Gerald Bray
e histórico
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Bray, Gerald Lewis Igreja : um relato teológico e histórico / Gerald Bray ; tradução de Eulália de Andrade Pacheco Kregness. — São Paulo : Shedd Publicações, 2017. 328 p. ISBN: 978-85-8038-055-2 Título original: The church: a theological and historical account 1. Igreja - História 2. Igreja - Desenvolvimento Desenvolvimento 3. Teologia I. Título II. Kregness, Eulália de Andrade Pacheco 17-0774
CDD-262 índices para catálogo sistemático: 1. Igreja - História
Gerald Bray Tradução Eulália de Andrade Pacheco Kregness
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Copyright © 2016 b y Ge r a l d L. Br a y Originally published in English under the title: The Church By Baker Academic, a division of Baker Publishing Group, Grand Rapids, Michigan, 49516, U.S.A. All rights reserved. 13Edição Maio de 2017 Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados por Sh e d d P Pu b l i c a ç õ e s
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no Brasil
Tr a d u ç ã o Eulália de Andrade Pacheco Kregness R e v i s ã o Vivian do Amaral Nunes Di a g r a m a ç ã o & Ca pa - Edmilson Frazão Bizerra
Sumário
Prefácio....................................................................................................7 1.
As origens da igreja.................................................................. igreja............................................................................ .......... 11
2. A igreja do Novo Testamento......................................................... Testamento............................................................47 ...47 3. A igreja perseguida................................. perseguida.................................................< ................<......................... 85 4. A igreja do império ......................................................................... 121 5. A crise da igreja do império ............................................................. 185 6.0
............................................................... ........................................ ....... 217 que é a igreja?.......................................
7.0 que a igreja deveria ser?.............................................. ser?.............................................................. ................ 275 Apêndice: Os concílios ecumênicos ...................................................319
Prefácio
Desde a Antiguidade, os cristãos, em geral, confessam sua crença na “igreja una, santa, universal e apostólica”, como diz o Credo Niceno. Quando o credo foi redigido, essa definição de igreja não era particularmente controversa, e no decorrer dos séculos, dificilmente alguém ponderava seu significado. A igreja tinha suas rixas, e apesar de algumas terem se mostrado espinhosas e causado divisões permanentes, a maioria das pessoas continuava achando que com um pouco de boa vontade das partes envolvidas, as diferenças seriam acertadas e a união evidente da antiga igreja seria restaurada. Somente na Reforma Protestante ocorrida no século 16 essa pressuposição foi seriamente contestada, e mesmo assim os reformados insistiam em dizer que o credo expressava seu entendimento da igreja, e esperavam que suas iniciativas trouxessem de volta a unidade e pureza que todos desejavam. Mas, percebendo ou não, os reformados estavam desenvolvendo conceitos sobre a natureza da igreja que eram diferentes da crença comum da época. O interesse deles não era apenas acabar com a corrupção ou livrar-se dos desvios óbvios do sistema tradicional. Queriam uma estrutura eclesiástica fundamentada em sua compreensão dos princípios do Novo Testamento, os quais, acreditavam, tinham sido abandonados ou esquecidos com o passar do tempo. Houve na Inglaterra uma tentativa séria de unir essa nova compreensão bíblica ao padrão tradicional da igreja, e os promotores da união acreditavam
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formados mais radicais resistiram ao que entendiam ser relíquias que deveríam ser completamente rejeitadas. O resultado foi uma guerra civil em que diferentes conceitos da igreja competiram entre si. No fim, o acordo original foi reinstalado, contudo, não podia mais reivindicar monopólio, e o mundo de fala inglesa abrigou grupos antagonistas de cristãos que desenvolveram suas eclesiologias no formato que hoje chamamos de “denominações”. Seja bom ou ruim, essas denominações continuam a existir, e quem concorda com os outros artigos do credo interpreta sua afirmação a respeito da igreja de modo a reflitir e perpetuar as divisões pós-Reforma. O mundo cristão inteiro é afetado por isso, mas, enquanto em outros países existe uma igreja ou tradição dominante, é naqueles afetados diretamente pela crise da Reforma Inglesa que as questões eclesiológicas têm mais chances de alterar a rotina do praticante religioso comum. Não é à toa que rótulos como “episcopal”, “presbiteriana” e “congregacional” são usados para definir algumas, igrejas — o seu sistema governacional, mais do que sua doutrina, as destaca umas, das outras. Isso é verdadeiro mesmo em relação aos “batistas”, uma vez que a recusa do batismo infantil é uma declaração sobre a natureza da igreja tanto quanto ao estado do bebê no conceito de Deus. Este livro não trata da história da igreja, e também não é uma ex posição de sua doutrina. Ele é uma tentativa de compreender como e por que os diferentes grupos cristãos de hoje passaram a entender a igreja da maneira que entendem e por que persistem em suas inter pretações eclesiológicas mesmo sabendo que com isso perpetuam a desunião do mundo cristão. O excêntrico ecumenista anglicano William Palmer (1803-85) acreditava que a igreja era parecida com uma árvore que cresceu e produziu ramos diferentes. Para ele, a Igreja Católica Romana, as igrejas Ortodoxas e a Igreja Anglicana foram as vertentes mais importantes, e Palmer esperava que elas reconhecessem umas, às outras, ou até mesmo se reconciliassem, por causa da fundação comum no tronco original. A “teoria da vertente” de Palmer sobre a igreja não conquistou muitos simpatizantes naquela época e hoje é tratada como uma curiosidade
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neira correta, ela é mais louvável do que parece de início. Não há como negar que a igreja cresceu e expandiu-se pelo mundo. No processo, ela se dividiu em diferentes vertentes, não de modo natural (como Palmer achava), e sim como resultado de conflitos, equívocos, conveniência política e também incompatibilidade doutrinária. O triste é que se a igreja é mesmo o corpo de Cristo, ela tem feridas como prova disso. Muito já se escreveu sobre essa história, quase sempre da perspectiva denominacional dos escritores, perspectiva que eles desejam justificar à luz da teologia, história e experiências. Muitas vezes, eles retratam seus antepassados espirituais como santos e heróis que foram perseguidos ou, no mínimo, mal compreendidos por seus contemporâneos, e estes são apresentados automaticamente como vilões. Essa abordagem “branco no preto” está hoje em retrocesso, especialmente nos círculos acadêmicos, mas, ninguém está completamente livre de preconceitos, e as antigas linhas de divisão continuam bastante visíveis, mesmo que sejam apenas na maneira de abordar e analisar o assunto. O resultado é que com frequência a eclesiologia é uma exposição do que um teólogo acha que a igreja deveria ser, e não do que ela realmente é. Às vezes, apologistas de um ponto de vista em particular resolvem esse problema simplesmente excluindo da igreja quem não se encaixa no seu retrato do que a igreja deve ser. Os exemplos mais óbvios desse comportamento são encontrados na tradição da Igreja Católica Romana, cujos teólogos, alinhados com o seu ensino oficial, asseveram com frequência que quem não estiver em comunhão com a diocese de Roma está fora da igreja. Outros são mais generosos ao lidar com grupos cristãos diferentes, e até mesmo a Igreja Católica moderou sua posição desde o Conselho Vaticano Segundo (1962-65), mas, aqueles que defendem que o seu modelo de igreja é o correto acabam descobrindo que é difícil ser justo com outros pontos de vista. Apenas colocando-os no contexto histórico e procurando entender por que as tradições se tornaram o que são hoje é que conseguiremos obter alguma perspectiva no assunto e buscar elementos comuns que transponham nossas diferenças e que talvez nos ajudem a vencê-las.
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tiros, podemos dialogar com as tradições de terceiros e, quem sabe, até aprender com elas. É este o objetivo deste livro. Dada a natureza da questão, nada mais justo que o autor deste livro revele sua identidade eclesiástica. Ele é sacerdote da Igreja Anglicana e segue a vertente evangélica da mesma. Ele já trabalhou, e em várias ocasiões cultuou, com igrejas Presbiterianas, Batistas, Irmãos Unidos, Igreja de Cristo, Igreja Católica e Igreja Ortodoxa, e aprendeu a apreciar todas elas sem abandonar sua lealdade à própria denominação. Ele espera que um pouco da profundidade do compromisso com sua tradição que também lhe permite ter comunhão com outros grupos transpareça ao leitor nesta curta introdução à doutrina da igreja. No final das contas, os cristãos são homens e mulheres nascidos de novo pelo Espírito de Deus e pertecem à igreja porque o Espírito os uniu no corpo de Cristo. O amor é a força vital dessa união, e quando aprendemos a amar a Deus passamos a entender quem ele é e quais são os seus propósitos para seu povo. Minha oração é que Deus o abençoe durante a leitura destas páginas e abra seus olhos para a maravilhosa graça com a qual ele alcançou um mundo de seres pecadores e chamou seus escolhidos para serem a sua igreja, agora e eternamente. Gerald Bray 20 de agosto de 2014.
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As origens
da igreja
A IGREJA E O POVO DE DEUS DO ANTIGO TESTAMENTO
Ao contrário do que aconteceu com o mundo, a igreja cristã não foi criada do nada. Seu início pode datar ao período logo depois da morte e ressurreição de Jesus Cristo, que foi sua inspiração e talvez o seu fundador. A intenção deliberada de Jesus de reunir um grupo de seguidores que transmitisse seus ensinos após ele subir aos céus é contestada hoje em dia, mas, durante muitos séculos essa crença foi universal. E difícil explicar por que Jesus escolhería e treinaria um grupo de discípulos caso não tivesse interesse em perpetuar seu ministério. Segundo o Novo Testamento, durante a festa de Pentecostes, sete semanas após a ressurreição, Pedro se levantou em Jerusalém e proclamou que as antigas profecias haviam se cumprido. O Espírito Santo de Deus foi então derramado sobre as três mil pessoas que creram nessa mensagem, e assim nasceu a igreja como a conhecemos hoje. 1 O derramamento do Espírito no dia de Pentecostes foi entendido pelas pessoas que o receberam como o cumprimento das promessas que Deus fez a seus antepassados, promessas que remontavam a Abraão, Isaque e Jacó. Israel foi o nome que Deus deu a Jacó por ele ter lutado com o Senhor e prevalecido - uma declaração extraordinária que mostra como o relacionamento entre Israel e Deus era singular. 2 Os relatos bíblicos não escondem que Israel era parente próximo das 1
Atos 2.14-41.
nações vizinhas, algumas, das quais também descendiam de Abraão e Isaque, mas, deixam claro que essas nações não foram escolhidas por Deus. Surpreendentemente talvez, o idioma falado por eles veio a ser chamado hebraico, uma palavra que, segundo parece, veio do desconhecido Eber (ou Heber), bisneto de Sem, um dos filhos de Noé. 3 Não se sabe por que o idioma recebeu esse nome, mas, seu uso nunca foi questionado. Durante um período, o nome Israel foi usado para descrever as dez tribos do norte que se separaram do reino centralizado em Jerusalém, chamado Judá em homenagem à sua tribo dominante. No entanto, depois que as dez tribos foram levadas para o exílio, os termos “Israel” e “Judá” se fundiram de tal modo que se tornaram sinônimos, e assim contínua até hoje. 4 Essa era a situação prevalecente nos dias de Jesus. Israel era uma nação judaica única estabelecida na Palestina, mas, com uma significativa população dispersa no oriente e no ocidente. Os orientais se localizaram principalmente na Mesopotâmia, onde permaneceram após o exílio na Babilônia. Os livros de Daniel e Ester deixam claro que esses judeus tiveram papel importante sob o domínio persa e, alguns séculos depois, voltaram a se distinguir como os principais contribuintes do desenvolvimento do Talmude — coleção do saber judaico de suma importância para o judaísmo posterior. No Novo Testamento, porém, a voz dessa comunidade da Diáspora não se faz ouvir. É possível que os sábios que visitaram o menino Jesus tenham ouvido sobre as esperanças messiânicas judaicas em conversa com membros daquela comunidade; mas, se esse foi o caso, nada foi dito a respeito. 5 A Babilônia é mencionada no livro de Apocalipse, mas, o consenso afirma que a menção é simbólica e não tem o propósito de se referir à cidade histórica. Foi da “Babilônia” que Pedro saudou seus leitores, porém a maioria dos comentaristas entende isso como um código para Roma, porque não há evidências de 3
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Gênesis 10.24; 1 Crônicas 1.18. Em Lucas 3.35 ele é citado como um dos ancestrais de Jesus. Assim, o amai estado de Israel é uma nação de língua hebraica habitada sobretudo por judeus. Mateus 2.1,2.
que Pedro tenha alguma ve 2 ido à Mesopotamia. 6 No entanto, no dia de Pentecostes, havia em Jerusalém peregrinos do que era então o Império Parta, sucessor da antiga Pérsia, e acertamos ao supor que alguns deles tenham se tornado cristãos naquela época. 7 Mas, não sabemos o que lhes aconteceu depois, e podemos afirmar que a Diáspora oriental não teve papel importante no surgimento da igreja cristã. Contudo, a história foi bem diferente com a Diáspora ocidental. Ela surgiu depois de Alexandre, o Grande (336-323 a.C.), cuja conquista do Império Persa colocou a Palestina na órbita do mundo grego, e mais tarde, na do romano. Em pouco tempo, o número de judeus em Alexandria e em outras cidades importantes do Mediterrâneo tornou-se significativo. Eles aprenderam o idioma grego e, algumas, gerações mais tarde, traduziram suas Escrituras para essa língua. Na época de Jesus, estavam produzindo intelectuais importantes, dentre os quais o mais notável foi Fílon de Alexandria (morreu 50 d.C.). Seus comentários sobre a Bíblia foram amplamente lidos na igreja primitiva, embora pareçam não ter causado nenhum impacto nos autores do Novo Testamento. Saulo de Tarso foi um desses judeus da Diáspora, e, em grande parte, responsável pela entrada da igreja primitiva no mundo greco-romano. No final do século 19, era moda retratar o nascimento do cristianismo como um tipo de fusão entre as culturas judaica e greco-romana, contudo, essa hipótese não é mais sustentável. O Novo Testamento foi escrito em grego, mas, os evangelhos são claramente focalizados no judaísmo palestino. Não sabemos se Jesus falava outra língua além de seu nativo aramaico, mas, mesmo que falasse um pouco de grego, não há evidências de que ele tenha ministrado nesse idioma ou que fosse familiarizado com a literatura e filosofia gregas. Seu ensino pode ser totalmente explicado dentro do contexto judeu, e é nesse contexto que os registros existentes colocam Jesus, e os estudiosos contemporâneos não têm problemas, com isso. Atualmente, são as ligações entre Jesus e seu background judaico que dominam as discussões sobre a origem do cristianismo. Certamente as influências greco-romanas surgiram mais tarde, contudo, são normalmente tratadas como secundárias e desconectadas de Jesus. 6 7
1 Pedro 5.13. Atos 2.9.
Hoje o mundo inteiro concorda que Jesus era judeu, que escolheu seus discípulos dentre seu próprio povo e que a maioria dos primeiros cristãos também era judeu. 8 Os evangelhos afirmam que ocasionalmente Jesus ministrava a não israelitas, mas, esses casos foram excepcionais e assim entendidos naquela época. Em sua argumentação com a mulher samaritana junto ao poço, Jesus não vacilou em lhe dizer que a “salvação vem dos judeus”, uma declaração que negou explicitamente as reivindicações do grupo religioso a que ela pertencia. 9 Muitas vezes, Jesus também foi severo com não judeus (ou gentios, como eram conhecidos) que o abordavam pedindo ajuda, embora lhes tenha atendido as petições, e até chegou a observar que a fé dessas pessoas era maior do que aquela do povo de Israel. 10 11 Resumindo, Jesus deixou claro que foi enviado aos judeus e não a outros povos, mas, quando não judeus o buscavam de livre e espontânea vontade, ele nunca os rejeitava. Essa abordagem foi especialmente relevante à igreja primitiva. Uma das controvérsias mais significativas que ela enfrentou foi se os não judeus poderíam se tornar cristãos sem se tornarem judeus primeiro. Os samaritanos, cujas crenças eram um tipo de sincretismo e uma forma antiga de judaísmo, pertenciam a uma categoria especial, e sabemos que Jesus estava disposto a alcançá-los e aceitá-los até certo ponto. 11 Pouco antes de ascender ao céu, Jesus encarregou seus discípulos de levarem o evangelho a Samaria, o que fizeram devidamente, mas, no início os samaritanos foram batizados só em nome de Jesus e não receberam o Espírito Santo. 12 Não sabemos o porquê dessa prática, mas, talvez Filipe, que evangelizou os samaritanos, achasse que eles eram judeus de segunda classe e, assim, não deveríam receber a plenitude da bênção 8
Isso nos parece tão óbvio que esquecemos facilmente que no início do século 20, antissemitas e os pressionados por eles (como na Alemanha nazista, por exemplo) tentaram rebater esse fato ou, no mínimo, fizeram todo o possível para ignorar suas implicações. 9 João 4.22. 10 Mateus 15.21-28; 8.10. Veja também Lucas 4.27. 11 Veja
Lucas 17.16. Mas, havia limites a isso. Quando Jesus enviou os discípulos para pregar, expressamente os proibiu de lidar com os samaritanos. Veja Mateus 10.5,6. 12Atos 1.8; 8.14-17.
prometida aos cristãos. Isso não passa de especulação, claro, mas, sabemos que é uma anomalia, porque quando os apóstolos em Jerusalém tomaram conhecimento do fato, correram a Samaria e impuseram as mãos sobre os que haviam sido batizados de forma inadequada, corrigindo assim o erro. Por outro lado, a atitude deles para com os gentios foi obviamente menos simpática. No decorrer do tempo, alguns gentios estavam familiarizados com o judaísmo e uniram-se a sinagogas como “tementes a Deus”, tornando-se parte dos primeiros não judeus a serem evangelizados. Cornélio, centurião romano posicionado na Cesareia Marítima na costa palestina, foi um exemplo clássico desse grupo, e por isso, sua história é contada de modo abrangente em Atos 10-11. Cornélio era um gentio bastante solidário com os judeus e fez tanto quanto qualquer estrangeiro podia fazer para ser aceito por eles. Um anjo de Deus apareceu e disse-lhe que mandasse buscar o apóstolo Pedro, que estava hospedado em Jopa, não muito longe dali. Pedro, no entanto, não estava preparado para se encontrar com alguém igual a Cornélio. Antes que os dois homens se encontrassem, Deus teve de ensinar Pedro a não considerar nada impuro - numa referência às leis judaicas sobre alimentação, mas, que poderíam facilmente ser aplicadas aos gentios. Quando os mensageiros de Cornélio chegaram, Pedro concordou em ir com eles; mas, embora entendesse que o acontecimento vinha de Deus, continuou um tanto inseguro. Somente depois de ouvir a história de Cornélio é que sua relutância desapareceu, e pela primeira vez, Pedro anunciou o evangelho aos gentios. Cornélio e todos os de sua casa creram em Jesus, e o Espírito Santo desceu sobre eles (o que não havia acontecido com os samaritanos), e Pedro batizou a todos. Pedro foi convencido por esses acontecimentos, porém, com os membros da igreja em Jerusalém, a história foi diferente. Quando Pedro relatou os acontecimentos, foi contestado por eles, mas, quando o apóstolo explicou o que havia ocorrido, a igreja aceitou o fato da mesma maneira que Pedro. No entanto, sabemos que a história não termina aqui, porque mais tarde, quando Pedro estava em comunhão com os gentios de Antioquia, alguns membros da igreja de Jerusalém
apareceram e pressionaram-no a se separar do grupo — o que ele fez. 13 Isso provocou uma discussão com Paulo, que foi resolvida a favor dos gentios, embora com algumas condições. Os gentios se uniríam à igreja, mas, para não ofender os judeus cristãos, deixariam de comer qualquer carne que tivesse sido sacrificada aos ídolos ou fosse de animais abatidos de maneira contrária às leis judaicas sobre alimentação. 14 Nessa época, estava acontecendo uma queda de braço entre os que apoiavam Paulo e os denominados judaizantes, que pareciam ter organizado uma missão rival para combater as políticas “liberais”. 15 Atualmente, os judeus cristãos são minoria na igreja, e muito dessa controvérsia antiga nos parece picuinha e impertinência, contudo, sua significância não deve ser minimizada. O medo dos judaizantes era que os gentios convertidos desviassem a igreja de suas raízes judaicas, e não estavam totalmente equivocados quanto a isso. Não judeus raramente aprendiam o hebraico, a língua do Antigo Testamento, e davam pouca ou nenhuma importância às leis e aos costumes judaicos. Os judaizantes estavam errados ao não querer que eles se tornassem membros da igreja, mas, estavam certos ao achar que a igreja não podería simplesmente se afastar de sua herança israelita. De alguma forma, os cristãos tiveram de fazer as pazes com essa antiga tradição, cujas promessas afirmavam ter herdado, sem se escravizarem a ela. A dificuldade enfrentada por Paulo foi que a igreja não era apenas uma continuação, de forma ligeiramente modificada, da antiga tradição israelita. Como Jesus disse aos seus discípulos, a lei de Moisés e a mensagem dos profetas tiveram autoridade até os dias de João Batista, porém o ministério de Jesus deu início a uma nova época. 16 * Jesus afirmou que aqueles que sabiam ler as Escrituras hebraicas de maneira correta comprovariam que elas falavam sobre ele; ou seja, que o verdadeiro sentido dessas Escrituras só seria entendido à luz da revelação que ele proclamou em seus ensinos e mostrou em sua vida e ministério. 1 Ele 13 Gálatas ,4Atos
2.11-14.
15.22-29.
13 Atos
15.1,2; Gálatas 2.4,5.
16 Lucas
16.16.
1 /
até mesmo disse que nenhuma letra da lei seria anulada; tudo seria ex plicado e cumprido por ele. 18 No mínimo, isso significava que a Bíblia hebraica continuaria sendo considerada texto sagrado cuja mensagem inspiraria os cristãos tanto quanto inspirou gerações de judeus antes deles. As duas primeiras gerações da igreja não tinham outra escritura sagrada, pelo menos não um conjunto de literatura que fosse claramente reconhecido como tal. 19 Ainda que a maioria dos escritos que formam o Novo Testamento já existisse no ano 70 d.C., os autores cristãos hesitaram em citá-los como fonte de autoridade até a metade do século 2 — mais de três gerações depois dos eventos neles relatados. Durante esse período, o Antigo Testamento (como os cristãos chamam a Bíblia hebraica) continuou sendo o texto de referência fundamental para a igreja; defendê-lo como a revelação que Deus destinou aos cristãos, e não aos judeus que rejeitaram as palavras de Jesus, foi uma grande preocupação dos autores cristãos. 20 Quando Marcião (morto em 144?) tentou se distanciar dessa tradição ao rejeitar o Antigo Testamento e substituí-lo por uma coleção truncada de textos do Novo Testamento sem nenhum traço de judaísmo, ele foi totalmente condenado e refutado pela maioria dos cristãos, que se opunha tanto aos judaizantes quanto a Marcião. 21 Gostando ou não, os cristãos não conseguiam se desvincular do Antigo Testamento, mas, também não permitiam que fosse interpretado pelos judeus de maneira que excluísse as afirmações de que as profecias se cumpriram em Jesus. ,8Mateus
5.17-20. 19 Uma exceção é encontrada em 2Pedro 3.15,16, em que as cartas de Paulo são classificadas como “Escritura” e são reconhecidas como tendo autoridade na igreja. Estudiosos têm usado isso como prova de que 2Pedro foi escrita mais tarde, sob pseudônimo, na metade do século 2. Mesmo que estejam certos, esta carta continua sendo a evidência mais antiga de que parte do Novo Testamento que temos hoje foi considerada escritura canônica. 20 Veja, por exemplo, Dialogus cum Tryphone, de Justino Mártir, em que ele argumenta a favor da interpretação cristã do Antigo Testamento contra o famoso rabino Tarphon. 21 A obra mais importante desse tipo é Adversus Marcionem, de Tertuliano, escrita por volta de 200 d.C. e que chegou a nós em cinco livros. Sobre Marcião, veja, “Marcion”, de H. Rãisánen, em A Companion to Second-Century Christian “Henries"’,
Há duas razões para isso. Primeira, é impossível entender o Novo Testamento sem entender bem a essência das Escrituras hebraicas. O mesmo se aplica a um livro como Apocalipse, que não faz nenhuma citação direta do Antigo Testamento, mas, é incompreensível sem ele. Segunda, o Novo Testamento deixa claro que os judeus que viveram antes de Cristo podiam ter um relacionamento salvador com Deus por meio da fé nas promessas que ele lhes fez, mesmo que não tivessem plena consciência de como tais promessas iriam se cumprir e de que teriam de esperar até seu cumprimento antes de se beneficiarem totalmente delas.22 Abraão foi uma figura primordial para a igreja primitiva entender a si mesma. Jesus ensinou aos discípulos que Abraão tinha previsto sua vinda e se alegrou nisso, embora não tenha ligado seu comentário a nenhum texto específico do Antigo Testamento. 23 Talvez Jesus estivesse pensando no dízimo que Abraão ofereceu a Melquisedeque, rei de Salém, que é apresentado como um tipo de Cristo em Hebreus. 24 Ou tivesse em mente o sacrifício que Deus pediu que Abraão fizesse de seu filho Isaque, só para lhe dizer na última hora que ele providenciaria algo muito melhor - provavelmente, seu próprio Filho. 25 Não sabemos com certeza, mas, é claro que os primeiros cristãos reivindicavam Abraão como ancestral na fé tanto quanto os judeus contemporâneos, mas, de modo diferente. Para os judeus, Abraão era um ancestral de carne e osso; os cristãos, porém, insistiam em dizer que os verdadeiros descendentes de Abraão eram aqueles que partilhavam sua fé. O apóstolo Paulo foi claríssimo ao explicar o assunto, e não hesitou em dizer aos seus leitores que a circuncisão foi dada a Abraão como sinal de sua fé nas promessas de Deus, e que essa fé era a verdadeira justificação de Israel. 26 A lei de Moisés foi um desafio maior para os primeiros cristãos porque, aparentemente, Jesus rejeitou uma boa parte dela, como as leis sobre alimentação e a guarda do sábado, duas coisas sacrossantas nos 22Hebreus 23 João
11.39,40.
8.56.
24 Gênesis 25 Gênesis
14.17-24; Hebreus 7.1,2.
22.1-14; Hebreus 11.17,18. 26 Romanos 4.1-12.
círculos judeus mais rigorosos. Para justificar sua atitude, Jesus salientou que Moisés havia dado a lei porque os israelitas se tinham mostrado incapazes de manter os altos padrões de Abraão. Como Jesus explicou, a lei serviu de barreira contra um declínio espiritual maior, e não como luz que levaria Israel a uma verdade mais elevada. 27 Jesus também explicou que a lei deveria ser interiorizada para ser entendida corretamente. Assim, enquanto Moisés disse que assassinato era errado, Jesus foi mais adiante e disse aos discípulos que até mesmo pensar mal de alguém era pecado.28 Ao direcionar seus ouvintes para os princípios subjacentes à lei, Jesus aprofundava a força de sua aplicação e, ao mesmo tempo, suprimia detalhes específicos (como a obediência estrita às leis sobre alimentação) que só atrapalhavam. Foi com essa leitura da lei que Jesus ensinou os discípulos a conciliarem as obrigações impostas aos antigos israelitas com os seus próprios ensinos. Jesus e os discípulos deixaram claro que não estavam acrescentando nada à Bíblia hebraica, apenas mostrando como deveria ser interpretada. Dessa perspectiva, pode-se dizer que estavam pregando a mensagem verdadeira que foi adulterada e corrompida com o tempo. Mas, será que a igreja cristã ficou muito parecida com sua mãe judia? As similaridades entre elas eram suficientes para incentivar o apoio mútuo e o diálogo, ou eram apenas semelhanças superficiais mais propensas a causar dissensões do que harmonia? Desde o início, os cristãos se julgavam os reais herdeiros do povo de Deus do Antigo Testamento e consideravam cegos à verdade os judeus que rejeitavam a Cristo. No entanto, mesmo um crítico tão severo dessa cegueira como o apóstolo Paulo não hesitou em reconhecer que todos os judeus, incluindo os que rejeitaram o evangelho, continuavam amados por Deus devido aos seus antepassados. Paulo ensinou que essa cegueira era, na verdade, uma bênção para os gentios, pois oferecia aos apóstolos a oportunidade de lhes pregar o evangelho. Quando essa missão fosse cumprida, Deus removería a cegueira de seu povo escolhido e iria integrá-lo à igreja, e “todo Israel” seria salvo no final. Não é claro se com “todo Israel” Paulo estava se referindo aos judeus 27 João 7.19-24;
Mateus 19.7,8. 28 Mateus 5.21-26. O mesmo princípio foi aplicado ao adultério, Mateus 5.27-30.
e cristãos juntos, ou a todos os que pertencessem ao povo judeu, quer tivessem fé ou não. Seja como for, Deus iria cumprir as promessas que fez aos patriarcas. 29 Nesse ínterim, a igreja, como descendente de Israel, teria de conviver com essa herança, e avaliar até que ponto ela era igual a sua aparentemente indócil mãe e de que maneiras era divergente dela. Analisemos rapidamente a herança de Israel para ver até onde (e como) a igreja poderia tomar posse dela. Quando Deus chamou Abraão para deixar seu povo e família, ordenou que fosse para uma terra desconhecida, mas, que recebería como herança. Como parte do chamado, Deus prometeu a Abraão que: 1. Seus descendentes se tornariam uma grande nação; 2. Ele seria abençoado e se tornaria uma bênção para o mundo todo; 3. Quem o apoiasse seria abençoado, e quem não o fizesse seria amaldiçoado.30 Até que ponto essas promessas foram cumpridas na época de Jesus? Não há como duvidar que Israel se tornou uma nação, mas, era complicado chamá-la de “grande”. Depois de pouco tempo na terra prometida a Abraão, Israel desceu ao Egito para escapar da fome e, mais tarde, acabou escravizado. Mais de quatro séculos se passaram antes de a situação mudar, o que só aconteceu com um êxodo maciço após uma perseguição que beirou o genocídio. Sob a liderança de Moisés, os israelitas deixaram as margens férteis do Nilo pelo desafio do deserto, onde sua fé e compromisso com o Deus a quem serviam iriam ser testados ao extremo. Por fim, depois da peregrinação de uma geração inteira, chegaram à terra prometida, contudo, só se enraizaram ali de verdade vários séculos mais tarde. Foi só perto do ano 1.000 a.C., quase um milênio inteiro após Abraão, que os israelitas estabeleceram um reinado sob a liderança de Davi, cujos descendentes governariam
29
Romanos 11.1 -32.
30
Gênesis 12.1-3.
sobre eles “para sempre”, de acordo com a promessa que Deus lhe fez. 31 No entanto, parece que a promessa foi quebrada assim que foi feita. Depois da gloriosa mas, nociva liderança de Salomão, filho de Davi, o reino despencou, e apenas as tribos de Judá e Benjamim restaram como súditos de seu neto. Durante alguns séculos, o reino de Judá lutou para sobreviver, quase sempre um peão nos embates diplomáticos das potências da época, mas, em 586 a.C., ele acabou sendo extinto. Um remanescente foi deixado na terra, contudo, a maioria do povo foi levada para o exílio na Babilônia, de onde só retornaria quase duas gerações depois. Ao voltar, reconstruíram o templo de Jerusalém, mas, exceto por um período de cerca de um século (aproximadamente 150-63 a.C.), Judá (também conhecido como Judeia) nunca mais se tornou estado independente. Nos dias de Cristo, os judeus estavam espalhados pelo mundo, contudo, sua terra natal foi subdividida e governada por reis nomeados pelo Império Romano. Eles sobreviveram e se espalharam, graças às políticas liberais da Pérsia e de Roma, entretanto chamá-los de uma “grande nação” é exagero. Se foram “abençoados” é igualmente problemático. Os súditos de Davi e Salomão viram a mão de Deus trabalhando no estabelecimento do extraordinário reinado de Israel, e consideraram isso uma bênção, como fizeram os exilados que voltaram e tiveram permissão para reconstruir o templo. Contudo, num olhar abrangente, é difícil entender como alguém consideraria uma nação sujeita a um governante estrangeiro “abençoada” no significado que Deus tinha em mente quando fez sua promessa a Abraão. Tampouco (e pela mesma razão) Israel podería ser considerado uma bênção aos outros. Na verdade, Israel se tornou tão defensivo e isolado que se preocupava mais em manter os outros distantes do que atraí-los para si. As comunidades dispersas toleravam a presença dos gentios “tementes a Deus”, contudo, nunca se esforçaram para envolvê-los na nação judaica, e proselitismo ativo era coisa rara. Pelo contrário, eram os judeus mais zelosos que tentavam praticar a lei de Moisés tão ao pé da letra que até mesmo os outros judeus achavam difícil serem reconhecidos como tais por seus correligionários. 31 IReis
11.36; 2Reis 8.19.
Por fim, havia pouco ou nenhum sinal de que os gentios que apoiassem os judeus seriam abençoados e os outros, amaldiçoados. Podemos fazer essa leitura do livro de Ester, contudo, sua história foi uma exceção que provou a regra. Em geral, os gentios que apoiavam Israel não recebiam nenhuma vantagem, e havia pouca indicação de que seus ofensores fossem punidos por isso. Infelizmente os judeus iniciavam um período de sua história em que discriminação e perseguição seriam a ordem do dia, e ninguém recebería castigo divino por sua maldade contra o povo escolhido de Deus. As perspectivas variam, claro, e é verdade que através dos séculos os judeus sempre agradeceram a Deus por suas bênçãos, contudo, de maneira objetiva, é difícil achar que as promessas feitas a Abraão foram cumpridas em Israel. O chamado feito a Abraão foi estendido a seus descendentes, mas, somente por meio da linhagem privilegiada de Isaque, cujo nascimento foi um milagre fora do âmbito das expectativas da reprodução humana. Abraão teve outros filhos - sendo Ismael o mais notório, e que lhe foi dado por Hagar, sua escrava e concubina —, mas, esses foram mandados embora com heranças separadas e nunca foram contados entre o povo escolhido de Deus. 32 Algo parecido aconteceu na geração seguinte com Esaú e Jacó. Por meio de um embuste bem tramado, Jacó, o irmão mais novo, herdou o direito de primogenitura de Isaque, e Esaú foi lançado fora. 33 Esaú deu início ao reinado edomita, e o relacionamento íntimo de seus descendentes com Israel foi importante mais tarde. Por exemplo, o profeta Obadias repreendeu Edom por não ter socorrido Judá na dificuldade, e os herodianos que governaram os judeus na época do Novo Testamento eram de origem edomita (idumeu). 34 Depois da morte de Salomão, Israel se dividiu em dois reinos rivais: o do norte, composto de dez das doze tribos, e Judá (com Benjamim), que manteve a capital em Jerusalém e a legitimidade que acompanhava a posição de guardiões do templo ali localizado. Como tribo de Davi, o 32
Gênesis 25.6.
33
Gênesis 27.1-45.
34
Obadias 10-14.
direito de Judá de reivindicar a herança de Abraão nunca foi contestado, porém a história do reino do norte foi mais complicada. Não tendo um lugar próprio de adoração, seus reis se viram na obrigação de construir dois nos limites de seu território — um em Dã, que ficava no norte, e outro em Betei, perto de Jerusalém - numa tentativa de impedir que os súditos oferecessem sacrifícios no templo de Salomão. Não sabemos com certeza o que ocorria internamente no reino do norte, contudo, ele parecia mais suscetível aos elementos pagãos do que Judá, e nenhum de seus reis foi considerado satisfatório aos olhos dos cronistas que registraram seus feitos. Por outro lado, Elias e Eliseu, dois dos maiores profetas israelitas, ministraram no norte, e até mesmo nos dias do Novo Testamento havia israelitas que afirmavam ser descendentes de uma das tribos do norte. Muito do que aconteceu depois da extinção do reino do norte em 722 a.C. é incerto, porém mais tarde uma forma variante de judaísmo se estabeleceu na região de Samaria. Os samaritanos alegavam pertencer ao povo de Deus do Antigo Testamento, todavia se recusavam a cultuar no templo em Jerusalém, e foram rejeitados por aqueles que achavam o templo parte central da adoração. Na época de Jesus, os judeus não se relacionavam com os samaritanos, e embora não tivesse aderido a esse padrão, ele não duvidava que a salvação pertencia aos judeus. Nessa época, os pilares da religião judaica principal eram três: 1.0 sacerdócio que remontava a Aarão, irmão mais velho de Moisés, e que vigorou enquanto o templo e seus sacrifícios continuaram em ação. Depois da destruição do templo no ano 70 d.C., o sacerdócio desmoronou, embora ainda há quem assevere que os judeus de sobrenome Cohen pertencem à linha sacerdotal e espera-se que o templo fique sob seus cuidados caso seja reconstruído. 2. A lei dada por Moisés, que estava contida na Torá ou Pentateuco (de Gênesis a Deuteronômio) e era interpretada pelos sacerdotes com a ajuda de uma coleção crescente de comentários escritos. Essa coleção partiu dos targumim, que eram comentários dos textos, desenvolvendo-se no Mishná e Talmude, os quais se tornaram fundamentos do judaísmo posterior.
3.
As Escrituras, formadas pelos livros proféticos e os chamados Escritos, acrescentados à lei de Moisés. O cânon profético estava definitívamente fechado na época de Jesus, porém havia dúvidas sobre os Escritos, especialmente sobre o livro de Ester, que não menciona uma única vez o nome de Deus e, portanto, era visto com desconfiança. Havia também uma discrepância entre o cânon hebraico, que corres ponde ao Antigo Testamento moderno em sua forma protestante, e as traduções gregas, que incluem alguns livros conhecidos coletivamente como os “Apócrifos”. Hoje eles são aceitos como canônicos pelas igre jas Católica Romana e Ortodoxa Grega, mas, rejeitados pelos judeus e protestantes. O quanto esses pilares são fundamentais à religião judaica é deduzido pela maneira em que aparecem no Novo Testamento. A autoridade das Escrituras hebraicas era inquestionável, e a Torá usufruía de prestígio singular. Mas, a tradição dos comentários desenvolvida a seu redor era um tanto suspeita, e temos a impressão que Jesus opunha-se até mesmo à sua existência. 35 Talvez seja exagero, contudo, não há evidência nos evangelhos de que ele era simpático aos ensinos rabínicos que diziam interpretar o texto mosaico à luz das circunstâncias contemporâneas. O sacerdócio também era importante, mas menos fundamental. Ensinar religião ao povo era em essência tarefa dos escribas, rabinos, e de grupos como os fariseus e saduceus, que não faziam parte da estrutura oficial do templo, embora muitos saduceus pertencessem a ele. No decorrer de sua história, o povo conhecido como Israel se tornou gradativa e relativamente menor e limitado. Mesmo que houvesse mais israelitas nos dias de Jesus do que nos dias de Davi, isso foi causado pelo aumento natural da população de Judá, e sua dispersão através do mundo resultou em crescimento no que diz respeito a números absolutos. Por outro lado, dez das doze tribos se desfizeram, e houve um fluxo contínuo de judeus rumo ao mundo pagão que os cercava. É verdade que houve um escorrer vagaroso de gentios na comunidade judaica, mas o número deles nunca foi grande o bastante para compensar as perdas. Os judeus continuaram a ser uma presença significativa na Palestina e provavelmente continuavam a ser sua população majoritária 35
na metade do século 2 d.C, todavia rebeliões sucessivas diminuíram sua influência, dispersaram sua liderança e os desapossaram da velha terra natal. A presença dos judeus era comum em muitas cidades ao redor da bacia do Mediterrâneo e na Mesopotâmia, contudo, eram minoria. Mais tarde, quando a igreja cristã se tornou o movimento religioso preeminente no Império Romano, as sinagogas foram incapazes de oferecer uma alternativa mais atraente. Não era fácil decidir quem era judeu. O homem tinha de ser circuncidado se quisesse ser aceito na comunidade judaica. 36 Os judeus tinham de seguir as leis sobre alimentação e as cerimônias estabelecidas pela lei mosaica, mas, parece que os líderes de muitas comunidades da diáspora fizeram vistas grossas a isso e temos a impressão de que muitos judeus se acomodaram em deixar as coisas como estavam. Obedecer aos mandamentos ao pé da letra era difícil na melhor das circunstâncias, e para uma minoria em ambiente estranho isso seria mais difícil do que para os que moravam em vilarejos de maioria judaica na Palestina. O conhecimento do hebraico, por outro lado, tinha valor relativo. Os ra binos sabiam hebraico, claro, mas, as pessoas comuns falavam grego ou aramaico, suplementados (embora bem pouco) por palavras hebraicas e expressões hebraicas específicas como
amém
e
aleluia. Quase
todos os
que ouviram Pedro falar no dia de Pentecostes em Jerusalém deviam ser judeus, mas, como o texto indica, todos o ouviram falar em suas próprias línguas, que eram faladas nas regiões da diáspora judaica. 37 As festividades mais importantes, tais como a Páscoa, eram am plamente celebradas, porém muito do que o mundo contemporâneo entende como cultura judaica é de origem mais recente. Pelo menos na superfície, havia pouca coisa que distinguisse os judeus dos cristãos, e embora, de vez em quando, a prática contínua dos costumes judaicos entre os que se tornavam cristãos causasse problemas, estes eram rapidamente resolvidos de maneira definitiva. Isso dá a entender que as práticas não haviam se enraizado na cultura popular, qualquer que tenha sido sua importância simbólica ou teológica. O que unia os judeus era o sentimento de pertencerem a um povo, sentimento encorajado 36 Veja 37Atos
Atos 16.3.
2.7-11.
tanto pelo preconceito quanto pela prática religiosa. Os judeus eram considerados excêntricos pelos gentios, e pagavam na mesma moeda, geralmente mantendo-se afastados e casando-se com pessoas de sua comunidade. E impossível determinar quantos desses judeus eram considerados “fiéis”. Evitar contato com os pagãos era uma coisa, outra bem diferente era abraçar a fé do Antigo Testamento de modo coerente ou abrangente. Na época de Jesus, existiam movimentos devocionais como os dos fariseus, que propagavam observância estrita à lei de Moisés, e os dos saduceus, que sob a perspectiva atual eram os teólogos “liberais” daquela época, porque rejeitavam crenças como a ressurreição dos mortos.38 Existiam também grupos periféricos como os essênios e a comunidade de Qumran, que praticavam asceticismo e isolamento do mundo. Mas, esses grupos eram minoria. Em geral, os judeus eram mais parecidos com José, Maria e os discípulos de Jesus — pessoas comuns de fé convencional que raramente era desafiada ou testada. A existência de escritos sagrados garantia nível mais alto de alfabetização entre os homens do que a média, mas, embora houvesse nas sinagogas homens que estudavam esses escritos, não há muita evidência de que o estudo fazia muita diferença na vida devocional da comunidade como um todo. Quando Paulo pregou o evangelho em Bereia, ele notou que algumas pessoas consultavam as Escrituras para se certificarem de que o apóstolo estava falando a verdade, mas, o fato de Lucas ter registrado o acontecimento mostra que tal diligência era rara e longe da norma na maioria dos lugares. 39 O que sabemos é que havia muitos judeus que valorizavam bem pouco a fé de seus ancestrais e cujas vidas ridicularizavam a lei de Moisés. Como o apóstolo Paulo afirmou, esses judeus eram uma desonra à nação porque o comportamento deles traía os princípios que deveríam identificá-los. De maneira nenhuma todos os que se chamavam judeus partilhavam o espírito da lei mosaica, e essa contradição em termos questionava a natureza de Israel. Seria Israel um povo que descendia fisicamente de Abraão ou a nação era formada de pessoas que criam 38
Mateus 22.23.
39
Atos 17.11.
da mesma forma que Abraão creu, fossem elas seus descendentes ou não? Jesus não hesitou em dizer a seus compatriotas que na antiguidade muitos gentios receberam as bênçãos de Deus quando israelitas que também necessitavam muito delas foram deixados de lado. Naamã, o general sírio que foi curado de lepra, foi um exemplo maravilhoso disso, assim como foi Rute, a moabita, uma de suas ancestrais. Fé e nação se sobrepunham, mas, não eram a mesma coisa, e para Jesus e seus seguidores a primeira era mais importante. Entretanto, permanecia uma certa ambiguidade. Nascer em uma família judia era um grande privilégio, embora tal coisa exigisse um grau maior de responsabilidade espiritual. Aqueles que conheciam a verdade desde o nascimento tinham a obrigação de viver de acordo com ela, e caso não o fizessem, o escândalo era resultado inevitável, porque os judeus eram um povo separado de modo especial, quisessem ou não. 40 A igreja cristã seria diferente, mas, a que ponto e com que repercussão? Is r a e l Fo i a Ig r e j a
d o An t i g o Te s t a m e n t o ?
Em diferentes épocas de sua história, a igreja cristã considerou o Israel antigo como modelo para sua vida. Depois da legalização do cristianismo pelo Império Romano (em 313) e seu estabelecimento como religião estatal (em 380), líderes da igreja buscaram no Antigo Testamento exemplos de como uma sociedade cristã deveria ser dirigida. Os imperadores se tornaram governantes sagrados nos mesmos moldes dos reis de Israel e Judá. Eram ungidos em cerimônia de coroação de natureza profundamente religiosa e recebiam posição honradíssima na igreja; muitas vezes, eram considerados iguais aos apóstolos ( isapostoloi).41 O clero cristão foi organizado em ordem de sacerdotes conforme o modelo araônico, e para se manterem, recebiam dízimo de tudo o que era produzido, exatamente como aconteceu aos levitas do passado. 42 Até mesmo os cultos tinham um tempero do Antigo Testamento, pois 40 Romanos
2.17-24. 41 Isso foi especialmente verdade em relação a Constantino I (306-37), que legalizou o cristianismo, e Justiniano I (527-65), construtor da famosa Basílica de Santa Sofia, em Constantinopla. 42 Números 18.21.
a Ceia do Senhor foi transformada em sacrifício memorial ao Cordeiro que foi morto pelos pecados do mundo — Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, como descrito pelo famoso hino da Ceia medieval. 43 Os elos assim criados se tornaram possíveis porque o Antigo Testamento foi alegorizado para suprir as necessidades da igreja cristã. Por exemplo, a visão de Jacó da escada ascendendo ao céu significava que enquanto Israel dormia na casa de Deus (Betei), os cristãos estavam acordados e subiam a escada, juntamente com anjos e arcanjos. Ecos dessa interpretação permanecem na oração de consagração do Livro Anglicano de Oração Comum, no qual é “com anjos e arcanjos e toda hoste celestial que louvamos e enaltecemos o teu Nome glorioso”. Quem visita a Catedral de Chartres, na França, pode observar que os espetaculares vitrais coloridos estão dispostos em duas séries correspondentes: uma dedicada ao Antigo Testamento e outra ao Novo Testamento. A correspondência é deliberada, de modo que o vitral da história do bom samaritano, por exemplo, fica em frente ao da venda de José à escravidão no Egito. A lógica é que no Antigo Testamento a pobre vítima foi condenada à escravidão, ao passo que no Novo Testamento a vítima foi resgatada por alguém que, em geral, é considerado o próprio Cristo. Em conformidade com a tradição cristã, os paralelos alegóricos judaicos são sempre apresentados como parciais e inferiores aos cristãos, mas, só o fato de estarem presentes fala por si. Os cristãos se viram refletidos no Antigo Testamento, sentindo-se privilegiados em corrigir com o evangelho o que deu errado sob a lei de Moisés. Até que ponto essa perspectiva era válida? Em certo sentido, não há como duvidar de que os cristãos entendiam seu relacionamento com Deus como o cumprimento das promessas do Antigo Testamento. Obviamente, o evangelho era superior à lei — se não fosse, não havería motivo para alguém se tornar cristão. O apóstolo Paulo foi incisivo ao descrever o relacionamento entre a sinagoga e a igreja quando comparou aquela a Hagar, a escrava concubina de Abraão, e esta a Sara, sua legítima esposa. Os filhos das duas mulheres eram descendentes de Abraão, contudo, o filho de Hagar (Ismael) foi 43 “Cordeiro
de Deus, que tira o pecado do mundo.”
mandado embora, mas, o de Sara (Isaque) herdou a bênção do pai. 44 O mesmo aconteceu com a igreja. Os judeus podiam afirmar ser filhos de Abraão, todavia, eram escravos da lei e foram expulsos, mas, os cristãos eram filhos da mulher livre. Por um lado, judeus e cristãos eram muito parecidos, mas, por outro, eram muito diferentes. O que Paulo menciona de passagem foi desenvolvido de maneira sistemática pelo autor de Hebreus, que começa assim o seu tratado: “Há muito tempo Deus falou muitas vezes e de várias maneiras aos nossos antepassados por meio dos profetas, mas, nestes últimos dias falou-nos por meio do Filho”. 45 Depois de uma longa explicação do que isso acarreta, ele termina seu argumento apontando diretamente para os memoráveis homens e mulheres de fé cujas vidas estão registradas no Antigo Testamento e que são exemplos para nós que viemos após eles. Apesar da excelência dessas pessoas, o autor de Hebreus conclui: “Todos estes receberam bom testemunho por meio da fé; no entanto, nenhum deles recebeu o que havia sido prometido. Deus havia planejado algo melhor para nós, para que conosco fossem eles aperfeiçoados”. 46 É isso: os fiéis do Antigo Testamento eram magníficos servos de Deus, e no acerto de contas no fim dos tempos, serão incluídos entre os justos, assim como nós. Ao mesmo tempo, contudo, eram diferentes de nós. Aguardavam as bênçãos que agora nós recebemos e usufruímos de um modo que não aconteceu com eles. Suas vidas seguiram uma trajetória diferente da nossa, e foram sujeitos a fardos e limitações que não se aplicam a nós. Eles se constituíram em uma igreja, que se tornou ancestral da equivalente cristã? Podemos hoje considerá-los cristãos, embora tenham vivido antes da vinda de Cristo e não usassem esse termo para descreverem a si mesmos? Aqui nós dependemos até certo ponto das definições das palavras. Tanto o Israel antigo quanto a igreja cristã subsequente foram chamados de “o povo de Deus”, e se é isso que intencionamos dizer com a palavra “igreja”, então, Israel deve ser incluído. Mas, o Novo Testamento não vai tão longe assim. As diferenças entre as instituições históricas 44 Gálatas
4.21-31.
45 Hebreus
1.1,2. 46 Hebreus 11.39,40.
de Israel e as do movimento cristão incipiente foram tão importantes quanto suas semelhanças, e a maneira como os cristãos usavam a palavra “igreja” dá essa indicação. Reconheciam que, apesar de todas as semelhanças e conexões entre elas, o cristianismo não era apenas um ramo do judaísmo. Se fosse, os discípulos de Jesus jamais teriam formado comunidades de adoração tão distintas. A verdade é que embora permanecessem judeus, a experiência espiritual deles não podia ser contida nos limites do judaísmo tradicional. Além disso, era possível (e logo se tornou comum) aos gentios crerem em Cristo e usufruírem da mesma experiência com ele sem se tornarem judeus. Existia algo novo aqui, e é isso que o termo “igreja” expressa. Os motivos principais de não incluirmos (e provavelmente não deveriamos fazê-lo) Israel sob o termo geral “igreja” são: 1. Israel e a igreja receberam uma revelação escrita de Deus, que é fundamental à sua vida e fé. A igreja cristã adotou as Escrituras judaicas como sua, mas, de um modo diferente. Primeiro, os cristãos interpretam a Bíblia hebraica à luz do Cristo (Messias) que já veio, o que os judeus não fazem. Depois, o cânone cristão está fechado de um modo que o cânone hebraico antigo não foi. As profecias cessaram em Israel cerca de quatrocentos anos antes da vinda de Cristo, fato comprovado pelo Antigo Testamento como o temos hoje, contudo, na época de Jesus não havia consenso se a revelação divina havia ou não chegado ao fim. Israel havia sofrido carências espirituais outras vezes, porém, elas foram seguidas de reavivamento e produção de nova Escritura. Quando João Batista apareceu, ele não foi rejeitado como impostor por ter achado que um ministério igual ao seu não era mais válido. Os cristãos, por outro lado, aceitaram a Bíblia hebraica como um cânone completo que não poderia ser ampliado porque ele aponta para o Cristo que já veio. O Novo Testamento também é um cânone completo e o tem sido desde que a primeira geração que testemunhou seus acontecimentos deixou de existir. Nem sempre houve concordância universal quanto ao seu conteúdo, e os debates sobre a autoria apostólica de alguns de seus livros continuaram, mas, essas questões são secundárias. O preceito era que com a chegada da plenitude dos tempos novas revelações se tornaram impossíveis. Deus continua a
falar à igreja e por meio dela, contudo, o faz de maneira diferente; hoje ninguém pode reivindicar o tipo de autoridade que foi dada a Moisés, aos profetas do Antigo Testamento ou aos apóstolos de Jesus. Mais significativo ainda, o judaísmo salienta em geral que a Bíblia hebraica é lei, enquanto a igreja cristã a entende mais como profecia. Naturalmente, “a Lei e os profetas” estão interligados, e nenhuma das duas crenças enfatiza um e exclui o outro. Mas, embora os judeus achem natural querer saber como a lei de Moisés pode ser estendida e aplicada a situações não previstas pelos ancestrais israelitas, os cristãos não fazem o mesmo. Na igreja, os preceitos mosaicos são considerados princípios espirituais cuja aplicação depende da maneira em que foram cumpridos (e suplantados) pelo evangelho de Cristo. Isso pode levar à eliminação de preceitos (como no caso das leis alimentares que se acredita não serem mais aplicáveis) ou a uma prática mais profunda e rigorosa de seus ensinos — como é o caso dos Dez Mandamentos, em que as proibições de assassinato e adultério são ampliadas e incluem maus pensamentos e desejos, e não se limitam a atitudes externas. 47 Quanto às profecias, para os judeus elas pertencem a um futuro escatológico no qual se pode ou não acreditar; o judaísmo messiânico é (e sempre foi) um interesse periférico no mundo judaico. Para os cristãos, no entanto, as profecias foram cumpridas em Cristo. Elas têm, claro, uma dimensão escatológica, mas, esse aspecto também está ligado a ele. Assim, a vinda do Messias no final dos tempos só pode ser a volta de Cristo, e não o aparecimento de alguém até agora desconhecido. 48 2. O Israel antigo (assim como seu par moderno) era uma nação humana secular com suas tradições, cultura, língua e território comparável aos países vizinhos. Qualquer um podería fazer parte de Israel, mas, isso não era incentivado, e com o passar do tempo, influências externas (como esposas estrangeiras) eram cada vez mais restringidas. No início, uma mulher igual a Rute não tinha dificuldades em se casar com um judeu, mas, tal casamento se tornou mais difícil depois, especialmente após o exílio. 49 Em decorrência, a hereditariedade física exercia papel 47 Mateus
5.21-30 48 Atos 1.11; ICoríntios 15.20-28; ITessalonicenses 4.13-17. 49 Veja
Esdras 9—10.
central na vida de Israel. O clã sacerdotal era uma tribo distinta cuja linhagem remontava a Arão, irmão mais velho de Moisés. Ninguém decidia (ou se recusava a) ser sacerdote, pois isso era determinado pelo nascimento. De maneira similar, Jesus herdou seu título real do ancestrai Davi e não o teria obtido de outra forma. Alguém como Herodes governava como rei dos judeus, mas, da perspectiva teológica, ele era usurpador e jamais passaria disso. 50 Em forte contrapartida, a igreja cristã não era uma nação no sentido comum da palavra, ainda que tal linguagem fosse, às vezes, usada para descrevê-la.51 Qualquer pessoa poderia ser membro da igreja, e o milagre do primeiro Pentecostes teve o intuito de revelar a universalidade de sua mensagem. A igreja não se isolou para sobreviver, mas, buscou acolher pessoas de todas as tribos e línguas. O evangelismo, um conceito desconhecido antes da vinda de Cristo, tornou-se a razão de ser da igreja, que viu a proclamação do evangelho até os confins da terra como sua tarefa principal. Cargos na igreja, tal como eram, nunca foram herdados, e algumas vezes foi necessário tomar medidas para que esse princípio fosse observado. Um dos motivos para a imposição do celibato ao clero ocidental na Idade Média foi garantir que filhos legítimos não herdassem os cargos de seus pais. Na igreja, era possível se tornar ministro (e deixar de sê-lo) de um modo inconcebível no Israel antigo. Da mesma forma, reis e outros regentes que se tornavam cristãos não usufruíam de
e privilégios na igreja, embora isso lhes
status
tenha sido concedido nos séculos posteriores, nem os governos seculares foram sujeitos à igreja, embora também tenha havido exceções na Idade Média e mais tarde. Certamente muitas foram as tentativas de estabelecer governos e estados cristãos, mas, nenhum deles usufruiu da mesma sanção divina concedida ao reinado davídico no Israel de antigamente. Não é exagero afirmar que o conceito de secularização do governo civil (no sentido de “não ser religioso”) é produto do pensamento cristão e remonta ao mandamento de Jesus, que disse aos judeus que embora devessem pagar 50 Veja
Mateus 2.1-12 e a citação incisiva de Miqueias 5.2 no v. 6. 51 Veja 1 Pedro 2.9.
a César o que lhe era devido, deveríam diferenciar esse pagamento do que deviam a Deus. 52 3. A vida espiritual do Israel antigo estava centralizada no templo de Jerusalém e especialmente no supremo sacrifício propiciatório, que era aü oferecido anualmente pelo sumo sacerdote. Como o autor de Hebreus deixa claro, esse sacrifício, e outros rituais menos importantes, eram realizados pelo sumo sacerdote não apenas em seu próprio benefício como também pela salvação do povo, porque, em essência, ele não era melhor que ninguém. 53 Em contraste, a vida espiritual da igreja cristã estava centralizada em comunidades reunidas para adoração. Jesus estava presente sempre que dois ou três cristãos se reuniam em seu nome; ele não estava ligado a um templo ou a um local terreno de qualquer tipo que fosse. O ponto alto do culto não era o sacrifício expiatório, e sim a lembrança desse sacrifício, que foi feito em definitivo por Cristo na cruz. O sacrifício de Cristo era o foco do culto cristão não pelo que foi em si, mas, pelo que representava. Os líderes cristãos não eram sacerdotes no sentido do Antigo Testamento. Eram pregadores e evangelistas que foram chamados para anunciar que Cristo havia acabado com a necessidade de sacrifícios e que as tradições do templo de Jerusalém eram agora obsoletas. Assim, não havia nada na igreja primitiva que se comparasse ao templo de Jerusalém. Nunca houve um edifício ou lugar específico para a realização do culto, ou um espaço ao qual se restringir. Os cristãos podem cultuar (e cultuam) em qualquer lugar sem favorecer um ou outro. Há ocasiões em que dão atenção especial a Jerusalém e à chamada Terra Santa; também visitam lugares importantes, entre eles Belém e Nazaré, cidades onde Jesus nasceu e foi criado, mas, isso nunca teve a importância espiritual que liga a adoração em Jerusalém (e no Monte Sião) à mente judaica. 54 52 Mateus
22.15-22. 53 Hebreus 5.2,3. 54 Observemos de passagem que o cristianismo é diferente do Islamismo também nesse aspecto. Para os islâmicos, a peregrinação a Meca é obrigação sagrada, contudo, nada parecido jamais aconteceu no mundo cristão, mesmo quando a peregrinação era incentivada e organizada.
Para a igreja o templo não tinha mais utilidade, porque seu propósito foi cumprido em Cristo, mas, com a sinagoga, a história era outra. No Israel antigo não existiam sinagogas; elas vieram mais tarde, em parte para suprir as necessidades das comunidades da diáspora e em parte para atender aos judeus que viviam na Palestina. Sabemos pelo Novo Testamento que existiam vários edifícios de sinagogas na Galileia e em outros lugares, alguns construídos e pagos por gentios admiradores do judaísmo, incluindo oficiais militares romanos como Cornélio. Havia sinagogas até em Jerusalém, embora o templo estivesse perto e fosse fácil visitá-lo a qualquer momento. Originalmente, a palavra “sinagoga” se referia a uma reunião de pessoas, mas, como as reuniões normalmente aconteciam em locais específicos, a palavra passou logo a incluir também o próprio edifício. As sinagogas eram lugares onde os judeus se reuniam para orar, ouvir a leitura da Bíblia e serem instruídos na fé. A organização das sinagogas era informal, parcialmente porque não havia estipulações para elas na lei de Moisés (mas, havia para o templo) e parcialmente porque elas ainda eram um fenômeno relativamente novo. E difícil determinar exatamente quem dirigia a sinagoga. Por certo que existia gente influente na cidade que participava de sua manutenção, e sabemos que pessoas conhecidas como archisynagogoi [traduzido pela NVI como “chefe da sinagoga’J exerciam certo controle das sinagogas. Uma dessas pessoas, um homem chamado Crispo, converteu-se com a pregação de Paulo em Corinto, um acontecimento que causou furor na comunidade judaica porque despojou a sinagoga de um de seus financiadores mais importantes. 55 Fora isso, não sabemos mais nada. Pressupõem-se que os archisynagogoi deveríam cuidar para que o culto fosse conduzido de modo regular e ordeiro e que os jovens recebessem instrução, mas, essa é uma suposição lógica que não tem muito ou nenhum suporte. Certamente os archisynagogoi dependiam do apoio dos membros mais velhos da congregação, contudo, isso também é especulação, e possivelmente o padrão variava muito de um local para outro. O sistema todo se desenvolvia informalmente, e esse foi um dos motivos de Jesus e os discípulos, incluindo Paulo em suas viagens
missionárias, terem sido facilmente aceitos nas sinagogas — pelo menos de início. Se as sinagogas tinham mestres para instruir o povo no significado da lei é algo desconhecido. Um grupo crescente de homens, a quem chamamos de rabinos, eram treinados para esse propósito, contudo, na época de Jesus o padrão usado mais tarde ainda não havia sido estabelecido. Jesus era chamado de rabino por quem não sabia de que outra forma se dirigir a ele, porém isso não significa que ele tivesse qualquer tipo de educação teológica formal ou que tivesse uma posição reconhecida oficialmente pela sociedade judaica. 56 Foi somente depois da destruição do templo de Jerusalém no ano 70 d.C. e da dissolução do sacerdócio tradicional que a sinagoga conquistou a importância que ainda mantém no mundo judaico. O judaísmo sobreviveu à catástrofe porque já existia uma rede bem estabelecida de instituições que funcionavam sem muita dependência do templo. Portanto, não devemos nos surpreender com o fato de que foram as sinagogas, e não o templo, que serviram de modelo para a organização das primeiras igrejas cristãs. Em hebraico as palavras “sinagoga” e “igreja” são praticamente as mesmas: “sinagoga” é knesset e “igreja” é knesiyah, e as duas significam “assembléia”. 57 É apenas no grego que encontramos palavras bem diferentes: synagoge para os judeus e ekklesia para os cristãos, sem nenhuma distinção importante de significado. Ekklesia era uma palavra usada para a assembléia de cidadãos em cidades como Atenas; na verdade, entretanto, a versão cristã não era um tipo de parlamento, como a ligação linguística talvez deixe transparecer. E na tradição israelita não existia nada que se comparasse a ela. No início do cristianismo, os cristãos não tinham permissão para construir locais de culto, assim a associação natural da palavra ekklesia de assembléia para o edifício onde ela se reunia levou algum tempo para acontecer. 58 Mas, bem antes disso, 56 Veja
Mateus 23.7,8. 57 No hebraico moderno Knesset é o termo usado para o parlamento israelense. 58 Isso talvez explique por que a palavra ekklesia nem sempre foi adotada. Nos países germânicos do norte europeu, o termo preferido era uma variante de kyriake (pertence ao Senhor), do qual derivam a palavra inglesa “church” e a palavra alemã “kirk” [as duas significam igreja]. A mesma palavra também penetrou o mundo ortodoxo oriental, onde formas variadas do termo russo tserkov são comuns. As
a palavra ekklesia adquiriu conotações que a distinguiam claramente de sinagoga, não levando em conta somente a fé religiosa mas, também, questões práticas de organização. Primeiro, a palavra “igreja” incluía todos os que se diziam cristãos. Era usada no singular e no plural, referindo-se tanto ao universo de todos os cristãos como também às suas reuniões em grupos locais. A igreja foi descrita como “o corpo de Cristo”, no qual cada membro era batizado e tinha um lugar designado. 59 Esse corpo era uma unidade que deveria ser assim preservada como testemunha da existência de um Senhor, uma fé e um batismo. 60 A universalidade do evangelho cristão exigia tal atitude, e qualquer tendência de divisão em partidos seguidores de diferentes líderes era confrontada vigorosamente pela liderança das principais igrejas apostólicas. 61 Segundo, e por causa da necessidade de manter essa unidade abrangente, a igreja tinha uma estrutura organizacional altamente centralizada completamente estranha à sinagoga. A supervisão das igrejas era feita pelos apóstolos — os discípulos de Jesus, juntamente com Paulo —, a quem as congregações locais apelavam, e esses não hesitavam em “interferir” quando necessário. A carta de Paulo aos Romanos, por exemplo, foi endereçada a uma igreja que ele nunca tinha visitado, contudo, isso não diminuiu em nada a autoridade do apóstolo. Nenhum líder judeu escrevería dessa forma a uma sinagoga. Internamente, cada igreja era estruturada de um modo inimaginável nas sinagogas. Não sabemos com exatidão como isso funcionava, e possivelmente existiam muitas variações pelo mundo mediterrâneo que mais tarde se mesclaram em exceções geralmente acontecem no sentido oposto e mostram como a palavra usada para o edifício podería ser aplicada à congregação, e a partir de então à igreja universal. O romeno, por exemplo, usa o termo biserica, que vem do grego latinizado basílica, e o polonês, kosciol (tcheco hostel), derivado de castellum (castelo). No Leste Europeu, muitos idiomas empregam palavras diferentes em relação às igrejas católicas para distingui-las das igrejas ortodoxas orientais e protestantes. Assim, uma kosciolé sempre uma igreja católica, uma tserhov é ortodoxa oriental, e uma igreja protestante pode ser chamada de outra coisa — talvez chram (templo) ou algo parecido. 59 ICoríntios 12.27. 60 Efésios 4.5. 61 Veja, por exemplo, ICoríntios 1.11-17.
um padrão comum, entretanto o Novo Testamento deixa claro que havia um padrão de governo e responsabilidade. Quando Paulo escrevia a uma igreja, ele esperava ser obedecido, e isso sugere que havia pessoas da localidade capazes e dispostas a colocar as recomendações em prática. Quem eram (e como eram chamadas) tem sido assunto de muita discussão, mas, não há como duvidar de sua existência. Terceiro, e talvez mais importante, a igreja tinha a missão de converter o mundo. Ela não era um clube de expatriados, como a sinagoga da diáspora parecia muito bem ser. Não havia hierarquia dos membros, com os judeus ocupando cargos especiais, embora, sem dúvida nenhuma, isso integrasse a campanha promovida pelos famosos judaizantes. Fazer parte da igreja não significava enfatizar a identidade étnica ou social do indivíduo, mas, perdê-la. Os cristãos não gastavam tempo cultivando uma linguagem sagrada como o hebraico bíblico, embora ele fosse o meio original da revelação das Escrituras. Eles usavam o grego, especialmente por questão de praticidade, uma vez que era o idioma comum do mundo mediterrâneo da época. Ao contrário dos cristãos de hoje, eles não mostravam interesse em traduzir a Bíblia para qualquer outro idioma, embora Paulo tenha, aqui e ali, ministrado a pessoas que provavelmente não entendiam o que ele estava dizendo. 62 Certamente existia diferença de classes dentro da igreja, mas, quem levava isso em consideração era admoestado com severidade. 63 A igreja era aberta a todos, e até práticas inofensivas em si poderíam ser problemáticas caso impedissem a obra de evangelização. Assim, por exemplo, falar em línguas era aceitável na igreja de Corinto, a não ser que causasse má impressão nos de fora, o que seria uma barreira à obra missionária.64 Nenhuma sinagoga comprometería seu judaísmo com o intuito de causar boa impressão e atrair outras pessoas; os mem bros das sinagogas se arrepiariam só de pensar em tal coisa. Porém, os cristãos não estavam interessados em exclusividade obscura; para eles, as portas da igreja estavam abertas a todos que tivessem fé em Jesus Cristo e fossem cheios do Espírito Santo. 62Atos
14.11. 63 Tiago 2.1-13. 64 ICoríntios 14.20-25.
Isso nos leva à última e mais teológica das diferenças entre judaísmo e cristianismo. As duas religiões cultuavam o mesmo Deus, mas, enquanto os judeus o enxergavam em toda a sua unidade e soberania majestosas, os cristãos acreditavam ter alcançado intimidade com ele. Eles estavam sentados nos lugares celestiais em Cristo Jesus. 65 Tinham acesso ao Pai, por meio do Filho, no Espírito Santo. 66 Eram nascidos de novo.67 Para os judeus tudo isso era absurdo, como nos mostra a história de Nicodemos. Quando Jesus disse que ele precisava nascer de novo, Nicodemos achou que de alguma forma deveria retornar ao ventre materno!68 Absurdo completo, claro (e sendo justos, Nicodemos sabia disso), mas, sintomático das diferentes maneiras de os judeus e os cristãos se aproximarem de Deus. Os judeus eram ligados às coisas físicas e materiais de um modo oposto ao dos cristãos. Para os cristãos, o reino de Deus não era uma esperança escatológica, mas, uma realidade presente que conheciam por meio da comunhão com Cristo no Espírito Santo. Ou seja, os cristãos cultuavam o Deus único em uma Trindade que demoraria mais alguns séculos para ser definida, mas, que era real na experiência deles. No fim, foi essa experiência que lhes impediu de continuarem judeus na sinagoga e que os forçou a construir uma teologia sem utilidade ao judaísmo. Os judeus testemunhavam de sua fé por meio da circuncisão e do viver segundo a miríade de preceitos da lei de Moisés. Os cristãos, no entanto, confessavam a Cristo, e essa confissão os levou a dar à igreja uma estrutura intelectual bem diferente de qualquer coisa existente na sinagoga. A pouca ou nenhuma transferência de líderes de Israel para a igreja foi outra marca importante das diferenças entre as duas coisas. Para seguir a Jesus, nenhum discípulo teve de abandonar uma posição de destaque na sociedade judaica, e nenhum deles tinha educação rabínica. Paulo era uma exceção nesse aspecto, entretanto ele foi o mais enfático em denunciar a velha ordem e não usou suas vantagens para ser mais bem aceito na igreja. Também não há indícios de que sacerdotes ou 65 Efésios
2.6.
66 Efésios
2.18; Gálatas 4.6. 67 João 3.7 68 João
3.4
rabinos porventura convertidos tenham recebido posição equivalente na igreja. E difícil crer que quando novas igrejas se formaram como resultado de divisões em sinagogas, nenhum líder tenha passado de um sistema para outro, mas, se isso aconteceu, nada foi registrado. Em vários momentos, o Novo Testamento apresenta os critérios para a escolha de líderes da igreja, mas, instrução no judaísmo ou ser experiente na liderança de uma sinagoga não faz parte de nenhuma lista. Deus estava criando algo novo na igreja, e embora conhecer o antigo padrão pudesse ser útil de vez em quando, não era essencial na nova dispensação. Temos então de concluir que não podemos considerar Israel a igreja do Antigo Testamento. As conexões entre Antigo e Novo Testamento foram refratadas por meio do prisma de Cristo, que transformou todas as coisas. A palavra final sobre o assunto certamente é dada pelo apóstolo Paulo, quando escreveu aos filipenses: Se alguém pensa que tem razões para confiar na carne, eu ainda mais: circuncidado no oitavo dia de vida, pertencente ao povo de Israel, à tribo de Benjamim, verdadeiro hebreu; quanto à lei, fariseu; quanto ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível. Mas, o que para mim era lucro, passei a considerar perda, por causa de Cristo. 69
Esse foi o testemunho de um judeu devoto que se tornou cristão, e seria difícil encontrar uma afirmação mais clara do porquê Israel e a igreja não são a mesma coisa em roupagem diferente. Jesus f u n d o u a i gr ej a ?
Não há dúvidas de que a igreja cristã se desenvolveu a partir da vida e ministério de Jesus, cujo ensino governa sua prática e cuja pessoa é o objeto de sua adoração. Os estudiosos discordam quanto ao porquê disso, e existe um abismo entre os que creem que Jesus ensinou os discípulos o que fazer após sua morte e ressurreição e aqueles para quem os primeiros cristãos juntaram os cacos do ministério fracassado de Jesus e relançaram seus ensinos (de forma bastante modificada)
como igreja cristã. Muitos observadores preferem o meio termo entre o que consideram dois extremos, mas, é inquestionável que o divisor fundamental está entre aqueles que veem a igreja como produto de uma revelação divina dada em e por meio de Jesus Cristo e os que acreditam que ela emergiu de fatores sociais complexos aglutinados ao seu redor. Seja como for, os oponentes concordam que a intensa concentração cristã em uma única pessoa era desconhecida no judaísmo e é rara entre as grandes religiões do mundo. Não islâmicos pensam erroneamente que o Islamismo concede posição semelhante ao profeta Maomé, entretanto os islâmicos explicam que Maomé não passa de um ser humano, e não é uma divindade. Os budistas, também, negam que Buda seja objeto de culto, embora seja venerado de um modo que espantaria os islâmicos se algo parecido acontecesse no Islamismo. Os hindus acreditam na possibilidade de encarnação divina, mas, não se concentram em um deus específico que se tornou humano com um propósito especial. Jesus é singular, pois foi o único que afirmou ser Deus e, portanto, merecedor da mais elevada forma de adoração conhecida pelos seres humanos. Mesmo não existindo dúvidas nessa área, muitas perguntas se levantam ao considerarmos como a igreja surgiu. Ela sempre esteve nos planos de Jesus? Ele estava procurando estabelecer uma igreja que preservasse sua memória e ensinos, ou ela apareceu acidentalmente após sua morte precoce? As respostas são complexas porque muitos estudiosos da atualidade apoiam a segunda perspectiva acima esboçada e, portanto, rejeitam o relato “ortodoxo” tradicional, seja no todo ou parcialmente. Acreditam que Jesus não teve a intenção de fundar nada, muito menos uma instituição que se transformou na igreja cristã que temos hoje. Em linhas gerais, acreditam que Jesus foi um profeta revolucionário que desafiou as autoridades de sua época e acabou sendo morto por elas. Muito decepcionados, seus seguidores se uniram e decidiram preservar sua memória naquilo que hoje chamamos de igreja. O que os motivou a apoiar um fracasso tão óbvio continua sendo um notável mistério sem resposta, e é nessa dúvida que essas teorias geralmente perdem qualquer credibilidade que porventura tenham. Alguns discípulos de Adolf Hitler o acompanharam até o sepulcro, mas, não além dele, e os
neonazistas de hoje não cultuam seu líder ou afirmam que ele continua vivo. Personagens mais meritórias como Mahatma Gandhi e Nelson Mandela são admirados no mundo inteiro, todavia não deixaram para trás grupos organizados de seguidores nem inspiraram religião nenhuma centralizada neles. É apenas em seitas como o Rastafarianismo nas ilhas do Caribe ou nos cultos à carga no sul do Pacífico que encontramos qualquer coisa remotamente parecida com as afirmações feitas a respeito de Jesus Cristo, mas, são tão obviamente falsas que ninguém, a não ser os próprios seguidores, as leva a sério. 70 Jesus é singular nesse aspecto, mas, por quê? Mesmo que aceitemos tudo que já foi afirmado sobre sua divindade e sua missão terrena, existe alguma evidência de que ele fundou uma igreja? E nesse caso, qual seria o significado da palavra “igreja”? Quem duvida que Jesus teve qualquer intenção de fundar uma igreja pode assinalar que a palavra ocorre apenas duas vezes em Mateus e nenhuma nos outros três evangelhos, em contraste nítido com a ideia de “reino”, que foi um dos temas principais do ensino de Jesus. No mínimo, isso sugere que o conceito de “igreja” foi, na melhor das hipóteses, secundário à missão de Jesus e talvez até fosse uma tentativa de readequar a ênfase de seu reino às limitações mais prosaicas (e também mais realistas) do mundo onde seus discípulos iriam ministrar. Aqueles que pressupõem (como é o caso de muitos comentaristas da atualidade) que a palavra “igreja” em Mateus certamente é interpolação posterior de algum escritor preocupado em tratar das questões de sua época, e não reflete o ensino de Jesus, firmam sua posição no fato de a palavra ser uma raridade, embora outras interpretações também sejam possíveis. Cabe perguntar, por exemplo, se Mateus desejava enfatizar a importância da igreja, por que ele faz apenas duas referências a ela, visto que apenas uma menção se relaciona com nosso assunto? Se a intenção de Mateus era confirmar a autoridade de Jesus sobre a insti70 Rastafarianismo
é uma seita dedicada à memória de Ras Tafari, que se tomou imperador da Etiópia com o nome de Haile Selassie I. Os cultos à carga da Melanésia adoram “deidades” como John Frum, aviador mítico americano, e até mesmo o Duque de Edinburgo. São grupos interessantes da perspectiva sociológica mas, teologicamente, são absurdos.
tuição cujas origens ele exaltava, por que então o escritor não salpicou seu evangelho com referências feitas por Jesus à “igreja”? Outra questão é que Jesus falava aramaico, e não grego; então, Mateus (ou sua fonte de informações) traduziu a palavra “igreja” de outro idioma. Infelizmente, só podemos especular sobre ela, e talvez haja duas palavras diferentes por trás dela. Um dos versículos em que Mateus se refere à “igreja” trata principalmente da disciplina aplicada ao irmão desobediente. De acordo com esse evangelho, Jesus disse aos seus discípulos: “Se ele [o irmão que errou] se recusar a ouvi-los, conte à igreja; e se ele se recusar a ouvir também a igreja, trate-o como pagão ou pubücano”. 71 Nesse caso Jesus podería ter usado muitas outras palavras que poderíam ser traduzidas como “comunidade”, “irmandade”, e assim por diante. Se a tradução “igreja” representa uma interpretação posterior, é difícil entender por que o escritor se referiu aos gentios (que já haveríam sido totalmente aceitos como membros da igreja) ou até aos publicanos, que não são retratados como vilões na literatura cristã subsequente. Não temos respostas a essas perguntas, mas, este texto é de menor importância em comparação a outro, que se tornou e continua sendo um dos mais controversos de toda a Bíblia. Ele é o ápice da confissão que Pedro fez de Jesus como o Messias e no qual Jesus afirma: “Você é Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do Hades não poderão vencê-la”. 72 Nos séculos posteriores essa afirmação, que segundo Mateus foi feita diretamente por Jesus, seria usada pela Igreja Católica como justificativa da primazia e supremacia jurisdicional da diocese de Roma, da qual supostamente Pedro foi o primeiro bispo. Essa interpretação, que hoje tem poucos ou nenhum defensor acadêmico, já causou todos os tipos de reação no decorrer da história, inclusive dos protestantes que atacam as ambições do papado moderno ao lhe negar autenticidade histórica. Esse tipo de polêmica dificulta a conclusão equilibrada sobre o versículo, contudo, podemos notar um fato importante. Jesus fala da “igreja” no singular, mas, de um modo que se refere claramente ao corpo 71
Mateus 18.17.
72
Mateus 16.18.
universal de cristãos e não somente a uma congregação. No restante do Novo Testamento, em geral, “igreja” é uma reunião específica de cristãos em um lugar determinado. Nesse sentido, a palavra é usada com frequência no plural. Há poucas ocorrências da palavra no singular, o que nos leva a concluir que se refere (pelo menos nesses casos) ao mundo cristão inteiro. Repetindo, é legítimo perguntarmos qual era o vocábulo aramaico original e se “igreja” é a sua melhor tradução. Sendo ou não, esse é o vocábulo que chegou até nós, e temos de procurar entendê-lo em seu contexto. O que podemos afirmar sobre esse versículo é que Jesus estava falando sobre o futuro. Não estava fazendo planos para o estabelecimento imediato da igreja, mas, pensando em algo que aconteceria mais tarde. Sabemos que “mais tarde” significa depois de sua morte e ressurreição e, nesse caso, Jesus construiu sua igreja à distância — não diretamente, e sim no e por meio do Espírito Santo, como Atos dos Apóstolos testifica. Essa interpretação é confirmada pelo conhecido discurso de despedida de Jesus em João 13-17, no qual ele diz aos discípulos que precisa ir embora mas, que depois de partir, enviará o Espírito Santo, que os guiará em toda verdade. E interessante que Jesus nunca mencionou o estabelecimento da igreja, contudo, é difícil imaginar que os primeiros leitores do quarto evangelho interpretassem suas palavras de outra maneira; afinal, eles conheciam o Pentecostes muito bem! Se essa interpretação for aceita, chamarmos Jesus de o “fundador” da igreja se torna em grande parte uma questão de definição. Como o homem Jesus de Nazaré, ele não criou (nem jamais disse ter criado) uma organização que pudesse ser chamada de “igreja”. Mas, como o Cristo ressurreto e glorificado que subiu aos céus, ele foi o fundador da igreja, pois foi nesse contexto que ele enviou o Espírito Santo para colocar seus planos em ação. Uma vez que o Jesus encarnado e o Cristo divino são a mesma e única pessoa, a questão tem de ser avaliada sob outro aspecto. O importante não é tanto se Jesus fundou a igreja, e sim quando e em que circunstâncias ele fez isso. Enquanto estava no mundo, Jesus não organizou um movimento evangelístico, contudo, treinou os discípulos na tarefa de pregar e batizar e, então, mandou-os trabalhar, e isso mostra que ele possuía
algum senso de organização, mesmo que fosse para um fim específico e temporário. O que aconteceu com as pessoas que foram batizadas pelos discípulos? Simplesmente desapareceram, como se o batismo não tivesse importância, ou foram a semente plantada, de modo que no derramamento do Espírito Santo no dia de Pentecostes estivessem prontas e desejosas de recebê-lo? O fato de Jesus ter deliberadamente escolhido discípulos — eles não eram simples admiradores atraídos por sua mensagem — mostra que ele tinha um propósito de longo termo em mente. Os próprios discípulos certamente acharam que sim, e brigaram entre si quanto ao lugar que receberíam no “reino” vindouro que Jesus planejava estabelecer.73 Poderíam estar completamente equivocados sobre os propósitos de Jesus, mas, pelo menos, sabiam que ele intencionava usá-los em alguma tarefa. As pessoas que negam que Jesus tinha o desejo de plantar uma igreja geralmente têm em mente a estrutura institucional que emergiría séculos depois. Até concordam que Jesus imaginava que sua mensagem ultrapassaria a sua morte, mas, não que se desenvolvería em um vasto movimento que em algumas de suas futuras manifestações se tornaria bastante secular e ficaria bem parecido com uma tirania espiritual. Certamente não era essa a intenção de Jesus! Embora, nesse aspecto, possamos concordar com os céticos, parece claro que a visão de Jesus era que sua mensagem chegasse até os confins da terra, uma visão que mais cedo ou mais tarde exigiría uma estrutura que poderiamos chamar de “igreja”. E impossível afirmar se o formato que essa estrutura acabou ganhando era o que Jesus tinha em mente e não teria feito nenhum sentido aos discípulos, que não poderíam imaginar um futuro tão distante. Entretanto, afirmar que Jesus jamais pensou em estabelecer igreja alguma é certamente ir longe demais. A evidência aponta para uma conclusão diferente, e temos de segui-la. Outro fator que tem influenciado as perspectivas atuais é o pendor do Catolicismo de ligar a encarnação de Cristo à igreja, que o apóstolo Paulo descreve como o “corpo” de Cristo. A imagem usada por Paulo é claramente simbólica em ICoríntios 12, por exemplo, que segue imediatamente o ensino sobre o partir do pão em adoração, descrito
detalhadamente no capítulo anterior. Essa ligação foi aproveitada pelos liturgistas que fizeram uma conveniente conexão entre o pão usado na Ceia do Senhor, a imagem do “corpo” de Cristo nas epístolas, e a ideia de que a igreja é de alguma forma a encarnação progressiva do Filho de Deus. Nessa leitura, a noção de que Jesus veio ao mundo e plantou a igreja aqui se torna mais plausível, e variações do tema podem ser encontradas na literatura devocional católica. A dificuldade com essa interpretação é que o Novo Testamento deixa claro que o corpo físico do Cristo ressurreto ascendeu ao céu, e não deixou nada — nem mesmo uma ou duas relíquias - para trás. A igreja como a conhecemos só passou a existir dez dias depois, quando o Espírito Santo desceu sobre os discípulos no Pentecostes. É verdade que Jesus previu esse acontecimento, e que antes de partir ele prometeu lhes enviar o Espírito Santo, mas, isso é diferente de ele ter permanecido aqui, ainda que de outra forma. Se esse é o modelo que um teólogo imagina quando pergunta se Jesus fundou a igreja, entendemos que a resposta será negativa. Jesus fundou a igreja, mas, o fez no e por meio do Espírito Santo e não porque deixou seu corpo aqui na terra. Se entendermos isso, não teremos dificuldade em aceitar que Jesus foi, sim, o fundador da comunidade que cultua em seu nome e propaga os seus ensinos.
