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Ficha catalográfica elaborada pela Seção de Tratamento da Informação da Biblioteca “Prof. Achille Bassi" - Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação - ICMC/USP
Gregolin, Maria do Rosário. G819f Foucault e Pêcheux na análise do discurso : diálogos & duelos Maria do Rosário Gregolin. - São Carlos : Editora Claraluz, 2007. 3 edição. 210 p. : 21 cm ISBN 978-85-88638-29-7 1. Análise do discurso. I. Título.
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A contradição e o todo complexo com dominante:
Analisando as formações sociais, Althusser retoma e relê em Marx o conhecido tópico do edifício: a infra-estrutura (econômica) e as super-estruturas (jurídico-política e ideológica). A primeira é a dominante no conjunto, mas as segundas não são meros reflexos da base econômica, pois dispõem de autonomia relativa e de refração sobre a infra-estrutura. As relações entre a base e as super-estruturas são complexas e contraditoriamente desiguais. Em determinados momentos, a contradição principal pode ver-se mesmo suplantada por uma contradição ou grupo condensado de contradições secundárias, passando uma destas a mostrar-se temporariamente dominante: assim, Althusser enxerga que, no Maio de 68, foi fundamental a luta ideológica; do mesmo modo, o atraso das forças de produção russas não impediu que a revolução triunfasse etc. As relações entre a contradição principal e as secundárias são complexas. Cada contradição particular (principal ou secundária) reflete em si e nas suas características a sobredeterminação pelo conjunto estruturado no todo. Há, portanto, um desenvolvimento desigual das diversas contradições, o que provoca fenômenos de deslocamento e condensação da dominância estrutural num dado momento conjuntural. Uma mutação da contradição principal dá início a um “estágio” ou “época” novos. Assim, as contradições podem ser ou tomarem-se antagônicas ou não-antagônicas; num certo momento, o antagonismo pode tornar-se tão denso a ponto de atingir um caráter explosivo e, então “a revolução está na ordem do dia” (Lênin) e pode provocar uma transformação radical na própria estrutura articulada do todo (NOVO, 2000). Há, portanto, nessa interpretação althusseriana, uma dinamização do edifício marxiano, uma visão dinâmica da contradição e, por isso, não há qualquer unidade originária, mas sempre o já dado de um todo complexo estruturado com dominante. Só por
abstração, apenas para efeitos de exposição, pode-se falar de uma contradição simples (por exemplo, pensar em uma oposição binária entre burguesia vs proletariado, forças produtivas vs relações de produção etc.). Para Althusser, só a visão dessa polifonia dialética assimétrica pode levar, teórica e politicamente, para bem longe da estreiteza do pretenso monismo materialista (Plekhanov) e dos seus derivados (o mecanicismo, o evolucionismo, o economicismo etc.) (NOVO, 2000). Ao reler a proposta marxista das relações entre infraestrutura e super-estrutura, Althusser substituiu a vulgata mecanicista - que via na super-estrutura um reflexo do econômico - por uma totalidade estruturada na qual o sentido é função da posição de cada uma das instâncias do modo de produção. Ele reconhece, assim, uma eficácia própria da super-estrutura, que pode, em certos casos estar em dominância e em outros casos, em relação de autonomia relativa em relação à infra-estrutura. Assim, se na vulgata marxista tudo deriva do econômico e as super-estruturas são concebidas como meros reflexos do substrato infra-estrutural, Althusser torna mais complexo o sistema de causalidade, substituindo uma relação causai simples por uma causalidade estrutural (denominada causalidade metonímica) em que é a própria estrutura quem designa a dominância. A totalidade estruturada do marxismo clássico é substituída por uma estrutura complexa e hierarquizada de acordo com o lugar que as diversas instâncias (ideológica, política etc.) ocupam, em um momento histórico, no modo de produção, entendendo-se que o econômico permanece determinante em última instância. Como essa totalidade estruturada é relacionai, há uma autonomia relativa da super-estrutura em relação à infra-estrutura. Muitos críticos viram nessa dinamização um expediente utilizado por Althusser para salvaguardar o sistema econômico soviético pois, ao admitir a autonomia relativa das instâncias superestruturais, deixa a salvo as bases do sistema socialista da União Soviética. A autonomia relativa justificaria, em teoria, que a infra-
estrutura socialista tenha podido desenvolver-se sem danos, durante esse período stalinista de erros que afetaram a super-estrutura e, assim, não se pode falar de exploração e de fracasso de um sistema, que permaneceu fundamental e milagrosamente preservado no nível de sua infra-estrutura. A crítica também aponta que há, nessa leitura, uma concepção “a-histórica” ou, no mínimo, que “paralisa a história”: ao propor essa totalidade como uma estrutura complexa e hierarquizada diferentemente segundo os momentos históricos pelo lugar respectivo que as diversas instâncias (ideológica, política...) ocupam no modo de produção, Althusser propõe que “não existe história em geral, mas estruturas específicas de historicidade” (Althusser, 1968). Um último ponto: a utilização da noção de sobredeterminação mostra que o diálogo com Lacan é bastante vasto nas proposições de Althusser, a ponto de poder-se afirmar a existência de uma corrente althussero-lacaniana no primeiro momento das proposições do grupo da École Normale. Ela se baseia numa matriz teórica que permite articular as duas abordagens por meio de seu dispositivo conceituai: da leitura sintomal, passando pela causalidade estrutural ausente em seus efeitos, para culminar num outro instrumento conceituai fundamental do althusserianismo - o de sobredeterminação que, segundo Althusser 26 foi retirado da lingüística e da psicanálise (DOSSE, 1993). Há vários pontos em comum nos projetos de Althusser e de Lacan: ambos combatem o humanismo e o psicologismo em nome da ciência, através da leitura renovada de Marx e Freud27; como Althusser, Lacan propõe a existência de um corte na obra do Freud maduro, justamente no momento em que ele „ descobre o inconsciente e funda a psicanálise como ciência (passagem da existência biológica para a existência humana no registro da Lei e da Ordem, que é o da linguagem). Essa descentralização do ego, sua subordinação a uma ordem simbólica que lhe escapa junta-se à 26 Althusser, L. Pour Marx, nota 48, p. 212. 27 Althusser, L. Freud e Lacan. La Nouvelle Critique, 161-162, dezembro janeiro de 1964-1965.
