ENCONTROS com HOMENS NOT ÁVEIS COLEÇÃO GANESHA Louis Andneitr G. I. GURDJIEFF G. GURDJIEFF ENCONTROS com HOMENS NOT ÁVEIS SÃO PAULO Título do original francês. RENCONTRES AVEC DÉS HOMMES REMARQUABLES Título do original inglês: MEETINGS WITH REMARKABLE MEN Copyright © 1974 by Triangle Editions Traduzido por Eleonora Leitão de Carvalho com a colabora ção de membros da Sociedade para o Estudo e Pesquisa do Homem - Instituto Gurdjieff. (Caixa Postal 1571, Rio de Janeiro) Na sua edição original, Do TODO E DE TODAS AS COISAS compreende tr ês séries: 1.*, Relatos de Belzebu a seu neto, Cr ítica objetivamente imparcial da vida dos homens; 2.", Encontros com homens not áveis; e 3°, A vida s ó é real quando "Eu sou". MCMLXXX Direitos Reservados pela EDITORA PENSAMENTO Rua Dr. Mário Vicente, 374, fone 63-3141, 04270 São Paulo, SP Impresso em São Paulo, Brasil, pela EDIPE Artes Gr áficas *** Nota Este livro foi scaneado e corrigido por Edith suli; para uso exclusivo de deficientes visuais, de acordo com as leis de direitos autorais. Numeração das páginas: cabeçalho. **** SUMÁRIO NOTA DO EDITOR 1 NOTA DOS TRADUTORES 9 1 - INTRODUÇÃO 12 2 - MEU PAI 39 3 - MEU PRIMEIRO MESTRE 55 4 - BOGATCHEVSKY 63 5 - POGOSSIAN 82 6 - ABRAM YELOV 111 7 - O PRÍNCIPE LUBOVEDSKY 120 8 - EKIM BEY 176 9 - PIOTR KARPENKO 196 10 - O PROFESSOR SKRIDLOV 220 ANEXO: A QUEST ÃO MATERIAL 241
*** NOTA DO EDITOR
(edição francesa) No ver ão de 1922, chegou à França um desconhecido: George Ivanovitch Gurdjieff. Vinha acompanhado de pequeno grupo de homens e de mulheres, que o haviam conhecido em Moscou e S ão Petersburgo e haviam-no seguido at é o Cáucaso durante a Revolu ção; tinham tentado prosseguir com ele sua atividade, ao abrigo da guerra, em Constantinopla, e depois fugiram da Turquia ante a iminência de nova crise e encontravam-se agora, depois de um êxodo através de diversos pa íses da Europa, em busca de uma propriedade à venda nos arredores de Paris. Compraram a vasta propriedade do Prieur é d"Avon, perto de Fontainebleau, da vi úva de Maitre Labori, advogado de Dreyfus. Gurdjieff estabeleceu ali uma espantosa comunidade que, de pronto, suscitou grande curiosidade. Nesses anos de ap ós guerra, quando tantas ilusões haviam sido extirpadas, o Ocidente sentia profunda necessidade de certezas. Foram inicialmente os ingleses que vieram ao Prieur é, atraídos por P. D. Ouspensky (escritor russo, nascido em 1877, morto em Londres, em 1947). A ele reuniram-se, mais tarde, americanos. Cr íticos, editores, m édicos, na maioria tinham um nome conhecido. Iam ao Prieur é como que ao encontro de uma experiência dif ícil, mas se Gurdjieff fosse quem lhes haviam dito que era, abriria para eles a porta do Conhecimento. O Prieur é correspondeu à sua esperança. Vinte e sete anos mais tarde, quando Gurdjieff morreu em Paris, seu nome era ainda desconhecido do grande público, sua obra inédita e o lugar que ocuparia, na hist ória do pensamento, imposs ível de definir. Suas idéias, por ém, tinham sido transmitidas e, de mais longe que viessem (as idéias de Gurdjieff parecem, com efeito, ligar-se a ENCONTROS com HOMENS NOT ÁVEIS uma tradição muito elevada e long ínqua), haviam encontrado um terreno adequado para germinar. Quem era, pois, Gurdjieff? George Ivanovitch Gurdjieff nasceu em 1.° de janeiro de 1877 (segundo o antigo calend ário russo), na cidade de Alexandr ópolis, situada na província de Kars, at é então otomana, que acabava de ser conquistada pelos ex ércitos do Tzar. Sobre seus pais, sobre sua inf ância, sobre a educa ção que recebeu, s ó podemos recomendar ao leitor os primeiros capítulos deste livro. Durante o per íodo que se seguiu e que durou talvez uns vinte anos, Gurdjieff desapareceu. Sabe-se apenas que empreendeu long ínquas viagens, notadamente à Ásia Central. Esses anos foram da maior importância para a formação de seu pensamento. Ele pr óprio diz: 1 "Eu não estava s ó. Havia toda sorte de especialistas conosco. Cada um estudava segundo os m étodos de sua ciência particular. Depois do que, quando nos reun íamos, comunicávamos uns aos outros os resultados obtidos." Fazia assim alus ão ao grupo dos Buscadores da Verdade. N ão sabíamos, até agora, quem tinham sido esses companheiros de juventude de Gurdjieff. Encontros com Homens Notáveis apresenta-nos alguns deles e d á-nos detalhes sobre suas aventuras e suas viagens. O leitor dever á, por ém, lembrar-se de que este livro, se é uma autobiografia, não é seguramente uma autobiografia no sentido ordin ário da palavra. N ão dever á tomar tudo ao p é da letra (como tão pouco transformar tudo em símbolos), nem tratar de, para voltar às fontes do conhecimento, tentar uma explora ção sistem ática do curso do rio Piandj ou das montanhas do Kafiristão. Pois, embora o relato tenha um tom de inegável autenticidade, parece evidente que Gurdjieff quis confundir as pistas .. . Reencontramos Gurdjieff, na Rússia, em 1913. É em Moscou, na primavera de 1915, que ocorre o encontro de Ouspensky com Gurdjieff. Ouspensky tem uma forma ção científica. Publicou, em 1909, um livro sobre a quarta dimens ão. Na esperan ça de encontrar no Oriente uma resposta às questões às quais, segundo ele, a ci ência do Ocidente n ão trazia solução, empreendeu uma longa viagem à índia 1. In Fragments d"un d"un Enserg nement tnconnu, de P. D. Ouspensky, Paris, Ed. Stock, Stock, 1950. 1950. A tradução em português deve sair dentro em breve. (N. dos T.) 3 e ao Ceilão. Voltou dessa viagem com a convic ção de que sua busca n ão era vã e de que existia realmente algo
(edição francesa) No ver ão de 1922, chegou à França um desconhecido: George Ivanovitch Gurdjieff. Vinha acompanhado de pequeno grupo de homens e de mulheres, que o haviam conhecido em Moscou e S ão Petersburgo e haviam-no seguido at é o Cáucaso durante a Revolu ção; tinham tentado prosseguir com ele sua atividade, ao abrigo da guerra, em Constantinopla, e depois fugiram da Turquia ante a iminência de nova crise e encontravam-se agora, depois de um êxodo através de diversos pa íses da Europa, em busca de uma propriedade à venda nos arredores de Paris. Compraram a vasta propriedade do Prieur é d"Avon, perto de Fontainebleau, da vi úva de Maitre Labori, advogado de Dreyfus. Gurdjieff estabeleceu ali uma espantosa comunidade que, de pronto, suscitou grande curiosidade. Nesses anos de ap ós guerra, quando tantas ilusões haviam sido extirpadas, o Ocidente sentia profunda necessidade de certezas. Foram inicialmente os ingleses que vieram ao Prieur é, atraídos por P. D. Ouspensky (escritor russo, nascido em 1877, morto em Londres, em 1947). A ele reuniram-se, mais tarde, americanos. Cr íticos, editores, m édicos, na maioria tinham um nome conhecido. Iam ao Prieur é como que ao encontro de uma experiência dif ícil, mas se Gurdjieff fosse quem lhes haviam dito que era, abriria para eles a porta do Conhecimento. O Prieur é correspondeu à sua esperança. Vinte e sete anos mais tarde, quando Gurdjieff morreu em Paris, seu nome era ainda desconhecido do grande público, sua obra inédita e o lugar que ocuparia, na hist ória do pensamento, imposs ível de definir. Suas idéias, por ém, tinham sido transmitidas e, de mais longe que viessem (as idéias de Gurdjieff parecem, com efeito, ligar-se a ENCONTROS com HOMENS NOT ÁVEIS uma tradição muito elevada e long ínqua), haviam encontrado um terreno adequado para germinar. Quem era, pois, Gurdjieff? George Ivanovitch Gurdjieff nasceu em 1.° de janeiro de 1877 (segundo o antigo calend ário russo), na cidade de Alexandr ópolis, situada na província de Kars, at é então otomana, que acabava de ser conquistada pelos ex ércitos do Tzar. Sobre seus pais, sobre sua inf ância, sobre a educa ção que recebeu, s ó podemos recomendar ao leitor os primeiros capítulos deste livro. Durante o per íodo que se seguiu e que durou talvez uns vinte anos, Gurdjieff desapareceu. Sabe-se apenas que empreendeu long ínquas viagens, notadamente à Ásia Central. Esses anos foram da maior importância para a formação de seu pensamento. Ele pr óprio diz: 1 "Eu não estava s ó. Havia toda sorte de especialistas conosco. Cada um estudava segundo os m étodos de sua ciência particular. Depois do que, quando nos reun íamos, comunicávamos uns aos outros os resultados obtidos." Fazia assim alus ão ao grupo dos Buscadores da Verdade. N ão sabíamos, até agora, quem tinham sido esses companheiros de juventude de Gurdjieff. Encontros com Homens Notáveis apresenta-nos alguns deles e d á-nos detalhes sobre suas aventuras e suas viagens. O leitor dever á, por ém, lembrar-se de que este livro, se é uma autobiografia, não é seguramente uma autobiografia no sentido ordin ário da palavra. N ão dever á tomar tudo ao p é da letra (como tão pouco transformar tudo em símbolos), nem tratar de, para voltar às fontes do conhecimento, tentar uma explora ção sistem ática do curso do rio Piandj ou das montanhas do Kafiristão. Pois, embora o relato tenha um tom de inegável autenticidade, parece evidente que Gurdjieff quis confundir as pistas .. . Reencontramos Gurdjieff, na Rússia, em 1913. É em Moscou, na primavera de 1915, que ocorre o encontro de Ouspensky com Gurdjieff. Ouspensky tem uma forma ção científica. Publicou, em 1909, um livro sobre a quarta dimens ão. Na esperan ça de encontrar no Oriente uma resposta às questões às quais, segundo ele, a ci ência do Ocidente n ão trazia solução, empreendeu uma longa viagem à índia 1. In Fragments d"un d"un Enserg nement tnconnu, de P. D. Ouspensky, Paris, Ed. Stock, Stock, 1950. 1950. A tradução em português deve sair dentro em breve. (N. dos T.) 3 e ao Ceilão. Voltou dessa viagem com a convic ção de que sua busca n ão era vã e de que existia realmente algo
no Oriente, mas "que o segredo estava muito mais profundamente e muito mais bem guardado do que ele havia previsto". J á estava preparando nova viagem, desta vez à Ásia Central russa e à Pérsia, quando lhe falaram do espantoso personagem recentemente surgido em Moscou. Sua primeira entrevista com Gurdjieff modificaria todos os seus planos. "Lembro-me muito bem dela. Tínhamos chegado a um pequeno caf é, situado fora do centro, numa rua barulhenta. Vi um homem que j á não era mais jovem, de tipo oriental, com um bigode negro e olhos penetrantes; espantou-me antes de mais nada porque, de modo algum, parecia estar em seu lugar em tal local e em tal atmosfera; eu estava ainda repleto das minhas impress ões do Oriente, e esse homem, com fei ções de raj á hindu ou de xeque árabe, que visualizaria sob um albomoz branco ou um turbante dourado, produzia, nesse pequeno caf é de lojistas e representantes do com ércio, com seu sobretudo negro de gola de veludo e seu chap éu-coco negro, a impress ão inesperada, estranha e quase alarmante, de um homem mal disfar çado." Nenhuma das perguntas que lhe fez Ouspensky embara çou Gurdjieff. Persuadido de que esse homem poderia ser o caminho em dire ção ao conhecimento que havia buscado em vão no Oriente, Ouspensky tornou-se aluno de Gurdjieff. Mais tarde, deveria ele fazer um relato preciso - de honestidade impressionante - dos sete anos que passou junto a seu mestre para elucidar e desenvolver t udo o que este lhe havia deixado entrever nessa primeira conversação em Moscou, em 1915. Gurdjieff, entretanto, atraiu outros buscadores, em plena guerra. Citemos o compositor Thomas de Hartmann (nascido na Ucr ânia em 1885, morto em Nova Iorque em 1956), que j á era bastante conhecido na R ússia. Foi, graças à sua ciência e ao seu trabalho postos à disposição de Gurdjieff, que se pôde coligir a obra musical deste. A Revolução encontrou Gurdjieff rodeado de alunos, em Essentuki, ao norte do C áucaso. Acabava de lan çar ali as bases de um primeiro Instituto Para o Desenvolvimento Harmonioso do Homem. Quando a guerra civil se desencadeou, juntamente com alguns de seus alunos, realizou com êxito uma expedi ção perigosa atrav és dos colos do C áucaso. Tendo, por esse meio inesperado, alcan çado Tíflis, momentaneamente poupada, a í abriu um novo Instituto. Depois, estando o Sul do C áucaso submerso pela revolu ção, refugiou-se com seus alunos em Constantinopla, onde puderam novamente abrir o Instituto. 4 Esse itiner ário prolonga-se, cada vez mais para Oeste at é Fontainebleau, onde Gurdjieff encontrou, por fim, as condições desejadas para fundar o Instituto sobre bases est áveis. Entre os ingleses que ali se foram reunir a ele, destaca-se a figura de Orage. Para vir ao Prieur é, vendera sua revista The New Age, na qual, no dizer de Bernard Shaw, se havia revelado, durante quatorze anos, "o ensa ísta mais brilhante desta época". Nada lhe era estranho, nem no campo liter ário, nem no campo econ ômico. Orage, para muitos escritores jovens, fora mais que um conselheiro: uma esp écie de irmão mais velho. Margaret Anderson também fez parte desse grupo, dois anos mais tarde. Havia fundado em Nova Iorque, em 1914, uma revista de vanguarda, The Little Review, na qual apresentara à América Apollinaire, Cocteau, Gide, Satie, Schoenberg, Picasso, Modigliani, Braque . . . Tinha at é arriscado ser presa por nela ter ousado publicar o Ulisses, de James Joyce. Alcan çado o ponto em que n ão podia mais se satisfazer unicamente com os refinamentos do esp írito, decidiu, também, reunir-se a Gurdjieff. Foram muito raros os franceses que se reuniram a Gurdjieff, nesses primeiros anos. Um homem inesquec ível, Alexandre de Salzmann, tinha-se reunido a ele em T íflis. Era pintor e decorador de teatro. Sua mulher era francesa. Ela é quem deveria mais tarde fazer conhecer o pensamento de Gurdjieff na França e levar-lhe os grupos aos quais transmitiu seu ensinamento em Paris, depois do fechamento do Prieur é. Katherine Mansfield, quando de sua chegada ao Prieur é, descreve: ". . . um velho castelo muito belo, rodeado de um parque admir ável ... Cuida-se de animais, faz-se jardinagem, faz-se m úsica . . . deve-se despertar para as coisas, em vez de discorrer sobre elas." E, mais tarde: ". . . em tr ês semanas, sinto que passei anos na índia, na Ar ábia, no Afeganistão, na Pérsia .. . não há, certamente, outro lugar no mundo onde se
possa aprender o que se aprende aqui" A vinda de Katherine Mansfield ao Pr ieur é fez correr muita tinta. "Da calúnia, escreve Pierre Schaeffer no "Lê Monde", sempre resta alguma coisa. No que diz respeito a Katherine Mansfield, por exemplo, à for ça de repisà-lo em caracteres de imprensa, acabar-se- á por associar a hospitalidade de Gurdjieff ao desgra çado fim da pequena t ísica." Quando Katherine Mansfield, já muito enferma, pedira para ser admitida no Prieur é, Gurdjieff, vendo a gravidade de seu estado, havia 5 inicialmente recusado. Orage e os outros insistiram para que se lhe desse essa última alegria. Katherine Mansfield morreu, alguns meses mais tarde, no Prieur é e Gurdjieff recebeu em recompensa, como o escreve Ouspensky, "seu pleno sal ário de mentiras e de cal únias". Dentre os escritores franceses, Ren é Daumal e Luc Dietrich são os que mais diretamente foram alimentados pelo ensinamento de Gurdjieff. Andr é Rousseaux, depois de haver reconhecido que o valor de uma influ ência espiritual mede-se pela qualidade das obras que inspira, escreveu no Figaro Litt éraire: "Se, por exemplo, ficasse provado para nós que René Daumal deve verdadeiramente a Gurdjieff muito daquilo que estimamos e admiramos nele, nossa admira ção por Gurdjieff receberia grande refor ço. . ." De fato, Daumal seguiu o ensinamento de Gurdjieff durante dez anos e L ê Mont Analogue *, dedicado a Alexandre de Sakmann, atrav és de quem Daumal conhecera Gurdjieff, é uma transposição poética totalmente transparente da experi ência interior que Daumal e seus companheiros perseguiam. Tomadas de posição apaixonadas ocorreram, pr ó ou contra Gurdjieff, alguns anos depois de sua morte, quando seu nome, alcan çando o público, foi abusivamente empregado por pessoas que n ão o haviam conhecido. Assim tiveram origem ditos absurdos aos quais, é claro, ninguém jamais trouxe sequer um in ício de prova. Gurdjieff não fechava sua porta para ningu ém. Gostar-se-ia de saber quais foram as impress ões profundas do arcebispo de Cantu ária, quando passou um fim de semana no Prieur é ou as de Louis Jouvet, quando visitou Gurdjieff em Paris. Entre os visitantes dos domingos, inclui-se tamb ém Denis Saurat, tipicamente universit ário, então diretor do Institut Français au Royaume-Uni (Instituto Franc ês no Reino Unido), que ali reencontrava seu amigo A. R. Orage. Ao aproximar-se do Prieur é, Denis Saurat temia antes de tudo ser enganado e levou dez ou mais anos para "digerir" as m últiplas impressões que recebeu nesse dia. Muitos anos mais tarde, resumiu assim a impress ão que havia colhido de sua entrevista com Gurdjieff: "De modo algum sou disc ípulo de Gurdjieff. O breve contato que tive com ele deixou-me a impress ão de uma personalidade humana muito forte, acompanhada ou sobrepujada por uma espiritualidade muito elevada, tanto moral como metaf ísica. Entendo por isto, que me pareceu que somente as mais altas * O Monte Análogo. (N. dos T.) 4 6 intenções morais regiam sua conduta e que, por outro lado, sabia sobre o mundo espiritual coisas que poucos homens sabem e que era verdadeiramente um mestre no dom ínio da inteligência e do esp írito." A única manifestação pública de Gurdjieff e de seus alunos, durante esse per íodo, foi uma demonstração de danças sagradas e de "movimentos" que apresentaram no Theatre dês Champs-Élysées, em outubro de 1923. Esses exerc ícios foram apresentados como sendo ao mesmo tempo uma restituição de danças dervixes e de cerim ônias sagradas (das quais seu autor fora testemunha, no curso de suas viagens na Ásia Central) e como m étodo de educa ção. Os parisienses n ão estavam bem preparados para ver nas dan ças, mesmo sagradas, outra coisa al ém de um simples espetáculo. Se a dança era uma linguagem, gostariam que suas chaves lhes fossem dadas. Gurdjieff, por ém, sem se deter nessas obje ções, ia fazer com que seus alunos se defrontassem com uma prova mais dif ícil ainda. Acompanhado de quarenta deles, ia levar suas idéias a Nova Iorque e dar ali representa ções de seus "movimentos". Embarcaram em 4 de janeiro de 1924. Encontra-se, na imprensa da época, o relato de duas séries de representações que deu, uma no Neighbourhood
Playhouse e a outra no Carnegie Hall. Algumas semanas ap ós seu regresso à França, Gurdjieff ficou gravemente ferido num acidente de carro e só lentamente recuperou as for ças. Vendo que s ó lhe restava pouco tempo para cumprir a tarefa que se impusera, fechou parcialmente o Instituto e tornou-se escritor, a fim de "transmitir suas idéias sob uma forma acess ível a todos". Desde então e por alguns anos, escrever tornou-se obrigação essencial para ele. Nunca cessou, por ém, de compor m úsica, improvisando quase todos os dias, numa esp écie de harmônio portátil, hinos, orações ou melodias de inspira ção curda, arm ênia ou afegã, que Thomas de Hartmann anotava e transcrevia. Essa m úsica simples e profunda não é a parte menos espantosa de sua obra. Submeteu-se ao of ício de escritor, com essa esp écie de habilidade artesanal que lhe havia permitido, na juventude, aprender tantos outros of ícios. 7 Conta ele pr óprio, no primeiro capítulo dos Récits de Belzébuth à son Petit-Fils *, quais foram as dificuldades que encontrou desde o in ício. Depois de haver hesitado, decidira escrever em russo. Suas l ínguas maternas eram, al ém do grego, o armênio e o turco. Pensava em persa. Gracejava em russo. Contava hist órias em inglês "com uma simplicidade oriental que desorientava por sua apar ência de ingenuidade". N ão escondia seu desd ém pelas convenções gramaticais, englobadas por ele no vasto campo do que denominava, com acento carregado de ironia, "o bom-tom". Em compensa ção, tinha profundo interesse pelo estilo de frase da sabedoria popular, manejando com grande per ícia provérbios que atribuía ao lendário Mullah Nassr Eddin, mesmo quando eram de sua lavra. Os que se aproximaram dele, durante esse per íodo, viram-no, freqüentemente, escrever até horas avançadas da noite, no Prieur é, em viagem, nas mesas dos caf és das cidades do interior e, naturalmente, no Caf é de Ia Paix que, dizia, era "seu escrit ório". Acrescentava que, quando precisava de grande concentra ção, o vaivém de seres humanos de toda esp écie em torno dele estimulava seu trabalho. Assim que acabava um cap ítulo, fazia-o traduzir rapidamente, para que fosse lido para as pessoas que o rodeavam, cujas reações vigiava. Instru ído por essa experi ência, refazia o trabalho. E recomeçava a prova tantas vezes quanto necess ário. Escreveu, assim, durante uma dezena de anos. N ão foi apenas um livro que compôs, sob o título de Du TOUT ET DE TOUT (Do Todo e de Todas as Coisas), mas tr ês volumosas obras, cuja aparente diversidade corresponde à sua intenção de transmitir suas idéias em tr ês etapas e sob tr ês formas diferentes. A primeira, intitulada R ÉCITS DE BELZÉBUTH À SON PETIT-FILS ou CRITIQUE OBJECTIVEMENT IMPARTIALE DE LA VIE DÉS HOMMES (Relatos de Belzebu a seu Neto ou Cr ítica Objetivamente Imparcial da Vida dos Homens), visa - escreve ele - "extirpar as crenças e opini ões enraizadas no psiquismo dos homens a respeito de tudo o que existe no mundo". Aos leitores que aceitaram essa d úvida sobre si mesmos reserva a segunda obra, RENCONTRES AVEC D ÉS HOMMES REMARQUABLES (Encontros com Homens Not áveis), por meio da qual quer "fazer conhecer o material necess ário a uma reedificação e provar a qualidade e a solidez deste". * Relatos de Belzebu a seu Neto. (N. dos T.) 8 A terceira, intitulada LA VI E N"EST RÉELLE QUE LORSQUE "j£ Suis" (A Vida Só É Real Quando "Eu Sou") tem como meta "favorecer, no pensar e no sentimento do leitor, a eclosão de uma representação justa, não fantasiada, do mundo real". Foi escrita para o pequeno n úmero daqueles que se haviam realmente engajado em seu ensinamento. A primeira das tr ês estava no prelo, nos Estados Unidos, por ocasi ão da morte de Gurdjieff. Foi lançada sucessivamente em Nova York 2, em Londres s, em Viena 4, e, por fim, em Paris, em 1956 5. A segunda, que entregamos ao p úblico onze anos depois da morte do autor, ter á ó interesse de dar, pela primeira vez, algumas precis ões sobre a parte mais misteriosa, até agora, da vida de Gurdjieff. Quando terminou de escrever, Gurdjieff - depois de haver definitivamente fechado o Prieur é - veio morar em Paris. Retomou aí, com um grupo de alunos, desta vez franceses, o ensinamento direto, capaz de fazer apelo aos mais diversos meios de express ão, dos quais possu ía o segredo.
Foi freqüentemente aos Estados Unidos durante esse per íodo, exceto durante os anos da guerra, que passou integralmente em Paris. Morreu em Paris, a 29 de outubro de 1949. A primeira voz que se levantou, alguns dias depois d e sua morte, veio da Am érica. Foi a do arquiteto Frank Lloyd Wright, declarando: "Kipling disse, certa vez, que esses g êmeos - com isso indicava o Oriente e o Ocidente - jamais se poderiam entender. Mas, na vida de Gurdjieff, em sua obra e em sua palavra, h á uma filosofia saída das profundezas da sabedoria da Ásia, há alguma coisa que o homem do Ocidente pode compreender. E na obra desse homem e em seu pensamento - no que fez e na maneira como o fez - o Ocidente encontra-se verdadeiramente com o Oriente." 2. ttí-Fils. 3 Harcourt Brace, All and Everything 4 Routledge and Kegan Paul, All and Everything 5 Verlag der Palme, All und Alles Editions Janus, distribua par Denoel, Récils de Belzébuth à son Fils. *** NOTA DOS TRADUTORES (edição francesa) A obra de Gurdjieff é múltipla. Mas, seja qual for a forma pela qual ele se exprime, sua palavra é sempre um apelo. "Chama, porque sofre com o caos interior no qual vivemos. Chama, para fazer-nos abrir os olhos. *" Pergunta-nos por que estamos aqui, o que queremos, a que for ças obedecemos. Pergunta-nos principalmente se compreendemos o que somos. Quer fazer-nos recolocar tudo em questão. E porque insiste e porque sua insist ência nos obriga a responder, estabelece-se, entre ele e n ós, uma relação que é parte integrante de sua obra. Durante cerca de quarenta anos, esse apelo ecoou com tanta for ça que, de todos os continentes, homens vieram até ele. Mas, aproximar-se dele era sempre uma prova. Diante dele qualquer atitude parecia artificial. Quer fosse de defer ência excessiva ou, ao contr ário, de pretensão, desde os primeiros minutos era reduzida a caos. Ca ída a atitude, só restava uma criatura humana despojada de sua m áscara" e surpreendida, por um instante, em toda a sua verdade Experiência impiedosa e para alguns imposs ível de suportar. Esses não lhe perdoavam o terem sido penetrados a fundo e, uma vez fora de seu alcance, procuravam justificar-se por todos os meios. Assim nasceram as lendas mais extravagantes. O pr óprio Gurdjieff divertia-se com essas hist órias. Se necessário, até as provocava nem que fosse para se livrar dos simples curiosos, incapazes de compreender o sentido de sua busca 10 Quanto aos que haviam sabido aproximar-se dele e para os quais esse encontro fora um evento determinante, qualquer tentativa de descrevê-lo parecer-lhes-ia irrisória. Eis por que os testemunhos diretos s ão tão raros. Entretanto, a pr ópria pessoa de Gurdjieff é insepar ável da influência que não cessou de exercer. É, pois, legítimo querer conhecer o que foi sua vida, ao menos nas linhas essenciais. Por isso, os alunos de Gurdjieff acharam necess ário tornar públicos esses relatos, concebidos na origem para serem lidos em voz alta, num c írculo restrito de alunos e de convidados. Neles, Gurdjieff fala do per íodo menos conhecido de sua exist ência: sua inf ância, sua adolescência e as primeiras etapas de sua busca. Mas, se Gurdjieff se relata, é para servir a seu verdadeiro des ígnio. Vemos bem que n ão se trata aí de uma autobiografia, no sentido estrito da palavra. Para ele, o passado só vale a pena ser relatado, na medida em que é "exemplar". O que sugere, nessas aventuras, n ão são exemplos a serem imitados exteriormente, mas toda uma
maneira de ser diante da vida, que nos toca diretamente e nos faz pressentir uma realidade de outra ordem. Pois Gurdjieff não era, não podia ser, apenas um escritor. Sua função era outra. Gurdjieff era um mestre. Essa noção de mestre, tão corrente no Oriente, não é praticamente aceita no Ocidente. Não evoca nada de preciso, seu conte údo é dos mais vagos, se n ão até mesmo suspeito. Digamos que, segundo as concep ções tradicionais, a função do mestre não se limita ao ensinamento das doutrinas, mas significa uma verdadeira encarna ção do conhecimento, graças ao qual o mestre pode provocar em despertar e, por sua pr ópria presença, ajudar o aluno em sua busca. Está aí para criar as condições de uma experiência, através da qual o conhecimento poder á ser "vivido" t ão completamente quanto poss ível. Esta é a pr ópria chave da vida de Gurdjieff. 11 Desde seu regresso ao Ocidente, trabalha sem descanso para constituir ao seu redor um c írculo de homens decididos a partilhar com ele uma existência totalmente voltada para o desenvolvimento da consci ência. Expõê-lhes suas idéias, anima e sustenta-lhes a busca e leva-os à convicção de que, para ser completa, sua experi ência deve dirigir-se simultaneamente a todos os aspectos do ser humano: é a pr ópria idéia do "desenvolvimento harm ônico do homem", da qual queria fazer a base desse "Instituto", que, durante numerosos anos, esfor çou-se por erguer. Para atingir essa meta, Gurdjieff teve que travar uma luta encarniçada através de dificuldades acumuladas pela guerra, pela revolução, pelo exílio, pela indiferença de uns e hostilidade de outros. A fim de dar ao leitor um a idéia do que foi essa luta e da engenhosidade incans ável que desdobrou para sustentá-la, inseriu-se no final deste livro um texto, que primitivamente não lhe era destinado. É o relato que fez, um dia, em resposta a uma pergunta, aparentemente muito indiscreta, sobre a origem dos recursos do Instituto. . Essa surpreendente narrativa, publicada sob o t ítulo de A Quest ão Material, contribui para que melhor possamos compreender como a exist ência de um mestre e todo o seu comportamento est ão sujeitos à realização de sua missão. *** 1 INTRODUÇÃO Decorreu um m ês, desde que terminei a primeira série de minhas obras, um m ês consagrado inteiramente ao repouso das partes de minha "presen ça geral" subordinadas à minha razão pura, Como disse 1, tinha-me prometido não escrever mais uma só linha durante esse per íodo e contentar-me com beber bem devagar e suavemente - para o bem-estar da mais meritória dessas partes - todas as garrafas de velho "calvados" que a vontade do destino havia posto à minha disposição, na adega do Prieur é, preparada, com tanto cuidado há uns. cem anos, por homens que compreendiam o verdadeiro sentido da vida. Agora minha decis ão está tomada. Sem nenhum constrangimento e até com o maior prazer, quero voltar a escrever - sustentado, é claro, por todas as for ças que j á me vieram em auxílio e, além disto, desta vez, pelos resultados c ósmicos, conformes às leis, que fazem afluir, de toda parte em direção à minha pessoa, os votos benfazejos que me dirigir ão em pensamento os leitores dos livros da primeira s érie. Proponho-me dar, ao conjunto das id éias que Vou expor, uma forma acess ível a todos, na esperan ça de que essas idéias possam servir de elementos construtivos e preparar o consciente das criaturas, minhas semelhantes, para a edifica ção de um novo mundo - mundo real, a meu ver, e suscetível de ser percebido como tal, sem o m ínimo impulso de dúvida, por todo pensar humano - em vez desse mundo ilus ório que nossos contempor âneos se representam. De fato, o pensamento de um homem contempor âneo, qualquer que seja o seu n ível intelectual, só toma consciência do mundo a partir de dados que desencadeiam nele
toda espécie de impulsos fant ásticos. E esses impulsos, modificando a cada instante o tempo das associa ções que se desenrolam sem cessar nele, desarmonizam completamente 1. Ver o último capítulo dos Réctts de Belzébuth à son Pettt-Fils 13 o conjunto de seu funcionamento. Diria, at é, que todo homem capaz de se isolar das influ ências da vida ordinária e de refletir de maneira mais ou menos sã deveria ficar horrorizado com as conseq üências dessa desarmonia, que chega at é a comprometer a duração de sua pr ópria existência. Mas, para dar um impulso ao meu pensamento, bem como ao seu e comunicar-lhes o ritmo desejado, quero seguir o exemplo do grande Belzebu e imitar aquele a quem ele venerava como eu - e talvez tamb ém como você, intr épido leitor de minhas obras, se é que teve a coragem de ler até o fim os livros da primeira série. Pedindo emprestado, pois, a nosso caro Mullah Nassr Eddin 2 sua forma de pensar e at é mesmo suas expres ões, abordarei de pronto, como o teria dito este sábio entre os sábios, um "sutil problema filosófico". 2. Figura lendária em numerosos países do Oriente Pr óximo, Mullah Nassr Eddin encarna a sabedoria popular. Se decidi agir assim desde o in ício, foi por ter a intenção de aproveitar tão freqüentemente quanto possível, tanto neste livro quanto nos seguintes, a sabedoria desse mestre universalmente reconhecido e a quem, de acordo com certos rumores, seria atribu ído dentro em breve, por quem de direito, o título oficial de Ünico no mundo. Ora, esse sutil problema filos ófico surge já nessa espécie de perplexidade, que n ão ter á deixado de invadir o leitor desde as primeiras linhas deste cap ítulo, se tiver confrontado os numerosos dados sobre os quais repousam suas mais bem-estabelecidas convic ções sobre assuntos m édicos, com a id éia de que eu, o autor dos R écits de Belzébuth à son Petit-Fils, enquanto o funcionamento de meu organismo ainda n ão estava totalmente restabelecido, depois do acidente que quase me havia custado a vida - o que n ão me havia impedido de sustentar um esfor ço contínuo para expor minhas id éias e transmiti-las aos outros com a maior exatid ão possível - tivesse podido fazer um repouso totalmente satisfat ório, graças a um uso generoso de álcool, sob a forma de velho "calvados" ou de qualquer outro de seus admir áveis primos cheios de for ça viril. A bem dizer, para resolver sem erro o sutil problema filos ófico, assim proposto de improviso, seria ainda necessário poder julgar de modo eqüitativo o fato de que não me ative estritamente à palavra que me tinha dado, de beber todo o velho "calvados" que me restava. De fato, durante esse per íodo consagrado a meu repouso, n ão me foi possível, apesar de todo o meu desejo automático, limitar-me 14 a essas quinze garrafas de velho "calvados" e foi-me necess ário combinar seu sublime elixir com o de outras duzentas garrafas de velho "armagnac" leg ítimo, também elas de aspecto encantador e de conte údo não menos sublime, a fim de que esse conjunto de subst âncias cósmicas pudesse bastar ao meu consumo pessoal, bem como ao de toda a tribo dos que se tornaram, no curso dos últimos anos, meus assistentes inevit áveis nas cerim ônias dessa espécie. O veredicto que seria pronunciado a meu respeito deveria, finalmente, levar em conta o fato de que, desde o primeiro dia, abandojrtei meu hábito de beber "armagnac" em copos de licor para beb ê-lo em copos de ch á. E parece-me que foi por instinto que operei essa mudança, sem dúvida para que, uma vez mais, a verdadeira justi ça pudesse triunfar. Não sei como vão as coisas com voc ê, corajoso leitor, mas quanto a mim, meu pensamento j á encontrou seu ritmo e posso agora, sem me violentar, tornar a sofisticar. Proponho-me, entre outras coisas, introduzir, nesta segunda s érie, sete máximas chegadas até nós do fundo dos tempos, graças a inscrições que tive ocasi ão de decifrar em diversos monumentos, durante minhas viagens, e nas quais nossos remotos ancestrais haviam exprimido certos aspectos da verdade objetiva, percept íveis por toda razão humana, mesmo pela de nossos contempor âneos.
Para começar, tomarei uma que poder á muito bem servir de ponto de partida-para as exposições que se seguir ão e que, além disso, constituir á excelente traço de união com a conclusão da primeira série. A antiga m áxima, escolhida por mim como tema deste primeiro cap ítulo, formula-se assim: Só merecer á o nome de homem e somente poder á contar com algo que foi preparado para ele, desde O Alto, aquele que tiver sabido adquirir os dados necess ários para conservar indenes tanto o lobo como o cordeiro que foram confiados à sua guarda. Ora, a análise filológica dita "psicoassociativa", à qual essa m áxima de nossos ancestrais foi submetida, em nossos dias, por alguns verdadeiros s ábios - nada tendo em comum, é claro, com os que habitam o continente da Europa - demonstra claramente que nela a 15 palavra lobo simboliza o conjunto do funcionamento fundamental e reflexo do organismo humano e a palavra cordeiro, o conjunto do funcionamento do sentimento. Quanto ao funcionamento do pensar humano, é este representado aqui pelo pr óprio homem - o homem capaz de adquirir, no curso de sua vida respons ável, por seus esfor ços conscientes e seus sofrimentos volunt ários, os dados que conferem o poder de criar sempre condi ções que tornem poss ível uma existência comum para essas duas vidas individuais, estranhas uma à outra e de naturezas diferentes. Só um homem como esse pode esperar tornar-se digno de possuir o que é designado nessa m áxima como lhe estando preparado desde O Alto e que, de maneira geral, é destinado ao homem. É interessante observar que, entre os numerosos enigmas aos quais os diferentes povos da Ásia recorrem freqüentemente, por um hábito autom ático, e que reclamam solu ções cheias de mal ícia, há um - onde o lobo e a cabra (em vez do cordeiro) desempenham tamb ém seu papel - que, em minha opinião, corresponde bem à pr ópria essência de nossa m áxima. A questão que propõe esse astucioso enigma é a seguinte: como poder á um homem, tendo sob sua guarda um lobo, uma cabra e al ém disto, desta vez, uma couve, transport á-los de uma para outra margem de um rio, se se considerar, por um lado, que n ão pode levar com ele, em seu barco, mais de uma dessas tr ês cargas e, por outro, que, sem sua vigilância constante e sua influência direta, o lobo pode sempre comer a cabra e a cabra, a couve. A solução correta desse enigma popular n ão só exige que nosso homem d ê provas da engenhosidade pr ópria a todo ser normal, mas ainda que n ão seja preguiçoso nem poupe suas for ças, pois para alcançar seus fins dever á atravessar o rio uma vez mais. Se voltarmos à profunda significação de nossa primeira máxima, levando em conta o ensinamento que traz a solução correta desse enigma popular e se refletirmos sobre isto, fazendo abstração de todos esses preconceitos que, no homem contempor âneo, são apenas o produto de seus "pensamentos ocos", é impossível deixarmos de admitir com a cabeça e reconhecer com o sentimento, que todo ser que se atribui o nome de homem deve dominar sua preguiça e, inventando sem cessar novos compromissos, lutar contra as fraquezas que descobriu em si, a fim de chegar à meta que se fixou: conservar indenes esses dois animais independentes que foram confiados à guarda de sua razão e que são, por sua pr ópria essência, opostos um ao outro. 16 Julgando que havia terminado na v éspera com o que tinha chamado de minhas "sofistica ções para dar um impulso ao meu pensamento", reuni nessa manh ã todas as notas redigidas durante os dois primeiros anos de minha atividade de escritor, com a inten ção de servir-me delas como material para o início desta segunda s érie e fui sentar-me no parque, sob as árvores de uma al éia histórica, para -ali trabalhar. Depois de haver relido as duas ou tr ês primeiras páginas, esquecendo tudo o que me rodeava, ca í em profunda meditação. Interrogando-me sobre a maneira de continuar e cheio dos pensamentos que isto me sugeria, ali fiquei, sem escrever uma s ó palavra, até ao cair da noite. Estava tão absorto em minhas reflex ões, que nem uma s ó vez me apercebi de que minha sobrinha mais nova, a que tinha por tarefa cuidar para que o caf é árabe, ao qual recorro sempre em meus momentos de intensa atividade f ísica ou mental, n ão esfriasse demasiado em minha xícara, tinha vindo nesse dia, como soube mais tarde, troc á-lo vinte e tr ês vezes.
Para que possam compreender toda a gravidade dessa medita ção e visualizar, ao menos aproximadamente, em que situação dif ícil me encontrava, devo dizer-lhes que, depois de ter lido essas p áginas e de ter-me lembrado, por associação, de todo o conte údo dos manuscritos que tinha a intenção de utilizar como introdução, tornou-se-me claro que tudo aquilo sobre o que me tinha debru çado, durante tantas noites insones, n ão convinha mais à minha meta, devido a todas as modifica ções e acr éscimos que tinha feito na reda ção definitiva dos livros da primeira série. Quando compreendi isso, experimentei durante cerca de meia hora esse estado que Mullah Nassr Eddin define assim: sentir-se enfiado dentro da galocha até à raiz dos cabelos; depois, tomei meu partido e decidi refazer este cap ítulo de ponta a ponta. No entanto, continuei, por automatismo, a relembrar toda esp écie de frases de meu manuscrito e lembrei-me, de repente, de uma passagem em que, desejando explicar por que me mostrava tão impiedoso em minha cr ítica da literatura contempor ânea, havia introduzido certas reflex ões tiradas do discurso de um velho letrado persa que me lembrava de haver escutado em minha mocidade e que descrevia, a meu ver, da melhor maneira possível, as caracter ísticas da civilização contempor ânea. Considerava ent ão impossível privar o leitor das reflexões habilmente dissimuladas entre as linhas dessa passagem, pois, para aquele que soubesse decifr á-las, constituiriam um material que permitiria uma 17 compreensão justa do que me propunha explicar nas duas últimas séries, sob forma acessível a todo buscador da verdade. Essas considera ções levaram-me a me perguntar como fazer para dar à minha exposição a forma que exigiam a partir de agora as importantes modifica ções feitas nos livros da primeira série, sem com isso privar dessas reflex ões o leitor. Evidentemente, o que havia redigido durante os dois primeiros anos deste of ício de escritor - que tinha sido for çado a adotar - n ão mais correspondia ao que era agora necessário. De fato, havia ent ão escrito quase tudo do primeiro jato, sob forma concisa, compreens ível apenas para mim, com a intenção de desenvolver mais tarde todo esse material em trinta e seis livros, cada um dos quais seria consagrado a uma quest ão especial. No curso do terceiro ano, tinha dado ao conjunto do que havia assim sumariamente esboçado, uma forma acessível, senão a todos, pelo menos aos que j á estivessem familiarizados com um pensar abstrato. Mas como, pouco a pouco, tinha-me tornado mais hábil na arte de esconder pensamentos s érios sob formas de express ões agradáveis, f áceis de compreender e de associar aos pensamentos quotidianos da maioria dos homens contempor âneos certas idéias que só podem ser percebidas com o tempo, vi que era necess ário tomar o caminho exatamente inverso daquele que havia adotado at é então: em vez de procurar alcançar, através da quantidade de obras, a meta que me havia fixado, deveria a partir de agora alcan çá-la unicamente através de sua qualidade. E retomei, desde o início, a exposi ção de tudo o que havia esbo çado, desta vez, com a inten ção de reparti-lo em tr ês séries, cada uma delas devendo, por sua vez, ser dividida em vários livros. Estava, pois, nesse dia, imerso em profunda meditação, tendo ainda fresca na memória a sábia máxima da véspera, que aconselhava a nos esfor çarmos sempre para que o lobo fosse saciado e o cordeiro permanecesse indene. Quando, por ém, ao cair da noite, a famosa umidade de Fontainebleau, atravessando as solas dos meus sapatos, havia afetado at é minha faculdade de pensar, (ao passo que de lá de cima, gentis criaturas de Deus, denominadas passarinhos, provocavam cada vez mais sobre meu cr ânio liso uma sensação de frescura), de súbito, surgiu em mim a decis ão categórica de não levar nada nem ningu ém em conta e de inserir neste primeiro capítulo, a título de desenvolvimento digressive, como diriam os escritores patenteados - não sem havê-los burilado de antem ão - todos os fragmentos que me agradavam nesse manuscrito, destinado inicialmente a servir de introdu ção a um dos trinta 18 e seis livros. Depois do que, por-me-ei a escrever, em estrita conformidade ao princ ípio adotado para as obras desta série.
Essa solução ter á uma dupla vantagem. Poupar á a meu cérebro, já bastante sobrecarregado sem isso, novas tensões supérfluas e permitir á aos leitores, sobretudo àqueles que tenham lido meus escritos anteriores, descobrir a opini ão objetivamente imparcial que pode formar-se no psiquismo de certos homens que receberam por acaso uma educação mais ou menos normal, em relação às manifestações dos eminentes representantes da civiliza ção contempor ânea. Nesta introdução, primitivamente destinada ao trig ésimo livro e intitulada Por que me tornei escritor, falava das impressões acumuladas em mim, no curso de minha vida e sobre as quais se fundamenta a opini ão pouco lisongeira que tenho dos representantes da literatura contempor ânea. Reproduzi, a prop ósito disto, como já disse, o discurso que ouvira, em minha mocidade, quando de minha primeira estada na P érsia, num dia em que assistia a uma reuni ão de intelectuais, na qual se discutia sobre a cultura contempor ânea. Entre os que mais falaram nesse dia, estava o velho intelectual persa ao qual aludi - intelectual, não na acepção européia da palavra, mas no sentido que se lhe dá no continente da Ásia, isto é, não somente pelo saber mas pelo ser. Era, ali ás, muito instruído e possu ía um profundo conhecimento da cultura europ éia. Disse, entre outras coisas: "É muito lamentável que o per íodo atual de cultura - que denominamos e ser á denominado pelas futuras gerações civilização européia - seja intermédio, por assim dizer, na evolução da humanidade; em outros termos, que seja um abismo, um per íodo de ausência no processo geral de aperfeiçoamento humano, uma vez que os representantes dessa civilização são incapazes de transmitir a seus descendentes, como heran ça, qualquer coisa de v álido para o desenvolvimento da inteligência, esse motor essencial a todo aperfeiçoamento. "Assim, um dos meios principais de desenvolvimento da intelig ência é a literatura. "Mas, para que pode servir a literatura da civilização contempor ânea? Absolutamente para nada, a n ão ser para a propagação da palavra prostituída. "A razão fundamental dessa corrup ção da literatura contempor ânea é, a meu ver, que toda a aten ção concentrou-se pouco a pouco, por si pr ópria, não mais sobre a qualidade do pensamento nem sobre 19 a exatidão de sua transmiss ão, mas apenas sobre uma tend ência à car ícia exterior; em outros termos, à beleza do estilo, para produzir afinal o que chamei palavra prostituída. "E, de fato, acontece a todos passar um dia inteiro lendo um grosso livro, sem saber o que quer dizer o autor e somente perto do final, depois de haver perdido um tempo precioso, j á demasiado curto para fazer face às obrigações da vida, descobrir que toda essa m úsica repousava sobre uma ínfima ideiazinha, por assim dizer nula. "Toda a literatura contempor ânea pode ser dividida, segundo seu conte údo, em tr ês categorias: a primeira abrange o que se denomina o campo cient ífico, a segunda consiste em relatos e a terceira em descri ções. "Nos livros cient íficos, desenvolvem-se longas considera ções sobre toda espécie de antigas hipóteses conhecidas de todo mundo h á muito tempo, mas a cada vez combinadas, expostas e comentadas de maneira um pouco diferente. "Nos relatos ou como se diz, nos romances, que enchem volumes inteiros, conta-se, na maioria das vezes sem nos poupar nenhum detalhe, como um certo Jo ão da Silva e uma certa Maria Cunha chegaram por fim a satisfazer seu amor - esse sentimento sagrado que degenerou pouco a pouco entre os homens, em raz ão de sua fraqueza e de sua falta de vontade, at é tornar-se um vício definitivo para nossos contempor âneos, ao passo que a possibilidade de uma manifesta ção natural desse sentimento nos havia sido dada pelo Criador, para a salva ção de nossas almas e o sustent áculo moral recíproco que exige uma existência coletiva mais ou menos feliz. "Quanto aos livros da terceira categoria, oferecem-nos descri ções da natureza, de animais, de viagens e de aventuras nos mais diversos pa íses. As obras deste g ênero são escritas, geralmente, por pessoas que nunca foram a parte alguma e que, por conseguinte, nunca viram nada de real; ou seja, pessoas que, como se diz, nunca sa íram de seu escritório. com raras exceções, dão simplesmente livre curso à sua imaginação ou transcrevem
fragmentos diversos, tão fantasistas quanto os anteriores, extra ídos dos livros de seus antecessores. "Reduzidos a essa miser ável compreensão da responsabilidade e do real alcance da obra liter ária, os escritores atuais, em sua procura exclusiva da beleza do estilo, entregam-se, às vezes, a incr íveis elucubra ções, unicamente com o fim de obter a deliciosa sonoridade da rima, como dizem, acabando deste modo por destruir o sentido, já bastante fraco, de tudo o que haviam escrito. 20 "Por mais estranho que lhes possa parecer, por ém, nada é mais prejudicial à literatura contempor ânea que as gramáticas - quero dizer as gram áticas particulares a cada um dos povos que tomam parte no que chamaria o concerto geral catastrof ônico da civiliza ção contempor ânea. "Essas gram áticas, na maioria dos casos, s ão constituídas artificialmente e, tanto os que as inventaram como os que continuam a modificá-las, pertencem a uma categoria de homens totalmente ignaros no que tange à compreensão da vida real e da linguagem que dela decorre para as relações m útuas. "Ao contr ário, entre os povos das épocas passadas, a verdadeira gram ática, como no-lo mostra claramente a história, foi moldada pouco a pouco, pela pr ópria vida, de conformidade com as diferentes fases de seu desenvolvimento, as condi ções climáticas de seu principal local de existência e as formas predominantes que entre eles assumia a busca do alimento. "No mundo contempor âneo, a gramática de algumas l ínguas chegou a desvirtuar a tal ponto o verdadeiro sentido do que se deseja exprimir, que o leitor das obras liter árias de hoje - principalmente se for um estrangeiro - encontra-se privado das últimas possibilidades de captar nem ao menos as min úsculas idéias que nelas ainda podem se encontrar e que, expostas de outro modo, isto é, sem a aplica ção dessa gram ática, teriam talvez permanecido compreensíveis. "A fim de tornar mais claro o que acabo de dizer, prosseguiu o velho letrado persa, tomarei como exemplo um episódio de minha pr ópria vida. "Como sabem, de todos os meus pr óximos pelo sangue, s ó me restou um sobrinho que, tendo herdado h á alguns anos uma explora ção de petr óleo nos arredores de Baku, viu-se for çado a ir viver lá. "Vou, de vez em quando, a essa cidade, pois, todo entregue a seus in úmeros negócios, meu sobrinho n ão pode quase ausentar-se para ver seu velho tio, no pa ís que nos viu nascer a ambos. "O distrito de Baku, onde se encontra essa explora ção, está, atualmente, sob a depend ência dos russos, que constituem uma das grandes na ções da civilização contempor ânea e que, como tal, produz uma literatura abundante. "Ora, a maioria dos habitantes de Baku e de seus arredores pertence a tribos que nada t êm em comum com os russos; em sua vida familiar, empregam o dialeto materno, mas em suas rela ções exteriores são obrigados a servir-se da l íngua russa. 21 "Durante as estadas que l á fiz, aconteceu-me entrar em contato com toda espécie de gente, por diversas razões pessoais, e resolvi aprender essa l íngua. "Já tinha tido que estudar muitas línguas, em minha vida e estava, pois, treinado para faz ê-lo. Assim, o estudo do russo não apresentava dificuldade alguma para mim; muito depressa fiquei em condições de falá-lo correntemente mas, é claro, como os habitantes da regi ão, com uma pronúncia e constru ções de frase um pouco r ústicas. "Como, de certo modo, tornei-me um lingüista, acho necess ário observar aqui que é impossível pensar numa língua estrangeira, mesmo se a conhecermos com perfei ção, enquanto se continua a falar a l íngua materna ou uma l íngua na qual se adquiriu o h ábito de pensar. "Por conseguinte, a partir do momento em que pude falar russo, embora continuando a pensar em persa, pus-me a rebuscar em minha cabe ça as palavras russas correspondentes aos meus pensamentos persas. "E, vendo-me algumas vezes na impossibilidade de reproduzir com exatid ão, em russo, nossos mais simples e mais quotidianos pensamentos, fiquei tocado por certos absurdos, inexplic áveis a princípio, dessa l íngua civilizada contempor ânea. "Essa constatação interessou-me e, como então estava livre de qualquer obriga ção, resolvi estudar a gram ática
russa e depois a de outras l ínguas utilizadas por diferentes povos contempor âneos. "Comprendi, assim, a verdadeira raz ão dos absurdos que havia observado e, de pronto, adquiri, como acabo de dizer, a firme convicção de que as gram áticas das línguas empregadas pela literatura contempor ânea foram totalmente inventadas por pessoas que, em mat éria de conhecimento real, estavam muito abaixo do n ível dos homens comuns. "Para ilustrar da maneira mais concreta o que acabo de explicar, citarei, entre as in úmeras incoer ências que me haviam chamado a aten ção, desde o in ício, nessa língua civilizada, aquela que me levou a estudar a fundo essa quest ão. "Um dia em que falava russo e traduzia, como de h ábito, meus pensamentos por frases constru ídas à maneira persa, precisei de uma express ão que nós, persas, empregamos freqüentemente na conversação, a de miam-diaram, que, em português, traduz-se por digo, em inglês por I say e, em francês, por je dis. Entretanto, apesar de todos os meus esfor ços para descobrir em minha mem ória alguma palavra que lhe correspondesse em russo, n ão pude encontrar uma só, embora 22 já conhecesse e fosse capaz de pronunciar com facilidade quase todas as palavras dessa l íngua, utilizadas, seja na literatura, seja nas relações comuns, pelos homens de todos os níveis intelectuais. "Não encontrando uma express ão correspondente a essas t ão simples palavras e t ão freqüentemente utilizadas entre nós, acreditei, a princ ípio, é claro, que não a conhecia ainda e pus-me a procur á-la em meus numerosos dicionários e, depois, pedi a diferentes pessoas que passavam por competentes a palavra russa que traduziria meu pensamento persa; mas verificou-se que tal palavra não existia e que, em seu lugar, empregava-se uma expressão cujo sentido é o de nosso mian-sdú-yaram, que eqüivale em português a falo, em francês a je parle ou em ingl ês a / speak, ou seja, a ia govori ú. "A vocês que são persas e que, para digerir o sentido contido nas palavras t êm uma forma de pensamento totalmente semelhante à minha, pergunto agora: é possível a um persa, lendo em russo uma obra de literatura contempor ânea, deixar de sentir-se instintivamente indignado quando, encontrando uma palavra que exprime o sentido contido em sdil-yaram, percebe que deve dar-lhe o sentido correspondente a diaran ü É, evidentemente, impossível; sóil-diaram e diaram, ou, em português, falar e dizer, são dois atos sentidos de maneira inteiramente diferente. "Esse pequeno exemplo é bem caracter ístico dos milhares de absurdos que se encontram nas l ínguas desses povos representantes do que se denomina a flor da civiliza ção contempor ânea. E são esses absurdos que impedem a literatura atual de ser um dos principais meios de desenvolvimento da intelig ência entre os povos civilizados do mesmo modo, ali ás, que entre outros povos que, por certas razões, (que qualquer pessoa de bom senso j á suspeita) são privados da felicidade de serem considerados como civilizados e at é, como o testemunha a hist ória, são correntemente tratados de atrasados. "Em decorr ência das numerosas incoer ências da linguagem utilizada pelos literatos contempor âneos, todo homem que lê ou entende uma palavra empregada de maneira incorreta, como no exemplo que acabo de dar, se for dotado de um pensar mais ou menos normal e souber dar às palavras sua verdadeira significa ção - e, principalmente, se pertencer a um desses povos exclu ídos do número dos representantes da civiliza ção atual - perceber á inevitavelmente o sentido geral da frase segundo essa palavra impr ópria e, por fim, compreender á alguma coisa totalmente diferente do que essa frase queria exprimir. "Embora a faculdade de captar o sentido contido nas palavras difira segundo os povos, os dados que permitem perceber as experiências 23 repetidas, que formam a trama da existência, são constituídos, em todos os homens, de maneira id êntica, pela pr ópria vida. "A ausência, nessa língua civilizada, de uma palavra que exprima exatamente o sentido da palavra persa diaram, que tomei como exemplo, confirma bem minha convic ção, aparentemente mal fundamentada, de que os arrivistas iletrados de hoje, que se intitulam letrados e, por cúmulo, são considerados como tais pelos que os rodeiam, conseguiram transformar até a língua elaborada pela vida num ersatz alem ão. "É necess ário dizer-lhes que, depois de haver empreendido o estudo dessa l íngua civilizada contempor ânea,
bem como o de várias outras, para aí achar a causa das numerosas incoer ências que ali se encontravam, resolvi, por ter uma queda pela filologia, estudar igualmente a história da formação e do desenvolvimento da l íngua russa. "Ora, essas pesquisas hist óricas trouxeram-me a prova de que essa l íngua também havia possu ído outrora, para cada uma das experi ências já fixadas no processo da vida dos homens, uma palavra exatamente correspondente, mas que depois de haver atingido, no curso dos séculos, um alto grau de desenvolvimento, se tinha por sua vez tornado um objeto apropriado apenas para afiar o bico dos corvos, isto é, um assunto de primeira para as sofisticações de diversos arrivistas iletrados. A tal ponto que numerosas palavras foram deformadas ou terminaram caindo em desuso, pois n ão mais respondiam às exigências da gram ática civilizada. Entre essas últimas estava, justamente, a palavra correspondente a nosso diaram e que ent ão se pronunciava skazivai ú. "É interessante observar que essa palavra conservou-se at é nossos dias, mas que s ó a empregam e no seu sentido exato as pessoas que, embora pertencendo à mesma nação, ficaram por acaso isoladas da influ ência da civiliza ção contempor ânea, ou seja, os habitantes de certas aldeias afastadas de qualquer centro de cultura. "Essa gram ática artificialmente inventada, cujo estudo é imposto em toda parte às jovens gera ções, é uma das causas principais do fato de que, entre os europeus atuais, desenvolve-se apenas um único dos tr ês dados independentes, indispens áveis à aquisição de uma inteligência sã, o pensamento, que tende a ocupar o primeiro lugar em sua individualidade. Ora, como todo homem capaz de refletir normalmente deve saber, sem o sentimento e o instinto, a verdadeira compreens ão acessível ao homem não poderia constituir-se. "Resumindo tudo o que acaba de ser dito sobre a literatura da civiliza ção contempor ânea, não posso encontrar definição mais feliz que esta: ela n ão tem alma. 24 25 "A civilização contempor ânea destruiu a alma da literatura, como a de qualquer coisa sobre a qual dirigiu sua benevolente atenção. "Minha cr ítica impiedosa desse resultado da civiliza ção contempor ânea é tanto mais justificada que, dando cr édito aos dados históricos mais seguros que chegaram até nós, provenientes da mais remota antig üidade, a literatura das antigas civiliza ções continha, realmente, tudo o que era necess ário para favorecer o desenvolvimento da inteligência humana, a tal ponto que sua influência ainda se faz sentir sobre as gera ções atuais. ""A meu ver, pode-se perfeitamente transmitir a quintess ência de uma id éia por meio de anedotas e ditos populares elaborados pela pr ópria vida. "Por isso, servir-me-ei, para exprimir a diferen ça entre a literatura das civilizações de outrora e a de hoje, de uma anedota muito difundida entre nós, na Pérsia, sob o nome de Conversa de dois pardais. "Conta-se que um dia, sobre a comija de uma casa alta, estavam pousados dois pardais, um velho e outro novo. "Discutiam entre eles um evento que se tinha tornado a quest ão candente do dia para os pardais: o ec ônomo do mulah tinha jogado pela janela, no local em que os pardais se reuniam para brincar, algo que se parecia com sobras de farinha molhada mas que, na realidade, nada mais era que cortiça cortada fina, as quais alguns pardais novos, ainda inexperientes, haviam comido sofregamente e por isso quase se arrebentaram. "Enquanto falava, o velho pardal arrepiou-se de s úbito e, com uma careta de dor, pôs-se a procurar sob sua asa os piolhos que o torturavam - esses piolhos que invadem os pardais quando passam fome - e depois, tendo pegado um, disse com profundo suspiro: "Ah! como os tempos mudaram! A vida hoje é dura para nossos irm ãos. "Antigamente, tu te pousavas em qualquer parte sobre um telhado, como n ós neste momento e cochilavas bem tranqüilamente, quando de repente elevava-se um ru ído da rua, um estrondo, estalidos e de pronto se espalhava um odor que te enchia de alegria, pois podias estar seguro de que, voando sobre os locais onde tudo se tinha produzido, encontrarias com que satisfazer tua necessidade mais essencial. "Hoje em dia, barulho, estalidos, estrondo não são certamente o que falta e a cada instante espalha-se tamb ém um cheiro, mas um cheiro quase imposs ível de suportar;
e se por acaso voarmos, por h ábito antigo, nos momentos de acalmia, em busca de alguma coisa substancial, por mais que se procure e se aguce a aten ção, nada se encontra al ém de manchas nauseabundas de óleo queimado." "Esse relato faz alus ão, como seguramente j á perceberam, às antigas carruagens com seus cavalos e aos automóveis atuais que, como dizia o velho pardal, produzem rangidos, estrondos e cheiro, at é mais que anteriormente, mas tudo isso sem utilidade alguma para o alimento dos pardais. "E, sem comer, vocês admitir ão que é dif ícil, mesmo para um pardal, engendrar uma descend ência sadia. "Essa anedota ilustra, de maneira ideal, a diferença que quis salientar entre a civilização contempor ânea e as civilizações das épocas passadas. "A civilização moderna, do mesmo modo que as antigas, disp õe da literatura para servir ao aperfeiçoamento da humanidade, mas hoje em dia, nesse campo como em todos os outros, nada h á de utilizável para essa meta essencial. Tudo é apenas exterior. Como dizia o velho pardal, tudo é só ruído, estrondo e cheiro nauseabundo. "Para todo homem imparcial, esta visão da literatura atual pode ser confirmada, de maneira indiscut ível, pelo fato de que existe uma diferença evidente entre o grau de desenvolvimento do sentimento das pessoas que nasceram no continente da Ásia e nele passaram toda sua vida e o das que, nascidas na Europa, foram educadas ali, nas condi ções de vida da civiliza ção contempor ânea. "De fato, como constataram numerosos contempor âneos, entre os homens que vivem hoje no continente da Ásia e que, devido a diversas condi ções geogr áficas e outras, estão isolados da influ ência da civiliza ção atual, o sentimento conhece um desenvolvimento bem superior ao dos povos da Europa; e, sendo o sentimento a pr ópria base do bom senso, esses homens, embora tendo menos conhecimentos gerais, t êm uma concep ção mais justa do objeto sobre o qual se dirige sua aten ção do que aqueles que representam a fina flor da civilização moderna. "Num europeu, a compreens ão do objeto observado s ó se pode fazer, se ele possuir a tal respeito uma informação matemática completa, ao passo que a maioria dos asi áticos capta, por assim dizer, a ess ência do objeto observado, às vezes, apenas com seu sentimento e, às vezes, até mesmo com seu instinto." Nesse ponto de sua perora ção, o velho persa abordou uma quest ão pela qual se interessa, em nossos dias, a maior parte dos europeus que se preocupam em instruir e esclarecer o povo. 26 Disse: "Durante certo tempo, os povos da Ásia ficaram cativados pela literatura europ éia, mas não tardaram a sentir toda a nulidade de seu conte údo e cessaram, pouco a pouco, de se interessar por ela. Hoje em dia, n ão é quase mais lida. "Nada contribuiu mais, a meu ver, para essa indiferen ça crescente, que a esp écie de literatura que tomou o nome de romance. "Esses famosos romances consistem, como j á disse, em descri ções intermináveis das diversas formas de evolução de uma doença que se declara em nossos contempor âneos e se prolonga por bastante tempo devido à sua fraqueza e à sua falta de vontade. "Os asiáticos, que ainda não estão muito afastados da Mãe Natureza, consideram em seu consciente que esse estado psíquico, que aparece nas pessoas dos dois sexos, é um estado vicioso, indigno do homem em geral e particularmente aviltante para o sexo masculino - e instintivamente olham-no com desprezo. "Quanto às obras pertencentes aos ramos cient íficos e descritivos da literatura europ éia ou a qualquer outra forma de pensamento didático, o oriental, menos diminuído em sua faculdade de sentir, isto é, tendo permanecido mais pr óximo da Natureza, experimenta semiconscientemente e sente instintivamente a aus ência total, em seu autor, de qualquer conhecimento do real e de qualquer compreens ão verdadeira do objeto de que trata em suas obras. "Tais são as razões pelas quais os povos da Ásia, depois de terem manifestado grande interesse pela literatura européia, pouco a pouco cessaram de dispensar-lhe a mínima atenção, a ponto de hoje n ão lhe reservarem mais lugar algum; ao passo que na Europa, nas bibliotecas privadas e p úblicas e nas livrarias, as prateleiras desmoronam sob o n úmero crescente dos livros diariamente editados.
"Mas vocês devem, sem dúvida, perguntar como é possível conciliar o que acabo de dizer com o fato de que atualmente os asi áticos, em sua imensa maioria, são, propriamente falando, simples iletrados. "A isso responder-lhes-e í que a razão essencial dessa falta de interesse, suscitada pela literatura contempor ânea, reside em suas pr óprias falhas, "Eu mesmo vi como centenas de iletrados se re únem, em torno de um único letrado, para escutar a leitura das Sagradas Escrituras ou a dos Contos das Mil e Uma Noites. "Objetar-me- ão, naturalmente, que as hist órias que ouvem s ão tiradas de sua pr ópria vida, o que as torna compreensíveis e interessantes 27 para eles. Mas a quest ão não está aí; esses textos e, em particular, os Contos s ão verdadeiras obras liter árias, em toda a acep ção da palavra. "Quem quer que os leia e os ou ça sente bem que tudo ali é pura fantasia, mas uma fantasia conforme à verdade, por mais inveross ímeis que sejam os diferentes epis ódios com relação às condições ordinárias da vida dos homens. O interesse desperta no leitor ou no ouvinte maravilhado com a sutileza com a qual o autor compreende o psiquismo dos homens de todas as castas em torno dele, segue com intensa curiosidade a maneira pela qual toda uma história se constr ói pouco a pouco, a partir de pequenos eventos da vida real. "As exigências da civilização contempor ânea geraram ainda uma forma muito específica de literatura, que se denomina jornalismo. "Não posso deixar em sil êncio essa nova forma liter ária, pois, além do fato de n ão trazer absolutamente nada de bom para o desenvolvimento da intelig ência, tornou-se, a meu ver, o mal desta época, no sentido de que ela exerce a mais funesta influ ência sobre as rela ções m útuas dos homens. "Essa espécie de literatura propagou-se muito nestes últimos tempos e isto se deve, estou firmemente convencido disto, a que responde, da melhor maneira poss ível, às fraquezas e às exigências que determinam nos homens sua falta crescente de vontade. Acaba ela, assim, por atrofiar sua última possibilidade de adquirir os dados que lhe permitiam, até então, tomar mais ou menos consciência de sua individualidade real - único meio de chegar à lembrança de si, esse fator absolutamente indispens ável ao processo de aperfei çoamento de si. "Por fim, essa literatura quotidiana, sem princ ípios, isola completamente o pensamento dos homens de sua individualidade, de maneira que a consci ência moral, que ainda aparecia neles de vez em quando cessou agora de tomar parte em seu pensamento. Est ão doravante privados dos dados que lhes tinham at é agora assegurado uma existência mais ou menos suport ável, pelo menos no campo das rela ções recíprocas. "Para infelicidade de todos nós, essa espécie de literatura, que invade mais e mais a cada ano a vida corrente dos homens, faz com que sua intelig ência, já bastante enfraquecida, sofra um enfraquecimento pior ainda, entregando-a sem resist ência a toda espécie de enganos e erros, desviando-a a cada passo, afastando-a de todo modo de pensar mais ou menos fundamentado e, em vez de um julgamento s ão, estimula e fixa nas pessoas certas tendências indignas, tais como: 28 incredulidade, revolta, medo, falsa vergonha, dissimula ção, orgulho, e assim por diante. "A fim de pintar-lhes sumariamente todo o mal que faz ao homem essa nova forma de literatura, contar-lhes-ei vários eventos provocados pela leitura dos jornais e de cuja veracidade n ão tenho d úvida alguma, uma vez que o acaso quis que deles participasse. "Em Teer ã, um de meus amigos íntimos, um arm ênio, havia-me designado, ao morrer, seu testamenteiro. "Tinha ele um filho, já de certa idade, cujos neg ócios obrigavam-no a viver com toda a sua numerosa fam ília, numa grande cidade europ éia. "Ora, no dia seguinte ao de uma refeição fatal, encontraram-nos mortos, ele e todos os membros de sua fam ília. Na minha qualidade de testamenteiro, tive que ir, imediatamente, ao local desse horroroso acontecimento. "Soube que, nos dias anteriores, o pai dessa infeliz fam ília havia acompanhado num dos di ários que recebia, uma longa reportagem sobre uma salsicharia modelo, onde se preparava, com limpeza sem igual, salsichas feitas - dizia-se - a partir de produtos garantidos e leg ítimos. "Ao mesmo tempo, não podia abrir esse jornal nem qualquer outro, sem deparar com um desses an úncios,
recomendando essa nova charcutaria. "Por fim, a tentação tornou-se irresistível e, apesar de n ão gostar muito de salsichas - como, aliás, nenhum dos seus, pois haviam sido educados na Arm ênia, onde não se come salsicha - acabou por compr á-las. Na mesma noite comeram-nas e ficaram todos envenenados. "Chocado por esse incr ível incidente, consegui, mais tarde, com o aux ílio de um agente da pol ícia secreta, descobrir o que se segue: "Certa firma de grande porte havia adquirido a vil preço um enorme love de salsichas destinado ao exterior, mas que, devido a um atraso na expedi ção, não tinha sido aceito. Para desembara çar-se o mais depressa poss ível de todo esse estoque, a citada firma n ão tinha regateado dinheiro aos rep órteres, aos quais havia confiado o cuidado dessa mal éfica campanha nos jornais. "Outro exemplo: "No curso de uma de minhas estadas em Baku, eu mesmo li, v ários dias seguidos, nos jornais locais que meu sobrinho recebia, longos 29 artigos cujas colunas ocupavam bem a metade do jornal e que se extasiavam, com riqueza de detalhes, com os méritos e as proezas de c élebre atriz. "Falavam dela com tanta insistência e exaltação que eu pr óprio, homem idoso, fiquei inflamado; uma noite, deixando de lado todos os meus afazeres e renunciando a meus hábitos, fui ao teatro ver essa estrela. "E que pensam que vi?... Algo que correspondesse, por pouco que fosse, ao que se escrevia sobre ela nesses artigos que enchiam a metade do jornal? . . . "Nada disso. "Durante minha vida, havia encontrado numerosos representantes dessa arte, bons e maus e posso dizer, sem exagerar, que h á muito me consideravam um conhecedor na matéria. "Ora, sem mesmo expressar minhas concep ções pessoais sobre a arte, mas colocando-me do simples ponto de vista comum, devo reconhecer que nunca havia visto nada compar ável a essa celebridade. . . quanto à falta de talento e à ausência das noções mais elementares da arte de representar um papel. "Em todas as suas manifesta ções no palco, havia tal falta de presen ça, como se diz, que pessoalmente, mesmo num impulso de altruísmo, não teria confiado a essa estrela o papel de ajudante de cozinha em minha casa. "Como soube mais tarde, um industrial de Baku - o tipo acabado do grande refinador de petr óleo, enriquecido por acidente - adiantara a alguns rep órteres uma bela quantia, prometendo duplic á-la, se conseguissem fazer de sua amante uma celebridade, at é então arrumadeira na casa de um engenheiro russo e a quem ele havia seduzido por ocasião de suas visitas de neg ócios. "Ainda um exemplo: "Lia, de quando em vez, num jornal alem ão muito difundido, longos paneg íricos sobre a gl ória de um pintor e esses artigos levaram-me a pensar que tal artista era uma espécie de fenômeno na arte contempor ânea. "Como meu sobrinho mandara construir uma casa na cidade de Baku e decidira, prevendo seu casamento, encomendar um interior suntuoso, aconselhei-o a n ão ser mesquinho e mandar vir esse famoso artista, para dirigir os trabalhos de decora ção e pintar alguns afrescos. 30 (Eu não ignorava que, nesse ano, ele havia tido a sorte de perfurar v ários poços de petr óleo de grande vaz ão, o que permitia esperar um polpudo rendimento.) Assim, suas enormes despesas seriam proveitosas, pelo menos, a seus descendentes, que receberiam como heran ça os afrescos e outras obras desse mestre incompar ável. "Foi o que fez meu sobrinho. Foi procurar pessoalmente esse ilustre artista europeu. E o grande pintor chegou em breve, arrastando atr ás de si toda uma coorte de assistentes e de trabalhadores e, parece-me, at é seu pr óprio har ém - no sentido europeu da palavra, é claro. Depois, sem se apressar, pôs-se à obra. "O resultado do trabalho dessa celebridade contempor ânea foi que, em primeiro lugar, o casamento foi adiado e, em segundo, foi necess ário gastar bastante dinheiro para recolocar tudo em condições e depois fazer pintar e enfeitar as paredes com iluminuras, de maneira mais conforme à verdadeira pintura, por simples artesãos, desta vez persas. "No caso presente, é necessário, aliás, fazer justiça aos jornalistas: foi de modo quase desinteressado que
ajudaram a esse pequeno pintor a fazer sua carreira, por simples camaradagem, como modestos escrevinhadores que eram. "Como último exemplo, contar-lhes-ei uma história sombria, cujo respons ável foi um dos pont ífices dessa espécie particularmente perniciosa da literatura contempor ânea. "Quando morava na cidade de Khorass ã, encontrei um dia, em casa de um amigo comum, dois rec ém-casados europeus, com quem fiz amizade. "Detiveram-se várias vezes em Khorass ã, mas sempre por muito pouco tempo. "Viajando em companhia de sua jovem esposa, meu novo amigo colhia observa ções e dedicava-se a an álises para determinar os efeitos da nicotina de diversos tabacos sobre o organismo e o psiquismo dos homens. "Tendo reunido, em vários países da Ásia, todas as informa ções de que necessitava, voltou com sua mulher para a Europa e p ôs-se a escrever um importante trabalho em que expunha as conclus ões de sua pesquisa. "Ora, por inexperiência, a jovem senhora ainda n ão tinha aprendido a encarar a eventualidade de "dias negros" e, durante essas viagens, esgotara todos os recursos. Assim, viu-se obrigada, para perm itir 31 que seu marido terminasse o livro, a entrar como datilografa numa grande editora. "Essa casa editora era freqüentada por certo cr ítico liter ário, que a encontrava freqüentemente ali. Caído de amores por ela, como se diz, ou apenas desejando satisfazer sua concupisc ência, tentou levá-la a uma ligação. Ela por ém, mulher honesta e conhecendo seu dever, n ão cedeu a suas investidas. "Enquanto, nessa esposa fiel de um marido europeu, triunfava a moral, esse indiv íduo contempor âneo típico, sujo sob todos os aspectos, nutria, com tanto mais for ça quanto mais a sua concupisc ência não havia sido satisfeita, o desejo de vingan ça, habitual nessas pessoas, de tal maneira que conseguiu, com suas intrigas, fazer com que perdesse seu emprego, sem o menor motivo. E depois, quando o marido terminou e publicou sua obra, esse cr ítico pôs-se a escrever, por rancor, nos quotidianos dos quais era colaborador e at é"em outros jornais e revistas, toda uma série de artigos nos quais dava uma interpretação absolutamente falsa do livro. Em resumo, desacreditou-o a tal ponto que foi um fracasso total: ninguém se interessou pelo livro nem o comprou. "As artimanhas de um desses representantes perniciosos de uma literatura sem princ ípios tiveram, dessa vez, como resultado levar um pesquisador honesto a desejar pôr fim à sua vida. Quando esgotou todos os seus recursos e n ão teve nem com que comprar p ão para ele ou para sua querida mulher. . . depois de se terem posto de acordo, ambos se enforcaram. "Devido à influência que lhes d á sua autoridade de escritores, sobre a massa dos homens ing ênuos e f áceis de serem sugestionados, os cr íticos liter ários são, a meu ver, mil vezes mais nocivos que todos esses babosos garotos que s ão os repórteres. "Conhecia, por exemplo, um cr ítico musical que nunca, em sua vida, havia posto a m ão num instrumento e que, portanto, não tinha nenhuma compreens ão pr ática da m úsica: não sabia nem mesmo o que era um som, nem a diferen ça entre as notas d ó e r é. As anomalias inerentes à civilização contempor ânea haviam-lhe permitido, entretanto, ocupar o posto respons ável de cr ítico musical e, depois, tornar-se uma autoridade para os leitores de um jornal em plena prosperidade, cuja difusão era consider ável. Seus julgamentos, completamente ignaros, acabaram por inocular nos leitores opini ões definitivas, quando 32 33 a música deveria ter sido para eles o que é em realidade: uma fonte de compreens ão correta de um dos aspectos do conhecimento. "O público nunca sabe quem escreve. S ó conhece o jornal, o qual pertence a um grupo de comerciantes experientes. "Que sabem, de fato, aqueles que escrevem nesses jornais e o que se passa nos bastidores da reda ção? O leitor ignora totalmente. Por isso acredita piamente em tudo o que encontra nos jornais. "Minha convicção refor çou-se a esse respeito, nesses últimos tempos, para tornar-se mais firme que uma rocha e todo homem capaz de pensar de maneira mais ou menos
imparcial pode fazer a mesma constata ção: os que se esfor çam para se desenvolver pelos meios que a civilização contempor ânea lhes oferece adquirem, quando muito, uma faculdade de pensar digna da primeira inven ção de Edison e s ó desenvolvem em si mesmos, em mat éria de sensibilidade, o que Mullah Nassr Eddin teria denominado a sutileza de sentimento de uma vaca. "Encontrando-se num grau muito inferior de desenvolvimento moral e ps íquico, os representantes da civiliza ção contempor ânea são como crianças brincando com o fogo, incapazes de medir a for ça com a qual se exerce a influ ência da literatura sobre a massa das pessoas. "Se creio na impress ão que me veio do estudo da hist ória antiga, as elites das civiliza ções de outrora nunca teriam permitido que semelhante anomalia prosseguisse por tanto tempo. "O que digo, ali ás, pode ser confirmado por informa ções que nos chegaram sobre o interesse que dedicavam à literatura quotidiana os dirigentes deste nosso pa ís não faz ainda tanto tempo - na época em que ele estava entre as grandes pot ências, isto é, na época em que Babilônia nos pertencia e era, sobre a terra, o único centro de cultura unanimemente reconhecido. "Segundo essas informa ções, existia também ali uma imprensa quotidiana, sob forma de papiros impressos, em quantidade limitada, é claro. Mas, só podiam colaborar nesses órgãos liter ários, homens idosos e qualificados, conhecidos de todos por seus s érios méritos e sua vida honesta. Existia até uma regra segundo a qual esses homens só eram admitidos a desempenhar sua fun ção depois de terem prestado juramento. Intitulavam-se então "colaboradores juramentados", como hoje h á jurados, peritos juramentados, etc. "Em nossos dias, ao contr ário, qualquer fedelho pode tornar-se rep órter, desde que saiba expressar-se lindamente e, como se diz, literariamente. "Aprendi, aliás, a conhecer bem o psiquismo desses produtos da civiliza ção contempor ânea, que inundam com suas elucubra ções esses jornais e revistas e pude avaliar seu ser, pois durante tr ês ou quatro meses tive ocasi ão de estar lado a lado com eles todos os dias, na cidade de Baku e de ter com eles freq üentes conversas. "Encontrava-me em Baku, onde tinha ido passar o inverno em casa de meu sobrinho. Um dia, v ários rapazes vieram pedir-lhe um dos grandes salões do andar térreo de sua casa - onde tivera inicialmente a intenção de instalar um restaurante - para ali reunir sua Nova Sociedade dos Literatos e Jornalistas "Meu sobrinho aquiesceu de pronto a esse pedido e, a partir do dia seguinte, esses rapazes reuniam-se todas as noites para fazer o que chamavam suas assembl éias gerais e seus debates cient íficos. "Os estranhos eram admitidos a essas reuni ões e, como n ão tinha nada que fazer à noite e meu quarto era ao lado da sala onde se reuniam, ia freqüentemente escutar seus debates. Dentro em breve, alguns deles me dirigiram a palavra e, pouco a pouco, estabeleceram-se entre nós relações amistosas. "Em sua maioria eram ainda muito jovens, débeis e efeminados. Em alguns os traços do rosto revelavam que seus pais deviam ter-se dedicado ao alcoolismo ou a outras paixões, por falta de vontade ou que os donos desses rostos se entregavam a maus h ábitos ocultos. "Embora Baku seja uma cidade pequena, comparada à maioria das grandes cidades da civiliza ção contempor ânea, e as amostras de humanidade que ali se reuniam n ão fossem mais que "aves de v ôo baixo", não tenho escr úpulo algum em generalizar, pondo todos os seus colegas no mesmo saco. "E sinto-me com esse direito, porque mais tarde, durante minhas viagens pela Europa, encontrei freqüentemente representantes dessa literatura contempor ânea e causaram-me sempre a mesma impress ão: a de parecerem-se uns aos outros como duas gotas d' água. "Só diferiam por seu grau de importância, que dependia do órgão liter ário no qual colaboravam, isto é, da nomeada e da difus ão do jornal ou da revista que inseria suas elucubra ções ou, ainda, da solidez da firma comercial à qual pertencia esse órgão, com todos os seus obreiros liter ários. "Muitos dentre eles se intitulavam "poetas" não se sabe por qu ê. Em nossos dias, na Europa, qualquer um que escreva um absurdo deste g ênero: "Verde resedá Mimosa vermelha
A divina pose de Lisa É como o pranto da ac ácia" recebe dos que o rodeiam o t ítulo de poeta; alguns fazem até constar esse t ítulo nos cartões de visita. "Nesses obreiros do jornalismo e da literatura contempor ânea, o esp írito de corporação é muito desenvolvido: apóiam-se mutuamente e elogiam-se, em toda ocasião, de modo imoderado. "Parece-me até que esse tra ço é a causa principal de sua proliferação, de sua falsa autoridade sobre a massa e da adulação servil e inconsciente que a multid ão testemunha aos que se poderia qualificar, com a consci ência tranqüila, de perfeitas nulidades. "Nessas assembl éias, um deles subia ao estrado para ler, por exemplo, alguma coisa no g ênero dos versos que acabo de citar ou para examinar por que o ministro de tal ou qual Estado, durante um banquete, se exprimira sobre certa quest ão de tal maneira e n ão de outra. Depois, o orador terminava, na maioria das vezes, seu discurso por uma declara ção deste gênero: "Cedo a palavra a essa luz incompar ável da ci ência de nosso tempo, o Senhor Fulano, chamado à nossa cidade para um assunto da mais alta importância e que teve a amabilidade de haver por bem assistir à nossa assembl éia. Vamos ter, neste momento, a felicidade de ouvir sua voz ador ável. "E, quando essa celebridade subia ao estrado, por sua vez, tomava a palavra nesses termos: "Senhoras e Senhores, "Meu colega foi bastante modesto ao chamar-me de celebridade. . (Diga-se, de passagem, que n ão havia podido captar o que dissera seu colega, pois chegaria da sala vizinha cuja porta estava fechada.) "Para dizer a verdade, se me comparam a ele, n ão sou nem mesmo digno de sentar-me em sua presen ça. "Não sou eu que sou uma luz, é ele: ele é conhecido n ão somente por toda a nossa grande R ússia, mas por todo o mundo civilizado. Seu nome ser á pronunciado com exaltação por nossos descendentes e ningu ém esquecer á jamais o que ele fez pela ci ência e pelo bem da humanidade. 35 "Se esse deus de verdade vive hoje em dia, nesta cidade insignificante, n ão é por acaso, parece, mas por importantes razões só dele conhecidas. "Seu verdadeiro lugar não é entre nós, é ao lado das antigas divindades do Olimpo. . . "E, somente depois desse pre âmbulo, essa nova celebridade pronunciava alguns absurdos sobre um tema como este: Por que os Sirikitsi declararam guerra aos Parnakalpi. "Depois dessas assembl éias científicas, havia sempre uma ceia regada com duas garrafas de vinho barato. Muitos deles enfiavam tira-gostos nos bolsos - este uma rodela de salame, aquele um arenque com um peda ço de pão - e se, por acaso, um deles era surpreendido, dizia negligentemente: É para meu cachorro: o maroto tem seus h ábitos, espera sempre sua parte, quando chego tarde em casa." "No dia seguinte, podia-se ler em todos os jornais locais o relato da reuni ão e dos discursos, redigido num estilo incrivelmente empolado, sem que, é claro, se fizesse a mínima refer ência à modéstia do jantar nem ao furto dos peda ços de salame. . . para o cachorro. "E são essas pessoas que escrevem nos jornais a prop ósito de toda esp écie de verdades e descobertas científicas. O leitor ingênuo, que n ão vê os escritores nem conhece seu modo de viver, forma uma opinião sobre os eventos e sobre as id éias, segundo as lengalengas desses literatos que são, nem mais nem menos, homens doentes e inexperientes, completamente ignorantes do verdadeiro sentido da vida. "com rar íssimas exce ções, em todas as cidades da Europa, os que escrevem livros ou artigos de jornal s ão precisamente esses doidivanas, que chegaram a esse ponto em razão de sua hereditariedade e de suas fraquezas espec íficas. "Para mim, não há nem sombra de d úvida: entre todas as causas das anomalias da civiliza ção contempor ânea, a mais evidente, a que ocupa o lugar predominante, é essa literatura jornalística, pela ação desmoralizante e perniciosa que exerce sobre o psiquismo dos homens. Fico, aliás, profundamente espantado que nenhum "detentor de poder" se tenha algum dia dado conta disto e que cada Estado consagre quase mais de metade de seu or çamento para manter uma polícia, prisões, prefeituras, igrejas, hospitais, etc., bem como para pagar in úmeros funcion ários, padres, m édicos, agentes da pol ícia secreta, procuradores, agentes de propaganda, etc., com o único fim de salvaguardar a integridade f ísica e moral de seus cidad ãos, sem despender um
36 37 só tostão nem empreender seja o que for para destruir at é às suas raízes essa causa evidente de toda esp écie de crimes e de mal-entendidos." Assim terminava o discurso do velho letr ado persa. " Pois bem, corajoso leitor (que, sem dúvida, não sabe mais muito bem sobre que p é dançar), agora que transcrevi esse discurso - e se o introduzi aqui é porque, a meu ver, exprime uma idéia muito instrutiva e até proveitosa para a maioria de nossos contempor âneos que t êm a ingenuidade de considerar a civiliza ção moderna como incomparavelmente superior às precedentes, com rela ção ao desenvolvimento da razão humana - eis-me, enfim, livre para terminar esta introdução e passar à revisão do material destinado à presente série de minhas obras. No momento de retomar esses textos, com vistas a dar-lhes uma forma que seja acess ível a todos, vem-me a idéia de pôr meu trabalho de acordo com o s ábio conselho, freqüentemente relembrado pelo nosso grande Mullah Nassr EddinEsfor ça-te, sempre e em tudo, para obter, ao mesmo tempo, o útil para os outros e o agrad ável para ti mesmo, com a primeira metade desse judicioso conselho de nosso venerado mestre, n ão preciso me inquietar: o que tenho a intenção de introduzir nesta s érie responde plenamente a isto. Quanto a obter o agrad ável para mim mesmo, conto consegui-lo, expondo minhas id éias sob uma forma que me permitir á doravante ter uma exist ência mais ou menos suportável e não mais a que conheci antes de minha atividade de escritor. Para tornar compreensível o que entendo por isso, é necessário dizer que, depois de todas as minhas viagens à Ásia e à África - a países pelos quais, n ão se sabe por quê, muitas pessoas come çaram a se interessar h á cerca de meio s éculo - consideravam-me, quase em toda parte, como um mago e como um perito em quest ões do além. De modp que todos aqueles que me conheciam, acreditavam-se no direito de vir me incomodar, para satisfazer sua curiosidade a respeito desse al ém ou, ainda, para for çar-me a dar-lhes detalhes sobre minha vida pessoal ou a contar uma de minhas aventuras de viagem. E, por mais fatigado que estivesse, era-me absolutamente necess ário responder alguma coisa, senão eles se ofendiam e depois, animados de sentimentos hostis a meu respeito, se desfaziam em coment ários maldosos, buscando lan çar o descr édito sobre mim e minhas atividades. Eis por que resolvi, revendo o material destinado a esta s érie, expô-lo sob a forma de relatos separados, em que seriam inseridas certas idéias, que poderiam servir de resposta a uma quantidade de perguntas que freq üentemente me foram feitas. Assim, quando novamente tiver que tratar com esses ociosos descarados, ser-me- á possível indicar-lhes simplesmente tal ou qual capítulo, suscetível de satisfazer sua curiosidade autom ática, o que me permitir á falar com alguns deles, segundo seu modo habitual, isto é, seguindo apenas o curso das associa ções e de dar, assim, a meu pensar ativo o repouso indispensável à realização consciente e honesta de minhas obrigações quotidianas. Entre as perguntas que me eram feitas por homens de todas as classes e de todos os níveis de instrução, as que, lembro-me, voltavam com mais freqüência, eram as seguintes: 1. Que homens not áveis havia encontrado? 2. Que maravilhas havia visto no Oriente? 3. Tem o homem uma alma e essa alma é imortal? 4. A vontade do homem é livre? 5. O que é a vida e por que existe o sofrimento? 6. Cria eu nas ci ências ocultas e no espiritismo? 7. O que são o hipnotismo, o magnetismo, a telepatia? 8. Como havia sido levado a interessar-me por essas quest ões? 9. Como tinha chegado a conceber meu sistema e a p ô-lo em pr ática no Instituto que leva meu nome? Decidi, pois, apresentar esta série, em capítulos separados, sob forma de relatos, como tantas respostas à primeira das perguntas que freq üentemente me faziam: "Que homens notáveis tinha encontrado?" No curso destes relatos, disporia, segundo um princ ípio de sucess ão lógica, todas as id éias que tinha a inten ção de dar a conhecer,
nesta série de minhas obras, para que sirvam de material construtivo preparat ório e, ao mesmo tempo, responderia a todas as outras perguntas. Enfim, a seq üência dos relatos seria conduzida de modo que fizesse sobressair os contornos exteriores de minha autobiografia. Antes de prosseguir, acho necess ário definir a expressão "homem notável", pois tomou, como todas as outras, nos homens de hoje, um sentido relativo e puramente subjetivo. 38 *** 2 MEU PAI Durante todo o final do s éculo passado e os primeiros anos deste, meu pai havia alcan çado grande popularidade como ashokh, isto é, narrador e poeta. Era conhecido sob o nome de Adash e, embora n ão fosse profissional mas simples amador, sua reputa ção se estendia at é muito longe, entre os habitantes de numerosas regi ões da Transcaucasia e da Ásia Menor. O nome ashokh designa, em toda a Ásia e na península dos Bálcãs, os bardos locais que comp õem, recitam ou cantam poemas, can ções, lendas, contos populares e hist órias de toda espécie. Os homens de antigamente que se consagravam a essa carreira embora fossem, na maioria, "iletrados", n ão tendo nem freqüentado a escola do povoado em sua inf ância, nem por isso deixavam de possuir uma mem ória e uma vivacidade de esp írito de tal modo extraordinárias que pareceriam hoje raiar ao prodígio. Não somente conheciam de cor in úmeros relatos e poemas, às vezes muito longos, e cantavam de mem ória as mais variadas melodias, mas dedicavam-se ainda, segundo sua "inspiração subjetiva", a improvisos, sobre temas conhecidos, sabendo com rapidez surpreendente, mudar de cadência no momento adequado e encontrar a rima. Em vão procurar-se-ia, hoje em dia, homens tão bem dotados Dizia-se já, na minha inf ância, que eles estavam se tornando cada vez mais raros. Foi-me dado, entretanto, conhecer vários deles, entre os mais c élebres dessa época e os rostos desses ashokhs ficaram profundamente gravados em minha mem ória. Se tive a oportunidade de ouvi-los, devo-o a meu pai, que me levava às vezes com ele aos torneios em que vinham se defrontar, de vez em quando, os poetas-ashokhs de diversos países. Chegavam da Persia, 40 41 Turquia, Cáucaso e até mesmo de certas regiões do Turquest ão e, ante uma assistência consider ável, engajavam-se em justas de improvisos e de cantos. Isso geralmente passava-se assim: Um dos participantes do torneio, cujo nome tinha sido sorteado, propunha a seu advers ário, improvisando uma melodia, uma pergunta sobre um assunto religioso ou filos ófico ou, ainda, sobre o sentido e a origem de alguma lenda, tradi ção ou crença conhecida. O outro respondia improvisando, por sua vez, uma melodia e essa melodia subjetiva devia sempre estar em harmonia com a que a precedia, tanto em sua tonalidade como em rela ção ao que a verdadeira ciência musical denomina sua seq üência ansalpaniana de ecos, Tudo era cantado em versos, na l íngua turco-tártara, então adotada como língua comum pela maioria dos povos dessas regi ões, que falavam dialetos diferentes. Esses torneios prolongavam-se por semanas inteiras, às vezes até por meses. E terminavam com uma distribuição de recompensas concedidas, por assentimento un ãonime, aos cantos que mais se haviam destacado. Esses presentes consistiam mais comumente em gado, tapetes ou outros objetos de valor, oferecidos pela assist ência. Fui testemunha, em minha inf ância, de tr ês dessas grandes competi ções. A primeira realizou-se na Turquia, na cidade de Van, a segunda no Azerbaij ão, na cidade de Karabagh e a terceira, no pequeno burgo de Subatan, no distrito de Kars.