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2
A igreja do Novo Testamento
DE DISCÍPULOS A APÓSTOLOS
Em geral, todos concordam que a igreja cristã teve início logo após a morte e ressurreição de Jesus, apesar de alguns céticos duvidarem de que os eventos em Atos dos Apóstolos tenham acontecido da maneira que o livro os descreve. Não existe evidência que apoie um relato alternativo, e não importa o que tenha realmente acontecido no dia de Pentecostes, a verdade é que havia uma igreja em Jerusalém alguns poucos anos depois da morte de Jesus. Cabe aos contestadores do relato tradicional da origem da igreja explicar como ela emergiu tão depressa assim. Que probabilidades existiam de um grupo de discípulos desanimados, espalhados e enfraquecidos pelos eventos da crucificação, juntar-se a um homem igual a Pedro e criar um movimento que em breve conquistaria um grande número de seguidores? Por mais extraordinários que sejam os acontecimentos relatados em Atos, qualquer cenário alternativo é ainda mais improvável. Os discípulos de Jesus fugiram ao perceber que, pelo jeito, seu mestre seria morto, e não há motivo para supormos que teriam se reunido novamente alguns dias mais tarde. Eles eram desconhecidos em Jerusalém, e não tinham razões para permanecerem na cidade; na verdade, os evangelhos dizem que eles voltaram para a Galileia, sua terra natal, assim que puderam. 1 Somente algo profundamente recompensador teria vencido o desejo natural deles de retornar à vida normal (como a entendiam), e esse algo foi a ressurreição física de Cristo de entre os mortos. Quando Mateus 28.7,10.
os discípulos se depararam com o Cristo ressuscitado, toda e qualquer dúvida desapareceu, e a partir de então eles abraçaram a missão de es palhar o evangelho que Cristo lhes confiou. Durante os quarenta dias que permaneceu na terra depois da ressurreição, Jesus relembrou aos discípulos tudo o que lhes havia ensinado e explicou-lhes o significado mais profundo de sua vida e morte. Jesus os comissionou para a missão futura e mandou que esperassem com paciência em Jerusalém até que o Espírito Santo viesse e desse-lhes poder para realizar a tarefa. 2 Eles seriam perseguidos, e muitos morreríam de forma violenta, mas, até onde sabemos, nenhum deles vacilou novamente, mesmo que, às vezes, isso fosse bastante convidativo. A transformação que tomou conta de Pedro e seus companheiros na esteira do Pentecostes é demonstrada pela maneira que eram vistos naquela época e continuam a ser vistos hoje. Resumindo, os homens que até então eram discípulos se tornaram apóstolos. De alunos que aprendiam aos pés de Jesus eles foram transformados em mensageiros enviados a proclamar o que haviam aprendido com o Mestre. Aqueles que apenas retinham os ensinos de Jesus começaram a ensinar outros, incumbidos de espalhar a palavra da salvação até os confins da terra. Foi uma transformação radical, e levou tempo para ser totalmente absorvida. Dos doze homens que Jesus escolheu, Judas Iscariotes, obviamente, estava fora de cena. Ele havia entregado Jesus aos inimigos, e quando seu gesto maligno o banhou em remorso, Judas se enforcou, e foi substituído como um dos Doze por Mafias, escolhido por sorteio, e de quem nada sabemos a não ser que havia estado com Jesus desde o início de seu ministério e também testemunhado a ressurreição, duas qualificações aparentemente essenciais a qualquer um escolhido para o cargo de apóstolo. 3 Nos relatos sobre o ministério terreno de Jesus, os discípulos Pedro, Tiago e João se destacam como o círculo mais íntimo. Acompanharam Jesus por todos os cantos e estavam com ele em momentos importantes, como a sua transfiguração. Os outros discípulos permaneceram mais à sombra, sendo que Tomé foi uma exceção parcial; ele duvidou inicial 2 3
Lucas 24.44-49; Atos 1.1-14. Veja também Mateus 28.19,20; João 21.15-23. Atos 1.15-26.
mente da ressurreição e só acreditou depois de colocar a mão nas feridas de Jesus. 4 No entanto, Jesus criticou Tomé por sua descrença, e essa é a última vez que o discípulo é mencionado no Novo Testamento. Mesmo assim, baseados na evidência que temos, podemos afirmar que todos os onze discípulos estavam em Jerusalém quando o Espírito Santo desceu sobre eles, e tudo nos leva a crer que participaram ativamente na obra de pregação e evangelização que lhes foi confiada. 5 Mas, temos pouca ou nenhuma evidência do que eles fizeram depois do dia de Pentecostes. Natanael e Mateus, por exemplo, caíram na obscuridade, embora o primeiro evangelho tenha sido atribuído a esse último. Talvez o Tiago autor de uma carta do Novo Testamento fosse o mesmo homem que acompanhou Pedro e João durante o ministério terreno de Jesus, mas, é duvidoso. Havia muitos Tiagos por ali, incluindo dois dos discípulos de Jesus, então é difícil saber quem é quem. 6 João, o “discípulo amado” também é conhecido pela coleção de escritos que lhe é atribuída, contudo, se ele escreveu o evangelho que leva seu nome, as três cartas e o Apocalipse, que juntos formam a literatura joanina, é incerto e bastante questionado, tanto na antiguidade quanto hoje em dia. Pedro é o único que, inequivocamente, liga os discípulos aos apóstolos.7 Sabemos mais a seu respeito como discípulo de Jesus do que sobre qualquer um dos outros, embora tenhamos de admitir que seu retrato não é dos mais elogiáveis. Não há como duvidar que o Pedro que negou a Jesus durante seu julgamento é a mesma pessoa que assumiu a liderança no dia de Pentecostes, e sua restauração à graça tem destaque no quarto evangelho, apesar de não ser mencionada nos outros três.8 E óbvio que Pedro foi o líder da igreja iniciante, embora sua autoridade não estivesse acima da autoridade de seus colegas disci4 João
20.24-29; 5 Atos 1.13; 2.4. 6 O candidato mais provável à autoria da carta é Tiago, o Justo, meio-irmão de Jesus e sucessor de Pedro como líder da igreja de Jerusalém, embora isso não passe de conjectura. Veja Atos 12.17; 15.13-21; 21.17-26. 7 Vej a M. Bockmuehl, Simon Peter in Scripture and Memory: The New Testament Apostle in the Early Church, (Grand Rapids: Baker Academic, 2012), para um levantamento recente de evidências a favor de Pedro e seu ministério. 8 João 21.15-19.
pulos transformados em apóstolos. Por exemplo, quando cometeu um erro, foi repreendido por seus colegas, e nada mostra que essa atitude tenha sido descabida. 9 Em relação à igreja de Jerusalém, Pedro era 10 11 Se Pedro era uma de suas colunas, como Paulo disse, e não a única. o líder, continuava sendo o primeiro entre iguais, e não um superior que comandava e esperava lealdade inquestionável de todos ao redor. Pedro nunca perdeu sua importância como figura central na igre ja, contudo, parece que acabou sendo ofuscado por Paulo e ficou em segundo plano. Sua produção literária foi modesta, não passando de duas cartas pequenas (embora a autenticidade da segunda seja bastante questionada). Talvez ele tenha sido o verdadeiro autor do segundo evangelho, que, de acordo com Papias, historiador da igreja que viveu no século 2, é um relato das memórias que Pedro ditou a Marcos. 11 Não se sabe ao certo onde e como ele morreu, apesar de o último capítulo do evangelho de João sugerir que foi crucificado (de cabeça para baixo, segundo a lenda), e uma antiga tradição fixar seu túmulo em Roma. 12 Além disso, nada mais pode ser afirmado com segurança. Importante é esclarecer isso porque uma das controvérsias mais antigas e espinhosas da igreja se refere a Pedro e à natureza da comissão que ele recebeu de Jesus. Teólogos argumentam sobre o sentido exato de Mateus 16.18: Jesus quis dizer que Pedro seria a pedra fundamental da igreja, ou que a comunidade cristã seria erguida em sua confissão de fé? Como já vimos, os estudiosos analisam a matéria de modos diferentes. Para eles a questão verdadeira é se Jesus chegou a dizer algo parecido com isso, e a maioria acredita que a frase foi um acréscimo posterior designado a reforçar a “primazia petrina” de Roma que gradualmente emergia na igreja primitiva. O que é possível afirmar sobre essa questão? 9
Gálatas 2.11-14. Contraste a disposição de Paulo em contestar a atitude de Pedro com o respeito que achava devido ao sumo sacerdote judeu (Atos 23.2-5). Ananias tinha uma posição que Pedro não tinha. 10 Tiago e João partilharam essa distinção com ele. Veja Gálatas 2.9. 11 Eusébio de Cesareia, Historia ecclesiastica 3.39.15. 12 Para a situação atual da opinião acadêmica, veja Bockmuehl, Simon Peter, 148-49, segundo o qual Pedro talve% esteja enterrado sob o Vaticano, mas, isso não pode ser considerado certo.
Primeiro, é certo que a igreja de Roma, mesmo que Pedro tenha sido seu primeiro “bispo”, não usufruiu o tipo de primazia no mundo cristão que, mais tarde, os papas reivindicariam, usando a confissão do apóstolo como justificativa. Sendo capital do império, Roma sem pre recebeu proeminência, e depois que o cristianismo se tornou a religião do estado foi-lhe concedido, entre as igrejas do mundo romano, superioridade à altura de antiga capital imperial, mas, nunca foi sugerido que seus bispos seriam árbitros da doutrina cristã. Nenhum dos antigos concílios formados para resolver conflitos doutrinários se reuniu em Roma, e nenhum de seus bispos jamais compareceu a um desses concílios. Existem bons argumentos para afirmar que no Concílio de Calcedônia, em 451 d.C., foi o
Tomo do
Papa Leão I, escrito
para a ocasião e enviado por mensageiros para ser lido à assembléia de representantes, que convenceu os bispos a aceitarem sua compreensão da pessoa e da natureza de Cristo. No entanto, se isso for mesmo verdade, os bispos foram convencidos pela força de seus argumentos, e não porque Leão I era o líder da diocese principal do cristianismo com o direito correspondente de determinar sua doutrina baseado em sua própria autoridade. A igreja de Roma é citada algumas vezes no Novo Testamento: na famosa epístola que Paulo lhe escreveu por volta do ano 57 d.C., nos capítulos finais de Atos, e provavelmente, na referência obscura à “Babilônia” encontrada em lPedro 5.13. Mas, a não ser por esta última referência, que é indistinta, não há evidência da presença de Pedro em Roma por ocasião do estabelecimento da primeira igreja cristã na cidade, e certamente não há indicação de que ele foi seu dirigente. Com respeito a isso, é particularmente relevante o fato de Paulo não mencionar Pedro nenhuma vez em sua carta à igreja de Roma, algo realmente estranho caso ele fosse o líder da referida igreja, especialmente porque Paulo envia saudações a um grande número de pessoas menos influentes. 13 Na verdade, os estudiosos estão cada vez mais convencidos que a igreja de Roma não teve líder até quase o final do século 2; hoje, a lista de papas aceita oficialmente é considerada pela maioria como lendária,
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na melhor das hipóteses. 14 O conceito de que o papa atual é sucessor de Pedro e tem direito a todas as honras e a todos os privilégios conferidos ao primeiro líder da igreja é um mito criado na Idade Média e canonizado no século 19 com a proclamação da infalibilidade papal em 1870. Esse conceito trouxe profundo impacto e continua sendo um fator importante na vida da igreja moderna, que não será uma entidade universal até que a questão da primazia petrina seja resolvida, mas, essa primazia continua sendo mito, e é difícil entender como o progresso verdadeiro rumo à união das igrejas será alcançado sem que e até que essa natureza mítica seja aceita por todos. A questão em relação a Pedro é apenas o exemplo extremo de algo que afeta o grupo inteiro de discípulos que se tornaram apóstolos. Á parte das lendas e tradições passadas adiante com maior ou menor veracidade, sabemos quase nada sobre qual apóstolo liderou quais igrejas. Será que João chegou a ser bispo de Esmirna ou de Efeso? Será que Marcos estabeleceu uma comunidade cristã em Alexandria, como se acreditou mais tarde? Será que Tomé foi para a índia, como diz a lenda? Não temos respostas a essas perguntas. O que podemos afirmar é que as primeiras igrejas cristãs não foram reuniões espontâneas de cristãos que formaram uma associação para assegurar e perpetuar suas convicções. Ao contrário, as igrejas foram fundadas pelos apóstolos ou por homens que agiram como seus representantes, como foi o caso de Tito em Creta. 15 Roma talvez seja uma exceção, porque era habitada por pessoas de todos os cantos do império, e é bastante provável que cristãos já morassem ali antes de qualquer apóstolo visitar a cidade. No entanto, se esse foi o caso, a exceção prova a regra, porque não sabemos de nenhuma outra igreja que tenha surgido mais ou menos espontaneamente. A plantação de igrejas cristãs pelo do mundo começou depois do Pentecostes e não teve muito a ver com o que aconteceu antes dele. Isso é especialmente relevante ao considerarmos o que aconteceu É preciso dizer que o termo “papa”, embora seja atualmente reservado no Ocidente para o bispo de Roma, podia ser aplicado na antiguidade ao líder de uma igreja local e seu uso ainda é comum no Oriente para designar qualquer pároco. 15 Tito 1.5. 14
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àqueles que aparecem nos evangelhos, mas, raramente ou nunca são mencionados na igreja primitiva. Jesus era amigo de Maria, Marta e Lázaro de Betânia, mas, eles se tornaram líderes da igreja? Não existe menção a isso. Pode-se dizer o mesmo de qualquer outro seguidor de Jesus, incluindo sua mãe, Maria. O que aconteceu às milhares de pessoas a quem Jesus pregou e ministrou? Não sabemos. Supomos que a maioria delas se uniu à igreja (a lei da probabilidade iria sugerir que pelo menos algumas se uniram), contudo, não há evidência que sustente tal suposição — tudo é especulação. Nada sugere que amigos ou parentes de Jesus usufruíam de privilégios por isso - muito ao contrário. 16 O assunto tem provocado grandes debates na igreja contemporânea, pois os defensores da ordenação de mulheres apontam para Jesus como aquele que as tratou com deferência especial. Foi sugerido até que Maria Madalena era uma apóstola superior a Pedro e João, em certo sentido, porque o Cristo ressurreto apareceu primeiramente a ela e mandou que ela desse a boa notícia aos discípulos. Nesse caso, os fatos básicos são inquestionáveis, porém, não são motivos para supormos que deram a Maria posição de destaque na igreja. Não existem evidências de que ela tenha sequer exercido algum tipo de ministério apostólico, e, até bem recentemente, isso nunca foi sugerido. Infelizmente, afirmações dessa natureza têm de ser consideradas argumentos excepcionais no interesse das políticas da igreja contemporânea, e não são evidências comprobatórias. Outro exemplo desse tipo de abuso vem de Romanos 16. Quando Paulo escreveu à igreja de Roma, ele mencionou Andrônico e Júnias, seus parentes e companheiros de prisão (como os descreve) que eram bastante conhecidos dos apóstolos e tornaram-se cristãos antes de Paulo. 17 Contudo isso não lhes conferiu posição de liderança na igreja; provavelmente tiveram de ouvir a pregação de Paulo e aceitar sua autoridade juntamente com as pessoas a quem ele escreveu. A ideia de que hoje a mulher pode ser ordenada pastora porque Júnias era apóstola é uma interpretação injustificada da evidência, propagada por quem deseja nisso acreditar e não por quem foi convencido unicamente pelos fatos. 16 Veja
Mateus 12.46-50.
Quanto aos outros apóstolos e as igrejas que fundaram, sabemos tão pouco sobre eles que é impossível chegar a conclusões definitivas. Existe hoje uma crença generalizada de que havia um grupo joanino de igrejas com sede em Efeso, completamente independente da missão paulina, mas, que acabou se juntando a ela depois. Alguns acreditam que existia uma comunidade seguidora de Mateus em Antioquia à qual foi endereçado o primeiro evangelho. A verdade, porém, é que não existe evidência que comprove essas teorias. Sabemos que Paulo não queria pregar o evangelho onde alguém já tivesse feito isso; a decisão de Paulo revela que, se existissem na mesma cidade (Éfeso?) um grupo paulino e um joanino, é provável que o paulino tenha chegado ali primeiro. 18 Sabemos também que Paulo se opunha profundamente às rivalidades baseadas em adesões a certos apóstolos e mestres, pois, ele insistiu em dizer que existia somente uma cabeça da igreja — Jesus Cristo. 19 Também, a experiência mostra que as divisões acabam se tornando mais amplas e profundas com o tempo. Não temos mostras de que grupos rivais fizeram as pazes e se uniram tão completamente que as gerações posteriores nem mesmo sonharam que existiram desavenças entre eles. A lei da probabilidade pesa contra essas teorias, porém elas continuam firmemente enraizadas em estudos do Novo Testamento e têm-se provado difíceis de ser removidas. Talvez a melhor conclusão aqui seja aceitar que nossa ignorância quanto ao trabalho dos apóstolos é tal que não devemos tê-los como exemplos de autoridade para a igreja contemporânea. Eles fizeram o que fizeram, mas, não temos de seguir seus padrões, que pouco conhecemos e com os quais não temos experiência alguma. Dito isso, a igreja sempre reivindicou ter sido construída nos fundamentos dos profetas e dos apóstolos. 20 Tradicionalmente, o apostolado é uma de suas características, e Paulo se sentiu obrigado a defender suas qualificações para ser apóstolo. Parece que mestres rivais reivindicavam esse título, homens a quem os autores do Novo Testamento se referem 18 19 20
2Coríntios 10.16.
ICoríntios 1.10-17.
Efésios 2.20.
apenas como “falsos apóstolos”. 21 Qual é o significado de apostolado, onde (ou em quem) se encontra e como reconhecê-lo? Na defesa que Paulo faz de seu ministério apostólico, descobrimos que havia dois critérios essenciais para alguém ser apóstolo: tinha de ser chamado por Deus e ter conhecido pessoalmente o Cristo ressuscitado. Muitas pessoas, talvez cerca de seiscentas, viram Jesus após sua ressurreição, mas, não se tornaram apóstolos. 22 Portanto, não bastava ter visto Jesus depois de sua ressurreição de entre os mortos. Era também necessário ter sido chamado para esse ministério, que foi dado somente àqueles que preenchiam o outro critério. Paulo sabia que era uma exceção, pois não foi discípulo de Jesus e até perseguiu a igreja antes de se converter, contudo, atribuía seu chamado apostólico a um favor especial da graça de Deus que ele não merecia, e que não foi dado a mais ninguém. 23 Seguindo essa lógica, os apóstolos e seus ministérios desapareceram na primeira geração, e, portanto, não pode haver nenhum hoje em dia, embora o papado e alguns pequenos grupos protestantes afirmem preservar o cargo em diversas formas. Para os católicos, o papa é sucessor de Pedro, com todas as prerrogativas de seu ministério apostólico, e alguns pastores protestantes já reivindicaram o título, mas, essa mentalidade era estranha à igreja primitiva. Paulo instruiu Timóteo e Tito sobre a continuação de seu ministério depois que ele morresse, mas, não afirmou que os dois se tornariam apóstolos em seu lugar, e também não há evidências de sucessão apostólica em nenhum outro texto bíblico. No entanto, o desaparecimento dos apóstolos e de seus ministérios não significa que o apostolado deixou de ser relevante à vida da igreja. Os apóstolos tinham a responsabilidade de transmitir o ensino de Jesus a outros cristãos, não somente porque testemunharam o início de seu ministério aqui na terra, mas, porque o Mestre lhes deu essa ordem, após a ressurreição. 24 Enquanto os apóstolos estivessem vivos, as igrejas 21 2Coríntios
11.13. Veja também 2Pedro 2.1, que fala sobre “falsos mestres” e “falsos profetas”. 22 Veja ICoríntios 15.5-8. 23 Veja ICoríntios 15.8-11; 2Coríntios 11.1-33; Gálatas 1.11-17. 24 Mateus 28.19,20.
poderíam se orientar com eles, como os coríntios fizeram ao escrever a Paulo sobre as várias questões que perturbavam aquela igreja. Depois da morte dos apóstolos, seus escritos, juntamente com os escritos de outros que trabalharam ao lado deles e, de certa forma, debaixo de sua supervisão, foram reunidos no que se tornou o Novo Testamento. Na prática, a autoridade dos apóstolos hoje é o testemunho do Novo Testamento, que permanece fundamental à doutrina cristã. Obviamente, nem tudo o que aconteceu na igreja primitiva foi registrado para o nosso conhecimento — o evangelho de João é claro sobre isso.25 Porém, o que não foi escrito não tem autoridade para nós hoje porque sua apostolicidade não pode ser comprovada. Por exemplo, a antiga tradição marca o novo cristão com o sinal da cruz quando ele é batizado, e essa prática pode ter sido iniciada pelos apóstolos. Ninguém duvida de sua antiguidade e não há nada errado com a prática, mas, não podemos lhe conferir a mesma autoridade de algo registrado nas Escrituras. Concordamos em que em alguns casos é difícil discernir o que o Novo Testamento estabelece como regra. Por exemplo, em lCoríntios 11 Paulo explica em detalhes a realização da Ceia, mas, não diz quem deveria presidi-la. Alguém seria o responsável, e a lógica sugere que essa pessoa era o líder da igreja. Mas, não podemos afirmar que ele presidia a celebração, e muito menos que era o único com permissão para isso. Tal costume, por mais natural que nos pareça hoje, veio mais tarde e, portanto, não usufrui da autoridade que acompanha as palavras inaugurais do rito, que são encontradas no texto bíblico. Ou seja, a doutrina e os elementos da Ceia do Senhor são bem claros na Bíblia, contudo, a identidade de seu presidente (ou celebrante) não é determinada. As igrejas locais decidem o que fazer, mas, seja qual for a solução adotada, não podem afirmar que ela tem a mesma validade bíblica da cerimônia propriamente dita. Se analisarmos o Novo Testamento, veremos que seus livros estão, de certa maneira, associados a Pedro e João (entre os discípulos de Jesus) ou a Paulo. A divisão é a seguinte:
25João
21.25.
Pedr o
Jo ã o
Pa u l o
IP e d r
Jo ã o
13 CARTAS ASSINADAS
2PEDRO
1J0ÃO
Lu c a s
Ma r c o s
2 Jo ã o
At o s
(J u da s )
3 Jo ã o
(H ebr
o
IH/Ia t eu s )
eu eu s )
A po c a l ips e
(T ia g o )
Os teólogos discordam sobre a autoria de alguns desses livros, mas, seus argumentos são especulativos e secundários ao entendimento que a igreja tem de suas tradições. Na hora de decidir que livros seriam incluidos no cânone do Novo Testamento, o padrão acima prevaleceu e foi o que herdamos. Somente três livros, dois extremamente importantes, não se encaixam facilmente na divisão acima. Mateus não tem conexão óbvia com Pedro, mas, como parece ser uma elaboração de Marcos, e faz referências a Pedro não encontradas em outros textos, é muito natural que se junte a ele. Judas era irmão de Tiago, e estudos atuais apresentam ligações suas com 2Pedro. O autor de Hebreus é desconhecido, e mesmo na antiguidade se especulava muito sobre quem seria ele. Apoio é o mais cotado, mas, seja quem for, seu relacionamento com o círculo paulino, de onde a carta provavelmente surgiu, é bastante óbvio. 26 Isso é tão plausível que mais tarde Paulo foi considerado o autor da carta, embora essa hipótese não seja tão bem aceita hoje em dia. O cânone levou tempo para ser formado, e houve debates sobre alguns livros, mas, embora alguns teólogos valorizem demais isso, a hesitação deles talvez seja bastante exagerada. O que sabemos de fato é que uma parte substancial dos livros foi aceita universalmente como canônica. As diferenças de opinião ficaram restritas a um pequeno grupo reconhecido de cartas (as quatro Epístolas católicas menores, ou Gerais) ou a livros cuja autoria era desconhecida ou polêmica (Hebreus, 26
Veja G. L. Cockerill, The Epistle to the Hebrews (Grand Rapids: Eerdmans, 2012), p. 6-10, para uma recente avaliação sobre sua autoria, que favorece Apoio.
Apocalipse).27 A falta de evidências nos leva a afirmar que livros não integrantes do presente cânon nunca foram aceitos como fidedignos por qualquer número expressivo de cristãos. Mesmo uma obra como O pastor de Hermas, embora anexada a códices importantes do Novo
Testamento, jamais alcançou posição canônica na igreja. Quem quer que Hermas fosse, apóstolo ele não foi, nem foi intimamente ligado a um deles, então, seu livro, por mais popular e útil que tenha sido, foi sumariamente rejeitado. Um aspecto capcioso do apostolado é não sabermos claramente se ele era uma dádiva conferida a indivíduos que poderíam exercê-lo por conta própria ou algo a ser praticado apenas coletivamente. Temos certeza de que havia pelo menos doze apóstolos, mas, eles tinham de agir em conjunto para que suas decisões fossem válidas? E se um apóstolo discordasse do outro? Nada comprova que logo no início da igreja os apóstolos discordavam uns dos outros, e temos a impressão que trabalhavam de comum acordo, mesmo que, em geral, Pedro fosse o porta-voz do grupo. Mais tarde, Paulo foi trabalhar sozinho e achou desnecessário prestar conta aos outros apóstolos, porque, como explicou aos gálatas, não havia sido comissionado por eles, e sim pelo próprio Deus. 28 Sua independência era tanta que ele escreveu até mesmo a igrejas que não havia fundado ou visitado, sendo Roma o exemplo mais conhecido. Paulo certamente achava que seus conselhos eram apropriados e seriam ouvidos, mesmo que ele não conhecesse pessoalmente a igreja à qual escrevia. A única ocasião em que os apóstolos se reuniram para resolver um problema é a registrada em Atos 15, quando determinaram que os gentios convertidos poderíam ser membros ativos da igreja. Nesse caso, a decisão coletiva que permitiu algumas concessões para apaziguar as consciências judaicas mais sensíveis; na questão principal, entretanto, a insistência de Paulo em admitir gentios foi ratificada, e sua repreensão ao comportamento antigentílico de Pedro em Antioquia foi respeitada (veja Gálatas 2.11-14). O consenso prevaleceu, e o assunto nunca mais 27 A
autoridade clássica neste assunto é B. M. Metzger, The Canon of the New Testament. Its Its Orig Origin in,, Deve Devellopme opment nt,, and and Sign Signif ific ican ance ce (Oxford: Oxford University Press, 1987).
dividiu a igreja, embora possamos afirmar que as concessões feitas às sensibilidades judaicas não foram amplamente aplicadas e desapareceram rapidamente. A única maneira de aplicarmos consistentemente a unidade apostólica à igreja contemporânea é buscando o ensino comum do Novo Testamento. Se nossa interpretação de um texto entrar em conflito com outro texto, estaremos desunindo o testemunho apostólico e criando divisão onde não deve existir divisão nenhuma. Se isso acontecer, devemos concluir que nos equivocamos na interpretação do texto ou estamos aplicando-o de forma errada, e, então, corrigir nossa posição. A ORGANIZAÇÃO DA IGREJA
A organização da igreja está ligada à questão do apostolado, porém é ainda mais controvertida. Como funcionavam as primeiras igrejas cristãs? Eram independentes umas das outras, ou faziam parte de uma estrutura maior à qual deveríam se moldar em questões doutrinárias, se não sempre em questões litúrgicas ou práticas pastorais? Durante mais de mil anos, essas questões raramente foram abordadas (se é que foram); aceitava-se de olhos fechados que a igreja medieval era descendente direta e legítima da igreja do Novo Testamento. Pintores da época prontamente vestiam os apóstolos em trajes medievais ou retratavam Pedro como se ele fosse o papa que conheciam. O senso de desenvolvimento histórico era bastante tênue, e em grande parte restrito à expansão da obra cristã. Mesmo assim, os horizontes eram limitados. Os britânicos, por exemplo, acreditavam que o evangelho chegou até eles por intermédio de José de Arimateia, logo após a ressurreição de Cristo e, portanto, eles ouviram as boas notícias praticamente ao mesmo tempo em que os países mencionados no Novo Testamento. Assim, a igreja medieval da Inglaterra reivindicava ligação direta com os apóstolos e igualdade com as igrejas antigas do mundo mediterrâneo. Foi somente durante a Reforma do século 16 que essa indiferença à história foi desafiada, parcialmente porque os protestantes não aceitavam as reivindicações feitas pelo papado romano e parcialmente porque, ao estudar o que o Novo Testamento ensinava sobre o governo da igreja, perceberam que ele era bem diferente do sistema que conhe
ciam. No entanto, atribuíram as mudanças não aos desenvolvimentos naturais ocorridos ao longo do tempo, mas, à corrupção de influências externas e ao pecado da humanidade. Acreditavam que se essas coisas fossem removidas, teriam a restauração de uma igreja pura, que refletiría o modelo do Novo Testamento. Infelizmente, na tentativa de recuperar esse ideal perdido, diversos grupos chegaram a conclusões bem diferentes a respeito da essência estrutural da igreja. Isso fez com que as igrejas protestantes ficassem para sempre divididas em campos diferentes (e geralmente hostis) que se transformaram em “tradições” denominacionais distintas que são, muitas vezes, mais difíceis de ser superadas do que as corrupções que tentavam combater no início. Como é possível que grupos igualmente comprometidos com a evidência bíblica tenham chegado a conclusões tão radicalmente opostas e aparentemente incompatíveis? As respostas são diversas, mas, todas baseadas em um fato importante: as evidências oferecidas pelo Novo Testamento não apresentam detalhes suficientes para recriarmos uma igreja tão autenticamente “bíblica” a ponto de excluir qualquer alternativa. Possivelmente isso levou à organização de igrejas que seguiam práticas diferentes, contudo, as poucas informações não nos permitem compará-las. Também, pode ser que muitas igrejas não tivessem uma estrutura fixa e operassem de acordo com as necessidades do momento, sem entender que havia apenas um modo correto de fazer as coisas. Comentaristas modernos acreditam na existência de grupos diferentes (rivais?) que funcionavam de maneira independente e sem interação mútua. A raiz do problema que enfrentamos ao tentar avaliar as evidências é que o Novo Testamento não oferece um esboço detalhado da organização estrutural da igreja, seja ela qual for. Não sabemos como os cristãos de Corinto, por exemplo, organizavam sua comunidade, e a igreja de Corinto é uma das mais bem documentadas do Novo Testamento. Paulo diz que “alguns da casa de Cloe” o informaram sobre as divisões na referida igreja, mas, quem eram essas pessoas? 29 É bem provável que igual a Lídia ou Priscila e Áquila, Cloe abrisse sua casa para 29
ICoríntios 1.11.
reuniões de cristãos, mas, que conclusão tiramos disso? 30 Os da casa de Cloe, fossem quem fossem, não estavam separados dos outros cristãos de Corinto, pois, se estivessem, não iriam se importar com divisões na igreja que não afetavam suas vidas. É bem provável que participassem de uma rede mais ampla de trabalho, contudo, não sabemos onde era a sua base nem quem a liderava. Paulo não diz para quem suas cartas foram escritas, mas, obviamente o destinatário era alguém digno de sua confiança e que faria bom uso de suas missivas. No caso da igreja de Corinto, Paulo diz que três de seus membros — Estéfanas, Fortunate e Acaico - estavam visitando-o em Éfeso naquela oportunidade, e possivelmente também se hospedavam com Priscila e Áquila (que haviam se mudado de Corinto para Éfeso), em cuja casa se reunia uma igreja, e que Estéfanas foi o primeiro a se converter em Acaia.31 Podemos supor que os três visitantes levaram a carta de Paulo quando voltaram para casa, mas, não fazemos a mínima ideia dos cargos que ocupavam na igreja, se é que ocupavam algum cargo. Quanto às outras igrejas, incluindo a de Roma, não sabemos praticamente nada. Imaginamos que a Carta de Paulo aos Romanos chegou a eles pelas mãos de Febe, descrita como diaconisa da igreja de Cencreia (um dos portos de Corinto), mas, a quem ela entregou a carta? 32 Priscila e Áquila são mencionados novamente, dessa vez na cidade de onde foram expulsos em 49 d.C., e talvez tenham sido os primeiros contatos de Paulo naquele lugar. 33 Mas, até onde sabemos, nem eles nem ninguém mencionado por Paulo no último capítulo de sua carta exerciam posição de autoridade na igreja de Roma, e não há indicação de que Paulo reconhecesse qualquer escalão de autoridade. Todavia o conteúdo da carta sugere a existência de uma organização ativa com a qual Paulo desejava se conectar para fazer de Roma uma base para a evangeüzação da Espanha. O apóstolo também sabia da tensão existente na igreja entre judeus e gentios, mas, que não chegaram a se dividir de 30 Para
saber mais sobre Lídia, leia Atos 16.40, e sobre Priscila e Áquila, leia lCoríntios 16.19. 31 ICoríntios 16.15-19. 32 Romanos 16.1,2. 33Romanos 16.3,4; Atos 18.2.
fato. O que impediu judeus e gentios de seguirem caminhos separados? Será que havia uma liderança que os mantinha unidos apesar de suas diferenças, liderança que Paulo tentava encorajar? Não sabemos. A carta de Paulo evidencia a existência de uma grande comunidade cristã na capital do império, mas, é só. E possível que em Roma, assim como em outras cidades, houvesse alguém que coordenasse as reuniões da igreja, contudo, não sabemos quem era essa pessoa e o que ela fazia. Como a maioria das primeiras igrejas se reunia em casas, seria natural que o dono ou dona da casa organizasse os cultos, mas, desconhecemos que tipo de autoridade eles exerciam. Essa é uma questão importante para nós hoje, porque sabemos que o chefe da casa poderia ser uma mulher, como era o caso de Lídia e Cloe. Isso, então, significa que a igreja local estaria sob liderança feminina, ou essas mulheres simplesmente ofereceram suas casas para as reuniões das igrejas? Não sabemos. O Novo Testamento diz que, no início, os apóstolos lideravam a igreja de Jerusalém. Pregavam e administravam o seu dia a dia. No entanto, logo a igreja teve de cuidar dos pobres, dos idosos, das viúvas, e de outras pessoas com necessidades sociais que faziam parte de seu rol de membros. Os apóstolos descobriram que não podiam se ocupar dessa tarefa e pregar o evangelho ao mesmo tempo; assim, quando começaram a surgir reclamações sobre a má distribuição de mantimentos, eles resolveram dividir suas responsabilidades e pediram aos membros da igreja que escolhessem “sete homens de bom testemunho” para serem diakonoi (diáconos ou ministros) e cuidarem dessas necessidades administrativas e sociais. Depois que os
diakonoi
foram escolhidos, os apóstolos lhes impu-
seram as mãos em uma cerimônia equivalente ao que chamamos hoje de “ordenação”. 34 Embora tenham sido indicados para uma tarefa es pecífica, as linhas divisórias entre eles e os apóstolos eram muitas vezes indistintas. Por exemplo, Estêvão, o primeiro mártir cristão, anunciava o evangelho apesar de ser diácono, e o mesmo era verdade quanto a
34
Atos 6.6.
Filipe.35 Por outro lado, Paulo usou muito de seu tempo coordenando um trabalho de socorro humanitário aos cristãos pobres da Judeia, uma tarefa que teoricamente era dos diakonoi, supondo que o modelo de Jerusalém tenha sido copiado por outras igrejas, o que não sabemos. 36 Portanto, qualquer evidência bem definida de ministério diaconal é ambígua e inconclusiva, e as distinções rígidas e inflexíveis feitas mais tarde certamente foram desconhecidas da primeira geração de cristãos. Há muito se entende que as primeiras igrejas tinham anciãos (presbyteroí ), que exerciam liderança coletiva sobre elas e que esse sistema de governo foi copiado da sinagoga. E possível pensar dessa forma, contudo, a evidência de que as sinagogas possuíam liderança comparável à do cristianismo é insatisfatória. Sem dúvida, as pessoas mais velhas eram respeitadas e ouvidas na sinagoga, e provavelmente influenciavam muito nas decisões, mas, não tinham cargo oficial. 37 Por outro lado, existiam em Jerusalém líderes religiosos que trabalhavam com os sacerdotes, embora não se saiba exatamente o que realizavam. 38 É óbvio que faziam parte da estrutura judaica e não eram sacerdotes nem escribas, então, supomos que exerciam cargo judicial e administrativo, conclusão que se encaixa nos contextos em que são mencionados. E impossível afirmar se serviram de modelo para a igreja primitiva, embora a existência deles mostre que os primeiros cristãos não se surpreenderíam com a presença de líderes semelhantes na igreja. No entanto, ninguém sabe quem instituiu esses líderes e em que circunstâncias. A primeira menção de presbíteros na Bíblia ocorre em uma campanha contra a fome. O profeta Agabo foi a Antioquia relatar aos cristãos dali o sofrimento dos irmãos em Jerusalém, e em resposta ao seu apelo, 35 Os
dois foram escolhidos ao mesmo tempo; veja Atos 6.5.0 ministério de Estêvão
é mencionado em Atos 6.8, e o de Filipe, em Atos 8.26-40. 36 2Coríntios 9.1-15. 37 Para saber a natureza da evidência, veja R. Beckwith, Elders in Every City: The Origin and Role of the Ordained Ministry (Carlisle: Paternoster, 2003), p. 28-41. O conceito de um presbitério judaico como protótipo de seu equivalente cristão foi recentemente estudado e totalmente rejeitado por A. C. Stewart, The Original Bishops: Office and Order in the First Christian Communities (Grand Rapids: Baker Academic, 2014), p. 121-34. 38 Atos 4.5. 8.23; 6.12:23.14:24.1: 25.15.
esses mandaram ajuda aos presbíteros da comunidade afligida. 39 O contexto nos leva a supor que esses presbíteros eram as pessoas certas para receber as ofertas, levando-nos a pensar que exerciam papel administrativo não muito diferente do exercido pelos diáconos, mas, isso é tudo o que sabemos a respeito deles. Os presbíteros são mencionados novamente durante a primeira viagem de Paulo à Galácia. Depois de plantar igrejas em Antioquia, Icônio e Listra, Paulo e Barnabé refizeram seus passos, encorajando os novos convertidos e indicando-lhes “presbíteros em cada igreja”. 40 Nada sugere que isso foi novidade, e não sabemos quem eram esses presbíteros nem o que faziam. Pelo jeito, a educação teológica desses homens era bastante rudimentar, pois tão logo Paulo se foi, as igrejas da Galácia começaram a seguir os judaizantes que apareceram ensinando que para serem cristãos de verdade, deveríam ser circuncidados e guardar a lei de Moisés. 41 Outros versículos de Atos deixam claro que a indicação de pres bíteros na Galácia não foi um acontecimento único. Depois de Paulo ter ido a Jerusalém resolver os problemas, levantados pela missão à Galácia, lemos que as decisões tomadas deveríam ser comunicadas às igrejas por homens escolhidos pelos apóstolos e pelos presbíteros, assim como pela igreja toda de Jerusalém. 42 Não sabemos qual era a tarefa dos presbíteros, mas, pela menção que lhes é feita, parece que tinham papel especial na igreja. Não eram apóstolos nem diáconos, contudo, exerciam autoridade associada à dos apóstolos e aparentemente igual à deles. Certamente, quando as cartas foram entregues, ficou esclarecido que foram enviadas pelos apóstolos e presbíteros em Jerusalém, esclarecimento que acrescentou autoridade às decisões nelas contidas. 43 Também sabemos o que aconteceu quando Paulo parou em Mileto, a caminho de Jerusalém. Enquanto esperava o navio zarpar, Paulo mandou um recado a Efeso, pedindo que os presbíteros da igreja fossem 39Atos
11.30.
40Atos
14.23.
41 Gálatas
1.6,7.
42Atos
15.22.
43Atos
16.4.
se encontrar com ele, no que foi prontamente atendido. 44 A explicação de Tiago sobre a unção dos doentes realizada pelos presbíteros deixa claro que eles exerciam papel espiritual na igreja. 45 Quem eram esses presbíteros? Seriam simplesmente pessoas mais antigas na igreja, sem autoridade formal, cujas perspectivas, no entanto, eram aceitas com o respeito normalmente dispensados aos mais velhos na sociedade judaica? Ou eram líderes idôneos escolhidos ou indicados (como e por quem?) para conduzir a igreja? Provavelmente, era uma combinação das duas coisas. Para os apóstolos era perfeitamente natural conceder reconhecimento formal a pessoas cuja senioridade já despertava o respeito alheio, embora seja improvável que a idade fosse o único critério para o cargo de liderança. Paulo comissionou Timóteo a um cargo que lhe deu autoridade sobre os mais velhos, apesar de sua evidente juventude, mesmo sabendo que isso podería causar problemas, em algumas circunstâncias. 46 As Cartas Pastorais deixam claro que as igrejas devem ter presbíteros, embora teólogos contemporâneos tomem isso como evidência de que são de época pós-apostólica. Paulo enviou Tito a Creta com a missão de indicar presbíteros em cada cidade, embora, novamente, a ordem levante tanto perguntas quanto respostas. 47 Tito deveria indicar um presbítero para cada igreja? Como foi o processo de escolha? A igreja de Jerusalém havia eleito seus primeiros diáconos, mas, parece que isso não aconteceu em Creta, embora o critério de escolha dos candidatos tenha sido semelhante. Os diáconos de Jerusalém deveríam ser homens de boa reputação, e as Cartas Pastorais explicam claramente o que isso significava. 48 O presbítero deveria ser irrepreensível, ou seja, monógamo, cujos filhos fossem cristãos e jamais acusados de rebeldia. Deveria ser humilde, comedido, sóbrio, pacífico e generoso. Era essencial que fosse hospitaleiro e disciplinado. Mais importante, deveria 44Atos
20.17. 45 Tiago 5.14. 46 ITimóteo 4.12. Problema semelhante apareceu mais tarde na igreja da Magnésia. Veja Ignácio de Antioquia, AdMagnésios 3. 47 Tito 1.5. 48 Tito 1.5-9. Veja também ITimóteo 3.1-7, que apresenta essencialmente as mesma qualificações para o “bispo” ( episkopos).
ser apto a ensinar a sã doutrina e repreender quem a rejeitasse. Era um requisito e tanto, porque exigia conhecimento de ensinos cristãos que poucos aldeões possuíam. Paulo estava sendo realista ao esperar que Tito encontrasse tais homens? Dadas as circunstâncias, ele teria se saído muito bem, caso encontrasse apenas um desses homens em cada igreja, e possivelmente, muitas vezes, Tito não teve outra saída a não ser nomear quem estivesse disponível. Nas cidades menores, es pecialmente, alguém pode ter sido posto na liderança da igreja não por méritos próprios e sim por necessidade. Não há como saber. Da perspectiva histórica, a questão mais importante sobre os pres bíteros é se (ou até que ponto) eles também eram “bispos” ( episkopoi). Durante séculos acreditou-se que os episkopoi do Novo Testamento eram idênticos aos bispos que vieram mais tarde e que os presbíteros ( presbyteroi) pertenciam a uma ordem menor. Essa interpretação foi contestada na época da Reforma, porque os termos pareciam intercambiáveis. Ao comentar Tito 1.7, João Calvino escreveu: Esse versículo mostra claramente que não há diferença entre presbítero e bispo, pois o apóstolo [Paulo] aplica abertamente o segundo título àqueles a quem havia chamado formalmente de presbíteros, e ao discutir o assunto, Paulo uso os dois títulos indiscriminadamente com o mesmo significado, como Jerônimo também observou em seu comentário sobre o versículo. 49
Essa perspectiva se tornou um distintivo do sistema presbiteriano e foi rejeitada pelos tradicionalistas que preferiram uma estrutura eclesiástica episcopal, contudo, no século 19, a observação de Calvino foi confirmada pelo estudioso anglicano (e mais tarde bispo) J. B. Lightfoot, pois havia se tornado a ortodoxia acadêmica estabelecida. 50 Para Lightfoot, o presbitério e o episcopado se tornaram ofícios distintos bem mais tarde, quando os presbíteros escolheram um dos seus para 49 J.
Calvino, Commentary on Tttus, trad. T. A. Smail, D. W Torrance e T. F. Torrance (Orgs.), (Edinburgh: Oliver & Boyd, 1964), p. 359. Calvino simplesmente repetiu uma observação feita por Jerônimo, mas, que foi ignorada por mais de um milênio. 50 J. B. Lightfoot, The Christian Ministry (Londres: Macmillan, 1901), reimpressão de um folheto que originalmente foi parte de seu comentário sobre Filipenses, publicado em 1868.
liderá-los. Outro cenário foi apresentado por K. E. Kirk, para quem os presbíteros derivaram dos apóstolos e bispos, que os escolheram como auxiliares. 51 Uma terceira possibilidade, apresentada recentemente por Alistair Stewart, afirma que no início cada igreja tinha um episkopos e que esses episkopoi reuniam-se para eleger um presbyteros para liderá-los.52 Isso explica por que João se intitulou o “Ancião” (ARC), ou seja, presbyteros, quando sua tarefa claramente ultrapassava as fronteiras de uma única igreja.53 A terminologia só foi revertida bem mais tarde, e presbyteroi se tornou o termo para se fererir a bispos que cuidavam do episkopoiloc- , que passaram a ser chamados de presbyteroi. Essa conclusão parece im provável e apoia-se em argumentos firmados em exceções, mas, o fato de até mesmo ser apresentada mostra como é difícil entender a lógica das informações a nosso dispor. O conceito de Lightfoot foi desafiado e modificado até certo ponto, mas, nunca rejeitado. Se a igreja do Novo Testamento fazia diferença entre anciãos e bispos, talvez fosse porque uma igreja em particular tinha vários presbyteroi, porém não mais de um episkopos, cujas responsabilidades
de
supervisão
provavelmente
requeriam
apenas
uma pessoa no comando. E possível que esse episkopos também fosse presbyteros, mas, não há como confirmar tal coisa, e pode ter havido
exceções. Certamente não há qualquer evidência de que o episkopos era superior ao presbyteros·, suas responsabilidades se sobrepunham, e, até onde sabemos, trabalhavam juntos. Por outro lado, tudo indica que os apóstolos se identificavam mais facilmente com os presbyteroi do que com quaisquer outros. João não foi o único a se designar presbítero; Pedro também o fez. 54 Enquanto os apóstolos estavam vivos, era desnecessário definir em detalhes outros ministérios, mas, depois que morreram, alguém tinha de assumir a liderança da igreja. E provável que, então, os episkopoi ocuparam os lugares dos apóstolos tanto quanto lhes foi possível e representaram os interesses da igreja em diferentes 51 K.
E. Kirk, The Apostolic Ministry (Londres: Hodder & Stoughton, 1946).
52 Stewart, 53 2João 54Veja
Original Bishops, p. 144-85.
1; 3João 1.
1 Pedro 5.1.
congregações e no mundo cristão mais amplo; nesse caso, isso foi um desenvolvimento pós-bíbüco. Com respeito ao culto público, parece que as primeiras igrejas cristãs permitiam muito do que chamaríamos hoje de “participação do auditório”. Na verdade, esse tipo de espontaneidade ficou tão fora de controle na igreja de Corinto que Paulo se viu obrigado a refreá-la. Ele não a proibiu totalmente, o que é importante esclarecer, mas, estabeleceu regras que alguém teria de aplicar. 55 Quem? Não sabemos. Paulo também advertiu que as mulheres não falassem na igreja, o que nos leva a crer que isso estava acontecendo e causando problemas. 56 Para muitos estudiosos, a proibição não foi de Paulo; ela veio mais tarde; para outros, foi de natureza puramente prática- as mulheres instruídas e responsáveis sa beriam se comportar em público e não estariam sujeitas a tais restrições. As tentativas de explicar a proibição feita às mulheres ignoram o fato de que o texto bíblico apresenta razões teológicas para isso: o homem teve prioridade na ordem da criação e foi a mulher que o levou a pecar. Assim, a prática da igreja primitiva era baseada em princípio e não em preconceito, o que muitos comentaristas contemporâneos, ansiosos em promover o ministério feminino, decidem ignorar. A organização do culto cristão daquela época é igualmente obscura. As igrejas cantavam salmos, hinos e cânticos espirituais, mas, o faziam à capela ou com acompanhamento de instrumentos musicais? Provavelmente era à capela, entretanto, como acontece com muitas outras coisas, não há como sabermos direito, e certamente não havia proibição ao uso de instrumentos musicais. Supomos que também oravam, mas, à parte da Oração do Pai Nosso, que possivelmente já estava em uso regular no final do primeiro século, é impossível saber o feitio da oração corporativa. 57 Era litúrgica no sentido posterior, ou improvisada, de acordo com a inspiração de quem orava, como podemos entender que era o falar em línguas na igreja de Corinto? Talvez as duas formas de oração coexistissem? Alguém pregava um sermão, 55 Veja
ICoríntios 12,14. 56 1 Timóteo 2.11-15. 57 O
uso regular do Pai Nosso é ensinado no Didache, que remonta ao fim do primeiro século e possivelmente é o texto cristão não bíblico mais antigo do mundo.
e, se fosse o caso, em que ele era baseado e qual era sua importância para o culto? Era sermão exegético, temático, evangelístico — ou o quê? Sabemos que as igrejas se reuniam para celebrar a Ceia do Senhor, mas, embora Paulo tenha dado instruções detalhadas sobre a sua realização, as perguntas ainda são muitas. 58 Não sabemos quem presidia a ceia, com que frequência era celebrada, ou se até fazia parte de uma refeição maior, como obviamente aconteceu na Ultima Ceia. Nem mesmo sabemos quando os cristãos se reuniam para o culto. É provável que o fizessem mais regularmente no “dia do Senhor”, que corresponde ao domingo, o dia da ressurreição de Cristo. 59 Mas, claro, o domingo não era dia de folga, e a maioria dos cristãos não podia participar dos cultos. Parece que em algumas cidades, a igreja se reunia diariamente e tinha vida semicomunitária, embora essa prática tenha se dissolvido bem depressa quando os problemas que causava se tornaram evidentes. Talvez se reunissem de manhã cedo ou à noite, em parte porque eram horas mais tranquilas, e também porque, quando a perseguição teve início, os cristãos eram menos visíveis nesses períodos por estar escuro. Mas, também nesse assunto, ficamos no reino da especulação - simplesmente não sabemos o que costumava acontecer. Deve ter havido algum consenso, pois de outra forma a igreja não se reuniría de jeito nenhum. Os cristãos descobriram um meio de se comunicarem. Será que um cristão se mudaria para Efeso, por exem pio, e vivería ali indefinidamente sem entrar em contato com a igreja local (ou ao menos saber de sua existência)? As evidências provam o contrário: Paulo sabia a quem enviar a carta que escreveu aos romanos (embora não diga o nome da pessoa), e quando foi a Roma, alguém ficou sabendo da visita e um grupo foi encontrá-lo assim que chegou em Potéoli.60 Quem foi responsável por isso? Como desconhecemos esses detalhes, temos de ser cautelosos. Na antiguidade, as pessoas não se preocupavam com essas questões; obviamente, tinham experiência nessas coisas e previam o que estava 58 Veja
ICoríntios 11.17-34. 59 Esse uso da expressão o “dia do Senhor” é encontrado no Novo Testamento; veja Apocalipse 1.10. 60Atos 28.15.
acontecendo de um modo que nos é difícil imaginar. Mas, não podemos duvidar que existia certa organização e que ela funcionava com bastante eficiência. Não podemos nos esquecer de que a maioria das cartas de Paulo foi escrita a igrejas que enfrentavam problemas, e isso pode distorcer nossa percepção da igreja como um todo. Aparentemente, muitas igrejas não tinham os problemas que atormentavam a igreja de Corinto. Isso quer dizer que ela era exceção? Ou apenas que desconhecemos os problemas, que também aconteciam em outras igrejas, mas, que não foram registrados? A falta de resposta a essas perguntas deve nos levar a refletir antes de usarmos a igreja do Novo Testamento como exemplo para a nossa vida em comum hoje em dia. Algumas coisas, tais como a necessidade de supervisão e de culto organizado, podem ser legitimamente deduzidas de fontes a nosso dispor, e temos de nos certificar que sejam aplicadas à vida da igreja contemporânea. Contudo precisamos ser humildes e admitir que nos é impossível, com base no que sabemos, edificar uma estrutura eclesiástica completa com as evidências que possuímos; a certa altura, até os intérpretes literais mais ferrenhos do Novo Testamento são obrigados a complementar o que ele diz, se quiserem que suas igrejas funcionem de modo apropriado. É possível termos hoje uma igreja fiel aos princípios do Novo Testamento, mas, não uma que reproduza, com qualquer grau de precisão, uma das igrejas primitivas. Simplesmente não temos os dados necessários para assegurar tal empreendimento. A MISSÃO DA IGREJA
Não importa qual tenha sido o estilo de ministério da igreja, nem como seu culto e organização eram estruturados, o consenso é que seu objetivo primordial era levar o evangelho até os confins da terra. Essa tarefa fazia parte da Grande Comissão que Jesus deu a seus discípulos, e ela se consolidou rapidamente, não apenas como meta principal em si, como também um dos meios mais importantes de diferenciar a igreja da sinagoga. Estudos recentes mostram que nos tempos antigos os judeus eram mais receptivos ao proselitismo do que se tornaram mais tarde; mesmo assim, não era uma de suas maiores prioridades. Para os cristãos, no
entanto, pregar o evangelho àqueles que o desconheciam, mas, que estavam sendo chamados por Deus ao arrependimento e à nova vida, era uma tarefa imprescindível. O próprio termo apostolos significa “aquele que foi enviado”, e o impulso missionário era primordial à igreja desde o seu início. Pouco antes de subir aos céus, Jesus mandou seus discípulos pregarem o evangelho, começando em Jerusalém e por toda a Judeia e Samaria, e a partir dali, aos confins da terra. 61 Deveríam batizar pessoas de todas as nações em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as o caminho da salvação. 62 Para alguns estudiosos essas últimas palavras de Jesus foram acrescentadas mais tarde por cristãos desejosos de atribuir a Jesus suas próprias atividades, mas, tal ceticismo é desmentido pelos fatos. O sermão de Pedro no Pentecostes alcançou peregrinos de muitas partes do mundo, e não é demais supor que alguns levaram a mensagem, e a adesão deles à igreja, aos seus países de origem. Se foi o caso, esse primeiro esforço evangelístico lançou o alicerce para o surgimento de comunidades cristãs em lugares distantes da Palestina, bem antes de qualquer apóstolo chegar até eles. O certo é que a missão à Judeia e Samaria começou quase que imediatamente. Sabemos também que, em poucos anos, havia um grupo de cristãos em Damasco, pois foi a caminho de persegui-lo que Saulo de Tarso se converteu de modo inesperado.63 O batismo, pelos apóstolos, dos que faziam profissão de fé era fundamental à missão da igreja. 64 O batismo já havia aparecido na pregação de João Batista e no início do ministério de Jesus, e não existe indicação de que as pessoas batizadas naquela época tinham de ser rebatizadas depois do Pentecostes, embora o rebatismo de tais pessoas tenha sido
61 Atos
1.8. 62Mateus 28.19,20. 63 Atos 9.2. 64 A obra definitiva atual sobre o assunto é Baptism in the Early Church: History, Theology, and Liturgy in the First Five Centuries (Grand Rapids: Eerdmans, 2009), de E. Ferguson. O livro foi escrito de uma perspectiva batista, com uma desenfatização correspondente no batismo de toda a família como evidência de que o rito era administrado às criancinhas.
praticado mais tarde.65 Esperava-se que esse batismo fosse acompanhado da descida do Espírito Santo, marcado de modo especial por um irromper do falar em línguas, embora as duas coisas não estivessem necessariamente ligadas uma à outra. Quando Pedro pregou a Cornélio e sua casa, o Espírito desceu sobre eles antes de serem batizados, e há outros exemplos de batismo (como o do eunuco etíope) que não foram acompanhados de manifestações miraculosas. Em pouco tempo, os “sinais e maravilhas” que acompanharam os primeiros batismos se esvaíram a tal ponto que por volta do século 4, quando estudiosos abordaram a questão, eles tiveram de admitir que desconheciam o assunto e supunham que essas coisas deixaram de acontecer depois da primeira geração de convertidos. Em tempos mais recentes, grupos pentecostais e carismáticos tentaram restaurar esse componente da experiência cristã chegando mesmo a considerá-lo fundamental, contudo, não o ligaram ao batismo como a igreja primitiva o fez. Para a maioria dos cristãos atuais, não existe conexão óbvia entre batismo e manifestação de dons espirituais extraordinários. O batismo continua sendo uma exigência para quem quer ser membro da igreja, entretanto, os dons são bem menos comuns e nunca enfatizados fora dos círculos carismáticos. Nunca se questionou o fato de os apóstolos e seus companheiros batizarem quem fazia profissão de fé. A questão foi se batizavam filhos de crentes ainda muito novos para tomarem decisão própria, e sobre o modo em que o rito era administrado — os candidatos eram imersos na água, aspergidos com água, ou havia uma combinação de ambos? Pinturas cristãs antigas mostram Jesus e outros dentro de um rio com água até os joelhos ou cintura e alguém despejando-lhes água na cabeça. Esse era o método comum de batismo? Como é o caso de muitas outras coisas, não há respostas definitivas a essas perguntas. E elas só começaram a ser feitas de maneira séria a 65 Atos
19.2-5. Observe, contudo, que em alguns versículos anteriores, Apoio (que só conhecia o batismo de João) foi plenamente instruído mas, aparentemente, não foi batizado de novo (Atos 18.25,26). As questões levantadas por esses dois exemplos são discutidas em Ferguson, Baptism, . 180-82, porém ele não chega a uma conclusão definitiva sobre como resolvê-las.
partir da Reforma do século 16; até então, parece que ninguém se preocupou em tratá-las como questão de princípio teológico. O batismo por imersão, total ou parcial, certamente era praticado, mas, seria a norma ou considerado essencial? É difícil acreditar, por exemplo, que o carcereiro de Filipos e toda a sua casa tivessem sido batizados por imersão no meio da noite. 66 O importante era que o batismo deveria acontecer o mais rápido possível após a profissão de fé, um princípio que deve ter incentivado flexibilidade sobre como e onde aconteceria. Uma coisa é certa: não havia necessidade de longa instrução dos candidatos ao batismo, e não eram obrigados a ser batizados durante um culto na igreja, como acontece na maioria dos casos em nossos dias. Se as criancinhas eram batizadas com seus pais cristãos é um assunto altamente controverso sobre o qual não há resposta definitiva. Aqueles que rejeitam a prática do batismo infantil tentam, claro, provar que o batismo que praticam era o usado na igreja primitiva, e quem pratica tal batismo tenta provar o contrário. Não há evidência suficiente para decidir a questão de uma forma ou de outra, contudo, foi só a partir do século 16 que as diferenças sobre o assunto dividiram a igreja. Quem insiste em afirmar que somente devem ser batizadas as pessoas que se professam cristãs está pressupondo que todas as pessoas de uma casa fizeram tal profissão, embora o Novo Testamento não diga nada sobre isso. Outro problema: enquanto um menino judeu era circuncidado sem questionamento no oitavo dia de nascido e as crianças judias eram incluídas nas festas da Páscoa, não há indicações de que prática semelhante não era aplicada aos filhos pequenos dos cristãos com respeito ao batismo ou à Ceia do Senhor. As mulheres eram admitidas na igreja como sendo iguais aos homens, mas, as crianças não? Os pais deixavam os filhos em casa na hora do culto ou proibiam que participassem da Ceia? Se não, as crianças podiam comer o pão consagrado e beber o vinho sem serem batizadas? Aqui também ficamos sem respostas. Tudo o que sabemos é que por volta do ano 200 d.C. o batismo infantil era uma realidade e que Tertuliano (ele mesmo diz) desaprovava 66 Atos
16.33. Ferguson, Baptism, p. 179-80, empenha-se em admitir a possibilidade de que o carcereiro e sua casa foram imersos de alguma forma, contudo, nem
a prática. No entanto, seu motivo não se devia ao fato de as crianças não fazerem profissão de fé. Ele acreditava que o batismo era efetivo, apesar disso, e removia a mancha do pecado original. Para ele, o problema era que as crianças que haviam sido purificadas do pecado sem o saber poderíam pecar outra vez inadvertidamente e, com isso, perder a salvação.67 Estamos operando aqui em um universo conceituai diferente daquele que orienta os debates atuais sobre o assunto, e isso é mais um lembrete de que nossas preocupações não são prontamente dissipadas com um apelo a evidências cuja intenção não é tratar de nossas perguntas prediletas. O que podemos afirmar, e a evidência de Tertuliano confirma, é que os primeiros cristãos criam que o batismo tinha o poder de limpar dos pecados quem se batizava. O batismo chegou a ser visto como um tipo de exorcismo, afugentando o diabo e libertando a pessoa recém-batizada de suas garras. 68 Diferentemente da circuncisão, o batismo não deixava marca no corpo, o que facilitava a saída de alguém da comunidade cristã, e sabemos que até mesmo na época do Novo Testamento muitas pessoas se afastaram, e a maioria delas (segundo se pensava) não podería ser trazida de volta à igreja mais tarde. Uma vez que provaram o dom celestial, como escreveu o autor de Hebreus, era impossível levá-las ao arrependimento caso houvessem abandonado a fé. 69 Se isso também significava que perderíam a salvação se pecassem novamente depois do batismo é uma questão que, pelo jeito, nunca foi levantada na primeira geração, embora (como aplicação do princípio acima) tenha se tornado tão importante mais tarde que dividiu a igreja, especialmente na África do Norte. 70 Um assunto mais importante na época do Novo Testamento, e que acabou mesmo por dividir a igreja até certo ponto, foi o relacionamento entre judeus e gentios. Desde bem cedo, quando os cristãos eram quase 67 Tertuliano, De baptismo, 18.5. 68 Veja
Ferguson, Baptism, p. 522-24, 537-88, para exemplos disso. 69 Hebreus 6.4-6. 70
Possivelmente, a referência mais antiga ao assunto se encontra em The Shepherd of Hermas. Veja Ferguson, Baptism, p. 214-16, para um tratamento dos textos relacionados.
todos judeus, a missão da igreja começou a se voltar para o mundo gentílico. Isso aconteceu porque Paulo e outros foram às sinagogas na Diáspora, e quase todas possuíam um número significativo de “tementes a Deus” que criam no Deus de Israel, mas, por uma razão ou outra, não cumpriram todas as exigências da lei judaica. O padrão parece ter sido este: Paulo pregava em uma sinagoga da Diáspora e conquistava uma parte de seus ouvintes; estes abandonavam a sinagoga e formavam uma igreja. A partir das controvérsias que irromperam logo após nessas igrejas, deduzimos que uma proporção significativa desses convertidos era formada pelos tementes a Deus, e eles não eram mais estranhos como haviam sido nas sinagogas. A dificuldade estava em reconciliar duas culturas diferentes em uma única comunidade. Os tementes a Deus nunca haviam se submetido às leis judaicas e achavam que o evangelho justificava sua recusa em se prenderem a tal legalismo. Os cristãos judeus relutavam em abandonar suas tradições, e mesmo que fossem persuadidos a crer que os tementes a Deus estavam certos em princípio, permaneciam susceptíveis a sentimentos de culpa por acreditar que haviam desistido de algo vital à identidade deles. Em retrospectiva, é extraordinário que os dois lados conseguiram permanecer juntos apesar de suas diferenças, que não duraram além das primeiras gerações. A importância da sinagoga como berço da igreja gentílica não deve ser menosprezada. Quando Paulo foi a Atenas, onde não pregou na sinagoga local, poucos se converteram com sua mensagem. 71 O motivo está claro no próprio texto. Os gentios que não conheciam o judaísmo ou as Escrituras hebraicas não tinham contexto mental no qual colocar o evangelho cristão. Termos como “ressurreição” não significavam nada para eles, e não faria sentido Paulo apresentar seu caso referindo-se às promessas da aliança feitas a Abraão e seus descendentes, pois seu auditório não teria a mínima ideia do que ele estava falando. Apesar de todas as suas limitações, a lei judaica era um mestre que indicava o caminho para Cristo, e sem ela, seria muito mais difícil encontrar o caminho.72 71 72
Atos 17.22-34. 17.22 -34.
Gálatas 3.24.
Na prática, era virtualmente impossível começar uma igreja sem pessoas que tivessem um profundo conhecimento das Escrituras hebraicas e que tivessem capacidade de interpretá-las à luz de Cristo. As primeiras igrejas cristãs não possuíam declarações de fé como possuímos hoje, mas, algumas crenças eram essenciais à membresia, e o Novo Testamento deixa claro o teor delas. Primeiro vinha a aceitação completa do Antigo Testamento como a Palavra de Deus totalmente cumprida em Jesus Cristo. 73 A seguir vinha a confissão de que o Filho de Deus se tornou homem, sofreu e morreu pelos pecados do mundo inteiro.74 Por fim, a convicção de que ele ressuscitou dos mortos, subiu ao céu e mandou o Espírito Santo edificar a comunidade cristã. 75 Quem duvidasse desses princípios básicos ou os negasse não era aceito como membro da igreja. As primeiras comunidades cristãs tinham uma dimensão social forte que não podia ser ignorada. Depois de experimentar uma forma primitiva de comunismo em que os convertidos juntaram seus recursos para o bem comum, eles desenvolveram um programa de serviço social menos ambicioso (contudo, mais prático). Esperava-se que as igrejas cuidassem de seus membros mais pobres e protegessem seus interesses. Esse aspecto da vida comum das igrejas impressionou profundamente os de fora, e eles notaram que os cristãos eram diferentes das outras pessoas de um modo nunca visto antes. 76 (Os judeus também eram diferentes, mas, embora cuidassem de seus correligionários de um modo bem parecido com o dos cristãos, esse cuidado era exclusivista e alienava os de fora, que em geral não se sentiam acolhidos entre eles). As igrejas mudaram essa atitude, e usaram sua preocupação uns com os outros como prova de que eram mesmo um no Espírito. Mais do que qualquer outra dimensão, foi esta que manteve as diferentes igrejas em comunhão entre si. Também partilhavam uma crença comum, pelo menos em princípio, embora houvesse muitas divergências e problemas individuais, como as epístolas do Novo Testamento deixam 73 Hebreus
1.1,2.
74João
1.14; 1 João 2.2.
75 Atos
1.1—-2.4.
76 Tertuliano, Apol Apolog oget etiicum cum 39.7.
claro. A verdade, porém, é que o apóstolo Paulo conseguiu visitar as igrejas da Grécia e coletar dinheiro para os cristãos menos afortunados da Palestina, e levou a tarefa tão a sério que foi a Jerusalém, arriscando a própria segurança, pois queria ele mesmo entregar as ofertas. O fato de os cristãos mostrarem tamanha compaixão a pessoas desconhecidas e que (em alguns casos pelo menos) se ressentiam da presença deles como gentios na igreja mostrava mais claramente que qualquer outra coisa que os laços que uniam os cristãos em Jesus Cristo era real. A missão da igreja era produzir frutos e criar uma vida comum diferente, e até então desconhecida do mundo. No que diz respeito à organização prática, o trabalho missionário missionário da igreja tinha duas sedes principais: Jerusalém, o que era natural, por causa das origens da igreja, e Antioquia. Esta era a capital da Síria Romana, a província onde a Judeia se localizava, e por isso, para muitos, parecia óbvio que mais cedo ou mais tarde a igreja iria se estabelecer ali. Em Antioquia, os seguidores de Cristo foram chamados de cristãos pela primeira vez. E dali Paulo iniciou suas viagens missionárias. missionárias. 77 Até mesmo Pedro apareceu nessa cidade e, pelo jeito, morou ali; contudo, não sabemos por quanto tempo nem o que fez por lá. 78 O que sabemos é que o modelo então estabelecido se estendeu a uma missão mais ampla, que foi, em sua maior parte, focada nas cidades. Até mesmo na Galácia, tratada como unidade para fins missionários, os grupos cristãos se reuniam em cidades provinciais como Icônio e Listra. Missões nas zonas rurais eram quase desconhecidas, pelo menos fora da Palestina. Esse padrão refletia a natureza do Império Romano, que era uma associação de cidades, das quais Roma era a principal. O foco urbano deixaria sua marca nas futuras gerações, e de tal modo que até hoje o bispo de uma igreja de ordem episcopal é quase sempre nomeado para uma cidade e não uma região. As exceções são poucas e restringemse a áreas onde praticamente não existem cidades, como no Ártico e noroeste da Austrália. De qualquer forma, o impacto urbano é visível através dos séculos, até mesmo em épocas quando pelo menos 80 por cento da população habitava na zona rural. Gostemos ou não, isso gerou 77
Atos 11.26.
78
Gálatas 2.11.
uma dinâmica que estimulou o trabalho missionário a regiões até então não alcançadas, ignorando as populações rurais profundamente conservadoras. Hoje, quando [nos Estados Unidos] o cristianismo urbano está em declínio e a frequência aos cultos parece bem mais expressiva nas zonas rurais, lembremo-nos de que esse não era o caso da igreja primitiva, que usava a liberdade relativa que a vida urbana proporcionava como oportunidade para anunciar o evangelho. UMA DOUTRINA DA IGREJA?
Será que os apóstolos e seus companheiros tinham uma doutrina da igreja? Os cristãos em geral sempre acharam que sim, e apologistas de certas denominações tentaram mostrar que suas doutrinas eram a manifestação correta da doutrina original da igreja. Infelizmente, muito desse argumento tem se concentrado em questões de organização (ou “sistema de governo”, como é formalmente conhecido), que, como já vimos, não podem ser definidas com base apenas no Novo Testamento. No máximo, podemos argumentar que o episcopalismo, o presbiterianismo e o congregacionalismo têm direito de reivindicar algum apoio bíblico, mas, que o indício do Novo Testamento não é tão exato a ponto de tornar qualquer uma dessas posições irrefutavelmente a mais ortodoxa. Mais ainda, a desaparição dos apóstolos certifica a impossibilidade de recriarmos hoje a igreja primitiva. De uma forma ou outra, a ausência deles tem de ser compensada, e só isso já garante que a igreja contemporânea será diferente daquela sobre a qual lemos na Bíblia. Não é possível encontrar uma doutrina neotestamentária da igreja, se é que existe alguma, a partir do estudo de igrejas individuais do Novo Testamento, pois se sabe bem pouco a respeito delas para se chegar a conclusões gerais. Mas, o fato de ser impossível recompor um quadro detalhado da organização das comunidades cristãs não significa que os apóstolos não percebiam a igreja como uma entidade distinta. E claro que percebiam, e acreditavam que a igreja tinha direito à lealdade e participação de todos que que confessavam o nome de Cristo. Quase todas as referências à igreja no Novo Testamento se aplicam a congregações em particular, que evidentemente funcionavam como
unidades autônomas. Paulo escreveu às igrejas de determinadas cidades, e a mesma ênfase à comunidade local aparece nas cartas às sete igrejas da Ásia no livro de Apocalipse. 79 Isso mostra que a igreja estava presente em contextos particulares e não era simplesmente uma construção teórica sem manifestação especial em nenhum lugar. No mundo antigo, onde o idealismo da filosofia platônica era uma força notável, a ênfase em situações concretas era de uma importância que desconhecemos hoje. Não fazia sentido os apóstolos terem um paradigma de como a igreja deveria ser, mas, de fato não existia (e provavelmente não poderia existir) no mundo material. A igreja foi criação do Espírito Santo, como o derramamento no Pentecostes comprovou, contudo, se desenvolveu em comunidades de cristãos reunidos em certos lugares e tempos. As pessoas viram o Espírito Santo trabalhar, tanto em suas vidas como em seus relacionamentos com quem partilhava a mesma experiência. Os apóstolos insistiam em afirmar que ninguém controlava a obra do Espírito; só restava às pessoas reconhecer e aceitar essa obra, quisessem ou não. Observamos isso, por exemplo, na maneira em que Pedro e a igreja de Jerusalém reagiram à conversão de Cornélio. Nem Pedro nem a igreja esperavam que o Espírito Santo fosse descer sobre os gentios e, de início, se mostraram hesitantes, mas, ao perceberem que foi exatamente isso o que aconteceu, submeteram-se à vontade de Deus e, em consequência, mudaram sua maneira de pensar. 80 Esse tipo de humildade caracterizava a igreja apostólica. Ao se deparar com a confusão que o mau uso dos dons espirituais estava causando na igreja de Corinto, Paulo não usou sua autoridade para reprimir os dons, pois sabia que o Espírito Santo estava trabalhando na igreja e que ele não tinha poder para controlar controlar ou impedir impedir isso. Paulo considerava seu ministério como guia teológico para uma igreja que precisava avaliar como os diferentes dons poderíam ser exercidos de modo harmonioso. Ao estabelecer os princípios básicos de ordem e amor, Paulo ensinou os coríntios a analisar suas expertências, esperando que se comportassem de modo a glorificar a Deus 79 Apocalipse
2—3.
e evitassem a aparente confusão que os dons estavam causando. Em seu relacionamento com as igrejas locais, os apóstolos representavam o mundo cristão mais amplo. Às vezes, esse fato os levou a estabelecer diretrizes para a política de todas as igrejas, como fizeram depois que o Concilio de Jerusalém resolveu o conflito entre judeus e gentios. 81 Outras vezes, os apóstolos escreveram a igrejas que necessitavam de conselho espiritual, onde quer que estivessem localizadas. Paulo escreveu aos romanos, embora nunca tivesse ido a Roma e não tivesse nenhuma associação especial com aquela igreja. Pedro escreveu aos “eleitos dispersos” de Anatólia, apesar de não ter, até onde sabemos, nenhuma ligação com eles. 82 Tiago, que provavelmente era o líder da igreja de Jerusalém, endereçou sua carta “às doze tribos dispersas” sobre as quais não tinha nenhuma autoridade específica. 83 Essas exortações gerais eram parte integral do ministério dos apóstolos, guiadas e dirigidas pelo Espírito Santo, e de tal forma aceitas pelos destinatários. destinatários. As igrejas locais eram autônomas, mas, não independentes ou desconectadas umas das outras, pois os apóstolos mantinham os olhos em todas elas para assegurar sua fidelidade à mensagem do evangelho que tinham ouvido e foram chamadas a proclamar. A congregação local dos cristãos se distinguia pela abrangência social. Homens e mulheres, judeus e gentios, escravos e livres — todos eram um em Cristo Jesus. 84 Contudo, ao mesmo tempo, as distinções humanas eram respeitadas. Os cristãos judeus não deixaram de ser judeus, e se desejassem continuar obedecendo à lei de Moisés, eram totalmente livres para fazê-lo. Ao mesmo tempo, teriam de respeitar a liberdade dos cristãos gentios, porque a lei não era parte integral do evangelho e não poderia ser imposta como se fosse necessária à salvação. Da mesma forma, as diferenças seculares entre escravos e senhores tam bém eram respeitadas. respeitadas. Os apóstolos não defendiam a escravidão como instituição, entretanto não alegavam que a alforria era uma obrigação 81 Atos 16.4,5. 821 Pedro 1.1. Anatólia é a
Turquia de hoje na Ásia, e incluía as províncias mencionadas na carta: Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia Menor e Bitínia. 83Tiago 1.1. 84 Gálatas 3.28.
exigida pelo evangelho. O que fizeram foi reestruturar a natureza dos relacionamentos entre senhores e escravos de modo que a comunhão dos cristãos fosse o fator determinante entre eles. Os apóstolos não faziam vistas grossas às injustiças da escravidão, mas, acreditavam que se submeter a ela era a maneira correta de imitar a Cristo e que a obediência convencería os opressores de suas maldades. 85 Acima de tudo, não tentaram abolir as diferenças entre homens e mulheres estabelecidas desde a criação, mas, transformá-las. As esposas deveríam se submeter a seus maridos, contudo, os maridos deveríam se sacrificar por suas esposas, e assim alcançariam a igualdade em suas diferenças.86 Essas ordens não eram simples conselhos para que houvesse paz na comunidade; elas estavam diretamente ligadas ao relacionamento primordial de Cristo com a igreja, a sua noiva. 87 A realidade da igreja devia ser manifestada na vida de seus membros, que foram transformados irrevogavelmente pela vinda do Espírito Santo. Indivíduos que haviam sido profundamente imorais foram lavados, santificados e justificados em nome de Jesus Cristo. 88 Isso era essencial. A igreja era um corpo de pecadores salvos pela graça, e essa salvação produziu neles uma transformação comprobatória de que Deus havia começado uma obra nova nesses convertidos e no mundo inteiro. Nem todos os membros da igreja viviam de acordo com o padrão do evangelho, e tiveram de ser disciplinados ou até mesmo expulsos, pois a congregação não podia tolerar o comportamento pecaminoso deles. 89 A igreja era o corpo de Cristo no sentido de que ele era a cabeça e os cristãos faziam parte do Senhor. Todos os membros de uma igreja tinham seu papel dentro dela, papel que podería ser bem diferente um do outro, mas, era igualmente necessário e valioso. Nenhum membro da igreja era descartável; todos eram importantes. Deus não mostra parcialidade, assim, os que criam em Cristo eram aceitos de igual 85 Efésios
6.5-9; Colossenses 3.22-25; 1 Pedro 2.18-25. 86 Efésios 5.22-33. 87 Apocalipse 22.17. 88 ICoríntios 6.9-11.
modo.90 A exigência era que houvesse a mesma confissão de fé, sem o que não haveria unidade. 91 Por mais que os apóstolos acreditassem na necessidade do batismo, a importância dele era ofuscada à luz do evangelho.92 Da mesma forma, a Ceia do Senhor unia as igrejas, mas, desde que não houvesse abusos. 93 O sacramentalismo de gerações posteriores não é encontrado no Novo Testamento, em que fé e a presença íntima do Espírito Santo nos corações dos cristãos eram fatores que determinavam quem pertencia ou não à igreja. A igreja se manifestava em comunidades locais, contudo, estas faziam parte de uma rede universal. Isso ficou claro desde o início, à medida que os cristãos de diferentes cidades se mostravam solidários com seus irmãos de fé que passavam por algum sofrimento. 94 Essa atitude recordava a todos que embora Cristo estivesse totalmente presente entre eles quando se reuniam, ele também estava edificando uma comunidade que se estendia pelo mundo inteiro. Os apóstolos eram testemunhas vivas dessa realidade. O encargo que receberam os levava a diferentes lugares e mostrava às congregações locais o que Deus estava realizando em outras partes do mundo. A presença da igreja era constituída pela fé e os ensinos dos apóstolos. Paulo sabia que muitos pregavam o evangelho pelos motivos errados. Alguns não gostavam do apóstolo e tentavam competir com ele. Mas, em vez de repreender tais pessoas e exigir que elas se submetessem à sua autoridade, Paulo se alegrava, desde que o verdadeiro evangelho estivesse sendo anunciado.95 O importante não era o mensageiro e sim a mensagem, pois foi a mensagem que fundou a igreja, o pilar e o alicerce da verdade. 96 Se isso constitui a “doutrina” da igreja depende muito de como definimos nossos termos. Os apóstolos não tinham uma teoria testada e aprovada de como a igreja deveria ser, contudo, sabiam em seus corações o que ela era, e quando a oportunidade surgiu, expuseram 90Atos
10.34,35.
91 Gálatas
1.8,9.
ICoríntios 1.14-17. 93 ICoríntios 11.17-22. 92
94 Veja 95
Atos 11.27-30 para um exemplo disso.
Filipenses 1.15-18.
seus pensamentos. Com maior ou menor êxito, as gerações posteriores tentaram ler a mente dos apóstolos, no entanto as palavras de Pedro resumem o pensamento deles: Vocês também estão sendo utilizados como pedras vivas na edificação de uma casa espiritual para serem sacerdócio santo, oferecendo sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus, por meio de Jesus Cristo [...] Vocês, porém, são geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo exclusivo de Deus, para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz. Antes vocês nem sequer eram povo, mas, agora são povo de Deus. 97 Seria difícil dar uma explicação mais clara.
3
A igreja perseguida
A AUSÊNCIA DOS APÓSTOLOS
O relato das origens da igreja no Novo Testamento pode ser resumido pelo título de um de seus livros mais importantes — os Atos dos Apóstolos. O que eles fizeram e para onde foram depois da ascensão de Jesus prepara o terreno para tudo o que vem a seguir, e embora nos faltem muitas informações, temos uma ideia razoável de como a comunidade original se expandiu e espalhou-se pelo mundo romano. Mas, apesar de toda a sua importância como fonte histórica da igreja primitiva, o Novo Testamento não conta o que aconteceu depois que os apóstolos saíram de cena. Da mesma forma que o livro de Atos, ele nos deixa suspensos entre dois períodos: aquele em que ainda existia ligação direta com a vida e o ministério de Jesus, e o outro, subsequente, em que a lembrança pessoal se transformou em tradição histórica. É difícil datar essa transição e, na época, ela deve ter sido imperceptível a muitos. Poücarpo de Esmirna, por exemplo, foi martirizado em 156 d.C., depois de oitenta e seis anos de cristão. Não sabemos se ele estava com oitenta e seis anos de idade quando morreu ou se fez sua profissão de fé quando menino; seja como for, ele manteve contato pessoal com os apóstolos e as igrejas por eles fundadas. Até onde sabemos, Poücarpo morreu acreditando que nada de realmente importante havia mudado durante sua vida. Na época de seu martírio, Poücarpo era um dos últimos elos com o passado, mas, quaisquer desenvolvimentos ocorridos no século anterior parecem não tê-lo afetado.
Certamente muitos cristãos da época tinham o mesmo sentimento. 0 ritmo da vida era mais lento nos tempos antigos, e na maioria das cidades e vilarejos poucas coisas seriam diferentes. Sem dúvida nenhuma, as lembranças se tornaram vagas em alguns aspectos, contudo, as pessoas estavam acostumadas a recontar eventos importantes, e as tradições orais que mantinham esses eventos vivos seriam conhecidas e relatadas pelos cristãos de todos os lugares. Se algum caso estranho tivesse sido acrescentado, alguém teria percebido, ainda que a única razão fosse o fato de o acréscimo não ser conhecido em todo o Império Romano. Variações locais não passariam disto - variações localizadas -, e poderíam ser corrigidas por aqueles com perspectiva e conhecimento mais amplos. Algo assim parece ter acontecido com os evangelhos. Mateus, Marcos e Lucas, conhecidos como os evangelhos sinóticos, contam a mesma história, e as variações entre eles são relativamente poucas. Talvez Mateus e Lucas tenham copiado Marcos (e um ao outro), mas, é possível que tenham registrado a tradição oral cada um por si, e neste caso, o grau de correspondência entre eles é impressionante. O evangelho de João é uma testemunha independente, e muitos estudiosos acham que é posterior à tradição sinótica, mas, talvez não seja. João contém elementos bastante antigos e em alguns aspectos talvez seja mais “histórico” que os outros. 1 O certo é que na época em que os evangelhos foram escritos, os apóstolos estavam saindo rapidamente de cena. João talvez estivesse vivo na última década do primeiro século, mas, os outros já haviam morrido ou não estavam ativos. O que isso significa para a igreja? A falta de evidência dificulta a resposta, mas, parece que a natureza e extensão do legado dos apóstolos causaram debates. Em especial, algumas, pessoas afirmavam que os apóstolos receberam instruções secretas de Jesus que não revelaram às igrejas. 1 2 Como se em passe de mágica, esses ensinos secretos agora vinham à tona, quando era impossível verificar sua autenticidade. Um dos temas, persistentes dessa literatura arcana é 1 2
VejaJ. A. T. Robinson, The Priority of John (Londres: SCM, 1985). Irineu de Lyon, Adversus omnes haereses 3.1-2; Tertuliano, Depraescriptone haereticorum 27.1.
o asceticismo; ele alegava que os apóstolos defendiam práticas como o celibato e o jejum muito mais do que declararam publicamente. Até certo ponto, isso era plausível, claro, pois era de conhecimento geral que Paulo preferia o celibato, mas, como ele afirmou explicitamente que o celibato não era para todas as pessoas, a reivindicação da autoridade apostólica sobre o assunto se tornou inadmissível e foi rapidamente rejeitada pela maioria. 3 Outra possibilidade foi que a revelação divina continuou por meio do ministério de profetas que não tiveram ligação com Jesus nem com os apóstolos, mas, cujas palavras tinham tanta autoridade quanto as deles. Essa afirmação foi feita por Montano, que surgiu na Ásia Menor na metade do século 2 e atraiu um número respeitável de seguidores. O assunto logo se tornou uma questão de princípio: a revelação divina como autoridade sobre a igreja continuava ou a comissão apostólica havia terminado? O consenso foi que havia terminado, e o que chamamos de cânone do Novo Testamento estava, em princípio, encerrado. Haveria, sim, discussões sobre alguns dos livros nele incluídos, mas, somente aqueles com linhagem apostólica reconhecida seriam aceitos como autoridade. A decisão forçou a igreja a considerar quem teria o direito de interpretar os textos canônicos. De início, determinou-se que, mais provavelmente, as igrejas maiores de origem comprovadamente apostólica, tais como as de Antioquia, Éfeso e Roma, teriam conservado intacta a mensagem genuína. Em parte, isso era devido ao fato de os apóstolos terem ensinado essas igrejas, e em parte porque elas eram tão grandes que qualquer tentativa de surrupiar os textos com a intenção de favorecer essa ou aquela interpretação teria menos chance de acontecer. Muitas pessoas conheciam a verdade, e isso servia para controlar qualquer tipo de comportamento estranho. Provavelmente, foi inevitável que os episkopoi, ou bispos das igrejas locais, tenham preenchido a lacuna deixada pelos apóstolos. Parece que a intenção de Paulo foi que Timóteo e Tito cumprissem essa função, mas, não sabemos se era uma prática difundida. Sabemos que Inácio de Antioquia, em seus escritos do ano 118 d.C., ordenou que os cristãos
de Esmirna respeitassem o bispo da mesma forma que respeitariam o próprio Cristo e obedecessem aos presbíteros da mesma forma que obedeceríam aos apóstolos. 4 Inácio receava os heréticos e estava tentando proteger a igreja contra os falsos ensinos, e achava que seguir as palavras do bispo era o melhor jeito de conseguir isso. Mas, não é claro se Inácio acreditava que os bispos eram sucessores diretos dos apóstolos; em sua opinião, assim como na de todos daquela época, o mais importante não eram as ligações pessoais dos bispos com os apóstolos, mas, o conteúdo de seus ensinos. Isso talvez se devesse ao fato de poucos bispos terem essas ligações; assim como todo mundo, eles dependiam da tradição herdada, que era cada vez mais registrada no Novo Testamento nascente. Seja como for, a verdade é que com o desaparecimento dos apóstolos, o perigo de falsos ensinos aumentou bastante, e era preciso lidar com a situação. Os falsos mestres se multiplicaram, e alguns deles aplicavam interpretações estranhas à tradição canônica emergente. Taciano, por exemplo, ao escrever, por volta do ano 150 d.C., tentou harmonizar os quatro evangelhos, porque era favorável a uma narrativa única; um pouco antes, Marcião propôs descartar o Antigo Testamento e purgar o Novo de tudo o que parecesse judeu demais. Taciano e Marcião acabaram sendo rejeitados, mas, existia na igreja um sentimento crescente de que ela deveria se proteger contra esse tipo de perigo. Essa necessidade aumentava à medida que a lembrança dos apóstolos ia desaparecendo, e entendemos por que grande porção dos escritos evangélicos do século 2 que chegou até nós lida com a defesa da igreja contra heresias de um tipo ou de outro. ORTODOXIA E HERESIA
A questão da continuidade entre as igrejas apostólica e pós-apostólica é muito mais complicada hoje porque, desde o início do século 19, existe uma forte tendência no mundo acadêmico de afirmar que havia diferenças significativas entre as duas. Supostamente, essas diferenças foram ignoradas no registro oficial e agora só vieram à luz com a leitura 4 Inácio
de Antioquia, Ad Smjmaeos 8.
crítica dos documentos primários e uso de materiais de fontes externas* tais como papiros e inscrições, descobertos nos tempos modernos. O trabalho principal nesse sentido foi de Ferdinand Christian Baur (1792-1860) e dos estudiosos que ele reuniu em Tübingen. A tese da Escola Tübingen, como o trabalho desse grupo é conhecido, afirma que a igreja apostólica era uma comunidade de espírito livre, na qual diferentes perspectivas teológicas coexistiam e as exigências para membresia eram mínimas. Mas, de acordo com eles, em pouco tempo aconteceu um engessamento de posições, e uma forte tendência à institucionalização apareceu na geração seguinte. Essa tendência se mostrou em estruturas cada vez mais inflexíveis, doutrinas sistematizadas, e a rotulação dos dissidentes de “hereges”. Baur chamou essa tendência de “catolicismo incipiente”, afirmando que ele era encontrado tanto no Novo Testamento quanto nos escritos dos líderes conhecidos como pais apostólicos do século 2.0 “catolicismo incipiente” estava presente, de modo especial, em Lucas, Atos e nas Cartas Pastorais, o que nessa perspectiva significava ter origem pós-apostólica e, portanto, não eram obras de seus professados autores. Quando a tese da Escola Tübingen se firmou, em pouco tempo os estudiosos também descobriram uma teologia mais desenvolvida em outros livros do Novo Testamento. Essa descoberta ampliou a abrangência dos estudos críticos de Baur, e passou-se a acreditar que a literatura joanina, algumas epístolas de Paulo - tais como Efésios e Colossenses —, 2Pedro e a Carta aos Hebreus eram todas pós-apostólicas, talvez, em alguns casos, até da metade do século 2. Ou seja, o Novo Testamento representava mais que o primeiro florescimento do cristianismo; ele continha escritos que testemunhavam a evolução que carregou a igreja para longe de suas raízes. Baur e seus colegas não eram estudiosos desinteressados. Eram protestantes liberais desejosos de atacar as pretensões conservadoras cada vez maiores da Igreja Católica da época, e também o confissionalismo restrito das tradições luterana alemã e reformada. Eram herdeiros do Pietismo do século 18, que aos seus olhos havia relegado a importância do dogma religioso para dar ênfase à santidade e moralidade pessoal. Também não eram propensos a acreditar em coisas miraculosas e
90
achavam que a Igreja Católica era uma mistura medieval de superstição e mito, acertadamente condenada por Martinho Lutero. No entender de Baur e seus colegas, a tarefa deles era continuar com a Reforma e remover os detritos do irracionalismo pré-moderno da mente protestante, com o objetivo de desenvolver um cristianismo purificado e não dogmático, que seria fundamento espiritual para a era científica em que acreditavam estar vivendo. Portanto, suas atividades acadêmicas tinham o objetivo de abrir espaço para o pensamento liberal nas igrejas protestantes alemãs, no que foram muito bem-sucedidas. Muitas pessoas, claro, rejeitaram a tese de Tübingen e o liberalismo do qual fazia parte por acreditarem que o “catolicismo incipiente” descrito por Baur era parte integrante da base de fé apostólica. Algumas pessoas que reagiram contra Baur se mostraram ainda mais favoráveis a Roma, e alguns intelectuais protestantes se tornaram católicos por causa disso. O mais famoso deles, no mundo de fala inglesa, foi John Henry Newman (1801-90), que antes de se converter liderou um avivamento conhecido hoje como anglocatolicismo dentro da Igreja Anglicana. Seu conservadorismo foi reacionário e teve apelo limitado, contudo, levou estudiosos a reavaliar seus conceitos sobre a igreja primitiva, cujas consequências nos influenciam até hoje. De um lado estão aqueles para quem os registros da igreja primitiva são fidedignos e oferecem um ótimo relato de como ela se desenvolveu e amadureceu. De outro lado, aqueles que insistem em afirmar que a tradição histórica é essencialmente propaganda política para o grupo que se tornou dominante, e que somente a leitura das obras longamente censuradas dos assim chamados heréticos nos oferecerão um retrato equilibrado do que acontecia de verdade. A abordagem Tübingen se tornou mais ou menos um padrão entre os protestantes alemães no fim do século 19 e foi exemplificada por teólogos como Adolf von Harnack (1851-1930), que questionou a função das afirmações confessionais dogmáticas na igreja primitiva, e Walter Bauer (1877-1960), que procurou mostrar que “ortodoxia” e “heresia” eram rótulos aplicados pelo vitorioso grupo católico a si
bn
mesmo e a seus adversários, respectivamente, lá pelo fim do século 2.5 A tese já foi desafiada várias vezes pelo trabalho acadêmico detalhado de eruditos comoj. N. D. Kelly (1909-97) e Η . E. W Turner (1907-95), mas, continua reaparecendo em formas diferentes e estabeleceu-se como abordagem padrão em livros didáticos populares e outros. 6 Isso aconteceu porque no século 20 as descobertas de novos manuscritos aparentemente confirmaram as afirmações de Tübingen. Em especial, uma descoberta importante em Nag Hammadi, Egito, em 1946, revelou um grande número de documentos que apresentavam formas de cristianismo censuradas por líderes como Irineu e rotulados de “gnosticismo” pela Escola Tübingen. Gnosticismo não era tanto a doutrina de uma pessoa ou de um pequeno grupo de pessoas quanto uma tendência presente em muitos escritores claramente influenciados pelas vertentes filosóficas de sua época. Em resumo, gnóstico era alguém que acreditava na separação dualista entre matéria e espírito e desenvolveu explicações mitológicas para a criação do mundo. O Deus Criador era inferior ao Pai de Jesus Cristo, porque o primeiro lidava com a matéria (que era intrinsicamente má) ao passo que o último enviou seu Filho para nos livrar das garras da matéria. Bauer havia percebido essa tendência, entretanto lhe faltavam evidências suficientes para documentá-la, de modo que teve de confiar nos relatórios de quem se opunha a ela, mesmo que o pensamento de alguns deles, como Clemente de Alexandria, não fosse tão diferente assim. Clemente é considerado “ortodoxo”, contudo, defendia o gnosis (conhecimento) e aparentemente respirava a mesma atmosfera filosófica 5
A. von Harnack, A History of Dogma, trad. Neil Buchanan (Londres: Williams & Norgate, 1894—99), publicado originalmente como Lehrbuch der Dogmengeschichte (Freiburg-im-Breisgau: J. C. B. Mohr, 1893); What Is Christianity?, tradução de T. Bailey Saunders (Londres: Williams & Norgate, 1901), publicado originalmente como Das Wesen des Christentums (Leipzig: Hinrichs, 1900); W Bauer, Orthodoxy and Herety in Earliest Christianity, Robert Kraft e Gerhard Krodel (Orgs.) (Filadélfia: Fortress, 1971), publicado originalmente como RechtglaubigheitundKetyereiim altesten Christentum (Tübingen: Mohr, 1934). 6 J. N. D. Kelly, Early Christian Creeds, 3. ed. (Londres: Longman, 1972); Kelly, Early . E. W Turner, The Christian Doctrines, 5. ed. (Londres: A. & C. Black, 1977);
de homens como Basilides e Valentim, que não escaparam da condenação das gerações futuras, as quais os consideraram “heréticos”. Seria então possível crer que essas pessoas foram vítimas de uma tomada de poder político da igreja por um grupo que se proclamou “ortodoxo” à custa de todo mundo? De qualquer forma, os participantes desse debate concordaram que por volta do século 3 (o mais tardar) havia uma diferença consciente entre os “ortodoxos” e os outros, e que os primeiros controlavam a alavanca da igreja no mundo inteiro. Nesta fase, talvez não existisse uma definição exata de ortodoxia, contudo, havia sinais de que candidatos ao batismo tinham de responder a uma série de perguntas destinadas a desenraizar crenças consideradas divergentes, e os executores de tais disciplinas se mantinham em contato por meio de concílios periódicos que se reuniam para desenvolver políticas doutrinárias gerais. Ao mesmo tempo, surgiu o episcopado monárquico em algumas, igrejas, o que era necessário para o funcionamento desse sistema idealizado. Cada igreja tinha de ter um líder e porta-voz reconhecidos, capaz de articular a crença ortodoxa e aplicá-la em sua congregação. Os detalhes desse cenário são desafiados e modificados com frequência, contudo, o esboço geral tem se mostrado extremamente resistente. Mas, até que ponto esse é um retrato justo da igreja primitiva? Como é o caso de tudo relacionado a essa época, as evidências são escassas e, na maioria dos casos, podem ter diferentes interpretações. Irineu atacou os “hereges” por todos os lados, mas, qual era na verdade seu relacionamento com essas pessoas e quais seus motivos para condená-las? Era uma tentativa de proteger a pureza da igreja (como ele dizia) afunilando-a de modo a incluir somente quem concordava com ele? Até que ponto a reconstrução que Tübingen fez do cristianismo primitivo é plausível? Fundamentalmente, é difícil negar que os primeiros cristãos tinham uma noção básica de um modo certo e um errado de acreditar em Jesus, mesmo que, às vezes, discordassem sobre eles. Mesmo que não usassem termos como “ortodoxia” e “heresia”, os conceitos estavam presentes, e foi apenas uma questão de tempo até as diferentes formas de crenças serem rotuladas de certas e erradas.
