ENTRE OS MUROS DO COLONIALISMO: ascensão ascensão e queda dos rituais em uma sociedade Ibo. Lílian Cavalcanti Fernandes Vieira 1 RESUMO Este trabalho tem por objetivo fazer uma conexão entre a obra do autor canadense Peter Escola : em direção a uma economia política de símbolos McLaren (1992/Vozes) “Rituais na Escola: e gestos na educação” e o romance do escritor nigeriano Chinua Achebe (1958/Ática) “O Mundo se Despedaça” . Buscamos analisar as ideias desenvolvidas por McLaren a respeito da ritologia na escola e a importância dos rituais na história da desintegração de uma vila Ibo narrada por Achebe em sua obra clássica que serve de fundação ao romance contemporâneo nigeriano. A princípio, podemos nos perguntar o que obras tão diferentes teriam em comum. No entanto, após a leitura dos dois livros li vros percebemos que eles estão intrinsecamente ligados, pois denunciam práticas de desigualdades desigualdades sociais e injustiças presentes tanto na escola confessional canadense observada por McLaren como na vila nigeriana de Umuófia descrita por Achebe. Nesse sentido, o conceito de ritual apresentado por McLaren servirá de aporte para examinar a sociedade Ibo em seu contexto histórico e social enfocando a chegada do colonizador com suas armas mais fortes, ideias e costumes diferentes e a desmoronação e transformação da cultura da vila, que no caso representa não só a Nigéria, mas também toda a África. Palavras-chave: Palavras-chave: Rituais Rituais - Colonialismo - Literatura- afrodescendente. afrodescendente.
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Lílian Cavalcanti Fernandes Vieira é formada em Letras pela UFAM (Universidade Federal do Amazonas), especialista em Tradução: Teoria e Técnica também pela UFAM e mestre em Letras pela UECE (Universidade Estadual do Ceará). É professora da Casa de Cultura Britânica da UFC desde 1993. É doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da UFC onde faz parte da linha de pesquisa Movimentos Sociais e Relações Étnico-Raciais sob a orientação do Professor Dr. Henrique Cunha Jr., e tem desenvolvido um interesse especial pelo estudo das literaturas pós-coloniais e a questão da identidade e cultura nas obras dos autores pós-colonialismo. E-mail:
[email protected]
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“A História não é boa nem má. Nascemos dela, de seus sofri mentos e
remorsos, de seus sonhos e pesadelos. E somos, inapelavelmente, como ela nos moldou.” (Alberto da Costa e Silva no prefácio de “O Mundo se Despedaça”)
INTRODUÇÃO Os ritos ou rituais são registros de expressões culturais em toda a história das sociedades. Eles permeiam a vida humana e são inerentes ao processo da cultura das civilizações. Ao entendermos que a cultura é um processo de produção e construção de um povo, podemos dizer que não há povo sem cultura ou com mais ou menos cultura. A cultura de um povo se manifesta por meio de seus hábitos, costumes e práticas que se estabelecem nas relações entre as pessoas e nas instituições. É por meio da cultura que as sociedades expressam sua concepção de mundo, preservando ritos e rituais. Este trabalho tem por objetivo fazer uma conexão entre a obra do autor canadense Peter McLaren (1992/Vozes) “Rituais na Escola: em direção a uma economia política de símbolos e gestos na educação”
e o romance do escritor nigeriano Chinua Achebe (1958/Ática) “O Mundo se Despedaça” . Buscamos analisar as ideias desenvolvidas por McLaren a respeito da ritologia na escola e a importância dos rituais na história da desintegração de uma vila Ibo narrada por Achebe em sua obra clássica que serve de fundação ao romance contemporâneo nigeriano. A princípio, podemos nos perguntar o que obras tão diferentes teriam em comum. No entanto, após a leitura dos dois livros percebemos que eles estão intrinsecamente ligados, pois denunciam práticas de desigualdades sociais e injustiças presentes tanto na escola confessional canadense observada por McLaren como na vila nigeriana de Umuófia descrita por Achebe. Nesse sentido, o conceito de ritual apresentado por McLaren servirá de aporte para examinar a sociedade Ibo em seu contexto histórico e social enfocando a chegada do colonizador com suas armas mais fortes, ideias e costumes diferentes e a desmoronação e transformação da cultura da vila, que no caso representa não só a Nigéria, mas também toda a África. O título do artigo justifica-se pela apresentação do filme francês (2008) “Entre les Murs”
(Entre os Muros da Escola), dirigido por Laurent Cantet, que teve algumas cenas
mostradas em nossos seminários de pesquisa sobre Rituais na Escola para ilustrar o livro de Peter McLaren. Assim como no filme, é possível observar a escola confessional canadense e a vila de Umuófia como um espectador/leitor invisível e onipresente não só da rotina que se passa “entre os muros” como também da ascensão e
escolhido.
