Freud, Lacan, Psicanálise e Zizek x Jung e Junguianos, um debate debate
A Luta de Classes na Psicanálise Slavoj Zizek
Jornal "Folha de São Paulo", 07 de julho de 2002 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2807200217.htm http://www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia/lutaclassesjungfreud.html http://zizek.weebly.com/texto-004.html O ensaísta analisa as tensões entre modernismo e antimodernismo nas obras de Freud e Jung, do d o qual está sendo lançado no Brasil, pela editora Vozes, o segundo volume das "Cartas"
O surpreendente no antagonismo que existe entre Freud e Jung é até que ponto ele continua atual: quase um século depois de seu aparecimento, o ódio mútuo continua forte. Nas últimas décadas, a psicanálise foi a grande perdedora para a enxurrada da psiquiatria farmacológica e cognitivo-behaviorista. cognitivo-behaviorista. Enquanto isso, a teoria junguiana continuou firme e até ampliou ampliou sua hegemonia no campo da ideologia popular. Jung não é apenas um verdadeiro autor best-seller - pelo intermédio de Joseph Campbell, que o popularizou, ele ele chegou ao ponto ponto de desempenhar desempenhar papel formador formador nas origens do universo de "Guerra nas Estrelas". De onde vem essa popularidade contínua? É simples: Jung promete a reconciliação entre a ciência e a espiritualidade gnóstica, oferecendo uma espiritualidade fundamentada diretamente na pesquisa científica. Em seus escritos, encontramos, lado a lado, referências à física quântica, a pesquisas empíricas, empíricas, à astrologia, astrologia, à crença no no reino espiritual oculto "mais profundo" etc. O inconsciente junguiano não é mais aquele dos impulsos sexuais reprimidos, mas o da libido dessexuada, dos poderes espirituais que ultrapassam o ego consciente. Para os junguianos, Freud permanece permanece no nível do naturalismo naturalismo biológico-sexual vulgar, vulgar, ao passo passo que Jung Jung reconciliaria o inconsciente inconsciente com a espiritualidade espiritualidade "mais profunda". Contrariando todas as aparências, não é fácil definir a diferença entre Jung e Freud. A primeira associação que fazemos consiste em dizer: "Sim, é claro - contra Freud, Jung afirmou os arquétipos e o inconsciente coletivo". Quando Freud trata de um caso de claustrofobia, ele sempre inicia a busca por alguma experiência traumática singular que esteja na raiz dessa fobia. O medo de ambientes fechados em geral seria baseado numa experiência de enclausuramento. Esse procedimento freudiano deve ser distinguido da busca junguiana por arquétipos: para Freud, a origem não é uma experiência traumática universal e paradigmática (por exemplo, o medo de permanecer permanecer encerrado no útero útero da mãe), mas mas alguma experiência experiência singular que, que, possivelmente, possivelmente, tenha uma ligação inteiramente contingente, externa a um espaço fechado. E se eu tiver testemunhado alguma cena traumática que pode ter acontecido em algum outro lugar, num espaço fechado? Sistema de raízes
Mas a distinção-chave não é essa. Jacques Lacan afirmava que a verdadeira fórmula do materialismo não é "Deus não existe", mas "Deus é inconsciente". Basta recordar que, numa carta escrita a Max Brod, Bro d, Milena Jesenska escreveu sobre Kafka: "Sobretudo, coisas como dinheiro, Bolsa de Valores, a administração de divisas, máquinas de escrever são, para ele, Página 1 de 11
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inteiramente místicas (o que elas efetivamente são, não apenas para nós, os outros)". Devemos ler essa afirmação contra o pano de fundo da análise feita por Marx do fetichismo de produtos: a ilusão fetichista está em nossa vida social real, não na percepção que dela temos. Um sujeito burguês sabe muito bem que não existe nada de mágico no dinheiro, que ele é apenas um objeto que simboliza um conjunto de relações sociais. Mesmo assim, ele age na vida real como se acreditasse que o dinheiro é uma coisa mágica. Assim, isso nos fornece um insight preciso sobre o universo de Kafka: ele foi capaz de vivenciar diretamente essas crenças fantasmáticas que nós, pessoas "normais", rejeitamos. A "magia" de Kafka é aquilo que Marx gostava de descrever como a "esquisitice teológica" dos produtos. Esse "Deus é inconsciente" de Lacan não deve ser confundido com a tese "new age" junguiana oposta, de que "o inconsciente é Deus". A diferença entre as duas, a diferença da inversão entre sujeito e predicado, diz respeito à oposição entre verdade e mentira. O "Deus é inconsciente" de Lacan aponta para a falsidade fundamental que fornece a unidade fantasmática de uma pessoa: o que encontramos quando vamos buscar no núcleo mais profundo de nossa personalidade não é nosso verdadeiro "self", mas a falsidade primordial ("proton/ pseudos") - todos nós, em segredo, acreditamos no "grande Outro" (essa oposição é exatamente a mesma que existe entre "o sonho é vida" e "a vida é sonho". Enquanto a primeira declaração visa à afirmação nietzschiana do sonho como experiência de vida integral, a segunda expressa a atitude de desespero melancólico à la Calderón: o que é a vida