Em Alexandr ópolis e em Kars, as duas cidades onde viveu minha fam ília, meu pai era muito freqüentemente convidado a saraus, onde vinham ouvi-lo recitar ou cantar. Durante esses saraus, contava ele, a pedido da assist ência, uma ou outra dessas in úmeras lendas, a n ão ser que cantasse algum poema dialogado no qual interpretava alternadamente os papéis. A noite inteira era, às vezes, curta demais para terminar o relato, de modo que reuniam-se novamente no dia seguinte. Na véspera dos domingos e feriados, como nós, crianças, tínhamos o direito de não nos levantar cedo no dia seguinte, meu pai costumava contar-nos uma história, quer sobre os grandes povos da antig üidade, quer sobre homens not áveis, quer sobre Deus, sobre a natureza ou sobre toda esp écie de maravilhas misteriosas. E terminava sempre por algum conto das Mil e Uma Noites, dos quais sabia um n úmero tão grande que seguramente teria podido contar-no-las por mil e uma noites. 41 Entre as fortes impress ões que me deixaram as hist órias de meu pai, que imprimiram sua marca sobre toda a minha vida, há uma que me serviu mais tarde e, talvez, não menos que cinco vezes, de "fator espiritualizante", abrindo-me uma compreens ão do incompreens ível. Essa forte impress ão, que devia mais tarde servir-me de fator espiritualizante, cristalizou-se em mim, num dia em que meu pai havia cantado e contado para n ós a Lenda do dil úvio antes do dil úvio, quando eclodiu uma discuss ão a esse respeito entre ele e um de seus amigos. Isso se passava na época em que a imperiosa press ão das circunstâncias havia constrangido meu pai a adotar o of ício de carpinteiro. O amigo em questão vinha freqüentemente visitá-lo em sua oficina e os dois passavam, às vezes, a noite inteira tentando decifrar o sentido das velhas lendas e dos provérbios. Esse amigo de meu pai n ão era outro senão o arcipreste da catedral militar de Kars, o Padre Borsh, o homem que, dentro em breve, se tornaria meu primeiro mestre, o criador e autor de minha individualidade atual ou, dito de outro modo, a terceira face de meu Deus interior. Na loite dessa discuss ão, encontrava-me na oficina, bem como meu tio, que tinha vindo de uma aldeia vizinha, onde possuía grandes hortas e vinhedos. Estávamos sentados tranq üilamente num canto, meu tio e eu, sobre macias aparas, escutando meu pai que cantava, nessa noite, a lenda do her ói babilônico Gilgamesh e nos explicava sua significa ção. A discuss ão surgiu, quando terminou o canto XXI dessa lenda, em que certo Ut-Napishtin conta a Gilgamesh a destruição, pelas águas, da terra de Shurupak. Depois de ter feito uma pausa para encher seu cachimbo, meu pai disse que essa lenda remontava, segundo ele, aos sum érios, povo mais antigo ainda que os babil ônios, e que ela estava, certamente, na origem do relato do dil úvio da Bíblia dos hebreus e na origem da concep ção cristã do mundo; só os nomes haviam sido trocados, bem como certos detalhes em lugares diversos. O Padre Borsh fez, imediatamente, obje ções, apoiando-se em numerosos dados contr ários e a discuss ão não tardou a se acalorar, a ponto de se esquecerem de me mandar para cama, como sempre faziam nesses casos. Estávamos de tal modo interessados por essa controv érsia, meu tio e eu, que ficamos im óveis sobre nossas aparas até a hora em que, 42 ao raiar da aurora, meu pai e seu amigo puseram fim a seu debate e se separaram. Esse XXI.0 canto foi tantas vezes repetido nessa noite, que ficou gravado em minha mem ória por toda a vida. Dizia-se ali: Revelar-te-ei, Gilgamesh, Um triste mistério dos Deuses; Como se reuniram um dia Para decidir submergir a terra de Shurupak. Eya dos olhos claros, sem nada dizer a Anu, seu pai, Nem ao Senhor, o grande Enlil, Nem àquele que esparge a felicidade, Nemuru, Nem mesmo ao pr íncipe do mundo subterr âneo, Enua,
Chamou para perto de si seu filho Ubaretut E dissê-lhe: "Filho, constr ói um barco com tuas m ãos, Toma contigo teus pr óximos, E os quadr úpedes e as aves de tua escolha, Pois os Deuses decidiram irrevogavelmente Submergir a terra de Shurupak." Essa discuss ão sobre tal tema, entre esses dois homens, que haviam vivido de maneira relativamente normal até uma idade avan çada, produziu, graças aos dados depositados em mim durante minha inf ância pelas fortes impress ões que dela recebi, resultados ben éficos para a formação de minha individualidade. Disto só tomei consciência, aliás, muito recentemente, logo antes da Guerra mundial; mas, desde ent ão, esses resultados nunca cessaram de ser para mim o fator espiritualizante de que falei. O choque inicial que, através de minhas associa ções mentais e emocionais, desencadeou essa tomada de consciência foi este simples fato: Um dia, li numa revista um artigo onde se dizia que haviam sido descobertas, nas ru ínas de Babilônia, certas tabuinhas com inscri ções que datavam de pelo menos quatro mil anos, segundo os s ábios. A revista reproduzia as pr óprias inscrições e dava delas uma tradu ção - era a lenda do her ói Gilgamesh. 43 Quando compreendi que se tratava dessa mesma lenda, que tantas vezes ouvira ser contada por meu pai em minha inf ância e, principalmente, quando encontrei nesse texto, sob forma quase id êntica à do relato de meu pai, esse famoso XXI.0 canto, fui tomado de forte "pasmo interior", como se, daí por diante, todo o meu destino fosse depender disto. Por outro lado, estava tocado pelo fato, ainda inexplic ável para mim, de que essa lenda pudesse ter sido transmitida durante milhares de anos, por gerações de ashokhs, sem que a forma tivesse sido alterada. Depois desse evento, quando os ben éficos resultados das impress ões depositadas em mim desde a minha inf ância, pelos relatos de meu pai, se me foram finalmente tornados evidentes - resultados que cristalizaram em meu ser esse fator espiritualizante, capaz de abrir-me à compreensão do que parece, em geral, incompreensível - lamentei muito freqüentemente haver esperado tanto para dar a essas antigas lendas a enorme import ância que verdadeiramente possuem, como me dou conta hoje em dia. Outra lenda, que meu pai cantava sobre esse mesmo Dil úvio antes do dil úvio, tomou depois disso uma significação muito particular para mim. Contava-se ali que, há muito muito tempo - setenta gerações antes do último dilúvio (e cada geração valia por cem anos), no tempo em que o mar estava onde hoje está a terra e a terra, onde hoje est á o mar - existia uma grande civilização, cujo centro era a ilha de Hannin, que, por sua vez, era o pr óprio centro da terra. Ora, essa ilha de Hannin, como me ensinaram outros dados hist óricos, estava situada aproximadamente onde agora se encontra a Gr écia. Os únicos sobreviventes desse dil úvio tinham sido alguns membros de uma confraria denominada Im ãs tun 1, que representava, por si s ó, toda uma casta. 1. Imastun, em armênio antigo, significa "sábio". Era também o título que se dava aos personagens not áveis da história, tal como o rei Salomão, cujo nome ainda hoje é precedido desse título. Esses Irm ãos Imastun estavam, antigamente, espalhados por toda a terra, mas o centro de sua confraria permanecia nessa ilha. Esses homens eram s ábios. Estudavam, entre outras coisas, a astrologia e foi para poder observar os fenômenos celestes sob ângulos diferentes, que logo antes do dilúvio se haviam disseminado por toda 44 a terra. Mas, qualquer que fosse a dist ância, às vezes consider ável, que os separasse, permaneciam em comunicação constante entre si, bem como com o centro de sua comunidade, que mantinham ao corrente de suas pesquisas, por meios telep áticos. Para tal fim, recorriam a pítias, das quais se serviam como se fossem aparelhos receptores. Uma vez em
transe, elas captavam e anotavam inconscientemente todas as informações que os Imastun lhes transmitiam. De acordo com o ponto de onde lhes chegavam as informa ções, essas pítias as inscreviam num dos quatro sentidos convencionais. Mais precisamente, transcreviam de cima para baixo, as comunica ções que lhes eram dirigidas dos pa íses situados a leste da ilha; da direita para a esquerda, as que recebiam dos países situados ao sul; de baixo para cima, as que lhes chegavam do ocidente (onde se encontravam então a Atlântida e, mais longe, a Am érica atual); e da esquerda para a direita, as que lhes eram transmitidas das regi ões onde se encontra hoje a Europa. E agora, como no curso l ógico da exposi ção deste capítulo, consagrado à memória de meu pai, fui levado a falar de seu amigo, meu primeiro mestre, o Padre Borsh, parece-me indispens ável descrever aqui um processo imaginado por esses dois homens, chegados ao limiar da velhice após uma existência normal, que tinham tomado a si a obrigação de preparar, para uma vida responsável, o menino inconsciente que eu era e que mereceram, por sua atitude honesta e imparcial para comigo, representar hoje em dia para minha ess ência, depois de tantos anos, duas das faces da divindade de meu Deus interior. Esse processo, quando mais tarde fui capaz de compreend ê-lo, pareceu-me um meio muito original de desenvolvimento mental e de aperfei çoamento de si. Chamavam-no kastusilia, termo que prov êm da antiga língua assíria, se não me engano, e que meu pai tinha colhido, sem dúvida, em alguma lenda. Eis em que consistia: Um dos dois propunha, de repente, ao outro, uma pergunta à primeira vista de todo descabida. O outro, sem se apressar, dava, com a maior calma e a maior seriedade, uma resposta lógica e plaus ível. Por exemplo, uma noite em que eu estava na oficina, meu futuro mestre entrou de improviso e, sem perder tempo em sentar-se, perguntou a meu pai: Onde está Deus neste momento? Meu pai respondeu-lhe com gravidade: - Deus está neste momento em Sarykamich. MEU PAI 45 Sarykamich é uma região arborizada, na fronteira da antiga Rússia com a Turquia, famosa em toda a Ttanscauc ásia e Ásia Menor, pela altura extraordin ária dos pinheiros. A seguir, o velho padre perguntou: - E que faz Deus ali? Meu pai respondeu que Deus constru ía ali escadas duplas, no topo das quais fixava a felicidade a fim de que, sobre essas escadas, indiv íduos e nações inteiras pudessem subir e descer. Perguntas e respostas seguiam-se assim, num tom comedido e tranq üilo, como se um deles houvesse perguntado: "Qual é a cotação da batata hoje?" e o outro houvesse respondido: "A colheita foi muito m á este ano." Só muito mais tarde devia compreender a riqueza de pensamento que se ocultava sob tais di álogos. Tinham muito freqüentes conversas desse g ênero, de tal modo que um estranho os teria tomado, sem d úvida alguma, por velhos caducos ou pobres loucos em liberdade, cujo lugar normal deveria ser no hosp ício. Muitas perguntas e respostas, que me pareciam ent ão destituídas de sentido, tomaram a meus olhos, mais tarde, profunda significação, quando problemas da mesma ordem se me propuseram, e foi somente ent ão que compreendi a enorme import ância que tinham para os dois anciãos. Meu pai tinha uma concep ção clara, simples e perfeitamente definida da meta da vida humana. Dizia-me com freqüência, em minha mocidade, que a aspira ção fundamental de todo homem deveria ser conquistar sua liberdade interior e preparar-se, assim, para uma velhice feliz. Segundo ele, tal meta tinha car áter tão imperioso e tão indispensável, que cada um deveria compreend ê-la, sem procurar sarna para se cocar. Mas, para atingi-la, era necessário que, desde a inf ância e até à idade de dezoito anos, o homem adquirisse dados que lhe permitissem obedecer sem desfalecimento aos quatro seguintes mandamentos: Primeiro: Amar seus pais. Segundo: Guardar sua pureza sexual.
Terceiro: Demonstrar igual cortesia para com todos, ricos ou pobres, amigos ou inimigos, detentores de poder ou escravos, qualquer que seja a religi ão a que perten çam; mas permanecer 46 livre interiormente e nunca confiar demasiado em na da nem em ningu ém. Quarto: Amar o trabalho pelo trabalho e não pelo ganho. Meu pai, que me amava muito particularmente por ser eu seu primogênito, exerceu sobre mim grande influência. No fundo de mim mesmo, considerava-o mais como meu irm ão mais velho do que como pai. As freq üentes conversas que tinha comigo, bem como seus relatos extraordin ários, favoreceram em minha ess ência a eclosão de imagens poéticas e a aspira ção a um ideal elevado. Meu pai era de origem grega. Seus ancestrais tinham vivido em Biz âncio e se haviam exilado, pouco depois da tomada de Constantinopla pelos turcos, para fugir às perseguições destes últimos. Tinham, inicialmente, emigrado para o cora ção da Turquia. Depois, por certas razões - notadamente a busca de condições de clima e de pastagens mais favor áveis para os rebanhos que constitu íam uma parte importante de suas imensas riquezas - tinham vindo estabelecer-se nas margens orientais do Mar Negro, perto da cidade conhecida hoje em dia por Gumuchkhane. Mais tarde ainda, pouco antes da última grande guerra russo-turca, a retomada das perseguições turcas for çou minha família a passar para a Geórgia. Aí, meu pai se separou de seus irm ãos, para alcançar a Armênia, onde se fixou na cidade de Alexandr ópolis, que acabava de perder seu nome turco de Gumri. Quando da divis ão da herança, meu pai recebeu uma parte que representava, na época, uma riqueza consider ável e que inclu ía, entre outras coisas, numerosos rebanhos. Um ou dois anos mais tarde, ficaria completamente arruinado em decorr ência de uma dessas calamidades que não dependem em nada dos homens - e isso nas seguintes circunst âncias: Pouco tempo depois de sua instala ção na Armênia - com toda a sua fam ília, seus pastores e seus rebanhos meu pai, sendo o mais rico propriet ário pecuarista, fora procurado pelas fam ílias pobres da região, como era costume, para lhe confiarem a guarda de seus animais de chifre e outros animais domésticos. Em troca, ele deveria dar-lhes, na estação, certa quantidade de manteiga e de queijo. Ora, no momento preciso em que seus rebanhos aumentavam assim de v ários milhares de cabeças, uma epidemia de peste oriunda da Ásia, espalhou-se por toda a Transcaucasia. A epidemia foi t ão 47 violenta que, no espa ço de menos de dois meses, quase todos os animais tombaram; s ó alguns sobreviveram e, ainda assim, não lhes restava, por assim dizer, sen ão a pele e os ossos. Como meu pai, ao aceitar esse gado, havia igualmente assumido, segundo o costume, segur á-lo contra todos os riscos - mesmo o rapto pelos lobos, que se produzia com bastante freqüência, - não só perdeu, nessa cat ástrofe, seus pr óprios rebanhos, mas foi obrigado a vender quase todos os seus outros bens para indenizar os propriet ários dos animais perdidos. E meu pai, de homem rico que era, ficou pobre do dia para a noite. Nossa fam ília compunha-se, então, de apenas seis pessoas: meu pai, minha m ãe, minha avó, que havia querido terminar os dias perto de seu filho ca çula, e tr ês filhos - eu, meu irmão e minha irmã. Era eu o mais velho. Devia ter, na época, cerca de sete anos. Privado a partir daí de qualquer fortuna, viu-se meu pai na obrigação de empreender novo neg ócio, pois a manutenção de uma fam ília como a nossa, que at é então tinha sempre sido muito amimada, custava muito caro. Reuniu, pois, o que lhe restava de uma casa, onde o padr ão de vida tinha sido dos mais altos e come çou abrindo um entreposto de madeira, ao qual anexou, como era costume ali, uma oficina de marcenaria para a fabrica ção de artigos de toda esp écie. Mas, desde o primeiro ano, foi um fracasso para meu pai, que nunca havia comerciado em sua vida e que carecia totalmente de experi ência. Teve, então, que liquidar o entreposto e limitar-se à sua oficina, especializando-se em pequenos objetos de madeira.
Quatro anos decorreram desde o primeiro desastre que meu pai havia sofrido. Mor ávamos ainda em Alexandr ópolis. Ora, nesse meio tempo, a famosa cidadela de Kars havia ca ído nas m ãos dos russos, que empreendiam ativamente a reconstrução da cidade. Abriam-se ali, assim, perspectivas interessantes e meu tio, que j á se havia instalado a í, não custou muito a convencer meu pai a transferir sua oficina para lá. Ele partiu sozinho, inicialmente; voltou, depois, para levar toda a fam ília com ele. Esta havia ainda aumentado, nos últimos anos, de "tr ês aparelhos cósmicos para a transforma ção do alimento", sob os traços de minhas tr ês irrnãs caçulas, então verdadeiramente encantadoras. 48 49 Desde nossa instala ção em Kars, meu pai me havia enviado para a escola grega. Mas, dentro em breve, conseguiu fazer com que eu entrasse no col égio russo. Como eu era bem dotado, era-me necess ário pouco tempo para preparar minhas lições e podia consagrar o resto do dia a ajudar meu pai em sua oficina. Muito depressa comecei a ter minha pr ópria clientela, recrutada, a princ ípio, entre meus camaradas de classe, para quem fabricava objetos diversos, tais como fuzis, porta-canetas, etc. Pouco a pouco, passei para um trabalho mais s ério: ia fazer toda espécie de pequenas repara ções a domicílio. Embora fosse apenas um menino, lembro-me da vida de nossa fam ília até os últimos detalhes. E, sobre esse pano de fundo, sobressai toda a grandeza da serenidade e do desapego que meu pai conservava, em todas as suas manifesta ções, diante das desgra ças que ocorriam. Posso dizê-lo, agora, com toda certeza: a despeito da luta encarni çada que travava contra os infort únios, que se abatiam sobre ele como de uma comucopia de abund ância, nem por isso deixou de conservar, em todas as circunst âncias dif íceis de sua vida, a alma de um verdadeiro poeta. Eis, na minha opini ão, a razão pela qual reinava em nossa fam ília, mesmo quando nos faltava tudo, uma extraordinária atmosfera de concórdia, de amor e de desejo de nos entreajudar. Graças à sua faculdade inata de haurir uma inspiração nos m ínimos detalhes da vida, era para todos n ós, mesmo nos momentos mais angustiantes de nossa exist ência comum, uma fonte de coragem e, ao comunicar-nos sua livre despreocupa ção, suscitava em n ós o impulso de felicidade ao qual j á aludi. Posto que falo de meu pai, n ão poderia deixar em silêncio sua maneira de encarar o que se chama "a quest ão do além". Tinha a esse respeito uma concep ção muito particular e, como sempre, muito simples. Lembro-me de ter-lhe feito, na última vez que fui vê-lo, uma dessas perguntas-tipo, com o aux ílio das quais perseguia há trinta anos uma espécie de pesquisa, junto a todas as pessoas not áveis que encontrava e que tinham adquirido em si mesmas certos dados, pr óprios a atrair a atenção consciente das outras. Pedi-lhe, não sem pr évias precauções, das quais sempre me rodeava nesses casos, que me dissesse muito simplesmente e "sem filosofar", qual a opinião que tinha formado no curso de sua vida sobre esta quest ão: o homem tem uma alma e essa alma é imortal? "Como dizer-te? respondeu. A alma que as pessoas atribuem ao homem e a qual pretendem que prossegue, depois da morte, uma existência independente e transmigra nisto não creio. E, entretanto, alguma coisa se constitui no homem no decurso de sua vida; sobre isto n ão tenho dúvida alguma. "Explico isto assim: o homem nasce com uma propriedade, gra ças à qual certas experiências elaboram nele, durante sua vida, uma subst ância definida e, a partir dessa substância, forma-se pouco a pouco essa alguma coisa que é suscetível de adquirir uma vida quase independente do corpo f ísico. "Depois da morte, essa alguma coisa n ão se decomp õe ao mesmo tempo que o corpo f ísico, mas muito mais tarde, depois que se tenha separado desse corpo. "Embora essa alguma coisa seja formada dos mesmos elementos do corpo f ísico, é de uma matéria muito mais sutil e possui, parece, uma sensibilidade muito maior, no que se refere a toda esp écie de percepções. Sua fineza de percep ção atinge, a meu ver, a de... lembras-te da
experiência que tinhas feito com Sando, aquela pobre armênia inocente?" Aludia a experiências que eu tentara, em sua presen ça, muitos anos antes, durante uma estada em Alexandr ópolis. Operando sobre pessoas pertencentes aos tipos mais diversos, eu as punha em estado de hipnose, em diversos graus, com vistas a elucidar, por mim mesmo, todos os detalhes desse fen ômeno que os s ábios hipnotizadores chamam exteriorização da sensibilidade ou transfer ência de sensa ções dolorosas à distância. Fazia-o da seguinte maneira: com uma mistura de greda, cera e limalha de chumbo fina, moldava uma figurinha rudimentar, à imagem do médium que tinha a inten ção de pôr em estado de hipnose isto é, no estado ps íquico que, segundo uma ci ência muito antiga chegada at é nós, caracteriza-se pela perda da iniciativa e que corresponde ao terceiro grau de hipnose, segundo a classifica ção da Escola de Nancy. Depois do que, esfregava cuidadosamente, com um ung üento à base de azeite e óleo de bambu, esta ou aquela parte do corpo do médium; depois, raspava este ung üento e aplicava-o sobre a parte correspondente da figurinha. Podia, então, empreender o estudo detalhado do fen ômeno que me interessava. Um fato espantara muito meu pai: se tocasse, com uma agulha, os lugares untados da figurinha, os mesmos lugares estremeciam imediatamente 50 no médium e, se espetasse com mais for ça, porejava uma gota de sangue, exatamente no local correspondente. Mas o que mais o havia chocado é que o médium, trazido de novo ao estado de vig ília, nunca se lembrava de nada e afirmava n ão ter sentido absolutamente nada. Por isso, meu pai, que tinha sido testemunha dessa experi ência, referia-se agora a ela para dizer-me: "Pois bem, da mesma maneira, essa alguma coisa reage a certas a ções circundantes e permanece sujeita à sua influência, tanto antes como depois da morte do homem, até o momento de sua desintegra ção." Como já disse, meu pai usava comigo, com vistas à minha educação, do que chamarei persegui ções sistem áticas. Uma das mais marcantes dessas persegui ções sistemáticas, de que deveria, mais tarde, sentir muito vivamente o efeito benéfico indiscutível - efeito que n ão deixaram de observar aqueles que estiveram relacionados comigo, quando de minhas expedi ções em busca da verdade, nas regiões mais desertas do globo - consistia em que, durante minha inf ância, isto é, durante esse per íodo em que se constituem, no homem, os dados para os impulsos de que dispor á no curso de sua vida respons ável, meu pai tomava, em toda ocasião propícia, as medidas necess árias para que se estabelecessem em mim, em vez desses fatores de impulsos denominados avers ão, asco, repugnância, covardia, pusilanimidade e outros, os dados correspondentes a uma atitude de indiferen ça com relação a tudo o que gera habitualmente tais impulsos. Lembro-me muito bem de como, com essa intenção, enfiava furtivamente na minha cama, uma r ã, uma minhoca, um camundongo ou algum animal, suscet ível de provocar um desses impulsos ou for çava-me a pegar, nas m ãos, serpentes não-venenosas e, até, a brincar com elas. Dentre todas essas persegui ções sistem áticas, havia uma que angustiava, de modo muito particular, os que me rodeavam - minha mãe, meu tio, minha tia e nossos velhos pastores. Consistia em me fazer sair da cama muito cedo, toda manh ã - à hora em que o sono das crian ças ainda é tão suave - para ir à fonte aspergir-me com água gelada e, a seguir, fazer com que corresse nu em p êlo. E, se tentasse opor a m ínima resistência, nunca cedia e, embora fosse muito bom e me amasse muito, n ão hesitava em castigar-me sem piedade. Quantas vezes, depois disso, lembrei-me desses momentos, para agradecer-lhe, com todo o meu ser, o que havia feito por mim. 51 Nunca teria podido, sem isso, superar as in úmeras dificuldades de minhas viagens. Levava ele uma exist ência de uma regularidade meticulosa e mostrava-se, a esse respeito, completamente impiedoso para consigo mesmo. Darei apenas um exemplo: tendo adotado como regra deitar-se cedo, a fim de empreender desde a aurora a realização do que havia decidido na v éspera, não abriu exceção
a esse hábito, nem na noite do casamento de sua pr ópria filha. Vi meu pai pela última vez em 1916. Tinha, ent ão, oitenta e dois anos e estava ainda cheio de sa úde e vigor. Mal se podia adivinhar em sua barba os primeiros fios brancos. Morreu um ano mais tarde, por ém não de morte natural. Esse evento tr ágico, tão doloroso para todos os que o conheceram e sobretudo para mim, produziu-se por ocasião da última grande psicose periódica dos homens. Quando os turcos atacaram Alexandr ópolis e nossa fam ília teve que fugir, não quis deixar sua casa à mercê da sorte e foi ferido quando tentava salvar a propriedade familiar. Morreu pouco depois e foi enterrado por anci ãos que haviam permanecido na cidade. Todas as notas manuscritas deixadas por meu pai, todos os textos de lendas e de cantos que haviam sido tomados sob seu ditado - e que teriam, a meu ver, constitu ído o mais belo memorial - perderam-se, para infelicidade de qualquer homem capaz de pensar, por ocasi ão das pilhagens repetidas de nossa casa. Entretanto, n ão é impossível que, por milagre, tenham sido conservadas, entre as coisas que deixei em Moscou, algumas centenas de cantos, registrados em rolos. Para todos aqueles que sabem ainda apreciar o antigo folclore, seria muito lament ável se esses registros n ão pudessem ser recuperados. A fim de melhor apresentar, ao olhar interior do leitor, a individualidade de meu pai e sua form a de inteligência, anotarei aqui algumas das numerosas "m áximas subjetivas", com que gostava de pontuar a conversa ção. A esse respeito, acho interessante acentuar um fato que não fai, aliás, o único a observar: cada vez que empregava uma dessas m áximas na conversa ção, parecia a todos os seus interlocutores que ela chegava no momento oportuno e n ão se poderia ter dito melhor; ao contr ário, se algum outro decidia servir-se delas, sempre soavam falso ou pareciam simples absurdos. 52 Eis algumas: 1. Sem sal, não há açúcar. 2. As cinzas s ão filhas do fogo. 3. A batina existe para esconder o imbecil. 4. Ele é baixo porque est ás no alto. 5. Se o cura vai para a direita, é claro que o mestre-escola tem que ir para a esquerda. 6. Se o homem é covarde, isto é prova de que é capaz de vontade. 7. O que sacia o homem n ão é a quantidade de alimento, é a ausência de avidez. 8. Só a verdade tem o poder de aplacar a consci ência. 9. Sem o elefante e sem o cavalo, at é o asno seria um senhor. 10. Na escuridão, o piolho é pior que um tigre. 11. Se o Eu está presente em mim, nem Deus nem o Diabo contam mais. 12. Uma vez que o tenhas posto sobre os ombros, n ão existe nada mais leve no mundo. 13. A imagem do inferno: um sapato envernizado. 14. Uma verdadeira miséria sobre a terra são as implicâncias das mulheres. 15. Nada mais tolo que um homem inteligente. 16. Feliz daquele que n ão vê sua desgraça. 17. O mestre é o grande doador de luz - quem é pois o asno? 18. O fogo aquece a água, mas a água apaga o fogo. 19. Gengis Khan foi grande, mas nosso agente de pol ícia é, se quiserem, maior ainda. 20. Se tu és o número um, tua mulher é o número dois. Mas se tua mulher é o número um, é melhor que sejas zero. Pele menos, a vida de tuas galinhas n ão correr á mais perigo. 21. Se queres ser rico - fica bem com a pol ícia. Se queres ser c élebre - fica bem com os jornalistas. Se queres ser saciado - com tua sogra. Se queres a paz - com teus vizinhos. Se queres dormir - com tua mulher. Se queres perder a f é - com teu cura. 53 Para completar esse retrato de meu pai, não me resta sen ão falar de certa tendência inerente à sua natureza,
tendência rara em nossa época e que tocava ainda mais os que o conheciam bem. Quando a mis éria o for çou a empreender um com ércio para ganhar a vida, seus neg ócios tomaram, desde o início, um aspecto t ão mau que seus pr óximos, bem como todos os que tinham que lidar com ele, vieram a consider á-lo como um homem destituído de senso pr ático ou mesmo de inteligência, nesse campo. E é um fato que os neg ócios, que meu pai empreendia para ganhar dinheiro, nunca davam certo e n ão davam nenhum dos resultados que outros poderiam ter obtido deles. Isso, entretanto, não provinha, em absoluto, de uma falta de senso pr ático, ou de capacidades mentais a esse respeito, mas dessa tend ência específica de sua natureza. Essa tendência, adquirida, provavelmente, desde sua inf ância, tê-la-ia eu formulado assim: "Repulsa instintiva à idéia de tirar proveito pessoal da ingenuidade ou do azar de outrem." Dito de outro modo, sendo um homem probo e honesto ao mais alto grau, meu pai nunca teria edificado conscientemente seu bem-estar sobre a desgra ça de seu pr óximo. Mas como à volta dele a maior parte dos homens eram representantes t ípicos da mentalidade contempor ânea, não hesitavam em tirar proveito de sua honestidade, para lesá-lo sistematicamente, procurando inconscientemente depreciar desse modo o valor desse tra ço, sobre o qual repousa o conjunto dos mandamentos de Nosso Pai Comum. Em resumo, poder-se-ia ter aplicado, de maneira ideal, a meu pai, uma m áxima que os adeptos de todas as religiões retiram hoje em dia das Sagradas Escrituras, para caracterizar, sob forma de conselho pr ático, as anomalias de nossa vida quotidiana: Bate - e não ser ás batido. Mas se não bates, todos te dar ão uma surra, como à cabra de Sidor. Embora, muitas vezes, ocorresse estar ele misturado com acontecimentos que escapam ao poder dos homens e acarretam para toda a humanidade toda esp écie de calamidades e, embora devesse quase sempre sofrer, por parte das pessoas que o rodeavam, manifesta ções sujas, lembrando estranhamente as do chacal, nunca se desencorajava e, sem se identificar com coisa alguma, permanecia interiormente livre e continuava sempre ele mesmo. 54 O fato de sua vida exterior ter sido destituída de tudo o que os que o rodeavam consideravam como riquezas, não o perturbava de modo algum. Estava pronto para aceitar tudo, desde que o p ão não faltasse e que tivesse paz nas horas que consagrava à meditação. O que mais lhe desagradava era ser perturbado, à noite, quando se sentava, do lado de fora, para olhar as estrelas. Quanto a mim, hoje só posso dizer que, de todo o meu ser, quisera eu poder ser tal como o conheci em sua velhice. Devido a diversas circunst âncias de minha vida, totalmente independentes de mim, n ão vi com meus pr óprios olhos o túmulo, no qual repousam as cinzas de meu querido pai e é pouco provável que tenha, algum dia, ocasi ão de visitá-lo. Por isso, ao terminar este capítulo dedicado a meu pai, ordeno àquele dentre meus filhos - quer seja pela carne quer pelo esp írito - que tenha a possibilidade de encontrar esse t úmulo solitário, abandonado em decorr ência de acontecimentos devidos a esse flagelo humano que se denomina "sentimento de rebanho", que erija uma l ápide com esta inscrição: EU SOU TU, TU ÉS EU, ELE É NOSSO, TODOS DOIS SOMOS SEUS. QUE TUDO SEJA PARA NOSSO PRÓXIMO. *** 3 MEU PRIMEIRO MESTRE Como já disse no capítulo anterior, meu primeiro mestre foi o Padre Borsh. Ent ão arcipreste da igreja militar de Kars, era a mais alta autoridade espiritual de toda essa região recentemente conquistada pelos russos.
Foi devido a uma s érie de circunstâncias completamente acidentais, que ele se tornou para mim um fator constitutivo da base secund ária de minha individualidade atual. Eu estudava no col égio de Kars. Um dia vieram recrutar, entre os alunos do colégio, cantores para o coro da igreja militar, e como tinha então boa voz, fiz parte do número das crianças escolhidas. A partir desse momento, ia freq üentemente à igreja para cantar ou para me exercitar. O arcipreste, um belo ancião, interessou-se por nosso pequeno grupo; as melodias dos diversos c ânticos sacros, que o coro devia executar durante o ano, eram de sua autoria e vinha freqüentemente ouvi-los. Como amava as crian ças, era muito afetuoso conosco, os pequenos cantores. Bem depressa testemunhou-me uma benevol ência toda particular; talvez devido à minha voz, muito not ável para uma criança e que, mesmo num grande coro, destacava-se nitidamente quando cantava a segunda voz - ou talvez, porque eu era muito travesso e ele gostasse desses "moleques malandros". Fosse o que fosse, dedicou-me um interesse cada vez maior e, dentro em pouco, come çou até a ajudar-me a preparar minhas lições para a escola. Perto do fim do ano, fui atingido de tracoma e fiquei uma semana inteira sem ir à igreja. O Padre soube disso e veio à nossa casa, acompanhado de dois m édicos oculistas do exército. Estes, depois de me haverem examinado, decidiram enviar-me um enfermeiro para 56 fazer, duas vezes ao dia, cauteriza ções com sulfato de cobre e, a cada tr ês horas, aplicações de pomada amarela; depois foram-se embora. Nesse dia, meu pai estava em casa. O velho padre e ele - esses dois homens que haviam vivido, at é à velhice, uma vida relativamente normal e tinham quase as mesmas convic ções, embora tivessem sido preparados para a idade respons ável em condições muito diferentes - falaram-se então pela primeira vez. Desde esse instante, gostaram um do outro e, depois disto, o velho padre veio freq üentemente ver meu pai. Sentavam-se, no fundo da oficina, sobre um monte de aparas, bebiam caf é preparado no local por meu pai e falavam, durante horas a fio, sobre toda esp écie de assuntos religiosos e hist óricos. Lembro-me de que o padre se animava particularmente quando meu pai falava da Ass íria, cuja história conhecia muito bem e pela qual, nessa época, o Padre Borsh tamb ém se interessava vivamente. O Padre Borsh tinha ent ão cerca de setenta anos. Alto, magro, com um belo rosto, era de sa úde delicada, mas de espírito firme e robusto. A profundeza e amplitude de seus conhecimentos eram pouco comuns. Em sua vida, como em suas id éias, diferia totalmente dos que o rodeavam; por isso, era considerado um original. E, em verdade, sua maneira de viver podia justificar tal opini ão. Por exemplo, dispunha de excelentes possibilidades materiais, recebia emolumentos muito grandes e tinha direito a um apartamento especial e, no entanto, s ó ocupava um único quarto com uma cozinha, na casinha do zelador da igreja. Enquanto isso, seus assistentes-padres, cujos emolumentos eram muito menos elevados que os seus - viviam em apartamentos de seis a dez c ômodos, com todo o conforto. Levava uma exist ência muito retirada, freq üentava poucas pessoas e n ão fazia nenhuma visita. Seu quarto n ão era aberto a ninguém, exceto a mim e a seu ordenan ça que, aliás, não tinha o direito de ali entrar em sua ausência. Cumprindo estritamente suas obriga ções, o Padre Borsh dedicava todo o seu tempo livre à ciência, sobretudo à astronomia e à química. Às vezes, para descansar, tocava música; tocava violino ou compunha c ânticos, muitos dos que se tornaram célebres na Rússia. Muitos anos depois, tive at é ocasião de ouvir, na vitrola, alguns deles, compostos em minha presen ça, tais como Ao teu chamado Senhor, Doce Luz, Gl ória a Ti, etc. 57 O padre vinha freqüentemente visitar meu pai, de prefer ência à noite, quando ambos estavam liberados de suas obrigações. Para não "induzir os outros em tentação", como dizia, tratava de fazer com que suas visitas passassem despercebidas, pois ocupava na cidade uma situa ção eminente e quase todo mundo o conhecia de vista, ao passo que meu pai era apenas um simples marceneiro. Durante uma das conversas que tiveram lugar em minha presen ça, na oficina de meu pai, o Padre Borsh p ôs-se a falar de mim e de meus estudos. Disse que me considerava um menino particularmente bem dotado e achava insensato deixar-me mofando na
escola, durante oito anos, para depois disto receber um certificado de terceira. De fato, as escolas municipais estavam organizadas ent ão de maneira absurda. Comportavam oito divis ões e, em cada uma delas, era-se obrigado a permanecer um ano inteiro, para ao final dos estudos receber um certificado equivalente apenas ao terceiro ano de um liceu de sete classes. Por isso, o Padre Borsh aconselhou vivamente meu pai a retirar-me da escola e a fazer-me estudar em casa, prometendo encarregar-se ele pr óprio de uma parte das aulas. Afirmou que, se eu mais tarde t ivesse necessidade de um certificado, s ó teria que prestar o exame para uma classe correspondente, em qualquer liceu. Depois de um conselho de fam ília, foi essa a decis ão. Deixei a escola e o Padre Borsh dirigiu minha instru ção. Ele pr óprio se ocupou de mim para certas mat érias e, para o resto, recorreu a outros professores. No início, meus mestres foram dois seminaristas, Ponomerenko e Krestovsky que, ap ós terem terminado os estudos no Seminário Teológico, tinham sido agregados à igreja, na qualidade de sacrist ães, enquanto esperavam sua nomea ção para capelães militares. O doutor Sokolov também me dava aulas. Ponomerenko ensinava-me geografia e hist ória, Krestovsky catecismo e língua russa, Sokolov anatomia e fisiologia; quanto à matemática e às outras matérias, o pr óprio Padre Borsh mas ensinava. Tinha-me posto ao trabalho com ardor. Era muito bem dotado e aprendia com facilidade; entretanto, mal encontrava tempo para preparar minhas numerosas lições e não tinha um minuto de liberdade. 58 59 O que me tomava mais tempo eram as idas e vindas, pois ia da casa de um à casa de outro de meus professores, que moravam em bairros diferentes. Sokolov, principalmente, morava muito longe, no hospital militar do Forte Chakmak, a quatro ou cinco quil ômetros da cidade. Minha família havia-me destinado, inicialmente, ao sacerd ócio; mas o Padre Borsh tinha uma concepção muito particular do que devia ser um verdadeiro padre. De acordo com essa concep ção, o padre devia, n ão somente se ocupar da alma de suas ovelhas, mas tamb ém conhecer todas as enfermidades de seu corpo e saber trat á-las. Segundo ele, as obriga ções do padre iam de par com as do m édico. Um m édico que não pode penetrar a alma do paciente é incapaz, dizia, de ajudá-lo realmente; do mesmo modo, não se pode ser um bom padre, sem ser ao mesmo tempo m édico, pois o corpo e a alma est ão ligados e muitas vezes n ão se pode curar um deles, porque a causa do mal reside no outro. Era de opinião de fazer-me seguir estudos de medicina, não no sentido habitual dessa express ão, mas como ele pr óprio o compreendia, isto é, com vistas a ser m édico do corpo e sacerdote da alma. Diga-se, de passagem, que me sentia atra ído para um caminho totalmente diferente. Desde a mais tenra inf ância, gostava de fabricar toda esp écie de coisas e sonhava com uma especialidade t écnica. Como não se havia ainda decidido, de modo definitivo, em que dire ção me engajaria, preparava-me ao mesmo tempo para ser m édico e para tornar-me padre, tanto mais que certas matérias eram-me indispensáveis nos dois casos. A seguir, as coisas continuaram por si m esmas e, graças à minha facilidade, encontrei o meio de ir simultaneamente nas duas direções. Tinha até tempo de ler, a respeito de assuntos diversos, um monte de livros que o padre me dava ou que me ca íam por acaso nas m ãos. O Padre Borsh fez-me trabalhar intensamente em todos os ramos que havia tomado a si ensinar-me. Retinha-me, freqüentemente, em sua casa, depois da aula, para tomar chá e pedia-me, às vezes, que cantasse algum c ântico novo de sua autoria, a fim de verificar as vozes. Durante essas longas horas, entretinha-se livremente comigo, sobre mat érias que acabávamos de estudar ou, ainda, sobre quest ões abstratas e, pouco a pouco, nossas relações se tornaram tais que me falava como a um igual. Habituei-me muito depressa a ele e a timidez, que inicialmente havia sentido em sua presen ça, desapareceu. Embora conservando por ele grande respeito, esquecia-me, às vezes, a ponto de discutir com ele, o que, compreendo-o agora, longe de
ofendê-lo, muito ao contr ário, lhe agradava. Nas conversas que tinha comigo, abordava freq üentemente o problema sexual. Disse-me um dia, a propósito do prazer sexual: "Se um adolescente satisfaz sua concupisc ência, ainda que uma s ó vez, antes de sua maioridade, acontecer-lhe-á o mesmo que ao Esa ú da história, que por um prato de lentilhas, vendeu seu direito de primogenitura, isto é, o bem de toda a sua vida. Pois, se o adolescente sucumbir uma única vez a essa tenta ção, perder á para o resto da vida a possibilidade de ser realmente um homem digno de estima. "Satisfazer sua concupisc ência, antes da maioridade, tem o mesmo efeito que derramar álcool dentro do mosto de Mollavaly 1. 1. Mollavaly é uma pequena localidade ao sul de Kars, onde se faz um vinho especial. "Do mesmo modo que o mosto, no qual se derramou ainda que seja uma gota de álcool, só se pode tornar vinagre, a satisfação da concupisc ência, antes da maioridade, torna o adolescente, sob todos os aspectos, uma esp écie de monstro. Quando o adolescente se torna adulto, pode fazer tudo o que bem lhe parece, assim como o mosto, tornado vinho, pode suportar qualquer dose de álcool: não somente isso não o estragar á, mas poder á titular quantos graus se quiser." O Padre Borsh tinha do mundo e do homem uma concep ção muito original. Seus pontos de vista, a respeito do homem e do sentido de sua exist ência, diferiam totalmente das concep ções dos que o rodeavam, bem como de tudo o que pude ouvir ou ler a esse respeito. Citarei ainda alguns de seus pensamentos, que poder ão ilustrar o que era sua compreensão do homem e do que dele é exigido. Dizia: "Até sua maioridade, o homem n ão é responsável por nenhuma de suas a ções, boas ou m ás, voluntárias ou involuntárias; delas só são responsáveis aqueles, dentre seus pr óximos, que assumiram, conscientemente ou pela for ça de circunst âncias acidentais, a obrigação de prepar á-lo para uma vida adulta. "Os anos da juventude s ão para todo ser humano, do sexo masculino ou feminino, o per íodo concedido para desenvolver, até a completa maturação, o germe concebido no seio materno. 60 "A partir desse momento, isto é, desde que se completou esse desenvolvimento, o homem torna-se pessoalmente respons ável por todas as suas manifesta ções voluntárias e involuntárias. "Segundo as leis da Natureza, descobertas e verificadas no decurso de longos s éculos de observação por homens de razão pura, esse desenvolvimento termina, para os seres do sexo masculino, entre vinte e vinte e tr ês anos e para os seres do sexo feminino, entre quinze e dezenove anos, segundo as condi ções geogr áficas do local de seu nascimento e de sua forma ção. "Como o haviam reconhecido os homens s ábios das épocas passadas, esse prazo foi fixado pela Natureza, de conformidade com as leis, para a aquisi ção de um ser independente, dotado de responsabilidade pessoal para com todas as suas manifesta ções. Infelizmente, hoje em dia, não se leva mais isto em conta e, a meu ver, isto prov ém, principalmente, da negligência que se evidencia na educa ção atual, com relação ao problema sexual, que nem por isso deixa de desempenhar o papel mais importante, na vida de cada um. "Em matéria de responsabilidade, a maioria dos homens contempor âneos, que atingiram ou mesmo ultrapassaram um pouco sua maioridade pode, por estranho que pare ça à primeira vista, não ser responsável por nenhuma de suas manifesta ções; isso, a meu ver, pode ali ás ser considerado perfeitamente conforme às leis. "Uma das causas principais de tal absurdo é que, nessa idade, na maioria dos casos, os homens contempor âneos estão privados do ser correspondente de sexo contr ário, que deve necessariamente completar seu tipo, o qual, por raz ões independentes deles, mas procedentes das grandes leis, representa por si mesmo algo n ão-inteiro. "Nessa idade, o homem que n ão tem perto de si um tipo correspondente, de sexo contr ário, para completar o seu tipo, nem por isso deixa de permanecer sujeito às leis da Natureza e n ão pode ficar, por mais tempo, sem satisfazer sua necessidade sexual. Entrando, ent ão, em
contato com um tipo n ão correspondente ao seu, cai at é certo ponto, segundo a lei de polaridade, sob a influ ência desse tipo n ão correspondente e perde involuntariamente e sem se dar conta, quase todas as manifesta ções essenciais de sua individualidade. "Eis por que é absolutamente necess ário que todo homem tenha perto dele, no processo de sua vida responsável, um ser de sexo contr ário, de tipo correspondente, para que se completem mutuamente sob todos os aspectos. 61 "Essa necessidade imperiosa foi, ali ás, muito bem reconhecida, em quase todas as épocas, por nossos remotos ancestrais que, em sua previd ência, consideravam que sua tarefa mais importante, para criar condições de vida coletiva mais ou menos normal, era a de chegar a escolher para cada um, de maneira t ão exata e tão perfeita quanto poss ível, o tipo correspondente de sexo oposto. "A maioria dos povos antigos tinha, at é, por costume, fazer essa escolha com vistas a uma uni ão entre os sexos ou, como ainda se dizia, esses "noivados", assim que o menino atingia sete anos e a menina um ano. A partir desse momento, as duas fam ílias dos futuros esposos, tão cedo noivos, eram obrigados a ajudar-se mutuamente para fazer com que todos os h ábitos inculcados nas crian ças, durante seu crescimento, as suas tend ências, as suas inclinações e seus gostos, se correspondessem." Lembro-me, igualmente, muito bem dessas palavras do velho padre: "Para que um homem seja verdadeiramente um homem na sua maioridade e n ão um zero à esquerda, sua educação deve ser rigorosamente fundamentada nos dez princ ípios seguintes, que devem ser-lhe inculcados desde a mais tenra idade: 1. A espera de um castigo para qualquer desobedi ência. 2. A esperança de receber uma recompensa, s ó se for merecida. 3. O amor a Deus - mas a indiferen ça para com os santos. 4. Os remorsos de consci ência, pelos maus tratos infligidos aos animais. 5. O temor de magoar seus pais e educadores. 6. A impossibilidade em relação aos diabos, serpentes e camundongos. 7. A alegria de contentar-se com o que se tem. 8. O pesar de haver perdido a benevol ência dos outros. 9. A paciência de suportar a dor e a fome 10. O desejo de ganhar seu pão o mais depressa poss ível." Para minha profunda aflição, não me foi dado assistir ao fim desse homem t ão digno e tão extraordinário para nosso tempo e n ão pude cumprir os últimos deveres para com a vida terrestre de meu segundo pai - meu inesquec ível mestre. 62 Muito tempo depois de sua morte, os padres e paroquianos da igreja de Kars ficaram muito espantados e intrigados quando, certo domingo, um desconhecido veio pedir-lhes para celebrar um serviço f únebre sobre um túmulo solitário e esquecido - o único perto da igreja. Viram a seguir esse estranho, retendo a custo as l ágrimas, agradecer generosamente os oficiantes e, sem olhar para ningu ém, ordenar a seu cocheiro que o conduzisse à estação. Repousa em paz, querido mestre! N ão sei se justifiquei, nem se justifico hoje, teus sonhos, mas os mandamentos que me deste, nem uma s ó vez, em toda a minha vida, os traí. *** 4 BOGATCHEVSKY Bogatchevsky, ou Padre Evlissi, ainda est á vivo. Tem ele a felicidade de ser assistente do superior, num mosteiro dos Irmãos Essênios, não longe das margens do mar Morto. De acordo com certas conjecturas, essa ordem foi fundada mil e duzentos anos antes de Jesus Cristo. Diz-se que foi nessa confraria que Jesus recebeu sua primeira iniciação. Quando travei conhecimento com Bogatchevsky, ou Padre Evlissi, era ele ainda muito jovem. Acabava de
terminar os estudos na Academia russa de teologia e, enquanto esperava a ordena ção, era mestrecantor na Catedral da fortaleza de Kars. A pedido de meu primeiro m estre, o Padre Borsh, consentiu, desde sua chegada, em substituir junto a mim um de meus professores, Krestovsky, tamb ém jovem seminarista, que havia sido nomeado, algumas semanas antes, para um cargo de capel ão na Polônia e a quem Bogatchevsky havia sucedido na Catedral. Bogatchevsky revelou-se homem soci ável e bom; bem depressa conquistou a simpatia de todo o clero, at é mesmo a do candidato-padre Ponomerenko, homem rude e desbocado, que não se entendia com ningu ém. Bogatchevsky entendeu-se t ão bem com ele, que acabaram morando no mesmo apartamento, perto do jardim p úblico, ao lado do quartel dos bombeiros. Embora fosse ainda muito jovem, nessa época, de pronto se estabeleceram rela ções quase de camaradagem entre mim e Bogatchevsky. Ia à sua casa nas minhas horas livres. Ia, tamb ém, para minhas aulas, à noite, depois do jantar e, freqüentemente, terminada a aula, ali ficava para fazer meus deveres ou para escutar as conversas que tinha com Ponomerenko e com os numerosos amigos que vinham visit á-lo. 64 Às vezes, at é os ajudava a executar algumas pequenas tarefas dom ésticas. Entre os costumeiros, havia um engenheiro militar, certo Vseslavsky, compatriota de Bogatchevsky, e Kouzmin, oficial de artilharia e perito pirotécnico. Sentados em volta do samovar, discutiam sobre toda esp écie de coisas. Eu seguia sempre, com muita aten ção, as conversas de Bogatchevsky e de seus amigos, pois, lendo nessa época muitos livros sobre os mais variados assuntos, em grego, armênio e russo, interessava-me por muitas quest ões; devido à minha pouca idade, por ém, é claro que nunca me intrometia na conversa. A opinião desses homens tinha autoridade para mim, pois mostrava ent ão o maior respeito àqueles que haviam feito estudos superiores. Foi, aliás, sob o impulso de todas essas conversas e discuss ões entre os que se reuniam, em casa de meu mestre Bogatchevsky, para matar o tempo e encher a vida mon ótona dessa longínqua e aborrecida cidade de Kars, que meu interesse pelas quest ões abstratas despertou. Como esse interesse representou grande papel em minha vida e marcou toda a minha exist ência ulterior e como os eventos que o estimularam ocorreram na época à qual se referem minhas lembranças de Bogatchevsky, deter-me-ei mais longamente sobre esse assunto. Isso começou, um dia, no curso de uma conversa ção. Falavam animadamente sobre o espiritismo e as mesas que giram, quest ões que apaixonavam todo mundo nessa época. O engenheiro militar afirmava que esses fen ômenos eram obra dos esp íritos. Os outros contestavam, explicando a coisa por outras for ças da natureza: o magnetismo, a for ça de atração, a auto-sugest ão e assim por diante - mas ningu ém negava a evid ência do fato. Como de hábito, segui atentamente a discuss ão; cada opinião interessava-me no mais alto grau. Já havia lido muitos livros "sobre tudo e qualquer coisa"; era, por ém, a primeira vez que ouvia falar sobre esse assunto. Essa conversa sobre o espiritismo produziu em mim uma impress ão ainda mais forte, porque minha irm ã preferida acabava de falecer e minha dor nada havia perdido de sua agudez. Pensava nela com freqüência e o problema da morte, tanto quanto o da vida al ém-túmulo, impunha-se ao meu espírito por bem ou por mal. Eis por que tudo o que se dizia, nessa noite, parecia responder aos 65 pensamentos e às perguntas que haviam inconscientemente germinado em mim e exigiam uma solu ção. O resultado da discuss ão deles foi que decidiram fazer uma experi ência com uma mesa. Para isso, era necess ária uma mesa de tr ês pés. Havia uma, num canto, mas o engenheiro militar, especialista no assunto, recusou-a porque tinha muitos pregos e porque, como nos explicou, a mesa n ão devia ter traço algum de ferro. Enviaram-me à casa do vizinho, um fot ógrafo, para perguntar-lhe se teria uma mesa desse gênero. Ele tinha uma e eu a trouxe. Era de noite. Após haver fechado as portas e diminu ído a luz, sentamo-nos todos e, ent ão, tendo colocado as mãos sobre a mesa de modo determinado, esperamos. Ao cabo de vinte minutos, nossa mesa come çou realmente a mover-se e à pergunta do engenheiro "Que idade
tem Fulano?" respondeu, dando certo n úmero de batidas com um dos pés. Como e por que batia, n ão o compreendia; nem mesmo procurei explic á-lo para mim, de tal modo estava sob a impress ão de que um imenso campo desconhecido se descortinava diante de mim. E o que ouvi e vi transtornou-me tão profundamente que, de volta a casa, refleti sobre isso durante toda a noite e toda a manhã do dia seguinte. Resolvi até falar a respeito com o Padre, durante a aula e contei-lhe a conversa ção e a experiência da véspera. "Tudo isso é absurdo, respondeu meu primeiro mestre, n ão deves pensar nessas coisas, nem te ocupar com elas e sim estudar o que te é indispensável saber para levar uma existência suportável." E não pôde impedir-se de acrescentar: "Vejamos, cabecinha de alho (era sua express ão favorita), reflete um instante: se os espíritos pudessem realmente bater, servindo-se de um pé de mesa, isto significaria que possuem certa for ça f ísica e, se assim fosse, por que ser-lhes-ia necess ário recorrer a um meio tão tolo e, ao mesmo tempo, tão complicado, para comunicar-se com os homens? Poderiam, com a mesma facilidade, transmitir o que quisessem dizer, por meio de um contato ou por qualquer outro meio ..." Por mais que apreciasse a opini ão de meu velho mestre, n ão podia aceitar, sem cr ítica, sua resposta categ órica, tanto mais que me parecia que meu jovem professor e seus amigos, provindos da Academia " e de outras escolas superiores, bem que podiam conhecer certos fatos 66 67 melhor do que esse homem idoso, cujos estudos datavam de uma época em que a ci ência estava muito menos desenvolvida. Por isso, apesar de todo o respeito que tinha pelo anci ão, conservei alguma dúvida quanto à sua maneira de encarar certos problemas relativos a assuntos elevados. De forma que a quest ão ficou sem resposta para mim. Tratei de resolvê-la com o aux ílio dos livros que Bogatchevsky, o Padre Borsh e outros me emprestavam. Mas, como meus estudos n ão me permitiam deter-me longamente sobre -um assunto que lhes fosse estranho, acabei por esquecer essa quest ão e deixei de pensar nela. O tempo passava. Meu trabalho, com meus diferentes mestres e com Bogatchevsky, tornava-se mais intenso. Só de quando em vez, nos dias de festa, ia ver meu tio em Alexandr ópolis, onde tinha muitos camaradas. Ia ali, tamb ém, para ganhar algum dinheiro, pois tinha sempre necessidade dele, tanto para minhas despesas pessoais - roupas, livros, etc. - como para ocasionalmente ajudar este ou aquele membro de minha fam ília que estivesse apertado. Se ia trabalhar em Alexandr ópolis, é porque todos me conheciam ali como "rematado mestre na arte de fazer tudo" e, ora um ora outro, me chamava para fabricar ou consertar alguma coisa: para um, era necess ário reparar uma fechadura; para outro, um relógio; para um terceiro entalhar, numa pedra da região, um fogareiro de forma particular, bordar uma almofada destinada a um enxoval ou à decoração de um sal ão. Em resumo, tinha uma vasta clientela e encontrava sempre trabalho suficiente, bastante bem pago para a época. Em Kars, ao contr ário, freqüentava pessoas que, na minha jovem compreensão, eu considerava "homens de ci ência" ou membros da "alta sociedade" e n ão queria ser considerado por eles um artesão, nem deixar que suspeitassem que minha fam ília estava na pen úria e que era for çado a ganhar minha vida como um simples oper ário. Tudo isso feria então, profundamente, meu amor pr óprio. Assim, pois, nesse ano, parti na Páscoa, como de h ábito, para Alexandr ópolis, a uma centena de quil ômetros de Kars, para a casa de meu tio, a quem era muito apegado e de quem sempre tinha sido o favorito. No dia seguinte à minha chegada, durante o almo ço, minha tia me disse: "Escuta, presta bem atenção para que não te aconteça nada." Fiquei surpreendido. Que me poderia acontecer? Perguntei-lhe o que queria dizer. "Não creio nisto, disse-me ela, sen ão pela metade, mas como uma coisa que me haviam predito para ti aconteceu, receio que o resto tamb ém aconteça." E contou-me o seguinte: No início do inverno, como todos os anos, Eung-Ashokh Mardiross passara por Alexandr ópolis; minha tia havia
tido a idéia de mandar chamá-lo e havia-lhe pedido para predizer meu futuro. Havia ele anunciado muitas coisas que me esperavam; algumas, pensava ela, j á se tinham realizado e, de fato, indicou-me várias que já haviam ocorrido desde então. "Graças a Deus, entretanto - continuou ela - há duas coisas que ainda n ão te aconteceram. Predissera ele que terias uma chaga do lado direito e que, dentro em breve, serias vítima de um grave acidente devido a arma de fogo. "Assim, presta bem atenção em qualquer lugar em que estejam atirando", concluiu minha tia, afirmando-me n ão acreditar nesse louco, mas ser prefer ível, apesar de tudo, ser muito prudente. Quanto a mim, fiquei muito surpreendido com o que me contou, pois dois meses antes havia, de fato, tido um fur únculo no lado direito, o qual precisara tratar por várias semanas, indo quase todos os dias fazer curativos no hospital militar. N ão havia, por ém, falado disso a ninguém, nem mesmo aos meus e, por conseguinte, minha tia, que vivia longe, n ão podia ter sabido do fato. Entretanto, não dei importância particular a esse relato, porque não acreditava, nem um pouco, nesses adivinhos e não tardei em esquecer a predição. Tinha, em Alexandr ópolis, um amigo chamado Fatinov. Este tinha um camarada, certo Gorbakune, filho do comandante de um regimento de Baku, instalado nos sub úrbios gregos da cidade. Cerca de uma semana depois do relato de minha tia, Fatinov veio procurar-me e propôs-me que o acompanhasse, bem como a seu camarada, à caça de patos selvagens. Contavam ir até ao lago Alagheuz, situado numa das vertentes da montanha do mesmo nome. Concordei, pensando ser uma boa ocasi ão para descansar, pois me cansara realmente muito, ultimamente, estudando livros de patologia nervosa que me apaixonavam. 68 Ademais, desde a mais tenra inf ância, sempre gostara muito de caçar. Ainda não tinha senão seis anos quando um dia, sem pedir licença, tomei do fuzil de meu pai e fui caçar pardais. O primeiro tiro me derrubou; isto não me desencorajou, ao contr ário, só fez aumentar meu ardor. É claro que, de pronto, me tomaram o fuzil e penduraram-no de maneira que não pudesse alcan çá-lo. Bem depressa por ém, fabriquei um outro, com cartuchos velhos, aos quais adaptei os cilindros de papel ão de minha pequena carabina. com esse fuzil, carregado com cartucho de chumbo, acertava t ão bem no alvo quanto com um verdadeiro fuzil. Fez ele tanto sucesso, entre meus camaradas, que todos me encomendaram semelhantes e, ao mesmo tempo que passava por ótimo armeiro, ganhei uma boa soma. Assim, pois, dois dias mais tarde, Fat inov e seu amigo vieram buscar -me e fomos caçar. Dever íamos percorrer a pé umas vinte milhas; foi necessário iniciarmos a caminhada desde a aurora, a fim de chegarmos nesta mesma noite, sem nos apressarmos e poder, na manhã seguinte bem cedo, espreitar o primeiro vôo dos patos. Éramos quatro, pois um soldado, ordenança do comandante Gorbakune, havia-se reunido a n ós. Tínhamos todos armas e Gorbakune tinha at é um fuzil do exército. Chegados ao lago, acendemos o fogo e, depois do jantar, constru ímos uma cabana e nos deitamos. De pé antes da aurora, cada um escolheu seu setor à beira do lago e esperamos. À minha esquerda estava Gorbakune; atirou sobre o primeiro pato, enquanto ainda voava muito baixo e a bala atingiu-me em cheio na perna. Felizmente, atravessou a carne, não atingindo o osso. Naturalmente, toda a caçada ficou estragada. Minha perna sangrava muito, come çava a doer e meus camaradas tiveram que me carregar durante todo o percurso sobre uma maça feita com nossos fuzis, pois n ão estava em condi ções de andar. Em casa, a ferida fechou rapidamente, só tendo sido atingido os m úsculos. Manquei, por ém, durante muito tempo. A coincidência desse acidente com a predi ção do or áculo local fez-me refletir muito e, quando de outra estada em casa de meu tio, tendo ouvido dizer que Eung-Ashokh Mardiross estava novamente naquelas paragens, pedi a minha tia que o convidasse - o que ela fez. 69 O adivinho era um indivíduo magro, de grande porte, de olhos mortiços, cujos movimentos nervosos e desordenados eram os de um atoleimado. Era, às vezes, tomado de
estremecimentos e fumava sem parar. Era, sem d úvida alguma, um homem doente. A sessão decorria assim: Sentado entre duas velas acesas, colocava o polegar diante dos olhos e se fixava sobre a unha at é cair numa espécie de sonolência. Punha-se então a dizer o que via na sua unha; falava, de in ício, das roupas que a pessoa trajava, depois anunciava o que a esperava no futuro. Se predizia o futuro de um ausente, perguntava primeiro seu nome, pedia que lhe descrevessem seu rosto em detalhe e depois, que lhe indicassem a dire ção aproximada do lugar onde vivia e, se poss ível, sua idade. Ainda, desta vez, leu meu futuro. Contarei um dia como suas predi ções se realizaram. Nesse ver ão, fui testemunha, em Alexandr ópolis, de outro evento, para o qual n ão pude encontrar explica ção alguma. Em frente da casa de meu tio, havia um terreno baldio, no meio do qual erguia-se um pequeno bosque de alamos. Gostava desse local e, freq üentemente, ia sentar-me ali com um livro ou um trabalho qualquer. Sempre brincando, ali, viam-se garotos vindos de todos os bairros pr óximos. Formavam uma horda heter óclita e variegada: havia ali arm ênios, gregos, curdos, t ártaros, que faziam uma algazarra incr ível; mas isto nunca me impedia de trabalhar. Nesse dia, estava sentado sob os alamos, com um trabalho que um vizinho me encomendara. Tratava-se de desenhar sobre um escudo - que ele queria pendurar no dia seguinte sobre a porta de sua casa, por ocasi ão do casamento de sua sobrinha - as iniciais entrela çadas dos jovens nubentes. Além das iniciais, devia inscrever o dia e o ano sobre o escudo. Certas impressões fortes gravam-se profundamente na mem ória. Lembro-me ainda de até que ponto quebrei a cabeça para melhor dispor os n úmeros do ano de 1888. Estava mergulhado no meu trabalho quando, de repente, ecoou um grito horr ível. Pus-me de pé num salto, convencido de que sucedera um acidente com uma das crian ças. 70 Corri e vi o seguinte quadro: No centro de um c írculo, traçado no chão, um garoto soluçava fazendo estranhos movimentos, enquanto os outros, que se mantinham a certa dist ância, riam e troçavam dele. Eu não compreendia nada do que se passava. Perguntei o que ocorria. Disseram-me que o menino pertencia à seita dos iezidas; haviam traçado um círculo ao seu redor e dele não poderia sair, enquanto n ão o houvessem apagado. A criança tentava verdadeiramente, com todas as for ças, sair do c írculo encantado, mas, por mais que se debatesse, não o conseguia. Correndo até ele, apaguei vivamente uma parte do círculo. De pronto, o garoto deu um pulo e fugiu a toda pressa. Estava tão atônito, que fiquei pregado no lugar, na mesma posição, como que enfeitiçado, até que minha capacidade normal de pensar finalmente me voltasse. Já tinha ouvido falar dos iezidas, mas meu pensamento nunca se detivera neles. O evento que acabava de se desenrolar sob meus olhos e que tanto me havia espantado, for çava-me agora a refletir seriamente sobre isso. Olhei à minha volta e vi que os meninos haviam retornado a seus jogos. Voltei ao meu lugar, repleto de meus pensamentos e pus-me novamente a desenhar as iniciais. O trabalho não andava mais e, no entanto, era necess ário terminá-lo a qualquer custo. Os iezidas constituem uma seita que vive na Transcaucasia, principalmente nos arredores do Ararat. S ão chamados, às vezes, Adoradores do Diabo. Muitos anos depois do incidente que havia testemunhado, pude verificar essa esp écie de fenômeno e constatar que, efetivamente, se se traça um círculo em torno de um iezida, este n ão pode sair dele por sua pr ópria vontade. Dentro dele, pode mover-se livremente. Quanto maior o c írculo, maior a superf ície onde lhe é possível deslocar-se, mas quanto a transpor a linha, n ão é capaz de fazê-lo: uma for ça estranha, fora de propor ção com sua for ça normal, o retém prisioneiro. Mesmo eu, que sou forte, n ão podia fazer sair do c írculo uma mulher fr ágil; era-me necessária também a ajuda de outro homem tão vigoroso quanto eu. 71
Se se obriga um iezida a transpor essa linha, ele cai logo no estado que se denomina catalepsia, o qual cessa no mesmo instante em que o trazem novamente para o interior do círculo. Uma vez caído em catalepsia, um iezida que foi retirado do círculo só volta ao estado normal ao fim de treze ou de vinte e uma horas. Não há nenhum outro meio de fazê-lo voltar ao estado normal; em todo caso, nem eu nem meus camaradas podíamos fazê-lo e, no entanto, dominávamos a fundo, ent ão, todos os m étodos conhecidos da ci ência hipnótica contempor ânea para tirar um homem do estado de catalepsia. Só seus sacerdotes podiam faz ê-lo, por meio de breves encantações. Na mesma noite, tendo terminado mais ou menos bem as iniciais e entregue o escudo a meu cliente, fui ao bairro russo, onde morava a maioria dos meus amigos e conhecidos, com a esperança de que pudessem me ajudar a decifrar esse estranho fen ômeno. Era no bairro russo de Alexandr ópolis que vivia a intelectualidade local. É preciso dizer que, desde a idade de oito anos, tanto em Alexandr ópolis como em Kars, devido às circunstâncias, eu tinha sido levado a freq üentar camaradas muito mais velhos do que eu, pertencentes a fam ílias cuja situação social era considerada superior à de meus pais. No bairro grego de Alexandr ópolis, onde inicialmente vivera minha fam ília, não tinha nenhum camarada. Todos os meus amigos viviam do outro lado da cidade, no bairro russo; eram filhos de oficiais, de funcionários e de eclesi ásticos. Ia vê-los com freqüência e, uma vez apresentado a suas fam ílias, tive acesso a quase todas as casas desse bairro. Lembro-me de que o primeiro amigo com o qual falei desse fenômeno, que me havia deixado t ão estupefato, foi certo Ananiev, um bom camarada, tamb ém muito mais velho do que eu. Nem me escutou at é o final e declarou com autoridade: "Esses garotos simplesmente se riram à tua custa, fizeram uma goza ção contigo e pronto. Mas olha s ó esta maravilha!..." Correu ao seu quarto e voltou logo, vestindo enquanto andava, a t única de seu novo uniforme: acabava de ser admitido como empregado dos Correios e Telégrafos. Convidou-me, depois, para acompanh á-lo ao jardim público. Recusei, pretextando falta de tempo e deixei-o, bem depressa, para ir à casa de Pavlov, que morava na mesma rua. 72 Era um bom rapaz, mas grande beberr ão. Era empregado do Tesouro. Encontrei em sua casa o Padre Maxime, diácono da igreja da fortaleza, um funcionário do Arsenal, Artemine, o capitão Terentiev, o mestre-escola Stolmakh e dois outros ainda, que conhecia pouco. Estavam bebendo vodca e, assim que entrei, fizeram-me sentar e convidaram-me a tomar um copo. É preciso dizer que, nesse ano, j á havia começado a beber, não muito, é verdade, e nunca recusava um trago quando me era oferecido. Havia começado isso em Kars, nas seguintes circunst âncias: uma manhã, em que ca ía de cansaço, por haver estudado minhas li ções durante a noite toda, estava quase me deitando, quando um soldado veio me buscar para ir à catedral. Não me lembro mais em honra de quem devia ser celebrada uma cerim ônia religiosa nesse dia, num dos fortes. À última hora, haviam decidido celebr á-la com coros e tinham enviado estafetas e ordenan ças por toda a cidade a fim de procurar cantores. Como não tinha dormido a noite toda, a subida íngreme para chegar ao forte e a pr ópria cerimônia cansaram-me a tal ponto que mal me sustinha nas pernas. Terminada a cerimônia, foi servida uma refeição no forte para os convidados e fora reservada para os coristas uma mesa. O chantre, bom-copo, vendo como eu estava enfraquecido, persuadiu-me a tomar um copinho de vodca. Depois de tom á-lo, senti-me melhor e, após o segundo copo, toda a minha fraqueza desapareceu. Desde então, freqüentemente, quando estava cansado ou nervoso, bebia um ou dois e, às vezes, at é tr ês cálices. Nessa noite, tampouco recusei um c álice de vodca. Mas, apesar da insist ência deles, não tomei outro. A turma ainda não estava bêbada, pois estava apenas come çando. Sabia em que ordem tudo decorria: o primeiro a ficar tocado era sempre o di ácono. Quando come çava a ficar
tonto, punha-se a entoar a oração litúrgica pelo repouso da alma do augusto e venerado Alexandre I; vendo, por ém, que ainda conservava sua apar ência taciturna, não pude impedir-me de lhe falar sobre o que havia visto nesse mesmo dia; tomei a precaução, entretanto, de não parecer tão sério quanto com Anaviev e, desta vez, falei em tom de brincadeira. Escutaram-me todos com muita aten ção e com o maior interesse. Quando terminei meu relato, deram-me sua opinião. 73 O primeiro a falar foi o capitão. Disse que havia observado recentemente um caso semelhante; soldados haviam traçado um círculo no chão, em torno de um curdo; este, quase chorando, suplicara-lhes que o apagassem e n ão se moveu até que, por ordem dele, capit ão, um soldado tivesse aberto uma brecha no c írculo, pela qual o curdo fugiu. "Penso, observou o capit ão, que devem ter feito o voto de nunca sair de um c írculo fechado e que, se dele não saem, não é porque não podem, mas porque n ão querem violar seu juramento." O diácono disse ent ão: "São Adoradores do Diabo e, nas circunst âncias ordinárias, o Diabo não toca neles, porque s ão seus. Mas, como o pr óprio Diabo é apenas um subalterno e, como suas funções exigem que faça pesar seu jugo sobre todos, limitou a independ ência dos iezidas para salvar as apar ências, de tal modo que os outros n ão possam adivinhar que são seus servidores. Exatamente como Felipe . . ." Felipe era o pol ícia da esquina. Essa turma alegre, não tendo ninguém mais à sua disposição, enviava-o, às vezes, para buscar cigarros ou bebidas - pois o servi ço da polícia local servia apenas .. . para fazer rir as galinhas. "Por exemplo, continuou o diácono, se provoco um esc ândalo na rua, esse FeEpe ser á for çado a levar-me à delegacia, mas apenas pr ó forma, apenas para que os outros não possam reclamar! Assim que dobramos a esquina, ele me larga e n ão se esquece de me dizer: N ão esqueça a gorjeta, Excelência! "Pois bem, o Maldito faz o mesmo com os seus - os iezidas.. ." Ignoro se inventou essa hist ória nesse instante ou se era verdadeira. O empregado do Tesouro disse que nunca ouvira falar de tudo isso; que, segundo ele, nada de semelhante podia existir e lamentava bastante que pessoas inteligentes como nós pudessem crer em tais prod ígios e, além disso, esquentassem a cabe ça com essas coisas. O mestre-escola Stolmakh respondeu que, ao contr ário, acreditava na realidade dos fen ômenos sobrenaturais e, se a ciência positiva ainda não podia decifr á-los todos, estava totalmente convencido de que, com os r ápidos progressos da civilização contempor ânea, a ciência em breve provaria que todas essas singularidades do mundo metaf ísico podiam ser completamente explicadas por causas f ísicas. "Quanto ao fato do qual falamos, continuou, penso que se trata de um desses fen ômenos 74 magnéticos, sobre os quais trabalham atualmente os luminares da ci ência, em Nancy." Queria ainda dizer alguma coisa, mas Pavlov o interrompeu exclamando: "Que o diabo leve todos os adoradores do diabo! Que cada um deles beba meia garrafa de vodca e nenhum c írculo poder á mais retê-los. . . Em vez disso, vamos beber à saúde de Isakov." (Isakov era o proprietário da destilaria local.) Esses dizeres não acalmavam meus pensamentos, muito ao contr ário. Após haver deixado Pavlov, pensava mais ainda em tudo isso. Ao mesmo tempo, vinham-me d úvidas quanto às pessoas que at é então havia considerado instru ídas. Na manhã seguinte, encontrei por acaso o m édico-chefe da 39.a Divis ão, o doutor Ivanov, de visita em casa de um vizinho arm ênio que me havia chamado para lhe servir de intérprete. Ivanov gozava de grande celebridade na cidade. Tinha grande clientela e eu o conhecia muito bem, pois ele ia freqüentemente à casa de meu tio. Depois da consulta, perguntei-lhe: - Excelência (tinha o posto de general), poderia ter a bondade de explicar-me por que um iezida não pode sair de um c írculo? - Ah! Você se refere aos Adoradores do Diabo? É simples histeria! - Histeria?