queda dos rituais presentes no cenário
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1. OS RITUAIS, O COTIDIANO E A ESCOLA NA VISÃO DE MCLAREN Os rituais estão presentes em todas as sociedades. Eles sempre acompanharam o homem em diversas fases da sua vida. Tanto para o homem moderno quanto para o tradicional, ainda que cada qual apreenda de formas e jeitos diferentes, os rituais sempre estarão presentes na vida humana, como o nascimento, o batizado, a primeira comunhão, a circuncisão, o noivado, o casamento, dentre outros. Assim, os rituais são determinados costumes carregados de uma simbologia, de significado e importância para aqueles que os praticam. Normalmente pensamos em rituais como referência a práticas religiosas, mas, na verdade, eles permeiam a vida humana em todas as suas expressões e as diferentes sociedades, incluindo atividades seculares. Os rituais podem ser positivos quando servem para a afirmação da identidade de um grupo e quando criam um ambiente propício para que as pessoas possam aprender a perceber, interpretar e criticar o mundo; ou negativos quando mascaram as relações sociais e reafirmam as práticas de dominação e autoritarismo presentes na sociedade como um todo. No espaço escolar, os rituais nem sempre são claramente reconhecidos. Eles podem assumir um duplo sentido: propiciar um ambiente de exercício de liberdade ou de imposição de ideias quando impedem que os alunos pensem por si próprios e limitam sua fala. Para McLaren (1992), o ritual é entendido como um evento político, e como tal, é parte das distribuições objetificadas do capital cultural que é dominante na escola (p. 30). Também diz que os símbolos e rituais podem criar grupos sociais. Para ele, “as categorias de ideologia, cultura, ritual e o simbólico devem competir com as categorias da esfera econômica e de classe para se entender a dominação e as lutas dos dias atuais ” (p. 31). Ao contrário do que se pensa, de acordo com o autor, os rituais estão presentes na vida industrial moderna, constituindo-se em atividades sociais naturais e não confinadas a contextos religiosos. Os rituais representam as ideologias sociais e culturais e por meio de sua observação é possível chegar ao conhecimento de como essas ideologias “funcionam” e quais os paradigmas que
estão por trás do sistema ritualístico. Os rituais são inerentemente sociais e políticos e não podem ser entendidos isolados do modo como os indivíduos se situam biográfica e historicamente. McLaren conclama a julgar-se “o grau em que a instrução na sala de aula compartilha traços comuns com os modos de expressão simbólica...”
(pp. 31, 32), chegando
mesmo a caracterizar a “cultura da sala de aula” como uma “arena simbólica” de lutas de interpretação Como um teórico educacional de esquerda, McLaren mantem ao mesmo tempo uma posição irreverente e crítica. Analisa e critica a dominação cultural e a resistência, mas
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emprega também o discurso da possibilidade. Em sua pedagogia crítica, busca fortalecer aqueles sem poder para transformar as desigualdades e injustiças sociais existentes. O autor afirma que as escolas não são apenas locais de instrução porque elas reproduzem a lógica do capital por meio de privilégios e materiais de dominação, perpetuando a luta incessante pelo poder e pela manutenção do sistema dominante. Em suas obras, McLaren (1997:237) discute também a questão feminina, afirmando que “a população de mulheres em desvantagem representa um dos maiores segmentos de qualquer sociedade estratificada ”. Segundo o autor a escola é responsável pela reprodução de uma estrutura social dominada pelos homens. McLaren propõe que os educadores críticos comecem a questionar os pressupostos de classes e valores, denunciando as formas pedagógicas dominantes e a discriminação sexual. Fundamental para o educador crítico é ter consciência de que a vida não se resume ao espaço escolar e que qualquer perspectiva de transformação social exige uma prática coletiva contra-hegemônica que não se restringe à escola. Do contrário, a tendência é cair no desespero e ceticismo: Cada um de nós deve tentar descobrir onde podemos ser mais úteis. A pedagogia crítica não se esgota nas salas de aula da periferia, nem é restrita à escola pública, embora esta seja de extrema importância em qualquer projeto mais amplo de transformação social. (A vida nas escolas p.299)
Em “Rituais na Escola” Peter McLaren diz que muitos autores que analisaram e identificaram os rituais, o fizeram em sociedades indígenas ou sociedades chamadas de “primitivas” ou simples. Isso causa
um certo estranhamento quando tentamos aplicar o
conceito para a sociedade ocidental. Poucos trabalhos olham para o ritual como uma prática das sociedades urbanas e atuais. Entretanto, de acordo com McLaren todo rito é sempre contemporâneo. Nas sociedades contemporâneas modernas industrializadas também é possível constatar a presença de rituais, apesar da existência de um uso muito difundido desses termos, o que acaba por fazer com que seu sentido se perca e nos leve a pensar que qualquer comportamento repetitivo, rotineiro possa ser considerado um ritual. É então, dentro da perspectiva de mostrar os rituais dentro das sociedades modernas e, principalmente, dentro do ambiente escolar que o autor analisa a questão, tomando como base as teorias de Van Gennep e Victor Turner. Van Gennep escreveu uma das primeiras obras que continua sendo
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considerada como uma das mais importantes da antropologia na interpretação dos ritos. Van Gennep foi, segundo Roberto DaMatta 2: […] provavelmente o primeiro a tomar o rito como um fenômeno a ser
estudado como possuindo um espaço independente, isto é, como um objeto dotado de uma autonomia relativa em termos de outros domínios de mundo social e não mais como um dado secundário, uma espécie de apêndice ou agente específico e nobre dos atos classificados como mágicos pelos estudiosos. (VAN GENNEP, 1977, p.12)
McLaren cita a obra “Os Ritos de Passagem” (1977), onde Van Gennep analisa os ritos e os classifica em diversos tipos, baseado em alguns princípios. Eles podem ser positivos ou negativos, diretos ou indiretos, dinamistas ou animistas. A obra dá uma idéia da extensão da teoria: “estudo sistemático
da porta e da soleira, da hospitalidade, da adoção, gravidez e
parto, nascimento, infância, puberdade, iniciação, coroação, noivado, casamento, funerais, estações, etc”. A partir disso, percebe -se
que muitos dos atos da sociedade podem ser
considerados rituais, isto é, muitas das instituições e das ações reconhecidas da sociedade se enquadram como rituais, segundo Van Gennep. Além disso, o autor destaca que a passagem para determinados graus não acontece aleatoriamente. Muitas vezes isso se dá passando por um estágio intermediário. Assim, por exemplo, a passagem do mundo profano para o sagrado, como quando um leigo deseja tornar-se sacerdote, não se dá de forma imediata, mas é preciso executar cerimônias que o preparem para essa passagem: “Entre o mundo pro fano e o mundo sagrado há incompatibilidade. A tal ponto que a passagem de um ao outro não pode ser feita sem um estágio intermediário” (VAN GENNEP, 1977, p.