senão um sonho vão, uma sombra pálida, sem substância?). Contrastando com ela, "o inconsciente é Deus" significa que a verdade divina reside na profundeza inexplorada de nossa personalidade: Deus é a substância espiritual interna mais profunda de nosso ser, que encontramos quando penetramos em nosso verdadeiro "self". E, à medida que, nessa perspectiva junguiana, o inconsciente é um grande sistema de raízes escondidas que nutre a consciência, não surpreende que já tenha sido Jung, muito antes de Gilles Deleuze, quem explicitamente o tenha descrito como um rizoma: "A vida sempre me pareceu ser como uma planta que se nutre de seu rizoma. Sua verdadeira vida é invisível, oculta no rizoma. (...) O que enxergamos é a flor, que é passageira. O rizoma permanece" ["Memórias, Sonhos e Reflexões", ed. Nova Fronteira". O pano de fundo religioso dessa distinção é o espaço que separa o universo judaico-cristão daquele do gnosticismo pagão. Quando, pouco antes da ruptura entre eles, Freud confiou a Jung a presidência da Associação Psicanalítica Internacional, ele o fez em parte como estratégia desesperada para cortar o cordão umbilical judaico da psicanálise e torná-la aceitável aos não judeus -mas a aposta não deu certo. Devemos recordar o famoso dito de Heródoto com relação à Esfinge ("os enigmas dos antigos egípcios eram enigmas também para os próprios egípcios"), que aponta para o vínculo estreito entre o judaísmo e a psicanálise: em ambos os casos, o foco é no encontro traumático com o abismo do Outro que deseja. O encontro do povo judaico com seu Deus, cujo chamado impenetrável os afasta dos caminhos da rotina do cotidiano humano; o encontro da criança com o enigma do gozo do Outro. Essa característica parece distinguir o "paradigma" judaico-psicanalítico não apenas de qualquer versão do paganismo e do gnosticismo (com sua ênfase sobre a autopurificação espiritual interior, sobre a virtude como a realização de nossos potenciais mais profundos) mas também, e não menos, do cristianismo. Afinal, este último não "supera" o caráter de "Outro" do Deus Página 2 de 11
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judaico por meio do princípio do amor, da reconciliação/ unificação de Deus e do homem no tornar-se homem de Deus? Jornada interior
Tanto o paganismo quanto o gnosticismo (a reinscrição da postura judaico-cristã no paganismo) enfatizam a "jornada interior" de autopurificação espiritual, o retorno a nosso verdadeiro eu interior, a redescoberta do eu, formando um contraste claro com a idéia judaico-cristão de um encontro traumático externo (o chamado divino lançado ao povo judeu, o chamado de Deus a Abraão, a Graça inescrutável -todos totalmente incompatíveis com nossas características "inerentes", até mesmo com nossa ética "natural" inata). Kierkegaard tinha razão: é Sócrates versus Cristo, a jornada interior do relembrar versus o renascimento por meio do choque do encontro externo. Nisso reside, também, o espaço último que vai eternamente separar Freud de Jung: enquanto o insight original de Freud diz respeito ao encontro externo traumático com a Coisa que incorpora o gozo, Jung reinscreve o tópico do inconsciente na problemática gnóstica padrão da jornada espiritual interior de autodescoberta. Assim Freud é totalmente moderno: a noção freudiana de um ato falho (por exemplo, algo que se diz sem querer) enfatiza sua contingência radical. A interpretação freudiana não discerne nele um "significado mais profundo" ("era predeterminado que isso acontecesse comigo"), mas simplesmente deixa visível como, de maneira totalmente contingente, um "desejo" inconsciente se ligou a um elemento ou acontecimento cotidiano e superficial de uma maneira que não possui nenhuma ligação inerente com ele. E, o que é ainda mais radical, os próprios elementos constituintes básicos da identidade do sujeito - os significantes em torno do qual seu universo simbólico se cristalizou, a fantasia fundamental que fornece as coordenadas de seu desejoresultam de uma série de encontros traumáticos contingentes. A ciência moderna é estritamente correlativa à afirmação da contingência universal (que, é evidente, não se opõe à necessidade causal, mas funciona como seu anverso inerente: a necessidade causal opera sob a forma de regras que regulamentam a interminável interação "contingente" -sem sentido- de elementos). Assim, o que a interpretação freudiana envolve é uma teoria materialista e "moderna" do próprio significado. Quanto a seu status ontológico, o significado é estritamente secundário, uma maneira de "internalizar" o choque traumático de algum encontro contingente anterior. Não existe nenhum "significado mais profundo" por baixo da contingência de acontecimentos; pelo contrário, é o próprio significado que designa a maneira pela qual um sujeito finito consegue lidar com a insuportável contingência do "destino da carne". Por exemplo, quando eu me apaixono profundamente, realmente, parece que "toda a minha vida anterior foi apenas uma preparação para o momento mágico em que conheci você" - e o objetivo da interpretação freudiana é justamente "desconstruir" essa ilusão retroativa, trazendo à tona as características simbólicas contingentes em razão das quais eu me apaixonei. Formando um contraste claro com Freud, a reinscrição junguiana da psicanálise dentro dos limites da sabedoria pré-moderna envolve a ressubstancialização maciça da sexualidade: o masculino e o feminino são postulados como os dois aspectos complementares da psique humana, cujo equilíbrio precisa ser mantido (cada homem precisa redescobrir o aspecto feminino de sua psique e vice-versa) -o exato oposto do construcionismo à moda de Judith Butler, que concebe a identidade sexual como sendo produzida discursivamente pela encenação física e a sedimentação gradual. Página 3 de 11