- Sim, histeria. Pôs-se, então, a desfiar uma hist ória interminável; por ém, de tudo o que me disse compreendi apenas que histeria era histeria. E isso já o sabia, pela simples raz ão de que, na biblioteca do hospital militar de Kars, não havia livro algum de patologia nervosa ou de psicologia que eu não tivesse lido. Lera tudo at é muito atentamente, parando quase a cada linha, tanto eu desejava encontrar, nesses ramos da ci ência, uma explica ção para as mesas que giram. Desse modo, j á compreendia perfeitamente que histeria era histeria. Mas queria saber mais a esse respeito. Quanto mais compreendia a dificuldade de encontrar uma resposta, mais a curiosidade me ro ía. Durante alguns dias, não fui mais eu mesmo. Não queria fazer nada. Só pensava numa coisa: "Onde est á a verdade? No que est á escrito nos livros e no que me ensinam meus mestres? Ou nos fatos com que me deparo?" 75 Dentro em pouco, ocorreu um novo fato que acabou de me desconcertar. Cinco ou seis dias depois do caso do iezida, fui bem cedo banharme na fonte. Era uso, ali, lavar-se todas as manhãs com água da fonte. E vi, na esquina, um grupo de mulheres que falavam animadamente. Aproximei-me e fiquei sabendo o seguinte: Nessa noite, no bairro t ártaro, tinha aparecido um gornakh. Denomina-se desse modo, entre o povo, um esp írito brincalhão que se introduz no corpo de um homem que acaba de morrer e aparece sob seus tra ços, para fazer toda esp écie de brincadeiras de mau gosto com os vivos, principalmente aos antigos inimigos do morto. Um desses esp íritos, pois, tinha aparecido no corpo de um t ártaro enterrado na véspera, o filho de Maria Batchí. Eu tinha sabido da morte e do enterro desse homem, porque sua casa era vizinha da antiga moradia de meu pai, onde vivíamos todos antes de nossa partida para Kars. Fora ali, na véspera, receber o aluguel dos inquilinos. Aproveitando a ocasi ão, tinha passado em casa de alguns vizinhos tártaros e vira levarem o morto. Havia-o conhecido muito bem, pois freq üentemente nos visitava. Era um rapaz que acabava de ser nomeado guarda civil. Alguns dias antes, durante uma djiguitovka, tinha caído do cavalo e dizia-se que tinha tido um "n ó nas tripas". Embora um médico militar, chamado Kultchevsky, o tivesse feito beber um copo inteiro de mercúrio, "para endireitá-las", o pobre diabo tinha morrido e, segundo o costume tártaro, haviam-no enterrado o mais depressa possível. Foi então, ao que parece, que o esp írito brincalhão se introduziu em seu corpo e tentou faz ê-lo voltar para casa; alguém, por ém, se apercebera disto por acaso, dera o alarme e tocara a rebate e os bons vizinhos, para n ão permitir que esse espírito provocasse grandes desgraças, haviam imediatamente degolado o t ártaro e o tinham levado de volta para o cemit ério. Lá, os adeptos da religi ão cristã cr êem até que esses esp íritos só se introduzem nos t ártaros, por terem estes o costume de, em vez de fechar imediatamente a sepultura, jogar-lhe um pouco de terra e, f reqüentemente, até mesmo deixar ali um pouco de comida. Tirar o corpo de um cristão, profundamente enterrado na terra, é dif ícil para os espíritos - por isto, preferem os tártaros. Esse incidente completou meu espanto. "Como explicá-lo? Que sabia sobre tudo isto?" 76 Lanço um olhar. Na esquina, vejo meu tio, o vener ável Georgi Mercourov e seu filho, no pen último ano do liceu, que falam sobre isso com um funcion ário da polícia, que todos consideram um homem muito respeit ável. Todos viveram tão mais que eu, sabem tantas coisas sobre as quais nem sequer jamais pensei; v ê-se, ao menos, em seus semblantes indigna ção, tristeza ou espanto? N ão, dir-se-ia até que se regozijam pelo fato de que, ao menos por uma vez, tenham conseguido punir esse esp írito e impedir suas manobras. Mergulhei novamente nos livros, com a esperan ça de satisfazer, por fim, o verme que me roía. Bogatchevsky ajudou-me muito. Infelizmente, em breve teve que partir, pois dois anos depois de sua chegada a Kars, foi nomeado capelão numa cidade da Transcaspiana. Enquanto tinha sido meu mestre em Kars, submetera nossas rela ções a uma regra particular: embora ainda não fosse padre, confessava-me todas as semanas com ele. Ao partir, ordenou-me que lhe escrevesse minha confiss ão semanal e lha enviasse, prometendo responder-me
de vez em quando. Conviemos em que me enviaria suas cartas para a casa de meu tio, que mas entregaria ou as faria chegar at é a mim. Mas, um ano depois de se ter fixado na Transcaspiana, Bogatchevsky abandonou o clero secular para tornar-se monge. A crer em certos rumores, fora levado a essa decis ão pela conduta de sua jovem esposa, que tinha tido um romance com um oficial; Bogatchevsky mandou-a embora e n ão quis mais permanecer na cidade nem continuar a ser capel ão. Pouco tempo depois de sua partida, eu pr óprio deixei Kars e fui para T íflis. Durante esse per íodo, recebi de meu tio duas cartas de Bogatchevsky; depois fiquei v ários anos sem ter not ícias suas. Encontrei-o muito mais tarde, pelo maior dos acasos, na cidade de Samara, quando ele sa ía da casa do bispo. Vestia o hábito dos monges de um c élebre mosteiro. Não me reconheceu de imediato, de tal modo eu havia crescido e amadurecido; quando me apresentei, por ém, mostrou-se muito feliz por me rever e, durante alguns dias, tivemos freqüentes entrevistas, até o momento em que ambos deixamos Samara. Depois desse encontro, nunca mais deveria rev ê-lo. 77 Soube, mais tarde, que não tinha querido ficar em seu mosteiro, na Rússia, mas que logo havia partido para a Turquia e, depois, para o Monte Atos, onde, ali ás, não tinha ficado por muito tempo. Tinha então renunciado à vida monástica e seguido para Jerusal ém. Aí, Bogatchevsky havia travado am Ízade com um mercador de ter ços, pr óximo ao Templo do Senhor. Esse mercador era um monge da Ordem dos Ess ênios. Depois de t ê-lo longamente preparado, fez Bogatchevsky entrar em sua confraria. Em raz ão de sua vida exemplar, este foi nomeado ec ônomo e, ao fim de alguns anos, superior de um dos mosteiros da Ordem, no Egito. Finalmente, depois da morte de um dos assistentes do superior do mosteiro principal, foi Bogatchevsky chamado a substitu í-lo. Soube de muitas coisas sobre a vida extraordin ária que havia levado, durante esse per íodo, graças aos relatos de um de meus amigos, um dervixe turco, que o via ami úde e que encontrei em Bruce. Nesse meio tempo, meu tio me havia ainda remetido uma carta de Bogatchevsky. Essa carta continha, além de algumas palavras de b ênção, pequena fotografia dele com hábito de monge grego e v árias vistas dos lugares santos dos arredores de Jerusal ém. Quando ainda vivia em Kars, esperando a ordena ção, Bogatchevsky me havia exposto uma concep ção muito original da moral. Ensinava-me que existem sobre a terra duas morais: uma objetiva, estabelecida pela vida h á milhares de anos, e outra subjetiva, particular tanto a indivíduos isolados como a nações inteiras, impérios, famílias, categorias sociais, etc. "A moral objetiva, disse-me um dia, fundamenta-se ou na vida ou nos mandamentos que o pr óprio Deus nos deu pela voz dos seus profetas. Torna-se pouco a pouco, no homem, o princípio constitutivo do que se chama consci ência; e esta consci ência, por sua vez, sustenta a moral objetiva. A moral objetiva nunca muda, pode apenas ganhar amplitude com o tempo. Quanto à moral subjetiva, invenção humana, é uma concepção relativa, diferente para cada homem, diferente em cada lugar e fundada sobre a compreensão particular do bem e do mal, que prevalece na época dada. "Por exemplo, aqui, na Transcaucasia, se uma mulher n ão cobrir o rosto, se falar com os convidados, todo mundo a considerar á imoral, perversa, sem educação. Na Rússia, ao contr ário, se uma mulher resolvesse cobrir o rosto, não receber seus convidados nem conversar com 78 79 eles, todos a considerariam mal-educada, grosseira, pouco am ável e assim por diante. "Outro exemplo, aqui em Kars: se alguém não vai ao ham ã uma vez por semana ou, pelo menos, de quinze em quinze dias, os que o rodeiam o detestar ão, ter ão para com ele um sentimento de nojo e at é achar ão que cheira mal - o que talvez n ão seja verdadeiro. Mas, em São Petersburgo, hoje em dia, dá-se o contr ário: se alguém falar em ir ao ham ã, ser á considerado sem educa ção, retr ógrado, roceiro, etc. E se, por acaso, quiser ir assim mesmo, ir á às escondidas, a fim de que n ão reprovem sua falta de traquejo social.
"Para te fazer compreender melhor a relatividade das noções de moral e de honra, tomarei dois eventos ocorridos na semana passada, em Kars entre os oficiais, e que tiveram certa repercuss ão. "O primeiro foi o julgamento do tenente K . . ., o segundo o suic ídio do tenente Makarov. "O tenente K ... foi levado às barras do tribunal militar por ter esbofeteado, com tanta for ça, o sapateiro Ivanov, que este perdeu o olho esquerdo. O tribunal o absolveu, pois o inqu érito provou que o sapateiro Ivanov importunava o tenente K., propalando coment ários ofensivos sobre ele. "Muito interessado por essa hist ória, decidi, sem levar em consideração os resultados do inqu érito, ir eu mesmo visitar a família do infeliz e interrogar seus amigos, a fim de esclarecer as verdadeiras raz ões da conduta do tenente K ... "Soube que este último havia encomendado ao sapateiro Ivanov um par de botas, depois um segundo par, depois um terceiro, prometendo pagá-los no dia 20 do m ês, quando recebesse o soldo. N ão tendo o tenente levado o dinheiro no dia 20, Ivanov foi reclamar o que lhe era devido. O oficial prometeu que lhe pagaria no dia seguinte. No dia seguinte, adiou para depois de amanh ã. Em resumo, durante muito tempo, alimentou Ivanov de amanhãs. E Ivanov voltava sempre e sempre, porque o dinheiro que lhe deviam representava para ele uma enorme quantia. Era quase tudo o que possu ía, as economias que sua mulher, lavadeira, tinha posto de lado, tost ão por tostão, durante anos, tendo sido gastas na compra dos aviamentos de que necessitara para fazer as botas do oficial. "Aliás, se o sapateiro Ivanov persistia em cobrar sua conta, era porque tinha seis filhos pequenos para alimentar. "A insistência de Ivanov acabou por cansar o oficial. Fez-lhe primeiro dizer, por seu ordenan ça, que n ão estava em casa; depois simplesmente o expulsou, chegando a ameaçá-lo de jogá-lo na cadeia. "Por fim, o tenente tinha dado ao seu ordenan ça ordem de dar-lhe uma surra, se ousasse voltar. "Quando Ivanov se apresentou, o ordenan ça, que era homem compassivo, em vez de lhe dar uma surra como lhe haviam recomendado, quis persuadi-lo, como amigo, a n ão mais importunar Sua Grandeza. Convidou-o, pois, a ir at é à cozinha falar com ele. "Enquanto Ivanov se sentava sobre um tamborete, o ordenan ça pôs-se a depenar um ganso para ass á-lo. "Quando Ivanov viu isto, n ão pôde deixar de observar: É isto mesmo; esses senhores se permitem comer todos os dias gansos assados, mas n ão pagam suas d ívidas; e, enquanto isto, meus filhos não têm com que matar a fome. "Ora, nesse mesmo instante, o tenente K ... entrou por acaso na cozinha. Ouvindo de surpresa essas palavras, pôs-se tão furioso que tomou de uma grande beterraba, que estava sobre a mesa e bateu no rosto de Ivanov, com tanta brutalidade que fez-lhe saltar um olho. "O segundo evento foi, por assim dizer, o inverso do primeiro. O tenente Makarov suicidou-se, porque n ão podia pagar sua dívida a um certo capitão Machvelov. "Cumpre dizer que esse Machvelov, inveterado jogador de cartas, era considerado em toda parte uma verdadeira ave de rapina. N ão se passava um dia sem que limpasse alguém no jogo; para todos, era evidente que trapaceava. "Há alguns dias, no cassino dos oficiais, o tenente Makarov jogou uma partida com v ários oficiais, entre os quais estava Machvelov e perdeu, n ão só todo o seu dinheiro, mais ainda uma quantia que pediu emprestada a esse Machvelov, prometendo pag á-la dentro de tr ês dias. "Como a quantia era grande, o tenente Makarov n ão pôde consegui-la a tempo. E, n ão podendo manter sua palavra, pensou que mais valia matar-se que manchar sua honra de oficial. "Esses eventos t êm ambos, a mesma origem: as dívidas. Mas um dos oficiais torna seu credor caolho, ao passo que, pelo mesmo motivo, o outro se suicida. Por qu ê? Simplesmente porque os que rodeavam Makarov o teriam reprovado por n ão ter pago sua d ívida ao trapaceiro Machvelov. Quanto ao sapateiro Ivanov, mesmo que todos os seus 80 81 filhos morressem de fome, isto estaria na ordem das coisas. Afinal de contas, o c ódigo de honra de um oficial não inclui o dever de pagar suas d ívidas a um sapateiro! "Em geral, repito-o, se incidentes semelhantes se produzem com os adultos, é que durante sua inf ância, na idade em que o futuro homem está ainda em formação, enchem-lhe
o cr ânio de convenções diversas, impedindo assim a Natureza de desenvolver progressivamente neles a consciência moral, que nossos antepassados levaram milhares de anos para constituir, lutando, precisamente, contra essa esp écie de conven ções." Bogatchevsky exortava-me, freq üentemente, a não adotar conven ção alguma do meio em que vivia, como aliás de nenhum outro. Dizia: "São as convenções, de que estamos repletos, que constituem a moral subjetiva. Mas uma vida verdadeira exige a moral objetiva, que s ó pode vir da consciência. "A consciência é a mesma em toda parte: ela é aqui a mesma que é em São Petersburgo, na Am érica, no Kamtchatka, ou nas ilhas Salom ão. Hoje estás aqui, mas amanhã podes estar na Am érica. Se tens uma consci ência verdadeira e se conformares tua vida a ela, onde quer que estejas tudo correr á bem. "És ainda muito jovem. Nem sequer entraste na vida. Poder ão dizer de ti que és mal-educado: pouco importa que não saibas fazer rever ências, nem falar das coisas como é de uso falar, desde que, na idade adulta, quando come çares realmente a viver, tenhas uma verdadeira consciência, isto é, a pr ópria base de uma moral objetiva. "A moral subjetiva é uma concep ção relativa; se estás cheio de concep ções relativas, quando cresceres, sempre e em toda parte, agir ás e julgar ás os outros segundo os pontos de vista e as no ções convencionais que tiveres adquirido. "É necess ário que aprendas, não a te conformares com o que as pessoas que te rodeiam consideram bom ou mau, mas a agir na vida de acordo com o que diz a tua consci ência. "Uma consciência que se desenvolveu livremente saber á sempre muito mais do que todos os livros e do que todos os mestres em conjunto. Mas, enquanto tua pr ópria consciência não estiver totalmente formada, vive de acordo com o mandamento de nosso Mestre Jesus Cristo: N ão faças a ninguém o que não queres que te fa çam " O Padre Evlissi, que hoje est á muito idoso, é um dos raros homens sobre a terra que conseguiu chegar a viver como o desejava para todos n ós nosso Divino Mestre Jesus Cristo. Que suas orações venham em aux ílio de todos aqueles que querem se tornar capazes de viver de acordo com a Verdade! *** 5 O SENHOR X... OU O CAPITÃO POGOSSIAN Sarkiss Pogossian - ou, como o chamam agora, o Senhor X... - é hoje em dia, proprietário de vários navios. Comanda pessoalmente um deles que serve a regi ão que lhe é cara, entre as ilhas de Sonda e as ilhas Salom ão. Armênio de origem, Sarkiss Pogossian nasceu na Turquia, mas passou sua inf ância na Transcaucasia, na cidade de Kars. Travei conhecimento com ele e liguei-me a ele quando, embora ainda muito jovem, terminava seus estudos na Academia de teologia de Etchmiadzine, onde se prepa rava para o sacerdócio. Mesmo antes de conhec ê-lo, tinha ouvido falar dele por seus pais, que viviam em Kars, não longe de nossa casa e que vinham freq üentemente visitar meu pai. Sabia que era filho único e que tinha estudado no Temagan-Dpretz, ou Semin ário de Erivan, antes de entrar para a Academia de teologia de Etchmiadzine. Os pais de Pogossian, originários de Erzerum, tinham emigrado para Kars pouco depois da tomada dessa cidade pelos russos. Seu pai era póiadji1 de profissão. Sua mãe era bordadeira, especialista em bordados a ouro para plastr ões e cintos de djupês 2. Vivendo muito modestamente, consagravam todos os seus recursos para dar uma boa educa ção a seu filho. Sarkiss Pogossian raramente vinha visitar os pais e nunca tive ocasi ão de encontr á-lo em Kars. Conheci-o quando de minha primeira viagem a Etchmiadzine. 1. Poiadji significa tintureiro. Os que exercem essa profiss ão são facilmente reconhecíveis, devido à tinta azul de que seus braços ficam impregnados, desde a m ão até o cotovelo, e que nunca desaparece. 2. O Djupê é um traje usado pelas arm ênias em Erzerum.
83 Antes de minha partida, tinha ido passar algum tempo em Kars com m eus pais e os pais de Pogossian, sabendo que eu devia ir a Etchmiadzine, pediram-me para levar um pequeno pacote de roupas para seu filho. Partia para buscar, uma vez mais, uma resposta às perguntas propostas pelos fen ômenos sobrenaturais, pelos quais minha paix ão, longe de esmorecer, só havia crescido. É preciso dizer que, levado por um interesse muito vivo por esses fen ômenos, como relatei no cap ítulo anterior, atirara-me sobre os livros e, depois, dirigira-me a homens de ci ência, com a esperan ça de obter alguma explicação. Não encontrando, entretanto, respostas satisfat órias, nem nos livros nem junto às pessoas que havia consultado, orientei minhas pesquisas para a religi ão. Fui visitar diferentes mosteiros. Interroguei homens reputados pela for ça de seu sentimento religioso. Li as Sagradas Escrituras, a vida dos Santos. Fui at é, durante tr ês meses, servidor do c élebre Padre Eulâmpios, no mosteiro de Sana íne e fiz uma peregrinação a quase todos os "lugares santos" pertencentes a cren ças diversas, t ão numerosos na Transcaucasia. Durante esse per íodo, fui testemunha de toda uma série de novos fen ômenos, absolutamente incontest áveis e, no entanto, imposs íveis de serem explicados; isto s ó fez aumentar minha perplexidade. Por exemplo, tendo ido, um dia, à festa do Trono, com um grupo de peregrinos de Alexandr ópolis, num lugar conhecido pelos armenos pelo nome de Amena-Prdetz, no monte Djadjur, assisti ao seguinte incidente: No caminho, vindo de Paldevan, uma charrete transportava um doente at é o lugar santo - um paral ítico. Entabulei conversa ção com os pais, que o acompanhavam e fizemos a viagem juntos. Esse paral ítico, com apenas trinta anos, já sofria há seis anos. Antes, gozava de perfeita sa úde; tinha at é prestado o servi ço militar. Adoecera quando voltava do servi ço militar, justo antes de se casar. Todo o lado esquerdo do seu corpo ficou paralisado e, at é esse dia, apesar dos tratamentos dos médicos e dos curandeiros, nada tinha podido cur á-lo; tinham-no até levado especialmente para fazer uma estação de águas no C áucaso e, agora, seus pais o levavam, em desespero de causa, a Amena-Prdetz, com a esperan ça de que o Santo lhe viesse em aux ílio e amenizasse seus sofrimentos. 84 85 A caminho do santu ário, fizemos um desvio, como todos os peregrinos, pela aldeia de Diskiant, para irmos rezar aos pés de um ícone milagroso do Salvador, em casa de uma fam ília armênia. Como o doente tamb ém queria rezar, fizeram-no entrar: eu pr óprio ajudei a transportar o pobre homem. Pouco depois, chegamos ao sop é do monte Djadjur, em cuja vertente se erigia a igrejinha que continha o t úmulo milagroso do Santo. Fizemos uma parada, no local em que o caminho carro çável termina e os peregrinos deixam geralmente seus carros, charretes e furgões, para subir a p é os quase duzentos metros restantes. Grande número deles caminha de pés descalços, segundo o costume; alguns at é fazem o trajeto de joelhos ou de qualquer outra maneira particular. Quando desceram o paral ítico da charrete, para levá-lo até em cima, pôs-se a protestar e quis tentar arrastar-se por si só, como pudesse. Puseram-no no chão e começou a arrastar-se sobre o lado s ão. Isto custava-lhe tais esfor ços que todos n ós sentíamos piedade. Entretanto, recusava qualquer aux ílio. Descansando freq üentemente no caminho, chegou, afinal, em cima, depois de tr ês horas e arrastou-se at é ao túmulo do Santo, no centro da igreja, beijou a lápide e, de súbito, perdeu os sentidos. com meu aux ílio e o dos padres, seus pais o reanimaram, derramando água em sua boca e enxugando-lhe a cabeça. E foi quando voltou a si que se produziu o milagre: n ão estava mais paralítico. De início, o pr óprio doente ficou muito espantado, mas, quando se deu conta de que podia mover todos os seus membros, pulou sobre os p és, pôs-se quase a dan çar no local e, de repente, conteve-se e soltando um grande grito, prostrou-se e p ôs-se a rezar. Acompanhando-o, todos os assistentes, a come çar pelo cura, ca íram de joelhos e também se puseram a rezar.
A seguir, o padre levantou-se e, diante dos fi éis ajoelhados, cantou um Te Deum de a ção de graças em louvor ao Santo. Outro fato, não menos desconcertante, ocorreu em Kars. Nesse ano, em toda a prov íncia, o calor e a seca foram assustadores. Quase toda a colheita havia queimado, a fome ameaçava e o povo come çava a se agitar. Nesse mesmo ver ão, o patriarca de Anti óquia havia justamente enviado à Rússia um arquimandrita, com um ícone milagroso - não lembro mais se era o de Nicolau, o Taumaturgo, ou o da Virgem - a fim de coletar dinheiro para levar aux ílio aos gregos, v ítimas da guerra de Creta. Ia de cidade em cidade com seu ícone, parando, de prefer ência, onde a popula ção grega era importante, e passou, entre outras, em Kars. Não sei a que des ígnios políticos ou religiosos isso respondia, mas o fato é que as autoridades russas, tanto em Kars como em outras cidades, acolheram o enviado com grande aparato e prestaram-lhe toda espécie de honrarias. Quando o arquimandrita chegava numa cidade, o ícone era transportado, de igreja em igreja e o clero saía ao seu encontro, com todos os estandartes, para receb ê-lo solenemente. No dia seguinte à chegada desse arquimandrita em Kars, propalou-se o rumor de que todos os padres recitariam, diante do ícone, fora da cidade, uma ora ção especial para pedir chuva. De fato, no dia fixado, ao soar meio-dia, prociss ões puseram-se em marcha, partindo de todas as igrejas da cidade, com estandartes e ícones, para juntas dirigirem-se ao local designado. Nessa cerim ônia estavam representadas a velha igreja grega, a catedral grega, recentemente reconstru ída, a igreja militar da fortaleza e a igreja do regimento de Kuban, às quais se reuniu o clero da igreja arm ênia. O calor, nesse dia, era particularmente intenso. Em presença de quase toda a popula ção, o clero, com o arquimandrita à frente, celebrou um of ício solene. Depois do que, toda a prociss ão voltou para a cidade. Foi então que se produziu um desses eventos, que os homens contempor âneos são incapazes de explicar: o céu cobriu-se, de repente, de nuvens e os citadinos n ão tinham ainda chegado às portas da cidade, quando come çou a chover torrencialmente, a ponto de molh á-los até os ossos. Para interpretar esse fenômeno, poder-se-ia, naturalmente, utilizar, como em muitos outros casos semelhantes, a palavra estereotipada "coincidência", cara a nossos homens de pensamento, como s ão chamados - mas é for çoso reconhecer que a coincid ência, dessa vez, teria sido um pouco forte. 86 O terceiro incidente passou-se em Alexandr ópolis, onde minha fam ília tinha vindo reinstalar-se em sua antiga casa. Minha tia morava ao lado. Um dos c ômodos de sua casa estava alugado a um t ártaro, empregado na prefeitura como contínuo ou secretário. Vivia ele com a velha m ãe e a irm ã pequena. Em breve casou-se com uma bela mo ça, uma tártara da aldeia vizinha de Karadagh. Tudo corria bem, quando, depois de quarenta dias de casados, a jovem mulher, como manda o costume t ártaro, partiu para visitar os pais. Quer se tivesse resfriado, quer por outra razão, quando voltou, sentiu-se mal e acamou-se. Pouco a pouco seu estado se agravou. Trataram-na. Mas, embora fosse atendida por v ários médicos, entre os quais, se n ão me falha a mem ória, Reznik, m édico da cidade e o antigo major Koultchevsky, o estado da doente piorava. Obedecendo à recomendação do Dr. Reznik, um enfermeiro amigo meu vinha aplicar-lhe uma inje ção todas as manhãs. Esse enfermeiro - não me recordo mais de seu sobrenome, lembro-me apenas que tinha uma altura desmedida - vinha à nossa casa freqüentemente, de passagem. Uma manh ã, chegou quando minha m ãe e eu tom ávamos chá. Convidamo-lo a sentar-se conosco e, durante a conversa ção, pedi-lhe notícias de nossa vizinha. Respondeu que estava muito mal, que tinha uma "t ísica galopante" e, provavelmente, "isto n ão duraria". Ainda estava em nossa casa, quando uma mulher idosa, a sogra da doente, veio pedir à minha mãe permissão para colher alguns bot ões de rosa em nosso jardim. Debulhada em lágrimas, contou que durante a noite a doente vira em sonho Mariam-Ana - este é o nome que os tártaros dão à Virgem
- que lhe havia ordenado que colhesse bot ões de rosa, fizesse ferver os estames em leite e o tomasse. E a velha mulher, para tranqüilizar a doente, queria fazer o que havia sido pedido. Ao ouvi-la falar, o enfermeiro pôs-se a rir. Minha m ãe, é claro, deu o consentimento e at é foi ajudar a velha senhora a colher as flores. Levei o enfermeiro até à porta, e fui reunir-me a elas. Qual não foi meu espanto, ao ir ao mercado, no dia seguinte de manh ã, ao encontrar a velha t ártara saindo, junto com a doente da igreja Sev-Jam , onde se encontra o ícone milagroso da Virgem. Uma semana mais tarde, vi nossa jovem vizinha lavando as janelas de sua casa. Diga-se, de passagem, que o doutor Reznik explicou ser essa cura, que parecia milagrosa, simplesmente devida ao acaso. 87 A existência desses fatos, de que n ão podia duvidar, pois os havia visto com meus pr óprios olhos, somados a muitos outros que me tinham sido contados e que, todos, evocavam a presen ça de algo "sobrenatural", não era compat ível, nem com o que me ditava o bom senso, nem com as convic ções a que chegava atrav és de meus conhecimentos, já bastante amplos em matéria de ciências exatas, que exclu íam a pr ópria idéia de fenômenos sobrenaturais. A consciência dessa contradi ção não me dava sossego algum. Era muito mais insuport ável porque, de ambos os lados, os fatos e provas eram igualmente convincentes. Entretanto, prosseguia minhas investiga ções, na esperança de encontrar um dia, em algum lugar, a verdadeira resposta a essas perguntas, que n ão cessavam de atormentar-me. Tais investigações levaram-me, entre outros lugares, a Etchmiadzine, que era o centro de uma das grandes religiões e onde eu esperava encontrar o fio condutor que me permitiria sair desse impasse. Etchmiadzine ou, como ainda a chamam, Vagarchapat é, para os arm ênios, o que Meca é para os muçulmanos e Jerusalém para os cristãos. É a residência do "Katholikos" de todos os arm ênios e o centro de sua cultura. Cada outono, realiza-se em Etchmiadzine uma grande festa religiosa, na qual toma parte grande n úmero de peregrinos, vindos não só de todos os cantos da Arm ênia, como de todas as partes do mundo. Uma semana antes da solenidade, todos os caminhos circundantes j á estão invadidos por peregrinos; uns v ão a pé, outros de charrete ou furgões, outros ainda, a cavalo ou montados em burros. Quanto a mim, tinha partido a pé com os peregrinos de Alexandr ópolis, depois de ter posto minha bagagem no furgão dos Molocans. Chegado a Etchmiadzine, fui diretamente, segundo o costume, inclinar-me em todos os lugares santos. Depois, pus-me à procura de um alojamento, mas foi-me imposs ível encontrar algo na cidade: todas as hospedarias (os hot éis não existiam ainda) estavam repletas. De maneira que resolvi fazer como tantos outros e acampar como pudesse, fora da cidade, sob uma charrete ou um furgão. Como ainda era cedo, decidi cumprir, primeiramente, o encargo que tinha assumido, isto é, encontrar Pogossian e entregar-lhe o pacote. Morava não longe da hospedaria principal, em casa de um parente afastado - o arquimandrita Sourenian. Encontrei-o em casa. 88 Era um rapaz moreno, quase da minha idade, de altura m édia e com um pequeno bigode. Seus olhos, naturalmente tristes, brilhavam às vezes com um fogo ardente; era um pouco vesgo do olho direito. Nessa época, parecia muito fraco e muito tímido. Fez-me algumas perguntas sobre seus pais e, quando soube, durante a conversa, que n ão tinha podido encontrar onde me alojar, saiu por um momento e voltou, quase imediatamente, para propor-me partilhar seu quarto. Aceitei, é claro, e apressei-me em ir buscar toda a minha traquitanda no furgão. Acabava de instalar uma pequena cama para mim, com sua ajuda, quando nos chamaram para jantar com o Padre Sourenian. O Padre me recebeu amavelmente e me interrogou sobre a fam ília de Pogossian e sobre Alexandr ópolis. Depois do jantar, fui visitar a cidade e os Santu ários com Pogossian. Cumpre dizer que, durante toda a peregrinação, reina grande animação, à noite, nas ruas de Etchmiadzine, e todos os caf és e os achkhan ês ficam abertos. Nessa noite e nos dias seguintes, sa ímos juntos. Ele conhecia todos os cantos e recantos da cidade e
levava-me a toda parte. íamos aos lugares aos quais os peregrinos comuns n ão têm acesso; entramos até mesmo no Kantzaran, onde são guardados os tesouros de Etchmiadzine e onde raramente se é admitido. Ficamos bastante íntimos muito depressa, Pogossian e eu, e pouco a pouco formou-se uma liga ção estreita entre nós, principalmente quando nossas conversa ções revelaram-nos nosso interesse comum pelas quest ões que me agitavam. T ínhamos ambos muito material para intercambiar a esse respeito e nossas conversas tornaram-se cada vez mais cordiais e confiantes. Pogossian estava terminando seus estudos na Academia de teologia e devia ser ordenado padre dois anos mais tarde, mas seu estado de alma n ão correspondia, de modo algum, a essa perspectiva. Por mais religioso que fosse, continuava sendo dos mais cr íticos para com o ambiente no qual se encontrava e repugnava-lhe viver nesse meio de padres, cujo modo de existência só podia chocar profundamente seu ideal. Quando nos tornamos mais íntimos, contou-me muitas coisas que se passavam nos bastidores da vida dos padres de lá e o pensamento de que, ao tornar-se padre, entraria nesse meio, fazia-o sofrer interiormente e deixava-o como presa de um sentimento de ang ústia. 89 Depois das festas, passei ainda tr ês semanas em Etchmiadzine, vivendo junto com Pogossian, em casa do arquimandrita Sourenian e, mais de uma vez, tive ocasi ão de voltar aos assuntos que me apaixonavam, quer com o pr óprio arquimandrita, quer com outros monges a quem me apresentou. Definitivamente, minha estada em Etchmiadzine n ão me trouxe a resposta que tinha ido buscar e foi longa o bastante para convencer-me de que n ão a encontraria ali. Assim, parti com um sentimento basta nte amargo de desilusão interior. Pogossian e eu nos separamos muito amigos, prometendo escrever-nos comunicando nossas observa ções, no campo que nos interessava a ambos. Dois anos mais tarde, um belo dia, Pogossian desembarcava em T íflis e se instalava em minha casa. Terminara os estudos na Academia e fora depois passar algum tempo em Kars, na casa de seus pais. S ó lhe restava casar-se, para que uma par óquia lhe fosse confiada. Sua família lhe havia até encontrado uma noiva, mas ele continuava numa grande incerteza e n ão sabia o que fazer. Nessa época, eu era empregado do dep ósito das estradas de ferro de T íflis, como maquinista. Saía de casa de manh ã bem cedo e s ó voltava à noite. Pogossian ficava dias inteiros deitado, lendo todos os livros que eu possu ía. À noite, íamos jüntos aos jardins de Muchtaíd e enquanto passe ávamos pelas alamedas desertas, falávamos interminavelmente. Um dia em que espairec íamos em Muchtaíd, propus-lhe, de brincadeira, que fosse trabalhar comigo e fiquei muito surpreso, no dia seguinte, por v ê-lo insistir para que conseguisse um lugar para ele, no dep ósito. Não procurei dissuadi-lo e dei-lhe um bilhete para um de meus bons amigos, o engenheiro Yaroslev, que lhe deu, de pronto, uma carta de recomendação para o chefe do depósito. Contrataram-no como ajudante de serralheiro. As coisas continuaram assim at é outubro. Os problemas abstratos continuavam a nos empolgar e Pogossian não pensava em voltar para casa. 90 Um dia, em casa de Yaroslev, travei conhecimento com o engenheiro Vassiliev, chegado havia pouco do Cáucaso para estabelecer os planos de uma via f érrea entre Tíflis e Kars. Depois de vários encontros, propôs-me ir trabalhar com ele, na construção da estrada de ferro, na qualidade de chefe de equipe e de int érprete. Os vencimentos que me oferecia eram muito tentadores, quase o quádruplo do que havia ganho at é então, e como meu emprego j á me aborrecia e começava a ser um obst áculo às minhas investigações, a perspectiva de l á eu ter muito tempo livre fez-me aceitar. Propus a Pogossian acompanhar-me "na qualidade de n ão importa o quê", mas recusou: interessava-se por seu trabalho de serralheiro e queria continuar o que iniciara. Viajei tr ês meses com o engenheiro, nos vales estreitos que separam T íflis de Karaklis e consegui ganhar muito
dinheiro - pois, além do meu sal ário oficial, tinha várias fontes de renda não oficiais, de car áter mais para o repreensível. Conhecendo antecipadamente as aldeias e as cidadezinhas que a estrada de ferro devia atravessar, enviava secretamente um emiss ário às autoridades locais, a fim de dar-lhes conhecimento de que podia conseguir a passagem da estrada por esses locais. Na maioria dos casos, minha proposta era aceita e eu recebia "pelo inc ômodo", a título privado, recompensas que constitu íam, às vezes, quantias bastante importantes. Quando voltei a T íflis, estava, pois, de posse de um pequeno capital, ao qual se acrescentava o que me restava de meus antigos vencimentos. N ão tendo mais vontade de buscar trabalho, decidi consagrar-me inteiramente ao estudo dos fen ômenos que me interessavam. Pogossian, durante esse tempo, tinha-se tornado serralheiro e havia encontrado tempo para ler uma quantidade de novos livros. Estava interessado, principalmente, na antiga literatura arm ênia e tinha conseguido um grande n úmero de obras, nos mesmos sebos que eu. Pogossian e eu chegamos à conclusão bem firme, de que havia realmente alguma coisa da qual os homens antigamente tinham tido conhecimento, mas que esse conhecimento estava, hoje em dia, completamente esquecido. Tínhamos perdido qualquer esperan ça de encontrar, na ci ência exata contempor ânea e, em geral, nos livros e nos homens contempor âneos, o m ínimo sinal que pudesse orientar-nos para esse conhecimento e dedic ávamos toda a aten ção à literatura antiga. 91 Tendo tido a sorte de encontrar um love de velhos livros arm ênios, nosso interesse concentrou-se neles e decidimos ir a Alexandr ópolis buscar um lugar isolado, onde pudéssemos consagrar-nos inteiramente a seu estudo. Uma vez em Alexandr ópolis, escolhemos, com essa inten ção, as ruínas solitárias da antiga capital da Arm ênia, Ani, a cinqüenta quilômetros da cidade. Constru ímos uma cabana sobre as pr óprias ruínas e ali vivemos, indo nos reabastecer com os pastores ou nas aldeias vizinhas. Ani tornou-se a capital dos reis da Armênia, da dinastia dos Bagratidas, no ano 962 e foi conquistada em 1046 pelo imperador de Bizâncio. Nessa época, já tinha o nome de cidade das mil igrejas. Depois, os Seldj úcidas apossaram-se dela. De 1125 a 1209, caiu por cinco vezes nas m ãos dos georgianos, antes de ser tomada, pelos mong óis. Em 1313, foi completamente destruída por um terremoto. Entre as ruínas, encontram-se, entre outros, os restos da igreja dos Patriarcas, terminada em 1010, de duas igrejas do s éculo XI, bem como de uma igreja que foi terminada cerca de 1215. A esta altura, não poderia passar em silêncio um fato que talvez n ão seja desprovido de interesse para alguns leitores: os dados hist óricos que acabo de dar sobre a antiga capital da Arm ênia, Ani, são os primeiros e, espero, os últimos, que peço emprestado aos conhecimentos oficialmente admitidos sobre a terra; ou seja, é de fato a primeira vez, desde o in ício de minha atividade liter ária, que recorro ao dicionário enciclopédico. A respeito da cidade de Ani, existe ainda, em nossos dias, uma lenda muito int eressante, que explica por que, depois de ter sido durante muito tempo denominada cidade das mil igrejas, recebeu mais tarde o nome de cidade das mil e uma igrejas. Essa lenda é a seguinte: Um dia, a mulher de um pastor queixou-se ao marido da atmosfera escandalosa que reinava nas igrejas. "Não se pode rezar tranqüilamente em parte alguma - dizia ela. A qualquer parte que se vá, as igrejas estão tão cheias e barulhentas como colmeias." Tocado pela justa indigna ção da mulher, o pastor p ôs-se a construir uma igreja especialmente para ela. Nos tempos antigos, a palavra "pastor" n ão tinha a mesma significação de hoje. Os pastores de outrora eram proprietários dos rebanhos 92 que levavam ao pasto. Alguns possu íam até um grande número deles e passavam por ser os homens mais ricos da região. Depois de ter constru ído sua igreja, esse pastor chamou-a de igreja da piedosa mulher do pastor e, desde então, Ani denominou-se a cidade das mil e uma igrejas. Outros dados hist óricos afirmam que, muito antes do tempo em que o pastor construiu sua igreja, j á havia muito
mais de mil igrejas na cidade, mas parece que escava ções recentes trouxeram à luz uma pedra confirmando a lenda do pastor e de sua piedosa mulher. Vivendo nas ruínas de Ani e passando nossos dias lendo e estudando, empreend íamos, às vezes, escava ções para descansarmos, na esperan ça de fazer alguma descoberta. Há numerosos subterr âneos nas ruínas da cidade. Cavando um dia num desses subterr âneos, observamos, Pogossian e eu, um local onde o solo n ão apresentava mais a mesma consistência. Cavando mais adiante, descobrimos uma nova passagem, mais estreita, obstru ída por pedras. Uma vez limpa a entrada, surgiu a nossos olhos um pequeno quarto com a ab óbada desmoronada pelo tempo. Tudo indicava que se tratava da cela de um monge. Nada restava nessa cela, salvo alguns fragmentos de lou ça e pedaços de madeira podre, provenientes, sem dúvida, de móveis antigos. Mas, numa reentr ância em forma de nicho, jaziam, amontoados, numerosos rolos de pergaminho. Alguns deles ca íam desfeitos em pó, os outros estavam mais ou menos bem conservados. com as maiores precau ções, transportamos esses rolos para nossa cabana e depois tratamos de decifr á-los. Traziam inscrições metade em arm ênio, metade numa língua desconhecida. Eu sabia muito bem o arm ênio Pogossian também, é evidente - mas nada pudemos compreender desses manuscritos, pois estavam redigidos em arm ênio muito antigo, quase sem nenhuma rela ção com a língua atual. Nossa descoberta pareceu-nos de tal interesse, que abandonamos todo o resto e partimos, no mesmo dia, para Alexandr ópolis, onde passamos dias e noites tentando decifrar, nem que fosse algumas palavras. Por fim, depois de ter penado muito e consultado numerosos peritos, chegamos à conclusão de que esses pergaminhos eram simples cartas, dirigidas por um monge a outro monge, certo Padre Arem. 93 Nossa atenção foi retida por uma carta, na qual o primeiro fazia alusão a informações que havia recebido sobre certos mistérios. Esse manuscrito era, precisamente, daqueles que haviam sofrido mais com o tempo e foi-nos necess ário adivinhar palavras inteiras. Entretanto, conseguimos reconstitu í-lo integralmente. O que mais nos interessou, nessa carta, n ão foi o princ ípio, mas o fim. Começava por longas amabilidades e, depois, contava os pequenos fatos quotidianos da vida de um mosteiro onde, ao que parece, o destinat ário havia vivido outrora. Quase no fim da carta, uma passagem atraiu particularmente nossa aten ção. Dizia-se ali: "Nosso Vener ável Padre Telvent conseguiu afinal conhecer a verdade sobre a Confraria dos Sarmung Sua ernos 3 existiu efetivamente, perto da cidade de Siranuch. Pouco depois do êxodo, emigraram por sua vez, há uns cinq üenta anos, para fixar-se no vale de Izrumin, a tr ês dias de marcha de Nivssi, etc." Passava, a seguir, a outros assuntos. O que mais nos tocou foi a palavra Sarmung, que j á havíamos encontrado várias vezes no livro Merkhavat. É o nome de uma c élebre escola esotérica que, segundo a tradi ção, foi fundada em Babilônia, 2.500 anos antes do nascimento de Cristo e da qual se encontram vest ígios na Mesopotamia cerca dos s éculos VI e VII depois de Jesus Cristo. Mas, depois disto, n ão se encontra mais em parte alguma a m ínima informação sobre sua exist ência. Atribuía-se antigamente a essa escola a posse de um saber muito elevado, contendo a chave de numerosos mistérios ocultos. Quantas vezes hav íamos falado entre nós dessa escola, Pogossian e eu, e sonhado aprender sobre ela algo de autêntico! E eis que, de repente, líamos seu nome sobre esse pergaminho! Est ávamos transtornados. Mas, a não ser esse nome, nada pudemos tirar dessa carta. Tanto quanto anteriormente, não sabíamos nem quando nem onde tinha aparecido essa escola, onde se tinha estabelecido, nem se ainda existia. Depois de vários dias de pesquisas laboriosas, os únicos dados que pudemos reunir foram os seguintes: 3. Ernos indica uma espécie de corporação 94 Mais ou menos no s éculo VI ou VII, os descendentes dos ass írios, os aissores, foram expulsos da Mesopotamia para a Pérsia pelos bizantinos; o evento, de acordo com
a verossimilhança, ocorrera na época em que essas cartas tinham sido escritas. Depois disso, ficamos em condi ções de verificar que a cidade de Nivssi, mencionada no manuscrito, era a atual cidade de Mossul, antiga capital do pa ís Nievi e que, ainda hoje, a popula ção da região circundante era composta, em sua maioria, de aissores. Conclu ímos, então, que a carta, sem dúvida, aludia a esse povo. Se era verdade que essa escola tinha existido, depois emigrado, n ão podia ser sen ão aissoriana; e se existia ainda, só poderia ser entre os aissores. Se se levasse em conta a indica ção dos tr ês dias de marcha de Mossul, deveria encontrar-se num lugar qualquer, entre Urmia e o Curdistão, e talvez não fosse dif ícil encontrar-lhe o local. Resolvemos, pois, ir até lá a qualquer preço, buscar onde estava situada a escola e depois fazer com que f ôssemos admitidos nela. Os aissores s ão os descendentes dos ass írios. Estão hoje dispersos pelo mundo. Encontram-se grupos na Transcaucasia, no Noroeste da P érsia, na Turquia Oriental e, de modo geral, em toda a Ásia Menor. Avalia-se seu número total em cerca de tr ês milhões. Pertencem, em sua maioria, ao culto nestoriano e n ão reconhecem a divindade de Cristo; encontram-se, também, entretanto, jabobitas, maronitas, cat ólicos, gregorianos e outros; há até, entre eles, iezidas, os adoradores do diabo, mas em pequeno número. Missionários pertencentes a diversas religi ões demonstraram recentemente grande zelo em converter os aissores. Cumpre, aliás, fazer justiça a estes últimos: não tiveram menos zelo em "se converter", auferindo dessas "convers ões" tantas vantagens que seu exemplo tornou-se proverbial. Embora pertencendo a cultos diferentes, quase todos os seus grupamentos est ão submetidos a um s ó patriarca, o da índia Oriental. Os aissores vivem realmente em aldeias governadas por padres. V árias aldeias formam, em conjunto, um distrito ou clã, governado por um pr íncipe ou, como o denominam, um melique; todos os meliques dependem do patriarca, cujas fun ções hereditárias se transmitem de tio a sobrinho e datam, dizem, de Sim ão, irmão do Senhor. Os aissores sofreram muito, durante a última guerra, no curso da qual tornaram-se joguete nas m ãos da Rússia e da Inglaterra, a tal ponto que metade deles pereceu, vítima da vingança dos curdos e dos 95 persas; quanto aos outros, se sobreviveram, foi unicamente gra ças a um diplomata americano, o Doutor X. . . e sua mulher. Os aissores, principalmente os aissores da Am érica - e são numerosos - deveriam, a meu ver, se o doutor X. . . ainda estiver vivo, manter permanentemente diante de sua porta uma guarda de honra aissoriana e, se estiver morto, erigir-lhe um monumento em sua p átria. No mesmo ano em que t ínhamos decidido nos p ôr em campo, desenvolveu-se um forte movimento nacionalista entre os arm ênios: todos tinham nos l ábios os nomes dos her óis que lutavam pela liberdade e principalmente o do jovem Andronikov, que se tornou mais tarde her ói nacional. Em toda parte, entre os armênios, os da Turquia e da P érsia bem como os da R ússia, formavam-se partidos e comitês; iniciavam tentativas de união, enquanto as mais sórdidas disputas eclodiam sem cessar entre eles. Em resumo, a Arm ênia suportava então uma violenta explosão política, como sucede de vez em quando, com todo o seu cortejo de conseq üências. Um dia, em Alexandr ópolis, fui como de hábito banhar-me de manhãzinha no rio Arpa-Tchai. A meio caminho, no local denom inado Karakuli, fui alcan çado por Pogossian, esbaforido. Disse que soubera na véspera, por uma conversa com o padre Z. . ., que o comit ê armênio buscava, entre os membros do partido, v ários voluntários para uma missão especial em Much. "De volta para casa, continuou Pogossian, veio-me de s úbito uma idéia: não poder íamos aproveitar esta ocasi ão para alcançar nossa meta, quero dizer, encontrar o rastro da confraria Sarmung? Estou de p é, desde a aurora, para vir discutir contigo, mas n ão te encontrei em casa e corri para te alcan çar." Interrompi-o e fiz-lhe ver que, primeiramente, não pertencíamos a nenhum partido e que, segundo. . . Não me deixou continuar, declarando j á haver pensado em tudo e j á saber como arranjar tudo; mas antes de empreender qualquer coisa, precisava saber se eu concordava com uma combinação desse gênero. Respondi que queria a qualquer pre ço atingir o vale que, um dia, tivera o nome de Izrumin e estava pronto a ir
de qualquer maneira, mesmo que fosse escanchado no dorso do diabo ou at é de braço com o cura Vlakov. (Pogossian sabia ser esse Vlakov o homem que eu 96 97 mais detestava no mundo e que sua presen ça me exasperava a mais de um quil ômetro de distância.) "Se dizes que podes arranjar isso, acrescentei, faz o que melhor te -parecer, de acordo com as circunst âncias. Aceito tudo, de antem ão, desde que alcancemos o lugar que me fixei como meta." Não sei o que fez Pogossian, a quem se dirigiu, nem o que contou, mas o resultado de todos os seus esfor ços foi que, alguns dias mais tarde, munidos de importante soma de dinheiro russo, turco e persa e de numerosas cartas de recomenda ção para pessoas que moravam em lugares diversos, ao longo de nosso itiner ário, deixamos Alexandr ópolis em direção a Kikisman. Ao cabo de duas semanas, atingimos as m argens do Araxe, que forma a fronteira natur al entre a Rússia e a Turquia e, com o aux ílio de curdos desconhecidos, que tinham enviado ao nosso encontro, atravessamos o rio. Parecia-nos que o mais dif ícil já tinha sido transposto e esper ávamos que, doravante, a sorte nos sorriria e tudo correria do melhor modo. Durante a maior parte do tempo, íamos a pé, parando em casa de pastores ou de camponeses, que nos tinham sido recomendados nas localidades j á transpostas ou em casa das pessoas para as quais t ínhamos cartas de Alexandr ópolis. Cumpre reconhecer que, embora tendo assumido para conosco uma certa obriga ção e esfor çando-nos para cumpri-la, na medida do possível, não perdíamos de vista a meta real de nossa viagem, cujo itiner ário nem sempre coincidia com os lugares para os quais nos haviam encarregado de uma miss ão: nesse caso, n ão hesitávamos, de modo algum, em desprezá-la e, a bem dizer, não sentíamos grandes remorsos de consci ência. Chegados ao outro lado da fronteira russa, decidimos transpor o colo do monte Agri Dagh. Era o caminho mais dif ícil, mas tínhamos desse modo mais probabilidades de evitar os bandos de curdos, muito numerosos nesse tempo, ou os destacamentos de turcos em persegui ção aos bandos arm ênios. Tendo transposto o colo, desviamos à esquerda em direção a Van, deixando à nossa direita as nascentes dos dois grandes rios, Tigre e Eufrates. Durante nossa viagem, aconteceram-nos milhares de aventuras, que n ão descreverei. H á uma, entretanto, que não poderia calar. Embora isto já se tenha passado h á muito tempo, não posso lembrar-me dela sem rir, reencontrando minhas impress ões de então, onde se misturavam o medo instintivo e o pressentimento de uma desgra ça iminente. Depois desse incidente, ca í freqüentemente nas mais cr íticas situações. Por exemplo, vi-me, por mais de uma vez, rodeado de dezenas de pessoas, cujas inten ções hostis não deixavam a menor dúvida; foi-me necessário cruzar o caminho de um tigre do Turquest ão; estive várias vezes na mira de um fuzil; mas nunca mais experimentei o mesmo sentimento que tive por ocasi ão desse incidente, por mais c ômico que pudesse parecer depois. Pogossian e eu segu íamos tranqüilamente. Cantarolava ele uma marcha, que escandia balan çando sua bengala. De repente, saindo n ão se sabe de onde, surgiu um c ão, depois outro, depois um terceiro, um quarto e at é quinze cães pastores - e todos começaram a latir para nós. Pogossian cometeu a imprudência de jogar-lhes uma pedra e atiraram-se sobre nós. Eram cães de pastores curdos, muito maus. Mais um momento e nos teriam despeda çado, se instintivamente eu não tivesse puxado Pogossian para for çá-lo a sentar-se comigo no meio do caminho. Pelo simples fato de estarmos sentados, os c ães cessaram de latir e de se atirar sobre n ós. Rodearam-nos e sentaram-se por sua vez. Decorreu certo tempo antes que recuper ássemos nossa presen ça de espírito. E quando, finalmente, nos demos conta de nossa situa ção, fomos acometidos, de súbito, por ataques de riso. Enquanto estávamos sentados, os c ães permaneciam sentados, tranq üila e pacificamente; comiam at é, com grande prazer, os peda ços de pão que lhes jogávamos e que hav íamos tirado de nosso saco de provis ões. Alguns deles at é abanavam a cauda em sinal de agradecimento. Mas, assim
que fazíamos menção de nos levantarmos, tranqüilizados por suas boas gra ças - "Pois sim! Nem de leve!" -, pulavam de pronto sobre as patas e mostravam as presas, prestes a saltar: éramos for çados a nos sentar de novo. À nossa segunda tentativa, sua agressividade tornou-se tal que n ão nos arriscamos uma terceira vez. Ficamos nessa situa ção cerca de tr ês horas e Deus sabe quanto tempo teria ela durado se, por sorte, uma menina curda, que colhia kiztak nos pastos, n ão tivesse aparecido ao longe com seu burro. Por toda esp écie de sinais conseguimos finalmente chamar sua aten ção. Aproximou-se e, vendo do que se tratava, foi buscar os pastores aos 98 99 quais pertenciam os c ães e que se encontravam n ão longe dali atr ás de uma pequena colina. Os pastores vieram e chamaram seus c ães. Mas só quando já estavam bastante afastados, nos decidimos a nos levantar: os canalhas, ao partir, voltavam-se a todo instante para vigiar-nos. Tínhamos sido muito ing ênuos, estimando que, depois de atravessado o rio Araxe, teriam terminado nossas piores provações. Em realidade mal começavam. A maior dificuldade foi que, depois d e termos transposto esse rio-f ronteira e atravessado o colo do m onte Agri-Dagh, não podíamos mais fazer-nos passar por aissores, como tínhamos feito até então, pela boa razão de que, no momento de nosso encontro com os c ães, já estávamos num território povoado por verdadeiros aissores. Fazer-nos passar por arm ênios, nessas regi ões, em que atualmente eram perseguidos por todos os outros povos, nem era bom pensar. Era t ão perigoso quanto fazer-nos passar por turcos e persas. Teria sido, sem d úvida, prefer ível apresentar-nos como russos ou como judeus, mas nem meu tipo nem o de Pogossian o permitiam. Cumpria mostrar-nos particularmente prudentes nessa época, se quis éssemos dissimular nossa verdadeira nacionalidade: quem fosse desmascarado correria os maiores perigos, pois ali ningu ém se preocupava com a escolha dos meios para desembara çar-se dos estrangeiros indesejáveis. Por exemplo, havíamos ouvido dizer, de fonte segura, que alguns aissores haviam recentemente esfolado vivos vários ingleses, que tentavam copiar certas inscri ções. Depois de haver deliberado por longo tempo, decidimos disfar çar-nos de tártaros do Cáucaso. Transformamos nossas vestimentas como pudemos e continuamos nossa viagem. Exatamente dois meses depois de termos atravessado o Araxe, chegamos à cidade de Z... Daí, devíamos passar por um desfiladeiro na direção da Síria e, depois, antes de atingir a célebre cascata de K. ... desviar em direção ao Curdistão, em cuja estrada devia encontrar-se, a nosso ver, o local que era o primeiro objetivo de nossa viagem. Já nos tínhamos adaptado, de maneira satisfat ória, às condições ambientes e nosso caminho prosseguia sem percalços, quando um incidente imprevisto transtornou todos os nossos planos e projetos. Um dia, sentados à beira do caminho, com íamos nosso pão com tarekh 4 que hav íamos trazido. De repente, Pogossian levanta-se e dá um grito e vejo uma enorme tarantula amarela que escapa por entre seus pés. Compreendi, de imediato, a razão de seu grito: pulei, matei a tarantula e precipitei-me para Pogossian. Havia-o picado na barriga da perna. Sabia que a picada desse animal venenoso é freqüentemente mortal; rasguei, de pronto, sua roupa para sugar a ferida, mas vendo que a picada era na parte tenra da perna e sabendo que, sugando uma ferida com o m ínimo arranhão na boca, expomo-nos a um envenenamento do sangue, escolhi o risco menor para n ós dois: tomando minha faca, dei um talho na parte gorda da barriga da perna de meu camarada - mas, em minha pressa, cortei um pouco mais do que devia. Tendo assim afastado qualquer perigo de envenenamento mortal, senti-me mais tranq üilo e pus-me a lavar a ferida e, depois, a at á-la mais ou menos. A ferida era profunda. Pogossian t inha perdido muito sangue e podia- se temer complicações. Por isso, no momento, não podíamos pensar em pôr-nos novamente a caminho. Que fazer? Era preciso encontrar uma solu ção de imediato. Depois de haver discutido sobre isso, decidimos passar a noite no local e, no dia seguinte de manh ã, buscar um
meio de chegar à cidade de N. . ., a cinq üenta quilômetros dali, onde est ávamos encarregados de entregar uma carta a um padre arm ênio, o que havíamos deixado de fazer, visto que essa cidade estava situada fora do itiner ário que nos havíamos traçado antes do acidente. No dia seguinte, com a ajuda de um velho curdo muito af ável que passava por ali, aluguei, numa aldeiazinha vizinha, uma esp écie de carreta puxada por dois bois, que servia para transportar estrume. Nela estendi Pogossian e partimos em dire ção a N. .. Levamos cerca de quarenta e oito horas para percorrer essa curta dist ância, parando de quatro em quatro horas para alimentar os bois. 4. Tarekh é um peixe bastante salgado, muito apreciado nessas paragens e que só se pesca no lago de Van 100 Uma vez na cidade de N. ... dirigimo-nos diretamente à casa do padre arm ênio para o qual, al ém da missiva, tínhamos uma carta de recomenda ção. Sua acolhida foi das mais am áveis. Sabedor do que tinha acontecido com Pogossian, ofereceu-se imediatamente para hospedá-lo em sua casa e, é claro, aceitamos com reconhecimento. A febre de Pogossian tinha subido durante o cam inho e, embora tivesse baixado ao cabo de tr ês dias, a ferida tinha apostemado e exigia muitos cuidados. Foi-nos necess ário aceitar a hospitalidade do padre durante cerca de um m ês. Pouco a pouco, gra ças a essa longa permanência sob seu teto e a freq üentes conversações que tínhamos sobre toda espécie de assuntos, estabeleceram-se rela ções mais estreitas entre mim e esse padre. Um dia, falou-me incidentalmente de um objeto que possu ía e contou-me a hist ória deste. Tratava-se de um velho pergaminho sobre o qual estava tra çada uma espécie de mapa. O objeto estava em sua família há muito tempo; havia-o recebido como heran ça de seu bisavô. "Há dois anos, explicou o padre, recebi a visita de um homem, que me era completamente desconhecido e que me pediu para mostrar-lhe o mapa. "Como poderia ter sabido que estava em meu poder? N ão tenho a menor id éia. "Isso pareceu-me suspeito e, como não sabia quem era, n ão quis mostrar-lho de imediato e até neguei que estivesse em meu poder. Mas esse homem insistiu tanto que disse para mim mesmo: "Por que n ão o deixar ver?" E foi o que fiz. "Mal o viu, pediu-me que lho vendesse e ofereceu-me duzentas libras. Era, certamente, uma grande soma, mas não tinha necessidade de dinheiro e n ão queria separar-me de um objeto de fam ília, ao qual me apegava como sendo uma lembran ça; recusei-me a cedê-lo. "O estrangeiro, como soube, tinha-se hospedado em casa do nosso bei. "No dia seguinte, veio um servidor do bei, a mando do viajante, propor-me novamente comprar o pergaminho, mas desta vez por quinhentas libras. "Devo dizer que, depois da partida do estrangeiro, muitas coisas pareceram-me suspeitas: o fato de que esse homem tivesse vindo, aparentemente, de muito lonnge, especialmente por causa desse pergaminho, 101 o meio misterioso pelo qual soube que esse mapa estava em meu poder e, por fim, o enorme interesse que tinha demonstrado ao v ê-lo. "Tudo isso provava bem que devia tratar-se de um objeto muito valioso. E, quando me ofereceu uma quantia de quinhentas libras, se bem que, no fundo, a proposta me tentasse, temi estar vendendo muito barato. Resolvi, pois, ser muito prudente e recusei de novo. "Na mesma noite, o desconhecido voltou para ver-me, acompanhado do pr óprio bei. Renovou sua oferta de quinhentas libras pelo pergaminho e recusei, imediatamente, vendê-lo por qualquer preço. Mas, como desta vez tinha vindo com nosso bei, convidei os dois para entrar em minha casa. "Enquanto tom ávamos caf é, falamos de uma coisa e de outra. Durante a conversa, soube que meu h óspede era um pr íncipe russo. "Disse-me que se interessava muito pelas antig üidades, que esse mapa enquadrava-se perfeitamente em suas coleções e que, como bom amador, tinha querido compr á-lo; achava que tinha oferecido uma quantia muito superior ao seu valor, julgava inconceb ível oferecer mais e sentia muito minha recusa em vend ê-lo.
"O bei, que nos escutava atentamente, interessou-se pelo pergaminho e manifestou o desejo de v ê-lo. "Quando o trouxe e ambos o examinaram, espantou-se muito sinceramente de que um objeto desse g ênero pudesse valer tanto. "De repente, o pr íncipe perguntou-me sob que condi ções permitiria que fizesse uma cópia de meu pergaminho. "Hesitei, não sabendo o que responder. A bem dizer, tinha receio de ter perdido um bom comprador. "Propôs-me, então, duzentas libras para deix á-lo tirar essa cópia. "Tinha escr úpulos de negociar ainda, pois, a meu ver, o pr íncipe me dava essa quantia por nada. "Vejam bem, recebia uma quantia de duzentas libras em troca de uma simples permiss ão de tirar uma c ópia do pergaminho! Sem mais refletir, aceitei o pedido do pr íncipe, dizendo-me que, afinal de contas, o pergaminho continuaria comigo e sempre poderia vend ê-lo, se o quisesse. "No dia seguinte pela manh ã, o pr íncipe veio à minha casa. Estendemos o pergaminho sobre a mesa; diluiu em água o gesso que trouxera e com ele cobriu o mapa, depois de tê-lo untado cuidadosamente com óleo. Ao cabo de alguns minutos, tirou o gesso, envolveu-o num peda ço de um velho djedjin que lhe dei, entregou-me duzentas libras e partiu. 102 "Desse modo, Deus enviou-me duzentas libras, a troco de nada e tenho ainda o pergaminho." O relato do padre me interessara vivamente, mas nada deixei transparecer e pedi-lhe, como se fosse por simples curiosidade, que me mostrasse esse objeto, pelo qual lhe haviam oferecido tanto dinheiro. O padre remexeu num cofre e dali retirou um rolo de pergaminho. Quando o desenrolou, n ão consegui de pronto decifr á-lo, mas, quando o olhei de mais perto. . . Meu Deus, que emoção!... Nunca esquecerei esse minuto. Fui acometido de um forte tremor, que aumentava mais ainda, porque esfor çava-me interiormente por controlá-lo. O que tinha sob os olhos n ão era exatamente o que tanto havia ocupado meu pensamento e h á meses não me deixava mais dormir? Era o mapa do que se chama o Egito antes das areias Esfor çando-me com dificuldade por manter um ar indiferente, falei de outra coisa. O padre enrolou o pergaminho e recolocou-o no cofre. Não era um pr íncipe russo para pagar duzentas libras por simples direito de c ópia e, no entanto, esse mapa talvez não me fosse menos necess ário que a ele. Por isso vi, de imediato, que cumpria a qualquer custo obter uma cópia e pus-me a refletir sobre o meio de obt ê-la. Nessa época, Pogossian sentia-se suficientemente bem para ser levado para o terra ço, onde passava longas horas sentado ao sol. Pedi-lhe que me fizesse saber quando o padre sa ísse para tratar de seus neg ócios e, no dia seguinte, ao seu sinal, introduzi-me furtivamente no quarto, a fim de experimentar uma chave que pudesse abrir o cofre. Da primeira vez, não consegui notar os detalhes da fechadura e s ó da terceira vez, depois de ter limado a chave muito bem, consegui ajust á-la. Uma noite, na antevéspera de nossa partida, aproveitei-me da aus ência do padre para entrar em seu quarto, retirar o pergaminho do cofre e levá-lo para nosso quarto, onde passamos a noite toda, Pogossian e eu, decalcando minuciosamente o mapa, sobre-o qual t ínhamos colocado papel oleado. No dia seguinte, recoloquei o pergaminho no seu lugar. A partir do momento em que trazia comigo, cosido de maneira invis ível, no forro de minha roupa, esse tesouro misterioso, tão cheio 103 de promessas, todos os meus interesses e projetos anteriores se evaporaram, por assim dizer. Sentia crescer em mim o desejo imperioso de ir, o mais depressa poss ível, aos lugares onde esse tesouro me permitiria enfim aplacar essa necessidade de saber que, desde dois ou tr ês anos, me roía interiormente, sem me deixar repouso algum. Depois dessa fa çanha que, se se podia justificar, nem por isso deixava de ser um ato imperdoável para com o padre armênio, que se tinha mostrado t ão hospitaleiro, comecei a atormentar meu camarada Pogossian, ainda mal restabelecido, e convenci-o a n ão poupar seus magros recursos financeiros e a comprar dois desses bons cavalos de montaria da região onde est ávamos, que havíamos notado durante nossa perman ência, como por exemplo
esses pequenos trotadores, cuja andadura nos entusiasmava. Assim, poder íamos partir, o mais depressa poss ível, em direção à Síria. E verdadeiramente esses cavalos t êm tal andadura que se pode ser levado à velocidade de v ôo de um grande pássaro, mantendo na m ão um copo cheio d água, sem derramar nem uma só gota. Não descreverei aqui todas as perip écias de nossa viagem, nem as circunst âncias imprevistas que nos obrigaram muitas vezes a mudar de itiner ário. Direi apenas que quatro meses, dia ap ós dia, depois de nos havermos despedido do generoso e acolhedor padre arm ênio, estávamos já na cidade de Smirna, onde na mesma noite de nossa chegada fomos arrastados a uma aventura que deveria fazer com que o destino de Pogossian tomasse um rumo decisivo. Nessa noite, est ávamos sentados num pequeno restaurante grego do local, para nos distrairmos um pouco, depois de nossos intensos esfor ços e das emoções pelas quais tínhamos passado. Bebíamos tranqüilamente o famoso douzico, enquanto belisc ávamos, aqui e ali, segundo o costume, os tira-gostos variados que estavam em pequenos pires, desde cavala seca até gr ão-de-bico salgado. Havia ainda, no restaurante, vários grupos de convivas, em sua maioria marinheiros estrangeiros, cujos navios faziam escala nesse porto. Esses marinheiros faziam grande algazarra: era evidente que j á haviam visitado mais de uma taverna e tinham, como se diz, "enchido a cara". Entre os convivas de diversas nacionalidades, sentados em mesas separadas, de vez em quando estouravam brigas, que a princ ípio redufciram-se a uma barulhenta troca de apóstrofes, num jargão especial, 104 constituído por uma mistura de grego, turco ou italiano; e nada fazia, prever o que ia acontecer. Não sei como se acendeu o estopim mas, de s úbito, um grupo de marinheiros levantou-se de um s ó bloco e investiu, aos gritos e com gestos amea çadores, sobre alguns marinheiros instalados não longe de n ós. Estes levantaram-se, por sua vez, e num relance a briga estava no auge. Pogossian e eu, algo excitados tamb ém pelos vapores do douzico, corremos em socorro do pequeno grupo de marinheiros. Não sabíamos, em absoluto, do que se tratava nem quem tinha ou quem n ão tinha razão. Quando os outros convivas do restaurante e a patrulha militar que passava por ali nos separaram, constatou-se que nem um s ó dos combatentes tinha sa ído são e salvo: um tinha o nariz quebrado, o outro cuspia sangue e assim por diante. Estava no meio deles, condecorado com um enorme tapa-olho roxo no olho esquerdo; Pogossian, entre duas pragas em arm ênio, gemia e ofegava queixando-se a mim de uma dor intoler ável sob a quinta costela. Uma vez "acalmada a tempestade", como teriam dito os marinheiros, Pogossian e eu, achando que bastava por essa noite e que j á nos tínhamos "divertido" o bastante com pessoas que nem sequer tinham perguntado nosso nome, voltamos aos trancos e barrancos para nos deitar. Não se pode dizer que tenhamos sido muito tagarelas, no caminho de volta; batia as p álpebras sem querer e Pogossian resmungava e se injuriava por "ter-se metido no que não era de sua conta". No dia seguinte, no caf é da manhã, depois de m últiplos comentários a respeito do nosso estado f ísico e da maneira passavelmente idiota pela qual nos t ínhamos comportado na véspera, decidimos não transferir para mais tarde a viagem ao Egito que t ínhamos projetado, calculando que um longo per íodo no navio e o ar puro do mar curariam, sem deixar traços, todas as nossas "feridas de guerra". Dirigimo-nos, pois, imediatamente ao porto, para tentar encontrar um navio, ao alcance de nossa bolsa, de partida para Alexandria. Um veleiro grego estava justamente a ponto de levantar âncora com destino a Alexandria e fomos correndo ao escritório da companhia de navega ção a quem pertencia o navio, para pedir todas as informações necessárias. 105 Estávamos já diante da porta do escrit ório, quando um marinheiro correu em nossa direção, muito agitado e,
taramelando um turco descosido, p ôs-se a apertar fogosamente, ora minha mão, ora a de Pogossian. No início, não compreendíamos nada. Depois, tornou-se claro que era um dos marinheiros ingleses que havíamos ajudado na v éspera à noite. Tendo-nos feito um gesto para esperar, afastou-se rapidamente e retornou, ao cabo de alguns minutos, acompanhado de tr ês de seus camaradas. Um deles, como soubemos mais tarde, era oficial. Agradeceram-nos calorosamente pelo que hav íamos feito na véspera e convidaram-nos, com insistência, para irmos tomar um cálice de douzico, num restaurante grego pr óximo. Depois de tr ês copos desse milagroso douzico, digno descendente do masiik divino dos antigos gregos, nossa conversa tornou-se mais barulhenta e mais livre, gra ças à faculdade, que cada um de n ós havia herdado, de fazer-se compreender por meio da m ímica grega e da gesticulação romana, bem como com o aux ílio de palavras tomadas das línguas de todos os portos do mundo. Quando souberam de nossa inten ção de ir para Alexandria, a a ção benéfica do digno descendente dessa inven ção dos antigos gregos não deixou de se manifestar em todo o seu esplendor. Os marinheiros, como se houvessem esquecido nossa exist ência, puseram-se a discutir, sem que pudéssemos perceber se estavam brigando ou gracejando entre si. E, de repente, dois deles, bebendo de um trago seu copinho, sa íram precipitadamente, enquanto os outros dois tentavam como podiam, num tom enternecidamente benevolente, tranqüilizar-nos e convencernos de alguma coisa. Pouco a pouco, adivinhamos o do que se tratava e o que se seguiu provou que est ávamos certos: os dois camaradas, que acabavam de se ausentar, tinham ido tomar as providências para que pud éssemos embarcar no seu navio, que partia no dia seguinte para o Pireu, da í para a Sicília e, depois da Sic ília, para Alexandria, onde faria escala por duas semanas antes de zarpar para Bombaim. Os marinheiros custaram a voltar. Enquanto esper ávamos por eles, rendemos ao prestigioso descendente do mastik as honras que lhe eram devidas, n ão sem acompanhá-las de uma rajada de imprecações colhidas em todas as l ínguas. 106 107 Por mais agradável que fosse essa maneira de passar o tempo, esperando not ícias favor áveis, Pogossian, que se lembrava, sem dúvida, de sua quinta costela, perdeu de súbito a paciência e pôs-se a gritar, exigindo imperiosamente que volt ássemos imediatamente para casa; além disso, afirmava-me, com a maior seriedade, que eu começava a ficar com o outro olho roxo. Achando que Pogossian ainda n ão estava totalmente refeito da mordida da tarantula, n ão quis contrariá-lo. Levantei-me docemente e, sem dar explica ções aos companheiros que o acaso nos havia dado para liquidar com o douzico, segui-o. Surpresos com a partida inesperada e silenciosa de seus defensores da v éspera, os marinheiros levantaram-se, por sua vez, e nos alcan çaram. Tínhamos um caminho bastante longo a percorrer. Cada um de n ós se distraía a seu modo: um cantava, outro gesticulava como para provar alguma coisa a alguém, um terceiro assobiava uma marcha guerreira . . . Chegados à casa, Pogossian deitou-se sem se despir. Quanto a mim, emprestei minha cama ao mais velho dos marinheiros, estendi-me no ch ão e fiz sinal para o outro deitar-se ao meu lado. Durante a noite, fui acordado por horr ível dor de cabe ça e, lembrando-me aos bocados do que se tinha passado na noite anterior, recordei-me, entre outras coisas, dos marinheiros que nos haviam acompanhado; mas, olhando em torno do quarto, constatei que tinham partido. Readormeci. A manhã já estava bem avan çada, quando fui despertado pelo ruído da louça em que Pogossian mexia preparando o ch á e, pelos tons de certa ora ção armênia que entoava todas as manh ãs: Loussatzav loussn est parine yes avadam dzer guentaninn. Nesse dia, nem Pogossian nem eu t ínhamos vontade de tomar ch á; tínhamos, ao contr ário, necessidade de algo ácido. Contentamo-nos com água fria e, sem trocar uma palavra, tornamos a nos deitar.
