIT, a OMS, o FMI, o BIRD, dentre outras, mas também os grandes blocos emergentes, como a OCDE, o NAFTA, o MERCOSUL, dentre outros. Logicamente, essa institucionalização se daria em torno da pretensão universalista de uma tutela discursiva dos direitos fundamentais. Para tanto, a noção de subsidiariedade entre os aparatos estatais nacionais e os internacionais deveriam somar forças em prol desse objetivo. Dessa maneira, por exemplo, os elementos da jurisdição debatidos anteriormente na teoria discursiva poderiam ser aplicados pelas Cortes Internacionais de Justiça. Sem qualquer posição eurocêntrica, Habermas destaca os debates sobre os rumos da “unificação européia” como base para sua argumentação, simplesmente por ser a experiência mais antiga e bem sucedida globalmente em termos de integração econômica. Nesse sentido, alguns a vêem como mera unificação econômica/comercial e outros, como ele, esperam que surja algo que se aproxime de uma nova espécie de federação européia que possa buscar uma legitimação normativa de tal empreendimento. Por certo a discussão não tem pretensões de se extravazar como um modelo único para o restante do mundo. Habermas está simplesmente examinando o suporte fático da viabilidade de consolidação de uma identidade republicana/cívica que extrapolasse as fronteiras nacionais, em um continente marcado pelo horror de guerras de conquis ta que se originam ainda na antiguidade, mesmo antes do Império Romano. Contudo, essas mesmas experiências da maioria. Entretanto, em democracias consensuais consolidadas, as decisões políticas sofrem notoriamente com a falta de transparência. Por isso, seria bom pensar em referendos em toda a Europa , a fim de propiciar aos cidadãos condições melhores para influir nas políticas e para configurá-las (Habermas, Era das transições , p. 149, acréscimo nosso). 229
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promoveram avanços no sentido da universalização dos direitos humanos e em uma solidariedade européia ainda não experimentadas em outro lugar do globo como, por exemplo, a questão da cidadania comunitária.23 A superação da questão da identidade cívica é básica para a proposta habermasiana, vez que historicamente deveu-se a ela a capacidade do Estado nacional implemen tar políticas sociais. Nesse sentido, os primeiros óbices que se impõem ao projeto de Habermas dizem respeito à formação de tal identidade. Não são poucos a sustentar que a mesma não poderia se formar fora do ambiente nacional, pois ela só poderia se consolidar pela consolidação de um povo, e, por conseguinte, de uma homogeneidade axiológica em torno de tradições, cultura e de uma língua comum. 24 Essa identidade cívica, substituindo relações de fidelidade arcaicas (por parentesco ou baseadas em relações pessoais, tais como juramentos ou contratos próprios ao estamento medieval), forjou tanto a noção de nação/nacionalismo (consciência do nós) quanto a noção de responsabilidade 25 23 A União Européia promulgou, por exemplo, importantes leis sociais voltadas para a igualdade das mulheres, enquanto a Corte de Justiça Européia tomou mais de trezentas decisões relevantes em termos dos direitos sociais para tornar os regimes nacionais de bem-estar social compatíveis com o mercado interno comum (Habermas, A constelação pós-nacional, p. 122). 24 O simbolismo cultural de um “povo” que se certifica justamente do seu caráter próprio – ou seja, do seu “espírito de povo” nas presuntivas descendência, língua e história comuns – gera uma unidade, ainda que imaginá ria, e faz desse modo com que os habitantes do mesmo território estatal tomem consciência de uma pertença, até esse momento abstrata e que havia sido mediada apenas juridicamente. . A consciência nacional abastece o Estado territorial ( Flächenstaat ), constituído nas for mas do direito moderno, com o substrato cultural para a solidariedade cívica (Habermas, A constelação pós-nacional, p. 82, nosso destaque). 25 Para (Karl) Jaspers, o conceito de culpa deve ser entendido em quatro sentidos. [...] Do ponto de vista criminal, ou jurídico, só são culpados os indivíduos que cometeram efetivamente atos qualificáveis como crimes. Do ponto de vista político, todos os cidadãos de um Estado – pelo menos os de 230
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para com seus iguais,26 seja por meio de tributos redistributivos ou, até mesmo, por “dívidas morais” herdadas de outras gerações, tais como a questão do holocausto na Alemanha.27 Em outros países, como na Espanha, na África do Sul, nos Estados Unidos e no Brasil, por exemplo, desenvolvemse controvérsias sobre o lado dos vencidos na história da colonização, em especial dos negros e dos indígenas. Franceses, italianos, holandeses ou suecos são atingidos pelos fantasmas da época da “colaboração” durante a segunda guerra mundial. O Vaticano faz seu mea culpa com relação ao período da Inquisição. Para todos, é importante que “o próprio passado nacional” forneça material para uma conscientização da pessoa humana, não como um absurdo processo de culpa coletiva, mas como uma autoreflexão de seu mundo da vida transcendental. 28 um Estado cujo governo é proveniente de eleições democráticas, como é o caso do governo hitlerista – são corresponsáveis pelos atos, e logo, pelos crimes cometidos por esse Estado. Do ponto de vista moral, cada testemu nha dessa tragédia deve se indagar se ela sempre fez, nas condições peno sas em que se encontrava, o melhor que podia. Do ponto de vista metafísico, isto é, do ponto de vista da solidariedade universal, cada um de nós tem a ver com aquilo que acontece aos outros, ainda que aparentemente nada possa fazer – pois, a rigor, nenhum de nós pode se declarar indiferente ao fato de que outros homens sejam maltratados, mesmo que isso este ja ocorrendo do outro lado do planeta (Delacampagne, História da filoso fia do século XX , pp. 167-168, acréscimo nosso). 26 A transformação da “nação aristocrática” em “nação popular”, que avança a partir de fins do século XVIII, pressupõe uma mudança de consciência, inspirada por intelectuais, que se impõe inicialmente na burguesia citadina, sobretudo academicamente letrada, antes de alcançar eco em camadas mais amplas da população e ocasionar progressivamente uma mobilização das massas. A consciência nacional popular cristaliza-se em “comunidades imaginárias” (Anderson) engendradas nas diferentes histó rias nacionais, as quais se tornaram o cerne da consolidação de uma nova auto-identificação coletiva (Habermas, A inclusão do outro, p. 127). 27 Cf. Habermas, A constelação pós-nacional, p. 43. 28 Para que la confrontación ético-política con el pasado pueda desarrolar fuerza formadora de mentalidades y para que pueda suministrar impulsos a una cultura politica fundada en la libertad, tiene que venir comple231
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Em outras palavras, o conceito de povo é usualmente empregado em um contexto de enraizamento étnico de seus membros que promove uma “irmandade imaginária” fundida em noções de passado/futuro e destino comuns. É essa perspectiva que levará Schmitt a conceber uma democracia sustentada de maneira exclusivamente plebiscitária em torno de questões de “sobrevivência” dos valores homogêneos de uma cultura/raça e a identificação de amigos/inimigos de um povo. Essa noção de povo identifica-se com as bases do pensamento comunitarista que remonta à Aristóteles, ou seja, como um dado pré-político e extrajurídico. Somente a partir da noção de povo com caracteres relativamente homogêneos seria possível pensar-se em formas de institucionalização do discurso e, conseqüentemente, da construção de uma Constituição, tal como já preconizaram Dieter Grimm 29 e o Tribunal Constitucional da Alemanha. 30 Dito de outro modo, a proposta de Habermas naufragaria pela impossibilidade de se compreender a noção de mentada, ciertamente, por procedimientos jurídicos y por la suposición de una cierta disponibilidad al autoexamen existencial (Habermas, Más allá del Estado naional, p. 56). 29 Cf. Habermas, A inclusão do outro, p. 181. 30 O Tribunal Federal Constitucional alemão, num determinado trecho da fundamentação de sua sentença sobre Maastricht, até mesmo insinua esta interpretação: “A democracia [...] depende da existência de determinados pressupostos pré-jurídicos, tais como uma permanente e livre discussão entre as forças sociais, os interesses e as idéias que se defrontam umas com as outras, através da qual também seja possível esclarecer e modificar metas políticas e a partir da qual uma opinião pública pré-formula a vontade política [...] Partidos, associações, imprensa e radiofusão são tanto meio como fator deste processo de intermediação, a partir do qual pode rá configurar-se uma opinião pública na Europa”. Europäische Grundrechte Zeitschrift, 1993, 437s. A observação seguinte, a respeito da necessidade de uma língua comum, parece ter a finalidade de construir uma ponte entre este conceito de democracia, baseado na teoria da comu nicação, e a homogeneidade do povo de um estado, geralmente considerada como necessária (Habermas, A inclusão do outro, nota n o 54, p. 176). 232