25).
O valor simbólico dos rituais também despertou a atenção de Victor Turner. Em “O Processo Ritual ”
(1974), Turner explora a estrutura simbólica do ritual e os aspectos
semânticos dessa estrutura e, também procura explorar algumas das particularidades sociais, mais que as simbólicas, da fase liminar do ritual. A fase liminar é assim chamada por Turner a que corresponde ao conceito de “margem” para Van Gennep. Tanto
Van Gennep quanto
Turner dividem o ato ritual em três etapas. A primeira separa do mundo profano, a segunda aparta da vida secular e a terceira celebra o afastamento e a volta à vida normal. A partir das contribuições de McLaren e os autores que serviram de base para sua pesquisa, esperamos poder fazer uma análise dos rituais apresentados no romance “O Mundo se Despedaça” .
Mais do que entender o funcionamento de uma sociedade primitiva, o ritual
serve de base para compreendermos também um pouco da sociedade contemporânea. Hoje, os 2
Roberto Da Matta escreve a apresentação do livro Os ritos de passagem de Arnold Van Gennep na versão em português.
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rituais modernos se deslocaram para a margem, estando presentes em situações extralaboriais como no esporte e no lazer. Para finalizar esta seção, é interessante apresentar a definição de ritual sugerida por Martine Segalen, que tem como seu principal objetivo mostrar que a sociedade contemporânea se relaciona com os rituais, de maneira diferenciada das sociedades primitivas. A autora mostra que o ritual tem como finalidade ordenar a desordem, atribuir sentido ao desconhecido ou incompreensível, misturando o tempo coletivo ao tempo individual, manifestando, assim, ações simbólicas.
2. OS RITUAIS E A SOCIEDADE IBO PRÉ-COLONIAL As sociedades africanas pré-coloniais caracterizam-se pela presença de numerosos rituais. Os ritos de passagem, o transe, as iniciações, as comemorações anuais das divindades, as obrigações do calendário de cada casa, são assinaladas com festas, toques, danças, cânticos e oferendas de alimentos especiais. Alguns desses rituais chegam a durar uma semana ou mais, outros com um, dois ou três dias de duração. As tradições religiosas do povo Ibo eram conhecidas como Odinani. Na mitologia Ibo, que é parte da religião ancestral, o deus supremo é chamado Chukwu (o grande espírito). Ele criou o universo e todas as coisas que existem e está associado a tudo sobre a terra. Chukwu é uma entidade solar. Para os antigos Ibos, o mundo estava dividido em quatro partes; a criação (os homens e os animais), conhecida como Okike; as forças sobrenaturais ou entidades chamadas de Alusi; os espíritos conhecidos como Mmuo; e Uwa, o mundo.
Nesse sentido, uma sociedade Ibo pré-colonial também é marcada por um forte aspecto ritológico. Antes de analisar esses aspectos, faremos um breve relato sobre a etnia Ibo, na Nigéria. Aqui, cabe uma explicação, esse país é dividido em etnias, das quais as principais são os Hausa, geralmente muçulmanos no norte; os Iorubás, no sudoeste, muito ligados ao Brasil pela forte vinda de escravos iorubás principalmente para a Bahia, trazendo suas crenças; e os Ibo, no sudeste, em volta do delta do grande rio Níger. Os Ibos são um dos maiores grupos étnicos africanos. Habitam o leste, sul e o sudeste da Nigéria, além de Camarões e da Guiné Equatorial. Em 1967, apoiados pela multinacional francesa ElfAquitaine, declaram independência da região leste da Nigéria, formando a República de Biafra. Houve fome generalizada na região e guerra civil, o que acabou levando à derrota dos Ibos. Acredita-se que os Ibos se originaram de uma área cerca de 160 quilômetros ao norte de sua atual localização na confluência dos rios Niger e Benue. A língua dos Ibos (hoje há entre 20 e 25 milhões de falantes) tem a mesma raiz da de outros povos vizinhos como Bini, Igala, Ioruba, e Idoma. A separação entre essas raízes linguísticas se deu há mais ou menos cinco ou
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seis mil anos. Os primeiros Ibos a aparecerem na região podem ter saído do platô de AwkaOrlu entre quatro e cinco mil anos atrás, antes do aparecimento das práticas de agricultura sedentária. Com o crescimento desse primeiro grupo, o reinado Ibo também se expandiu. As primeiras formas de arte Ibo datam do século X, e a alta qualidade das ligas de cobre para fundição sugerem que as sociedades pré-coloniais Ibo já haviam atingido um nível de tecnologia superior aos contemporâneos europeus. Devido à diversidade do povo Ibo, é impossível fazer generalizações sobre um estilo de arte puro. Pode-se dizer que a maioria dos Ibos fazem e usam máscaras cuja função varia de vila para vila. Economicamente, o povo Ibo vive da plantação do inhame e sua colheita é feita com uma grande celebração que se chama “ Festival do Novo Inhame”. Eles produzem o suficiente para exportar para as vilas vizinhas.