Sentíamo-nos ambos muito deprimidos e muito miser áveis. Além de tudo, tinha a impressão de que uma dezena de cossacos tinha passado a noite em minha boca, com seus cavalos e suas armas. Estávamos ainda na cama, mergulhados no mesmo estado, e cada um de n ós pensava silenciosamente seus pensamentos, quando a porta abriu-se com estrondo. Tr ês marinheiros ingleses irromperam no quarto. S ó um pertencia ao nosso pequeno grupo da v éspera; os dois outros, v íamos pela primeira vez. Tentaram explicar-nos alguma coisa, cortanto a palavra um do outro a cada instante. À for ça de fazer-lhes perguntas e de quebrar nossa cabe ça, compreendemos enfim que nos pediam que nos levantássemos, nos vest íssemos às pressas e os acompanh ássemos até o navio, pois tinham obtido de seus chefes a permiss ão de levar-nos "na condi ção de empregados civis de navegação". Enquanto nos vest íamos, os marinheiros continuavam a conversar alegremente, como pod íamos ver pela expressão de seus rostos; depois, com grande espanto de nossa parte, levantaram-se todos tr ês de um salto e puseram-se a arrumar nossa bagagem. Enquanto acabávamos de nos vestir, de chamar o ustabash do caravan çar á e de pagar nossa conta, todos os nossos pertences j á estavam cuidadosamente embalados. Os marinheiros dividiram-nos entre si e fizeram-nos sinal para acompanh á-los. Descemos à rua e nos dirigimos para o porto. Ao longo do cais, esperava-nos uma barca com dois marinheiros. Remaram por m eia hora, ao som de intermináveis canções inglesas e abordamos um navio de guerra bastante grande. Éramos visivelmente esperados, pois, apenas sobre o conv és, vários marinheiros se apoderaram de nossa bagagem e nos conduziram a uma pequena cabine, situada no por ão, perto da cozinha e que, evidentemente, fora preparada para n ós. Depois de nos termos instalados mais ou menos mal nesse canto bastante sufocante, mas que nos parecia muito confortável, acompanhamos at é o convés superior um dos marinheiros que havíamos defendido no restaurante. Sentamo-nos sobre rolos de cabos e, de pronto, quase toda a equipagem de bordo, simples marinheiros ou oficiais subalternos, fez roda em torno de n ós. Todos esses homens, sem distin ção de posto, pareciam sentir a nosso respeito um sentimento de benevol ência muito acentuado; cada um considerava um dever apertar-nos a mão e constatando nossa ignor ância da l íngua inglesa, esfor çava-se tanto por gestos como por palavras colhidas ao leu, dizer-nos algo de agrad ável. Durante essa conversa bastante original, um deles, que falava um grego mais ou menos toler ável, sugeriu que cada um dos assistentes tomasse como tarefa, durante a travessia, aprender diariamente pelo menos vinte palavras: n ós em inglês, eles em turco. Esta proposta foi aprovada por ruidosas aclama ções e dois marinheiros - nossos amigos da v éspera ocuparam-se, de imediato, em 108 109 escolher e relacionar as palavras inglesas que dev íamos, a seu ver, aprender em primeiro lugar, enquanto Pogossian e eu faz íamos uma lista de palavras turcas para eles. Quando o bote que trazia os oficiais superiores encostou e chegou o momento da partida, os homens se dispersaram pouco a pouco para cumprir suas respectivas obriga ções. Pogossian e eu pusemo-nos, de pronto, à obra para aprender nossas primeiras vinte palavras de ingl ês, escritas em nossa intenção em letras gregas, de acordo com o princípio da fonética. Estávamos cativados pelo estudo dessas vinte palavras, esfor çando-nos por pronunciar corretamente esses sons inusitados, t ão estranhos a nossos ouvidos, que a noite caiu e o navio saiu do porto sem que nos tiv éssemos apercebido disso. Para arrancar-nos de nosso trabalho, foi necess ária a chegada de um marinheiro, perambulando ao ritmo do balanço, que nos veio explicar, por gestos muito expressivos, que era hora de comer e nos levou at é nossa cabine, junto à cozinha. Depois de termos entrado em acordo durante a refei ção e de termos pedido conselho ao marinheiro que falava um pouco de grego, decidimos pedir permiss ão - que obtivemos na mesma noite - eu, para polir desde o dia seguinte os ferros e cobres do navio e Pogossian, para fazer um
trabalho qualquer na casa das m áquinas. Não me alongarei sobre os eventos que marcaram nossa estada a bordo desse navio de guerra. No dia de nossa chegada a Alexandria, despedi-me calorosamente de nossos acolhedores marinheiros e deixei o navio com a inten ção bem decidida de alcan çar o Cairo o mais depressa poss ível. Quanto a Pogossian, que tinha feito amizade com v ários marinheiros e que o trabalho nas m áquinas apaixonava, tinha expressado o desejo de permanecer a bordo e de prosseguir viagem. T ínhamos combinado que nos manter íamos em contato. Como soube mais tarde, Pogossian, depois de nossa separa ção, continuou a trabalhar nesse navio de guerra inglês, na seção de m áquinas. De Alexandria, partiu para Bombaim, fez escala em diversos portos australianos e, finalmente, desembarcou na Inglaterra, no porto de Liverpool. Aí, por insistência de seus novos amigos e com seu apoio, Pogossian entrou para uma escola da marinha onde, enquanto se dedicava a estudos técnicos muito avan çados, conseguiu aperfei çoar seu conhecimento de ingl ês. Ao cabo de dois anos, recebia o título de engenheiro mec ânico. Para terminar este capítulo, consagrado ao primeiro camarada e amigo de minha juventude, Pogossian, quero registrar aqui um traço original de seu psiquismo, aparente desde sua mais tenra idade e bem caracter ístico de sua individualidade: Pogossian estava sempre ocupado, trabalhava sempre em alguma coisa. Nunca ficava de bra ços cruzados, nunca o v íamos recostar-se como seus camaradas, para devorar livros que nada trazem de real e cujo único propósito é o de distrair. Se não tinha nada de especial para fazer, balan çava os braços em cadência, ou marchava no lugar ou, ainda, entregava-se a toda esp écie de manipulações com os dedos. Perguntei-lhe, um dia, porque bancava assim o idiota, em vez de repousar, pois ningu ém pagaria nunca por esses serviços inúteis. "Tens razão, respondeu. Atualmente ningu ém me pagar á por essas "macaquices tolas", como dizes, tu e todos os que foram salgados no mesmo tonel. Mais tarde, por ém, ser ão vocês mesmos, ou seus filhos, que me pagar ão por tê-las feito. "Brincadeira à parte, faço isto porque amo o trabalho. Não é com minha natureza que o amo, pois ela é tão preguiçosa quanto a dos outros homens e n ão quer nunca fazer algo de útil. Amo o trabalho com meu bom senso." E, depois, acrescentou: "E, por favor, não percas de vista que, quando emprego a palavra eu, deves entend ê-lo, não como meu Eu integral, mas somente como minha inteligência. Amo o trabalho e dei-me a tarefa de chegar, por minha perseverança, a que toda a minha natureza ame o trabalho - e n ão apenas minha razão. "Ademais, estou absolutamente convencido de que, no mundo, um trabalho consciente nunca se perde. Cedo ou tarde, alguém deve pagar por ele. Por conseguinte, se trabalho assim hoje em dia, sirvo ao mesmo tempo a duas de minhas metas: primeiro, talvez habitue minha natureza a não ser preguiçosa e, segundo, garanto minha velhice. Como sabes, meus velhos n ão me deixar ão, seguramente, uma heran ça que possa me bastar, quando n ão tiver mais for ças para ganhar a vida. 110 "E, acima de tudo, trabalho porque, na exist ência, o único conforto é trabalhar não constrangido, mas conscientemente. Eis o que distingue o homem dos asnos de Karabagh, que também trabalham noite e dia." Essa maneira de raciocinar foi, mais tarde, plenamente justificada pelos fatos. Embora tivesse passado toda a sua juventude, isto é, o tempo mais precioso de que disp õe o homem para assegurar sua velhice, em viagens aparentemente in úteis, sem nunca se preocupar em juntar dinheiro para seus últimos anos e só tenha empreendido verdadeiros neg ócios cerca de 1908 é, hoje em dia, um dos homens mais ricos da terra. Quanto à honestidade dos meios que p ôs em pr ática para adquirir suas riquezas, isto est á fora de causa. Tinha razão, quando dizia que um trabalho consciente nunca se perde. Em verdade, trabalhou como um boi, noite e dia, honesta e conscientemente, durante toda a vida, quaisquer que fossem as condi ções e as circunst âncias. Deus lhe conceda hoje o repouso que mereceu!
*** 6 ABRAM YELOV Depois de Pogossian, Abram Yelov foi uma das personalidades mais not áveis que encontrei em minha idade preparatória, uma das que, voluntária ou involuntariamente, serviram de fator de vivificação para formação definitiva de um dos aspectos de minha individualidade atual. Conheci-o na época em que, tendo j á perdido qualquer esperança de aprender de meus contempor âneos qualquer coisa v álida sobre as quest ões que então me apaixonavam, tinha voltado de Etchmiadzine para T íflis e mergulhara na leitura dos textos antigos. Tinha regressado a T íflis porque ali podia obter todos os livros de que precisava. Por ocasião de minha última estada, encontrava-se ainda ali, sem dificuldade, todo tipo de livros raros, escritos em todas as l ínguas, notadamente em arm ênio, georgiano e árabe. Chegado a Tíflis, instalei-me desta vez num bairro denominado Didubai. Da í, saía quase todos os dias para perambular no Bazar dos Soldados, numa das ruas que costeiam a oeste o parque Alexandre e onde se encontra a maior parte dos livreiros da cidade. Nessa rua, em frente às livrarias, havia pequenos comerciantes ambulantes e sebos que espalhavam sobre o chão, sobretudo nos dias de mercado, seus livros e suas gravuras populares. Entre esses pequenos comerciantes, havia um jovem aissor que vendia, comprava ou aceitava em comiss ão toda espécie de livros. Era Abram Yelov, Abrachka, como o chamavam em sua juventude - um cara astuto como qu ê, mas para mim um amigo insubstituível. Já era, nessa época, uma esp écie de catálogo ambulante. De fato, conhecia in úmeros títulos de livros em quase todas as línguas do mundo, 112 com nome de autor, cidade onde haviam sido editados, data de publica ção e, até mesmo, o local onde se poderia encontr á-los. Comecei por comprar-lhe algumas obras; com a continua ção, trocava por outras as que j á lera ou ent ão devolvia-as; por sua vez, ele me ajudava a encontrar os livros de que precisava. N ão tardamos a fazer amizade. Nessa época, Abram Yelov queria se engajar no ex ército. Pretendia entrar para a Escola de Cadetes e passava quase todo o seu tempo livre repassando o que era preciso saber para o exame de admiss ão; entretanto, como a filosofia o apaixonava, ainda encontrava um meio de ler numerosas obras sobre assuntos dessa ordem. Foi nosso interesse comum por essa busca que nos aproximou. T ínhamos adquirido o hábito de nos encontrar quase todas as noites, no parque Alexandre ou no Muchta íd e discutirmos sobre temas filosóficos. Remexíamos freqüentemente montes de livros velhos e cheguei at é a ajudá-lo em seu com ércio, nos dias de mercado. Nossa amizade tornou-se mais s ólida, devido às seguintes circunst âncias: Nos dias de mercado, a dois passos do local onde Yelov vendia seus livros, um grego tinha seu mostru ário. Expunha uma ampla variedade de objetos de gesso: estatuetas, bustos de homens c élebres, figurinhas, o Amor e Psique, o pastor e a pastora e mealheiros de todos os tamanhos, em forma de gatos, cães, porcos, maçãs, peras ou outras frutas - em resumo, todos os horrores com que ent ão era moda enfeitar as mesas, cômodas e aparadores. Um dia em que as vendas estavam calmas, Yelov mostrou-me com o olhar todos esses objetos e disse em sua singular linguagem: "Quem ganha um monte de dinheiro é quem fabrica toda essa pacotilha. Dizem que é um gringo italiano de passagem, que faz essas porcarias em sua barraca; e gra ças a esses ambulantes embrutecidos, como esse grego a í, enche seus bolsos com o dinheiro que esses pobres diabos que compram tais horrores para enfeitar seus rid ículos apartamentos têm tanta dificuldade em ganhar. "E, enquanto isso, n ós ficamos aqui o dia todo, marcando passo e sofrendo com o frio, para ter o direito de nos engasgarmos à noite com uma c ôdea de pão de milho,
se não quisermos morrer de fome; e amanhã de manhã, teremos que voltar para arrastar o mesmo grilhão maldito." Esperei um pouco e logo me aproximei do ambulante grego. Confirmou-me que era, de fato, um italiano que confeccionava tais estatuetas, 113 tomando todas as precau ções para que ningu ém descobrisse seus segredos de fabrica ção. "Somos doze ambulantes aqui, acrescentou, e somos apenas suficientes para vender essas pequenas obras-primas em toda a cidade de T íflis." Essas confidencias e a indigna ção de Yelov estimularam-me e veio-me a idéia de lograr esse italiano, tanto mais que, nesse momento, sentia em mim a necessidade de fazer algum negócio, pois meu dinheiro j á estava fugindo, "como os judeus do Éxodo". Inicialmente, é claro, dirigi-me ao ambulante grego, excitando propositalmente seus sentimentos patri óticos e, depois de ter elaborado em pensamento um plano de ação, fui com ele à casa do italiano pedir trabalho. Felizmente, um dos rapazes que trabalhavam com ele tinha sido despedido por causa de um furto de ferramenta e o italiano precisava de um ajudante para derramar água enquanto fazia a pasta de gesso. Como concordei em trabalhar pelo sal ário que quisesse dar-me, contratou-me na hora. Seguindo o plano que me havia tra çado, desde o primeiro dia banquei o imbecil. Trabalhava por tr ês, mas quanto ao resto, fazia o papel de tolo. Por isso, o italiano, rapidamente, come çou a me apreciar e ante tal paspalh ão, que não oferecia nenhum perigo para ele, não escondeu mais seus segredos com tanto cuidado quanto diante dos outros. Ao cabo de duas semanas, j á sabia como efetuar muitas opera ções. O patr ão me chamava, quer para segurar a cola, quer para tornar a mistura mais fluida; penetrei assim, no "santo dos santos" e logo fiquei conhecendo todos os pequenos segredos, tão importantes nesse g ênero de trabalho. E são verdadeiramente importantes; por exemplo, quando se amassa o gesso, é necessário saber exatamente quantas gotas de lim ão se deve adicionar, para que o gesso n ão entumesça e as figurinhas fiquem lisas; do contr ário, pode aparecer um furo horr ível sobre as extremidades mais finas da estatueta, tais como o nariz, a orelha, etc. É igualmente indispens ável conhecer a propor ção de cola, de gelatina e de glicerina que entram na confec ção dos moldes: um pouco a mais ou a menos e tudo se estraga. Quem conhecer a marcha a ser seguida, sem possuir esses segredos, ser á incapaz de obter bons resultados. 114 Em resumo, um mês e meio mais tarde, apareceram no mercado pequenas estatuetas de minha fabrica ção. Aos modelos do italiano, acrescentei at é algumas cabe ças cômicas que se enchiam de serragem, para colocar canetas. A seguir, pus à venda mealheiros especiais, que alcançaram o maior sucesso - batizara-os de a enferma acamada. Creio que, em breve, não houve uma s ó casa em Tíflis que não possuísse um de meus mealheiros. com a continuação, vários oper ários passaram a trabalhar em minha casa; contratei at é seis georgianas como aprendizes. Yelov, encantado, ajudava-me em tudo. Acabou abandonando o com ércio de livros nos dias úteis. Ao mesmo tempo, prossegu íamos, ambos, nosso trabalho pessoal, a leitura dos livros e o estudo dos problemas filosóficos. Passados alguns meses, como tinha economizado uma quantia apreci ável e o atelier começava a me aborrecer, vendi-o por bom preço a dois judeus, enquanto ia de vento em popa. Obrigado a deixar o apartamento, que era anexo ao atelier, mudei-me para a rua dos Molocans, perto da estação, e Yelov veio morar comigo, trazendo seus livros. Yelov era de pequena estatura, atarracado, amorenado; tinha olhos candentes como brasa, uma cabeleira abundante, com sobrancelhas espessas e uma barba que crescia até debaixo do nariz e lhe cobria quase toda a face, cuja tez avermelhada aparecia apesar de tudo. Nascera na Turquia, na região de Van, em Bítlis ou nos seus arredores. Dali, quatro ou cinco anos antes de nosso encontro, tinha emigrado para a R ússia com sua fam ília. Chegado a Tíflís, foi admitido no primeiro liceu, como se diz ali; mas, embora os costumes fossem muito simples e sem cerim ônia, nesse estabelecimento, algumas de suas travessuras e artes foram al ém dos limites e foi expulso pelo conselho de disciplina. Pouco depois, seu pai
expulsou-o de casa e, desde ent ão, viveu à graça de Deus. Em resumo, como ele pr óprio dizia, tinha-se tornado a chaga da fam ília. No entanto, sua m ãe, às escondidas do pai, enviava-lhe freqüentemente dinheiro. Yelov tinha pela m ãe um sentimento muito terno, que se revelava at é nos m ínimos detalhes. Por exemplo, tinha sua fotografia pendurada sobre a cama; nunca sa ía de casa sem beij á-la primeiro e, quando voltava, exclamava sempre, ao cruzar a porta: "bom dia, m ãe", ou "Boa noite, mãe". 115 Parece-me, hoje, que eu o estimava ainda mais por esse tra ço. Yelov amava também o pai, mas à sua maneira - achava-o mesquinho, vaidoso e obstinado. O pai de Yelov era empreiteiro e era tido como um homem muito rico. Al ém disso, era um personagem muito importante entre os aissores, sem d úvida porque descendia, embora pela linha feminina, da fam ília dos Marshimum, à qual pertencera outrora o pr óprio rei dos aissores. Hoje em dia, os aissores n ão têm mais reis, mas seus patriarcas são sempre originários dessa linhagem. Abram tinha um irm ão que estudava ent ão na América, creio que em Filadélfia. Desse não gostava nem um pouco, tendo a idéia bem assentada de que era al ém de um ego ísta, um hipócrita e um animal sem coração. Yelov possuía maneiras muito originais; tinha, entre outros, o hábito de sempre puxar as cal ças e, mais tarde, tivemos muita dificuldade em fazê-lo perder essa mania. Pogossian implicava muito com ele a esse respeito. Dizia: "E dizer-se que querias ser oficial! No primeiro encontro com um general, pobre imbecil, ter-te-iam enviado para o xadrez, porque em vez de levar a m ão ao quépi, tê-la-ias levado às... calças" - e Pogossian se exprimia com muito menos delicadeza. Pogossian e Yelov passavam o tempo se provocando; mesmo quando se falavam amigavelmente, nunca deixavam de se agraciarem com alguns ep ítetos. Yelov tratava Pogossian de armênio salgado e o outro lhe respondia khatchagokb. Chamam-se comumente os arm ênios de arm ênios salgados e os aissores de kbatchagokh. Khaíchagokh significa literalmente "ladr ão de cruz". Parece que a origem desse cognome é a seguinte: De modo geral, os aissores s ão rematados astutos. Na Transcaucasia, s ão até definidos dessa maneira: Cozinhem juntos sete russos, ter ão um judeu: cozinhem sete judeus e ter ão um armênio, mas precisar ão de sete arm ênios para obter um aissor. Entre os aissores, espalhados quase em toda parte, havia uma quantidade de padres. Sua maioria havia-se, aliás, ordenado a si pr óprio. Nada lhes era mais f ácil nessa época: vivendo na região do monte Ararat, que marcava o limite de tr ês países - a Rússia, a Turquia e a Pérsia tinham tr ânsito livre por todas as fronteiras e 116 faziam-se passar por aissores turcos na R ússia; na Pérsia, por russos; e assim por diante. Não se contentavam em celebrar os of ícios, mas também se dedicavam, junto às populações piedosas e incultas, ao lucrativo tr áfico de santas relíquias de qualquer gênero. Por exemplo, lá no fundo da R ússia, conquistavam a confian ça dos fiéis, fazendo-se passar por padres gregos, sempre venerados e faziam bons neg ócios vendendo objetos trazidos, diziam, de Jerusal ém, do Monte Atos ou de outros lugares sempre muito venerados. Entre essas rel íquias, havia fragmentos da verdadeira cruz, na qual Cristo foi crucificado, cabelos da Virgem Maria, unhas de S ão Nicolau de Mira, um dente de Judas como talism ã, um pedaço da ferradura do cavalo de S ão Jorge e até mesmo uma costela ou o cr ânio de algum grande santo. Tais objetos eram comprados, com grande venera ção, pelos ingênuos cristãos, principalmente pelos pequenos negociantes. Numerosas rel íquias, que se encontram hoje em dia nas casas ou nas in úmeras igrejas da Santa Rússia, não têm freqüentemente outra origem. Eis por que os arm ênios, que conheciam bem de perto esses malandros, lhes deram o apelido de "ladr ões de cruzes". Quanto aos arm ênios, são denominados "salgados" porque t êm o costume de quando nasce uma crian ça, salgá-la. Acrescentarei que, a meu ver, esse costume não é destituído de valor. Observações especiais mostraram-me que, entre os outros povos, os rec ém-nascidos quase sempre sofrem de erupções cutâneas, nas partes do corpo onde se tem o h ábito de passar talco para evitar a irritação,
ao passo que, com raras exce ções, as crianças armênias que nascem nas mesmas regi ões ficam isentas, embora tenham todas as outras enfermidades infantis. Atribuo este fato ao seu h ábito de salgar os recém-nascidos. Yelov não se parecia em nada com seus compatriotas; era notadamente desprovido de uma particularidade de car áter que lhes é típica: embora fosse muito arrebatado, não era vingativo. Suas c óleras eram de curta duração e, se lhe acontecia ofender algu ém, uma vez passada sua raiva não sabia como apagar o que havia dito. Mostrava-se cheio de escr úpulos com relação à religião dos outros. Um dia, no curso de uma conversa ção sobre a intensa propaganda que faziam, nessa época, os mission ários de quase todos os países da Europa, para converter os aissores a suas respectivas cren ças, disse-nos: 117 "A questão não é saber a quem o homem dirige suas preces, mas qual é sua f é. A f é é a consciência moral que se enraíza no homem durante a inf ância. Se o homem muda de religião, perde sua consci ência e a consci ência é o que existe de mais precioso no homem. "Respeito sua consci ência; e, como sua consci ência é mantida por sua f é e sua f é por sua religião, respeito sua religião. E, para mim, seria um grande pecado julgar sua religião ou tirar-lhe suas ilusões sobre ela e, assim, destruir nele a consci ência moral, que s ó se pode adquirir na inf ância." No dia em que nos exp ôs esse racioc ínio, Pogossian lhe perguntou: - E por que querias ent ão ser oficial? Eis que as faces de Abram se ruborizaram e gritou-lhe furiosamente: -. Vai para o diabo, tarantula salgada! Yelov demonstrava um singular apego por seus amigos. Estava pronto a dar sua alma por aquele a quem se sentia ligado. Depois de melhor se conhecerem, Yelov e Pogossian se apegaram enormemente um ao outro. Que Deus conceda a todos os irm ãos o terem tais relações entre si! Mas as manifestações exteriores dessa amizade eram muito particulares e dif íceis de explicar. Tanto se estimavam quanto eram grosseiros um com o outro. Mas, sob essas maneiras rudes, escondia-se um sentimento tão terno, que era imposs ível vê-lo manifestar-se sem ser tocado por ele at é o âmago da alma. A mim, que sabia o que dissimulavam essas grosserias, muitas vezes aconteceu-me não poder me conter e vinham-me aos olhos lágrimas de enternecimento. Por exemplo, diante de cenas deste g ênero: Yelov foi convidado para algum lugar. Ofereceram-lhe bombons. A polidez exigiria que os comesse, para n ão ofender seus amigos. E, no entanto, Yelov, que adora bombons, não os comeu de modo algum: escondeu-os no bolso para traz ê-los para Pogossian. Mas, em vez de simplesmente dar-lhos, acompanha seu gesto de toda esp écie de zombarias e de um punhado de inj úrias. De ordinário, isso se passava assim: durante o jantar, em meio à conversa, fingia encontrar por acaso os bombons no fundo do seu bolso e dava um punhado a Pogossian, dizendo: 118 - Como diabo tamanha sujeira veio parar no meu bolso? Vamos, enche a pan ça com essa porcaria! É tua especialidade empanturrares-te com tudo o que os outros n ão querem mais. Pogossian tomava-os, resmungando, por sua vez: - Esses petiscos n ão são para a tua goela! Só serves para cevar-te de bolotas como teus irm ãos, os porcos! E enquanto Pogossian comia os bombons, Yelov tomava um ar de desprezo e respondia: - Olha só como ele se empanturra! Regala-se como um asno de Karabagh que mastiga cardos. Depois, vai trotar atr ás de mim como um cãozinho, porque lhe dei essas porcarias... E a conversa prosseguia no mesmo tom. Yelov, que era um fenômeno devido à sua mem ória para livros e autores, tornou-se mais tarde um fenômeno, devido ao seu conhecimento de l ínguas. Eu, que falava ent ão dezoito, era um principiante perto dele. Ainda não sabia nem uma palavra das l ínguas européias e já ele sabia quase todas e com tanta perfei ção, que era dif ícil adivinhar que não provinha do pa ís cuja língua falava. Um dia, por exemplo, ocorreu o seguinte: O professor de arqueologia Skridlov (de quem se tratar á mais adiante), desejava transportar certa relíquia sagrada afegã para a margem russa do rio Amu-Dária. Isso
parecia imposs ível, devido à severa vigil ância que exerciam na fronteira, tanto os guardas afeg ãs como os soldados ingleses que eram, aí, por uma ou outra raz ão, muito numerosos. Yelov conseguiu, em algum lugar, um velho uniforme de oficial brit ânico, vestiu-o e apresentou-se no posto de guarda, fazendo-se passar por um inglês da índia, que tinha vindo a essas paragens para ca çar tigres do Turquestão. Cativou tão bem assim a aten ção de todos, com suas histórias inglesas, que pudemos transportar tudo o que quer íamos de uma margem à outra, sem que os soldados ingleses percebessem. Além de tudo o que havia empreendido, Yelov prosseguia ativamente seus estudos. N ão se engajou no ex ército, como tinha tido a intenção de fazê-lo, mas partiu para Moscou onde passou brilhantemente no exame de admiss ão para o Instituto Lazarev. Alguns anos mais tarde, obteve uma licenciatura em filologia, na Universidade de Kazan, se não me falha a memória. 119 Se Pogossian tinha uma concep ção particular sobre o trabalho f ísico, Yelov tinha um ponto de vista muito original sobre o trabalho intelectual. Dizia: "De todo modo, nosso pensamento trabalha tanto de noite quanto de dia. Em vez de deix á-lo correr atr ás do chapéu que torna invisível, ou das riquezas de Aladim, mais vale ocup á-lo com algo útil. Impor uma direção ao seu pensamento exige, evidentemente, certa soma de energia, mas para um dia inteiro não é necessário mais do que se necessita para a digest ão de uma única refeição. Tomei, pois, a decisão de aprender línguas, não somente para impedir que meu pensamento ficasse ocioso, mas para evitar que fosse atrapalhar minhas outras fun ções, com seus sonhos idiotas e suas infantilidades. E, aliás, o conhecimento de l ínguas pode sempre ser útil um dia ou outro." Esse amigo de minha juventude ainda est á vivo. Leva hoje uma exist ência pr óspera, numa cidade da Am érica do Norte. Durante a Guerra Mundial, estava na Rússia e vivia a maior parte do tempo em Moscou. A Revolu ção Russa surpreendeu-o na Sibéria, onde tinha ido inspecionar uma das suas numerosas livrariaspapelarias. Durante esses anos de guerra, teve que passar por todo tipo de prova ções e seus bens foram varridos da face da terra. Há tr ês anos, seu sobrinho, o doutor Yelov, chegou da Am érica e persuadiu-o a emigrar para lá. 121 *** 7 O PRÍNCIPE YURI LUBOVEDSKY Entre os homens not áveis que conheci, um dos mais extraordin ários foi o pr íncipe russo Yuri Lubovedsky. Muito mais velho do que eu, foi durante muito tempo o mais velho de meus camaradas e meu mais íntimo amigo. Nosso encontro no caminho da vida e os estreitos la ços que nos uniram, durante longos anos, tiveram como causa longínqua e indireta um evento tr ágico, que outrora rompera sua vida de fam ília. Em sua mocidade, quando era oficial da Guarda, o pr íncipe se havia profundamente enamorado de uma belíssima jovem, cujo car áter correspondia ao seu e tinha-se casado com ela. Moravam na casa do pr íncipe, em Moscou, na rua Sadovaia. Quando seu primeiro filho nasceu, a princesa morreu de parto. O pr íncipe, buscando um derivativo à sua dor, ocupou-se de in ício com o espiritismo, esperando assim entrar em comunicação com o espírito de sua querida defunta; depois, sem que ele pr óprio se desse conta, tomou-se de crescente interesse pelas ci ências ocultas e, de modo mais geral, pela busca do sentido da vida. Interessou-se por isso a tal ponto, que mudou completamente seu g ênero de exist ência: não recebia mais ninguém, não ia mais a parte alguma e, trancado em sua biblioteca, estudava sem descanso certos problemas relativos ao ocultismo, que o apaixonavam.
Um dia em que estava muito absorto em suas leituras, um anci ão desconhecido veio incomod á-lo em seu trabalho, com surpresa de todos da casa, o pr íncipe recebeu-o imediatamente e depois encerrou-se com ele na biblioteca, onde tiveram uma longa conversa. Pouco tempo ap ós essa visita, o pr íncipe deixou Moscou e, desde ent ão, passou quase todo o tempo na África, na índia, no Afeganistão e na Pérsia. Só muito raramente voltava à Rússia, quando era indispens ável e apenas para breves estadas. O pr íncipe, que era muito rico, consagrava toda a sua fortuna às pesquisas, organizando expedi ções especiais aos lugares onde pensava encontrar uma resposta para suas perguntas. Viveu por muito tempo em certos mosteiros e conheceu numerosas pessoas que se interessavam pelos mesmos problemas que ele. Quando o encontrei pela primeira vez, j á era homem de meia idade e eu era apenas um rapaz. Desde esse dia, até à sua morte, mantivemos constantes relações. Esse encontro ocorreu no Egito, ao p é das Pir âmides, pouco depois da época de minha viagem com Pogossian. Voltava de Jerusal ém, onde tinha ganho dinheiro levando estrangeiros para visitar as curiosidades da cidade, principalmente russos, aos quais dava as explica ções usuais. Em resumo, havia-me tornado um guia profissional. Assim que cheguei ao Egito, decidi exercer al i a mesma profiss ão. Falava muito bem grego e árabe, bem como italiano, indispensável então a qualquer europeu. Em poucos dias, assimilara tudo o que um guia deve saber e, juntamente com um bando de moleques árabes, pus-me a enrolar turistas ingênuos. Já tarimbado nesse gênero de exercícios, tinha-me tornado guia a fim de ganhar o dinheiro necess ário para aquilo que havia decidido empreender. Devo dizer que meus bolsos não estavam precisamente "recheados" nessa época. Um dia, um russo tomou-me como guia. Soube depois que era o professor de arqueologia Skridlov. Uma manhã em que íamos da Esfinge à pir âmide de Quéops, foi interpelado por um homem que come çava a ficar grisalho, o qual o tratou de coveiro e, todo contente pelo encontro, perguntou-lhe como ia. Falavam russo entre si; meu patr ão, não sabendo que eu falava russo, dirigia-se a mim em péssimo italiano. Sentaram-se ao pé da pir âmide. Instalei-me não longe deles, de maneira que, enquanto comia meu tchurek, acompanhava com nitidez tudo que diziam. Compreendi, logo, que o homem em questão era um pr íncipe. Entre outras coisas, perguntou ao professor: 122 123 - É verdade que se obstina em atormentar as cinzas de indiv íduos mortos há muito tempo e coleciona toda espécie de velharias sem valor algum, sob pretexto de que foram, um dia, utilizadas por um povo qualquer para sua vida tola? - Que quer? - replicou o professor. - Ao menos é algo real, tang ível e não uma coisa incompreens ível como aquela à qual consagrou sua vida, em vez de aproveitar-se dela a fundo, como homem rico e cheio de sa úde. "Busca uma verdade inventada por algum louco ocioso. O que eu pr óprio faço talvez n ão traga nada de muito satisfatório à curiosidade mas, afinal de contas, se se quiser, pode-se encher os bolsos." Falaram assim por longo tempo. Depois, meu patr ão quis ver outra pir âmide e despediu-se do pr íncipe, depois de ter marcado um encontro com ele nas ru ínas de Tebas. Devo dizer que, nas minhas horas livres, percorria todos esses lugares como um possesso, com meu mapa do antigo Egito em mãos, esperando, graças a ele, encontrar uma explicação para a Esfinge e certos outros monumentos antigos. Alguns dias depois do encontro do professor com o pr íncipe, eu estava sentado ao p é de uma pir âmide e refletia, com o mapa aberto diante de mim. De repente, senti que alguém se debruçava sobre mim. Dobrei precipitadamente o mapa e voltei-me; era o homem que havia interpelado meu patr ão, o professor Skridlov, diante da pir âmide de Quéops. Pálido e muito emocionado, perguntou-me em italiano onde havia obtido aquele documento. Pelo seu aspecto, pelo interesse que manifestava por esse mapa, veio-me à idéia de que bem podia ser o pr íncipe, do qual me havia falado o padre arm ênio em cuja casa eu tinha copiado o mapa às escondidas. Em vez de responder à pergunta, perguntei-lhe, por minha vez, em russo, se n ão era o homem que tinha querido comprar um mapa a certo padre. ..
- Sim, sou eu, disse. E sentou-se ao meu lado. Contei-lhe então quem era, como estava de posse do mapa e como j á ouvira falar dele. Começávamos a travar conhecimento. Quando se tranq üilizou, propôs-me acompanhá-lo até à sua casa, no Cairo, para prosseguir ali, com vagar, nossa conversa. A partir desse dia, o interesse que t ínhamos em comum criou entre n ós uma verdadeira ligação e voltamos a ver-nos com freqüência. Nossa correspond ência nunca deveria cessar. Durante todo esse per íodo, fizemos juntos várias viagens à índia, ao Tibete e a diversos lugares da Ásia Menor. Nosso pen último encontro ocorreu em Constantinopla, onde tinha um palacete em Pera, perto da embaixada da Rússia e onde, de vez em quando, fazia estadas prolongadas. Esse encontro ocorreu nas seguintes circunst âncias: Eu voltava de Meca, em companhia de dervixes bucarianos, com quem travara conhecimento e de v ários peregrinos sartas que voltavam para suas casas. De Constantinopla, queria ir a Tíflis, passar por Alexandr ópolis, para ali visitar meus pais, e depois ir para Bucara com os dervixes. Meu encontro imprevisto com o pr íncipe, entretanto, ia obrigarme a modificar todos os meus planos. Quando cheguei a Constantinopla, soube que nosso navio s ó partiria dentro de seis a sete dias. Essa espera de uma semana era mais que desagrad ável para mim. Ficar assim desocupado, balan çando os braços, nada tinha de particularmente agrad ável. E decidi aproveitar esse adiamento para ir a Brussa, à casa de um dervixe amigo meu e, na mesma ocasi ão, visitar a famosa Mesquita Verde. Passeando pela margem, em Gaiata, resolvi ir à casa do pr íncipe, para me lavar, pentear e rever a simpática Mariam Badji, a velha governanta arm ênia do pr íncipe. De acordo com sua última carta, o pr íncipe já deveria ter chegado a Ceil ão; fiquei, pois, muito surpreso ao saber que ainda estava em Constantinopla e at é que estava em casa. Como já disse, nós nos correspond íamos com freqüência, o pr íncipe e eu, mas já não nos víamos há dois anos e foi uma surpresa feliz. Minha partida para Brussa foi adiada. Renunciei at é ao meu projeto de ir diretamente ao Cáucaso, tendo-me o pr íncipe pedido para acompanhar at é à Rússia uma jovem, cujo encontro o obrigara a transferir sua viagem ao Ceilão. Nesse mesmo dia, fui ao ham ã e, depois de me aprontar, jantei com o pr íncipe. Falou-me de si pr óprio e contou-me, com muita animação e de maneira muito viva, a hist ória da jovem que eu devia acompanhar à Rússia. 126 "A jovem Vitvitskaia era muito bela e, ao contr ário da irmã mais velha, muito fr ívola. Tinha numerosos pretendentes. Entre eles, um caixeiro viajante que a seduziu e a levou para S ão Petersburgo. Tendo brigado com a irm ã mais velha, reclamou sua parte da heran ça. "Em São Petersburgo, o caixeiro viajante, depois de lhe ter tirado tudo, desapareceu, deixando-a sem recurso algum nessa cidade estrangeira. "Depois de muita luta e vicissitudes, tornou-se finalmente amante de um velho senador. Mas este, em breve, ficou com ciúmes de um jovem estudante e expulsou-a. "Foi então introduzida na "respeit ável" família de um doutor, que a utilizava de maneira muito original para aumentar sua clientela. "A mulher do doutor encontrara-a no jardim defronte do teatro Alexandre, tinha-se sentado perto dela e a persuadira a vir morar com eles. Depois, tinha-lhe ensinado a seguinte manobra: "Devia passear na Perspectiva Nevski e, quando um homem a abordasse, n ão devia desencoraj á-lo, mas ao contr ário dar-lhe algumas esperan ças e permitir-lhe que a acompanhasse até em casa. "Deixava o acompanhante na porta. Este último, naturalmente, indagava sobre ela à porteira e ficava sabendo que era dama de companhia da mulher do doutor. De tal modo que o doutor via afluir à sua casa toda espécie de novos clientes, que inventavam doen ças variadas, com a esperança secreta de um encontro agrad ável... "Tanto quanto pude estudar a natureza de Vitvitskaia, continuou o pr íncipe com convic ção, deve ter sempre experimentado, em seu subconsciente, uma repugn ância por essa vida e somente a necessidade a constrangeu a sujeitar-se a ela.
"Um dia em que passeava pela Nevski, procurando atrair a aten ção de eventuais clientes para o doutor, encontrou por acaso seu irm ão mais moço, que não via há muitos anos. "Estava muito bem vestido e dava a impress ão de ser um homem rico. "Esse encontro com o irm ão tinha sido como um raio de sol em sua vida sombria. "Dissê-lhe ele que tratava de negócios em Odessa e tamb ém no estrangeiro. "Quando soube da vida dif ícil que ela levava, prop ôs-lhe vir para junto dele em Odessa, onde conhecia muita gente e poderia arranjar-lhe uma boa situação. Concordou. 127 "Desde sua chegada em Odessa, seu irm ão encontrou-lhe, numa fam ília respeitável, um lugar interessante, com esperanças para o futuro - a de governanta em casa do cônsul da Rússia em Alexandria. "Ao fim de alguns dias, apresentou-a a um senhor muito distinto que, justamente, ia tamb ém para Alexandria e consentia em viajar junto com ela. "E foi assim que embarcou um belo dia no navio, em companhia desse respeit ável ancião. "Você conhece o resto..." O pr íncipe repetiu que, a seu ver, s ó as circunstâncias e as tristes condi ções de sua vida de fam ília tinham levado essa jovem à beira do precipício. Sua natureza não estava estragada e havia nela o germe de excelentes qualidades. Por isso, resolvera intervir em sua vida e recoloc á-la no bom caminho. "Antes de tudo, concluiu o pr íncipe, preciso mandar essa infeliz para a casa de minha irm ã, na minha propriedade da província de Tambov, para que possa ali repousar por completo. Depois do que, veremos..." Conhecendo o idealismo e a bondade do pr íncipe, estava c ético quanto ao seu empreendimento e pensava que, no presente caso, seus esfor ços bem poderiam ser em v ão. Dizia para mim mesmo: "Tudo o que cai da carreta est á perdido." Mesmo antes de ver Vitvitskaia, não sei por que, sentia uma esp écie de ódio por ela; mas, como não podia recusar isso ao pr íncipe, tinha consentido, embora a contragosto, acompanhar essa "mulher à-toa". Vi-a pela primeira vez alguns dias mais tarde, por ocasi ão do embarque. Era morena, bastante alta, muito bela e bem feita de corpo. Tinha olhos bons e honestos que, às vezes, se tornavam diabolicamente astuciosos. Parece-me que a Tais da história devia ter quase o mesmo tipo que ela. Quando a vi, surgiu em mim um sentimento duplo: ora sentia ódio dela, ora piedade. Conduzia-a, pois, à província de Tambov. Viveu por muito tempo com a irm ã do pr íncipe, que se tomou de grande amizade por ela e a levou ao estrangeiro para longas perman ências, principalmente na Itália. 128 Pouco a pouco, ao contato com o pr íncipe e sua irm ã, interessou-se pelas id éias deles, que em breve se tornaram parte integrante de sua essência. Pôs-se a trabalhar sobre si mesma com convic ção - e quem quer que a encontrasse, ainda que uma vez s ó, podia sentir os efeitos desse trabalho. Após tê-la acompanhado à Rússia, levei muito tempo sem revê-la, Foi somente quatro anos mais tarde que novamente me encontrei com ela por acaso, na It ália, com a irmã do pr íncipe Yuri Lubovedsky, em circunstâncias das mais originais. Sempre perseguindo minha meta, cheguei um dia a Roma; como o dinheiro estava acabando, segui o conselho de dois jovens aissores que acabara de conhecer e, com sua ajuda, instalei-me na calçada como engraxate. Cumpre dizer que, no in ício, meus negócios não foram nada brilhantes. Por isso, para aumentar minha renda, decidi dar a essa profiss ão aspecto novo e pouco banal. Encomendei uma poltrona especial, sob a qual instalei um fon ógrafo Edison, invis ível aos passantes. De fora s ó se via um tubo de borracha, provido de audiofones e disposto de tal modo que, quando um homem se sentava na poltrona, os audiofones ficavam ao alcance de seus ouvidos. Só precisava pôr a m áquina para funcionar discretamente. Assim, enquanto engraxava os sapatos, meu cliente p odia ouvir A Marselhesa ou alguma grande ária de ópera, x Ademais, fixei no bra ço direito da poltrona uma espécie de bandeja, sobre a qual pousava um copo, uma
garrafa de água e vermute, bem como jornais ilustrados. Em conseqüência, meus negócios prosperaram: dessa vez, come çaram a chover liras e n ão "centesimi". Os turistas, jovens e ricos, eram particularmente generosos. À minha volta havia sempre muitos basbaques. Esperavam a vez para se sentarem na poltrona onde, enquanto lhes engraxava os sapatos, deleitar-se-iam com alguma coisa inédita, enquanto se exibiam aos olhos dos idiotas vaidosos de sua esp écie, que espaireciam ali durante o dia todo. Observei muitas vezes uma jovem mulher, na multidão que me rodeava. Atra ía minha atenção porque me parecia conhec ê-la mas, por falta de tempo, nunca a olhava de muito perto. 129 Um dia, por acaso, ouvi sua voz, no momento em que dizia em russo à senhora de idade que a acompanhava: "Aposto que é ele"; e a coisa intrigou-me tanto que livrei-me dos clientes como pude, fui direto a ela e perguntei-lhe em russo: - Por favor, diga-me quem é. Parece-me que a vi em algum lugar. - Sim, disse, sou aquela a quem voc ê odiava outrora t ão intensamente, que as pobres moscas que se encontravam no campo de vibra ções de seu ódio caíam mortas. "Se se lembra do pr íncipe Lubovedsky, lembrar-se- á, talvez, também, da infeliz que acompanhou de Constantinopla até a Rússia." Reconheci-a, de pronto, bem como à senhora idosa a seu lado, que era a irm ã do pr íncipe. Desde esse dia at é sua partida para Monte Carlo, fui todas as noites conversar com elas em seu hotel. Um ano e meio após esse encontro, juntou-se a n ós, em companhia do professor Skridlov, no local de reuni ão de uma de nossas grandes expedi ções e, desde então, tomou parte em todas as caminhadas de nosso grupo errante. Para dar uma visão caracter ística do mundo interior de Vitvitskaia - essa mulher que estivera à beira da ru ína moral e, graças aos homens de qualidade que teve a sorte de encontrar no caminho de sua vida, tornou-se tal que, se ouso diz ê-lo, poderia servir de ideal para qualquer mulher - contentar-me-ei com um exemplo. Era apaixonada pela ci ência da m úsica. E a conversa ção que ambos tivemos, no curso de nossas expedi ções, mostrar á bem com que seriedade considerava essa ci ência. Ao atravessar o centro do Turquest ão, tivemos permissão, graças a recomendações eficazes, de entrar num mosteiro muito fechado e ali passamos tr ês dias. Na manhã de nossa partida, Vitvitskaia apareceu p álida como a morte, trazendo o braço numa tipóia. Não pôde subir sozinha no cavalo e tive que ajud á-la junto com um camarada. Quando nossa caravana se p ôs em marcha, levei meu cavalo para o lado do seu, um pouco atr ás dos outros. Queria saber o que acontecera e crivei-a de perguntas. Pensava que talvez um de nossos camaradas se tivesse comportado como um bruto e ousado faltar-lhe ao respeito, a ela, essa mulher 131 que todos consider ávamos uma santa e estava ansioso por saber quem era esse covarde, para mat á-lo ali mesmo, como se fosse uma simples perdiz, sem nem mesmo descer do cavalo. Às minhas perguntas, Vitvitskaia acabou respondendo que seu estado n ão tinha outra causa sen ão essa "maldita música" e perguntou-me se me lembrava da m úsica da antevéspera. E como me lembrava! Via ainda a todos, sentados num canto do mosteiro, quase solu çando, escutando a música monótona que os frades tocavam durante uma de suas cerim ônias. A seguir, tínhamos discutido longamente, sem que nenhum de n ós fosse capaz de explicar o que se tinha passado. Depois de alguns instantes de sil êncio, Vitvitskaia, por si mesma, continuou a falar; o que disse sobre a origem de seu estranho estado teve a forma de um relato. Não sei se a paisagem que nos rodeava era particularmente admir ável nessa manhã ou se havia qualquer outra razão, mas do que ent ão me disse, com pungente sinceridade, lembro-me hoje quase palavra por palavra, depois de tantos e tantos anos. Cada uma de suas palavras gravou-se em meu cérebro com tal for ça, que parece-me ainda ouvi-la neste momento. Começou assim: "Não me lembro se alguma coisa na m úsica me tocava interiormente, quando era muito jovem, mas lembro-me
muito bem de como raciocinava ent ão sobre o assunto. "Como toda gente, tinha medo de parecer ininteligente e, quando elogiava ou criticava uma pe ça, fazia-o unicamente com a cabe ça. Mesmo que a m úsica que ouvia me fosse totalmente indiferente, quando pediam minha opini ão, declarava-me pr ó ou contra, segundo as circunstâncias. "Às vezes, quando todo mundo se desmanchava em elogios, tomava o partido contr ário, utilizando todas as palavras técnicas que conhecia, a fim de que as pessoas pensassem que eu não era qualquer uma, mas uma pessoa instruída, capaz de julgar de tudo. Outras vezes, fazia coro com os outros para condenar o trecho, pensando que como a criticavam, havia nela, seguramente, alguma coisa que eu ignorava, mas cumpria criticar. "Em compensação, se a aprovava, era por sentir que seu autor - fosse quem fosse, e sendo sua profiss ão compor - não a teria tornado pública se não o merecesse. "Em resumo, tanto elogiando quanto criticando, nunca era sincera, nem para comigo nem para com os outros e não sentia, aliás, nenhum remorso de consci ência. "Mais tarde, quando a velha irm ã do pr íncipe Lubovedsky me acolheu sob sua asa, convenceu-me a aprender piano, pois, para ela, toda mulher inteligente e de boa educa ção devia saber tocar esse instrumento. "Para agradar a essa querida senhora idosa, consagrei-me inteiramente ao estudo do piano. Ao cabo de seis meses, tocava suficientemente bem para que me pedissem que participasse de um concerto beneficente e todos os nossos amigos que assistiam a esse concerto cumularam-me de elogios e se extaasiaram com o meu "talento". "Um dia, ao terminar de tocar, a querida senhora idosa veio sentar-se perto de mim e disse-me, com muita gravidade e solenidade que, como Deus me havia concedido tal dom, seria grande pecado negligenciá-lo e não permitir que desabrochasse completamente. Acrescentou que, tendo começado a estudar m úsica, eu devia aprender a conhecê-la a fundo, para n ão tocar como qualquer Maria Ivanova. Por isso, incitava-me a, inicialmente, estudar a teoria da m úsica e, mesmo, se necess ário, a preparar concursos. "A partir desse dia, mandou vir para mim toda esp écie de obras sobre a m úsica e chegou a ir at é Moscou para compr á-las. Depressa, alinhavam-se grandes estantes cheias de livros e obras musicais ao longo das paredes de meu quarto de estudos. "Entreguei-me, com fervor, ao estudo da teoria da m úsica, não só porque quisesse agradar à minha benfeitora, mas porque tinha tomado gosto pela m úsica e meu interesse pelas leis da harmonia aumentava dia a dia. "Os livros que possu ía, por ém, nada me podiam dar, pois neles n ão se explicava o que era realmente a m úsica, nem como se tinham constitu ído suas leis. Ao contr ário, a cada página, encontrava-se o mesmo g ênero de indicações: que entre n ós a oitava consta de sete notas, mas que entre os antigos chineses s ó constava de cinco; que entre os antigos eg ípcios a harpa se chamava tebuni e a flauta mem; que as antigas melodias gregas eram construídas sobre modos variados, t ônico, fr ígio, dórico e outros; que no s éculo IX a polifonia tinha feito sua aparição e tivera resultados tão catastr óficos, que citavam-se até casos de partos prematuros, tendo a m ãe levado um choque ao ouvir essa m úsica nova, no órgão da igreja; que no s éculo XI, certo monge, Guido d'Arezzo, inventara o solfejo, etc. Tratava-se ali, sobretudo, dos 132 133 músicos c élebres e de suas carreiras. Chegava-se at é a descrever as gravatas e os óculos que usavam os compositores mais famosos. Mas quanto à pr ópria essência da música e à influência que exerce sobre o psiquismo dos homens, sobre isso n ão se falava em parte alguma. "Passei um ano inteiro estudando essa pretensa teoria da m úsica. Li quase todos os meus livros e cheguei à convicção definitiva de que essa literatura nada me daria. Todavia, como meu interesse pela m úsica só fazia crescer, renunciei a qualquer leitura e mergulhei nos meus pr óprios pensamentos. "Um dia, por desfastio, peguei na biblioteca do pr íncipe um livro intitulado O Mundo das Vibrações, que deu uma orientação bem definida às minhas reflexões sobre
a música. O autor da obra n ão era, de modo algum, m úsico e era at é visível que n ão se interessava pela m úsica. Era engenheiro e matem ático. Numa passagem de seu livro, aludia à m úsica, mas simplesmente a t ítulo de exemplo, para explicar as vibrações; dizia que os sons musicais comportam certa vibra ção que atuam necessariamente no homem sobre certas vibrações correspondentes e essa é a razão pela qual o homem gosta ou n ão gosta desta ou daquela m úsica. De pronto compreendi isso e fiquei totalmente de acordo com as hip óteses do engenheiro. "Desde então, todos os meus pensamentos foram dirigidos nessa dire ção e, quando falava com a irm ã do pr íncipe, esfor çava-me sempre para levar a conversa para a m úsica e sua real significação, a tal ponto que, por sua vez, ela se interessou pela quest ão. Discutíamos juntas sobre isso e tentávamos experi ências. "Especialmente com essa inten ção, a irmã do pr íncipe comprou v ários gatos e c ães, bem como outros animais. "Às vezes, convid ávamos alguns de nossos empregados para essas sess ões; servíamos chá e eu tocava piano para eles durante horas a fio. "A princípio não obtivemos resultado algum. Um dia, por ém, que cham áramos cinco de nossos empregados e dez camponeses da aldeia, que outrora haviam pertencido ao pr íncipe, metade adormeceu ao me ouvir tocar uma valsa de minha autoria "Repetimos essa experi ência várias vezes e, a cada vez, aumentava o n úmero dos que adormeciam. Apesar, entretanto, das tentativas que fiz, juntamente com minha velha amiga, para compor de acordo com os mais diversos princ ípios uma m úsica suscetível de produzir outros efeitos sobre os ouvintes, nunca conseguimos sen ão adormecê-los. "De tanto trabalhar e pensar na m úsica sem cessar, terminei por fatigar-me e por emagrecer, a tal ponto que um dia, notando o estado em que me encontrava, minha benfeitora teve medo e, a conselho de um de nossos amigos, apressou-se a levar-me para o estrangeiro. "Partimos para a Itália. Ali, tomada por outras impress ões, restabeleci-me pouco a pouco. E somente cinco anos mais tarde é que, depois de haver assistido às experiências dos frades monopsiquistas, durante a viagem que fiz com voc ê ao Pamir e ao Afeganist ão, pus-me novamente a refletir sobre o poder da m úsica - sem, no entanto, dedicar-lhe a mesma paixão que antigamente. "Para diante, cada vez que me lembrava de minha primeira tentativa, n ão podia impedir-me de rir de nossa ingenuidade de ent ão e do sentido que d ávamos ao sono de nossos convidados. N ão nos ocorria a id éia de que esses homens adormeciam de bom grado, simplesmente porque haviam adquirido o h ábito de se sentirem como em sua casa e lhes era agrad ável, depois de uma longa jornada de trabalho, comerem bem, tomarem um copo de vodca oferecido pela boa senhora idosa e, depois, instalarem-se em poltronas confortáveis. "Depois de nossa visita aos frades monopsiquistas, voltei para a R ússia e, lembrando-me de suas explicações, retomei minhas pesquisas. "Como aconselhavam os frades, determinei o l á absoluto, de conformidade com a press ão atmosf érica tomada no pr óprio local dessas experi ências, e afinei meu piano levando em conta as dimens ões do aposento. Por outro lado, escolhi, para meus ensaios, sujeitos que j á tinham sido submetidos muitas vezes às impressões de certos acordes. Finalmente, levei em considera ção o car áter do lugar e da ra ça à qual pertencia cada um dos assistentes. "Todavia não obtinha resultados ou seja, n ão consegui, por meio de uma única e mesma melodia, despertar um sentimento idêntico em todos os ouvintes. "Quando correspondiam exatamente às condições exigidas, podia, sem d úvida, suscitar neles à vontade o riso ou as lágrimas, a maldade ou a bondade e assim por diante. Mas, nos homens de ra ça misturada ou quando o psiquismo do sujeito se afastava um pouco do comum, as reações diferiam novamente e, quaisquer que fossem meus esfor ços, não podia conseguir fazer com que aparecesse em todos eles sem exce ção o humor que desejava, por meio de uma única e mesma m úsica. Abandonei mais uma vez, pois, minhas pesquisas, acreditando poder considerar-me satisfeita com os resultados que obtivera. "Eis, por ém, que antes de ontem essa m úsica, quase sem melodia, suscitou o mesmo estado em todos n ós, que somos de raças e de nacionalidades totalmente diferentes e temos até caracteres, tipos, hábi134
tos e temperamentos opostos. Não se pode explicar a coisa pelo "sentimento de rebanho", pois, como certas experiências recentes nos mostraram, tal sentimento est á totalmente ausente em todos os nossos camaradas e isto gra ças ao trabalho que realizaram sobre si mesmos. Em resumo, nada havia ali, antes de ontem, daquilo que teria podido provocar esse fenômeno ou daquilo que teria permitido explicá-lo. E quando, após a m úsica, voltei para o quarto, despertou-se em mim o desejo intenso de conhecer a causa real desse enigma, sobre o qual quebrara minha cabe ça durante tanto tempo. "Estava tão atormentada pela necessidade de compreender o que isso podia significar, que n ão dormi a noite toda; e não cessei de me interrogar durante todo o dia seguinte. "Perdi até o apetite: não comi nem bebi nada. E, esta manhã, meu desespero era tal que, de raiva ou esgotamento ou qualquer outra raz ão, mordi meu dedo sem me dar conta, com tamanha for ça, que quase o arranquei da m ão - eis por que estou com o bra ço na tipóia. Dói tanto, que mal posso manter-me a cavalo." Sua história tocou-me muito. Desejava ajudá-la de todo o cora ção. Por isso falei-lhe, por minha vez, de um fenômeno extraordinário de que tinha sido testemunha por acaso, no ano anterior e que também se referia à música. Contei-lhe pormenorizadamente como, graças a uma carta de recomenda ção de um homem de alto valor, o Padre Evlissi, que fora meu mestre na inf ância, tinha sido admitido entre os ess ênios, em sua maior parte israelitas que, por meio de música e cantos hebraicos antigos, tinham feito crescer plantas no espa ço de meia hora. E descrevi-lhe como tinham procedido. Meu relato cativou-a a tal ponto, que suas faces se tornaram roscas. O resultado de nossa conversa ção foi que decidimos nos instalar, assim que estivéssemos de volta à Rússia, numa cidade onde pud éssemos, sem ser importunados por ningu ém, empreender experiências sobre a m úsica, com seriedade. Durante o resto da viagem, Vitvitskaia, retornada ao seu normal, tratou-nos como sempre o fazia. Apesar de seu dedo ferido, escalava os rochedos com mais agilidade que todos os outros e podia distinguir os monumentos que serviam de pontos de refer ência a quase vinte quilômetros de distância. Vitvitskaia morreu na Rússia; havia-se resfriado durante uma viagem de tren ó sobre o rio Volga. Foi enterrada em Samara. Lá estava no momento de sua morte, pois assim que adoecera tinha sido chamado de Tachkent. 135 Quando me lembro dela, agora que j á transpus o cabo da primeira metade de minha vida, visitei quase todos os países do mundo e entrei em contato com milhares e milhares de mulheres, devo reconhecrer que nunca encontrei uma mulher como essa e, sem d úvida, nunca mais encontrarei. Voltando ao mais velho de meus camaradas, o amigo de minha ess ência, o pr íncipe Lubovedsky, direi que deixou Constantinopla pouco depois de minha pr ópria partida e não o revi por muitos anos. Recebia, entretanto, periodicamente cartas dele, de modo que sempre sabia, mais ou menos, onde estava e qual era, nesse momento, o interesse dominante de sua vida. Dirigiu-se, primeiramente, à ilha de Ceilão; empreendeu depois uma expedi ção para subir o curso do índo até sua nascente. Mais tarde, escreveu-me ainda, ora do Afeganist ão, ora do Beluchist ão ou do Kafiristão. Nossa correspond ência cessou, ent ão, bruscamente e não ouvi mais falar nele. Tinha acabado por convencer-me de que perecera no curso de alguma de suas viagens e tinha-me habituado, pouco a pouco, à idéia de ter perdido para sempre o homem que me era mais chegado, quando o encontrei de maneira inesperada, no pr óprio coração da Ásia, em circunstâncias excepcionais. A fim de melhor situar m eu último encontro com aquele que representa, a meu ver, nas condi ções atuais da vida, um ideal digno de ser proposto aos homens, cumpre-me mais uma vez interromper meu relato, para falar de certo Soloviev, que tamb ém foi um de meus camaradas. Soloviev tornou-se um especialista em medicina oriental e, mais particularmente, em medicina tibetana; foi também o primeiro especialista do mundo, no assunto de ópio e de haxixe, cuja influ ência sobre o organismo e o psiquismo do homem conhecia a fundo. Ocorreu que meu último encontro com Yuri Lubovedsky se deu durante uma viagem que fiz à Ásia Central junto com Soloviev.
SOLOVIEV A sete ou oito quil ômetros de Bucara, capital do canado do mesmo nome, os russos constru íram, em torno da estação da estrada de ferro transcaspiana, uma grande cidade que denominaram Nova Bucara. Era aí que eu morava, quando encontrei Soloviev pela primeira vez. 136 Eu viera instalar-me em Bucara, para estar no lugar em que tinha mais chance de penetrar os pr óprios princípios da religião de Maom é e para encontrar ali dervixes de todas as seitas, entre os quais meu velho amigo Boga-Eddin; este, por ém, não se encontrava em Bucara e ninguém sabia para onde fora. Tinha boas razões, entretanto, para contar com seu pr óximo regresso. À minha chegada a Nova Bucara, aluguei um quarto em casa de uma judia gorda, vendedora de kvass russo. Vivi, nesse quarto, em companhia de meu fiel amigo Filos, enorme cão-pastor curdo, que me acompanhou a toda parte por nove anos. Em todas as cidades e localidades dos diversos pa íses onde tive que permanecer por algum tempo, esse Filos tornava-se logo c élebre, principalmente junto aos meninos da regi ão, devido à sua habilidade em trazer-me uma chaleira cheia de água fervendo, que o mandava buscar nos tchhaikhan ês e nos traktirs, para preparar meu ch á; às vezes, ia até fazer minhas compras, com a lista das coisas em sua boca. A meu ver, esse c ão era tão surpreendente, que n ão acho sup érfluo perder um pouco de tempo para dar a conhecer ao leitor seu raro psiquismo. Darei alguns exemplos da engenhosidade associativa de suas manifesta ções psíquicas. Pouco tempo antes, a conselho de Boga-Eddin, tinha ido visitar os dervixes de certa seita na cidade bucariana de P. .. Mas estes últimos deixaram a cidade em breve e decidi partir também para dirigir-me a Samarcanda. Meus recursos materiais estavam chegando ao fim; depois de haver pago meu quarto no caravan çar á e quitado todas as minhas outras d ívidas, restava-me, ao todo e para tudo, uns sessenta copeques. Tinha-se tornado imposs ível ganhar dinheiro nessa cidade, porque n ão era a estação dos negócios e porque n ão era f ácil, nesse buraco perdido na província, isolado da civilização européia, comerciar com objetos de arte ou novidades t écnicas. Em Samarcanda, ao contr ário, havia muitos russos e estrangeiros pertencentes às diferentes nações européias; além disso, prevendo a possibilidade de uma viagem a essa região, tinha deixado em T íflis instruções para que me enviassem dinheiro para lá. Não tendo com que viajar, resolvi percorrer a p é essa distância, de cerca de cem verstas e parti um belo dia com meu amigo Filos. De passagem, comprei cinco copeques de pão e, com outros cinco copeques, uma cabe ça de carneiro para Filos. 137 Era muito econômico com nossas provis ões e, por isso, estávamos longe de sentir-nos saciados. Por momentos, nosso caminho costeava de ambos os lados bostani ou hortas. No Turquestão, para separar as hortas e cerc á-las ao longo dos caminhos, é usual plantar cercas de tupinambos, que crescem muito altos e espessos e substituem as cercas de madeira ou de arame. Nossa estrada estava assim ladeada de tupinambos e, como tinha muita fome (teria comido qualquer coisa), resolvi arrancar alguns. Lancei um olhar ao meu redor, para assegurar-me de que ningu ém me via, desenterrei depressa quatro grandes tupinambos e pus-me novamente em marcha, enquanto os devorava deliciado. Quis fazer com que Filos provasse um, mas cheirou-o e recusou com ê-lo. Chegado a Nova Samarcanda, aluguei um quarto em casa de um habitante, nos sub úrbios da cidade, e dirigi-me imediatamente ao correio. O dinheiro ainda n ão havia chegado. Refletindo então sobre os meios de consegui-lo, decidi fabricar flores artificiais e fui, imediatamente, comprar papel colorido numa loja; no caminho, por ém, calculei que, com meus cinq üenta copeques, comprar51 muito pouco. Comprei simplesmente papel branco muito fino e vários tubos de anilina colorida, para colorir eu mesmo meu papel branco e, assim, confeccionar grande n úmero de flores com pouco gasto. Saindo da loja, fui ao jardim público e sentei-me num banco à sombra das árvores, para repousar. Meu Filos sentou-se perto de mim. Mergulhado em meus pensamentos, olhava as árvores, onde voavam os pardais de galho em galho, na calma e na frescura. De s úbito, veio-me uma idéia: "Por que não tentaria
ganhar dinheiro com os pardais? Os habitantes do lugar - os sartas - gostavam muito de can ários e de outros pássaros canoros. Por que seria um pardal pior que um canário?" Na rua que costeava o jardim público, havia um ponto de fiacres, onde numerosos cocheiros repousavam e cochilavam sobre a bol éia, em pleno calor do meio-dia. Fui até lá e arranquei do rabo dos cavalos alguns fios de crina, de que necessitava para fabricar as armadilhas, que a seguir armei em diversos lugares. Filos observava-me o tempo todo, com a maior aten ção. Dentro em breve, um pardal ficou preso na armadilha. Retirei-o com muita delicadeza e levei-o para casa. Pedi uma tesoura à proprietária e comecei por cortar as asas de meu pardal, para dar-lhe forma de um canário, e depois colori-o de 138 139 modo fantástico, com minhas cores de anilina. Levei-o, então, até à Velha Samarcanda, onde o vendi logo, fazendo-o passar por um can ário americano, de uma esp écie rara pelo qual pedi dois rublos. com esse dinheiro, comprei logo v árias gaiolas pintadas, muito simples e pus-me ent ão a vender meus pardais em gaiolas. Em duas semanas, vendi cerca de oitenta desses can ários americanos. Os primeiros tr ês ou quatro dias, levei Filos comigo, para essa ca ça aos pardais; quando, todavia, se tornou uma celebridade entre os garotos de Nova Samarcanda, tive que deixá-lo em casa, pois todos os garotos se aproximavam dele no jardim p úblico, o que assustava os pardais e impedia-me de apanhá-los. No dia seguinte àquele em que deixei de levar Filos comigo, ele desapareceu de casa muito cedo. S ó voltou à noite, cansado, todo enlameado e, triunfalmente, pousou um pardal sobre a minha cama - morto, é claro. E isso se repetiu todos os dias: partia de manh ã e nunca regressava sem trazer um pardal morto que deixava sobre minha cama. Não me arrisquei a permanecer por muito tempo em Samarcanda. Temia que meus pardais - com que o diabo não brinca? - apanhassem chuva ou que um deles resolvesse banhar-se em seu bebedouro, o que poderia provocar um grande esc ândalo, pois meu can ário americano voltaria a ser um horr ível pardal depenado. Apressei-me, pois, a dar o fora sem tambor nem clarim. De Samarcanda, fui para Nova Bucara onde, como j á disse, contava encontrar meu amigo, o dervixe Boga-Eddin. Sentia-me rico, tinha no bolso mais de cento e cinq üenta rublos, e tal quantia era, então, considerada respeitável. Chegado ali, de pronto aluguei um quarto em casa de uma gorda vendedora de kvass russo. Não havia m óvel algum nesse quarto; à noite, como cama, estendia um lençol no chão, num canto, e dormia sem travesseiro. Se fazia assim, não era por mera economia. É claro que esse modo de dormir n ão me saía caro, mas a verdadeira razão é que, nesse per íodo de minha vida, cria com convicção nas idéias dos famosos iogues hindus. Entretanto, devo confessar "que, nessa época, mesmo durante os per íodos de maiores dificuldades materiais, não tinha for ça de me negar o luxo de deitar sobre um len çol limpo e de me friccionar à noite com uma água de colônia de, pelo menos, 80 graus. Quanto a Filos, esperava os cinco ou dez minutos ao cabo dos quais, segundo suas estimativas, eu devia estar dormindo, depois do que, deitava-se por sua vez sobre essa cama improvisada - e nunca do lado do meu rosto e sim nas minhas costas. Na cabeceira dessa caminha ultraconfort ável, havia uma mesa de cabeceira, tamb ém muito pr ática, feita com livros que me interessavam nesse per íodo e que amarrei num pacote. Sobre essa mesa-biblioteca original, colocava todos os objetos de que podia necessitar durante a noite: uma lâmpada de petr óleo, uma caderneta, pó antipercevejo, etc. Alguns dias depois de minha chegada a Nova Bucara, encontrei, uma manh ã, um enorme tupinambo sobre minha mesa improvisada.
Lembro-me de que pensei: "Que proprietária brincalhona! Apesar de sua gordura é bastante fina para, de pronto, ter adivinhado minha fraqueza pelos tupinambos." E comi-o com o maior prazer. Estava persuadido de que a propriet ária era quem tinha trazido esse tupinambo, pela simples razão de que ninguém entrava, então, no meu quarto. Nesse dia, quando me encontrei com ela no corredor, agradeci-lhe com convic ção pelo tupinambo e até brinquei com ela de modo um tanto ousado a esse respeito, mas, com grande surpresa de minha parte, compreendi claramente, pela sua express ão, que ignorava tudo sobre o tupinambo. Na manhã do dia seguinte, encontrei outro tupinambo no mesmo lugar, o qual comi com o mesmo prazer; mas refleti seriamente sobre essa misteriosa apari ção. Qual não foi meu espanto, ao ver, no terceiro dia, que o mesmo fenômeno se repetia! Dessa vez, decidi ficar de olho aberto para descobrir o autor dessa brincadeira agrad ável, talvez, mas muito enigm ática. Durante vários dias, nada pude tirar a limpo e, no entanto, encontrava cada manh ã um tupinambo no mesmo lugar. Finalmente, para observar esse fato, que me intrigava cada vez mais, escondi-me por tr ás de um tonel de kvass colocado no corredor. De repente, vi meu Filos esgueirar-se, com precaução, bem perto do tonel- tinha na boca um grande tupinambo, que foi colocar em meu quarto, no lugar habitual. 140 No dia seguinte, quando ia saindo, dei umas pancadinhas no lado esquerdo da cabe ça de Filos, o que entre n ós significava: "Vou para longe e n ão posso levar um c ão comigo." Mas nada mais fiz do que atravessar a rua. Entrei numa loja em frente à casa e pus-me a vigiar a porta. De pronto, Filos saiu, olhou em torno e partiu em direção ao mercado. Segui-o furtivamente. No mercado, perto da balança pública, havia v árias lojas de alimentos, todas cheias de gente. Filos passeava tranq üilamente no meio da multidão; eu não o perdia de vista. Passando perto de uma lojinha, inspecionou o local e, depois, crendo que ningu ém o via, tirou rapidamente um tupinambo de um saco, colocado diante da lojinha e fugiu correndo. Quando voltei para casa, encontrei o tupinambo em seu lugar. Descreverei ainda uma caracter ística desse espantoso c ão. Quando saía sem levá-lo, deitava-se diante de minha porta e esperava minha volta. Deixava todo mundo entrar em meu quarto, mas não deixava ningu ém sair dele sem mim. No caso de algu ém querer sair do meu quarto em minha ausência, esse canzarr ão punha-se a rosnar e a mostrar as presas. Não era preciso mais para que o visitante sentisse o solo fugir sob seus p és. Isso dava at é lugar a incidentes c ômicos, dos quais eis um exemplo que ocorreu precisamente em Nova Bucara. Na véspera desse incidente, um polonês, cinematografista ambulante, dirigiu-se a mim, por indica ção de habitantes do local, que me conheciam como sendo o único especialista nesse gênero de trabalho, para reparar um escapamento num dos dois buj ões de acetileno que serviam ,ent ão, para esses profissionais, como fonte de ilumina ção na projeção de seus filmes. Prometi a esse polon ês ir, assim que possível, fazer o conserto. No dia seguinte à nossa conversa, por ém, notou que havia também um escapamento no outro recipiente; com medo de falhar na pr óxima sessão, decidiu não me esperar e trazer-me ele pr óprio os bujões. Sabendo que não estava em casa e que meu quarto estava aberto e n ão querendo transportar uma vez mais esses pesados reservat órios, decidiu deixá-los no meu quarto. Nessa manhã, eu fora a Velha Bucara, para ali visitar uma mesquita e, como a presen ça de um c ão, num templo ou mesmo em seu 141 pátio, é considerada grande sacril égio, principalmente entre os adeptos da religi ão muçulmana, tinha sido obrigado a deixar Filos em casa. Segundo seu h ábito, tinha-se deitado diante da porta para esperar minha volta. Filos deixou, pois, o cinematografista entrar no quarto. Para sair, entretanto, foi outra coisa, e o pobre polon ês, depois de algumas tentativas v ãs, teve que se resignar a ficar ali sentado no ch ão, sem beber nem comer, roído de inquietação, até a hora em que voltei para
casa, tarde da noite. Eu vivia, pois, em Nova Bucara. Havia empreendido seriamente, desta vez, a fabrica ção de flores artificiais. Tal maneira de ganhar dinheiro, apresentava certas vantagens para mim: graças ao com ércio das flores, tinha acesso a quase todos os lugares que me interessavam. A receita prometia ser boa, durante essa estação do ano. O momento era prop ício para colocar minhas flores, pois era o fim da Quaresma e, como todos sabem, os habitantes dessa região gostam, na Páscoa, de enfeitar as casas e as mesas com flores. Nesse ano, a P áscoa judia quase coincidia com a P áscoa cristã; como a popula ção da Nova e da Velha Bucara inclu ía numerosos adeptos dessas duas religi ões, a demanda de flores artificiais era particularmente grande. Tive que dedicar-me ao trabalho sem descanso, quase noite e dia. S ó raramente fazia uma interrupção quer para ir visitar meus amigos dervixes, quer ainda, nas noites em que estava muito fatigado, para ir jogar bilhar num restaurante pr óximo à minha casa. Gostava muito de bilhar em minha juventude e era mestre no assunto. Na noite da Quinta-Feira Santa, como jogasse uma partida, depois de meu dia de trabalho, ouvi de s úbito um ruído e gritos, no aposento vizinho. Joguei meu taco de lado, corri e vi quatro homens que davam uma surra num quinto. Não conhecia esses homens, nem sabia o que se passava, mas precipitei-me para defender aquele que parecia estar em dificuldade. Na minha juventude, era apaixonado pelo jiu-jitsu japonês e pelo fizz-hz-lu hivintsiano e ficava sempre contente por encontrar uma ocasi ão de aplicar meus conhecimentos nesse campo. Dessa vez, ainda, por amor ao esporte, tomei parte na briga calorosamente e, entre ambos, o desconhecido e eu, demos tremenda sova em nossos advers ários. Em breve, foram obrigados a bater em retirada. Nessa época, Nova Bucara era uma cidade ainda totalmente nova. Sua popula ção compunha-se de elementos ocasionais entre os quais numerosos 142 exilados russos, que viviam sob a vigil ância da polícia, com "bilhetes de lobo", como se dizia ali. Era uma mistura variegada de cidadãos de todas as nacionalidades, todos fugindo de algo ou na expectativa de alguma coisa. Havia aí criminosos, que já haviam cumprido pena e numerosos condenados pol íticos, exilados por algum tribunal ou por uma dessas "medidas administrativas", que eram amplamente utilizadas na antiga R ússia. O meio e as condi ções em que viviam estes exilados, eram t ão miser áveis que todos acabavam por se entregar à bebida; mesmo aqueles que n ão tinham predisposições hereditárias e nunca haviam bebido antes obedeciam naturalmente e sem resist ência à tendência geral. Os homens com os quais me havia batido pertenciam precisamente a esse meio. Depois da batalha, quis acompanhar meu irm ão de armas at é sua casa, temendo que passasse um mau quarto de hora, se voltasse sozinho; ocorria, por ém, que viviam no mesmo lugar os outros quatro, em vagões encostados, na via f érrea. Como anoitecia, não me restava outra coisa sen ão propor-lhe que fosse para minha casa, o que aceitou. Meu novo companheiro - era Soloviev - era ainda um rapaz, mas notava-se que j á adquirira o hábito da bebida. Fora duramente atingido na batalha: seu rosto estava todo machucado e tinha grandes manchas roxas sob os olhos. Na manh ã do dia seguinte, tinha um dos olhos muito inchado; persuadi-o a não sair e a ficar em minha casa, enquanto n ão melhorasse. Seu trabalho, aliás, havia terminado desde a v éspera, devido à proximidade da Páscoa. Saiu só, durante o dia da sexta-feira, mas voltou para dormir em minha casa. No dia seguinte, Sábado de Aleluia, passei quase todo o tempo em entregas: era preciso entregar as flores que me haviam sido encomendadas para as festas. S ó fiquei livre à noite. Como não tinha amigo algum cristão e, portanto, lugar aonde ir celebrar a Páscoa, comprei um kuhtch, uma paskha, ovos pintados, em resumo, tudo o que o costume exige nessa ocasião, bem como uma garrafa de vodca, e trouxe tudo para casa. Soloviev não estava. Lavei-me, escovei-me - n ão tinha muda de roupa para trocar - e fui sozinho à igreja assistir à missa. Ao voltar para casa, encontrei Soloviev que dor mia. Como n ão havia mesa no quarto, peguei um caixote vazio, bem grande, no p átio 143
e trouxe-o com grande cuidado, para n ão incomodá-lo. Cobri-o com um lençol limpo, coloquei sobre ele tudo o que havia comprado para a consoada e somente ent ão chamei Soloviev. Foi uma verdadeira surpresa para ele que aceitou, com alegria, tomar parte nesse festim solene. Pusemo-nos à mesa; sentou-se sobre meus livros e eu sobre um balde emborcado. Comecei por encher um cálice de vodca para cada um de n ós, mas, com grande espanto para mim, agradeceu e recusou beber. Bebi sozinho; Soloviev come çou a comer imediatamente. Filos, que assistia a essa solenidade, recebeu ra ção dupla: duas cabe ças de carneiro. Estávamos sentados sem dizer nada e com íamos. Nem para mim nem para Soloviev, era essa uma p áscoa feliz. Evoquei o quadro de uma festa passada em fam ília; pensava nos meus que estavam longe de mim. Soloviev, também, seguia seus pensamentos e ficamos assim por muito tempo, sem trocar palavra. De repente, Soloviev disse, como se falasse consigo mesmo: "Ajuda-me, Senhor, em nome desta noite santa, a encontrar for ça para não mais tocar nesse veneno que me reduziu ao estado em que estou." Calou-se, fez um gesto desolado, suspirou: "Eh. .. eh...", e pôs-se a contar sua vida. Não sei o que o impelia: ser á que a Páscoa lhe trazia caras e long ínquas recordações do tempo em que era um homem? Seria a mesa, que tinha arrumado com tanto cuidado e essa ceia inesperada? Ou os dois juntos? O fato é que, nesse dia, abriu-me o coração. Soloviev tinha sido empregado dos Correios e isto totalmente por acaso. Era de fam ília de mercadores de Samara. Seu pai dirigia uma grande empresa moageira. A m ãe pertencia a uma família de aristocratas arruinados e fora educada no instituto reservado às filhas da nobreza. A única educação que soubera dar aos filhos consistia em enchê-los de boas maneiras e de regras de traquejo social. O pai, sempre em seus moinhos e em seus neg ócios, quase nunca estava em casa. Ademais, gostava de beber e, regularmente, várias vezes por ano, embriagava-se durante semanas inteiras. Em jejum, acrescentava seu filho, era uma verdadeira "cabe ça de mula". Os pais de Soloviev, que tinham cada um por seu lado sua vida e seus interesses, toleravam-se um ao outro, como se diz. 144 Soloviev tinha um irm ão caçula; freqüentavam ambos o liceu. Os pais tinham, de certo modo, dividido os filhos entre si: o mais velho era o favorito da m ãe e o mais mo ço, do pai. Por isso, havia cenas incessantes entre eles a esse respeito. O pai s ó se dirigia ao filho mais velho para tro çar dele, de maneira que, pouco a pouco, estabeleceu-se entre eles uma esp écie de hostilidade. A mãe, quando recebia do marido o dinheiro da casa, dava uma quantia ao filho preferido. Mas o apetite deste último aumentou, com os anos, sobretudo quando come çou a cortejar as moças. Nunca tinha dinheiro suficiente; chegou at é um dia a furtar uma pulseira de sua m ãe e vendeu-a para dar um presente. Quanto ela descobriu o furto, escondeu-o do pai, mas os furtos repetiram-se e um dia o pai fez um grande escândalo e expulsou o filho de sua casa. Mais tarde os outros membros da fam ília reuniram-se à mãe para defender sua causa e o pai perdoou-o. Soloviev estava no pen último ano do liceu, quando um circo ambulante deteve-se em Samara. Uma amazona chamada Verka virou-lhe a cabe ça e, quando o circo partiu para Tsaritsin, Soloviev seguiu-a, depois de ter subtra ído todas as economias da m ãe. Nessa época, já tinha começado a beber. Em Tsaritsin, tendo sabido que sua Verka o enganava com um capit ão de polícia, Soloviev embebedou-se para esquecer a tristeza. Em breve, passou a freq üentar todas as tabernas do porto e fez in úmeros camaradas, entre os rapazes de sua esp écie. Por fim, limparam-no completamente, num dia em que estava b êbado. Encontrou-se sem um tost ão, nessa cidade estrangeira e nem mesmo ousou comunic á-lo a seus pais. Depois de ter vendido, pouco a pouco, os objetos pessoais e as roupas, ficou reduzido a trocar as roupas que vestia por farrapos e tornou-se um maltrapilho, no sentido literal da palavra. A fome obrigou-o a empregar -se numa peixaria e, de em prego em emprego, encontrou-se em Baku, em companhia de pobres coitados como ele. A í, a sorte lhe sorriu um
pouco. Alguém vestiu-o e ele teve a sorte de fazer-se admitir como telefonista no distrito de Balakna. A miséria que acabara de conhecer tinha-o for çado a refletir e pôs-se seriamente a trabalhar. Um dia, encontrou alguém de Samara, e esse compatriota, sabendo quem era e a que fam ília pertencia, decidiu sustent á-lo e ajudá-lo a obter uma situação melhor. 145 Como Soloviev tinha instrução correspondente ao segundo colegial, foi admitido nos Correios e Tel égrafos de Baku, na qualidade de assistente, mas durante os primeiros meses teve que trabalhar sem receber vencimentos. A seguir obteve um cargo de Kuchka e instalouse ali, desta vez como funcion ário efetivo. Restringindo-se em tudo, conseguiu vestir-se e p ôr algum dinheiro de lado. Quando fez vinte e um anos, recebeu do Minist ério da Guerra uma nota comunicando-lhe que seria convocado para o serviço militar, o que o obrigava a voltar à sua cidade natal. Chegado a Samara, hospedou-se no hotel e escreveu à mãe. Esta ficou feliz por seu filho parecer ter-se corrigido e conseguiu obter-lhe o perdão do pai. A casa foi-lhe novamente aberta. O pai, vendo que o filho "se tinha tor nado razoável", mostrou-se contente com o fato de que tudo tivesse terminado desse modo e, desde então, tratou-o com benevolência. Soloviev foi sorteado: estava apto para o servi ço. Mas, na qualidade de empregado dos Correios, devia esperar, por vários meses, dados precisos sobre sua classifica ção, pois era telegrafista e os recrutas dessa categoria eram designados para as vagas na administra ção central do exército. Permaneceu, pois, tr ês ou quatro meses ainda perto dos pais; depois foi nomeado para o batalh ão da estrada de ferro que servia à região transcaspiana e que, nessa época, dependia ainda do ex ército. Primeiramente, prestou serviço obrigatório durante várias semanas no 2.° Regimento, depois foi lotado na Unha de Kuchka, mas aí teve icter ícia e foi transportado para o hospital de Merv, onde estava acantonado seu batalh ão. Uma vez curado, Soloviev foi transferido para Samarcanda, para o Estado-maior do Regimento, de onde o mandaram para o hospital militar a fim de receber um certificado de aptidão para o serviço militar. No edif ício do hospital, onde vivia Soloviev, havia um pavilh ão para os presos. Quando passava pelos corredores, falava às vezes com os presos atrav és das grades; fez assim conhecimento com um deles, um polon ês, condenado como moedeiro falso. Soloviev foi reformado por motivo de saúde e autorizado a deixar o hospital. O preso pediu-lhe ent ão que se encarregasse de levar uma carta para um amigo, que vivia perto da estação de Samarcanda e, 146 147 como agradecimento, passou-lhe às mãos um vidrinho cheio de um l íquido azul celeste, explicando-lhe que esse líquido servia para copiar, exclusivamente, notas de tr ês rublos. Operava-se da seguinte maneira: aplicava-se um papel especial, embebido do l íquido em questão, em cada lado da cédula e depois prensava-se o conjunto num livro. Obtinha-se, assim, um negativo de cada face da c édula, do qual se podiam tirar tr ês a quatro boas c ópias. Na Ásia central, onde se conhece mal o dinheiro russo, essas notas passavam com muita facilidade. Soloviev tentou inicialmente o processo por curiosidade, mas, quando quis voltar para sua p átria, teve necessidade de dinheiro antes de partir e passou ent ão, sem grande risco, uma pequena quantidade dessas notas falsas. Em casa, acolheram-no com alegria e o pai quis persuadi-lo a ficar junto a ele para ajud á-lo, como o fazia o irm ão mais moço. Soloviev aceitou. Recebeu ent ão a direção de um moinho, numa localidade de Samara. Mas, depois de ter trabalhado alguns meses, aborreceu-se e p ôs-se a sentir saudades de sua vida nômade. Foi procurar o pai e declarou-lhe francamente que não podia mais continuar. O pai deixou-o partir e deu-lhe até uma quantia bastante grande em dinheiro. Soloviev foi, então, para Moscou e depois para S ão Petersburgo e voltou a beber e, finalmente, numa cabe çada
de beberr ão, partiu para Varsóvia. Tinha sido isento do servi ço militar por um ano; esse ano chegava ao fim. Em Varsóvia alguém deteve-o na rua: era o prisioneiro que conhecera no hospital de Samarcanda. Fora absolvido pelo tribunal, disse, e voltava a Vars óvia para obter ali um papel especial e esperar uma m áquina de imprimir notas, que lhe devia ser enviada da Alemanha. Pediu-lhe que se tornasse seu s ócio e o ajudasse em seu "trabalho" em Bucara. Essa fonte de renda, criminosa mas f ácil, tentou Soloviev. Partiu para instalar-se em Bucara, enquanto esperava seu companheko; mas o fals ário polonês, não tendo ainda recebido a m áquina, ficou retido em Varsóvia. Soloviev embriagava-se cada vez mais. Quando esgotou os últimos recursos, entrou para a companhia de estradas de ferro e ali trabalhou durante os tr ês meses que antecederam nosso encontro. Bebia sem parar. O relato sincero de Soloviev tocou-me profundamente. Nessa época, já conhecia muito bem o hipnotismo e era capaz de colocar um homem no estado desejado, para lev á-lo por sugestão, a esquecer qualquer hábito indesejável. Propus, pois, a Soloviev ajud á-lo, se verdadeiramente o quisesse, a libertar-se desse h ábito funesto de beber vodca e expliquei-lhe como atuaria. Consentiu. A partir do dia seguinte, coloquei-o todos os dias em estado de hipnose para submet ê-lo às sugestões necessárias. Sentiu então, pouco a pouco, tal repulsa pela vodca, que n ão podia mais nem ver esse veneno, como dizia. Renunciando ao seu trabalho na companhia f érrea, instalou-se definitivamente em minha casa. Ajudava-me a confeccionar flores artificiais e, às vezes, ia vend ê-las no mercado. Soloviev tinha-se tornado meu assistente e j á estávamos habituados a viver juntos como dois bons irm ãos, quando meu amigo o dervixe Boga-Eddin, do qual n ão tivera notícias, há uns dois ou tr ês meses, finalmente regressou. Sabendo que estava em Nova Bucara, veio ver-me logo no dia seguinte. Como o interrogasse sobre as raz ões pelas quais sua aus ência tinha sido tão prolongada, Boga-Eddin respondeu: "Se fiquei tanto tempo ausente, foi porque o acaso fez-me encontrar, numa das cidades da Alta Bucara, um ser muito interessante; e, para ter mais freq üentemente ocasião de vê-lo e de falar com ele sobre problemas que me atormentavam, tratei de servir-lhe de guia, durante uma viagem que empreendeu a Alta Bucara e às margens do AmuDária. Foi com ele que vim at é aqui. "Esse ancião - continuou Boga-Eddin - é membro de uma confraria, conhecida entre os dervixes sob o nome de Sarmung, e cujo mosteiro principal está situado em alguma parte no centro da Ásia. "Durante uma de minhas conversas com esse ser extraordin ário, soube que sabia muito bem quem eras. "E perguntei-lhe se veria algum inconveniente em que fosses v ê-lo. "À minha pergunta, respondeu que, ao contr ário, ficaria feliz em te receber, a ti, um homem que, embora nascido kafir, soubera adquirir, 148 por uma atitude imparcial para com todos os seres, uma alma semelhante à nossa". Lá, chamam kafir a todos os estrangeiros de cren ças diversas e, notadamente, a todos os europeus que, presumem, vivem como animais sem princ ípios e para os quais, interiormente, nada existe de sagrado. Tudo o que Boga-Eddin me disse a respeito desse anci ão virou-me a cabeça e supliquei-lhe que fizesse o nosso encontro o mais depressa poss ível. Consentiu imediatamente. E, como o ancião vivia não muito longe dali, em casa de amigos, em Kichlak, perto de Nova Bucara, decidimos ir até lá no dia seguinte. Tive várias longas conversa ções com esse ancião. Durante uma última entrevista, aconselhou-me a ir viver, por algum tempo, em seu mosteiro: "Talvez, explicou-me, consigas falar ali com certas pessoas sobre as quest ões que te interessam e talvez consigas, por fim, compreender assim o que buscas." Acrescentou que, se quisesse ir at é lá, ajudar-me-ia e encontraria os guias necessários, mas sob a condi ção de fazer o juramento solene de nunca revelar a ningu ém a localização desse mosteiro.