leitura que Althusser faz de Marx, segundo a qual a história é um processo sem sujeito. Assim, Freud e Marx constituem-se numa grande máquina de pensar , dando ao marxismo um segundo fôlego de que iria se beneficiar sobretudo no pós-68 (DOSSE, 1993).
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A ideologia, a ciência, os aparelhos ideológicos:
Um papel central é atribuído à ideologia na proposta althusseriana. Ela está nos fundamentos do projeto teórico, já que dela deriva a definição de ciência, estabelecida a partir de sua oposição com a ideologia. Assim, a ideologia é o outro da ciência, aquilo de que ela precisa se desembaraçar para alcançar o estatuto científico. Dessa perspectiva, as teses althusserianas propõem que é possível uma ciência dos modos de produção, com um alto grau de abstração, formalização, generalização, com um sistema de causalidade estrutural. Alguns efeitos teóricos e políticos derivam dessa oposição ciência / ideologia. O principal preço a pagar é o de desligar a ciência da práxis, da dialética hegeliana, a fim de suplantar a vulgata stalinista em uso, fundada em um economicismo mecânico. O método estrutural é a chave para a realização desse afastamento do referente; a idéia do “corte epistemológico” separa, em Marx, de um lado, o conhecimento ideológico, de outro, o conhecimento científico - o materialismo histórico. Por uma ampliação dessa hipótese, a fim de se libertarem de seus resíduos ideológicos, todas as ciências devem ser questionadas a partir da filosofia do materialismo dialético (DOSSE, 1993). A partir de 1968, os trabalhos althusserianos apontam que além desse papel no fundamento da ciência - a ideologia tem, também, lima função prática. Ela é entendida como uma relação imaginária que os homens mantêm com suas condições reais de existência.
Derivando do domínio do concreto, do “vivido”, a ideologia sedimenta as relações sociais, produzindo uma ilusão que as torna suportáveis
para os sujeitos. Todas as sociedades vivem imersas, necessariamente, nesse líquido amniótico que - conservando os indivíduos prisioneiros de uma ilusão vital - contribui decisivamente para a reprodução da força de trabalho e das relações de produção que lhes são próprias. A difusão da ideologia da classe dominante é assegurada pelos Aparelhos Ideológicos de Estado (religioso, escolar, familiar, jurídico, político, sindical, de informação, entretenimento etc.), instituições que atravessam o tecido social, reproduzem as idéias dominantes e funcionam predominantemente pela persuasão, e, acessoriamente, pela coerção 28. Essas duas faces do fenômeno ideológico leva Althusser a propor a existência de dois tipos distintos de ideologias: a) as ideologias práticas (religiosas, morais, estéticas, regras de prudência, cortesia, etc.), de função imediatamente útil do ponto de vista da condução dos sujeitos; b) as ideologias teóricas (a filosofia especulativa e as “ciências” ditas humanas: direito, economia, sociologia etc.) que podem servir de matéria-prima para o processo de conhecimento ou mesmo dar origem a ciências novas, por intervenção de um corte epistemológico. O conceito de prática mobilizado pelos althusserianos coloca alguns problemas que a crítica insistentemente apontou. Primeiramente, a questão do sujeito: entendido como ”suporte das relações implícitas na estrutura e as formas de sua individualidade são efeitos determinados da estrutura” (Balibar, 1990), ele é produto da interpelação ideológica que o assujeita. Junto com o sujeito, toda concepção historicista é rechaçada: há a decomposição das temporalidades e a construção de uma totalidade articulada em tomo de relações pertinentes numa teoria geral. O sujeito e a história, assim, são substituídos pela Estrutura: a ideologia, alçada ao status 28 Ao contrário, o Aparelho Repressivo de Estado (exército, polícia etc.) é predominantemente repressivo e acessoriamente persuasivo e se encontra unificado sob o monopólio público. Cf. ALTHUSSER, L. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. In: Posições. Lisboa: Horizonte, 1977.
de uma estrutura trans-histórica, transforma-se em “novo sujeito da história”. Essa mesma dificuldade é apontada em relação ao conceito de ciência. Se toda prática está ancorada em suas condições históricas concretas, como pode a produção científica esquivar-se da ação da ideologia? Ao separar ciência e ideologia, Althusser não a separa do político? E a política? Quem detém os meios de produção (teóricos) das transformações sociais? Seria o comitê central do partido, com todos os seus seguidores e adversários igualmente mergulhados no pântano da ideologia? Como pode qualquer sujeito içar-se a si próprio para fora da ideologia? 29. Essas dificuldades levarão Althusser e seu grupo a movimentos de refacção do projeto.
29 Figura que Michel Pêcheux usará, emblematicamente, em Les Vérités de la Pulice (1975), como o “barão de Munchausen”.