Também exportam para a Europa em grande quantidade o palmito e o óleo da palmeira, tornando-os um produto rentável. O povo Ibo é um grupo fragmentado politicamente, com muitas divisões resultantes de diferenças geográficas causadas pela divisão da África na época colonial. Há também vários subgrupos formados de acordo com o clã, linhagem e parentescos. Eles não têm um governo centralizado, aristocracia ou reinado, como pode ser encontrado nas vilas vizinhas. Em vez disso, a responsabilidade da liderança é tradicionalmente deixada para os conselhos da vila, que incluem os chefes das linhagens, os mais velhos, homens com títulos, e homens que tenham se estabelecido economicamente dentro da comunidade. É possível para um homem Ibo se tornar um líder do conselho por meio do sucesso pessoal. Esses dados 3 são interessantes para a compreensão do personagem central do livro de Chinua Achebe, Okonkwo. Como resultado de uma fragmentação política e regional muito grande, que pode ser vista nas várias línguas tradicionalmente faladas pelas centenas de grupos diferentes nas vilas, é muito difícil, ou pelo menos, poderia ser reducionista a tentativa de se ilustrar as práticas religiosas tradicionais dos Ibos como um todo. Entretanto, podemos dizer que antes da influência dos europeus e das missões cristãs, os Ibos praticavam algum tipo de veneração ancestral que era feita com o intuito de reverenciar e contentar os espíritos dos mortos. Nas sociedades Ibo pré-coloniais, as pessoas praticavam rituais comuns como a adoração de deuses, os sacrifícios, a vida comunitária, a guerra e a magia. As cerimônias fúnebres, os casamentos e os ritos de passagem ou iniciação eram todos celebrados amplamente nessas sociedades. O colonialismo transformou drasticamente uma sociedade 3
Dados sobre os Ibos retirados e adaptados de: Wikipedia, the free encyclopedia e do site www.altavista.com
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Ibo, como veremos no livro de Achebe. A chegada do colonizador britânico em 1870 impôs mudanças de todo tipo como, por exemplo, a introdução de chefes de governo onde antes não havia nenhum governante: “Os missionários dormiram suas primeiras quatro ou cinco noites na praça do mercado. [ ] Perguntaram quem era o rei do vilarejo, e os aldeões responderam que lá não havia rei. – Nós aqui temos os homens de grande título, os sacerdotes-chefes e os anciãos – explicaram eles.”(p. 137) O cristianismo também teve um papel decisivo na infiltração da ideologia estrangeira dentro da sociedade e cultura Ibo, muitas vezes banindo partes dessa cultura e mantendo somente o que interessava: “A escola do Sr. Brown produzia rápidos resultados. Bastavam alguns meses a frequentá-la, para que alguém pudesse se tornar um mensageiro ou mesmo funcionário de escritório do tribunal. [ ]Novas igrejas estabeleceram-se nas aldeias vizinhas e, com elas, algumas escolas. Desde os primeiros tempos, a religião e a educação andaram de mãos dadas.”
(p.165) Hoje, a maioria do povo Ibo é cristã, com mais da metade de católicos.
Alguns praticam o judaísmo. As condições de vida também mudaram sob o regime colonial. A tradição de construção das casas que eram de barro, com telhados de palha foi substituída por blocos de cimento e tetos de zinco. Foram construídos hospitais, estradas e escolas nas vilas Ibo. Junto com essas mudanças vieram a eletricidade e a água encanada, no começo do século XX. A eletricidade trouxe o uso de novos aparelhos como o rádio e a televisão que agora são comuns na maioria dos lares das vilas. Assim, em “O Mundo se Despedaça”, o autor faz uma revisão crítica da tradição cultural dos povos da África, contrastando a realidade da vila com o julgamento eurocêntrico e colonizador sobre os africanos. É possível dizer também, a partir da leitura do romance, que há uma desmistificação da crença espalhada por muitos estudiosos, filósofos e historiadores de que a África não possuía nenhuma história ou cultura antes da vinda dos colonizadores europeus. Chinua Achebe, dessa maneira, permite uma modificação no relato da história que sustenta a construção de um novo olhar sobre a colonização na África erroneamente estereotipada por longos séculos. É verdade que as personagens não podem ser comprovadas historicamente, mas são baseadas em um povo que realmente existiu e que teve sua existência violada pela invasão física, intelectual e cultural britânica.
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3. A FRAGMENTAÇÃO DA CULTURA IBO: CHINUA ACHEBE E “O MUNDO SE DESPEDAÇA”. O falcão, a voar num giro que se amplia, Não pode mais ouvir o falcoeiro; O mundo se despedaça; nada mais o sustenta; A simples anarquia se desata no mundo. W. B. Yeats, “O segundo advento”
Eu ficaria muito satisfeito se meus romances (especialmente os que eu ambientei no passado) não fizessem mais do que ensinar aos meus leitores que seu passado - com todas as suas imperfeições – não foi somente uma longa noite de selvageria na qual os primeiros europeus, agindo em nome de Deus, ofereceram a eles. Chinua Achebe (Morning Yet on Creation Day, 1975)4
Albert Chinualumogu Achebe nasceu em Ogidi, Nigéria, filho de um professor em uma escola missionária. Embora seus pais tivessem incutido no filho muito dos valores tradicionais da cultura Ibo, eles eram evangélicos praticantes e o batizaram com o nome de Albert em homenagem ao Príncipe Albert, marido da Rainha Vitória. Em 1944, Achebe freqüentou a universidade de Umuahia junto com outros grandes escritores nigerianos como Wole Soyinka, Elechi Amadi, John Okigbo, John Pepper Clark e Cole Omotso. Na universidade, Achebe rejeitou seu nome britânico e passou a usar o nome nativo de Chinua. Em 1953 ele se graduou e viajou pela África e América, trabalhando como professor por algum tempo. Em 1960, ele era o diretor de Assuntos Externos responsável pelo programa “A Voz da Nigéria” na Companhia Nigeriana de Rádio -Difusão.
Atualmente, muitos críticos contemporâneos reconhecem que as literaturas da África e das América possuem a peculiaridade de terem em seu âmago a mistura de duas ou mais culturas pela hibridação a que os habitantes desses continentes foram submetidos. Alegam, ainda, que a busca de uma identidade nacional faz com que essa literatura fuja aos padrões europeus. O traço de oralidade, comum às sociedades africanas, tornava-as frágeis diante da escrita ocidental, por isso, a transmissão da história através da memória coletiva foi uma das formas que os negros tiveram de ir contra os padrões estabelecidos pelo escravismo, como o silêncio e a obediência servil, por exemplo. Nesse sentido, podemos relacionar o autor em questão com o sujeito liminar apontado por Victor Turner e Van Gennep em seus trabalhos. O sujeito que emerge da fusão de várias culturas, seja na África ou nas Américas, é o que Janmohamed (1992:96-120) chama de intelectual fronteiriço, aquele que se situa entre o 4
"I would be quite satisfied if my novels (especially the ones I set in the past) did no more than teach my
readers that their past - with all its imperfections - was not one long night of savagery from which the first Europeans acting on God's behalf delivered them" (from Morning Yet on Creation Day , 1975) Tradução minha.