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povo fora de sua noção comunitarista, o que impediria a construção seja de um Estado mundial ou, como preconiza Habermas, de algo novo, que compusesse de forma original a autonomia pública dos Estados nacionais e a autonomia privada construída em torno de uma esfera pública internacional, a constelação pós-nacional.31 Como se viu, esses óbices têm, de modo geral, fundamento em uma concepção comunitarista de povo, da qual certamente Habermas e nem tampouco o liberalismo (fundado em noções ligadas ao contrato social para garantia de direitos individuais) não comungam. Logo, a noção de povo de Habermas se funde em uma concepção de patriotismo constitucional, incorporando, com isso, noções ligadas ao pluralismo, à tolerância e ao direito à diferença. O conceito de povo não seria, pois, um dado pré-político ou extrajurídico, mas uma construção social em favor de um consenso fundamental que permitiria a convivência de distintos pro jetos de vida boa. Por conseguinte, a visão de Habermas sobre uma Constituição não o vincula necessariamente ao Estado, e sim a processos que garantam a potência desse projeto. Sob essa ótica até mesmo um tratado internacional poderia perder seu caráter contraprestacional de um contrato 32 e se tornar a base de um novo formato de Constituição, desde que garantisse procedimentos relativos à legitimidade democrática nos termos da teoria discursiva. De todo modo, 31 O atual debate acerca da adoção de uma Constituição para a Europa é diretamente afeto ao problema do déficit de legitimidade da organização jurídico-política da União Européia. Por isso mesmo, iniciaremos a nossa abordagem da questão pelo aspecto da possibilidade de uma Constituição sem Estado (Carvalho Netto, A Constituição da Europa, p. 283). 32 Por constituir uma comunidade política, a Europa não pode sedimentar-se na consciência dos seus cidadãos apenas como uma comunidade apoiada no Euro, pois o acordo intergovernamental de Maastricht não possui a força simbólica de um ato de fundação política (Habermas, Era das tran sições , p. 125). 233
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para ele a questão fundamental não se daria em torno da instalação de uma Constituição e, sim, em torno desses procedimentos que permitissem o transporte das conquistas do Estado nacional para essa constelação pós-nacional. 33 Dessarte, o papel que caberia nesse contexto para uma Constituição (Européia ou Mundial) seria o de indução desses procedimentos democráticos que viabilizassem a ação integrativa do discurso como meio hábil para a atenuação de efeitos perversos trazidos pela globalização. Ademais, ela poderia ser a base para o reconhecimento de uma nova identidade política e para uma compreensão original de povo e de cidadania. Desse modo, a noção de povo poderia perder seu cará ter de ethos compartilhado como elemento histórico/cultural para subsumir-se em um processo circular de autocompreensão estabelecida mediante uma comunicação entre os cidadãos de diferentes nacionalidades. E, essa comunicação, ao longo do tempo, não encontraria um óbice verdadeiro nem mesmo nas diferenças lingüísticas, haja vista que, especialmente na Europa, mas de um modo geral em todo mundo, a língua inglesa tem assumido o papel de um segundo idioma, especialmente no aspecto profissional. 34 33 Além disso, a questão acerca da Constituição não fornece mais a chave para os problemas a serem solucionados. Noutras palavras: o desafio não consiste tanto em tentar encontrar algo novo, mas em transportar as grandes conquistas do Estado nacional europeu para outro formato que ultra passa as fronteiras nacionais (Habermas, Era das transições , p. 124). 34 No interior da União Européia existem atualmente treze idiomas diferentes, oficialmente reconhecidos. Esse pluralismo de linguagens parece constituir, à primeira vista, obstáculo intransponível para a criação de uma comunidade política com as dimensões da Europa. No entanto, o poliglotismo oficial da política da União Européia é a expressão inalienável de um reconhecimento recíproco da integridade e do igual valor das diferentes culturas nacionais. Ora, sob o manto dessa garantia, é sempre que os respectivos partidos não dispuserem de outro idioma comum. Pode-se acrescentar que certos países menores, tais como a Holanda, a Dinamarca, a Suécia e a Noruega, constituem bons exemplos para um sistema escolar que esta234
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É claro que nosso autor escreve no contexto de um “pro jeto avançado” que é a unificação da Europa. No entanto, nada impede que suas conclusões possam ser levadas para o plano global, no qual certamente tal integração poderia ocorrer de modo mais ágil em países mais desenvolvidos do que em países do terceiro mundo como, por exemplo, o Brasil, no qual dezesseis milhões de pessoas ainda são analfabetas. Mas essa deficiência não precisa se reproduzir permanentemente em todas as futuras gerações... É preciso lembrar que o conceito comunitarista de povo se desdobra em um contexto de nacionalismo que vincula estranhos dentro de um mesmo vínculo. Essa iden tidade se dá através da simbologia de um passado comum (bandeira, brasão, hino nacional e datas comemorativas), normalmente evocado por monumentos à memória de passagens notáveis da história, em especial de atos de bravura em conflitos armados. Significa dizer que, se de um lado o nacionalismo promoveu o nascimento de uma identidade cívica, por outro, implicou o exacerbamento da xenofobia, 35 materializada por horrendas guerras e massacres de etnias minoritárias, como se exemplifica por aqui com a guerra do Paraguai 36 e com o extermínio dos indígenas. beleceu o inglês como segundo idioma principal para toda a população (Habermas, Era das transições , p. 142, nosso destaque). 35 A auto-estilização positiva da própria nação transformava-se agora no eficiente mecanismo de defesa contra tudo que fosse estrangeiro, mecanismo de desapreço de outras nações e de exclusão. Na Europa, o nacionalismo vinculou-se de forma muito conseqüente ao antisemitismo (Habermas, A inclusão do outro, p. 127). 36 Embora traumática, a guerra foi o ápice da “obra de unificação” do Brasil, ao conjugar energias de todo o país para vencê-la. No início do conflito, voluntários se apresentaram em todas as regiões do país; o imperador teve sua imagem fortalecida e o hino nacional e a bandeira foram incorporados ao cotidiano dos grandes centros urbanos, por meio de festejos cívicos, nas comemorações de vitórias ou nas cerimônias da partida das tropas. Enfim, tornou-se fator de fortalecimento da identidade nacional brasileira a exis235
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A pressuposição de uma identidade coletiva indisponível acaba forçando a políticas repressivas, seja de assimilação coercitiva de elementos estranhos, seja de preservação da pureza do povo, mediante apartheid ou limpeza étnica, pois “um Estado democrático perde(ria) sua própria substância por um reconhecimento conseqüente da igualdade geral entre os seres humanos no âmbito da vida pública e do direito geral”. Além das medidas preventivas para o controle da admissão de estrangeiros, C. Schmitt fala ainda na “submissão e evacuação da população heterogênea”, assim como em sua segregação geográfica, ou seja, na instalação de protetorados, colônias, resevas, homelands , etc. (Habermas, A inclusão do outro, pp. 161-162). Dessa maneira, o conceito de povo modelado em uma cidadania participativa não pode se legitimar em cima de um tratamento discriminatório contra o estrangeiro, que é visto sempre com desconfiança e sob suspeita. 37 A cons trução de uma cidadania desacoplada do conceito de “nacional” permanece em aberto e certamente levará um tempo considerável para sua conclusão. 38 Mas, apesar da dificuldade, tal pretensão não é mera utopia, pois já exis-