Em parte, essa distinção remontava ao judaísmo, embora nos círculos judaicos a diversidade de opiniões aceitáveis fosse mais ampla do que seria no cristianismo. Por exemplo, alguns judeus negavam a ressurreição dos mortos, crença que não era viável aos cristãos. Portanto, desde o início, a igreja aceitava apenas um escopo de opiniões mais restritas do que as aceitas pela sinagoga, pois, caso contrário, sua mensagem central ficaria irremediavelmente comprometida. No entanto, muitos (se não a maioria) dos falsos mestres dos quais Paulo reclamou queriam restringir a igreja de um jeito diferente: impondo aos membros práticas judaicas. Os cristãos tinham mais liberdade que os judeus em questões práticas como comida e bebida, mas, não quanto à crença, o que era inevitável, pois uma vez que a atenção estava concentrada na pessoa e obra de Jesus Cristo, o que era dito (ou poderia ser dito) a respeito dele tinha vital importância. Se os cristãos discordassem sobre a pessoa de Jesus e o que ele havia realizado, ou se as suas opiniões fossem tão vagas a ponto de se tornarem inexpressivas quando postas à prova, sua fé seria vazia e o evangelho nunca poderia ser anunciado. Crer em uma encarnação divina era anátema aos judeus e incompreensível àqueles gentios que consideravam a matéria maligna e fundamentalmente oposta à bondade de Deus. Todavia, se os cristãos duvidassem da encarnação, não teriam um Salvador a quem anunciar. Por mais bem intencionadas que algumas tentativas de reconciliar essas posições incompatíveis tenham sido, eram perigosas e tinham de ser combatidas. Jesus não poderia ser metade homem, nem fantasma, nem um ser angelical em forma humana. Ele tinha de ser sem pecado, mas, capaz de se tornar pecado por nós. De um alguma forma, humanidade e divindade tiveram de ser reconciliadas nele. Foram necessários muitos séculos para se desenvolver uma resolução que agradasse aos cristãos, e mesmo assim houve discordância, mas, a necessidade de uma declaração de fé transparente e inequívoca no Filho de Deus encarnado sempre foi prioridade. O mesmo se deu em relação ao Espírito Santo, cujo agir e presença eram fundamentais ao viver cristão e cujo relacionamento com o Pai e o Filho precisava ser entendido corretamente. Encontrar um preceito que transmitisse essa
ideia também foi difícil, e até hoje não se descobriu um que seja universalmente satisfatório, entretanto, os cristãos sabiam que precisavam dizer algo que explicasse sua fé da maneira mais clara e exata possível. As tentativas mal concebidas foram inevitáveis, e algumas tiveram de ser descartadas. É questionável se as pessoas que apresentaram tais soluções deveríam ser condenadas como malignas traidoras da fé, e é certo que hereges sofreram injustamente por seus erros, mas, falando de modo objetivo, a igreja não tinha outra escolha a não ser advertir seus membros a não sucumbirem à forma de pensar que destruiría o evangelho, e os desviaria da fé. O apóstolo Paulo foi particularmente sensível à possibilidade de sua mensagem ser adulterada, e o fato de sua missão ser importunada por falsos profetas que buscavam desfazer seus ensinos, assim como por membros de igreja que contestavam sua autoridade, apenas afiaram sua sensibilidade nessa questão. Ao escrever aos gálatas, por exemplo, ele afirmou: “Mas, ainda que nós ou um anjo dos céus pregue um evangelho diferente daquele que lhes pregamos, que seja amaldiçoado!”' Paulo sabia que isso andava acontecendo, mas, seu interesse principal não eram os detalhes dos erros que seduziram os gálatas. No que lhe dizia respeito, qualquer desvio de seu ensino deveria ser reprovado, fosse lá como fosse. Esses erros seriam identificados corretamente mais tarde, contudo, o importante era reconhecer o problema e lidar com ele, e, acima de tudo, foi por isso que Paulo escreveu sua carta. Antes de ser dogma da fé, a ortodoxia era assunto do coração. A menção do tema em Gálatas é de especial importância, pois essa foi uma das primeiras cartas escritas por Paulo, sempre considerada autêntica. Se o apóstolo falava tão francamente logo no início de sua carreira missionária, como duvidar que as repreensões feitas em outras cartas do Novo Testamento não tenham origem igualmente antiga? Não se sabe a natureza exata das heresias que surgiram na igreja do Novo Testamento, embora estudiosos tenham descoberto formas precoces de gnosticismo na linguagem usada para combatê-las. Isso não deve causar estranheza, uma vez que o mundo pagão era dominado por filosofias dualistas para as quais o espírito era bom e a matéria 7 7 Gálatas
1.8,9.
era ruim, uma divisão que os cristãos ortodoxos não aceitavam por ser incompatível com o relato bíblico da criação e com a encarnação do Filho de Deus. Ao combater opiniões desse tipo, os líderes cristãos compreenderam que a igreja tinha de reestruturar o universo mental do mundo antigo para que sua mensagem de salvação tivesse algum significado. Mas, antes de lidar com o paganismo dominante, a igreja precisava estar unida dentro de suas próprias fileiras, e isso exigia a aplicação de disciplina mais severa do que a usada no início. A natureza das heresias enfrentadas pela igreja e o escopo de sua influência podem ser medidos pelos escritos de Irineu (morto em 200?), natural de Esmirna, e que mais tarde se tornou bispo de Lyon, cidade situada hoje no sul da França. Irineu desenvolveu um catálogo enciclopédico contendo todas as formas de desvios da fé que conhecia e refutou todos eles com a defesa da verdade cristã a que eles se opunham.8 Sua obra não era uma teologia sistemática no sentido amai da palavra, contudo, era abrangente, e Irineu foi o primeiro escritor cristão a deixar material suficiente para reconstruirmos um sistema completo de crença. 9 O fato de Irineu também ser bispo é revelador, porque a essa altura tornava-se cada vez mais evidente que os bispos tinham a responsabilidade de proteger e defender a fé da igreja. Isso não quer dizer, de jeito nenhum, que todos os teólogos tinham função episcopal - Tertuliano e Orígenes, só para mencionar os dois mais importantes da geração seguinte, eram leigos -, mas, eram os bispos, na posição de líderes de suas igrejas, que decidiam o que era aceitável ou inaceitável como ensino ortodoxo cristão. A ortodoxia também estava tomando a forma da confissão de fé imposta aos candidatos ao batismo. A prática neotestamentária de batizar a pessoa logo após sua confissão de fé foi abandonada em favor de um período de instrução ou catequese, como era chamado, em que os novos convertidos aprendiam os rudimentos do cristianismo. Ao se apresentarem para o batismo, normalmente realizado durante um culto na igreja, os candidatos eram sabatinados sobre o que haviam 8 Irineu
de Lyons, Adversus omnes haereses. Veja E. Osborn, Irenaeus of Lyons (Cambridge: Cambridge University Press, 2001); D. Minns, Irenaeus: An Introduction (Londres: T&T Clark, 2010).
aprendido, e esperava-se que dessem as respostas pré-aprovadas. 10 11 Não havia roteiro fixo, e algumas frases que chegaram até nós mostram a diversidade de formas admitidas pelas igrejas da época. O surpreendente não são as diferenças entre elas, mas, as semelhanças. Para o leitor contemporâneo, essas frases se parecem muito com o que chamamos de Credo dos Apóstolos e são imediatamente reconhecidas quando encontradas em outros textos. 11 O modelo padrão de confissão era trinitariano, mesmo antes da elaboração da doutrina da Trindade. Havia três partes, dedicadas res pectivamente ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. O Pai era reconhecido como o Criador - um gesto que podería ser interpretado como primordialmente antignóstico e antimarciônico em sua ênfase. A vida encarnada do Filho foi apresentada em detalhes, com ênfase nos as pectos teológicos importantes. Por último, havia algumas frases sobre o Espírito Santo, suplementadas aqui e ali por itens que não se encaixavam em nenhum outro lugar — igreja, batismo, perdão dos pecados, vida eterna e assim por diante. As evidências sobreviventes parecem indicar que o importante mesmo era o padrão da verdade cristã, e não a forma exata das palavras usadas para expressá-lo. A versão do Credo dos Apóstolos usada hoje em dia surgiu pela primeira vez nos escritos de Pirmin de Reichenau, entre os anos 710 e 724. Esse texto do Credo se tornou famoso ao ser usado meio século depois por Carlos Magno e transformado em padrão nas liturgias criadas por religiosos de sua corte. 12 No entanto, a ideia fundamental pode ser remontada ao século 2 e mostra que a igreja já havia se transformado em uma sociedade que exigia confissão de crença ortodoxa de quem desejasse pertencer a ela. A PROPAGAÇÃO DO EVANGELHO
Quem desejava se filiar à igreja e por quê? Segundo o Novo Testamento, a mensagem do evangelho foi anunciada primeiramente aos 10 Descrições
do procedimento foram apresentadas no século 2. Veja Justino Mártir, Apologia /61; Tertuüano, De corona 3.2-3. Há também uma orientação curta sobre isso em Didache 7, possivelmente de antes do ano 100 d.C. 11 Kelly, Early Christian Creeds, 30-61. 12 Kelly, Early Christian Creeds 398-434.
judeus e só depois aos gentios, muitos dos quais já faziam parte do âmbito judaico, mas, até a época de Irineu, o cristianismo judaico havia praticamente desaparecido. O número de conversões entre os judeus era baixíssimo, o relacionamento com a sinagoga era distante e quase sempre hostil, e havia poucas tentativas de alcançá-los. A igreja, que no século anterior debateu se deveria aceitar gentios em seu rol de mem bros, tornou-se uma organização essencialmente gentílica e continua assim desde então. O que provocou tamanha mudança de rumo? A hostilidade da organização judaica contra os primeiros cristãos é muito bem documentada e totalmente compreensível. Se todos os judeus se tornassem cristãos, o judaísmo deixaria de existir, e raramente um povo se agrada da própria extinção que se aproxima. Não é de estranhar que os líderes judeus que tomaram para si a responsabilidade de manter a identidade religiosa e nacional de seu povo tenham se empenhado em esmagar o movimento cristão recém-nascido. Talvez seja mais difícil compreender que, mesmo depois de tantos anos da morte e ressurreição de Cristo, muitos judeus na diáspora desconhecessem a existência de cristãos. Somente no ano 49. d.C. a sinagoga romana foi perturbada pelas discussões sobre as afirmações de Jesus, do tipo que já conhecemos por meio dos relatos das viagens missionárias de Paulo. O próprio Paulo teve muitas oportunidades de pregar nas sinagogas porque ninguém sabia quem ele era, e isso aconteceu uns vinte anos ou mais depois do primeiro Pentecostes. Ficamos facilmente impressionados com o grande número de convertidos registrado no livro de Atos e nos esquecemos de que o mundo judeu era muito maior do que esse número. Alexandria era um dos centros mais importantes do judaísmo, e não existe registro sobre nenhuma igreja cristã nessa cidade antes do século 2. Assim sendo, era possível que judeus crescessem na sinagoga sem nunca conhecerem um cristão que fosse, mesmo na época em que a maioria dos cristãos era formada por judeus. Outro fator foi o destino trágico dos judeus no Império Romano. A Palestina se revoltou no ano 66 d.C., e quando a rebelião terminou, o templo em Jerusalém estava destruído. O mundo onde Jesus e Paulo ministraram havia desaparecido, e o judaísmo teve de se reinventar, o que fez com rapidez impressionante, contudo, no processo, ele se tornou
muito mais consciente de sua vulnerabilidade. Mais ainda, a destruição do templo não terminou com o sofrimento dos judeus. Outra rebelião aconteceu em Alexandria em 116-7 d.C., e dizimou a comunidade judaica ali existente. Mais uma insurreição ocorreu na Palestina em 132-5 d.C., e Jerusalém foi completamente arrasada e, então, reconstruída como Élia Capitolina, uma colônia de gentios da qual os judeus foram excluídos. Os cristãos não tinham interesse em se revoltar contra Roma, e em 66 d.C. eles foram embora de Jerusalém para escapar de seu destino inevitável. Os cristãos não achavam vantajoso ser intimamente ligados aos judeus, e a autopreservação teve papel importante na sua separação cada vez maior das políticas e cultura judaicas. Outro problema era a diferença de status legal que judeus e cristãos usufruíam. Apesar de toda a sua rebeldia, os judeus praticavam uma religião legalizada (religio licita) que os romanos toleravam por ser bastante antiga. Os cristãos não tinham o mesmo benefício. Da perspectiva romana, o cristianismo era uma seita não registrada e, portanto, não tinha direito de exigir reconhecimento. As religiões deveríam remontar a tempos imemoriais, porém o cristianismo tinha suas raízes fincadas em eventos recentes, e, além disso, em eventos nos quais agentes do estado romano haviam exercido papel inglório. Para Roma, permitir culto a alguém que ela havia crucificado como criminoso seria minar sua própria legitimidade, e isso jamais aconteceria. O resultado irônico foi que súditos judeus potencialmente desleais tinham permissão de exercer sua fé publicamente ao passo que cristãos leais eram proibidos de fazer isso. Com o passar do tempo, os cristãos viram que essa anomalia era uma injustiça despropositada, mas, nesse ínterim, a diferença entre o tratamento que judeus e cristãos recebiam do estado estava prestes a semear divergência entre esses últimos. Por fim, as ligações de família que mantiveram a primeira geração de judeus cristãos em contato com judeus que não haviam se entregado a Cristo começou a enfraquecer. Os cristãos eram aconselhados a não se casar com pessoas de outra fé, e isso significava que os filhos dos convertidos tinham opção de se casar com gentios ou com judeus. Conforme a geração mais nova se misturava dessa forma, os elos culturais e emocionais com o judaísmo que seus ancestrais ainda sentiam
iam desaparecendo. O afastamento foi gradual, contudo, até a época de Inácio de Antioquia, judeus e cristãos trilhavam caminhos separados, e a igreja não podia mais ser considerada “judaica” em nenhum sentido real e verdadeiro. 13 Os efeitos dessa mudança são observados nos escritos de Tertuliano, por exemplo. Ao defender a bravura e as convicções de cristãos que preferiram morrer a negar a fé, Tertuliano citou exemplos da história romana antiga e não da Bíblia hebraica, que era totalmente desconhecida fora dos círculos judaicos e cristãos. Os cristãos eram convocados a se comportar como os heróis legendários da antiga Re pública Romana (sobre os quais tinham ouvido), cujos ideais foram tão cruelmente solapados pela corrupção moral do império subsequente. 14 Desenvolveu-se a ideia de que a igreja seria a salvação do império por causa da fibra moral e espiritual de seus membros. Ao escrever para o imperador e a aristocracia de Roma, homens como Tertuliano e seus predecessores gregos — por exemplo, Justino Mártir e Atenágoras de Atenas — gostavam de enfatizar isso. Argumentavam que os cristãos eram os melhores cidadãos do império e que os alienar era grande tolice do estado. Provavelmente, eram seus defensores mais leais, contudo, em vez de aceitar os cristãos e seus ideais, as autoridades romanas preferiam atacá-los. Conforme o império enfraquecia por causa de conflitos internos sobre quem deveria ocupar o trono, e a corrupção nos altos escalões do poder se tornava progressivamente mais flagrante e intolerável, essa mensagem exercia apelo cada vez maior. Os romanos sabiam que algo deveria ser feito para salvar o império, que todos valorizavam devido à paz e prosperidade que levou ao mundo mediterrâneo, e havia consenso crescente de que a igreja era a única organização com desejo e capacidade para realizar essa tarefa. Os cristãos tinham algo que lhes dava a força interior que infelizmente faltava na sociedade romana em geral. Os cristãos estavam preparados para suportar o sofrimento e até 13
Para um estudo desse processo, veja T. A. Robinson, Ignatius of Antioch and the Parting of the Ways: Early Jewish-Christian Relations (Peabody, MA: Hendrickson, 2009).
14 Veja Tertuliano, Ad martyras,
escrito no fim do século 2 e seu Apologeticum 50.5-7.
mesmo a morte por causa da fé, e eles se apoiavam mutuamente. Na presença dos cristãos, os outros sentiam que estavam lidando com um poder espiritual ao qual podiam se opor, mas não derrotar. De modo gradual, mais e mais pessoas foram persuadidas da verdade, e a igreja passou a conquistar novos convertidos. Além de sua força interior e sua crescente rede de congregações, a igreja tinha algo mais a oferecer ao mundo greco-romano: a coerência intelectual de suas doutrinas. A sociedade pagã antiga estava dividida em um grupo de pessoas que praticavam uma religião que mal se distinguia da superstição e uma elite intelectual que menosprezava as crenças populares e buscava conforto em diferentes tipos de filosofia. A situação não seria tão ruim se todas as filosofias adotadas estivessem de acordo no que era essencial, mas, não era o caso. O estoicismo, por exemplo, ensinava que tudo o que existia era material. Até mesmo os espíritos não passavam de formas refinadas de matéria, uma crença que nos parece estranha, mas, ao menos era uma tentativa de superar o dualismo predominante em outros sistemas filosóficos. Os platonistas eram nitidamente antagônicos aos estóicos, e estavam lentamente transformando os ensinos de seu mestre em uma pseudorreligião própria. Para eles a realidade era espiritual - as coisas materiais não passavam de deturpações do ideal. E assim foi; epicureus, cínicos, aristotelianos e outros apresentaram várias formas de pensamento filosófico, mas, nenhuma se mostrou satisfatória quando examinada mais profundamente, e nenhuma delas conseguiu remover a superstição das massas. Nesse contexto foi que os evangelistas cristãos viram sua oportunidade, e não a deixaram passar. Eles ridicularizaram implacavelmente as inconsistências e deficiências dos vários sistemas de crença pagã que encontraram pela frente, e em substituição a essa crença, ofereceram uma fé que acolhia o raciocínio, mas, não era limitada a ele. Ensinavam que além de o universo possuir uma consistência interna global, era possível conhecermos seu Criador pessoalmente. Na verdade, foram os cristãos que introduziram nos discursos intelectualmente sérios a ideia do relacionamento pessoal com Deus como alicerce da vida humana. Os filósofos discursavam sobre amizade, mas, somente entre iguais e reservada apenas à elite intelectual. Mais ainda, a amizade tinha uma
forte dimensão homoerótica garantindo que nunca se tornaria amplamente popular. Em contrapartida, a igreja possuía uma visão coerente de um mundo guiado e governado pelo amor, no qual cada elemento tinha seu lugar próprio. Os conflitos não eram embates entre forças abstratas da natureza, mas, o resultado da desobediência e rebeldia contra o Criador, situação que ele mesmo teve de corrigir mandando seu Filho transpor a inimizade criada pelo pecado e dar aos seres humanos a possibilidade de recuperar a harmonia desfeita. Essa mensagem tinha um grande apelo, e a partir de mais ou menos 150 d.C., e certamente depois de 200 d.C., os cristãos eram intelectuais do mesmo gabarito daqueles do mundo romano. Isso era especialmente notório nas tentativas que os pagãos faziam para combater a influência cada vez maior dos cristãos. Um deles, certo homem chamado Celso, que escreveu por volta de 180-90 d.C., foi refutado ponto a ponto por Orígenes em uma defesa monumental do cristianismo, que continua sendo uma leitura de grande proveito. 15 O mais interessante sobre Celso é que ele já havia aceitado as premissas fundamentais do pensamento cristão. Ele concordou com seus oponentes que o mundo era um universo organizado e que era possível viver em harmonia com ele. A diferença era que, em sua opinião, um filósofo podería fazer isso tão facilmente quanto um cristão — na verdade, mais facilmente até, pois podería subtrair os princípios primordiais e transformá-los no âmago de seu sistema de crenças, sem ter de se prender a detalhes materiais ou ligar-se a uma figura histórica como Jesus. Ao provar a impossibilidade de separar o material do espiritual e proclamar que em Cristo o ideal cristão havia se tornado um ser humano específico, Orígenes mostrou que o cristianismo era superior a qualquer coisa que os pagãos tinham a oferecer, o que inevitavelmente o tornou mais atraente a um grupo cada vez maior de pessoas instruídas. A estratégia básica era clara: quando os pagãos começassem a raciocinar como os cristãos, pessoas como Orígenes argumentariam que a resposta cristã às suas perguntas era melhor do que qualquer uma que pudessem 15 Orígenes,
Contra Celsum, tradução
University Press, 1953).
de H. Chadwick (Org.), (Cambridge: Cambridge
imaginar, e assim a conversão a Cristo era a melhor alternativa entre todas as respostas. Alguns críticos do cristianismo achavam que ele não passava de outra religião oriental misteriosa mergulhada em superstição e filosofia que se fortalecia ao impor regras rígidas a seus membros, os quais formavam uma espécie de sociedade secreta. A inverdade disso é mais obviamente mostrada na prontidão dos cristãos em defender sua fé publicamente sempre que tinham oportunidade. Os não cristãos eram convidados a experimentar o cristianismo e ver com os próprios olhos como ele era de verdade, algo que nenhuma seita misteriosa jamais faria. Ao mesmo tempo, a fé cristã possuía conteúdo específico a ser aceito — não se tratava de adorar um poder superior sobre o qual pouco ou nada era conhecido; Jesus Cristo veio ao mundo revelar o Deus que os pagãos desconheciam, e para entender o significado do universo era necessário conhecer a Jesus primeiro e relacionar-se com ele. E evidente que a igreja estava influenciando a elite intelectual ao desenvolver um tipo de teologia sistemática e impô-la como crença ortodoxa. O que é menos óbvio, por não estar documentado, é o progresso que a igreja também fazia entre os grupos sociais e intelectuais menos privilegiados. A natureza urbana das primeiras igrejas dificulta sabermos o alcance que a mensagem do evangelho teve na zona rural, que era bem menos evangelizada que as cidades quando o cristianismo foi por fim considerado religião lícita. Mas, há registro de camponeses na África do Norte que se tornaram cristãos bem antes de 200 d.C., e tudo nos leva a crer que não foram um caso singular. Por volta de 300 d.C., havia edifícios dedicados ao culto cristão, embora não saibamos se foram construídos para esse propósito. E notável, por exemplo, que na perseguição ocorrida em 303 d.C., o primeiro acontecimento tenha sido a destruição de uma igreja localizada em frente ao palácio imperial de Nicomédia. O mais surpreendente, claro, é a existência de um edifício cristão naquele lugar. Uma mudança importante aconteceu por volta de 250 d.C. Antes disso, a igreja se constituía de uma minoria que sofria perseguição intermitente por parte das autoridades, mas, era ignorada pela maioria da população, pelo menos a maior parte do tempo. Após 250 d.C., a igreja
se tornou uma presença mais influente, especialmente nas províncias orientais do Império Romano, e não podia mais ser menosprezada. A evidência disso vem de um lugar surpreendente. No ano 260 d.C, a rainha Zenóbia de Palmira, uma cidade no deserto sírio que foi controlada durante muito tempo pelo estado romano, revoltou-se contra um império decadente e conseguiu capturar a cidade de Antioquia, dominando-a pelos próximos doze anos. A rainha nunca morou em Antioquia, mas, nomeou Paulo de Samósata, um bispo cristão local, governador da cidade e deu-lhe poder para agir em seu nome. Paulo de Samósata foi o primeiro bispo cristão a ocupar um cargo secular vislumbre fascinante do que estava por vir. Por que Zenóbia escolheu Paulo? Certamente, ela julgou que podería confiar em sua lealdade, pois ele não teria muito interesse em voltar a Roma, onde seria perseguido. No entanto, os cristãos em geral eram leais ao estado romano, apesar das dificuldades sob as quais trabalhavam, e muitos líderes da igreja de Antioquia não estavam satisfeitos com a posição de Paulo. Em 268 d.C., os cristãos convocaram um concilio, e Paulo foi deposto por heresia. Talvez ele fosse mesmo herege, contudo, a natureza obscura dos procedimentos, combinada com as óbvias implicações políticas, nos leva a duvidar se heresia foi o verdadeiro motivo da deposição. É possível também que houvesse na igreja muitos romanos leais ao Império que desejavam distância de Zenóbia, e a verdade é que depois de a rainha ter sido derrotada, Antioquia se mostrou muito tolerante com a igreja. Nessa época, Paulo de Samósata tinha fugido ou morrido, pois não se ouve mais nada sobre ele. No entanto, é razoável concluir que o motivo real de Zenóbia se agradar de Paulo como possível governador de Antioquia foi o fato de ele comandar uma base de apoio bastante expressiva. Tendo Paulo a seu lado, Zenóbia contaria com o suporte de um número suficiente de habitantes para manter Antioquia em suas garras. Se esse foi o caso, temos aqui uma evidência, embora tênue, de que a igreja era a força social dominante na cidade naquela época. Um modo mais objetivo de analisar esse fenômeno é baseado na descoberta de papiros no Egito. Esses papiros vieram de áreas rurais; de outra forma, não teriam sobrevivido. Também nesse caso, o ano 250 d.C. representa um divisor de águas. Antes desse ano, papiros cristãos
eram raros, mas, depois sua frequência aumentou de modo extraordinário. Considerando que no mundo antigo a maioria da população não era alfabetizada, é difícil associar essa descoberta com a propagação do evangelho às classes mais pobres da sociedade e à zona rural, porém é inegável o aumento substancial de cristãos sem estudo formal na segunda metade do século 3. A igreja se tornou uma organização social de um jeito nunca visto; à medida que sua influência aumentava, mais atraente ela se tornava aos não cristãos. Algo na igreja estava dando certo, e aos poucos uma sociedade inteira foi transformada. Quando foi considerada lícita, a igreja já estava tão bem estabelecida que não poderia ser erradicada. Incapaz de derrotar os cristãos, o império se uniu a eles, e teve início uma nova fase na história da igreja. A linguagem usada no culto público é outro indicador do alcance social mais abrangente da igreja a partir de 250 d.C. Até por volta de 200 d.C. a maioria dos cristãos falava grego, mesmo que fosse como segunda língua. Mas, começavam a surgir manuscritos em outros idiomas, especialmente latim. Quando Irineu, que falava grego, foi a Lyon, em 178 d.C., ele ministrou ali em seu idioma materno, supostamente porque a igreja, que veio de fora, ainda usava o grego. Contudo, o latim já era usado na África do Norte, onde se tornou dominante até o fim do século. Roma, que em muitos aspectos ocupava os dois mundos linguísticos, tinha elementos do grego e do latim pelo menos até meados do século 3, época em que Hipólito escrevia em grego, e seu contemporâneo Novaciano escrevia em latim. No entanto, logo depois, a liturgia romana foi latinizada, e em pouco tempo o grego foi eliminado. O que hoje chamamos de indigenização havia se estabelecido — um sinal inequívoco de que a igreja estava fincando raízes em nível social mais profundo que anteriormente. Fenômeno parecido foi observado ao leste do Mediterrâneo. Desde a época de Alexandre, o Grande, o grego era o idioma comercial do lugar, e continuou sendo. Mas, no século 3, começaram a aparecer escritos cristãos em copta, a língua nativa do Egito, e em siríaco. O uso do grego não foi descontinuado da mesma maneira que no ocidente, entretanto o surgimento de uma igreja poliglota comprova o mesmo fenômeno de indigenização crescente. E certo que havia limites a esse
processo; ninguém pensou em traduzir a Bíblia para idiomas como o gaulês, o basco, ou berbere (no ocidente), ou licônio, ilírico ou trácio (no leste). Mesmo assim, no decorrer de seus esforços evangelísticos no século 3, a igreja se tornou multdlíngue como nunca havia sido — a promessa do Pentecostes se tornava realidade. Geograficamente falando, evidências arqueológicas confirmam que no século 3 a igreja se espalhou pelos quatro cantos do Império Romano. Quase no fim do período do Novo Testamento, essa disseminação existia apenas esporadicamente - na Palestina, por exemplo, e também na Ásia Menor e Galácia. Contudo, ainda não se encontravam igrejas em todas as cidades do império; grandes áreas do Ocidente, em particular, permaneciam intocadas. Mas, depois de 150 d.C, a situação mudou. Soldados do exército romano e comerciantes convertidos anunciavam o evangelho por onde passavam, e fundavam igrejas ao longo do caminho. Na época em que a igreja foi legalizada, havia pelo menos três bispos na Britânia, província romana; isso significa que houve ali um grande esforço evangelístico bem antes de 313, embora não se saiba de onde veio e quando aconteceu. O mesmo foi verdade em todos os lugares, de modo que no início do século 4 praticamente todas as cidades romanas importantes tinham uma igreja, ainda que a porcentagem da população que se juntou a ela fosse bem pequena em muitos lugares. O
BATISMO DE FOGO
Não sabemos muito sobre a propagação do evangelho pelo mundo romano antes de a igreja ser legalizada. A pregação pública como a encontrada no Novo Testamento era ilegal e provavelmente rara, mas, talvez acontecesse em lugares remotos. O boca a boca deve ter sido um fator importante, mas, por sua natureza, é impossível rastreá-lo ou documentá-lo. Na antiguidade, a vida pessoal era mais exposta do que hoje em dia, e quando alguém da vizinhança se tornava cristão, a notícia da conversão se espalhava rapidamente. Mas, é difícil saber o efeito que isso causava em terceiros. O que se sabe é que uma das formas mais eficientes de evangelização era o testemunho público dos cristãos, o que nos séculos de perseguição significava dar a vida por amor a Cristo e ao
evangelho. O termo grego para “testemunha” é
márúr‘\
íi
palavra que
fala por si. Como Tertuüano disse: “O sangue dos mártires é a semente da igreja”; sua observação se mostrou verdadeira pela relevância que o martírio teve na autocompreensão do cristão. 16 No mundo antigo, morrer pela fé era acontecimento raro. Guerras e assassinatos políticos eram comuns, e muitas vezes pessoas importantes sofreram as consequências. O filósofo grego Sêneca (4 a.C? — 65 d.C.), por exemplo, cujas opiniões como estoico eram parecidas com a de muitos cristãos, foi forçado pelo imperador Nero a cometer suicídio, não por sua filosofia, mas, porque estava muito próximo do trono im perial, e o imperador paranoico achava que o filósofo era uma ameaça à sua posição. 17 Um século antes, o famoso estadista e filósofo Cícero (106 - 43 a.C.) também foi condenado e assassinado não por motivos ideológicos, mas políticos. O exemplo principal de alguém morto por fanáticos anti-intelectuais é Sócrates, que em 399 a.C. foi obrigado a beber cicuta porque, supostamente, corrompeu os jovens de Atenas e negou os deuses da cidade. Entretanto a reação do povo foi tão violenta e duradoura que nada parecido jamais se repetiu. Os romanos deixavam os filósofos em paz desde que não se metessem em política, e o mesmo valia para os líderes religiosos. Jesus não foi morto por causa de seus ensinos teológicos, mas porque Pôncio Pilatos achou que os ensinos ameaçavam a paz. Pilatos não temia os ensinos de Cristo, e sabia que pelas leis romanas Jesus era totalmente inocente, porém também achou que a liderança judaica salivava por seu sangue, e que certamente haveria tumulto se não conseguissem o que desejavam. 18 Jesus sabia, claro, que veio ao mundo para morrer, e preparou os discípulos para essa hora. Sua morte teve um propósito teológico necessário à realização de sua missão, pois sem o derramamento de seu sangue não haveria perdão de pecados. Nesse sentido, sua morte foi um acontecimento único e não poderia ser imitado nem repetido por ninguém. Porém, ao mesmo tempo, Jesus ensinou aos discípulos 16 Tertuliano ,Apologeticum, 50.13. 17 Para
saber a visão favorável de Tertuliano sobre Sêneca, leia seu De anima 20.1.
1 K J /
que eles teriam de carregar a própria cruz, se desejassem segui-lo de verdade. Ser discípulo de Cristo não era fácil, e o Senhor previu que alguns deles, pelo menos, teriam morte semelhante à sua. Jesus lhes disse que havia sofrido um batismo de fogo que eles não compreenderíam enquanto usufruíssem de sua presença, mas, em breve, a realidade iria acertá-los em cheio. 19 Seguir a Cristo até o fim significava entregar a vida por ele, mesmo antes de ela ser tirada à força. O apóstolo Paulo explicou o assunto muito bem quando disse aos gálatas que ele havia sido crucificado com Cristo, e certamente esperava que essa fosse uma experiência comum a todos os cristãos. 20 Aqueles que morreram e nasceram de novo espiritualmente estavam mais bem preparados para o sofrimento físico e a morte, pois sabiam que essas coisas não afetariam seu destino eterno, a não ser apressar o usufruto pleno de suas bênçãos. 21 Dessa perspectiva, talvez a espera da morte valesse a pena, embora a igreja nunca tenha incentivado ninguém a se oferecer como sacrifício. Os cristãos deveríam viver aqui na terra de maneira plena, mas, estarem prontos a entregar a vida se necessário, e não cortejar o próprio martírio pelo valor do martírio em si. Nesse caso, buscar a morte se revelou inútil, pois em breve o martírio chegou à igreja. O primeiro caso está registrado em Atos dos Apóstolos. O diácono Estêvão foi preso por anunciar o evangelho e condenado à morte por blasfêmia, a mesma acusação que os sumos sacerdotes fizeram contra Jesus. 22 O martírio de Estêvão é narrado detalhadamente, mas, foi um caso excepcional — e ilegal. A liderança judaica nunca promoveu massacre de cristãos, embora os sacerdotes do templo desejassem ardorosamente acabar com eles. Paulo de Tarso foi um dos espectadores do apedrejamento de Estêvão.23 Saulo se ofereceu para perseguir os cristãos e acabar com eles, e mais tarde se autoacusou de ter perseguido a igreja, mas, fracassou de modo retumbante e não conseguiu nada. Mesmo assim, Saulo (ou 19 Lucas
12.49-53.
20 Gálatas
2.19,20.
21 Filipenses
1.21-23 22 Atos 6.8—7.60
Paulo, como costumamos chamá-lo) tinha mais consciência do perigo que seus oponentes representavam, e parece que a morte estava sem pre a rondá-lo.24 Acredita-se que Paulo e Pedro foram martirizados por causa da fé, embora não se saiba quando e onde isso aconteceu. Provavelmente foi em Roma, depois do grande incêndio de 64 d.C., pelo qual Nero culpou os cristãos. A acusação era fátua, claro, como a população reconheceu, mas, quando os cristãos ficaram sob suspeita, as autoridades tiveram dificuldade em mudar o curso dos acontecimentos. Não se sabe a duração da primeira perseguição ou até onde ela se estendeu, contudo, os cristãos não tiveram mais sossego. No entanto, a morte não era o único castigo imposto pelas autoridades. João foi exilado na ilha de Patmos, mas, sobreviveu à experiência, até onde sabemos.25 Não havia diretrizes ou procedimentos no trato dado aos cristãos, um problema que gerou incerteza e aumentou a possibilidade de sofrerem arbitrariamente. Em 111 d.C., na Bitínia, os cristãos são denunciados às autoridades, que não sabiam como puni-los. Plínio, o Jovem, governador da província naquele ano, escreveu ao imperador Trajano sobre o problema, todavia sua maior preocupação era o que fazer com as denúncias, muitas delas anônimas. Nunca lhe ocorreu, tam pouco ao imperador, que ser cristão não era crime; os dois concordaram que era e nem questionaram a decisão. Plínio pressupôs que existiam leis contra o cristianismo e apenas queria saber como aplicá-las. Trajano o aconselhou a ignorar denúncias anônimas, pois eram indignas dos altos padrões da justiça romana, contudo, não se aprofundou no assunto. Essa situação curiosa continuou por mais dois séculos. Apologistas cristãos enfatizavam seguidamente que eles não eram culpados de nada e que persegui-los era um ato irracional. No entanto, embora o argumento deles fosse incontestável, isso não impediu o governo de perseguir seus alvos. Mas, mesmo que o cristianismo fosse considerado ilegal, seria um erro afirmar que a perseguição praticada contra ele era constante ou universal. Houve longos períodos em que quase nada foi feito para eliminá-lo, e algumas áreas do império foram bem pouco atingidas. As autoridades romanas não tinham meios de aplicar 24 2Coríntios
11.23-27.
as leis como os países de hoje têm, e geralmente tinham coisas mais importantes a fazer. Contudo, a ameaça de perseguição era uma som bra constante, e se acontecesse um desastre natural que exigisse uma vítima para aplacar a ira dos deuses, os cristãos eram bodes expiatórios convenientes. Todavia, estudiosos contemporâneos concordam que o retrato tradicional que mostra cristãos sendo atirados aos leões no Coliseu é inexato. Não existe evidência nenhuma disso ter acontecido; a lenda é totalmente baseada em uma frase memorável de Tertuliano, segundo quem toda vez que algo dava errado o povo gritava: “Cristãos aos leões”.26 Apesar de as lendas serem exageradas, ataques intermitentes e localizados aos cristãos eram sempre um perigo, e de tempos em tempos o estado procurava lidar com o problema de uma vez por todas. Duas perseguições maiúsculas, uma sob o comando do imperador Décio, em 251 d.C., e outra sob o comando de Diocleciano, em 303-5, se destacam como especialmente significativas, e a segunda provocou uma crise que levou o cristianismo a ser considerado legítimo. A perseguição liderada por Décio aconteceu depois de um período relativamente longo de paz e foi ocasionada pela percepção gradativa de que os cristãos estavam em todos os lugares. Alguém que sofreu nessa época foi o notável teólogo Orígenes (185P-254), espancado com tamanha selvageria que nunca se recuperou dos ferimentos. Cipriano de Cartago (200P-258) foi decapitado alguns anos mais tarde, na segunda onda de perseguições, contudo, os detalhes da brutalidade são obscuros. É nítido, porém, que membros da igreja instruídos e proeminentes foram perseguidos de um modo nunca visto por quase um século, o que inevitavelmente agravou uma situação que já era dolorosa. No entanto, foi a grande perseguição liderada por Diocleciano que provocou a verdadeira crise. Diocleciano foi um imperador vigoroso e reformador, determinado a endireitar o império de uma vez por todas. Livrar-se da ameaça cristã era parte integrante de seu plano. Para Diocleciano, somente uma perseguição total e completa iria dar algum resultado, então, ele iniciou o que hoje chamaríamos de reinado de terror. Os cristãos eram detidos e obrigados a entregar livros e outros 26 Tertuliano,
ol
40.2.
objetos de valor que possuíssem. Quem obedecesse era considerado traditor (entregador), palavra que chegou a nós como “traidor”. A grande perseguição foi devastadora, porque ao redor do ano 300 um grande número de pessoas importantes era cristão. Muitas tentaram fugir, e algumas renunciaram à fé para salvar a pele. Contudo, outras enfrentaram corajosamente a morte, e provavelmente essa perseguição que durou dois anos gerou mais mártires do que todas as outras juntas. A perseguição do imperador Diocleciano findou em 305, quando ele abdicou do cargo, e ficou claro que havia fracassado. Um número grande demais de cristãos havia sobrevivido aos ataques, e aqueles que foram mortos se transformaram em heróis da noite para o dia. De alguma forma, o império teria de fazer as pazes com a igreja, o que aconteceu ao longo dos próximos dez anos. Diocleciano viveu para ver o acontecimento — ele morreu em 316 — mas, como estava afastado do trono, não pôde fazer nada a respeito. A cruz de Cristo finalmente triunfou sobre a águia de Roma. A igreja acreditava que os mártires foram diretamente para o céu quando morreram. Talvez houvesse dúvidas quanto ao estado espiritual daqueles que pecaram depois de serem batizados, contudo, o batismo de fogo liquidou qualquer dívida que tivessem com Deus. Os mártires rodeavam o trono de Jesus, o Cordeiro que foi morto, e imploravam justiça para o povo de Deus na terra. 27 De todas as ligações que a igreja tinha entre este mundo e o futuro, as súplicas dos mártires no céu era uma das mais poderosas. Em geral, a crença era que os mártires carregariam por toda a eternidade as feridas de seus sofrimentos como distintivos de honra. O sofrimento era motivo de glória — desde que fosse indesejado. Quem buscasse viver para Cristo seria perseguido, acreditava-se, então, era agindo da maneira correta que o povo de Deus cumpriría a ordem do Senhor de pegar a sua cruz e segui-lo. Assim, o martírio se tornou garantia de santificação, para a qual havia prova concreta. As boas obras talvez fossem realizadas em oculto, porém os mártires eram vistos por todos, e recebiam a honra apropriada. Os sepulcros dos mártires se tornaram centros de peregrinação, e muitos acreditavam que suas relíquias tinham poder de cura. 27 Apocalipse
6.9-11.
Tal superstição nunca foi aprovada por nenhum concilio eclesiástico, mas, era amplamente difundida, especialmente na África do Norte, e mostrou ser de difícil trato quando a perseguição oficial à igreja aca bou. Muitos especulavam se as perseguições perseguições findaram porque a igreja perdeu sua ousadia e acomodou-se ao mundo. Em Cartago, uma cisão irrompeu na igreja quando uma mulher chamada Lucila pediu que o bispo abençoasse os ossos de um mártir enquanto ela recebia a ceia. Como o bispo recusou o pedido, Lucila e seus partidários o acusaram de colaborar com os inimigos da igreja que haviam perseguido bem recentemente. Parece que Lucila era uma encrenqueira inveterada. Quando o referido bispo, chamado Ceciliano, foi eleito em 305, Lucila e seus amigos o repeliram porque ele foi consagrado por Félix de Aptunga, que havia entregado as Escrituras às autoridades durante a grande perseguição. O grupo, então, procedeu à eleição de um bispo rival, um certo Majorino, e envidaram todos os esforços para que ele fosse aceito no lugar de Ceciliano. Buscaram até mesmo a ajuda do imperador Constantino, logo após ele ter legalizado o cristianismo em 313, mas, não conseguiram convencê-lo do mérito de seu caso. Em consequência, Lucila e seus amigos se apartaram da igreja tradicional, acusando-a de se acomodar ao mundo e de impureza, e organizaram congregações de cristãos verdadeiros. Ficaram conhecidos como donatistas, em homenagem a Donato, que foi um de seus primeiros líderes, e tudo indica que foi um bispo de qualidades e caráter excepcionais. O donatismo tinha um apelo emocional fortíssimo ao povo que havia sofrido perseguição e sentiu-se traído pela igreja, que aos seus olhos, estava mais interessada em conquistar favores de seus antigos perseguidores do que em imitar aqueles que entregaram suas vidas por amor a Cristo. Seu poder se esvaiu apenas um século mais tarde, e mesmo assim, sobreviveu enquanto existia uma igreja cristã na África do Norte. 28 Enquanto a perseguição durou, o martírio era um lembrete poderoso de que a igreja estava em guerra com as forças que governavam este mundo. Sua missão nunca contemplaria integração na sociedade 28 Sobre
o Donatismo, veja W. H. C. Frend, The Donatist Church: A Movement Movement of Protest
u z
em geral, pois, de certa maneira, sempre teria de ser confrontadora. Os cristãos não viveríam felizes ao lado dos pagãos, pois sua visão do mundo era incompatível. O paganismo era irracional e imoral, e para os cristãos ele teria de ser reprimido sempre que possível. Seria excessivo afirmar que quando a igreja alcançou o poder no mundo romano, ela perseguiu os pagãos da mesma forma que havia sido perseguida, embora tenham acontecido casos atrozes pelos assim chamados cristãos; mais notável foi o assassinato terrível da filósofa pagã Hipátia de Alexandria em 415 d.C. É verdade que os cristãos se empenharam em persuadir pagãos a se converterem ao cristianismo, cristianismo, mas, em geral, não chegaram a matá-los, pelo menos porque os não convertidos iriam para o inferno, o que os cristãos não desejavam. Embora seja difícil compreendermos hoje, o objetivo da igreja era conquistar outros para Cristo para que fossem salvos. Se, às vezes, os meios usados infringiam o livre arbítrio das vítimas, deveríam ser comparados às campanhas contemporâneas de vacinação e coisas assim, que são forçadas àqueles que as recusam. O consenso dizia que a salvação era boa para quem a recebia, soubesse ou não disso, e essa era a política da igreja. Se a igreja parecesse tirana, era por uma boa causa, atitude que persistiu durante séculos em alguns lugares, mas, parece estar extinta agora. O
DESENVOLVIMENTO DO EPISCOPADO
Enquanto a igreja se espalhava pelo mundo romano e encarava novos desafios, uma de suas maiores preocupações era a necessidade de preservar a unidade. Isso nunca foi fácil, como provam as desavenças que eclodiram no período do Novo Testamento. Se os novos convertidos se opuseram ao ensino do apóstolo Paulo, a quem conheciam e ouviram pessoalmente, quanto mais fácil não seria àqueles que não conheciam os apóstolos repudiarem seus ensinos? Quem tinha autoridade para decidir decidir o que era certo certo e impor a decisão à igreja igreja como um todo? Foi nesse clima e contexto que surgiu o famoso episcopado monárquico. Em geral, as igrejas locais continuavam a ter uma forma de liderança coletiva, mas, com o tempo, o bispo ( episkopos), que era eleito
llô
pela congregação para serviço vitalício 29, passou a ter cada ve 2 mais autoridade. Nos tempos modernos, dá-se muita ênfase, especialmente na tradição católica, ao que chamamos de sucessão apostólica, que é supostamente transmitida de uma geração à outra pela imposição de mãos. Contudo, para a igreja primitiva, o que importava não era quem impunha as mãos em quem, mas, se o bispo eleito preenchia os critérios rigorosos estabelecidos para o oficio nas Epístolas Pastorais. Alguém podería ser consagrado pelas pessoas certas e ainda ser inaceitável caso sua vida e doutrina ficassem abaixo do exigido, e nessas circunstâncias os primeiros cristãos não hesitavam em depor o líder. Já no
Diidache nós D
lemos: “Constituam para vocês bispos e diáconos que sejam dignos do Senhor; homens que sejam humildes, não avarentos, sinceros e experientes, porque também lhes servem como profetas e mestres”. 30 Clemente de Roma, ao escrever por volta de 95 d.C., expressou idéias parecidas. Clemente tinha ciência da competição para o cargo episcopal e advertiu a igreja para que não rescindisse uma nomeação a não ser que houvesse uma boa razão para isso. 31 Alguns anos mais tarde, Inácio de Antioquia orientou as igrejas a se submeterem aos bispos e presbíteros, embora fizesse questão de afirmar que não podería lhes dizer o que fazer, pois não tinha a mesma autoridade de um apóstolo. 32 Apesar de se ver ocupando uma posição subordinada à dos apóstolos, Inácio não hesitou em comparar o relacionamento de um bispo com seus presbíteros ao de Cristo (ou Deus) com seus apóstolos. 33 Na opinião de Inácio, existia uma harmonia divina entre o céu e a terra que se refletia na hierarquia de autoridade originária do Pai ao Filho, e deste para os bispos e presbíteros da igreja na terra. O bispo tinha duas responsabilidades principais: primeiramente, foi chamado a anunciar a Palavra de Deus na igreja, e Inácio advertiu 29 Como
é provável que ele já fosse alguém de idade quando eleito, e as pessoas em geral não viviam tanto quanto hoje, possivelmente um bispo não servia por muito tempo. *Didache 15. 31 / Clemente 44. A mesma advertência foi feita por Cipriano de Cartago, ao escrever 150 anos mais tarde. Veja Epis Epistu tula laee 40.2; 43.1. 32 Inácio de Antioquia, AdRo AdRoma mano noss 4.3; AdEp AdEphe hesi sios os 3; Ad Tral Trallliano ianoss 3.
aos cristãos que quem não aceitasse seus ensinos seria considerado herege;34 depois, ele deveria presidir a Eucaristia, que seria inválida de outra maneira.35 A palavra dessas primeiras testemunhas é confirmada por Irineu, Clemente de Alexandria (morto em 215?) e Tertuliano, e todos estes escreveram duas gerações mais tarde. Cipriano, bispo de Cartago uma geração depois de Tertuliano, desenvolveu a filosofia da igreja mais detalhadamente e é hoje considerado uma das fontes mais importantes para o que se tornou conhecido como ensino “católico” sobre o ofício episcopal. Cipriano foi a primeira pessoa a fazer referência específica à declaração de Jesus a Pedro em Mateus 16.18 como fundamento para a organização episcopal da igreja no futuro. Em suas palavras: A partir dali [Mateus 16.18], a ordenação dos bispos e a organização da igreja tiveram continuidade, de modo que a igreja está alicerçada nos bispos, e cada decisão da igreja é controlada por esses mesmos governantes. Como esse sistema se baseia na lei de Deus, espanto-me de que algumas pessoas ousem me escrever como se representassem a igreja. A igreja está alicerçada no bispo, no clero e em todos os que se firmam na fé. 36 Cipriano reconheceu que a autoridade do bispo derivava da incum bência que Cristo deu a Pedro, porém não a relacionava ao bispo de Roma, cujas reivindicações de primazia sobre a igreja por ser sucessor de Pedro ele negava categoricamente. 37 Cipriano estava sempre disposto a escrever aos romanos insistindo para que resolvessem os assuntos daquela igreja, e fez isso em várias ocasiões. 38 Chegou a escrever ao Papa Lúcio I (r. 253-54) parabenizando-o por seu retorno do banimento e não lhe mostrou o menor sinal de deferência como sucessor de Pedro e cabeça da igreja. 39 Pelo contrário, como essa correspondência mostra, geralmente eram os romanos que escreviam a Cipriano pedindo con 34 Inácio 35 Inácio
de Antioquia, AdPh AdPhil ilad adel elph phia iano noss 1-2.
Philade ladelp lphi hian anos os 4; Ad Smyrn Smyrnae aeos os 8. de Antioquia, As Phi 36 Cipriano de Cartago, Epis Epistu tula laee 26.1. 37 Cipriano de Cartago, Epis Epistu tula laee 70.3. 38 Cipriano de Cartago, Epis Epistu tula laee 3; 14; 22,23; 28; 40; 43; 47; 51.
selhos, algo inimaginável nos séculos posteriores. Quase no fim de sua vida, Cipriano presidiu um concilio de oitenta e sete bispos africanos, que rejeitaram a condenação do Papa Estêvão I relativa a um decreto deles sobre batismo administrado por hereges e reafirmaram seus direitos de decidir o assunto por conta própria. 40 Quanto ao status e à jurisdição dos bispos, Cipriano estava ciente de que as igrejas tinham padrões diferentes de disciplina, mas, insistia em que cada bispo era livre para agir como quisesse em tais assuntos, desde que mantivesse a unidade da fé e do culto com outros bispos e suas igrejas. 41 O bispo era o foco de união da igreja, chegando ao ponto de ser identificado com ela. 42 Sua função havia sido estabelecida por Cristo na forma de apostolado, enquanto os outros cargos ministeriais eram criações humanas e, portanto, inferiores em origem e autoridade. 43 O que emerge disso tudo é que Cipriano imaginou uma igreja na qual os bispos das congregações locais eram tanto autônomos em suas jurisdições como também ligados uns aos outros por um colegiado alicerçado na adesão comum e responsabilidade às práticas e ao ensino apostólicos. Os problemas, à medida que surgiam, seriam tratados por concílios formados por bispos. No Norte da África, esse padrão estava bem enraizado quando Cipriano faleceu, e há evidência (da deposição de Paulo de Samósata, por exemplo) que procedimento similar era usado em outros lugares. A perseguição contínua à igreja impossibilitou o estabelecimento de concílios regulares, mas, a estrutura manteve-se no lugar, e quando finalmente a igreja foi legalizada, os concílios puderam se tornar públicos (e se tornaram). O Primeiro Concilio de Niceia, em 325, que foi para a história da igreja marca de uma nova época, só foi possível porque seu alicerce foi lançado durante os séculos de perseguição que acabara de chegar ao fim. 40
Decr Decree ee of the Seve Sevent nth h Coun Counci cill of Cart Cartag agee Sob Sob a Pres Presid idên ênci cia a de Cipr Cipria iano no,, em TheAnte-Nicene
Fath Father ers, s, A. Roberts etal, (Orgs.), (Grand Rapids: Eerdmans, 1951-53), 5:565. Estê-
vão morreu no ano anterior, assim a condenação foi póstuma, mas, tal liberdade de rejeitar a autoridade papal se tornaria inconcebível mais tarde. 41 Cipriano de Cartago, Epi Epistul stulae ae 51.21; 71.3. 42 Cipriano de Cartago, Epis Epistu tula laee 54.14; 68.8. 43 Cipriano de Cartago, 64.3.
UMA DOUTRINA DA IGREJA EM EVOLUÇÃO
Foi durante os séculos de perseguição que a igreja alcançou um nível de autoconhecimento que nos possibilita afirmar que a eclesiologia era um aspecto definitivo da doutrina cristã. Declarações formais sobre eclesiologia tiveram de esperar até mais tarde, porém o mesmo aconteceu com outras doutrinas; as importantes questões da Trindade e da Cristologia não foram resolvidas até a igreja ficar livre para funcionar como entidade legalizada, e sua autodefinição era parte integral disso. Em sua primeira fase de desenvolvimento, a doutrina da igreja estava intimamente ligada à função do bispo, como acabamos de ver, porque o bispo representava Cristo, que era o pastor da igreja universal.44 O corpo era constituído pela cabeça, o alicerce de sua existência. Isso significava que a igreja existia somente onde o ensino de Cristo era mantido em sua pureza original. 45 Irineu era inflexível nesse ponto, insistindo que igrejas fiéis preservavam a verdade recebida em comum com suas irmãs espalhadas pelo mundo: A igreja recebeu essa pregação e essa fé. Embora esteja espalhada pelo mundo, ela preserva preserva isso cuidadosamente, cuidadosamente, como se vivesse vivesse em uma única casa. Crê nessas doutrinas como se tivesse uma só alma e um só coração. Proclama essas verdades, ensina-as e transmite-as em perfeita harmonia, como se tivesse apenas uma uma boca. 46 Irineu sabia muito bem que existiam falsos mestres na igreja, porém acreditava que poderíam ser descobertos por suas falsas doutrinas e maneira impura de viver; dois erros que, em sua opinião, geralmente andavam juntos. 47 O dom do ensino foi dado pelo Espírito Santo, e onde o Espírito estava presente, a igreja também seria encontrada. 48 Essa opinião era compartilhada por seu contemporâneo oriental Clemente de Alexandria e talvez fosse considerada padrão por volta do ano 200
44 Marty Martyrd rdom om of Poly Polyca carp rp 19. 45 Teófilo
de Antioquia, AdAu AdAuttolyc olycum um 2.14. 46 Irineu de Lyon, Adve Advers rsus us omne omness haer haeres eses es 1.10.1. 47 Irineu de Lyon, Adve Advers rsus us omne omness haer haeres eses es 4.26.2—4. 48 Irineu de Lyon, Adve Advers rsus us omne omness haer haeres eses es 3.24.1.
d.C.49 Tertuliano foi igualmente insistente na primazia da doutrina e da unidade da tradição apostólica ao redor do mundo. 50 Tertuliano foi mais crítico dos ministros da igreja do que a maioria de seus contem porâneos, mas, somente por achar que eram infiéis aos ensinos que deveríam professar, e não por discordar do que ensinavam. 51 Orígenes, que escreveu um pouco mais tarde, tinha a mesma opinião. 52 Entretanto, como aconteceu com o delineamento do cargo de bispo, se deu também com a doutrina da igreja em geral, pois foi Cipriano quem cristalizou o ensino dos patriarcas para as futuras gerações, e é a ele, mais do que a qualquer pessoa da antiguidade, que os teólogos de hoje se referem de imediato quando discutem a doutrina da igreja. Cipriano concordou com seus predecessores quanto à importância de manter a pureza da doutrina apostólica, e acreditava que os bispos e presbíteros foram especialmente escolhidos e preparados para essa tarefa. No entanto, ele também reconheceu que havia elementos im puros na igreja, e que como Jesus havia dito, o trigo e o joio cresceríam juntos até a época da colheita. 53 No seu entender, essa era uma verdade que os cristãos teriam de aceitar e não era desculpa para ninguém abandonar a igreja. Aqueles que iniciaram suas próprias comunidades de adoração por achar que a igreja era imperfeita estavam iludindo a si mesmos, levados pela falsa ideia de que seriam corrompidos pelos pecados de terceiros se continuassem a congregar com eles. 54 Desvios tinham de ser entendidos pelo que eram e não definiam a igreja como um todo. O perdão dos pecados por meio do batismo e arrependimento era um dom divino à igreja, que o administrava em nome de Cristo e de acordo com suas promessas. 55 Isso explicava a impossibilidade de haver salvação fora da igreja. 56 49 Clemente
de Alexandria, Paedagogus 6. 50 Tertuliano, Depraescriptione haereticorum 20—21.
51
Em De exhortation castitatis 7, Tertuliano argumenta que como os clérigos são escolhidos de entre o laicato, não são necessários à constituição da igreja, que pode existir muito bem sem eles. 52 Orígenes, Contra Celsum 6.45. 53 Cipriano
de Cartago, Epistulae 50.3. Veja Mateus 13.24—29. 54 Cipriano de Cartago, Epistulae 51.25—27. 55 Cipriano de Cartago, Epistulae 72.10.
118
Provavelmente, nenhuma declaração sobre a igreja provocou mais controvérsia do que essa. Cipriano estava falando sobre batismo, que havia sido confiado à igreja como um sinal da fé salvadora revelada em Cristo. Ele não estava afirmando que sua eficácia dependia da condição espiritual do ministro. Desde que fosse administrado de acordo com o ensino apostólico, o batismo era válido, e aqueles batizados de maneira correta iriam naturalmente buscar comunhão com a igreja que confessasse a fé apostólica. Cipriano não tinha de decidir que igreja era essa, pois em sua época havia somente um corpo que poderia de forma razoável receber esse nome. Séculos mais tarde, sua declaração seria usada para afirmar que os protestantes não estavam salvos porque haviam deixado a Igreja Católica Romana, situação que nem havia passado pela cabeça de Cipriano. Se ele estivesse vivo no século 16, é bem provável que teria se juntado a Martinho Lutero contra o papa. E impossível afirmar o que ele teria pensado de Lutero, contudo, temos evidência suficiente de que Cipriano estaria preparado para rejeitar as acusações papais que foram atiradas contra Lutero. Cipriano também fez uma distinção interessante entre batismo nas águas e o recebimento do Espírito Santo. Em sua opinião, o Espírito só pode ser dado a quem já existe, assim como Deus soprou seu Espírito em Adão depois de formá-lo do pó da terra. 57 O batismo da igreja era o equivalente do ato divino da criação porque prepara aquele que o recebe para a vinda do Espírito Santo. Portanto, somente depois do batismo o Espírito habitaria na pessoa, pois antes disso ela não estava viva de um modo que tornasse possível a operação do Espírito. Para o pensamento contemporâneo, isso abre a possibilidade de o batismo nas águas ser administrado sem o acompanhamento da obra do Espírito Santo, mas, parece que essa ideia não ocorreu a Cipriano, exceto talvez nos casos em que a água era administrada por um herético. No que lhe dizia respeito, a água preparava o caminho para o Espírito, que veio cumprir sua promessa com a plenitude que só pode ser alcançada pela união com Cristo. Foi por isso, e nesse contexto, que ele exclamou sua famosa frase: “Quem pode ter Deus como seu Pai antes de ter a igreja 57 Cipriano
de Cartago, Epistulae 73.7. Veja Gênesis 2.7.
como sua mãe? A igreja veio primeiro e preparou o caminho, mas, foi Deus quem deu o crescimento, como Paulo explicou aos coríntios”. 58 Com isso nós temos a compreensão mais abrangente e profunda da igreja que foi documentada antes de ela ser legalizada no século 4. A igreja de Cipriano estava longe de ser perfeita, mas, ainda não tinha sido engolida pelo influxo do grande número de crentes nominais, nem havia sentido a pressão do estado para que modificasse sua doutrina ou suas práticas. Ela continuava sendo um corpo que se opunha ao mundo que a cercava, de maneira consciente e quase sempre aberta; um corpo que não oferecia nada a seus membros a não ser sangue, trabalho, suor e lágrimas — e, claro, salvação eterna. Nessa situação, os cristãos tinham plena confiança de que, em geral, as igrejas locais às quais pertenciam eram reflexos fiéis do que os apóstolos almejaram que elas fossem. Somente no estágio seguinte da vida da igreja essa confiança foi seriamente testada, e é para essa história que nos voltaremos agora.
58 Veja
1 Coríntios 3.6,7.
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4
A igreja império
A Ig r ej a e o Es t a d o
A legalização do cristianismo em fevereiro de 313 foi um acontecimento que teria implicações profundas para a igreja e para a história mundial. Do ponto de vista teológico, não havia motivo para isso fazer qualquer diferença à igreja. Ela não adquiriu repentinamente uma nova doutrina, nem teve de alterar sua estrutura ou formato de culto. As mesmas crenças, os mesmos bispos e as mesmas práticas de devoção continuaram como antes. As mudanças foram de natureza totalmente diferente, entretanto, seu efeito cumulativo foi transformador. Quando essas mudanças se enraizaram, a imagem pública do cristianismo ficou irreconhecível, e gostemos ou não, as consequências da transformação nos acompanham até hoje. No curto prazo, a legalização da igreja terminou com a hostilidade entre o governo romano e seus cidadãos cristãos, para a qual nunca houve justificativa verdadeira, e deu à igreja a chance de respirar livremente e estender suas asas. É importante ter em mente que os eventos de 313 não transformaram o cristianismo em religião estatal. Isso não aconteceu até 28 de fevereiro de 380, quando o imperador Teodósio I (r. 378—95) emitiu um decreto nesse sentido. Só então as seitas e os templos pagãos foram oficialmente reprimidos, incluindo os Jogos Olímpicos. No ínterim, duas gerações de cristãos coexistiram com outros sistemas religiosos. A família imperial costumava pertencer à igreja e favorecê-la sempre que possível, contudo, a maioria dos imperadores era simpática aos arianos, e isso os colocou em rota de colisão com os
líderes ortodoxos da igreja e resultou em uma série de confrontos que Constantino provavelmente nunca previu. De maneira alguma podemos afirmar que o estado tomou conta da igreja e dobrou-a às suas vontades, embora muitos hoje em dia erroneamente pensem assim. Para entender o que aconteceu é necessário voltar ao fim do século 3, quando o Império Romano experimentou uma crise semipermanente causada pela falta de uma linhagem reconhecida de sucessores ao trono imperial. Cada vez que um imperador morria ou era removido do trono, surgiam vários candidatos rivais, e algo parecido com uma guerra civil acontecia. As organizações estatais eram robustas o bastante para sobreviver aos motins, contudo, o tempo era de insegurança crescente, e não foi por acaso que a igreja progrediu a passos largos nessa época.1 Quando Diocleciano se tornou imperador em 285, ele decidiu que doravante havería quatro imperadores: dois mais velhos e dois mais novos. Os mais velhos ficariam um na parte oriental e o outro na ocidental, sendo que cada um teria a assistência de um dos imperadores mais jovens; o imperador mais velho teria precedência sobre o mais novo. Depois de vinte anos, os imperadores mais velhos se aposentariam e seriam sucedidos pelos mais jovens, que, por sua vez, nomeariam outros para os lugares dos dois que saíram. Em 1 de maio de 305, Diocleciano se demitiu, conforme o combinado, e impeliu sua contraparte ocidental, Maximiano, a fazer o mesmo. Maximiano foi sucedido por Constâncio, seu antigo aliado, que comandava as tropas romanas na Britânia. Infelizmente, Constâncio morreu depois de apenas um ano no cargo, e o exército estacionado em York prontamente elegeu seu filho Constantino para sucedê-lo. Esse ato feriu o sistema estabelecido por Diocleciano, embora compreensível diante das circunstâncias, e a eleição irregular de Constantino não foi reconhecida pelos outros imperadores. Para complicar ainda mais a situação, Magêncio, filho de Maximiano, reivindicou o trono do pai, e Constantino teve de lutar contra ele para assegurar sua posição. Durante
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Veja E. R. Dodds, Pagan and Christian in an Age of Anxiety (Cambridge: Cambridge University Press, 1968).
os próximos anos ele cercou Roma gradativamente para capturar a cidade e ser bem-sucedido em sua determinação de governar o império. Em 28 de outubro de 312, o exército de Constantino estava acam pado fora da capital, e ele viu um sinal no céu noturno. O símbolo cristão chi-rho lhe apareceu, com esta frase logo abaixo: “Neste sim bolo tu conquistarás”. Como era supersticioso, Constantino ordenou imediatamente que o símbolo chi-rho fosse pintado nos escudos de seus soldados, e no dia seguinte ele venceu a Batalha da Ponte Mílvia, que lhe abriu as portas da capital. E impossível afirmar o quanto dessa história lendária é verdadeiro, mas, certamente Constantino ficou tão impressionado com sua vitória que em fevereiro seguinte publicou um edital de seu quartel em Milão, garantindo o reconhecimento legal da igreja. O decreto só poderia ser aplicado nas áreas que ele governava, que naquela época abrangia toda a parte ocidental do império. No Leste, as reações foram de aceitação a rejeição total, e o Édito de Milão não passou a valer completamente até Constantino subjugar o império todo, o que aconteceu por volta de 324. Atitudes em relação a Constantino variaram muito através dos séculos. Na igreja do Oriente ele era (e ainda é) venerado como santo que se igualava aos apóstolos, e durante muito tempo o cristianismo do Ocidente era da mesma opinião. Contudo por volta do século passado essa reputação foi substituída por algo bem diferente, quando a igreja entrou no que alguns chamaram de era “pós-constantiniana”. Ou seja, a aliança entre trono e altar que apoiou a civilização europeia por séculos cedeu lugar a um período de confronto, em que a igreja agora se encontra no lado derrotado da mudança social. Muitos teólogos contemporâneos se desagradaram profundamente do que lhes pareceu cumplicidade entre igreja e estado e alegraram-se nessa reviravolta, considerando toda a experiência “constantiniana” um erro gigantesco. Ignorando o fato de que Constantino não tornou o cristianismo uma religião do estado, esses teólogos culparam o imperador de ter corrompido o evangelho ao estabelecer uma conexão política que nunca deveria ter existido. O resultado é que hoje Constantino é mal visto nos círculos acadêmicos, e, em geral, suas realizações não são valorizadas. 2 2
Veja A. Kee, Constantine versus Christ The Triumph of Ideology (Londres: SCM, 1982).
Será possível chegar a uma opinião equilibrada nesse assunto tão controverso? Antes de tudo, é óbvio que a fé de Constantino era rudimentar e inadequada em muitos aspectos. Sem dúvida nenhuma, ele era mais supersticioso do que religioso e não tinha muito tempo para requintes teológicos. Constantino não se batizou até quase à beira da morte, talvez para não dar a impressão de estar favorecendo a igreja indevidamente ou colocando-se debaixo de sua disciplina. Em 321 d.C., ele decretou que o domingo seria feriado público, mas, o decreto foi uma espada de dois gumes. Ele permitia aos cristãos adorarem a Deus no dia de sua escolha, mas, também honrava o deus sol, uma divindade pagã muito popular naquela época. As pessoas escolhiam a quem adorar, e ninguém era discriminado por suas crenças não cristãs. A igreja era livre para reger seus negócios por um sistema de sínodos e concíüos que havia se desenvolvido durante os séculos de perseguição e agora podia funcionar abertamente. Com o intuito de promover a união da igreja no mundo inteiro, os bispos de determinada região se reuniam periodicamente e definiam a política a ser aplicada às questões controvertidas que estavam causando problemas, no momento. Por motivos óbvios, os bispos tiveram de se manter discretos até 313, portanto a maioria dos sínodos (ou concílios) se reunia apenas nas províncias, iguais aos que Cipriano presidiu na África do Norte. No começo, os termos “concilio” e “sínodo” eram sinônimos e intercambiáveis; um synodos em grego era um conálium em latim, e essa é a posição oficial até hoje. Contudo, o uso popular, pelo menos no mundo de fala inglesa, geralmente considera que os sínodos são mais locais e os concílios mais universais. Assim, por exemplo, a Igreja Anglicana é governada por seu Sínodo Geral, ao passo que o Concilio Mundial de Igrejas inclui membros de igrejas do mundo inteiro. 3 Na prática, as duas palavras não são mais completamente sinônimas, contudo, as distinções contemporâneas são arbitrárias no que diz respeito à igreja primitiva e devem ser ignoradas nos debates sobre sua história. Como já vimos, o primeiro sínodo/concílio se reuniu em Jerusalém para decidir como judeus e gentios conviveríam na mesma igre 3
Nesse contexto, em vez de synodos, o grego usa a palavra symboulion para se referir a “concilio”.
ja. Suas decisões estão registradas em Atos 15, mas, não sabemos a abrangência de sua aplicação. Parece que a controvérsia toda se dissipou rapidamente, e que depois de alguns anos, as decisões tomadas pelo sínodo eram desnecessárias. Mesmo assim, estabeleceu-se um precedente para que as controvérsias fossem resolvidas por procedimentos sinodais, e se um problema semelhante surgisse, a solução estava à mão. Em geral, a função principal dos primeiros sínodos era estabelecer uma disciplina comum a todas as igrejas. Para nós, isso pode ter sido desnecessário, desde que houvesse união em torno de princípios básicos, contudo, nossa disposição progressista de ser flexível em questões supérfluas é um luxo ao qual os primeiros cristãos não podiam se dar tão facilmente. Em um mundo onde a alfabetização era privilégio da minoria, onde poucos possuíam uma Bíblia, e onde viajar era menos comum do que hoje, as diferenças de práticas, por menor que nos pareçam, podiam resultar na suspeita de que por trás delas havia diferenças de doutrina - e, em consequência, heresia. Por exemplo, para nós não faz nenhuma diferença se o pão usado na Ceia do Senhor é fermentado ou não, e também não nos perturbamos com o fato de que os dois tipos eram usados na igreja primitiva. Entretanto, naquela época, essa diferença tinha significado especial para muitos porque os judeus continuavam a usar pão não fermentado na refeição da Páscoa. Alguns cristãos achavam que, então, deveríam fazer o mesmo, pois Jesus certamente usou esse tipo de pão na última Ceia, mas, outros achavam que o uso de pão sem fermento era uma prática judaizante a ser evitada. Da mesma forma, para alguns a Páscoa, festa da ressurreição de Cristo, deveria ser celebrada no dia 14 de Nisan, de acordo com o calendário judaico, e outros argumentavam que ela deveria cair sempre no domingo, porque foi nesse dia que Cristo ressuscitou. Aqui também observamos tendências judaizantes e não judaizantes em ação. A controvérsia sobre a Páscoa (que foi a primeira de muitas) foi resolvida no Primeiro Concilio de Niceia a favor da celebração no domingo, embora tenha sido decretado que deveria ser sempre depois da Páscoa judaica.4 A controvérsia sobre o pão sem fermento ( ávçmo) se arrastou por 4
Essa regra continua sendo observada no Oriente, mas, foi abandonada no Ocidente já em 457.
séculos e não acabou de vez até 1439, quando uma decisão sensata foi tomada: qualquer pão servia. Os sínodos também eram convocados para julgar a situação e/ ou ortodoxia de um bispo em particular, como aconteceu com Paulo de Samosata, e esperava-se que tomassem as medidas consideradas necessárias às circunstâncias. Inevitavelmente, isso levou a decisões doutrinárias, que supostamente estavam de acordo com a “regra de fé” universal, embora nem sempre isso pudesse ser comprovado. A igreja que não tivesse como impor suas decisões tinha de andar pela fé e presumir que suas palavras seriam respeitadas, e em geral, isso parece ter funcionado. Seguramente, ao ser legitimada, a igreja emergiu não como uma série de organizações locais competindo entre si, mas, como um único corpo universal. Esse foi um êxito notável, dadas as dificuldades de comunicação na antiguidade e a tendência natural de organizações religiosas se dividirem por causa de suas diferenças em vez de chegarem a um acordo. Isso nos leva a duvidar da crença comum entre estudiosos de que a igreja do Novo Testamento era uma coligação desajeitada de diferentes grupos que foram consolidados à força mais tarde. Além de tal ideia ir contra a experiência comum, também não existia força capaz de gerar o tipo de união cogitada pelos acadêmicos. Se o sentimento de pertencer ao grupo não existisse na igreja, seria difícil imaginar como o mundo cristão teria se mantido unido quando as diferenças começaram a surgir. Concílios e sínodos talvez não fossem universalmente populares, mas, suas decisões eram levadas a sério e quase sempre obedecidas porque as pessoas eram convencidas de que sua expressão de consenso era obra do Espírito Santo. Mais tarde, surgiram sínodos que tentaram anular a ortodoxia estabelecida, mas, foram rapidamente identificados e excluídos como inválidos — por exemplo, o famoso “latrocínio” de Efeso no ano 449 d.C., cuja “resolução” unilateral sobre a controvérsia cristológica foi imediatamente repudiada. Manter a ordem foi difícil, mas, não impossível, e frente às condições com as quais tinham de trabalhar, a igreja primitiva foi extremamente bem-sucedida em sua tarefa. Quando Constantino legitimou a igreja, ele sabia que ela havia se tornado uma instituição social poderosa e, claramente, desejava sua
colaboração. Mas, Constantino desconhecia as tensões que borbulhavam dentro da igreja. Ele mal havia publicado seu decreto de tolerância quando a igreja da África do Norte eclodiu no cisma donatista, e Constantino se viu patrocinando um concilio da igreja do Ocidente que se reuniu em 314, em Aries, numa tentativa de resolver a situação. 5 Em breve, e ironicamente, soldados romanos estavam sendo enviados a forçar os donatistas a aceitarem a posse católica das igrejas contestadas, algo que tanto os líderes da igreja quanto Constantino devem ter achado curioso. Apenas alguns anos depois de sua legitimação a igreja já estava usando o estado para cumprir sua disciplina. No Leste, Constantino se deparou com um problema ainda mais sério. Em 318, um presbítero alexandrino chamado Ário foi condenado por anunciar que Cristo era uma criatura e não o Criador. Estudiosos debatem a justiça dessa condenação, e não há como duvidar que o arianismo era muito mais amplo e complexo do que qualquer coisa que o próprio Ário imaginaria. Mas, mesmo que o rótulo fosse impreciso, o fenômeno se tornou um desafio verdadeiro para a igreja. O arianismo forçou a igreja a esclarecer suas doutrinas sobre a pessoa e as naturezas de Cristo com muito mais precisão do que anteriormente. Muitas pessoas apresentaram soluções que se mostraram inadequadas e foram rejeitadas. O que aconteceu a essas pessoas variou conforme o caso, mas, em geral, foram depostas de qualquer cargo que ocupavam na igreja (especialmente se eram bispos). Fora isso, raramente eram perseguidas ou mortas; o próprio Ário teve uma vida longa, assim como tantos outros. A imagem famosa de uma igreja triunfante que reprimia com crueldade os dissidentes com a assistência do estado é imprecisa, pelo menos nos séculos 4 e 5, e deve ser rejeitada. Ao mesmo tempo, a legitimação da igreja teve implicações práticas que não podiam ser ignoradas. Se havia divisão ente os cristãos, que lado recebería o reconhecimento oficial do estado? O donatismo não apresentava problemas nessa área porque rejeitava o estado e era rejeitado por ele. Contudo, a situação era mais complicada para o arianismo. Alguns líderes arianos, ou “semiarianos”, eram íntimos dos imperado5
Arles era a capital de Gaul (hoje França). O concilio também procurou resolver a questão da Páscoa, mas, não conseguiu.
res e usufruíam de seus favores, ao passo que defensores ferrenhos da ortodoxia sofriam discriminação. O exemplo mais famoso disso foi o caso de Atanásio, bispo de Alexandria de 328 a 373, que foi exilado não menos que cinco vezes porque a política imperial ficou contra ele. Por fim, Atanásio triunfou porque suas convicções teológicas eram mais persuasivas que as de seus oponentes arianos, mas, não se pode afirmar que sua vitória foi graças à intervenção do estado. Bem pelo contrário! A complexidade da questão ariana foi revelada quase imediatamente depois que Constantino conquistou o Oriente. Nessa época, o arianismo estava causando tal dissensão na igreja que foi necessário convocar um concilio para resolver a questão. Constantino agiu imediatamente e indicou um de seus partidários, Osio de Córdoba (Espanha), para presidi-lo. O concilio se reuniu em Niceia em 325 e tomou decisões que as futuras gerações iriam considerar de extrema importância histórica. Contudo, antes de os bispos chegarem a Niceia, alguns deles convocaram outro concilio em Antioquia, que se reuniu uns seis meses antes e elaborou a posição que defenderíam frente ao imperador. Fizeram isso por achar que as decisões doutrinárias deveríam ser tomadas pelos bispos sem nenhuma participação do estado. Constantino nem era batizado nessa época, então, parecia bastante impróprio que ele patrocinasse um concilio da igreja cujo propósito era resolver suas questões internas. Apesar disso, o Primeiro Conselho de Niceia estabeleceu um precedente que duraria por séculos. O Concilio de Aries, em 314, se reuniu com a permissão do imperador, mas, Niceia I foi convocado por ele. Mais de mil anos depois, as igrejas orientais insistiriam em que todos os concíüos da igreja deveríam ser convocados pelo imperador e que se ele (ou seu representante) não estivesse presente, todas as decisões tomadas seriam inválidas. O bispo de Roma nem foi mencionado; sua ausência dos concílios de Aries e Niceia I foi uma questão de total indiferença. Na época da Reforma, alguns protestantes adotaram esse ponto de vista oriental como parte de sua oposição geral às reivindicações papais. O Artigo 21 da Igreja Anglicana, por exemplo, que foi adotado em sua forma atual em 1563, afirma claramente: “Os concílios gerais não se reunirão sem o comando e decreto dos príncipes”. Somente depois da secularização da Europa no decorrer da Revolução Francesa esse
princípio foi colocado em dúvida e abandonado, até porque não havia mais príncipes (i.e, imperadores e reis) dispostos ou aptos a convocá-los. Um sinal desse interesse imperial é visto no fato de que o Primeiro Concilio de Niceia ficou conhecido na história como “ecumênico”, palavra que hoje é normalmente traduzida como “universal”, mas, cujo significado era um tanto diferente (e muito específico) no mundo antigo. O oikoumene era o Império Romano, a extensão da civilização como era conhecido pela população em geral. 6 Portanto, um concilio ecumênico era mais “imperial” do que “universal”, e suas decisões só se tornavam leis com a aprovação do imperador. Em assuntos espirituais, os bispos reivindicavam o direito de legislar pela igreja, e esperavam que o estado obrigasse as pessoas a cumprir suas decisões. A interferência imperial nas questões da igreja tem de ser entendida sob esse aspecto. Obviamente, os imperadores desejavam que a igreja tomasse decisões com as quais eles poderíam concordar, mas, a única maneira de conseguir isso era influenciando as eleições episcopais. Séculos depois, isso resultaria em discussão aberta entre o imperador e o papa sobre quem exercería o direito de indicar os bispos da igreja. Em teoria, a decisão deveria ser da igreja, contudo, na prática, os imperadores (e outros governantes seculares) raramente tiveram de aguentar alguém de quem não gostassem. Na época da Reforma, os governantes geralmente faziam as nomeações episcopais, o que hoje ainda acontece em alguns países. 7 No entanto, isso ainda pertencia a um futuro distante. Quando o cristianismo se tornou a religião oficial, a igreja não se tornou um departamento do estado, mas, continuou um poder independente, de mérito próprio. Os bispos podiam se opor, e algumas vezes o fizeram, à política imperial, chegando mesmo a convocar os imperadores a se arrependerem de seus pecados. Por exemplo, em 388, Ambrósio de Milão obrigou Teodósio I a fazer penitência por causa do massacre ocorrido em Tessalônica, cometido por motivos políticos. Teodósio 6 7
A palavra é usada nesse sentido em Lucas 2.1. A Dinamarca e a Noruega são exemplos claros disso. Também foi o caso da Inglaterra até recentemente, e continua sendo na teoria. Na prática, a igreja nomeia o candidato de sua escolha, e espera-se, mas não se exige, que o primeiro ministro concorde, e houve casos em que a confirmação foi negada, provavelmente por motivos políticos.