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núcleo e a margem, procurando articular entre as duas posições e falando como um observador, tanto de dentro como de fora. Nos processos de colonização e com o desenvolvimento dos meios de comunicação, tanto as informações quanto as pessoas passaram a circular intensamente de um continente ao outro e a tramar redes culturais. Muitos artistas não se dizem mais europeus ou africanos. Estão entre os dois mundos. Utilizam diferentes línguas, estilos de vida, diversidade. Trocam informações. Para tanto, as línguas dos colonizadores foram um meio de confirmar a identidade e coesão de um grupo, como afirma Wole Soyinka 5 em seu artigo “Language as Boundary” . Com isso, por meio da apropriação da língua os colonizados puderam dar seu grito de liberdade, contar sua história, mostrar para o mundo como eles eram tratados pelos colonizadores. O uso da língua inglesa foi, então, para os escravizados, como a vingança de Caliban, a criatura horrenda e disforme 6
da peça de Shakespeare, “The Tempest”: “Vós me ensinastes a falar e todo proveito que tirei,
foi saber maldizer. Que caia sobre vós a peste vermelha porque me ensinastes a vossa própria língua.” “O Mundo se Despedaça”
vende anualmente cerca de 100.000 cópias nos Estados
Unidos, em grande parte por que ele é indicado como livro texto no ensino médio, por causa da política de multiculturalismo. Publicado em 1958, no meio da renascença nigeriana, esse livro foi o primeiro romance de Chinua Achebe. O romance narra a história de uma vila Ibo no final do século XIX (1880) e um de seus grandes homens Okonkwo, que havia alcançado muita coisa na vida. Ele era um grande lutador, um rico agricultor, tinha três esposas, possuía títulos de nobreza e era um membro da seleta seita “egungun”, uma sociedade tradicional cujos membros incorporavam espíritos ancestrais em rituais tribais. Todo o conflito do romance está presente em Okonkwo, um herói trágico perseguido e dominado pelo medo da fraqueza e do fracasso. A vida inteira ele luta para ser diferente do que seu pai, Unoka, havia sido: “Unoka morreu sem receber um só título e com dívidas pesadíssimas. É de admirar, portanto, que seu filho Okonkwo se e nvergonhasse dele?” (p. 28). Fraco, sem posses e sem títulos, Unoka era chamado na vila de “agbala” o que tanto significava um homem sem títulos quanto a palavra mulher: “E ainda agora lembrava-se do quanto havia sofrido quando um companheiro de brinquedos lhe dissera que seu pai era agbala. Foi então que aprendeu que agbala não era apenas uma outra palavra para mulher, mas também significava homem que nunca recebera título algum” (p. 21).
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Okonkwo odiava qualquer coisa que se mostrasse frágil
Escritor nigeriano, primeiro a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura em 1986. Suas obras não têm tradução no Brasil. 6
William Shakespeare, “The Tempest”.
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ou fraca e, para ele, o fraco era sempre relacionado à mulher. Seu filho primogênito, Nwoye, faz com que Okonkwo se lembre de seu pai e por isso ele chama o filho de efeminado. Por outro lado, aprecia o caráter decidido e firme de sua filha Ezinma e gostaria que ela tivesse sido um menino “Okonkwo teve muita sorte com as filhas. Nunca deixou de lamentar que Ezinma fosse menina. De todos os filhos, só ela entendia cada um dos humores do pai. [ ] Gostaria que ela fosse homem – pensava Okonkwo consigo mesmo” (p.157/158). Okonkwo também era um homem que mostrava muitas imperfeições em seu caráter como os heróis das tragédias gregas, ainda assim, o autor faz com que este herói trágico e cruel seja digno da compaixão do leitor. O autor ensina muito sobre a sociedade Ibo, mostrando mitos, provérbios e tradições da vila. Enfoca, ainda, o papel da mulher na África pré-colonial. Na vila Ibo era permitido aos homens ter mais de uma esposa, o que indicava um alto nível de prosperidade. Também era permitido aos maridos bater nas esposas. O livro descreve dois momentos em que Okonkwo, de temperamento violento, espanca sua segunda mulher. Uma vez porque ela havia deixado os filhos com a outra esposa não estava para lhe preparar o jantar: “Okonkwo governava a família com mão de ferro. [ ] Foi para o seu obi, para aguardar o regresso de Ojiugo. E quando esta voltou, espancou- a brutalmente” (p. 35). A outra vez foi quando ela cortou algumas folhas de bananeira para embrulhar alimentos durante o festival do Novo Inhame e depois se referiu a ele na frente de outras pessoas como “uma arma que nunca atira” (p. 43). Da primeira vez ele é punido, mas só porque a espancou durante a Semana da Paz, um momento em que era proibida qualquer manifestação de violência. O autor mostra, entretanto, que as mulheres também tinham um papel importante na vila. Por exemplo, eram elas que pintavam as casas dos “egunguns” e a sociedade Ibo res peitava a
primeira esposa, veja-se o
caso do noivado na casa de Nwakibie. Como sua primeira esposa, Anasi, não havia chegado, as outras não podiam beber antes dela, denotando deferência e respeito. Outro fato importante é o exílio de Okonkwo na terra de sua mãe. O tio dele, Uchendu, vendo-o triste e deprimido faz um discurso mostrando que quando há amargura e dor é na terra de sua mãe que o homem encontra amparo e refúgio. Sua mãe sempre estará lá para o conforto necessário. Por isso se diz que “a Mãe é Suprema”.