tência do inimigo que, segundo o discurso da época era apenas Solano Lopez, pois também o povo paraguaio era vítima deste (Doratioto, Maldita guerra, p. 461). 37 No Brasil o capital estrangeiro é visto com enorme desconfiança, ligando-o sempre a uma expectativa de exploração do trabalhador, de destruição do concorrente nacional e pela violação de nossa soberania econômica. Contraditoriamente, o governo fala em atração desse mesmo capital como complemento de nossa poupança externa, sem o que a miséria e a exclusão social seriam ainda maiores. 38 O que une uma nação constituída de cidadãos – diferentemente da nação constituída por um mesmo povo – não é um substrato preexistente, mas sim um contexto intersubjetivamente partilhado de entendimentos possíveis (Habermas , A inclusão do outro, p. 181). 236
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tem exemplos notáveis nesse sentido. 39 Assim, tem-se o exemplo de uma cidadania da comunidade européia ou de países forjados em grande parte por fluxos migratórios, como o Brasil e os Estados Unidos, podendo os mesmos contribuir para a construção desse modelo (de superação de uma forma de pensar etnocêntrica), tanto de forma posi tiva, como para os migrantes brancos, quanto de forma negativa, para os negros e os asiáticos. Por aqui, a Carta atual registra avanços notáveis no tocante ao tratamento dos estrangeiros que, ressalvados alguns direitos políticos, possuem um Bill of Rights quase idêntico ao dos nacionais. Nesse contexto, já se identifica o aparecimento de uma nova simbologia, calcada também de forma distinta, ou seja, de maneira a “construir”, por meio de uma comunicação não-lingüística, uma consciência em torno da igualdade que se baseia na perspectiva de um pertencimento à humanidade (e não a um Estado nacional). Como exemplos, o monumento aos mortos na guerra do Vietnã que narra um episódio essencial na história recente da América e o monumento ao Holocausto que será construído no centro da Alemanha.40 39 Na República Federal da Alemanha, como na maioria dos sistemas jurídicos do Ocidente, a situação jurídica dos estranhos e estrangeiros apátridas foi equiparada ao status de cidadãos. E, uma vez que a arquitetônica da Lei Fundamental é determinada pela idéia dos direitos humanos, todos os habitantes gozam da proteção da Constituição. Os estrangeiros têm o mesmo status de deveres e direitos que os cidadãos nativos (Habermas, Direito e Democracia, vol. II, p. 298). 40 Aqui não se trata em primeiro plano de culpa ou de desculpa dos antepas sados, mas sim de uma autocertificação crítica dos descendentes. O inte resse público dos que nasceram mais tarde, que não podem saber como eles teriam se comportado então, dirige-se a um outro fim que não o fervor de contemporâneos julgando moralmente, que se encontravam na mesma relação de interação e pedem explicações uns aos outros. Descobertas dolorosas acerca do comportamento dos próprios pais e avós, que na verdade só poderiam desencadear luto, permanecem um assunto privado entre os imediatamente envolvidos. Como cidadãos, no entanto, os descendentes possuem um interesse público com relação a si mesmos no capítu lo mais obscuro da sua história nacional. Nisso eles não apontam para os 237
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Essa consciência de fazer parte de algo maior como a humanidade não precisa tornar o homem um ser essencialmente universal. Ao contrário, ele pode sê-lo sem perder seus laços com a cultura do berço de seu nascimento. Nesse ponto, Habermas constata que o avanço que a globalização produz sobre a cultura, a língua e as tradições locais não implica necessariamente a “derrota” das últimas, mas o aparecimento de uma nova cultura.41 Uma “cultura” que se abre ao “pior e ao melhor dos dois mundos”, mas que não afasta o arbítrio de todos nós. Assim, de um modo metafórico, Beethoven, Mozart, Sinatra, Coppola, Felini não têm nacionalidade própria, pois fazem parte da humanidade. De outro lado, essa constatação não nos impede de preferirmos, como brasileiros, a cachaça ou uma boa feijoada a pratos típicos da Alemanha, como a salsicha ou o joelho de porco. 42 Essa relação entre dois mundos (o local e o global) cer tamente é digerida com mais facilidade pelas novas gerações do que pelos mais velhos, permitindo-lhes uma evolução mais rápida no sentido da integração preconizada por Habermas. Agarrar-se à questões como a pureza de uma língua, como fazem alguns filólogos, especialmente os franoutros. Querem esclarecer a matriz cultural de uma herança incriminada para conhecer pelo que eles respondem coletivamente e o que eventual mente da tradição, que então formara um funesto pano de fundo para a motivação, ainda atua e necessita uma revisão (Habermas, A constelação pós-nacional, pp. 42-43). 41 Cf. Habermas, A constelação pós-nacional, p. 96. 42 O impulso para a abertura parte dos novos mercados, meios de comunicação, vias de tráfego e enredamentos culturais, e a abertura significa, mes mo para os indivíduos atingidos, a experiência ambígua do aumento de contingência: a desintegração de dependências que forneciam a continuidade e eram, retrospectivamente, autoritárias, bem como a libertação das relações ao mesmo tempo orientadoras e protetoras, por um lado, como também, por outro, perniciosas e paralisantes. Em suma, o desligamento de um mundo da vida fortemente integrador libera os indivíduos para a ambivalência das possibilidades de opção cada vez maiores. Ele abriu os olhos deles e ao mesmo tempo aumentou o risco de se cometer erros. Mas esses são ao menos os erros cometidos por nós mesmos a partir dos quais pode-se aprender algo (Habermas, A constelação pós-nacional, p. 106). 238
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ceses, é um contrasenso, pois qualquer cultura humana está sempre em constante mutação. O que está em jogo é algo muito maior. Todos estão diante da transição/desintegração de um mundo da vida tradicional para algo inusitado, uma “aldeia global”, que se traz no seu bojo mazelas, traz também uma ampliação de horizontes inaudita na his tória do homem. Assim, é possível se ver em todo o mundo, por exemplo, concertos de rock envolvidos com questões humanitárias, tais como a libertação da prisão política de Nelson Mandela ou sobre o direito dos países africanos de quebrarem as patentes das grandes corporações internacionais da indústria da farmácia em prol de um tratamento mais digno para os que padecem com a Aids. Na Europa, tem sido comum assistir-se a manifestações de movimentos espontâneos da sociedade civil em favor de um tratamento mais generoso para com o terceiro mundo no que pertine à dívida externa dos mesmos. Um exemplo notável dessa nova cultura foi a constatação de manifestações em todo o globo pela proscrição de guerras ofensivas, marcadamente a segunda guerra do Golfo, demonstrando haver uma consciência pacifista que extrapola as fronteiras nacionais. Por conseguinte, quem poderá dizer que o legado que se traduz na vida de Gandhi e Martin Luther King se limitam respectivamente aos indianos e aos norte-americanos... E, é com base nessa nova cultura, nessa consciência/identidade global, que poderá se fundar uma esfera pública internacional, que se transformaria em uma arena de debates sobre questões de interesse global. Tais discussões e esse envolvimento político, que em um primeiro momento se desencadearia pelas organizações não governamentais, 43 43 Formas de legitimação supostamente fracas surgem, então, sob uma outra luz. Dessa maneira, por exemplo, uma participação institucionalizada de Organizações Não Governamentais nos conselhos do sistema de negocia239