Freud, Lacan, Psicanálise e Zizek x Jung e Junguianos, um debate Sabedoria "new age"
A Profecia Celestina" [ed. Objetiva], de James Redfield, é exemplar no que diz respeito a esse viés antimodernista da sabedoria "new age": postula como a primeira "nova mensagem" que vai abrir o caminho para o "despertar espiritual" da humanidade a consciência de que não existem encontros contingentes. Ou seja, como nossa energia psíquica faz parte da energia do próprio universo, que, em segredo, determina o rumo das coisas, os encontros contingentes externos sempre portam uma mensagem endereçada a nós, a nossa situação concreta. Eles ocorrem como resposta a nossas necessidades e perguntas (por exemplo, se determinado problema está me preocupando e algo inesperado acontece -um amigo que eu não via há muito tempo me faz uma visita, alguma coisa dá errado em meu trabalho, por exemplo-, esse acidente com certeza contém uma mensagem referente a meu problema). Assim, concluindo, vamos dar um exemplo artístico que encena essa passagem de Freud a Jung: o romance de ficção científica "Solaris" [1962", de Stanislav Lem, e sua adaptação para o cinema, feita por Andrei Tarkóvski em 1972. Tanto o livro quanto o filme narram a mesma história: a do psicólogo de uma agência espacial, Kelvin, que é enviado a uma nave espacial semi-abandonada que sobrevoa um planeta recém-descoberto, Solaris, onde fatos estranhos vêm acontecendo recentemente (cientistas enlouquecem, têm alucinações e se matam). Solaris é um planeta cuja superfície é oceânica, fluida e se move incessantemente. De tempos em tempos, ela assume formas reconhecíveis, não apenas complexas estruturas geométricas, mas também corpos infantis gigantes ou edifícios humanos. Embora todas as tentativas de comunicação com o planeta fracassem, Kelvin acaba por compreender que Solaris é um cérebro gigantesco que, de alguma maneira, lê nossos pensamentos e materializa nossas fantasias mais profundas. É aqui que devemos rejeitar a leitura junguiana de "Solaris": o xis da questão de Solaris não é apenas projeção-materialização dos ímpetos internos não reconhecidos do sujeito (homem) - muito mais crucial do que isso é que, para que essa "projeção" possa acontecer, é preciso que a Outra Coisa impenetrável (o planeta Solaris) já exista. Assim, o verdadeiro enigma é a presença dessa Coisa. O problema com Tarkóvski é que fica claro que ele próprio opta pela leitura junguiana, segundo a qual a jornada externa do herói é apenas a externalização e/ou projeção da jornada iniciática interna rumo às profundezas de sua psique. Formando um contraste claro com isso, o livro de Lem focaliza a presença inerte e externa do planeta Solaris, dessa "Coisa que pensa" (usando a expressão de Kant, que cabe perfeitamente aqui): o xis do livro é justamente que Solaris permanece um Outro impenetrável, sem nenhuma comunicação possível conosco. É verdade que ele nos remete a nossas fantasias mais profundas e negadas, mas a questão subjacente a esse ato permanece totalmente impenetrável: por que ele o faz? Como resposta puramente mecânica? Para brincar conosco de maneira demoníaca? Para nos ajudar -ou forçar- a confrontar nossa verdade negada? Flutuações políticas
Esses indicativos breves deixam claro o que realmente está em questão na oposição Freud e Jung. Sim, é uma disputa entre materialismo e idealismo - só que "materialismo", neste contexto, não significa naturalismo vulgar, mas a afirmativa plena da contingência radical de nosso ser. "Freud contra Jung" simboliza a modernidade contra o falso obscurantismo pós-moderno. E, paradoxalmente, é o próprio "essencialismo" de Jung que o expõe a flutuações políticas Página 4 de 11
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acidentais. No início dos anos 1930, quando Hitler chegou ao poder, Jung foi pró-nazista por um curto período: ele assumiu a presidência da Sociedade Alemã de Psicologia, para coordená-la com as exigências dos "novos tempos". Mais sinistra, porém, do que esse "erro" talvez tenha sido a facilidade com que Jung mais tarde mudou sua posição e assumiu postura antinazista, usando basicamente os mesmos termos e conceitos por meio dos quais, anteriormente, tinha legitimado o nazismo. * Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de
Liubliana. É autor de "Eles Não Sabem O Que Fazem" (Jorge Zahar) e "Um Mapa da Ideologia" (Contraponto). Escreve todo mês na seção "Autores", do Mais!. Tradução de Clara Allain.