talvez tenha se arrependido de tornar a igreja uma religião do estado oito anos antes, porém o impacto na opinião popular foi tamanho que ele se dobrou à vontade de Ambrósio e estabeleceu um precedente que seria admirado (e até seguido) durante séculos. O reconhecimento da igreja pelo estado teve seu maior impacto na condução de seus assuntos internos. Já há muito tempo a tendência era agrupar as igrejas de acordo com as províncias, por ser mais conveniente, e o hábito se tornou diretriz oficial. Convencionou-se que as igrejas locais com um bispo tinham um território chamado “diocese”, outro empréstimo do vocabulário romano, mas, usado de modo diferente. No império de Diocleciano, havia quatro dioceses, uma para cada um dos quatro imperadores, e cada diocese tinha várias províncias. Na igreja, era exatamente o contrário: cada província tinha vários episco pados e, portanto, várias dioceses. O vocabulário foi emprestado da administração secular, mas, como o exemplo mostra, a igreja operava de acordo com suas necessidades e pauta, adaptando o que estava à mão de acordo com a situação. O Primeiro Concilio de Niceia decidiu que para propósitos oficiais (i.e., disciplinares), os bispos e as igrejas das três maiores cidades imperiais deveríam ter precedência sobre todas as outras. O privilégio foi concedido a Roma, Alexandria e Antioquia nesta ordem, sendo que Roma ficou responsável pelo Ocidente, Alexandria pelo Egito, e Antioquia pelo Leste Europeu e Ásia. Foi uma divisão de trabalho que fez sentido e podería ter dado muito certo, entretanto, antes que fosse implementada adequadamente, Constantino (talvez involuntariamente) tornou a decisão inoperável, e em 11 de maio de 330, escolheu Bizâncio, cidade grega no estreito de Bósforo, como a futura capital do império. Sua intenção era que a cidade se tornasse a Nova Roma, mas, desde o início, todos a conheciam como Constantinopla, nome que deu lugar a “Istambul” em 1928. 8 No grande esquema de Constantino, Roma reteria o prestígio da antiga capital, mas, o poder verdadeiro seria transferido para o Ocidente. Mais tarde, quando um império ocidental O nome turco contemporâneo é uma corruptela do grego eis tenpolin (na cidade), porque em grego Constantinopla sempre foi conhecida simplesmente como “a cidade”.
separado fosse restabelecido, os imperadores residiríam não em Roma, mas, em Milão ou Ravena, onde estariam mais perto das fronteiras que precisavam ser guardadas contra a sempre presente ameaça bárbara. Politicamente falando, Roma declinou e tornou-se uma sombra do que era, embora continuasse o centro espiritual do império, especialmente no ocidente que falava latim. A construção de Constantinopla trouxe um dilema para a igreja. Antes de 330, Bizâncio não tinha seu próprio bispo, e dependia de Heracleia, uma cidade vizinha. Obviamente essa situação não poderia continuar, e em pouco tempo Constantinopla conseguiu um bispo e uma estrutura eclesiástica. Mas, onde eles se encaixariam no grande esquema das coisas? Naturalmente, o bispo da capital não poderia ficar subordinado a Antioquia (de cuja jurisdição Constantinopla fazia parte). Sendo a Nova Roma, a cidade merecia um lugar ao sol - como ela mesma achava, imediatamente depois da Antiga Roma. Porém, falar era mais fácil do que fazer. Dar o segundo lugar a Constantinopla significava rebaixar Alexandria, que era a principal cidade do mundo grego da época. Também era uma ameaça em potencial a Roma, pois se um dia o seu prestígio acabasse, sua igreja poderia ser rebaixada, assim como sua posição secular havia sido. Essa questão delicada foi tratada no Primeiro Concilio de Constantinopla, em 381, e a decisão foi que deveria haver uma ordem de precedência que colocasse Roma em primeiro lugar, Constantinopla em segundo, Alexandria em terceiro, Antioquia em quarto e Jerusalém em quinto. Antes disso, Jerusalém, até então interiorana e atrasada, nem mesmo estava na lista hierárquica, e sua aparição repentina reflete uma mudança ideológica. Ao passo que a ordem de precedência do Concilio de Niceia I levou em conta a importância secular das cidades envoividas, o Concilio de Constantinopla I tinha um viés espiritual. Roma ficou em primeiro lugar não somente por ser a capital, mas, também por ser o lugar onde Pedro foi martirizado. Isso naturalmente resultou na inclusão de Jerusalém por ter sido o local da primeira igreja, que foi liderada por Pedro. Essa pentarquia de bispados, cujos líderes eram conhecidas como “patriarcas”, se impôs de forma paulatina à igreja do Oriente, especialmente depois do Concilio de Trullo, em 691-92,
porém levou mais tempo para se popularizar no Ocidente, e Roma não a ratificou formalmente até 1215. A essa altura, claro, a situação que provocou a pentarquia original estava irreconhecível por causa de tantas mudanças. Alexandria, Antioquia e Jerusalém caíram sob o domínio muçulmano entre 632 e 641, e à parte de um breve período durante as Cruzadas, permaneceram em território muçulmano desde então. Sobraram apenas Roma e Constantinopla, a primeira agarrada à sua antiga posição e continuando a desenvolver suas reivindicações petrinas para firmar sua primazia; a segunda insistia em que o mundo cristão buscasse liderança em Constantinopla, porque o patriarca sênior havia ultrapassado os limites de sua autoridade e caído em discrepância. Com o passar do tempo, nota-se que o patriarca romano dá cada vez menos atenção aos outros quatro. Roma era a única cidade importante do Ocidente, e à medida que o Ocidente se desapegava do império, a cidade passou a ser vista ali como o centro natural da igreja toda. Como resultado, o termo “papa” tornou-se restrito ao bispo romano. Ele também é chamado de “pontífice”, termo derivado de pontifex maximus (chefe dos construtores de pontes), um título que originalmente pertencia a um oficial pagão da Roma antiga e mais tarde foi assumido pelo imperador para designar sua posição como chefe da religião tradicional. Quando Roma foi cristianizada, os imperadores abandonaram o título, para depois vê-lo transferido para o bispo da cidade. Esse fato curioso lembra que a autoridade dos imperadores romanos era fruto de tradições antigas não relacionadas ao cristianismo. Quando a nova religião foi adotada, as práticas incompatíveis com ela foram abandonadas, porém o estado continuava a operar como de costume, como a expressão da vontade “democrática” do povo, ou como dizia o título oficial, o “senado e os cidadãos de Roma”. Com o advento dos reinos bárbaros no Ocidente e sua conversão progressiva ao cristianismo, novas formas de legitimidade tiveram de ser criadas. Em tempos pagãos, seus reis tinham sido oficiais religiosos, contudo, no mundo cristão eles tiveram de abrir mão de seu papel quase sacerdotal. Em compensação, foram consagrados em uma cerimônia de coroação, que os legitimou aos olhos da igreja e deu-lhes o direito de governar
“pela graça de Deus”. Esse método continuou através dos séculos e ainda continua no Reino Unido, pelo menos superficialmente. Quando, em 1936, o rei Eduardo VIII decidiu se casar com uma mulher divorciada duas vezes, a igreja se recusou a coroá-lo por estar infringindo as leis matrimoniais, e ele foi forçado a abdicar; esse é um exemplo de como, mesmo na era contemporânea, a aprovação da igreja continua a exercer papel importante na escolha de um monarca. A cerimônia de coroação como instrumento de legitimidade de um monarca alcançou seu ápice em 25 de dezembro de 800, quando o papa Leão III coroou Carlos Magno imperador de seu recentemente inventado Santo Império Romano. Na teoria, esse império era uma revitalização do antigo império do Ocidente, que havia desaparecido com a deposição do último imperador em 476, porém, dessa vez, ele expressava a união da igreja e do estado de um modo que indicava claramente que as regras eram estabelecidas pela igreja. O Santo Império Romano durou até 1806, e embora nunca tenha sido tão poderoso quanto foi estabelecido para ser, sua importância não deve ser menosprezada. Durante toda a Idade Média, imperadores e papas competiam pela supremacia no Ocidente Cristão, ao passo que os governantes seculares — os reis da Inglaterra e da França, por exemplo — observavam. Mesmo no século 16, foi ao imperador Carlos V que Martinho Lutero teve de apelar seu caso; e o domínio imperial do papado, que Henrique VIII da Inglaterra considerava ilegítimo, foi um dos fatores que o impeliu a separar seu reino e sua igreja da autoridade romana. Na verdade, a coroação de Carlos Magno consagrou a divisão da Europa que estava fermentando havia quatro séculos, desde que Teodósio I, em seu leito de morte, dividiu o Império Romano, em 395. Depois do ano 800, o que existia não eram simplesmente duas metades de um único império, mas, duas nações diferentes que reivindicavam o legado de Roma. O império oriental, destituído de suas províncias do Oriente Médio e da África (que haviam caído nas mãos dos árabes muçulmanos), era um estado altamente centralizado, em que o imperador e o chefe da igreja (o patriarca de Constantinopla) moravam na mesma cidade e governavam o império juntos. Imperadores e patriarcas eram frequentemente depostos com a conivência do outro, e nenhum deles
podia reivindicar domínio absoluto. Já no Ocidente, o imperador e o papa nunca moravam na mesma cidade. O império era descentralizado, e até mesmo dividido, entre os herdeiros de Carlos Magno, e o papado tinha de se virar sozinho. Isso se provou desastroso, e por mais de duzentos anos papas eram eleitos e depostos, às vezes, com frequência alarmante, pelo populacho de Roma. Era escandaloso, mas, parece que ninguém sabia como resolver o problema até que um grupo de monges reformadores, sediados no monastério borgonhês de Cluny, decidiram dar um jeito na situação. Os monges foram mais bem-sucedidos do que poderíam imaginar, e em suas mãos o papado se transformou na instituição europeia mais poderosa da época. A ORIGEM DO PAPADO
O crescimento e desenvolvimento da diocese romana foi um dos acontecimentos mais importantes - alguns diriam
mais importante -
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na história da igreja. Embora nos primeiros cinco séculos tivesse papel significativo, mas, de forma nenhuma dominante, o bispo de Roma veio a ocupar uma posição tão poderosa que a membresia na igreja passou a ser definida pelo fato de uma pessoa ou congregação local estar ou não em comunhão com ele. Para os católicos romanos, que hoje somam cerca de dois terços dos cristãos professos, essa definição de membresia continua a mesma, embora nos últimos anos a atitude para com cristãos de outras vertentes tenha se abrandado e haja mais disposição em cooperar com eles em muitas situações. Para outros, tanto nas igrejas históricas orientais quanto no Ocidente protestante, o papado continua sendo a referência contra a qual se posicionam. Há muitas coisas que desaprovam na igreja católica, mas, a exigência de submissão ao papa e à sua autoridade lidera a lista das atitudes não aceitáveis. Não importa o que mais os separe, bispos da Igreja Ortodoxa Russa e pregadores americanos fundamentalistas têm isto em comum: para eles o papa é o anticristo. Como uma instituição que supostamente foi criada para expressar e defender a unidade da igreja através do mundo conseguiu se tornar um instrumento de divisão e até mesmo ódio? Quando o último imperador romano ocidental foi deposto, em 476, o império não se dissolveu oficialmente. Ao contrário, as regalias
imperiais foram transferidas para Constantinopla, e, segundo diz a lenda, as províncias ocidentais se uniram outra vez ao oriente. Essa crença era popular entre as multidões de pessoas, que eram romanas leais e (na maioria) membros da mesma igreja que os orientais. Entretanto, a realidade mostrava que suas terras eram governadas por tribos bárbaras, que não eram romanas em nenhum sentido. Em sua maioria, os bárbaros eram pagãos ou arianos, que se converteram àquela forma de cristianismo no século 4, graças ao trabalho missionário de um de seus membros, um godo chamado Wulfila (Ulfilas), que chegou a traduzir a Bíblia para o idioma deles. O arianismo era importante para os bárbaros, não por causa de sua teologia, que poucos deles entenderíam, mas, porque como arianos podiam manter sua identidade e viver separados em um mar de romanos possivelmente inimigos. Quando o Império Oriental tentou reconquistar o Ocidente no século 6, ele teve o apoio da igreja romana; os reinos arianos da Itália e da África do Norte foram imediatamente derrubados. As tropas im periais também invadiram a Espanha, todavia só conseguiram ocupar uma pequena área do sudeste. Mesmo assim, a pressão era contra os governantes visigodos arianos do restante da península, que em 589 se submeteram a Roma e renunciaram ao arianismo de uma vez por todas. Mais longe do coração do império, o reino dos francos na Gália foi pagão até que o seu rei, Clóvis, foi batizado na igreja romana em 496, o primeiro rei bárbaro importante a se submeter ao papa. Clovis obrigou seus soldados a fazer o mesmo, e a França se tornou “a filha mais velha da igreja”, uma posição que seus reis usufruiríam durante os próximos mil e trezentos anos. Nas Ilhas Britânicas, os anglo-saxões pagãos haviam empurrado os bretões para os confins ocidentais, onde mantiveram o cristianismo que receberam de Roma nos dias do império. Um deles, Patrick, foi ser missionário na Irlanda; embora não fosse o primeiro cristão a chegar ao país, a conversão da Irlanda foi atribuída ao seu trabalho. 9 A igreja celta, como essa amálgama de cristãos britânicos e irlandeses é geralmente conhecida, tornou-se objeto de uma visão muito romantizada, com toda uma mini-indústria dedicada à famosa espiri 9
Veja T. M. Charles-Edwards, Early Christian Ireland (Cambridge: Cambridge University Press, 2000), para detalhes.
tualidade celta. Na verdade, não era muito diferente do que existia no restante do mundo cristão daquela época, e suas características especiais, tais como eram, resultaram de atrasos de desenvolvimento devidos à crescente falta de comunicação com outros países. O elemento mais significativo disso foi que os celtas continuaram a celebrar a Páscoa de acordo com as regras estabelecidas no Primeiro Concilio de Niceia em 325, embora elas tenham sido modificadas por Roma em 457. Ninguém se preocupou com isso até que uma missão romana foi enviada aos anglo-saxões em 597, com instruções de estabelecer relacionamento com as igrejas celtas. A essa altura, as diferenças entre eles se tornaram uma barreira à cooperação, e os celtas não estavam dispostos a se submeter aos romanos. Ambos os lados então competiram na evangelização dos anglo-saxões, uma tarefa que foi praticamente concluída em 664, quando um sínodo se reuniu em Whitby para decidir que forma de cristianismo a nova igreja adotaria. A decisão favoreceu Roma, e depois disso as igrejas celtas abriram mão gradualmente de sua independência, um processo que se completou em 716. 10 11 No entanto, bem antes disso a igreja romana passava por uma grande transformação. Durante a época em que a Itália estava sob o poder bárbaro (ariano), em Constantinopla os imperadores mantinham o bispo de Roma como seu representante no Ocidente. Em 519, o imperador Justino I concedeu-lhe jurisdição sobre toda a igreja do Ocidente, contudo, essa atitude pró-ocidental foi bem mais longe. Numa época em que o Egito e a Síria eram cada vez mais influenciados pelos assim chamados oponentes monofisitas do Concilio de Calcedônia (451), que por insistência de Roma canonizou a forma cristológica de “uma pessoa divina em duas naturezas”, Constantinopla tentou impor essa decisão às suas províncias orientais, uma decisão que as alienou e não foi resolvida até as conquistas muçulmanas do século seguinte, quando as áreas monofisitas saíram do controle de Constantinopla. 11 10 O
relato clássico, e nossa fonte principal de detalhes, é Bede, Ecclesiastical History of the English people, tradução de Leo Sherley-Price (Londres: Penguin 1955). Veja também J. Blair, The Chunh in Anglo-Saxon Society (Oxford: Oxford University Press, 2005). 11 Os monofisitas — ou “miafisitas”, como são hoje chamados — afirmavam que o Cristo encarnado tinha apenas uma natureza, na qual o elemento humano havia se unido ao divino.
Depois que a Itália foi reconquistada, Roma voltou ao governo direto do imperador e recebeu menos deferência das autoridades imperiais. Em 595, o patriarca de Constantinopla adotou o título “ecumênico”; o papa Gregorio I (liderou em 590-604) protestou, insistindo que somente ele e a igreja tinham qualquer direito a tal designação, mas, seu protesto foi ignorado. Em geral, Gregário é considerado o último dos antigos pais da igreja e o primeiro dos papas medievais, e existe alguma verdade nessa afirmação. Ele tentou impor uma disciplina monástica a seu clero, mas, fracassou porque a resistência era forte demais. No entanto, Gregário tinha ideal de evangelismo, como sua famosa missão à Inglaterra nos faz lembrar, e foi durante seu tempo que a igreja começou a se expandir de maneira significativa para além das fronteiras do antigo mundo romano.12 Durante os cem anos que sucederam a morte de Gregário, os destinos de Roma seguiram os do Império Bizantino, como o mundo romano oriental podería agora ser chamado com toda propriedade. As controvérsias teológicas que continuavam a dominar a política do Império repercutiram no Ocidente, mas, pareciam cada vez mais estranhas ali. Um papa chegou a ser preso e deportado para a Crimeia porque aparentemente concordava com uma heresia sobre a qual nem ele nem ninguém em Roma tinha muito conhecimento. As duas partes do mundo cristão estavam se tornando estranhas uma à outra, fato que foi confirmado depois do Concilio de Trullo (691-92), quando as igrejas orientais definiram as regras sob as quais seriam governadas. Algumas delas — como a obrigação de usar pão levedado na Santa Ceia — eram conflitantes com a prática romana, deliberadamente ou não, e Roma nunca ratificou as decisões do sínodo. Roma continuou a seguir suas próprias regras e a criar outras independentemente do Oriente, que com o passar do tempo lhe deu um sentido bem diferente. 13 12 Veja
J. Richards, The Popes and the Papacy in the Early Middle Ages, 476—752 (Londres: Roudedge & Kegan Paul, 1979); R. B. Eno, The Rise of the Papacy (Wilmington,
DE: Michael Glazier, 1990). 13 A importância do Concilio de Trullo para a compreensão das futuras diferenças entre as igrejas do Oriente e do Ocidente não é valorizada o suficiente. Veja G. Nedungatt e M. Featherstone (Orgs.), The Counál in Trullo Revisited (Roma: Pontificio Istituto Orientale, 1995).
No século 8, o imperador bizantino Leão III (r. 717—41) provocou uma discussão sobre o uso de ícones no culto, que continuou de uma forma ou outra até 843.14 Leão III desejava erradicá-los, contudo, para os defensores da ortodoxia, abolir as imagens de Cristo seria negar a encarnação. Roma se mostrou solidária com os “ortodoxos” nessa questão, mas, só porque o poder efetivo do imperador não mais se estendia até aquela região ocidental. Em 751, as últimas tropas bizantinas no norte da Itália foram vencidas pelos lombardos pagãos, e de repente Roma ficou exposta ao domínio deles. Em desespero, o papa procurou o rei dos francos, Pepino (Pippin) I, que, por acaso, tinha acabado de depor o último governante legítimo dos povos francos e instalar-se no lugar dele. Pepino e o papa precisavam um do outro, e chegaram a um acordo. Em recompensa por ter aniquilado os lombardos, o papa reconheceu o governo de Pepino; em 754, o papa recebeu titularidade legal da área à volta de Roma. Essa foi a origem do Estado Papal, que mais tarde se estendeu através da Itália central e permaneceu nas mãos dos sucessivos papas até que a Itália inteira foi unificada à força em 1870. Assim que o papado fez aliança com os povos francos, a criação do Santo Império Romano foi simplesmente questão de tempo. Nesse império, e de modo mais geral através da Europa Ocidental, a igreja passou a ocupar um lugar especial. Era uma sociedade dentro de outra sociedade, operando de acordo com suas próprias leis e mantendo direitos jurisdicionais sobre seu clero e outras “pessoas religiosas”, tais como monges e freiras. Ao mesmo tempo, muitos bispos também se tornaram governantes seculares do que se tornou uma colcha de retalhos de estados semi-independentes que deviam lealdade nominal crescente ao imperador. O imperador era eleito pelos príncipes mais importantes, que incluíam três arcebispados — Colônia, Mainz e Trier - e era então coroado pelo papa (se ele estivesse em Roma) ou por seu representante. Ao final da Idade Média, o título de imperador havia se tornado praticamente hereditário na Casa de Habsburgo, cujo 14 Para
saber mais sobre a controvérsia iconoclástica, veja E. J. Martin,^! History of the Iconoclastic Controversy (Londres: SPCK, 1930); L. Brubaker, Inventing Byzantine Iconoclasm (Bristol: Bristol Classical Press, 2012).
quartel-general era em Viena e governava a maior parte do sudeste da Alemanha. Quando o império foi dissolvido por Napoleão, o imperador austríaco continuou a usufruir os privilégios de seus ancestrais, incluindo o direito de vetar eleições papais, o que não foi abolido até 1904. Assim, é apropriado dizer que a criação desse império “santo” foi um acontecimento de importância duradoura nas questões europeias. No início, porém, esse resultado estava longe de ser garantido. O Santo Império Romano original desabou com o desmoronamento da dinastia que o criou. Ele foi depois reconstituído em uma base mais estreita, com o que é hoje a França formando um reino independente à margem ocidental. Mesmo assim, era de longe o maior estado europeu e continuou a reivindicar o legado da Roma antiga. Os imperadores interferiam nas eleições papais, e durante um tempo a impressão era que um acordo semelhante ao obtido no Império Bizantino também prevalecería no Ocidente. Não foi o que aconteceu. Em vez disso, os monges de Cluny determinaram que o papado fosse reformado e passasse a ser o centro da igreja ocidental inteira. Para tanto, era preciso se apoderar do controle das eleições papais e tirá-las completamente de mãos seculares. Com uma série de lances políticos habilidosos, os monges conseguiram que seu candidato fosse eleito papa em 1049 como Leão IX. O papa começou imediatamente a impor o prestígio de seu cargo na igreja como um todo, incluindo Constantinopla. Em 1054, ele enviou uma delegação a essa cidade, exigindo a submissão do patriarca, o que (naturalmente) foi recusado. Os emissários excomungaram o patriarca imediatamente e foram igualmente excomungados por sua vez. Quando retornaram à Itália, ficaram sabendo que Leão IX havia morrido, assim as excomunhões foram oficialmente anuladas, porém mais tarde, o incidente foi considerado o momento da separação definitiva de Oriente e Ocidente. Após um curto período de confusão, quando parecia que as reformas cluníacas falhariam, elas foram reinstaladas com todo vigor, e em 1059, um colegiado de clero auxiliador foi criado para garantir que futuras eleições papais fossem conduzidas por eles - em secreto. Esse clero eram os cardeais, assim chamados por serem as dobradiças (cardines) sobre as quais a porta de São Pedro se movia. Até hoje, o Co-
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legiado de Cardeais continua a eleger o papa, o que lhe confere papel principal na Igreja Católica Romana. A partir dali, o relacionamento entre igreja e estado começou a mudar de verdade. Quando William, duque da Normandia, pediu que o papa aprovasse seu plano de invadir a Inglaterra em 1066, conseguiu o que desejava tendo que permitir que as novas reformas papais acontecessem em seus domínios. De forma mais intensa, o papado entrou em conflito com o Santo Imperador Romano por causa do mesmo princípio. O papa saiu vencedor em 1077, quando o imperador foi obrigado a fazer uma retratação humilhante em Canossa, no norte da Itália. Na verdade, como eventos futuros mostrariam, a vitória papal não foi tão impressionante quanto pareceu na época, contudo, não ficou dúvida nenhuma de que os papas agora eram atores independentes no palco político e que sua voz e prestígio tinham peso considerável. 15 Poucos anos mais tarde, ficou bem clara a importância do papado. Em 1071, tropas bizantinas na Ásia Menor sofreram uma derrota catastrófica nas mãos de invasores turcos muçulmanos. Em poucos anos, os invasores alcançaram os portões de Constantinopla; o Império Oriental estava a ponto de se desintegrar. O imperador Aleixo I (r. 1081—1118) fez ao papa um apelo desesperado de socorro, pois achava que ninguém melhor que ele convencería o Ocidente a ajudá-lo. Urbano II aceitou o desafio e em 1095 apregoou a Primeira Cruzada — uma guerra santa destinada a rechaçar os infiéis e tomar de volta para a cristandade as terras perdidas. Infelizmente, para Aleixo, poucos soldados da Europa Ocidental se interessaram em libertar Constantinopla. O que os atraiu foi a possibilidade de reconquistar a Terra Santa, que estava nas mãos dos árabes desde 638. Todavia, os expedicionários das cruzadas chegaram a Constantinopla e começaram por sitiar a antiga cidade de Niceia, onde um sultão turco havia se estabelecido. Temendo a ira dos ocidentais, o sultão se entregou secretamente aos bizantinos, que o deixaram partir ileso. Para os expedicionários isso foi traição, e o relacionamento entre eles e os bizantinos se deteriorou rapidamente. 15 Veja
W Ullmann, Short History of the Papacy in the Middle Ages (Londres: Methuen, 1972).
Quando capturaram Antioquia, os expedicionários se recusaram a entregá-la a Aleixo, e formaram ali seu próprio estado, indicando um bispo ocidental como patriarca. A nomeação equivaleu a um cisma, pois os expedicionários se opuseram aos direitos legais do incumbente grego. Esse padrão continuou enquanto as cruzadas marchavam para o sul. Até 1100, haviam estabelecido vários estados pequenos na Síria e Palestina sob o suposto governo de um rei que estabeleceram em Jerusalém. As igrejas do Oriente da qual fazia parte a maioria da po pulação local foram tomadas e assumidas por bispos e clero ocidentais. Diferenças teológicas à parte, a brecha cultural entre Ocidente e Oriente ficou visível a todos os olhos, e provavelmente mais do que qualquer outra coisa assegurou que as duas grandes igrejas ficassem alienadas uma da outra.16 No entanto, houve numerosas tentativas de remendar a divisão, e talvez fossem bem-sucedidas se não tivesse havido a intromissão da política. As vitórias das cruzadas foram possíveis por causa da fragilidade temporária do mundo islâmico, mas, em 1187, os muçulmanos reconquistaram Jerusalém, e os estados formados pelas cruzadas ficaram à beira da extinção. Isso resultou em mais tentativas de lhes assegurar reforço, das quais a Quarta Cruzada foi a mais desastrosa. Frustrados com incapacidade de levantar fundos suficientes para que os venezianos as levassem à Palestina, as cruzadas se voltaram contra Constantinopla. O trono bizantino estava em disputa naquela época, e um dos reivindicadores prometeu recompensá-las muito bem caso o ajudassem a tomar a cidade. O acordo foi aceito, mas, quando o novo imperador assumiu o trono, descobriu que o tesouro público estava vazio. Os expedicionários se revoltaram e saquearam Constantinopla inteira o maior crime que um grupo de cristãos já infligiu a outro. O Império Bizantino dissolveu-se temporariamente em vários miniestados, alguns governados por gregos e outros por expedicionários das cruzadas que decidiram continuar no Oriente. Constantinopla se tornou a capital do império latino, que durou até os gregos retomarem a cidade em 1261. 16
Leia sobre as Cruzadas em S. Runciman, A History of the Crusades, 3 vols. (Cam-
bridge: Cambridge University Press, 1951—54); J. Richard, The Crusades (Cambridge: Cambridge University Press, 1999).
De início, o papa Inocêncio III (liderou em 1198—1216) ficou horrorizado ao saber o que acontecera, mas, não resistiu e se aproveitou da situação. O papado agora estava no auge do seu poder. 17 Inocêncio aceitou a queda da cidade como vontade de Deus e, de imediato, começou a estabelecer sua autoridade nas terras controladas pelas cruzadas. Não importa a natureza da separação ocorrida entre Oriente e Ocidente, agora ela era permanente. As igrejas do Oriente nunca se esqueceram da humilhação sofrida, e ainda hoje existe um sentimento de desconfiança, chegando muitas vezes ao ódio, entre ortodoxos orientais e católicos romanos que foi abastecido por afrontas posteriores de ambos os lados. No Oeste, claro, o acontecimento passou quase despercebido. Inocêncio III conseguiu fazer o rei João da Inglaterra se vergar ao interditar seu reino — na verdade, o clero fez greve e recusou-se a realizar seus serviços até que o rei se submetesse ao papa. João acabou cedendo, e na famosa Carta Magna de 1215, foi forçado a reconhecer as “liberdades da igreja” - uma das três provisões do documento que continua vigorando.18 No mesmo ano, Inocêncio convocou o Quarto Concilio de Latrão, em Roma, que selou as reformas da igreja que tinham começado havia 150 anos. A impressão era que o papado estava pronto a tomar a Europa Ocidental, com governantes civis dispostos a fazer o que lhes fosse mandado. Mas, não foi bem assim. Várias mortes papais prematuras enfraqueceram a instituição durante o século 13, e o papado foi obstruído pela burocracia. Aos poucos, os governantes seculares perceberam que teriam de estabelecer seus próprios serviços públicos se quisessem competir com a administração papal e se desejassem governos efetivos e centralizados, e puseram mãos à obra. Surgiram universidades em Paris e Oxford, que capacitaram homens a servir tanto à igreja quanto ao estado. Acima de tudo, as Cruzadas, que o papado continuava tolamente a promover, eram um fracasso colossal. Em 1291, 1 1
Veja I. S. Robinson, The Papacy, 1073—1198: Continuity and Innovation (Cambridge: Cambridge University Press, 1990); A. Papadakis, The Christian East and the Rise of the Papacy (Crestwood, NY: St. Vladimir’s Seminary Press, 1994); J. Sayers, Innocent III: Leader of Europe, 7198-1216 (Londres: Longman, 1994). ls Veja J. C. Holt, Magna Carta (Cambridge: Cambridge University Press, 1992).
não existiam mais estados das cruzadas na Palestina, e os cavaleiros do Ocidente que haviam ido defendê-los eram agora refugiados sem-teto. Um grupo conseguiu se estabelecer em Rodes, onde permaneceu até 1522, quando a conquista turca o forçou a encontrar uma nova base em Malta. O grupo foi expulso de lá pelos exércitos revolucionários franceses em 1798, mas, a Ordem Militar Soberana de Malta continua a existir como organização de caridade, como é o caso da Ordem de São João, equivalente protestante estabelecido no século 19 na Inglaterra e que hoje está presente em toda a comunidade britânica de nações. A Ordem dos Templários não teve tanta sorte. Incapaz de encontrar um lugar seguro, os templários ficaram à mercê de qualquer governante europeu disposto a recebê-los. O rei Filipe IV da França cobiçava a grande fortuna dos templários e decidiu se apoderar dela acusando-os de heresia e práticas de ocultismo que supostamente haviam trazido do Oriente. As acusações eram falsas, claro, entretanto ninguém ousava desmentir o rei da França, e os templários foram reprimidos. A autoridade do papado, que havia estabelecido a ordem, recebeu um golpe do qual seu prestígio jamais se recuperou inteiramente. 19 O resultado trágico só aconteceu porque, alguns anos antes, os papas haviam sido forçados a deixar Roma e fixarem-se na cidade de Avignon, no sul da França. Isso aconteceu porque o papa Bonifácio VIII decidiu atacar o rei da França (e, por conseguinte, os outros reis da Europa) sobre a questão de tributação clerical. O rei se achava no direito de tributar a igreja, contudo, o papa insistia em que ele estava roubando Deus daquilo que lhe pertencia. O papa ameaçou excomungar o rei e emitiu uma bula famosa, Unam sanctam, na qual afirmava que somente quem estivesse em plena comunhão com ele iria para o céu. Quando Bonifácio morreu, o arcebispo de Bordeaux foi eleito seu sucessor, mas, Filipe IV não permitiu que ele se mudasse para Roma. O governo papal foi forçado a se transferir para Avignon onde ficou até 1377, período que ficou conhecido como o “cativeiro babilônico” da igreja. Aparentemente, tudo continuava igual, entretanto os papas não podiam mais mandar nos reis da Europa como sempre haviam 19 M.Haag,
The Templars: History and Myth (Londres: Profile Books, 2008); M. Barber,
The Trial of the Templars (Cambridge: Cambridge University Press, 1978).
feito, e, pior ainda, o papado passou a ser visto como uma ferramenta da França, com resultados fatais para sua autoridade. LEI CANÔNICA
O papado ganhou força porque realizava um serviço civil eficiente que oferecia muito da administração secular exigida na Europa Ocidental após a queda do Império Romano. 20 A igreja primitiva não havia realizado casamentos, contudo, a ausência de uma autoridade civil confiável obrigou a igreja a intervir e criar o “santo matrimônio”. Durante esse processo, a igreja revisou procedimentos romanos antigos à luz do Novo Testamento. O divórcio, por exemplo, foi abolido e substituído por separação e anulação. Separação “de cama e de casa” era possível em casos de incompatibilidade, mas, não era divórcio. Os cônjuges não ficavam livres para casar novamente, e seus filhos continuariam sendo herdeiros de suas riquezas e propriedades. A anulação, por outro lado, era uma declaração de que o casamento nunca existiu, e os filhos que porventura existissem seriam ilegítimos e deserdados. Os cônjuges ficavam livres para casar novamente. Em teoria, as anulações eram garantidas somente em casos da não consumação matrimonial ou se o casamento acontecesse dentro dos graus proibidos de afinidade e consanguinidade, mas, a pressão feita pelos ricos, especialmente reis e aristocratas que desejavam se divorciar e casar novamente, era tanta que as regras geralmente se dobravam a favor deles. Nos vilarejos, o parentesco entre os habitantes era grande, e portanto a consanguinidade podia ser invocada como justificação se preciso fosse. Em teoria, as discórdias podiam ser resolvidas na própria cidade, entretanto, os envolvidos sempre tinham o direito de apelar à corte suprema, que era a cúria papal. Assim, o papado se via inundado de casos judiciais a serem resolvidos, geralmente com pouca informação confiável e, algumas, vezes, depois de muitos anos de o apelo ter sido feito. 20 Para
saber mais sobre lei canônica, veja J. A. Brundage, Medieval Canon Law (Londres: Longman, 1995); R. H. Helmholz, The Spirit of Clasrical Canon Law (Atenas: University of Georgia Press, 1996).
Outra área que ficou sob o controle da igreja foi o preparo de testamentos. Em geral, os padres eram os únicos que sabiam ler e escrever, e assim essa tarefa era quase sempre confiada a eles. Claro que as pessoas eram incentivadas a deixar algo para a igreja em seus testamentos, e ela acabou ficando com muitas propriedades das quais não podia capitalizar. Com o tempo, mais e mais terra cultivável era tirada do mercado dessa forma — uma situação intolerável que, mais cedo ou mais tarde, causaria problemas. Contudo, isso era apenas o começo. Para se governar com mais eficiência, a igreja foi dividida em paróquias, e cada uma tinha um padre incumbente que supostamente deveria conhecer todos os que faziam parte dela. Os paroquianos tinham de dizimar dez por cento de seus rendimentos, que eram avaliados por funcionários indicados pela igreja e recolhidos por cobradores, que ganhavam comissão sobre tudo o que conseguiam arrecadar. 21 Em alguns lugares a entrada dos dízimos era escassa e mal dava para o sustento do padre; em outros, porém, era farta. O excedente era encaminhado aos bispos e suas catedrais, construídas ou reconstruídas de modo suntuoso. Nada testemunha mais sobre a confiança renovada e o prestígio da igreja medieval que as catedrais magníficas que continuam dominando a linha do horizonte e tiram o fôlego de seus visitantes. As paróquias ricas também construíam igrejas enormes, a maioria das quais ainda está em pé e continua a testemunhar da fé e das riquezas dos tempos de outrora. Dar o dízimo era uma forma de taxação, derivada das provisões feitas para os sacerdotes e levitas no antigo Israel, e cujo propósito era sustentar o ministério da igreja. Esperava-se que cada membro produtivo da paróquia entregasse dez por cento de seus rendimentos para a igreja, que então pagaria o clero. O dízimo também podería ser usado para ajudar os pobres e para suprir as necessidades da igreja como um todo. A organização de uma paróquia era complexa, mas, sem entendê-la não conseguiremos avaliar como os europeus de séculos posteriores viam 21 Os
cobradores de impostos trabalhavam sob contratos conhecidos como “assinaturas” {firmai) porque tinham de assiná-los. Mais tarde, a palavra firma passou também a significar a parcela de terra indicada para o coletor de impostos, e se tomava sua “farm” [lavoura, em inglês].
a igreja. A pessoa que recebia o dízimo era chamada de “reitor”, e geralmente ele era o sacerdote da paróquia. Várias paróquias podiam ter o mesmo reitor (um abuso que ficou conhecido como “pluralismo”), e com frequência a reitoria cabia ao abade de um monastério, que se “apropriava” da paróquia e usava o dízimo para sustentar a própria infraestrutura. Nesse caso, o reitor nomeava um substituto, ou “vigário” para morar na paróquia e exercer os serviços da igreja. O vigário era pago pelo reitor com o dinheiro dos dízimos, mas, com o tempo, essa prática foi formalizada. Os dízimos eram divididos em “superiores” e “inferiores”. Os superiores eram provenientes de trigo, feno e lã: trigo, alimento dos humanos; feno, alimento dos animais (muito importante na economia rural); lã, a cultura de maior valor financeiro. O restante—o dízimo do leite, das ovelhas e assim por diante — era dízimo “inferior”, reivindicado pelo vigário, que também ficou conhecido como o “cura” porque tinha nas mãos a “cura (o cuidado) das almas,” da paróquia. Muitos vigários eram ricos o bastante para contratar substitutos, que ficaram conhecidos como “curas (assistentes)”, e hoje continua assim. Esse sistema era comum em toda a Europa Ocidental, embora, às vezes, a terminologia possa ser confusa. Na França, por exemplo, o clérigo local era chamado curé, e seu substituto, vicaire·, assim, hoje esses termos têm em francês significados opostos do inglês. Mas, a diferença é de terminologia, e não de essência. O sistema era o mesmo em todos os lugares, e assim foi durante séculos. Como centros de aprendizado, geralmente os monastérios abrigavam monges habilidosos na arte de sonegar impostos; assim, os monastérios enriqueciam às custas da igreja e da sociedade. Porque os reis da Europa Ocidental levaram a cabo a decisão de tributar o clero, essa sonegação ficou cada vez pior, alimentada, como sempre, pela convicção genuína de que o estado não tinha direito de tributar o que foi dedicado ao serviço de Deus e sua igreja. A verdade é que a igreja havia se tornado um estado em si, e adquirido uma identidade até então inexistente. Embora praticamente todo mundo fosse batizado e, por consequência, membro genérico da igreja, a “igreja” passou a ser entendida pela sociedade como uma corporação com seus próprios funcionários (o clero) e modo de operar. Seus
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serviços eram usados da maneira que nós hoje usamos escolas, bibüotecas públicas e hospitais. Por mais que achemos que tais instituições nos “pertencem” como serviços sociais, temos consciência de que são órgãos distintos que funcionam de acordo com suas próprias regras, e não nos vemos como parte do quadro de funcionários, mesmo que usemos seus serviços regularmente, tornemo-nos membros e associados e até façamos parte de sua diretoria. Da mesma forma, a igreja da Idade Média era ajudada por leigos, por exemplo, como supervisores em cada paróquia, e sua tarefa era cuidar da vida da igreja e relatar qualquer mau comportamento entre os paroquianos, de modo que as autoridades aplicassem a disciplina apropriada. Contudo esses supervisores, por mais importantes que fossem, não eram parte da corporação da “igreja” e não usufruíam os benefícios que essa posição acarretava. Para operar sua malha intrincada de serviços, a igreja necessitava de um sistema legal muito eficiente, e foi isso que os papas se determinaram a construir. A igreja havia herdado leis romanas antigas, que depois da conversão do império ao cristianismo se expandiram para incluir estatutos a ela relacionados. Os estatutos foram sistematizados por Justiniano I (r. 527-65), o imperador do Oriente que gastou a maior parte de sua vida tentando reconquistar o Ocidente. Em qualquer área que Justiniano e seus sucessores conseguissem impor sua vontade, a legislação escrita de Roma prevalecia e a igreja não podia fazer nada a não ser adaptá-la às suas necessidades. Contudo, nos reinos bárbaros do Ocidente, a situação era outra. Os bárbaros tinham suas próprias leis, originárias de costumes tribais, e eram aplicadas conforme a necessidade. Em alguns casos, os bárbaros incorporaram fragmentos da lei romana, mas, no geral tinham uma tradição oral que se desenvolvia conforme os acontecimentos. No início, não havia códigos escritos, e quando começaram a surgir, eram invariavelmente bem menos sofisticados e abrangentes que a legislação romana. Como organização universal, a igreja não podia estar vinculada a costumes locais que variassem consideravelmente de um lugar para outro, então, ela preferiu trabalhar com a legislação romana - embora modificada por necessidades específicas da igreja.
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Essa foi a origem do que chamamos hoje de “lei canônica”, que definia a igreja como uma instituição social e cujo legado continua a existir. A lei canônica era uma mescla de decisões tomadas pelos vários concílios da igreja, ensinos dos principais pais da igreja e da legislação imperial romana. No começo, não havia sistematização, e algumas fontes discordavam umas das outras. O objetivo de um jurista chamado Gratian, que trabalhou em Bolonha no meio do século 12, era colocar ordem no caos. Por volta de 1140, ele publicou Concordantia discordantium canonum (Concordância de cânones discordantes), que rapidamente se
estabeleceu como o manual mais importante para os juristas canônicos da igreja ocidental. Conhecido popularmente como o Deeretum, ele nunca teve um status oficial, mas, era de padrão tão elevado que ninguém jamais questionou sua autoridade. Nos séculos 13 e 14 o livro recebeu acréscimos, contudo, foram de caráter diferente. Eram principalmente os cânones dos concílios ecumênicos reunidos entre 1173 e 1313, juntamente com vários decretos papais. Foram publicadas quatro edições distintas sob a autoridade do papa Gregorio IX (1234), do papa Bonifácio VIII (1298), do papa Clemente V (1313) e do papa João XXII (1328). Juristas canônicos prepararam uma última edição por volta do ano 1500, e o trabalho foi publicado com o título Corpus iuris canonici. A obra permaneceu como fonte padrão para a lei canônica da Igreja Católica Romana até 1917, quando foi substituída por um código mais moderno (que por sua vez foi substituído em 1983). As igrejas protestantes em geral aboliram o manual, mas, não antes de incorporarem partes dele em sua legislação. A Igreja Anglicana tentou substituí-lo com código próprio, mas, não conseguiu. Embora tenha mais tarde desenvolvido seu próprio direito canônico, os cânones antigos conservam autoridade residual no mundo anglicano, tornando sua igreja diferente da católica ou das outras igrejas protestantes. Para funcionar bem, o direito canônico exigia um sistema jurisdicional, advogados para trabalhar com ele e um corpo de publicações e comentários que explicassem como aplicar seus princípios. Como
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resultado, formou-se uma enorme rede jurídica, com tribunais fundonando em diferentes níveis. O papa, claro, tinha os seus, assim como os arcebispos, bispos e arquidiáconos. Em teoria, o apelo para a dissolução de um casamento podia ser levado ao tribunal do arquidiácono e depois para o do bispo, do arcebispo e do papa, contudo, também era possível ir direto ao topo, desviando-se dos escalões hierárquicos intermediários. Essencialmente, foi o que aconteceu quando Henrique VIII quis anular seu casamento com Catarina de Aragão. A desvantagem desse tipo de procedimento foi que ele durava muitos anos, por causa da necessidade de juntar documentos e, depois, atravessar a Europa para apresentá-los na corte papal, e o papa nem sempre era neutro como deveria ser. No caso de Henrique VIII, por exemplo, o papa era prisioneiro do imperador Carlos V, sobrinho de Catarina e profundamente contrário à anulação por vê-la como um insulto à família. 22 O direito canônico era importante porque, para a igreja, ele era um meio de estender princípios cristãos a aspectos do dia a dia que não eram tratados na Bíblia. Por exemplo, ele estabelecia a idade de consentimento matrimonial (doze anos para as meninas e catorze para os meninos) e especificava como os lideres da igreja deveríam ser nomeados e disciplinados. Também definia um número de questões litúrgicas sobre a celebração da Ceia do Senhor. Seus proponentes viam o direito canônico como um suplemento divino às Santas Escrituras, mesmo quando ele era contrário ao texto sagrado, como a imposição do celibato ao clero, por exemplo. Na prática, como a Bíblia era um texto fixo que não podia ser alterado, ao passo que o direito canônico era um grupo de leis e práticas que se originaram e desenvolveram com o tempo para preencher as necessidades do momento, ele - e não os princípios estabelecidos no Novo Testamento — passou a dominar a vida da igreja. Quando Martinho Lutero (1483—1546) hasteou a bandeira da revolta, ele atacou primeiramente o direito canônico como a “tradição” que o papado impôs a uma igreja que deveria ser governada unicamente pelas Escrituras. 22
Veja . A. Kelly, The Matrimonial Trials of Henry U7/7 (Stanford: Stanford University Press, 1976).
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CISÃO E HERESIA
Cisão e heresia foram um aspecto importante da vida da igreja com o qual o direito canônico teve de lidar. Teoricamente, a distinção entre as duas era simples e clara. Cisão foi uma divisão na estrutura administrativa da igreja que não envolvia sua doutrina. Os donatistas da África do Norte eram cismáticos porque rejeitaram a autoridade dos bispos reconhecidos pela igreja tradicional, contudo, não eram hereges, pois não negavam nenhuma doutrina cristã. Os arianos, por outro lado, eram hereges, porque não aceitavam a divindade absoluta de Cristo, porém não eram cismáticos, pois não queriam abandonar a igreja tradicional. Muitos arianos tentaram continuar na igreja, mas, foram rejeitados por causa de sua doutrina inadequada. Não podiam ser reintegrados a ela por vias administrativas; tiveram de se reconciliar por meio do arrependimento e da confissão da fé ortodoxa. Isso era especialmente evidente nas áreas do Império Romano Ocidental onde as tribos arianas destituíram as autoridades imperiais. A natureza da situação era que os cristãos ortodoxos não podiam perseguir os arianos que os governavam, e como os arianos eram minoria, não conseguiam prejudicar muito a igreja tradicional, embora vez ou outra perseguissem seus membros. Por natureza, era difícil definir um cisma porque muito dependia do ponto de vista de quem falava. Quando o Oriente e o Ocidente se separaram, por exemplo, a igreja ocidental se referia à “cisão oriental”, mas, a igreja do oriente falava em “cisão ocidental (papal)” - como ainda hoje. Os estudos contemporâneos têm se empenhado em acabar com a amargura causada por essa diferença de perspectiva, mas, escritores ocidentais ainda se veem forçados ao uso da terminologia tradicional, nem que seja apenas para serem entendidos. 23 Era quase inevitável que as causas das cisões fossem fatores não teológicos tais como reivindicações conflitantes à jurisdição, contudo, eram tão difíceis de ser 23 Veja
S. Runciman, The Eastern Schism (Oxford: Oxford University Press, 1955); F. Dvornik, The Photian Schism (Cambridge: Cambridge University Press, 1948). Os dois livros foram escritos por estudiosos ocidentais simpáticos ao pensamento oriental.
resolvidos quanto qualquer heresia e, como a divisão entre Oriente e Ocidente mostrou, igualmente duradouros. Heresia era questão de erro teológico e era definida por esse critério. Foi isso que Isidoro de Sevilha fez no início do século 6, e sua classificação continuou sendo o padrão por toda a Idade Média. Ela foi incorporada ao direito canônico, e fez com que as aberrações que haviam desaparecido nos tempos antigos pudessem ser restauradas artificialmente se ou quando doutrinas semelhantes surgissem mais tarde. Por exemplo, o arianismo havia desaparecido por volta de 600 d.C., mas, se um indivíduo acreditava (ou achassem que acreditava) que Jesus Cristo era divino mas não completamente Deus, ele seria chamado de “ariano”, mesmo que nunca tivesse ouvido falar em Ario. Por exemplo, na época da Reforma, um homem como Lutero foi acusado de “nestorianismo” porque negava a doutrina da transubstanciação, uma acusação anacrônica em todos os sentidos. 24 A elevação da igreja ao status de religião oficial tornou a cisão um assunto político importante, porque se separar da igreja significava revoltar-se contra o estado. Assim, os cismáticos eram perseguidos por imperadores e reis como rebeldes, uma prática que continuou até o século 16, quando os protestantes eram frequentemente tratados dessa forma. A heresia era uma questão mais complexa, pois embora fosse um ataque à doutrina da igreja, não era claro se também consistia em crime contra o estado. Além disso, a heresia era algo que somente os teólogos podiam julgar, até porque geralmente as questões em jogo eram extremamente sutis e difíceis de serem entendidas por leigos. Nessa área, a igreja medieval teve de lutar para impor sua vontade. Como a heresia destruía a alma, ela merecia ser punida com a morte, contudo, a igreja não tinha autoridade para executar a sentença que impunha aos hereges. Isso lembra o Sinédrio que condenou Jesus à 24 O
nestorianismo afirmava que o Cristo encarnado tinha uma natureza divina e outra humana, e as duas estavam unidas em sua pessoa, contudo, mantinham identidades separadas, e isso possibilitou a existência de um Jesus puramente humano. Já a transubstanciação ensinava que na Eucaristia, o pão e o vinho se tornavam a substância da carne e do sangue de Cristo, algo que o nestorianismo achava inconcebível.
morte. Para a sentença ser aplicada, Jesus teve de ser entregue a Pôncio Pilatos, que relutou em executar um homem que a seus olhos era inocente de qualquer crime. Os reis da Europa Ocidental encararam dilema parecido diante de hereges condenados. Eles não tinham poder para decidir se a acusação era justificada, todavia a igreja esperava que eles a obedecessem sem fazer perguntas. Outra complicação foi que a igreja preferia um método novo de execução — a fogueira. Na Inglaterra, os nobres tinham o direito de ser decapitados e os camponeses, enforcados, mas, a heresia ultrapassava os limites de classe, e o entendimento era que o castigo dado à heresia não deveria ser restringido a nenhuma classe social. Existia ainda a teoria que o fogo purgaria a alma de seus pecados, permitindo que a infeliz vítima fosse para o purgatório e não direto para o inferno, o que, naturalmente, era um benefício eterno. Infelizmente, os executores do estado não tinham experiência em queimar pessoas na fogueira, e achavam que o procedimento estava abaixo de sua dignidade pessoal. Essa atitude gerou resistência, e na Inglaterra, por exemplo, a heresia não foi considerada crime até 1401, e uma década se passou antes que alguém fosse morto da maneira aprovada pelo cânone. A morte na fogueira nunca foi bem aceita e raramente foi praticada antes da Reforma. Somente quando a rainha Maria I passou a queimar protestantes publicamente (e em grande número), o horror absoluto do procedimento veio à tona, e a opinião pública se voltou contra ele. Em anos posteriores a fogueira foi reservada às pessoas acusadas de bruxaria, e no século 17, ela caiu em desuso. 25 Outro problema da igreja era decidir o que considerar heresia. Nem todos os casos podiam ser incorporados às heresias clássicas da lista de Isidoro de Sevilha, porém muita gente ainda rejeitava aspectos do ensino da igreja. Alguns, como os albigenses do sul da França, eram definitivamente inortodoxos, e suas doutrinas, que eram dualistas como as dos maniqueístas da antiguidade, podiam facilmente ser condenados por heresia.26 No entanto, o problema era que se uma pessoa reclamasse 25 Na
Inglaterra, a última morte na fogueira aconteceu em 1612. A prática foi legalmente abolida em 1677. 26 S. Runciman, The MedievalManichee (Cambridge: Cambridge University Press, 1947).
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de negligência por parte da igreja, ela seria acusada de heresia, mesmo que sua intenção fosse endireitar algo visivelmente errado. Na verdade, ocorreram vários casos assim, e os fundadores dos novos movimentos religiosos, como Francisco de Assis, por exemplo, não estavam acima de qualquer suspeita.27 O caso que exemplificou esse embate foi o de John Wycliffe (c. 1330-84). Wycliffe era um professor de Oxford que pregava contra a igreja de sua época, que ele acusava de ter caído no erro. De acordo com Wycliffe, a igreja se afastou da autoridade absoluta da Bíblia em questões doutrinárias e em admitir a transubstanciação, uma crença que ele (acertadamente) considerava fisicamente impossível. A igreja se sentiu profundamente constrangida por esses ataques, mas, eram heresias? No aspecto puramente teológico, era difícil saber. Wycliffe não negava nenhuma das doutrinas clássicas da igreja, mas, provocou tal agitação que as autoridades tiveram de silenciá-lo, e acusá-lo de herege era de longe a melhor maneira de fazer isso. 28 Ninguém antes dele, e bem poucos depois, recebeu tanta condenação oficial. Até hoje, uma longa lista de acusações contra ele está preservada nas atas do famoso Concilio de Constança, de 1415, como evidência da seriedade com que a igreja levou as ameaças de Wycliffe. Ele foi forçado a deixar sua cadeira de professor em Oxford, mas, faleceu em sua cama, porque era apoiado por gente importante e o rei não estava disposto a agir como seu carrasco. Na verdade, Wycliffe re presentou uma geração moderna de intelectuais que repeliram o que se tornou um modo aceitável de pensar e queriam substituí-lo por novos e (aos olhos deles) melhores conceitos. Se a igreja apoiou idéias que na visão deles tinham de ser rejeitadas, então, ela estava errada e deveria mudar. Mas, a igreja podería alguma vez estar errada? Achar que sim 27
Veja H. Fichtenau, Heresies and Scholars in the High Middle Ages, 1000—1200 (University Park, PA: Penn State University Press, 1998); W L. Wakefield e A. P. Evans, Heresies of the High Middle Ages (Nova York: Columbia University Press, 1969); G. Leff, Heresy in the Later Middle Ages: The Relation of Heterodoxy to Dissent (Manchester: Manchester University Press, 1967). Será coincidência que os estudos mais importantes sobre esse assunto tenham sido publicados por editoras de universidades? 28 Leia mais sobre Wycliffe em S. E. Lahey, John Wyclif (Oxford: Oxford University Press, 2009); G. R. Evans ,John Wyclif. Myth and Reality (Oxford: Lion Hudson, 2005).
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era questionar sua autoridade, e foi isso, mais do que qualquer outra coisa, que provocou tanto alvoroço. No que dizia respeito às Escrituras, não havia lei contra traduzi-la na linguagem popular, o que Wycliffe defendia, contudo, a igreja temia que se leigos ignorantes se apossassem da Bíblia, eles iriam interpretá-la erroneamente e usá-la para apoiar heresias. 29 Os partidários de Wycliffe, conhecidos como lolardos, se tornaram bastante proeminentes depois de sua morte, e, mais tarde, alguns deles foram implicados em uma revolta contra a Coroa Britânica. Em resposta, a igreja tornou ilegal traduzir a Bíblia para o inglês e forçou os pregadores a obterem uma licença para subirem ao púlpito. Com isso, a igreja esperava conter o lolardismo e impedir que qualquer coisa inaceitável a ela chegasse ao conhecimento da população. A Universidade de Oxford ficou sujeita a escrutínio regular e intenso, porque foi ali que a confusão teve início. Na cabeça de muitos, idéias eram um perigo, e as novas idéias certamente eram erradas. Agora, a igreja era o poder reinante que não queria ser perturbada por nenhum tipo de mudança, mas, sua batalha já estava perdida. Wycliffe e os lolardos foram reprimidos, contudo, as forças que representavam não podiam ser contidas tão facilmente; quando, por fim, irrompessem, a igreja seria a grande perdedora de uma batalha que não podería vencer. Aos poucos, a heresia passou a ser determinada não em relação a doutrinas objetivas tais como a Trindade (embora, claro, negá-las continuava a ser profundamente herético), mas, a opiniões e comportamentos que desafiavam a autoridade da igreja. Atacar a corrupção nos altos cargos, recusar-se a dar o dízimo, questionar o poder e o papel de uma hierarquia sacerdotal que não tinha base bíblica aos olhos do crítico - tudo isso podería ser considerado “heresia”, se a igreja assim o quisesse. Assim, a ameaça de condenação por heresia se tornou um instrumento para controlar dissidentes de qualquer tipo. No decorrer do século 15, ficou gradualmente mais difícil esconder os males da liderança clerical, e as vozes de protestos ficaram mais altas. Poderíam 29 Em
geral, Wycliffe é considerado tradutor da Bíblia, mas, ele não foi. No entanto, havia duas traduções em inglês produzidas por alguns de seus seguidores que circulavam em manuscrito.
elas ser silenciadas por um papado cada vez mais corrupto, ou os reis da Europa iriam finalmente se encher de coragem o bastante para se oporem a tamanha tirania eclesiástica e reafirmar seus direitos de decidir quem entre seus súditos deveria ser condenado à morte e por quê? No final, a questão sobre o que fazer a respeito da heresia se provou decisiva para o destino da igreja medieval do Ocidente. De um lado, era princípio fundamental que a igreja permanecesse o mais pura e sem mácula possível aos olhos de Deus. Os falsos ensinos tinham de ser identificados, condenados e extirpados se o objetivo acima quisesse ser alcançado. Uma organização privada disciplinar seus membros ainda vá lá, mas, uma instituição pública fazer isso, especialmente quando ela tem posição de comando no estado, era coisa bem diferente. A igreja não tinha autoridade para executar ninguém, mas, tinha o direito de exigir que governantes seculares agissem em seu nome? O que a igreja faria se os governantes se recusassem a cumprir seus desejos? No século 16 essas e outras questões parecidas vieram à tona e não havia como ignorá-las. Em alguns lugares, como a Espanha e partes da Itália, a igreja se impôs e conseguiu exercer sua disciplina nos órgãos do estado e por meio deles, o que resultou na abominável Inquisição, um procedimento pelo qual investigadores especialmente escolhidos procuravam acabar com os hereges. Nomeados pela igreja, esses investigadores eram não obstante agentes do estado, e suas decisões tinham força legal. Em outros lugares, porém, as autoridades do estado se mostraram menos submissas à igreja. Em geral, estavam dispostas a defender os princípios básicos da igreja estabelecida, entretanto menos dispostas a matar os dissidentes. Algumas autoridades até chegaram a considerar se um homem como Martinho Lutero tinha algo de valor a dizer e estava sendo injustamente alvejado pela igreja que não queria lhe ouvir. Quando esse questionamento se concretizou, a igreja não podia mais confiar nos governantes seculares, e seu relacionamento com o estado entrou em uma fase nova e crítica. O SISTEMA SACRAMENTAL
O sistema sacramental estava incrustado no coração da igreja medieval, sistema que ela desenvolveu e que para muitas pessoas era
o principal ponto de contato com a igreja e sua razão de existir. Sete rituais eram administrados aos membros da igreja em diferentes épocas de suas vidas; alguns apenas uma vez e outros com mais frequência - em alguns casos, diariamente. O sistema não foi criado até a Idade Média, e apenas na igreja do Ocidente; o Oriente manteve um modelo mais primitivo que ainda hoje se harmoniza superficialmente com o seu equivalente ocidental. Se havia “sacramentos” na igreja do Novo Testamento é uma pergunta interessante. A palavra significa “juramento” e seu primeiro uso aconteceu aproximadamente no ano 200 d.C. por Tertuliano, quando ele descreveu o batismo como um “juramento de fidelidade” que o cristão faz a Cristo. Tertuliano usou uma metáfora militar que, segundo ele, podia ser aplicada à igreja porque seus membros eram soldados prontos a morrer pelo imperador. Tertuliano considerava a água batismal como o meio divinamente escolhido para transmitir uma verdade espiritual a quem se batizava.30 Foi isso que transformou o batismo em sacramento aos seus olhos, e sua eficácia era garantida pela promessa de Deus em sua Palavra e pela presença de seu Espírito nos elementos sagrados. Na Idade Média, a crença universal era que a pessoa tinha de ser batizada para ficar limpa do pecado original e ser aceita como membro da igreja, que era a promessa de vida eterna. Assim, quem morria sem ser batizado ia para o inferno ou para um lugar nebuloso conhecido como limbus patrum, ou limbo, onde, segundo a crença, as almas dos justos que morreram antes da vinda de Cristo ficavam em estado de animação suspensa. Isso tudo era especulação, mas, fosse qual fosse o estado real dos que morreram sem batismo, a igreja ensinava que era melhor não se arriscar. Como a água consagrada tinha suas propriedades salvadoras, a profissão de fé se tornava desnecessária. O batismo era igual a uma vacina: funcionava independente de a pessoa saber ou não o que estava acontecendo. Em uma sociedade onde a mortalidade infantil era extremamente alta, o destino das crianças não batizadas era uma grande preocupação. O ideal era que o batismo fosse realizado por um padre assim que o bebê nascesse, mas, a ansiedade da espera podería ser 30 Tertuliano, De bapüsmo 3.
tanta que a igreja autorizou leigos, especialmente as parteiras, a realizar o ritual em particular se achassem que o bebê corria perigo de vida. Outro aspecto importante era que o nome dado à criança no batismo tinha força legal que superava tudo. 31 Era um sinal de que ela pertencia à comunidade dos salvos, vivos e mortos, e muitos bebês recebiam o nome do santo cuja memória era comemorada no dia de seu batismo. Martinho Lutero, por exemplo, recebeu esse nome porque foi batizado no dia 11 de novembro de 1483, dia de São Martinho. Outros rituais e cerimônias que passaram a ser considerados sacramentos eram um balaio de práticas diferentes, e somente poucos eram justificados pelo Novo Testamento. Muitas se desenvolveram através dos séculos, e pelo menos uma (matrimônio) não era de origem cristã. 32 A mais evidente e importante dessas cerimônias era a Ceia do Senhor, que prefigurava claramente na Última Ceia de Jesus e seus discípulos e sobre a qual o Novo Testamento oferece instruções precisas. Logo no início, a ceia só podia ser realizada pelos bispos e delegada a seus presbíteros, um padrão que se tornou a norma para os tempos medievais. No decorrer do tempo, várias teorias foram apresentadas para explicar o que acontecia durante a ceia e por que ela era tão fundamental à vida da igreja. O foco estava no pão e no vinho, que representavam o corpo e o sangue de Cristo. Durante muito tempo a ligação entre os símbolos e as realidades que representavam era nebulosa, mas, todos criam que ao partilhar do pão e do vinho consagrados estavam entrando em comunhão com Cristo. Por essa razão, a Ceia do Senhor passou a ser conhecida como Santa Eucaristia, um rito no qual os membros da igreja chegavam mais perto de seu líder ao ingerirem sua presença. 33 Nunca se questionou o fato de essa comunhão ser principalmente espiritual em natureza. Mas, o Filho de Deus se tornou homem em Jesus Cristo, e passou-se a crer que assim como seu corpo físico tinha 31 Ainda
hoje, em um país como a Inglaterra, o nome batismal (ou “cristão”) de uma criança é mais importante do que o registrado em sua certidão de nascimento. 32 Para saber a história individual dos sacramentos, veja J. Martos, Doors to the Sacred: A Historical Introduction to the Sacraments in the Catholic Church (Tarrytown, NY: Triumph Books, 1991). 33 Para
ler uma curta história sobre as diferentes teologias relativas à Ceia do Senhor, leia G. Macy, The Banquet’s Wisdom (Akron, OH: OSL Publications, 2005).
papel essencial na salvação da raça humana, sua presença espiritual na Eucaristia devia ser acompanhada de um aspecto físico igualmente essencial. Dessa maneira, nasceu a crença que o pão e o vinho davam ao corpo e ao sangue de Cristo mais que um sentido puramente simbólico. Acreditava-se que ele estava objetivamente presente no pão e no vinho, dando-lhes poder espiritual próprio, bem além do ministério da igreja. Portanto, assim foi possível separar os elementos consagrados e adorá-los como se fossem o próprio Cristo, e uma hoste de práticas devocionais cresceram ao redor deles. Pensou-se até que poderíam ser roubados e usados com propósitos ocultistas nas chamadas Missas Negras. A palavra “missa”, que vem do latim, não tem nenhum sentido teológico inerente. Ela se origina da última frase da liturgia, a saber Ite, ecclesia missa est (Ide, a igreja está dispensada), e era usada por quem não
entendia o latim para se referir ao culto inteiro. Depois da Reforma Protestante, o termo “missa” passou a ser usado pelos católicos para enfatizar sua crença na transformação dos elementos quando de sua consagração, o que (aos olhos católicos) diferenciava completamente a missa da Ceia do Senhor praticada pelos protestantes. A partir do Quarto Concilio de Latrão, em 1215, essa mudança nos elementos passou a ser chamada “transubstanciação”, um termo que reflete a física aristoteliana, amplamente aceita naquela época. De acordo com essa teoria, todo o mundo real podia ser analisado em substâncias e seus acidentes, ou seja, no que era fundamental e no que era simplesmente transitório ou acidental. O pão, por exemplo, era uma substância fundamental, embora pudesse acidentalmente aparecer em cores diferentes, em pesos diferentes, e assim por diante. Esse método de analisar a matéria foi rejeitado na modernidade, mas, o legado da igreja medieval continua, especialmente entre os católicos, para os quais a transubstanciação continua ensino oficial da igreja. Teólogos e reformadores litúrgicos dentro da Igreja Católica têm labutado para redefinir essa doutrina, sem muito sucesso até agora, e a religiosidade popular permanece teimosamente conservadora. No meio católico o padre pode realizar uma missa por conta própria, ou para “propósitos” particulares alheios ao corpo principal da igreja, e as práticas devocionais
associadas aos elementos reservados continuam como sempre foram feitas. Nesse aspecto, mais do que em outro qualquer, observamos como os sacramentos permanecem fundamentais à Igreja Católica Romana de um modo que não pode ser atribuído às suas contrapartes protestantes. Entre os outros cinco sacramentos reconhecidos, a confirmação é na verdade uma extensão do batismo, e há pessoas que a negam como sacramento por mérito próprio. Ela existe para assegurar que a criança batizada quando era bebê faça sua profissão de fé. Para os católicos isso ocorre quando ela tem por volta de seis anos de idade, contudo, os protestantes que praticam a confirmação geralmente esperam até a adolescência, quando (presume-se) as crianças têm mais capacidade de concordar com os votos batismais de modo consciente e responsável.34 Na Idade Média, quase ninguém era batizado quando adulto, portanto, nunca se questionou a necessidade da confirmação. Quando se tornou necessária, o consenso foi que ela era um sacramento distinto, e, portanto, até os adultos que haviam sido batizados tinham de ser confirmados, por mais ilógico que nos pareça. A seguir, vem a paenitentia, que pode ser traduzida como “penitência”, “punição” ou “arrependimento”. Arrependimento, pesar sincero pelos pecados e seu completo abandono é o verdadeiro sentido do rito, mas, a palavra normalmente usada é “penitência”. A penitência se tornou uma série de atitudes impostas como penalidade ao pecado. Antes de participar da Comunhão, as pessoas procuravam o padre, confessavam seus pecados, e recebiam ordens a serem cumpridas para mostrar que estavam realmente tristes pelo que fizeram. Em geral, tinham de fazer orações extras ou alguma boa obra. Quando a penitência estivesse cumprida, os penitentes retornavam ao padre e eram absolvidos, o que lhes dava direito de participar da Comunhão. A prática de confessar a outros e mostrar arrependimento poderia invocar o apoio do Novo Testamento, mas, ela nunca foi organizada de modo sistemático no Novo Testamento.35 Igualmente, podia-se usar a autoridade bíblica para impedir que o pecador impenitente participasse 34 Atualmente
a maioria dos católicos americanos adiam a confirmação até a adolescência, mas, a prática é recente e longe de ser universal. 35 Veja Tiago 5.16,17.
da Ceia do Senhor, contudo, isso era parte de uma disciplina pública mais abrangente e não estava confinada a um ritual semiparticular controlado por um padre. A penitência sacramental era uma causa im portante de legalismo na igreja medieval, porque cada pecado tinha de ser pesado e medido para que o nível correto de tristeza por ele fosse manifestado. Isso exigia cálculos elaborados e levava as pessoas a enxergar seus pecados como dívidas que precisavam ser pagas, o que, por sua vez, gerou inúmeras outras práticas, incluindo as assim chamadas obras supererogatio, palavra derivada do latim que significa “pagamento além do que é pedido ou devido”. As pessoas realizavam essas obras com o objetivo de pagar por pecados inconscientes, e conseguir “indulgências”, ou perdões por pecados cometidos. As indulgências eram vendidas aos ricos, um escândalo que foi a causa imediata da Reforma Protestante. Pior ainda, a penitência gerou a crença que a maioria das pessoas morria com dívida espiritual, sem pagar por todos os seus pecados. Com isso, a igreja inventou um lugar chamado “purgatório” para onde iam as almas dos fieis que partiram e ali continuavam a trabalhar rumo à salvação final. O grande problema com isso, que geralmente passa despercebido hoje em dia, mas, que foi uma das principais objeções de Martinho Lutero à ideia toda, é que a penitência deu ao papa jurisdição sobre quem morreu e foi para um reino espiritual inferior ao céu. Como uma autoridade terrena, por mais nobre que fosse, poderia reivindicar tal poder? No entender de Lutero, ao vender indulgências, o papado não estava simplesmente engajado na prática de corrupção como também legislando fora de sua esfera de competência. Assim como o tribunal de um país não pode reduzir a pena de um criminoso em outra jurisdição, o papa não tinha poder para mitigar os sofrimentos dos que estavam além-túmulo. Ao afirmar que podia fazer tal coisa, o papa ultrapassava sua autoridade e tomava o lugar de Cristo, cujo representante na terra ele reivindicava ser. Foi por isso que a revolta de Lutero ultrapassou o protesto normal contra a corrupção. Ela atingiu a raiz da autoridade do papa e resultou em um questionamento amplo sobre a natureza da igreja que ele dizia governar em nome de Cristo.
Outro famoso sacramento era a extrema unção, mais conhecida como últimos sacramentos; é a unção com óleo que precede a morte. De início, a unção era para a cura, e como tal tem apoio no Novo Testamento, contudo, a taxa de mortalidade estava tão alta há tanto tempo que o propósito original logo se perdeu de vista.36 A unção tornou-se uma garantia ao moribundo de que ele estava partindo em “estado de graça”, o que pelo menos afofaria a passagem do morto ao purgatório, com a possibilidade de se desviar dele totalmente. Os dois últimos sacramentos eram o matrimônio e as ordens sagradas, que passaram a ser vistos como mutuamente exclusivos. O matrimônio não era um rito especificamente cristão, e durante séculos a igreja não celebrava casamentos. Os cristãos eram avisados a não se casarem com incrédulos, mas, era só. O casamento era um rito secular que acontecia por propósitos seculares; aqueles cujos pensamentos estavam voltados para o céu geralmente evitavam o casamento. No século 12, o celibato foi formalmente imposto a todos os padres (foi imposto aos bispos em 692), e continua uma característica do clero católico até hoje.37 Ao mesmo tempo, o casamento dos leigos ficou nas mãos da igreja, que precisava agir porque os instrumentos da sociedade civil romana havia se desintegrado na Europa Ocidental, deixando a igreja como a única instituição capaz de providenciar as garantias legais necessárias. No entanto, assim que passou a cuidar do matrimônio civil, a igreja buscou impor padrões cristãos — notoriamente por insistir que as duas partes consentissem em se casar, que ninguém se casaria dentro de certos graus amplos de consanguinidade e afinidade, e que o divórcio não seria permitido. No decorrer da cristianização, o casamento passou a ser considerado um sacramento porque é uma ordem sagrada prescrita por Deus e usado no Novo Testamento como símbolo do relacionamento de Cristo com a igreja, que é a sua noiva. Nesse aspecto, o matrimônio 36 Veja
Tiago 5.14,15. 37 Veja C. Cochini, The Apostolic Origins of Priestly Celibacy (São Francisco: Ignatius Press, 1990); R. Cholij, Clerical Celibacy in East and West (Leominster: Fowler Wright, 1988), para conhecer uma justificação moderna da prática do ponto de vista católico.
podia ser visto como o mais eclesiástico dos sacramentos, embora tivesse o relacionamento mais ambíguo com o cristianismo. MISSÃO MEDIEVAL E EXPANSÃO
Em muitos aspectos, a Idade Média parece ser uma época em que os horizontes do mundo antigo se encolheram. O desmoronamento do governo civil e o declínio das instituições seculares de ensino deixa essa impressão, contudo, esse é apenas um lado da história. De outro ponto de vista, a Idade Média testemunhou uma enorme e duradoura expansão da cultura europeia e também da igreja cristã, que era agora amplamente identificada com ela. No século seguinte à morte do profeta Maomé, em 632, exércitos árabes, impelidos por sua devoção ao Islamismo, conquistaram a Síria, o Egito, o Norte da África e a maior parte da Espanha, entretanto, em quase todos esses lugares os cristãos continuaram sendo a maioria da população durante vários séculos. Nos séculos seguintes, a Espanha foi reconquistada pelo cristianismo, e o Islamismo perdeu a Ásia Menor (Turquia hoje) para sempre; de outro modo, essa fronteira permaneceu extraordinariamente estável durante os últimos mil e quatrocentos anos. No entanto, se a igreja sofreu grandes perdas em seu lado sul, obteve ganhos consideráveis rumo ao norte, embora a maioria das vitórias tenha acontecido mais tarde. O arianismo atravessou as fronteiras do Império Romano no século 4, quando chegou aos godos além das divisas do Danúbio. Esses mesmos godos invadiram o império e se estabeleceram ali, deixando que os pagãos ficassem com suas terras. No século 15, a Irlanda se tornou o primeiro país não romano (além da Armênia, que tinha um tratado com Roma) a ser evangelizado. As origens da missão à Irlanda foram ofuscadas em lendas, mas, quando a névoa desapareceu, ficou claro que uma igreja distinta havia emergido. O cristianismo romano era fundamentado na cidade, porque o Império Romano era essencialmente uma confederação de cidades. A Irlanda não tinha cidades, portanto a missão ali teve um formato diferente. Como os primeiros missionários eram monges, eles construíram monastérios, que se tornaram o foco da evangelização. Mais
tarde, assentamentos cresceram ao redor das igrejas monásticas, muitas das quais se tornaram bases para os bispos locais e, consequentemente, catedrais. Esse arranjo informal permaneceu até o século 12, quando foi introduzida uma estrutura diocesana nos moldes de Roma. 38 Bem antes, porém, o conceito de igreja monástica havia se espalhado pela Grã-Bretanha e uma boa parte do norte da Europa jamais alcançada pelos romanos. Mesmo em áreas do antigo império onde a vida urbana havia se desintegrado, ainda era possível encontrar igrejas monásticas, trazendo consigo uma nova forma de ordem eclesiástica. Seus traços ainda podem ser vistos hoje em nome de lugares contendo a palavra minster, münster ou moutier. Diferentes das igrejas antigas do mundo romano, elas não eram frutos naturais da vida social local. Na Itália, o prefeito de Milão poderia ser o bispo da cidade, como o grande Ambrósio foi, mas, essa transição era impossível mais ao norte. Em vez disso, os bispos geralmente eram abades de monastérios, ou pelo menos monges, e seu modo de vida era bem diferente daquele das pessoas ao redor deles. Sendo monges, eram celibatários e, portanto, de alta mobilidade, o que lhes possibilitava levar o evangelho por todos os lados. Entre os anos 500 e 1000, a maior parte do norte europeu estava evangelizada, muito graças a seus esforços. Em outros lugares, a desintegração da vida urbana facilitou o desenvolvimento de igrejas de base territorial em que a autoridade de um bispo podia se estender a uma diocese que cobria áreas grandes e quase sempre pouco povoadas. Dentro dessas dioceses, havia muitas congregações locais reunidas em edifícios que, tipicamente, foram construídos para a realização de cultos. Por consenso popular, o edifício ficou conhecido como a “igreja”, e a transferência do sentido original da palavra se tornou tão comum que hoje ao pensar na “igreja” de sua cidade, a maioria das pessoas têm em mente o edifício usado para o culto público. A área de captação desse edifício era a sua paróquia, palavra derivada do grego paroikia, cujo significado é “habitação”. A 38
Mais detalhes em A. Gwynn, The Irish Church in the Eleventh and Twelfth Centuries (Dublin: Four Courts Press, 1992); . T. Flanagan, The Transformation of the Irish Church in the Twelfth Century (Woodbridge: Boydell & Brewer, 2010).
partir do século 10, a zona rural foi dividida em paróquias de tamanho manejável, tivessem ou não um edifício, é era nomeado um padre para ministrar a elas. A teoria era que uma paróquia deveria ser pequena o bastante para cada residente ficar debaixo da supervisão pastoral do clero local. De preferência, a supervisão incluiría educação, saúde e realização de casarnentos e funerais, contudo, os padrões variavam muito, nem sempre era possível atender às expectativas. Esperava-se que as paróquias sem templo construíssem um. O ideal era que o bispo diocesano providenciaria isso, contudo, a necessidade era quase sempre maior que os recursos à mão. Em muitos casos, então, pedia-se aos latifundiários locais que construíssem os templos, e em troca eles se tornavam seus patronos. O patrono de uma igreja tinha o direito de indicar o padre residente, que poderia ser qualquer um com ordenação válida. 39 A suposição era que o bispo lhe daria posse, como fazia nas igrejas que havia construído, contudo, isso era, em muitos casos, uma formalidade, e o bispo só recusaria se tivesse um excelente motivo. 40 Com o tempo, muitos nobres usavam esse direito, ou “padroado”, para colocar seus filhos jovens nas igrejas, uma vez que deveríam achar algo respeitável para eles fazerem. Não era o jeito mais edificante de encontrar ministros, e não é de admirar que tenha havido tantos fracassos nessa área de “vocação”. O surpreendente é que tenha funcionado tão bem como funcionou, provavelmente, porque os filhos dos nobres haviam recebido mais educação e estavam capacitados a ler a liturgia — em Latim. Os patronos, por sinal, também tinham responsabilidades e não apenas privilégios. Se o clero residente morresse ou fosse embora, o patrono deveria encontrar um substituto dentro de seis meses, ou entregar seu direito de representação ao bispo. O patrono também era responsável por consertar a capela-mor da igreja (onde o padre ficava), dividindo a tarefa com o reitor, que era responsável pela nave (onde a congregação sentava). 39 Veja
S. Wood, The Proprietary Church in the Medieval West (Oxford: Oxford University Press, 2006), para um estudo detalhado desse fenômeno. 40 A posse de um padre em uma igreja pertencente a um bispo é chamada “colação”. Em uma igreja pertencente a outra pessoa, é chamada “instituição”.
Esse modelo foi sistematizado no Quarto Concilio de Latrão, em 1215, quando o papa Inocêncio III instituiu um sistema de “benefícios” mais bem descrito como postos clericais que tinham rendimentos que davam para sustentar um padre residente. Um benefício, ou “sustento”, era geralmente uma paróquia que levantava dízimo em quantidade capaz de nomear um padre, mas, uma posição não paroquial (em uma catedral, por exemplo) também poderia fazer parte dessa categoria. A pessoa que recebia o benefício era chamada de “incumbente”, apesar de na linguagem popular ser conhecido como a persona — a “pessoa” da paróquia. O sistema paroquial acabou envolvendo a Europa Ocidental inteira, mas, havia exceções à regra. As mais óbvias eram as catedrais, dirigidas pelos bispos (cathedra em grego, da qual deriva a palavra “cadeira”). Contudo, o bispo não administrava a catedral. Essa tarefa era responsabilidade do decanus, ou “deão”. O deão era cercado por um número de clérigos que, juntos, constituíam o colegiado da catedral que o elegeu. Portanto, deões e bispos eram bem separados; no folclore da igreja, há uma longa história de conflito entre eles, que infelizmente está corroborada por muitas evidências. Os membros do colegiado eram chamados canonici, ou “cônegos”, pois eram nomeados de acordo com uma regra, ou “cânone”, que deveríam seguir na administração da catedral. Alguns cônegos eram residentes, mas, outros não; havia muita flexibilidade nesse aspecto. Os cônegos sustentados por rendimentos vindos de propriedades da catedral eram chamados praebendarii (prebendários), pois eram sustentados por praebenda (prebenda), nome dado a tais fontes de renda. Ligados ao colegiado da catedral havia muitos cargos conhecidos como “dignitários”, e os mais importantes eram os arquidiácono, tesoureiro, regente de coro e chanceler. Em teoria, o arquidiácono era gerente da diocese. Era ele quem deveria visitar as paróquias e certificar-se de que tudo estava em ordem, e quem examinava os candidatos ao sacerdócio. Nas dioceses maiores, esse trabalho era grande demais para uma pessoa só, então, arquidiáconos extras eram chamados para ajudar; a diocese de Lincoln, por exemplo, tinha oito deles. O tesoureiro cuidava das finanças, o regente escolhia os hinos e, portanto, o louvor diário na
catedral, e o chanceler administrava os assuntos legais. Em geral, eles também eram cônegos, mas, esse não era necessariamente o caso, e as duas posições permaneciam bem distintas, embora, às vezes, um dignitário estivesse ligado a um cabido [corporação de cônegos] e, assim, quem tinha uma posição, necessariamente, tinha a outra. Na Inglaterra, singularmente, esse sistema foi modificado por um movimento de reforma espiritual cujo objetivo era transformar todas as catedrais em monastérios. Em certo sentido esse movimento lembrava o início das missões na Irlanda, porém se desenvolveu mais tarde de modo independente. No fim, cerca de metade das catedrais medievais da Inglaterra foi transformada em centros monásticos, sendo que duas eram híbridas. Essas catedrais pertenciam às dioceses de Coventry e Lichfield e de Bath e Wells. Coventry e Bath eram monastérios anexados às catedrais seculares de Lichfield e Wells, mas, não eram incorporados a elas.41 Nas catedrais monásticas, o “deão” foi substituído por um “prior”, e não havia cônegos nem prebendários. As tarefas do colegiado eram realizadas por monges ligados à catedral; eles não recebiam dinheiro da igreja e, pensava-se, eram menos suscetíveis à corrupção do que os outros. Outra exceção do sistema paroquial eram as assim chamadas jurisdições peculiares, tais como as igrejas, capelas e outros lugares de culto isentos da jurisdição do bispo local. Os motivos que garantiam o peculiar eram muitos e variados, mas, o efeito geral era de deixar
status
algumas igrejas fora da administração diocesana normal. O chefe de uma jurisdição peculiar, assim como o de uma catedral, tinha o título de “deão” e tênue responsabilidade diante do arcebispo da província onde a jurisdição se localizava, contudo, na prática, ele trabalhava mais ou menos de maneira independente. As capelas das faculdades universitárias, por exemplo, eram peculiares, assim como as capelas reais. Com o tempo, alguns outros lugares, muitos deles paróquias por direito próprio, obtiveram
peculiar, especialmente quando caíram nas mãos de
status
um bispo que não era o diocesano local. Na Inglaterra, por exemplo, os bispos de Durham eram famosos colecionadores de paróquias fora 41 Coventry
até hoje.
foi separado de Lichfield em 1877, mas, Bath e Wells continuam ligados
/
de suas dioceses, que se tornaram suas jurisdições peculiares.42 O arce bispo de Canterbury tinha peculiares em Londres, a mais famosa das quais era o palácio de Lambeth, onde ele normalmente residia. Outra era constituída de treze paróquias agrupadas ao redor da Igreja de St. Mary-le-Bow (“dos Arcos”), onde seu vigário geral, o procurador geral da província de Canterbury, acabou se estabelecendo. Assim, até hoje o presidente das cortes eclesiásticas da Inglaterra é intitulado deão dos Arcos, e (depois de espaço de vários séculos) sua corte ocupa novamente a cripta da igreja que leva o seu nome. 43 Outro aspecto da vida eclesiástica era a chamada área extraparoquial, geralmente um espaço desabitado de terra que ninguém queria - pântanos, florestas e coisas assim. Essas áreas se encontravam fora de toda jurisdição eclesiástica normal e, portanto, eram bastante usadas como lugares de refugio para aqueles que perdiam as graças da igreja. A mais famosa dessas áreas extraparoquiais foi a Floresta Sherwood, onde, segundo dizem, Robin Hood e seus felizes seguidores se reuniam — fugitivos da justiça e da sociedade em geral. Mesmo ali a igreja se fazia presente, como a figura do Frei Tuck nos lembra. Frei Tuck fazia parte da Floresta de Sherwood porque os freis também viviam à margem da sociedade. Os monastérios tinham um lugar de destaque no sistema, porém com o tempo, eles ficaram ricos e perderam o zelo pela propagação do evangelho. A partir do século 10, houve um certo número de movimentos de reforma que iniciaram novas ordens monásticas. Os monastérios tradicionais haviam seguido a ordem de São Benedito, que foi o abade de Monte Cassino no sul da Itália na metade do século 6. Mas, as novas fundações seguiam regras mais “modernas” (e sempre mais severas) criadas pelos reformados, de entre os quais Bernardo de Claraval foi o mais conhecido. Sua ordem Cisterciense se espalhou rapidamente no século 12, mas não foi a única. O famoso abade de Cluny, em Burgundy, tinha sua própria rede de 42
F. Barlow, Durham Jurisdictional Peculiars (Oxford: Oxford University Press, 1950) estuda-os em detalhes. Os peculiares sobreviveram intactos à Reforma Protestante
e não foram dissolvidos até meados do século 19. 43Veja F. D. Logan, The Medieval Court of Arches (Woodbridge: Boydell & Brewer, 2005).
casas clunicenses, e havia muitas outras, incluindo a ordem Gilbertina, fundada por Gilberto de Sempringham, que incorporava estabelecímentos para homens e mulheres, algo até então desconhecido. As mulheres tinham seus próprios conventos, e alguns se tornaram bastante famosos, mas, como raramente se envolviam no comércio, como os homens faziam, e não podiam se apropriar de paróquias porque não tinham como supri-las com sacerdotes, elas eram muito mais pobres e menos influentes do que suas contrapartes masculinas. 44 Por volta de 1200, no entanto, começou-se a perceber que era quase impossível reformar os monastérios porque eles continuavam a se reintegrar ao sistema vigente e os padrões de corrupção reapareciam depois de uma ou duas gerações. Para lidar com isso, radicais como Francisco de Assis e Domingos foram trabalhar por conta própria. Escolheram viver na pobreza, castidade e obediência, dependendo totalmente da caridade alheia para sobreviverem. Eram conhecidos como frades. Aos poucos, para ganhar a vida, começaram a lecionar ou a fazer o que hoje chamamos de “trabalho social”. Muitos deles se tornaram teólogos e pregadores famosos. As universidades que foram criadas através da Europa, quase sempre tinham frades como professores, pois estes eram livres para deixar o sistema vigente e começar algo novo. Naturalmente, em uma sociedade muito conservadora como a Europa Ocidental daquela época, por exemplo, tal inovação levantava muita suspeita — isso explica por que o clérigo da Floresta de Sherwood era um frade, e não um monge ou um padre comum como os das paróquias. 45 Quanto ao culto na igreja, tanto havia grande uniformidade quanto grande variedade. A uniformidade era mais óbvia na linguagem usada, quase sempre latim. O latim clássico deixou rapidamente de ser usado em sua forma pura quando o Império Romano se desintegrou, contudo, durante muitos séculos, os moradores das antigas províncias achavam 44 Veja
C. H. Lawrence, MedievalMonasticism: Forms of Religious Life in Western Europe in the Middle Ages (Londres: Longman, 1984).