É claro que consenti imediatamente em tudo, mas lamentava deixar Soloviev, ao qual me tinha apegado muito e perguntei, por desericargo de consci ência, se não poderia levar comigo, nessa viagem, um de meus bons camaradas. O ancião refletiu e me disse: "Pois bem, sim, podes. Desde que, naturalmente, te responsabilizes por sua lealdade e por sua fidelidade ao juramento que tamb ém deveras prestar." Podia responder integralmente por Soloviev, pois no curso de nossa amizade, havia-me provado que podia manter uma palavra. Depois de ter considerado tudo, ficou combinado que nos encontrar íamos um m ês mais tarde, às margens do rio Amu-Dária, perto das ruínas de leni-Hissar; pessoas que reconhecer íamos por uma senha viriam nos buscar ali e servir-nos-iam de guias at é o mosteiro. Na data fixada, chegamos, Soloviev e eu, diante das ru ínas da fortaleza de leni-Hissar; e, no mesmo dia, vieram ali reunir-se a nós quatro karankirghizes que tinham sido enviados ao nosso encontro. 149 Depois do cerimonial de praxe, comemos juntos. Ao cair da noite, exigiram que renov ássemos o juramento e puseram-nos uma basblik nos olhos. Montamos a cavalo e partimos. Durante toda a viagem, fiel e conscienciosamente, mantivemos a palavra que lhes t ínhamos dado de n ão olhar nem procurar saber para onde íamos e que locais atravess ávamos. À noite, nos passos ou às vezes ainda quando com íamos em lugares retirados, desamarravam a bashlik que cobria nossos olhos. Fora disso, somente duas vezes, durante essa viagem, foi-nos permitido retir á-la. A primeira vez, foi no oitav o dia; devíamos transpor uma ponte suspensa, que n ão se podia atravessar a cavalo e onde dois homens n ão caberiam lado a lado: era necess ário caminhar só e imposs ível fazê-lo com os olhos vendados. Pelo car áter da paisagem que se descortinava a nossos olhos, poder íamos ter concluído que est ávamos, ou no vale do Piandj, ou no do Zeravchan: o rio largo que corria sob nós, essa ponte, as montanhas que nos cercavam, tudo lembrava muito esses dois vales. Devo, aliás, dizer que, se tivéssemos podido atravessar com os olhos vendados, talvez isso tivesse sido melhor para nós. Quiçá porque tínhamos marchado durante muito tempo com os olhos fechados ou por qualquer outra raz ão, nunca mais esquecerei o nervosismo e o medo que experimentamos, ao nos engajar nessa ponte. Foi-nos necess ário até algum tempo, antes de nos decidirmos. Encontram-se, freqüentemente, passarelas desse g ênero no Turquestão, onde, às vezes, representam o único caminho poss ível, a menos que se fa ça um desvio de vinte dias para avan çar apenas um quilômetro. Quando se está sobre uma dessas pontes e se olha para o fundo das gargantas, onde geralmente corre um rio, pode-se comparar essa sensa ção àquela que se experimenta do alto da torre Eiffel; mas a impressão é muito mais intensa, se nos voltarmos para cima, pois os pared ões parecem sem fim e seu topo s ó é visível de longe, a v ários quilômetros de distância. Essas pontes quase nunca t êm parapeito e são tão estreitas, que só um cavalo montanh ês pode passar por ali. Além disso, oscilam de tal modo, que se tem a impress ão de caminhar sobre um colch ão de 150 molas. Quanto à incerteza em que se est á sobre sua solidez, prefiro nem falar nisso. São quase sempre mantidas por cordas, feitas de cip ós. Uma das extremidades sustenta a passarela, a outra é amarrada a uma árvore bem pr óxima, presa no flanco da montanha ou numa sali ência de rocha. Em todo caso, essas pontes n ão são recomendáveis para europeus, mesmo para os que se gabam de ser amantes de sensa ções fortes. Aquele dentre eles que desejasse se arriscar a isso sent iria o cora ção cair até os calcanhares... ou talvez mais baixo ainda. A segunda vez que tiraram nossas bashliks foi ao cru zarmos uma caravana. N ão querendo chamar a atenção sobre nossas vendas, que poderiam ter parecido suspeitas, os guias julgaram prefer ível desamarr á-las, durante o tempo desse encontro. Foi justamente no momento em que pass ávamos diante de um desses monumentos que se encontram t ão freqüentes nas montanhas do Turquest ão, no alto dos colos. Esses monumentos devem ter sido inventados por algu ém muito sensato pois, sem eles, os viajantes n ão teriam a
possibilidade de se orientar nessas regi ões caóticas. Erguem-se, o mais das vezes, sobre uma emin ência e, se se conhecer o plano geral de suas posi ções respectivas, poder-se-á distingui-los de muito longe, às vezes mesmo a dezenas de quilômetros. São simplesmente grandes blocos de pedra ou longos mastros de madeira enterrados no solo. Existe ali, entre o povo, toda esp écie de crenças a respeito desses monumentos - por exemplo, que nesse local foi enterrado um santo ou transportado para o c éu ainda vivo ou, então, que matou o drag ão de sete cabe ças ou, ainda, que ali realizou algum prodígio. Comumente, o santo em cuja memória foi erigido o monumento é considerado como o padroeiro de toda a região e todas as vit órias obtidas sobre as dificuldades pr óprias a essas paragens lhe s ão atribuídas. Se o viajante transpôs o colo sem percal ços, se escapou aos ataques dos bandidos ou dos animais selvagens, se atravessou o rio ou superou um perigo qualquer nesse local, tudo isso é atribuído à proteção do santo. Por isso os comerciantes, peregrinos ou simples viajantes, que passaram por esses perigos, levam em reconhecimento alguma oferenda ao monumento. Estabeleceu-se o costume, entre a gente da regi ão, de escolher como oferta alguma coisa que, segundo as crenças dali, possa lembrar mecanicamente ao santo as ora ções do doador. Por exemplo, oferecem um pedaço de fazenda, o rabo de um animal ou outros objetos do 151 mesmo gênero, amarrados ou fixados ao monumento por uma de suas extremidades, enquanto a outra flutua livremente ao vento. Para todos os viajantes, esses objetos que flutuam ao vento indicam de muito longe o caminho a seguir. É suficiente, com efeito, para aquele que conhece aproximadamente a posi ção desses mastros ou desses blocos de pedra, avistar um do alto de uma colina e marchar em sua direção e daí em direção a outro e assim por diante. Sem conhecer o plano de conjunto desses monumentos, é quase imposs ível viajar nessas regi ões. Não há estradas, atalhos e, se uma pista chega a formar-se, as mudanças bruscas de temperatura e as tempestades de neve que elas provocam, cedo a modificam ou mesmo a apagam completamente. Por falta de pontos de refer ência, o viajante em busca de uma estrada confort ável acabaria se enredando por completo e at é mesmo a b ússola mais precisa não lhe seria de utilidade alguma. Em resumo, só é possível viajar, nessas regiões, estabelecendo o itiner ário de monumento em monumento. Trocamos várias vezes de cavalos e de burros durante o caminho. De vez em quando, íamos a pé. Mais de uma vez tivemos que atravessar rios a nado e transpor montanhas; conforme a sensa ção de frio ou de calor, reconhec íamos que ora desc íamos para vales profundos, ora subíamos até muito alto. Finalmente, na noite do décimo segundo dia, tiraram-nos as vendas: est ávamos num vale estreito, no fundo do qual corria um pequeno rio, cujas margens estavam cobertas de rica vegeta ção. Era a nossa última etapa. Depois de ter comido, pusemo-nos novamente em marcha, mas desta vez de olhos desvendados. A dorso de burro, subimos o curso do r io e, ao cabo de uma tneia- hora, surgiu a nossos olhos uma pequena colina num circo de altas montanhas. À nossa direita, à nossa frente e at é um pouco à nossa esquerda, perfilavam-se cristas nevadas. Uma vez transposta a colina, na primeira volta, percebemos ao longe, na encosta da esquerda, alguns edif ícios. Ao nos aproximarmos, foi-nos poss ível reconhecer uma espécie de edif ício fortificado, tal como se pode encontrar às margens do Amu-Dária ou do Piandj, por ém maior. Essas constru ções estavam rodeadas de altas muralhas. safe" 152 153 Atingimos finalmente a prim eira porta, onde fomos recebidos por um a velha mulher à qual nossos guias transmitiram uma mensagem; depois do que desapareceram pela mesma porta. Ficamos a s ós com a velha mulher. Sem se apressar, conduziu-nos para um dos aposentos, semelhantes a celas, que estavam dispostos em torno de um pequeno p átio; designou-nos as duas camas que ali se encontravam e saiu. Em breve, um vener ável ancião veio ao nosso encontro. N ão nos fez nenhuma pergunta, mas falou-nos com
grande amabilidade em turco, como se f ôssemos velhos amigos. Mostrou-nos onde estava cada coisa e preveniu-nos que, nos primeiros dias, trar-nos-iam nossas refei ções. Ao partir, aconselhou-nos a repousar, mas acrescentou que, se não estivéssemos cansados, pod íamos sair e passear pelos arredores. Em resumo, fez-nos compreender que tínhamos liberdade para viver como melhor nos parecesse. Como nos sentíamos verdadeiramente muito cansados da viagem, preferimos repousar um pouco e deitamo-nos. Dormi como um morto e fui acordado por um rapazinho que batia, para entregar-nos o samovar com ch á verde e a refeição da manhã, que consistia em biscoitos quentes de milho com queijo de ovelha e mel. Queria pedir ao rapazinho que me indicasse um lugar onde poderia tomar banho; infelizmente, s ó falava o pshenzis e eu n ão sabia nenhuma palavra dessa l íngua, a não ser algumas ofensas. Soloviev tinha saído; voltou depois de dez minutos. Também havia dormido profundamente, acordara alta noite e, n ão querendo incomodar ningu ém, ficara tranqüilamente na cama repetindo palavras tibetanas. Ao raiar do sol, tinha saído para ver os arredores; mas, quando quisera transpor a porta, uma velha mulher lhe tinha feito sinal para entrar numa casinha situada num canto do pátio. Pensava que ia proibi-lo de sair; quando, por ém, entrou na casa, compreendeu que essa boa velha queria simplesmente oferecer-lhe leite fresco. Depois de lhe ter dado de beber, at é o ajudou a abrir o port ão. Como ninguém vinha nos ver, decidimos, depois do ch á, ir passear e explorar os arredores. Em primeiro lugar, costeamos as altas muralhas que rodeavam a fortaleza. Além da porta pela qual havíamos entrado, havia outra, menor, no lado noroeste. Reinava em toda a parte um sil êncio quase terrificante, que era rompido pelo ru ído monótono de uma long ínqua cascata e, às vezes, pelo grito dos p ássaros. Era um dia quente de ver ão. O ar estava abafado. N ão se tinha vontade de coisa alguma. A paisagem grandiosa que nos rodeava não nos interessava; s ó o ruído da cascata nos atraía, nos enfeitiçava. Sem termos trocado palavra, aproximamo-nos, Soloviev e eu, da cascata, que depois se tornou nosso lugar predileto. Nem nesse, nem no dia seguinte, ningu ém veio nos ver. Mas, tr ês vezes por dia, traziam-nos para comer laticínios, frutas secas, peixe - trutas mosqueadas - e trocavam nosso samovar quase de hora em hora. Ora ficávamos estirados sobre as camas, ora sa íamos e íamos aprender palavras tibetanas ao som mon ótono da cascata. Durante esses dois dias, n ão encontramos ningu ém, nem no caminho, nem na cascata. S ó uma vez, quando estávamos sentados à sua beira, passaram quatro mo ças que deram meia volta, assim que nos viram e desapareceram pela pequena porta que hav íamos notado no lado noroeste. Na manhã do terceiro dia, eu estava sentado num canto umbroso, e Soloviev, por desfastio, tinha empreendido determinar por meio de pequenos peda ços de madeira, que acabava de cortar para esse fim, a altura dos picos nevados, que se encontravam em face de n ós. De súbito, vimos chegar o rapazinho que nos trouxera a primeira refei ção. Estendeu a Soloviev uma folha de papel dobrada, sem envelope. Soloviev tomou-a, e, lendo o nome Agá Georgi escrita em letras sartas, estendeu-ma com espanto. Quando abri a folha e reconheci a letra, minha vista se turvou, tamanha foi a surpresa. Essa letra, que conhecia bem, era a do homem que me foi mais caro em minha vida: o pr íncipe Lubovedsky. A mensagem estava escrita em russo e dizia: "Meu caro filho! Pensei que ia desmaiar, quando me disseram que estavas aqui. Estou desolado por n ão poder ir imediatamente abraçar-te. Devo esperar que venhas tu mesmo até a mim. "Estou de cama. Todos estes dias, n ão pude sair nem falei com ningu ém. Acabo apenas de saber de tua chegada. Como estou feliz ao pensar que te reverei daqui a pouco! Estou duplamente feliz, pois o fato de que tenhas vindo sozinho, sem meu aux ílio nem o de nossos amigos comuns (tê-lo-ia sabido), mostra-me que, durante todo esse 154 155
tempo, tu não dormtste. Vem depressa, falaremos de tudo. Sei que est ás aqui com um companheiro. Embora não o conheça, ficarei feliz por abraçá-lo como teu amigo " Ainda não terminara de ler e já me precipitava, fazendo sinal a Soloviev para me seguir. Corria sem saber para onde, terminando de ler a carta. Atr ás de mim corriam Soloviev e o rapazinho. Este último, depois de haver atravessado o p átio em que mor ávamos, conduziu-nos a um segundo p átio e fez-nos entrar numa cela, onde o pr íncipe estava deitado. Depois de nos termos abra çado e dado livre curso à nossa alegria, perguntei ao pr íncipe como tinha adoecido: "Antes, disse-me ele, sentia-me muito bem. H á duas semanas, depois de ter tomado banho, quis cortar as unhas dos pés. É provável que, sem dar-me conta, as tenha cortado curtas demais e, como habitualmente ando descal ço, peguei uma infecção e comecei a sentirme mal. "Inicialmente não dei atenção: pensava que passaria. Mas piorava dia a dia. Por fim, surgiu um abscesso na semana passada, acompanhado de uma febre e de um del írio crescentes. For çaram-me a me acamar. "Os frades dizem que tive um envenenamento do sangue e que, agora, todo o perigo est á afastado. Aliás, sinto-me bem. "Mas já falamos demais de mim. Dentro em breve estarei curado. Conta-me, de prefer ência, como chegaste at é aqui, por que milagre..." Contei-lhe resumidamente minha vida, durante os dois anos em que n ão nos tínhamos visto, os encontros ocasionais que tivera, minha amizade com o dervixe Boga-Eddin, as aventuras que dela haviam decorrido e como, finalmente, me encontrava ali. Depois, perguntei-lhe por que havia desaparecido t ão bruscamente e nem tinha dado uma s ó vez notícias suas, deixando-me sofrer por essa incerteza, at é que me houvesse resignado, com o cora ção cheio de amargura, à idéia de tê-lo perdido para sempre. E contei-lhe como, sem olhar despesas, tinha mandado rezar, por via das d úvidas, uma missa f únebre, sem estar plenamente convicto de sua efic ácia, mas pensando que talvez isto lhe servisse. Por minha vez, perguntei-lhe como tinha vindo para esse mosteiro, e o pr íncipe respondeu: "Na última vez em que nos encontramos, em Constantinopla, estava tomado por um imenso cansa ço interior, uma espécie de apatia profunda. "Durante minha viagem ao Ceilão e durante os dezoito meses que se seguiram, esse cansa ço interior transformou-se, pouco a pouco, num melanc ólico desencorajamento, que deixou um grande vazio em mim e me desapegou de todos os interesses que me ligavam à vida. "Ao chegar a Ceil ão, travei conhecimento com o célebre monge budista A... Falamo-nos com freq üência, com grande sinceridade, e o-resultado foi que organizei com ele uma expedição, para subir o curso do índo, de acordo com um programa minuciosamente fixado e um itiner ário estudado nos m ínimos detalhes, na esperan ça de conseguir finalmente resolver os problemas que nos preocupavam a ambos. "Para mim pessoalmente, essa tentativa era a última palha à qual me agarrava ainda. E, quando vi que essa viagem era apenas, uma vez mais, a procura de uma miragem, tudo morreu para sempre em mim e nada mais quis empreender. "Depois dessa expedi ção, voltei por acaso a Cabul, onde me abandonei sem reserva à indolência oriental, existindo sem meta, sem interesse, contentando-me, por h ábito automático, em encontrar-me novamente com velhos conhecidos ou em entrar em contato com algumas pessoas novas. "Ia muitas vezes à casa de meu velho amigo, o Ag á Khã. "As recep ções em casa de um homem t ão rico em aventuras tornavam a dar um pouco de sabor à vida aborrecida de Cabul. "Um dia, ao chegar à sua casa, vi entre os convidados um velho tamil, sentado no lugar de honra, com roupas que não estavam, de modo algum, de acordo com a casa do Agá Khã. "Depois de ter-me dado as boas-vindas, o Kh ã, vendo minha perplexidade, cochichou-me rapidamente que esse homem respeitável era um de seus velhos amigos, um original, a quem considerava dever grandes obriga ções e que uma vez at é lhe salvara a vida. Disse-me que o anci ão vivia em algum lugar no Norte, mas às vezes vinha a Cabul, quer para ver seus familiares, quer para outros negócios e que o visitava, de passagem, coisa que era sempre para ele, Agá Khã, uma alegria indescritível, pois nunca encontrara um homem de tal bondade. Aconselhou-me a conversar com ele, acrescentando que, nesse caso,
devia falar alto, pois era meio surdo. "A conversação, interrompida um instante pela minha chegad continuou. 156 "Falava-se de cavalos; o anci ão também tomava parte na discuss ão. Era claro que conhecia bem cavalos e fora outrora grande apreciador. "Passou-se depois à política. Falou-se dos países vizinhos, da R ússia, da Inglaterra; e, quando se citou a Rússia, o Agá Khã, olhando para mim, disse em tom de gracejo: "Por favor, não falem mal da R ússia! Poderiam ofender nosso h óspede russo. . . "Isto foi dito em tom de brincadeira, é certo, mas o desejo do Kh ã, de evitar um ataque, mais ou menos inevitável, contra os russos era evidente. Nessa época, reinava ali um ódio generalizado contra os russos e os ingleses. "Logo a conversação caiu e as pessoas come çaram a falar em grupinhos separados. "Entretinha-me com o ancião, que se me tornava cada vez mais simp ático. Falando comigo na l íngua local, perguntou de onde vinha e se estava em Cabul h á muito tempo. "De repente pôs-se a falar russo, com forte sotaque, mas muito corretamente; explicou-me que havia estado na Rússia, em Moscou, em São Petersburgo e que vivera durante muito tempo em Bucara, onde havia freqüentado muitos russos. Foi assim que aprendeu a l íngua. Acrescentou que estava muito feliz por ter ocasi ão de falar russo, pois, por falta de pr ática, começava a esquecer tudo. "Um pouco mais tarde, disse-me que se me fosse agrad ável falar minha língua natal, poder íamos partir juntos; e talvez lhe concedesse a honra, a ele anci ão, de ir sentar-me em sua companhia num tchaikhan ê, onde poder íamos conversar. "Explicou-me ter desde a inf ância, o hábito e a fraqueza de ir aos caf és e tchaikhan ês e que, atualmente, estando na cidade, n ão podia recusar-se o prazer de ir ali nos momentos vagos, porque - disse-me - apesar do tumulto e da lufa-lufa, em parte alguma se pensa t ão bem. E acrescentou: sem dúvida, é precisamente devido a esse tumulto e a essa lufa-lufa que se pensa t ão bem. "Foi com o maior prazer que consenti em acompanhá-lo. Naturalmente, não para falar russo, mas por uma razão que não podia explicar para mim mesmo. "Embora eu pr óprio já fosse idoso, sentia por esse homem o que um neto teria sentido para com um av ô bem-amado. "Dentro em breve os convidados se dispersaram. O anci ão e eu partimos também, conversando no caminho sobre mil e uma coisas. 157 "Chegados ao caf é, sentamo-nos num canto, num terraço aberto, onde nos serviram chá verde de Bucara. Pela atenção e cuidados que testemunhavam ao anci ão no tchaikhanê, via-se o quanto era conhecido e estimado. "O ancião levou a conversa ção para os tadjiks, mas, depois da primeira x ícara de chá, interrompeu-se e disse: "Só falamos de coisas f úteis. Não é disso que se trata. E, depois de haver-me olhado fixamente, desviou os olhos e se calou. "O fato de haver assim interrompido nossa conversa, as últimas palavras que pronunciara e o olhar penetrante que me havia lan çado, tudo isso me parecia estranho. Dizia de mim para mim: coitado! Sem dúvida seu pensamento j á se enfraqueceu devido à idade; já está caducando! E estava movido de piedade por esse simp ático ancião. "Esse sentimento de piedade recaiu aos poucos sobre mim mesmo. Pensava que, dentro em breve, tamb ém eu caducaria, que não estava longe o dia em que n ão mais poderia governar meus pensamentos e assim por diante. "Estava de tal modo perdido no penoso turbilh ão dessas reflex ões, que até esquecera o anci ão. "De súbito, ouvi novamente sua voz. As palavras que pronunciava dissiparam, de um s ó golpe, meus melancólicos pensamentos e for çaram-me a sair de meu estado. Minha piedade deu lugar a um estupor como nunca havia experimentado ainda: "Eh! Gogó, Gogó! Durante quarenta e cinco anos, fizeste esfor ços, te atormentaste, penaste sem descanso e nem uma só vez pudeste decidir-te a trabalhar de tal maneira que, nem que fosse por alguns meses, o desejo de teu c érebro se tornasse o desejo de teu cora ção. Se tivesse s podido conseguir isto, n ão pas s arias tua velhice numa solidão como esta em que te encontras neste momento!
"Esse nome Gog ó, que havia pronunciado no in ício, tinha-me feito estremecer de espanto. "Como podia esse hindu, que me via pela primeira vez aqui, na Ásia Central, conhecer esse apelido, que somente minha m ãe e minha ama me davam em minha inf ância, sessenta anos atr ás e que, desde ent ão, ninguém havia mais repetido. "Imagina minha surpresa! "Lembrei-me de repente, que depois da morte de minha mulher, quando ainda era muito jovem, um anci ão viera ver-me em Moscou. 158 159 "Perguntei-me se não seria esse mesmo anci ão misterioso. "Mas não - primeiro, o outro era de estatura elevada e não se parecia com este. A seguir, n ão devia mais estar vivo há muito tempo: isso tinha-se passado há quarenta e um anos e na época ele já era muito velho. "Não podia encontrar nenhuma explica ção para o fato de que era evidente que esse homem, n ão só me conhecia, como n ão ignorava coisa alguma de meu estado interior, do qual era eu o único a ter consci ência. "Enquanto todos esses pensamentos flu íam em mim, o ancião tinha-se abismado em profundas reflex ões e estremeceu, quando, tendo enfim reunido minhas for ças, exclamei: "- Quem é o senhor para me conhecer t ão bem? "- O que importa isto neste momento para ti, quem eu sou ou o que sou? Ser á possível que ainda viva em ti essa curiosidade à qual deves o n ão ter haurido nenhum fruto dos esfor ços de toda a tua vida? Ser á possível que ela seja bastante forte ainda para que, mesmo neste minuto, possas entregar-te com todo o teu ser à análise desse fato - o conhecimento que tenho de ti - com a única meta de explicar para ti mesmo quem eu sou e como te reconheci? "As censuras do anci ão tocavam-me na parte mais sens ível. "- Sim, pai, tens razão, disse, que importância pode ter para mim o que se passa fora de mim e como isso se passa? J á assisti a muitos milagres, mas para que me serviu isso? "Sei apenas que tudo est á vazio em mim, neste momento, e que poderia não haver esse vazio, se n ão estivesse em poder desse inimigo interior, como disseste e se tivesse consagrado meu tempo, n ão a satisfazer essa curiosidade sobre tudo o que se passa fora de mim, mas a lutar contra ela. "Sim. .. agora é tarde demais! Tudo aquilo que se passa fora de mim deve hoje me ser indiferente. Nada quero saber do que te perguntei e n ão quero incomodar-te mais. "Rogo-te sinceramente que me perdoes pela tristeza que te fiz sentir durante esses poucos minutos." "Depois disso, ficamos sentados por muito tempo, cada um absorto em seus pensamentos. "Finalmente, rompeu o silêncio: "Talvez não seja tarde demais. Se sentes com todo o teu ser que em ti tudo est á realmente vazio, aconselho-te a tentar ainda uma vez mais. "Se sentes muito vivamente e te d ás conta, sem a menor d úvida, de que tudo aquilo em cuja dire ção te esfor çaste até aqui não é senão uma miragem e, se aceitas uma condição, tentarei ajudar-te. "Essa condi ção consiste em morrer conscientemente para a vida que levaste at é agora, isto é, romper, de uma vez far á sempre, com os h ábitos automaticamente estabelecidos de tua vida exterior, para ires ao lugar que te indicarei. "Por assim dizer, que me restava a romper? Nem mesmo era uma condi ção para mim, pois, fora as relações que tinha com certas pessoas, mais nenhum interesse existia a meus olhos. Quanto a essas pr óprias relações, tinha sido constrangido, por diversas raz ões, a obrigar-me a não mais pensar nelas. "Declarei-lhe que estava pronto para partir imediatamente para onde fosse necess ário. "Levantou-se, disse-me para liquidar todos os meus neg ócios e sem acrescentar mais uma palavra, desapareceu na multidão. "Desde o dia seguinte, resolvi tudo, dei certas ordens, escrevi algumas cartas de neg ócios para o meu pa ís e esperei. "Tr ês dias mais tarde, um jovem tadjik veio à minha casa e disse-me concisamente: "Fui escolhido para servir-lhe de guia. A viagem durar á um m ês. Preparei isto, isso e aquilo . . . "Peço-lhe que me diga o que me é necessário ainda preparar, quando quer que reúna a caravana e em que
lugar. "Não precisava de mais nada, pois tudo fora previsto para a viagem, e respondi-lhe que estava pronto para pôr-me a caminho j á no dia seguinte de manh ã; quanto ao lugar da partida, pedi-lhe que ele pr óprio o indicasse. "Disse-me, então, sempre com o mesmo laconismo, que estaria, no dia seguinte, às seis horas da manh ã, no caravançar á de Kalmatas, situado à saída da cidade, na dire ção de Uzun-Kerpi. "No dia seguinte, pusemo-nos a caminho com uma caravana que me trouxe at é aqui duas semanas mais tarde e o que encontrei aqui, v ê-lo-ás tu mesmo. Enquanto esperas, conta-me o que sabes de nossos amigos comuns." 160 161 Vendo que esse relato tinha fatigado meu velho amigo, propuslhe transferir nossa conversa para mais tarde e dissê-lhe que lhe contaria tudo com o maior prazer mas, no momento, era preciso que repousasse, a fim de sarar o mais breve poss ível. Enquanto o pr íncipe Lubovedsky foi obrigado a ficar de cama, íamos vê-lo no segundo pátio, mas assim que se sentiu melhor e que p ôde sair de sua cela, foi ele quem veio nos ver. Convers ávamos todos os dias durante duas ou tr ês horas. Isso continuou assim durante duas semanas. Um dia, fomos chamados ao recinto do terceiro p átio, em casa do xeque do mosteiro, que falou-nos com a ajuda de um int érprete. Deu-nos como instrutor um dos monges dos mais antigos, um anci ão que tinha o aspecto de um ícone e que, segundo os outros frades, tinha duzentos e setenta e cinco anos. Desde então entramos, por assim dizer, na vida do mosteiro. Tendo acesso a quase toda parte, acabamos por conhecer bem o local. No meio do terceiro pátio, erigia-se uma espécie de grande templo, onde os habitantes do segundo e do terceiro pátios se reuniam, duas vezes por dia, para assistir às danças sagradas das grandes sacerdotisas ou para escutar m úsica sacra. Quando o pr íncipe Lubovedsky ficou completamente curado, acompanhou-nos a toda parte e tudo nos explicou. Era para nós como que um segundo instrutor. Escreverei, talvez, um dia um livro especial sobre os detalhes desse mosteiro, sobre o que representava e sobre o que se fazia ali. Enquanto isso, acho necess ário descrever, de maneira t ão pormenorizada quanto poss ível, um estranho aparelho que l á vi e cuja estrutura produziu sobre mim, quando mais ou menos a compreendi, uma impress ão transtornante. Quando o pr íncipe Lubovedsky se tornou nosso segundo instrutor, pediu um dia, por sua pr ópria iniciativa, permiss ão para conduzir-nos a um pequeno p átio lateral, o quarto, denominado p átio das mulheres, para ali assistir a uma aula das alunas, dirigidas pelas sacerdotisas-dan çarinas que participavam diariamente nas dan ças sagradas do templo. O pr íncipe, conhecendo o interesse que dedicava nessa época às leis que regem os movimentos do corpo e do psiquismo humanos, aconselhou-me, enquanto observ ávamos a aula, a prestar atenção especial aos aparelhos com a ajuda dos quais as jovens candidatas estudavam sua arte. Já pelo seu simples aspecto, esses estranhos aparelhos davam a impress ão de terem sido feitos em tempos muito antigos. Eram de ébano com incrustações de marfim e de madrep érola. Quando não estavam sendo usados e os guardavam em conjunto, formavam um conjunto que lembrava a árvore vezanelniana com suas ramifica ções todas semelhantes. Olhando-os mais de perto, cada um desses aparelhos apresentava-se sob a forma de um pilar liso, mais alto que um homem, fixado sobre um tripé, de onde partiam, em sete lugares, ramos de conformação especial. Esses ramos eram divididos em sete segmentos de dimens ões diferentes; cada um desses segmentos diminu ía de comprimento e de largura, na razão direta de seu afastamento do pilar. Cada segmento estava ligado ao seguinte por meio de duas bolas ocas de marfim embutidas uma na outra. A bola exterior não cobria totalmente a bola interior, o que permitia fixar nesta uma das extremidades de qualquer um dos segmentos do ramo, enquanto a bola exterior podia fixar-se à extremidade de um outro segmento.
Essa esp écie de junta assemelhava-se à articulação do ombro do homem e permitia aos sete segmentos de cada ramo moverem-se na direção desejada. Sobre a bola exterior estavam tra çados sinais. Havia tr ês desses aparelhos na sala; perto de cada um deles estava um pequeno arm ário, cheio de placas de metal de forma quadrada. Sobre essas placas estavam igualmente tra çados certos sinais. O pr íncipe Lubovedsky explicou-nos que essas placas eram reprodu ções de placas de ouro puro, que se encontravam na casa do xeque. Os peritos faziam recuar a origem dessas placas e desses aparelhos a uns quatro mil e quinhentos anos. Depois, o pr íncipe explicou-nos que, fazendo-se os sinais tra çados sobre as bolas corresponderem aos das placas, as bolas tomavam uma certa posi ção, que por sua vez comandava a posi ção dos segmentos. Para cada caso dado, quando todas as bolas estiverem dispostas da maneira desejada, a pose correspondente fica perfeitamente definida em sua forma e sua amplitude e as jovens sacerdotisas ficam durante horas diante desses aparelhos assim regulados, para aprender a sentir essa pose e a lembrar-se dela. 162 São necess ários longos anos, antes que seja permitido a essas futuras sacerdotisas dan çarem no templo. Somente podem fazê-lo as sacerdotisas idosas e experimentadas. Nesse mosteiro, todos conhecem o alfabeto dessas poses e, à noite, quando as sacerdotisas dan çam, na grande sala do templo, segundo o ritual apropriado a esse dia, os frades lêem, nessas poses, verdades que os homens ali inseriram h á vários milhares de anos. Essas danças preenchem fun ção análoga à dos nossos livros. Como fazemos hoje sobre papel, alguns homens anotaram antigamente, nessas poses, informa ções referentes a eventos passados h á muito tempo, a fim de transmiti-los de século em século aos homens das gera ções futuras; e chamaram essas dan ças de danças sagradas. As que se tornam sacerdotisas s ão, em sua maioria, jovens consagradas, desde a mais tenra inf ância, segundo o voto de seus pais ou por outras raz ões, ao serviço de Deus ou de um santo. Essas futuras sacerdotisas entram para o templo desde a inf ância para ali receber toda a instru ção e a preparação necess árias, notadamente no que concerne às danças sagradas. Pouco depois de ter visto pela primeira vez essa aula, tive ocasi ão de ver dan çarem as verdadeiras sacerdotisas e fiquei espantado, n ão pelo sentido dessas dan ças, que ainda não compreendia, mas pela exatid ão exterior e pela precisão com que eram executadas. Nem na Europa, nem em nenhum dos lugares em que havia observado com interesse consciente essa manifesta ção humana automatizada, nunca tinha encontrado nada de compar ável a essa pureza de execu ção. Vivíamos, nesse mosteiro, há tr ês meses e come çávamos a nos aclimatar às condições existentes, quando um dia o pr íncipe veio até a mim com um ar grave. Disse-me que, nessa mesma manh ã, tinham-no chamado para ir à casa do xeque, onde havia encontrado alguns dos frades mais velhos. "O xeque me disse - acrescentou o pr íncipe - que não me restavam mais que tr ês anos de vida e aconselhava-me a pass á-los no mosteiro Olman, situado sobre a vertente norte do Himalaia, para melhor empregar esse tempo, no que havia sido a aspira ção de toda a minha vida. "Comprometeu-se, se nisso consentisse, a dar-me todas as instru ções e diretrizes necess árias e a tudo arranjar para que minha estada 163 ali fosse realmente fecunda. Sem a menor hesitação, dei meu consentimento imediato e ficou decidido que partiria dentro de tr ês dias, acompanhado de homens qualificados. "E quero passar estes últimos dias inteiramente contigo, que te tornaste por acaso o ser mais chegado a mim nesta vida." A surpresa pregou-me no lugar e f iquei por muito tempo sem condições para pronunciar uma única palavra. Quando voltei um pouco a mim, perguntei apenas: - É possível que seja verdade? - Sim, respondeu o pr íncipe, nada posso fazer de melhor para empregar o tempo que me resta. Talvez possa, assim, recuperar aquele que perdi de maneira tão inútil e tão absurda, enquanto durante tantos anos tive tantas possibilidades.
"Ser á melhor que não mais falemos disso, mas que empreguemos esses tr ês dias em alguma coisa de mais essencial para o presente. Quanto a ti, continua a pensar que estou morto há muito tempo; tu mesmo não me disseste, à tua chegada, que tinhas mandado celebrar uma missa por mim e que te havias, pouco a pouco, resignado à idéia de me haver perdido? E agora, da mesma maneira pela qual nos encontramos por acaso, da mesma maneira, por acaso, nos separaremos sem tristeza." Talvez não fosse dif ícil para o pr íncipe falar disso tudo com tanta serenidade; mas, para mim, era muito duro dar-me conta de que ia perder e, desta vez para sempre, o homem que me era mais caro. Passamos esses tr ês dias, sem nos deixarmos e falamos sobre toda esp écie de coisas. Mas meu coração estava pesado, principalmente quando o pr íncipe sorria. A essa visão, minha alma ficava partida, porque esse sorriso era para mim o sinal de sua bondade, de seu amor e de sua paciência. Finalmente, quando se escoaram os tr ês dias, numa manhã bem triste para mim, eu pr óprio ajudei a carregar a caravana que devia me roubar para sempre esse homem t ão bom. Pediu-me que não o acompanhasse. A caravana p ôs-se em marcha. Antes de desaparecer por tr ás da montanha, o pr íncipe se voltou, olhou-me e aben çoou-me por tr ês vezes. Paz à tua alma, santo homem, pr íncipe Yuri Lubovedsky! Quero agora, para concluir este cap ítulo consagrado ao pr íncipe Lubovedsky, descrever, em todos os seus detalhes, a morte tr ágica de Soloviev, que ocorreu em circunst âncias muito particulares. 164 165 A MORTE DE SOLOVIEV Pouco depois de nossa perman ência no mosteiro da confraria Sarmung, Soloviev entrou para o grupo dos Buscadores da Verdade. Como a regra exigia, tinha me responsabilizado por ele. Uma vez admitido como membro desse grupo, p ôs a mesma consci ência e a mesma perseveran ça em trabalhar para seu pr óprio aperfeiçoamento como em participar de todas as atividades gerais do grupo. Tomou parte ativa em várias de nossas expedi ções. E foi precisamente durante uma dessas expedi ções, no ano de 1898, que morreu da mordida de um camelo selvagem, no deserto de Gobi. Contarei esse evento, em todos os seus pormenores, n ão só porque a morte de Soloviev foi muito estranha, mas também porque nossa maneira de nos deslocarmos no deserto de Gobi não tinha precedentes e sua descri ção ser á muito instrutiva para o leitor. Começarei meu relato no momento em que, depois de ter deixado Tashkent, subido, com grandes dificuldades o curso do rio Charakchan e transposto diversos passos nas montanhas, chegamos a F. ... pequena localidade no limite das areias do deserto de Gobi. Decidimos, antes de nos engajar na travessia do deserto, tomar algumas semanas de repouso. Aproveitando nossos lazeres, pusemo-nos a freq üentar, quer em grupo, quer isoladamente, os habitantes dessa localidade. Fizemo-lhes muitas perguntas e revelaram-nos todas as esp écies de crenças referentes ao deserto de Gobi. A maioria de seus relatos afirm ava que aldeias e, até mesmo cidades inteiras, estavam enterradas sob as areias do atual deserto, com inúmeros tesouros e riquezas, que tinham pertencido aos povos que haviam habitado essa regi ão, outrora pr óspera. A localização dessas riquezas, diziam, era conhecida de certos homens das aldeias vizinhas; era um segredo que se transmitia por heran ça, sob juramento e quem quer que violasse esse juramento deveria sofrer, com o muitos já tinham experimentado, um castigo especial, proporcional à gravidade de sua traição. No curso dessas conversa ções, mais de uma vez aludiu-se a uma regi ão do deserto de Gobi onde, no dizer de numerosas pessoas, estava enterrada uma grande cidade. Numerosos indícios singulares, que podiam concordar logicamente, interessaram muito seriamente v ários dos nossos e, principalmente, o professor de arqueologia Skridlov. Depois de haver, por longo tempo, discutido sobre isso entre n ós, decidimos atravessar o deserto de Gobi passando pela regi ão onde, segundo todos os ind ícios, devia encontrar-se a cidade enterrada nas areias. T ínhamos, com efeito, a intenção de empreender escava ções ali, ao acaso, sob a dire ção
do velho professor Skridlov, grande especialista no assunto. Traçamos nosso itiner ário de acordo com esse plano. Embora a região em quest ão não estivesse pr óxima de nenhuma das pistas mais ou menos conhecidas que atravessam o deserto de Gobi, resolvemos nos ater a um de nossos velhos princípios: nunca passar pelas veredas trilhadas; e sem mais refletir nas dificuldades que poderiam se apresentar, cada um de n ós deu livre curso a um sentimento pr óximo da alegria. Quando esse sentimento se acalmou um pouco, come çamos a elaborar nosso plano pormenorizadamente e descobrimos, então, as dificuldades desmedidas de nosso projeto, a ponto de nos perguntarmos se era mesmo realiz ável. com efeito, nosso novo itiner ário era muito longo e parecia impraticável com os meios habituais. A maior dificuldade era garantir, para toda a duração da viagem, reservas suficientes de água e alimentos, pois, mesmo calculando exatamente, seria preciso tal quantidade, que não se podia mais tratar de levarmos nós mesmos essa carga. Quanto a utilizar bestas de carga, n ão se podia pensar nisso, pois n ão podíamos contar com vegetação alguma ou com uma gota de água sequer: não devíamos encontrar nenhum oásis no caminho. Apesar disso, não abandonamos nosso plano; mas, depois de madura reflex ão, decidimos de comum acordo nada empreender, no momento, a fim de permitir a cada um de nós consagrar, durante um m ês, todos os recursos de sua intelig ência a encontrar uma saída para essa situa ção sem esperança. Além disso, a cada um seriam dados os meios para ir aonde quisesse e para fazer o que lhe apetecesse. A direção do assunto foi confiada ao professor Skridlov, que hav íamos escolhido como chefe, por ser o mais velho e o mais respek ável dentre nós e que, entre outros, tinha o encargo de nossa caixa comum. Desde o dia seguinte, todos recebemos certa quantia em dinheiro; uns deixaram a aldeia, outros ficaram ali e se organizaram, cada um de acordo com seu plano. O pr óximo lugar de reunião deveria ser uma pequena aldeia, situada na orla das areias que nos prop únhamos transpor. Um mês mais tarde, encontramo-nos ali e instalamos nosso acampamento sob a dire ção do professor Skridlov. Cada um teve ent ão que 166 apresentar um relatório da solução que visualizava. A ordem de apresenta ção dos relatórios era sorteada. Os tr ês primeiros foram: de início, o geólogo Karpenko, a seguir o doutor Sari-Oglé e, por fim, o filólogo Yelov. Esses relatórios eram de tão palpitante interesse por sua novidade, sua originalidade de concep ção e até por sua forma de express ão, que se gravaram em minha memória e ainda hoje posso reconstitu í-los quase palavra por palavra. Karpenko começou assim seu discurso: "Embora nem um só de voc ês, disto sei eu, goste da maneira dos s ábios europeus, que, em vez de ir direto ao fim, lhes empurram toda uma história que remonta quase até Adão, desta vez a quest ão é tão séria, que acho necess ário, antes de submeter-lhes minhas conclus ões, fazê-los conhecer as reflex ões e deduções que me levaram ao que lhes Vou propor daqui a pouco." Fez uma pausa e continuou: "As areias do deserto de Gobi, como afirma a ciência, são de formação tardia. "Existem duas hipóteses a esse respeito: "Essas areias, ou s ão um antigo fundo de mar, ou ent ão foram trazidas, pelos ventos, do cimo das cadeias rochosas do Tian-Shan, do Hindu Kuch, do Himalaia e das montanhas que rodeavam antigamente o deserto ao norte, mas que desapareceram, gastas pelo vento ao longo dos s éculos. "Tendo em vista que devemos, inicialmente, nos preocupar em ter alimentos suficientes para toda a dura ção de nossa viagem através do deserto, tanto para nós como para os animais que julgaremos útil levar, levei em consideração essas duas hip óteses ao mesmo tempo e perguntei-me se não poder íamos utilizar para esse fim as pr óprias areias. "Eis como raciocinei: Se essas areias s ão realmente um antigo fundo de mar, devem necessariamente apresentar uma camada ou uma zona de conchas diversas. Ora, como as conchas s ão constituídas por organismos, devem conter subst âncias orgânicas. Trata-se, pois, apenas, para nós, de encontrar o meio de tornar essas subst âncias
assimil áveis e suscet íveis de transmitir assim a energia necess ária à vida. "E, se as areias desse deserto s ão produtos da eros ão, isto é, se são de origem rochosa, ficou provado, de maneira incontestável, que o terreno da maioria dos o ásis benfazejos do Turquest ão, bem como 167 o das regiões vizinhas a esse deserto, tem uma origem puramente vegetal e é constituído por subst âncias orgânicas provenientes de regi ões mais elevadas. "Se assim for, tais substâncias foram igualmente capazes de se infiltrar, ao longo dos s éculos, na massa geral das areias de nosso deserto e de com ela se misturar. "Depois, pensei que, segundo a lei da gravidade, todas as subst âncias ou elementos de subst âncias, se agrupam sempre de acordo com seu peso e, no caso presente, as subst âncias orgânicas infiltradas, mais leves que as areias de origem rochosa, devem igualmente ter-se agrupado, pouco a pouco, para constituir camadas ou zonas. "Uma vez chegado a essas conclus ões teóricas, organizei, com vistas a uma verifica ção pr ática, pequena expedição no interior do deserto e, ao cabo de tr ês dias de marcha, comecei minhas pesquisas. "Depressa encontrei, em certos lugares, uma camada que, à primeira vista, não se distinguia da massa geral das areias, mas da qual uma simples observa ção superficial acusava uma origem nitidamente diferente. "O exame microscópico e a an álise química dos elementos distintos dessa mat éria heterogênea demonstraram que era composta de cad áveres de pequenos organismos e de diversos tecidos de origem vegetal. "Depois de haver repartido, entre os sete camelos que tinha à minha disposição, um carregamento dessa areia e, tendo conseguido, com a autoriza ção do professor Skrilov, diversos animais, empreendi experi ências com eles. "Tendo assim comprado dois camelos, dois iaques, dois cavalos, duas mulas, dois burros, dez carneiros, dez cabras, dez c ães e dez gatos keriskis, comecei por esfome á-los, só lhes dando de comer a quantidade estritamente suficiente para mant ê-los vivos e, pouco a pouco, misturei areia à sua comida, preparando essa mistura de diversas maneiras. "Durante vários dias, nenhum desses animais quis tocar numa única dessas misturas; mas, ao fim de uma semana de ensaios de uma nova prepara ção, os carneiros e as cabras puseram-se a comer com grande prazer. "Dediquei, então, toda a minha aten ção a esses animais. "Dois dias mais tarde, estava plenamente convencido de que os carneiros e as cabras preferiam essa mistura a qualquer outra alimentação. 168 169 "Essa mistura era constituída de sete partes e meia de areia, duas partes de carneiro picado e meia parte de sal ordinário. "No início, todos os animais submetidos às minhas experiências, inclusive os carneiros e as cabras, perdiam diariamente de meio a dois por cento de seu peso total, mas, a partir do dia em que os carneiros e as cabras se puseram a comer essa mistura, n ão só deixaram de emagrecer, mas engordaram diariamente de trinta a noventa gramas. "Graças a essas experi ências, não tenho mais d úvida, pessoalmente, quanto à possibilidade de utilizar essa areia para alimentar as cabras e os carneiros, com a condi ção de misturar, na quantidade adequada, carne de sua pr ópria espécie. Assim, posso hoje propor-lhes o seguinte: "Para transpor o principal obstáculo, que nossa travessia do deserto apresenta, é-nos necess ário comprar várias centenas de carneiros e de cabras e mat á-los, à medida que nos forem necess ários, tanto para assegurar nossa pr ópria subsistência, como para preparar a mistura destinada aos animais restantes. "Não há perigo de falta de areia necess ária, pois, segundo todos os dados que possuo, poder-se- á sempre encontr á-la em certos lugares. "Quanto à água, para termos uma reserva suficiente, ser-nos- á preciso providenciar bexigas ou est ômagos de carneiros e de cabras, numa quantidade igual ao dobro da dos nossos animais e delas fazermos umas esp écies de kurdjins, ench ê-los de água e carregar cada carneiro ou cada cabra com dois kurdjins. "Verifiquei que um carneiro pode facilmente e sem dano levar essa quantidade de água. Ao mesmo tempo,
minhas experiências e cálculos me mostraram que seria suficiente, para nossas necessidades pessoais e para as de nossos animais, com a condi ção de economizar durante os dois ou tr ês primeiros dias; depois do que, poderemos utilizar a água dos kurdjins levados pelos carneiros que tivermos matado." Depois do geólogo Karpenko, o doutor Sari-Ogl é fez seu relatório. Tinha encontrado o doutor Sari-Oglé e me ligara a ele cinco anos antes. De família persa, nascera na P érsia oriental, mas fora educado na França. Talvez um dia escreva um relato pormenorizado sobre ele, pois tamb ém era um homem excepcional. O doutor Sari-Oglé pronunciou, mais ou menos, esse discurso: "Após ter ouvido as proposi ções do engenheiro Karpenkd, só posso dizer uma coisa: passo - peto menos quanto à primeira parte de meu relatório - pois considero que não se poderia propor nada melhor. Atacarei de pronto a segunda parte, descrever-lhes-ei as experi ências que empreendi para descobrir um meio de superar as dificuldades de deslocamento na areia, durante as tempestades e comunicar-lhes-ei as reflex ões que me inspiraram. E, como as conclus ões pr áticas a que cheguei, com base nos dados experimentais, completam muito bem, a meu ver, as proposis ões do engenheiro Karpenko, tenho a inten ção de lhas submeter. "Nesses desertos, os ventos ou as tempestades se desencadeiam com f úria, freqüentemente, e enquanto duram torna-se impossível qualquer deslocamento, tanto para os homens, como para os animais, pois o vento levanta a areia, leva-a em turbilhões e forma montículos nos pr óprios lugares em que havia buracos um momento antes. "Pensei, pois, que nossa marcha poderia ser estorvada por esses turbilh ões de areia. Veio-me, então, a idéia de que, devido à sua densidade, a areia n ão pode elevar-se até muito alto e de que, sem dúvida, existe um limite acima do qual o vento n ão pode mais erguer nem um s ó gr ão. "Essas reflexões levaram-me a tentar determinar esse limite hipot ético. "Para esse fim, encomendei aqui mesmo, na aldeia, uma grande escada dobr ável; e depois fui at é o deserto, com um guia e dois camelos. "Depois de um longo dia de marcha, preparava-me para acampar para a noite, quando, de repente, o vento se levantou; ao cabo de uma hora, a tempestade atingiu tal violência, que tornou-se imposs ível manter-nos em pé e até respirar, dentro desse ar saturado de areia. "com grandes dificuldades, desdobramos a escada que tinha levado e montamo-la, como pudemos, servindo-nos dos camelos. Depois disso, trepei nela. "Façam uma idéia do meu espanto, quando constatei que, à altura de apenas sete metros, não havia mais um s ó gr ão de areia no ar. "A escada tinha, mais ou menos, uns vinte metros. Ainda n ão tinha chegado ao ter ço de sua altura e j á emergia desse inferno e contemplava um magn ífico céu estrelado, banhado pela lua, de uma calma e tranq üilidade como raramente se encontra, mesmo entre nós, na Pérsia Oriental. Embaixo continuava a reinar um caos inimagin ável. 170 171 Tinha a impressão de manter-me sobre uma alta escarpa à beira do oceano, dominando o mais terr ível dos furac ões. Enquanto, de cima de minha escada, admirava a beleza da noite, a tempestade amainou pouco a pouco e, ao cabo de meia hora, pude descer. Mas, em baixo, esperava-me uma desgraça. "Embora a tempestade tivesse perdido metade de sua for ça, vi que o homem, que me havia acompanhado, continuava a caminhar com o vento, sobre a crista das dunas, como se costuma fazer durante essas tempestades, levando com ele apenas um dos camelos; o outro, parece, tinha-se soltado, pouco a pouco, depois de minha ascens ão e tinha ido não se sabe para onde. "Quando o dia se levantou, pusemo-nos à sua procura e de pronto percebemos, emergindo da duna, n ão longe do local onde a escada fora montada, um casco de nosso camelo. "Não nos demos ao trabalho de desenterr á-lo pois, evidentemente, estava morto e j á demasiado enterrado. Tomamos, de imediato, o caminho de volta, engolindo nosso alimento, enquanto caminh ávamos, para não perder tempo. Na mesma noite, chegamos de volta à aldeia. "No pr óprio dia seguinte, fiz fabricar, em diferentes localidadjes, para n ão despertar suspeitas, vários pares de pernas de pau de diferentes dimens ões e, levando
comigo um camelo carregado com o material e com as provis ões estritamente necess árias, voltei ao deserto, onde me exercitei em montar sobre as pernas de pau, primeiro sobre as menores e, pouco a pouco, sobre as maiores. "Não era tão dif ícil avançar sobre a areia com essas pernas de pau, pois havia fixado nelas solas de ferro de minha invenção, que tinha evitado, sempre por prudência, encomendar nos mesmos lugares que as pernas de pau. "Durante o tempo que passei no deserto para exercitar-me, enfrentei ainda dois furac ões. Um deles, a bem dizer, não era muito violento, mas mesmo assim teria sido impossível mover-me e orientar-me nele com os meios ordinários; e, no entanto, com minhas pernas de pau, passeava livremente sobre a areia, durante esses dois furac ões, em qualquer direção, como se estivesse no meu quarto. "A única dificuldade consistia em n ão tropeçar, pois há ali buracos e calombos por toda a parte, nas dunas, principalmente durante as tempestades. Felizmente, observei que a superf ície da camada de ar saturada de areia n ão era plana e que suas desigualdades correspondiam às do terreno. Por isso, a marcha sobre as pernas de pau ficava-me consideravelmente facilitada pelo fato de poder distinguir claramente, segundo os contornos dessa superf ície, onde acabava uma duna e onde come çava outra. "Em todo caso, concluiu o doutor Sari-Oglé, cumpre-nos reter esta descoberta - a saber, que a altura da camada de ar saturada de areia tem um limite bem definido e pouco elevado e que a superf ície dessa camada acompanha exatamente os relevos e as depress ões do pr óprio solo do deserto - para poder tirar partido disto, no curso da viagem que projetamos," O terceiro relatório era o do filólogo Yelov. com a maneira muito original que tinha de se expressar, come çou assim: "Se me permitirem, senhores, dir-lhes-ei a mesma coisa que nosso venerando disc ípulo de Esculápio, a respeito da primeira parte de seu projeto: passo. Mas eu passo sobre tudo que pensei e elucubrei h á um m ês. "O que desejava lhes comunicar hoje é apenas um brinquedo de crian ças, em comparação com as id éias que acabam de ser expostas pelo engenheiro de minas Karpenko e pelo meu amigo, o doutor Sari-Oglé, tão distinto pela sua origem quanto por seus diplomas. "Há pouco, entretanto, ao escutar os dois oradores, suas proposi ções fizeram surgir em mim uma nova id éia, que talvez achem aceit ável e possa ser útil à realização de nossa viagem. Ei-la: "Se adotarmos a proposi ção do doutor, teremos que nos exercitar sobre pernas de pau de diversos tamanhos; mas as que teremos que utilizar durante a pr ópria viagem e de que cada um de n ós ter á que levar um par, n ão dever ão ter menos de seis metros de altura. "Por outro lado, se conservarmos a proposi ção de Karpenko, necessariamente teremos muitos carneiros e cabras. "Penso que, quando n ão tivermos necessidade das pernas de pau, poderemos muito facilmente, em vez de carregá-las nós mesmos, fazer com que nossos carneiros e nossas cabras as transportem. "Cada um de nós sabe que o rebanho tem o h ábito de seguir o animal cabeça de fila, o condutor. Bastar á, pois, dirigir os carneiros atrelados às primeiras pernas de pau: os outros, por si mesmos, os seguir ão, numa longa fila, uns atr ás dos outros. "Além de nos libertarmos assim da necessidade de carregar nossas pernas de pau, poderemos ainda fazer com que o rebanho nos carregue. No espa ço criado entre as pernas de pau paralelas, de seis metros de comprimento, poder-se- á dispor facilmente sete fileiras de 172 tr ês carneiros ou seja, ao todo, vinte e um carneiros, para os quais o peso de um homem praticamente n ão conta. "Para esse fim, cumprir á atrelar os carneiros entre as pernas de pau, de maneira que fique um lugar vazio no meio medindo"cerca de um metro e meio de comprimento por um metro de largura, onde instalaremos uma c ômoda liteira. "Assim, em vez de sofrer e de suar sob o peso de nossas pernas de pau, cada um de n ós se refestelar á como Mukhtar Pachá em seu har ém, ou como um rico parasita se pavoneando em sua equipagem, ao longo das alamedas do Bois de Boulogne. "Atravessando o deserto, nessas condi ções, poderemos até aprender, durante a caminhada, quase todas as línguas de que precisaremos
em nossas futuras expedi ções." Depois dos dois primeiros relatórios, seguidos do brilhante finde de Yelov, qualquer outra sugest ão se tornava inútil. Estávamos tão espantados com o que acab ávamos de ouvir, que as dificuldades que se opunham à travessia do deserto de Gobi nos pareciam, de repente, terem sido exageradas de prop ósito ou mesmo inventadas completamente para os viajantes. Ficamos, pois, com essas proposi ções e decidimos, de comum acordo, ocultar, por enquanto, a todos os habitantes da aldeia a viagem que pretend íamos fazer no deserto - nesse mundo da fome, da morte, da incerteza. Concordamos em fazer passar o professor Skridlov por um intr épido mercador russo, vindo a essas paragens para empreender formidáveis negócios. Vinha, pretendendo comprar rebanhos de carneiros para lev á-los para a Rússia, onde t êm grande valor, ao passo que no local pode-se compr á-los quase de gra ça; tinha igualmente a intenção de exportar peças de madeira longas, finas e s ólidas para serem utilizadas, nas f ábricas russas, que delas fazem molduras para estender morim. Na R ússia não se encontram madeiras tão duras. As molduras fabricadas com as esp écies do país não resistem por muito tempo ao movimento contínuo das m áquinas e, por isso, é que as madeiras dessa qualidade custam t ão caro ali. Tais eram as razões pelas quais o intr épido mercador se tinha aventurado nessa expedição comercial das mais arriscadas. Depois de ter ajustado todos os detalhes, sentimo-nos cheios de ardor, falando de nossa viagem com a mesma desenvoltura que ter íamos, se se tratasse de atravessar a praça da Concórdia, em Paris. 173 No dia seguinte, transportamo-nos todos para a margem de um rio, pr óximo ao lugar em que desaparecia nas profundezas insond áveis do deserto e a í armamos as tendas que trazíamos conosco desde a R ússia. Embora o local de nosso novo acampamento n ão fosse muito afastado da aldeia, ninguém morava lá e havia muito pouca probabilidade de que algu ém tivesse a fantasia de se instalar às portas desse inferno. Alguns de nós, sob pretexto de obedecer às ordens do pseudomercador Ivanov, correram os mercados das redondezas para ali comprar cabras, carneiros e pe ças de madeira de diferentes tamanhos. Dentro em breve, nosso acampamento abrigou um rebanho inteiro de carneiros. Depois, veio o per íodo de treinamento intensivo para aprender a montar nas pernas de pau, come çando pelas menores para terminar pelas mais altas. E, ao cabo de doze dias, numa bela manhã, nosso extraordin ário cortejo enfiou-se deserto a dentro, em meio ao balir dos carneiros e das cabras, do latir dos c ães, do relinchar dos cavalos e do zurrar dos burros que t ínhamos comprado por medida de seguran ça. Em breve o cortejo se estirou numa longa fila de liteiras, qual prociss ão solene de algum imperador do tempo antigo. Durante muito tempo ainda, nossas alegres can ções reboaram, bem como os apelos trocados entre as liteiras improvisadas, às vezes muito afastadas umas das outras. As observações de Yelov, é claro, levantavam, como sempre, tempestades de risos. Alguns dias mais tarde, apesar de term os encontrado dois terr íveis furacões, alcançamos, sem nenhum cansaço, a região central do deserto, pr óximo ao lugar que nos tínhamos fixado como meta principal de nossa expedi ção - plenamente satisfeitos com nossa travessia e falando já a língua que nos era necess ária. Tudo teria, talvez, terminado como hav íamos previsto, não fosse o acidente que ocorreu com Soloviev. Caminhávamos principalmente à noite, aproveitando a experiência de nosso camarada Dachtamirov, excelente astr ônomo, que sabia se orientar perfeitamente pelas estrelas. Um dia, paramos à aurora para comer e alimentar nossos animais. Era ainda muito cedo. O sol apenas começava a esquentar. Prepar ávamo-nos para atacar o carneiro com arroz, que acabava de ser 174 cozido, quando surgiu, no horizonte, um rebanho de camelos. Adivinhamos, imediatamente, que eram camelos selvagens. Soloviev, apaixonado ca çador e que nunca errava seu tiro, pegou a carabina e correu na dire ção em que haviam desaparecido os camelos. Enquanto gracej ávamos sobre
sua paixão pela caça, pusemo-nos a comer o prato quente, maravilhosamente preparado nessas condi ções sem precedentes. Digo sem precedentes, pois, no cora ção do deserto e a tal distância de seus confins, é geralmente imposs ível acender fogo, uma vez que, ao longo de centenas de quilômetros, não se encontra o m ínimo graveto. E, no entanto, acendíamos fogo, pelo menos duas vezes ao dia, para cozer as refei ções e preparar caf é ou chá, sem falar do chá tibetano, espécie de caldo que tir ávamos dos ossos dos carneiros mortos. Dev íamos esse luxo a uma inven ção de Pogossian, que tinha tido a id éia de confeccionar selas para o carregamento dos carneiros com pedaços de madeira especiais; e, agora, a cada carneiro morto, lucr ávamos a quantidade de ripinhas necessárias diariamente para nossas fogueiras. Passara-se uma hora e meia desde que Soloviev se tinha lan çado em perseguição aos camelos. Est ávamos já prontos para nos p ôr novamente a caminho e ele ainda n ão voltara. Esperamos ainda meia hora. Conhecendo a pontualidade de Soloviev, que nunca se fazia esperar, est ávamos inquietos e tem íamos um acidente. Tomamos de nossos fuzis e todos, com exce ção de dois de nós, partimos à sua procura. Dentro em breve, percebemos ao longe as silhuetas dos camelos e seguimos em sua dire ção. Como caminhávamos em sua direção, os camelos, farejando, sem d úvida, nossa aproxima ção, afastaram-se para o sul. Mas prosseguimos nossas buscas. Quatro horas tinham decorrido desde a partida de Soloviev. De s úbito, um de nós descobriu o corpo de um homem deitado a alguns passos. Corremos de pronto - era Soloviev, já morto, com o pesco ço horrivelmente roído. Fomos invadidos por dilacerante tristeza, pois todos am ávamos, do fundo de nossos cora ções, esse homem tão excepcionalmente bom. Tendo feito uma maça com nossos fuzis, trouxemos o corpo de Soloviev at é ao acampamento. E, nesse dia, com muita solenidade, sob a dire ção de Skridlov, que recitava as orações na ausência do padre, enterramo-lo no cora ção do deserto. Depois do que, abandonamos esse lugar maldito. 175 Embora tivéssemos ido j á bastante longe, em nossa busca da cidade lend ária, que esper ávamos encontrar em nosso caminho, modificamos nossos planos e resolvemos abandonar o deserto o mais depressa poss ível. Desviamos, pois, para oeste e, quatro dias mais tarde, alcan çávamos o oásis de Kéria, onde a natureza novamente se tornava acolhedora. De Kéria, retomamos nosso caminho, mas dessa vez sem nosso caro Soloviev. Paz à tua alma, ó tu, amigo honesto e leal entre todos os amigos! *** 8 EKIM BEY Quero consagrar este cap ítulo a um homem que considero igualmente um dos mais not áveis que encontrei; um homem, cuja vida adulta - quer pela vontade do destino, quer pelo jogo das leis que regem o desenvolvimento aut ônomo da individualidade - sob certos aspectos, se ordenou de maneira an áloga à minha. É interessante observar, a propósito, que se, como geralmente se pensa, dois homens pertencentes a na ções engajadas há séculos numa luta de car áter racial devem sentir, um para com o outro, um sentimento instintivo de animosidade e at é de ódio, no entanto, contra qualquer expectativa, desde que Ekim Bey e eu travamos conhecimento, em nossa juventude, em circunst âncias pouco comuns, sentimos grande afinidade rec íproca. Mais tarde, quando os acasos da vida aproximaram nossos mundos interiores como duas manifestações de origem similar, sempre tivemos, um para com o outro, apesar de nossas diferenças de nascimento, de fam ília, de tradições sociais e de convicções religiosas, um sentimento igual ao que t êm entre si irmãos do mesmo sangue. Descreverei, neste cap ítulo, meu primeiro encontro com aquele que se tornou o Dr. Ekim Bey, um homem sinceramente respeitado pelas pessoas s érias que o conheceram e que o público não hesitava em considerar uma esp écie de mago que fazia milagres. Depois do que, contarei resumidamente certos epis ódios plenos de ensinamento,
que sobrevieram no curso das expedi ções que fizemos juntos nas profundezas da Ásia e da África. Hoje, depois de haver recebido numerosas condecora ções, grandemente apreciadas, como recompensa por seus servi ços passados, termina sua vida, mais ou menos bem, com o título de Grande Pachá Turco, num pequeno povoado do Egito. 176 177 Se escolheu retirar-se para esse lugar isolado em sua velhice, embora tivesse a possibilidade de viver onde melhor lhe aprouvesse e de usufruir de todas as comodidades da vida moderna, foi para evitar ser importunado por toda espécie de ociosos dominados pela curiosidade essa propriedade indigna do homem, a qual se tornou inerente à maioria de nossos contempor âneos. Quando encontrei Ekim Bey pela primeira vez, ele era ainda muito jovem. Estava estudando numa escola militar na Alemanha e passava os meses de ver ão em casa de seu pai - em Constantinopla. Éramos da mesma idade. Antes de descrever as circunst âncias em que nos conhecemos, lembrarei que, nessa época, - como já disse, num dos cap ítulos anteriores, em que descrevi minha visita a Etchmiadzine e meu primeiro encontro com Pogossian - ia a toda a parte, rondando como c ão errante, em busca de uma resposta às perguntas que haviam surgido em meu "cérebro de psicopata", como o teria qualificado a maioria dos homens contempor âneos. Entre outros lugares, tinha ido a Constantinopla, atraído pelos inúmeros prodígios atribuídos aos dervixes dali. Chegando à Constantinopla, instalei-me no bairro de Pera e comecei a visitar os mosteiros das diversas ordens de dervixes. Totalmente tomado por minha dervixomania, nada mais fazia de útil e não pensava em mais nada, a n ão ser em toda essa história de dervixes; a tal ponto, que um dia tive que render-me à evidência: não tinha mais nem um tost ão no bolso. Depois de ter feito tal constatação, vaguei preocupado durante dois dias inteiros, assaltado por mil pensamentos, que zuniam dentro de meu cr âneo, tal e qual as moscas favoritas das mulas espanholas. Como obter essa coisa desprez ível que, para o homem contempor âneo, é quase o único impulso da vida? Entregue a essas preocupa ções, encontrava-me uma manh ã sobre a grande ponte que liga Pera a Istambul. Debruçado sobre o parapeito, pusera-me a refletir sobre o sentido e o valor real desses movimentos girat órios infindáveis dos dervixes giradores que, à primeira vista, pareciam automáticos, sem participação alguma do consciente. Havia em torno de mim um vaiv ém de navios; lanchas deslizavam por toda parte. Quase sob meus p és, na margem de Gaiata, encontrava-se o cais das barcas que asseguravam o servi ço entre Constantinopla e a margem oposta do B ósforo. 178 179 Perto do cais, entre os navios, vi uns garotos que mergulhavam à procura das moedas que lhes jogavam os viajantes. Muito interessado, aproximei-me e pus-me a observ á-los. Sem precipitação alguma, com muita habilidade, esses garotos pegavam as moedas atiradas aqui e ali, em torno do navio; n ão perdiam uma. Olhei-os por muito tempo, admirando sua agilidade e sua habilidade. Eram de várias idades, desde os oito anos at é os dezoito. De súbito, veio-me uma idéia: por que não aprenderia também essa profissão? E em que seria menos h ábil que esses garotos?.. . E, desde o dia seguinte, fui para as margens do Corno de Ouro, um pouco al ém do Almirantado, para aprender a mergulhar. Durante o per íodo em que me exercitei, encontrei um mestre, por acaso, na pessoa de um grego perito no assunto e que ia ali para se banhar. Ensinou-me, espontaneamente, certos segredos dessa arte; subtra í-lhe os outros, pouco a pouco, com a astúcia que me era pr ópria, diante de uma xícara de caf é que sempre tomávamos depois do banho, numa taverna grega situada n ão longe dali - e deixo-os a pensar quem pagava o caf é. A princípio tive muitas dificuldades; era necess ário mergulhar de olhos abertos e a água do mar me corroía a mucosa das pálpebras. Isto me incomodava de maneira atroz e, à noite, a dor impedia-me de dormir.