Crítica da filosofia desfocada Marco Heleno Barreto especial para a Folha
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2807200217.htm São Paulo, domingo, 28 de julho de 2002 Psicanálise freudiana e psicologia analítica junguiana devem ser compreendidas como respostas diversas e nãoexcludentes à crise da modernidade Sempre que a filosofia se põe a refletir sobre algum objeto polêmico, espera-se de partida que ela
atenda à incontornável exigência da honestidade intelectual, única garantia para a credibilidade e validade de sua argumentação. Nem sempre os filósofos profissionais mostram-se à altura de tal exigência, expondo-se por vezes inadvertidamente ao predomínio de certas paixões e incorrendo em juízos distorcidos sobre o objeto posto sob análise com prejuízo tanto para o objeto quanto para a própria análise, que se pretende filosófica, mas decai em ideologia, no pior sentido do termo. É o que acontece a Slavoj Zizek em seu artigo "Luta de classes na psicanálise", publicado na edição do Mais! de 7 de julho passado. O filósofo esloveno pretende elucidar as raízes da diferença entre Freud e Jung e, para tanto, acertadamente remete a questão ao campo da reflexão sobre a modernidade. De fato, tanto a psicanálise freudiana quanto a psicologia analítica junguiana devem ser compreendidas como respostas diversas à crise da modernidade. Por isso mesmo, o segredo da sua diferença deve ser buscado precisamente nas raízes, atos e figuras dessa complexa trama que constitui a modernidade ocidental. Todavia já aqui começa a aparecer a fragilidade da argumentação de Zizek. Desconsiderando a complexidade inegável do fenômeno da modernidade, ele a identifica simplificada e implicitamente a uma de suas correntes, a que, capitaneada pela reverência irrestrita à ciência moderna, desemboca no materialismo, definido pelo autor como "a afirmativa plena da contingência radical de nosso ser". Tal redução da modernidade a uma de suas expressões compromete o alcance da análise proposta por Zizek. Mais grave, porém, é a forma como ele constrói seu argumento dentro desse horizonte previamente reduzido.
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Tratando de uma polêmica explosiva dentro da história da psicanálise, o autor assume a releitura lacaniana de Freud para contrapô-la não a Jung, mas à apropriação deste pela "ideologia popular", em especial por sua vertente "new age", que Zizek identifica implicitamente como sendo a revelação da verdadeira natureza do pensamento de Jung. Há aqui uma distorção fundamental. Lembremos que o empreendimento decisivo de Lacan começa por um retorno a Freud, diante das deturpações que o pensamento do fundador da psicanálise sofria nas mãos de seus muitos e heterogêneos descendentes. As conquistas de uma tal fidelidade ao texto freudiano são inegáveis. O mesmo privilégio não é concedido a Jung por Zizek. Ao homologar junguianismo "new age" e psicologia analítica ele omite e desconsidera o fato de que essa apropriação representa na verdade uma desvirtuação adocicada do potencial crítico -portanto, moderno- que as idéias de Jung apresentam. Assim, Zizek comete um equívoco grave e distorce o objeto que pretende analisar, perdendo de vista o núcleo da posição junguiana. Por exemplo: ele contrapõe a fórmula lacaniana do materialismo "Deus é inconsciente" à sua inversão junguianista "new age", "o inconsciente é Deus". Se Zizek se desse ao trabalho de ir ao texto de Jung, não encontraria ali referendo a nenhuma das duas posições. Formado no ambiente neokantiano de Basiléia (Suíça), Jung assimilou a teoria do conhecimento da primeira Crítica ["Crítica da Razão Pura], de Immanuel Kant" -aliás, um dos pontos de referência para a modernidade- e, em rigorosa observância a ela, construiu sua psicologia. Por isso mesmo, em seu texto ele não pretende falar em momento nenhum de "Deus", mas da imagem de Deus como fenômeno psíquico, deixando em aberto, por consciência lúcida dos limites epistemológicos traçados para sua psicologia, a questão referente à existência ou inexistência de Deus -questão remetida aos teólogos ou ao âmbito privado da fé de cada um. Assim, as duas fórmulas contrapostas por Zizek, bem como a clássica profissão de fé do ateísmo -"Deus não existe"-, situam-se fora do âmbito da psicologia analítica. Donde, por extensão, o equívoco grosseiro do filósofo esloveno ao afirmar que "Jung promete a reconciliação entre a ciência e a espiritualidade, oferecendo uma espiritualidade fundamentada diretamente na pesquisa científica". Aqui fica manifesto que Zizek não analisa Jung e sua psicologia, mas a sabedoria "new age" que dele se apropria. A mesma falha insanável em sua argumentação fica escancarada quando pretende demonstrar o suposto viés antimodernista de Jung através de James Redfield e sua "Profecia Celestina", e não por meio da leitura paciente do ensaio sobre o princípio de sincronicidade, concepção de raízes não-modernas, mas nem por isso "anti"-moderna, distinção que o horizonte restrito da análise de Zizek não consegue captar. Romantismo alemão
Ao termo de sua comprometida argumentação, Zizek chega então ao veredicto: "Freud contra Jung simboliza a modernidade contra o falso obscurantismo pós-moderno". Um pouco antes, ele afirmara que "o que realmente está em questão na oposição Freud e Jung" é "uma disputa entre materialismo e idealismo". Do ponto de vista da filosofia, há aqui um desleixo de graves consequências: se Zizek define o que quer dizer com "materialismo", não faz o mesmo com "idealismo", com o que este fica identificado ao "falso obscurantismo pós-moderno". Mas, se além de se dar ao trabalho de estudar sem preconceitos o pensamento de Jung em sua fonte, o autor ampliasse o campo de sua reflexão a estudos sérios sobre o romantismo alemão (por exemplo, a obra fundamental de Albert Béguin, "A Alma Romântica e o Sonho"), certamente perceberia que a concepção de inconsciente em Jung é inequivocamente convergente com certas concepções daquele movimento, fato que não pode ser simplesmente descartado como "falso obscurantismo pós-moderno", especialmente por parte de alguém que reivindica sua pertença à tradição filosófica, mesmo sendo materialista.