45 Veja
C. H. Lawrence, The Friars (Londres: Longman, 1994). Para mais detalhes
sobre as ordens religiosas, vejaj. Moorman ,A History of the Franciscan Order (Oxford: Oxford University Press, 1968); B. Jarrett, The English Dominicans (Londres: Burns, Oates & Washbourne, 1921).
que continuavam a falar essa língua, todavia em forma de dialeto. Foi somente em 812 que um decreto de Carlos Magno reconheceu a língua rústica da França, autorizando o seu uso nas pregações - a primeira indicação da florescência do que hoje chamamos de língua francesa. Os países do norte nunca falaram latim, porém a língua foi introduzida pelos missionários, que a preferiam em vez do vernáculo local. Havia algumas traduções, em irlandês e inglês, por exemplo, mas, que nunca foram de uso oficial. A igreja do ocidente usava o latim, quer o povo o entendesse ou não, e isso era visto como sinal de sua união, assim como de sua conexão com os tempos do Novo Testamento. Afinal, quando Pôncio Pilatos mandou que se pusesse a inscrição acima da cabeça de Jesus na cruz, ele ordenou que ela fosse escrita em hebraico, 46 grego e latim. Entretanto, o hebraico era a língua dos judeus, que rejeitaram Cristo, e o grego era usado pelos asmáticos do Leste. Portanto, restou somente o Latim — a língua sagrada que ligava todo o Ocidente à cruz de Cristo. Afora isso, no entanto, a diversidade era considerável. Muitas regiões e dioceses locais desenvolveram suas próprias liturgias, que eram bastante parecidas, mas, longe de serem idênticas. Em geral, as pessoas não viajavam muito, então, a diferença não era de grande importância, mas, quando a união da igreja foi desafiada pela Reforma, essa variedade foi uma das primeiras coisas a ser abordada. A diversidade deixou de ser tolerada porque talvez abrisse portas à heresia, e todas as igrejas resultantes da divisão ocorrida no século 16 estabeleceram suas próprias regras - ou o que a Inglaterra chamava de “uniformidade” de culto — para garantir que todas as suas congregações tivessem o mesmo padrão e aprendessem a mesma doutrina. Que impressão tudo isso deixou na pessoa comum? É impossível medir com qualquer grau de certeza, pois as evidências são drainstanciais e podem induzir a erro. Em geral, a história registra apenas as pessoas que se destacam como exceções, contudo, isso apenas afirma o que não era esperado, e não reflete o comportamento da grande população. Sabemos que pouquíssimas pessoas entendiam as missas 46João
19.20.
que eram conduzidas em latim, pois quando o padre apresentava o pão consagrado e dizia, “Hoc est corpus meum [Este é o meu corpo]”, a maioria das pessoas entendia hocuspocus, uma frase usada [em inglês] para descrever disparates pseudomágicos. Possivelmente, era assim que muitas pessoas entendiam as celebrações litúrgicas — um meio de espantar os maus espíritos, talvez, ou de receber tratamento favorável de Deus — sem terem a mínima ideia do que estava acontecendo. Outro aspecto da Idade Média que nos parece estranho hoje é que praticamente ninguém possuía uma Bíblia, e poucos conseguiríam ler, caso tivessem uma. Livros eram extremamente caros e ler e escrever não tinha muita utilidade para a maioria das pessoas. Até os padres mal sabiam ler. Muitos deles eram filhos da terra que moravam perto de seus rebanhos e, então, podiam ser excelentes pastores, contudo, seu estudo formal era rudimentar, e em geral sua necessidade de educação era ligeiramente maior do que a de qualquer outra pessoa de suas paróquias. Desde que conseguissem rezar a missa, o que muitos sabiam de cor, e assinar seus nomes, pouco mais era exigido deles na maior parte do tempo. No entanto, os assuntos da Bíblia não eram desconhecidos. Suas histórias eram comunicadas a um público mais amplo por meio de vitrais e peças teatrais de mistério que contavam a criação e a redenção. Pregadores itinerantes transmitiam os ensinos de Jesus e dos apóstolos, e a obra dramática da salvação fazia parte do calendário litúrgico da igreja. O calendário começava quatro semanas antes do Natal, quando a vinda (“advento”) de Cristo era anunciada e as profecias do Antigo Testamento relatadas em detalhes. Mas, o Advento também apontava para a segunda vinda de Cristo — o passado e o futuro eram capturados no presente. O Natal era a grande festa da encarnação, que vinha seguida pela vida de Jesus, que culminava na Sexta-feira da Paixão e Páscoa. Depois, vinha a Ascensão e o Pentecostes, que marcava o fim do ciclo e o início do tempo presente, ou “ordinário”, da igreja. Além desse roteiro básico, havia muitos dias de santos e outras comemorações que traziam à memória pública os acontecimentos importantes na vida de Jesus e da igreja. Muitos dessas festas eram inti
mamente relacionadas ao ritmo da agricultura e, então, se tornaram um tipo de paganismo batizado. O Natal, por exemplo, acontece no fim de dezembro porque a data marcava a morte e o renascimento da luz no solstício de inverno [no hemisfério norte]. A Páscoa incorpora muitos dos traços de um culto à fertilidade, como os ovos e os coelhos ainda comprovam. O Dia de Todos os Santos (1 de novembro) celebrava as pessoas que morreram na fé, e foi apropriadamente datado para o fim da estação da agricultura quando a colheita havia terminado e o refugo era queimado. Em preparo à celebração, os demônios tinham de ser expulsos, o que era feito na noite anterior — na véspera do Dia de Todos os Santos [All Hallows' Eve, em inglês] ou Halloween, como ficou conhecido. O entrelaçamento de temas cristãos e pagãos era tão profundo que se tornou impossível separar um do outro. O Papai Noel [Santa Claus, em inglês], por exemplo, foi uma cristianização do personagem pagão “Father Frost” [algo como Pai do Gelo], mas, que recebeu o nome de São Nicolau, um bispo do século 4, de Mira, atualmente sul da Turquia, que não tinha nada a ver com o Natal e que, por certo, ficaria profundamente chocado ao saber como é lembrado em nossos dias.47 O que faltava à devoção popular era um entendimento profundo dos ensinos das cartas do Novo Testamento, que eram mais racionais em conteúdo e quase impossíveis de serem dramatizadas ou representadas em artes visuais. Os monges e os intelectuais conheciam bastante o apóstolo Paulo, mas, a complexidade ocasional de seus argumentos não era entendida pelas pessoas comuns. Não foi por acaso que a Reforma Protestante do século 16 se enraizou na redescoberta da teologia paulina, até então desconhecida de muita gente. Martinho Lutero não inventou a justificação pela fé, mas, quando começou a pregá-la, muitos de seus ouvintes a ouviram e entenderam pela primeira vez, talvez porque era algo que os vitrais ou uma dramatização de mistério não transmitiam ao público em geral. 47
Ele é celebrado no dia 6 de novembro, e em alguns países, como a Holanda, por exemplo, é nesse dia que acontece a troca de presentes. Na Grécia, a figura do Father Frost é identificado com Santo Basílio, cuja celebração foi convenientemente marcada para o dia 1 de janeiro.
O que a igreja imperial criou foi um cristianismo cultural, ou cristandade, um mundo em que tudo era expressado em termos cristãos ou relacionado a temas cristãos. O que os indivíduos acreditavam não importava muito (a não ser que fossem teólogos ou mestres com poder de influenciar os outros), pois tudo era absorvido no domínio da igreja. Mesmo hoje, apesar da secularização das gerações, existem remanescentes dessa cultura tradicional. Pais não cristãos ainda batizam seus filhinhos, e a maioria das pessoas envolve a igreja em casamentos e funerais, mesmo que não consigam explicar a utilidade da igreja além desses rituais. Há um legado curioso de séculos de cristandade que persiste em nosso meio. No mundo romano antigo, os cristãos eram acusados de serem ateus porque não criam nos deuses pagãos. Hoje, contudo, ateu não é a pessoa que rejeita Júpiter ou Vênus, mas, alguém que nega a existência do Deus da Bíblia. AS IGREJAS DO LESTE
Até aqui nos concentramos na igreja do Ocidente, que se desenvolveu ao redor de Roma, e nas ruínas do império ocidental. Mas, sempre existiu outra igreja, ou grupo de igrejas, que nunca se submeteu ao papa romano e que nos apresenta uma perspectiva diferente sobre o desenvolvimento da igreja institucional dentro do que era originalmente a mesma estrutura imperial. Em geral, não existia diferença importante entre o Ocidente e o Oriente desde que o Império Romano permanecesse intacto. Até o final do século 7, ainda era possível a alguém como Máximo, o Confessor (580-668), viajar livremente entre as duas metades cristãs do mundo, e até para um grego (Teodoro de Tarso) se tornar arcebispo de Canterbury.48 Os papas foram súditos do imperador do Leste até 751, quando as últimas possessões bizantinas no norte e no centro da Itália caíram nas mãos dos lombardos, e mesmo depois disso, a lembrança da conexão continuou viva. Geográfica, política e historicamente, Roma estava mais perto do Leste do que de qualquer outro lugar na Europa Ocidental, e os resultados disso continuaram a ser vistos durante séculos. 48 Ele
serviu nesse cargo de 668 a 690 e foi o maior idealizador da Igreja Anglicana
institucional em sua fase inicial.
As sementes da discórdia foram plantadas em 800 quando Carlos Magno ressuscitou o Império Romano no Oeste, um projeto que Bizâncio nunca aceitou como legítimo. No século seguinte, seus teólogos se engajaram numa polêmica contra o Leste, essencialmente para justificar essa rejeição da autoridade bizantina. 49 As questões se complicaram com o avanço da evangelização dos eslavos. Os missionários mais importantes entre os eslavos foram Constantino (ou Cirilo, para usar seu nome monástico) e seu irmão Metódio. Eles eram gregos de Tessalônica que falavam o dialeto eslavo local e foram levados aos Bálcãs por invasores dos séculos 6 e 7. 50 Cirilo e Metódio foram para a Morávia (que hoje é parte da Re pública Checa), onde converteram o rei e muitos de seus súditos. A Morávia, no entanto, fazia fronteira com o império ocidental, cujos governantes acharam que a missão do Leste era uma ameaça. Para desencorajar tal pensamento, Cirilo foi a Roma pedir ajuda ao papa, entretanto lá morreu sem conseguir o que buscava. Ameaçada pelo império ocidental e pelos pagãos magiares (húngaros) que chegavam do Leste, a Morávia cedeu e acabou desabando. Metódio foi embora para o norte da Macedonia, que ficava perto de sua terra natal, onde evangelizou os búlgaros, que já haviam se aproximado de Roma. Os búlgaros sabiam que seriam forçados a se converter ao cristianismo, mas, queriam se submeter à igreja ocidental e, assim, escapar das garras da vizinha Constantinopla. No Leste, o gesto foi visto como ameaça, claro, e a missão ocidental à Bulgária foi impedida, assim como a missão do Leste à Morávia havia sido. 51 Uma linha estava sendo traçada através da Europa e que mais tarde chegaria ao Oceano Ártico, deixando Bulgária, Sérvia, Romênia e (mais importante de todas) Rússia no Leste, mas, Croácia, Hungria, Polônia, os Estados Bálticos e a Finlândia no Oeste. Foi uma divisão fundamental 49 Veja
R. Haugh, Photius and the Carolingians (Belmont, MA: Nordland, 1975).
50 Para
saber sobre a conversão dos eslavos ao cristianismo, veja A. P. Vlasto, The
Entry of the Slavs into Christendom (Cambridge: Cambridge University Press, 1970);
D. Obolensky, Byzantium and the Slavs (Crestwood, NY: St. Vladimir’s Seminary Press, 1994); J. Meyendorff, Byzantium and the Rise of Russia (Crestwood, NY: St. Vladimir’s Seminary Press, 1989). 51 R.
Browning, Byzantium and Bulgaria (Londres: Maurice Temple Smith, 1975).
que permanece intacta até hoje, mesmo que sua importância para a religião e a cultura não seja devidamente reconhecida. Havia também uma zona neutra entre as duas metades da cristandade onde nenhuma das duas tradições dominava e que, portanto, estava aberta a outras influências. Ao sul, tanto a Albânia (incluindo Kosovo) e a Bosnia se localizavam nessa zona, o que ajuda a explicar por que a conversão ao Islamismo foi tão grande quando a região caiu nas mãos da Turquia. Mais ao norte, o que é hoje a província romena da Transilvânia se tornou, depois da Reforma, o lar dos protestantes e dos unitarianos, que também floresceram por um tempo na Polônia, um país oficialmente católico que governava grandes territórios da Ucrânia e Bielorússia ortodoxas e era, portanto, obrigada a tolerar diferentes grupos religiosos. 52 Uma grande diferença entre as igrejas do Oeste e as do Leste que agora se torna clara é que o Leste não insistiu em uniformidade de idioma. Enquanto Roma impôs o Latim na Europa do norte, Constantino pia não agiu assim com o Grego. Ao contrário, os missionários do Leste traduziram a Bíblia, a liturgia e vários textos teológicos em eslavônico, uma língua baseada em um dialeto búlgaro, mas, facilmente entendido no mundo eslavo. Também estabeleceram igrejas locais autônomas (ou “autogeridas”) que não se tornaram de imediato dependentes de Constantinopla. Nos Bálcãs, esse processo foi atrapalhado por considerações políticas, e quando os bizantinos estavam fortes o bastante para incorporar a Bulgária a seus domínios, a igreja búlgara também foi assimilada, o que nunca aconteceu na Rússia. Este país criou um sistema em que o líder da igreja russa, o bispo metropolitano de Kiev, seria alternadamente um grego e depois um russo, uma prática que manteve a ligação com Constantinopla sem que uma igreja dominasse a outra. Foi somente em 1444, quando o Império Bizantino estava agonizante, que o último bispo grego metropolitano foi deposto e um russo foi eleito em seu lugar. 53 52 A
Polônia abrigou muitos judeus que eram parte importante da população até seu extermínio, na Segunda Guerra Mundial.
53 Veja
D. Obolenskym, The Byzantine Commonwealth (Londres: Weidenfeld & Nicolson, 1971).
A sobrevivência de uma sociedade civil forte no Império Bizantino também significou que a igreja institucional nunca ocupou a posição de comando que exercia no Ocidente. Muitos leigos eram teólogos talentosos, e os imperadores envolviam-se profundamente nas questões da igreja. Os monastérios eram fatores proeminentes na vida da igreja do Leste, contudo, os monges eram bem mais individualistas que seus colegas do Oeste, e muitos eram reverenciados por sua santidade e habilidade como líderes espirituais. Não havia nenhum equivalente às ordens monásticas ocidentais, e o envolvimento dos monges do oriente com questões terrenas nem chegava aos pés do envolvimento de seus colegas do ocidente. Os monges ocidentais fabricavam quei jos e vinhos famosos, por exemplo, o que os orientais não faziam. Os monges orientais praticamente não se envolviam com educação, que permaneceu secular enquanto o Império Bizantino existiu. No século 10, comunidades monásticas passaram a colonizar o Monte Atos, no norte da Grécia, onde desenvolveram uma rede de fundações independentes que existem até hoje. Atos não era único no mundo bizantino, mas, sobrevive como a única relíquia viva de uma cultura que praticamente desapareceu em todos os outros lugares. Ele é uma sociedade fechada que não permite a entrada de mulheres e a maioria das amenidades modernas é desconhecida. Os monges que ali vivem se dedicam à oração e direcionamento espiritual, servindo de apoio para o mundo ortodoxo inteiro. O Ocidente não possui nem de longe algo que se compare ao Monte Atos, e ele permanece como lembrança da posição central que o monasticismo já ocupou, e continua a ocupar, no mundo cristão do Leste. A igreja do Leste não desenvolveu um sistema paroquial igual à do Oeste, mas, cada vilarejo tinha sua igreja e seu padre. Esses padres não só tinham permissão para casar como eram quase obrigados a fazer isso. Até hoje os padres ortodoxos devem projetar uma imagem masculina completa, com barba e muitos filhos, de um modo que o Ocidente nunca tentou impor a seu clero. A importância do celibato foi reconhecida quando se tornou obrigatória aos bispos, que na verdade
eram quase sempre monges. Isso levou ao aparecimento de uma classe distinta de “padres-monges” (“hieromonges”), praticamente as únicas pessoas que podiam aspirar ao bispado. Os monges ocidentais também podiam ser padres, claro, mas, essa ligação especial com o episcopado era (e ainda é) desconhecida. Quanto aos templos, o Leste nunca teve a grande revitalização arquitetônica que produziu as catedrais góticas do Oeste, mas, de outras formas, valorizou os locais de culto de um modo que a igreja romana jamais o fez. Já no início do século 6, o imperador Justiniano I (r. 52765) construiu a magnífica Igreja da Santa Sabedoria (Hagia Sofia) em Constantinopla, que era naquela época o maior edifício de seu tipo no mundo inteiro.54 O interior da igreja foi decorado com mosaicos e afrescos magníficos retratando a vida no céu, com Cristo sentado na glória (na abóboda) e cercado por santos. Essa tendência sofreu oposição dos iconoclastas do século 8, que desejavam manter (ou trazer de volta) a decoração mais austera das primeiras igrejas, contudo, não tiveram sucesso e o uso do imaginário visual foi consagrado no culto público de um modo que jamais aconteceu no Ocidente. Até hoje, a presença maciça de ícones e outras pinturas no interior das igrejas ortodoxas a diferencia de suas contrapartes católicas romanas, mesmo que os católicos não façam objeções a imagens por questão de princí pio; e, claro, essa característica distingue os ortodoxos ainda mais dos protestantes. No entanto, os cristãos ocidentais precisam entender que isso não é apenas uma questão de estilo e tradição, pois a iconografia tem um papel no culto e na teologia ortodoxa do Oriente que é desconhecido no Ocidente.55 A grande renovação da igreja do Ocidente sob o papado, que se iniciou por volta de 1050 e manteve uma dinâmica estável por mais de 150 anos, não teve equivalente no Leste. O patriarca de Constantinopla nunca esteve em posição de dominar o imperador, e a lei canônica da igreja do Leste, embora existisse e tenha sido elaborada por juristas 54 Atualmente,
essa igreja só é ultrapassada pela Basílica de São Pedro em Roma, que foi construída mil anos mais tarde.
55 Veja
C. A. Tsakiridou, Icons in Time, Persons in Eternity: Orthodox Theology and the Aesthetics of the Christian Image (Farnham: Ashgate, 2013).
competentes, nunca foi uma ameaça à legislação civil. 56 Um resultado disso foi que a igreja oriental não podia abolir o divórcio e teve de aceitar um acordo em que o homem (ninguém imaginava uma mulher nessa situação) poderia se casar três vezes - mas, não quatro. Esse não era um princípio teológico, e sim uma decisão política, justificada pelo que os orientais chamavam de “economia”, que significa a aplicação prudente de princípios dependendo das circunstâncias. Divórcio era indesejado, contudo, não podia ser totalmente evitado, então, a “economia” era usada como um meio de reconciliar a situação. Esse modo de resolver a eterna tensão entre princípio e prática permitiu que a igreja do oriente vivesse com anomalias que no ocidente certamente provocariam divisão ou forçariam a hierarquia da igreja a legislar com mais precisão do que ela possivelmente desejaria. Uma área em que a igreja do Leste praticava economia era em seus negócios com o Islamismo. De quando os árabes muçulmanos invadiram a Síria, em 636, até a queda de Constantinopla, em 1453, a igreja não conseguia escapar da presença islâmica e teve de aprender a conviver com ela. Na teoria, os muçulmanos eram infiéis e a igreja oriental deveria se esforçar para derrotá-los. Na prática, tal coisa jamais aconteceu. Depois de os árabes fracassarem na tomada de Constantinopla no início do século 8, os bizantinos estabeleceram uma coexistência geralmente pacífica com eles. A maioria da população da Síria e do Egito ainda era cristã, e o imperador sentiu a responsabilidade pelo bem-estar deles, mesmo que a maioria fosse monofisista em sua teologia. Por quase quatrocentos anos, teólogos dos dois lados viveram se debatendo, mas, no âmbito popular, havia muita cooperação e tolerância. A situação não era a ideal, mas, a igreja do Leste se esforçou para proteger seu povo que estava sob o regime muçulmano e, em geral, foi bem-sucedida na empreitada. A situação foi seriamente desequilibrada quando a igreja ocidental entrou no cenário por meio das Cruzadas. O Ocidente acusava o Oriente de frouxidão em seu relacionamento com o Islamismo, e a reação dos muçulmanos foi intensificar seus esforços na conversão dos cristãos, e, assim, não dar aos expedicionários das 56 W.
Hartmann e K. Pennington, The History of Byzantine and Eastern Canon Law to
1500 (Washington, DC: Catholic University of America Press, 2012).
cruzadas a desculpa de que eram um exército de libertação. Esse foi um exemplo de “economia” oriental projetada para tirar o melhor das circunstâncias difíceis, e oferece um modelo perfeito de como as duas metades do mundo cristão abordaram um mesmo problema de maneiras diferentes. Para resumir uma situação altamente complexa, a igreja do Oriente era “imperial” por ser a igreja estatal de um império, ao passo que a igreja do Ocidente, por outro lado, era um império à parte, competindo com governantes seculares em vez de complementá-los, e reivindicando o direito de discipliná-los se e quando saíssem da linha. No fim da Idade Média a visão imperial das duas igrejas sofreria uma transformação, contudo, por motivos totalmente diferentes. A igreja imperial do Leste desabou com o império a que pertencia, embora tenha reaparecido mais tarde ao transferir sua ideologia ao recém-emergente ducado de Moscou, que passou a ser considerado a terceira Roma. A igreja imperial do Ocidente, porém, desmoronou quando os países seculares que ela tentou dominar se tornaram tão fortes que viraram a mesa no papado, chegando mesmo a apoiar seus inimigos com a intenção de conquistar a própria liberdade. A DOUTRINA DA IGREJA
Ao avaliar como a igreja medieval via a si mesma, precisamos lembrar de dois fatores. O primeiro é que a institucionalização gerou sua própria dinâmica no processo de definição. Durante muito tempo, o Império Romano viveu sem um equivalente à igreja, e quando esta apareceu em cena foi necessário encontrar um lugar para ela. Qual seria o papel da igreja na sociedade? Que privilégios ela teria, que poderes lhe seriam dados e que limites existiriam entre a igreja e outros órgãos do estado? De celebração de feriados religiosos a isenção de impostos para o clero, tudo precisava ser coberto e justificado. Se a igreja era necessária ao bem público, então, seria relativamente fácil lhe dar privilégios e fazer-lhe exceções. Contudo, se a igreja era apenas outra seita religiosa sem nenhum valor especial a ninguém que não fossem seus próprios membros, seria bem mais difícil justificar qualquer consideração especial.
Nessa situação, a igreja tinha de fazer sua parte em convencer a população de que sua presença era tanto necessária quanto benéfica. Em pouco tempo a igreja ocidental se viu como a única instituição sociai com qualquer estabilidade ou continuidade, o que lhe conferiu um papel fundamental na sociedade. Qualquer negócio jurídico era efetuado pelos clérigos, e em cenário mais amplo, papas e bispos legitimavam governantes seculares. A vida comunitária era cada vez mais moldada pelos rituais e regras da igreja. Costumes pagãos eram frequentemente aproveitados e “batizados” e suas associações anteriores eram logo esquecidas. Nos arredores de Paris, por exemplo, uma catedral enorme foi construída em honra a São Dênis, e os reis da França foram enterrados ali. A igreja foi construída sobre o santuário do deus pagão Dionísio, que foi simplesmente rebatizado de “Dênis”, contudo, as gerações mais novas desconheciam o fato ou não acreditavam nele. Para elas, Dênis havia sido um bispo de Paris do século 3 que foi decapitado por sua fé. Por um milagre, ele pegou sua cabeça decepada e caminhou uns dezesseis quilômetros com ela, antes de cair no local onde foi construída a igreja em seu nome. Essa lenda fantástica circula hoje em dia como a história “oficial”, e os leitores julguem a possibilidade de ela ser verdadeira. Mas, não importa o que achamos, o passado foi reescrito para se encaixar a uma visão cristã do mundo, e nesse cenário a igreja obviamente exerceu um papel de suma importância. Foi a igreja que canonizou a lenda, reescreveu a história e colocou a si mesma e sua missão no centro do desenvolvimento humano. Pessoas que eram leais a Roma ou a alguma tribo bárbara agora se viam classificadas como cristãs, uma população nova ligada por uma igreja que não conhecia raça nem língua e se ex pandia até que, em princípio, abraçou o mundo inteiro. O grande arquiteto dessa visão foi Agostinho de Hipona (354-430). Para ele, Cristo era a cabeça e a igreja era seu corpo, “não somente a igreja local, mas, a igreja local e a igreja através do mundo inteiro. Não a igreja presente, mas, a igreja que existe desde os tempos de Abel e alcança a todos os que irão nascer e crer em Cristo”. 57 Passado, presen 57 Agostinho
de Hipona, Enarrationes in Psalmos 90.2.1. O mesmo tema aparece em seu Sermones 4.11.
te e futuro se mesclaram em uma igreja que recebe a todos. Contudo, ao mesmo tempo, uma distinção importante tinha de ser observada. Como disse Agostinho: Gostaria de relembrar os dois arrastões de peixes que os apóstolos conseguiram ao comando de Jesus — um antes de sua crucificação e outro após a ressurreição.58 A igreja inteira está representada nessas duas pescarias, como ela é agora e com será depois da ressurreição dos mortos. Agora ela tem uma multidão incontável de pessoas, boas e más, contudo, depois da ressurreição ela terá somente as boas, e um número determinado delas.59 Em forma de parábola, vemos aqui a distinção entre o que os teólogos chamam de igreja militante na terra e a igreja triunfante no céu. Na terra, a igreja tem uma política de portas abertas. Todo mundo pode entrar, e os bons se misturam aos maus. Entretanto, só os bons estarão presentes no céu. Os bons sempre serão membros da igreja mesclada visível durante sua peregrinação terrena; Deus é o único a conhecer os que são seus e no fim ele irá separá-los para a salvação. As implicações disso para uma doutrina da igreja foram enormes. Antes da época de Agostinho, as pessoas em geral achavam que a igre ja era a companhia dos salvos; quem pertencia a ela iria para o céu, e quem não pertencia estava condenado ao inferno. O problema desse cenário é que todos viam claramente que muitos membros da igreja não viviam de maneira genuinamente cristã. Será então que a igreja não era o corpo dos salvos que ela reivindicava ser? Para os donatistas a resposta era afirmativa, e eles se separaram para formar sua própria igreja composta de pessoas verdadeiramente salvas. Agostinho se opôs a eles, sem passar a mão na cabeça de ninguém e fazendo de conta que os obviamente desonrosos não eram tão ruins assim, mas, afirmando que a igreja possuía duas faces: uma temporal e outra eterna. Elas não eram mutuamente excludentes, mas, sobrepostas, de modo que todos os escolhidos para serem salvos pertenceríam à igreja por direito pró prio; entretanto, a instituição visível na terra também abrigaria um bom 58 As
referências são Lucas 5.4-8 e João 21.6-8, respectivamente.
59 Agostinho
de Hipona, Sermones 248.1.
grupo de falsos membros. Os verdadeiros cristãos não precisavam ficar preocupados com os falsos porque, no fim, não seriam aprovados. Podemos afirmar com segurança que a compreensão de Agostinho sobre a igreja tornou possível o crescimento e desenvolvimento da instituição medieval. Se a igreja tivesse mantido a visão de pureza dos donatistas, ela devoraria a si mesma quando os membros se apartassem uns dos outros ao perceberem qualquer sinal de pecado. Contudo, havia um elemento de verdade no Donatismo que tinha de ser reconhecido e levado em conta. Havia uma igreja pura escondida na instituição visível, mas, revelada em toda a sua glória no céu. Será que o cristão poderia ter certeza de que ele era um dos eleitos? Aqui a resposta de Agostinho foi negativa, pois ninguém conhece a mente de Deus. Mas, pelo menos, podemos saber que os eleitos são todos membros da igreja visível, então pertencer a ela é um passo necessário rumo à glória. O melhor que os cristãos podiam fazer era se firmar na igreja, apesar de seus problemas, sabendo que fora dela não existia nenhuma esperança de salvação. Para Agostinho, a predestinação era fundamental à identidade da igreja. Cristo conhecia os seus, e Deus o enviou ao mundo na hora certa. Não devemos nem tentar ser mais sábios que ele; ao contrário, devemos nos submeter à sua soberana vontade e alegrarmo-nos de ter ouvido o evangelho enquanto outros perderam essa chance. A bênção que nos alcançou não tem nada a ver com nossos méritos, reais ou imaginários, pois é completamente um ato da graça de Deus, predeterminado antes da fundação do mundo.60 Saber disso nos livra da ansiedade de tentar agradar a Cristo para conquistar seu favor. Ele é o noivo; somos a noiva que ele escolheu. Nossa responsabilidade é submissão e obediência a ele como a esposa é chamada a se submeter e obedecer ao marido. 61 Não temos necessidade de tentar ficar mais bonitos para Jesus; ele já nos escolheu e irá dar a beleza que deseja para nós. 62 A compreensão que Agostinho possuía da igreja impulsionou outro aspecto que talvez ele não tenha percebido no momento: que a igreja era essencialmente uma no mundo inteiro. Isso nunca foi negado, claro, 60 Agostinho
de Hipona, Depraedestinatione sanctorum 18.1.
61 Agostinho
de Hipona, Enarrationes in Psalmos 147.18.
62 Agostinho
de Hipona, Sermones 262.5.
contudo, anteriormente a ênfase era dada à congregação local que se reunia em torno de seu bispo, que se comunicava com outras igrejas de sua província e (vez ou outra) com campos mais distantes. A legalização do cristianismo deu à igreja a oportunidade de realizar concílios mais amplos, contudo, foi Agostinho, mais do que ninguém, que providenciou suporte teológico para esse recém-descoberto senso de unidade. A igreja, que era principalmente espiritual, unida em Cristo como seu corpo e presente na eternidade, dificilmente não seria uma única igreja, e suas manifestações locais no tempo e no espaço tinham de ser avaliadas de acordo com isso. No entender de Agostinho, a igreja universal transcendia as limitações da ordem criada e era espiritualmente perfeita. O que vemos ao redor são expressões visíveis dessa igreja, e todas são, até certo ponto, desfiguradas e corrompidas pelo mundo onde vivemos. Portanto, os cristãos têm de aprender a distinguir o que é válido eternamente do que é apenas um fenômeno local, e escolher o primeiro em casos de conflito ou discrepância. A ênfase na unidade da igreja está ligada à confissão de fé adotada pelo Primeiro Concilio de Constantinopla, em 381, e conhecido por nós como o Credo Niceno. 63 O credo definiu a igreja como “uma, santa, católica e apostólica”, quatro adjetivos que ficaram conhecidos na teologia subsequente como suas “marcas” e “notas”. A definição precisa dessas marcas variaram com o tempo e às vezes provou ser controversa, particularmente após a Reforma Protestante, mas, para a primeira geração que o confessou, o significado das marcas pareceu claro o bastante. A unidade da igreja, como já vimos nos escritos de Agostinho, foi além dos limites do tempo e do espaço. Comentando a afirmação de Paulo em Efésios 4.6 de que há “um só Senhor, uma só fé, um só batismo”, João Crisóstomo (m. 407) disse: “O que é esse um só cor po? E o fiel através do mundo, tanto os que são, os que foram e os que haverão de ser. Mesmo os que viveram antes da vinda de Cristo e agradaram a Deus pertencem ao reino, pois também conheceram a 63 O
credo foi confundido com o de Niceia I (325), mas, agora é reconhecido universalmente como independente dele. Veja J. N. D. Kelly, Early Christian Creeds, 3. ed. (Londres: Longman, 1972), p. 205-367, para uma explicação abrangente.
Cristo”.64 A unidade da igreja era espiritual, dada pelo Espírito Santo no Pentecostes e conservada pelos que se mantinham fiéis aos seus ensinos. Ela foi manifestada no batismo e na Ceia do Senhor, contudo, esses rituais exteriores tinham o propósito de refletir a ligação interior do amor espiritual que une os cristãos. 65 O notável é que essa unidade nunca foi definida como conformidade institucional, como seria séculos mais tarde. A expectativa era que as pessoas estivessem em comunhão com seus bispos, e os bispos tinham de partilhar a fé uns com os outros, contudo, isso era algo espiritual medido de acordo com o ensino da Bíblia Sagrada, e não um relacionamento legal imposto por um líder eclesiástico, por mais eminente que fosse. A santidade da igreja também era uma qualidade espiritual. Em harmonia com os dois aspectos da igreja que já observamos, Agostinho afirmou com bastante clareza que a igreja santa era a da Jerusalém do alto, nossa mãe celestial, a cidade de Deus. 66 Seu contemporâneo Rufino de Aquileia (345P-411) disse praticamente a mesma coisa, acrescentando apenas que a santidade da igreja era caracterizada pela pureza de sua doutrina, o que foi afirmado de modo claro no Credo dos Apóstolos. 67 Quanto ao catolicismo da igreja, sua definição melhor e mais com pleta foi dada por Cirilo de Jerusalém como parte da catequese que ele preparou para os novos convertidos: A igreja é chamada “católica” porque abrange o mundo inteiro [...] e porque ensina universal e completamente toda e qualquer doutrina que os seres humanos precisam saber sobre coisas visíveis e invisíveis, celestiais e terrenas. Também é chamada “católica” porque sujeita a raça humana inteira às exigências da santidade. 68 Mais uma vez somos surpreendidos pela ênfase colocada na doutrina e moralidade, e não em estruturas institucionais. A expectativa era que todos os cristãos exibissem o catolicismo da igreja por meio de 64 João Crisóstomo, Homiliae in Ephesios 10. 65 Agostinho
de Hipona, Sermones 229A. 1—2. 66 Agostinho de Hipona, Sermones 214.11. A alusão é a Gálatas 4.26. 67 Rufino de Aquileia, De symbolo apostolorum 39. Rufino estava usando uma versão anterior do credo que hoje aceitamos com esse nome. 68 Cirilo de Jerusalém, Catecheses 18.22.
palavras e ações, que necessariamente incluíam participação ativa em sua estrutura visível, mas, não podiam ser definidas por ela. Por fim, a apostolicidade da igreja era determinada, acima de tudo, pela pureza da fé que ela pregava. Atanásio (296-373) foi bem claro sobre isso. Ao escrever para um bispo egípcio chamado Serapião, ele afirmou sem rodeios: “Desde o início, a tradição, o ensino e a fé da igreja católica eram anunciados pelos apóstolos e salvaguardados por seus patriarcas. Esse foi o alicerce da igreja. Quem se apartar disso, não é cristão nem deve mais ser chamado de cristão”. 69 A igreja imperial que surgiu séculos mais tarde desenvolveu interpretações mais inflexíveis e institucionais dessas marcas, contudo, sempre insistiu em que eram sinais da igreja verdadeira. Por quase mil anos, essa reivindicação nunca sofreu desafio nem muitas discussões. Apenas quando um número crescente de pessoas começou a perceber que as marcas da igreja não eram mais visíveis na instituição a que pertenciam é que se passou a questionar seu verdadeiro significado, e quando isso aconteceu, a igreja do império mergulhou em uma crise da qual nunca se desvencilhou.
69
Atanásio ,Ad S era pio nem 1.28.
5
A crise da igreja no império
CRISE DE AUTORIDADE
Quando o Papa Inocêncio III (liderou em 1198-1216) reuniu o que seria o Quarto Concilio de Latrão, em 1215, ele e sua igreja estavam no auge do poder e da influência. Esse concilio foi o último dos grandes sínodos reformadores a se reunir no século anterior em Latrão, o palácio papal em Roma, para estabelecer regras quanto à administração da vasta rede internacional em que a igreja romana havia se transformado. O Primeiro Concilio de Latrão se reuniu em 1123, após um hiato de 250 anos, e legislou contra o que achou serem os maiores abusos da época. Ou seja, a venda de cargos religiosos (conhecida como “simonia”) 1, a coabitação de padres com mulheres e a interferência de leigos nos assuntos da igreja. A plataforma era clara: a igreja deveria pôr ordem na casa e criar a maior distância possível entre suas questões internas e as pessoas a quem ela ministrava. O Segundo Concilio de Latrão em 1139 reforçou o primeiro ao detalhar mais minuciosamente abusos específicos, mas, também deliberou sobre hereges que negavam ou deturpavam os sacramentos e mandou que os governantes da Europa os erradicassem. 1 2 O Terceiro Concilio de Latrão se reuniu em 1179 e sua maior preocupação foi corrigir abusos nas eleições dos bispos e outros clérigos, além dos problemas que surgiram anteriormente, mas, ainda não tinham sido resolvidos de modo satisfatório. 1
2
A designação vem de Simão, o Mago, que tentou comprar dos apóstolos o dom do Espírito Santo. Veja Atos 8.18-24. Cânone 23.
186
No entanto, o Quarto Concilio de Latrão é que faria as mudanças mais radicais e causaria impacto mais duradouro na igreja. Como seria de se esperar de Inocêncio III, o concilio iniciou um ataque violento contra as heresias, que eram agora vistas como o maior perigo contra a igreja. Os albigenses neomaniqueístas (ou cátaros) do sul da França foram denunciados e organizou-se uma cruzada para reprimi-los, o que aconteceu com a ajuda do rei francês. O profeta místico Joaquim de Fiore (m. 1202), cujos escritos exerceríam grande influência nas gerações futuras inspiradas por suas previsões sobre a chegada do reino do anticristo, também foi condenado. 3 Sentenças, de Pedro Lombardo, foi citado pela primeira vez como autoridade principal para a doutrina da igreja, e então a obra tornou-se livro-texto para estudantes de teologia da igreja do Ocidente inteiro. Outras questões tratadas incluíam a regulamentação da confissão a um padre, que foi fortalecida pela imposição do que é conhecido hoje como “o segredo da confissão”, ou seja, a obrigação imposta ao sacerdote de não revelar nada do que lhe foi confessado, mesmo em se tratando de um crime contra a lei. 4 O concilio também legislou contra casamentos clandestinos ao insistir que fosse proclamado um edito em pelo menos três ocasiões antes das bodas. Isso deu origem ao que é hoje conhecido como a leitura dos proclamas, uma prática ainda presente em igrejas anglicanas e presbiterianas.5 Tratava-se também de uma ocasião em que o beneficio eclesiástico para a indicação de clérigos era estabelecido, e a pentarquia dos patriarcados originalmente instituída em 381 foi finalmente reconhecida por Roma. Numa época em que o governo secular da Europa era dividido e fraco, a igreja providenciou força unificada que deu sentido real ao conceito de civilização cristã comum. Depois de 1204, Roma até conseguiu alcançar Constantinopla quando a cidade caiu nas mãos das Cruzadas, e nasceu a esperança de que sua posição na Palestina, que havia se enfraquecido pelo ressurgimento islâmico, era recuperável. Em 16 de julho de 1212, uma batalha importante em Las Navas de 3 4 5
Veja M. Reeves ,Joachim of Fiore and the Prophetic Future (Londres: SPCK, 1976). A validade do “segredo” ainda é contestada hoje em dia. É um requerimento legal na Igreja Anglicana e na Igreja da Escócia, por exemplo.
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Tolosa, na Espanha, enfraqueceu os estados islâmicos na península, e a impressão era que em breve o país inteiro seria devolvido à cristandade. 6 A igreja do Ocidente prosseguia, e durante um tempo seu progresso parecia invencível. No século seguinte, entretanto, o papado deixou Roma para ficar durante tempo indeterminado em Avignon, sob o olhar atento do rei da França. Constantinopla havia caído nas mãos dos bizantinos em 1261, e o ideal das Cruzadas havia morrido. Na Europa Ocidental, a igreja continuava sendo, de longe, a instituição social mais importante, e os fiéis continuavam a se identificar com ela mais do que com qualquer outra instituição, contudo, a igreja não era tão dominante como havia sido há um século. O que ninguém imaginava naquela época é que a igreja estava prestes a caminhar por três séculos de declínio e conflitos internos que só terminariam em 1648, quando a Paz de Vestfália deu fim à Guerra dos Trinta Anos e estabeleceu um equilíbrio religioso no oeste europeu que permanece essencialmente imutável desde então. O preço da paz, no entanto, foi a separação efetiva entre as questões eclesiásticas e a política secular. Até mesmo no ainda existente Santo Império Romano, o papado não mais exercería nenhum papel importante nas grandes questões europeias. Como isso aconteceu? E de se esperar que as instituições passem por períodos de elevação e declínio, e o papado certamente já conhecera épocas difíceis. O avanço do islamismo no século 8 e as invasões dos viquingues no século 10 causaram um grande estrago à igreja, e talvez tenha parecido algumas vezes que o cristianismo seria esmagado na Europa exatamente como foi no Oriente Médio, sua terra natal. Contudo, a igreja se recuperou e floresceu como nunca havia acontecido (e nunca mais aconteceu). Por que tal fato não se repetiu nos séculos 13 e 14? Um dos resultados imprevisíveis das Cruzadas foi o maior contato que elas provocaram entre a Europa e o mundo árabe e muçulmano. Isso foi especialmente notório na Espanha, que possuía cultura muçulmana próspera, apesar de sua distância dos principais centros islâmicos, e que foi reconquistada gradualmente pelos príncipes cristãos do Norte 6
Isso teve de esperar até 1492, contudo, os muçulmanos nunca mais estiveram em posição de ameaçar os reinos cristãos do norte.
1
no decorrer do século 13. Outro lugar de considerável interação entre cristãos e muçulmanos foi a Sicilia, onde o rebelde imperador Frederico II (1194-1250) passou a maior parte de sua vida. Frederico incentivou o diálogo interconfessional, e se tal atitude desgostava o Papa, melhor ainda, segundo o imperador. Pessoas iguais a ele, e os integrantes das Cruzadas em geral, dificilmente não perceberíam que as terras muçulmanas e o Império Bizantino possuíam nível cultural mais elevado que o Oeste Europeu naquela época. Logo descobriram as riquezas do conhecimento árabe, embora muito desse conhecimento tenha sido emprestado dos gregos e hindus da antiguidade. Havia muito tempo que os estudiosos muçulmanos debatiam questões sobre o relacionamento entre fé e razão, discussão que lhes foi imposta pela interação do Alcorão com a ciência grega antiga, representada acima de tudo pelo filósofo pagão Aristóteles. 7 Aristóteles era praticamente desconhecido na Europa, nem mesmo os bizantinos davam muita atenção a ele ou à corrente de pensamento que recebia seu nome. Mas, as coisas foram diferentes com os árabes, que leram seus escritos e viram neles uma fonte de esclarecimento intelectual bem independente de qualquer tipo de revelação divina. Esse conjunto de escritos gregos tratava de assuntos como matemática, astronomia e medicina, para mencionar somente alguns; também formaram a base para o que chamamos de “método científico” de descoberta por meio de experimento. Hoje, claro, sabemos que os gregos antigos geralmente erravam mais do que acertavam, o que leva nossos contemporâneos a uma atitude negativa em relação a eles. Contudo, essa descoberta não ocorreu até os séculos 16 e 17. Para aqueles que fizeram a descoberta cerca de trezentos anos antes, o conhecimento grego antigo, como transmitido pelos árabes, abriu um mundo de saber que estava escondido de seus olhos até então. Obviamente, essa descoberta alcançou a igreja, que se considerava a única guardiã de toda sabedoria. Mais ainda, essa sabedoria não lhe chegou por meio de investigação científica, e sim por revelação divina. Os primeiros cristãos haviam lutado contra filosofias pagãs 7
Veja I. Najjar, Faith and Reason in Islam: Averroes’ Exposition of Religious Arguments (Oxford: Oneworld, 2001).
de seu tempo e sido bem-sucedidos, contudo, na maior parte da luta eles atacaram o politeísmo, e não o que chamamos hoje de ciências naturais. Esse aspecto do conhecimento antigo passou ao largo deles ou foi aceito (como em Bizâncio) como “sabedoria exterior”, ou seja, a sabedoria deste mundo, que era de menor importância comparada à “sabedoria interior”. Era esse o conhecimento espiritual necessário a quem desejasse ir para o céu, que era o interesse principal de todas as pessoas sensatas. Havia uma sobreposição entre o mundo espiritual e o material, e ela causava mais dificuldades aos cristãos do que aos muçulmanos. A visão que os muçulmanos tinham de Deus era puramente espiritual, assim lhes era mais fácil do que aos cristãos manter o céu e a terra em compartimentos separados. Os cristãos reconheciam que Deus se tornou homem em Jesus Cristo e que de alguma forma a igreja era uma extensão desta encarnação, o corpo de Cristo na terra. Potanto, o mundo físico não podia ficar separado do mundo divino ou ser interpretado de modo a excluir a possibilidade de qualquer colisão entre eles. A maneira de entender a criação do mundo é um bom exemplo do que isso significava. Para os muçulmanos a doutrina da criação era incontestável, mas, vaga; Deus criou o mundo, sem dúvida alguma, entretanto, como e quando permaneciam um mistério. Os cristãos, porém, liam na Bíblia que Deus criou o mundo em seis dias, que eles presumiram ser períodos de vinte e quatro horas em tempo histórico. Estudiosos e teólogos acrescentaram várias nuances de sentido figurado ao texto, mas, com o passar do tempo, o gosto deles por alegorias diminuiu e a partir do século 13 passou-se a acreditar que o livro da revelação (a Bíblia) tinha de coincidir com o que Deus nos revela no livro da natureza (o mundo que está sujeito à investigação racional). Dessa forma, o palco estava montado para o embate histórico entre “religião” e “ciência” que conhecemos hoje e no qual a igreja parece sempre derrotada. Já no século 13, surgiram universidades em lugares como Paris e Oxford que desafiavam, se não a igreja como tal, pelo menos os monastérios como principais provedores de educação. Durante séculos, o jovem que desejasse exercer o sacerdócio (ou fosse esse o desejo dos pais para ele) recebia educação básica em um monastério,
era ordenado e mandado a uma paróquia, que em muitos casos era da competência de um abade. A educação monástica tinha um lado muito prático; o sacerdote ali treinado provavelmente sabia lavrar a terra, ordenhar vacas e assim por diante. Essas habilidades o aproximavam da população a que ele fora chamado a servir e eram de grande valia se ele tivesse de se sustentar. As universidades, por outro lado, formavam um tipo bem diferente de candidato ao sacerdócio. Quem se formava nesse sistema estava capacitado a debater filosofia e teologia, mas, esse conhecimento geralmente provocava polêmicas e não apelava muito ao gosto das paróquias. Na verdade, um tema recorrente no final da Idade Média era a necessidade dessas universidades, como passaram a ser chamadas, encontrarem trabalho para seus formandos. Seus reitores imploravam a bispos relutantes que encontrassem uma função de cônego para eles, mas, talvez de maneira inevitável, muitos desses jovens preferissem cargo administrativo: eclesiástico, secular, ou os dois. Dessa forma, os reis do Oeste Europeu formaram um contingente de homens altamente qualificados que trabalhariam para eles e usariam suas habilidades para fazer frente à influência da igreja. Obviamente a igreja sabia desses perigos e esforçou-se para manter controle sobre a educação. Desde o início, Aristóteles foi visto como o principal inimigo, e em 1277 entrou em vigor um decreto proibindo o ensino de suas obras na Universidade de Paris. A essa altura, porém, era tarde demais. Um curso mais sensato já havia sido desenhado por homens como Tomás de Aquino (1225-74). Ele reconheceu que a ciência aristotélica e a teologia bíblica eram disciplinas complementares, e não contraditórias. O que Aristóteles ensinava era aceitável comõ verdadeiro até certo ponto, contudo, os teólogos achavam que não ia longe o bastante. Para completar o quadro do conhecimento universal, era necessária a revelação divina de verdades que estavam além do alcance da razão, e essa interpretação só poderia ser feita pela igreja, à qual havia sido confiada. Superficialmente, essa distinção entre verdades acessíveis à razão humana e verdades além de seu alcance era parecida com a distinção entre sabedoria exterior e sabedoria interior tão conhecida dos bizantinos, mas, a estrutura conceituai era diferente.
A mentalidade bizantina permitia interpretações alegóricas e místicas da Bíblia, mas, elas não eram vistas com bons olhos no Ocidente, es pecialmente nas faculdades teológicas. Para a nova safra de teólogos-filósofos ocidentais, a diferença entre a Bíblia e Aristóteles não era de gênero nem mesmo de propósito, mas, de fonte. Não falavam das mesmas coisas de maneiras diferentes (como supunham os bizantinos); falavam de coisas diferentes da mesma maneira. Aos olhos dos estudiosos, a Bíblia supria o conhecimento que o método de Aristóteles era incapaz de produzir, no entanto, esse conhecimento não era de caráter fundamentalmente diferente. Em si ele era tão racional como qualquer coisa que as ciências naturais pudessem apresentar, contudo, as limitações da mente humana eram tantas que tal conhecimento era inacessível pelos mesmos métodos. A Bíblia prosseguiu de onde Aristóteles havia parado — ou seja, o que era conhecível pela natureza era complementado pelo que só podia ser conhecido pela graça. O pressuposto era que os dois mundos de aprendizagetn estavam ligados um ao outro, de maneira que a ciência de Aristóteles, propriamente entendida, não contradizia a revelação bíblica e vice-versa. Se houvesse discrepância, a culpa seria sempre de Aristóteles que era pagão, e assim, ninguém esperava que estivesse certo o tempo inteiro. Os problemas surgiam apenas quando o método aristotélico revelava algo que era (ou parecia ser) incompatível com a revelação bíblica. Para a geração de Tomás de Aquino, o conceito das duas fontes de conhecimento parecia salvaguardar a posição da igreja, mas, isso foi logo criticado. Os milagres eram um problema especial. Era até possível defender algo como a ressurreição de Jesus como um fato único esperado de alguém que também era o divino Filho de Deus, porém o que dizer do milagre do altar, em que sacerdotes transformavam pão e vinho comuns no corpo e sangue do Salvador milhares de vezes por dia? Era algo realmente plausível? Mesmo que esse milagre fosse possível, como a igreja podería ser despenseira da graça divina quando tantos de seus ministros eram ignorantes e corruptos, incapazes até mesmo de ler as Escrituras da qual supostamente deveríam ser guardiões e intérpretes? Será que alguém que aprendeu a orar em um monastério conhecia mais
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teologia do que alguém que aprendeu a estudá-la e debatê-la em uma universidade? Essas perguntas começaram a surgir por volta do ano 1300, e sem pre que a igreja tentava reprimi-las o problema aumentava. No entanto, a fraqueza intelectual da posição da igreja demorou a ser totalmente exposta porque os debates eram relativamente abstratos e difíceis de serem entendidos pelas pessoas comuns. Mais reveladora ainda aos olhos da população era a questão financeira criada quando a igreja alegava o direito de isenção de impostos públicos. No entender da igreja, dinheiro ofertado a ela era dinheiro ofertado a Deus e, portanto, não tributável pelo Estado. Contudo, aos olhos do Estado, a igreja era um parasita social, que exigia ser protegida dos inimigos (pagãos, hereges e muçulmanos), mas, não desejava pagar pelo serviço. O fracasso das Cruzadas deixou isso bem nítido a grande parte da população. Enormes quantias de dinheiro foram levantadas e gastas pela igreja (ou sob seus auspícios) em uma causa fracassada. Ao mesmo tempo, os reis tinham de promover o estado de direito e a ordem em seus reinados, tarefa que muitas vezes era malograda por uma igreja que exigia privilégios especiais; por exemplo, o direito de julgar seus oficiais mesmo quando fossem acusados de crime secular tal como roubo ou assassinato. O conceito de que havia uma lei para a população e outra para o clero criou raiz, e essa aparente injustiça tinha algum fundamento, pois qualquer pessoa que soubesse assinar o próprio nome tinha direito de reivindicar “benefício clerical” e, assim, livrar-se das punições mais duras da lei. O ressentimento popular contra os privilégios da igreja ajudou o rei Felipe IV da França (r. 1285-1314) a se engajar em um longo duelo com o papado do qual saiu vitorioso. Quando o rei exigiu o direito de tributar os bens da igreja, tudo o que o Papa conseguiu fazer foi excomungá-lo e proclamar um edital {Clerieis laicos) condenando o confisco de propriedade eclesiástica por um governante secular. O Papa exercia alguma autoridade moral, contudo, o rei estava escorado por um exército, e enquanto o exército lhe fosse leal, sua vitória era certa. À época de sua morte, Felipe IV havia forçado os Papas a saírem de Roma e instalarem-se em Avignon, onde permaneceram até 1377. Esse período, conhecido pelas gerações seguintes como o “cativeiro
babilônico” da igreja, foi prejudicial ao papado porque questionou sua autoridade. Se o Papa era o bispo de Roma, cidade onde Pedro foi martirizado, por que ele era impedido de morar ali? Mais ainda, por que ele aceitava uma situação que o deixava à mercê do rei da França? Essa questão ficou ainda mais aguda depois de 1328, quando o fracasso da linhagem real francesa em produzir um herdeiro resultou num conflito entre a nobreza francesa (que desejava que o parente masculino mais próximo do falecido rei Carlos IV fosse seu sucessor) e o rei Eduardo III da Inglaterra (r. 1327-77), filho de Isabel, filha única de Carlos IV, que reivindicou o direito de herdar a coroa da França por intermédio da mãe. O conflito resultou na Guerra dos Cem Anos entre Inglaterra e França, da qual podemos afirmar que a Inglaterra venceu quase todas as grandes batalhas, mas, no fim, a França ganhou a guerra. Obviamente, esse conflito constante colocou em dúvida a neutralidade do papado, e não por acaso a Inglaterra eduardiana foi um dos primeiros lugares do Ocidente onde a resistência ao Papa e suas reivindicações surgiu para valer. Essa resistência já tinha raízes no pensamento de William de Ockham (1287?-1347), um inglês cuja dedicação aos princípios aristotelianos da razão e lógica não perdia para ninguém. Ockham tinha uma carreira um tanto turbulenta, suavizando o termo, e morreu na Alemanha como fugitivo da justiça papal — embora o fato de os alemães lhe darem refúgio mostre que a Inglaterra não era o único país interessado em neutralizar os Papas de Avignon. Outra influência importante na mesma direção foi a de Marsílio de Pádua (1280?-1343), contemporâneo de Ockham que publicou uma crítica devastadora ao papado conhecída como The Defender of the Peace [O defensor da paz, tradução livre]. 8 Marsílio mostrou que o papado havia ultrapassado excessivamente os limites de sua autoridade na tentativa de dominar a Europa, e na verdade, a instituição lhe era de pouco valor. Seu livro se transformou em uma trombeta conclamando por uma reforma completa; mais tarde, 8
Existem no mercado duas traduções recentes em inglês dessa obra. Uma foi traduzida por A. Gewirth e é conhecida por seu título em latim Defensor pads (Toronto: University of Toronto Press, 1980); a outra foi traduzida por A. Brett e é conhecida por seu título inglês, The Defender of the Peace (Cambridge: Cambridge University Press, 2005).
supôs-se que quem duvidava da autoridade papal bebera na fonte dos ensinos de Marsílio, fosse isso verdade ou não. No entanto, não foi Marsílio, e sim John Wyclif, que sofreu a influência de Ockham embora não tenha sido seu discípulo direto, que encabeçou as acusações contra o papado, em circunstâncias que lhe foram particularmente favoráveis naquela época. Quando aluno da Universidade de Oxford, Wyclif abraçou as idéias de Ockham, juntamente com uma forte dose de Aristóteles e a teologia escolástica de homens como Tomás de Aquino. Mas, talvez, o impacto mais profundo em sua vida não tenha vindo de nenhum desses, e sim de algo totalmente diferente. Começando no fim de 1346 e alongando-se por um período de três ou quatro anos, a Europa Ocidental foi devastada pela peste bubônica, popularmente conhecida como peste negra. A praga, disseminada por pulgas que infestavam ratos, era altamente contagiosa, e em pouco tempo matou quase metade da população europeia. Os clérigos foram atingidos de forma especialmente dura, pois cuidavam dos enfermos e moribundos, e assim pegavam a doença. Ninguém entendia como ou por que a peste causava tal devastação, porém as explicações não demoraram a ser feitas. Em um mundo onde se acreditava que a igreja orava a Deus buscando a proteção de seu povo contra tais calamidades, era fácil apontar para as condições anormais nas quais a igreja se encontrava como a causa verdadeira da infelicidade da população. Era fácil ver a peste como o julgamento de Deus contra uma igreja corrupta. Wyclif não se preocupava tanto com a mudança do papado para Avignon, nem com as irregularidades financeiras. O que o agastava mais era o erro doutrinário, um pecado que, para ele, era o cerne de tudo o que era danoso. Para Wyclif as falsas crenças inevitavelmente produziríam ensino falso e levariam ao comportamento errado, e assim provocariam o justo castigo de Deus. Wyclif não atacou a instituição papal em si, entretanto abordou duas crenças fundamentais que os Papas faziam questão de promover. A primeira afirmava que a Bíblia e a tradição da igreja exerciam autoridade de igual importância, e então o que não se encontrava escrito na Bíblia deveria assim mesmo fazer parte da revelação divina que a igreja
recebeu por meio da tradição. 9 Como as duas autoridades acabavam sendo controladas pelo Papa, não importava qual delas era usada; de qualquer forma, a igreja conseguia o que almejava. A segunda crença era a transubstanciação, que Wyclif acreditava ser bobagem científica, mas, que o Papa anunciava como um dos aspectos mais importantes do sacerdócio ministerial.10 Para chegar mais perto de Cristo, os cristãos tinham de participar do sacramento, que só podería ser ministrado por um sacerdote legalmente ordenado. Em consequência, a autoridade da igreja sobre os fiéis estava estreitamente ligada ao poder do sacerdote de lhes dispensar a graça de Deus — ou, mais importante, reter essa graça caso se comportassem indevidamente. A igreja recebeu as chaves do reino celeste, e os sacerdotes tinham a obrigação e a responsabilidade, encabeçados pelo Papa, de aceitar ou rejeitar quem buscava entrada nesse reino. Wyclif enfatizava que a autoridade suprema da igreja não era o Papa, mas a Bíblia, a autorrevelação de Deus à raça humana. O fato de os Papas terem se apoderado da igreja como fizeram era resultado da ignorância popular com respeito às Escrituras; como diriamos hoje, o cristão comum não conhecia seus “direitos”. A escassez extrema de Bíblias e a precariedade de suas traduções asseguravam que somente um bom conhecimento do latim oferecia qualquer esperança de alguém entender seus ensinos. Isso, claro, concedeu ao clero uma posição privilegiada. Para entendermos melhor essa situação, pensemos no papel dos advogados nos dias de hoje. Em teoria, qualquer pessoa acusada de crime pode se defender no tribunal, entretanto, a lei é tão complicada e arcana que somente os muito imprudentes tentariam fazer isso. Ao contrário, os acusados procuram advogados, cujo trabalho é essencialmente descobrir um modo de livrar seus clientes, sejam eles inocentes ou culpados. Os sacerdotes medievais não eram muito diferentes. Alguns também eram advogados, e administravam a lei canônica com a 9
Isso foi frisado pelo legado papal Othobon, em 1268, em um discurso que fez ao dero da província inglesa de Canterbury. Othobon promulgou uma nova série de cânones para a igreja da Inglaterra, e agradeceu a Deus pela possibilidade de assim suplementar
o ensino das Escrituras. Mais tarde, ele se tomou o Papa Adriano V (1276). 10 Esse foi outro legado do Quarto Concilio de Latrão, em 1215.
mesma segurança com que ensinavam as Escrituras e esperavam que suas considerações fossem aceitas sem reclamações. Como resultado, as pessoas influentes geralmente alcançavam o que queriam, como a anulação de um casamento, por exemplo, enquanto os mais humildes ficavam à mercê do sistema. Porque Wyclif favoreceu a Bíblia e se opôs à doutrina da transubstanciação, ele se tornou a “estrela da manhã da Reforma” para futuras gerações de protestantes, que passaram a vê-lo como seu antepassado espiritual, embora essa perspectiva tenha sido contestada em tempos mais recentes. Certamente nós concordamos que Wyclif não previu a Reforma; ela só desabrochou mais de um século após sua morte. Quando a Reforma aconteceu, as questões que provocavam divisões na igreja eram outras, e Martinho Lutero nunca afirmou diretamente que Wyclif era sua inspiração. Também, os seguidores sobreviventes de Wyclif, conhecidos como lolardos, não causaram muita impressão no século 16. Os que ainda existiam se misturaram ao movimento protestante sem deixar rastro nenhum. Até as traduções que Wyclif fez da Bíblia, embora certamente conhecidas, não tiveram papel na igreja reformada. Seja como for, eram baseadas na tradução do latim e não nos textos originais em hebraico e grego, e, portanto, foram de pouco interesse no século 16, quando o público ansiava voltar às línguas originais do texto bíblico atrás do latim. No entanto, se é complicado imaginar Wyclif como precursor da Reforma, alguns aspectos de seus ensinos levantaram questões que teriam papel importante nela. Seu apoio à autoridade bíblica contra a tradição aprovada pela igreja e sua rejeição da doutrina cientificamente insustentável da transubstanciação eram sintomáticas das coisas que mais tarde questionariam a autoridade da igreja de um modo que Wyclif abraçaria, mesmo que fossem além do que ele estava procurando fazer. DESINTEGRAÇÃO INSTITUCIONAL
Um dos efeitos da peste bubônica foi a diminuição do número de monges. Antes da peste, os monastérios, e a vocação clerical em geral, tinham sido uma válvula de segurança muito útil para conter o perigo da superpopulação. Os camponeses precisavam ter famílias numerosas
para cuidar de suas lavouras e compensar o alto índice de mortalidade, porém não desejavam que suas terras fossem tão subdivididas que não compensasse mais trabalhar. Assim, os filhos indesejados (e as filhas solteiras) eram entregues à igreja, onde teriam vidas confortáveis e respeitáveis, e poderíam até alcançar uma posição que os levassem a ajudar suas famílias empobrecidas. A peste deu um fim repentino e cabal a tudo isso. O problema da superpopulação deu lugar à escassez, e poucos rapazes podiam ser encaminhados à vida monástica. Os monges e o clero também sofreram de modo desproporcional, como já observamos. Os monastérios, então, que estavam sempre repletos declinaram ao ponto de terem um punhado de membros, e vastas extensões de terra monástica arável ficaram ociosas sem ninguém para cultivá-las. A mão de obra, que havia sido barata e abundante, se tornou parca e mais cara, permitindo que homens habilidosos, por exemplo, estabelecessem pequenas empresas que os livrassem da pobreza rural. Devagar mas, sempre, começou a surgir a classe média com condições de educar seus filhos, mas, que não desejava que abraçassem o mundo celibatário da igreja institucional. Esses acontecimentos não anunciavam um declínio da fé — longe disso. A partir do final do século 17, surgiram novos projetos cristãos de vida comunitária, não mais enraizada no monaquismo tradicional e sim refletindo o desejo de viver como ser humano normal, com casamento e família sendo a chave da vida consagrada. A experiência mais importante aconteceu na Holanda e foi associada ao nome de Geert Groote (1340-84). Groote foi essencial na formação de uma comunidade conhecida como “Brethren of the Common Life” [Irmãos da vida comum, tradução livre]; suas práticas eram chamadas de a “devoção moderna” por serem novidades naquela época. 11 Groote enfrentou muita oposição, entretanto, no decorrer do século 15, a devoção moderna se espalhou através dos Países Baixos, atraindo, entre outros, o grande Thomas, a Kempis (1380P-1471), cuja obra clássica imitação de Cristo (Shedd Publicações) continua procurada em nossos dias. Durante muito tempo os “Irmãos” foram considerados precursores da
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Veja R. R. Post, The Modem Devotion: Confrontation with Reformation and Humanism (Leiden: Brill, 1968).
Reforma Protestante, mas, hoje isso é considerado anacronismo e, na verdade, eles foram hostis com os protestantes ao encontrá-los pela primeira ve2. Por outro lado, não há dúvida de que o estilo de vida dos Irmãos era mais atraente a pessoas como Martinho Lutero do que o monaquismo, e assim que a Reforma teve início, muitos dos que antes teriam se juntado aos Irmãos se tornaram protestantes. Havia também maior ênfase na espiritualidade individual, que poderia ser praticada tanto por celibatários quanto casados. A devoção feminina, nunca ausente, se tornou mais comum na literatura da época, e mulheres letradas da Inglaterra, tais como Lady Margaret Beaufort (1443-1509), se tornaram beneméritas do avivamento do aprendizado que começou com força no século 15. 12 A igreja estava se diversificando, e de muitas maneiras os cristãos ficavam mais independentes das organizações tradicionais. E óbvio que não devemos exagerar esse fenômeno. Para a maioria das pessoas, tudo continuava como antes, e as antigas tradições da vida paroquial tinham de continuar como sempre foram. Mas, independentes de seus limites, as mudanças estavam pelo menos se tornando possíveis e aceitáveis, um fenômeno desconhecido um ou dois séculos antes. O declínio dos monastérios resultou em declínio correspondente da educação que ofereciam, embora aqui também não devamos exagerar. No início do século 16, alguns ainda buscavam os monastérios atrás de educação teológica - Martinho Lutero foi um deles. Contudo, depois da peste bubônica, certamente o impacto causado pelas universidades aumentou, e o valor da educação que elas ofereciam era bastante apreciada. Os frades, que como grupo haviam ficado às margens da vida da igreja no século 13, tornaram-se mais importantes com o passar do tempo, e a liberdade que tinham de se locomover foi de grande ajuda para se estabelecerem como professores e pregadores itinerantes. Os frades eram propensos a institucionalizar suas ordens da maneira que os monges haviam feito, contudo, havia também entre eles forças poderosas de renovação que mantinham alguns deles entusiasmados 12 Ela
era mãe do rei Henrique VII (r. 1485-1509) e fundou duas faculdades em Cambridge (de Cristo e de São João); também subsidiou uma cátedra de divindade que leva o seu nome.
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e fiéis à visão original de homens como Francisco de Assis. No início do século 16, os franciscanos experimentaram uma renovação entre os observadores, ou seja, homens que retornaram às regras rígidas da ordem que haviam sido estabelecidas por Francisco de Assis. Os observadores exerciam influência particularmente na Irlanda e foram reconhecidos por impedir o avanço dos protestantes com seu próprio programa de reforma. Em muitos lugares onde a pregação era quase desconhecida, os frades levavam a Palavra de Deus ao povo, às vezes com efeitos dramáticos. Em Florença, por exemplo, o frade dominicano Girolamo Savonarola (1452-98) causou um impacto tremendo, pois durante um curto período de tempo ele foi o governante da cidade e fez ali uma reforma moral que continua a impressionar os observadores modernos. Savonarola foi considerado um radical perigoso e foi logo morto por sua audácia, mas, o fato de ele ter ido tão longe quando igreja e Estado se agruparam para derrubá-lo, mostra a força do movimento que ele representava e seu apelo ao povo em geral. No entanto, seja qual for a influência que esses e outros movimentos periféricos exerceram sobre a igreja entre 1350-1500, nada se compara à dramática implosão do papado, o pivô do sistema medieval todo. Ao mesmo tempo em que os desafetos de Wyclif tornavam suas “heresias” conhecidas da igreja como um todo, os Papas voltavam de Avignon para Roma, graças em parte às vitórias inglesas contra a França, que enfraqueceram a monarquia francesa. Consequentemente, esta perdeu a força de impedir que o papado retornasse ao lugar a que pertencia. Em teoria, a volta do papado a Roma deveria ser bem aceita por todos, mas, apesar de o mundo cristão inteiro ficar feliz ao vê-lo retornar a seu lugar de direito, esse não foi o caso das pessoas mais diretamente envolvidas — os cardeais e a nobreza francesa. Depois de quase setenta anos em Avignon, todos os cardeais eram franceses e não tinham vontade de se estabelecer em uma cidade que não só lhes era estranha, mas, também, quase toda arruinada pela negligência. Quando o Papa morreu, em 1378, os cardeais concordaram em eleger um dos seus como sucessor, desde que ele retornasse imediatamente a Avignon. Infelizmente para eles, o Papa renegou sua promessa,
adotou o nome de Urbano VI, deixando clara a sua determinação de ficar na cidade eterna (urbs). Boquiabertos diante da traição, os cardeais se retiraram para Pisa, onde depuseram Urbano VI e elegeram um Papa mais maleável. O eleito obedeceu imediatamente e retornou à França, que ficou muito feliz em apoiá-lo. Agora existiam dois Papas, e os dois reivindicavam a autoridade legítima da eleição realizada pelo Colégio de Cardeais. Para uma igreja que veio a se apoiar pesadamente no Papa como foco de união, isso foi desastroso porque dividiu o cristianismo Ocidental em dois. A Inglaterra estava guerreando contra a França, então, daro, ela se uniu ao Papa de Roma contra o Papa de Avignon. A Escócia, por outro lado, aliou-se à França contra a Inglaterra, e, portanto, torcia por Avignon. E assim foi por toda a Europa. Praticamente ninguém tomou partido por motivos teológicos; a questão toda era política do começo ao fim, banhando de dúvida e descrédito a instituição papal inteira. O Grande Cisma, como ficou conhecido o episódio, continuou até 1417, quando foi reparado no Concilio de Constança, que foi convocado pelo imperador exatamente com esse propósito. Mesmo assim, demorou até que os últimos remanescentes do cisma desaparecessem e houvesse novamente um Papa único reconhecido por todos. Infelizmente, esse resultado feliz foi manchado por um escândalo que ecoaria através da história da igreja e, até certo ponto, continua vivo hoje em dia. Críticas à igreja semelhantes às de John Wyclif não se restringiram à Inglaterra. Na Boêmia, Jan Hus pensava da mesma forma, e os hussitas foram inspirados por seus colegas ingleses. Como todos usavam o latim, suas idéias se espalharam facilmente, e como resultado, algumas obras de Wyclif sobrevivem hoje em manuscritos somente na Europa Central, onde os hussitas haviam feito cópias. Hus falava tcheco em um país que ficava cada vez mais sob o domínio alemão, portanto, o nacionalismo teve influência em sua oposição a uma igreja que parecia favorecer os mais poderosos. Outros tchecos se preocupavam porque o papado permitia somente um elemento na ceia (o pão, mas, não o vinho), uma prática que eles consideraram não bíblica. Não se sabe de onde veio esse costume; uma teoria é que se tratava de medida de higiene para evitar que a peste e outras doenças se espalhassem por
meio de um cálice comum a todos. Seja qual for o motivo, o certo é que servir os dois elementos (sub ultraque specie) era a norma do Novo Testamento e a prática universal da igreja até então. Em vez de reconhecerem isso e restaurarem o cálice ao povo, as autoridades eclesiásticas decidiram que o ultraquismo, como o movimento foi chamado, era um desafio a ser vencido, e apresentaram um número de argumentos engenhosos a favor da inovação. Um deles dizia que como o corpo contém sangue, as pessoas que comem o corpo de Cristo também ingerem seu sangue, então, não há necessidade de recebê-lo separadamente. De início, Hus não era ultraquista, mas, adentrou esse campo com bastante naturalidade, e foi como defensor dessa posição que ele foi convocado para o Concilio de Constança para aguardar o julgamento da igreja. O imperador lhe prometeu salvo-conduto, então, Hus foi, acreditando que teria a oportunidade de se defender diante do episcopado universal. Tragicamente, além de Hus ser condenado, o salvo-conduto foi ignorado e ele foi queimado na fogueira como herege. O acontecimento causou furor na Boêmia, onde incontáveis pessoas cortaram de vez seu relacionamento com Roma. A execução de Hus foi um tapa na cara do imperador, cujo prestígio sofreu um golpe sério quando o papado reafirmou seu direito de falar em nome da igreja como um todo. Talvez, o mais preocupante seja que essa atitude foi um exemplo claro de como uma prática tradicional — neste caso, também uma tradição recente - superava o testemunho bíblico evidente, só porque o Papa e um concilio eclesiástico disseram que ela podia. Eles tinham autoridade para fazer isso? É importante enfatizar que a decisão de condenar Hus foi tomada pelo Papa e pelo concilio; não foi imposta pelo primeiro ao segundo (ou vice-versa). O esclarecimento é necessário porque uma das provisões acertadas em Constança foi de que no futuro a igreja seria dirigida, não como uma ditadura baseada em Roma, mas, sob um regime quase parlamentar. O intuito era que os concíüos ecumênicos se reunissem a cada cinco anos para decidir questões de suprema importância para o governo da igreja, e o Papa seria seu diretor executivo, encarregado de cumprir as decisões do concilio, porém sem lhe impor sua vontade.
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Ο Papa, claro, não queria ser restringido dessa maneira, contudo, sua posição ainda era vulnerável, e ninguém estava disposto a criar divisão sobre algo planejado para unir as pessoas. De qualquer forma, o Papa, como oficial executivo encarregado de implementar as decisões tomadas pelos concílios, tinha uma posição de longo prazo sólida, que talvez pudesse ser usada para restaurar o que ele entendia ser sua autoridade legítima. E, de fato, foi o que aconteceu. Nesse ínterim, a igreja passava pelo que chamamos de conciliarismo. Se os meios de comunicação de hoje existissem no século 15, a proposta teria funcionado. Contudo, os bispos e oficiais tinham de atravessar a Europa regularmente para os concílios, que se prolongavam mais do que o desejado por qualquer participante. O conciliarismo foi uma ideia implementada antes do tempo apropriado e sem os recursos necessários para que funcionasse no longo prazo. Outro problema foi que ninguém desejava que os concílios se reunissem em Roma, no mínimo porque a cidade era de difícil acesso. Isso significava que o Papa teria de viajar para o norte da Europa se fosse presidir os concílios, e era improvável que ele pudesse ou desejasse fazer isso regularmente. Depois do término do Concilio de Constança em 1418, o Papa Martinho V (liderou em 1417-31) se recusou a cooperar, e nada foi feito em seu papado. Quando ele morreu, a frustração reprimida forçou Eugênio IV (liderou em 1431-47), seu sucessor, a convocar um concilio em Basiléia, que, de um jeito ou de outro, continuou até 1449. Eugênio IV não tinha a mínima intenção de ir a Basiléia, e transferiu o concilio para Ferrara. Dali, foi mudado para Florença e depois para Roma, exatamente onde os conciliaristas não queriam. Quando o concilio terminou, muitos dos apoiadores originais do conciliarismo ficaram desiludidos com o resultado, e um contramovimento enfatizando a autoridade papal caminhava em ritmo avançado. Finalmente, no Quinto Concilio de Latrão (1512-17), o conciliarismo foi condenado formalmente e a monarquia papal, completamente restaurada - ou é o que parecia. A REVITALIZAÇÃO PAPAL
A revitalização do papado no século seguinte a 1417 é um dos fenômenos mais surpreendentes e menos compreendidos na história
da igreja. Embora houvesse um enorme desejo de ver o término do cisma que durou uma geração, poucas pessoas da época imaginavam que seria possível retornar à situação prevalecente nos dias gloriosos da supremacia papal no Oeste Europeu. Entretanto, os Papas estavam decididos a restaurar o poder de suas dioceses, e Eugênio IV era esperto o bastante para conseguir tal coisa. E importante dizer que os eventos o favoreceram, e de modo quase imperceptível. Depois que os bizantinos recuperaram Constantinopla, em 1261, houve uma tentativa de devolver ao Império do Leste sua glória anterior. Isso nunca aconteceu, e os dois séculos seguintes são uma história de declínio lento e inexorável até a cidade se render aos turcos otomanos. Os turcos invadiram a Ásia Menor em 1071, e embora mantidos à distância, nunca foram expulsos. Depois de 1300, eles se reuniram sob um líder extraordinário, Osman (otomano), que lançou o alicerce do império que levaria seu nome e duraria até 1922. Em 1354, os turcos estabeleceram uma cabeça-de-ponte na Europa e assolaram quase toda a Península Balcânica. Constantinopla resistiu, como também vários lugares na Grécia, alguns governados pelos bizantinos e outros por venezianos ou genoveses, que, naturalmente, apoiaram o cristianismo ocidental tanto quanto puderam. A influência ocidental era bastante forte nos círculos intelectuais bizantinos nessa época, e várias figuras proeminentes sustentaram idéias ocidentais ou se converteram à igreja romana. Não é claro se deixaram a comunhão com a igreja bizantina - parece que a maioria não se afastou. Os bizantinos sempre aceitaram a primazia romana com base nas reivindicações petrinas, contudo, não reconheciam a jurisdição papal como consequência inevitável disso. Também não aceitavam um número de posições teológicas ocidentais, incluindo a doutrina da transubstanciação, a existência do purgatório (do qual duvidavam) e a procedência simultânea do Espírito Santo a partir do Pai e do Filho, a conhecida cláusula filioque que o Ocidente havia introduzido no Credo Niceno-Constantinopolitano, por volta de 1014. As igrejas do Leste nunca se manifestaram sobre essas questões, então, era teoricamente possível a seus membros terem opiniões ocidentais em relação a elas, se quisessem. O que não aceitavam era que o papado tivesse o direito
de forçar essas doutrinas nas igrejas do Leste, que nunca concordaram com elas e abrigavam muitos membros (possivelmente a maioria) que as rejeitavam explicitamente. Em 1274, o Segundo Concilio de Lyon tentou reconciliar as igrejas do Leste e do Oeste, mas fracassou, sobretudo porque era um projeto político do imperador Miguel VIII (r. 1258-82), que desejava proteger seu império contra um possível ataque do Ocidente e assinaria qualquer coisa para alcançar seu objetivo. Miguel passou a ser visto como traidor por muitos da igreja do Leste, e seus partidários foram perseguidos depois de sua morte. O século seguinte testemunhou o renascer do monasticismo bizantino, que era profundamente antiocidental na prática, apesar de um bom número de seus líderes aceitar alguns aspectos da teologia ocidental. As posições iriam se radicalizar mais tarde, entretanto, no século 14, escritores conservadores do Leste ainda eram receptivos às idéias ocidentais e chegaram a integrá-las em sua teologia sem sofrerem oposição rigorosa. 13 A situação poderia continuar a mesma indefinidamente, contudo, no século 15, os turcos estavam fortes o suficiente para desfechar o último ataque a Constantinopla, que se projetava como uma ilha grega cristã em um mar turco muçulmano. João VIII (r. 1425-48), imperador do Leste, sabia que sua cidade estava com os dias contados e buscava desesperadamente a ajuda do Ocidente, sua única esperança de salvação. Ele sabia que o preço a ser pago era a união formal das igrejas e que isso não aconteceria a não ser em escala global, com o envolvimento e consentimento de todos os interessados no processo. Os bizantinos não confiavam nos conciliaristas e preferiram tratar diretamente com o Papa, que segundo eles, tinha mais autoridade e mais possibilidade de conseguir o resultado desejado. Eugênio IV, por sua vez, enxergou isso como a oportunidade que esperava. Para facilitar a vida dos bizantinos, que não queriam ir além da Itália, ele transferiu para Ferrara o concilio que já estava em andamento em Basiléia. João VIII e uma delegação de clérigos que incluía o patriarca de Constantinopla se dirigiram para lá, mas, um surto da peste negra os forçou a transferir o concilio para 13 Sobre
esse período, veja D. Nicol, Church and Society in the Last Centuries of Byzantium (Cambridge: Cambridge University Press, 1979).
Florença. E é como Concilio de Florença que esse fatídico sínodo é geralmente conhecido em nossos dias. 14 Após meses de negociações, a delegação bizantina aceitou as exigências do Ocidente em retorno da autonomia em suas questões internas e (mais importante) um exército para libertar Constantinopla. O papado, que nunca havia renunciado suas ambições em relação às Cruzadas, tinha agora um motivo verdadeiro para renovar sua convocação à guerra santa contra o Islamismo, porque os turcos não só ameaçavam Constantinopla como também abriam caminho rumo à Hungria e Europa Central. Os governantes do Ocidente foram, então, persuadidos que era de seu interesse reunir um exército para atacarem os turcos, contudo, em 1444, esse exército foi destruído em Varna e o ideal das Cruzadas morreu. Nove anos depois, em 29 de maio de 1453, Constantinopla caiu nas mãos dos turcos, e qualquer noção de união entre Leste e Oeste foi abandonada. A verdade é que a “união” com o Oeste custou a divisão das igre jas orientais em duas, um cenário assombrosamente evocativo do que aconteceu mil anos antes, depois do Concilio de Calcedônia. Discussões políticas tiveram papel importante, mas, em suma, é preciso afirmar que elas pesaram mais nos unionistas do que em seus oponentes. Quem rejeitou o compromisso de Florença sabia que a alternativa era o domínio turco, que eles na verdade não queriam, contudo, estavam prontos a aceitar como o menos pior de dois males. O papado, por outro lado, os deixaria independentes politicamente (e desprotegidos), mas, se empenharia em subverter suas igrejas e tradições forçando-as a se conformar com as normas ocidentais. Onde os cristãos do Leste podiam rejeitar a união abertamente, como na Rússia, eles o faziam de imediato; em outros lugares, tiveram de esperar até a queda do Império Bizantino, o que logo aconteceu. Depois de 1453, a união da igreja não era mais uma possibilidade prática, e Leste e Oeste definitivamente se separaram. Muitos dos bizantinos que apoiaram a união mudaram-se para a Itália, mas, a tradição bizantina, como é conhecida hoje, não desapa 14 Veja
J. Gill, The Council of Florence (Cambridge: Cambridge University Press, 1959), para conhecer a história do concilio, escrita de uma perspectiva ocidental.
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receu com eles. Os princípios aceitos em Florença, em 1439, foram usados mais tarde para promover a união com várias igrejas Russas Ortodoxas no que é hoje a Ucrânia e também com a Romena Ortodoxa, na Transilvânia. Essas duas áreas caíram sob o domínio do Oeste (polonês e húngaro); nelas, o desejo de se unir a Roma era genuíno em alguns casos, contudo, o efeito de longo prazo dos acontecimentos era negativo e permaneceu assim. A Ucrânia, por exemplo, continua dividida entre “católicos gregos”, como os da tradição bizantina são chamados, e os ortodoxos. Situações parecidas existem em todos os cantos, ainda que em escala bem menor. O Concilio de Florença tam bém aprovou “uniões” com os armênios (1439), com os monofisitas (1442) e os nestorianos (1444), e todos causaram o mesmo efeito que a reunião com os bizantinos — essas igrejas foram divididas e apenas uma minoria participou da comunhão romana, deixando um gosto amargo nas outras e tornando mais difícil qualquer reconciliação duradoura. Um dos resultados mais surpreendentes foi que as igrejas do Leste adquiriram muito mais poder sob o domínio turco e foram transfermadas de tal modo que ficaram irreconhecíveis. Antes, o patriarca de Constantinopla era pouco mais que um oficial do império, que podería ser removido ao bel prazer do imperador. O sultão turco tomou o lugar do imperador, mas, sendo muçulmano, não lhe foi tão fácil interferir nas questões da igreja. Os turcos deram um jeito para que os patriarcas fossem de seu agrado, e quase sempre maquinavam destituições e novas eleições que desequilibravam a igreja, mas, em retorno garantiram ao patriarca algo que nenhum imperador bizantino jamais podería ter feito. O patriarca se tornou chefe da
millet (nação)
cristã ortodoxa. Da noite
para o dia, o patriarca se tornou mais poderoso que o Papa, pelo menos entre seus correligionários. Com o passar do tempo os patriarcados autônomos da Bulgária e Sérvia foram suprimidos; as antigas dioceses de Antioquia, Jerusalém e Alexandria ficaram igualmente subordinadas a Constantinopla ao caírem nas mãos do governo turco. Ao início do século 19, o patriarca de Constantinopla não era apenas o chefe da igreja, mas, da “nação”, sendo que “nação” era entendida como ortodoxa e basicamente grega. Movimentos nacionalistas lideraram revoltas, primeiro na Grécia e Romênia, depois na Sérvia e Bulgária,
e um critério básico para o restabelecimento de independência nacional nesses lugares foi a restauração de uma igreja ortodoxa autônoma. Até hoje, a fusão entre ortodoxia e nacionalidade no Leste Europeu é tão forte que pessoas que falam a mesma língua e têm muito em comum (como os sérvios e os croatas) atacam umas às outras porque um grupo é ortodoxo e o outro é católico romano - e os dois jamais andarão juntos. Dessa forma, o fracasso da união da igreja no século 15 continua a se repercutir no cenário político dos Bálcãs e da Rússia hoje, com trágicas consequências para todos os envolvidos. Secularização e a expansão do ateísmo fizeram muito pouco para conter a cisão, e assim, muitas igrejas orientais se encontram na posição inconveniente de ter milhares de membros assíduos que se autodenominam céticos. Para eles, e para muitos observadores do cenário local, o que importa é a herança cultural que a igreja representa, e não qualquer tipo de crença. Eugênio IV jamais teria imaginado tais coisas enquanto trabalhava para reconciliar Leste e Oeste. Seu objetivo era a união da igreja como ela deveria ser: a fusão espiritual de uma cristandade que em questões seculares seria presidida pelos imperadores do Leste e do Oeste. Para Eugênio, foi normal a delegação do Leste em Florença ser chefiada pelo imperador, mas, duvida-se muito que ele pensasse o mesmo se seu contraparte tivesse aparecido por lá. O Papa acreditava, assim como seus contemporâneos, que quando Constantino transferiu a capital para Bizâncio, ele prometeu ao bispo de Roma jurisdição sobre o Oeste. Essa Doação de Constantino, como ficou conhecida a promessa, era um documento guardado nos arquivos Papais e usado por gerações de Papas como prova de que tinham direito de reivindicar a autoridade que possuíam. Mas, nos preparativos para as negociações com o Leste, documentos e reivindicações desse tipo tinham de ser revistos porque a igreja oriental não sabia nada a respeito deles. Lorenzo Valla (1407P-1457), italiano humanista na vanguarda do que hoje chamamos de Renascença, examinou a Doação cuidadosamente e provou que ela era falsificada, feita muito provavelmente no século 9 por monges que desejavam proteger o papado contra as depredações dos carolíngios. O impressionante é que a descoberta da falsificação causou muito pouco (ou nenhum) impacto imediato na igreja. O papado estava tão firme e os imperadores tanto do Leste quanto do Oeste
eram tão fracos que a coisa toda perdeu sua imporância. O Império do Leste logo desapareceu, enquanto o do Oeste estava prestes a renovar suas esperanças. O cativeiro babilônico do papado aconteceu porque o rei da França era forte o bastante para impor sua vontade sobre o Papa e porque não havia na Europa poder que se igualasse à França naquela época. A Guerra dos Cem Anos enfraqueceu a França, pelo menos tem porariamente. De início, o Santo Império Romano não tinha uma posição que o levasse a se beneficiar disso, mas, as coisas começaram a mudar quando a Monarquia de Habsburgo consolidou seu poder sobre ele. Os Habsburgo governaram poderosamente e por muito tempo o que hoje é a Áustria, mas, começaram a se expandir no século 15. Em 1477, eles adquiriram os Países Baixos (hoje Holanda e Bélgica), e na geração seguinte uniram-se em casamento à casa real da Espanha. Foi uma decisão importante. A Espanha sempre esteve na periferia da cristandade, mas, sua batalha centenária para reconquistar dos árabes a Península Ibérica criou-lhe uma mentalidade das cruzadas que não se via em outros lugares. Para os espanhóis, espalhar o evangelho e a igreja por meio de conquistas era uma prática política, e não uma vaga aspiração, como acontecia na maioria dos lugares. Depois que Granada, o último reino muçulmano na Espanha, caiu nas mãos dos cristãos, em janeiro de 1492, os espanhóis criaram gosto pela expansão. Para confirmar isso, a rainha patrocinou Cristóvão Colombo, que acreditava que navegando rumo ao oeste chegaria às índias. A história é conhecida. Colombo nunca chegou às índias, mas, descobriu um mundo novo e apoderou-se dele para a Espanha. Os portugueses, grandes exploradores e marinheiros, e cujo apoio Colombo havia buscado primeiro, não gostaram disso, então o Papa interveio e dividiu o mundo em dois. Assim, pelo Tratado de Tordesilhas, Portugal ficou com o leste da América do Sul (hoje Brasil), África e Ásia, e a Espanha ficou com o restante das Américas e do Oceano Pacífico até as Filipinas. 15 Os dois países se comprometeram com a evangelização; 15 Na
verdade, houve dois tratados, pois o primeiro deu pouca terra da América do Sul a Portugal. Assim, a linha de divisão foi deslocada para o oeste, tornando o Brasil uma colônia portuguesa e não espanhola.
a extensão de seus impérios seculares tinha como objetivo a missão da igreja de pregar o evangelho a toda criatura. Ao se casarem com a realeza espanhola no momento certo, os Habsburgo conseguiram se aproveitar da imensa riqueza que passou a escoar para dentro do país vinda de suas novas possessões e também a consolidar seu governo na Europa Central. Quem se beneficiou dessa herança foi o imperador Carlos V (r. 1519-58), que também era o rei Carlos I da Espanha (r. 1516-56). Finalmente, havia um Sacro Imperador Romano cujo salário não vinha de seus súditos alemães e que podia fazer uma reivindicação plausível de ser o governante universal do cristianismo. Em teoria, a igreja deveria ficar satisfeita com esses acontecimentos, mas, será que o imperador Carlos era mesmo seu protetor? Ele se dobraria à vontade do Papa, ou tornaria o Papa seu vassalo, como outros imperadores, como Frederico II, tentaram fazer? A resposta não seria dada por Carlos nem pelo Papa e sim por um monge e professor universitário relativamente simples cujos interesses eram bem diferentes dos deles. Foi exatamente quando o rei Carlos tomou posse de sua herança que Martinho Lutero rompeu em cena, com idéias novas revolucionárias que transformariam a igreja para sempre. Uma crise financeira que ameaçava arrasar o papado, que nunca se recuperou totalmente dos gastos enormes com as Cruzadas, estava intimamente ligada à política da época. No século 15, as cidades italianas floresciam com o progresso estrondoso da Renascença. Veneza e Gênova enriqueceram com o comércio, enquanto Florença e Milão se tornaram centros bancários importantes. Esperava-se que Roma competisse com essas cidades, mas, ela não possuía fonte de renda a não ser a igreja. Para aumentar suas receitas, os Papas recorriam a várias formas de impostos. Por exemplo, quando alguém era nomeado bispo, era obrigado a pagar ao Papa uma soma equivalente a um ano de seu futuro salário. Em alguns casos, os Papas colocavam seus pró prios funcionários em dioceses desocupadas que estes nunca visitavam, mas, cujos rendimentos iam direto para Roma. O Parlamento inglês sancionou duas vezes leis proibindo essa prática (em 1351 e em 1393), e o rei da França, por sua vez, ficou tão indignado que em 1433 vetou qualquer tipo de imposto papal em seus domínios. 16 16 A
proibição continuou até 1516.