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se desdobraria como base para uma futura formação de par tidos políticos nacionais que adotassem um ideário com elementos universalistas. Somente depois disso os governos nacionais estariam sensíveis a uma colaboração dentro de uma constelação pós-nacional que postulasse uma integração normativa/discursiva de modo a “domesticar” os efeitos indesejáveis da globalização. 44 Em outras palavras, só é possível esperar dos governos dos Estados nacionais uma postura cooperativa – o que certamente não significa inexistência de dissenso, e sim empenho na busca pelo melhor argumento – caso não se consolide primeiro uma “opinião pública cosmopolita” no interior desses mesmos Estados nacionais. Logo, sem a consolidação de uma esfera pública cosmopolita no âmbito nacional que possa fiscalizar, cobrar, influenciar, em síntese, participar dos procedimentos normativos, essa integração de blocos continentais ou até mesmo mundiais jamais poderá ganhar contornos de legitimidade.45 ção internacional elevaria a legitimação do procedimento, na mesma medida em que é possível nesse sentido tornar transparente para a esfera pública nacional os processos decisórios transnacionais do nível médio, reconectando-o aos processos decisórios desse nível inferior. Do ponto de vista das premissas da teoria do discurso, também é interessante a pro posta de equipar a organização mundial com o direito de exigir a qualquer hora, nas questões importantes, referendos dos seus Estados-membros (Habermas , A constelação pós-nacional, p. 140). 44 A mudança de perspectiva das “relações internacionais”, no sentido de uma política interna mundial, não deve, não obstante, ser esperada da parte dos governos sem que as populações mesmas aprovem tal mudança de consciência. Porque as elites governantes devem se empenhar pela concordância e pela reeleição na sua arena nacional, elas não devem ser castigadas pelo fato de não operarem mais dentro da margem de independência da nação, mas antes estar conectada aos procedimentos cooperativos de uma comunidade cosmopolita. As inovações não ocorrem se as elites políticas não encontrarem ressonância também nas orientações valorativas anteriormente reformadas das suas populações (Habermas , A conste lação pós-nacional, p. 141). 45 Por isso, do ponto de vista normativo, não poderá haver um Estado fede rativo europeu merecedor do nome de uma Europa democrática, se não se 240
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É preciso frisar que essa cidadania cosmopolita se funda discursivamente em torno da pretensão de legitimidade dessa constelação pós-nacional, significando dizer que ela é sustentada pela pretensão de universalização dos direitos humanos. Contudo, em torno desta pretensão, Habermas anota uma série de críticas a seu projeto. As bases de tal dificuldade giram em torno da noção de que tal pretensão seria unilateral do Ocidente, ou seja, de participantes/jogadores ( global players )46 específicos na quadra mundial, escondendo atrás de si estratégias vinculadas ao imperialismo das grandes potências, 47 na qual afigurar, no horizonte de uma cultura política, uma opinião pública integrada em âmbito europeu, uma sociedade civil com associações representativas de interesses, organizações não-estatais, movimentos de cidadania etc., um sistema político-partidário concebido em face das arenas euro péias – em suma: um contexto comunicacional que avance para além das fronteiras de opiniões públicas de inserção meramente nacional, até o momento (Habermas , A inclusão do outro, p. 183). 46 No momento, a União Européia está sendo desafiada a desenvolver um equilíbrio melhor entre desregulamentação e re-regulamentação, que não tinha sido conseguido pelas regras nacionais. A União pode ser vista como um laboratório, no qual os europeus estão se empenhando para implementar os valores da justiça e da solidariedade no contexto de uma economia mundial crescente [...]. Naturalmente essa perspectiva atrai sobre si a sus peita de ser a interpretação de determinado partido, ou seja, a interpretação social-democrata do projeto europeu (Habermas, Era das transições , p. 133). 47 O governo Bush parece prosseguir praticamente intocado no curso autocentrado de uma política recrudescida de superpotência. Continua a rejeitar a instalação de um tribunal criminal internacional, recorrendo a seus próprios tribunais militares, que ferem o direito internacional. Nega-se a assinar a convenção contra armas biológicas. Rompeu de forma unilateral o acordo sobre mísseis antibalísticos e acredita absurdamente que o 11 de setembro endossou o seu plano de construir um abrigo antimíssil. O mundo tornou-se complexo demais para esse unilateralismo mal-disfarçado. Mesmo se a Europa não se erguer para exercer o papel civilizatório que hoje lhe cabe, a potência mundial emergente da China e a decadente da Rússia não vão aderir incondicionalmente ao modelo da pax americana (Habermas, Jürgen. O Ocidente dividido, p. 11). 241
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se inscreveria a expressão de autoria de Carl Schmitt: “Quem apela para a humanidade mente!” 48 No tocante ao problema do uso estratégico dos “direi tos humanos”, Habermas identifica duas posturas passíveis de serem distinguidas em torno de intervenções mili tares “humanitárias” a partir da segunda guerra do Golfo. Enquanto os Estados Unidos da América exerci tam a imposição global dos direitos humanos e a entendem como a missão nacional de uma potência mundial que persegue este objetivo sob premissas de uma política de poder, a maioria dos governos da União Européia entende uma política dos direitos humanos como um projeto de juridificação de relações internacionais, capaz de modificar, a partir do presen te momento, os parâmetros da política do poder (Habermas, Era das transições, pp. 48-49). Dentro da visão da União Européia, Walzer, que sus tenta haver circunstâncias especiais que justificariam tais intervenções como “guerras justas”, nas quais se destacam: a) o insurgimento dos próprios cidadãos contra uma repressão política por meios brutais; b) a garantia da integridade territorial face à uma invasão injustificada; c) casos de massacres, genocídios de minorias, nas quais os cidadãos seriam incapazes de expressar sua opção particular de vida digna. Por esse critério as intervenções no Kosovo, na Bósnia, em Ruanda e no Iraque cairiam em uma vala 48 Eles não teriam servido como o escudo de uma falsa universalidade – de uma humanidade imaginária, por detrás da qual um Ocidente imperialista podia esconder a sua particularidade e o seu interesse próprio? Entre nós, com base em Heidegger e em Carl Schmitt, essa hermenêutica da sus peita é praticada nas versões da crítica da razão e da crítica do poder (Habermas, A Constelação pós-nacional, p. 152). 242
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comum. Contudo, a autorização discursiva junto à ONU estabelece um primeiro diferencial entre as mesmas. Ademais, o fato de um Estado nacional não ser legítimo não autorizaria por si só uma intervenção, pois então seria de se questionar por que tais potências não o fizeram na Coréia do Norte e na China. Logo, o uso estratégico dos direitos humanos só pode ser depurado pela opinião pública mundial, sem a demonização dos países anglo-saxões e uma beatificação dos países continentais da Europa face à sua postura pacifista no caso do Iraque. É preciso lembrar que no passado recente a polí tica americana permitiu a democratização das nações alemã, japonesa e italiana. Mas, não se trata aqui de qualquer dívida de gratidão. O indispensável é que a consciência cosmopolita se consolide em torno da proscrição de guerras ofensivas e, por exemplo, depure discursivamente interesses estratégicos em torno de riquezas ou de matérias-primas, como o petróleo por ocasião da invasão do Iraque como parte da guerra anti-terror do Presidente Bush. 49 Obviamente isso não implica “esperar sentado” pela consolidação dessa almejada constelação pós-nacional, deixando livres os algozes para torturar e matar suas vítimas,50 situações em que os precários procedimentos dos 49 Mesmo que o termo “guerra” seja menos enganoso e moralmente controvertido do que “cruzada”, considero a decisão de Bush de declarar uma “guerra contra o terrorismo” um erro sério, tanto normativa como pragmaticamente. Do ponto de vista normativo, ele está elevando os criminosos ao status de inimigos de guerra; e, pragmaticamente, não podemos conduzir uma guerra contra uma “rede”, caso queiramos dar ao termo “guerra” qualquer significado definido (Borradori, Filosofia de terror. Diálogos com Habermas e Derrida, p. 47). 50 E, na ausência de outra opção, os vizinhos democráticos devem ter o direito de prestar um socorro legitimado pelo direito internacional. Nesse momento, porém, a precariedade do estado de cidadania mundial requer grande sensibilidade. Ora, as instituições e procedimentos já existentes são os únicos controles disponíveis para os juízos falíveis de um partido que pretende agir em nome da totalidade (Habermas, Era das transições , p. 51). 243