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É aqui que transparece o vício de fundo da posição do filósofo esloveno. Além da precariedade da discussão sobre os conceitos, Zizek se apóia numa evidente valorização, não discutida nem problematizada, de "modernidade" e "materialismo", homologados a "verdade". Dentro desse esquema interpretativo empobrecido, que supõe uma superação definitiva de tudo o que antecede a Descartes e Newton pela marcha triunfal de uma certa modernidade autoproclamada como lugar da verdade e do progresso, qualquer tentativa de crítica que lance mão de posições diferentes encontradas na própria tradição filosófica, bem como no patrimônio da cultura como um todo, será automaticamente diagnosticada como pré-moderna e, portanto, regressiva. O "idealismo" será descartado como lugar da mentira ou da falsidade obscurantista. E assim o "materialismo modernista" esposado por Zizek se subtrai à interpelação crítica, revelando-se como uma profissão de fé dogmática. Nada haveria de errado nisso, não fosse a intenção manifesta do articulista de esclarecer filosoficamente a diferença Freud-Jung. A psicanálise, com sua história de dissidências, merece mais respeito. E a filosofia também. é psicólogo clínico e professor de filosofia no Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus de Belo Horizonte. M arco Heleno Barr eto
“Eles não sabem o que fazem” A crítica ideológica de Zizek ao pensamento de Jung http://www.rubedo.psc.br/artigosb/reszizek.htm Carl os Bernar di
Este é o texto que enviei ao jornal Folha de São Paulo, em resposta ao artigo "Luta de Classes na Psicanálise" de Slavoj Zizek, publicado no caderno Mais de 7 de ulho de 2002. Na edição do dia 28 de julho do mesmo caderno, foi publicada uma outra resposta, apontando, igualmente, os erros de Zizek.
É indiscutível a capacidade intelectual de Slavoj Zizek, autor internacionalmente reconhecido de importantes livros, alguns dos quais já publicados em língua portuguesa. Devido, justamente, a esta capacidade é que fiquei espantado com a quantidade de erros grosseiros em seu artigo publicado no caderno Mais com o título “Luta de Classes na Psicanálise”, que trata da diferença
entre Freud e Jung (?). Esta interrogação indica uma dúvida que tive ao ler o supracitado artigo: quem é o Jung de Zizek? Parece-me que este Jung é a leitura popularizada, domesticada e pasteurizada executada por Joseph Campbell, mais o “new age” insosso, repetitivo e apaziguador de James Redfield, mais a estranha interpretação “junguiana” de Takovski, somadas às opiniões
que Freud e Lacan possuem de Jung, tão parciais e capengas quanto às de Jung em relação a Freud. Nada disso, porém, é realmente novo. Uma das “coisas” que os críticos de Jung têm em comum
é a ausência quase que total de parâmetros mínimos para um razoável trabalho crítico, ou seja, começar sempre pela leitura atenta e criteriosa do autor em julgamento. Isto não foi feito por Zizek. Não há indícios que apontem quais livros de Jung foram lidos, sem falar na fortuna Página 7 de 11
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crítica, que no caso junguiano é bastante rica. A única citação existente é do livro “Memórias, sonhos e reflexões”, onde Jung menciona a palavra rizoma que Zizek, apressadamente, identifica
com o rizoma deleuziano. Este trecho, de qualquer maneira, encontra-se logo no início do livro, o que não deixa claro até onde ele prosseguiu na leitura direta de Jung. O que fica claro no artigo de Zizek é que ele baseia sua crítica nas fontes já citadas, em especial, Joseph Campbell e James Redfield. Conseqüêntemente, a análise de Zizek está mais tingida pelo “ouvir dizer” do que pela leitura árdua e demorada de, pelo menos, boa parte dos textos de Jung:
20 volumes com artigos coligidos, 7 volumes com a transcrição dos seminários conduzidos por Jung (somente o seminário sobre o Zaratustra de Nietzsche possui 1500 páginas), 5 volumes de correspondência. Tudo isso foi reduzido a Campbell e Redfield. Zizek, contudo, tocou inadvertidamente em um ponto sensível que afeta tanto a recepção quanto a transmissão do pensamento de Jung. Mu itos admiradores e “seguidores” de Jung baseiam-se justamente nestas tentativas de popularização de seu pensamento, passando longe do estudo exaustivo de sua intimidadora obra. Estes “junguianos” (admito, estas aspas te m algo de pretensioso) usam Jung
para justificar suas certezas e fantasias, como se a simples presença, em seus trabalhos, do nome de um cientista renomado garantisse a boa fundamentação de seus argumentos. Cabe aqui a pergunta: o que Jung acharia destas simplificações? Várias respostas poderiam ser achadas justamente nos volumes com sua correspondência. Junguianos (com e sem aspas); freudianos (com e sem aspas) e o próprio Zizek (“Zizek”) ficariam espantados, ao percorrer suas páginas,