A ordem da sociedade Ibo, entretanto, é quebrada com a chegada do homem branco na África e a introdução de sua religião. “O Mundo se Despedaça” narra as primeiras experiências da Nigéria com o colonialismo e o primeiro contato com a dominação britânica. Achebe só vai introduzir o tema do colonialismo na terceira parte do livro, do capítulo vinte em diante, com o retorno de Okonkwo à Umuófia. Ao retornar do exílio, Okonkwo não é
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capaz de se adaptar às mudanças trazidas pelo colonialismo. Com a chegada dos missionários ingleses e dos representantes do governo colonial à vila, a cultura Ibo se fragmenta, e o mundo, literalmente, se despedaça. No final, frustrado e infeliz, ele mata um policial africano empregado pelos ingleses e, então, comete suicídio, um pecado contra a tradição que ele sempre prezou e quis manter. Chinua Achebe alcança um equilíbrio ao recriar as conseqüências trágicas do choque entre duas culturas, mostrando com clareza uma sociedade Ibo antes e depois do colonialismo: as humilhações impostas aos africanos e a tradição moral que ficou desvalorizada e desacreditada após a destruição dos laços entre o povo e sua sociedade. Na verdade, a leitura do romance possibilita a visualização das três principais características que mais se perdem com a dominação da colônia: a religião, a hierarquia social e o sistema de justiça. A leitura de “O Mundo se Despedaça”
nos dá, nesse sentido, uma visão sociológica de uma sociedade
Ibo.
4. EXEMPLOS DE RITUAIS APRESENTADOS EM
“O
MUNDO
SE
DESPEDAÇA”
Os rituais apresentados em “O Mundo se Despedaça” são rituais comuns que seguem as tradições nativas de uma sociedade Ibo. Dentre os principais rituais descritos no romance, podemos relacionar os rituais religiosos e os rituais festivos. Nesse sentido, pode-se dizer que, de acordo com a tipologia de McLaren, esses rituais se assemelham aos rituais de revitalização e intensificação, servindo para injetar uma renovação de compromissos para com as motivações e valores dos membros do clã e também para manter o estado de santidade. Na verdade, não se pode falar em religião propriamente dita na África tradicional, pois todos os atos do dia-a-dia se relacionam com o conceito da força vital que anima os seres humanos. Assim, o culto concerne a todos. Os Ibos adoravam os deuses que os protegiam, aconselhavam e castigavam. Esses deuses eram representados pelos sacerdotes e sacerdotisas do clã. O Oráculo das Colinas e das Grutas era um lugar sagrado e não era permitido ao povo ir até lá, somente à sacerdotisa da vila era permitido o acesso por causa de seus poderes especiais. As pessoas vinham de longe e de perto consultá-lo (o Oráculo). Vinham quando o infortúnio lhes batia à porta, ou tinham uma disputa com os vizinhos. Vinham para descobrir o que o futuro lhes reservava ou para consultar os espíritos de seus antepassados. [ ] Ninguém jamais vira o Oráculo, exceto sua sacerdotisa. (p. 23)
Os deuses aconselhavam a comunidade e também as pessoas individualmente. Cada indivíduo tinha o seu deus pessoal (chi) que guiava suas ações na terra. Um deus forte significava uma pessoa forte. Todos os homens possuíam uma cabana separada ou um
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santuário onde guardavam os símbolos de seus desuses e de seus espíritos ancestrais. Os Ibos também acreditavam no poder curativo por meio das forças espirituais: Perto do celeiro havia uma pequena edificação, “a casa dos feitiços” ou
relicário onde Okonkwo guardava as imagens de madeira de seu deus pessoal e dos espíritos dos antepassados. Adorava-os oferecendo-lhes noz de cola, comida e vinho de palma, e dirigia-lhes preces por si próprio, por suas três mulheres e seus oito filhos. (p. 22)
Como muitas tribos africanas, os Ibos acreditavam em vários deuses e espíritos ancestrais. A nova crença que se impunha condenava todas as práticas religiosas da cultura africana, que para os missionários eram consideradas demoníacas. Depois de “catequizados” pelos missionários, os membros da tribo passavam a achar que suas crenças eram malignas e erradas, demonstrando o poder do colonizador sobre os nativos. Vejamos no trecho em que Uchendu, tio de Okonkwo fala para os jovens sobre seu receio pela sobrevivência do clã. Nós nos reunimos porque é bom que as famílias o façam. Vocês hão de querer saber porque estou dizendo tudo isso. [ ] Mas temo por vocês, os jovens, porque não compreendem como são fortes os laços de família. [ ] E qual é o resultado disto? Uma religião abominável instalou-se entre vocês. De acordo com essa religião, um homem pode abandonar o pai e os irmãos. Pode blasfemar contra os deuses de seus pais e contra os antepassados com o se fosse um cachorro de caça que de repente ficasse louco e se voltasse contra o dono. Temo por vocês e temo pelo nosso clã. (p. 154)
Os Ibos eram uma sociedade de caça e colheita. Eles sobreviviam das plantações, e o inhame era a principal delas. Os inhames eram tão importantes que havia uma celebração chamada “Festival do Novo Inhame” cuja deusa era Ani, venerada como a deusa da terra e um símbolo de fertilidade. No festival os Ibos agradeciam a deusa e comemoravam por muitos dias. As preparações para o festival incluíam a limpeza e decoração das cabanas, o preparo de alimentos especiais, pintura do corpo e a raspagem da cabeça. Os parentes vinham de longe para participar da festa e beber vinho de palma. No segundo dia dos festejos, havia as grandes competições de luta corporal entre as aldeias. Toda a vila se reunia para dançar, tocar os tambores e lutar. “Difícil era dizer o que eles apreciavam mais.”