Dentro em breve, por ém, meus olhos se acostumaram e pude ver t ão bem dentro dágua quanto ao ar livre. Ao cabo de duas semanas, tomei meu lugar ent re os garotos de todas as idades e lancei -me a essa empresa de pesca de moedas em torno dos navios - a princ ípio sem muito sucesso, é claro. De pronto, também eu não perdia mais nenhuma. Quando se joga uma moeda dentro d água, ela vai inicialmente a pique, mas quanto mais se afasta da superf ície, mais se retarda a sua queda; e, se o lugar for profundo, decorre um tempo relativamente longo antes que chegue ao fundo. Basta localizar bem a zona em que caiu antes de mergulhar e, ent ão, é f ácil encontr á-la e recuper á-la. Um dia, um passageiro que olhava pensativamente, apoiado na amurada, os pequenos buscadores de moedas, deixou cair na água, por descuido, um ter ço que tinha na m ão - ter ço esse que é o atributo indispensável de todo oriental que se d á ao respeito, durante os momentos de repouso que as obriga ções da vida lhe deixam. Alertou os garotos que mergulharam logo. Mas, apesar de seus esfor ços, não puderam encontrar o objeto, pois estavam bastante longe do navio e n ão tinham tido tempo de observar em que lugar ca íra. O ter ço era, sem dúvida, de grande valor, pois o passageiro prometeu vinte e cinco libras a quem o trouxesse. Depois da partida do navio, todos os apanhadores de tost ões prosseguiram com sondagem, mas sem qualquer resultado: a água era muito profunda e era impossível "vasculhar o fundo" como diziam. Aliás, é dif ícil atingir as profundezas: assim como a água facilita a volta à superf ície, assim também opõe resistência ao mergulho. Alguns dias mais tarde, pegava moedas nas mesm as redondezas. Um dos passageiros jogou a sua para t ão longe que já não estava à vista quando cheguei ao local onde caíra. Como nesse dia a pesca n ão tinha sido muito proveitosa, queria recuperar a moeda a qualquer custo. No momento em que a alcancei, percebi, n ão longe dela, algo que lembrava um ter ço. Enquanto voltava à tona, lembrei-me do ter ço pelo qual haviam prometido vinte e cinco libras. Marquei o lugar e, sem dizer nada a ningu ém, voltei a mergulhar; mas tive que constatar que me era imposs ível alcançar o fundo. No dia seguinte, levei v árias macetas pesadas, que aluguei no ferreiro, amarrei-as em volta de meu corpo e mergulhei com esse peso adicional. Logo encontrei o ter ço: era de âmbar incrustado de pequenos brilhantes e de granadas. Soube, no mesmo dia, que o passageiro que o havia perdido era o pach á N.. ., antigo governador de um vilarejo pr óximo a Constantinopla e que vivia atualmente na outra margem do Bósforo, não longe de Scutari. Como há algum tempo não vinha me sentindo bem e como meu estado se agravava dia a dia, resolvi n ão ir mergulhar, no dia seguinte e sim atravessar o B ósforo para devolver o ter ço a seu proprietário e, ao mesmo tempo, visitar o cemit ério de Scutari. Na manhã do dia seguinte, encontrei a casa do pach á sem dificuldade. Estava em casa e, quando soube que um buscador de moedas insistia em falar-lhe pessoalmente, de pronto compreendeu do que se 180 181 tratava e veio ao meu encontro. Quando lhe entreguei o ter ço, manifestou-me sua alegria, com tanta sinceridade e tanta simplicidade, que fui tocado por sua atitude e não quis aceitar, de modo algum, a recompensa prometida. Convidou-me, então, para almoçar com ele e isso n ão recusei. Parti, logo depois da refeição, para não perder o pen último barco. A caminho, entretanto, senti-me t ão mal, que fui obrigado a sentar-me na escadaria de uma casa e desmaiei. Alguns transeuntes me viram e, como o local onde me detivera n ão era longe da casa do pach á, este último foi informado, quase imediatamente, de que um rapaz acabava de desmaiar; sabendo que se tratava de quem lhe havia devolvido o ter ço, foi pessolmente com sua gente e deu ordens para me transportarem para sua casa. A seguir, mandou chamar um m édico militar. Voltei logo a mim, mas sentia-me tão mal, que não me podia mover e fui obrigado a ficar em casa do pach á. Durante a primeira noite, toda a minha pele rachou e queimava de maneira insuport ável; por falta de hábito, sem dúvida, não suportara a ação prolongada da água do
mar. Alojaram-me numa das alas da casa, onde um a velha mulher, chamada Fatma Badji, f oi encarregada de velar por mim. E o filho do pach á, aluno de uma escola militar alemã, veio ajudar a velha mulher a cuidar de mim. Era Ekim Bey, que com o tempo, tornou-se meu amigo íntimo. Durante minha convalescen ça, pilheriávamos e tagarelávamos sobre toda esp écie de coisas; pouco a pouco, por ém, nossas conversas tomaram um car áter filosófico. Quando fiquei curado e foi preciso nos separarmos, t ínhamo-nos tornado verdadeiros amigos e, desde ent ão, mantivemos sempre uma correspondência. No mesmo ano, de volta à Alemanha, deixou a escola militar pela faculdade de medicina, pois, durante esse intervalo, suas convic ções interiores haviam mudado e o tinham levado a abandonar a carreira de oficial para tornar-se m édico do exército. Passaram-se quatro anos. Um dia, no Cáucaso, recebi uma carta dele. Participava-me que era m édico, exprimia o desejo de ver-me e, ao mesmo tempo, de visitar o Cáucaso, que o interessava há muito tempo e indagava onde e quando se podia encontrar comigo. Nesse ver ão, eu vivia em Suram, onde fabricava objetos de gesso. Enviei-lhe um telegrama, dizendo que o esperava com impaci ência. Chegou alguns dias mais tarde. Pogossian, Yelov e Karpenko, outro amigo de juventude, vieram passar o ver ão em Suram. Ekim Bey logo se ligou a meus camaradas; sentia-se com eles como com velhos conhecidos. Passamos juntos todo o ver ão, fazendo, às vezes, pequenas excurs ões, geralmente a pé. Depois de termos escalado o colo do Suram, visitamos os arredores de Borjom e de Mikhailov, onde procuramos entrar em contato com aqueles, dentre seus habitantes, que ainda não tinham sido submetidos à influência da civilização contempor ânea. Fomos até onde vivem os famosos khevsurs, que t êm feito tantos sábios etnógrafos perderem a razão. Ekim Bey viveu assim v ários meses conosco, rapazes de sua idade, totalmente cheios de dom-quixotismo: de tanto participar de nossas discuss ões, foi arrastado de bom ou de mau grado à nossa "psicopatia" e tamb ém desejou ardentemente pular acima de seus joelhos. Nós quatro, Pogossian, Yelov, Karpenko e eu, fal ávamos freqüentemente nessa época, sobre a proposta que nos fizera o pr íncipe Yuri Lubovedsky, de participar da grande expedição que se aprontava para fazer, a p é, com algum amigo, e cujo itiner ário, partindo da cidade-fronteira de Nakhichevan, atravessava a P érsia e terminava no Golfo Pérsico. Nossas conversas e as perspectivas que uma viagem dessa esp écie oferecia, de tal modo interessaram a Ekim Bey, que nos pediu para intervir junto ao pr íncipe para que fosse autorizado a reunir-se à expedição. Por seu lado, refletiu sobre o que devia fazer para obter o consentimento de seu pai e uma licen ça de um ano, de seus chefes. Obteve ambos, por meio de uma troca de telegramas e provid ências pessoais que tomou, quando voltou para casa, a fim de se preparar para essa expedi ção. Reuniu-se a nós, no dia de nossa partida de Nakhichevan, em 1. ° de janeiro do ano seguinte, para empreender, em nossa companhia, sua primeira grande viagem. Deixamos Nakhichevan à meia-noite desse mesmo dia. Desde a aurora, tivemos que enfrentar a "sagacidade" de certos b ípedes de nosso querido planeta, denominados guardas de fronteira, que sempre e em toda parte s ão em éritos na arte de demonstrar sua perspic ácia e sua onisci ência. 182 183 Éramos vinte e tr ês, inclusive todos os amigos e camaradas em mem ória de cada um dos quais resolvi consagrar um capítulo inteiro desta série de minhas obras. Já falei sobre tr ês deles, Pogossian, Yelov e o pr íncipe Lubovedsky; o doutor Ekim Bey é o assunto do presente capítulo; dois outros - o engenheiro Karpenko e o professor de ar- J queologia Skridlov - figurar ão mais adiante neste livro. Ao cabo de nove dias, chegamos à cidade de Tabriz, sem incidente particular. Depois de Tabriz, entretanto, ocorreu um evento que descreverei t ão exatamente quanto
possível, primeiro porque Ekim Bey nele tomou parte ativa e mostrou-se profundamente tocado e, depois, porque devia mudar completamente toda minha concep ção do mundo. Tínhamos ouvido falar muito em Tabriz, de um dervixe persa que passava por fazer prod ígios, e isso havia despertado nossa curiosidade. Assim, quando, um pouco mais tarde, ouvimos falar dele novamente por um padre arm ênio, decidimos, embora o lugar onde vivia fosse bastante afastado de nossa rota, modificar nosso itiner ário para ir até junto dele e fazermos, por nós mesmos, uma id éia do que era. No décimo terceiro dia de uma viagem estafante, após haver dormido sob tendas de pastores curdos ou persas, ou então em povoados, chegamos finalmente à aldeia em que vivia o dervixe e indicaram-nos sua casa, situada a alguma dist ância. Fomos imediatamente para l á e o encontramos pr óximo à sua casa, à sombra de grandes árvores, sob as quais tinha o h ábito de permanecer para falar com os que vinham vê-lo. Vimos um homem, quase um anci ão, vestido de andrajos, os p és descalços. Estava sentado no ch ão, com as pernas cruzadas. Perto dele estavam agrupados v ários jovens persas quer soubemo-lo mais tarde, eram seus alunos. Aproximamo-nos e, depois de lhe term os pedido a bênção, sentamo-nos no ch ão, formando um semic írculo em torno dele. A conversação engajou-se: fazíamos-lhe perguntas, respondia-nos e depois, por sua vez, nos questionava. Inicialmente recebeu-nos com bastante frieza e falou bastante a contragosto. Quando, por ém, soube que tínhamos vindo de longe especialmente para falar com ele, mostrou-se mais af ável. Exprimia-se com muita simplicidade, numa linguagem de sua lavra, poder-se-ia dizer artesanal e, no in ício, deu-me a impress ão de ser um iletrado, ou seja, no sentido europeu da palavra, um homem sem cultura. A conversação desenrolou-se em persa, mas num dialeto que nenhum de n ós conhecia, exceto eu, o doutor Sari-Oglé e um outro, que o falava mais ou menos bem. Assim, Sari-Oglé e eu fazíamos as perguntas e traduz íamos imediatamente as respostas, para que os outros as ouvissem. Era a hora do jantar. Um aluno trouxe a refeição do dervixe: arroz numa cuia. O dervixe pôs-se a comer, enquanto prosseguia a conversa ção. Abrindo nossos sacos de viagem, fizemos o mesmo, pois nada t ínhamos comido desde a hora matinal em que nos tínhamos posto a caminho. Devo dizer que, nessa época, era fervoroso adepto dos famosos iogues hindus e seguia ao p é da letra todas as indicações do Hatha Yoga. Ao fazer minhas refei ções, esfor çava-me por mastigar o alimento com o maior cuidado. Assim, todos os outros e o pr óprio dervixe já tinham terminado há muito tempo sua modesta refeição e eu ainda continuava a comer lentamente, tratando de n ão engolir um só pedaço que não tivesse sido mastigado segundo todas as regras. O anci ão observou-o e perguntou-me: - Diga-me, jovem estrangeiro, por que come assim? Fiquei tão sinceramente espantado por essa pergunta, que me parecia estranha e n ão recomendava nada bem o seu saber, que nem tive vontade de responder-lhe. Pensei que t ínhamos feito um desvio bem in útil para encontrar um homem com quem, certamente, não valia a pena que se conversasse seriamente. Olhei-o nos olhos e não sei se senti piedade ou vergonha para com ele, mas respondi-lhe com aprumo que mastigava cuidadosamente o alimento para que fosse melhor assimilado no intestino; e, apoiando-me no fato bem conhecido de que um alimento digerido de maneira satisfatória, traz para o organismo, em maior quantidade, as calorias indispens áveis ao trabalho de todas as nossas fun ções, resumi em algumas frases tudo o que havia haurido nos livros sobre esse assunto. O ancião balançou a cabeça e, com acento de profunda convic ção, pronunciou lentamente a frase seguinte, célebre em toda a P érsia: "Mata, Senhor, aquele que, nada sabendo, ousa ensinar aos outros o caminho que conduz às portas de Teu Reino." 184 185 Nesse momento, Sari-Oglé fez-lhe uma pergunta. O dervixe respondeu-a com brevidade e, depois, voltando-se novamente para mim, perguntou-me: - Diga-me, jovem estrangeiro, sem dúvida você também faz ginástica? Era verdade. Fazia at é de modo intensivo, n ão segundo os m étodos iogues hindus, que conhecia muito bem,
mas atinha-me de prefer ência ao sistema do sueco M üller. Respondi que, com efeito fazia gin ástica e considerava indispens ável exercitar-me duas vezes por dia, pela manhã e à noite - e expliquei-lhe, em algumas palavras, que espécie de movimentos praticava. - Veja, tudo isso s ó é bom para o desenvolvimento dos bra ços e das pernas e, de modo geral, para os m úsculos externos, disse o dervixe; mas tamb ém temos m úsculos que seus movimentos mec ânicos nunca alcan çam. - Sim, sem dúvida, disse. - Bem, disse o anci ão. Voltemos agora à sua maneira de mastigar o alimento. Se quiser saber minha sincera opinião, dir-lhe-ei que, se conta com essa mastigação lenta para adquirir saúde ou qualquer outro benef ício, escolheu o pior meio. "Mastigando o alimento com tanto cuidado, reduz o trabalho de seu est ômago. "Atualmente é jovem e tudo vai bem. Mas voc ê habitua seu est ômago à preguiça e, à medida que envelhecer, seus m úsculos se atrofiar ão, pouco a pouco, por falta de exercício natural. "Eis o que certamente acontecer á, se continuar com seu sistema de mastiga ção. "Sabe que, com a idade, nossos m úsculos e todo o nosso corpo se enfraquecem. Mas voc ê, em sua velhice, além dessa fraqueza natural ter á outra ainda, que voc ê mesmo ter á cultivado, habituando seu est ômago a não trabalhar. "Pode visualizar o que isso provocar á? "É o contr ário que deve ser feito, N ão somente não se deve mastigar cuidadosamente o alimento, mas, na sua idade, vale mais a pena n ão mastigá-lo em absoluto; é preciso engolir pedaços inteiros, se possível engolir ossos, para fazer trabalhar o est ômago. "Bem se vê que aqueles que lhe aconselharam essa mastiga ção, bem como os que escreveram livros sobre o assunto, só ouviram o som de um sino e n ão buscaram mais adiante." Essas palavras simples, claras e, ao mesmo tempo, cheias de sentido, fizeram-me mudar completamente de opinião sobre o anci ão. Até então, havia-o interrogado por simples curiosidade, mas a partir desse momento, experimentei para com ele um imenso interesse e pus-me a escutar, com a maior atenção, todas as explica ções que continuou a dar-me. De súbito, compreendi, com todo o meu ser, que certas idéias, que tinha aceitado at é então como verdades incontestáveis, não eram corretas. Anteriormente, tinha visto apenas um lado das coisas; agora, via-as sob uma luz diferente. Uma por ção de perguntas surgia em minha cabeça a propósito do problema que havíamos abordado. Absorvidos por nosso conversa com o dervixe, o doutor Sari-Ogl é e eu hav íamos completamente esquecido nossos outros camaradas e t ínhamos interrompido a tradução de suas palavras. Vendo o quanto est ávamos interessados, interrompiam-nos, de vez em quando, com perguntas: "Que est á ele dizendo? De que fala?" E, a cada vez, t ínhamos que nos livrar deles, prometendo-lhes contar tudo mais tarde detalhadamente. Quando o dervixe acabou de falar sobre a mastiga ção artificial, dos difevíntes meios de absorver o alimento e da transformação autom ática que sofre em nós, segundo as leis, dissê-lhe: "Tenha a bondade, meu pai, de me explicar o que pensa da respira ção artificial. Creio que é útil e pratico-a segundo as indicações dos iogues; aspiro o ar, retendo-o durante alguns instantes e exalo-o lentamente. Talvez fosse prefer ível não fazê-lo?" O dervixe, vendo que minha atitude para com suas palavras tinha mudado completamente, p ôs-se a explicar-me, com benevolência, o que se segue: "Se você se prejudica, mastigando assim o alimento, voc ê se prejudica mil vezes mais, praticando essa esp écie de respiração. Todos os exerc ícios de respiração, que são dados nos livros ou que se ensinam nas escolas esot éricas contempor âneas, só podem fazer mal. "A respiração, como deve compreendê-lo todo o homem de bom senso, tamb ém é um processo de absor ção, mas de outra esp écie de alimento. "Entrando no organismo e ali se transformando, o ar, como o alimento comum, decomp õe-se em suas partes constitutivas, que formam novas combina ções, quer entre elas quer com os elementos correspondentes de certas subst âncias já presentes no organismo - para 186 dar origem às diferentes subst âncias, que n ão cessam de ser consumidas pelos processos vitais, que se operam no homem.
"Você não ignora que, para obter uma nova subst ância, os elementos que a constituem t êm que estar dosados segundo propor ções bem definidas. "Tomemos o exemplo mais simples "Você quer cozer p ão. Para isso, é-lhe necess ário antes de tudo preparar a massa. Essa massa exige uma propor ção exata de água e de farinha. "Se você não puser água suficiente, em vez de massa ter á uma coisa que se quebrar á ao mínimo contato. Se puser água demais, obter á um mingau, pr óprio quando muito ao alimento dos animais; nem num caso, nem no outro, obter á a massa da qual se faz o p ão. "Ocorre o mesmo com todas as subst âncias requeridas pelo organismo. Os elementos que as comp õem devem combinar-se entre si numa estrita propor ção, tanto em qualidade quanto em quantidade. "Quando voc ê respira da maneira habitual, você respira mecanicamente. O pr óprio organismo toma do ar, sem seu auxílio, a quantidade de subst ância que lhe é necessária. Os pulmões são construídos de tal modo, que est ão habituados a trabalhar com uma quantidade bem definida de ar. Se se modificar a quantidade de ar que passa pelos pulmões, os processos interiores de fus ão e de equilíbrio ser ão inevitavelmente modificados. "Para quem não conhece, em todos os seus detalhes, as leis fundamentais da respira ção, a pr ática da respiração artificial só pode conduzir a uma autodestrui ção, talvez lenta, mas certa. "Não perca de vista que, al ém das subst âncias necess árias ao organismo, o ar cont ém outras, que s ão inúteis e até nocivas. E a respira ção artificial, isto é, a modificação for çada da respiração natural, permite que essas numerosas subst âncias nocivas à vida penetrem no organismo; ao mesmo tempo, rompe o equil íbrio quantitativo e qualitativo das subst âncias úteis à vida normal. "A respiração artificial muda a propor ção entre a quantidade de alimento que tiramos do ar e a de nossos outros alimentos. Em decorr ência, se voc ê aumentar ou diminuir a entrada de ar, ser-lhe-á necessário aumentar ou diminuir a entrada das outras espécies de alimento. "Para manter um equilíbrio justo, cumpr ê-lhe ter pleno conhecimento de seu organismo. "Mas, conhece-o t ão bem assim? Sabe, por exemplo, que os alimentos s ão necessários ao estômago, não só para a pr ópria nutrição, 187 mas porque est á acostumado a receber uma quantidade definida de alimento? Se comemos, é antes de tudo para satisfazer nosso gosto e para obter a sensa ção habitual de plenitude que experimenta o est ômago, quando cont ém uma certa quantidade de alimento. Nas paredes do estômago ramificam-se os nervos m óveis que, entrando em atividade em ausência de certa press ão, fazem-nos experimentar a sensa ção particular que chamamos fome. Há, pois, diferentes espécies de fome. Por exemplo, a fome do corpo f ísico e o que se poderia chamar de fome nervosa ou ps íquica. "Todos os nossos órgãos trabalham mecanicamente e, em cada um deles, se cria, segundo sua natureza e o hábito adquirido, um certo ritmo de funcionamento. Existe uma relação bem definida entre os ritmos de funcionamento dos diferentes órgãos, que assegura ao organismo seu equilíbrio. Um órgão depende do outro. Tudo est á ligado. "Modificando artificialmente a respiração, começamos por modificar o ritmo de funcionamento dos pulm ões, mas como a atividade dos pulm ões está ligada, entre outras, à do estômago, o ritmo de funcionamento deste último fica modificado, ligeiramente a princ ípio e depois de modo cada vez mais acentuado. "Para digerir, o estômago requer certo tempo - digamos, cerca de uma hora. Mas, se o ritmo de funcionamento do estômago for modificado, o tempo durante o qual os alimentos permanecer ão ali também se modificar á; por exemplo, os alimentos passar ão tão depressa, que o estômago não ter á tempo para fazer senão uma pequena parte de seu trabalho. Ocorre o mesmo com os outros órgãos. "Por isso, é mil vezes prefer ível não tocar em nosso organismo. Mais vale deix á-lo no estado em que est á, mesmo que esteja desregulado, que repar á-lo sem saber como. "Repito, nosso organismo é um aparelho muito complicado. comporta numerosos órgãos que têm, todos, processos com ritmos diferentes e necessidades diferentes. É-lhe pois necess ário escolher: ou mudar tudo ou nada mudar. A n ão ser assim, voc ê só se prejudicar á. "Numerosas doenças provêm da respiração artificial. Freqüentemente, isso leva a uma dilatação do coração ou a
um estrangulamento da traquéia, quando não são o estômago, o f ígado, os rins ou os nervos que s ão atingidos. "É muito raro que aqueles que se exercitam na respira ção artificial deixem de arruinar definitivamente sua s,aúde. Só conseguem evit á-lo aqueles que sabem parar a tempo. Quem quer que pratique, 188 189 durante longo tempo, a respiração artificial, cedo ou tarde sofrer á seus efeitos deplor áveis. "Só se conhecer cada pequeno parafuso, cada pequena engrenagem de sua m áquina, poder á saber o que deve fazer. Mas, se quase nada sabe e tenta uma experi ência, arrisca muito, pois a m áquina é muito complicada. Alguns pequenos parafusos podem facilmente quebrar sob um choque violento - e voc ê não os encontrar á depois em loja alguma! "Ademais, já que me pede minha opini ão, eis o conselho que lhe dou: cesse seus exerc ícios de respiração." Nossa conversa ção prosseguiu at é tarde da noite. No momento de partir, depois de ter entrado em acordo com o pr íncipe, quanto ao que far íamos a seguir, agradeci o dervixe, dizendo-lhe que pretendíamos ficar mais um ou dois dias na aldeia e perguntei-lhe se nos permitiria falar com ele uma vez mais. Consentiu, acrescentando at é que, se o quis éssemos, poder íamos vir vê-lo, no dia seguinte, ap ós o jantar. Ficamos nessa aldeia, não dois dias como hav íamos previsto, mas uma semana inteira e, cada noite, depois do jantar, íamos todos à casa do dervixe palestrar com ele. Ao voltar, Sari-Oglé e eu comunic ávamos a nossos companheiros tudo que havia sido dito nessas conversa ções. Quando fomos, pela última vez, à casa do dervixe agradecer-lhe e nos despedir dele, Ekim Bey, com grande espanto de nossa parte, dirigiu-se de súbito a ele em persa, num tom de defer ência que não lhe era habitual e disse: "Meu bom pai! Pude convencer-me com todo o meu ser, durante esses poucos dias, que o senhor era realmente ..." interrompeu-se um instante para pedir-nos precipitadamente, a Sari-Oglé e a mim, que o deix ássemos falar sem auxiliá-lo e de s ó corrigi-lo, no caso em que suas express ões tivessem uma significação particular na linguagem local, que pudesse alterar o sentido de suas palavras; e depois continuou: "... que era verdadeiramente o homem que buscava instintivamente, nesses últimos tempos, para confiar-lhe a direção de meu mundo interior, a fim de regular e de neutralizar a luta que surgiu em mim, há pouco, entre duas tend ências absolutamente opostas. Entretanto, circunstâncias independentes de mim n ão me permitem instalar-me aqui, perto do senhor e vir, nos momentos dif íceis, escutar com venera ção suas indica ções e conselhos quanto à maneira como deveria viver, para pôr fim a esta angustiante luta interior e preparar-me para adquirir um ser digno do homem. "Eis por que lhe pe ço que, se isso lhe for poss ível, não se recuse a dar-me desde agora, em poucas palavras, algumas indicações sobre os princ ípios de vida que conv ém a um homem da minha idade." À pergunta inesperada e algo solene de Ekim Bey, o dervixe persa respondeu longamente, com muitos pormenores e precisões. Não reproduzirei essas explica ções aqui, nesta segunda s érie de meus escritos, pois considero que, para os leitores sérios de minhas obras seria prematuro e seria até nocivo - para a percep ção correta de minhas id éias, que devem conduzi-los a uma verdadeira compreens ão e não a um saber vazio. Por isso, decidi, com toda tranq üilidade de consciência, só mais tarde expor a quintess ência dessas concep ções, num capítulo apropriado da terceira série de minhas obras, cap ítulo que intitularei: O corpo f ísico do homem, suas necessidades conformes às leis e suas possibilidades de manifesta ção. Na manhã seguinte a essa última visita ao derviche, pusemo-nos a caminho, deixando ao sul o itiner ário que havíamos inicialmente projetado. com efeito, dois dentre nós, Karpenko e o pr íncipe Nijeradze, estavam enfraquecidos pelas febres e seu estado se agravava dia a dia, de maneira que, em vez de nos dirigirmos para o Golfo Pérsico, obliqüamos para Bagdá. Atingimos Bagd á, onde vivemos um m ês e depois nos dispersamos. Cada um foi para seu lado: o pr íncipe Lubovedsky, Yelov e Ekim Bey partiram para Constantinopla; Karpenko, Nidjeraze e Pogossian queriam tentar subir o Eufrates at é sua nascente, atravessar as montanhas e alcan çar a fronteira russa; o doutor Sari-Oglé e eu entramos em
acordo com os outros, a fim de voltarmos à Pérsia, desta vez em direção a Khorassã e ali decidir sobre o prosseguimento de nossa expedi ção. Entre tantas lembranças, como deixar de mencionar a paix ão de Ekim Bey por tudo o que se referia ao hipnotismo? Seu principal interesse concernia aos fen ômenos que formam em seu conjunto o que se chama o poder do pensamento humano, cujo estudo constitui um ramo especial da ciência contempor ânea do hipnotismo. Chegou a resultados pr áticos verdadeiramente sem precedentes, particularmente nesse campo. E as experiências que efetuava, com vistas a estudar o poder do pensamento humano em suas diversas manifesta ções, sob todos os seus aspectos, valeram-lhe o ser considerado um temível "mago encantador". 190 191 As experiências que fez com seus amigos e conhecidos tiveram, entre outros, o resultado de despertar, quer o temor quer um respeito obsequioso, nas pessoas que vinham a conhecê-lo ou que simplesmente tinham ouvido falar nele. Na minha opinião, a idéia que os que o rodeavam tinham dele - e que em nada correspondia à realidade - não provinha de seu profundo saber, nem do extraordin ário desenvolvimento que tinha conseguido imprimir às suas for ças interiores, mas ao conhecimento que possu ía de uma propriedade do funcionamento do organismo, que pode ser considerada uma das formas da escravid ão humana. Essa propriedade, a mesma em todo homem, qualquer que seja a classe a que perten ça, qualquer que seja a sua idade, consiste em que, no instante preciso em que esse homem pensa em um objeto concreto exterior a ele, seus m úsculos se tensionam ou se contraem e, por assim dizer, vibram na direção do objeto para o qual v ão seus pensamentos. Por exemplo, se pensa na Am érica ou se seus pensamentos se voltam para o lugar onde se situa a Am érica, certos m úsculos, principalmente os mais t ênues, vibram na direção desse lugar, isto é, tensionam-se como que para exercer um impulso nessa dire ção. Suponhamos que o pensamento de um homem esteja dirigido para o segundo andar de uma casa, enquanto ele pr óprio está no primeiro andar; determinados m úsculos se tensionar ão e, por assim dizer, se levantar ão para cima. Em resumo, a tensão do pensamento em direção a um lugar definido é sempre acompanhada de uma tens ão dos m úsculos na mesma direção. Tal fenômeno produz-se em todos os homens, mesmo naqueles que se d ão conta disso e que se esfor çam por subtrair-se a isso por todos os meios ao seu alcance. O leitor, sem dúvida, já viu no teatro, no circo ou em qualquer outra sala de espet áculos, como os faquires hindus, os m ágicos, os fazedores de milagres e outros detentores dos segredos da ci ência sobrenatural espantam o mundo com seus passes de m ágica, encontram objetos escondidos ou adivinham o ato que o p úblico quer fazê-lo executar. Para realizar seus "milagres", esses m ágicos seguram a m ão de um dos espectadores e adivinham o que lhe pediram para fazer, deixando-se guiar apenas pelas indica ções dadas pelos tremores inconscientes da m ão desse espectador. Se logram esse feito, n ão é devido a conhecimentos ocultos e sim devido unicamente a conhecerem o segredo dessa propriedade do homem. Quem quer que conhe ça tal segredo poder á fazer o mesmo, desde que treine um pouco. com perseverança e pr ática, pode-se conseguir adivinhar o que foi pedido. Basta saber concentrar sua aten ção sobre a m ão do outro e captar todos os pequenos movimentos quase imperceptíveis. Por exemplo, se o espectador souber que o m ágico deve pegar o chap éu que está sobre a mesa, mesmo que conheça o truque e se esforce por pensar no sapato que est á sobre o sof á, inconscientemente, entretanto, pensar á no chapéu e os m úsculos que interessam o m ágico tensionar-se- ão nessa direção, pois est ão mais submetidos ao subconsciente que ao consciente. Como já disse, Ekim Bey fazia experi ências desse gênero com seus amigos, a fim de melhor estudar o psiquismo humano e determinar as causas das influ ências hipnóticas.
Entre as experiências a que recorria para cumprir a tarefa que se tinha imposto, havia uma, das mais originais, que espantava o profano mais que todos os passes dos faquires. Procedia da seguinte forma: Sobre uma folha de papel quadriculado, escrevia em ordem todo o alfabeto e, numa última linha, todos os algarismos de um a nove e mais o zero. Preparava assim várias folhas, com os alfabetos das diferentes l ínguas. Sentando-se a uma mesa, colocava diante dele, um pouco à esquerda, um desses alfabetos e segurava um lápis com a m ão direita. A seguir, fazia um sujeito de boa vontade sentar-se à sua esquerda, exatamente em frente ao alfabeto: por exemplo, uma pessoa desejosa de conhecer o futuro. Segurava, então, a mão direita do sujeito com sua m ão esquerda e dizia-lhe mais ou menos isto: "Antes de tudo, vamos saber como se chama." Depois, murmurava lentamente, como se falasse consigo mesmo: "a primeira letra do seu nome . . ." e, enquanto isto, conduzia a m ão do sujeito sobre o alfabeto. Em virtude da propriedade humana de que falei, quando chegava à letra pela qual começava seu nome, a m ão dava uma sacudidela involunt ária. 192 "A primeira letra do seu nome é ..." Dizia então a letra sobre a qual a m ão tremera e inscrevia-a numa caderneta. Continuando desse modo, encontrava as poucas letras que formavam o come ço do nome. A seguir, adivinhava o resto; por exemplo, tendo obtido as letras E-S-T, escrevia o nome Estêvão. A seguir dizia: "Você se chama Est êvão. Agora, vamos saber sua idade." E passava a m ão do sujeito sobre os algarismos. Depois disso, adivinhava se era casado, quantos filhos tinha, o nome de sua mulher, o do seu pior inimigo ou o de seu benfeitor, etc. Ap ós diversas experi ências de "adivinhação" desse g ênero, seus clientes ficavam t ão embasbacados que esqueciam tudo e ditavam, eles mesmos, a Ekim Bey tudo o que ele precisava saber. Nada mais tinha a fazer sen ão repetir o que lhe haviam indicado. Podia então largar-lhe a mão e inventar qualquer fantasia sobre o futuro deles; criam-no sem reservas, recolhendo piamente cada palavra que sa ía de sua boca. Todos aqueles com quem Ekim Bey havia feito essa experiência propagavam, depois, com a maior sinceridade, histórias tão fantásticas sobre seu poder, que os seus ouvintes ficavam de cabelo em p é. Dessa maneira, a imagem que as pessoas faziam do doutor Ekim Bey resplandesceu dentro em breve, com a aur éola do mago. Seu nome era at é pronunciado em voz baixa com um arrepio. Numerosas pessoas come çaram a escrever-lhe, não somente da Turquia, mas do estrangeiro, principalmente da Europa e a importun á-lo com os mais variados pedidos. Este pedia-lhe que previsse seu futuro pela sua escrita; aquele, que o ajudasse num caso de amor n ão correspondido, um terceiro, que o curasse à distância de uma doen ça antiga. Recebia cartas de pachás, generais, oficiais, mullahs, professores, padres, comerciantes, mulheres de todas as idades, mais ainda de mo ças de todas as nacionalidades. Em resumo, era acometido por tal volume de solicitações de todo gênero, que se tivesse querido responder a cada um dos ped ínchões, enviando-lhe apenas um envelope vazio, ter-lhe-iam sido necess árias, pelo menos cinq üenta secretárias. Um dia, que tinha ido visit á-lo em Scutari, na propriedade de seu pai, à margem do Bósforo, mostrou-me muitas dessas cartas e lembro-me ainda de como pudemos rir até perder o f ôlego, diante da ingenuidade e da tolice das pessoas. 193 com a continuação, por ém, todos esses pedidos terminaram por exasper á-lo, a tal ponto que chegou at é a renunciar à sua atividade de m édico à qual, no entanto, era muito apegado e a fugir dos lugares em que era conhecido. O profundo conhecimento que Ekim Bey tinha do hipnotismo e de todas as propriedades autom áticas do psiquismo do homem comum provou ser muito útil, no curso de uma de nossas viagens, quando, felizmente nos tirou de uma situa ção particularmente dif ícil na qual tínhamos caído. Ekim Bey, eu e v ários de nossos camaradas nos encontr ávamos na cidade de Yanghichar, ao sul de Kachgar, de onde quer íamos partir para explorar os altos vales do maciço do Hindu Kuch. Conced íamonos um de nossos grandes descansos habituais, antes de retomar o caminho, quando Ekim Bey recebeu uma carta de seu tio, comunicando-lhe que seu pai tinha enfraquecido muito nesses últimos meses e que, provavelmente, não lhe restaria muito tempo
de vida. Essa notícia transtornou Ekim Bey. Resolveu interromper sua viagem e voltar o quanto antes para a Turquia, a fim de passar algum tempo perto de seu querido pai, antes que fosse tarde demais. Como esses deslocamentos cont ínuos, com a tens ão nervosa constante que exigiam, come çavam a cansar-me e como, também, tinha muita vontade de rever meus velhos pais, decidi abandonar a expedi ção e acompanhar Ekim Bey at é à Rússia. Despedimo-nos de nossos camaradas e partimos para Irkechtam, em dire ção à Rússia. Após toda espécie de aventuras e, à custa de grandes dificuldades, sem passar pelas estradas normais que, todas, vão de Kachgar a Och, chegamos à cidade de Andijan, no Ferghanat. Havíamos, com efeito, decidido no caminho, aproveitar a ocasi ão para visitar, nessa região outrora ilustre, as ruínas de várias cidades antigas de que muito t ínhamos ouvido falar e que pens ávamos encontrar, de acordo com certas hip óteses lógicas, baseadas em diversos dados históricos. Devido a isso, nosso itiner ário ficou muito alongado e foi, finalmente, perto da cidade de Andijan que retomamos a estrada habitual. Quando tomamos o trem, entretanto, depois de termos comprado em Marghelan passagens para Krasnovodsk, nos demos conta, com grande afli ção, de que não tínhamos mais dinheiro para continuar a viagem, nem mesmo para nos alimentarmos no dia seguinte. Al ém disso, tínhamos gasto nossas roupas a tal ponto, que não podíamos mais aparecer 194 195 em público. Precisávamos, pois, também de dinheiro para nos vestirmos. Decidimos, então, não ir até Krasnovodsk, mas tomar o trem para Tachkent, em Tcherniavo, de onde poder íamos telegrafar pedindo dinheiro e onde poder íamos viver, mais ou menos, enquanto esper ássemos a resposta. Chegados a Tachkent, alugamos um quarto barato, num hotel perto da esta ção e enviamos logo nosso telegrama. Como não tínhamos mais nem um tost ão, fomos ao bazar de objetos usados vender tudo o que nos restava: fuzis, rel ógios, podômetros, compassos, mapas, em resumo, tudo aquilo de que poder íamos obter algum dinheiro. Na mesma noite, perambulando pelas ruas, discutimos t ão ardentemente nossa situa ção, conjecturando sobre se aquele a quem hav íamos telegrafado estaria em casa e se teria a idéia de nos enviar o dinheiro imediatamente, que, sem nos darmos conta, chegamos à Velha Tachkent. Sentamo-nos num tchaikhan ê sarta, continuando a refletir sobre o que far íamos se o dinheiro atrasasse. Ap ós termos encarado numerosas possibilidades, decidimos que Ekim Bey poderia fazer-se passar por um faquir hindu e eu por um engolidor de espadas e por um fen ômeno capaz de ingurgitar qualquer quantidade de subst âncias venenosas. E fizemos toda esp écie de brincadeiras a esse respeito. Na manhã do dia seguinte, antes de mais nada, fomos à redação de um jornal de Tachkent, ao setor de pequenos an úncios, onde também aceitavam encomendas para qualquer tipo de cartazes. Havia ali um atendente judeu muito simpático, chegado há pouco da R ússia. Conversamos um pouco com ele e encomendamos a publica ção de anúncios nos tr ês jornais de Tachkent, bem como um enorme cartaz anunciando a chegada de um faquir hindu - n ão me lembro mais do nome que tínhamos escolhido, talvez o de Ganez ou Ganzin - o qual, em companhia de seu assistente Salakan, daria uma demonstra ção de experiências hipnóticas e de outros fenômenos sobrenaturais, no dia seguinte à noite, no Salão de Festas. Nosso atendente encarregou-se de obter a autoriza ção da polícia para afixar os cartazes e, no dia seguinte, tanto na Nova quanto na Velha Tachkent, cartazes sensacionais atraíam o olhar dos passantes. Entrementes, havíamos desencavado dois desempregados vindos dos confins da R ússia e, depois de hav ê-los feito tomar banho para tirar a crosta de sujeira, levamo-los ao hotel para prepar á-los para as sess ões de hipnotismo. Pusemo-los, finalmente, em tal estado de hipnose, que no dia da sess ão, podíamos muito bem enfiar-lhes enormes alfinetes sob a pele do t órax, coser-lhes a boca ou,
ainda, depois de t ê-los deitado entre duas cadeiras, com a cabe ça sobre uma delas e os calcanhares sobre a outra, colocar grandes pesos sobre seu ventre; depois do que, todos aqueles que o quisessem poderiam aproximar-se e arrancar um de seus cabelos. O que mais espantou os s ábios, doutores e juristas do lugar, por ém, foi ver Ekim Bey adivinhar-lhes os nomes e idades, por meio do processo j á descrito por mim. Em resumo, ao fim da primeira sessão, não só nossa caixa estava cheia, como t ínhamos recebido centenas de convites para jantar. Quanto aos olhares que nos lan çavam as mulheres, é melhor nem falar. Repetimos essas sess ões tr ês noites seguidas e, como a receita ultrapassasse bastante a soma de que necessitávamos, partimos o mais r ápido possível, para nos livrarmos desses admiradores embara çantes. Ao escrever este cap ítulo, que reavivou em mim a lembran ça de nossas diversas expedi ções e circuitos através da Ásia, não me posso impedir de pensar na id éia surpreendente que a maioria dos europeus faz desse continente. Vivendo no Ocidente sem interrupção, já há quinze anos, em rela ção constante com pessoas de todas as nacionalidades, cheguei à conclus ão de que aqui, nem se sabe, nem mesmo se imagina o que é a Ásia. A maior parte das pessoas, na Europa e na Am érica, faz uma id éia da Ásia como sendo um continente de tamanho indeterminado, nos confins da Europa, habitado por povos que vivem em estado selvagem ou, no melhor dos casos, semi-selvagem, que foram ali parar por acaso. A idéia que têm de sua extens ão é das mais vagas. Comparam facilmente esses territ órios com os países europeus e nem sequer suspeitam que o continente da Ásia é tão vasto que poderia conter v árias Europas e que abriga comunidades importantes, das quais n ão só os europeus, como os pr óprios asiáticos, nunca ouviram falar. Além disso, esses "povos selvagens" j á atingiram há muito tempo, em matéria de medicina, de astrologia e de ciências naturais, sem sofisticações nem explica ções hipotéticas, um grau de aperfeiçoamento que a civiliza ção européia só alcançar á, talvez, dentro de algumas centenas de anos. *** 8 PIOTR KARPENKO
197 Piotr Karpenko, que foi meu amigo de inf ância e se tornou mais tarde, por seu pr óprio valor e não apenas em virtude de um diploma, eminente geólogo, não está mais neste mundo .. . Que Deus tenha sua alma! Para dar idéia das principais caracter ísticas da individualidade de Piotr Karpenko e atender à meta que me atribuí, nesta série de meus escritos - isto é, para o leitor poder tirar deste capítulo um conjunto de informações realmente proveitosas - bastar á, penso, descrever pormenorizadamente as circunst âncias que nos tornaram amigos e relatar, em seguida, algumas peripécias da expedi ção durante a qual sobreveio, pela vontade do destino, o infeliz incidente que devia acarretar seu fim prematuro. Nossa amizade come çou quando ainda éramos meninos. Proponho-me, aliás, falar longamente de tudo o que se passou entre n ós, pois isto poderia muito bem esclarecer certos aspectos do psiquismo desses "jovens tratantes" que mais tarde, às vezes, se tornam homens not áveis. Vivíamos, então, na cidade de Kars, onde eu fazia parte do coral dos pequenos cantores da catedral da fortaleza. Devo, inicialmente, dizer que, a partir do momento em que meu mestre Bogatchevsky deixou Kars, e meu primeiro mestre, o Padre Borsh, estava de licença de saúde, senti-me privado dos dois homens que exerciam sobre mim uma autoridade real e n ão tive mais desejo de ficar em Kars. Por outro lado, como minha família falava em voltar dentro em breve para Alexandr ópolis, sonhava em ir para T íflis, para ser admitido no Coral do Bispado proposta que me fora feita muitas vezes e parecia
muito tentadora e envaidecedora para meu jovem amor-pr óprio. Enquanto tais sonhos formavam ainda o centro de gravidade de meu pensamento, que mal come çava a desenvolver-se, uma manh ã bem cedo, vi chegar correndo um dos coristas da catedral, soldado da intend ência que se tornara amigo meu, graças aos bons cigarros que lhe levava de vez em quando e que, confesso-o, tinha tirado sub-repticiamente da cigarreira de meu tio. Ofegante, disse-me ter surpreendido, por acaso, uma conversa entre o comandante da fortaleza, general Fadêiev e o chefe da pol ícia montada, durante a qual se aventara a pris ão de várias pessoas e seu interrogat ório sobre assunto referente ao campo de tiro; e meu nome tinha sido citado entre os suspeitos. Fiquei muito alarmado com essa not ícia, pois tinha culpa no cart ório, com refer ência ao campo de tiro, de maneira que, querendo evitar qualquer dissabor, decidi não protelar mais a partida e deixei Kars às pressas no pr óprio dia seguinte. Ora, foi precisamente esse incidente do campo de tiro - devido ao qual vi-me obrigado a fugir da cidade o mais depressa poss ível - que deu origem à minha amizade com Piotr Karpenko. Tanto em Kars quanto em Alexandr ópolis, tinha nessa época numerosos amigos, uns da minha idade e outros, vários anos mais velhos, Entre os primeiros, estava um rapaz muito simp ático, filho de um fabricante de vodca. Chamava-se Riaúzov, ou Riaízov, não me lembro mais. Convidava-me, freqüentemente para sua casa e, às vezes, ia v ê-lo também de improviso. Os pais mimavam-no muito. Tinha um quarto só dele, onde podíamos preparar confortavelmente nossas li ções e, sobre sua mesa de trabalho, esperava-nos, quase sempre, um prato cheio de tortas folheadas, acabadas de sair do forno, das quais eu gostava muito, ent ão. O mais importante, talvez, era que tinha uma irm ã de doze ou treze anos, que entrava no quarto com freq üência, quando ali me encontrava. Entre nós nasceu uma amizade e, sem not á-lo, fiquei enamorado dela. Parecia que ela tamb ém não me olhava com indiferença .. . Começou um idílio silencioso. Outro de meus camaradas, filho de um oficial de artilharia, freq üentava também essa fam ília. Como nós, estudava em casa, preparando-se para n ão sei que escola, pois, tendo sido considerado ligeiramente surdo de um ouvido, n ão pudera ser admitido na Escola de Cadetes. Era Piotr Karpenko. Tamb ém ele estava enamorado da pequena Ria úzov, que parecia acolh ê-lo igualmente com agrado. 198 199 Ela era gentil com ele, porque, com freqüência, ele lhe trazia bombons e flores, e comigo, porque eu tocava bem violão e era hábil na execução de desenhos, que fazia passar por seus, nos seus len ços, que gostava de bordar. Estávamos, pois, ambos enamorados dessa menina e, pouco a pouco, a chama do ci úme acendeu-se em nossos corações rivais. Uma noite, depois do of ício na catedral, onde essa "devoradora de cora ções" estava presente, inventei uma desculpa plaus ível e obtive do chantre permiss ão para partir um pouco mais cedo, a fim de encontrar-me com ela na sa ída e de acompanh á-la até sua casa. Na porta da catedral, deparei com meu rival. Ambos, com raiva no cora ção, escoltamos, no entanto, nossa dama at é em casa, como perfeitos cavalheiros. No caminho de volta, por ém, não pude mais me conter e, provocando-o, por uma raz ão qualquer, dei-lhe uma boa surra. No dia seguinte à noite, como de costume, fui até o campanário da catedral com alguns camaradas. Ainda não havia torre no recinto da catedral. Estava em constru ção e os sinos estavam pendurados numa construção tempor ária de madeira, de forma octogonal, que, com seu teto elevado, parecia-se um pouco com um quiosque. O espaço entre o teto e as vigas, nas quais os sinos estavam pendurados, era grande o suficiente para abrigar nosso "clube": reun íamo-nos ali quase todos os dias e, montados a cavalo sobre as vigas ou o estreito rebordo dos muros sob o teto, fum ávamos, contávamos anedotas e, às vezes, até prepar ávamos as lições. Mais tarde, pronta a torre de pedra e instalados ali os sinos, o campan ário provisório foi ofertado pelo governo russo à nova igreja grega, que estava sendo constru ída e, desde então, passou a servir de torre para essa igreja. Nessa noite, além dos dez membros permanentes, encontrei no clube meu amigo P étia, de Alexandr ópolis, de
passagem em Kars. Era filho do inspetor dos Correios, Kerensky, que mais tarde foi um dos oficiais mortos na guerra russo-japonesa. Encontrei tamb ém um rapaz do bairro grego de Kars, apelidado de Fekhi, mas cujo verdadeiro nome era Khorkanidi e que, mais tarde, tornou-se autor de vários livros escolares. Tinha trazido halvá grego feito em casa, presente que sua tia enviava para os pequenos cantores, cujos cantos tantas vezes haviam-na "tocado at é o fundo da alma". Estávamos ali, comendo halv á, fumando e tagarelando, quando Piotr Karpenko surgiu com um dos olhos vendados, ladeado por outros dois rapazes russos, que n ão eram membros do clube. Veio at é a mim, exigindo uma "explica ção" pela ofensa da v éspera. E, como era um desses adolescentes nutridos de poesia, que gostavam de exprimir-se numa nobre linguagem, terminou bruscamente seu longo pre âmbulo empolado, por esta declaração categórica: "A terra é pequena demais para n ós dois; por conseguinte, um de n ós deve morrer!" Essa tirada grandiloqüente deu-me vontade de fazer tirar a socos essas tolices de sua cabe ça. Meus outros amigos, por ém, trataram de fazer-me refletir e declararam que só as pessoas que ainda n ão tinham sido tocadas pela cultura contempor ânea, como por exemplo, os curdos, resolvem suas dissens ões dessa maneira e que as pessoas respeitáveis recorrem a m étodos mais civilizados. Tais palavras chicotearam meu orgulho e, para n ão ser tachado nem de selvagem nem de covarde, comecei uma s éria discussão sobre o incidente. Depois de longo palavr ório, que intitulávamos então debates, verificou-se que alguns rapazes tomaram meu partido e outros o do meu rival. Tais debates n ão tardaram em degenerar em urros ensurdecedores e pouco faltou para que nos atir ássemos mutuamente do alto do campanário. No final, ficou decidido que nos bater íamos em duelo. Surgiu então um problema: como obter armas? ... Era imposs ível obter pistolas ou espadas em qualquer lugar. A partir de então, todas as nossas emo ções e toda a nossa excita ção, que já haviam alcançado seu paroxismo, concentraram-se na procura de uma solu ção para esse novo problema. Havia, entre nós, um certo Turtchaninov, provido de uma voz esgani çada e que todos achávamos muito engraçado. Enquanto refletíamos no que íamos fazer, exclamou de s úbito com sua voz de cabe ça: "Se é dif ícil conseguir pistolas, nada mais simples que conseguir canh ões!" Todo mundo come çou a rir, como aliás cada vez que abria a boca. "Por que estão rindo, bando de diabos? - respondeu. Pode-se muito bem usar canh ões para nosso caso. S ó há um inconveniente. Voc ês já decidiram que um dos dois devia morrer, mas, num duelo a canhão, poderia muito bem ocorrer que morram os dois. Se concordarem em correr tal risco, minha sugest ão ser á o cúmulo da simplicidade." 200 201 Propôs, então, que f ôssemos ambos ao campo de tiro, onde se faziam os exerc ícios de artilharia e que, sem nos deixarmos ver, nos deit ássemos em algum local, entre os canhões e os alvos, para ali aguardarmos nossa senten ça. Aquele de nós dois, que fosse morto por um estilha ço, seria condenado pela sorte. Todos conhec íamos muito bem o campo de tiro. Encontrava-se a pouca dist ância, bem ao p é das montanhas que rodeavam a cidade. Era um espa ço bastante extenso e ondulado, com quinze a vinte quil ômetros quadrados, que, durante os per íodos de tiro, em certas épocas do ano, ficava totalmente interditado e guardado por todos os lados. íamos ali, com freqüência, principalmente à noite, instigados por dois grandes malandros chamados Aivazov e. Denisenko, que tinham certa autoridade sobre n ós, a fim de recolher ou, melhor dizendo, furtar estilhaços de cobre de obuses e metralha de chumbo, espalhados pelo terreno depois das explos ões e que vend íamos, em seguida, a peso. Apesar da proibição formal de apanhar os estilhaços de obus e, é claro, de vendê-los, dávamos sempre um jeito de operar com a ajuda do luar, aproveitando os momentos em que os guardas do cord ão de segurança relaxavam sua vigil ância. Depois de novos debates, provocados pela proposta de Turtchaninov, ficou categoricamente decidido, desde o dia seguinte, pôr esse projeto em execu ção. Segundo as condições fixadas pelas testemunhas - Tchemuranvo, Kerenski e Khorkanidi, do meu lado e, do
lado do meu rival, Ornitópulo e os dois rapazes estranhos que trouxera consigo - devíamos ir para o terreno desde a aurora, antes de come çar o tiro e, a cerca de cem metros dos alvos, nos deitarmos a certa dist ância um do outro, num buraco de obus onde ningu ém nos pudesse ver, para ali ficarmos at é o crepúsculo. O que sobrevivesse poderia, ent ão, partir e ir para onde quisesse. As testemunhas decidiram tamb ém permanecer o dia todo pr óximo ao terreno de artilharia, às margens do rio Kars-Tchai e voltar à noite para nos buscar em nossos buracos, a fim de saber o resultado do duelo. No caso de simples ferimento em um de n ós, ou nos dois, fariam o necessário; - se f ôssemos mortos, contariam a todo mundo que tínhamos ido apanhar cobre e chumbo, sem saber que havia exerc ício de tiro, nesse dia e que t ínhamos sido "liquidados". No dia seguinte, ao despontar do dia, todo o nosso grupo, munido de provis ões, dirigiu-se para o rio Kars-Tchai. Lá chegados, as testemunhas entregaram a parte de provis ões a cada um de n ós e logo dois dentre eles nos conduziram até ao terreno e nos deitamos em nossos respectivos fossos. A seguir, foram reunir-se aos outros e passaram o tempo pescando no rio. Até então, tudo tinha parecido uma brincadeira, mas, desde que come çou o tiro, nada mais havia de que rir. N ão sei sob que forma e em que ordem se desenrolaram as experiências subjetivas interiores e as associa ções mentais de meu rival, mas sei bem o que se passou em mim, desde o início do tiro. Do que experimentei e senti, enquanto os obuses come çavam a voar e a explodir sobre a minha cabe ça, lembro-me até hoje como se tivesse sido ontem. De início, fiquei totalmente atordoado; logo, por ém, a intensidade das emoções que afluíam dentro de mim e o poder de confrontação lógica de meu pensamento aumentaram a tal ponto, que a cada instante tinha a impress ão de estar pensando e vivendo mais que durante um ano inteiro. Ao mesmo tempo, experimentava pela pr imeira vez uma sensa ção completa de mim mesmo, que crescia sem cessar, enquanto percebia claramente que, devido à minha leviandade, tinha-me colocado, nesse dia, numa situação onde tinha toda chance de ser aniquilado, pois, nesse momento, minha morte parecia-me certa. Um medo instintivo diante do inevit ável se apossou de todo o meu ser, a ponto de a realidade que me rodeava figurar-se-me desaparecer, deixando subsistir apenas esse invencível terror animal. Lembro-me de que queria tornar-me tão pequeno quanto poss ível e abrigar-me numa dobra qualquer do terreno, a fim de não mais ouvir nem pensar. O tremor que se apossou de todo o meu corpo adquiriu, pouco a pouco, intensidade assustadora, como se cada uma de minhas c élulas vibrasse independentemente; apesar do troar dos canh ões, ouvia muito distintamente o cora ção bater e os dentes se entrechocarem t ão fortemente que me parecia, a cada instante, que iam quebrar-se todos. A propósito, assinalarei aqui que foi precisamente esse incidente de minha juventude que fez aparecer, pela primeira vez, em mim, certos dados - que para diante deveriam tomar forma mais definida, graças às influências conscientes exercidas sobre mim por certos homens, com os quais entrei em contato - dados que sempre impediram minha natureza de deixar-me atormentar por problemas nos quais s ó 202 203 estavam em jogo meu proveito pessoal e me permitiram sentir e admitir somente medos aut ênticos, permanecendo capaz, entretanto, de me colocar no lugar de outro e compreender, com todo o ser, sem jamais me deixar levar nem enganar, o medo que ele pode experimentar. Não me lembro mais de quanto tempo fiquei nesse estado, deitado no fosso. Posso apenas dizer que, ainda a í, como sempre e em tudo, nosso muito grande, implac ável e invisível Mestre, o Tempo, não deixou de retomar seus direitos e terminei por habituar-me a essa prova ção interior, bem como ao troar dos canh ões e à explosão dos obuses ao meu redor. Pouco a pouco, os pensamentos que me haviam inicialmente atormentado quanto à possibilidade de meu tr ágico fim, desapareceram por sua vez. O exercício de tiro comportava, como de h ábito, várias séries de salvas, entrecortadas de intervalos; era-me, todavia, impossível fugir durante esses descansos, nem que fosse devido ao risco de cair nas m ãos dos guardas.
Nada mais havia a fazer sen ão ficar tranqüilo ali onde estava. Depois de haver comido, adormeci, sem mesmo perceber. Evidentemente, meu sistema nervoso, depois do trabalho intensivo a que fora submetido, exigia instantemente repouso. Não sei quanto tempo durou meu sono, mas, quando acordei, tudo estava calmo em torno de mim e a noite começava a cair. Ao despertar de todo e visualizando claramente as r azões de minha presen ça naquele lugar, dei-me conta, com desmedida alegria, de que estava inc ólume. Só depois de aplacada essa alegria ego ísta, lembrei-me e comecei a inquietar-me quanto à sorte de meu companheiro de desgra ça. Saí silenciosamente de meu buraco, olhei em torno de mim, não vi ninguém e rastejei em busca de meu amigo, at é o local em que devia encontrar-se. Vendo-o estendido, sem movimentos, tive muito medo; no entanto, interiormente estava totalmente seguro de que estava simplesmente adormecido. De súbito, por ém, observando que tinha sangue sobre a perna, perdi a cabe ça e todo o ódio da véspera se transformou em piedade, O terror que experimentava agora, não era nem um pouco menor do que o que sentira h á poucas horas, ao temer por minha pr ópria vida. Fiquei ali petrificado, acocorado sobre meus calcanhares, buscando, ainda instintivamente, passar despercebido. Estava ainda nessa posi ção, quando as testemunhas rastejaram em minha dire ção, de gatinhas. Vendo-me considerar, de modo t ão estranho, Karpenko estendido e, observando por sua vez o sangue sobre sua perna, foram acometidos da mesma ang ústia e, hirtos como eu, sobre seus calcanhares, puseram-se a olh á-lo fixamente. Como me confessaram, mais tarde, também estavam totalmente convencidos de que estava morto. Nosso grupo, im óvel e como que hipnotizado, recobrou vida, quando Kerenski, que ficara durante tempo demasiado observando Karpenko, numa posi ção desconfortável, sentiu, de repente, violenta dor no calo de seu p é; avançando um pouco, para mudar de posi ção, observou nitidamente que a beira do capote de Karpenko levantava-se a intervalos regulares. Para melhor assegurar-se disso, esgueirou-se para perto dele e, convencido dessa vez que Karpenko respirava, deu-nos essa not ícia com um grito. Voltando a nós, aproximamo-nos rastejando. Uma vez tranq üilizados sobre sua sorte - n ós que, um instante antes, est ávamos ainda mudos e como que paralisados - retomamos, por fim, nossa presen ça de espírito e, em torno de Karpenko im óvel no fosso, pusemo-nos, de imediato, a deliberar sobre o que dever íamos fazer, enquanto a toda hora cort ávamos a palavra um ao outro. De súbito, por um acordo tácito, levantamos Karpenko sobre nossos bra ços entrelaçados e transportamo-lo para o rio Kars-Tchai. Detivemo-nos nas ruínas de uma olaria e, depois de termos feito, às pressas, uma cama improvisada com nossas roupas, ali deitamos Karpenko para examinar o ferimento. Parecia que somente a perna fora atingida, de rasp ão, por um estilhaço de obus e que a ferida n ão era perigosa. Como Karpenko estava ainda inconsciente e n ão sabíamos o que fazer, um de n ós correu até à cidade para buscar um de nossos amigos, enfermeiro, membro tamb ém do coral da catedral, enquanto os outros lavavam e atavam a ferida. O enfermeiro chegou logo num carrinho e explicamos-lhe que o acidente tinha ocorrido enquanto apanh ávamos cobre, sem saber que havia exerc ício de tiro. Depois de examinar a ferida, declarou que n ão era perigosa e que o desmaio era devido à perda de sangue. Assim que o fez respirar sais, o ferido voltou a si. 204 205 Suplicamos ao enfermeiro, é claro, que não falasse a ningu ém sobre as circunstâncias do acidente, pois arriscávamos a ter graves aborrecimentos, devido à interdição formal de penetrar no campo de tiro. Uma vez de volta a si, Karpenko levantou os olhos sobre os que o rodeavam e, quando, pousando o olhar em mim mais demoradamente que nos outros, pôs-se a sorrir, alguma coisa moveu-se em mim e fui invadido pelo remorso e pela piedade. A partir desse momento, experimentei para com ele os mesmos sentimentos que para com um irm ão.
Levamos o ferido para sua casa e explicamos à sua fam ília que, ao atravessar uma ravina para ir pescar, uma rocha se tinha destacado e o atingira na perna. Os pais aceitaram nossa hist ória e obtive deles permissão para passar todas as noites à sua cabeceira, at é seu restabelecimento. Enquanto estava muito fraco para levantar-se, servi-lhe de enfermeiro e, durante todo esse per íodo, falamos de muitas coisas. Foi assim que come çou nossa estreita amizade. Quanto ao nosso amor pela dama de nossos pensamentos, tinha-se volatilizado bruscamente, tanto nele como em mim. Logo que Karpenko ficou curado, os pais o levaram para a R ússia onde, mais tarde, passou em seus exames e entrou numa grande escola técnica. Durante vários anos, não o vi mais; no entanto, regularmente, por ocasião do dia de meu santo e de meu aniversário, recebia dele longa carta na qual começava sempre por dar-me detalhes de sua vida interior e exterior e, depois, pedia-me opini ão sobre uma série de questões que o interessavam, principalmente sobre assuntos religiosos. Seu primeiro entusiasmo verdadeiro, por nossas id éias comuns, manifestou-se sete anos depois do duelo que relatei. Um ver ão em que ele ia a Kars pela dilig ência - nessa época não havia ainda estrada de ferro na regi ão - soube que eu estava em Alexandr ópolis e deteve-se, de passagem, para visitar-me. Viera com a intenção de prosseguir, na solitude, sem ser incomodado, algumas experi ências pr áticas relativas ao problema que me interessava ent ão particularmente, o da influência que as vibra ções do som exercem sobre os seres humanos, bem como sobre todas as outras formas de vida. No dia de sua chegada, depois de ter almo çado com ele, propuslhe acompanhar-me à nossa grande estrebaria, que eu transformara em laboratório e onde passava quase todo o tempo. Olhando-me trabalhar, tomou-se de tal interesse por tudo que eu fazia, que decidiu partir, nesse mesmo dia, para visitar a família e voltar para junto de mim tr ês dias mais tarde. Ficamos juntos quase todo o ver ão; deixava-me apenas por um ou dois dias, de vez em quando, para ir ver a família em Kars. No final do ver ão, vários membros de nosso grupo dos Buscadores da Verdade, recentemente organizado, vieram encontrar-se comigo em Alexandr ópolis; havíamos decidido ir até as ruínas de Ani, antiga capital da Arm ênia, para ali fazer escava ções. Karpenko reuniu-se a n ós, pela primeira vez, nessa expedi ção e, graças aos intercâmbios que teve, durante várias semanas, com diversos membros desse grupo, foi gradualmente arrastado na corrente das idéias que nos apaixonavam a todos. Terminadas as escava ções, voltou para a R ússia onde, de pronto, obteve seu diploma de engenheiro de minas. Não o vi mais por tr ês anos, mas ficamos em contato, escrevendo-nos de vez em quando, Karpenko correspondeu-se igualmente, durante esse per íodo, com vários outros membros do grupo dos Buscadores da Verdade, que se tinham tornado seus amigos. Ao cabo desses tr ês anos, foi admitido como membro permanente de nossa original sociedade e, desde ent ão, tornou parte, comigo e com meus outros companheiros, em várias grandes expedi ções à Ásia e à África. Foi, durante uma dessas expedi ções, cuja meta era ir do Pamir à índia, atravessando o Himalaia, que sobreveio o tr ágico incidente ao qual fiz alus ão e que foi a causa de seu fim prematuro. Desde a partida, t ínhamos encontrado graves dificuldades. Ao atingir os primeiros contr afortes, a noroeste do Himalaia, enquanto transpúnhamos um colo escarpado, uma grande avalanche nos soterrou sob a neve. Custamos muito a nos livrar. Desgraçadamente, faltavam dois dentre n ós; retiramo-los o mais depressa poss ível mas, infelizmente, já estavam mortos. 206 Um deles era o bar ão F .... especialista em ocultismo e o outro, nosso guia, Karakir-Khainu. Estávamos, assim, privados não só de um verdadeiro amigo na pessoa do bar ão F . . ., mas também de um guia que conhecia admiravelmente a regi ão. Devo dizer a esse respeito que a regi ão onde ocorreu o acidente, situada entre as montanhas do Hindu Kuch e
a grande cadeia do Himalaia, é totalmente constituída por um caótico emaranhado de vales estreitos; e, dentre todas as forma ções desse g ênero, oriundas de algum cataclismo, nunca t ínhamos tido que explorar uma tão inextricável. Poder-se-ia crer que as Potências superiores se tivessem comprazido em tornar essas regi ões complicadas e desconcertantes, com o úníco fim de que nenhum ser humano ousasse um dia ali se aventurar. Depois desse acidente, que nos privava de um guia considerado, mesmo entre os seus, como o melhor conhecedor de todos os cantos e recantos dessa regi ão, erramos durante vários dias, procurando sair desses lugares in óspitos. "Não possuíam, pois, mapas nem b ússola?" - perguntar-se-á, sem dúvida o leitor. É claro, tínhamos e mais ainda do que precis ávamos, mas, em realidade, para as pessoas que se aventuram nessas passagens, seria um benef ício, se nunca houvessem existido esses "mapas". Um mapa, como dizia nosso amigo Yelov, chama-se na tribo dos S ... khormanupka, o que significa "sabedoria" e a palavra "sabedoria", em sua linguagem, define-se como se segue: Prova mental de que duas vezes dois s ão sete e meio, menos tr ês e alguma coisa. Para utilizar com proveito os mapas contempor âneos, não há melhor meio que pôr em pr ática um ditado judicioso, que chegou- at é nós, dos tempos mais remotos: Se queres ser bem sucedido em qualquer neg ócio, pede o conselho de uma mulher e faz exatamente o contr ário. Ocorre o mesmo com esses mapas; se quiserem seguir o bom caminho, consultem um deles e tomem a dire ção oposta; podem estar certos de que chegar ão exatamente onde queriam. Tais mapas talvez sejam excelentes para aqueles dentre nossos contempor âneos que, sempre sentados em suas escrivaninhas e, n ão tendo nem tempo nem a possibilidade de ir a lugar algum, têm, entretanto, que escrever muitos livros de viagens e de aventuras. Para eles, tais mapas são preciosos, pois, gra ças ao tempo que lhes fazem ganhar, podem com toda calma elucubrar suas hist órias fantásticas. 207 Existem, talvez, bons mapas pára certas regiões, mas eu, que tive um grande n úmero entre as mãos durante minha vida, desde os antigos mapas chineses at é os modernos mapas de Estado-maior, jamais pude encontrar um s ó que fosse conveniente, no momento em que deles realmente tive necessidade. Certos mapas podem talvez ajudar os viajantes a se orientar mais ou menos, mas somente nos lugares superpovoados; quanto aos das regi ões inabitadas, isto é, dos lugares onde s ão mais necess ários, como, por exemplo, na Ásia central, mais valeria, como acabo de dizer, que não existisse nenhum. Pois deformam a realidade a ponto de serem cômicos. Suponhamos que, por exemplo, segundo as indica ções do mapa, tenham que transpor, no dia seguinte, algum colo elevado, onde, é claro, prevêem que far á muito frio. À noite, ao fazer suas bagagens, retiram as roupas quentes e tudo o que é necess ário para protegê-los do frio. Embalam o resto e colocam os sacos sobre os animais, deixando ao alcance das m ãos as roupas quentes. Pois bem, acontece quase sempre que, apesar das indica ções do mapa, ao atravessar vales e regi ões baixas, em vez do frio, tenham que suportar tal calor que mandariam para o diabo até suas camisas. E, como as roupas quentes n ão estão nem embaladas nem solidamente fixadas sobre o dorso dos animais, elas escorregam e se deslocam a cada passo atrapalhando tanto os animais quanto os viajantes. Quanto a refazer as bagagens durante a viagem, só os que já passaram por isso, ainda que uma única vez, no curso de longo dia de caminhada, podem compreender o que isso significa. Quando se trata de viagens, empreendidas por conta de algum governo, para certos fins pol íticos e para as quais são alocadas grandes quantias ou de uma expedi ção financiada por alguma vi úva de banqueiro, ardente te ósofa, pode-se contratar, é claro, numerosos carregadores para embalar e desembalar as bagagens; mas um verdadeiro viajante deve fazer tudo ele pr óprio e, mesmo que tivesse criados, ser-lhe-ia imposs ível deixar de ajudá-los, pois é penoso para um homem normal, em meio às dificuldades da viagem, assistir, de braços cruzados, aos esfor ços feitos pelos outros. Tais mapas contempor âneos são o que são, porque, com toda a evidência, foram feitos segundo processos dos
quais fui uma vez testemunha. Viajava, então, com vários membros do grupo dos Buscadores da Verdade, atrav és das montanhas do Pamir, além do pico Alexandre In. 208 209 Nessa época, num dos vales pr óximos a esse pico, encontrava-se o Quartel-general dos prospectores do serviço topogr áfico do ex ército do Turquestão. O prospector-chefe era certo coronel, muito amigo de um de nossos companheiros de viagem, e fizemos um desvio proposital por esse vale para visitá-lo. O coronel tinha como assistentes alguns jovens oficiais de Estado-maior, que nos receberam com o maior prazer, pois havia meses que viviam nessas paragens, onde não se poderia encontrar vivalma num raio de centenas de quil ômetros. Ficamos em suas tendas, durante tr ês dias, decididos a repousar bem. No momento em que nos prepar ávamos para partir, um dos jovens oficiais pediu-nos permiss ão para se reunir a nós, pois devia seguir, na mesma dire ção, para levantar o mapa de uma região situada a dois dias de marcha. Levava com ele dois soldados top ógrafos. No vale, topamos com um acampamento de kara-kirguizes n ômades e entabulamos conversa com eles. O oficial que nos acompanhava falava tamb ém a língua deles. Um desses kara-kirguizes era homem idoso e, sem dúvida, cheio de experi ência. O oficial, um de meus amigos e eu pedimos-lhe que compartilhasse nossa refei ção, esperando aproveitar o conhecimento que tinha do local para tirar-lhe tantas informa ções quanto possível. Falávamos, enquanto com íamos uma excelente kovurma de carneiro recheado; o oficial tinha tamb ém vodca, que trouxera de Tachkent e que esses n ômades apreciam muito, principalmente quando nenhum dos seus os v ê beber. Depois de alguns copos de vodca, o velho kara-kirguiz deu-nos v árias informações sobre essas regi ões e indicou-nos certas curiosidades a serem vistas. Designando-nos uma montanha, da qual j á havíamos notado o cume coberto de neves eternas, declarou: "Vêem aquele pico, ali? Pois bem, exatamente por detr ás dele, há isto... e aquilo... e, também, o famoso túmulo de Iskander." Nosso oficial desenhava, cuidadosamente, tudo o que estava sendo descrito. Era, ali ás, um artista bastante bom. Quando acabamos de comer e o kara-kirguiz voltou para seu acampamento, olhei o desenho do oficial e constatei que havia desenhado tudo o que o velho lhe descrevera, não por detr ás da montanha, como este havia indicado, mas na frente. Fiz-lhe essa observa ção e compreendi, por sua resposta, que havia confundido "na frente" e "detr ás", porque, nessa língua, as palavras "detr ás" e "na frente", bou-ti e pou-ti, parecem quase iguais, principalmente quando pronunciadas rapidamente, em meio a uma frase. Aos ouvidos de quem n ão conhece a fundo essa l íngua, tais palavras soam da mesma maneira. Quando compreendeu seu erro, contentou-se o oficial em exclamar: "Ora, diabos o levem!" e fechou ruidosamente o caderno. Desenhava h á cerca de duas horas e n ão tinha, certamente, vontade nenhuma de recome çar tudo, principalmente porque nos aprontávamos para prosseguir caminho. Estou certo de que esse esbo ço foi, mais tarde, transcrito num mapa exatamente como fora desenhado pelo oficial. Mais tarde, o editor, nunca tendo ido a esses lugares, ter á, é claro, colocado tais detalhes, n ão do lado certo da montanha, mas do outro e ser á aí que, a partir de então, nossos irm ãos viajantes esperar ão encontr á-los. com raras exceções, os mapas s ão feitos dessa maneira. Por isso, quando um mapa indica um rio bem pr óximo, não se deve ficar espantado de encontrar, em seu lugar, uma das opulentas filhas de Sua Majestade, o Himalaia. Continuamos, pois, nosso caminho, ao acaso, durante v ários dias, sem guia, tomando as maiores precau ções para evitar encontrar uma dessas quadrilhas de bandidos que, principalmente nessa época, compraziam-se em transformar cerimoniosamente os europeus, que ca íam em suas m ãos, em cativos e, mais tarde, em troc á-los, não menos cerimoniosamente, em alguma outra tribo habitante dessa parte de nosso caro planeta, por um bom cavalo ou por um fuzil do último modelo ou, simplesmente, por uma jovem, tamb ém cativa, é claro.