Os sinais de alerta eram claros, contudo, para os Papas era quase impossível enxugar os gastos, e a busca por mais recursos continuou inalterada. A situação se agravou no papado de Leão X (1. 1513-21). Nas palavras do historiador J. N. D. Kelly: Pessoa agradável e amante dos prazeres, mecenas das artes e refundador da universidade de Roma (nov. 1513), o Papa Leão era esbanjador imprudente, tão desesperado por dinheiro que penhorou os móveis e louças do seu palácio. Além de gastar com suas diversões, ele Unha de pagar por suas guerras, as cruzadas, e, acima de tudo, a construção da Catedral de São Pedro; para conseguir dinheiro, o Papa Leão fez grandes empréstimos e vendeu cargos, até mesmo o de cardeal. 17 Uma forma engenhosa de a igreja angariar mais dinheiro era a venda de indulgências, prática criada vários séculos antes. Indulgência era uma garantia de que o comprador passaria menos tempo no purgatório do que o esperado. Ninguém sabia o que deu ao Papa o direito de decidir o que vinha depois da morte, contudo, o medo do purgatório convenceu muitos de que encurtar 0 tempo ali era uma boa ideia. Quando os cofres Papais estavam a ponto de secar, lançava-se outra campanha de venda de indulgências na esperança de abastecê-los. Uma dessas campanhas incitou o protesto de Martinho Lutero, e a Reforma foi gerada. A REFORMA PROTESTANTE
Nenhum evento abalou a igreja tão profundamente como a Reforma Protestante do século 16. Houve cismas, antes, como a dos donatistas, mas, foram periféricos. Houve divisões causadas por fatores irrelevantes, tais como o isolamento das igrejas celtas após a queda do Império Romano, mas, elas foram reparadas quando o contato foi restaurado. Houve até rupturas causadas por desacordos teológicos, tais como o monofisismo do Egito e Síria e o nestorianismo, porém eles não tocaram no caráter fundamental da igreja. Por mais que discordassem uns dos outros, todos os envolvidos reivindicavam sucessão episcopal que remontava aos apóstolos, e seus ministérios e cultos tinham for1
J. N. D. Kelly, The Oxford Dictionary of Popes (Oxford: Oxford University Press, 1986), p. 258.
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matos bem parecidos. Nesse momento, os donatistas e a igreja celta já desapareceram, entretanto, as igrejas não calcedônias ainda existem, e são vistas com simpatia pela Igreja Ortodoxa, que reconhece as semelhanças fundamentais entre elas, semelhanças que não compartilham com os católicos nem com os protestantes de tradição ocidental. A Reforma desafiou esse modelo comum e forçou o mundo cristão, ou pelo menos sua metade ocidental, a analisar seus princípios eclesiológicos pela primeira vez. No início do século 16, ainda existiam grupos discordantes do passado, porém locais e sem muita influência. Alguns lolardos sobreviveram na Inglaterra, porém eram tão inexpressivos que sabemos bem pouco a seu respeito, e havia valdenses nos Alpes, sobreviventes de um movimento medieval liderado a princípio por Peter Waldo (1140? 1218?).18 O movimento hussita na Boêmia exerceu bem mais influência que qualquer um desses grupos, mas, também era um fenômeno regional restrito à sua terra natal de língua tcheca. O Papa não teve insônia por causa deles e também não se preocupou com as igrejas orientais, que em sua maioria estavam sob controle muçulmano e ficavam tão distantes (na Rússia e Etiópia, por exemplo) que não eram importantes do ponto de vista ocidental. O protestantismo era algo totalmente diferente. Os lolardos, hussitas e valdenses imediatamente se alinharam ao protestantismo — e não o contrário — e o movimento deixou uma marca indelével no mundo cristão. Em uma única geração, de 1520, mais ou menos, a 1560, a cristandade europeia foi partida em duas e surgiu um novo tipo de cristianismo. A doutrina da igreja se encontrava no âmago dessa revolução. Como já vimos, a igreja como princípio teológico não havia sido totalmente negligenciada anteriormente, contudo, sua identidade nunca foi o centro de nenhum debate caloroso. Todos concordavam com a frase do credo, segundo a qual a igreja era “única, santa, católica e apostólica”, e a maioria das pessoas entendia instintivamente o que isso significava, ou achava que entendia. A união da igreja era confessada em seu credo comum, e os cristãos podiam receber a ceia das mãos 18 Eles
ainda sobrevivem, e a principal Igreja Protestante italiana hoje é conhecida
como Chiesa Valdese.
de um sacerdote em qualquer lugar do mundo. Papas e bispos podiam excomungar uns aos outros, mas, na base havia um sentimento de integração que apenas ocasionalmente era perturbado por dissidência e/ou heresia. Até mesmo no Oriente era comum os sacerdotes locais servirem a ceia a cristãos ocidentais bem depois do cisma, e em alguns lugares a prática continuou até o século 18. Era difícil definir a santidade da igreja, porém todos sabiam que ela se aplicava aos santos e mártires no céu, cujo exemplo servia à igreja “militante aqui na terra”. Clero, monges e freiras eram tratados com respeito especial e considerados mais santos que o povo em geral, pelo menos em teoria. Deslizes e escândalos mancharam a reputação de alguns deles, mas, em geral, o sacrifício do celibato e o estilo de vida imposto aos religiosos profissionais causaram seus efeitos. A igreja, como instituição, ocupava lugar de destaque na sociedade, e seus bens, edifícios e representantes eram imunes ao poder normal e às pressões da lei. Os detalhes podem ser debatidos — como certamente foram na questão dos impostos -, entretanto, se acatou o princípio de que a igreja institucional não deveria ser vandalizada, mesmo quando uma cidade fosse capturada. Fugitivos da polícia podiam buscar refugio nas igrejas, e embora o acolhimento fosse transgredido na prática, ele era, mesmo assim, mantido em princípio. Derramar sangue dentro da igreja era ofensa seríssima, como os cavaleiros que mataram Thomas Becket na sua catedral, em Canterbury, descobriram do pior jeito. O túmulo de Becket se tornou um santuário e foi usado para lembrar a reis e pessoas comuns que a santidade da igreja e seus oficiais não deveríam ser tratados com frivolidade. A catolicidade da igreja significava que ela era fundamentalmente a mesma em todos os lugares. Todos os que se batizavam eram cristãos, não importava que idioma falassem nem de onde vinham. A nacionalidade no sentido moderno não tinha significado, e uma pessoa como Erasmo de Roterdã (1466—1536) podia atravessar a Europa e sentir-se em casa onde quer que estivesse. O latim, embora não fosse mais a língua materna de ninguém, servia de denominador comum entre os acadêmicos e garantia que qualquer assunto de interesse seria lido e circularia em todos os cantos. Até mesmo no Leste, o uso do latim se ampliava,
e em alguns lugares (Ucrânia, por exemplo), o idioma se tornou meio de educação teológica. O surgimento da imprensa no fim do século 15 acelerou o processo de integração europeia e tornou-a mais eficiente; as Noventa e Cinco Teses de Lutero atravessaram o continente em poucas semanas, bem mais rápido do que seria hoje, quando teriam de ser traduzidas para dezenas de idiomas. A apostolicidade da igreja foi garantida por duas coisas: confissão e sucessão. As pessoas cultas sabiam que o Credo dos Apóstolos não era obra de Pedro e seus companheiros, apesar de uma lenda medieval afirmar o contrário, contudo, não duvidavam que seu conteúdo remetesse a eles. O Novo Testamento foi o legado dos apóstolos à igreja, e todos sabiam que era alicerce fundamental da doutrina cristã. A autoridade da igreja para interpretar as Escrituras era garantida pela sucessão episcopal ininterrupta desde Pedro, o primeiro bispo de Roma, até o presente sucessor no Palácio de Latrão. A doutrina da infalibilidade do Papa era inexistente naquela época, mas, embora o público em geral soubesse que alguns Papas não foram tão felizes no cargo e que Papas rivais competiram por reconhecimento, os fiéis criam que Deus havia preservado sua igreja apesar de todos os problemas, e que os portões do inferno não haviam prevalecido contra ela. No início do século 16, essas crenças fundamentais eram convicções partilhadas por todos, até mesmo Martinho Lutero. Quando ele postou suas Noventa e Cinco Teses na porta da igreja de Wittenberg, no dia 31 de outubro de 1517, ele não imaginava que em breve iria testemunhar a ruptura da instituição que ele e todo mundo conheceram a vida inteira. Como as teses revelam, para Lutero, vender indulgências era errado, e ele questionou o direito do Papa de reivindicar jurisdição sobre os mortos no purgatório, mas, o questionamento não foi um ataque à igreja, aos seus sacramentos ou à sua autoridade. Lutero identificou um abuso e quis corrigi-lo, e no início achou que tão logo defendesse sua abordagem, o restante da igreja concordaria com ele. Mas, não foi o que aconteceu. Lutero não percebeu totalmente, de início, que depois do combate aos hussitas e a derrota do conciliarismo, a posição de autoridade na igreja havia se transferido para o papado de maneira decisiva. Lutero podería apresentar todos os argumentos
que quisesse contra a venda de indulgências, e em suas premissas ele certamente estava correto. Mas, se o Papa permitia esse comércio, sua permissão sobrepujava qualquer argumento que Lutero apresentasse, pois cabia a ele decretar o que era certo e o que era errado. Ele não precisava do apoio de nenhuma autoridade bíblica, pois como sucessor de Pedro, o Papa era um apóstolo vivo e, portanto, uma fonte independente de doutrina para a igreja. Questionar suas decisões era atacar a própria igreja. Quando Lutero entendeu isso, sua atitude em relação ao papado e à igreja mudou. Ele passou a crer que a única maneira de retornar a igreja a seus princípios básicos era aniquilando o poder papal. Isso levantou dúvidas profundas sobre tudo o que o Papa representava. As doutrinas que ele ensinava eram mesmo reveladas por Deus, ou não passavam de meras invenções humanas que o papado adotou porque servia a seus propósitos? Uma vez que as perguntas começaram, não havia como impedi-las. Outras vozes não demoraram a se levantar, e muitas delas eram bem mais radicais que a de Lutero. As reivindicações do papado não eram uma anomalia isolada; elas se apoiavam em uma série de suposições que se desenvolveram com o tempo e nunca sofreram questionamento, embora fosse claro a qualquer leitor do Novo Testamento que as reivindicações não tinham base no ensino de Jesus e seus discípulos. Práticas legítimas, como a Ceia do Senhor, foram exageradas e mal interpretadas, criando abusos e superstições. Outras, como a unção dos doentes, foram tiradas do contexto e mal aplicadas. Acima de tudo, o caminho da salvação foi transformado em uma escada de realizações, por meio das quais os cristãos ganhariam a recompensa celestial por seus próprios esforços em cooperação com a graça de Deus, e não na dependência exclusiva da graça de Deus. De acordo com os luteranos, os cristãos vão para o céu por depositarem sua fé na obra salvadora de Jesus Cristo, e não por realizar obras meritórias por conta própria. O erro não era mais a venda de indulgências; o sistema todo era uma mentira. Não havia indulgências, não porque o Papa não tivesse autoridade para dispensá-las, mas, porque não havia purgatório de onde as almas dos mortos seriam libertas.
De repente, ficou claro a Lutero e seguidores que o sistema sacramental sobre o qual a igreja se apoiava era baseado em suposições falsas, ainda que muitos ritos fossem válidos em si. Acima de tudo, não existia sacerdócio supernatural, separado (e acima) do corpo principal da igreja por meio de ordenação sacramental e do celibato compulsório, com poder de realizar milagres como o da transubstanciação. A Bíblia apresentava um quadro bem diferente de como a igreja deveria ser, contudo, as pessoas comuns não sabiam disso porque não tinham acesso à Bíblia. Era, então, imperativo que a Bíblia fosse traduzida na língua falada, distribuída a quem soubesse ler e ensinada do púlpito nos cultos de domingo. A celebração da Ceia do Senhor não deveria ser abolida, mas, colocada em seu lugar como extensão da pregação da Palavra de Deus e como algo a que somente quem ouviu e recebeu a Palavra tinha acesso. A Missa medieval era cercada pelo que os luteranos consideravam práticas supersticiosas, tais como a restrição dos elementos consagrados, que eram tidos como o corpo e o sangue de Cristo. Essas práticas tinham de acabar, pois eram inconsistentes com a compreensão luterana da verdadeira natureza do sacramento. A autoridade da Bíblia foi invocada como o padrão que mediría as tradições do passado, por mais antigas e veneradas que fossem. A Bíblia cancelaria tudo o que Papas ou concílios dissessem em contradição a ela. Como o centro de autoridade estava cada vez mais concentrado na Bíblia, e somente nela, a igreja e suas práticas passaram a ser vistas com outros olhos. As tradições não bíblicas poderíam ser justificadas ou era necessário abandoná-las, fossem elas nocivas ou não? Quem decidiría o que seria mantido e o que deveria ser descartado? A instituição eclesiástica antiga podería ser reformada, ou seria necessário derrubar tudo e começar de novo? Essas foram as perguntas que emergiram quando as idéias de Lutero ganharam terreno, e elas determinaram a natureza e o desenvolvimento da Reforma. Acadêmicos debatem se houve um único movimento para mudança ou vários desenvolvimentos separados que levaram a diferentes reformas, em lugares diferentes. Se analisarmos os detalhes do que aconteceu, descobriremos que houve muitos tipos de reforma. Se tudo tivesse seguido o mesmo curso sob uma única liderança, teríamos
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hoje apenas uma Igreja Protestante, mas, o impulso pela reforma foi sentido de muitas maneiras, nem todas eram compatíveis entre si, e assim surgiram muitas igrejas diferentes, que às vezes competiam umas com as outras tanto quanto com Roma. A Igreja Católica também mudou em relação ao protestantismo. Tradicionalmente, essa reação era chamada de Contrarreforma, e em bora o nome fosse parcialmente verdadeiro, entendemos hoje que era uma reforma com vida própria. Pelo que via acontecer a seu redor, um católico idoso dos anos 1570 não teria reconhecido a igreja de sua juventude, mesmo cultuando ao lado de pessoas que garantiam ser herdeiras da tradição daquela igreja. Em 1517, tudo isso ainda jazia em um futuro incerto. Em pouco tempo, as teses de Lutero eram debatidas por toda a Europa Ocidental e, em Zurique, Ulrico Zuínglio foi encorajado a fazer um protesto pessoal contra a igreja e sua teologia sacramental. Zuínglio agiu inde pendentemente de Lutero, mas, na comoção geral do momento, os dois foram unidos no que seria uma associação desconfortável. Logo outras opiniões se fizeram ouvir, algumas apoiando Lutero e outras apoiando Zuínglio, e algumas não apoiando qualquer dos dois. Erasmo de Roterdã era o intelectual típico. Crítico severo do Papa, de início Erasmo deu suporte ao protesto de Lutero na esperança de que ele levasse à reforma genuína. No entanto, ao perceber que Lutero não era simplesmente um reformador moral, mas que propunha uma teologia da graça diferente da sua, Erasmo mudou seu discurso e passou a atacá-lo. Lutero respondeu à altura e com isso distinguiu sua reforma do humanismo, que era bem-intencionado, mas, teologicamente fraco e que havia se tornado popular nos círculos acadêmicos. 19 Lutero foi intimado pelo imperador a explicar sua posição diante do Parlamento alemão, ou Dieta, como era chamado, e contra o parecer de alguns seguidores, ele concordou. A reunião subsequente se tornou lendária, e, como resultado, os fatos ficaram obscuros, mas, seja lá o que aconteceu de verdade, Lutero saiu da reunião ainda mais 19 Os
dois panfletos foram publicados juntos em E. E Winter (Org.), Erasmus and Luther: Discourse on Free Will (Londres: Continuum, 2007). Veja também M. Luther, The Bondage of the Will, trad. J. I. Packer e O. R. Johnston (Londres: James Clarke, 1957).
determinado a defender sua posição. O imperador lhe havia prometído salvo-conduto, mas, depois da reunião com o Parlamento, Lutero foi considerado persona non grata, e seu futuro imediato ficou bastante incerto. Conhecedores do que havia acontecido a Jan Huss um século antes, os amigos de Lutero não perderam tempo. Eles o raptaram e esconderam no castelo de Wartburg durante três anos. Lutero passou esse tempo traduzindo a Bíblia para o idioma alemão e escrevendo panfletos defendendo sua posição. Quando foi solto, Lutero havia se tornadò herói nacional; por um momento, parecia que a Alemanha inteira iria segui-lo. Em desespero, o Papa Leão X buscou o apoio dos reis da Europa, mas, todos se negaram a ajudá-lo. A única exceção foi Henrique VIII da Inglaterra, que escreveu um tratado sobre os sete sacramentos no qual ameaçava Lutero, o que lhe rendeu o título de “defensor da fé”, título que seus descendentes ainda carregam. 20 Leão X excomungou Lutero em 1521, mas, já era tarde demais para impedir as ondas de protesto. Os anos seguintes foram de confusão. O imperador Carlos V era católico fiel e desejava preservar a unidade da igreja, mas, até ele reconheceu que o papado precisava de uma revisão completa. Sua solução foi reunir um concilio da igreja para lidar com a crise, mas, ao contrário do imperador do Leste um século antes, o imperador não podería fazer tal coisa sozinho. Ele necessitava da ação do Papa, porém Clemente VII (r. 1523-34), primo de Leão X, não mexeu um dedo. Em 1527, as tropas de Carlos V invadiram Roma e aprisionaram o Papa. Clemente se dobrou ao inevitável e concordou em aceitar as condições do imperador para ser solto, contudo, ele nunca conseguiu reunir o desejado concilio.21 Ao mesmo tempo, Henrique VIII solicitou que seu casamento com Catarina de Aragão, que era tia do imperador, fosse anulado com base no fato de ela ter sido casada com o irmão mais velho de Henrique. 22 Catarina apelou ao seu sobrinho, que deixou claro ao Papa que este não 20
O irônico é que a fé que defendem hoje não é a do Papa, mas, a de Lutero. 21 O concilio finalmente aconteceu em Trento, em 1554, e as reuniões ocorreram esporadicamente durante dezoito anos. 22 Arthur, o irmão em questão, havia morrido, e seu pai, Henrique VII, conseguiu aprovação especial do Papa para o casamento do segundo filho.
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podería cumprir o desejo de seu marido sem ofender profundamente toda a família Habsburgo. Vendo que não conseguiría o que desejava, Henrique começou a se afastar de Roma, e o afastamento total aconteceu em 1534. Entrementes, Lutero e seus seguidores haviam, a pedido do imperador, apresentado uma confissão de fé à Dieta alemã que se reuniu em Augsburgo em 1530. Foi nessa confissão que eles “protestaram” (i.e., “proclamaram”) sua fé, e quem assinasse a confissão seria conhecido como protestante. Era um reconhecimento de que a igreja imperial havia rachado ao meio e não voltaria a se unificar novamente tão cedo. A única pergunta agora era até onde o protestantismo iria e em que condições alcançaria um modus vivendi de longo prazo com a Igreja Católica.
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O
que é a igreja?
A DESUNIÃO DA IGREJA PÓS-REFORMA
O problema mais evidente que os reformados do século 16 tiveram de enfrentar foi que ao rejeitarem a autoridade papal desfizeram a união da igreja medieval. Em termos puramente institucionais, isso talvez não importasse muito, pois nunca aconteceu de todos os cristãos reconhecerem a supremacia de Roma, contudo, o protestantismo foi muito além disso. Os reformados não repudiaram somente a hierarquia tradicional, mas, também, o alicerce sobre o qual ela foi estabelecida. A declaração de fé que a igreja era “una, santa, católica e apostólica” foi mantida, e geralmente reiterada com vigor por teólogos protestantes, mas, a frase adquiriu outro teor. Mais ainda, nem todos se afastaram de Roma do mesmo modo ou pelas mesmas razões, assim, a natureza dessa diferença variava entre os grupos protestantes. Ao mesmo tempo, todos os partidos dessa disputa insistiam em afirmar que havia (e só poderia haver) uma igreja. Como conciliar essa doutrina com a realidade da divisão?
Reforma conservadora Houve três respostas básicas a essa pergunta. A primeira era conservadora e reacionária em intenção, mas, quase sempre radical na prática, pois buscava sustentar as organizações tradicionais da igreja medieval justificando-as frente às críticas. Embora nem sempre estivessem unidos em estratégia ou intenção, aqueles que escolhiam esse caminho permaneciam na Igreja Católica para melhor influenciar sua política. Algumas dessas pessoas, tais como Reginald Pole (1500-1558)
ou Giovanni Morone (1509-80), eram relativamente solidárias com Lutero e poderíam ser consideradas “liberais”. Pole e Morone se tornaram cardeais e tiveram papel de destaque nas primeiras tentativas de alcançar terreno comum com os protestantes, mas, com o passar do tempo e o endurecimento das posições, eles acabaram sendo afastados. Pole foi ser arcebispo de Canterbury e reconciliou brevemente a Inglaterra com o papado durante o reinado da Rainha Maria, e Morone se tornou um dos homens mais influentes de Roma, mesmo nos bastidores. Mas, o fato de os dois terem sido acusados de ser luteranos às ocultas foi sintomático da atmosfera ali reinante em 1557. Pole estava na Inglaterra e longe do perigo, contudo, Morone foi preso, e acredita-se que o acontecimento lhe custou o papado nove anos depois! 1 No fim, a ala liberal da Igreja Católica foi ofuscada por um ultraconservadorismo ressurgente, encabeçado por Inácio de Loyola (14911556). Loyola foi um soldado espanhol que se converteu enquanto convalescia de um ferimento de guerra, e achou que o Papa precisava de um exército de homens inteiramente leais a ele. Loyola fundou a Sociedade de Jesus, uma nova ordem missionária que se dedicava a promover a causa da Igreja Católica e a supremacia papal. Os jesuítas, como eram chamados os membros dessa ordem, tornaram-se tutores e confessores da nobreza europeia e usavam sua influência para instilar uma forma mais severa da fé tradicional nos corações e mentes a seus cuidados. Em pouco tempo, os jesuítas passaram a ser temidos em todo 0 mundo protestante, pois eram reconhecidos como os proponentes mais eficientes da antiga religião. Os jesuítas eram a tropa de choque da Contrarreforma Católica, contudo, sua visão era mais ampla. Além de estarem determinados a resgatar do protestantismo o maior número possível de almas, também se dedicaram a missões além-mar. As conquistas e explorações dos portugueses e espanhóis acrescentaram novos e vastos territórios às suas respectivas coroas, e a igreja não perdeu tempo em se juntar às expedições e embarcar na obra missionária. Fosse no México ou na índia, os missionários jesuítas estavam na vanguarda 1
Morone é pouco conhecido no mundo de fala inglesa, mas, foi publicado recentemente um bom estudo sobre Pole. Veja T. F. Mayer, Reginald Pole: Prince and Prophet (Cambridge: Cambridge University Press, 2000).
da expansão, e mais pessoas se tornaram católicas no século 16 do que saíram da igreja para se juntar à causa protestante. Para aqueles que continuaram no rebanho católico depois da Reforma, estar em comunhão com o Papa era
prova da ortodoxia.
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Talvez fosse possível manter todas as doutrinas da Igreja Católica e até celebrar suas liturgias, como Henrique VIII fez após se desligar da igreja, porém isso não bastava. Henrique foi considerado protestante, não porque acreditasse em alguma doutrina protestante em particular, mas, porque não tinha comunhão com o Papa. Isso, e apenas isso, era o índice que servia de medida para todas as outras coisas.
Reforma pragmática A segunda resposta era favorecer uma reforma pragmática, lidando com alguns abusos específicos e reestruturando o que fosse considerado necessário. Em essência, foi isso o que aconteceu na Alemanha, Escandinávia e Inglaterra, onde a estrutura da igreja medieval era geralmente deixada intacta e as mudanças eram principalmente teológicas. Onde os governantes seculares tinham influência sobre a igreja, como na Inglaterra, por exemplo, eles geralmente controlavam a indicação dos altos funcionários e cuidavam para que qualquer lei estabelecida pela igreja fosse submetida à aprovação deles, porém deixavam mais ou menos intocado o padrão existente. No caso da Inglaterra, isso significava que muitos dos exageros dos quais os reformados reclamaram não sofreram mudança nenhuma. Os padres ausentes continuavam ausentes, e a educação do clero era esporádica. Até mesmo o culto público sofreu pouca mudança de início; foi somente quinze anos depois do desligamento de Roma que os cultos passaram a ser feitos em inglês, e não não mais em latim. Na Alemanha houve mais mudanças nesse aspecto, contudo, os direitos e privilégios foram mantidos, incluindo os dos bispos. Quando um bispo se tornava protestante, por exemplo, sua diocese geralmente era secularizada e seu cargo era ocupado pelo líder local em vez de ser abolido imediatamente. Em nível inferior, tribunais da igreja, o sistema de dízimo, e outras questões parecidas permaneceram intactas, de modo que a igreja institucional continuou a funcionar mais ou menos como antes.
Os apoiadores mais importantes de Martinho Lutero foram os príncipes alemães que se alarmaram com a possibilidade de a Casa de Habsburgo se apoderar do Santo Império Romano. Para eles, ter uma igreja desligada de Roma era vantajoso, pois enfraquecia o Estado central e dava-lhes a autonomia que cobiçavam. Alguns deles eram seguidores genuínos da teologia de Lutero, porém isso não era prioridade. Eles queriam ficar livres do Papa, menos amarrados ao imperador, e controlar com firmeza as questões religiosas dos territórios que governavam. Para tanto, apoiavam (e até impunham) uniformidade religiosa dentro de seus domínios, mas, claro, não tinham controle sobre o que acontecia em outras jurisdições. Com isso, a união da igreja ficou cerceada pela influência do Estado, o que resultou em quase tantas igrejas separadas quantos eram os governantes seculares. Mesmo quem afirmava ser luterano não seguia necessariamente a mesma ordem eclesiástica, pois cada governante era livre para impor o sistema que desejasse. Enquanto Lutero estava vivo, ele exercia alguma influência no modo de as coisas se desenvolverem, mas, depois de sua morte, não apareceu ninguém da mesma envergadura, e o protestantismo rapidamente adquiriu algo da variedade eclesiástica com a qual estamos familiarizados hoje. 2 Os reformados pragmáticos, ou “magisteriais”, assim chamados porque trabalhavam ao lado do magisterium (governo secular) e em harmonia com ele, nunca conseguiram escapar das garras do governo. Uma razão é que eles dependiam da proteção do Estado. É quase certo que Lutero teria sido queimado vivo como Jan Hus se os príncipes não o tivessem socorrido, e sem o apoio deles o protestantismo nunca teria se estabelecido. Em 1555, Carlos V finalmente concordou em que cada governante alemão escolhesse a religião que seu território iria seguir, adotando o princípio conhecido como cuius regio eius religio um reconhecimento formal de que era direito do Estado determinar o tipo de igreja dentro de suas fronteiras. 2
Para estudos recentes sobre essa situação, veja J. Whaley, Germany and the Holy Roman Empire 1493-1806, 2 vols. (Oxford: Oxford University Press, 2012); e P.
H: Wilson, Europe’s Tragedy: A New History of the Thirty Years War (Londres: Allen Lane, 2009).
A Paz de Augsburgo, como o acordo de 1555 foi chamado, tentou resolver o problema da Reforma aceitando-a onde ela já havia se estabelecido e mantendo-a dentro desses limites. Como a Reforma continuava se expandindo e diversificando, esse acordo não satisfazia as pessoas por muito tempo, e mesmo depois de promulgado, os pro blemas foram significativos logo de início. Um deles era concernente aos territórios eclesiásticos do império, que em teoria pertenciam aos bispos que estivessem em comunhão com Roma. Porém, no caos que antecedeu 1555, vários territórios foram ocupados por governantes protestantes seculares que se negavam a abrir mão deles. A solução não oficial foi o imperador reconhecer esses governantes protestantes como “administradores” em vez de bispos, um acordo estranho e insatisfatório que plantou as sementes de problemas futuros. Uma dificuldade parecida ocorreu com os monastérios e outras casas religiosas que foram tomadas pelos protestantes: eles deveríam retornar aos seus donos originais ou não? Havia ainda a questão das minorias: católicos em territórios luteranos e vice-versa. Como era de se esperar, frente a suas respectivas pressuposições, os católicos queriam expulsar os dissidentes sem compensações, mas, ao ver dos luteranos, eles deveríam ser tolerados ou ter permissão para emigrar legalmente. O imperador, que era católico, ficou em uma situação difícil porque, embora devesse ser um juiz imparcial das discórdias, ele estava determinado a reprimir todas as formas de protestantismo em suas terras hereditárias, incluindo aquelas onde os protestantes eram a maioria da população. Em geral, a maioria dos súditos do império permanecu católica, porém a maioria de seus príncipes subordinados se tornou protestante. Havia uma possibilidade crescente de que eles viessem a dominar o Parlamento alemão (Dieta), e até mesmo escolher um protestante como imperador, o que quase aconteceu em 1618. Mas, outra questão que a paz não resolveu foi a natureza do fenômeno conhecido como “protestantismo”. Oficialmente, esse termo incluía todas as pessoas que aprovavam a Confissão de Augsburgo (Confessio Augustana) de 1530, entretanto, muitos protestantes haviam deixado a Confissão para trás e tornaram-se mais radicais. Governantes seculares
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que tomaram essa direção foram tolerados na prática, mas, não em princípio e suas posições no longo prazo eram precárias. Os católicos não queriam saber deles, claro, assim como os luteranos “autênticos” (ou gnesio-), para quem esses radicais haviam passado dos limites. Alguns lugares se tornaram protestantes depois de 1555, especialmente nos Países Baixos, que formalmente ainda eram províncias do império. Nenhuma provisão foi feita para eles, que tiveram de lutar por seus direitos, como os holandeses fizeram por mais de duas gerações. Na Alemanha, portanto, a paz de 1555 plantou as sementes de conflitos futuros, que a seu tempo germinaram e deram frutos. A paz religiosa foi bem-sucedida em definir o protestantismo de acordo com uma confissão de fé em que seus adeptos expuseram as doutrinas que os diferenciavam dos outros. Esse tipo de confissão era até então inexistente, mas, se tornou uma característica das igrejas protestantes. Via de regra, essas confissões eram iniciadas com um breve resumo das crenças básicas da igreja cristã como um todo, e uma referência particular a quaisquer pontos em que talvez discordassem do consenso. Crer em Deus, na Trindade, na divindade de Cristo e na inspiração das Escrituras eram crenças comuns a praticamente todos os cristãos, assim, as confissões raramente eram detalhadas a respeito delas. As doutrinas sobre salvação, igreja, ministério, sacramentos e relacionamento com o Estado eram muito mais importantes. O caminho da salvação diferenciava os protestantes dos católicos, mas, em outros assuntos, os diferentes grupos protestantes provavelmente discordavam entre si tanto quanto de Roma ou das igrejas do Leste. 3 A Reforma Inglesa era ainda mais dependente do Estado que a alemã; mas, porque a Inglaterra era bem mais centralizada que o Santo Império Romano, o resultado foi bem diferente. No início, o rei Henrique VIII (r. 1509-47) havia apoiado o Papa contra Lutero, mas, terminou seu relacionamento com o papado por causa da anulação de seu casamento com Catarina de Aragão. Oficialmente, o Papa se 3
E preciso dizer que poucos (ou nenhum) protestantes consideravam as perspectivas das igrejas do Leste ao elaborar suas doutrinas. Por outro lado, alguns estavam dispostos a se unir ao Leste contra o Papa, um inimigo comum. Para saber mais sobre essas tentativas, veja S. Runciman, The Great Church in Captivity (Cambridge: Cambridge University Press, 1968).
recusou a conceder a anulação por razões teológicas, mas, na verdade fez isso porque era prisioneiro do sobrinho de Catarina, o imperador Carlos V. Assuntos políticos forçaram Henrique VIII a fazer aliados entre os príncipes protestantes da Alemanha, contudo, o rei não tinha interesse em reformar a Igreja Anglicana em aspecto algum parecido com o protestantismo. Então, ele se coroou governante supremo da igreja e concedeu ao arcebispo de Canterbury os poderes papais que ele, como leigo, não poderia atribuir a si mesmo. No entanto, todos sabiam quem estava no controle, e a Igreja Anglicana mudou apenas no que Henrique permitiu. No final de seu reinado, havia uma Bíblia vernacular, poucas orações em inglês, e algumas, cartilhas teológicas para a instrução dos leigos, e só. Inicialmente essas cartilhas pendiam na direção do protestantismo, pois foram escritas por teólogos influenciados pelos luteranos, mas, Henrique VIII, ao perceber isso, interrompeu o projeto e até reescreveu parte do material, para que a igreja continuasse a mais conservadora e “católica” possível.4 Henrique foi sucedido por seu filho Eduardo VI (r. 1547-53), de nove anos. Como ele era menor de idade, um conselho regente governou em seu lugar. Isso permitiu que Thomas Cranmer, arcebispo de Canterbury, iniciasse uma reforma verdadeira da igreja, o que ele conseguiu introduzir em boa parte porque não havia ninguém com autoridade suficiente para impedi-lo. Mas, quando Eduardo foi sucedido por sua irmã católica, Maria I (r. 1553-58), a Inglaterra voltou para o aprisco romano, com a bênção do Parlamento. 5 Cranmer e alguns colegas foram presos e acabaram mortos por ordem da rainha, dando origem ao apelido de “bloody Mary” [Maria sangrenta], mas, quando foi sucedida por sua irmã, Elizabeth I (r. 1558-1603), o protestantismo de Eduardo VI foi restaurado. Durante esse processo todo, a vontade 4
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Veja R. McEntegart, Henry VIII, the League of Schmalkalden, and the English Reformation (Woodbridge: Boydell & Brewer, 2002); A. Ryrie, The Gospel and Henry VIII: Evangelicals in the Early English Reformation (Cambridge: Cambridge University Press, 2003). Recomendamos também, apesar de, infelizmente, manchado pelo veneno verbal contra outros estudiosos da área, G. W Bernard, The King’s Reformation: Henry VIII and the Remaking of the English Church (New Haven: Yale University Press, 2007). Para uma avaliação recente e criteriosa sobre Maria I, veja J. Edwards, Mary /(New Haven: Yale University Press, 2011).
prevalecente era a do governante, uma vontade assegurada por vários “atos de uniformidade” que eram aprovados pelo Parlamento a pedido do monarca.6 Assim como nos principados alemães os cidadãos eram obrigados a cultuar da mesma forma, e participar dos cultos se tornou compulsório como método de checar a obediência da população. Quem ainda era solidário ao papado tinha de encobrir seus sentimentos, especialmente depois que Elizabeth foi excomungada pelo Papa em 1570. 7 Na Irlanda, que teoricamente estava sob o governo inglês, mudar de religião nunca foi seguro; no fim do reinado de Elizabeth, somente uma pequena porcentagem da população irlandesa havia se tornado protestante. Houve várias tentativas, incluindo a formação de uma faculdade teológica protestante em Dublin e o estabelecimento de grandes grupos de protestantes ingleses e escoceses em diferentes regiões do país, mas, principalmente no Nordeste, onde se tornaram (e continuaram a ser) a maioria da população. A história subsequente do país, onde o protestantismo sempre foi associado ao domínio britânico e o catolicismo associado à resistência a mudança, tem suas raízes nessa época. 8 Esse padrão se repetiu com pequenas variações em todos os cantos da Europa Ocidental. Os países que permaneceram católicos aboliram todas as formas, de culto protestante, e os países protestantes fizeram o mesmo em reverso. A maioria da população não tinha muita escolha, e ser membro da igreja dependia mais da nacionalidade e lealdade política e menos de doutrinas específicas, por mais que teólogos e vozes oficiais das igrejas enfatizassem as doutrinas em detrimento da nacionalidade e da política. Em um mundo ond e.,por definição, todos os portugueses eram católicos e todos os suecos eram protestantes, como esperar outro resultado? 6
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Os textos desse e de outro material relacionado à reforma inglesa são encontrados em G. L. Bray, Documents of the English Reformation, 2. ed. (Cambridge: James Clarke, 2004). Para um bom, mas, pouco conhecido estudo da sustentação teórica da igreja anglicana nessa época, veja H. F. Woodhouse, The Doctrine of the Church in Anglican Theology, 1547-1603 (Londres: SPCK, 1954). Veja A. Walsham, Church Papists (Woodbridge: Boydell, 1993). Veja M. Tanner, Ireland’s Holy Wars: The Struggle for a Nation’s Soul, 1500-2000 (New Haven: Yale University Press, 2001); A. Ford, The Protestant Reformation in Ireland, 1590-1641 (Dublin: Four Courts Press, 1997).
Reforma radical
A terceira reação às divisões da Reforma foi mais radical. Ela veio de quem achava que as estruturas tradicionais eram corruptas demais para serem reformadas, ou não eram bíblicas e, portanto, deveríam ser abolidas com base em princípios. O objetivo dessas pessoas era reconstruir a igreja de acordo com o Novo Testamento, o que, segundo elas, era possível com base no estudo cuidadoso de evidências. A maioria dos sistemas eclesiásticos e administrativos desenvolvidos nessa base tinha algum apoio bíblico, mas, nenhum argumento era totalmente persuasivo. Assim, as igrejas que escolhiam a terceira opção ficavam sujeitas a subdivisões, porque nenhum grupo convencia os outros de que sua interpretação do Novo Testamento era visivelmente superior à de quem quer que fosse. A tentativa mais bem-sucedida de reconstruir pelas doutrinas primordiais foi feita pelas igrejas de Reformadas ou Presbiterianas. Elas seguiam o vino (1509-64), que foi basicamente conservador
a igreja começando que hoje chamamos ensino de João Calem sua maneira de
adaptar o modelo existente de igreja ao que ele via como exigência das Escrituras. A essência de sua eclesiologia era a crença na liderança coletiva, fundamentada no princípio de que o Novo Testamento não fazia diferença entre bispos e presbíteros e que as primeiras igrejas foram dirigidas por mais de uma pessoa. No entanto, Calvino não descartou todas as formas de presidência, e dessa maneira uma igreja reformada podería integrar bispos no sentido medieval do termo, mas, com status e função reduzidos. Ele também acreditava que a igreja tinha de ser independente do Estado e, então, ser livre para governar a si mesma; entretanto, Calvino não fez objeção a uma igreja oficial estabelecida pelo Estado, desde que fosse livre para agir como a consciência da sociedade e não ficar subordinada a líderes seculares e suas vontades. A eclesiologia de Calvino exerceu influência especialmente nas cidades-estados e territórios do Santo Império Romano que possuíam o que chamamos hoje de forma de governo “republicano”. Antes da Reforma, Genebra, onde Calvino morava, era governada por seu bispo, que foi deposto em 1532, e coube à câmara municipal a responsabilidade de decidir qual seria a profissão de fé da cidade. Ela escolheu
uma forma de protestantismo, mas, quando Calvino apareceu alguns anos depois e tentou impor uma disciplina eclesiástica mais severa que a tolerada pelos vereadores, estes o expulsaram da cidade, e só o convidaram a voltar quando a igreja rumava para o anarquismo. Calvino retornou em 1541, mas, apesar de sua enorme reputação como líder e reformador da igreja, ele teve de lutar contra a câmara municipal pelo resto da vida. Com frequência, João Calvino é culpado pela execução judicial de Michael Servetus (1511P-1553), um herege antitrinitariano, porém a verdade é que a câmara municipal sentenciou Servetus à morte e Calvino tentou mitigar a sentença, mas, fracassou. 9 As dificuldades de Calvino em Genebra refletem os problemas fadados a acontecer quando um reformado colocava princípios teológicos acima das políticas práticas. A ideia de que alguém poderia usufruir de liberdade de consciência em um Estado oficialmente comprometido com uma forma específica de cristianismo estava além da compreensão da maioria das pessoas daquela época. Caso suas crenças fossem verdadeiras, então, se desviar delas não tinha cabimento na sociedade e certamente seria prejudicial tolerar desvios sem o devido castigo. Mesmo assim, existem evidências de que as igrejas reformadas eram menos intolerantes que as outras. A crença de que a união da igreja era espiritual, não visível, e que os verdadeiros cristãos reconheceríam uns aos outros, quer partilhassem ou não as mesmas expressões exteriores da fé, capacitava-as a aceitar pessoas que divergissem delas, desde que as divergências fossem aceitáveis. Para os reformados, o culto deveria ser na linguagem falada pelo povo e a igreja deveria ser organizada pelos países individualmente e de acordo com seus costumes, portanto, em geral, as igrejas estavam preparadas para aceitar estrangeiros mais ou menos como eram. Assim, descobrimos que já no reinado de Eduardo VI, a Inglaterra protestante concedia refúgio aos protestantes do continente sem obrigá-los a se submeterem ao culto e à ordem da Igreja Anglicana. Homens como Martin Bucer (1491-1551) e Peter Martyr Vermigli (1499-1562) receberam cargos universitários e permissão para ensinar teologia sem terem de se tornar membros da igreja nacional. De modo 9
Veja B. Gordon, Calvin (New Haven: Yale University Press, 2009), p. 217-32.
semelhante, cidades como Frankfurt e Genebra abriram as portas para súditos ingleses que fugiam da perseguição da rainha Maria I sem investigar suas crenças e práticas. Bastava-lhes que os refugiados partilhassem da mesma visão do evangelho e da igreja. Essa generosidade, claro, tinha limites. Em Londres, um francês podia se unir à igreja francesa, que era alinhada com Genebra, e ser bem aceito por todos. Mas, se um inglês defendesse o mesmo tipo de governo eclesiástico para seu povo, ele estaria encrencado com as autoridades, pois ia contra a lei do país. Tolerância aos compatriotas com crenças divergentes demorou a chegar. Mesmo entre os reformados, ela foi resultado mais da necessidade do que da convicção genuína, pelo menos no início. Nos Países Baixos, por exemplo, a revolta contra a Espanha, que durou de 1566 a 1648, foi orientada e dirigida por calvinistas, que eram minoria na po pulação e tinham, assim, de tolerar pessoas com idéias diferentes para conseguir apoio para a guerra. Quando a luta acabou, essas pessoas haviam conquistado alguns direitos e foram aceitas como residentes do país, mas, não tinham direito de votar nem ter cargos no governo. Nesse aspecto, os Países Baixos seguiram o princípio estabelecido por Calvino em Genebra, onde o governo civil era independente da igreja, contudo, apenas membros da igreja podiam participar dele. 10 O estilo de igreja reformada adotado por Calvino foi bem-sucedido na França, contudo, nunca foi forte o bastante para dominar o país. Na verdade, o país foi mergulhado em uma geração de guerras religiosas, que acentuaram as diferenças entre católicos e protestantes e impossi bilitaram qualquer acordo. Em 1589, um acidente dinástico colocou o protestante Henrique IV no trono, mas, os parisienses não permitiram que entrasse na cidade caso não se convertesse ao catolicismo. Após quatro anos de hesitação, ele se converteu, mas, logo em seguida, conferiu aos protestantes um grau limitado de tolerância oficial; essa foi a primeira ve2 que um país europeu fez tal coisa. Os católicos tiveram de engolir a situação, por mais desgostosos que estivessem, e durante um tempo os protestantes administraram o que foi quase um país dentro do país. Infelizmente, tolerância era uma ideia avançada para seu tempo 10 Para
saber mais sobre o assunto, veja J. Israel, The Dutch Republic. Its Rise, Greatness,
and Fall, 1477-1806 (Oxford: Oxford University Press, 1995).
e se mostrou impraticável no contexto francês. Os privilégios foram diminuindo gradualmente até que, em 1685, os protestantes foram forçados a se tornar católicos, ou receberíam a pena de expulsão. Muitos preferiram o exílio e rumaram para países protestantes do norte, onde se uniram a igrejas locais estabelecidas, contudo, mantiveram sua identidade francesa durante muitas gerações. Nesse ínterim, discórdias dentro da Igreja Reformada Holandesa forçaram as autoridades seculares a convocar um sínodo, com o pro pósito de definir o que era de verdade o cristianismo reformado. O concilio se reuniu em Dordrecht (Dort) no inverno de 1618-19 e foi a única ocasião antes dos tempos modernos em que protestantes de toda a Europa se juntaram para estabelecer uma base de união entre si. Os protestantes franceses não tiveram permissão de seu governo para participar do sínodo; a delegação britânica, porém, causou uma impressão geral profundamente favorável - a primeira, e até agora a última vez que teólogos britânicos usufruíram tal influência no cenário internacional.11 Dort foi um sínodo holandês, e suas decisões não foram formalmente adotadas em outros países, mas, conseguiram articular uma posição teológica reformada, e nesse aspecto ainda têm papel im portante hoje. Foram especialmente influentes na Grã-Bretanha, apesar de a Inglaterra e a Escócia nunca as terem reconhecido oficialmente. As razões para isso eram complexas. Quando a rainha Elizabeth I restabeleceu uma Igreja Protestante em 1559, ela também proveu o reformador escocês João Knox (1514?-1572) com um exército que podería ajudá-lo a tomar posse de sua terra natal. Knox era radical demais para o gosto de Elizabeth, contudo, ele era confiavelmente protestante e em 1560 conseguiu persuadir o Parlamento escocês a votar a favor da Reforma. Ao contrário do que muita gente pensa, Knox não aboliu o sistema eclesiástico católico, todavia, modificou-o de modo a permitir uma administração mais participativa. II 12 Depois de II
Veja A. Milton, The British Delegation and the Synod of Dort (Woodbridge: Boydell & Brewer, 2005).
12
Veja A. Ryrie, The Origins of the Scottish Reformation (Manchester: Manchester Uni-
versity Press, 2006); G. Donaldson, The Scottish Reformation (Cambridge: Cambridge University Press, 1960).
4
sua morte, um movimento presbiteriano se tornou muito influente, porém um episcopado residual conseguiu sobreviver. Quando James VI (r. 1567-1625) foi coroado rei da Inglaterra, em 1603 (como James I), a população em geral achou que ele introduziría um sistema parecido de governo eclesiástico. A rainha Elizabeth I havia mantido o sistema episcopal, embora não ligasse muito para os bispos. James, por outro lado, era politicamente fraco na Inglaterra e, portanto, considerava os bispos aliados do seu governo. Em vez de introduzir um formato escocês de governo eclesiástico na Inglaterra, ele decidiu fazer o oposto: levar a igreja escocesa a se moldar à inglesa. James entendia os escoceses e conhecia suas limitações, assim nunca pressionou sua pauta além do que os escoceses aguentariam, e nas raras ocasiões em que fez isso, ele retrocedeu rapidamente diante da oposição. Seu filho, Carlos I (r. 1625-49), era menos habilidoso nesse sentido e ainda menos diplomático. Ele era atraído pela estética da religião, mas, embora fosse sincero na fé, não era teólogo como seu pai. A impressão, então, era que ele promovia uma forma de culto católico sem nenhum zelo correspondente pela teologia reformada. Quando o Parlamento se opôs, Carlos o destituiu. Quando a Escócia se revoltou contra suas políticas, ele atacou o país e tentou forçar-lhe goela abaixo seus pontos de vista. Pior ainda, tentou provocar os católicos irlandeses com promessas de tolerância que ele não podia cumprir, uma política insensata que apenas convenceu os ingleses de que ele estava a ponto de enviar o exército irlandês contra eles com o objetivo de forçar suas idéias quanto ao culto e a liderança da igreja. No fim, os escoceses aboliram o episcopado de uma vez, e os ingleses enfurecidos juntaram-se a eles em uma revolta. A seguir, estourou uma guerra civil, e um de seus principais motivos foi decidir como a igreja seria governada e qual seria seu relacionamento com o Estado. Quando a guerra começou, o Parlamento inglês convocou uma assembléia em Westminster com o único propósito de estabelecer uma igreja reformada para os três reinados: Inglaterra, Escócia e Irlanda. 13 Os escoceses estavam em vantagem porque seus representantes, apesar 13 Veja
C. Van Dixhoorn (Org.), The Minutes and Papers of the Westminster Assembly,
1643-1652, 5 vol. (Oxford: Oxford University Press, 2012).
de em menor número, eram unidos na defesa do presbiterianismo e tinham um exército a apoiá-los. Em pouco tempo, os ingleses foram obrigados a aceitar a perspectiva escocesa de uma igreja reformada, e a Assembléia de Westminster acabou criando uma igreja de acordo com ela. O notável, porém, é que sua confissão se esquivou de questões de governo eclesiástico, o que tornou possível sua aceitação por uma diversidade de cristãos reformados. Em pouquíssimo tempo, essa confissão de fé se tornou referência do protestantismo reformado inglês, e sua influência se espalhou por todos os cantos. Até os congregacionalistas e batistas aceitaram a maior parte da confissão, e suas próprias confissões apresentavam modificações relativamente pequenas em relação a ela. 14. Infelizmente, alguns ingleses presentes ficaram menos convencidos, e o grupo dos contrários no Parlamento, uma vez organizado, foi liderado por homens que faziam oposição cerrada aos presbiterianos em questões eclesiológicas. Eles favoreciam o congregacionalismo, ou “independência”, como era chamado na época. Isso deu às igrejas locais o direito de estruturar sua forma de ministério e culto, desde que aderissem às linhas gerais da teologia reformada. Alguns ingleses membros da assembléia gostariam de manter os bispos, contudo, o episcopado andava tão desacreditado diante das políticas de Carlos I que não havia esperança nenhuma de isso acontecer. Em 1649, o rei foi condenado à morte, o episcopado foi abolido, e uma forma pres biteriana de política eclesiástica foi estabelecida, pelo menos no papel. Contudo, o exército não queria aplicar a lei, e o congregacionalismo se tornou a opção padrão em prática, se não em teoria. Isso resultou em luta entre ingleses e escoceses, e os primeiros venceram sem muito esforço. Quando a guerra civil terminou, a igreja estava livre de seus mestres tradicionais, e a liberdade de expressão era quase total — a não ser para católicos, episcopais e presbiterianos escoceses, que se recusavam a aceitar a abolição da monarquia. Apesar dessas limitações, os vitoriosos foram notavelmente tolerantes para a época em que viviam. Batistas, quakers, e muitos outros grupos que depois desapareceram, tiveram permissão para expressar 14
Issó é especialmente verdade em relação à Segunda Confissão de Londres (Batista), de 1689 e da Confissão da Filadélfia, de 1742.
mais ou menos livremente suas idéias, e a população se acostumou a formar suas próprias opiniões em questões teológicas. Naturalmente, era impossível conduzir uma igreja nacional em bases tão caóticas, e a tentativa logo se despedaçou. Em 1660, um general presbiteriano escocês convidou o rei Carlos II (r. 1660-85) a reconquistar seu trono, e a antiga ordem foi reestabelecida. Os dissidentes do episcopado foram expulsos da igreja e perseguidos - tanto na Escócia quanto na Inglaterra. Isso durou mais de vinte anos, até que o pesadelo que todos temiam aconteceu. O trono foi herdado pelo irmão de Carlos II, James II (VII da Escócia) (r. 1685-88), que havia se tornado católico em 1673. Não existia lei que o impedisse de subir ao trono, embora o Parlamento inglês tenha se empenhado em aprovar uma enquanto havia tempo, mas, sem sucesso. James II se declarava favorável à tolerância religiosa, mas, todos sa biam que a declaração era um jeito de restaurar o catolicismo — a forma mais intolerante do cristianismo ocidental - pela porta dos fundos. Ele acabou sendo afastado, e seu genro, o duque William de Orange, se tornou rei com o nome de William III (r. 1689-1702). William introduziu a forma holandesa de tolerância em seus novos reinos. Os protestantes dissidentes tiveram permissão para cultuar livremente, os católicos ficaram excluídos de participar da política e as igrejas estabelecidas (episcopal na Inglaterra e presbiteriana na Escócia) foram bastante encorajadas a serem tão flexíveis em questões teológicas quanto possível. 15 Essa política sofreu oposição, claro, mas, sem sucesso. A eclesiologia reformada se mostrou capaz de acomodar diferentes tipos de política eclesiástica dentro de um único Estado sem sacrificar o princípio de uma igreja nacional. A partir de então, a exclusão da Igreja Luterana ou da Igreja Escocesa seria reservada apenas para as pessoas que desejassem abandoná-las, e não para os dissidentes, embora regras mais rigorosas continuassem a ser aplicadas ao clero, pregadores e membros de universidades, o que não causou estranheza. 15 Na
Irlanda, a igreja estabelecida era episcopal, contudo, os presbiterianos receberam reconhecimento e um subsídio do governo para seu clero. Os católicos, porém, eram duramente descriminados, pelo menos no papel, embora formassem a maioria da população.
de em menor número, eram unidos na defesa do presbiterianismo e tinham um exército a apoiá-los. Em pouco tempo, os ingleses foram obrigados a aceitar a perspectiva escocesa de uma igreja reformada, e a Assembléia de Westminster acabou criando uma igreja de acordo com ela. O notável, porém, é que sua confissão se esquivou de questões de governo eclesiástico, o que tornou possível sua aceitação por uma diversidade de cristãos reformados. Em pouquíssimo tempo, essa confissão de fé se tornou referência do protestantismo reformado inglês, e sua influência se espalhou por todos os cantos. Até os congregacionalistas e batistas aceitaram a maior parte da confissão, e suas próprias confissões apresentavam modificações relativamente pequenas em relação a ela. 14. Infelizmente, alguns ingleses presentes ficaram menos convencídos, e o grupo dos contrários no Parlamento, uma vez organizado, foi liderado por homens que faziam oposição cerrada aos presbiterianos em questões eclesiológicas. Eles favoreciam o congregacionalismo, ou “independência”, como era chamado na época. Isso deu às igrejas locais o direito de estruturar sua forma de ministério e culto, desde que aderissem às linhas gerais da teologia reformada. Alguns ingleses membros da assembléia gostariam de manter os bispos, contudo, o episcopado andava tão desacreditado diante das políticas de Carlos I que não havia esperança nenhuma de isso acontecer. Em 1649, o rei foi condenado à morte, o episcopado foi abolido, e uma forma pres biteriana de política eclesiástica foi estabelecida, pelo menos no papel. Contudo, o exército não queria aplicar a lei, e o congregacionalismo se tornou a opção padrão em prática, se não em teoria. Isso resultou em luta entre ingleses e escoceses, e os primeiros venceram sem muito esforço. Quando a guerra civil terminou, a igreja estava livre de seus mestres tradicionais, e a liberdade de expressão era quase total — a não ser para católicos, episcopais e presbiterianos escoceses, que se recusavam a aceitar a abolição da monarquia. Apesar dessas limitações, os vitoriosos foram notavelmente tolerantes para a época em que viviam. Batistas, quakers, e muitos outros grupos que depois desapareceram, tiveram permissão para expressar 14 Isso
é especialmente verdade em relação à Segunda Confissão de Londres (Batista), de 1689 e da Confissão da Filadélfia, de 1742.
mais ou menos livremente suas idéias, e a população se acostumou a formar suas próprias opiniões em questões teológicas. Naturalmente, era impossível conduzir uma igreja nacional em bases tão caóticas, e a tentativa logo se despedaçou. Em 1660, um general presbiteriano escocês convidou o rei Carlos II (r. 1660-85) a reconquistar seu trono, e a antiga ordem foi reestabelecida. Os dissidentes do episcopado foram expulsos da igreja e perseguidos — tanto na Escócia quanto na Inglaterra. Isso durou mais de vinte anos, até que o pesadelo que todos temiam aconteceu. O trono foi herdado pelo irmão de Carlos II, James II (VII da Escócia) (r. 1685-88), que havia se tornado católico em 1673. Não existia lei que o impedisse de subir ao trono, embora o Parlamento inglês tenha se empenhado em aprovar uma enquanto havia tempo, mas, sem sucesso. James II se declarava favorável à tolerância religiosa, mas, todos sa biam que a declaração era um jeito de restaurar o catolicismo — a forma mais intolerante do cristianismo ocidental - pela porta dos fundos. Ele acabou sendo afastado, e seu genro, o duque William de Orange, se tornou rei com o nome de William III (r. 1689-1702). William introduziu a forma holandesa de tolerância em seus novos reinos. Os protestantes dissidentes tiveram permissão para cultuar livremente, os católicos ficaram excluídos de participar da política e as igrejas estabelecidas (episcopal na Inglaterra e presbiteriana na Escócia) foram bastante encorajadas a serem tão flexíveis em questões teológicas quanto possível. 15 Essa política sofreu oposição, claro, mas, sem sucesso. A eclesiologia reformada se mostrou capaz de acomodar diferentes tipos de política eclesiástica dentro de um único Estado sem sacrificar o princípio de uma igreja nacional. A partir de então, a exclusão da Igreja Luterana ou da Igreja Escocesa seria reservada apenas para as pessoas que desejassem abandoná-las, e não para os dissidentes, embora regras mais rigorosas continuassem a ser aplicadas ao clero, pregadores e membros de universidades, o que não causou estranheza. 15 Na
Irlanda, a igreja estabelecida era episcopal, contudo, os presbiterianos receberam reconhecimento e um subsídio do governo para seu clero. Os católicos, porém, eram duramente descriminados, pelo menos no papel, embora formassem a maioria da população.
Com o passar do tempo, o sucesso da tolerância limitada incentivou o Estado a abrir o leque da tolerância, e o sistema duaüsta de ter uma igreja nacional que abraçava todo mundo e congregações dissidentes que cultuavam como bem desejavam capacitaram um governo cristão a conferir liberdade de consciência sem risco de prejuízo. Um dia seria até possível desestabelecer a igreja, como aconteceu nos Estados Unidos depois da Revolução Americana, sem prejudicar seriamente esse equilíbrio. Por causa disso, os cristãos americanos hoje podem se achar genericamente cristãos e, mesmo assim, permanecerem leais a uma tradição denominacional em particular, sem sentir nenhuma contradição nessa aliança essencialmente duaüsta — à igreja universal, de um lado, e à congregação local, por outro lado. A tradição reformada é um modelo conservador ou moderado da abordagem extrema que o mundo protestante faz à eclesiologia. Existe, porém, uma variante ainda mais radical, que em seu formato original insistia em algo que entendeu como bibücismo estrito e rejeitou qualquer ügação entre a igreja e o Estado secular. Defensores dessa posição geralmente eram pacifistas e afirmavam que jurar diante de um juiz secular era increduüdade, e mesmo que não fossem tão longe, ainda acreditavam que não existia fundamento bíbüco para o batismo infantil e quem o praticava estava negando a própria natureza da igreja. Para os extremistas (ou como diriam, radicais coerentes), a igreja era uma reunião de crentes professos, e o batismo, então, deveria ser administrado somente a quem havia feito sua profissão de fé. Como a primeira geração rejeitou o batismo que recebeu na infância e foi “rebatizada” na idade adulta, ela passou a ser chamada de Anabatista, embora, claro, desprezasse esse rótulo. 16 Na maneira de os anabatistas entenderem a igreja, uma congregação local não podería mais ser consubstanciai com a comunidade. Somente as pessoas que abandonaram o mundo poderíam pertencer à igreja, o que inevitavelmente excluía um número significativo de pessoas que, não fosse por isso, se incluiría no rol de membros. Como colocar isso em prática onde todo mundo se conhecia e a maioria das pessoas era 16 O
prefixo grego ana- significa “re-“.
parente? Que tipo de igreja resultaria disso, e como ela se manteria de uma geração para outra? À medida que as opções foram sendo praticadas, as respostas se tornaram claras — e em geral eram diferentes do que os primeiros reformados imaginaram, como os anabatistas foram os primeiros a demonstrar. Para os anabatistas e os de igual pensamento, a comunhão espiritual dos cristãos era fundamental; como trabalhar em comunidade era secundário. A teoria soava bem, mas, logo os problemas, apareceram. Os líderes tinham suas próprias idéias sobre o que devia ou não ser tolerado na comunhão cristã, e em pouco tempo estavam ditando regras que estabeleciam quem era (e quem não era) cristão de verdade. Inevitavelmente, o foco eram os membros a serem excluídos da igreja, e aqui alguns critérios bastante severos eram aplicados. Não era difícil alguém ser disciplinado por infrações mínimas das regras. Ninguém era apedrejado nem condenado à morte, mas, como se dizia, era “marginalizado”, excluído da comunhão. Em uma sociedade fechada, isso era muito eficiente e uma forma bastante cruel de punição, especialmente quando afastava uma pessoa de sua família. Infelizmente, demasiadas vezes aqueles que se uniam para escapar da tirania da igreja do Estado se juntavam e criavam um sistema ainda mais opressor do que o abandonado. No fim, a Reforma radical acabou reagrupando seus membros em comunidades sectárias que viviam separadas da sociedade. Na teoria, acreditavam que ser cristão era uma decisão individual; a fé não era uma herança passada de uma geração a outra. Assim, o batismo infantil foi abolido, e quem desejasse se unir à igreja enfrentava exame rigoroso. Mas, com o passar do tempo e a chegada da segunda geração, essas comunidades que haviam se separado do restante da sociedade descobriram que precisavam, de algum modo, acomodar seus filhos. As crianças não eram batizadas até fazer profissão de fé, e talvez nem todos a fizessem, mas, em pouco tempo os anabatistas se tornaram um grupo distinto, quase uma nacionalidade em si. Ainda hoje, famílias menonitas, huteritas e amish conseguem traçar seus ancestrais espirituais a partir do século 16, algo que poucos podem fazer. As pessoas que mais se opunham à ideia de uma igreja nacional se tornaram uma nação própria.
O que uniu os dois tipos de radicais foi o desejo comum de abolir a distinção entre clero e laicato e de impor uma disciplina comum (e severa) aos membros da igreja. Para tanto, as igrejas reformadas conservadoras expandiram o presbitério de modo a incluir pessoas que em outras igrejas seriam consideradas leigas por falta de treinamento teológico e geralmente não eram pagas pela igreja. No entanto, esses líderes faziam parte do ministério de disciplina da igreja, e o grande número deles garantia que nenhum membro seria negligenciado. Os anabatistas conseguiram o mesmo resultado restringindo o número de membros e com a expectativa clara de que todos os cristãos confessos se autodisciplinassem, embora as igrejas também tivessem de estabelecer uma espécie de equipe pastoral para garantir que isso aconteceria de verdade. E importante lembrar que as três tendências mais importantes na era pós-Reforma não eram compartimentos hermeticamente fechados, e era possível haver muitas combinações. Obviamente, os reacionários do primeiro grupo que permaneceram católicos eram os menos receptivos a qualquer meio de intercâmbio, mas, foram sutilmente influenciados pelos ensinos luteranos e especialmente, os calvinistas, embora, claro, nunca os tenham reconhecidos como tais. Por exemplo, começaram a produzir Bíblias na linguagem do povo, a organizar seminários para o treinamento de padres (originalmente uma ideia protestante) e a preparar catecismos para as crianças (outra inovação protestante). O segundo grupo adotou uma teologia reformada (calvinista) enquanto retinha a estrutura católica medieval, sendo que a igreja e a tradição anglicanas são o exemplo mais óbvio disso. Por fim, alguns radicais rejeitaram o calvinismo e houve quem adotasse pontos de vista estranhamente similares ao catolicismo, es pecialmente na compreensão da graça e dos sacramentos. Isso aconteceu em algumas comunidades sectárias mais extremas, às margens do puritanismo inglês, que ensinava o alcance da perfeição espiritual por meio dos sacramentos e outras formas de devoção religiosa. A rica variedade de tradições protestantes hoje é devida em grande parte a essa.inclinação para o ecletismo, que gera tensões entre as pessoas que insistem em uma posição reformada consistente, incluindo doutrina e
ordem eclesiástica, e as que estão prontas a fazer concessões, mas, em geral, somente em questões de ordem e não de fé. A crença que a união da igreja era primeiramente espiritual não desapareceu dos círculos protestantes, e ganhou novo alento no final do século 17 com o surgimento, na Alemanha, de um movimento novo chamado pietismo e associado ao metodismo e avivamento evangélico no mundo de fala inglesa. O pietismo era essencialmente uma reação às divisões entre protestantes que haviam endurecido no decorrer das controvérsias religiosas no final da era da Reforma. Os luteranos reformados e as igrejas reformadas condenavam uns aos outros quase tanto como condenavam os católicos, e nenhum deles tinha tempo para os radicais. Na Inglaterra, partidários da igreja estatal estavam em guerra com os dissidentes por razões que tinham muito mais a ver com política e sociedade do que com o próprio cristianismo. Havería um modo de ultrapassar essas dificuldades e restaurar a união espiritual que as igrejas deveríam exibir, mas, não estavam fazendo? A resposta dos pietistas foi que a experiência espiritual e a prática devocional podiam superar diferenças teológicas. A união da igreja podia ser demonstrada pelo viver cristão, enquanto a argumentação teológica podia obscurecê-la (ou até mesmo negá-la). Assim, por exemplo, os luteranos negavam a Ceia do Senhor aos reformados porque discordavam da natureza exata do sacramento, contudo, os dois grupos liam a mesma Bíblia, faziam as mesmas orações, e geralmente cantavam os mesmos hinos. Eram um no Espírito, mesmo sendo divididos na confissão, e quem não tinha preconceitos teológicos estava ciente disso. Como era previsível, talvez, o pietismo exercesse muita influência entre os leigos, e é justo afirmar que entre os pietistas a antiga distinção entre clero e laicato, que os reformados ansiaram tanto abolir, chegou mais perto de ser erradicada do que em qualquer outro grupo do cristianismo. 17 A influência do pietismo demorou no início do século 19, contribuiu para reformadas na Prussia - apesar de certa sua forma evangélica causaria impacto
um pouco a ser sentida, mas, a união das igrejas luteranas e oposição dos luteranos -, e em significativo no mundo de fala
inglesa. Não é exagero afirmar que a união de protestantes é mais visível 17 Apenas
os quakers são igualmente indiferentes a essa distinção.
hoje entre os evangélicos, herdeiros modernos da tradição pietista. Eles dão pouca atenção a “características denominacionais”, passam de uma tradição para outra com muita facilidade, e em geral preferem (ou criam) uma igreja genérica, não denominacional, seja qual for a denominação a que pertençam (ou não). Sua união é fruto do Espírito, e as divisões formais que atrapalhem a obra são simplesmente deixadas de lado. A SANTIDADE DA IGREJA
Não há como negar que a Reforma Protestante despedaçou a união da igreja ocidental. Muitas pessoas (então e agora), lamentaram o fato, contudo, para muitos protestantes a Reforma era necessária porque a igreja havia se corrompido. O estilo de vida do clero contradizia seus votos e profissão. Em geral, os leigos eram ignorantes e deixados a seu bel prazer. Somente uma reforma profunda solucionaria essas questões, e foi a resistência da hierarquia e seus partidários que causaram a divisão. Se todos tivessem visto e apoiado a necessidade de mudança, podería ter acontecido uma Reforma que transformaria a igreja toda e preservaria sua união formal nos princípios espirituais que em teoria definiam sua existência. Então, como era previsível, o interesse em saber o que tornava uma igreja santa e aceitável a Deus se tornou o centro dos debates sobre a Reforma. É nas diferentes respostas dadas a esse desafio que observamos mais claramente o que separava os diferentes grupos uns dos outros. Aqueles que continuavam a apoiar as reivindicações do papado sabiam tão bem como qualquer pessoa que havia problemas sérios no âmago da administração da igreja. Um grande número de bispos negligenciava suas responsabilidades, o clero não tinha disciplina e treinamento apropriados, e o povo ficou à mercê dos predadores protestantes que salientavam a seriedade dessas falhas e prometiam algo muito melhor. O amplamente conhecido desejo que as pessoas comuns tinham de ouvir os reformados foi um alerta para que a igreja botasse a casa em ordem, e muito do que estava acontecendo na famosa Contrarreforma promovida pelo papado fica mais claro sob essa perspectiva. O Concilio de Trento, convocado pelo Papa em 1545, foi o fórum mais
importante para se definir a natureza da reforma católica. 18 O imperador Carlos V insistia nesse concilio desde que a Reforma irrompeu, mas, o papado arrastava o assunto. O concilio ocorreu em Trento para acomodar o desejo do Papa de que ele acontecesse em Roma e a insistência do imperador de que fosse em seu território. Trento ficava no norte da Itália e era de fácil acesso para quem vinha de Roma, mas, também estava localizado no Santo Império Romano, e, portanto, sob as ordens diretas do imperador. Os protestantes foram convidados a enviar representantes para as reuniões de abertura, mas, recusaram, e sob a pressão dos jesuítas o convite não foi renovado. Trento se tornou, e assim permanecería, um concilio em que a Igreja Católica Romana decidiu reforçar suas bases e melhorar suas práticas ao reafirmar seus princípios fundamentais e buscar novos meios de implementá-los com mais eficiência. O que surgiu no desfecho foi uma igreja muito mais uniforme, tanto em aparência quanto em prática, do que antes. Bispos e clero ficaram sujeitos a uma disciplina rigorosa. Questões doutrinárias controvertidas, como a extensão do cânone bíblico e a natureza da justificação pela fé, foram examinadas profundamente e explicadas de modo a combater intencionalmente as afirmações protestantes. Por exemplo, os livros do Antigo Testamento grego que não são encontrados na Bíblia hebraica (a chamada Apócrifa) receberam
canônicos na versão em Latim, e
status
foi declarado oficialmente que a justificação pela fé não tinha significado nenhum se não fosse acompanhada de “obras” — uma contradição direta do que Lutero havia ensinado. Mais ainda, era nessas “obras” e por meio delas que a santidade pessoal poderia ser medida, uma declaração que transformaria a vida devocional católica e tornaria as diferenças entre catolicismo e protestantismo nítidas a todos os olhos. Os protestantes haviam desaprovado uma série de práticas que, segundo achavam, contradiziam o evangelho ou eram inúteis. Algumas dessas práticas incluíam jejum, celibato sacerdotal obrigatório, práticas devocionais em torno da missa (como a adoração dos elementos 18
Veja J. C. Olin, Catholic Reform: From CardinalXimenes to the Council of Trent, 14951563 (New York: Fordham University Press, 1990); J. W. O’Malley, Trent What
Happened at the Council (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2013).
consagrados) e assim por diante. Em resposta, o Concilio de Trento enfatizou mais ainda essas coisas, cortando excessos óbvios como a venda de indulgências (mas, não as indulgências propriamente ditas), e estabelecendo uma prática regular de confissões e penitências antes da Eucaristia, cujo propósito era assegurar que os membros da igreja fizessem o que deviam. A missa continuou no cerne da vida devocional e, no mínimo, se tornou ainda mais importante. Os muitos rituais eucarísticos da igreja pré-Reforma foram abolidos, e um padrão único foi autorizado para a igreja toda. A missa deveria ser realizada em latim, para que os católicos pudessem participar dela em qualquer país do mundo. A famosa Missa Tridentina, como ficou conhecida, permaneceu em uso oficial durante quatrocentos anos, e para os católicos conservadores de hoje ela, e não o que a precedeu, é a referência do que a igreja deveria fazer no culto público. Os padrões da vida monástica pré-Reforma foram mantidos e fortalecidos, contudo, os leigos foram incentivados a adotar tantas práticas devocionais monásticas quantas lhes fossem possíveis. Com isso, os católicos extremamente devotos iam à missa diariamente, usavam uma camiseta de tecido rústico sob a roupa como prova de que abandonaram as vaidades desse mundo, faziam romarias a lugares sagrados e passavam tempo repetindo orações memorizadas diante de objetos sagrados, de uma imagem da Virgem Maria ou de um dos santos que serviam obrigatoriamente como padroeiros ou exemplos de comportamento. A crítica protestante, que no início da Reforma se concentrava na superficialidade de tanta devoção popular, agora enfatizava sua futilidade. Para os protestantes, os católicos estavam tentando comprar um lugar no céu e sendo incentivados a fazer isso por meio da igreja, que agia como despenseira da graça de Deus. Na perspectiva protestante, os católicos estavam se iludindo, pois a salvação era um dom gratuito de Deus dado pelo Espírito Santo e não algo obtido por esforços humanos. Para os protestantes, a Igreja Católica Romana era uma instituição tirana poderosa, determinada a manter seus escravos espirituais em subrtiissão negando-lhes acesso às verdades da Bíblia e impondo-lhes uma disciplina espiritual mais próxima à interpretação que os fariseus
deram à lei de Moisés do que ao evangelho de Cristo. Ou seja, quanto mais Roma enfatizava seus princípios, mais os protestantes se afastavam dela e usavam os indícios da reforma católica como evidência de que o Papa era mesmo o anticristo. Diferente da Igreja Católica, a união interna das igrejas protestantes estatais era apoiada pela lei secular, que também ditava como as pessoas deveríam se comportar em todas as situações da vida - certamente em público, e, até certo ponto, em particular também. Havia leis ditando como deviam se vestir, gastar qualquer tempo livre que tivessem e o que ler. Os Dez Mandamentos eram a base da moralidade pública; os magistrados tinham de defender os princípios bíblicos tanto quanto possível. Os tribunais deviam assegurar que a sociedade cristã inteira se empenhasse a obedecer às regras estipuladas na Palavra de Deus, as do Antigo Testamento inclusive. Há muito se desejava adaptar as leis mosaicas às necessidades cristãs, como o sistema medieval de dízimo mostrou, contudo, os protestantes foram mais além e abrangeram coisas como os graus de parentesco e afinidade que impediríam um casamento. O direito canônico havia optado de modo mais ou menos arbitrário por sete graus de relacionamento, que mais tarde foram diminuídos para quatro, todavia os protestantes encontraram o padrão ideal em Levíticos 18 e acrescentaram o texto às suas leis matrimoniais. 19 Como tudo isso afetou a santidade da igreja como instituição singular na sociedade é difícil dizer. De um lado, a distinção medieval entre a “igreja” e o “mundo” foi eliminada. O monasticismo deixou de existir, e o clero não tinha mais obrigação de ser celibatário. Os cultos eram feitos no idioma local, e esperava-se que os fiéis participassem do culto de várias maneiras. Na maioria das igrejas reformadas, leigos eram escolhidos para ser presbíteros e dividir a liderança da igreja com aqueles que tinham formação acadêmica e haviam sido ordenados para o ministério de tempo integral, embora o pastor ou o “líder de ensino” conservasse sua posição especial e não fosse tão diferente do sacerdote da pré-Reforma quanto alguns protestantes mais radicais gostariam que fosse. 19 Veja
Levíticos 18.6—18 e compare-o à lista de graus proibidos [para o casamento] acrescentados ao Livro Anglicano de Oração Comum.
Em muitos aspectos, seria adequado afirmar que as igrejas protestantes estatais e as sociedades a quem serviam se mesclaram uma à outra. Essa mescla era mais visível em países luteranos, onde geralmente a igreja havia se tornado departamento do Estado e seus ministros eram pagos com dinheiro público. Não existia linha divisória clara entre o sagrado e o secular, de modo que o rei era considerado bispo supremo e os ministros da igreja eram supervisores de ensino em suas comunidades. As igrejas reformadas seguiam esse padrão até certo ponto, todavia, conservaram maior independência do Estado. Por exemplo, continuaram a promover sínodos e criar suas próprias leis, que esperavam ser ratificadas pelo Estado. Em alguns casos, essas igrejas não tinham voz na decisão, pois eram minoria e deviam aceitar o que recebiam. Isso era particularmente verdade na França, onde os protestantes queriam agir dentro da lei, mas, a lei era a de um país católico que tinha dificuldade em reconhecer o direito deles. No fim, entraram em um acordo, que deixou a desejar para os franceses protestantes e foi minado progressivamente até eles serem reprimidos e expulsos do país. No entanto, se os relacionamentos com as autoridades seculares variavam muito de um lugar para outro, a disciplina interna exibida nas igrejas protestantes estatais era bem semelhante em todas elas. O caminho para se alcançar uma igreja pura era a educação. A Bíblia foi traduzida para o idioma local e era pregada de púlpito pelo menos duas vezes aos domingos e com frequência durante a semana. Os cultos eram voltados à ministração da Palavra, para a qual o sacramento era suplementar. Em teoria, a Ceia do Senhor deveria ser administrada com frequência, o que não acontecia na prática. Em alguns lugares, era servida quatro vezes por ano, mas, não por leviandade. Ao contrário, a celebração infrequente permitia que as paróquias promovessem “ceias sazonais”, ocasião em que o sacramento seria precedido por uma semana ou mais de preparação, constituída de cultos de oração diários, arrependimento e chamadas à conversão e correção de vida. Os paroquianos talvez não tivessem contato frequente uns com os outros, mas, quando se reuniam, a ocasião era solene e causava-lhes impressão muito mais profunda do que um encontro semanal jamais poderia causar.
Para termos uma ideia de como eram essas ocasiões, basta estudarmos os enunciados convencionais da Igreja Anglicana. O Livro de Oração Comum, publicado originalmente em 1549 e revisado algumas vezes antes de alcançar sua forma clássica, em 1662, é bem daro quanto ao que deveria ser feito. O culto da Ceia do Senhor contém várias exortações cujo objetivo é instruir pastores e igrejas no preparo para o sacramento, e são específicas quanto às expectativas. Os dois Livros de Homílias, o primeiro publicado em 1547 e o segundo em 1563, são mais esclarecedores ainda com suas instruções detalhadas sobre o viver cristão. Se compararmos os dois livros, notaremos que metade dos sermões do primeiro livro lida com a doutrina e a outra metade, com a prática; no segundo livro a balança é obviamente a favor da prática. Essa mudança do ponteiro evidencia que a preocupação com a santidade visível da igreja e de seus membros aumentava com o passar do tempo e que todos os esforços estavam sendo feitos para inculcar um estilo de vida santo entre a população. 20 O que acontecia na igreja era reforçado por uma rede de escolas criadas para treinar jovens. Os supervisores de ensino eram considerados parte do estabelecimento eclesiástico e estavam sujeitos aos mesmos testes doutrinários que o clero, o que comprova a importância da escola como ferramenta de treinamento das gerações vindouras. Nem todas as paróquias tinham uma escola, e apenas uma minoria de jovens podia estudar; mesmo assim, isso era vim grande avanço em comparação ao que havia sido conquistado antes da Reforma e incentivava a igreja a estender seus préstimos o mais que pudesse. A influência dessa abordagem foi duradoura. Até mesmo no século 18, quando a população cresceu vertiginosamente e a Revolução Industrial sobrecarregou a antiga estrutura paroquial nas cidades que se expandiam rapidamente, a igreja reagiu e aumentou a produção de literatura cristã a preços acessíveis e passou a realizar aulas dominicais para as crianças que trabalhavam durante a semana. A necessidade de educação nunca 20 Veja
P. Collinson, The Religion of Protestants: The Church in English Society, 1559-1625
(Oxford: Oxford University Press, 1982).
foi menosprezada, e a dimensão espiritual continuou fundamental a seu cumprimento durante gerações. 21 O maior desafio das igrejas protestantes foi a magnitude dos serviços que tiveram de providenciar. Da noite para o dia, tiveram de encontrar pastores e professores instruídos que partilhassem e comunicassem a visão dos reformados. Tiveram ainda de levantar recursos financeiros para essa operação. Na época da Reforma, muitos, incluindo o Estado, aproveitaram o desarranjo da igreja para se apossarem de seus rendimentos e propriedades. Pegar tudo de volta foi quase impossível, e as igrejas protestantes estatais atravessaram uma enorme crise financeira, apesar de sua posição privilegiada.22 A demanda superou rapidamente o abastecimento, e era evidente que, para alcançar os objetivos da Reforma, deveriam ser adotadas medidas radicais. Infelizmente, o progresso nessa direção foi estorvado por algumas das mesmas pessoas que deveriam promovê-lo. Em geral, os líderes da igreja eram bem relacionados na sociedade, pois vinham da nobreza ou tinham vínculos com famílias nobres e ricas que se beneficiavam das dificuldades financeiras da igre ja. Na Inglaterra, os bispos continuavam a morar em seus palácios e a gerenciar inúmeros serviçais, como sempre fizeram, e à medida que as fontes de recurso secavam, eles pegavam o quanto podiam do que ainda restava. A própria rainha Elizabeth I também tirou vantagens da situação ao suprimir, durante anos, algumas dioceses e desviar suas rendas para seus próprios cofres. 23 Assim sendo, é natural que houvesse preocupação crescente quanto a esse procedimento dentro da igreja. Pastores e leigos passaram a exigir mais controle sobre as nomeações de líderes e mais disciplina para os que já estavam atuando. Achavam também que a igreja anglicana preci 21 Isso
aconteceu até nos Estados Unidos, onde a oração continuou sendo parte da rotina diária das escolas até a prática ser contestada e considera inconstitucional na metade do século 20.