com as respostas de Jung. Às perguntas mais estapafúrdias, Jung sempre responde ou com uma elucidação simbólica, ou com um pedido de provas científicas, como, por exemplo, em resposta a uma leitora que afirmava a existência da vida após a morte. Jung merece melhores leitores e melhores críticos. A repetição compulsiva de críticas a Jung por parte de pensadores e psicanalistas em flagrante contraste com a categoria e o rigor de suas respectivas obras, desloca essas críticas para a esfera sintomática. Quem é, ou o que é este Jung que eles tanto precisam que exista, a ponto de se negarem a uma troca criativa e a um confronto salutar de idéias. Toda a complexidade da escola junguiana é reduzida a umas poucas teses infundadas (que por si só já merecem um estudo), sem consulta aos trabalhos de Jung e sem o conhecimento do trabalho crítico efetuado pelos inúmeros autores junguianos espalhados por todo o mundo. Se há luta de classes, como sugere o título do artigo de Zizek, esta se caracteriza pelo desejo de uma perspectiva teórica se manter hegemonicamente superior, impedindo que outros discursos apareçam. Tudo isso é muito gozado. De minha parte (e de todos os junguianos que eu conheço) não alimentamos nenhum ódio à psicanálise. Muito pelo contrário. Somos seus devedores. Reconhecemos as grandes descobertas e as grandes idéias de todas as psicanálises e de todos os teóricos das várias escolas psicológicas. Os textos junguianos são, na verdade, intertextos que dialogam com Freud, Adler, Klein, Lacan, Kohut, Boss, Reich só para citar uns poucos nomes. É que Jung afirma insistentemente que o psiquismo é uma coisa tão complexa que nenhuma teoria poderia ter a pretensão de explicá-lo, por isso, precisamos de todas. Além do mais, Jung, como Nietzsche, afirma que toda teoria é sempre também uma confissão subjetiva. No pensamento de Jung não há uma descrição unificada do psiquismo, nem uma postura teórica que explique tudo. No entanto, é na psicanálise, desde seus primórdios, que vemos a figura da expulsão do membro desqualificado, o que, como demonstra o caso de Luce Irigaray, nem sempre é o caso. Neste sentido, a ilustração do artigo é significativa. Ela retrata Jung com a cabeça separada do corpo. Numa primeira leitura e em harmonia com o teor desvalorizador do artigo, esta cisão poderia apontar para a inconsistência das idéias de Jung: o corpo na realidade concreta dos fatos enquanto a cabeça flutua solta com as idéias mirabolantes do psiquiatra suiço. Esta mesma ilustração, entretanto, também pode ser lida como o auto-retrato do movimento junguiano: sem uma identidade unificada, onde as várias formas de ler, compreender e entender Jung Página 8 de 11
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polemicamente se enfrentam gerando críticas e discussões. Este, com certeza, é nosso inferno, mas tambérm nosso céu. Na primeira parte de seu texto Zizek afirma que a popularidade de Jung se deve à reconciliação entre ciência e espiritualidade gnóstica. Como já comentei, Jung é (mal) usado por um grande número de pessoas que tentam associar seu nome às mais variadas concepções religiosas ou pseudo-religiosas, no intuito de obterem alguma credibili dade ou respaldo “científico”. Encontramos, realmente, nos escritos de Jung, menções a vários ítens que são pratos especiais do cardápio esotérico: discos-voadores, alquimia, crença nos espíritos, vida após a morte, reino espiritual “mais profundo”, são alguns desses ítens. O fato que nos interessa não é sua presença, mas a atitude de Jung para com eles. Se, por um lado, Jung demonstra uma enorme abertura para o inexplicado, por outro lado, em nenhum momento compartilha literalmente estas crenças. Seu olhar é dirigido ao sentido simbólico das mesmas tanto para o sujeito quanto para a cultura. Em relação aos discos-voadores, por exemplo, Jung pergunta qual necessidade psicológica está sendo satisfeita por esta crença, ou, numa linguagem mais facilmente entendida por Zizek, por que e como se goza acreditando em discos-voadores (quando Jung escreve sobre o arquétipo da totalidade, está falando que se goza com tudo nesta vida). Jung não está preocupado com a existência real dos discos-voadores, mas os vê como produtos psico-sociais que merecem uma investigação psicológica. Por isso, em uma de suas cartas, Jung se defende: se ele é místico por estudar o misticismo, Freud seria pervertido por estudar as perversões. A mesma atitude Jung mantém em relação ao gnosticismo. No início da era cristã foram produzidos inúmeros textos que buscavam