De etapa em etapa, chegamos a uma pequena torrente que decidimos seguir, supondo que acabaria por nos conduzir a alguma parte. Não sabíamos nem se seria para o norte ou para o sul, pois a regi ão na qual est ávamos era uma linha divis ória de águas. Caminhamos ao longo das margens, durante tanto tempo quanto poss ível, mas em breve, em certos lugares, tornaram-se escarpadas demais e quase inacess íveis e tivemos que entrar no pr óprio leito da torrente. Havíamos percorrido apenas alguns quil ômetros, quando o rio, avolumado por numerosos pequenos afluentes, tornou-se profundo demais para que pud éssemos continuar em seu leito. Foi preciso parar e deliberar seriamente quanto ao meio de continuar a viagem. 210 211 Decidimos, por fim, abater todas as cabras que haviam servido tanto para transportar nossas bagagens, quanto para assegurar nossa subsist ência e, com as peles, fazer burdiúques, a fim de construir uma jangada sobre a qual descer íamos o rio. Para pôr nossa decis ão em execução, escolhemos, não longe dali, um lugar confortável, onde poder íamos facilmente nos defender contra qualquer perigo e, l á, estabelecermos nosso acampamento. Já era demasiado tarde para empreender qualquer outra coisa nesse dia; depois de haver armado nossas tendas, comido, acendido as fogueiras segundo as regras e, é claro, designado os guardas que iam se revezar durante a noite, fomos deitar-nos. No dia seguinte, começamos a matar as cabras, que ainda na v éspera consider ávamos, sinceramente, como nossas amigas e associadas em nossos esfor ços para superar as dificuldades da viagem. Depois dessa bela manifestação cristã-muçulmana, enquanto um de n ós punha-se a cortar a carne em peda ços pequenos, para faz ê-la assar e com ela encher alguns odres, outros preparavam os burdiúques e inflavam-nos, outros ainda torciam os intestinos das cabras para deles fazer cordas, destinadas a consolidar a jangada e a nela fixar os burdiúques. Um último grupo, do qual eu fazía parte, deixou o acampamento, armado de machados, para buscar a madeira dura necess ária para a construção da jangada. Em nossas buscas, afastamo-nos bastante de nosso acampamento. Precis ávamos de uma esp écie de plátano, ali chamado karagatch, bem como de b étula fibrosa. Só essas duas ess ências de madeira nos pareciam bastante s ólidas para resistir aos choques contra os rochedos, nas passagens estreitas e nos r ápidos. Nas proximidades do acampamento, encontr ávamos, principalmente, figueiras e outras esp écies de madeira tenra. Avançávamos, examinando as árvores, quando de s úbito percebemos a alguma dist ância, um homem pertencente a uma das tribos locais, sentado no solo. Depois de nos termos posto de acordo, decidimos perguntar-lhe onde poder íamos encontrar as árvores de que precisávamos. Ao nos aproximarmos, observamos que estava vestido de andr ajos e reconhecemos, pelo seu rosto, ser um a espécie de ez-ezunavuran, isto é, um desses homens que trabalham sobre si mesmos para a salva ção de sua alma ou, como os europeus os chamam, faquires. Uma vez que emprego aqui a express ão faquir, considero que n ão ser á supérfluo fazer pequena digressão, a fim de esclarecer um pouco essa c élebre palavra. Trata-se, com efeito, de uma dessas numerosas palavras ocas que, devido à significação err ônea a elas atribu ída, exercem ação autom ática sobre todos os europeus da atualidade e constituem uma das principais causas da crescente degeneresc ência de seu pensar. O sentido da palavra faquir, tal como o entendem os europeus, é desconhecido dos povos da Ásia e, no entanto, essa palavra é usada ali, quase em toda parte. Faquir ou, mais corretamente, fakbr, é tirado de uma palavra turcomana que significa "mendigo" e, em quase todas as populações do continente asiático, cujas l ínguas têm raízes provenientes do antigo turcomano, essa palavra veio a significar atualmente, "intruj ão" ou "trapaceiro". Para exprimir a concepção de "intrujão" ou "trapaceiro", esses povos disp õem de duas palavras, ambas provenientes do antigo turcomano. Uma delas é essa palavra faquir, a outra luri. Designa a primeira mais especialmente aquele que, por sua ast úcia, tira proveito dos outros, explorando sua
religiosidade, enquanto se aplica a segunda àquele que simplesmente explora sua estupidez. O nome luri, entre outros, é atribuído aos ciganos, tanto como povo quanto como indiv íduos. De modo geral, os ciganos levam uma vida n ômade, em toda parte, entre as outras populações. Ocupam-se principalmente do tr áfico de cavalos e consertos em geral, cantam em festas, lêem a sorte e coisas do mesmo jaez. Acampam geralmente perto dos centros mais populosos e, por toda esp écie de astúcias, abusam da ingenuidade dos citadinos e alde ões. Eis por que esse nome luri é utilizado há muito tempo na Ásia, para qualificar qualquer indivíduo, seja qual for a sua ra ça, que seja trapaceiro ou intrujão. O "faquir", tal como o imaginam os europeus, é mais freqüentemente designado pelos asi áticos pela palavra ez-ezunavuran, que provém do turcomano e significa "aquele que bate em si mesmo". Eu mesmo ouvi falar muito, na Europa, dos pretensos faquires e li numerosos livros a seu respeito. A maioria de tais relatos e escritos afirma que seus "passes" são sobrenaturais e milagrosos, quando se trata a í de passes executados por vigaristas sem escr úpulos e escroques de primeira classe. Para compreender a que confusão chegam assim os europeus, bastar-me- á dizer, penso, que tendo viajado por quase todos os lugares 212 213 onde se deveriam encontrar, segundo as concep ções européias, esses faquires, nascidos de sua imaginação, não encontrei um só. Em contraposição tive a chance de encontrar, muito recentemente, um verdadeiro Jakhr, tal como o concebem os povos do continente asi ático e não foi em nenhum desses países, onde os europeus cr êem que vivem os faquires, como, por exemplo, na índia ou em qualquer outro pa ís da Asia, mas no pr óprio coração da Europa, na cidade de Berlim. Percorria um dia o Kurf ürstern Damm, em direção à entrada principal do Jardim Zoológico, quando percebi sobre a calçada, num pequeno carrinho, um homem sem as duas pernas, que girava a manivela de uma caixa de m úsica antediluviana. Em Berlim, na capital da Alemanha, bem como nas outras áglomerações que representam, de certo modo, a quintessência da civilização contempor ânea, é proibido apelar diretamente à caridade, ao passo que mendigar por qualquer outro meio é permitido. Eis por que uns viram a manivela de um velho realejo, outros vendem caixas de f ósforos vazias, outros ainda, cart ões postais inconvenientes e literatura do mesmo g ênero e, assim, a polícia os deixa mais ou menos tranq üilos. Esse mendigo, pois, fazia funcionar sua caixa de m úsica, da qual faltava a metade das notas. Trazia um uniforme de soldado alem ão. Ao passar, dei-lhe uma pequena moeda e, com o olhei por acaso para ele, seu r osto me pareceu familiar. Não o interroguei, pois nunca me arriscava a falar sozinho com desconhecidos em meu alem ão estropiado, mas perguntei-me onde poderia ter visto aquela cara. Depois de terminar meus negócios, voltei pela mesma rua. O aleijado ainda estava lá. Aproximei-me muito lentamente, olhando-o com atenção, buscando lembrar-me de por que esta fisionomia me era t ão familiar, mas não consegui nesse momento. S ó ao chegar ao Romanisches Caf é é que me lembrei de repente: esse homem era, sem sombra de dúvida, o marido de certa senhora que me fora enviada por um doutor amigo meu, com uma carta de apresentação, pedindo-me que lhe ministrasse cuidados m édicos, vários anos antes, em Constantinopla. O marido dessa senhora era um ex-oficial russo, evacuado da R ússia para Constantinopla com o ex ército Wrangel. Lembrava-me, agora, de que a jovem viera procurar-me com um ombro deslocado e o corpo coberto de equimoses. Enquanto me ocupava de seu bra ço, contou-me que o marido batera nela, porque se recusava vender-se a bom preço a certo judeu espanhol. com o auxílio dos doutores Victorov e Maximovitch, recoloquei como pude o ombro no lugar e depois ela partiu. Duas ou tr ês semanas mais tarde, encontrava-me num restaurante russo, chamado A Rosa Negra, quando vi aproximar-se de mim essa senhora. Mostrando-me, com um aceno
de cabeça, um homem sentado à mesa que acabava de deixar, disse-me precipitadamente: " É ele, é meu marido, e acrescentou: "Reconciliei-me novamente com ele. No fundo é um bom homem, apesar de se encolerizar às vezes." Dito isso, deixou-me às pressas e compreendi, ent ão, a que tipo de mulher pertencia. Depois, olhei longamente o rosto desse oficial que me interessava pela estranheza de seus tra ços. E eis que hoje, em Berlim, encontrava novamente o mesmo oficial, estropiado, vestindo o uniforme alem ão, girando a manivela de uma caixa de m úsica e recolhendo pequenas moedas. No curso de um dia, os passantes apiedados jogam grande n úmero de moedas a essas pobres vítimas da guerra. A meu ver, esse homem era um verdadeiro f akhr, no sentido em que o entendem todos os povos da Ásia; e quanto às suas pernas, que Deus me permita possuir t ão sãs e fortes quanto as dele! Mas, basta a seu respeito. Voltemos ao tema principal deste cap ítulo. . . Aproximamo-nos, pois, desse ez-ezunavuran e, depois das sauda ções usuais, sentamo-nos perto dele. Antes de lhe perguntar o que quer íamos, começamos por conversar com ele sobre assuntos banais, a fim de respeitar as formas de polidez usadas nesse pa ís. É interessante observar, aqui, que o psiquismo dos povos que habitam tais regi ões é totalmente diferente do dos europeus. No caso destes últimos, quase sempre, o que está em sua cabeça está em sua língua. Não ocorre o mesmo com os asi áticos - a dualidade do psiquismo está fortemente desenvolvida. Qualquer deles pode se mostrar polido e amigável, enquanto o odeia do fundo do cora ção e rumina toda esp écie de maldade em sua inten ção. Muitos europeus que viveram entre eles, durante dezenas de anos, sem compreender tal particularidade e os julgam de acordo consigo mesmos, deixam passar de lado muitas coisas e, constantemente, provocam mal-entendidos que poderiam ter evitado. N ão sabem que os 214 asiáticos têm muito amor-pr óprio e altivez e que cada um deles, qualquer que seja sua situa ção, exige de todos certa atitude para com ele, como indivíduo. São muito estritos quanto a certos pontos. Assim, ao abordar esse homem, n ão o interrogamos, de imediato, sobre o que quer íamos saber, pois interrogá-lo, antes de ter observado as regras costumeiras de polidez: Deus me livre! Entre eles, as coisas importantes s ão guardadas para o final e deve-se chegar at é lá pouco a pouco, como por acaso; senão, na melhor das hipóteses, indicar-lhe-ão, muito polidamente, a direita, quando seu caminho est á à esquerda. Ao contr ário, se fizerem tudo de acordo com as regras, não somente lhes dir ão o que querem saber, mas até se apressar ão em ajudá-lo, na medida do possível, a alcançar seu destino. Conhecendo essa particularidade, uma vez sentado ao seu lado, pusemo-nos a falar sobre a beleza da paisagem, dizendo-lhe que est ávamos ali pela primeira vez, perguntando-lhe como se sentia, se as condi ções lhe convinham e assim por diante. E s ó ao cabo de certo tempo, diss ê-lhe de passagem: "Precisamos dessa e daquela madeira para nossas jangadas, mas n ão as encontramos em parte alguma nos arredores." Respondeu que lamentava infinitamente n ão poder dar-nos nenhuma informa ção a esse respeito, pois estava apenas h á pouco tempo na regi ão, mas seu mestre, que ali vivia há muito tempo e conhecia bem os arredores, talvez pudesse sab ê-lo. Era um vener ável ancião, que morava numa gruta, bem atr ás da colina. Levantou-se para ir imediatamente at é ele, mas o doutor Sari-Oglé deteve-o e perguntou-lhe se pod íamos ver seu honor ável mestre e perguntar-lhe, nós mesmos, onde poder íamos encontrar a madeira de que precis ávamos. "Certamente, respondeu, vamos juntos. Meu mestre é quase um santo e est á sempre pronto a ajudar todo mundo." Vimos de longe um homem sentado num prado, à sombra de um grupo de árvores. Sem esperar por nós, nosso guia correu para dizer-Ihe algumas palavras e fez-nos sinal para nos aproximarmos. Depois de ter trocado as sauda ções usuais, sentamo-nos perto dele. Nesse momento, outro habitante dessas paragens apareceu e veio sentar-se ao nosso lado. Soubemos mais tarde que também era aluno desse vener ável ez-ezunavufan. 215 O rosto do anci ão pareceu-nos tão cheio de bondade e t ão diferente do de um homem comum que, sem nos entregarmos às costumeiras manobras preliminares habituais e, dessa vez, sem lhe esconder o que quer que fosse, contamos-lhe o que nos ocorrera e como pens ávamos sair
dessa região. Escutou-nos com a maior atenção e, depois de refletir alguns instantes, disse-nos que o rio à margem do qual tínhamos chegado era afluente do Tchitral, por sua vez afluente do rio Kabul, que des água no Indo. Acrescentou que, para sair dessa regi ão, havia numerosos caminhos, mas todos longos e penosos. Se f ôssemos capazes de fazer a viagem como t ínhamos projetado e se tivéssemos a sorte de evitar as margens habitadas pelas tribos pouco acolhedoras para com os estrangeiros, nosso plano seria, ent ão, o melhor que se pudesse imaginar. Quanto à espécie de madeira que busc ávamos, pensava que n ão valia nada e o melhor para n ós seria utilizar o comiso. Especificou que, à esquerda do atalho, pelo qual tínhamos vindo, havia um pequeno vale onde esse arbusto crescia em espessas moitas. Ia dizer ainda alguma coisa, mas, nesse momento, ouvimos um ru ído muito pr óximo, um desses ru ídos que fazem estremecer um viajante dos p és à cabeça. O ez-ezunavuran voltou-se tranqüilamente na direção de onde vinha o ru ído. com sua voz de anci ão, lançou um grito particular e, alguns instantes mais tarde, surgiu das moitas, em toda beleza e for ça, um enorme urso cinzento, com alguma coisa na boca. Como o animal se dirigisse para n ós, o ancião deu novo grito. O urso, olhando-nos com olhos cintilantes, aproximou-se, sem se apressar, depositou o que trouxera aos pés do ancião e, depois, voltou-nos as costas e desapareceu nas moitas. Estávamos petrificados e o tremor instintivo que se apoderara de n ós era tão forte que batíamos os dentes. O ancião explicou-nos, com benevol ência, que o urso era um de seus bons amigos e, às vezes, lhe trazia tchungari1. Mesmo depois dessas palavras tranq üilizantes, custamos a nos refazer de todo; olh ávamos uns para os outros com espanto e nosso rosto tra ía nossa intensa perplexidade. O ancião, levantando-se pesadamente, tirou-nos do estupor; disse-nos ser hora de seu passeio quotidiano e que, se desejássemos, acompanhar-nos-ia até o valezinho onde cresciam os comisos. 1. O tchungari é uma espécie de milho que cresce nessas regi ões 216 217 Após isto, recitou uma oração e partiu adiante. Seguimo-lo, juntamente com os alunos, at é o valezinho, que estava, com efeito, coberto de moitas de comisos e, todos, inclusive o anci ão, pusemo-nos a cortar os arbustos de que precis ávamos, escolhendo os mais grossos. Quando tínhamos reunido dois enormes montes, julgando a tarefa terminada, perguntamos ao anci ão se consentiria em vir até nosso acampamento, n ão muito afastado, para permitir que um de nossos amigos, que tinha uma pequena m áquina especial, fizesse seu retrato, com grande exatidão, o que não tomaria muito tempo. O ancião começou por recusar, mas os disc ípulos nos ajudaram a persuadi-lo e, carregados com nossos fardos, fomos para a margem do rio, onde deix áramos toda a equipe trabalhando. Em poucas palavras pusemos os outros ao corrente. O professor Skridlov tirou uma fotografia do anci ão e foi de pronto revelá-la. Enquanto isso, sentados à sombra de uma figueira, fazíamos um círculo em torno do ez-ezunavuran. Vitvitskaia estava conosco, o pesco ço envolto numa atadura, pois, um mês antes, havia sido acometida de um doloroso mal de garganta, bastante corrente nessas montanhas, que lhe dava o aspecto de ter b ócio. Vendo sua atadura, o anci ão perguntou o que tinha. Depois de ter ouvido nossas explica ções, pediu-lhe que se aproximasse, examinou-a minuciosamente, apalpou-lhe o pesco ço com cuidado, depois f ê-la deitar-se sobre o dorso e pôs-se a massagear a incha ção de diversas maneiras, murmurando certas palavras. Qual não foi nosso espanto quando, ap ós vinte minutos de massagem, a enorme incha ção pôs-se a desaparecer sob nossos olhos. Uns vinte minutos mais tarde, n ão restava absolutamente nada. Nesse momento, o professor Skridlov voltava com uma prova da fotografia. Estupefacto, por sua vez, prosternou-se diante do anci ão e depois, com humildade que n ão lhe era habitual, suplicou-lhe que aceitasse cur á-lo das dores renais de que sofria atrozmente h á vários dias. O ancião pediu-lhe alguns esclarecimentos sobre a doen ça e, de pronto, mandou um dos alunos arrancar a raiz
de certo arbusto que apontou. Ent ão, deu essa raiz ao professor e disse: "Tome uma por ção dessa raiz para duas por ções de casca de figueira, que encontrar á quase em toda parte. Faça-as ferver junto muito bem e, de dois em dois dias, durante doís meses, beba um copo dessa infus ão como se fosse ch á, antes de dormir." Pediu, então, para ver a fotografia, que todos se puseram a examinar e que maravilhou os disc ípulos. Convidamos, então, o ancião para comer conosco kovurma de cabra, com doces de pokhand 2, o que n ão recusou. Durante a conversa, soubemos que fora antigamente um top-bashi do emir do Afeganist ão, avô do atual emir e que, aos sessenta anos, depois de ter sido ferido durante uma tentativa de subleva ção dos baluchis, fomentada por alguma potência européia, tinha voltado para seu Khorassã natal. Quando as feridas ficaram completamente curadas, n ão quis voltar mais para seu posto, pois come çava a sentir o peso dos anos e decidiu consagrar o resto da vida à salvação de sua alma. Pôs-se, primeiramente, em relação com os dervixes persas, depois conseguiu ser admitido entre os batistas, mas deixou-os em breve para voltar para o Afeganist ão, onde entrou para um mosteiro, perto de Kabul. Ao compreender tudo que lhe era necess ário e se convencer de que não tinha mais necessidade dos outros, p ôs-se a buscar um retiro, longe dos homens. Tendo-o encontrado naquelas paragens, fixou-se ali, em companhia de alguns homens desejosos de viver segundo suas indica ções. Agora, esperava a morte, pois já tinha noventa e oito anos - e é raro, hoje em dia, atingir aos cem anos. No momento em que o anci ão ia levantar-se para partir, Yelov, por sua vez, pediu-lhe que tivesse a bondade de lhe dar um conselho sobre seus olhos. V ários anos antes, na região transcaspiana, tivera tracoma; apesar dos tratamentos de toda esp écie, não se curara e o mal se tinha tornado cr ônico: "Meus olhos n ão me fazem sofrer sempre, mas, todos os dias pela manha, supuram e ficam colados; al ém disso, quando h á mudança de clima, ou durante uma tempestade de areia, incomodam-me muito." O ez-ezunavuran aconselhou-o a moer muito finamente sulfato de cobre e depois, cada noite, antes de dormir, umedecer uma agulha com a pr ópria saliva, mergulhá-la no sulfato de cobre e pass á-la entre as pálpebras. Devia repetir essa opera ção durante certo tempo. Depois do que, o anci ão levantou-se e dirigiu a cada um de n ós, um gesto que correspondia, ali, ao que se chama bênção, na Europa e, a seguir, dirigiu-se à sua gruta; todo mundo o seguiu, at é mesmo nossos cães. 2. O pokhand é uma farinha preparada com cevada grelhada, com a qual se prepara um delicioso pão. 218 219 Enquanto o escoltávamos, tínhamos retomado nossa conversa com ele, quando, de s úbito, Karpenko, sem ter consultado ningu ém, dirigiu-se a ele na língua uzbek e disse: "Santo Pai! Tu a quem, pela vontade do destino, encontramos neste lugar, de maneira t ão inesperada e és um grande homem pelo saber e rico em experi ência, tanto no plano da vida ordin ária, quanto no da prepara ção de si para o ser que deve subsistir depois da morte, estamos todos persuadidos, do fundo do cora ção, que não nos recusar ás teu conselho se, no entanto, julgares poss ível fazê-lo, sobre a vida que dever íamos levar e o ideal que dever íamos conservar presente em n ós para conseguirmos finalmente viver de conformidade com os des ígnios do Alto, de maneira que seja digna do homem." O vener ável ancião não respondeu de imediato a esse estranho pedido de Karpenko. P ôs-se a olhar em torno dele, como que buscando algo e, depois, dirigiu-se para um tronco de árvore derrubado. Sentou-se, esperou que nos tiv éssemos instalado, uns sobre a árvore, outros no chão e, depois, voltou-se para Karpenko e pôs-se a falar lentamente. Sua resposta, das mais interessantes e de grande profundidade, tomou a forma de longo serm ão. O que foi dito, ent ão, pelo idoso ez-ezunavuran, far á parte da terceira série de meus escritos; cont á-lo-ei num capítulo especial intitulado: O corpo astral do homem, suas necessidades e suas possibilidades de manifesta ção conformes às leis. Por enquanto, contentar-me-ei em falar sobre os resultados que produziram as curas desse vener ável ancião,
tal como as verifiquei muitos anos mais tarde. Vitvitskaia nunca mais teve nenhuma dor, nem o menor sintoma de reaparecimento do mal de que havia sofrido. Por seu lado, o professor Skridlov não sabia como exprimir sua gratidão para com o anci ão que, sem d úvida, o havia livrado para sempre dos sofrimentos que o torturavam há doze anos. Quanto a Yelov, o tracoma desapareceu completamente um m ês mais tarde. Depois desse evento, rico de significa ção para todos n ós, foram-nos necess ários ainda tr ês dias para construir a jangada e terminar todos os preparativos. No quarto dia, de manhã cedo, a jangada improvisada foi lan çada à água e começamos a descer o rio. Inicialmente, nossa original embarcação nem sempre tinha água suficiente para flutuar; em alguns lugares, tínhamos que empurr á-la, às vezes, at é carregá-la. Mas quanto mais avan çávamos, mais o rio se tornava profundo e melhor flutuava. Em certos momentos, apesar da carga, literalmente voava. Não podíamos dizer que estávamos muito tranqüilos, principalmente quando a jangada transpunha trechos estreitos e se jogava contra os rochedos; mas, mais tarde, quando ficamos convencidos de sua resist ência, bem como da eficácia do dispositivo imaginado pelo engenheiro Samsunov, sentimo-nos completamente à vontade e, até, com humor para pilheriar. A idéia genial de Samsunov fora a de utilizar seis burdi úques fixados solidamente, dois adiante e dois de cada lado da jangada, para servir de amortecedores toda vez que a jangada se chocasse contra os rochedos. No segundo dia dessa singular navega ção, trocamos tiros com um bando de ind ígenas pertencentes a uma das tribos ribeirinhas. E foi durante esse tiroteio que Piotr Karpenko foi gravemente ferido. Devia morrer dois anos mais tarde, muito jovem ainda, numa cidade da R ússia Central. Paz às tuas cinzas, tu, o melhor e o mais sincero dos camaradas! *** 220 221 O PROFESSOR SKRIDLOV Quero ainda falar de um dos amigos mais pr óximos de minha ess ência, de um amigo muito mais velho que eu, do professor de arqueologia Skridlov, que conheci durante os primeiros anos de minha vida respons ável e que desapareceu, sem deixar vest ígios, durante a grande agitação dos espíritos, na Rússia. Contei, no cap ítulo sobre o pr íncipe Yuri Lubovedsky, como travei conhecimento com ele quando buscava um guia para visitar os arredores do Cairo. Encontrei-o novamente, quando de minha primeira viagem com o pr íncipe Lubovedsky, na antiga cidade de Tebas, onde tinha ido se reunir a n ós para empreender escava ções. Durante tr ês semanas, vivemos juntos no interior de um t úmulo e, nos momentos em que repous ávamos dos trabalhos, falávamos, abordando principalmente problemas de ordem metaf ísica. Apesar da diferen ça de idade, nos tornamos pouco a pouco t ão amigos que, quando o pr íncipe Yuri Lubovedsky partiu novamente para a R ússia, decidimos não nos separar e fazer uma grande viagem juntos. De Tebas, subimos o Nilo at é à nascente, passamos para a Abiss ínia, onde permanecemos cerca de tr ês meses, e depois, pelo Mar Vermelho, ganhamos a S íria e daí as ruínas de Babilônia. Depois de quatro meses de vida em comum, o professor Skridlov ficou sozinho no local, para continuar as escava ções, enquanto eu partia para Ispahan, por Mched, em companhia de dois persas, mercadores de tapetes, que encontrara por acaso, numa pequena aldeia dos arredores de Babil ônia e com os quais havia simpatizado, pois eram, como eu, verdadeiros conhecedores em assunto de tapetes antigos. Encontrei novamente o professor Skridlov dois anos mais tarde, na cidade de Orenburg, onde acabava, de chegar com o pr íncipe Lubovedsky. Essa cidade devia ser o ponto de partida de uma grande expedi ção através da Sibéria, empreendida por nosso grupo dos Buscadores da Verdade, para responder
a certas exigências do programa que nos t ínhamos traçado. Depois dessa viagem à Sibéria, encontramo-nos freqüentemente, quer para empreender juntos viagens de duração mais ou menos longa, nos cantos mais remotos da Ásia e da África, quer para entrevistas mais breves, cada vez que ach ávamos necess ário nos consultarmos, ou mesmo simplesmente por acaso. Proponho-me contar detalhadamente um de nossos encontros e a longa viagem que se seguiu, pois foi durante essa viagem que sua vida interior sofreu uma crise decisiva, a partir da qual seu psiquismo não foi mais animado apenas por seus pensamentos, mas tamb ém por seu sentimento e por seu instinto, que começaram até a predominar ou, como se diz, a tomar a iniciativa. Foi totalmente por acaso que o encontrei dessa vez. Foi na R ússia, pouco tempo depois da entrevista que tinha tido em Constantinopla com o pr íncipe Lubovedsky. Dirigia-me para a Transcaucasia. No restaurante de uma esta ção, apressava-me por terminar um desses famosos entrecostos de cavalo, introduzidos na R ússia sob o nome de costeletas de boi, pelos t ártaros de Kazan, para uso dos restaurantes de esta ção, quando de repente senti-me abraçado por alguém por tr ás de mim. Voltei-me: era meu velho amigo Skridlov. Aconteceu que viajava no mesmo trem que eu. I a para casa da filha, que mor ava na estação termal de Piatigorsk. Ficamos encantados, os dois, com esse encontro e decidimos continuar juntos a viagem. Meu professor abandonou, de bom grado, seu compartimento de segunda classe, para se reunir a mim - viajava, é claro, de terceira - e conversamos durante todo o trajeto. Contou-me como, depois de ter deixado as ru ínas de Babilônia, voltara a Tebas para ali empreender novas escavações nos arredores. Durante os dois últimos anos, fizera muitas descobertas interessantes e preciosas; depois, o desejo de rever seu país e os filhos o tinha levado a conceder-se f érias. Havia, pois, voltado h á pouco para a R ússia e, depois de ter ido diretamente at é São Petersburgo e a seguir, at é laroslav, à casa da filha mais velha, dirigia-se agora para Piatigorsk, à casa da filha caçula que, durante sua ausência, lhe havia preparado, como dizia, dois netos. 222 Quanto tempo ia ficar na R ússia e o que faria a seguir, ainda n ão sabia. Por minha vez, contei-lhe como passara esses dois anos, como, pouco depois de nossa separa ção, meu interesse pelo Isl ã se tinha despertado e como conseguira, à custa de grandes dificuldades, utilizando toda esp écie de astúcias, introduzir-me em Meca e Medina, inacess íveis aos cristãos, com a esperan ça de ter acesso ao que h á de mais secreto nessa religi ão e, talvez, elucidar certas questões que considerava essenciais. Meus esfor ços, por ém, tinham sido vãos: nada havia encontrado ali. Dera-me conta, apenas, de que, se havia alguma coisa para ser descoberta no âmago dessa religião, não era ali que cumpria procur á-lo, como em geral se cr ê e se afirma, mas em Bucara, onde, desde o princ ípio, tinham-se concentrado todos os elementos da doutrina secreta dessa religião; Bucara era, pois, o centro e a pr ópria fonte do Islã. E, como não perdera nem meu interesse nem minha esperança, decidira partir para Bucara com um grupo de sartas, que voltavam para suas casas, depois da peregrina ção a Meca e a Medina, com os quais tinha estabelecido de prop ósito relações amigáveis. Expliquei-lhe, a seguir, as razões que me haviam impedido de ir diretamente para Bucara; como, de passagem por Constantinopla, tinha encontrado ali o pr íncipe Lubovedsky e como este me havia pedido que acompanhasse certa jovem at é à casa da irm ã dele, na província de Tambov, de onde regressava. Pensava agora, depois de ter estado com minha fam ília, na Transcaucasia, voltar as r édeas na dire ção de Bucara e para lá seguir... "com meu velho amigo Skridlov", disse ele, terminando minha frase. Acrescentou que, durante os tr ês últimos anos, ele pr óprio tinha freqüentemente sonhado em ir a Bucara e à região de Samarcanda, para elucidar certos dados relativos a Tamerl ão, de que tinha necessidade para resolver um problema arqueológico que muito o interessava. Recentemente, ainda, tinha pensado nisso, mas n ão se tinha podido decidir a ir sozinho para l á. Agora que sabia que eu ia para l á, reunir-se-ia a mim com alegria, se eu não pusesse nenhuma
objeção a isto. Dois meses mais tarde, encontramo-nos, como combinado, em T íflis; dali partimos para a Transcaspiana, com a intenção de chegar 223 até Bucara mas, tendo-nos detido nas ru ínas de Merv, ali ficamos cerca de um ano. Para explicar por que isto sucedeu, direi que, muito antes de decidir sobre nossa viagem a Bucara, discutira muitas vezes com o professor sobre a eventualidade de uma visita ao Kafiristão, país onde era então totalmente impossível, para um europeu, penetrar à vontade. Quer íamos ir lá, porque estávamos convencidos, segundo todas as informa ções que tínhamos colhido junto a diversas pessoas, de poder encontrar ali resposta a numerosos problemas psicológicos e arqueol ógicos. Em Tíflis, começamos por reunir tudo que nos seria necess ário para a nossa viagem a Bucara, principalmente cartas de recomenda ção. Fomos assim levados a encontrar e a interrogar várias pessoas que conheciam essas regi ões. Tais conversas e as conclus ões que delas tiramos, atiçaram a tal ponto nosso desejo de entrar no Kafirist ão, por mais inacess ível que fosse aos europeus, que decidimos fazer o imposs ível para lá irmos, assim que deixássemos Bucara. Os interesses que hav íamos nutrido até então pareciam não existir mais. Durante todo o trajeto em direção ao Turquestão, não podíamos pensar noutra coisa e s ó falávamos das medidas a serem tomadas para realizar o audacioso projeto. Mas foi totalmente por acaso que nossos planos de penetrar no Kafirist ão tomaram forma definitiva, nas seguintes circunst âncias: Durante uma parada na estação de Nova Merv, sobre a linha da Ásia central, fui ao restaurante buscar água fervendo para o ch á. Voltava em direção ao carro, quando me senti agarrado por um homem em costume teque. Era um de meus bons velhos amigos, um grego chamado Vassiliaki, alfaiate de profiss ão, que vivia em Merv h á muito tempo. Sabendo que estava a caminho de Bucara, rogou-me instantemente que interrompesse a viagem e parasse em Merv, até o dia seguinte, para assistir a uma grande festa de família, que devia ocorrer na mesma noite, por ocasi ão do batismo de seu primogênito. Pediu-me isso de maneira t ão sincera e tocante, que n ão podia recusar de pronto; pedi-lhe, pois, que esperasse um momento e, acreditando restar muito pouco tempo antes da partida do trem, corri a toda pressa para pedir conselho ao professor, respingando de água fervendo tudo que se encontrava no caminho. Enquanto me esgueirava, com dificuldade, pelos corredores escuros, entre os passageiros que subiam e desciam, o professor viu-me 224 225 e fez-me sinal com a m ão, gritando: "Já reuni nossa bagagem, des ça depressa, que lha passo pela janela." Espreitando-me do carro, assistira de longe ao meu encontro imprevisto e adivinhara a proposta que me tinha sido feita. Tornei a descer para a plataforma, sempre correndo e tomei as bagagens que me passava pela janela. Mas ocorreu que nos apress ávamos à toa: o trem devia permanecer mais de duas horas na esta ção, para esperar o trem do ramal de Kuchka, que estava atrasado. À noite, depois da cerimônia religiosa do batismo, tive como vizinho de mesa um anci ão, amigo do dono da casa, um nômade turcomano, proprietário de enorme rebanho de carneiros caracul. Interroguei-o sobre a vida dos nômades e das diversas tribos da Ásia Central e acabamos por falar nas tribos independentes que povoam o pa ís, ao qual fora recentemente dado o nome de Kafirist ão. Depois da ceia, durante a qual n ão tinha sido poupada a vodca russa, essa conversa prosseguiu e ele exprimiu, entre outras, como se falando consigo mesmo, uma opini ão que nos pareceu, a Skridlov e a mim, digna de ser retida e, de acordo com a qual, tra çamos o plano que deveria nos permitir realizar nosso projeto. Em todos os habitantes dessas regi ões, dizia, a qualquer tribo que pertençam, apesar do desejo quase org ânico de evitar freqüentar homens estranhos a suas pr óprias tribos, desenvolveu-se alguma coisa que suscita naturalmente neles um sentimento de respeito e at é de amor para com os homens de qualquer ra ça e de qualquer crença,
que se tenham consagrado ao servi ço de Deus. Depois que esse nômade, encontrado por acaso, exprimiu esse pensamento, talvez sob a a ção apenas da vodea russa, todas as discuss ões dessa noite bem como do dia seguinte, giraram em torno da idéia de que poder íamos penetrar nessas regi ões não sob o aspecto externo de simples mortais, mas adotando a apar ência e as vestimentas desses homens aos quais testemunham ali respeito particular e que t êm a possibilidade de andar livremente em qualquer lugar, sem despertar a m ínima suspeita. No dia seguinte à noite, sempre mergulhados em nossas reflex ões, estávamos sentados num dos tchaikhan ês de Nova Merv, onde dois grupos de turcomanos libertinos entregavam-se ao ktf com seus batchis, isto é, com jovens dan çarinos, cuja função principal - regulamentada pelas leis locais e encorajada pelas do grande império contempor âneo da Rússia, sob a prote ção do qual esse pa ís se encontrava era a mesma exercida, no continente da Europa, sob o controle de leis an álogas, pelas mulheres de "cart ões amarelos". Foi nesse ambiente que decidimos, categoricamente, que o professor Skridlov se transformaria em vener ável dervixe persa e eu passaria por um descendente direto de Maomé, isto é, por um seída. Para nos preparar para esse disfarce, era necess ário dispor de muito tempo, bem como de um lugar tranqüilo e isolado. Eis por que resolvemos nos instalar nas ru ínas da Velha Merv, que respondia a essas exig ências e onde poder íamos, além disso, fazer algumas escava ções, de vez em quando, para descansar. A preparação consistia em aprender numerosos cantos religiosos persas e relatos edificantes dos tempos antigos; por outro lado, era indispensável deixar crescer os cabelos a fim de nos parecermos com os homens pelos quais quer íamos nos fazer passar; em tal caso, a caracterização está totalmente excluída. Depois de haver vivido cerca de um ano nas ru ínas da Velha Merv e, achando finalmente que nossa apar ência exterior, bem como nosso conhecimento dos salmos e dos versículos religiosos era satisfat ório, uma manhã, ao raiar do dia, deixamos essas ru ínas, que já se tinham tornado familiares. Fomos a pé até à estação de BairamAli, na linha da Ásia Central, onde tomamos um trem at é Tchardjuí. Aí, embarcamos num navio que subia o Amu-Dária. Às margens do rio Amu-D ária - conhecido outrora sob o nome de ôxus e adorado como um deus, por certos povos da Ásia Central - foi que apareceu, pela primeira vez sobre a terra, o germe da cultura contempor ânea. Tenho a intenção de contar detalhadamente, esta parte de nossa viagem e descrever essa regi ão então inacessível aos estrangeiros: tanto mais que, ao subir o rio, aconteceu uma aventura que parecer á extraordinária para os europeus, mas é muito caracter ística dos costumes patriarcais dessas regi ões ainda poupadas da influ ência da civilização atual. A lembrança dessa aventura, cuja v ítima foi um velho sarta cheio de bondade, provocou muitas vezes em mim um sentimento de remorso, pois foi por nossa causa que, talvez para sempre, esse bom velhinho tenha perdido seu dinheiro. E farei tal descri ção um pouco no estilo que me foi dado estudar na juventude, estilo de uma escola liter ária que, dizem, nasceu nas pr óprias margens desse grande rio e se propunha, como objetivo, a criação de imagens sem palavras. O Amu-Dária, que leva a princ ípio o nome de Piandj, tem as nascentes nas montanhas do Hindu Kuch: desemboca atualmente 226 227 no mar de Aral, mas, seguido alguns dados históricos, desembocava antigamente no mar Cáspio. Durante o per íodo ao qual se refere meu relato, esse rio formava a fronteira de vários Estados: a antiga R ússia, o canado de Khivia, o canado de Bucara, o Afeganist ão, o Kafiristão, a índia inglesa, etc. Era, outrora, cruzado por jangadas de constru ção especial, mas, depois da conquista dessas regi ões pela Rússia, tais jangadas foram substitu ídas por uma flotilha de vapores de fundo chato, que respondiam a certas necessidades militares e asseguravam, al ém disso, o transporte dos viajantes e mercadorias entre o mar de Aral e as nascentes do rio. Assim, pois, preparo-me, nem que seja só para repousar, para entregar-me a elucubrações no estilo da antiga
escola liter ária de que falei. O Amu-Dária ... O dia começa a raiar. As cristas das montanhas j á estão douradas sob os raios do sol, que ainda n ão surgiu no horizonte. Pouco a pouco, o silêncio da noite, o murmúrio monótono do rio cedem lugar ao canto dos p ássaros, aos gritos dos animais e às vozes dos homens que despertam, bem como ao surdo marulhar da água sob as rodas do vapor. Nas duas margens, reanimam as fogueiras apagadas durante a noite; as volutas que saem pela chamin é misturam-se à fumaça sufocante de uma fogueira de saxaul verde1 1. Arvore que cresce nas areias. e se espalham pelos arredores. As margens mudaram sensivelmente de aspecto dura nte a noite, embora o barco tenha perm anecido no mesmo lugar. Faz nove dias hoje que partimos de Tchardju í em direção a Kerki. Nosso vapor, nos dois primeiros dias, avan çava lentamente, mas sem entraves. No terceiro dia, encalhou num banco de areia e ficou a í, toda a noite e o dia seguinte, até que a corrente r ápida do AmuDária tivesse levado as areias, permitindo-lhe que prosseguisse finalmente a rota. Um dia e meio mais tarde, ocorreu novamente o mesmo incidente. O barco está no mesmo lugar, imobilizado há tr ês dias. Os passageiros e a equipagem pacientemente esperam que praza a esse rio obstinado ter piedade deles e liber á-los. Esse fenômeno é muito freqüente aqui. Ao longo de quase todo o percurso, o Amu-D ária corre em meio às areias. Tendo uma corrente muito forte e um volume de água irregular, faz e refaz suas margens instáveis e muda de leito sem cessar, de maneira que v êem-se emergir bancos de areia, onde na v éspera ainda havia turbilhões profundos. Para subir a corrente, os barcos andam muito lentos, principalmente em certas épocas do ano; em compensação, descem numa velocidade louca, quase sem o aux ílio das máquinas. Nunca se pode determinar de antem ão, mesmo aproximadamente, o tempo necess ário para ir de um ponto a outro. Por isso, os viajantes que sobem a corrente munem-se, por precaução, de provisões para vários meses. A época do ano, durante a qual naveg ávamos sobre o AmuD ária, era a mais desfavor ável, devido à baixa das águas. Aproximava-se o inverno. A esta ção das chuvas havia terminado, bem como o degelo da neve nas montanhas onde o rio tinha sua nascente. A viagem n ão era particularmente agradável, pois no outono o movimento de passageiros e mercadorias era intenso. A colheita do algodão já estava terminada em toda parte; os frutos e legumes dos oásis f érteis já secaram; os carneiros caracul j á foram escolhidos. Então, a população ribeirinha do Amu-Dária põe-se a viajar pelo rio. Uns voltam para suas aldeias, outros levam queijos para o mercado a fim de troc á-los pelos objetos que lhes ser ão necessários durante seu curto inverno. Outros, ainda, vão em peregrinação ou à casa de seus pais. Por isso, o vapor j á estava repleto quando embarcamos. Havia ali bucarianos, hivintses, teques, persas, afeg ãos e representantes de muitos outros povos da Ásia. Nessa multidão pitoresca e variegada, predominavam os mercadores. Uns transportavam seus produtos, outros iam aprovisionar-se de queijo nas regiões rio-acima. Aqui, um persa, mercador de f rutos secos; lá um armênio, vindo buscar no local tapetes kirguizes; um polaco, encarregado de comprar algodão para as firmas Poznanski; além ainda, um judeu russo em busca de peles de caracul e um caixeiro-viajante lituano com amostras de molduras de papier mack é e seus adornos em metal dourado, ornamentados com pedras artificiais coloridas. Numerosos funcionários e oficiais das tropas fronteiriças, artilheiros e sapadores de Transcaspiana, voltando das licenças ou de missões especiais. Aqui, a mulher de um soldado com a crian ça que amamenta, indo reunir-se ao marido retido por uma prorroga ção de serviço; ali, um bispo em inspe ção, indo confessar os soldados cat ólicos. 228 Havia também senhoras a bordo: eis a esposa de um coronel com sua filha parecendo um poste, que volta de Tachkent, onde foi Jevar o filho que, de l á, devia ir para Orenburg estudar na Escola de Cadetes.
Eis a mulher de um capit ão de cavalaria, que foi a Merv encomendar vestidos nas costureiras do lugar; ali est á a mulher de um major de Ashkhabad, escoltada por um ordenança, que vai visitar o marido, o qual vive sozinho porque a sogra n ão pode viver sem "vida social" e esta não existe na cidade para onde foi destacado. Eis uma senhora gorda com enorme penteado, seguramente edificado com cabelos posti ços, os dedos cheios de anéis e dois broches enormes no peito; est á acompanhada por duas jovens encantadoras que a chamam de "minha tia" - mas pode-se facilmente dar-se conta de que n ão são suas sobrinhas em absoluto. Há ainda, entre os russos, certo n úmero de antigos e futuros altos personagens, indo Deus sabe para onde e Deus sabe por qu ê. E um orfeão completo, com seus violinos e contrabaixos. Desde o primeiro dia, na partida de Tchardjuí, toda essa gente se tinha dividido por si mesma: a intelectualidade de um lado, os burgueses do outro e os camponeses de um terceiro. Tendo-se aproximado por afinidade, sentiram-se dentro em breve entre eles como velhos conhecidos e formaram grupos distintos. Os membros de cada um desses grupos manifestavam-se aos passageiros dos outros grupos, quer muito de cima, com desdém, quer temerosamente, à espera de suas boas graças; mas isto n ão os impedia de se instalarem como lhes agradava e, pouco a pouco, adaptaram-se t ão bem ao meio ambiente, que parecia que nenhum deles houvesse algum dia vivido de outro modo. Ninguém se preocupava, quer com o atraso do navio, quer com a falta de lugar; ao contr ário, todo mundo se habituou tão bem a isso, que a viagem se tornou uma esp écie de piquenique. Quando ficou confirmado que o navio tinha encalhado num banco de areia, pouco a pouco, quase todos os passageiros desceram para a margem. Perto do fim do dia, viu-se surgir sobre as duas margens uma quantidade de tendas improvisadas com materiais ocasionais, acenderam-se fogueiras e, depois de uma noite passada em cantos e dan ças, a maioria pernoitou em terra. No dia seguinte, a vida retomou seu ritmo da v éspera. Uns acendiam o fogo e torravam caf é, outros ferviam água para o chá 229 verde, outros ainda partiam em busca de varas e se preparavam para pescar, circulavam em canoas entre o barco e a margem e interpelavam-se de uma margem à outra. E tudo isso era feito tranqüilamente, sem pressa alguma, pois todos sabiam que, no momento em que se pudesse recomeçar a viagem, o grande sino do navio tocaria uma hora antes da partida e haveria tempo suficiente para regressarem a bordo. No canto do navio, onde nos t ínhamos instalado, veio acampar perto de n ós um velho sarta. Via-se bem que era rico, pois entre suas bagagens havia muitos sacos de dinheiro. Ignoro o que se passa hoje, mas antigamente, em Bucara e nos pa íses vizinhos, não havia moedas de grande valor. Em Bucara, por exemplo, a moeda mais forte era a tianga - pedaço de prata talhado grosseiramente, que valia cerca de meio franco francês. Assim que uma quantia ultrapassava uma centena dessas m oedas, era necess ário transportá-las em sacos especiais, o que era muito inc ômodo. Se a quantia se elevava a milhares de tiangi e se se queria lev á-la consigo, seriam necess árias dezenas de cavalos ou camelos para transportar todo esse dinheiro. Em casos muito raros, empregava-se o seguinte meio: Confiava-se a um judeu de Bucara certa quantidade de tiangi; em troca dava ele um bilhete em nome de algum amigo, igualmente judeu, que vivia no lugar para onde se queria ir e este entregaria a mesma quantidade, da qual tiraria parte por seu "incômodo". Chegados a Kerki, última escala do navio, descemos e tomamos um kobzir 2 alugado de antem ão, para continuar nosso caminho. Já estávamos bastante -longe de Kerki, e t ínhamos parado em Termez - onde o professor Skridlov, ajudado por alguns carregadores sartas, tinha desembarcado para comprar provisões numa aldeia das vizinhan ças - quando outro kobzir, ocupado por cinco sartas, aproximou-se do nosso e abordou-o. Sem dizer nenhuma palavra, puseram-se a descarregar vinte e cinco grandes sacos cheios de tiangi sobre nossa jangada. 2 O kobzir é uma espécie de jangada de madeira fixada sobre burdi úques, isto é, odres cheios de ar.
230 231 Não alcancei de imediato o que se passava. Foi-me necess ário esperar que tivessem terminado a transfer ência para saber, pelo mais velho deles, que tinham viajado no mesmo navio que n ós e depois de nossa partida, tinham visto esses sacos de tiangi em nosso lugar. Convencidos de que os hav íamos esquecido e tendo sabido para onde íamos, tinham resolvido alcan çar-nos e no-los entregar, pois havíamos deixado ali, sem dúvida, por distração. E o sarta acrescentou: "Decidi alcançá-los, pois já me aconteceu a mesma coisa e sei melhor do que ningu ém como se pode sentir pouco à vontade, em país estrangeiro, sem sua provis ão de tiangi. Quanto a mim, não tem a menor importância que chegue uma semana mais tarde à minha aldeia: ser á como se nosso navio tivesse encalhado, uma vez mais, sobre um banco de areia..." Não sabia o que responder. Tudo era imprevisto demais para mim; não podia senão aparentar ter mal compreendido o sarta e esperar a volta do professor. Nesse meio tempo, convidei-o e aos companheiros, para beber vodca. Vendo Skridlov voltar, fui de pronto ao seu encontro, como se fosse ajud á-lo a descarregar as provis ões e contei-lhe toda a história. Decidimos não recusar esse dinheiro, mas pedir o endere ço desse homem, a fim de lhe enviar um pesh-kesb, para agredecer-lhe pelo seu trabalho e, depois, entregar o dinheiro no posto mais pr óximo da fronteira russa, com o nome do vapor e a data da última parada, explicando, tão exatamente quanto poss ível, todos os fatos que pudessem servir para identificar o sarta que viajara conosco e esquecera os sacos cheios de tiangi no navio. Foi o que fizemos. Pouco depois desse evento, que nunca se veria ocorrer entre europeus, chegamos a uma cidade outrora famosa, ligada ao nome de Alexandre da Macedonia, e que, hoje, nada mais é que uma pequena fortaleza afeg ã. Descemos à terra e desempenhando desde ent ão nossos respectivos pap éis, continuamos o caminho a p é. Passando de um vale a outro, entrando em contato com as mais diversas tribos, entramos em cheio no pa ís afridi, numa região considerada o cora ção do Kafiristão. A caminho, fizemos tudo o que se pode esperar de um dervixe e de um se ída: eu cantava em persa versetes religiosos, enquanto o professor me acompanhava, batendo mais ou menos mal, os ritmos apropriados, num tamborim, que lhe servia a seguir para pedir esmola. Não descreverei nosso caminho, nem as aventuras extraordin árias que ocorreram conosco, mas passarei de imediato ao relato de nosso encontro acidental, não longe desse centro afridi, com um homem que deu nova orienta ção à nossa vida interior, de tal maneira que todas as nossas expectativas, nossos projetos e o pr óprio plano de nossa viagem se viram modificados. Deixando os afridis, t ínhamos a intenção de alcançar o Chitral. No primeiro burgo importante que encontramos em nosso caminho, na pra ça do mercado, um anci ão vestido como os nativos aproximouse de mim e disse-me, no mais puro grego: "Nada tema, peço-lhe. Adivinhei inteiramente por acaso que era grego. Não preciso saber quem é nem por que est á aqui. Simplesmente, ser-me-ia agradável conversar com o senhor e respirar o mesmo ar que um compatriota, pois há já cinqüenta anos que nunca mais vi um homem nascido na terra onde eu mesmo nasci." A voz e a express ão dos olhos do anci ão produziram tal impressão em mim, que me senti de pronto penetrado da mesma confiança integral como se ele fosse meu pr óprio pai e respondi-lhe em grego: "N ão é muito cômodo falar aqui. Seria expor-nos, a mim pelo menos, a grande perigo. Cumpre buscar um lugar onde possamos falar livremente, sem temer conseqüências indesej áveis. Talvez algum de n ós encontre uma solução qualquer. Enquanto isso, não posso dizer o quanto estou tamb ém feliz por tê-lo encontrado, pois, à for ça de freqüentar, há tantos meses, homens de sangue estrangeiro, sinto-me totalmente exausto." Sem nada responder, afastou-se, enquanto o professor e eu retom ávamos nossas ocupa ções. No dia seguinte, Outro homem, que vestia o h ábito de uma ordem monástica muito conhecida na Ásia Central, esgueirou uma mensagem em minha m ão, ao dar-me esmola. Assim que nos sentamos no askhan ê, onde havíamos decidido almo çar, li a mensagem. Estava escrita em grego e comunicava-me que o anci ão da véspera também era um monge, um dos "libertados vivos" dessa ordem e que pod íamos ir vê-lo, sem obstáculo, em seu mosteiro, pois ali respeitavam-se todos os homens, qualquer que fosse a nacionalidade,
desde que se consagrassem à busca do Deus Ünico, Criador de todos os povos e de todas as ra ças sem exceção. No dia seguinte, fui a esse mosteiro com o professor e ali fomos recebidos por v ários monges, entre os quais estava o ancião. 232 233 Depois das sauda ções de costume, conduziu-nos, a alguma dist ância dali, sobre a margem escarpada de uma torrente e convidou-nos a compartilhar com ele do alimento que tinha trazido do mosteiro. Depois de sentados disse, enquanto comia: "Aqui, ningu ém nos ouve e ningu ém pode ver-nos e podemos, com toda a tranqüilidade, falar de coração aberto sobre tudo o que quisermos," No curso da conversa, soubemos que era italiano e conhecia o grego, porque sua m ãe, sendo grega, tinha insistido, desde a sua inf ância, para que falasse quase unicamente essa língua. Havia sido outrora, por vocação, missionário cristão. Depois de longa permanência na índia, partira para uma missão no coração do Afeganist ão e certo dia, em que transpunha um colo, tinha sido feito prisioneiro por homens da tribo dos afridis. Passara ent ão de m ão em mão, como escravo e tinha vivido junto a diversas popula ções dessas regi ões, antes de chegar a esse local, sempre ao servi ço de algum amo. Como adquirira, durante sua longa perman ência nessas regi ões isoladas, a reputa ção de homem imparcial, adaptando-se e submetendo-se, com serenidade, a todos os costumes locais estabelecidos h á séculos, seu amo, ao qual havia prestado algum relevante servi ço, tinha-o libertado e até conseguido obter para ele a promessa de que poderia viajar à vontade nessas regi ões, como os detentores de poder do lugar. Nessa altura dos acontecimentos, encontrou por acaso adeptos da confraria universal, que consagravam seus esfor ços ao que tinha sido o sonho de toda a sua vida. Estes o fizeram entrar em sua confraria e, desde ent ão, vivera com eles nesse mosteiro, n ão sentindo mais desejo algum de ir para outro lugar. À medida que ouv íamos seu relato, aumentava nossa confian ça no Padre Giovanni - foi o nome que lhe demos, quando soubemos ter sido padre cat ólico e outrora, em sua pátria, chamarem-no Giovanni - ao ponto de experimentarmos a necessidade de confessar-lhe quem éramos realmente e por que hav íamos adotado aqueles disfarces. Escutou-nos com muita compreens ão, visivelmente desejoso de encorajar-nos em nossos esfor ços. Refletiu um pouco e, depois, com um sorriso cheio de bondade que nunca esquecerei, disse: "Muito bem . . . com a esperança de que os resultados de suas buscas sejam úteis um dia a meus compatriotas, farei tudo aquilo de que for capaz, para ajud á-los a alcançar a meta que se fixaram." Manteve sua palavra e, no mesmo dia, solicitou para n ós, dos superiores, permissão para vivermos no mosteiro, até que nossos projetos se tivessem tornado claros e tiv éssemos decidido o que far íamos, a seguir, nessas paragens. Desde o dia seguinte, instalamo-nos no mosteiro, concedendo-nos, para come çar, um repouso verdadeiramente indispens ável, depois desses longos meses de vida t ão intensa. Vivíamos aí como melhor nos parecia, tendo entrada em toda parte, com exce ção da construção onde vivia o xeque e onde s ó eram admitidos os adeptos que j á tinham alcançado uma libertação preliminar. íamos, quase todos os dias, sentar-nos com o Padre Giovanni, no local onde hav íamos comido quando de nossa primeira visita ao mosteiro e t ínhamos ali longas palestras. O Padre Giovanni falava-nos muito da "vida interior" dos frades e das regras de exist ência quotidiana associadas a essa vida interior. Um dia, tratava-se das numerosas confrarias, estabelecidas e organizadas h á longos s éculos na Ásia e explicou-nos detalhadamente o que era essa Confraria universal, onde cada um podia entrar, qualquer que tivesse sido sua religi ão anterior. Como nos demos conta mais tarde, havia ali, efetivamente, entre os adeptos desse mosteiro, crist ãos, israelitas, muçulmanos, budistas, lamaístas e at é mesmo um chamanista. Estavam todos unidos pelo Deus Verdade. Os frades desse mosteiro tinham conviv ência tão boa que, apesar das tend ências e dos tra ços caracter ísticos
dos representantes dessas diversas religi ões, nunca pod íamos saber, o professor Skridlov e eu, a que religi ão tinha pertencido outrora esse ou aquele frade. O Padre Giovanni falava-nos muito, igualmente, da f é e daquilo para que tendiam os esfor ços de todas essas confrarias. Falava tão bem, de maneira tão compreensível e convincente, da verdade, da f é e da possibilidade de transmutar essa f é em si, que um dia o professor Skridlov, transtornado, não pôde mais conter-se e exclamou num tom cheio de espanto: - Padre Giovanni! Não posso compreender como pode ficar tranq üilamente aqui, em vez de voltar para a Europa, por exemplo, para a sua p átria, na Itália e dar aos homens nem que seja uma mil ésima parte da f é tão penetrante da qual me anima neste momento. - Ora! Meu caro professor, respondeu o Padre Giovanni, bem se vê que o senhor n ão compreende o psiquismo dos homens t ão bem quanto as quest ões de arqueologia! 234 235 "Não se dá f é aos homens. A f é que nasce no homem e nele se desenvolve ativamente n ão é o resultado de um conhecimento autom ático, fundamentado na constata ção da altura, da largura, da espessura, da forma ou do peso de um determinado objeto, como tamb ém não depende de uma percep ção pela vista, pela audi ção, pelo trato, pelo olfato ou pelo paladar - é o resultado da compreens ão. "A compreensão é a essência do que se obt ém a partir de informações intencionalmente adquiridas e de experiências que foram vividas por n ós mesmos. "Por exemplo, se meu pr óprio irmão bem-amado viesse, neste momento, at é a mim e me suplicasse que lhe desse nem que fosse a d écima parte de minha compreens ão e que de todo o meu ser quisesse faz ê-lo, não poderia sequer comunicar-lhe a mil ésima parte dessa compreensão, por mais ardente que fosse o meu desejo, porque n ão existe nele, nem o saber que adquiri, nem as experiências pelas quais me foi dado passar durante a minha vida. "Creia, meu caro professor, é infinitamente mais f ácil fazer passar um camelo pelo fundo de uma agulha, como é dito nas Sagradas Escrituras, que transmitir a outro a compreensão que se constitui em n ós. "Outrora eu também pensava como o Senhor. Tinha at é escolhido ser missionário, a fim de ensinar a todos a f é cristã. "Queria que, pela f é e pelo ensinamento de Jesus Cristo, todo mundo fosse t ão feliz quanto eu. Mas querer inocular a f é por palavras é como se se quisesse saciar alguém com pão, apenas olhando para ele. "A compreensão, como já disse, resulta do conjunto das informações intencionalmente adquiridas e das experiências pessoais. Ao passo que o saber é somente a mem ória automatizada de uma quantidade de palavras aprendidas numa dada seq üência. "Não somente é impossível, apesar de todo o desejo que se tem, transmitir a outrem sua pr ópria compreensão interior, constituída no curso de sua vida gra ças aos fatores de que falei, mas existe até, como recentemente verifiquei com v ários outros frades de nosso mosteiro, uma lei segundo a qual a qualidade do que é percebido, no momento da transmiss ão, depende, tanto para o saber quanto para a compreens ão, da qualidade dos dados constituídos naquele que fala. "Para ajudá-lo a compreender o que acabo de dizer, citarei precisamente, como exemplo, o fato que suscitou em n ós o desejo de empreender pesquisas nesse sentido e nos levou a descobrir essa lei. "Na nossa confraria, há dois frades muito idosos; um se chama Irm ão Akhel, outro Irm ão Seze. "Esses frades tomaram a si, por espont ânea vontade, assumir a obriga ção de visitar periodicamente cada um dos mosteiros de nossa ordem e expor diversos aspectos da ess ência da divindade. "Nossa confraria tem quatro mosteiros: o nosso, um segundo no vale do Pamir, um terceiro no Tibete e o quarto na índia. "Esses frades v ão, pois, continuamente de um mosteiro a outro e pregam pela palavra. "Vêm aqui, uma ou duas vezes por ano e sua chegada à nossa comunidade é considerada um grande acontecimento. "Durante todo o tempo que nos consagram, a alma de cada um experimenta um êxtase e uma plenitude verdadeiramente celestiais. "Os serm ões desses dois frades, santos quase do mesmo grau, e que falam das mesmas verdades, t êm efeitos
muito diferentes sobre todos nós e, em particular, sobre mim. "Quando é o Irmão Seze quem fala, crer-se-ia ouvir o canto dos p ássaros do para íso. Ao escut á-lo pregar, fica-se tocado at é às entranhas e fica-se como que encantado. "Sua palavra flui como o murmúrio de um rio e nada mais se deseja na vida a n ão ser ouvir a voz do Irm ão Seze. "Quando é o Irmão Akhel quem prega, sua palavra tem a ção quase contr ária. Fala mal, com voz indistinta, sem dúvida devido à velhice. Ninguém sabe sua idade. O Irmão Seze também é muito velho; diz-se que tem trezentos anos. Mas é um ancião ainda bem conservado, ao passo que o Irm ão Akhel carrega os sinais evidentes de sua avan çada idade. "Se os serm ões do Irm ão Seze produzem na hora forte impress ão, em compensa ção, essa impressão se desvanece com o tempo e, por fim, não fica absolutamente nada. Quanto à palavra do Irm ão Akhel, de início não causa quase nenhuma impress ão. Mas, com o tempo, a pr ópria essência do seu discurso toma, dia a dia, forma mais definida e penetra totalmente no coração onde fica para sempre. "Tocados por esta constata ção, pusemo-nos todos a buscar por que isso era assim e chegamos à conclusão unãonime de que os serm ões do Irm ão Seze provinham apenas de seu intelecto e, por conseguinte, s ó agiam sobre nosso intelecto, enquanto os do Irm ão Akhel vinham de seu ser e agiam sobre nosso ser. 236 "É, meu caro professor, o saber e a compreens ão são duas coisas totalmente diferentes. S ó a compreensão pode levar ao ser. O saber, por si s ó, tem presença passageira; um novo saber expulsa o antigo e, no fim de contas, é apenas verter o nada dentro do vazio. "Cumpre se esfor çar por compreender; só isso pode levar a Deus. "E, para poder compreender os fen ômenos, conformes ou nãoconformes às leis, que se produzem em torno de nós, é-nos necess ário inicialmente perceber e assimilar conscientemente uma multitude de informa ções relativas, tanto às verdades objetivas, quanto aos eventos reais que ocorreram sobre a terra no passado. Ademais, precisamos levar conscientemente em n ós mesmos todos os resultados de nossas experi ências, voluntárias e involunt árias." Tivemos ainda numerosas conversas com o Padre Giovanni, todas elas inesquec íveis. Esse ser raro fazia levantar-se em nós um monte de perguntas tais como nunca se far ão por si mesmos os homens de hoje; depois do que, dava-lhes respostas. Uma de suas explica ções, que tinha sido provocada na antev éspera de nossa partida do mosteiro por uma pergunta do professor Skridlov, apresenta interesse excepcional por sua profundeza de pensamento, bem como pelo alcance que pode ter para os homens contempor âneos que já atingiram a idade responsável. A pergunta do professor Skridlov broto u do mais profundo de seu ser, quando o Padre Giovanni nos disse, durante a conversa, que antes de poder entrar realmente na esfera de influência e de ação das for ças superiores, era absolutamente indispens ável possuir uma alma e que só se podia adquirir essa alma por experi ências volunt árias e involuntárias, bem como pelo conhecimento, intencionalmente adquirido, de certos eventos reais ocorridos no passado. O Padre acrescentara, em tom grave, que isso só era possível na juventude, enquanto os dados apropriados dispensados pela Grande Natureza ainda n ão tinham sido desperdiçados para fins fant ásticos, que s ó parecem desejáveis, devido às condições anormais da vida dos homens. Ouvindo essas palavras, o professor Skridlov suspirou profundamente e exclamou com desespero: "Ent ão, que fazer agora e como viver daqui por diante? ..." Depois da exclama ção de Skridlov, o Padre Giovanni refletiu um instante em silêncio e depois nos exp ôs as notáveis idéias que tenho a inten ção de reproduzir tão textualmente quanto poss ível. 237 Mas, como se referem à questão da alma, isto é, à terceira parte independente da presença geral do homem, introduzi-las-ei no capítulo intitulado: O corpo divino do homem, suas necessidades conformes às leis e suas possibilidades de manifesta ção. Esse capítulo far á parte da terceira série de minhas obras e completar á os dois cap ítulos dessa s érie que decidi e prometi consagrar, um às indicações e conselhos enunciados pelo vener ável dervixe persa a respeito do corpo, isto é, à primeira parte independentemente
constituída na presença integral do homem, outro às explicações do velho ez-ezunavuran sobre a segunda parte independentemente constitu ída no homem, isto é, seu espírito. O Padre Giovanni, que nos havia tomado sob sua prote ção paternal, fez-nos conhecer outros membros dessa confraria com os quais tivemos freq üentes conversações durante o tempo de nossa estada e que se tornaram para n ós verdadeiros amigos. Vivemos cerca de seis meses nessa comunidade e deixamo-la, n ão porque não nos fosse mais permitido permanecer ali ou porque tivéssemos vontade de partir, mas porque estávamos a tal ponto saturados por todas as impress ões recebidas, que parecia-nos que, por pouco, perder íamos a razão. Nossa permanência nesse mosteiro nos tinha trazido tantas respostas às perguntas psicol ógicas e arqueológicas que nos interessavam, que t ínhamos o sentimento de nada mais ter para buscar, pelo menos durante muito tempo. Abandonamos o itiner ário que nos tínhamos fixado e voltamos para a R ússia mais ou menos pelo mesmo caminho que aquele pelo qual t ínhamos vindo. Voltamos juntos para Tíflis e aí nos separamos. O professor foi para a casa da filha ca çula em Piatigorsk, pela estrada militar georgiana, enquanto eu ia para Alexandr ópolis, para casa de meus pais. Fiquei, então, bastante tempo sem ver Skridlov, mas nos escrev íamos regularmente. Vi-o pela última vez no segundo ano da Guerra Mundial, em Piatigorsk, onde vivia em casa da filha. Nunca esquecerei a última conversa com ele, no cume do monte Bechta ú. Vivia, nessa época, em Essentuki. T ínhamo-nos encontrado um dia em Kislovodsk e me havia proposto, para relembrar os velhos tempos, escalar o monte Bechta ú, nos arredores de Piatigorsk. Uma bela manhã, duas semanas depois desse encontro, partimos a p é, munidos de provis ões, em direção à montanha e empreendemos
*** 241 ANEXO Como indica a nota dos tradutores, o cap ítulo que segue foi acrescentado aos Encontros com Homens Notáveis, com a intenção de es@ @aslfrCulTdaSPeCt ° deSrhedd? da ^ ^ Gurdjieff, ívdtas com as dificuldad a realiza ção de sua obra acarreta. A QUESTÃO MATERIAL Aos 8 de abril de 1924, abria- se, em Nova Iorque, uma filia l do Instituto para o Desenvolvim ento Harmonioso do Homem. Nessa ocasião, vários amigos do Sr. Gurdjieff e alguns de seus alunos franceses organizaram um jantar em sua honra, num restaurante russo. Depois do jantar, a maior parte dos convidados acompanhou o Sr. Gurdjieff à casa de Mrs. R. . ., em seu apartamento da rua 49A conversa se reiniciou em torno do caf é e dos licores que o Dr. B... tinha conseguido encontrar; devia prosseguir at é à hora do caf é da manhã do dia seguinte. O Sr. Gurdjieff falava com o auxílio de seus int érpretes, o Sr. Lilyantz e a Sra Versilovsky e respondia às nossas perguntas, que versavam, quase todas, sobre problemas filosóficos. Durante breve interrupção, enquanto com íamos melancia de Buenos Aires, raridade nessa época do ano, mesmo em Nova Iorque, o Dr. B.. ., proprietário de grande sanat ório em voga e que tinha a reputa ção de ser homem pr ático, virou-se para o Sr. Gurdjieff e perguntou-lhe à queima-roupa: - Poderia o senhor dizer-nos quais os meios de subsist ência de seu Instituto e qual, mais ou menos, seu balanço anual? com grande surpresa para n ós, a resposta do Sr. Gurdjieff tomou a forma de um longo relato. Como essa história revelava aspecto insuspeitado da luta que tivera que
travar ao longo de toda a sua vida, empreendi reconstitu í-la, tão fielmente quanto possível, tal como foi contada nesse dia. Consultei também outros alunos que tinham ouvido o relato, com tanto interesse e tanta aten ção, que se lembravam dele nos m ínimos detalhes. Finalmente, verifiquei meu texto, comparando-o com as anotações de F. ... que sempre acompanhava o Sr. Gurdjieff, durante suas permanências na Am érica, estenografando todas as suas palestras 242 243 e confer ências. Isto para permitir-lhe economizar seu tempo fazendo ler - cada vez que surgia novamente uma mesma pergunta - o que j á fora respondido sobre o assunto. O Sr. Gurdjieff começou assim: - A sua pergunta, muito estimado Doutor, sempre intrigou muita gente ao meu redor. At é hoje, por ém, julgando inútil colocar quem quer que fosse a par do segredo, nunca respondi ou ent ão escapava por meio de um gracejo. Circulam, aliás, a esse respeito, f ábulas de toda esp écie, altamente cômicas, demonstrando a perfeita idiotice de seus inventores e as quais se adornam a cada dia com novos detalhes fant ásticos, à medida que s ão repetidas e comentadas por outros ociosos e parasitas de ambos os sexos, t ão tolos quanto os primeiros. Pretende-se, por exemplo, que recebo dinheiro de algum centro oculto da índia ou que o Instituto é subvencionado por uma confraria de Magos Negros; ou que é mantido pelo lendário pr íncipe georgiano Mukransky; ou ainda que possuo o segredo da pedra filosofal e posso fazer tanto dinheiro quanto quero por processos alqu ímicos; ou mesmo, como freqüentemente se afirmou ultimamente, que os fundos s ão fornecidos pelos bolchevistas - e mil outras tolices do mesmo gênero. E é fato que, at é hoje, mesmo pessoas que me s ão mais chegadas nunca souberam, com exatid ão, de onde vinha o dinheiro necess ário para as despesas colossais que assumo há muitos anos. Não achava útil falar seriamente sobre o aspecto material da exist ência do Instituto, pois não tinha ilusão alguma sobre a possibilidade de aux ílio exterior e considerava qualquer conversa sobre o assunto como simples perda de tempo - uma maneira de verter o nada dentro do vazio. Hoje, por ém, colocado diante dessa pergunta, que tantas vezes me foi feita e j á me importunou bastante, não quero me contentar com um simples gracejo e responderei até com certa franqueza. Aliás, se desta vez sinto o desejo de responder com mais franqueza, creio saber por qu ê - estou mesmo quase certo disto. Depois de ter ficado, pela vontade do Destino (ou, melhor dizendo, pela estupidez dos detentores de poder da R ússia) pobre como um rato de igreja, aventurei-me no país do dólar e, aqui, neste ar saturado pelas vibrações de pessoas peritas na arte de seme á-lo e colhê-lo, farejei, como um c ão de caça de boa raça, caça certa e de primeira classe. Por isso, n ão Vou deixar escapar a ocasi ão. E, como estou sentado entre pessoas forradas de d ólares e me sinto estimulado pela absor ção automática dessas emanações benéficas, espero servir-me da minha resposta para "tosquiar" um pouco alguns de voc ês. Assim, pois, após a excelente ceia oferecida por uma anfitriã com uma hospitalidade t ão rara hoje em dia, aproveitar-me-ei deste ambiente agradável para mobilizar todas as capacidades de atividade de meu c érebro, bem como as da minha "m áquina de falar" e responderei à pergunta que acaba de me ser feita, de maneira a fazer com que cada um de voc ês sinta que o fundo do meu bolso tamb ém é solo muito f értil para a semente dos dólares, com a particularidade de que, ao germinar nele, esta semente adquire a propriedade de conferir àqueles que a semearam a única felicidade objetiva que podem encontrar na vida. Ora, meus caros possuidores de d ólares, que, por enquanto, respeito sem reservas ... Muito antes de passar à realização pr ática de minhas idéias, na época em que elaborava, em todos os detalhes, o programa de meu Instituto, já tinha refletido cuidadosamente sobre a questão material que, embora permanecendo secund ária para mim, nem por isso deixava de ser muito importante. Como já estava prevendo os numerosos obst áculos que encontraria, em meu esfor ço para introduzir na vida as idéias psicológicas sobre as quais devia ser fundado esse
estabelecimento, extraordinário para nosso tempo, sentia a necessidade de garantir a minha independ ência, ao menos do ponto de vista material, pois sabia, por experi ência, que as pessoas ricas nunca se interessam com bastante seriedade por essas id éias, para sustentar uma obra desse gênero; as outras, por mais que desejem, não podem fazer grande coisa nesse sentido, pois um empreendimento desses exige quantias consider áveis. Eis por que, se quisesse realizar meus planos integralmente, serme-ia necess ário resolver a qualquer preço esse aspecto do problema, antes mesmo de passar à realização das tarefas psicol ógicas. Tendo-me, pois, fixado como meta reunir o capital necess ário num prazo estipulado, passei a consagrar muito mais tempo, do que tinha dedicado até então, a ganhar dinheiro. O que estou dizendo desperta, sem d úvida, profunda perplexidade na maioria de voc ês, americanos, considerados atualmente incompar áveis "businessmen". Perguntam-se como me foi poss ível ganhar, tão facilmente, quantias seguramente importantes e devem experimentar a sensação de que se trata, mais ou menos, de fanfarronada de minha parte. É claro que os compreendo: isso pode parecer muito estranho. 244 245 Para que possam explicar, para voc ês mesmos, ainda que aproximadamente, como pude faz ê-lo e de onde me vinha tal audácia, cumpre precisar que, antes do per íodo em questão, tinha-me ocupado com freq üência de assuntos comerciais ou financeiros e j á era considerado, por todos aqueles que entravam em contato comigo, como um tem ível "businessman". Quero falar-lhes um pouco, entretanto, sobre a educa ção que recebi, na minha inf ância e que me parece hoje, com a experiência e a autoridade que adquiri, corresponder bem de perto ao ideal que se formou em mim a esse respeito. Foi gra ças a ela, com efeito, que pude outrora - e ainda hoje posso, em caso de necessidade - levar a melhor sobre qualquer homem de neg ócios e talvez at é sobre vocês, "businessmen" americanos. Ser á, aliás, totalmente oportuno dar-lhes agora certos detalhes dessa educa ção, já que nos reunimos para festejar a abertura de uma instituição, cuja meta fundamental é o desenvolvimento harmonioso do homem, institui ção que se apoia em dados experimentais, acumulados no curso de longos anos e cuidadosamente verificados por mim, um homem que sacrificou quase toda a sua vida pessoal ao estudo do problema vital da educa ção, tornado hoje tão angustiante e que formado, ele pr óprio, por homens de consciência normalmente desenvolvida, p ôde adquirir a capacidade, fossem quais fossem as circunst âncias, de se mostrar sempre imparcial. Das influências intencionais, que se exerceram sobre mim, a mais forte foi a de meu pai, que tinha uma maneira bem dele de compreender a educa ção. Teria podido escrever um livro sobre os m étodos educativos, diretos e indiretos, que decorriam de sua original concepção. Assim que apareceram em mim os sinais de uma compreens ão mais ou menos justa, empreendeu, entre outras coisas, contar-me histórias fantásticas de todo tipo, que sempre acabavam por uma s érie de aventuras, cujo her ói era certo carpinteiro coxo, chamado Mustafa, que sabia fazer tudo e at é fabricara certo dia uma poltrona voadora. Por esse meio e outros artif ícios do mesmo gênero, meu pai fazia crescer em mim - ao mesmo tempo que vivo desejo de me parecer com esse h ábil carpinteiro - a necessidade irresistível de fabricar sempre algo de novo. Minhas brincadeiras de criança, mesmo as mais comuns, eram embelezadas pela imagina ção que eu tinha de ser alguém que nunca fazia as coisas como todo mundo, mas de maneira toda especial. A tendência, ainda confusa, que meu pai havia incutido em minha natureza, desde a minha mais tenra idade, deveria se precisar muito mais devido a ter tido, como primeiro mestre, em minha juventude, um homem cujos pontos de vista e m étodos de educação correspondiam, sob certos aspectos, a essa disposi ção, de maneira que, sem cessar de cumprir com minhas obriga ções escolares, exercitava-me em diversos of ícios sob sua dire ção pessoal. A principal caracter ística do m étodo educacional de meu primeiro mestre era a seguinte: t ão pronto observava que eu come çava a familiarizar-me com um of ício e a
gostar dele, obrigava-me a abandoná-lo por outro. Como muito mais tarde compreendi, sua meta não era fazer com que aprendesse assim toda esp écie de of ícios e sim que aprendesse a desenvolver em mim o poder de superar as dificuldades que qualquer trabalho novo apresentava. E, de fato, desde essa época, qualquer trabalho passou a ter sentido e interesse para mim, n ão por si mesmo, mas unicamente na medida em que n ão o conhecia nem sabia como fazê-lo. Assim, devido aos seus pontos de vista originais, em mat éria de educação, esses dois homens, que tinham conscientemente - ou at é inconscientemente, pouco importa - tomado a si preparar-me para a idade responsável, fizeram germinar em minha natureza uma propriedade subjetiva que se desenvolveu, pouco a pouco, no decorrer de minha vida e acabou por se fixar sob a forma de uma tend ência constante de mudar freqüentemente de ocupação. Adquiri assim, mesmo que fosse por automatismo, aptid ão, ao mesmo tempo teórica e pr ática, para exercer of ícios ou com ércios variados e minha compreens ão também cresceu, à medida que meu horizonte se alargava nos diversos campos do saber. Acrescentarei at é que, se sou hoje reconhecido, em diversos pa íses, como um homem de compet ência verdadeira em numerosos campos, devo-o em parte a essa primeira educação. De fato, essa educa ção correta desenvolveu em mim, desde a mais tenra idade, engenhosidade, amplitude de visão e, sobretudo, um bom senso que me permitiram, a partir de todas as informações que colhi, intencional ou acidentalmente, no curso ulterior de minha vida, captar a pr ópria essência de cada ci ência, em vez de armazenar esse amontoado inconsistente que, nos homens contempor âneos, é o resultado do emprego generalizado do monstruoso m étodo de aprender decorando. 246 247 Assim, pois, muito cedo na vida, j á estava bem armado e capaz de ganhar facilmente o dinheiro necess ário para fazer face às necessidades imediatas. Como, entretanto, muito jovem ainda, me tinha interessado por fenômenos que punham em quest ão o sentido e a raz ão de ser da vida, e dedicava toda a aten ção e todo o tempo à compreensão desses problemas, não fazia dessa capacidade de ganhar dinheiro a meta única da existência - como fazem os homens contempor âneos e, em particular, voc ês americanos, nos quais todos os esfor ços "conscientes" ou instintivos est ão voltados para essa meta - e s ó recorria a ela, na medida em que me era indispens ável para manter minha existência ordinária e cumprir as tarefas que me fixara. Oriundo de pais que n ão eram ricos e não estando, pois, ao abrigo da necessidade, foi-me necess ário, freqüentemente, ganhar esse dinheiro, realmente desprez ível e maléfico, para fazer frente às despesas mais urgentes. Ganhar dinheiro, por ém, nunca me tomava muito tempo, pois a engenhos ídade e o bom senso desenvolvidos por essa educação tornavam-me, em qualquer situação, uma raposa das mais refinadas. Como exemplo t ípico dessa engenhosidade, contarei um epis ódio de minha vida e direi como, para ganhar uma simples aposta, abri, um dia, de improviso, um ateliê realmente original. Os detalhes dessa hist ória provavelmente prolongar ão meu relato; penso, por ém, que graças a este licor maravilhoso - maravilhoso, seja dito de passagem, porque foi fabricado, não nas condi ções habituais, mas sobre uma velha barca ça da costa americana - isto n ão lhes parecer á demasiado aborrecido. Foi exatamente antes da última grande expedi ção através do Pamir e da índia, organizada pela sociedade que havíamos formado, sob o nome de Confraria dos Buscadores da Verdade e da qual eu fazia parte desde o primeiro dia. Uns dois anos antes da partida dessa expedi ção, os membros da confraria decidiram tomar, como ponto de encontro, a cidade de Tchardju í, na Transcaspiana. Todos aqueles que contavam participar da expedi ção deviam encontrar-se ali, a 2 de janeiro de 1900 e de l á, primeiramente, subir o rio Amu-Dária. Ainda me sobrava bastante tempo antes dessa dat a, mas n ão o suficiente para empreender uma longa viagem. Estava então em Alexandr ópolís, onde costumava passar, de vez em quando, uns poucos dias com meus pais. Depois de ter ficado com eles o tempo que lhes
reservara, em vez de ir para longe, como costumava fazer, fiquei no Cáucaso, morando ora em Alexandr ópolis, ora em Baku. Nessa época, ia freqüentemente a Baku, pois existia ent ão, nessa cidade, uma sociedade, composta principalmente de persas, que estudava a magia antiga e da qual fui, durante longo tempo, membro correspondente. Os eventos que est ão na origem do episódio, que me proponho contar-lhes, passaram-se precisamente em Baku. Num domingo, tinha ido ao bazar. Confesso que sempre tive um fraco pelos passeios nos bazares orientais e, quando passava por um lugar onde havia um, n ão deixava de ir até lá. Gostava muito de remexer nos bricabraques, onde esperava sempre descobrir alguma raridade. Comprara, nesse dia, um bordado antigo e ia sair do mercado de retalhos, quando vi uma mulher jovem, bem vestida, mas com ar muito triste, que vendia alguma coisa. Tudo indicava não ser bricabraquista profissional e, sem d úvida liquidava sua mercadoria devido à necessidade. Aproximei-me e vi que vendia um fonógrafo Edison. A expressão de tristeza dos olhos dessa mulher despertou piedade em mim; por isso, embora tivesse muito pouco dinheiro, comprei - sem dar-me tempo para refletir - essa m áquina inútil, com todos os acess órios. Transportei esse fardo at é o caravançar á onde vivia, abri a caixa e encontrei ali numerosos cilindros, na maioria quebrados. Entre os que permaneciam intactos, s ó alguns estavam gravados, os outros eram virgens. Fiquei ainda alguns dias em Baku. Meu dinheiro estava acabando e era-me necess ário pensar em reconstituir minhas reservas. Numa sombria manhã, sentara-me sobre o leito, antes de me vestir e refletia sobre o que devia fazer, quando meu olhar pousou, por acaso, sobre o fon ógrafo. Veio-me a idéia de tirar partido dele e, de pronto, elaborei um plano de ação. Liquidei todos os meus neg ócios e tomei, no mesmo dia, o primeiro vapor para a Transcaspiana, onde cheguei vinte e quatro horas mais tarde. Uma vez na cidade de Krasnovodsk, confiei a meu fon ógrafo o cuidado de fazer dinheiro para mim. 248 249 Cumpre dizer que o fon ógrafo era ainda desconhecido nessa regi ão: era a primeira vez que se via ali tal maravilha. Disse que havia alguns cilindros virgens junto com o fon ógrafo. Consegui, bastante depressa, encontrar um teque, músico ambulante, a quem fiz cantar e tocar v árias árias favoritas do povo do local e, nos outros cilindros, eu mesmo contei algumas anedotas picantes em turcomano. Acrescentei, a seguir, dois fones aos qu atro já existentes no aparelho e fui, com o fon ógrafo, para o bazar, onde abri minha butique original. Estabeleci o preço de cinco copeques por fone e poder ão imaginar o resultado, se lhes disser que, durante toda a semana e especialmente nos dias de feira, era raro que houvesse um fone livre, nem por um instante. Todas essas pe ças de cinco copeques formavam, seguramente, no fim do dia, receita superior à da empresa mais importante do lugar. Depois de Krasnovodsk, fui para Kizyl-Arvat, onde v árias vezes vieram buscar-me, com minha m áquina, para me levarem à casa de ricos turcomanos, nas auls * vizinhas. *Aldeias, Para esse gênero de "tournées", recebia grande quantidade de tiangi. Uma vez, ofertaram-me at é dois excelentes tapetes teques. Tendo acumulado, uma vez mais, boa quantia, tomei o trem com a inten ção de continuar esse com ércio em Ashkhabad, mas, durante o caminho, encontrei, por acaso, um dos membros de nossa confraria, com quem fiz uma aposta, que p ôs bruscamente fim à minha carreira fonogr áfica. A companheira que acabava de reencontrar era a inimitável e intr épida Vitvitskaia, que andava sempre vestida de homem. Participara de todas as nossas expedi ções perigosas nos confins da Ásia, África, Austr ália e ilhas vizinhas. Devia participar também da expedição projetada. Dispondo ainda de alguns meses pela frente, decidira ir de Varsóvia a Andijan para visitar a irmã, casada com um
representante da firma Poznanski e repousar um pouco, enquanto esperava a data do encontro em Tchardju í. Tivemos longas conversas durante a viagem e, entre outras coisas, falei-lhe de meus últimos of ícios. Não me lembro como, nem a prop ósito de que começou a discuss ão; o fato é que terminou com uma aposta, de acordo com a qual eu deveria ganhar certa quantia, em condi ções muito precisas e num lapso de tempo bem determinado. Ela pr ópria, aliás, levou a aposta t ão a sério, que decidiu ficar em minha companhia, para ver como me arranjaria e até resolveu me ajudar. Em vez de prosseguir viagem para Andijan, acompanhou-me at é Ashkhabad. Devo confessar que a árdua tarefa, que acabava de assumir, inflamou-me de um desejo ardente de ser bem sucedido a qualquer pre ço e até de ultrapassar as condi ções fixadas. Elaborei, de pronto, um plano geral de ação e, para começar, redigi o seguinte an úncio: "O ATELIÉ AMBULANTE UNIVERSAL DE PASSAGEM POR AQUI PERMANECERA POR MUITO POUCO TEMPO "Apressem-se em fazer encomendas e em trazer tudo que tiverem para consertar ou transformar. "Consertamos m áquinas de costura, m áquinas de escrever, bicicletas, gramofones, caixas de m úsica, aparelhos elétricos, fotogr áficos, médicos e outros; lâmpadas a gás e a petr óleo; relógios; qualquer instrumento musical: acorde ões, violões, violinos, taris, etc. "Consertamos fechaduras e armas de toda esp écie. "Consertamos, transformamos, estofamos e envernizamos quaisquer m óveis, tanto em nosso ateli ê como a domicílio. "Consertamos, envernizamos e afinamos qualquer piano, de arm ário ou de cauda e harmonics. "Encarregamo-nos das instalações e consertos de ilumina ção elétrica, de campainhas e telefones. "Remendamos e recuperamos guarda-chuvas. "Consertamos brinquedos de criança, bonecas e artigos de borracha de todo tipo. "Lavamos, limpamos e remendamos tapetes, xales, reposteiros, peles, etc. "Tiramos qualquer mancha. "Restauramos quadros, porcelanas e qualquer objeto antigo. "O ateliê possui uma oficina galvanopl ástica bem equipada para dourar, pratear, bronzear, niquelar e oxidar. 250 "Estanhamos tudo. Estanhagem e niquelagem de samovares em 24 horas. "Aceitamos encomendas de bordados de toda esp écie, em pontos de cruz, cheio e cadeia, em plumas, p érolas e lã. "Executamos qualquer pirogravura, em madeira, couro ou tecido. "O ateliê aceita encomendas para qualquer modelo em gesso ou alabastro: estatuetas, animais dom ésticos e selvagens, frutos, etc. ... e se encarrega também das máscaras mortuárias. "Executamos encomendas de flores artificiais em cera, miolo de p ão, veludo e papel colorido, para buqu ês, guirlandas, chapéus de senhora e botoeiras de gar çons de honra. "Caligrafamos, imprimimos, ilustramos e iluminamos cartões de visita ou de anivers ário e convites. "Aceitamos encomendas de espartilhos e de bra çadeiras e transformamos os velhos em novos. "Confeccionamos chap éus de senhora, segundo os últimos modelos de Paris. "Etc., etc." Assim que cheguei em Ashkhabad, encontrei alojam ento e obtive da pol ícia permissão para imprimir e distribuir os anúncios. Desde o dia seguinte, aluguei um local para servir de ateliê, no centro da cidade, composto de uma loja grande, de frente para a rua e de duas pequenas ao fundo; havia ainda uma esp écie de galpão e um pequeno pátio. Depois de haver comprado as ferramentas indispens áveis, instalado às pressas uma pilha de Bunsen e transformado algumas bacias velhas em cubas de galvanoplastia, pendurei sobre a entrada uma grande tabuleta, na qual se via em letras vermelhas sobre brim branco: ATELIÉ AMERICANO AMBULANTE POR POUCO TEMPO AQUI FABRICA, TRANSFORMA E CONSERTA TUDO. No dia seguinte, quando os an úncios foram prontos, colei-os em grande n úmero sobre os muros e distribuímos o resto ao público, com o auxílio de um garoto. E foi então que tudo come çou.