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atuais (e limitados) organismos internacionais devem ser respeitados. 51 No tocante ao óbice de que os direitos humanos teriam base exclusivamente no pensamento ocidental, Habermas encontra sólidos argumentos para superá-lo: resta claro que o artigo 28 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o surgimento da ONU referem-se a uma preocupação global/universal em torno da validade dos ordenamentos jurídicos nacionais e cosmopolitas. Para ele, entretanto, a questão estaria mal colocada: o que estaria em pauta seria a forma adequada de interpretação dos direitos humanos. Nessa dinâmica, o fundamental seria a devida consideração com os pontos de vista de outras culturas, em especial do Oriente próximo e longínquo. Alguns desses povos questionam as bases individualistas contidas nos direitos humanos, entendendo que suas culturas valorizariam muito mais os valores comunitários. Descartando inicialmente o aspecto estratégico do argumento, 52 Habermas procura refutá-lo afirmando que no fundo do questionamento está o velho debate entre a visão do liberalismo e do comunitarismo, já efetuado neste trabalho durante a exposição da teoria discursiva. 53 A conside51 É verdade que as Nações Unidas não dispõem nem de uma Corte de Justiça internacional (que, de resto, acabou de ser encaminhada em Roma) nem de tropas próprias. Mas podem impor sanções e conferir mandamentos para a execução de intervenções humanitárias (Habermas, Era das transições , p. 134). 52 Essas reservas com relação ao individualismo europeu são freqüentemente manifestadas não com intenção normativa, mas antes estratégica. A intenção estratégica pode ser reconhecida desde que os argumentos en-contrem se ligados à legitimação política do autoritarismo mais ou menos “brando” das ditaduras que promovem o desenvolvimento. Isso vale particularmente para a polêmica em torno da precedência dos direitos humanos. Os gover nos de Cingapura, Malásia, Taiwan e China costumam justificar as suas vio lações dos direitos fundamentais e direitos civis políticos – denunciados pelos países ocidentais – com uma”‘precedência” de direitos fundamentais sociais e culturais (Habermas, A constelação pós-nacional, p. 157). 53 Independentemente do pano de fundo cultural, todos os participantes justamente sabem intuitivamente muito bem que um consenso baseado na 244
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ração dos direitos humanos no centro da co-originariedade entre, de um lado, a moral e o direito, e de outro, a autonomia pública e privada superam tal oposição. 54 Nessa empreitada de buscar cooperativamente uma interpretação discursiva dos direitos humanos, não são poucos os obstáculos, pois a intolerância religiosa tem sido a causa de conflitos desde a antigüidade. E, hoje, o fundamentalismo religioso tem provocado conflitos na Irlanda do Norte, na Índia/Paquistão, na Palestina e o combustível para o terrorismo global profissional inaugurado com o ataque de 11 de setembro às torres gêmeas. Diante desse quadro, somente o tempo será capaz de curar todas essas feridas. Contudo, Habermas não propõe com isso a inércia. É preciso que os países ocidentais do primeiro mundo não encarem seus parceiros globais como se estivessem em um estágio de desenvolvimento já superado convicção não pode se concretizar enquanto não existirem relações simétricas entre os participantes da comunicação – relações de reconhecimento mútuo, de transposição recíproca das perspectivas, de disposição espe rada de ambos para observar a própria tradição também com o olhar de um estrangeiro, de aprender um com o outro etc. Partindo desse princípio, pode-se criticar não apenas leituras parciais, interpretações tendenciosas e aplicações estreitas dos direitos humanos, mas também aquelas instru mentalizações inescrupulosas dos direitos humanos voltadas para um encobrimento universalizante de interesses particulares que induzem à falsa suposição de que o sentido dos direitos humanos se esgota no seu abuso (Habermas, A constelação pós-nacional, pp. 162-163). 54 Por isso, deve-se livrar a compreensão dos direitos humanos do fardo metafísico da suposição de um indivíduo existente antes de qualquer socialização e que vem ao mundo com direitos naturais. Juntamente com essa tese “ocidental” é descartada também a necessidade de uma antíte se “oriental” segundo a qual as reivindicações da comunidade merecem precedência diante das reivindicações de direito individuais. A alternativa “individualistas” versus “coletivistas” torna-se vazia quando se incor pora aos conceitos fundamentais do direito a unidade dos processos opostos de individuação e de socialização. [...] O individualismo compreendido de modo correto permanece incompleto sem essa dose de “comunitarismo” (Habermas, A constelação pós-nacional, p. 159). 245
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por eles, tanto no tocante à superação das guerras religiosas quanto na questão do nível de desenvolvimento econômico. Nesse sentido, a idéia de que a secularização das relações estatais seja o único caminho a ser perseguido precisa ser afastada. Habermas vê com interesse, mesmo que com alguma reserva, a proposta do intelectual hindu Ashis Nandy que espera “[...] a tolerância e a fecundação recíprocas das culturas religiosas islâmica e hinduísta antes via um cruzamento mútuo dos modos de percepção religioso de ambas, do que via neutralidade cosmopolita do Estado”.55 Em suma, obstáculos como o fundamentalismo religioso, seja do judaísmo, islamismo ou do cristianismo só poderão ser resolvidos com base nos pressupostos da teoria discursiva.
55 Cf. Habermas, A constelação pós-nacional, p. 161. 246
Conclusão
O presente trabalho pretende lançar algumas luzes sobre a crise paradigmática por que passa a sociedade e o modo de produção jurídica no Brasil. De fato, o habitus positivista/formalista dominante já de há muito perdeu seu viço no âmbito científico. Sua reprodução somente se explica em razão dos elementos culturais de nosso mundo da vida transcendental e pela falta de qualidade de nossos centros acadêmicos. A denúncia desse quadro de paralisia mental foi muito bem expressada por Lenio Streck, um dos mais insígnes representantes do ”novo constitucionalismo nacional”. Essa corrente tem recebido inúmeras designações, mas preferimos a denominação de “constitucionalismo da efetividade”, que, entre outros elementos, postula um ativismo judicial favorável à inclusão social dos milhões de brasileiros deserdados por um modelo capitalista periférico. Para tanto, utiliza-se do instrumental trazido pela viragem lingüística de Gadamer e Heidegger, supondo ainda a possibilidade de que a ponderação racional de princípios seja o caminho mais adequado para esse papel político do Judiciário, cerne do Estado Democrático de Direito. Sendo assim, Streck demonstra sua preocupação com a “mania” dos brasileiros de recepcionar de forma acrítica teorias alienígenas e que não se encaixariam às peculiaridades nacionais, especialmente aquelas que se posicionassem em prol do neoliberalismo e da desconstrução do Estado Social – ou pelo menos do arremedo de Estado Social que por aqui se configurou. Está, pois, preocupado que os juristas nacionais discutam uma teoria da Consti247
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tuição Dirigente adequada a países emergentes como o Brasil. Dentre as teorias que reputa incompatíveis com nosso “calor” encontra-se o procedimentalismo de Jürgen Habermas. Sua opinião sintetiza as críticas de parcela significativa do constitucionalismo nacional de vanguarda e podem ser resumidas nos seguintes aspectos: a) absoluta insensibilidade social ante a suposição errônea de que o Estado Social seja uma etapa superada nos países de terceiro mundo, da mesma forma que possa ser na Alemanha; b) não-vinculação ao paradigma da linguagem contemporâneo; c) uma visão míope e formalista da divisão dos poderes, de modo a impedir que o Judiciário assumisse seu papel de catalizador das demandas sociais e de se transformar em um agente incisivo para tais mudanças; d) a desconsideração de que os elementos vitais do Direito e, em especial, da Constituição, são os valores substantivos do mesmo, sem o que seu exercício perde o sentido, tornando-se, no máximo, um insípido exame, tal como propalado pelas teorias sistêmicas; e) um divórcio irremediável com a realidade, especialmente com o quadro de miséria e descaso social típico do terceiro mundo, fazendo com que a mesma seja impraticável por essa bandas face à sua gri tante utopia/contrafaticidade. Todavia, a reconstrução da obra do nosso autor con testa todos os óbices acima levantados. Representante maior da segunda geração de cientistas da Escola de Frankfurt, Habermas persegue, ao longo de toda sua traje tória, um projeto de esclarecimento iluminista de “libertação” do homem de todas as formas de violência, sejam elas morais, físicas, sociais, políticas ou econômicas. Ao contrário do que supõe Streck, Habermas tem absoluta noção de que as promessas do Estado Social se deram de maneira muito distinta no globo. Por conseguinte, nem de longe sua obra pode ser adjetivada de insensível. Quando o autor 248