oferecer visões diferentes daquela oferecida pelo cristianismo que então se oficializava. Quais necessidades e significados psíquicos eram expressos através destes textos? Muito mais que sublinhar as teses gnósticas, Jung apreciava os gnósticos porque produziam teses que buscavam abalar ou suplementar (no sentido derridiano) a tese oficial. Por Jung se recusar a oferecer qualquer explicação que ultrapassasse os limites da psicologia empírica, tratava tudo exclusivamente do ponto de vista psíquico, o que o levou a ser acusado de ateu por muitos teólogos. Jung não estava em busca do reino espiritual oculto “mais profundo”, como afirma Zizek, mas sim, ao reconhecer este ”reino” como uma fantasia psíquica,
buscava entender os movimentos e os textos que esta fantasia produz, que são merecedores de serem estudados por todos que se intressam pela cultura. Zizek também afirma: “o inconsciente junguiano não é mais aquele dos impulsos sexuais
reprimidos, mas o da libido dessexuada dos poderes espirituais que ultrapassam o ego consciente”. Este é um ponto crucial no confronto Jung -Freud e é, igualmente, carregado de malentendidos. A libido, para Jung, é também sexualidade, mas não somente, ou não apenas. Além do mais, Jung acreditava que Freud havia estendido tanto seu conceito de sexualidade, que tudo passou a ter um sentido sexual. Mas as duas concepções, a de Jung e a de Freud, são apenas hipóteses científicas. Nada justifica que ultrapassemos este limite. No entender de Jung, no entanto, não era essa a at itude de Freud. Tanto que estranhou quando este lhe pediu: “Jung, nunca abandone o dogma da sexualidade”! Dogma? Esta mos fazendo ciência ou religião? Esta
vizinhança, nas psicanálises, é algo extremamente complexo para tratarmos aqui. Agora, se algum “seguidor” (ou “crítico”) brada que para Jung a sexualidade não era importante, isto não é
uma afirmação teórica, mas a expressão de um sintoma neurótico. Há um gozo em não gozar. Outro ponto mencionado por Zizek de difícil aprofundamento aqui por falta de espaço é em relação à teoria dos arquétipos e do inconsciente coletivo. Ela é uma teoria interessante e problemática, onde o próprio Jung foi o primeiro a criar grandes confusões. Ao mesmo tempo, é um dos aspectos de sua teoria mais trabalhados, descontruídos e criticados pela exegese pós junguiana. Os dois parágrafos do texto de Zizek onde menciona os arquétipos, contudo, falam Página 9 de 11
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muito menos deles do que revelam o mapa de sua própria ideologia. No entender de Zizek a diferença entre Freud e Jung é a diferença entre contingência e certeza. Como exemplo, imagina como Freud e Jung trabalhariam um caso de claustrofobia. No caso de Freud, a busca seria por uma experiência singular que explicaria a presença da fobia; no caso de Jung, a explicação estaria na repetição de uma experiência traumática universal que, de repente, tomaria conta do pobre e infeliz sujeito. Esta é, no mínimo, uma leitura selvagem da teoria dos arquétipos e da prática clínica junguiana. Pensar assim seria o mesmo, como o próprio Freud rejeitou, de receitar pênis em doses regulares para a cura da histeria. Além do mais, a motivação ideológica de atacar Jung fez Zizek esquecer do último trabalho escrito de Freud, Móises e a religião monoteísta, onde defende a herança filogenética de acontecimentos culturais. Na seção seguinte, é a vez do confronto Jung-Lacan. O objeto de estudo é Deus e sua relação com o inconsciente. Segundo Zizek, a colocação lacaniana seria “Deus é inconsciente”, enquanto a junguiana se resumiria na fórmula falsa: o “inconsciente é Deus”. Esta oposição é, na
realidade, a oposição entre verdade e mentira. Como ficariam estas duas proposições a partir de uma outra leitura que não a “new age” que Zizek sublinha, pois é a única que ele possui ou que sua ideologia o deixa possuir? “Deus é inconsciente” é a t ese principal de Jung em seu livro Resposta a Jó. Neste livro ele
contrapõe as forças cegas do inconsciente à capacidade de discriminação ética, representa pela consciência do homem Jó. Com todo seu sofrimento Jó, mesme percebendo que tudo fora ação de seu próprio Deus, continuou adorando-O e respeitando-O. Continuando sua fantasia (pois, não se trata de um livro de teologia, mas de psicologia revestida de linguagem religiosa, tal qual Totem e Tabu de Freud), Jung fala do espanto de Deus, onisciente, mas inconsciente da armadilha em que havia caído, quando confrontado com a grandeza daquele pequeno ser mortal. Deste espanto e desta admiração viria Seu desejo de se encarnar como homem na figura de Jesus. A segunda proposição, “o inconsciente é Deus”, também pode ser encontrada em Jung, mas com um sentido totalmente diferente daquele sugerido por Zizek. O “inconsciente é Deus” é muito