22 C.
Hill, Economic Problems of the Church: From Archbishop Whitgift to the Long Parliament (Oxford: Oxford University Press, 1956). 23 Bristol, uma diocese pobre, ficou vaga por dez anos (1593-1603), Ely, por quase dezenove (1581-1600) e Oxford, vinte e um (1568-89) e depois por mais doze anos (1592-1604). Outras dioceses tiveram de aguardar de dois a quatro anos por novas nomeações.
sava completar o processo da Reforma começado na geração anterior, e interrompido por motivos políticos. Mesmo as pessoas que reconheciam a vantagem de proceder com cautela enquanto ainda houvesse um grupo significativo de opinião tradicionalista no país vieram a crer que depois de o Papa ter excomungado a rainha (1570) e fechado as portas a qualquer reconciliação com Roma, era hora de levar a reforma da igreja à sua conclusão lógica, como foi feito em Genebra e na Escócia. Infelizmente, encontraram resistência por parte da rainha, para quem qualquer mudança no acordo religioso que ela havia imposto em 1559 desestabilizaria o país e incentivaria a intervenção de poderes estrangeiros (especialmente da Espanha) que se comprometeram a não poupar esforços para restaurar o catolicismo. As pessoas que favoreciam mais alterações não desejavam abandonar a igreja estatal nem se opunham ao acordo da rainha propriamente dito, mas, achavam que ele continha muitos elementos da época medieval. Elas queriam desenraizar essas imperfeições (como diziam) e “purificar” a igreja - daí o apelido depreciativo “puritano”, que passou a identificá-las. Na verdade, o puritanismo nunca girou em torno de doutrina; em geral, os puritanos estavam satisfeitos com ela. A questão era sobre a disciplina eclesiástica, que estava nas mãos do Estado e não nas da igreja.24 Inevitavelmente, como os puritanos perceberam, isso resultou em afrouxamento na aplicação da lei, uma vez que as autoridades laicas não queriam agitar o barco eclesiástico com assuntos que lhes eram obscuros e relativamente sem importância. O que os fiéis achavam da predestinação ou da natureza do pão consagrado na Ceia do Senhor era problema deles, e desde que não apregoassem suas crenças, as autoridades seculares dormiam sossegadas. Para os puritanos, essa atitude era anátema. Eles queriam uma igreja que além de não se conformar com o mundo por razões políticas também fosse de um só pensamento porque seus membros estavam genuinamente convencidos de que suas crenças eram verdadeiras. Por esse motivo, e por perceberem que havia 24
Veja P. Colünson, The Elizabethan Puritan Movement (Oxford: Oxford University
Press, 1967). Para ler os textos originais, veja W H. Frere and C. E. Douglas (Orgs.), Puritan Manifestoes: A Study of the Origin of the Puritan Revolt (Londres: SPCK, 1907).
uma diferença abissal entre o que desejavam e a realidade com a qual teriam de viver, a santidade da igreja se tornou uma questão de vital importância, e é por isso, mais do que por qualquer outra coisa, que os puritanos continuam a ser lembrados até hoje. Não que faltasse à igreja elisabetana mecanismos para impor sua disciplina, mas, as organizações existentes em geral eram usadas de maneira errada. Por exemplo, em vez de tratar de questões como falta de instrução e embriaguês - dois grandes males na Inglaterra do século 16 -, as autoridades preferiam atacar os clérigos que se recusassem a usar as vestimentas prescritas na lei canônica ou que se apartassem da liturgia oficial no que lhes parecessem detalhes insignificantes. Tal conformidade exterior era aceita por alguns sob a justificativa de que a roupa ou os termos específicos usados nos cultos não faziam a mínima diferença. Mas, quando questões desse gênero se tornavam o princípio e o fim da disciplina na igreja, até os puritanos mais moderados tinham dificuldade em engoli-las. O cristianismo exigia mudança de vida e de estilo de vida, pois de outra forma, a santidade de Deus estaria sendo profanada e a igreja se tornando corrupta. A obsessão crescente com a guarda do sábado era típica desse comportamento, e uma característica do protestantismo britânico, e não do continental. Os reformados haviam determinado que depois dos cultos dominicais houvesse palestras para a congregação, o que se transformou numa espécie de escola dominical para adultos. Tradicionalmente, porém, as reuniões depois do culto eram ocasiões sociais, quando os caixeiros-viajantes apresentavam suas mercadorias e a comunidade ficava ao redor bebericando. O costume era que o dinheiro da cerveja fosse usado para reformar os templos; portanto, essas ocasiões ficaram conhecidas como “cervejada da igreja”. Quando estavam de cara cheia, os homens partiam para brincadeiras que deram origem a jogos como o futebol, críquete e beisebol. Para os puritanos, isso era profanação do sábado e tinha de ter fim. O governo resistiu com firmeza, a ponto de em 1618 o rei James I pu blicar seu famigerado Book of Sports [Livro de esportes], que os clérigos eram obrigados a ler de púlpito. O livro tornou ilegal o impedimento de jogos aos domingos. A ordem do rei foi um desaforo tão grande
que os puritanos se prepararam para deixar o país — primeiro para a Holanda, mas, acabaram indo para os Estados Unidos, onde, segundo acreditavam, poderíam estabelecer uma comunidade livre de esportes aos domingos e outras atividades profanas. A indignação foi tamanha que até vinte anos depois, quando o Parlamento se revoltou contra o rei e os ministros da igreja foram investigados sobre a solidez de seus ensinos, uma das perguntas era se tinham lido o Book of Sports patz suas igrejas. Se confessassem que sim, eram expulsos do pastorado como infiéis e indignos de seu chamado. Contudo, para os puritanos não bastava enfatizar a “santidade” pública, e ao mesmo tempo dar brecha à hipocrisia na vida particular. Afastar-se do comércio e dos esportes aos domingos não objetivava somente o descanso, mas, também, o exercício em santidade. A expectativa era que as pessoas participassem do culto e fossem instruídas, às vezes por um longo tempo, a respeito da fé. Depois, então, deveríam ir para casa e estudar a Bíblia e meditar sobre o que aprenderam na igreja. De certo modo, a igreja se tornou a grande escola do crescimento espiritual que os reformados desejaram que fosse, com sermões e palestras no centro de suas atividades. O objetivo máximo era transformar as pessoas de modo que a expressão pública de santidade fluísse naturalmente da convicção interior dos líderes da sociedade. Os puritanos sabiam que nem todos ficariam felizes em se moldar às suas exigências, mas, eles contavam com aqueles que manteriam os outros na linha. Os “justos”, como os cordatos eram chamados, deveríam assumir o comando, o que aconteceu muitas vezes. É de conhecimento geral que as pessoas que cultivam bons hábitos autodisciplinares têm mais chances de serem bem-sucedidas do que os outros, e o puritanismo se aproveitou disso. O que chamamos hoje de “classe média” deve suas origens, pelo menos em parte, ao seu comportamento, e as insurreições políticas que perturbaram a Inglaterra no século 16 foram em grandes proporções resultado de sua luta para controlar a sociedade como um todo. Os puritanos foram bastante caricaturados e escarnecidos por seus adversários, e sua reputação tem sofrido por isso. Em um mundo caído, quem busca perfeição certamente será acusado de fracassar na busca
de seus objetivos, e as acusações de hipocrisia não tardarão a chegar. Contudo, os observadores escrupulosos reconhecem cada vez mais que os puritanos, apesar de suas falhas, chegaram mais perto de criar uma igreja que exibisse as marcas da santidade verdadeira do que qualquer de suas contemporâneas, e é o legado de seu trabalho que escora as sociedades democráticas mais avançadas de nossos dias. 25 Em alguns aspectos os puritanos viviam nos limites entre a Igreja Protestante estatal e as radicais como os Anabatistas e grupos semelhantes com os quais são confundidos no ideário popular. Em parte, isso aconteceu porque os puritanos queriam aplicar os princípios do calvinismo reformado à igreja estatal inglesa, e em parte porque a oposição sofrida levou alguns de seus membros a se afastarem da igreja. Esses separatistas, como são chamados, tiveram de abandonar a Inglaterra, e muitos se estabeleceram na Holanda, onde encontraram os menonitas, um grupo anabatista moderado que havia conquistado um nível limitado de tolerância ali. A junção dos dois grupos deu origem à Igreja Batista Inglesa. Eles eram radicais quanto ao governo da igreja, e só — não eram pacifistas, por exemplo, nem tampouco formaram comunidades distintas à parte da sociedade. Sua maneira de pensar continuou essencialmente puritana, pois preferiam trabalhar pela mudança interna dentro das organizações existentes o quanto pudessem, e cooperavam com outros dissidentes protestantes na Inglaterra até onde a consciência lhes permitia. Um de seus porta-vozes mais famosos foi John Bunyan (1628-88), segundo o qual nem mesmo o batismo deveria causar divisão entre os cristãos verdadeiros; até hoje, a capela que ele fundou em Bedford tem duas listas de membros: uma para quem batiza crianças e outra para quem não batiza. 26 Os radicais extremistas criam, obviamente, que a única maneira de garantir santidade na igreja era impedir seu contato com o mundo 25
P. Benedict, Christ’s Churches Purely Reformeà
Social History of Calvinism (New
Haven: Yale University Press, 2002); J. Witte Jr., The Reformation of Rights: Law, Religion, and Human Rights in Early Modern Calvinism (Cambridge: Cambridge University Press, 2007). 26 John
Bunyan, Differences in fudgment about Water-Baptism No Bar to Communion (Londres: John Wilkins, 1673).
sempre que possível. Foi com esse objetivo que criaram comunidades separadas, e apesar de muitos de seus descendentes terem se reintegrado à sociedade com o passar do tempo, algo do impulso original ainda continua. Por exemplo, os radicais da Reforma geralmente promovem o pacifismo, assim como visões semiutópicas de mudança social. Em termos gerais, seria correto afirmar que outros cristãos admiram muito e respeitam os radicais por suas convicções, mas, não se unem a eles por reconhecerem que, por mais louváveis que sejam seus objetivos, eles são inalcançáveis em um mundo caído. De muitas maneiras, a Reforma radical permanece um lembrete do que deveria ser e, assim, age como a consciência do protestantismo, mas, por sua própria natureza, ela é a fé de uma minoria e possivelmente continuará sendo até a volta de Cristo, em glória, no final dos tempos. As igrejas do oriente não foram atingidas pela Reforma e, portanto, escaparam dos debates sobre santidade que eram tão importantes no ocidente. Isso explica a tendência dos observadores ocidentais acharem que os cristãos orientais não se preocupam muito com o assunto, mas, isso é equívoco. Muitos dos termos usados nos debates ocidentais são incompreensíveis aos orientais porque eles não estão acostumados a fazer distinções detalhadas entre graça e natureza, Escrituras e tradição, e assim por diante. Contudo é certo que nas igrejas orientais a santidade está intimamente ligada à espiritualidade monástica, que serve de referência ali mais do que no ocidente. Não é incomum os cristãos orientais se recolherem a um monastério para se dedicarem à reflexão espiritual, e os leigos fazem isso com muita naturalidade. Tal prática ajuda a entender a solidariedade de muitos ortodoxos para com o protestantismo evangélico, que de algum modo é uma adaptação do monasticismo à vida cotidiana. Poucos evangélicos hoje sabem, mas, seus momentos de oração, leitura regular da Bíblia e a prática constante da presença de Deus têm origem monástica e oferecem-lhes uma espiritualidade prática que falta a outros cristãos ocidentais. A insistência evangélica de que as ações falam mais alto que as palavras, e que nossas ações revelam mais sobre nosso relacionamento com Deus do que nossas palavras também agrada aos ortodoxos, que instintivamente acredita que as palavras não conseguem expressar a
essência de sua fé. Argumentos teológicos não os agradam mais do que agradam à maioria dos evangélicos, fazendo-os mais parecidos uns com os outros do que se esperaria. UMA IGREJA UNIVERSAL?
O desafio maior da Reforma aconteceu diante da terceira marca da igreja, o seu “catolicismo”. Qual era o significado disso? Para Roma, a igreja era uma e a mesma em todos os lugares, reconhecendo o Papa como seu líder. Essa perspectiva nunca foi realidade, claro, mas, antes da Reforma era relativamente fácil para os europeus ocidentais desconsiderar as igrejas orientais, a maioria das quais já vivia mesmo sob domínio muçulmano. O advento do protestantismo tornou difícil a Roma manter sua reivindicação à universalidade, contudo, o papado tinha uma visão mundial e foi pioneiro na obra missionária nas Américas, África e Ásia. Para os espanhóis e portugueses propagar a fé era parte integral de sua missão colonizadora, e no século 17 a França seguiu o exemplo deles. Milhões de pessoas do que hoje chamamos “terceiro mundo” foram batizadas, mas, embora as estatísticas sejam impressionantes, a realidade era bem diferente. Nas Américas, missionários católicos fundaram postos avançados em locais que mais tarde se tornaram grandes cidades, como Los Angeles, São Francisco e Montreal, que durante séculos serviram de bases para a expansão comercial e espiritual ao interior. Em áreas da América Latina, eles usaram as estruturas sociais existentes para o mesmo objetivo. A política dos reis da Espanha e de Portugal era controlar a liderança eclesiástica nas colônias, e o papado consentiu por meio de um sistema conhecido como padronado (espanhol) ou padroado (português). O sistema assegurava que somente homens nascidos na Espanha ou Portugal fossem bispos nas colônias, atitude ressentida por descendentes de europeus já nascidos na América Latina. Depois que a América Latina se tornou independente, o sistema naturalmente teve de mudar, contudo, foi tomado pela elite europeia local, que não estendeu seus privilégios às pessoas de raça mista ou aos nativos que eles governavam. Como resultado, o catolicismo popular da América Latina se tornou uma mistura do cristianismo ortodoxo e da superstição pagã, muito da
qual foi reciclado das culturas indígenas pré-colombianas ou de religiões ancestrais dos escravos africanos. A igreja estava mal preparada para as atividades de missionários protestantes (especialmente dos pentecostais) no século 20, alguns dos quais foram notavelmente bem-sucedidos em atrair os católicos nominais para suas denominações. Roma continua afirmando que a maioria da população é membro de sua igreja, mas, o que isso significa na prática é discutível, e as estatísticas citadas são guias pouco fiáveis da crença ou da participação regular nos cultos. Na Ásia, os portugueses não foram tão bem-sucedidos. Portas que se abriram inicialmente fecharam depois de algum tempo, e normas criadas para tornar o cristianismo mais inteligível e aceitável às culturas locais foram combatidas por Roma, com medo de que a abordagem levasse ao sincretismo. Matteo Ricci (1552-1616) foi um missionário católico extraordinariamente bem-sucedido na China e causou excelente impressão no país, contudo, suas iniciativas não tiveram continuidade, e no fim, a forma chinesa de cristianismo que seus seguidores queriam implantar foi condenada pelo papado, um golpe do qual a missão católica à China nunca se recuperou. 27 Em outros lugares, lembranças desse período estão espalhadas em templos construídos através da África e Ásia e ocasionalmente em palavras que as línguas nativas emprestaram dos missionários. 28 O catolicismo romano permaneceu tão romano quanto católico, pelo menos, sendo que o Latim e a cultura italiana o dominaram até o século 20. No entanto, apesar da fragilidade de suas reivindicações, os católicos romanos conseguiram monopolizar o uso da palavra “católico”, uso que raramente é contestado na atualidade e geralmente aceito em quase todos os lugares. Notamos os efeitos disso ao compararmos “católico” com “ortodoxo”, a palavra normalmente usada para designar as igrejas do Leste. Outras denominações se declaram “ortodoxas”, como as igrejas presbiterianas ortodoxas fazem, mas, é difícil imaginá-las adicionando a designação católica a seus nomes, mesmo que as suas declarações confessionais oficiais afirmem que o são. 27 Veja
G. Minamiki, The Chinese Rites Controversy: From Its Beginning to Modem Times (Chicago: Loyola University Press, 1985). 28 Na Indonésia, por exemplo, “church” é gereja, do português igreja, e “Sunday” é minggu, do português domingo.
Como o exemplo acima confirma, a maioria das igrejas protestantes e das ortodoxas orientais evita o uso da palavra “católica” por causa de sua associação com Roma, e algumas até preferem traduzir a palavra nos credos como “universal”, embora seja difícil explicar o que ela significa na prática. A maioria das igrejas protestantes e ortodoxas orientais é limitada por considerações políticas e culturais a um país ou grupo linguístico, e mesmo quando tem comunhão com outros grupos, geralmente isso não significa muito na prática. Sem um idioma comum é difícil aos fiéis cultuarem juntos em um plano que não seja apenas simbólico, e uma igreja institucional nunca outorgaria seu governo interno a outra igreja. Até mesmo os ortodoxos se dividiram por causa da substituição do antigo calendário juliano - considerado melhor por ter sido usado nos tempos de Jesus - pelo gregoriano. 29 Além das divisões causadas pela cultura e língua, é preciso acrescentar as resultantes de questão racial, que afetaram países como os Estados Unidos e a África do Sul de tal forma que os de fora acham difícil compreender ou aceitar. Sem dúvida nenhuma o protestantismo nesses países (e às vezes em outros) foi profundamente marcado por políticas de segregação racial que ainda se fazem sentir na igreja, onde congregações de “negros” e de “brancos” reúnem-se separadamente e com frequência se organizam em diferentes denominações. É fato que a maioria das igrejas protestantes históricas pertence a associações internacionais que supostamente mantêm algum padrão de união entre pessoas que reivindicam o mesmo rótulo denominacional, todavia isso é bem diferente de ser “católico” ou “universal”. A Federação Luterana Mundial, a Comunhão Anglicana e a Aliança Batista Mundial são exemplos do que estamos falando, mas, como sua 29 Para
a maioria dos cristãos ocidentais essa controvérsia parece estranha, contudo, a maioria dos protestantes também custou a aceitar o calendário gregoriano. O problema estava no fato de ele ter sido apresentado pelo Papa Gregorio XIII em 1582, depois âz Reforma, e, portanto, foi rejeitado pelos não católicos por questão de princípio. A maioria dos protestantes europeus finalmente o aceitaram em 1700, mas, os britânicos resistiram até 1752. Na Europa Oriental, a Rússia adotou o calendário por motivos seculares em 1918, e os outros países ortodoxos fizeram o mesmo nos anos 1920, mas, apesar de algumas, de suas igrejas terem aceitado a mudança, outras (incluindo a da Rússia) não o fizeram e até o hoje seguem o calendário antigo.
história recente comprova, esses grupos são passíveis de altercações internas, e nenhum deles está em posição de se engajar em diálogo ou cooperação interdenominacional. O único órgão que mais se aproxima disso é o Conselho Mundial de Igrejas, que representa um amplo espectro de grupos protestantes (e ortodoxos orientais), apesar de os mais conservadores não pertencerem ao Conselho, e sua influência, que nunca foi grande, ter declinado consideravelmente nos últimos anos. Gostemos ou não, nacionalismo e denominacionalismo maquinaram para enfraquecer a catolicidade de igrejas não romanas, um fato que os defensores de Roma nunca deixam de enfatizar. Quando os reformados falavam da catolicidade da igreja, era principalmente aos credos antigos que se referiam. Insistiam em afirmar que eram perfeitamente ortodoxos, e concordavam com o Credo dos Apóstolos, o Credo de Niceia (niceno-constantinopolitano) e o chamado Credo Atanasiano, embora a maioria deles ignorasse que as igrejas orientais desconheciam o primeiro e o último desses credos. Nada sabiam a respeito da discórdia filioque, mas, aceitaram o ponto de vista ocidental quanto ao assunto. Conforme o tempo passou e os grupos protestantes desenvolveram suas próprias confissões de fé e tradições teológicas, a cooperação entre eles declinou e qualquer noção séria de catolicidade desapareceu. A maioria das igrejas nacionais fechou suas portas a intercâmbio regular com outras. Permanecia, no entanto, a disposição de aceitar refugiados, como os huguenotes, que foram expulsos da França depois de 1685 e conseguiram se integrar à Igreja Luterana na Alemanha e à Igreja Anglicana sem dificuldade nenhuma. Mas, esse foi um caso especial. Os luteranos normalmente não entregavam seus púlpitos aos anglicanos, por exemplo, e mesmo que se prontificassem a fazê-lo, poucos anglicanos possuíam habilidade linguística para usufruírem de tal oportunidade. A Igreja Anglicana, por seu lado, tornava-se cada vez mais desconfiada dos estrangeiros protestantes. Ela hesitou em aceitar o rei George I (r. 1714-27), um luterano de Hanover que herdou o trono britânico por seu protestantismo, e até hoje não se relaciona com a Igreja da Escócia por causa da forma presbiteriana de governo eclesiástico que esta última adota, mesmo que seu governador supremo, o monarca, também seja membro da Igreja Anglicana.
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Tal intransigência denominational geralmente é ainda mais aguda em grupos separatistas e radicais. Os batistas, por exemplo, sempre foram extremamente relutantes em aceitar quem foi batizado quando criança, mas, não como crentes, apesar de apelos feitos por pessoas como John Bunyan. Presbiterianos e congregacionais (independentes) concordam em tudo exceto em como a igreja deve ser administrada, e embora essa diferença seja suficiente para impedi-los de trabalhar juntos, ocasionalmente ela tem sido superada em nossos dias. 30 Na atualidade, secularização, expansão missionária no estrangeiro (onde essas divisões antigas são irrelevantes) e iniciativas ecumênicas reduziram a força denominational. A cooperação panprotestante é cada vez mais comum depois do século 16, mas, ainda estamos um tanto longe de ter como líquido e certo que um protestante (e em particular, um pastor protestante ordenado) será aceito em qualquer Igreja Protestante. É necessário destacar que, em geral, os protestantes acham a reivindicação da igreja à “catolicidade” enigmática e não sabem como interpretá-la. Assim, ela é ignorada na prática ou reconhecida como pertencente à comunhão romana e, portanto, tem de ser rejeitada por ser estranha às crenças que professam, embora suas afirmações confessionais oficiais digam o contrário. A SUCESSÃO APOSTÓLICA
A quarta marca da igreja é a que produziu as ramificações mais importantes para a igreja pós-Reforma e destaca as diferenças entre os principais grupos cristãos de hoje. Em geral, a apostolicidade da igreja é definida em um destes dois sentidos. O primeiro a entende como sucessão histórica iniciada com os apóstolos e transmitida ao longo das gerações, simbolizada pela imposição de mãos que tem origem no Novo Testamento. O segundo a entende como fidelidade doutrinária primordial ao ensino dos apóstolos, preservada para nós no Novo Testamento e nos credos da igreja primitiva. Em geral, todos os grupos 30 No
Canadá, congregacionais e presbiterianos se uniram (com os metodistas) em 1925 para formar a Igreja Unida. Na Inglaterra, eles fundaram a Igreja Reformada Unida em 1972, e na Austrália, a Igreja Unida em 1976. Mas, no Canadá e na Austrália, um número significativo de presbiterianos recusaram essa união e plantaram igrejas de suas próprias denominações.
cristãos aceitam a segunda definição, embora alguns grupos protestantes mais radicais rejeitem ou hesitem em aceitar os credos antigos como padrões doutrinários. A primeira definição é mais complicada, até para as igrejas que aceitam o princípio da sucessão histórica. Para as igrejas orientais em geral, seu ministério procede da imposição de mãos dos apóstolos e elas não se opõem a conceder primazia a Pedro e à diocese de Roma, que, segundo creem, é de origem Petrina. O que argumentam é que o Papa romano extrapolou sua autoridade e tenta impor sua vontade a outras igrejas. Para elas, isso levou a Igreja Católica ao erro e a perder proeminência na igreja global. Na sequência, essa posição é agora ocupada pelo patriarca de Constantinopla, que, embora não seja ocupante de uma diocese fundada por um apóstolo, foi reconhecido no Primeiro Concilio de Constantinopla (381) como segundo na hierarquia. Se algum dia o papado renunciar a suas reivindicações à jurisdição universal sobre o mundo cristão inteiro, as igrejas orientais o receberão de braços abertos no aprisco e lhe darão o lugar de honra que é seu por tradição. Essa é a teoria, pelo menos. Na prática, os orientais estão bem certos de que o Vaticano não pode fazer isso sem renunciar a seus princípios e identidade; assim sendo, não há possibilidade de mudança na situação atual. Isso é bastante conveniente à maioria dos orientais, acima de tudo por causa do ódio visceral de muitos contra o Vaticano, que torna insignificante a aversão aos protestantes fundamentalistas. Em sentido puramente teológico, a Igreja Católica Romana partilha com as igrejas orientais muito da mesma compreensão sobre a natureza do apostolado, mas, com uma diferença fundamental: a reivindicação de que a primazia de Pedro lhe concede uma posição de autoridade que as outras igrejas se recusam a aceitar. É importante entender que a Igreja Católica não crê em sucessão meramente histórica de uma geração para outra. O Papa atual não descende de Pedro da mesma forma que a rainha Elizabeth II descende de William, o Conquistador, ou que o presidente dos Estados Unidos é sucessor de George Washington. Ao contrário desses, o Papa usufrui de todos os poderes que o fundador de seu cargo usufruía, e isso lhe dá o direito de proclamar novas doutrinas com autoridade apostólica (portanto, infalível). Tal reivindicação
é rejeitada pelas igrejas do Leste, assim como pelos protestantes, para os quais não existe na igreja de hoje ninguém com a autoridade divina que foi dada aos apóstolos do Novo Testamento. No mundo protestante, anglicanos e luteranos são os que mais reivindicam apostolado histórico, embora haja divisão dentro de cada grupo. Sem dúvida alguma, as igrejas oficiais da Inglaterra e da Suécia (para não mencionar outras) preservam a sucessão apostólica no sentido puramente histórico, embora tal alegação seja contestada pelo Vaticano.31 Contudo, em 1536, a igreja luterana da Dinamarca rompeu deliberadamente com a sucessão apostólica pela imposição de mãos, e mostra-se relutante em fazer acordos, mesmo com os luteranos, devido à sensibilidade destes ao assunto. É certo que existe aqui um forte elemento político: Dinamarca e Suécia são oponentes há séculos, e se lhes é possível encontrar uma razão teológica que justifique a distância entre os dois países, tanto melhor. 32 Os anglicanos, por outro lado, não se preocupam com a sucessão apostólica em relação à política interna da igreja, mas, o assunto tem dificultado projetos ecumênicos, tais como a união de grupos protestantes de maior peso na índia, a partir de 1947. Aos olhos dos anglicanos mais conservadores, somente quando todos os bispos da Igreja do sul da índia fossem consagrados por alguém da linha sucessória apostólica como eles a concebiam, essa igreja seria aceita na Comunhão Anglicana global. A maioria das outras denominações protestantes não gastam tempo com esses argumentos históricos, e fundamentam suas reivindicações 31
Em 1896, o papado declarou “nulas e sem efeito” ordens anglicanas, com base “em falha de intenção”. Ou seja, bispos, sacerdotes e diáconos anglicanos não são legítimos porque aqueles que os ordenam e/ou consagram não têm a intenção de torná-los bispos, sacerdotes e diáconos no sentido católico romano. Veja R. W. Franklin (Org.), Anglican Orders: Essays on the Centenary of Apostolicae Curae, 18961996 (Harrisburgo, PA: Morehouse, 1996). Obviamente, a decisão de muitas igrejas anglicanas e luteranas de ordenar mulheres e consagrá-las ao bispado aniquilou qualquer possibilidade de o Vaticano mudar de opinião em um futuro próximo. O mesmo pode ser afirmado quanto às igrejas orientais, embora (tipicamente) tenham sido mais reticentes em declarar publicamente sua opinião. 32 Até recentemente, na consagração de bispos dinamarqueses, os bispos suecos não tinham permissão para lhes impor as mãos, por receio de que eles adquirissem sucessão apostólica pela porta dos fundos.
ao apostolado na fidelidade à doutrina apostólica contida na Bíblia, um critério que pensam faltar nas denominações que enaltecem o episcopado histórico. No entanto, há exceções nesse aspecto dentro do mundo protestante, o que (devido à sua variedade) não causa surpresa. Alguns grupos de natureza carismática estão convictos da existência de apóstolos na igreja de hoje e que ela deve ser governada pela autoridade deles. Era assim que pensava Edward Irving (1792-1834), fundador da Igreja Católica Apostólica, uma denominação protestante pequena, mas, surpreendentemente ativa e influente. A alegação é negada (ou pelo menos ignorada) por quase todos os outros grupos, porém só o fato de poder ser feita lembra que o Novo Testamento não afirma claramente que o ministério apostólico deixou de existir depois da primeira geração de cristãos. Sabemos que desde então o consenso é que deixou, sim, de existir, tenha ou não sido antevisto, contudo, até bem recentemente, o mesmo era verdade em relação ao dom de línguas. Se este pode reaparecer em nossos dias, por que não o apostolado? São poucas as denominações que defendem a existência do apostolado hoje, mas, é óbvio que seguem a tradição radical da Reforma, segundo a qual uma igreja verdadeira tinha de começar do zero, fosse ou não liderada por um “apóstolo” designado como tal. Essas igrejas, que se multiplicaram com o tempo e são agora comuns no cenário evangélico, não se preocupam muito com sistemas tradicionais ou confissão de fé. Em geral, são ortodoxas em intenção, ou seja, aceitam as doutrinas ensinadas nos credos da igreja primitiva (quando não os próprios credos) e têm um entendimento evangélico geral do protestantismo. E sob esse prisma que, consciente ou inconscientemente, seus pastores e pregadores interpretam a Bíblia, que continua central à sua adoração e aos seus ensinos. Alguns de seus líderes buscam treinamento teológico formal, que normalmente será conservador, evangélico e protestante, geralmente com uma pincelada carismática, contudo, suas igrejas permanecem fora de qualquer estrutura denominational. Para esses grupos, apostolado é basicamente o ensino do Novo Testamento, que os próprios apóstolos transmitiram ou autorizaram outros a fazê-lo em seus nomes, e acreditam que se forem fiéis a isso, sua reivindicação ao apostolado é tão válida (se não melhor) quanto a de qualquer um.
Essa posição radical sobre o apostolado da igreja geralmente é partilhada por congregações evangélicas de denominações protestantes tradicionais, embora relutem em admiti-lo publicamente. Antecedentes históricos são de pouco valor para essas congregações, e certamente elas desconfiariam de pessoas que insistissem neles, caso ficasse evidente que as crenças e práticas dos demandantes não se conformassem com suas reivindicações. Em outras palavras, o pastor ou igreja que defendesse a própria sucessão apostólica histórica não seria aprovado se os seus ensinos e vida espiritual não estivessem de acordo com os princípios estabelecidos no Novo Testamento. Essa posição, que parece radical, é na verdade genérica a todos os tipos de protestantismo. A Reforma jamais teria acontecido se a igreja do fim da era medieval estivesse vivendo segundo seus princípios tradicionais, e os protestantes sempre mantiveram que os grupos católicos romanos e ortodoxos orientais, que deram mais valor a essa sucessão histórica, se afastaram desses princípios em maior ou menor grau. Em épocas mais recentes, protestantes conservadores (incluindo praticamente todos os evangélicos) ampliaram essa crítica a todas as igrejas protestantes que se dizem firmar na sucessão apostólica, mas, negam crenças cristãs fundamentais e toleram comportamento inconsistente com a interpretação bíblica conservadora do evangelho. Para esses conservadores, quem nega a Trindade ou realiza casamento homoafetivo não pode se esconder atrás dos ritos tradicionais e dos mecanismos da igreja, como se isso lhe garantisse uma legitimidade que sua fé e prática não sustentam. A apostolicidade, se é que ela existe mesmo, tem de refletir o ensino e comportamento dos apóstolos; de outra forma, ela não passa de um conceito sem sentido ou que não se aplica à vida da igreja. UM NOVO TIPO DE IGREJA
Antes da Reforma discutia-se pouco sobre a natureza da igreja. Havia pessoas cientes da antiga diferença entre Leste e Oeste, especialmente se moravam em regiões fronteiriças onde as duas tradições competiam por influência, contudo, essas divisões estavam enraizadas em discussões sobre jurisdição. Será que o bispo de Roma tinha direito
de impor sua vontade a outras igrejas? As práticas seguidas por uma igreja eram obrigatórias a todas as outras? Algumas perguntas, tais como se o clero deveria ser casado ou celibatário, estavam longe da trivialidade, mas, nenhuma era séria o bastante para abordar a natureza da igreja. Todos concordavam em que a igreja havia sido fundada pelos apóstolos e que as congregações futuras vieram completas diretamente delas, com a hierarquia dos bispos, sacerdotes e diáconos. Aceitavam que a administração dos sacramentos, em particular o batismo e a Ceia do Senhor, era basicamente responsabilidade dessa hierarquia, e que fosse lá o que fizesse, era válido em todos os tempos e lugares. Outras coisas poderíam ser acrescentadas à lista, e na maioria das cidades a igreja era a instituição central da vida social da população, contudo, a hierarquia e os sacramentos eram fundamentais à sua própria natureza. Também era importante que a igreja tivesse uma confissão de fé única. Essa confissão vinha das Escrituras e foi resumida no Credo Niceno-constantinopolitano. O acréscimo ocidental da cláusula filioque foi controverso e considerado por muitos uma barreira à comunhão plena com as duas partes da cristandade, mas, era assunto para discussão, e até o século 15, muitas pessoas acreditavam que seria encontrada uma solução, desde que houvesse boa vontade dos dois lados. A igreja estava dividida, mas, fiéis dos dois lados reconheciam sua presença no outro e desejavam que, de algum modo, a separação chegasse ao fim. O protestantismo era algo bem diferente. Os reformados não tinham interesse especial nas divergências jurisdicionais entre Papas e patriarcas, nem perdiam o sono por causa da discórdia filioque. Todos eles aceitaram a posição ocidental quando o assunto surgiu, mas, não acreditaram que fosse tão importante a ponto de causar divisão na igreja. Estavam concentrados em algo bem diferente. A pregação da Palavra de Deus era fundamental à percepção que tinham da igreja. Em um sentido isso não era novidade. A igreja sempre teve excelentes pregadores, e muitos dos reformados foram inspirados pelas homihas de João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla, cujas obras permaneceram desconhecidas na Europa Ocidental durante quase toda a Idade Média, contudo, haviam sido descobertas e publicadas recentemente. Crisóstomo combinava exposição bíblica com aplicação prática, e os
reformados se guiaram por essa fórmula. O sermão se tornou o elemento central do culto público, e a expectativa era que o clero pregasse de um modo responsável e edificante. Não era um objetivo fácil. Para um professor universitário como Martinho Lutero, preparar um sermão não seria complicado, mas, existiam poucos iguais a ele. A maioria dos sacerdotes não havia rece bido educação formal em exegese bíblica ou preparação de sermões, e mesmo a pouca doutrina que absorveram estava intimamente ligada aos sacramentos, em particular, à celebração da missa. Os reformados queriam uma transformação completa do ministério da igreja, o que precisavam alcançar na medida do possível usando pessoas e recursos disponíveis. Para qualquer possibilidade de sucesso nessa empreitada, os reformados tiveram de embarcar em um projeto vultoso de educação do clero, e preparar os leigos para receberem o ensino que dariam. Fiéis que frequentaram a igreja a vida inteira, especialmente para receber o corpo consagrado de Cristo, teriam agora de aprender que era mais importante ouvir e receber a Palavra de Deus sendo-lhes anunciada, estivesse ela acompanhada ou não do sacramento. Na verdade, o ministério do sacramento era subordinado ao ministério da Palavra; batismo e Ceia do Senhor eram considerados extensões da pregação e aplicações da pregação à vida de cada membro da igreja, e não rituais que de alguma forma transmitiriam e sustentariam a fé por si mesmos. Para tornar a transição ainda mais perturbadora aos tradicionais, o número de sacramentos foi reduzido de sete para dois, e as práticas devocionais que cercavam a missa foram drasticamente encurtadas, quando não totalmente abolidas. As mudanças foram explicadas, claro, e as igrejas foram instruídas quanto ao seu significado, mas, é difícil abandonar hábitos antigos, e é natural que os reformados tenham encontrado oposição. O surpreendente mesmo foi a timidez da maior parte dessa oposição. Em pouco tempo, as igrejas da Europa do Norte haviam adotado uma Reforma que dava aos costumes anteriores um aspecto estranho e até mesmo pagão. Apesar de umas poucas tentativas vacilantes de reconciliação, ficou óbvio que não haveria volta, pois um novo tipo de cristianismo havia surgido e era tão diferente do antigo quanto um computador é de um ábaco.
A realidade da nova fé era aparente desde o início da vida cristã. Na visão dos reformados, ser batizado significava receber a promessa de Deus feita no evangelho: todo o que crer em Cristo será salvo. Não que o ritual em si produzisse uma pessoa salva. Aspergir água em alguém ou imergi-la na água não causava tal efeito espiritual. A ênfase dada à fé levou a um debate sobre o batismo de criancinhas, que não entendiam o que lhes estava acontecendo. Mas, que diferença o batismo faria se alguém não batizado fizesse profissão de fé, e somente isso bastasse para a entrada no céu? As questões envolvidas nesses debates são complexas e devem ser analisadas com muito cuidado, especialmente no mundo moderno, onde o individualismo é tão desenfreado que até existem casos de pessoas que querem ser “desbatizadas”. Esse fenômeno curioso aconteceu em alguns países europeus, onde pessoas que foram batizadas na infância (geralmente na Igreja Católica Romana ou na Ortodoxa) pediram para que seus nomes fossem retirados dos registros batismais da igreja porque agora, adultas, não são mais cristãs. 33 Isso talvez seja exagero, mas, a verdade é que a Reforma abriu caminho para discussão sobre o batismo de um modo inédito na história da igreja desde as controvérsias sobre o rebatismo, e o debate continua até hoje sem nenhuma solução à vista. 34 Martinho Lutero argumentou que existia algo chamado “fé infantil”, um conceito que ele precisava para explicar como até mesmo um bebê podería ser salvo se confiasse em Deus. Poucos concordaram com ele, pois a ideia era difícil de ser explicada e impossível de ser verificada.35 O conceito de uma aliança, feita originalmente com Abraão e selada com a circuncisão, era mais coerente. A circuncisão foi abolida da igreja, 33 As
igrejas envolvidas se recusam a fazer tal coisa porque os requerentes não fizeram profissão de fé antes de serem batizados. Assim, a falta de profissão de fé não vem ao caso.
34 Veja
D. Bridge e D. Phypers, The Water That Divides (Leicester: Inter-Varsity, 1977); Μ . Root e R. Saarinen, Baptism and the Unity of the Chunk (Grand Rapids: Eerdmans, 1998). 35 Lutero elaborou esse conceito em resposta aos anabatistas. Veja seu “Concerning Rebaptism,” escrito em 1528 e publicado em inglês em J. Pelikan and . T. Lehman (Orgs.), Luther’s Works, 55 vols. (St. Louis: Concordia, 1955-86), 40:229-62. Também publicado em T. F. Lull (Org.), Martin Luther’s Basic Theological Writings, 2. ed. (Minneapolis: Fortress, 2005), p. 239-58.
contudo, a fé de Abraão continuou fundamental. Isso levou pessoas como João Calvino a transferir o que haviá aplicado à circuncisão para o ritual do batismo, que parecia cumprir para os cristãos o mesmo papel da circuncisão para os judeus. Argumentando que a igreja havia derrubado as barreiras que existiam no judaísmo, em que a circuncisão era administrada somente aos homens, Calvino e seus colegas alegaram que o batismo poderia (e deveria) ser administrado mais generosamente. As mulheres foram incluídas, assim como os gentios. Por que, então, as crianças deveríam ser excluídas de algo que os meninos haviam usufruído sob a antiga dispensação? Não fazia nenhum sentido. Se as portas da igreja estavam abertas de par em par, as crianças tinham de ser incluídas porque elas também eram herdeiras das promessas feitas a Abraão. 36 No entanto, o batismo não lhes garantia a salvação. Assim como a circuncisão não garantia que um menino judeu tomaria posse da promessa na vida adulta, o batismo também não assegurava que as crianças professariam a fé admitida em seus nomes. Mas, isso significava que as crianças batizadas eram abrigadas pela igreja e deveríam ser educadas como cristãs. Se rejeitassem a fé na vida adulta, a responsabilidade era delas — como na parábola do semeador, algumas, sementes cairiam em terreno pedregoso. Mas, isso não era motivo para o semeador parar de semear, e assim era o batismo. Todos os ministros do evangelho tinham a responsabilidade de buscar as crianças e batizá-las para que se tornassem herdeiras das promessas e fossem criadas na fé, quer viessem ou não a aceitá-la mais tarde. Outra consideração teológica relevante era que todas as crianças nasciam pecadoras. É importante lembrar que os primeiros anabatistas eram (e injustamente) acusados de pelagianismo, heresia segundo a qual os seres humanos não são totalmente pecadores e podem cooperar com Deus no alcance da própria salvação. De acordo com esse argumento, se um bebê não pudesse ser batizado, ele não era pecador. Claro que os bebês ainda não tiveram a chance de cometer pecado nenhum, todavia herdaram o pecado inato de Adão. Em nenhum momento uma criança repete a queda primordial. Todos nós precisamos de um Salvador, e 36 John
Calvin, Institutes of the Christian Religion 4.16.5—6.
em um mundo onde a taxa de mortalidade infantil era alta, as pessoas tinham muito mais conscientização disso do que hoje. Os reformados também tinham de aceitar que a maioria das pessoas ainda acreditava que o batismo salvava a criança, pois foi isso que aprenderam na igreja medieval. O batismo era cercado de superstição, e o consenso era que qualquer ensino falso tinha de ser atacado e afastado para o mais longe possível. Ao negar o batismo às crianças e insistir que apenas cristãos professos fossem batizados, os anabatistas esperavam que a superstição e a falsa segurança no poder de um ritual externo pudessem ser refutadas com eficiência. Aqueles que praticavam o batismo cristão não acreditavam que ele salvasse quem o recebia, pela simples razão que já havia sido salvo; o batismo não passava de um mero sinal e testemunho de uma regeneração já acontecida. Também argumentavam que enquanto o Novo Testamento apresenta muitos exemplos de adultos que professaram a fé e foram batizados, não há exemplos de batismo de crianças, embora o batismo infantil também não seja proscrito em lugar algum. No tocante às evidências bíblicas, o debate sobre batismo infantil era, portanto, mais sobre o que o texto não disse do que sobre o que ele disse, e assim continua até hoje. Zelosos, os anabatistas também insistiam na imersão total como o único modo bíblico de batismo, apesar de a maioria dos batistas hoje concordar que isso é de importância secundária. Se o cristão é batizado com base na profissão de fé, é difícil achar que a quantidade de água irá fazer qualquer diferença, e insistir nisso é uma forma de legalismo que entra em desacordo com outros princípios, mais fundamentais, que os batistas se preocupam em manter. Infelizmente, discórdias sobre a administração apropriada do batismo foi suficiente para dividir o movimento protestante, e até hoje não apenas as igrejas batistas, mas, também muitas outras rejeitam o batismo infantil. O assunto causou divisão também entre os reformados. 37 Compare a questão do batismo com o fato de não existirem igrejas protestantes dedicadas a um conceito especial da Ceia do Senhor—embora 37 Para
entender o debate entre a tradição reformada, veja P. Marcel, The Biblical Doc trine of Infant Baptism (Londres: James Clarke, 1953), e D. F. Wright, Infant Baptism in Historical Perspective (Milton Keynes: Paternoster, 2007).
certamente existam diferenças de opinião entre os protestantes sobre esse assunto também — e a importância singular do batismo na doutrina da igreja se torna visível. O batismo continua fundamental à eclesiologia porque é o sacramento de iniciação. A criança batizada pertence à igreja de um modo que a não batizada não desfruta. Podemos fazer uma comparação com a cidadania de um país. As crianças são cidadãs de um país ao qual pertencem mesmo não possuindo todos os direitos dos adultos, direitos que reivindicarão quando se tornarem adultas. A comparação não é exagerada, pois até o século 19 (e até mais tarde, em alguns lugares), o batismo era a maneira de os nascimentos serem registrados na maioria dos países tradicionalmente cristãos; então, de fato, o batismo era uma prova de cidadania, uma vez que, em muitos casos, não havia outro modo de comprová-la. Assim, como em geral as crianças são ensinadas a ser cidadãs responsáveis, e dificilmente rejeitam sua cidadania na idade adulta, pressupunha-se que as que aprendiam quais eram as responsabilidades de um membro de igreja aceitariam fazer parte dela quando alcançassem a idade do discernimento. Na prática, obviamente, os anabatistas (e mais tarde, os batistas) se baseiam nos mesmos princípios, ainda que analisem o processo de modo diferente. Seus filhos não permanecem neutros, mas, são criados na igreja exatamente como as crianças batizadas, e todas devem fazer profissão de fé antes de assumir responsabilidade de adultos na igreja; portanto, as diferenças entre eles, mesmo que teoricamente significantes, são bem menos, na prática, do que parecem ser. A maioria das igrejas que batizam crianças não permite que elas participem da Ceia do Senhor imediatamente, apesar de a lógica dessa prática ter sido questionada recentemente. As igrejas orientais sempre serviram a Ceia às crianças recém-batizadas, contudo, isso é menos im portante do que parece porque a Ceia do Senhor é infrequente no Leste. Poucos adultos são comungantes, portanto o assunto sobre as crianças não é comum. A situação é diferente no Ocidente, onde a confirmação, como uma ordenança distinta ou conclusão do batismo, é a norma desde bem antes da Reforma. Nas igrejas episcopais a confirmação é normalmente realizada pelo bispo, cujo ministério nesse aspecto é considerado um aglutinador que une a igreja em uma fé comum. Em
outras igrejas a confirmação é administrada pelo pastor, que segue o conselho de um grupo de líderes que já examinaram e aprovaram os candidatos. A prática batista é semelhante a essa, com a diferença que os candidatos recebem o batismo, e não a confirmação. Nos últimos anos, um movimento sacramental entre os protestantes tenta aproximar o batismo e a Ceia do Senhor. Para os batistas isso não é problema, pois quem não é batizado não participa da Mesa do Senhor e, portanto, as criancinhas estão automaticamente excluídas. No entanto, para outras igrejas isso é mais difícil. A Igreja Católica Romana há muito confirma as crianças em tenra idade (seis ou sete anos), portanto elas não se lembram de uma época em que não podiam participar da Ceia. Contudo, as Igreja Protestantes tradicionais geralmente adiam a confirmação até a adolescência, sobretudo devido à ênfase que colocam na instrução antes da admissão integral na membresia da igreja. Isso lhes é necessário, pois as igrejas protestantes geralmente têm maior participação laical que as católicas. Os leigos são envolvidos na liderança do culto, na disciplina da igreja e nas decisões feitas nos sínodos nacionais de uma forma desconhecida ao Vaticano. Portanto, é essencial que sejam mais bem instruídos e conscientes de suas responsabilidades. O envolvimento dos leigos mostra que os protestantes valorizam mais a profissão de fé pessoal, e nesse aspecto, os que batizam crianças e os que não batizam estão mais próximos uns dos outros que dos católicos romanos e dos ortodoxos. O adiamento da confirmação até a adolescência significa que uma pessoa não confirmada deve ser impedida de participar da Ceia do Senhor? Nessa área as coisas são mais complicadas. As igrejas anglicanas geralmente praticam a exclusão, mas, existe uma provisão formal para que qualquer um “desejoso de ser confirmado” participe da Ceia. Ou seja, alguém que entenda o que está ocorrendo e deseje fazer parte do acontecimento é bem-vindo; a confirmação não é, por si só, a única porta de admissão à Ceia. Na verdade, houve épocas em que essa provisão foi de particular relevância. Nas colônias americanas, antes da revolução, por exemplo, não havia bispos anglicanos, portanto, era bem pequeno o número de adultos confirmados; então, todos os que participavam da Ceia faziam parte dessa categoria. Hoje em dia, isso
não é problema na maioria dos países, contudo, a provisão permite aos anglicanos oferecer a Ceia a todos que professam o nome de Cristo e são membros leais a suas próprias igrejas, tenham ou não recebido a confirmação episcopal. Da mesma forma, muitas denominações protestantes são generosas nessa questão, mas, outras nem tanto. No mundo de fala inglesa, existe uma tendência entre alguns grupos menores de praticar o que é conhecido como “ceia restrita”, isto é, a participação na Ceia do Senhor está reservada aos membros em comunhão com a dita denominação, ou até mesmo com a igreja local. A razão disso em geral é disciplinar. Se o pastor ou líderes que estiverem administrando a ceia não conhecerem quem a está recebendo, não têm como determinar se é digno dela. Em um sentido, claro, ninguém é “digno” porque ninguém é perfeito, contudo, o Novo Testamento apresenta alguns critérios para quem deseja participar da Mesa do Senhor, e alguns protestantes acham que devem se esforçar para implementá-los. Para tanto se faz necessário um exame antes de se aproximar da Mesa, o que é difícil administrar em larga escala. Os presbiterianos (e também anglicanos) tradicionalmente preparavam as pessoas para receber os elementos da Ceia, mas, com a frequência em que a Ceia passou a ser servida, a prática caiu em desuso. Mesmo assim, alguns grupos conservadores continuam a manter o costume como podem, e se baseiam em precedente bíblico e denominacional para essa abordagem. A ceia restrita é mais prevalecente nas igrejas luteranas, especialmente nas conservadoras, como a do Sínodo Missouri. Nesse caso, porém, os motivos são teológicos e disciplinares. Para os luteranos conservadores não basta que a pessoa confesse seus pecados e “trate o próximo com amor e caridade e prometa viver uma nova vida”; os participantes também têm de confessar que o corpo de Cristo está presente “no, com e sob” o pão e o vinho. Isso não significa transubstanciação no sentido católico romano, mas, também não é exatamente o que as igrejas reformadas (incluindo a anglicana) ensinam. Na verdade, é algo muito difícil de ser definido com precisão, e no século 19, observadores■ anglicanos passaram a chamá-la a doutrina da “consubstanciação”, embora o termo seja raramente usado pelos próprios luteranos.
Isso quer dizer que o corpo e o sangue de Cristo estão presentes nos elementos sacramentais “de um modo celestial e espiritual”, de sorte que as pessoas que recebem o pão e o vinho também recebem o corpo e o sangue espiritual de Cristo, quer sejam crentes ou não. Outros protestantes preferem afirmar que quem recebe desmerecidamente os elementos da ceia não ingere o corpo nem o sangue de Cristo, pois somente quem está espiritualmente vivo pode recebê-los, mas, como os luteranos são prontos a enfatizar, essa perspectiva “recepcionista” tem seus problemas. Os que a defendem geralmente adotam uma compreensão puramente simbólica do pão e do vinho, o que questiona logo de início a necessidade do ritual. Se quem tem mente espiritual pode ter comunhão com Cristo independentemente das ordenanças, e as ordenanças não afetam essa comunhão espiritual de forma alguma, por que então se preocupar com ela? Essa abordagem incomoda os luteranos (e muitos anglicanos também), mas, de um modo curioso, lembra o comportamento dos pais do deserto da Igreja Oriental. Como ermitões, eles raramente tomavam a Ceia, porém isso não lhes fazia falta, porque sua guerra espiritual acontecia em um plano mais elevado e sua experiência mística com Deus ultrapassava qualquer coisa que a Ceia pudesse lhes oferecer. 38 Embora os protestantes não usassem essa linguagem, seu fervor devocional raramente ou nunca resulta em aumento de práticas sacramentais, pois a maioria deles acharia muito estranho revelar dessa maneira a sua devoção pessoal a Cristo. Em relação aos outros sacramentos da igreja medieval, os grupos protestantes os desprezam totalmente ou relegam a uma categoria diferente e menos importante das “ordenanças da igreja”. Em geral, os protestantes restringem o termo “sacramento” ao que podemos chamar de “sacramentos do evangelho”, ou seja, os rituais autorizados por Cristo e que especificamente proclamam a mensagem do evangelho.39 O batismo faz isso, claro, assim como a Ceia do Senhor, mas, não 38 Isso
não significa que eles abandonaram a ceia inteiramente, mas, a recebiam infrequentemente, um costume que ainda é a norma nas igrejas do Leste. Veja D. J. Chitty, The Desert a City (Londres: Mowbrays, 1966), para exemplos dessa prática. 39 A distinção é expressada muito concisamente no Artigo 25 dos Trinta e Nove Artigos da Igreja Anglicana. A maioria das outras igrejas protestantes concordam com isso, implicitamente, se não sempre explicitamente.
os outros sacramentos. A confirmação talvez seja mantida por igrejas protestantes como um complemento do batismo, todavia não é considerada um sacramento em si. Penitência e extrema-unção geralmente são rejeitadas como desvios dos ensinos do Novo Testamento. Confissão de pecado e unção de doentes são praticadas por alguns grupos protestantes, contudo, não estão integrados na vida sacramental da igreja da maneira que acontece na Igreja Católica Romana. A ordenação é praticada, de uma forma ou de outra, pela maioria das igrejas protestantes, contudo, também não é considerada sacramento, a não ser por algumas pessoas ligadas à Igreja Anglicana extremamente conservadora, influenciadas pelo catolicismo romano. A forma de que se reveste é diferente de uma denominação para outra. Anglicanos, e muitas outras igrejas organizadas de forma episcopal, mantêm a ordem tradicional tripla de bispos, sacerdotes (presbíteros) e diáconos, originalmente porque todos os três estavam presentes na igreja do Novo Testamento. A erudição moderna forçou essas igrejas a revisar essa afirmação, mas, elas continuam convictas que o episcopado monárquico (ou “histórico”) se desenvolveu no estágio inicial da igreja e deve ser mantido na igreja contemporânea. Presbiterianos e muitos outros protestantes reformados rejeitam esse “episcopado histórico” e defendem que, em vez disso, ele é manifestado pelo presbitério. Nem todos os presbíteros são “líderes de ensino”, mas, todas as igrejas têm um grupo deles, que opera como se fosse um concilio de liderança coletiva na congregação local. Todos os líderes são ordenados para seus cargos, mas, somente o “líder de ensino” deve receber treinamento teológico formal e é pago pela igreja como ministro de tempo integral, tornando sua posição o equivalente funcional do sacerdote anglicano. Outros grupos protestantes usam terminologia diferente para esses cargos, contudo, na prática, quase todos têm um pastor que lidera a congregação e uma diretoria que se responsabiliza pela administração da igreja. Cada denominação tem sua maneira de escolher esses líderes, mas, geralmente a igreja faz uma eleição para a formação da diretoria, e esta escolhe os pastores, que costumam ser ratificados pelo voto dos mem bros. Em igrejas de sistemas hierárquicos como a Anglicana, a Luterana
e a Presbiteriana, a escolha de um pastor requer a aprovação de alguém que não pertença à congregação local — seja bispo (para anglicanos e luteranos) ou presbitério —, que é uma associação de igrejas locais para os presbiterianos. Em alguns casos, especialmente se uma igreja local estiver com problemas, o bispo ou o presbitério indica ou suspende o pastor, exercendo, portanto, a supervisão que lhe foi confiada. A força desse sistema é evidente, mas, ele também tem suas falhas, e a mais séria delas é que autoridades externas podem impedir uma igreja de escolher o pastor de sua preferência. O problema se agrava quando as convicções teológicas do pastor preferido da igreja são contrárias à do bispo ou do presbitério. Nos últimos anos, ocasionalmente, pastores evangélicos e carismáticos, que em geral provocam o rancor de autoridades eclesiásticas, foram excluídos do pastorado por esse motivo, e temos de admitir que o sistema de responsabilidade coletiva tem sido usado com frequência para estrangular a diversidade na liderança oficial da igreja. Outros grupos protestantes seguem padrão semelhante, mas, sem os procedimentos hierárquicos. São igrejas congregacionais, ou independentes, das quais as batistas são um exemplo notável. Suas congregações têm liberdade para administrar sua vida doméstica, não apenas na ordenação de pastores como também nas formas de culto e até mesmo na doutrina que irão adotar, embora possam ser “desfraternizadas” pelo grupo mais amplo com o qual decidiram se associar, caso de afastem demasiadamente de sua regra geral. Ao mesmo tempo, uma igreja batista (por exemplo) pode pertencer a mais de uma associação regional ou não pertencer a nenhuma. E importante afirmar que, na prática, as igrejas protestantes são mais parecidas umas com as outras do que suas diferenças oficiais deixam transparecer. Os pastores protestantes, apesar de todo empenho em negar tal coisa, são considerados pela maioria de suas igrejas quase da mesma forma que católicos consideram os padres; a diferença mais óbvia entre eles é que, em geral, os pastores são casados. A extinção do celibato sacerdotal compulsório foi um elemento importante na plataforma dos reformados do século 16, nunca seriamente contestado ou revogado pelas igrejas protestantes. Em geral, até mesmo os sacerdotes
anglo-católicos da mais alta hierarquia são casados e não celibatários, como seus equivalentes católicos romanos têm de ser. Mais ainda, houve tanta reação contrária ao celibato compulsório que até hoje é difícil a um solteiro ser aceito no ministério protestante, mesmo que não haja nenhuma proibição formal que desabone seu estado civil. A reação persiste, mesmo sendo explicitamente contestada no Novo Testamento, e, falando francamente, a razão maior é o preconceito popular. Muitos cristãos acham que pastores solteiros não têm capacidade para liderar igrejas, seja porque são inexperientes numa área que para os críticos é parte essencial da vida, seja porque são mais susceptíveis a tentações a que supostamente os casados são menos vulneráveis. Tais opiniões raramente, ou nunca, são postas à prova; são aceitas como verdadeiras, mesmo diante de tantos casos de deslize sexual de pastores casados e dos altos índices de divórcio entre eles. Mulheres solteiras têm a vida um pouco menos complicada que os homens solteiros, contudo, por sofrerem mais restrições ministeriais, no fim, dá na mesma. A verdade é que a Reforma criou um novo tipo de clero. Sacerdotes que haviam sido cortados do convívio social por causa do celibato foram integrados à sociedade, onde logo conquistaram um lugar especial. A expectativa era que os pastores protestantes fossem formados em universidade teológica, uma qualificação que imediatamente os removia da classe trabalhadora. Durante séculos, somente um número reduzido de rapazes tinha meios de frequentar universidade, e comumente eram de famílias com condições de lhes pagar os estudos; assim, em geral, o clero era formado pela “classe média” por intermédio desse processo autosseletivo informal. Os filhos da aristocracia, podiam, claro, adentrar as fileiras do clero, e muitos o fizeram, mas, foram exceções. Em geral, os clérigos eram colocados na mesma categoria dos médicos e professores: homens com uma qualificação profissional que lhes conferia identidade especial, sem cortá-los da sociedade como um todo. Essa forma de profissionalismo clerical só passou a ser questionada nos tempos atuais, com resultados ambíguos. Por um lado, existe uma certa pressão para que indivíduos de diferentes experiências e contextos sociais incorporem as fileiras do ministério ordenado, e assim acabar com a ideia de divisão de classe encorajada pelo modelo tradicional.
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Mas, por outro lado, também a preparação acadêmica séria, reavivados que antigamente que mostrasse ter o dom da
tem crescido o movimento que incentiva especialmente entre evangélicos e grupos ordenariam praticamente qualquer um pregação, quer tivesse estudo teológico
ou não. Como hoje em dia o acesso a seminários e faculdades é mais democrático que antigamente, a velha barreira de classe desapareceu, contudo, ainda existem reclamações que o ministério produzido dessa forma é muito intelectual e geralmente não satisfaz seus propósitos. Ao mesmo tempo, há mais oportunidades para qualquer pessoa fazer um curso básico de teologia, o que tem levado à expansão da pregação laica e a outras formas de ministério serem reconhecidas, inclusive por igrejas que normalmente recorrem à ordenação protestante tradicional. Isso nos leva finalmente ao matrimônio, que era um sacramento na igreja medieval e que, no entanto, não é mais reconhecido como tal pela maioria dos protestantes. Até bem recentemente, quase todas as igrejas protestantes concordavam que a monogamia heterossexual era a única forma possível de casamento e que o divórcio deveria ser combatido com firmeza. Por exemplo, seria impensável que um homem divorciado que se casou novamente ocupasse cargo pastoral ou de liderança de ensino em qualquer igreja. Essa atitude foi profundamente corroída, ainda que em diferentes níveis, de uma denominação para outra, dependendo de até que ponto um grupo se tornou liberal. Em um dos extremos, estão os fiéis que mantêm os padrões tradicionais, e aqui se incluem os evangélicos como um todo, embora a aceitação do divórcio e do novo casamento também tenha crescido entre eles nos últimos anos. O casamento homoafetivo, por outro lado, continua sendo rejeitado pela maioria dos protestantes, apesar de algumas denominações liberais (especialmente nos Estados Unidos), estarem na vanguarda de sua fomentação. As igrejas protestantes estatais se encontram em uma situação particularmente complicada, porque tradicionalmente sempre atuaram como tabeliãs de casamento para a população toda, fossem os nubentes membros da igreja ou não. Os luteranos escandinavos não têm querer nesse assunto; precisam seguir as leis da nação, não importa o que achem delas, e se o país aprova novo casamento após o divórcio e
também o casamento homoafetivo, a igreja tem de acatar as decisões. A Igreja Anglicana, por outro lado, tem liberdade de não contratar pessoas divorciadas que se casaram novamente, embora essa prática esteja mudando em alguns lugares. Recentemente, a Igreja Anglicana proibiu que seus sacerdotes realizem casamentos homoafetivos, e seus bispos pelo menos tentam assegurar que o clero não concorde com a prática, apesar de essas uniões terem sido legalizadas pelo Estado. Outras igrejas protestantes têm liberdade para determinar suas próprias regras matrimoniais, contudo, se deparam com dificuldades práticas quando tentam aplicá-las. A demanda por casamento religioso, mesmo entre não frequentadores de cultos, continua elevada o suficiente para que algumas igrejas - especialmente aquelas com arquitetura fotogênica — se sintam pressionadas a fazer exceções às regras, e o mesmo se aplica ao novo casamento de divorciados que pertençam, ou tenham parentes próximos que pertençam, a uma igreja que normalmente não realiza tais cerimônias. A existência de “capelas matrimoniais” em cidades como Las Vegas, onde casamentos são realizados em questão de minutos, é um lembrete dos problemas causados pelo relacionamento tradicional da igreja com o matrimônio. Talvez o comentário mais justo sobre o assunto é que a disciplina praticada pelas gerações anteriores quase não existe mais, e o conceito de matrimônio entre os protestantes é mais frouxo hoje do que nunca. As igrejas estão presas em um dilema: deveriam tolerar um leque mais amplo de situações matrimoniais do que oficialmente aprovam? Deveriam impor padrões mais rigorosos para o clero do que para a população em geral? E o que fazer quando indivíduos infringirem as regras para conseguir o que querem, como às vezes acontece? As tendências da vida moderna nos incentivam a crer que os ensinos tradicionais da igreja um dia alcançarão o comportamento mais “avançado” de um número substancial de seus membros, que na prática incentiva laxismo e indisciplina. Em suma, as igrejas protestantes, por mais diferentes que sejam na superfície, são mais parecidas entre si do que as igrejas católicas ou as ortodoxas orientais. Isso explica o crescimento extraordinário de ministérios interdenominacionais e paraeclesiásticos, especialmente entre
jovens e estudantes universitários, que produziu gerações de cristãos sem ligação particular com qualquer igreja local. Um resultado desse fenômeno é que os “distintivos” denominacionais se tornam cada vez menos importante e, em geral, são do interesse sobretudo do clero e outros profissionais religiosos. Relativamente poucas pessoas escolhem uma igteja porque ela é metodista ou presbiteriana; é muito mais importante que a igreja tenha um bom grupo de jovens ou excelente programa para crianças do que seja liderada por bispos ou pastores. Algumas, pessoas buscam mensagens sólidas e um formato de culto que lhes agrade, contudo, elas sabem muito bem que não podem de pender de rótulo denominacional como garantia de que encontrarão o que procuram. À medida que a sociedade se urbaniza, as escolhas se multiplicam e as igrejas se encontram na posição de bens de consumo; espera-se que elas adaptem suas atividades e políticas de modo a atrair novos membros, um estímulo que provavelmente não as incentivará a dar muita ênfase às suas tradições históricas. Em muitos países, os bairros novos geralmente têm uma “igreja da comunidade” que talvez seja independente ou um projeto de cooperação de mais de uma denominação, o que geralmente reduz a noção da pessoa comum sobre as diferenças formais que possam existir nos bastidores ou na mente do pastor. O cenário atual é fluido, e seria precipitado fazer previsões sobre seu destino. Até o momento, é seguro afirmar que as denominações tradicionais estão em declínio, em parte porque a “lealdade denominacional” não é o que costumava ser, e em parte porque, em alguns casos, a teologia liberal e o conservadorismo cego imposto por líderes e mem bros endinheirados que desejam manter as coisas como sempre foram cuidam para que recém-chegados não se unam a eles com frequência. Igrejas independentes e igrejas sem sede própria, com poucas responsabilidades e sem bagagem do passado, surgem por todos os cantos, mas, o que será delas no longo prazo ninguém sabe. Irão se institucionalizar, como suas predecessoras fizeram, e deixarão de ser novidade, ou simplesmente se dispersarão quando seus entusiasmados membros envelhecerem ou mudarem-se para outro lugar e se unirem a uma
congregação mais sossegada? Se isso acontecer, elas serão substituídas, como sempre foram no passado, por grupos independentes resultantes de divisões nas igrejas e que se voltam para a geração mais nova? Não importa o que aconteça, é óbvio que o protestantismo está sofrendo uma metamorfose sem equivalente verdadeiro nas igrejas católicas e ortodoxas, embora estas também sofram o estresse criado pelo mundo moderno. Como sempre, “O vento sopra onde quer. Você o escuta, mas, não pode dizer de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todos os nascidos do Espírito”.40 E a igreja, para todos os efeitos, continua sendo, no fundo, a comunidade daqueles que nasceram do Espírito de Deus.
40 João
3.8.
7
O
que a igreja deveria ser?
TEORIA V E R S U S PRÁTICA
Até aqui analisamos o desenvolvimento da igreja durante aproximadamente dois mil anos, e como ela é agora, em toda a sua glória diversificada. Todas as igrejas querem crer que são um reflexo do corpo de Cristo, porém uma análise íntegra rejeita a descrição que fazem de si mesmas como imagem exata do que a igreja deve ser como um todo. Os católicos, por exemplo, são veementes em afirmar que seguem a única e verdadeira igreja, mas, têm de admitir que existem outros cristãos no mundo e que estes formam “comunidades eclesiásticas” próprias, que são hoje reconhecidas oficialmente pelo Vaticano como grupos de “irmãos separados” e não mais como heresias ou dissidências. As igrejas ortodoxas orientais também se reconciliaram com o restante do mundo cristão, ainda que sua eclesiologia seja tão exclusiva quanto a católica romana. Os protestantes geralmente são mais dispostos a aceitar a legitimidade de outros grupos, não importa a antipatia ou divergência que porventura tenham para com eles, contudo, o desafio que enfrentam dos católicos e dos ortodoxos força-os a analisar sua razão de ser. Seja como for, os protestantes tiveram de justificar sua existência como grupos fiéis aos ensinos de Jesus mesmo não aceitando a autoridade do Vaticano nem reconhecendo a Igreja Católica como a verdadeira sucessora da igreja do Novo Testamento. Na verdade, os primeiros protestantes argumentaram que foi por causa da fidelidade a Cristo que a única opção que lhes restou foi desprezar as reivindicações
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católicas, que eles acreditavam representar a usurpação das “prerrogativas da coroa do Redentor” por parte de uma autoridade humana colocada no lugar do Senhor. Essa defesa provocou o nascimento da eclesiologia, ou doutrina da igreja, como parte da teologia. Pela primeira vez, teólogos (e apologistas de diferentes denominações) foram obrigados a descrever a igreja não simplesmente como era na prática, mas, como deveria ser em princípio. As igrejas se encontraram diante de um dilema: deveríam continuar como eram e justificar suas tradições vigentes, ou deveríam se reformar de acordo com um sistema teórico apresentado por uma eclesiologia em particular? Com o passar do tempo, os críticos iniciais ferrenhos da ordem medieval se acomodaram às suas próprias tradições, todavia, as questões fundamentais que provocaram a Reforma continuavam a ressurgir. A história do protestantismo mostra que novas formações que se autodenominam “igrejas” continuam a emergir; cada nova geração se vê obrigada a tratar de assuntos eclesiológicos, assim como seus predecessores do século 16 fizeram. A primeira questão e talvez a mais básica com a qual devemos lidar é que os protestantes partiram da suposição que a igreja que conheciam não era o que deveria ser. Seus oponentes católicos muitas vezes concordaram que a igreja tradicional havia se corrompido, que muitos da cadeia hierárquica não mereciam o cargo que ocupavam, e até mesmo que algumas doutrinas precisavam ser revisadas e esclarecidas para evitar superstições e equívocos do povo. Entretanto, esses eram problemas que qualquer organização humana encontra cedo ou tarde — e as igrejas protestantes não estão imunes a eles. O que os católicos não podiam aceitar, e em que os protestantes insistiam, era a necessidade de uma mudança mais fundamental, mudança que reconstruiría a imagem da igreja que se tornou dominante na Idade Média. Qualquer pessoa ambiciosa o suficiente para pensar em refazer a igreja tem de ter um plano para a obra, e isso não foi empecilho para os reformados, pelo menos não no início. No que lhes dizia respeito, a doutrina da igreja estava estabelecida na Bíblia, particularmente no Novo Testamento. Na opinião deles, os princípios fundamentais apresentados na Bíblia eram:
^/ /
1. Jesus Cristo é a cabeça da igreja, que é o seu corpo. Todos concordavam com isso em princípio, até mesmo os católicos. O problema estava em sua implementação. Para a Igreja Católica Romana, a solução era relativamente simples. O Papa era o “vigário de Cristo”, o homem que o representava na terra e que, portanto, exercia autoridade comparável à sua (embora delegada). Isso tudo era anátema aos protestantes. Para eles, nenhum ser ou grupo humano tinha poder para exercer tal cargo. Pessoas podiam ser indicadas para diferentes cargos ou funções dentro da igreja, mas, ninguém podia reivindicar autoridade absoluta sobre ela. O poder na igreja era necessariamente partilhado entre diferentes pessoas, e fazia-se necessário um sistema de governo partilhado e equilibrado para garantir que ninguém se apoderasse do papel ditatorial que, segundo muitos, o Papa havia confiscado para si. 2. Em todas as coisas, a igreja deve estar submissa à Palavra de Deus, ou seja, ao ensino das Sagradas Escrituras. O que não era ensinado pela Bíblia não podería ser imposto à igreja como matéria de fé. Como (e até onde) a igreja deveria levar seu culto, sua doutrina e seu governo a se conformarem com o padrão do Novo Testamento era motivo de controvérsia. Todos concordavam em teoria que isso deveria ser feito, mas, como proceder e colocar em prática era mais difícil. Algumas diferenças de opiniões legítimas entre os reformados causaram separação entre eles. Em outros casos, fatores externos (principalmente o controle do Estado) limitavam a liberdade das autoridades eclesiásticas de decidirem como seriam governadas, e os que se ressentiram disso formaram suas próprias igrejas, onde poderíam fazer o que bem entendessem.
3
3. A igreja deve anunciar a Palavra de Deus e administrar os sacramentos de modo fiel aos ensinos do Novo Testamento. Esse mandado foi am plamente aceito por todos, mas, colocá-lo em prática foi outra história. Em teoria, todos concordaram que o Espírito Santo foi dado à igreja para preservá-la do erro e protegê-la na propagação do evangelho. Mas, como isso deveria funcionar na prática? Para a Igreja Católica Romana, a resposta era relativamente simples. Qualquer bispo ou padre que recebesse a imposição de mãos de um bispo que estivesse na linha de sucessão apostólica já possuía o exigido e podia dispensar os dons do Espírito à
igreja de acordo com os regulamentos que os Papas e concílios haviam preparado. Os protestantes desaprovaram isso. Fossem tradicionalistas conservadores ou radicais, eles criam que um ministério só era válido caso produzisse fruto no Espírito. Os sinais exteriores e as cerimônias eram complementos desse ministério, e embora alguns argumentassem que eram coisas valiosas (e até mesmo indispensáveis), não eram substitutas para o agir do Espírito Santo. O agir do Espírito não podia ser garantido, controlado ou manipulado por nenhuma autoridade humana, embora a igreja tenha recebido a promessa de que quando seus membros agissem pela fé, Deus os honraria atendendo seus pedidos. Os sacramentos eram uma área sensível de desentendimento entre os protestantes e entre protestantes e católicos, todavia, as práticas eram amplamente diversificadas. Em geral, os protestantes que praticavam o batismo infantil validavam os batismos realizados por sacerdote católico (ou ortodoxo), até porque a primeira geração de reformados foi batizada na infância. Somente os anabatistas contestaram a prática, mas, como rejeitaram os batismos de outras igrejas protestantes, foram repreendídos severamente e excluídos por todos. Os protestantes também eram mais liberais em permitir que membros de outras igrejas participassem da ceia em suas igrejas, embora existissem exceções, especialmente entre os luteranos. Mas, em geral, na idade contemporânea tem sido mais fácil os protestantes praticarem a ceia aberta do que os batistas aceitarem o batismo infantil, e a maioria não impediría que católicos e ortodoxos participassem da ceia, caso desejassem, embora a hospitalidade recíproca não seja oferecida e seja de se esperar que tanto católicos quanto ortodoxos recusem convites protestantes para a ceia conjunta. 1 4. A igreja deve disciplinar seus membros e proteger sua pureza da melhor maneira possível. Também neste aspecto, havia um consenso entre os reformados protestantes, contudo, também havia o reconhecimento de que a disciplina eficiente era quase sempre impossível de ser praticada. Executá-la justamente e em escala universal exigiría policiamento de tem No. entanto, há algumas, exceções curiosas. Na França, por exemplo, a Igreja Ca-
1
tólica Romana permite que os anglicanos participem da ceia, mesmo contrariando
po integral e seria praticável somente em vilarejos como os dos menonitas e dos puritanos da Nova Inglaterra. As experiências nem sempre foram positivas, e para muitos protestantes a disciplina eclesiástica de qualquer tipo era tirânica. Esse sentimento se fortaleceu quando os protestantes entenderam que suas igrejas poderíam exercitá-la (e às vezes o fizeram) contra outros protestantes, com os quais concordavam em questões essenciais da doutrina, mas, de quem discordavam em outros assuntos, que para muitos pareciam questões secundárias e até mesmo triviais. Na Inglaterra, por exemplo, os clérigos puritanos foram disciplinados pela igreja estatal por não usarem o traje clerical correto ou as palavras certas da liturgia oficial. Colocar tais detalhes no mesmo nível da negação da Trindade ou da divindade de Cristo significava distorcer a natureza da verdade cristã e causar danos à igreja, mas, foi o que aconteceu, e era quase impossível convencer as autoridades que elas estavam no caminho errado. Infeüzmente, é preciso dizer que as pessoas que sofriam esse tipo de perseguição também eram favoráveis ao exercício da disciplina, mesmo em questões secundárias como essas, e quando tiveram a chance de impor suas idéias aos outros, foi exatamente o que fizeram. Essa atitude ficou aparente na Nova Inglaterra, Estados Unidos, onde os congregacionalistas, que sofreram discriminação na terra natal, estabeleceram sua própria igreja e passaram a hostilizar quem não se amoldava a ela. 2 5.
A igreja tem de se organizar para que os fiéis tenham oportunidade de
exercitar seus dons espirituais, que incluem ensino, pregação e pastoreio. Em nome da ordem e decência, esses dons precisam ser reconhecidos publicamente, e a igreja deve programar reuniões para que seus membros compartilhem seus dons. Normalmente, isso exige que os pastores e líderes tenham certo treinamento teológico e que haja um sistema administrativo que permita emprego e remuneração. Também é necessário programar hora e dia para o culto público, que irá variar de lugar para lugar, mas, geralmente acontecerá aos domingos (pelo menos). A Inglaterra e Escócia desenvolveram um sabatismo bem forte, reminiscente 2
Poucos sabem que, embora a Primeira Emenda da Constituição Americana proíba o estabelecimento de religião a nível federal, os estados não foram afetados pela regra, pelo menos de início. O estado de Connecticut conseguiu, então, manter sua igreja estatal até 1818, e o de Massachusetts, até 1833.
do judaísmo, e algumas leis foram aprovadas garantindo que o menor número possível de pessoas trabalhasse aos domingos. Em geral, esse rigor desmoronou diante das pressões do mundo moderno, mas, deixou remanescentes, e nos países protestantes mais tradicionais o domingo é visivelmente diferente do restante da semana. 6. O culto público envolve oração a Deus, leitura da Bíblia, pregação e distribuição dos elementos da Ceia do Senhor. Em geral os dois primeiros princípios estão presentes em todas as ocasiões, o terceiro em quase todas, contudo, a frequência do quarto é motivo de muito debate. O cântico de hinos, uma prática do Novo Testamento, é bastante comum hoje em dia, o que não aconteceu até o avivamento evangélico do século 18. Os reformados eram ambivalentes quanto ao lugar da música no culto, e mesmo na atualidade não é de todo incomum a realização de cultos sem ela. Algumas, poucas denominações rejeitam o uso de instrumentos musicais, entretanto a maioria dos protestantes considera isso extremismo, e há sinais de mudança chegando, mas devagar. 3 7. Cada igreja local deve reconhecer que faz parte de uma comunhão universal. Tradicionalmente, isso tem sido feito por várias formas de conexões hierárquicas, tais como episcopado ou governo sinodal por presbitérios. Mas, se esses são rejeitados ou estão ausentes, é preciso estabelecer outra forma de comunhão. Nenhuma igreja cristã pode alterar os fundamentos da fé por vontade própria; se o fizer, deixará de ser vista como cristã pelas outras igrejas do mundo. Na prática, obviamente, a perfeição é inatingível, então, as igrejas que foram implantadas com um modelo ideal que deveríam seguir estão sempre sujeitas a ser desafiadas por membros que acreditam que elas não chegaram à altura de seus princípios. Vemos, então, que há um padrão constante de divisões, e cada novo grupo se acha mais puro do que o anterior. A raiz do problema está no fato de que enquanto os protestantes creem que sua doutrina deve ser baseada somente nas 3
Por exemplo, em 2011, a Igreja Livre da Escócia passou a permitir que as congregações decidissem individualmente se iriam entoar cânticos modernos e usar instrumentos musicais. Como era de esperar, a igreja se dividiu, embora os grupos dissidentes não tenham sido numerosos.
Escrituras
(sola Smptura),
nenhuma
igreja
contemporânea
pode
almejar
recriar com credibilidade o contexto do Novo Testamento. Há vários motivos para isso: 1 . O Novo Testamento não apresenta detalhes suficientes sobre a organização das igrejas. Tinham bispos? Uma pessoa era responsável pelas outras? Com que frequência se reuniam e o que faziam nas reuniões? Temos indicações que nos ajudam a entender que essas perguntas foram examinadas e respondidas, mas, não sabemos exatamente como. Será que a igreja de Corinto, por exemplo, sobre a qual temos mais informações, era típica das outras? Ou era um caso excepcional, pelo menos em alguns aspectos, e, portanto, com mais necessidade de orientação? Como o apóstolo Paulo geralmente escrevia a uma igreja para acertar o que não estava funcionando corretamente, é extremamente perigoso tirar conclusões com base na evidência que ele nos dá. Simplesmente não temos informação suficiente para reconstruir a vida doméstica de nenhuma igreja do Novo Testamento, muito menos para ditar regras que seriam aplicáveis à igreja universal. 2. Os apóstolos não vivem mais entre nós. Mas, não importa como, as igrejas se autogovernavam na época do Novo Testamento, estavam sempre sujeitas à liderança dos apóstolos, que possuíam certa autoridade ocasional sobre elas. Paulo, por exemplo, não hesitou em escrever uma longa carta aos romanos, embora nunca tivesse visitado, e muito menos implantado, a igreja em Roma. De sua parte, as igrejas podiam buscar conselho nos apóstolos sobre o que fazer em uma situação específica, algo que não podemos fazer hoje. Existe, assim, um aspecto perdido de governo que não pode ser reposto, o que certamente influencia a organização de nossas igrejas hoje e como usamos a evidência do Novo Testamento. 3 3. Dois mil anos de história deixaram suas marcas. Quando Paulo esteve em Atenas, ele e seus companheiros de viagem eram as únicas pessoas na cidade que conheciam alguma coisa sobre Jesus; Paulo anunciava o Deus desconhecido. Isso não acontece hoje, com a possível exceção de tribos remotas que não têm a mínima ideia do que é o cristianismo. Gostem ou não, os implantadores de igreja hoje precisam considerar essa tradi-
ção porque dependem dela em larga escala, mesmo não admitindo tal coisa. As Bíblias que leem, os hinos que cantam, e muito do que dizem e fazem foi herdado de outros lugares. Talvez rejeitem a corrupção e inadequação de outros grupos eclesiásticos, mas, precisam lidar com eles, pelo
menos
posições
em
porque
esses
consequência
outros do
que
grupos
desenvolveram
descobriram
ou
suas
próprias
experimentaram
em
outros lugares. Mais cedo ou mais tarde terão de se explicar e defender em relação a outros grupos cristãos, algo que a igreja do Novo Testamento não precisou fazer. 4.
Hoje, a igreja é um fenômeno mundial com diversidade impressionante.
O grupo que se estabelece e reivindica ser
igreja do Novo Testamento,
a
e exclui todas as outras, acaba descobrindo que é mais um grupo sectário. Seus membros podem ser persuadidos a aceitar tal reivindicação, contudo, ninguém mais o será, e provavelmente esse grupo não sobrevivería muito tempo sozinho. Um dia ele teria de admitir a existência de outros grupos cristãos, e que não brotou do nada, e que, na verdade, o conteúdo de sua fé e até mesmo sua identidade dependem muito do restante do mundo cristão.
Na prática, poucas igrejas hoje chegam ao extremo aqui representado. Mesmo as igrejas independentes sabem que têm de ser pragmáticas na maneira de organizar sua vida eclesiástica, e a maioria delas segue um padrão que em termos tradicionais protestantes seria considerado “congregacionalista”. Até que ponto têm comunhão com outros gru pos cristãos varia de uma situação para outra; dadas as circunstâncias, dificilmente seria de outra forma. Algumas, se transformam em denominações de igrejas interdependentes, embora a maioria delas seja fruto da separação de outras — anglicanos dissidentes, por exemplo, ou presbiterianos. Devido à natureza essencialmente interdependente de uma denominação, em geral, esses dissidentes acham mais difícil iniciar uma nova, sobretudo porque têm de primeiro estabelecer redes de interconexão antes de decidir quais igrejas locais poderão se unir a ela. O protestantismo exibe uma enorme variedade no âmbito eclesiástico, mas, por trás da diversidade aparente há alguns padrões básicos encontrados em quase todos os lugares, sejam isolados ou em conjunto.
Entre os tipos interdependentes de igreja, algumas são episcopais, mas, não é caso da maioria. No entanto, quando uma igreja episcopal se une com outras que discordam de sua política, ela normalmente insiste que o novo corpo seja de estrutura episcopal, mesmo que a combinação junte elementos presbiterianos ou congregacionalistas. 4 A maioria das igrejas protestantes independentes não é episcopal, pelo menos não no sentido tradicional. Se têm um “bispo”, sua inde pendência básica significará que ele não será mais que o líder principal dessa igreja, e não o representante ou supervisor de um grupo de igrejas semelhantes. Frente a essa variedade, é altamente improvável que os protestantes serão capazes de um dia formar uma única igreja institucional, e para a maioria deles talvez fosse imprudente tentar esse caminho. O que gostariam de ver é “reconhecimento mútuo”, de maneira que os fiéis pudessem ir de uma igreja para outra e serem aceitos sem que sua lealdade à igreja anterior fosse colocada em dúvida. Existe esperança de isso acontecer, embora seja de esperar oposição de batistas conservadores e igrejas luteranas, que provavelmente insistiríam na natureza exclusiva de suas práticas sacramentais. UNIÃO CRISTÃ
Qualquer debate sobre a unidade da igreja hoje deve começar pela questão da unidade cristã. Desde o começo do século 20, pelo menos, organizações missionárias e outros grupos se tornaram cada vez mais conscientes das limitações do denominacionalismo e da necessidade de os cristãos de diferentes afiliações trabalharem juntos. A Conferência Missionária de Edimburgo, de 1910, é sempre indicada como o momento criador do movimento ecumênico, que, apesar de muitos atrasos e frustrações, é um dos marcos principais dos tempos modernos. O objetivo inicial do ecumenismo foi prevenir duplicação desnecessária e competição no campo missionário. Tribos e regiões não evangelizadas foram atribuídas a diferentes grupos para que trabalhassem livremente e apresentassem aos não cristãos uma mensagem única do evangelho, sem divisões e desavenças, que só faziam sentido no contexto europeu do século 16. Quando o objetivo foi alcançado, a esperança era que as 4
As igrejas do norte e do sul da índia são exemplos disso.
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diferentes denominações viessem a formar uma única igreja autóctone, como aconteceu na índia do sul em 1947 e no norte da índia em 1970. É verdade que nem todos os grupos cristãos se uniram na formação dessas igrejas e podemos argumentar que o resultado não foi o sucesso que se esperava no início, mas, apesar de todas as dúvidas, a verdade é que denominações bem consolidadas foram persuadidas a abrir mão de suas identidades em busca de uma unidade mais importante. Uniões semelhantes também aconteceram em países tradicionalmente cristãos como o Canadá, o Reino Unido e a Austrália, embora com impacto diferente. E preciso dizer que, em geral, essas uniões favoreceram alas liberais dentro das denominações participantes, que assumiram o controle das organizações eclesiásticas amplificadas, mas, fizeram muito pouco na propagação do evangelho. Também é verdade que grupos mais conservadores resistiram à perda de sua identidade pessoal, e que ao irem contra a corrente, eles foram forçados a desenvolver convicções mais enraizadas sobre suas crenças, tornando-os mais fortes e mais unidos internamente. A Igreja Presbiteriana da Austrália, por exemplo, já foi denominação mesclada na qual liberais e conservadores competiram por influência, influência, todavia, com a saída da maioria dos liberais, essa igreja é agora mais criteriosa em sua composição e mais ativa na pregação e evangeüzação do que a denominação mais ampla havia sido. Hoje é amplamente reconhecido que a união institucional não foi muito bem-sucedida na maioria dos lugares, e a ênfase mudou de união definitiva para cooperação. A cooperação tem sido maior no mundo acadêmico, onde teólogos e estudiosos da Bíblia trabalham com todos os grupos cristãos do mundo. Até mesmo os seminários denominacionais reconhecem o que é escrito por outros, e é comum escritores teológicos sérios dialogarem com uma ampla gama de cristianismo, desde o ortodoxo do Leste ao protestantismo evangélico. O resultado é uma reconfiguração importante do cenário teológico acadêmico, em que lealdades confessionais cederam a tendências conservadoras e liberais que transcendem todas as denominações. Assim, é bem mais provável que os evangélicos evangélicos conservadores conservadores aceitem os católicos igualmente conservadores, enquanto os liberais que seguram frouxamente
suas tradições mudam de uma igreja para outra sem notar a diferença. Hoje, todas as igrejas experimentam essa divisão, que geralmente é mais importante do que as divisões formais que continuam a separá-las institucionalmente. O ecumenismo também fez grande progresso devido à fidelidade dos leigos. Aqueles que não têm compromisso oficial com uma estrutura eclesiástica em particular geralmente estão mais dispostos a atravessar fronteiras denominacionais. Sentem mais liberdade agora para se casarem com alguém fora de seu grupo e talvez decidam cultuar em uma igreja que lhes pareça mais adequada, sem se importarem com rótulo confessional. Também mostram bastante disposição para implantar igrejas sem afiüação denominacional, sendo que há um século a maioria das igrejas não denominacionais resultava de divisões de igrejas estabelecidas, e hoje elas são de origem independente, sem histórico de conflito com quem quer que seja. De alguma forma, isso deveria facilitar a cooperação com outros grupos, mas, pode ser que isso aumente sua noção de autossuficiência e acabe isolando-as da igreja global. Por causa da natureza das coisas, cada caso dever ser examinado por seus próprios méritos. A união cristã é menos visível em suas estruturas denominacionais e ministerial. Quem foi ordenado por uma denominação tem menos possibilidade de migrar para outro grupo, comparado aos leigos. O pastor que deseja mudar de denominação provavelmente encontrará oposição — geralmente da igreja à qual deseja se unir. Quase todas as denominações fazem um teste de aceitação com o “convertido”, em boa parte (é a explicação) para proteger a integridade de sua própria tradição. Afinal, diriam, como alguém que estudou para ser pastor presbiteriano pode ser um bom pastor luterano sem, no mínimo, passar por uma reeducação denominacional? Também, muitas denominações exigem que seus futuros pastores que cursaram teologia básica em seminário interdenominacional ou não denominacional complementem o curso em um seminário que elas controlem, ou (pelo menos) façam o exame preparado por elas. Proteger a integridade da denominação é a desculpa que apresentam, mas, essa motivação é duvidosa numa denominação que já abraça uma gama de posições teológicas.