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sustenta o advento do Estado Democrático de Direito não sugere serem abolidas ou esquecidas as políticas de intervenção estatal em prol da inclusão de toda e qualquer minoria, seja ela econômica, étnica, religiosa, de gênero, de opção sexual, de origem, etc. Contudo, sua adesão a tais políticas não passa por uma visão “paternalista”, o que implica, na verdade, na desconsideração por parte da elite, seja ela econômica ou cultural, dos principais interessados em tais políticas: as próprias minorias. Ao trabalhar com a razão comunicativa, seu compromisso com a inclusão o leva, até mesmo, a admitir clara influência religiosa em sua obra, o que pode ser exemplificado pelo mandamento cristão de “fazer ao próximo o que gostaríamos que nos fizessem”, como aspecto de seu universalismo procedimental (reciprocidade da moralidade pós-convencional). De outra banda, a alegação de que um dos mais emblemáticos e festejados autores dos séculos XX e XXI não se insira no debate da intersubjetividade da razão comunicativa não encontra apoio em qualquer parte de sua obra. Ao contrário, o que se nota é um esforço constante pelo aprimoramento do projeto iluminista de emancipação, em bases de uma hermenêutica macroscópica da evolução da sociedade entendida como mecanismo de aprendizagem e inteiramente vazada na filosofia da linguagem. Nesse sentido, sua obra deve ser compreendida como um notável esforço pela busca de alternativas filosóficas às posturas irracionalistas de Heidegger, Derrida, Foucault ou Rorty, dentre outros, que possam fundar a noção de racionalidade nos processos sociais de formação democrática da vontade popular. Esse esforço o leva a se distanciar também do racionalismo substantivista próprio do liberalismo e do comunitarismo contemporâneos ao condenar a técnica hermenêutica de ponderação de valores. 249
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Esse processo se caracterizou por uma aguda autocrí tica e por um esforço constante de refinamento de sua teoria, o que se explica por um elevado senso de exigência científico que marca sua obra. E, é essa exigência que o separa dos comunitaristas ao denunciar a admissão da Constituição como uma tábua de valores. Para ele, tal concepção autorizaria o Judiciário (especialmente as Cortes Constitucionais) a “legislar” ou, em outras palavras, a se transformar em “Poder Constituinte anômalo”, transformando a Jurisdição em uma nova forma de autoritarismo extremamente pernicioso. Ao vislumbrar uma divisão discursiva dos poderes, nosso autor se afasta tanto das visões clássicas de Montesquieu e Locke quanto do normativismo kelseniano, que procura indiferenciar a forma de produção normativa. Assim, impõe limites à Jurisdição, cônscio de que qualquer poder, que se julga absoluto, tiraniza absolutamente. E a “liberdade” que os magistrados ganham pela ponderação de valores se dá pela subtração da liberdade/autonomia de cada um de nós. Logo, Habermas se afasta tanto do modelo liberal quanto do comunitário, pois para ele o centro do Estado moderno não está nem na prevalência da autonomia privada, na qual os direitos humanos (naturais) limitariam/programariam a ação estatal, nem na prevalência da autonomia pública e em seus procedimentos vazados nas virtudes cívicas de seus cidadãos, mesmo que sejam magistrados e, sim, na perspectiva da co-originariedade de ambos. O ativismo judicial se insere no Brasil dentro de um mundo da vida em que os juízes, de uma forma geral, não se sentem servidores públicos, e sim, entes transcenden talmente superiores. Acostumados à cortesia e às posturas formalistas, não é incomum a figura do magistrado distan te das pessoas e do “mundo” que espera apenas a bajulação e desconsidera as necessidades das partes. Dizer a 250
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eles que podem tudo, ou melhor, que devem fazer tudo, tal como fazem os teóricos do constitucionalismo da efetividade, é música para seus ouvidos! Não desconhecemos que as intenções dessa corrente teórica são boas e favoráveis à inclusão social. Mas é preciso lembrar o ditado: o inferno está cheio de boas intenções. O ativismo judicial desmedido por noções vazias como “razoabilidade” e “proporcionalidade” pode ser um bálsamo, como pretendem seus adep tos, mas também pode ser um veneno para nossa democracia ainda incipiente. Sem pretensão de estabelecer “verdades”, no mínimo, acreditamos firmemente que a denúncia de Habermas serve de base para reflexão do modo de operação do direito e do constitucionalismo nacionais. De outro lado, o procedimentalismo não impede a inclusão social, pois permite/exige da atividade jurisdicional o compromisso com a busca da resposta correta, permi tindo correções e uma análise do próprio mérito de decisões judiciais de uma forma original, calcada nos parâme tros da situação ideal de fala, no agir comunicativo, na moralidade pós-convencional, no tratamento adequado aos argumentos ético-políticos e pragmáticos, na necessária consideração deontológica dos direitos humanos e no procedimento em si. Todos esses elementos somados tendem a conduzir a jurisdição de forma sempre aproximada do que Dworkin chama de “direito como integridade” ou, para o que Habermas denomina de integração do mundo da vida pela solidariedade. Quanto à contrafaticidade da teoria e de sua inadequação ao Brasil, é preciso lembrar que nenhuma teoria está livre de tal crítica. Ademais, a filosofia e o saber hermenêu tico-histórico das ciências do espírito não se adequam à expectativa de apresentar respostas para questões técnicas/específicas. Logo, da leitura de Habermas não se pode esperar encontrar de forma direta crítica ou comentários dogmáticos comentando esse ou aquele ordenamento jurídi251
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co. A filosofia, na qual se insere a obra habermasiana, procura dar uma contribuição para a autocompreensão das sociedades modernas e para a proteção da liberdade de pensamento e de comunicação, de modo a buscar uma clarificação de questões morais e ético-políticas que permeiam, por exemplo, a ciência, o mercado, o direito e a burocracia. É óbvio que todo modelo teórico contém abstrações e reduções que não o imunizam de críticas. Contudo, a recons trução da obra do nosso autor permitiu ao leitor testemunhar seu notável esforço para a conciliação da teoria com a prática, do abstrato com o concreto, do geral com o particular. A colocação de que “um país de analfabetos não teria condições de participar de um discurso em simétricas condições de paridade com os demais participantes” nada mais é do que um reducionismo acrítico da teoria discursiva. Por conseguinte, o exame das peculiaridades da realidade e da história brasileiras não são óbices ás pretensões universalistas de Habermas, porque sua visão não suporta a concepção do triunfo do universal/múltiplo sobre o individual/uno (liberalismo), nem tampouco do inverso (comuni tarismo). Seu princípio de universalização trabalha em cima da alteridade, compreendendo a identidade nas par ticularidades da diferença. Além disso, em mais de um momento Habermas traz o indicativo de que as condições “ideais” do discurso são pressupostos contrafactuais inerentes à comunicação. Portanto, não podem ser compreendidos como algo transcendental que necessite de materialização para o reconhecimento da utilidade de sua proposta. 1 Fosse assim, sua 1
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Essa objeção não diz respeito apenas a uma idealização que hipostasia estados finais como estados alcançáveis no mundo. Mesmo que os pontos de referência ideais não possam em princípio ser compreendidos como fins alcançáveis, ou o possam apenas aproximativamente, permanece “o paradoxo de que estaríamos comprometidos a aspirar à realização de um ideal cuja realização significaria o fim da história. O sentido crítico próprio da orientação pela verdade como uma idéia reguladora se torna nítido ape-