mais do que a simples inversão entre sujeito e predicado, mas a afirmação do inconsciente como sujeito, um sujeito tão especial e tão totalmente Outro que seu predicado é Deus. Quando Jung se refere ao caráter “divino” do inconsciente ele não está se r eferindo a “unidade fantasmática de uma pessoa”, mas exatamente o contrário: Jung está descrevendo, em linguagem poética,
metafórica e mítica (formas de expressão favoritas de Jung), a diferença radical entre inconsciente e consciente, semelhante à diferença radical entre Deus e homem. Com isso, ele não pretende criar uma nova religião, embora muitos assim o entendam (ou precisam), mas deseja evitar a redução das expressões e fantasias inconscientes a desejos subjetivos, reconhecendo este inconsciente, que Jung chamou de psique objetiva, como um Outro. Esta psique objetiva não é criação humana (egóica), da mesma forma que o fígado, o coração e os pulmões não o são. Como a Coisa mencionada por Zizek, ela sempre já antecipadamente existe, mas não como essência que será descoberta na famosa jornada interior, mas como expressão poética de um Outro que não se furta a uma tentativa de diálogo, mas que nunca se deixará domesticar e ser reduzido ao mesmo. Zizek vê Jung como aquele que, devido à sua influência gnóstica pagã, cujo universo seria distinto do judaico-cristão (depois fala só em judaico) encarnado pela psicanálise, aposta na conciliação e resolução definitiva de todos os conflitos . A luta de classes vira agora guerra religiosa. Zizek não consegue perceber que com a identificação (metafórica eu insisto) do inconsciente com Deus, Jung está justamente afirmando o abismo do Outro e colocando o empreendimento psicanalítico em uma dimensão ética absoluta. Não é mais apenas uma atividade médica. É um Outro que tem desejos que podem atingir o pobre mortal de maneira Página 10 de 11
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traumática, mas também de maneira amorosa. Porém, para , o amor cristão é uma tentativa de “superar” o caráter de “Outro” do Deus judáico. Surge aqui uma dúvida: não há expressão
amorosa no judaísmo? Parece que, também em questões religiosas, não concordamos. Na psicologia junguiana “o enigma do gozo do Outro” é chamado “processo de individuação”, o
caminhar em direção à totalidade, isto é, a tudo que existe, a todos os potenciais, a todos os Outros (internos e externos) que eu estou sujeitado e destinado (lançado) a encontrar. Nada da pacífica, tranqüila e purificada jornada em busca do nosso verdadeiro “eu interior”, como pensa
Zizek. Nem o sentido das manifestações inconscientes é pré-determinado. Zizek esqueceu (ou desconhece) que o encontro histórico entre Freud e Jung se deu quando este último pesquisava as associações de palavras e suas perturbações, culminando em sua teoria dos complexos. Da mesma maneira, não existe para Jung “um significado mais profundo” por baixo da contingência
dos acontecimentos, embora, nada impeça que Zizek e outros acreditem nisso. Infelizmente, não há como aprofundar as outras questões que Zizek identifica com Jung (como ele imagina que o psiquiatra trabalharia o problema amoroso e a questão dos gêneros, o transforma em um verdadeiro idiota). Mas, para terminar, vou comentar algo que não pode faltar em nenhuma crítica a Jung: o seu “envolvimento” com o Nazismo. Aqui, desinformação,
preconceito e a atitude ideológica de denegrí-lo revela, claramente, a não leitura dos textos de Jung, especialmente de suas cartas, onde, cuidadosamente, explica seus motivos para aceitar ser o presidente não da “Sociedade Alemã de Psicologia”, como escreveu Zizek, mas da “Associação Internacional Geral e Médica de Psicoterapia”. Somente este “ato falho” já revela
muito as intenções de Zizek. Obviamente, não estou defendendo Jung cegamente. Sua psicologia contém muitos problemas metodológicos e muitas concepções há muito ultrapassadas. Há também, é claro, idéias riquíssimas e formulações de hipóteses que anteciparam vários desenvolvimentos em todas as áreas da psicologia e da psicoterapia. O trabalho incessante de desconstrução feito pela escola junguiana em nenhum momento escamoteia os problemas em prol de uma ênfase unilateral nas virtudes da psicologia de Jung. Neste sentido, a leitura dos volumes de cartas é uma fonte indispensável de informações, onde o próprio Jung tenta corrigir pontos obscuros do seu pensamento. Com sua leitura atenta, muitos erros grosseiros da interpretação unilateral de Zizek poderão ser evitados. Para escrever ao autor:
[email protected]
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