As divisões teológicas surgem quando nos voltamos para a coo peração existente entre igrejas e denominações. Por exemplo, a Igreja Católica faz campanha permanente contra o aborto, todavia poucas denominações evangélicas apoiam os católicos sem reserva nessa em preitada. Algumas igrejas dão esse apoio, quer recebam ou o u não a aprovação de suas denominações, porém, em tais questões, é quase impossível conseguir consenso em uma denominação mista teologicamente. Pode-se afirmar o mesmo sobre campanhas evangelísticas, que geralmente recebem amplo apoio dos evangélicos, sem levar em conta a afiliação denominacional, contudo, seu apelo não vai além disso. Nesse caso, talvez haja até mesmo franca hostilidade
dentro das
denominações, especialmente se igrejas e ministros não evangélicos se sentem ameaçados. Nesses casos, surge uma pergunta importante: Por que se opor a uma pessoa que anuncia o evangelho, só porque ela não é um de nós? E aqui, ironicamente, que liberais que em outra situação talvez ignorassem diferenças denominacionais se fecham e se recusem categoricamente a cooperar com grupos que não tenham as mesmas, convicções teológicas. Por outro lado, os conservadores criticam homens como Billy Graham por serem liberais em sua cordialidade aos católicos, mas, geralmente engolem qualquer reserva que tenham sobre o assunto porque entendem que levar pessoas a Cristo é o que importa, e não querem ser distraídos por controvérsias que devem ser deixadas para outra ocasião e lugar. No âmbito local, a união cristã entre protestantes geralmente é mais bem exemplificada pela rede de relacionamentos pessoais que levam à cooperação, especialmente em circunstâncias atípicas. A maioria das cidades hoje têm associações ministeriais que reúnem os clérigos de diferentes igrejas para falar de seus problemas comuns. Dessas reuniões saem formas, práticas de caridade, como quando uma igreja anglicana é destruída pelo fogo, por exemplo, e os batistas deixam que a congregação use suas dependências até construírem outro templo. Esse talvez não seja o ecumenismo imaginado em 1910, contudo, é muito melhor que a rivalidade (e geralmente hostilidade) interdenominacional que marcou tão profundamente o século 19. No âmbito local, a união panprotestante geralmente inclui os clérigos católicos e ortodoxos
orientais, se quiserem e tiverem permissão de seus superiores para participarem. No caso deles, a cooperação prática é necessariamente mais limitada, contudo, padres e pastores descobrem que seus problemas e experiências são parecidos, ou até idênticos, e isso cria uma ligação entre eles que as filiações formais em suas igrejas não providenciam. E necessário dizer que a presente situação, embora não seja ideal, é muito melhor do que era há uma geração, e talvez a melhor que podemos alcançar no momento. TESTEMUNHO EXEMPLAR
No mundo contemporâneo, a ênfase tradicional na santidade da igreja geralmente se expressa como a necessidade de gerar um testemunho exemplar em nossa sociedade cada vez mais secularizada. Os não cristãos raramente se preocupam com denominação religiosa, e até mesmo a divisão entre protestantes e católicos é ignorada. Para eles, a “igreja” acolhe todas as denominações, e o que acontece em uma afeta todas elas. Essa perspectiva é vista mais claramente — e de modo cruel - na reação pública a um escândalo. Quando um ministro religioso é preso por um crime ou outro, a igreja inteira vira farinha do mesmo saco. Em geral, os protestantes consideram os escândalos sexuais envolvendo padres como algo peculiar à Igreja Católica (e que, provavelmente, isso se deve em parte à exigência do celibato, mas, poucos se atreveríam a dizer tal coisa em público), mas, todas as denominações são atingidas por tais escândalos. Um indício claro, embora silencioso, de que os protestantes reconhecem que a lama respingou neles é o fato de não se aproveitarem da situação na Igreja Católica para condenar seus ensinos ou tentar converter seus membros. Se um católico se torna evangélico por causa desses problemas, geralmente é uma decisão pessoal, e não porque algum pregador evangélico lhe expôs os pecados do Vaticano. Em situações como essa, a solidariedade é animadora, mas, ela nem sempre acontece em outras áreas da vida eclesiástica. E relativamente fácil conseguir amplo apoio para campanhas contra a discriminação racial, pornografia infantil ou perseguição religiosa em países emergentes, contudo, essas campanhas enfatizam princípios gerais que raramente afetam de modo direto o comportamento das pessoas e
que, na maioria das vezes, não são especificamente cristãos. Comprar produtos que têm o selo de sustentabilidade, por exemplo, é algo que todos podem fazer, e os cristãos não são, de jeito nenhum, os únicos a defender esse procedimento. Fazer campanha a favor dessa prática não é errado, claro, e iniciativas iguais a esta devem ser encorajadas, mas, por sua natureza, elas promovem menos união e crescimento da igreja do que parece. As discordâncias entre denominações sobre questões como jogos de azar e a ingestão de bebida alcoólica, práticas que foram largamente consideradas males sociais, são menos evidentes hoje porque essas coisas são consideradas vícios pessoais. No entanto, tais discordâncias não desapareceram completamente e talvez ainda tornem difíceis a cooperação prática entre igrejas locais. Em geral, os cristãos se opõem à bebedeira e empenham-se alegremente em fazer de tudo para preveni-la, contudo, existe um grande abismo entre denominações que permitem o uso moderado de bebida alcoólica e as que a proíbem totalmente. Existe também uma brecha entre igrejas que aceitam dinheiro ganho em loteria para reformar as dependências da igreja e aquelas que não aceitam.5 Mais importante são as políticas que igrejas adotaram quanto à mudança de códigos morais, especialmente em relação ao casamento e divórcio. Em 1900, apesar das profundas divisões que existiam entre as diferentes denominações, quase todas concordavam que o casamento era uma união heterossexual vitalícia. O divórcio era energicamente dissuadido, quando não banido, e a homossexualidade era condenada universalmente. Hoje, apesar da cooperação e amizade entre as diferentes igrejas, questões como essa se tornaram controversas como nunca foram. A triste verdade é que padrões morais não cristãos encontraram espaço para se infiltrar na igreja de modo impensável há uma geração, e hoje é um dos principais desafios à sua santidade. Quando os padrões bíblicos são abandonados, é difícil reconquistá-los, reconquist á-los, e como nesses 5
Esse é um assunto assunto especialmente especialmente controverso controverso em países como como o Reino Unido, Unido, onde o estado opera uma loteria e usa os rendimentos em diferentes programas de fundo cultural e esportivo. Muitos cristãos são contra essa prática, mas, argumentam que se eles não ficarem com o dinheiro, outros ficarão, e estes outros talvez o usem em negócios que a maioria das igrejas desaprovaria ainda mais severamente.
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assuntos as diferentes igrejas e denominações atuam por diferentes padrões, a cooperação verdadeira se torna ainda mais difícil. Outra área de discórdia é o grau em que a igreja está, ou deveria estar, envolvida nas questões seculares. Sempre houve um elemento na igreja que resistiu à tentação de conseguir bens materiais. Os monastérios medievais, e mais tarde os frades, foram exemplos disso, assim como, de um jeito diferente, o Exército da Salvação no século 19. Hoje, temos igrejas em domicílios e comunidades cristãs que oferecem um estilo de vida alternativo, embora sejam movimentos periféricos que não afetam as denominações tradicionais de maneira séria, exceto talvez para incentivar atividades como cuidar do meio ambiente. Mais significativo ainda é o modo em que propriedades e investimentos da igreja são administrados. Que atividades podem acontecer nas propriedades da igreja? Parece uma pergunta simples, mas, pode ficar complicada quando salas da igreja são usadas como centros comunitários. Uma sala da igreja deveria ser usada para danças ou para um casamento hindu, por exemplo? Aqui, também, os padrões diferem de um lugar para outro, e talvez seja difícil alcançar uma política comum em qualquer comunidade. Porém, a igreja deve pensar em como suas atividades são entendidas pelos de fora. Uma vez que um edifício é usado para uma atividade não relacionada à igreja, é inevitável que surjam questionamentos, portanto, a liderança da igreja deveria estar mais ciente das implicações do que normalmente parece estar. Quanto aos investimentos, seria apropriado a igreja investir em empresas de cigarro? E quanto a apoiar companhias que terceirizam sua produção para países do terceiro mundo, onde os empregados trabalham em condições análogas à escravidão? Há grupos que pedem boicotes a países cujos procedimentos lhes parecem inaceitáveis. O que a igreja pode fazer a respeito dessas coisas? As complexidades do mundo moderno são tantas que é muito difícil se engajar com firmeza no que é chamado “investimento ético”, pois muitos bancos e outras instituições financeiras estão envolvidos em inúmeros projetos dos quais é impossível se desembaraçar facilmente. Em geral, é difícil saber com certeza em que investiram nosso dinheiro ou onde encontrar alternativas viáveis. Até que ponto as igrejas devem ir em suas tentativas
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de descobrir investimentos éticos? As igrejas conseguiríam exercer alguma influência sobre as políticas empresariais? Essas perguntas são importantes porque a igreja deve praticar o que prega e pode facilmente ficar constrangida pelas atividades que fazem uso de seu dinheiro, mas, sobre o qual não tem controle. A resposta não é fácil, contudo, as igrejas devem pelo menos considerar as questões, e têm a obrigação de fazer o que podem para ser mordomos responsáveis de seus recursos em um mundo caído. Em alguns lugares, as igrejas acabam se envolvendo na política, geralmente contra a própria vontade. Esse é um problema ainda maior nos países ortodoxos do Leste, onde a identificação da igreja e nação (quando não Estado) se misturam de tal forma que se torna praticamente impossível separá-las. Por exemplo, até onde a antipatia entre sérvios e croatas na antiga Iugoslávia é um reflexo da inimizade católico/ortodoxo? Será que as igrejas de lá não poderíam trabalhar para transpor essa barreira? Situação parecida acontece na Irlanda do Norte, onde católicos e protestantes batalham sob vários rótulos políticos, que a maioria da população ignora por achar que o divisor religioso é mais profundo e mais importante. As igrejas têm se esforçado para ultrapassar essa barreira, mas, infelizmente, não têm conseguido, e a credibilidade do evangelho sofre como resultado. Não é sem razão que alguns comentaristas afirmaram que a secularização é a melhor esperança para tais lugares, mas, o que seria uma grande admissão de fracasso para as igrejas envolvidas. Se a mensagem de Cristo, que todas dizem proclamar, não promove paz, o testemunho das igrejas está fatalmente comprometido, e não é de surpreender que o mundo descrente abane a cabeça e vá embora. ACOLHIMENTO UNIVERSAL
Atualmente, a catolicidade da igreja significa apenas que ela acolhe todas as pessoas sem distinção de língua, raça ou contexto social e que está disposta a alcançar o mundo inteiro. Isso não significa que a igreja deve acreditar que todos serão salvos, ou que os seguidores de outras religiões são na verdade “cristãos anônimos”, praticando o que acham estar correto, mas, desconhecedores da verdade suprema revelada em
Jesus Cristo. Pensar dessa forma é trair a mensagem que lhe foi confiada. Acolher e alcançar o mundo todo significa que o evangelho tem de ser anunciado à humanidade inteira, sem temor nem acepção de pessoas, e quem aceitar a Cristo em seus corações e vida deve ser aceito na igreja em pé de igualdade com os outros membros. Quanto à missão mundial, hoje a igreja é muito mais bem-sucedida do que em qualquer época de sua história. Em geral, todos os países do mundo têm uma igreja nacional, mesmo que seja perseguida, como na Coréia do Norte e Arábia Saudita. A Bíblia foi traduzida e está disponível nos principais idiomas do mundo, e menos de 1 % da raça humana não tem acesso às Escrituras em seu idioma materno. Estima-se que na China deve haver mais de cem milhões de cristãos após quase duas gerações de comunismo, e os números parecem se multiplicar de modo exponencial. Estima-se que quase um terço da população mundial é, pelo menos nominalmente, cristã. Desses, cerca de dois terços são católicos, cerca de 10 % são ortodoxos do Leste, e o restante é protestante. Naturalmente, esses números são inflacionados e não refletem fé genuína ou compromisso sério com uma igreja. Por esses critérios, as porcentagens da Igreja Católica e a da Ortodoxa deveríam ser cortadas drasticamente, e a dos protestantes também deveria ser diminuída, todavia, não na mesma proporção porque são menos propensos a contar afiliados nominais como membros da igreja. Apesar desse sucesso aparente, temos de levar em conta a descristianização de boa parte da Europa e América do Norte, em países tradicionalmente cristãos, onde está cada vez mais difícil aos cristãos marcarem presença na sociedade. As igrejas desses países se provaram incapazes de resistir à maré secular, e nenhuma delas exerce influência sequer parecida à de um século atrás. Sua integridade interior sofre ataques sérios, enquanto as denominações tradicionais sucumbem ao liberalismo teológico e muitas conservadoras recuam à piedade individuaüsta para escapar da realidade desagradável do mundo lá fora. É sintomático disso que uma palavra como “fímdamentalismo”, que foi cunhada no início do século 20 para descrever os protestantes americanos conservadores e era usada quase que exclusivamente nesse sentido por duas gerações, foi transferida para os jihadistas islâmicos, que aos
olhos da mídia secular representam uma ameaça religiosa mais perigosa do que qualquer outra encontrada no mundo cristão. O recuo público das igrejas em seus países de origem talvez seja apenas temporário, mas, não há dúvida de que os países cristãos mais avivados de hoje estão situados no terceiro mundo ou no mundo “majoritário”. E impossível afirmar se a situação continuará igual. Talvez haja avivamento em países ocidentais tradicionalistas, ou o terceiro mundo talvez fique secularizado. Cristãos são perseguidos hoje em vários países do mundo, quase sempre por extremistas islâmicos, e o perigo de a igreja ser dizimada em seu berço natal no Oriente Médio é realidade.6 Por outro lado, o sangue dos mártires é a semente da igreja, e talvez o horrível sacrifício que tantos cristãos são obrigados a fazer nessa região do mundo se reverterá para a glória de Cristo e do evangelho. E difícil prever como as igrejas irão receber os novos movimentos religiosos. As instituições são conservadoras por natureza, e históricamente quem pregou ou promoveu o avivamento enfrentou tribulações. Podemos imaginar as dificuldades que John Wesley (1703-91) teve na igreja anglicana, à qual ele era particularmente dedicado, ao perceber a facilidade com que um estabelecimento comete um erro histórico e exclui quem deveria ser sua força motriz. Na atualidade, esse problema é mais evidente em relação ao movimento carismático, que foi com pletamente aceito em alguns lugares, totalmente rejeitado em outros e recebido com reservas por muitos. Fora as igrejas pentecostais, que obviamente aceitam a prática dos dons carismáticos, poucas denominações fizeram qualquer pronunciamento público que fosse sobre eles, contudo, em geral, a tolerância aos carismáticos é mais em nível congregational do que denominational. Mesmo a Igreja Católica se mostra aberta, até certo ponto, ao movimento, embora dificilmente poderiamos dizer que é de todo o coração. Ninguém está dizendo que os carismáticos não sejam passíveis de críticas. Muitos deles são ingênuos na fé, portanto, facilmente receptivos a fenômenos estranhos, e em geral são resistentes à autocrítica, mas seu desejo de ter uma experiência espiritual bastante profunda é consonante com os instintos ainda mais profundos da igreja e deve ser respeitado. 6
R. Shortt, Christianophobia (Londres: Rider, 2012).
O problema principal da catolicidade hoje é saber até onde uma igreja pode (ou deveria) aceitar a legitimidade das diferentes doutrinas. As igrejas tradicionais com teologia confessional altamente desenvolvida naturalmente têm mais dificuldades do que as outras, e isso se reflete em seu comportamento. As igrejas católicas e ortodoxas orientais têm uma teologia abrangente que, segundo elas, tem de ser aceita por todos os membros. Obviamente, é dificultoso forçar os leigos a aceitar essa ordem, mas, o clero, e especialmente os professores de teologia, têm de se conformar a um padrão, mesmo quando a doutrina em questão é controversa e rejeitada por outras igrejas. O caso evidente em questão é a insistência do Vaticano na infalibilidade papal, com o que nenhuma outra igreja concorda, mas, que é rigorosamente imposta a todos os que querem ser reconhecidos como teólogos católicos. Os ortodoxos orientais são menos dogmáticos e mais dispostos a relegar questões polêmicas ao reino do “mistério”, todavia, dentro dos parâmetros que estabelecem para si mesmos, são tão rigorosos quanto os católicos, e talvez mais ainda. Eles não têm Papa, mas, desobediência à hierarquia é vista com olhar desfavorável. Como seria de esperar, as igrejas protestantes oferecem uma variedade muito maior de respostas a esse desafio teológico. Algumas são tão rigorosas quanto a Igreja Católica Romana e insistem na conformidade total à sua confissão de fé. Outras permitem maior latitude, especialmente se (como na Comunhão Anglicana) a confissão de fé adotada tem centenas de anos e não foi atualizada. Na maioria das igrejas tradicionais protestantes de hoje, o papel de suas declarações confessionais históricas é causa de controvérsia, pois alguns membros da igreja argumentam que elas deveríam ser engavetadas, enquanto outros insistem que permaneçam válidas e importantes para definir os limites de crenças ortodoxas aceitáveis pela igreja em questão. Nesse caso, os processos por heresia causam mais problemas do que merecem e, portanto, são raríssimos de acontecer. Para o desgosto dos ortodoxos, os rebeldes geralmente conseguem professar crenças bem diversas, algumas das quais contradizem as doutrinas mais fundamentais encontradas nos credos antigos. Mas, embora essa tolerância seja facilmente oferecida a indivíduos, raramente faz parte das declarações oficiais da igreja, que geralmente
permanecem dentro de seus padrões doutrinários tradicionais. Ao lidar com outras denominações, claro, a amplitude é maior, e com frequência os ministros de diferentes igrejas serão convidados a pregar ou ensinar sem a imposição de nenhum teste doutrinário específico. A igreja hospedeira normalmente supõe que, se os convidados têm bom relacionamento com sua própria denominação, também serão aceitáveis aos hospedeiros, pois convidados bem-educados cuidam para não ofender a igreja que os convidou a pregar. A questão de as mulheres serem pastoras é mais problemática, pois algumas denominações aceitam essa prática e outras não, e as condições de aceitação variam imensamente. Algumas, igrejas que ordenam mulheres ao pastorado exigem que todos os seus líderes aceitem a ordenação, e aqueles cuja consciência não lhes permite dar o devido apoio são demitidos ou convidados a renunciar. Outras igrejas mantêm pastores que têm dúvidas sobre a questão, mas, não ordenam novos obreiros se estes não aceitarem a mudança. Até pode acontecer, como na comunidade anglicana, que algumas igrejas ordenem mulheres e outras não, e que adotem políticas diferentes com respeito àqueles que não concordam com a maioria. Nesses casos, a pastora terá de entender que não será convidada a pregar ou ensinar em igrejas que não concordam com a ordenação de mulheres, não importam suas convicções teológicas. No caso anglicano, a ordenação de mulheres gerou o que chamamos de “ceia prejudicada”, uma situação em que membros da mesma igreja não aceitam ordem um dos outros e, então, se recusam a receber a ceia das mãos de quem, segundo eles, não foi propriamente ordenado. Nesse caso, talvez mais do que em outro qualquer, vemos como a mudança de prática pode mudar a igreja internamente, e limitar a catolicidade por razões ligadas mais à disciplina eclesiástica do que a uma doutrina específica. Igrejas independentes têm muito mais liberdade nesses assuntos, claro, e portanto, não podem ser categorizadas tão facilmente quanto as denominações tradicionais. A maioria delas concorda com uma fé protestante e evangélica bem definida, embora, em geral, isso será subentendido e não oficialmente afirmado. Há o perigo evidente que
um pastor ou professor se desvie do cristianismo histórico e não seja disciplinado, mas, embora isso aconteça, saibamos que o ensino insalubre costuma ser descoberto por essas igrejas, que se empenharão para garantir que seus ministros permaneçam nos limites da ortodoxia geralmente reconhecida, quer a igreja tenha ou não uma confissão de fé definida. Provavelmente, é verdade que as igrejas batistas estão numa pro porção elevada entre as igrejas independentes, contudo, a fluidez de suas organizações talvez signifique que as convicções diferentes são respeitadas de forma que não seriam em outros lugares. Por exemplo, uma igreja independente que não batiza crianças talvez aceite como membros pessoas que foram batizadas na infância, o que a maioria das igrejas batistas não faria. É impossível generalizar nessa área, pois cada igreja cria suas próprias regras. O que podemos afirmar, no entanto, é que igrejas independentes, que formalmente negam a catolicidade que vem da participação de uma rede de estruturas denominacionais, se mostram mais flexível que muitas denominações quando o assunto é lidar com casos específicos e são, portanto, mais católicas na prática do que sua falta de forma institucional poderia sugerir. O maior desafio à catolicidade da igreja surge quando um número significativo de membros muda-se para outra denominação porque esta é a “igreja verdadeira” de um jeito que a igreja que estão deixando não é. De modo quase invariável, é isso o que acontece quando alguém abandona a Igreja Protestante e torna-se católico ou ortodoxo oriental. Antes do século 19, esse tipo de conversão era raro e geralmente acontecia por circunstâncias especiais. A expectativa era que mulheres protestantes que se casavam com homens católicos ou ortodoxos adotariam a religião de seus maridos, especialmente se fossem nobres ou membros da realeza. Às vezes, a conversão era forçada, como aconteceu na França e Áustria, onde os protestantes tinham de escolher entre ser católicos ou ir para o exílio. Mas, nada disso pode ser considerado um ato de fé genuína da parte dos convertidos - um defeito compreensível naquela época. Foi no século 19, quando a fé religiosa se tornou cada vez mais uma escolha pessoal, que conversões do protestantismo para o catolicismo
se tornaram um problema teológico sério para as igrejas que estavam sendo abandonadas. E preciso lembrar que, de modo geral, os protestantes do início do século 19 acreditavam que suas igrejas estavam na vanguarda do progresso social e intelectual e que os países católicos eram retrógrados e viviam à mercê de uma tirania espiritual. Uma obra clássica que ficou famosa e continua a ser publicada são as memórias de George Barrow (1803-81), representante da Sociedade Bíblica Britânica que na década de 1830 foi distribuir Bíblias na Espanha. Seu relato, que é extremamente valorizado como descrição da sociedade espanhola da época, descreve um país chafurdando na escuridão induzida pela Igreja Católica, e é preciso dizer que ele não estava muito longe da verdade. Depois da Revolução Francesa, a igreja se voltou contra qualquer forma de liberalismo, e na Espanha, ela desempenharia papel de liderança em combater qualquer tipo de progresso durante quase 150 anos. 7 Diante desse contexto, é surpreendente que uns poucos intelectuais britânicos e americanos tenham se convertido ao catolicismo de livre e espontânea vontade. 8 A conversão aconteceu por vários motivos, indo do romantismo à solidariedade para com os católicos perseguidos durante a Revolução Francesa ao sentimento que a industrialização estava destruindo a sociedade ao substituir valores espirituais por outros puramente materiais. A Igreja Católica representava a antiga ordem. Era a encarnação viva da Idade Média, remodelada como a “era da fé” completa, com catedrais góticas, cavaleiros das Cruzadas, e virgens santas que sacrificaram suas vidas a favor da igreja. Na Inglaterra, a conversão ao catolicismo foi parcialmente prejudicada por um grupo de anglicanos conservadores categóricos em afirmar que a Igreja Anglicana era cem por cento católica e que nenhuma Reforma Protestante aconteceu no país. Em 1841, o principal expoente desse conceito, John Henry Newman (1801-90), publicou TractXC, no 7
G. Borrow, The Bible in Spain: TheJourneys, Adventures, and Imprisonments of an English man, in an Attempt to Circulate the Scriptures in the Peninsula (Londres: John Murray, 1843). As garras da Igreja Católica no país só afrouxaram depois da ditadura de Franco, em 1975.
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Veja P. Allitt, Catholic Converts: British and American Intellectuals Turn to Rome (Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997).
qual procurou demonstrar que as Trinta e Nove Teses eram suscetíveis de interpretação católica e tinham pouco ou nada a ver com protestantismo.9 As idéias estranhas de Newman provocaram uma enorme reação e o incentivaram a buscar sua reconciliação com o Vaticano. Ele sabia que a Igreja Católica de sua época era bem diferente de tudo o que se encontrava no Novo Testamento ou na igreja primitiva, contudo, Newman superou esse obstáculo ao criar uma teoria de desenvolvimento. De acordo com a citada teoria, a igreja evoluiu através dos séculos por meio de um processo guiado pelo Espírito que resultou no surgimento de um corpo mundial centralizado no papado. Newman publicou suas teses em 1845, na mesma época de sua conversão ao catolicismo. 10 11 A submissão de Newman ao papado causou considerável inquietação naquela época, e alguns (mas, nem todos) de seus partidários anglo-católicos seguiram suas pisadas. A compreensão de Newman sobre a Igreja Católica era formal e superficial, e pesquisas atuais mostram que sua análise do protestantismo que ele rejeitou estava errada. 11 Sua experiência seguinte com o catolicismo também deixou muito a desejar, quando percebeu que a igreja à qual havia se unido era, na prática, bem diferente da igreja que o atraiu em teoria. John Newman viveu para ver a declaração da infalibilidade papal em questões de fé e padrões morais, que foi proclamada diante de grande oposição no Primeiro Concilio do Vaticano, em 1870.12 Newman ficou chocado, mas, submeteu-se, pois a lógica de sua doutrina de desenvolvimento não lhe deixou muita escolha. Desde a época de Newman, tem havido um gotejar lento, mas, estável de pessoas que deixaram o anglicanismo e converteram-se ao catolicismo, geralmente passando pelo anglo-catolicismo, e ultimamente 9
A. W. Evans, Tract Ninety, or Remarks on Certain Passages in the Thirty-Nine Articles by John Henry Newman, with an Historical Commentary (Londres: Constable, 1933). 10 Reimpresso como J. H. Newman, An Essay on the Development of Christian Doctrine, com introdução de J. M. Cameron (Londres: Pelican, 1974). 11 Veja E M. Turner,/ 0 / 6» Henry Newman: The Challenge to Evangelical Religion (New Haven: Yale University Press, 2002). 12 Um número expressivo de teólogos católicos se recusou a aceitar o novo dogma e se separou para formar o que hoje é conhecido como a Antiga Igreja Católica, um grupo pequeno, mas, que tem, desde então, conseguido manter seu modo independente de viver.
isso tem aumentado com o número de convertidos vindos de outras denominações protestantes. Os luteranos têm se destacado de maneira especial, todavia um bom número de evangélicos também “atravessou o rio Tibre”, como diz o ditado, e outros tentaram de modo agressivo persuadir antigos correligionários a se unirem a eles.13 Mais recentemente, algumas pessoas desses grupos preferiram se unir a uma das igrejas ortodoxas, provavelmente porque a tradição mística dessas igrejas e a indisposição para definir algumas doutrinas de forma mais restrita mostraram-se mais atrativas do que o dogmatismo do Vaticano. 14 O repúdio ao protestantismo em favor de uma igreja histórica pré-Reforma é comum nesses relatos. Na maioria dos casos, os convertidos abandonam suas origens protestantes por frustração com os defeitos que percebem na igreja ou nas igrejas às quais pertenciam. Em geral, eles deploram o liberalismo teológico que invadiu a maioria das igrejas protestantes históricas, e se afastam pela aparente incapacidade dessas igrejas de estancar seu avanço. Por vezes, se rebelam contra a superficialidade de boa parte do evangelicalismo popular, que enfatiza exageradamente a experiência religiosa individual e mostra aparente indiferença à história e tradição. São atraídos para as igrejas católicas (e em menor grau, para as igrejas do Leste) porque veem nelas a determinação de resistir às tendências contemporâneas e a habilidade de ultrapassar a espiritualidade puramente pessoal no que aparenta ser a unidade de uma igreja universal. De uma forma ou de outra, foi a doutrina da igreja que capturou o interesse dos convertidos e atraiu sua lealdade. Mais interessante ainda é que isso acontece quando muitos membros dessas antigas igrejas estão cada vez mais insatisfeitos e reduzem seu compromisso ou vão embora de uma vez. O catolicismo veemente da Espanha, Irlanda e Polônia, para mencionar três exemplos clássicos, diminuiu bastante na geração passada, e por todos os lados padres, monges e freiras abandonaram 13 Veja,
por exemple, S. Hahn e K. Hahn, Rome Sweet Home: OurJourney to Catholicism (San Francisco: Ignatius Press, 1993). 14 Veja M. L. Mattox e A. G. Roeber, Changing Churches: An Orthodox, Catholic, and Lutheran Theological Conversation (Grand Rapids: Eerdmans, 2012). Mattox foi de batista do sul para luterano e agora está no catolicismo; Roeber foi de católico romano para luterano e agora é ortodoxo oriental (no formato americano).
suas vocações. Seminários foram fechados, faculdades e universidades foram secularizadas (ou laicizada a tal ponto que não fazem muita diferença), e a avivada ortodoxia da Rússia parece ter se transformado em uma ferramenta do Estado tanto quanto era sob o domínio dos czares. Intelectuais protestantes convertidos ao catolicismo ignoram esses fatos desagradáveis ou justificam-se de um modo que nunca fariam para as denominações protestantes que abandonaram. É tentador aos protestantes que observam esse padrão concluir que isso é evidência adicional da capacidade que os seres humanos têm de criar fantasias e crerem nelas apesar das provas contundentes, mas, embora isso possa ser verdade até certo ponto, não pode ser a resposta final ao desafio apresentado pelas alegações das igrejas pré-Reforma. Em geral, aqueles que se converteram ao catolicismo estão corretos em sua análise desfavorável do protestantismo atual. As igrejas protestantes tradicionais parecem viver à beira de um colapso institucional, e as concessões feitas às tendências liberais na esperança que suas adversidades sejam revertidas simplesmente tornam a catástrofe mais provável. Desde a década de 1960, os protestantes ouvem que novas traduções da Bíblia, novas formas de culto e a abertura do ministério pastoral às mulheres (e aos homens mal treinados e que trabalham meio período) irá lhes restaurar a trajetória, contudo, o declínio a longo prazo continua e não dá sinais de minorar. Até certo ponto, as igrejas evangélicas têm resistido à tendência, mas, embora sejam eficientes em conquistar pessoas para Cristo, são menos eficientes em mantê-las no aprisco, e muitas igrejas sofrem da síndrome “porta giratória” - quem vem fácil, também vai embora fácil, e compromisso sério com uma visão teológica coerente é artigo raro. Enquanto isso, com muita frequência, teólogos protestantes conservadores se abrigam em um denominacionalismo exagerado que revive artificialmente debates dos séculos 16 e 17 ou em controvérsias pífias que simplesmente convencem a maioria das pessoas da irrelevância duradoura da teologia em relação aos problemas e desafios da vida. É incerto se os protestantes, e especialmente os evangélicos, conseguem ultrapassar essas dificuldades e descobrir um entendimento novo e mais profundo da catolicidade do evangelho que acolha uma
visão teológica e social completa, mas, como a migração para a Igreja Católica e a Ortodoxa nos aponta, esse é o teste mais premente que enfrentam no momento. A catolicidade foi negligenciada, ridicularizada e ignorada pelos protestantes no passado, todavia, se eles querem mesmo recuperar sua posição tradicional na vanguarda do testemunho cristão ao mundo contemporâneo, precisam redescobri-la e produzir uma versão que seja coerente e convincente à geração de nossos dias. A FÉ CONFIADA
A marca clássica da apostolicidade de uma igreja é vista mais claramente na maneira em que ela segue o Novo Testamento como seu guia supremo em questões de fé e prática. Em um extremo estão as igrejas carismáticas que afirmam ter “apóstolos” e, claro, a Igreja Católica Romana, para quem o Papa é o apóstolo Pedro encarnado com autoridade para fazer acréscimos à doutrina oficial da igreja. É bem verdade que a maioria dos grupos pentecostais não espera que seus “apóstolos” se desviem do ensino bíblico. No entender deles, a tarefa desses apóstolos é proclamar novamente a antiga fé, e essa crença é amplamente compartilhada por quem não crê na existência de apóstolos nos dias de hoje. Até mesmo na Igreja Católica Romana, a autoridade apostólica garantida ao Papa (falando ex cathedra, ou em sua competência oficial) não suplanta as Sagradas Escrituras, mas, é um suplemento em questões que o texto sagrado não esclarece. Assim, por exemplo, o Papa pode decretar, e isso já foi feito, que a Virgem Maria foi levada para o céu da mesma forma que o profeta Elias, porque o Novo Testamento não diz nada sobre o assunto e o Papa tem autoridade de canonizar a tradição do acontecimento. Contudo, ele não pode descartar a segunda vinda de Cristo, pois o fato é claramente afirmado pela Bíblia e pelos credos antigos da igreja, cuja autoridade ele é obrigado a respeitar. Para todos os cristãos, a herança apostólica na igreja contemporânea está contida basicamente no Novo Testamento. É incerto se existe algo mais que possamos associar à primeira geração de cristãos, embora a possibilidade não deva ser totalmente descartada. Existe uma chance remota de que uma carta genuinamente apostólica venha um dia a aparecer nas areias do Egito, como aconteceu com outros documentos
daquela época, mas, se tal carta aparecesse, ela não seria acrescentada ao nosso Novo Testamento. Uma das razões é a impossibilidade de comprovarmos sua autenticidade. Outra razão é a improbabilidade de o mundo cristão inteiro concordar com o acréscimo. Porém, a terceira razão, e no final das contas a mais importante, de que isso não aconteceria é que a igreja permanece viva sem essa carta há dois mil anos. Uma carta apostólica recentemente descoberta não seria parte da fé uma vez confiada aos santos e, portanto, não teria lugar no cânone do Novo Testamento.15 Da mesma forma que o Didache e outros textos do primeiro século, a carta poderia ser usada como um depoimento sobre a igreja primitiva, mas, sem a autoridade de dizer à igreja contemporânea o que ela deve fazer. A distinção entre o Novo Testamento como evidência e o Novo Testamento como autoridade nem sempre é deixada bem clara, entretanto, é vital para compreendermos a apostolicidade. Nós todos, até mesmo aqueles sem nenhum tipo de fé, concordamos que o Novo Testamento é evidência da vida e das crenças da igreja primitiva. A maioria das pessoas também concorda que nada se compara a ele; os numerosos textos não bíblicos que alegam ter vindo de um apóstolo ou um de seus discípulos são todos considerados de origem espúria ou foram escritos em uma data relativamente tardia. Alguns de seus conteúdos podem ser historicamente exatos, contudo, é impossível ter certeza do que é autêntico, e a maioria dos estudiosos são acertadamente cautelosos em suas avaliações. De quando em quando alguém assevera que um texto representa uma tradição suprimida e deve ser levado a sério como testemunho da crença e do ensino dos apóstolos, contudo, o público em geral reconhece que o texto é, na melhor das hipóteses, uma proposição bastante duvidosa e considera as reivindicações sem mérito.16 A grande diferença entre o mundo acadêmico e a igreja é que em bora os dois leiam o Novo Testamento como evidência, para a igreja ele 15 Judas
3. 16 Os escritos de Bart Ehrman são um exemplo proeminente do trabalho que pressupõe grande diversidade no início do cristianismo baseado em textos não canônicos.
também é a autoridade maior de suas doutrinas e práticas. Na verdade, não é exagero afirmar que o grau de fidelidáde de uma denominação aos ensinos do Novo Testamento é o teste principal de sua reivindicação à apostolicidade. Alguns grupos protestantes radicais garantem agir assim de maneira total e exclusiva. O grupo que se chama Igrejas de Cristo, por exemplo, afirma que obedece ao Novo Testamento e se refreia de fazer o que ele proíbe ou não menciona — um princípio admirável na teoria, mas, impossível de ser aplicado com alguma consistência. Ve jamos: o Novo Testamento não oferece exemplos claros de batismo infantil, então, a referida denominação não o pratica. Entretanto, o Novo Testamento também não diz que as mulheres participavam da Ceia do Senhor, uma omissão que a denominação Igrejas de Cristo ignora. Esse exemplo não é tão banal quanto talvez pareça, pois nos tempos antigos era normal os homens se reunirem para uma refeição sem a presença de mulheres e crianças; certamente foi assim na Última Ceia, e até onde sabemos, a prática foi seguida pela igreja primitiva. As Igrejas de Cristo também, claro, não se reúnem nas casas dos irmãos, o que a igreja primitiva foi obrigada a fazer. Elas constroem templos para o culto público e geralmente operam de modo parecido aos de denominações iguais a elas. Conformam-se à prática do Novo Testamento em algumas poucas áreas que lhes permitam afirmar que o seguem exclusivamente, mas, a verdade é que se os apóstolos voltassem hoje, ficariam tão perplexos com o que acontece nessas igrejas como em todas as igrejas de todos os lugares. E impossível a qualquer igreja de hoje aderir a cada detalhe do Novo Testamento só pelo fato de os tempos terem mudado tanto que não conseguimos mais recriar nada parecido com as primeiras igrejas cristãs. Será necessário fazer alguma adaptação à vida moderna, mas, até que ponto? Para determinar isso, muitas igrejas criaram uma distinção entre um princípio e sua aplicação, insistindo que embora o primeiro continue inalterado, o segundo pode ser modificado de acordo com as necessidades. Questões de princípios são colocadas sob um destes três tópicos: doutrina, disciplina e devoção. Todas as igrejas concordam que devem ensinar o que os apóstolos ensinaram. Também concordam que
precisam excluir qualquer coisa que destoe do ensino dos apóstolos, certificando-se de que os escolhidos, para ser mestres, preencham sua função de acordo com a intenção dos apóstolos. Também devem se esforçar para que os membros da igreja vivam de acordo com os padrões estabelecidos, e discipliná-los, caso não ajam assim. Por último, todas as igrejas devem se reunir para cultuarem a Deus, o que normalmente inclui louvor e gratidão como também orações pelas necessidades da igreja e do mundo, embora o conteúdo exato de cada culto seja variável. A Ceia do Senhor é o âmago do culto, apesar de haver muitas maneiras diferentes de expressarmos sua centralidade. A leitura da Bíblia, seguida da pregação e ensino baseados no que foi lido, também são aspectos do culto, embora o relacionamento entre eles seja mais complexo. Em primeiro lugar, é perfeitamente possível ler a Bíblia e pregar e ensinar com base nela fora do contexto de um culto, o que é feito frequentemente. Também é possível adorar a Deus sem incluir pregação e ensino, especialmente se não houver ninguém competente para fazer isso, embora nesses casos deva haver pelo menos uma leitura da Bíblia. Mas, não importa o grau de legitimidade dessas exceções, elas normalmente são vistas como tais e não como prática comum. Em circunstâncias normais, e na maioria das igrejas protestantes pelo menos, pregação e ensino ocupam espaço central. Quando começamos a aplicar esse critério às igrejas de hoje, encontramos uma “salada”. Com respeito à doutrina, a maioria das igrejas aceita os credos antigos e as decisões dos primeiros quatro concílios ecumênicos como normativos, embora seja difícil determinar o peso real da influência que exercem na vida de uma igreja contemporânea. 17 Os credos são conhecidos de uma ampla variedade de frequentadores, e algumas igrejas ocasionalmente oferecem cursos ou palestras que explicam o significado deles. Com frequência, os hinos refletem os ensinos ou elementos dos credos, e assim podemos afirmar que estes continuam a exercer papel importante na vida da igreja contemporânea. Os concílios ecumênicos são bem menos conhecidos, e o quarto deles 17 Muitos
grupos protestantes não usam os credos e sabem pouquíssimo a respeito dos quatro primeiros concílios ecumênicos, mas, o que ensinam geralmente está de acordo com os credos, estejam ou não conscientes disso.
(Calcedônia) continua um ponto de divisão dentro das igrejas do Leste; contudo, sua doutrina básica continua sendo um ponto de referência da fé cristã autêntica, especialmente quando se trata de estabelecer se uma denominação como as Testemunhas de Jeová pode ser considerada cristã. As Testemunhas de Jeová afirmam ser bíblicas, mas, porque ensinam uma doutrina de Cristo parecida com uma heresia ariana antiga, que nega sua divindade plena, o restante do mundo cristão não aceita essa denominação como ortodoxa. E ao lidarmos com doutrinas formuladas nos últimos tempos que as diferenças mais importantes aparecem no modo de usar o Novo Testamento. A Igreja Católica Romana não exige que todas as doutrinas em que seus fiéis devem acreditar tenham base evidente nas Escrituras. Para ela, sua própria apostolicidade inata lhe dá o direito de proclamar como dogma infalível crenças que há tempo são guardadas pelos membros da igreja, embora não tenham confirmação escrita que seja rastreada a um dos apóstolos. A crença que Maria permaneceu virgem durante toda a sua vida é uma delas; a única evidência é a devoção popular, contudo, a igreja transformou a crença numa parte da fé apostólica, e nenhum católico leal tem liberdade para rejeitá-la só porque não se encontra na Bíblia. As igrejas protestantes rejeitam esse tipo de afirmação como questão de princípio. Poucos protestantes acreditam na virgindade perpétua de Maria, mas, não é isso que estamos discutindo. Os protestantes têm liberdade para crer nesse ponto de vista se quiserem, apesar da falta de provas, contudo, não de ensiná-lo como doutrina em que todos os cristãos têm de acreditar se quiserem ser salvos. Ele não é parte da herança apostólica autêntica, e assim não pode ser exigido como elemento de fé. O fato de a Igreja Católica fazer essa exigência é evidência de que ela se afastou da apostolicidade, apesar de garantir o contrário. Em geral, a Igreja Ortodoxa do Leste evita tomar partido nesse tipo de argumento. A maioria dos ortodoxos acredita na virgindade perpétua de Maria, mas, a crença não foi definida ou canonizada pela igreja e, portanto, não pode ser exigência à salvação. Da mesma forma que os protestantes, os ortodoxos acham que a Igreja Católica foi longe demais ao exigir que seus fiéis aceitem crenças minuciosamente definidas, e foi aí que errou - mesmo que a crença esteja correta.
Por outro lado, as igrejas protestantes em geral têm uma confissão de fé que afirmam ter sido baseada no ensino do Novo Testamento, mas, que na verdade vai além das Escrituras ao insistir em determinados posicionamentos (com respeito a batismo, por exemplo) que não são incontestavelmente bíblicos, embora sejam reivindicados como tais por aqueles que os promovem. O resultado foi uma divisão que produziu o denominacionalismo moderno, e embora a maioria dos teólogos se mostre disposta a reconhecer que alguns de seus posicionamentos confessionais são muito rígidos e exclusivos no que se refere ao Novo Testamento, é extremamente difícil alterar o que já se tornou tradicional. Na prática, acabam defendendo crenças que sabem ser de importância secundária (na melhor das hipóteses), mas, continuam levando-as a sério porque são partes integrais da confissão de fé pública de sua denominação. Uma das razões principais dessa atitude é o medo que muitos conservadores têm de que tão logo uma mudança seja introduzida a uma declaração de fé, como a Confissão de Westminster, será impossível saber até onde as alterações irão parar. Muitos seguidores leais à Reforma deploram o fato de a confissão insistir em que o Papa é o anticristo, contudo, é bem mais fácil ignorar a cláusula do que a omitir, o que poderia levar à exigência de que outras doutrinas potencialmente divisoras (como aquelas relacionadas à eleição e predestinação) tam bém fossem abolidas.18 Quem leva a Confissão de Westminster à sério considera essas doutrinas muito mais importantes aos ensinos de sua igreja, assim como uma interpretação verdadeira do Novo Testamento, e omiti-las seria entendido como concessão ao liberalismo e à descrença. O perigo é que alguém insista na doutrina de que o Papa é o anticristo e, como resultado, cause problemas, (ou, no mínimo, um enorme constrangimento). É o caso da Irlanda do Norte, onde presbiterianos conservadores têm de assegurar constantemente a seus vizinhos católicos que discordam dessa declaração em particular, embora aceitem de bom grado a Confissão de Westminster como base oficial de sua fé. 18 A
declaração de que o Papa é o anticristo se encontra na Confissão de Westminster,
25.6.
Um modo de acabar com esse dilema é criar novas confissões, o que teoricamente é sempre possível. Algumas, igrejas, e várias organizações paraeclesiásticas, tentam fazer isso, mas, as dificuldades são imensas. Uma delas é que o espírito ecumênico de nossos dias é avesso à ideia de criar declarações doutrinárias cuja exatidão servirá apenas para dividir ainda mais a igreja. Será que uma única denominação consegue produzir uma declaração doutrinária que a distinguiria das outras sem infringir o espírito de comunhão e cooperação que recentemente reuniu tantos ministérios cristãos diferentes? Se não puder, por que uma denominação iria compor uma declaração de fé que praticamente todos os cristãos teriam prazer em assinar? Declarações de fé são genéricas, assim, são com frequência elaboradas por organizações interdenominacionais, que têm por objetivo adotar uma posição que seja o mais abrangente possível, contudo, na realidade, é provável que não contivesse nenhuma novidade. Ao mesmo tempo, há questões, que vão dos miraculosos dons espirituais à preservação ambiental, sobre as quais uma igreja gostaria de adotar uma posição oficial, mas, é muito difícil chegar a um consenso. O exemplo da Igreja Católica Romana serve de alerta aqui. Ela produziu três definições dogmáticas nos últimos tempos - corroborando a concepção imaculada e a virgindade perpétua de Maria (1854), a infalibilidade do Papa (1870) e a ascensão de Maria aos céus (1950) mas, não podemos afirmar que qualquer uma das definições estimulou a união cristã. Essas definições eram necessárias? Fizerem diferença verdadeira na fé de alguém? O melhor é concluir que as igrejas de hoje devem manter a tradição comum que herdaram dos tempos antigos e procurem conciliar as diferenças existentes, em vez de criar outras. Talvez um dia seja possível (e também desejável) haver definições doutrinárias adicionais, mas, é melhor que isso seja feito pela cooperação de todas as igrejas principais trabalhando em conjunto, e não por indivíduos trabalhando sozinhos. No entanto, os problemas mais complicados surgem quando deixamos a formulação de doutrina e passamos à sua aplicação. Desde o século 18, as igrejas têm de lidar com a mentalidade que insiste em dizer que a cosmovisão bíblica é coisa antiga, que os pais da igreja primitiva (e até mesmo os reformados do século 16) usavam uma
hermenêutica bíblica que hoje é ultrapassada, e que as definições clássicas de doutrina resultavam das (quase sempre sórdidas) políticas da igreja, projetadas mais para excluir elementos indesejáveis do que para disseminar o evangelho. Por todos esses motivos, alguns defendem que as declarações doutrinárias clássicas não podem ser critérios para determinar em que os cristãos devem crer hoje. Até mesmo a Bíblia não passa de um registro sobre os ensinamentos da igreja no passado e não pode ser vista como guia para sua doutrina ou prática contem porâneas, que devem ser baseadas em outros princípios. Essa crítica severa já foi contestada muitas vezes, mas, continua aparecendo com roupagem diferente. Atualmente ela é mais presente na afirmação comum de que a ciência moderna refutou muito do que a Bíblia afirma, assim, ela não pode mais ser aceita como autoridade confiável para a vida cristã de hoje. Basicamente, esse ataque tem se concentrado nas doutrinas da criação e da queda, e as duas são negadas por um número significativo de filósofos das culturas tradicionalmente cristãs. É difícil negar que a Bíblia ensina que o mundo foi criado por Deus e que a humanidade foi colocada no mundo como sua coroa de glória, mas, essa crença é atacada de igual forma por evolucionistas e ambientalistas. Os evolucionistas negam que o homem foi criado de modo especial por Deus a sua imagem e semelhança, e os ambientalistas são categóricos em afirmar que a raça humana não tem direito de reivindicar “domínio” sobre as outras criaturas, que não são, de forma nenhuma, inferiores a nós. Quanto à queda, enfatizam que Gênesis não fala sobre o assunto em nenhuma de suas páginas e que a tradicional doutrina do pecado original é baseada até certo ponto na interpretação errônea de Agostinho sobre Romanos 5.12. 19 A maioria das pessoas concorda que os seres humanos ainda não alcançaram todo o seu potencial, contudo, isso é diferente de afirmar que eles estão afastados de Deus; não confundamos desenvolvimento inadequado com pecado. De acordo com o raciocínio, não seria melhor abandonar idéias “contraproducentes” 19 Para
Agostinho, o versículo afirma que a culpa humana por seu pecado foi herdada de Adão, enquanto que para intérpretes de épocas mais recentes ele apenas significa que a morte entrou no mundo por causa do pecado de Adão.
como a queda e construir uma imagem mais positiva da raça humana e seu futuro? De um modo ou de outro, esse raciocínio atingiu todas as igrejas mais conhecidas, contudo, sua incapacidade (ou recusa) de produ 2ir novas declarações doutrinárias atenua seus efeitos no que di 2 respeito à opinião pública. Na prática, a maioria das igrejas prefere deixar as afirmações doutrinárias tradicionais como estão e ignorá-las ou interpretá-las tão amplamente que se tornam praticamente sem sentido. Algumas igrejas muito conservadoras reagiram contra isso condenando todas as formas de modernidade, entretanto, o “fundamentalismo” desse tipo é relativamente incomum e quase sempre antipati 2ado, mesmo por pessoas conservadoras em sua abordagem geral sobre tais questões. Entre esses dois extremos existe uma gama de opiniões, das quais a mais significativa está associada a membros de denominações liberais, mas, que defendem opiniões conservadoras e insistem em afirmar que suas igrejas deveríam ensinar doutrina conservadora. No geral, entretanto, opiniões assim são de uma minoria e raramente tocam a vida de pessoas comuns ou afetam a maneira de uma igreja ser governada. Nos últimos tempos, porém, as igrejas sentiram o impacto dessa mentalidade moderna em duas áreas, e ambas causaram divisões além das que costumam separar as denominações tradicionais. A primeira área é sobre o papel das mulheres na igreja. Até bem recentemente, ninguém discordava que o ministério pastoral, e a autoridade que lhe é pertinente, era reservado aos homens. É isso que o Novo Testamento ensina, e é obedecido desde o período de formação da igreja. Isso não significa que o ministério feminino tenha sido totalmente rejeitado; as ordens de freiras, por exemplo, existem há muito tempo, e muitas igrejas protestantes têm diaconisas e missionárias. Em geral, porém, a ordenação ao ministério foi barrada às mulheres até, mais ou menos, a geração passada. Hoje, em boa parte devido a influência de novas posturas sobre igualdade sexual, muitas igrejas protestantes abriram seu ministério às mulheres quase na mesma base que aos homens. Como sempre acontece nesses casos, existem variações nas práticas, e a velocidade da mudança não é a mesma em todos os lugares, mas, a abertura para o ministério de mulheres é bem evidente nas denominações que concordaram em abrir espaço para elas.
Para justificar a mudança, algumas, igrejas apelam para o Novo Testamento, que segundo elas tem sido mal interpretado através dos séculos, contudo, esse argumento não é plausível. O máximo que podemos di2er a seu favor é que a Bíblia não fala sobre ordenação no sentido moderno. Quando ela afirma que as mulheres devem ficar caladas na igreja e não ensinar, a proibição tinha a intenção de lidar com um problema particular que havia surgido na igreja primitiva, e não se aplica à situação contemporânea. 20 Se a ordenação ao ministério é um desenvolvimento pós-bíblico, então, é possível argumentar que o ensino bíblico sobre as mulheres em geral é irrelevante. As igrejas têm liberdade de permitir que seus ministérios se desenvolvam de acordo com a mudança de épocas e circunstâncias. Basicamente essa é a posição que tais igrejas são obrigadas a adotar, apesar de algumas, tentarem argumentar que havia apóstolas nos tempos do Novo Testamento. 21 O argumento é válido? A verdadeira questão aqui é entre as pessoas que creem que o Novo Testamento estabelece um padrão para o relacionamento homem-mulher que é de origem divina e não pode ser mudado e as pessoas para quem esse relacionamento é condicionado culturalmente e, então, pode ser alterado para se adaptar a diferentes padrões sociais. As igrejas que ordenam mulheres basicamente adotaram este último ponto de vista, sejam ou não transparentes em relação ao fato. Algumas, igrejas levaram em conta a consciência de seus fiéis que não concordam com isso, em uma tentativa de preservar a união, todavia, o resultado é quase sempre mais divisões. As mulheres ordenadas nessas circunstâncias raramente se dispõem a trabalhar com quem discordou de sua ordenação, e resta ver se a discordância pode ser acomodada em uma única estrutura eclesiástica. Se não puder, então, lamentavelmente, é necessário afirmar que a ordenação de mulheres pelas principais denominações protestantes, e somente elas, desferiu outro ataque contra 20 Variações
desse argumento são encontradas hoje como interpretação de ITimóteo 2.11-15. Para um excelente, mas, quase sempre esquecido, estudo da questão, veja F. Martin, The Feminist Question: Feminist Theology in the Light of Christian Tradition
(Grand Rapids: Eerdmans, 1994). 21A evidência apresentada é o caso de Júnias, em Romanos 16.7, contudo, é óbvio que fosse ela quem fosse, não era um dos apóstolos e jamais exerceu qualquer autoridade sobre a igreja local.
a união da igreja, e um ataque que provavelmente se mostrará uma barreira intransponível para a cooperação ecumênica futura. Outra questão de grande importância que também está enraizada na doutrina da criação trata dos relacionamentos homoafetivos. 22 Dois homens podem se casar com a bênção da igreja? A Bíblia deixa bem claro que a atividade homossexual é imoral, o que automaticamente exclui casamentos homoafetivos. Segundo a Bíblia, o casamento é uma forma de santificar e regulamentar os relacionamentos entre homens e mulheres, incluindo a importantíssima reprodução da raça humana. O conceito de que duas pessoas que se amam têm o direito de se unir em matrimônio, independentemente de outras considerações, é completamente estranho à Bíblia. O Antigo Testamento tanto quanto o Novo ensina que devemos amar os semelhantes como a nós mesmos, porém, isso não significa que temos a obrigação de nos casar com eles. Uma limitação curiosa sobre o conceito de “amor” resultou nessa interpretação atual, juntamente com a crença de que a orientação sexual — algo ignorado na Bíblia—deveria ser parâmetro para orientar nossa conduta. Em geral, as igrejas se mostram (até agora) mais conservadoras do que com a ordenação de mulheres, contudo, existe uma tendência cada vez mais definida entre os protestantes liberais de se amoldar à cultura prevalecente do secularismo ocidental, e a batalha sobre o casamento homoafetivo já está dilacerando alguma, denominações. As igrejas que casaram e ordenaram homossexuais certamente causaram divisões, não somente em relação a outras denominações como também às suas igrejas, e, em geral, os divergentes vão embora como forma de protesto. Ainda é muito cedo para prevermos qual será o efeito disso tudo a longo prazo, mas é difícil imaginar outro resultado que não seja o aumento das divisões já existentes na igreja global. Tanto no caso da ordenação de mulheres como do casamento homoafetivo, a apostolicidade da igreja está sendo diretamente desafiada por um ataque nas doutrinas da criação e da queda, fundamentais aos ensinos da Bíblia que os apóstolos aceitavam sem discutir. Isso é im portante, pois as doutrinas da redenção e salvação em Cristo só podem 22 Veja
L. Nolland, God, Gays, and the Church (Londres: Latimer Trust, 2008), para uma boa análise das questões sob um ponto de vista cristão tradicional.
11
ser corretamente entendidas nesse contexto. 23 Se o conceito do que está errado mudar, a maneira de resolver o problema também mudará, e a mensagem da igreja deixará de ser o que é desde os tempos dos apóstolos. O alarme causado pelo medo do que já anda acontecendo nas denominações protestantes tradicionais tem levado a muitas divisões entre elas recentemente, como também a corrida de seus membros mais fiéis para a igreja evangélica, e em alguns casos, para a Igreja Católica ou a Ortodoxa. Intimamente ligada a isso, encontra-se a questão da disciplina, área em que todas as igrejas contemporâneas enfrentam um grande problema. No início, era possível excluir quem se afastasse dos ensinos e práticas da igreja. Isso foi feito no Novo Testamento e permaneceu parte ativa da vida eclesiástica até à Reforma e mais adiante. Talve2 nos arrepiemos diante de alguns métodos usados para efetivar a disciplina — exílio, na melhor das hipóteses, ser queimado vivo, na pior delas —, mas, não há dúvidas de que a igreja levava a disciplina a sério. O declínio desse tipo de disciplina afetou seriamente a vida doméstica das igrejas. Em teoria, qualquer igreja pode julgar seus membros por heresia ou mau comportamento, e isso era praticado até bem recentemente. No século 19, era comum professores universitários serem dispensados por causa de suas idéias pouco ortodoxas ou pastores serem demitidos pelo mesmo motivo. O fracasso moral, embora menos exposto, recebia o mesmo castigo, e na maioria das igrejas e instituições religiosas isso ainda acontece em nossos dias. Disciplinar um clérigo — funcionário da igreja, afinal — sempre foi aceito com mais facilidade e prontidão do que disciplinar um leigo. A Igreja Protestante acha mais difícil, se não impossível, aplicar disci plina relevante a seus membros comuns porque se tentar lhes impor suas regras, eles provavelmente deixarão de participar da igreja ou irão procurar outra em que serão aceitos mais prontamente. Como é de se esperar, as igrejas católicas e a ortodoxa tentam exercer disciplina de forma mais enérgica, tanto nos clérigos como nos leigos, mas, elas também enfrentam problemas parecidos no que se refere aos leigos. Gostemos ou não, no mundo contemporâneo a igreja se tornou um 23 Veja
ICoríntios 15.22, onde Paulo apresenta seu argumento.
corpo ao qual a pessoa comum pode se unir ou largar, com pouquíssima consequência. Grupos sectários talvez exerçam mais pressão em seus membros, mas, somente porque são pequenos e, em alguns casos, isolados da sociedade mais ampla. Seja homem ou mulher, a pessoa excluída da comunidade amish, por exemplo, ficará em situação difícil porque será cortada do único grupo social que conhece, contudo, isso está longe de ser típico da igreja como um todo e não pode ser visto como norma no mundo atual. No terreno da devoção, reina anarquia parecida em todas as denominações. À época da Reforma, havia esforço consciente em muitos lugares de elaborar planos de culto que refletissem o ensino de uma igreja em particular e que fosse imposto de igual forma a todos. Na Igreja Católica, por exemplo, a Missa Tridentina se tornou a norma e assim permaneceu durante quatro séculos. Quando foi posta de lado, em 1970, deixou para atrás conservadores leais que continuaram (em número decrescente, temos de admitir) a pleitear sua restauração e considerar seu abandono uma das causas principais da inatividade que cercava a igreja desde o Concilio do Vaticano II (1962-65). Os anglicanos seguem o Livro de Oração Comum, cuja forma clássica vem de 1662 e é a base para liturgias da Comunhão Anglicana, contudo, o livro de oração tradicional é hoje bem menos usado do que na geração passada, embora ainda exista e continue, até certo ponto, a servir como “norma” para a direção do culto e a articulação de doutrina. As igrejas ortodoxas do Leste continuam agarradas às suas antigas liturgias, que permanecem inalteradas, contudo, em outras denominações, o tradicionaüsmo litúrgico é bem menos visível. A maioria das igrejas protestantes, assim como as católicas, sofreram mudanças radicais na geração passada, algumas inflamadas pela renovação litúrgica genuína, mas muitas dessas mudanças foram inspiradas pelos movimentos carismáticos e a cultura jovem contemporânea. Em geral, podemos afirmar que as liturgias de hoje não são inspiradoras e muitas vezes tão inflexíveis (com um número infinito de escolhas) que qualquer sentimento de união acabou se perdendo. Certamente, como sacerdotes e pastores sabem muito bem, não é mais possível ir a uma igreja anglicana ou católica e dirigir o culto sem que haja alguma orientação prévia. Mesmo que o
esboço geral do culto seja conhecido, os detalhes variam tanto de uma igreja para outra que a orientação prévia é quase sempre necessária. Não é possível nem mesmo prever que tradução da Bíblia será usada ou que texto da Oração do Pai Nosso será recitado. É difícil saber até onde essa variedade afetará as reivindicações da igreja à apostolicidade. Reformadores litúrgicos sempre se orgulharam de ter recuperado formas do culto primitivo que remontavam (eles acharam) aos tempos apostólicos, e os cultos interdenominacionais que elaboraram, em grande parte baseados em um texto atribuído a Hipólito (século 3), gerou um sentido de união entre as denominações que contrabalançaram os fatores que levariam a divisões ainda maiores.24 Contudo, por mais que os cultos variem de um lugar para outro, os participantes leigos geralmente os reconhecem quando vão de uma denominação para outra porque comissões litúrgicas de suas respectivas igrejas trabalharam juntas na produção de formas amplamente parecidas de culto. Mais importante ainda, a conquista de um lecionário comum foi bastante notável; hoje é possível ir a qualquer Igreja Protestante tradicional ou católica romana e ouvir as mesmas leituras bíblicas, o que certamente incentivará um senso de união eclesiástica entre o povo. Nesse sentido, apesar da enorme variedade de formas aparentes, o culto cristão (fora da tradição oriental) das diferentes denominações é muito mais parecido hoje do que era na geração passada. Isso é bem verdade, mas, será que os apóstolos teriam reconhecido nosso culto moderno? Essa pergunta é mais difícil de ser respondida. Não levando em conta os adicionais — os apóstolos não saberíam o que pensar de PowerPoints ou até mesmo de hinários —, talvez o maior problema que eles teriam com nossos cultos é sua relativa superficialidade. Quando lemos o Novo Testamento, observamos que os crentes deveríam analisar as Escrituras, estudá-las, e receber ensino mais profundo quando se reunissem. Percebemos também que frequentar a igreja não era simplesmente uma atividade entre muitas outras, e sim uma parte essencial da identidade individual de cada cristão. A igreja 24 Sabemos
hoje que essa atribuição é falsa e que o texto usado é de data mais recente, provavelmente, do século 5 e não 3, contudo, isso não altera o fato de que uma grande união litúrgica foi alcançada.
era a comunidade mais importante, onde todos os negócios sérios da vida eram tratados. A igreja era tão diferente do mundo em geral e suas regras eram tão severas que se unir a ela era quase como se mudar para outro país. Nesse aspecto, a igreja contemporânea, seja qual for seu formato e não importam suas reivindicações, está bem distante do modelo apostólico. Muitas igrejas sentem a necessidade de recuperar o senso de comunidade entre uma vida urbana moderna desalmada, no entanto, quantas levam o sentimento a sério? Algumas têm feito isso, é verdade, mas, são exceções que confirmam a regra. Talvez aqui, mais do que em qualquer outro aspecto, se encontre um desafio real e uma oportunidade verdadeira para a igreja influenciar o mundo em que vive e recuperar um pouco do significado original de trilhar o caminho dos apóstolos, que seguiram os passos de Jesus. UM CAMINHO A SEGUIR?
Este capítulo começou com a seguinte pergunta: O que a igreja deveria ser? Um levantamento sobre as respostas de diferentes grupos denominacionais mostrou a dificuldade de alcançarmos um denominador comum no assunto. As Igrejas Ortodoxas nem fazem tal pergunta, porque em sua visão a igreja existente é o que deveria ser, e se houver necessidade de mudança, ela acontecerá devagar e com a anuência de todos os envolvidos. Há muito que seus líderes se esforçam para a realização de um sínodo pan-ortodoxo que revise os cânones da igreja e trate de questões apresentadas pela modernidade, mas, até agora não houve sinal de isso acontecer. O sínodo talvez aconteça um dia, mas, o ritmo em que a Igreja Ortodoxa se move é tão lento que séculos passarão antes disso. A Igreja Católica Romana ensaiou uma mudança no Concilio Vaticano II, cujo impacto ainda se faz sentir e é difícil de ser avaliado objetivamente, mesmo depois de meio século. O certo é que a abordagem reacionária à vida moderna que teve início em Trento no século 16 foi definitivamente abandonado pelo Vaticano II, e deixou consequências dramáticas para a igreja. Em particular, o diálogo com cristãos não católicos nunca foi tão promovido quanto agora, e os católicos são incentivados a trabalhar com protestantes e ortodoxos em áreas como pesquisa bíblica, história da igreja e teologia sistemática.
No entanto, na questão fundamental da igreja e sua identidade, a Igreja de Roma não mudou sua posição. A igreja será o que o Espírito Santo disser ao Papa que ela deve ser, e ele comunicará a mensagem aos fiéis. Os meios de comunicação modernos transformaram os Papas em personalidades da mídia, o que torna essa tarefa bem mais fácil do que antes, mas, embora um número de católicos afirme ter sido inspirado pelo Papa João Paulo II (1978-2005) e agora pelo Papa Francisco (2013-?), é impossível dizer quantos tiveram suas vidas transformadas de algum modo por influência deles. 25 Sem dúvida nenhuma, o papado continuará atraindo multidões, mas, é difícil antever o efeito que causará no povo, e provavelmente será bem menor do que a atenção da mídia deixa transparecer. Para as igrejas protestantes, a possibilidade de modificar a igreja com o objetivo de moldá-la a princípios específicos, sejam eles derivados ou não do Novo Testamento, sempre foi maior. Não é exagero afirmar que esse ideal inspirou a Reforma e nesse sentido é parte do DNA do protestantismo — ecclesia semper reformanda, como diz o ditado clássico.26 Mas, como isso deve ser feito? Como este capítulo indica, muitos as pectos da vida eclesiástica precisam ser melhorados, e algum tipo de mudança é inevitável - para melhor ou pior. Se achassem necessário, os protestantes demoliríam as estruturas existentes da igreja institucional e recomeçariam do zero, e de vez em quando um grupo decide fazer exatamente isso. O resultado, quase sempre, é o surgimento de outra denominação, certamente distinguida por alguns slogans que lhes são peculiares, mas, não essencialmente muito diferentes das denominações já existentes. Concordemos ou não, a experiência mostra que a mudança verdadeira só pode ser incrementai — um passo de cada vez. Seria extremamente insensato prever como isso deve ser feito, e que ninguém se iluda achando que o estado desordenado do mundo protestante contemporâneo pode ser consertado da noite para o dia se é que pode. Mesmo uma denominação à beira da morte pode levar 25 O
Papa Bento 16 (2005—13) foi menos amigável com a mídia e, portanto, menos “influente” nessas questões, embora fosse um teólogo mais hábil que seu predecessor ou seu sucessor. 26 “A Igreja está sempre necessitando de reforma.”
muito tempo para desaparecer, e sempre haverá relíquias do passado sobrevivendo aqui e ali. Mesmo assim, o segmento principal da igreja poderá ir adiante e é exatamente o que acontecerá; o desafio é fazer com que vá na direção certa. Não podemos ser dogmáticos em afirmar que direção é essa, mas, podemos estabelecer algumas coisas como pontos de partida e referências pelas quais medimos se está havendo algum progresso. Em um livro recente, o professor Norman Doe apresentou cinquenta princípios que ele acredita serem comuns a todas as igrejas cristãs.27 Após analisar dez tradições denominacionais diferentes que cobrem todo o espectro da igreja, Norman Doe identificou cinquenta fatores que todas as igrejas têm de encarar e descobrir como lidar mais cedo ou mais tarde. Doe também concluiu que, por esses fatores serem partilhados de uma forma geral, as soluções que as diferentes igrejas encontraram também são bastante parecidas, ainda que a terminologia para as expressar não seja a mesma. Esse estudo mostra que não importa o que aconteça no futuro, esses princípios fundamentais continuarão a se manifestar e qualquer pessoa que deseje reformar uma instituição existente, ou criar uma nova, deve levá-los em consideração desde o início. Esses princípios podem ser resumidos assim: I- 5: Todas as igrejas são entidades jurídicas governadas internamente por princípios ou leis sujeitas a mudanças, mas, que devem ser respeitados e aplicados justamente a cada aspecto de seus ministérios. 6-10: A igreja é o povo de Deus, e todos os seus membros são iguais. Os que forem ordenados para exercer um ministério dentro dela não são impostos de fora, mas, emergem do grupo e são reconhecidos por procedimentos aceitos por todos. II-
15: Todas as igrejas têm oficiais responsáveis e praticam alguma forma de ordenação. Cada denominação tem uma estrutura de responsa bilidade e autoridade que vai além da igreja local.
27 N.
Doe, Christian Lam: Contemporary Principles (Cambridge: Cambridge University
Press, 2013), p. 388-98.
16-20: As igrejas têm formas diferentes de governo, mas, em geral, são organizadas em várias escalas — internacional, nacional, regional e local — e cada escala tem suas próprias estruturas. 21-25: Todas as igrejas têm alguma forma de disciplina, e a maioria possui um sistema para resolver discórdias e corrigir erros. Esses procedimentos devem ser justos e aplicados de igual modo a todos os membros. 26-28: Todas as igrejas têm normas doutrinárias que incluem a responsabilidade de anunciar a fé em Cristo e proteger o povo de Deus contra o pecado. 29-35: Todas as igrejas praticam o culto público, que inclui batismo, Ceia do Senhor, casamentos e funerais, que são realizados de acordo com normas legais e doutrinárias reconhecidas. 36-40: Há uma igreja universal que se manifesta por estruturas e organizações interdenominacionais que proporcionam comunhão de um extremo ao outro da fé cristã. 41-45: Todas as igrejas possuem bens móveis e imóveis e um departamento que administra suas finanças. Esse departamento tem o dever de sustentar o ministério e garantir que todas as suas atividades sejam transparentes e lícitas. 46-50: Todas as igrejas se relacionam com o mundo em geral. Elas têm de definir sua posição com respeito ao Estado, defender os direitos humanos ao redor do mundo e aceitar sua cota de responsabilidade social. Também têm a opção de formar parcerias com entidades públicas quando isso for permitido por lei e coerente.
Esses princípios são claros e abrangentes, contudo, em si mesmos são como um esqueleto que forma a estrutura do corpo sem ser o corpo. Talvez possam ser comparados aos ossos secos de Ezequiel 37, que viverão apenas se e quando o Espírito de Deus lhes der o so-
pro de vida. No entanto, quando o Espírito vem, os ossos secos não desaparecem. Ao contrário, seu verdadeiro propósito é revelado, e eles formam o contorno que o corpo inspirado irá ter. Essa é a igreja que vive no mundo, e é com esse objetivo em mente que os fiéis que buscam avançar sua causa e reformar suas estruturas devem proceder, para a glória do Deus a quem servem.
flpêncfice Os concílios ecumênicos
Os concílios ecumênicos da igreja sempre exerceram papel importante em sua formação através dos séculos. A Igreja Católica Romana aceita vinte e um deles, porque suas decisões foram ratificadas pelo Papa. A Igreja Ortodoxa aceita apenas os sete primeiros porque só esses foram ratificados por toda a igreja. 1 Em geral, os protestantes aceitam sem questionar as decisões dos quatro primeiros concílios, todavia são mais criteriosos quanto aos outros, usando a conformidade com as Escrituras como critério de aceitação. Os textos originais das decisões dos concílios foram publicados em N. P. Tanner (Org.), Decrees of the Ecumenical Councils, 2 volumes. (Londres: Sheed & Ward; Washington,
DC: Georgetown University Press, 1990). OS
OITO CONCÍLIOS DA ANTIGUIDADE
Todos eles se reuniram no Leste por ordem do imperador reinante. 0 Papa não participou de nenhum deles, contudo, mandou representantes e depois ratificou as decisões tomadas. O último desses concílios não foi reconhecido pela Igreja Ortodoxa. Primeiro Concilio de Niceia. Reuniu-se de 19 de junho a 25 de agosto de
325, e foi convocado pelo imperador Constantino I (r. 306-37). A maior parte do texto de suas decisões não sobreviveu, contudo, o concilio 1
“Por toda a igreja” significa as igrejas do Ocidente, além das igrejas do Oriente que estivessem em comunhão com Constantinopla. Na verdade, a igreja Nestoriana aceita apenas os dois primeiros concílios, e as igrejas monofisitas (ou miafisitas), apenas os três primeiros.
preparou um credo declarando que o Cristo incarnado era “consubstancial” (homoousios) ao Pai, e enviou uma carta ao Egito censurando Ário por não seguir essa doutrina. Seus vinte cânones sobreviveram, a maioria dos quais regulamenta a ordenação e disciplina do clero. Primeiro Concilio de Constantinopla. Reuniu-se em maio de 381 e terminou em 9 de julho, embora o imperador Teodósio I (r. 378-95) não tenha ratificado suas decisões até 30 de julho do mesmo ano. O texto de suas decisões não sobreviveu, mas, o consenso é que esse concilio emitiu a declaração de fé que hoje conhecemos como o “Credo de Niceia”. O concilio também estabeleceu a hierarquia de cinco patriarcados (Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém). (Primeiro) Concilio de Éfeso. Reuniu-se em 22 de junho de 431, sob a ordem do imperador Teodósio II (r. 408-50) e terminou em setem bro de 431. Ele é conhecido principalmente por condenar Nestório, patriarca de Constantinopla (r. 428-31), por sua perspectiva errada de que a pessoa de Cristo resultava da combinação entre sua divindade e sua humanidade, em vez de ser idêntico à pessoa do Filho divino. Concilio da Calcedônia? Reuniu-se em Niceia em 1 de setembro de 451, porém foi transferido para Calcedônia em 8 de outubro de 451, sob o comando do imperador Marciano (r. 450-57) e terminou na décima-sexta assembléia, que provavelmente aconteceu em 1 de novembro de 451. Esse concilio é notório por sua definição cristológica, segundo a qual o Filho Encarnado de Deus era uma pessoa divina com duas naturezas, divina e humana, “sem confusão, sem mudanças, sem divisão e sem separação”. A decisão do concilio foi rejeitada pelos nestorianos e pela igreja de Alexandria, insistente em que o Cristo encarnado tinha apenas uma natureza, e não duas. Essas duas igrejas não calcedônias ainda existem; a segunda é a igreja histórica do Egito, Etiópia, Síria, Armênia e Querala (índia do Sul). 2 2
Veja R. V. Sellers, The Council of Chalcedon:A Historical and Doctrinal Survey (Londres: SPCK, 1953); R. Price e M. Gaddis, The Acts of the Council of Chalcedon, 3 vols. (Liverpool: Liverpool University Press, 2005).
Segundo Concilio de Constantinople 1? Reuniu-se em 5 de maio de 553,
sob o comando do imperador Justiniano I (r. 527-65) e terminou na oitava assembléia em 2 de junho de 553. Seu objetivo principal foi reconciliar os monofisitas do Egito e Síria à fé calcedônia. No processo, o concilio condenou os escritos de Orígenes (185P-254?), Teodoro de Mopsuéstia (350P-428) e Teodoreto de Cirro (393P-457P), todos eles comentaristas importantes da Bíblia. Terceiro Concilio de Constantinopla. Reuniu-se em 7 de novembro de
680 e, após dezoito assembléias, terminou em 16 de setembro de 681. Ele censurou a tentativa de reconciliar os monofisitas, conhecidos pelo monotelismo, segundo o qual existe somente uma vontade no Cristo encarnado. O concilio também censurou o Papa Honório I (1. 625-38) por favorecer os monotelitas. Concilio em Trullo. A Reuniu-se no palácio imperial de Trullum em
Constantinopla sob o comando do imperador Justiniano II (r. 68595; 705-11). O motivo do concilio foi compor cânones disciplinares geralmente considerados um apêndice dos quinto e sexto concílios, que não emitiram nenhum. Por isso também é chamado de Concilio Quinissexto (“quinto-sexto”). Os cânones nunca foram ratificados pela igreja do Ocidente, contudo, foram o alicerce da lei canônica oriental desde então. Segundo Concilio de Niceia.3 4 5 Reuniu-se em 24 de setembro de 787 e,
após oito assembléias, terminou em 23 de outubro de 787. Foi convocado pela imperatriz Irene, que regia em lugar de seu filho, Constantino VI (r. 780-97). Seu objetivo principal foi declarar que era permitido pintar retratos de Cristo porque embora ele fosse Deus, também foi homem visível a seus contemporâneos. Esperava-se que a permissão 3
R. Price (Org.), The Acts of the Council of Constantinople of 553 (Liverpool: Liverpool University Press, 2009).
4
Veja G. Nedungatt e M. Featherstone (Orgs.), The Council in Trullo Revisited (Rome: Pontifício Istituto Orientale, 1995).
5
O melhor relatório em inglês sobre esse concilio está em E. J. Martin, A History of the Iconoclastic Controversy (Londres: APCK, 1930), p. 92-109.
terminasse com a controvérsia iconoclástica, o que aconteceu temporariamente, embora o iconoclasmo tenha ressurgido em 811 e só foi derrotado em 843. Quarto Concilio de Constantinopla.6 Reuniu-se em 5 de outubro de
869 e terminou, após dez assembléias, em 28 de fevereiro de 870. Foi convocado pelo imperador Basílio I (r. 867-86). Seu objetivo principal foi ratificar a deposição do patriarca Fócio (r. 858-67; 877-86), acusado de fomentar a divisão entre Constantinopla e Roma, e de reconciliar as igrejas orientais e ocidentais. O concilio reafirmou a primazia papal na igreja e foi ratificado no Ocidente, mas, repudiado no Oriente. Sínodo de Fócio em Constantinopla? Aconteceu em sete assembléias,
de Io de novembro de 879 a 13 de março de 880, com o objetivo de reinstalar Fócio como patriarca de Constantinopla. O concilio foi ratificado no Oriente e no Ocidente, e sugeriu-se que esse concilio deveria substituir o anterior, que se reuniu em 870, como o oitavo ecumênico. OS DEZ COIMCÍLIOS MEDIEVAIS
Todos estes se reuniram sob os auspícios do Papa, que participou de quase todos eles, e são mais apropriadamente considerados sínodos da igreja do Ocidente e não “ecumênicos” no verdadeiro sentido da palavra. A igreja do Oriente foi representada em apenas dois concílios (Lyons II e Ferrara-Florence), e mais tarde rejeitou suas decisões. Primeiro Concilio de Latrão. Foi convocado pelo Papa Calisto II (1.
1119-24) e reuniu-se de 18 de março de 1123 a 27 de março ou 6 de abril do mesmo ano. Sua maior preocupação foi atacar a prática da “investidura laica”, um ato pelo qual o Santo Imperador Romano reivindicava o direito de ratificar nomeações papais aos bispados. Foi nesse concilio que o celibato clerical compulsório foi apresentado. 6
7
67
Veja F. Dvornik, The Photian Schism (Cambridge: Cambridge University Press, 1948), e leia uma discussão completa desse concilio e sua repercussão nas tradições posteriores do Oriente e do Ocidente. Vejaj. Meijer,^4 Successful Council of Union: A Theological Analysis of the Photian Synod of 879-880 (Thessalonica: Patriarchikon Hidryma Paterikõn Spoudõn, 1975).
Segundo Concilio de Cairão. Foi convocado pelo Papa Inocêncio II (1.
1130-43) e reuniu-se em 4 de abril de 1139. Acredita-se que terminou antes de 17 de abril de 1139. Seu objetivo foi encerrar a divisão causada pela eleição de um antiPapa, Anacleto II (1.1130-38), e condenar as heresias de Pedro de Bruys (fl.l 117-31) e Arnaldo de Bréscia (1090P-1155). Terceiro Concilio de Latrão. Foi convocado pelo Papa Alexandre III (1.
1159-81) e reuniu-se de 5 a 19 ou 22 de março de 1179. Seu objetivo foi sanar a divisão que havia resultado em três antiPapas entre 1159 e 1178. Também condenou a heresia dualista (Maniqueísmo) dos albigenses (ou Catarismo) no sul da França. Quarto Concilio de Cairão. Foi convocado pelo Papa Inocêncio III
(1. 1198-1216) e reuniu-se nos dias 11, 20 e 30 de novembro de 1215. Esse concilio publicou decretos abrangentes sobre a reforma da igreja, incluindo uma proibição de casamentos ilegais e a compra de cargos eclesiásticos (simonia). Promulgou a doutrina da transubstanciação na missa e também reconheceu a posição de Constantinopla na hierarquia dos cinco patriarcados que foi proclamada no Primeiro Concilio de Constantinopla, em 381. Seus cânones continuaram sendo o fundamento da lei eclesiástica no Ocidente até a Reforma. Primeiro Concilio de Cyon. Foi convocado pelo Papa Inocêncio IV
(1.1243-54) e reuniu-se em quatro assembléias de 28 de junho a 17 de julho de 1245. O concilio tentou legislar a favor da conformidade das igrejas do Leste ao ritual romano e reavivar o interesse nas cruzadas, mas, foi um tremendo insucesso. Segundo Concilio de Cyon. Foi convocado pelo Papa Gregorio X (1.
1271-76) com a aprovação do imperador Miguel VIII (r. 1258-82). Reuniu-se de 7 de maio a 17 de julho de 1274. Seu objetivo principal foi reunificar as igrejas orientais e ocidentais. O imperador oriental aceitou as condições, mas, sua igreja as rejeitou, e depois da morte do imperador, ela repudiou o concilio. Concilio de Viena. Foi convocado pelo Papa Clemente V (1.1305-14)
e reuniu-se de 16 de outubro de 1311 a 6 de maio de 1312. Seu principal objetivo foi condenar a Ordem dos Templários, que estava reprimida
naquela época. O concilio também buscou regulamentar excessos que se infiltraram na ordem franciscana dos frades. Concilio de Constança.8 Foi convocado pelo Papa Gregário XII (1. 1406-15) e concluído por seu sucessor, Martinho V (1. 1417-31). O concilio se reuniu em quarenta e cinco assembléias, de 5 de dezembro de 1414 a 22 de abril de 1418. Seu objetivo principal foi terminar o grande cisma do papado - tarefa em que foi bem-sucedido -, e condenar as heresias de John Wyclif e Jan Hus. Hus participou do concilio, mas, foi preso, julgado e queimado na fogueira em desacato ao salvo-conduto que o imperador Sigismundo lhe havia garantido. Concilio de Basileia-Ferrara-Florença-Roma.9 Foi convocado pelo Papa Eugênio IV (1. 1431-47) e reuniu-se em Basiléia, de 14 de dezembro de 1431 a 7 de maio de 1437, depois em Ferrara, de 8 de janeiro a 9 de abril de 1438 (quatro assembléias), em Florença, de 10 de janeiro de 1439 a 4 de fevereiro de 1442 (sete assembléias) e por fim em Latrão, Roma, de 14 de outubro de 1443 a 7 de agosto de 1445 (três assem bleias). Como as suas decisões mais importantes foram tomadas em Florença, o concilio é geralmente conhecido por esse nome ou como o Concilio de Ferrara-Florença. Em sua fase inicial na Basiléia, ele re presentou a conquista do movimento conciliar, cuja expectativa era que tais concílios se reunissem regularmente como se fosse um Parlamento da igreja. Após sua mudança para Ferrara e, depois, para Florença, a maior preocupação do concilio foi a junção de Roma e as diferentes igrejas orientais. Foram estabelecidas reuniões de acordos em que o Oriente reconhecería a supremacia papal em troca do direito de manter suas próprias tradições. Depois que Constantinopla caiu nas mãos dos turcos, em 1453, a igreja ali repudiou a junção, mas, Roma continua usando a medida para reconciliar membros das igrejas orientais que decidem se submeter à autoridade papal. 8
Veja P. H. Stump, The Reforms of theCouncilof Constance (1414-1418) (Leiden: Brill, 1994); T. A. Fudge, The Trial ofJan Hus: Medieval Heresy and Criminal Procedure (New York: Oxford University Press, 2013); T. E. Morrissey, Conciliarism and Church Law in the Fifteenth Century: Studies on Franciscus Zabarella and the Council of Constance
9
(Farnham: Ashgate, 2014). Veja J. Gill, The Council of Florence (Cambridge: Cambridge University Press, 1959).
Quinto Concilio de Latrão.1° Foi convocado pelo Papa Júlio (1. 1503-
13) e continuou sob a liderança de seu sucessor, Leão X (1. 1513-21). Reuniu-se sob doze assembléias de 3 de maio del512alóde março de 1517, e aprovou vários decretos prometendo acabar com abusos praticados pela igreja. No entanto, foi obscurecido pela Reforma, que surgiu poucos meses depois do término do concilio, e seus cânones foram esquecidos quase que de imediato. OS TRÊS CONCÍLIOS PÓS-REFORMA
Esses concílios são apenas da Igreja Católica Romana e não são reconhecidos por nenhum outro grupo cristão. O Concilio de Trento.u Reuniu-se em três etapas distintas. A primeira
foi convocada pelo Papa Paulo III (1. 1534-49) e durou de 13 de dezembro de 1545 a 2 de junho de 1547 (dez assembléias). A segunda foi convocada pelo Papa Júlio III (1. 1550-55) e durou de I o de maio de 1551 a 28 de abril de 1552 (seis assembléias). A terceira foi convocada pelo Papa Pio IV (1. 1559-65) e durou de 18 de janeiro de 1562 a 4 de dezembro de 1563 (nove assembléias). No primeiro bloco de assembléias, foram assinados alguns decretos tratando da separação entre protestantes e os fieis a Roma. Esses deeretos abordavam o cânone e o texto da Escritura (8 de abril de 1546), o pecado original (17 de junho de 1546), a justificação pela fé (13 de janeiro de 1547) e os sacramentos (3 de março de 1547). No segundo bloco de assembléias, foram assinados os decretos sobre os elementos da Santa Ceia (11 de outubro de 1551), penitência (25 de novembro de 1551) e extrema-unção (25 de novembro de 1551). No terceiro grupo de assembléias foi assinado um decreto justificando a não entrega do cálice à congregação durante a Ceia (16 de julho de 1562) e outro que transformava a missa em sacrifício (17 de setembro de 1562). 10 11 10
Veja N. H. Minnich, The Fifth Lateran Council (1512-1517): Studies on Its Member ship, Diplomacy andProposals for Reform (Aldershot, UK: Variorum, 1993); P. B. T. Biliaruuk, The Fifth Lateran Council (1512-1517) and the Eastern Churches (Toronto: Central Committee for the Defence of the Rite, Tradition and Language of the Ukrainian Catholic Church in the USA and Canada, 1975). 11 VejaJ. W. O’Malley, Trent: What Happened at the Coundl (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2013).
Foram assinados outros decretos definindo e regulamentando a concessão das ordens sagradas (15 de julho de 1563) e a celebração do casamento (11 de novembro de 1563). Finalmente, vieram os decretos sobre o purgatório (3 de dezembro de 1563), a adoração aos santos e às suas relíquias (3 de dezembro de 1563), e as indulgências (4 de dezembro de 1563). O conteúdo deixa claro que a intenção principal desses decretos era atacar o protestantismo. 12 Concilio Vaticano IP Foi convocado pelo Papa Pio IX (1.184678 ) e reuniu-se em quatro assembléias, de 8 de dezembro de 1869 a 18 julho
de 1870. Seu único propósito foi proclamar o decreto da infalibilidade papal, o que aconteceu na sessão de encerramento. Concilio Vaticano IIP Foi convocado pelo Papa João XXIII (1.1958
63) e continuou sob a liderança de seu sucessor, Paulo VI (1.196378 ). Realizou-se em nove assembléias de 2 de fevereiro de 1962 a 7 de dezembro de 1965. Seu objetivo principal foi “renovar” a Igreja Católica depois de quatro séculos de ensinos e práticas moldados pelo decreto de Trento. Foi o único concilio a emitir um decreto especial sobre a igreja, conhecido como Lumen gentium (21 de novembro de 1964), acompanhado por Unitatis redintegratio, sobre o ecumenismo (21 de novembro de 1964), em que os cristãos não católicos eram reconhecídos como “irmãos separados”. A interpretação e implementação do concilio têm sido questões de grande controvérsia através das décadas. Ainda é cedo demais para avaliarmos qual será seu impacto no longo prazo, contudo, não há como duvidar que, pelo menos na superfície, a Igreja Católica Romana apresenta ao mundo um lado bem diferente daquele anterior ao concilio. 12 O
teólogo alemão luterano Martin Chemnitz (1522-86) apresentou uma impug-
nação detalhada do concilio. Veja M. Chemnitz, Examination of the Council of Trent, 4 vols., F. Kramer (Trad.), (St Louis: Concordia, 1971-86). 13 Veja J. J. Hennesey, The First Council of the Vatican: The American Experience (Nova York: Herder & Herder, 1963); F.J. Cwiekowski, English Bishops and the First Vatican Council (Louvain: Publications Universitaires de Louvain, 1971). 14 A literatura sobre esse concilio é vasta. Veja estudos mais recentes em D. Murray, Keeping Open the Door of Faith: The Legacy of Vatican II (Dublin: Veritas, 2012); S. Mulligan, Reaping the Harvest: Fifty Years after Vatican II (Blackrock, Co. Dublin: Columba Press, 2012); A. Marchetto, The Second Vatican Ecumenical Council A Counterpoint for the History of the Council, K. D. Whitehead (Trad.), (Scranton, PA: University of Scranton Press, 2010).
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TRADIÇÃO CRISTA
“Ao mesclar e entrelaçar as diversas manifestações da igreja cristã durante mais de vinte séculos, esta obra é um panorama ecumênico da interação da igreja com teologia acadêmica e teologia popular, renovação e intransigência, política e cultura secular. Bray se mostra não somente pacificador e benevolente, como também sensato e objetivo em suas avaliações. Quem especula se a eclesiologia realmente tem importância — ou de onde ela surgiu, em toda a sua diversidade atual —, deve ler este livro. John L, Thompson, Seminário Teológico Fuller