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teoria seria inaplicável, não só no Brasil, como sustentam os comunitaristas, mas em qualquer país do mundo, pois, mesmo na Alemanha ou nos Estados Unidos, existem hipossuficientes econômicos e minorias. Por tudo que se expôs acreditamos na enorme potencialidade crítica/cognitiva que o procedimentalismo de Habermas pode trazer para a “terra brasilis”. A compreensão de que o Estado (e, de certo, nenhum de seus poderes, inclusive o Judiciário) não é o cerne para o correto entendimento do Estado Democrático de Direito e que, ao contrário, esse está no encontro da autonomia pública e privada das pessoas, conduz à reflexão de que o Brasil necessita de prementes melhorias nas suas instituições, de modo a aprimorar a democracia representativa, por meio de um compromisso contínuo com o fim da marginalização social a que submetemos pelo menos metade de nossa população. Da mesma forma, a conclusão de que a integração do país com essa constelação pós-nacional que se avizinha são, dentre outros, alguns dos contributos do procedimentalismo de Habermas para o constitucionalismo brasileiro. Por certo nenhuma teoria encontra-se imune à críticas. O presente trabalho buscou apenas proporcionar ao leitor uma nova visão dessa teoria. Teoria que de certo apresenta uma proximidade com a visão do constitucionalismo da efe tividade nacional que seus próprios adeptos não percebem. Em primeiro lugar, porque quem afirma um postulado (de forma sincera e racional), tal como a crítica ao procedimentalismo (Streck), mesmo sem perceber, está “agindo comunicativamente”, pois se insere em um “discurso” científico pleiteando a formação de um consenso ou se abrindo democraticamente ao dissenso, tal como se apresenta neste trabalho. nas quando são idealizadas as características formais ou processuais da argumentação, não seus fins (Habermas, Verdade e justificação, p. 252). 253
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Depois, a “procura” do constitucionalismo da efetividade nacional e do procedimentalismo habermasiano é comum: a fundamentação da razão, de forma que a “busca por argumentações melhores do que outras” possa ser o esteio de uma sociedade que se quer democrática. Dessa forma, o esforço em torno da “resposta correta” não pode se sujeitar à crítica do movimento irracionalista – em nossa opinião, cínica – de reduzí-lo à uma mera praxis cultural, de utilidade restrita. Curiosamente, o ideal inclusivo e reformista de emancipação do homem, próprio de movimentos de uma esquerda renovada, aproxima o “crítico” do “criticado”. Contudo, a proximidade de Streck com o pensamento de Heidegger certamente o afasta de Habermas, bem como torna – no mínimo difícil – compreender o marco teórico do “crítico”. Primeiro, porque o irracionalismo heideggeriano se afasta de qualquer proposta de discurso ético, ou seja, se afasta de qualquer concepção racionalista na argumen tação. Depois, porque seu existencialismo, juntamente com o decisionismo schimitiano, foram suportes para o nacional-socialismo alemão.2 A escolha de um marco teórico, alienígena ou não, não deve ser algo ingênuo. Dessa forma, não é possível esquecer que Heidegger (1889-1976) chegou à condição de reitor da Universidade de Freiburg pelo fato de ter denunciado um colega professor que teria ligações “estreitas” com judeus em dezembro de 1933, bem como pelo fato de o rei tor que o antecedeu, o biólogo von Möllendorf, não ter colocado em disponibilidade, como ele o fez, professores considerados “não arianos”. Tampouco é possível esquecer sua passividade diante da grande queima de livros “judeus e marxistas”, seu silêncio diante do massacre de judeus na Noite dos Cristais (1938), da alteração dos estatutos da Universidade segundo o Führerprinzip. Mesmo depois da 2 254
Cf. Delacampagne, História da filosofia no século XX , pp. 145-146.
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guerra, Heidegger jamais praticou um gesto de autocrítica, preferindo, aliás, minimizar sua filiação ao Partido Nazista. Quanto à obra Ser e Tempo, a despeito de ser um livro inacabado, pretendeu estabelecer o fim da metafísica e da filosofia, tal como se conhecia até então. Desse modo, à noção da filosofia clássica de Ser como substância ou espírito, prefere dizer que “o Ser é o que é”, algo tautológico 3 para uns e, no mínimo, com conseqüências fatalistas para outros.4 Para Heidegger, o Ser se distingue do ente na correlação entre o mundo externo e o interior. Daí é possível inferir que o Dasein se entenda como a singularidade humana individual concreta, único ente capaz de questionar o “sen tido” do Ser. Tal questão recebe de Heidegger uma respos ta distinta de todo o esforço feito pela metafísica clássica. Construído no interior da linguagem, impossível desejar-se uma definição estrita do “Ser”, eis que qualquer uma não escaparia da própria linguagem. 5 Isso se explica pelo fato 3
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O que é, pois, o Ser? Apesar da importância da questão, uma decepção espera o leitor de boa vontade, pois toda a obra de Heidegger afirma que uma tal pergunta não poderia, por princípio, ter resposta. O Ser não é aquilo que os metafísicos chamam de substância, espírito ou matéria. Não se pode dizer nada sobre ele, pois ele é desprovido de atributos. Ou, mais exatamente, a única coisa que se pode dizer é uma tautologia: “O Ser é o que é” (“Was ist das Sein? Es ist Es selbst.”). Em outros termos, ele é irredutível a um conceito, inapreensível pelo logos (Delacampagne, História da filosofia no século XX, pp. 150-151). Cf. Habermas, Verdade e justificação, pp. 34-35. Nas palavras de Heidegger, a questão sobre o sentido do ser só é possível quando se dá uma compreensão do ser. O sentido se articula simbolica mente. Encontramos o Dasein na estrutura simbólica do mundo. O Dasein se comporta compreendendo. A compreensão do ser pertence ao modo de ser deste ente que denominamos Dasein. Quanto mais originária e adequadamente se conseguir explicar esse ente, maior a segurança do alcance na caminhada rumo à elaboração do problema ontológico fundamental. . Não se pode derivar o ser no sentido de uma definição a partir dos conceitos superiores nem explicá-lo através de conceitos inferiores. 255
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de que qualquer definição de atributo ao Ser limitaria indevidamente seu poder-ser. Desse modo, diante da proposição “a mesa é de madeira”, o ente em questão teria suas “possibilidades” castradas em face das infinitas possibilidades que encerra, dentre elas, o fato da mesa ser uma criação do homem, podendo significar família, trabalho, obra de arte etc. Para ele, esse “sentido” somente pode ser perquirido na temporalidade, visto que o Dasein possui a capacidade/tendência permanente de se questionar e de se projetar para fora de si. Esse questionamento permanente faz do Dasein um ser essencialmente hermenêutico. 6 Por outro lado, Heidegger estabelece que tal projeção se procede por meio do que ele denomina ek-stases temporais: o passado, o presente e o futuro. Como o “passado” se constitui na reflexão/lembrança, marcando o “Ser” com sentimentos, tais como a tristeza e a ansiedade; o “presente” é um instante
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Por outro lado, visualizar, compreender, escolher são atitudes constitutivas do questionamento e, ao mesmo tempo, modos de ser de um determi nado ente, daquele ente que nós mesmos sempre somos. Esse ente que cada um de nós somos e que, entre outras, possui em seu ser a possibilidade de questionar, é designado com o termo Dasein. O ser não pode ser concebido como ente, logo, o ser não é um ente (Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica, pp. 199-200, nosso destaque). Assim, a compreensão, para Heidegger, é o ser de um “poder ser”, que não é preciso reportar a um dado que ainda subsiste, e que tem aliás, por essência, não “poder” subsistir e ser com o Dasein e, portanto, existir no mesmo sentido que este. [...] É a situação hermenêutica que permite determinar o sentido do ser-aí. No seu saber-ser, o ser-aí (Dasein) está, pois, confiado à sua capacidade (possibilidade) de se encontrar nas suas possibilidades. A compreensão é, enfim, aduz Heidegger, o ser existencial do saber-ser inalienável do próprio Dasein , de tal modo que este ser (a compreensão) revela por si mesmo como está a respeito do seu ser consigo mesmo. Ou seja, no Dasein reside uma pré-compreensão. O Dasein é her menêutico. [...] Sentido é a perspectiva em função da qual se estrutura o projeto pela posição prévia, visão prévia e concepção prévia. É a partir dela que algo se torna compreensível (Streck, Jurisdição constitucional e hermenêutica, pp. 199, 201-202).