(p. 44) O vencedor
das lutas ganhava o respeito e consideração de toda a vila. Os costumes tribais ditavam cada aspecto das vidas das pessoas. A tribo determinava o valor de um homem pelo número de títulos que ele possuía, o número de esposas e a quantidade de inhames que ele plantava. Sem os costumes e as tradições, a tribo não era nada. A quantidade de inhames que um homem tinha era importante para a manutenção do status dentro da tribo, quanto mais inhames, mais prestígio. O comércio com as outras vilas era facilitado por pequenos búzios chamados de cauri que eram usados como forma de moeda.
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Dentro da vila, as pessoas eram agrupadas de acordo com famílias, com o homem mais idoso na família tendo maior poder. Nos assuntos que afetavam a vila inteira, um grupo de homens adultos discutia os planos de ação, e esses mesmos homens poderiam influenciar esses planos ao comprar títulos dos mais velhos. Esse sistema incentivou o trabalho duro e a propagação da riqueza. Foi assim que Okonkwo, tendo uma origem humilde e um pai fraco que não lhe deixou nada, conseguiu sucesso na vila. Ele era um homem de ação e a masculinidade era uma de suas obsessões. Para ele, qualquer tipo de ternura ou fraqueza era sinônimo de efeminação. O poder do homem estava na autoridade e na força bruta. Por causa dessa dureza de sentimentos, seu filho Nwoye se afasta da família e cai nos braços do cristianismo: ...nisto o pai subitamente o agarrou à força, transtornado de fúria. [ ] Okonkwo não respondeu. Mas largou Nwoye que se foi embora para nunca mais voltar. Retornou à igreja e disse ao senhor Kiaga que decidira ir para Umuófia, onde o missionário branco instalara uma escola na qual se ensinava os jovens cristãos a ler e a escrever. A alegria do senhor Kiaga foi imensa. – Bendito seja aquele que abandona o pai e a mãe por amor a Mim. (p. 140/141)
Durante a leitura do romance, podemos identificar alguns rituais de resistência. Aqueles que transgrediam as leis e os costumes da vila tinham que enfrentar os egunguns, um conjunto de homens da tribo vestidos e mascarados como espíritos que estabeleciam disputas e aplicavam punições. Esses mascarados personificavam o espírito dos ancestrais e era proibido a qualquer um tocar neles. Em uma cerimônia anual de homenagem à deusa da terra, os egunguns apareciam para tomar parte no ritual. Enoch, um dos habitantes convertidos ao cristianismo, era um seguidor fanático e seu corpo parecia explodir violentamente em discussões e brigas para defender a nova crença. Foi ele quem desencadeou o conflito entre a igreja e o clã em Umuófia. “Um dos maiores crimes que alguém podia cometer era o de tirar a máscara de um egungun em público, ou então, dizer ou fazer alguma coisa que pudesse diminuir seu prestígio imortal aos olhos dos não-iniciados. E foi isso o que Enoch fez ” ( p. 169). Em um determinado momento da cerimônia, Enoch arranca a máscara de um egungun. Na visão do povo da vila, Enoch matara um espírito ancestral desrespeitando e transgredindo o sistema de crenças da comunidade. Diante de tamanho sacrilégio, “ Umuófia mergulhou na confusão.”
(p. 169). Depois desse episódio, os moradores da vila e seus líderes decidiram
derrubar a igreja construída pelo Sr. Brown na Floresta Maldita. Não mais permitiremos que continue a existir em nosso meio. Produziu indizíveis abominações e nós estamos aqui com a finalidade de acabar com tudo isso. [ ] O Sr. Smith não arredou pé. Mas não conseguiu salvar a igreja.
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Quando os egunguns se foram, o prédio de barro vermelho que o Sr. Brown construíra estava reduzido a um monte de terra e cinzas. O espírito do clã fora pacificado. Temporariamente, pelo menos. (p. 173/174)
Em sua volta do exílio, Okonkwo fica surpreso e triste ao ouvir as histórias da dominação branca. Não consegue entender como a vila permitiu que isso acontecesse. “ – Talvez
eu tenha ficado longe tempo demais. [ ] Porém não consigo entender nada disso
que você me está contando. O que foi que aconteceu ao nosso povo? Por que é que todos vocês perderam a capacidade de luta?”
(p. 160). Ele tenta levar os outros moradores à revolta,
mas já havia muitos deles que não compartilhavam as mesmas opiniões sobre o novo regime e achavam que talvez existisse algo de bom na crença trazida pelo branco. As instituições cristãs transformaram a existência das diversas culturas e crenças, permitindo até mesmo a adesão à religião do homem branco. Nesse momento, os rituais de resistência são claramente percebidos nas várias tentativas que Okonkwo faz para induzir os moradores da vila a um embate com o homem branco, até mesmo a guerra, se preciso fosse. A queda dos deuses de Okonkwo mostra a desgraça narrada por Achebe, e é caracterizada por massacres perpetrados por pessoas de fora da comunidade em análise, ou seja, a invasão da comunidade africana pelo homem branco, no período colonial. O papel da igreja se afirma mais desintegrador ainda, tanto pela força como pela sedução das palavras. Na posição de leitores, temos vontade de pô-los a correr de lá. Eles iam direto ao ponto mais fraco das pessoas, tentavam converter os párias, os desclassificados, pobres e marginais chamados de efulefu. Essas sociedades eram fortemente baseadas numa solidariedade social, num sistema de crenças e valores no qual cada um sabia seu lugar. A vila de Umuófia era fortemente baseada no clã. Fora do seu clã, o indivíduo ficava perdido, não era nada. Era o sentimento de estar perdido, de não ser nada, por estar fora de uma coletividade. Foi assim que terminou a saga de Okonkwo. Uma tragédia de grandes proporções. “Quando um homem diz sim, seu chi (deus) diz sim”,
esse provérbio local pode se aplicar tanto para o sucesso de
Okonkwo como para sua desgraça retratada no final do romance. Perdido, infeliz e sem forças para lutar contra o novo sistema, ele comete suicídio, um ato que, segundo as tradições da vila, era considerado uma abominação, uma ofensa contra a terra, um corpo maligno. No prefácio do livro temos a frase que reflete aquilo que Okonkwo tentou esconder: “Okonkwo tombou desamparado do alto da grandeza, mas porque passou a vida a iludir o medo.” Ironicamente, o autor finaliza a história do ponto de vista do homem branco, ou seja, a história contada pelos vencedores. O Comissário de Polícia planeja escrever um livro sobre os acontecimentos presenciados por ele durante os anos em que vinha lutando para trazer a
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“civilização”
a diversas regiões da África. O título do livro já estava escolhido: “A
pacificação das tribos primitivas do Baixo Níger.”
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Valendo-me dos conceitos de McLaren enfocados em seu livro “Rituais na Escola” pude perceber que a vila de Umuófia vivencia as três etapas do ato ritual na figura de seu herói central. Primeiro há o estado de separação, quando Okonkwo é degredado ao exílio por causa do acidente no qual ele mata um rapaz sem intenção. Depois há o estado liminar ilustrado pelo exílio de Oknkwo por um período de sete anos na aldeia de sua mãe. As coisas mudam muito durante esse tempo e ele não tem noção disso, sonha em retomar sua vida de antes e reconstruir o que perdeu. Fica à margem das mudanças, não tem ideia dos novos valores que começam a ser introduzidos com a dominação britânica. Por fim, há o estado de incorporação. Esse estado é, definitivamente, o mais difícil para Okonkwo. Ele não consegue se adequar ao novo sistema para sobreviver. O leitor é testemunha do desespero de Okonkwo ao ver sua aldeia dominada pelos missionários britânicos. Na verdade, o que se despedaça mesmo é a vida de Okonkwo porque ele se recusa a fazer essa incorporação, aceitar que as coisas não eram mais as mesmas e nem voltariam a ser. No final, ele se suicida ao ver que sua cultura, suas tradições não existem mais. Sua morte simboliza a morte de seu povo e toda a revolta contra a ideologia do dominador. No entanto, a vila não se despedaça e nem acaba; ela simplesmente muda e seus moradores mudam com ela. A religião ancestral é ameaçada, Umuófia perde sua força e os princípios da vida em comunidade se desintegram. Esses eventos são dolorosos para o leitor que começa a se familiarizar com os costumes e de repente se depara com uma sociedade que não existe mais. Nesse sentido, os rituais e os cultos ancestrais são perdidos ou enfraquecidos pela ideologia eurocêntrica, mostrando a submissão e transformação de uma sociedade numa história contada pelo colonizado. Um dos mais importantes resultados da colonização européia na África foi a divisão do continente em cinquenta e quatro nações-estado. Em vez de serem parte de uma sociedade determinada por uma vida e língua comuns, os africanos passaram a viver de acordo com as fronteiras políticas. Essas divisões também fizeram com que os grupos étnicos se fragmentassem, gerando tensão e violência. A coesão das sociedades tradicionais tinha se perdido. Em outubro de 1960, a Nigéria alcançou o status de estado soberano e membro da Comunidade Britânica, mas a Rainha da Inglaterra continuava a ser a chefe do governo. Incomodados com o fato de serem súditos de uma rainha que morava a 6.400km de distância, os nigerianos foram à luta por um governo que os representasse verdadeiramente. Em 1963,
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cinco anos após a publicação do romance de Achebe, uma nova constituição substituiu a monarquia britânica por um presidente nigeriano como chefe do poder. Chinua Achebe escreveu o livro com a intenção de que ele fosse lido por outras pessoas fora da África. Ele quis retratar fielmente a África pré-colonial e mostrar esse retrato para aqueles que não tinham conhecimento do funcionamento dessas sociedades. Com a publicação do romance, o sistema educacional nigeriano começou a encorajar o estudo das tradições ancestrais e a estimular o orgulho nacional e o patriotismo. O livro foi bem aceito em todos os países cuja língua oficial era o inglês e atualmente, como já foi mencionado antes, é parte integrante do ensino médio nos Estados Unidos. Todos os rituais e símbolos apresentados no livro de Achebe representam a cultura e a identidade de uma sociedade altamente organizada e não podem ser vistos como folclore ou meras representações exóticas de um povo. Eles estão lá porque servem de aporte para os valores sociais. Ao perceber a multiplicidade desses rituais e símbolos, o leitor tem a possibilidade não só de conhecer parte das tradições africanas, mas também de “ouvir” o grito
de revolta dos outrizados após um passado de brutalidades cometidas pelos europeus. Mais importante, ainda, é perceber que o passado não é propriedade daqueles que o criaram, ele diz respeito a todos nós, não importa quem somos ou onde nascemos.
REFERÊNCIAS 1. ACHEBE, C. (1983) “O Mundo se Despedaça” Ática, São Paulo/SP. 2. GENNEP, A. van. “Os Ritos de Passagem” Petrópolis: Vozes, 1977. 3. MCLAREN, P. (1991) “Rituais na Escola: em direção a uma economia de símbolos e gestos na educação” Vozes, Petropólis/RJ.
4. --------------- (1997) “A Vida nas Escolas: uma introdução à pedagogia crítica nos fundamentos da educação” Artes Médicas, Porto Alegre, RS
5. JANMOHAMED, Abdul R. “Worldliness-without-world, Homelessnes-as-home: Toward a Definition of the Specular Border Intellectua”. In: SPRINKER, Michael Edward Said: A Critical Reader. Oxford-UK: Cambridge USA: Blackwell, 1992. p. 96-120. 6. SEGALEN, Martine. “ Ritos e Rituais Contemporâneos” Rio de Janeiro: FGV, 2002 7. TURNER, Victor. “O Processo Ritual” Petrópolis: Vozes, 1974