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inteiramente fluido e contínuo em direção ao “futuro”, Heidegger entende esse último como a ek-stase fundamental. É a partir da percepção/compreensão de que nossa existência é precária que se revela a angústia pela morte. E, somente por meio desta, é que o homem “pode-ser”, ou seja, pode realmente explorar suas reais potencialidades e viver uma vida digna (o Dasein como “ter-que-ser”). Produzir diante de si mesmo o mundo é para o homem pro jetar originalmente suas próprias possibilidades. Até então, sua visão se aproxima da figura metafórica do “pássaro no ombro” de Buda. Por seu intermédio, Buda nos instiga a perguntar diariamente se o dia de hoje seria o nosso último, de modo que possamos viver melhor. Contudo, na vida cotidiana, o Dasein se esquece/se protege dessa condição e age como se fosse imortal (exis tência inautêntica). Heidegger nos instiga a lutar contra esse esquecimento de si próprio por meio de uma tomada de decisão: assumir o destino espiritual de sua comunidade. Mas, em que consistiria tal decisão? A fórmula é obscura. Contudo, a nosso sentir, a fórmula tem notável proximidade, tanto com o conceito de “alienação” do espírito sub jetivo de Hegel em favor da comunidade (eticidade), quan to com a noção decisionista de comunidade orgânica (Gemeinschat) de Schmitt... Ademais, seu rompimento com o racionalismo da fenomenologia husserliana, de forma que o “pensamento” pudesse livremente denunciar os ídolos da razão moderna (a ciência, a técnica e a idéia de progresso), levam Heidegger ao bordão: “A ciência não pensa?” Contudo, de modo algum essa concepção pode ser desconectada do engajamento político do seu autor. Por conseguinte, o obje tivo de Heidegger, e que certamente Streck não percebe, pois utiliza o bordão em suas críticas ao habitus da hermenêutica positivista, era retirar qualquer dignidade intelec tual da ciência, de modo a despí-la de qualquer convicção 257
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ética.7 Nada melhor para abster-se de explicar as razões de sua participação pessoal no advento do holocausto... Logo, restaria a pergunta: como seria possível a cons trução de um discurso racional e argumentativamente ético, nitidamente favorável à uma noção ideal de democracia inclusiva e concretizadora de direitos sociais e econômicos, tal como se vê no constitucionalismo brasileiro da efe tividade, com um marco teórico que pretendeu-se irracionalista?8 Uma resposta possível é a recepção dada à linguagem heideggeriana, nos anos cinqüenta e sessenta do século passado, por parte da “esquerda” francesa, incluindo aqui o poeta René Char e os filósofos Paul Ricouer, Michel Foucault e Jacques Derrida, nos seus projetos específicos de “desconstrução” da metafísica. Tal recepção poderia ter chegado por aqui de forma a se “enxergar” Heidegger com outros olhos. Outra resposta seria o compartilhar da visão 7
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A essa tripla aversão pela ciência, pela técnica e pelo progresso, também se liga a desconfiança bem conhecida de Heidegger em relação à ética, sua convicção de que o ético não tem lugar em um “pensamento do Ser”. Observa-se de novo uma convergência superficial com a idéia wittgenstei niana de que “a ética é impossível”. Mas as intenções são, mais uma vez, bem diferentes. Enquanto Wittgenstein se limita a observar que não se pode traduzir na linguagem dos “fatos” os julgamentos de “valor”, Heidegger contesta o próprio interesse de uma hierarquização dos valores, pois esta só poderia se operar no interior de um discurso racional, logo, segundo ele, metafísico. A razão dessa estratégia é bem visível. Sem a preocupação com valores, não há mais necessidade de apresentar uma justificativa para as escolhas éticas (Delacampagne, História da filosofia no século XX, pp. 150-151). De fato, ao contrário do que afirmou, Heidegger nunca renunciou a esse racionalismo que ele não pára de denunciar. Primeiro, porque passou grande parte da sua vida de professor lendo e comentando – às vezes com bri lho – textos filosóficos. Depois, porque, mesmo nos mais obscuros dos seus escritos, recorreu, apesar de tudo, a conceitos e a argumentos, embora estes nem sempre sejam explícitos. Poderia ele fazer de outro modo, aliás, sem recorrer o risco de condenar-se a uma total ilegibilidade? (Delacampagne, História da filosofia no século XX, p. 162).
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de Gadamer, discípulo do primeiro, de que o engajamento político de Heidegger não teria contaminado sua obra. Nesse sentido, como já se viu, traço marcante em toda a trajetória de Habermas é seu compromisso humanista. E toda ela se preocupa com a discussão sobre o impacto renovador que uma autocrítica sobre o Holocausto, não só na Alemanha, mas em todo o Ocidente, poderia trazer em benefício da democracia, de forma a evitar que o racismo e o fundamentalismo possam retornar de forma tão trágica para a história humana. Assim, marcado pela experiência traumática de ter pertencido à juventude hitlerista, um dos seus primeiros escritos é exatamente uma portentosa crítica contra o irracionalismo aeticizante de Heidegger, 9 no qual denuncia seu silêncio diante dos crimes nazistas e entendendo seu racionalismo como uma das passagens mais negativas da filosofia alemã. De qualquer forma, inegavelmente, o constitucionalismo da efetividade está, de uma forma ou de outra, conectado com a “mudança estrutural da esfera pública” ocorrida no seio do “pensamento pós-metafísico”, próprio de um “agir comunicativo e (de uma) razão destranscendentalizada” . Da mesma forma que o procedimentalismo, ele está preocupado com a revisão humanista do pensamento do jovem Marx ou direcionado “para uma reconstrução do materialismo histórico” . Em ambos, portanto, vê-se o com9
Quando Heidegger publica (1953), sem uma palavra de comentário, o curso que deu em 1935, Introdução à metafísica, o jovem Habermas – que está com 24 anos – publica no Frankfurter Allgemeine Zeitung (25 de julho de 1953) um artigo impressionante: “Pensar Heidegger contra Heidegger”. Em algumas frases, tudo fica dito. O laço profundo que une a denúncia heideggeriana da metafísica às convicções políticas do ex-reitor de Freiburg é posto em evidência. O caráter inaceitável de seu silêncio sobre os crimes nazistas é sublinhado. Primeiramente, Habermas adverte os seus compatriotas contra o perigo que haveria, para eles próprios, em identificar-se – nem que fosse passivamente – com as tendências mais regressivas da cultura germânica (Delacampagne, História da filosofia no século XX, p. 273). 259
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promisso com a “inclusão do outro” . Um ideal comum nessa “era das transições” em favor da “verdade e (da) justificação” de ações que impeçam que injustiças de hoje se reproduzam eternamente em uma espiral contínua. Ou seja, uma luta para evitar que assistamos “o passado como futuro” . O “conhecimento e o interesse” das duas correntes percebem o atual quadro de instabilidade frágil que ameaça tanto o “Direito e (a) democracia” . Ameaça de um sistema capitalista que se julga unidimensional e que não se contenta mais em se manter dentro das tradicionais fronteiras esta tais, buscando agora um raio de ação que chega à “conste lação pós-nacional” . Certo é que a visão de mundo de Habermas se choca com o pessimismo acachapante dos representantes da primeira geração da Escola de Frankfurt ou com o “cinismo” dos “realistas de plantão”. Só podemos dizer que os mais de setenta anos do nosso autor ainda sustentam uma vitalidade e um otimismo com a condição do ser humano que algumas vezes me fazem sentir um velho – a despeito dos meus quarenta anos. E, se o procedimentalismo tem alguma coisa de utópica, cremos que este é um sonho que ainda merece ser sonhado!
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