251 Desde o primeiro dia, foi um desfile de ashkhabadianos, com coisas para consertar. Senhor! O que não trouxeram! Muitas coisas que nunca tinha visto e das quais nunca tinha ouvido falar! Realmente de tudo, desde aparelhos para arrancar cabelos brancos e m áquinas para tirar caro ços de cerejas para geléia até moinhos de sulfato de cobre para pulverizar as zonas de transpira ção do corpo e ferros especiais para passar perucas. Cumpre conhecer, ainda que um pouco, as condi ções locais, para melhor visualizar esse quadro. Essa parte da Transcaspiana e a regi ão limítrofe do Turquestão só começaram a se povoar, h á algumas décadas, e surgiram novas cidades, principalmente nas vizinhan ças das antigas. De maneira que hoje, quase todas as cidades se comp õem de duas partes: a cidade velha asi ática, como é chamada, e a cidade russa, situadas lado a lado, vivendo cada uma sua pr ópria vida independente. A população dessas cidades novas inclui arm ênios, judeus, geórgios, persas, mas sobretudo russos, na maioria funcionários ou antigos militares, que já tinham servido antes na região. Graças à riqueza natural do país e à honestidade da população, ainda preservada da civiliza ção contempor ânea, esses rec ém-chegados enriqueceram rapidamente; mas, na ausência de qualquer influência cultural de parte de seus dirigentes, que eram tamb ém novos-ricos ignorantes, permaneceram t ão incultos quanto antes de emigrar. Assim, pois, nada havia sido previsto para desenvolver suas faculdades nem, é claro, seus conhecimentos técnicos, com vistas a um comercio j á florescente ao qual deviam sua fortuna. A civilização européia, que se propagava em todos os outros lugares, mal tocara esses territ órios e os únicos fragmentos que dela recebiam, atrav és dos jornais e das revistas, só lhes chegavam sob forma desfigurada, devido aos exageros fant ásticos dos redatores que, em geral e particularmente na Rússia nessa época, eram incapazes de ter compreensão, mesmo aproximada, das informa ções que lhes eram transmitidas. De acordo com a particularidade pr ópria a todos os novos-ricos, de imitar tudo que est á em voga - no caso, tudo que era europeu - os ashkhabadianos iam buscar suas noções sobre cultura e moda nos livros e jornais russos, que delas tamb ém só davam imagem deformada, 252 espécie de caricatura ao mesmo tempo cômica e contristante para um observador imparcial. Assim, em plena prosperidade materia l, mas sem traço algum de cultura, mesmo elementar, os habitantes dali, como crianças, se tinham posto a brincar de gente civilizada. Em parte alguma se seguia tanto a moda. Em todos os campos, cada um se cria obrigado, em qualquer circunstância, a mostrar que estava "em dia". Por isso se apressavam em comprar ou em fazer vir, de toda parte, as mais recentes inven ções e, em geral, tudo o que convinha à vida de um cavalheiro culto ou, pelo menos, do que se podia saber sobre isso pela propaganda dos jornais. Conhecendo esse ponto fraco, os comerciantes estrangeiros, principalmente os alem ães, impingiam-lhes grande quantidade de mercadorias inutiliz áveis ou que se deterioravam muito depressa. A farsa ia tão longe que se teria podido encontrar, entre os artigos anunciados, uma m áquina especial para acender f ósforos comuns. Como as coisas que faziam vir, j á eram, na maioria, desde o in ício, quinquilharias ou ent ão se estragavam desde o primeiro dia e, como não havia no lugar nenhum ateliê técnico, cada fam ília empilhava montes de objetos avariados. Existia outra razão pela qual havia tantas coisas para consertar. Nessa época, no Oriente e principalmente na Rússia Asiática, tinha-se o costume de nunca se separar do que havia sido adquirido e de nunca vend ê-lo, mesmo quando os objetos n ão tinham mais utilidade alguma ou estavam caindo aos peda ços. Não haveria, aliás, ninguém para compr á-los. Ademais, o hábito de guardar velharias, como lembran ça de alguma coisa ou de algu ém, era muito desenvolvido. E, em cada casa, os s ótãos e os galpões estavam cheios de um bricabraque espantoso, de inutilidades que passavam de pai a filho. Por isso, quando foi anunciado que um ateli ê consertava qualquer coisa, que diabo n ão trouxeram, na
esperança de lessuscitar e tornar utilizáveis coisas que, durante muito tempo, tinham ficado sem emprego, como a poltrona do vov ô ou os óculos da vovó, a balalaica do bisavô, o relógio da bisavó, a frasqueira oferecida pelo padrinho, a colcha sob a qual tinha dormido o bispo quando os visitara, a Estrela com que o x á da Pérsia tinha presenteado seu pai, etc., etc. Eu consertava tudo isso. 253 Nem uma só vez aconteceu-me recusar alguma coisa ou devolv ê-la, sem tê-la consertado. Mesmo que me oferecessem uma quantia ínfima, que não justificava o tempo gasto no conserto, fazia-o, desde que o objeto fosse novo para mim, pois estava interessado, não pelo lucro e sim pela dificuldade de execu ção. Além dos objetos realmente avariados e inutiliz áveis, traziam-me uma quantidade de artigos novos que n ão funcionavam, pela simples razão de que os propriet ários eram incapazes de se servir deles, devido à ignor ância e à falta de noções técnicas mesmo elementares, em resumo, à sua estupidez. Nessa época, as últimas invenções - como m áquinas de costura, bicicletas, m áquinas de escrever espalhavam-se por toda parte com fren ética velocidade. Encomendavam e compravam, com entusiasmo, essas novidades; mas, por falta de conhecimentos t écnicos e não havendo especialista algum na regi ão, ao menor tropeço, punham-nas de lado. Vou citar-lhes alguns dos exemplos caracter ísticos dessa ignor ância e ingenuidade, das quais confesso ter deliberadamente tirado proveito, sem experimentar o m ínimo remorso de consci ência. Lembro-me, como se fosse hoje, de que um gordo rica ço armênio, acompanhado da filha, veio ver-me um dia, bufando e suando, arrastando uma m áquina de costura para que eu consertasse. Contou-me que a comprara recentemente para o enxoval da filha, durante uma estada na feira de Nijni-Novgorod. No início, disse, a m áquina era uma "verdadeira maravilha": não se podia admir á-la o bastante, de t ão depressa e bem que ela cosia. Quando, de repente, sem qu ê nem por quê, tinha-se posto, com grande decep ção de sua parte, a andar de "marcha à r é". Examinei a m áquina e estava em perfeito estado. Em certas máquinas de costura, há, como sabem, ao lado da alavanca que regula o ponto, outra alavanca que serve para mudar a direção, isto é, deslocando-se essa alavanca, inverte-se o sentido da costura. Evidentemente, algu ém tinha tocado a alavanca, sem se dar conta, de modo que a fazenda, em vez de ser puxada para frente, era agora puxada para tr ás. Percebi de imediato que, para consertar a m áquina, bastava recolocar a alavanca no lugar. Teria podido, é claro, arranjar tudo num 254 255 instante mas, constatando que tratava com um refinado tratante arm ênio e tomando conhecimento, por sua conversa, que comerciava com peles de carneiro caracul, n ão tinha dúvida de que - pois conhecia muito bem essa esp écie de indivíduos - para encher os bolsos, lograra mais de um desses teques ou bucarianos, que s ão confiantes como crianças. Resolvi, ent ão, dar-lhe o troco. Contei-lhe, pois, uma história embalante sobre a natureza da avaria da m áquina, pretendendo que tinha que trocar várias engrenagens para recoloc á-la em funcionamento e não deixei de desfiar um ros ário de injúrias a esses canalhas fabricantes de hoje. Em resumo, subtraí-lhe doze rublos e cinq üenta copeques, prometendo-lhe consertar a m áquina dentro de tr ês dias. Assim que transp ôs a soleira da porta, é claro, estava j á pronta, numerada e arrumada entre os artigos terminados. Outro exemplo. Um oficial entrou certo dia no ateliê e disse-me, com ar muito importante: "Vai ao escritório do Comandante da Região e dize ao empregado principal que lhe ordeno - seja dito de passagem, os oficiais russos, dessa época, só abriam a boca para dar ordens - que te mostre as m áquinas de escrever. Quando as tiveres visto, far-me- ás saber o que não está funcionando." E depois partiu como havia chegado. Seu tom imperioso e fora de propósito me surpreendera e, para dizer tudo, exasperara. Decidi ir, primeiro para
saber com que esp écie de sujeito estava tratando e talvez, também, para encontrar o meio de lhe pregar uma peça ao meu modo - o que, devo confess á-lo, sempre me divertia, pois sabia, sob um ar de ingenuidade e inocência, punir a impudência de maneira muito venenosa. Fui, nesse mesmo dia, ao seu escrit ório, apresentei-me ao secretário-chefe e expus-lhe o motivo da visita. Soube, de pronto, que fora o pr óprio ajudante que me procurara. Enquanto eu examinava as m áquinas de escrever, em n úmero de tr ês, esse secret ário tagarela - que j á se havia tornado amigo meu, graças a um cigarro e uma hist ória picante sobre a vida dos oficiais - explicou-me o que segue: Essas m áquinas, recebidas recentemente de S ão Petersburgo, de início funcionaram perfeitamente; dentro em pouco, por ém, a primeira, depois a segunda e por fim a terceira se tinham avariado da mesma maneira: a fita cessara de desenrolar. Cada um por sua vez, o ajudante, o intendente e outros tinham tentado recoloc á-las em funcionamento, mas, por mais que fizessem, ninguém conseguira. E há tr ês dias que se escrevia novamente à mão todos os pap éis. Enquanto ele falava, eu tinha examinado as m áquinas e j á compreendera de que se tratava. Não sei qual o sistema das m áquinas de escrever de hoje em dia, mas antigamente, em algumas delas, a fita desenrolava-se sob a a ção de uma mola colocada por tr ás da máquina, numa caixa especial e à qual se dava corda torcendo-se a pr ópria caixa. Como a fita avançava com lentidão, a mola, bastante forte, levava muito tempo para se distender; mesmo assim, era necess ário enrolá-la de vez em quando. Era evidente que, na entrega das m áquinas, as molas tinham sido totalmente enroladas e, depois, com o tempo, se tinham distendido precisando simplesmente ser enroladas novamente. Mas esse sistema de enrolamento, sem chave nem manivela, era dif ícil de adivinhar para quem n ão estava ao corrente. É claro que nada disse aos secret ários, mas aceitei seu convite para jantar e, depois de haver comido às custas do governo uma boa sopa de repolho com kacba, voltei para casa na minha bicicleta, um veloc ípede antediluviano, que não tinha mais pneus. Na mesma noite, o ajudante voltou para ver-me e, com seu tom importante, perguntou-me: "E ent ão, achaste? Por que essas m áquinas completamente novas n ão funcionam?" Há muito tempo tinha-me tornado uma velha raposa na arte de representar um papel. Dei, pois, a meu rosto a expressão que os verdadeiros atores denominam timidez respeitosa e defer ência confusa e pus-me, em termos empolados, hauridos nas diversas obras t écnicas russas, a gabar a perfei ção desse sistema de m áquinas sob todos os aspectos, salvo num ponto, no qual era infelizmente indispens ável uma mudança verdadeiramente s éria e complicada. Quanto ao trabalho a executar, avaliei-o, mais ou menos, pela quarta parte do pre ço das pr óprias m áquinas. No dia seguinte, as m áquinas, em perfeito estado, foram solenemente trazidas ao meu ateli ê por todo um pelotão, chefiado pelo ajudante. Recebi-as imediatamente e anunciei, com a maior seriedade, que, de modo algum, poderiam ficar prontas antes de dez dias. Muito 256 257 aborrecido, rogou-me o ajudante que as reparasse o mais r ápido possível, pois o trabalho no escritório estava quase completamente parado. Depois de muito discutir, acabei por consentir em trabalhar à noite e entregar-lhe a primeira m áquina dois dias depois; mas, em compensação, pedi-lhe que ordenasse aos seus homens que me trouxessem sobras do rancho do regimento para os tr ês bacorinhos que acabara de comprar e de instalar no meu pequeno p átio. Dois dias depois, a m áquina estava "pronta" e prometi as outras para o fim da semana. Além dos agradecimentos e dos dezoito rublos que recebi por cada conserto, os soldados trouxeram todos os dias comida pafa minhas "crian ças de peito" e cuidaram delas, durante os tr ês meses que passei em Ashkhabad, ao fim dos quais meus leit ões tinham-se tornado porcos bem gordos. Evidentemente, expliquei aos secret ários o que devia ser feito, quando a mola ficasse distendida; n ão pareceram, no entanto, compreender em que consistira meu "conserto." Histórias desse gênero repetiram-se mais tarde em Merv, para onde havia transferido meu ateli ê e onde prossegui com o mesmo trabalho durante dois meses.
Um dia, o inspetor do liceu - ou do col égio local, não me lembro mais - veio pedir-me que consertasse uma máquina elétrica destinada a experiências de f ísica. Tratava-se dessa m áquina banal, dita "est ática", que, ao girar, emite centelhas e que, não sei por que raz ão, cada escola considerava, nessa época, um dever possuir. Em suas pretensas li ções de f ísica, os professores pomposamente e, como se celebrassem um rito, faziam, com o auxílio dessa m áquina, "demonstrações", que consistiam simplesmente em fazer girar os discos e em for çar os meninos a tocar, cada um por sua vez, as esferas das garrafas de Ley de; as caretas de dor que apareciam em seus rostos provocaram ent ão acessos de riso intermináveis, que esses pedagogos qualificavam de "excelentes fatores de digest ão". O inspetor havia encomendado essa m áquina e a tinha recebido, desmontada, da firma alem ã Siemens &Halske, em São Petersburgo. com o auxílio dos professores seus colegas, havia ajustado suas diversas pe ças segundo as instru ções do prospecto, mas n ão tinha conseguido, apesar de todos esses esfor ços conjugados, que emitisse uma só centelha. Por fim, foi obrigado a recorrer ao meu ateliê. Vi, de imediato, que tudo estava em ordem, com exce ção dos dois discos que formavam a parte principal da máquina e cujas respectivas posi ções não estavam exatamente corretas. O parafuso do eixo devia ser um pouco desapertado e um dos discos ligeiramente deslocado: era questão de minuto. Obriguei, entretanto, esse vener ável pedagogo, que ensinava aos outros o que ele pr óprio não sabia, a voltar quatro vezes ao meu ateli ê e a pagar dez rublos e setenta copeques, para recarregar as garrafas de Leyde - que disso n ão tinham necessidade alguma. . . Casos semelhantes repetiram-se quase quotidianamente, enquanto durou meu ateli ê. Sempre prestativo com relação aos pobres, não considerava pecado aproveitar-me da parvoíce daqueles que, sem m érito algum e em virtude apenas de uma posi ção devida ao acaso, representavam a intelligentsia do lugar, enquanto, sob o ponto de vista da verdadeira inteligência, estavam longe de valer a popula ção que lhes estava subordinada. No entanto, o neg ócio mais original e, ao mesmo tempo mais proveitoso, foi um negócio de espartilhos. Nessa estação, em Paris, a moda dos espartilhos mudara bruscamente; depois de usados muito longos, eram usados agora muito curtos. Esse novo capricho da moda j á era conhecido ali, gra ças aos jornais; os espartilhos em si, por ém, ainda não estavam à venda nessas regi ões demasiado afastadas e muitas mulheres traziam-me seus velhos espartilhos, para saber se n ão seria possível reform á-los de acordo com a moda. Esse negócio de espartilhos foi para mim simplesmente ouro em barras. E eis por qu ê: Um dia, tendo que encurtar e alargar o espartilho de uma gorda judia, cuja cintura estava em desenvolvimento progressivo, tive necessidade de certo n úmero de barbatanas. Depois de muitas buscas, encontrando-me, uma vez mais, numa loja onde n ão as havia, o caixeiro aconselhou-me a comprar simplesmente um espartilho fora de moda que, dizia, seu patr ão deixaria, sem dúvida, pelo preço das barbatanas. Dirigi-me, pois, ao patr ão. Enquanto regateava, outro plano amadureceu na minha cabe ça e comprei-lhe não um espartilho, como pretendia, mas todos os que havia na loja ou seja, sessenta e cinco velhos espartilhos fora de moda, à razão de vinte copeques cada, em vez do pre ço habitual de quatro ou cinco rublos. Depois do que apressei-me em comprar espartilhos 258 259 em todas as lojas de Ashkhabad, pagando-os at é mais baratos ainda, pois todos estavam contentes em ceder, por um bom preço um estoque de artigos inutilizáveis. Não parei aí e, no dia seguinte, encarreguei o pai de meus aprendizes, um velho judeu, com instru ções para comprar espartilhos fora de moda, de percorrer todas as cidades situadas sobre a via f érrea da Ásia Central, enquanto eu, armado de simples tenazes e tesouras, punha-me a fabricar espartilhos na moda. Isso se fazia muito simplesmente: tra çava primeiro uma linha, com um lápis, ao longo das partes a serem cortadas, deixando uma grande margem para cima e uma bem pequena para baixo e, depois, quebrava as barbatanas com as tenazes e cortava ao longo da linha tracejada. Depois do que, as jovens que trabalhavam comigo sob a direção de Vitvitskaia, descosiam a fita de arremate, cortavam-na e recosiam-na em volta dos espartilhos
encurtados. Nada mais restava sen ão enfiar a metade dos antigos cordões e o espartilho mignon, à última moda de Paris, estava pronto para ser posto à venda. Fabricávamos, assim, uma centena de espartilhos por dia. O mais engraçado é que os comerciantes, depois de terem sabido da metamorfose de seus velhos espartilhos, viram-se obrigados, diante do vulto dos pedidos, a compr á-los de mim, rangendo os dentes, não por cinco ou quinze copeques, mas ao pre ço de tr ês rublos e cinq üenta cada. Imaginem só: comprei e revendi assim, nas cidades de Krasnovodsk, Kizyl-Arvat, Ashkhabad, Merv, Tchardju í, Bucara, Samarcanda e Tachkent, mais de seis mil espartilhos. Tal sucesso, fora de qualquer propor ção com a escala da empresa, n ão provinha apenas da ignor ância e da ingenuidade da popula ção variegada do lugar, nem mesmo de minha engenhosidade ou de minha capacidade de adapta ção às condições de toda espécie, mas sobretudo de minha atitude impiedosa para com certas fraquezas, presentes em mim como em qualquer ser humano, cujo conjunto constitui o que se chama pregui ça. É interessante notar que, durante esse per íodo produziu-se, no funcionamento de minha presen ça geral, um processo totalmente incompreens ível, do ponto de vista da ciência ordinária e que devia repetir-se mais de uma vez durante a minha vida. Esse processo traduzia-se por uma regulagem especial do tempo de carga e descarga da energia, que me permitia não dormir ou quase n ão dormir, durante várias semanas e às vezes até, durante meses inteiros, enquanto dava provas de uma atividade que, longe de diminuir, ao contr ário se acelerava. A última vez que tal estado reapareceu, fiquei t ão interessado pelo fenômeno, que ele n ão tardou em adquirir, para as partes conscientes de minha presen ça, importância igual à de certas perguntas que trazia em mim, desde muito tempo e cuja solu ção se tornara a meta e a raz ão de ser de minha exist ência. Tenho até a intenção, quando tiver acertado as quest ões relativas ao programa fundamental do Instituto e, novamente, tiver a possibilidade de consagrar a metade do meu tempo a interesses subjetivos, de p ôr, no primeiro plano de minhas preocupações, a elucida ção desse problema. Essa particularidade, ainda incompreens ível para mim, do funcionamento geral de meu organismo, nessa época de minha vida, aparecer á claramente na situação que Vou descrever. Durante o dia todo, o fluxo de clientes era incessante; cada um, mais tagarela que o outro, trazia-me seus velhos objetos quebrados ou vinha buscar os consertados, de modo que eu passava a maior parte do dia recebendo e entregando encomendas. Aproveitava os raros momentos de folga para ir comprar, às pressas, às peças sobressalentes e os diversos materiais necess ários. Por isso, o trabalho era feito principalmente à noite. Durante todo o tempo que durou o ateli ê, foi-me necess ário dividir meu tempo desta maneira: o dia para os clientes, a noite toda para o trabalho. Devo dizer que, no caso, fui consideravelmente ajudado por Vitvitskaia, que muito rapidamente se tinha tornado perita em trabalhos de toda espécie e sabia, às mil maravilhas, cobrir guarda-chuvas, transformar espartilhos e chap éus de senhora e, sobretudo, confeccionar flores artificiais. Além disso, os dois filhos de meu velho judeu se ocupavam, o mais velho em lim par e polir os artigos a serem galvanizados, o mais mo ço em fazer compras e acender e manter o fogo da forja. Pr óximo ao final, fui ainda ajudado, e nada mal, por seis mocinhas pertencentes às famílias patriarcais do lugar, cujos pais, desejosos de lhes assegurar uma "educa ção completa", as tinham enviado ao meu ateliê universal, para se aperfeiçoarem em trabalhos delicados de agulha. 260 261 Mesmo no início, quando éramos apenas quatro, tinha-se a impress ão, vendo a quantidade de trabalho executado, que no fundo do ateli ê atarefavam-se várias dezenas de especialistas competentes. Em cima da porta que dava para o fundo do ateli ê, tinha-se, é claro, colocado um cartaz indicando ser estritamente proibida a entrada do público. Em Ashkhabad, meu ateliê durou tr ês meses, durante os quais ganhei cerca de sete mil e quinhentos rublos. Sabem o que representava essa quantia ent ão? Como termo de comparação, devem lembrar-se de que o sal ário de um funcionário médio era de trinta e tr ês rublos e trinta e tr ês copeques por m ês e, com essa soma, n ão só um
solteiro, mas até uma família inteira, com uma ninhada de filhos, conseguia viver. O soldo de um oficial superior, que era de quarenta e cinco a cinq üenta rublos, era tido como muito importante e o sonho de todo jovem era chegar a ganhar o mesmo. A carne custava ent ão seis copeques por libra, o p ão de dois a tr ês copeques, uvas de boa qualidade dois copeques. À razão de cem copeques por rublo, sete mil e quinhentos rublos representavam verdadeira fortuna. Durante esse per íodo, apresentou-se repentinamente a ocasi ão de ganhar muito mais, tratando de negócios fora de meu trabalho. Mas a aposta inclu ía a condição de não empregar outros meios senão os trabalhos manuais e as pequenas transa ções comerciais deles decorrentes inevitavelmente, de vez em quando, e nem uma s ó vez sucumbi à tentação A aposta já fora vencida h á muito tempo e eu tinha ganho em Ashkhabad quatro vezes mais dinheiro do que fora combinado e, no entanto, decidi prosseguir com o neg ócio em outsa cidade. Estava quase tudo liquidado. Vitvitskaia j á estava em casa de sua irm ã e aprontava-me para partir tr ês dias mais tarde para Merv. Sem dúvida, depois do que acabo de lhes contar, j á têm uma idéia suficiente do que quis fazer-lhes compreender por este relato, isto é, que esse tra ço específico do psiquismo geral do homem, do qual voc ês americanos fizeram um ideal e chamam fibra comercial, tamb ém existe e muito mais poderoso (com tantas fibras que voc ês não possuem), entre os povos que vivem noutros continentes. Entretanto, para dar um quadro mais completo de minhas atividades nessa época, falar-lhes-ei ainda de uma astuciosa combinação de negócio que realizei, pouco antes de minha partida de Ashkhabad. Devo dizer-lhes que, pouco depois da abertura de meu ateli ê, tinha igualmente anunciado que comprava objetos velhos de qualquer esp écie. Fazia isso por dois motivos. Primeiro, as reparações necessitam freqüentemente de peças novas; ora, eu tinha muito depressa esgotado as reservas das lojas, bem como dos bricabraques dos mercados, onde encontrava objetos deteriorados, cujas pe ças utilizáveis recuperava. Segundo, podia esperar, como foi repetidamente o caso, descobrir entre os artigos que me traziam ou que comprava a domic ílio, alguma coisa rara ou preciosa. Em resumo, tinha-me tornado tamb ém um belchior. Num dos últimos dias antes de minha partida, encontrei no bazar um georgiano que conhecera, na regi ão de T íflis, onde ele era arrendatário do restaurante de uma das estações da via f érrea transcaucasiana e que, atualmente, era fornecedor titular do exército. Propôs-me comprar-lhe algumas camas velhas de ferro que tinha em excesso. Na mesma noite, fui à sua casa. Descemos ao por ão para ver as camas, mas havia ali um cheiro t ão terr ível, que era imposs ível resistir-lhe. Tendo-as examinado às pressas, fugi de imediato e foi s ó na rua que falamos do pre ço. Soube então que o cheiro provinha de vinte toneis de arenques, comprados por ele em Astrac ã, para o cassino dos oficiais. Por ocasião da entrega dos dois primeiros toneis, o recipiend ário, ao abri-los, achou que os arenques estavam podres e recusou-os; o georgiano, temendo perder a sua reputação, não ousou tentar vend ê-los noutro lugar; levou-os para casa, armazenou-os provisoriamente no por ão e acabou esquecendo-os. S ó agora, depois de os arenques empestearem sua casa h á tr ês meses com o mau cheiro, decidira livrar-se deles o mais depressa possível. O que o vexava é que havia perdido, n ão só o dinheiro investido nos arenques, mas ainda teria que pagar para levarem-nos para o depósito de lixo, se n ão quisesse que a comiss ão sanitária soubesse do caso e lhe infligisse uma multa. Enquanto ele falava comigo, meu pensamento, como sempre em tais casos, trabalhava ativamente e perguntava-me se não seria possível encontrar uma combinação qualquer para tirar partido desse negócio. Pus-me a calcular: "Há vinte toneis de arenques podres e tudo isso tem que ser jogado fora. Mas os toneis vazios valem pelo menos um rublo cada. 262 263
Se encontrasse ao menos um meio de fazer com que os esvaziassem de gra ça ... Do contr ário, o transporte vai me custar quase o pre ço dos toneis ... Que fazer?" De repente, veio-me a idéia de que os arenques, principalmente arenques podres, podiam muito bem servir de adubo. E pensei: "Acho que encontrarei um jardineiro que ficar á contente de encontrar um bom adubo de gra ça e que, em compensa ção, esvaziar á os toneis, lav á-los-á e os trar á de volta ao ateli ê. Depois de hav ê-los defumado, vendê-los-ei muito depressa, pois os toneis são muito procurados, de modo que, em menos de meia hora, terei ganho uns vinte rublosE todo mundo ficar á contente, até o georgiano que teve preju ízo com sua mercadoria, mas que pelo menos n ão ter á que pagar para transport á-la." Tendo refletido assim, disse ao georgiano: "Se diminuir um pouco mais o pre ço das camas, conseguirei que o transporte dos toneis n ão lhe custe nada." Aceitou e prometi livr á-lo, desde o dia seguinte, dessa fonte de infec ção. Uma vez pagas as camas, carreguei-as sobre minha charrete, bem como um tonel de arenques que queria mostrar a um jardineiro ou a um toneleiro. Chegados ao ateliê, descarregamos e arrumamos tudo no galp ão. Era a hora em que o velho judeu, pai de meus aprendizes, tinha o h ábito de vir conversar e, às vezes, até, de ajudar os filhos. Tinha-me sentado no pequeno p átio e fumava um cigarro, quando, de repente, veio-me a idéia de dar arenques a meus porcos e, sem nada lhe explicar, pedi ao anci ão que me ajudasse a abrir o tonel. Retirada a tampa, meu velho judeu se curvou para aspirar o cheiro; de pronto seu rosto se alegrou e exclamou: "Ora esta! eis o que chamo de arenques! Nunca vi iguais, desde que estou neste bendito pa ís!" Eu estava perplexo. Tendo vivido a maior parte do tempo no Oriente, onde n ão se comem arenques, nunca podia dizer, quando acontecia com ê-los, se eram bons ou maus; para mim cheiravam sempre mal. Nada mais tinha, pois, a fazer do que me fiar no julgamento do velho judeu, tanto mais que, antes de ser a çougueiro, ele tivera em sua terra natal, Rostov, uma lojinha onde vendia peixe. Entretanto, não me deixava convencer de imediato e pergunteilhe se n ão se enganava quanto à qualidade dos arenques. Sentindo-se ferido, replicou: "Eu, me enganar, nunca! S ão arenques maravilhosos, verdadeiros ..." (N ão me lembro mais de como os chamou.) Tendo ainda algumas d úvidas, dissê-lhe que, por acaso, comprara um estoque inteiro e que seria bom press ágio para nós, desde a desembalagem, se a mercadoria conseguisse um comprador: era sinal de que a venda seria boa. Precis ávamos, pois, sem perda de tempo, vender nem que fossem apenas alguns arenques. E perguntei-lhe se n ão poderia se encarregar de fazê-lo imediatamente. Queria verificar, assim, se o que o velho havia dito era correto e agir em conseqüência. Perto do meu ateliê moravam muitos judeus, na maioria donos de lojas. J á era noite e as lojas se fechavam. Bem em frente à minha casa vivia certo Friedmann, relojoeiro. Chamaram-no em primeiro lugar. Comprou imediatamente uma dezena, pagando-os sem regatear a quinze copeques o par. O seguinte foi o dono da farm ácia da esquina, que comprou uns cinq üenta sem hesitar. Pelo ar contente dessas pessoas, compreendi que meu velho judeu tinha raz ão. No dia seguinte, ao clarear do dia, aluguei umas charretes e transportei todos os toneis para minha casa, com exce ção dos dois que tinham sido abertos e cujo conte údo estava realmente estragado e de onde provinha o terr ível cheiro. Esses, fi-los jogar no lixo. Os dezoito toneis restantes continham arenques, n ão s ó bons, mas de qualidade excepcional. Evidentemente, nem o recipiendário do cassino dos oficiais, nem o mercador georgiano, natural de T íflis, onde não se gosta de arenques, entendiam mais que eu; pelo cheiro peculiar dos arenques, pensaram que estavam podres e o georgiano tinha-se resignado a perd ê-los. Em resumo, no espa ço de tr ês dias, com o aux ílio do velho judeu, a quem pagava meio copeque por arenque, com o que se mostrava muito satisfeito, os arenques foram vendidos por atacado e a varejo. Tendo, entrementes, liquidado todos os meus neg ócios, convidei o georgiano para o grande jantar de despedida que dei na v éspera de minha partida. À mesa, contei-lhe como tinha corrido o negócio e, tirando dinheiro, ofereci partilhar meu lucro com ele; mas o georgiano, atendo-se a um princípio
comercial muito respeitado, quer na Transcaucasia quer na Transcaspiana, recusou minha oferta, declarando que, ao ceder-me a mercadoria, estava convencido de que nada valia e que, se tinha ocorrido de outro modo, era simplesmente um golpe de sorte para mim e de falta de sorte para ele e ele acharia desonesto aproveitar-se de minha bondade. 264 265 Mais ainda: no dia seguinte, quando parti para Merv, encontrei em minha bagagem, no vag ão, um odre de vinho enviado por esse georgiano. Vários anos se passaram, cheios de aventuras, riscos e imprevistos, durante os quais trabalhei, sem descanso, para reunir todas as condi ções necessárias à realização da meta fundamental da minha vida. Embora as numerosas perip écias desse per íodo apresentem grande interesse, ao mesmo tempo psicol ógico e pr ático, passá-las-ei sob silêncio, para não me afastar da quest ão que voc ês levantaram esta noite, tanto mais que tenho a inten ção de escrever todo um livro sobre esses anos de buscas. Direi apenas que, através de todos esses eventos, eu adquirira grande experi ência e grande seguran ça; eis por que, ao orientar todas as minhas faculdades para a tarefa de ganhar dinheiro, a fim de ter sempre um capital à minha disposição - embora, por si mesma, essa aspiração fundamental dos homens nunca me tenha interessado, - dediquei-me a ela de tal modo, que os resultados obtidos teriam podido suscitar a inveja de seus melhores peritos em "dollar-business". Lancei-me em toda esp écie de empreendimentos, às vezes muito importantes: fiz contratos, com particulares ou com o Estado, para o fornecimento de material e a construção de linhas f érreas ou de estradas; abri diversas lojas; tive restaurantes, cinemas; levantei explora ções agr ícolas; garanti a passagem de gado, proveniente de diversos países, notadamente de Kachg ária, para a Rússia; ocupei-me com indústria pesqueira e com po ços de petr óleo dirigindo às vezes v ários negócios ao mesmo tempo. Mas a profissão que mais preferia era o com ércio de tapetes e de antig üidades que, ao mesmo tempo que muito rendosa, deixava-me livre escolha de minha residência e das minhas horas de trabalho. Finalmente, depois de quatro ou cinco anos de intenso trabalho, liquidei todos esses neg ócios e, quando vim para Moscou, no final de 1913, pretendendo passar à realização pr ática do que considerava uma tarefa sagrada, tinha acumulado a quantia de um milhão e meio de rublos, sem contar duas cole ções de valor inestim ável, uma de tapetes raros e outra de porcelanas e de biombos chineses. Parecia que esse capital ia libertar-me da preocupação material de meu empreendimento e assegurar-me suficiente independência para pôr em pr ática as idéias que já haviam tomado forma em meu consciente e deviam servir de base ao meu Instituto: tratava-se de criar em torno de mim condi ções, nas quais o homem seria continuamente lembrado do sentido e da meta de sua existência, por um atrito inevitável entre sua consciência e a manifesta ção autom ática de sua natureza. Foi cerca de um ano antes da Guerra Mundial. Em Moscou e, um pouco mais tarde, em S ão Petersburgo, fiz uma série de confer ências, que atraiu numerosos intelectuais e homens de ciência, e o c írculo daqueles que se interessavam por minhas id éias não tardou em se ampliar. De conformidade com meu plano geral, lancei ent ão os primeiros marcos com vistas à criação de meu Instituto. Prosseguindo na prepara ção do que era necess ário para dar vida ao meu projeto, adquiri uma propriedade, encomendei, em vários países europeus, aquilo que n ão podia encontrar no local, comprei o material e os instrumentos indispens áveis. Encarei até a possibilidade de imprimir nosso pr óprio jornal. No momento em que esse trabalho de organiza ção estava no auge, estourou a guerra e fui obrigado a suspendê-lo, com a esperança de retomar tudo, assim que a situação política se esclarecesse. A metade de meu capital j á fora absorvida por essa organiza ção preliminar. A guerra ganhava terreno e, com o a esperança de uma paz pr óxima se desvanecia cada vez mais, fui constrangido a deixar provisoriamente Moscou e a ir para o C áucaso esperar o fim das hostilidades. Apesar dos acontecimentos pol íticos que absorviam todos os esp íritos, o interesse pelo meu trabalho aumentava, em certas esferas da sociedade. Em Essentuki, onde me tinha fixado, come çaram a chegar, das cidades vizinhas e at é de
Petrogrado e de Moscou, pessoas realmente desejosas de conhecer minhas idéias. Fui, pois, obrigado a organizar-me no lugar, sem esperar minha volta a Moscou. As coisas em breve tomaram tal rumo, que era um problema n ão só trabalhar como existir; nunca se estava seguro de estar ainda vivo no dia seguinte. A região de Mineralnyia Vody, onde viv íamos, era agora o centro da guerra civil e est ávamos literalmente entre dois fogos. As cidades passavam de m ão em m ão: hoje para os bolchevistas, amanh ã para os cossacos ... e depois para o Exército branco ou para algum novo partido. 266 267 Às vezes, ao se acordar pela manh ã, ignorava-se sob que autoridade ia-se ficar durante o dia e que pol ítica seria preciso observar ao sair à rua. Foi um dos per íodos de mais forte tensão nervosa que conheci. Tinha, n ão só que me virar para conseguir os mantimentos de primeira necessidade, que se tinham tornado quase impossíveis de achar, mas tamb ém que me preocupar com a exist ência de uma centena de pessoas das quais assumira a responsabilidade. A situação de uns vinte de meus alunos, com idade para serem chamados às fileiras, inquietava-me então particularmente- Jovens e velhos eram mobilizados diariamente, quer pelos bolchevistas, quer pelo Ex ército branco. Essa tens ão constante não podia durar mais tempo e era necessário a qualquer preço encontrar uma saída. Certa noite em que o tiroteio era mais forte que de costume e que, dos quartos vizinhos vinham-me ecos das conversas ansiosas de meus companheiros, pus-me a refletir com muita seriedade. Enquanto examinava os meios de sair desse impasse, lembrei-me, por associa ção, de uma senten ça do sábio Mullah Nassr Eddin, tornada, há muito tempo, para mim uma espécie de idéia fixa e que recomendava sempre se esfor çar, quaisquer que fossem as circunst âncias da vida, por "conciliar o útil para os outros e o agradável para si mesmo". Ora, interessava-me, há vários anos, por um problema arqueológico e precisava, para elucidar alguns detalhes, levantar, de modo tão preciso quanto poss ível, o local e a disposição desses monumentos muito antigos, conhecidos sob o nome de dolmens, encontrados, hoje em dia, em quase todos os continentes, em certos lugares bem definidos. Sabia que existiam em diferentes pontos do C áucaso e conhecia at é a posição aproximada de alguns deles, levantados pela ci ência oficial. Por isso, embora nunca tivesse tido tempo suficiente para explorar sistematicamente esses lugares, n ão deixava passar uma única ocasião de ir visitá-los, durante minhas freqüentes viagens a essas montanhas - quando a persegui ção de minha meta principal me dava um momento de descanso. Em decorr ência de investiga ções pessoais, adquirira a convic ção de que, nas regi ões situadas entre as margens orientais do mar Negro e a cadeia do C áucaso, notadamente nas zonas pr óximas a certos colos, que ainda n ão tinha transposto, erigiam-se isolados ou em pequenos grupos, dolmens de um tipo particular, que apresentavam o maior interesse para mim. Desse modo, cortado do resto do mundo e detido em minha atividade, devido à situação que se criara, resolvi utilizar o tempo de que dispunha organizando, nessa regi ão do Cáucaso, uma expedi ção, que teria por objeto a busca e o estudo dos dolmens - o que, por outro lado, teria a vantagem de nos colocar ao abrigo, a mim e àqueles que havia tomado a meu cargo. Desde o dia seguinte, pus-me em campo, com todas as minhas for ças e todos os meus recursos, para tentar obter, com o aux ílio de algumas pessoas que me eram mais ou menos devotadas e com rela ções entre os detentores de poder do momento, a autoriza ção oficial para organizar uma expedição científica nas montanhas do C áucaso. com a permissão em mãos, procurei obter, por toda esp écie de arranjos, o que era necess ário para uma viagem desse gênero. Escolhi, entre os alunos que tinham vindo ao meu encontro, aqueles que, ficando no distrito de Mineralnyia Vody, corriam o maior risco, garanti a subsistência dos outros e depois nos dividimos em dois grupos que deviam se encontrar num lugar combinado. O primeiro grupo, com doze pessoas, partia de Piatigorsk; o segundo, no qual me encontrava, com umas vinte pessoas, partia de Essentuki.
Oficialmente, esses dois grupos eram considerados totalmente independentes e nada tendo em comum entre si. Sem conhecer verdadeiramente as condi ções então reinantes na região é quase impossível, a menos que se seja dotado de imagina ção muito f értil, visualizar o que queria dizer organizar, em tempos como aqueles, uma expedi ção científica e, ainda mais, oficial. Propunha-me, ao deixar Essentuki, ir pelas regi ões habitadas at é o monte Induk, situado n ão longe de Tuaps ê e começar minhas pesquisas em direção ao sudeste, ao longo de uma linha distante de quarenta a cem quil ômetros da margem do mar Negro. Num momento em que ninguém teria sonhado viajar por via f érrea, mesmo só e sem bagagens, por causa dos incessantes movimentos de tropas, consegui obter das autoridades bolchevistas, ao pre ço de enormes dificuldades, dois vag ões. Tendo, a muito custo, empilhado nesses vag ões, vinte e uma pessoas, mais dois cavalos, duas mulas e tr ês carriolas, sem contar todo o material comprado para a expedi ção, nossas tendas, armas e provis ões, partimos. 268 Viajamos de trem até Maikop; mas lá encontramos a via f érrea destruída recentemente por um novo bando de rebeldes que se intitulavam os Verdes e nossa expedi ção teve que prosseguir a p é e em carriola, não mais na direção de Tuaps ê, mas obliqüando rumo ao passo do rio Bielaia. Para alcançar, através das zonas habitadas, o local onde come çavam as regiões selvagens, transpusemos, pelo menos cinco vezes, as posi ções ocupadas ora pelos bolchevistas, ora pelo Exército branco. Ao me lembrar de todas essas dificuld ades, agora que n ão são mais que uma lembrança longínqua, não me posso impedir de experimentar um sentimento de real satisfa ção por ter sido capaz de sobrepuj á-las tão afortunadamente. Era como se, durante todo esse per íodo, se realizassem milagres em nosso favor. A violenta epidemia de fanatism o e ódio que, em torno de n ós, se tinha apoderado de todos, nem sequer nos atingiu: poder-se-ia dizer que eu e meus companheiros goz ávamos de uma proteção sobrenatural. Nossa atitude para com cada um dos cl ãs era imparcial, como se n ão f ôssemos desse mundo; a deles para conosco era sempre a mesma: consideravam-nos como totalmente neutros - o que, de resto, era verdade. Rodeado de animais ferozes, prestes a se estra çalhar pelo mínimo butim, caminhava eu no meio do caos, aberta e tranqüilamente, sem nada esconder, sem recorrer a subterf úgio algum; e, embora a "pilhagem por requisição" atingisse ent ão ao paroxismo, nada nos foi confiscado, nem mesmo os dois barris de álcool que, em razão da penúria geral, excitavam a cobiça de todos. Ao contar-lhe isto hoje, um sentimento de justiça, ligado à minha compreensão do psiquismo dos homens submetidos a tais acontecimentos, obriga-me a conceder aqui um pensamento benevolo àqueles dentre os bolchevistas e volunt ários do Exército branco, sem dúvida quase todos mortos, cujas boas disposi ções para com minhas atividades favoreceram, de maneira inconsciente e puramente instintiva, é claro, o sucesso de meu perigoso empreendimento. De fato, se pude escapar desse "inferno", no pleno sentido da palavra, n ão o devo unicamente a essa habilidade de detectar e utilizar as m ínimas variações nas fraquezas habituais dos homens, quando em poder de uma psicose desse g ênero - pois, nas condi ções em que se desenrolavam os acontecimentos, cheios de desvios inesperados, 269 teria ficado sem condições, mesmo exercitando noite e dia ativa vigil ância, de tudo prever e de tomar as medidas necess árias. Na minha opinião, se saí incólume, foi porque, na presença geral desses homens, presos embora de um estado psíquico onde desaparece qualquer tra ço de bom senso, o instinto, que permite a qualquer ser humano distinguir objetivamente o bem do mal, n ão estava totalmente ausente, de modo que pressentiam, em minhas atividades, o germe vivo desse impulso sagrado que, s ó ele, é capaz de dar à humanidade a verdadeira felicidade e, desde então, secundavam o melhor que podiam o processo de realização do que havia empreendido h á já muito tempo antes dessa guerra. De qualquer modo, durante todos os nossos contatos, tanto com os bolchevistas quanto com o Ex ército branco,
não encontramos uma situa ção sequer para a qual eu n ão tivesse achado uma sa ída. Acrescentarei, aliás, que se a vida dos homens tivesse que decorrer um dia de modo normal e especialistas empreendessem ent ão pesquisas sobre acontecimentos desse gênero, os diversos documentos que me foram entregues pelos dois partidos contr ários para proteger meus interesses e meus bens constituiriam para eles testemunho dos mais instrutivos sobre os fatos extraordin ários que podem ocorrer durante as psicoses de massa. Entre esses numerosos documentos h á um, por exemplo, onde se pode ler o seguinte: O detentor deste, o cidad ão Gurdjieff, está autorizado a portar em qualquer lugar um revólver de calibre ... n úmero E disto damos f é e assinamos e apusemos nosso carimbo. O Presidente dos Deputados-Soldados e Trabalhadores ROUKHADZÉ Exarado em .... em Essentuki Secretário: CHANDAROVSKY E no verso do mesmo papel: O denominado Gurdjieff está autorizado a portar um revólver com o número indicado no verso. Disto damos f é, assinamos e apusemos nosso carimbo. Pelo general Denikine: GENERAL HEYMANN Chefe do Secretariado: GENERAL DAVIDOVITCH NACHINSKY @Exarado em Maikop, em ... 270 Depois de consider áveis esfor ços para superar uma quantidade de obst áculos imprevistos, atravessamos aldeias cossacas em ru ínas e chegamos, finalmente, a Khamichki, última localidade antes da zona desabitada no C áucaso. Além desse ponto, não havia mais caminhos praticáveis. Tendo comprado, a toda pressa, todas as provis ões que ainda era poss ível encontrar, abandonamos nossas carriolas ao seu destino, carregamos parte de nossas coisas sobre cavalos e mulas e, levando o resto pessoalmente, prosseguimos caminho. Transposta a primeira montanha, respiramos por fim livremente. Era a í, por ém, que nos esperavam as verdadeiras dificuldades. No que diz respeito à pr ópria expedição, de Khamichki at é Sotchi pelo passo do rio Bielaia, no cora ção da cadeia do Cáucaso, expedição que durou dois meses e foi acompanhada de aventuras de todo extraordin árias, nada direi, pois, se minhas informa ções são exatas, nossa evasão do centro do inferno, através dos colos quase intransponíveis dessas montanhas selvagens, bem como a busca dos dolmens e de todas as riquezas vis íveis ou escondidas nessa regi ão, já foram descritas por certos membros dessa singular "expedi ção científica", em textos que, sem dúvida, ser ão publicados em breve. Havia, com efeito, no grupo que se constitu íra em torno de mim, técnicos e especialistas de diversos ramos da ciência, plenamente qualificados para levar a cabo nosso empreendimento e que me ajudaram, de maneira muito eficaz, a resolver o problema dos dolmens. O que ressalta das impressões recebidas durante a viagem é que as regiões situadas entre Khamichki e Sotchi, sobretudo desde o passo at é o mar, mereceriam realmente o nome enf ático de Paraíso terrestre freqüentemente atribuído a outras partes do C áucaso pelos membros da pretensa intelligentsia. Embora essas regi ões se prestem perfeitamente para a agricultura e a explora ção termal e estejam pouco afastadas dos centros populacionais j á existentes, permanecem, não se sabe por que, inabitadas, apesar da necessidade crescente de espa ço e de recursos. Eram povoadas outrora pelos tcherkesses que emigraram em massa para a Turquia h á quarenta anos; desde esse tempo, essas terras ficaram incultas e nenhum p é humano as pisou. Encontram-se ali antigos campos, outrora maravilhosamente trabalhados e magn íficos pomares que, embora não mais cultivados e invadidos por ervas selvagens, d ão ainda tantos frutos que poderiam alimentar milhares de pessoas. 271 Algumas semanas mais tarde, extenuados de cansa ço e tendo esgotado nossas provis ões, atingimos a cidade de Sotchi, às margens do Mar Negro. Ao longo do que foi, para n ós, um verdadeiro calvário, alguns dos membros da nossa expedi ção, longe de se mostrarem capazes de fazer face à situação, tinham-se comportado
de maneira que n ão respondia em nada à grandeza de nossa meta; decidi, pois, separar-me deles e prosseguir caminho com os outros at é Tíflis, onde reinava relativa ordem sob a autoridade dos democratas menchevistas de nacionalidade georgiana. Quatro anos haviam decorrido desde o in ício da organização do Instituto em Moscou. com o tempo, o dinheiro tinha-se esgotado pouco a pouco, tanto mais que, pr óximo ao fim, os fundos serviam, não só para a pr ópria obra, mas para novos ônus não previstos nos primeiros cálculos. O fato é que os acontecimentos da R ússia e todas as convuls ões devidas à guerra mundial e à guerra civil fizeram com que as pessoas sa íssem de seus trilhos: tudo estava tão mesclado e t ão convulsionado, que os ricos e privilegiados de ontem eram os famintos de hoje. Era a situação de muitos daqueles que tinham abandonado tudo para seguir minhas idéias e se tinham tornado meu pr óximo por sua sinceridade e por seu comportamento. Tinha agora que ajudar cerca de duzentas pessoas a viver. Quase todos os meus parentes encontravam-se em situa ção ainda pior e eu devia, n ão s ó ajudá-los financeiramente, mas abrigá-los com toda a família, pois a maioria habitava na Transcaucasia, em localidades totalmente destru ídas, quer pela guerra civil, quer pelos turcos. Para que possam visualizar o horror desse estado de coisas, descrever-lhes-ei uma das numerosas cenas que vivi. Habitava eu em Essentuki que, nesse momento, estava ainda relativamente calma. Tinha então que manter duas casas, onde meus pr óximos e os adeptos de minhas id éias viviam em comum, uma em Essentuki, com oitenta e cinco pessoas e a outra em Piatigorsk, com cerca de sessenta. O custo de vida aumentava a cada dia. Tornava-se cada vez mais dif ícil satisfazer às necessidades dessas comunidades e eu s ó a muito custo conseguia equilibrar as finanças. Numa manhã chuvosa, sentado diante de minha janela, estava refletindo nos meios de sair deste atoleiro, quando vi parar em minha 272 porta duas curiosas carruagens, de onde emergiram lentamente sombras informes. Na minha surpresa, n ão compreendi de imediato do que se tratava; mas, pouco a pouco, distingui pessoas, ou melhor, esqueletos animados, dos quais apenas os olhos ardentes pareciam viver. Estavam em farrapos, os p és descalços, cobertos de feridas e de chagas. Havia vinte e oito ao todo, dos quais onze eram crian ças de um a nove anos. Acontecia que eram membros de m inha família, entre os quais minha irm ã com seis filhos pequenos. Viviam em Alexandr ópolis, onde dois meses antes havia come çado a ofensiva turca. Como, nessa época, nem os correios nem o tel égrafo funcionavam mais, eles tinham ficado cortados de tudo e só souberam da aproximação dos turcos, quando estes j á estavam às portas da cidade. Essa not ícia provocara indescritível pânico. Podem visualizar o que devem sentir, em casos como esses, homens com os nervos j á por demais abalados, ao saberem, com certeza plena, que as hordas do inimigo, muito superiores em for ça e armas, se mostrar ão impiedosas e massacrar ão, sem discriminação, não só os homens, mas as mulheres, os velhos e as crian ças - o que, ali, está na ordem das coisas. Foi, em meio a esse p ânico, que meus parentes, avisados como tantos outros, no último minuto, fugiram sem perder tempo em levar fosse o que fosse. Apavorados, tinham-se lan çado ao acaso numa falsa dire ção. E só ao fim de certo tempo, quando o cansa ço os for çou a parar, deram-se conta do erro e tomaram a direção de Tíflis. Foi-lhes necess ário andar durante vinte longos dias, atrav és das montanhas, por caminhos freq üentemente impraticáveis, às vezes at é rastejando, sofrendo frio e fome, para alcançar Tíflis apenas vivos. Aí, souberam que eu vivia em Essentuki. N ão estando ainda interrompidas as comunica ções entre as duas cidades, encontraram meios, com o aux ílio de alguns amigos, de alugar duas carriolas e arrastaram-se, ao longo da estrada militar georgiana, para virem aportar em minha casa, num estado de desvalimento que os tornava irreconhec íveis. Imaginem minha situação, ao ver esse quadro. Apesar das dificuldades do momento, sentia-me o único a poder e a dever abrigá-los, vesti-los, cuidar deles, em resumo, recuper á-los.
273 O que me foi necess ário gastar com eles veio somar-se às despesas da expedi ção e às quantias que deixara para prover às necessidades imediatas daqueles que tinham ficado no distrito de Mineralnyia Vody. Por isso, quando cheguei a T íflis com minha numerosa escolta, minhas reservas j á estavam esgotadas - e entendo por isso, n ão só o dinheiro l íquido, mas todos os objetos de valor que minha mulher e eu t ínhamos podido trazer até então conosco, em nossos cont ínuos deslocamentos. Quanto aos outros objetos preciosos que levara tantos anos para reunir, s ó alguns tinham podido ser vendidos, desde o início desses acontecimentos ca óticos, por alguns de meus alunos vindos das duas capitais para reunirem-se a mim em Essentuki com as fam ílias; mas todo o resto, inclusive as duas cole ções únicas de que já falei, ficara em Moscou e em Petrogrado e eu n ão sabia nem mesmo o que fora feito delas. Desde o segundo dia de minha chegada a T íflis, não tinha mais nenhum tost ão no bolso e tive que pedir à mulher de um dos que me acompanhavam que me emprestasse ou simplesmente me desse, seu último anel, cujo brilhante pesava pouco mais de um quilate. Vendi-o imediatamente, a fim de que nessa noite todo mundo tivesse o que comer. As coisas pioraram ainda devido à doença que eu havia contra ído, nas montanhas do C áucaso, onde se est á submetido a diferenças enormes de temperatura, entre a noite e o dia. Meu estado se tinha agravado pelo fato de n ão poder ficar acamado: com uma febre que beirava os 40 graus, era-me necess ário percorrer a cidade para encontrar, a qualquer custo, um meio de sair dessa situa ção. Informei-me sobre as possibilidades comerciais do lugar e, tendo-me dado conta de que, apesar da depress ão geral dos negócios na Transcaucasia, o com ércio dos tapetes orientais antigos e modernos ainda era florescente, decidi empreender alguma coisa nesse sentido. Escolhi entre meus alunos e os membros de minha fam ília várias pessoas qualificadas e, tendo-lhes ensinado a me ajudar, organizei rapidamente um verdadeiro neg ócio de tapetes. Alguns de meus assistentes, percorrendo T íflis e as cidades vizinhas, procuravam e compravam toda espécie de tapetes. Um segundo grupo lavava-os e limpava-os, enquanto um terceiro os consertava. Esses tapetes eram ent ão selecionados: uns eram vendidos a varejo, outros por atacado, quer para o com ércio local, quer para exportação para Constantinopla. 274 Desde a terceira semana, os tapetes renderam mais dinheiro do que era necess ário para manter todo mundo. Diante dos lucros obtidos por esse neg ócio e suas perspectivas evidentes de expans ão, veiome o desejo de fundar, no lugar, meu Instituto, a título tempor ário, sem esperar a volta da paz, tanto mais que fora sempre minha intenção criar uma filial em Tíflis. Embora continuando com meu com ércio de tapetes, ocupei-me, pois, em instalar o Instituto; de pronto, por ém, compreendi que, devido à crise de alojamento, ser-me-ia impossível encontrar sozinho uma casa que correspondesse aos meus planos e dirigi-me ao governo ge órgio. Este acolheu bem nosso pedido e transmitiu-o ao prefeito da cidade, convidando-o a fazer todo o poss ível para encontrar uma casa que fosse "digna de institui ção tão importante para o país." O prefeito e vários membros do conselho municipal que se interessavam por minha obra, fizeram o melhor possível para procurar o que necessit ávamos. Entretanto, apesar de todo o seu desejo, n ão puderam descobrir coisa alguma que nos conviesse e ofereceram-nos um local provisório, prometendo encontrar, com rapidez, outro local mais apropriado. Foi assim que, pela terceira vez, tratei de organizar meu Instituto. Surgiram novamente os mesmos problemas; foi preciso, de novo, p ôr-me à procura de m óveis e de todo o material indispensável. Em Tíflis, numerosas pessoas tinham sido profundamente afetadas pelas mudan ças sobrevindas em suas condições de vida e sentiam a necessidade de se voltarem para novos valores, a tal ponto que, uma semana depois de aberto, meu Instituto estava cheio de alunos e as inscrições já estavam encerradas, para classes em n úmero tr ês vezes superior, que eu contava iniciar assim que tiv éssemos outra residência.
Nesses locais provis órios, que em nada correspondiam às nossas necessidades e apesar das excessi vas provações que as circunt âncias nos impunham, o trabalho sobre si começou a tomar vida. Os estudos puderam prosseguir durante v ários meses, graças à repartição dos alunos em grupos distintos e à extensão das horas de trabalho, desde manhã muito cedo at é hora avançada da noite. Mas as autoridades tardavam em cumprir a promessa e a falta de espa ço tornava o trabalho cada vez mais impossível. E quando, com a ofensiva dos bolchevistas, as dificuldades da vida quotidiana aumentaram mais ainda, abalando a estabilidade do governo da Ge órgia, renunciei a desperdi çar meu tempo e minha energia lutando 275 contra as condições circundantes. Decidi, não só liquidar tudo em Tíflis, mas romper com tudo o que at é então me havia ligado à Rússia e transpor a fronteira indo fundar meu Instituto em qualquer outro país. Vendi quase de gra ça os bens do Instituto e, em meio a grandes dificuldades, parti para Constantinopla, levando comigo trinta pessoas. Quando de minha partida de T íflis, a venda dos tapetes me havia deixado, apesar de tudo, uma soma importante e tinha calculado que, depois de ter assegurado, o melhor que podia, a subsist ência dos meus parentes que permaneciam na Ge órgia e coberto as despesas da viagem para Constantinopla, sobrar-nos-ia dinheiro suficiente para vivermos todos no estrangeiro, durante per íodo bastante longo. Tínhamos infelizmente calculado tudo, sem contar com os georgianos! A moeda local, nessa época, não tinha valor fora da Rússia e não se podia trocá-la em parte alguma. Os que partiam para o estrangeiro levavam com eles, a t ítulo de valores, diamantes ou tapetes. Decidi, pois, levar tamb ém, em vez de dinheiro, algumas pedras preciosas, bem como vinte tapetes raros e, depois de ter cumprido todas as formalidades exigidas para sua exporta ção, confiei-os aos meus alunos. No momento de deixar Batum, tínhamos em m ãos todos os documentos certificando o pagamento dos direitos de alf ândega e dos impostos, mas a "esquadra especial georgiana" fez chicana conosco e, de maneira ilegal, confiscou, pretensamente a t ítulo tempor ário, quase todos os tapetes que havia distribu ído aos meus. Uma vez em Constantinopla, quando tomamos as provid ências para recuper á-los, Batum estava ocupada pelos bolchevistas; o bando de malfeitores fugira com seus chefes e n ão restava mais nem traço deles. Dos meus vinte tapetes, s ó dois escaparam à requisição e isto porque viajavam pela mala diplom ática, confiada por seu cônsul a um dos membros do Instituto, s údito finlandês. Foi assim que, ao desembarcar em Constantinopla, encontravame quase na mesma situa ção que quando cheguei a Tíflis. Só tinha à minha disposição dois pequenos diamantes e os dois tapetes em quest ão. Se os tivesse vendido, mesmo por bom preço, isco não teria sido suficiente para manter tal quantidade de pessoas, sen ão por pouco tempo, tanto mais que todos precis ávamos de roupas; em Tíflis não se podia consegui-las e as que vest íamos estavam tão usadas, que não podíamos mais aparecer decentemente assim, nessa cidade onde a vida era mais ou menos normal. 276 A sorte por ém me sorriu: encontrei imediatamente alguns bons neg ócios. Ocupei-me entre outros, com um velho amigo, de dar sa ída a um grande estoque de caviar; depois, participei da venda de um barco e as finan ças melhoraram de novo. Quando, em Tíflis, renunciara fazer da Rússia o centro permanente de minhas atividades, n ão conhecia bastante as condi ções de vida na Europa para saber, com anteced ência em que país me estabeleceria. No entanto, refletindo, decidi-me pela Alemanha que, devido à sua situação geogr áfica e ao nível da cultura, do qual tanto ouvira falar, parecia corresponder melhor que qualquer outro pa ís aos meus projetos, Mas, durante vários meses ainda, ia ficar detido em Constantinopla por essa eterna quest ão de dinheiro, t ão dolorosa para quem não tem um tio milionário, e foi-me necessário, uma vez mais, ocuparme de toda esp écie de negócios a fim de poder partir. Nesse meio tempo, para que as pessoas que me tinham acompanhado pudessem retomar
o trabalho empreendido sob minha direção, aluguei o único local grande que pude encontrar, no bairro de Pera, onde vivem quase todos os europeus. Nas minhas horas, livres, dirigia novamente a classe de movimentos, iniciada em T íflis e organizava todo s ábado demonstra ções públicas, para habituar meus alunos a n ão se deixarem perturbar pela presença de estranhos. O número dos que me pediam para tomar parte nesse trabalho n ão cessava de aumentar. com efeito, os turcos e os gregos atra ídos por nossas demonstra ções tomavam interesse cada vez maior por esses movimentos, pela m úsica de acompanhamento, que eu havia composto especialmente, bem como pelos diversos trabalhos, empreendidos por meus alunos, com previs ão às atividades futuras do Instituto na Alemanha. Por outro lado, a situação geral dos países da Europa permanecia inst ável, a desconfiança mútua entre os governos tornava muito dif ícil a obtenção dos vistos de entrada ou de tr ânsito; o curso do c âmbio sofria diariamente fortes perturbações e todos os meus projetos estavam ameaçados. Decidi-me, pois, a estender o campo de minhas atividades, organizar, nesse mesmo local, confer ências públicas destinadas a ressaltar certos aspectos de minhas id éias fundamentais e abrir cursos consagrados ao estudo da manifesta ção humana através dos movimentos, da música e da pintura, considerados em suas rela ções com a ciência objetiva. 277 Assim, pois, uma vez mais, m ergulhei de cabeça numa atividade transbordante. Ao mesmo tempo em que continuava de mil modos a ganhar dinheiro, quer em Constantinopla, quer em Kadikoi, na margem oposta do B ósforo, onde ia quase todos os dias de barco, consagrava o resto do meu tempo ao trabalho que havia organizado e do qual participavam agora numerosas pessoas novas; os únicos momentos de que dispunha para elaborar os planos das confer ências, que alguns de meus alunos, especialmente preparados, deviam fazer, eram aqueles que passava viajando, quer de barco, quer de bonde. Foi nessa atividade decuplicada que vivi cerca de um ano, at é a tão esperada chegada dos vistos, que coincidiu com o momento em que havia, mais ou menos, conseguido tapar o rombo que tinha feito no meu bolso a corrente cont ínua de dinheiro que o atravessava. Dado que, nessa época, as elucubra ções dos Jovens Turcos j á tinham odor inquietante, decidi não esperar as amenidades de toda esp écie que não poderiam deixar de advir e deixar o local com os meus, antes que fosse tarde demais. Depois de haver transferido às pressas meus cursos em Kadikoi e posto à sua testa alguns de meus novos alunos mais qualificados, parti para a Alemanha. Chegado a Berlim, comecei por repartir em hotéis todos os que me haviam seguido; aluguei uma grande sala, no bairro de Schmargendorf, para ali retomar o trabalho interrompido e fui visitar diversos lugares onde algumas de minhas rela ções tinham detectado casas que pareciam convir às necessidades do Instituto. Depois de haver visitado certo n úmero delas, acabei escolhendo um pr édio de Hellerau, não longe da cidade de Dresde, especialmente constru ído e instalado em grande escala, para um novo movimento que, pouco tempo antes, provocara muitos coment ários, sob o nome de sistema Dalcroze. Achando que essa casa e suas instala ções convinham mais ou menos ao estabelecimento e desenvolvimento futuro da sede central do Instituto, resolvi comprar tudo, mas enquanto eu entabulava negocia ções com o proprietário, recebi de um grupo de ingleses, que tinham sido tocados por minhas id éias, a proposta de abrir meu Instituto em sua capital; ofereciam-me arcar com todas as despesas e todos os cuidados da organiza ção. Dada a precária situação financeira em que nos encontr ávamos, fui tentado por essa proposta e parti para a Inglaterra, a fim de me dar conta, no local, por mim mesmo, do estado das coisas nesse pa ís. Como o andamento geral do trabalho empreendido em Berlim era de 278 grande importância para mim e como minha aus ência prolongada lhe teria sido nefasta, mas, por outro lado, como as diversas quest ões relativas à proposta inglesa não podiam ser resolvidas de longe, decidi ir a Londres, a cada duas ou tr ês semanas e ali permanecer por tr ês ou quatro dias. A cada vez, mudava de itiner ário, a fim de conhecer outros países da Europa. As observa ções feitas por mim, durante essas viagens, levaram-me à conclusão de que
o lugar mais prop ício à minha meta não era nem a Alemanha, nem a Inglaterra, mas sim a França. A França dava-me então a impressão de um Estado pol ítica e economicamente mais equilibrado e, a despeito de sua situação geogr áfica menos central que a Alemanha, parecia-me constituir, graças à cidade de Paris, considerada a capital do mundo, uma esp écie de encruzilhada de todas as raças e de todas as na ções; representava, por conseguinte, a meus olhos, o pa ís mais bem qualificado para uma larga difus ão de minhas id éias. Nesse sentido, a Inglaterra, devido à sua posição isolada, não teria permitido desenvolvimento algum e, ali, um Instituto teria tomado o car áter estreito de um estabelecimento local. Eis por que acabei recusando a oferta dos ingleses; consenti, no entanto, em enviar-lhes instrutores - que eu havia especialmente preparado - e certo número de alunos, cujas despesas assumiriam, enquanto aguardavam poder eu organizar o ramo ingl ês do Instituto. Em suma, quando de nossa chegada à França, durante o ver ão de 1922, depois de ter pago as despesas de viagem, encontrei-me com cem mil francos. Inicialmente, organizei em Paris uma espécie de comunidade tempor ária para meus alunos e obtive, a t ítulo provisório, o local da Escola Dalcroze, onde prosseguimos nosso trabalho. Depois, procurei uma casa para alugar para o Instituto e os fundos necess ários para instalá-lo. Após ter visitado in úmeras propriedades nos arredores de Paris, fixei minha escolha numa propriedade que me parecia convir, o melhor possível, a do Prieur é, não longe do famoso castelo de Fontainebleau. A propriet ária, que a herdara de c élebre advogado e tinha pressa em desfazer-se dela, devido aos enormes gastos de manuten ção, preferia vendê-la em vez de alug á-la; arrastou as negociações, manifestando-se, na ocorr ência, segundo as tendências que os meteorologistas contempor âneos teriam formulado assim: "neve ou chuva prov ável ou um ou outro". 279 Depois de tergiversar longamente, consentiu finalmente em adiar a venda por um ano; alugava-me a propriedade por sessenta e cinco mil francos anuais e dava-me seis meses para decidir; esgotado esse prazo, ela poderia vend ê-la e eu teria então que sair de um dia para o outro. Concluído o negócio, fui instalar-me no Prieur é com uns cinq üenta alunos. Foi no dia 1. ° de outubro de 1922. Desde esse dia, ia come çar para mim, em condições especificamente européias, que me eram completamente estranhas, um dos per íodos mais loucos de minha exist ência. Quando me apresentei diante do port ão do castelo, era como se, por tr ás do velho zelador, eu fosse acolhido pela Senhora Necessidade, pois os cem mil francos que possuía já se tinham volatilizado até o último ceitil, parte no aluguel, parte nos tr ês meses de despesas de permanência em Paris com todos os meus alunos. Ao mesmo tempo que continuava a fazer viver essa multid ão de pessoas, eu devia enfrentar um problema imediato, que era o de comprar os m óveis e equipamentos indispens áveis à nossa instalação, pois nem a mobília do castelo nem seu equipamento dom éstico foram previstos para número tão grande de pessoas, às quais se ia somar grande n úmero de novos hóspedes, que podiam chegar da Inglaterra de um dia para o outro, pois hav íamos renunciado a abrir a seção de Londres. Minha situação era mais complicada ainda pelo fato de que, ao chegar a Paris, n ão falava nenhuma língua da Europa ocidental. Por ocasião de minha partida de Batum, essa quest ão de línguas tinha começado a preocupar-me. Em Constantinopla, não tivera que me preocupar com isso, pois conhecia bem as tr ês línguas usadas ali, o turco, o arm ênio e o grego. Em Berlim, por ém, já se haviam apresentado s érias dificuldades e, em Paris, diante da necessidade de encontrar meios para cobrir as enormes despesas, mais que nunca senti como era desservido pela minha ignor ância das l ínguas européias; ora, não tinha um só instante de lazer para aprend ê-las. Era-me, por assim dizer, imposs ível servir-me de intérpretes, principalmente para uma transação comercial, onde é necessário captar o estado de esp írito do homem que se tem diante de si e jogar com sua psicologia; mesmo com um bom tradutor, os longos intervalos necessários à tradução destroem todo o efeito do que se acabou de dizer, sem falar da dificuldade de transmitir as entonações, tão importantes em todas as negocia ções desse gênero. 280 Não dispunha, ali ás, sequer de um bom int érprete, pois, entre meus alunos, aqueles a quem poderia ter pedido
para me ajudar falavam francês como comumente o falam os estrangeiros, particularmente os russos, suficientemente bem para manter uma conversa de sal ão - e ainda assim, fora da França - ao passo que eu precisava constantemente de um francês preciso, com vistas a s érias negociações comerciais. A quantidade de for ça nervosa que despendi, durante esses dois primeiros anos, nos momentos em que sentia que não me traduziam como devia ser feito, teria sido amplamente suficiente para alimentar a atividade de uma centena dos seus aprendizes de brokers na bolsa de Nova Iorque. Como necessitávamos imediatamente de consider ável quantia para as primeiras instalações e era impossível ganhar esse dinheiro de imediato, busquei o meio de tom á-lo emprestado para fazer face ao que era mais urgente. Minha intenção era organizar provisoriamente o trabalho do Instituto, de maneira a reservar a metade do meu tempo para ganhar dinheiro, o que me permitiria reembolsar esse empr éstimo pouco a pouco. Foi em Londres, junto a diversas pessoas que se interessavam por meus projetos, que consegui esse empr éstimo. Era a primeira vez que me afastava do princ ípio fundamental que me impusera h á quinze anos: colocar a realiza ção de minha obra sob minha única responsabilidade pessoal, sem aceitar nenhuma ajuda material de fora. Posso afirmar, categoricamente, que até então, apesar das enormes despesas, dos fracassos e dos preju ízos ocorridos não por minha culpa, mas em decorr ência dos acontecimentos políticos e econômicos dos últimos anos, não devia um tost ão a ninguém: tudo provinha de meu pr óprio trabalho. Meus amigos e as pessoas que sentiam interesse ou simpatia por minhas id éias várias vezes me tinham oferecido dinheiro, mas eu sempre recusara, mesmo nos momentos dif íceis, preferindo transpor os obst áculos por meus pr óprios esfor ços a trair meus princ ípios. Aplanado o problema imediato, pus ardentem ente mãos à obra. Pode-se dizer que, durante esse per íodo, minha tarefa foi sobrehumana. Acontecia-me, às vezes, trabalhar vinte e quatro horas a fio, passando a noite em Fontainebleau e o dia em Paris, ou vice-versa. Até o tempo dos deslocamentos era ocupado pela correspond ência ou entrevistas. 281 Meus negócios iam bem, mas a press ão excessiva desde alguns meses, sucedendo a oito anos de trabalho ininterrupto, tinha-me cansado a tal ponto, que minha sa úde ficou abalada e tornou-se-me imposs ível, apesar de todo o meu desejo e de todos os meus esfor ços, manter a mesma intensidade. Malgrado os obstáculos que atrapalhavam e freavam meu trabalho, meu mau estado de sa úde, a dificuldade de continuar minhas transações sem conhecer a l íngua e, não obstante o número de meus inimigos - que, segundo uma lei já bem estabelecida, aumentava proporcionalmente ao dos meus amigos - consegui realizar, nos seis primeiros meses, a maior parte daquilo a que me havia proposto. Dado que, na maioria de voc ês, americanos modernos, o curso dos pensamentos s ó se ativa diante da imagem familiar de um balanço, Vou simplesmente enumerar-lhes as despesas que consegui enfrentar, desde a minha instala ção no Prieur é até minha partida para a Am érica: - A título de entrada, a metade do preço da grande propriedade, mais uma quantia substancial para a compra de pequena propriedade anexa; - O total das primeiras despesas com a instala ção do Instituto, que incluía entre outras: os consertos, transforma ções e reforma da propriedade; - A compra de um mobili ário novo e de utens ílios de todo g ênero para a casa; - A compra de materiais diversos, ferramentas e m áquinas agr ícolas, instrumentos e aparelhos destinados ao setor médico, etc.; - Finalmente, a compra dos animais: cavalos, vacas, porcos, carneiros, galinhas, etc. A isso se somaram as despesas consider áveis da construção, instalação e decoração de um pr édio destinado aos exercícios de movimentos e às demonstrações; pr édio este que foi chamado, por alguns, Study House, e por outros Teatro. Finalmente, durante esse per íodo, consegui, enquanto fazia face às necessidades dos h óspedes e alunos do Instituto, reembolsar parte do empr éstimo que contraíra. Uma das minhas melhores fontes de recursos, durante esses meses, foi o tratamento psicol ógico de certos casos dif íceis de alcoolismo e toxicomania. Eu era, de fato, considerado, quase em toda parte, dos melhores especialistas no assunto e as fam ílias desses infelizes ofereciam-me às vezes quantias muito substanciais para que eu consentisse em ocuparme deles.
282 283 Lembro-me, particularmente, de um rico casal de americanos que me tinha confiado o filho - at é então julgado incur ável - e que, em sua alegria por v ê-lo curado, dobrou espontaneamente a quantia que hav íamos convencionado. Além disso, entabulei relações com certos homens de neg ócio e lancei-me, com eles, em várias operações financeiras. Obtive também consider ável lucro, revendendo a uma cotação inesperada, todo um love de a ções de uma companhia de petr óleo. Fiz, um após outro, dois negócios frutíferos, abrindo em Montmartre, com um s ócio, dois restaurantes que organizei em algumas semanas, para revend ê-los logo depois de lançados. Parece-me estranho, hoje, poder tão facilmente enumerar tais resultados, quando me lembro da incr ível tensão que exigiam de mim e das terr íveis provações interiores que então me transtornavam por inteiro . .. Durante esses meses, tinha que iniciar o trabalho às oito horas da manh ã, para terminar às dez ou onze da noite e passava o resto da noite em Montmartre, não só devido aos meus neg ócios de restaurantes, mas para tratar de um alcoólatra, que encontrava l á completamente embriagado e me dava muito trabalho, porque se recusava deixar-se tratar. É interessante notar que, nessa época, o que sabiam de minha vida exterior, isto é, de todas essas noites passadas em Montmartre, fornecia excelente alimento para os falatórios de numerosas pessoas que me conheciam de perto e de longe. Uns invejavam-me de poder "farrear"; outros reprovavam-me amargamente. Quanto a mim, n ão desejaria farra como essa a meu pior inimigo. Em resumo, a necessidade e urg ência de dar solu ção dur ável ao problema financeiro do Prieur é, a esperança de finalmente ficar livre dessas apreens ões cr ônicas e de poder consagrar-me por inteiro ao meu verdadeiro trabalho, isto é, ao ensino das id éias e m étodos que constituíam a base do Instituto - esperança adiada, de ano em ano, por razões que não dependiam de mim - tudo me constrangia a fazer esfor ços sobre-humanos, sem levar em conta as conseq üências desastrosas que da í pudessem resultar. Mas, apesar de minha repugnância a parar em meio do caminho, fui obrigado, ainda dessa vez, a deixar tudo em suspenso, justo antes de ter reunido as condi ções que, só elas, teriam permitido a realização das tarefas fundamentais do Instituto. Durante os últimos meses, meu estado de saúde se agravara de fato, a tal ponto, que me vira constrangido a reduzir minhas horas de trabalho. E, diante da repetição de algumas perturbações, que jamais sentira, confesso que comecei a inquietar-me e tomei a resolu ção de cessar qualquer trabalho ativo, tanto mental como f ísico; retardei, entretanto, sem cessar, essa medida, at é o dia em que um resfriado obrigou-me, de bom ou de mau grado; a parar tudo. As circunstâncias merecem ser descritas. Certa noite, como terminara cedo meus negócios em Paris, pouco depois das dez horas e como devia sem falta estar no Prieur é, no dia seguinte pela manhã, onde esperava a visita de um engenheiro para discutir os planos e o or çamento de um banho de vapor especial, que tinha a intenção de construir, decidi voltar imediatamente, deitar-me cedo e dormir bem. Sem parar em parte alguma, nem mesmo no apartamento da cidade, pus-me a caminho de Fontainebleau. O tempo estava úmido. Fechei os vidros do meu carro e, durante todo o caminho, sentia-me t ão bem que comecei a fazer projetos para a constru ção de um forno de oleiro no Instituto, nos moldes dos antigos fornos persas. Ao aproximar-me da florest a de Fontainebleau, lembrei-m e de que, com freqüência, há nevoeiro à noite nesse lugar, quando o tempo est á úmido. Olhei para meu relógio: eram onze horas e um quarto. Acendi os far óis altos e acelerei para atravessar esse mau trecho mais depressa. Depois desse momento, n ão me lembro de mais nada .. . nem de como dirigi, nem do que aconteceu. Quando voltei a mim, vi o seguinte quadro: estava sentado no carro, quase no meio da estrada. Em volta, a floresta. O sol brilhava; uma grande carreta, carregada de feno, estava parada diante do carro; seu condutor, em p é, perto da porta, batia no vidro com seu chicote - o que me tinha acordado.
De acordo com as apar ências, eu olhara para meu rel ógio na véspera, prosseguira por mais um ou dois quilômetros e, depois, havia adormecido sem querer, o que nunca me acontecera antes em minha vida. Dormira até às dez horas da manh ã. Felizmente, meu carro tinha parado na metade direita da cal çada, quase respeitando os regulamentos e, durante toda a manhã, os carros deviam ter-me contornado, sem perturbar meu sono. A carreta, por ém, era grande demais para passar e tinha sido necess ário acordar-me. 284 Embora tivesse dormido muito bem, nessas condi ções originais, o resfriado que apanhei foi tão severo, que seus efeitos continuam ainda hoje a se fazer sentir. A partir desse dia, tornou-s e-me muito dif ícil, mesmo me violentando, pedir ao meu corpo um esfor ço demasiado sustentado. De bom ou de mau grado, tive que parar todos os meus neg ócios. A situação do Instituto tornava-se assim das mais cr íticas: não só as tarefas indispens áveis não podiam ser levadas a termo, mas tudo o que j á fora realizado estava ameaçado de ruína, dado que as datas dos vencimentos se aproximavam e ningu ém estava em condi ções de pagá-los em meu lugar. Era-me, pois, necess ário inventar alguma coisa. Um dia que estava sentado no terra ço do famoso Grand Caf é, cogitando sobre as repercuss ões do meu estado de saúde em meus neg ócios em curso, pus-me a raciocinar assim: Uma vez que, no meu estado atual, n ão posso nem devo, pelo menos durante certo tempo, trabalhar com a intensidade que exige tarefa tão consider ável, mas que, ao contr ário, preciso aceitar, ainda que temporariamente, um repouso completo, por que n ão poria, de imediato, em execução o projeto que tinha de ir à América, sem nem me deter nos preparativos da viagem? Uma tournée através dos diferentes Estados da Am érica do Norte, com os cont ínuos deslocamentos, a mudan ça de meio e o desambientamento que isto acarretaria, seria uma fonte sempre renovada de impress ões inabituais e criaria para mim, dada minha natureza, as condi ções indispensáveis a um verdadeiro repouso. E isso, principalmente porque, encontrando-me a grande dist ância do lugar onde se concentram todos os meus interesses atuais, ficaria temporariamente liberado de certo traço de meu car áter, que sempre me constrangeu - durante minhas freq üentes expedições através das regiões selvagens, cada vez que tive que suportar as manifesta ções "benévolas" das criaturas de Deus, b ípedes ou quadr úpedes - a me recuperar, mais ou menos, para de pronto mergulhar de novo no empreendimento em curso. A fim de compreender o que entendo por "não me deter nos preparativos da viagem", devem saber que, desde o início da organiza ção do meu Instituto na Fran ça, começara a reunir os elementos para uma série de confer ências destinadas a levar ao conhecimento do p úblico as idéias de base do Instituto e sua aplica ção a diferentes campos - tais como a psicologia, a medicina, a arqueologia, a arquitetura, 285 a arte - e mesmo aos diversos tipos de fen ômenos sobrej naturais. Por outro lado, tinha preparado alunos para uma s érie de representações que queria dar, durante uma grande tournée através da Europa e da Am érica. Meu propósito era fazer com que penetrasse, assim, no processo da vida quotidiana dos homens, a significa ção dessas id éias que não divulgara at é então e se fundamentava num material colhido em diferentes regiões da Ásia, inacessíveis ao comum dos mortais - bem como p ôr em evidência os resultados pr áticos aos quais poderiam conduzir. Ao cabo dessas reflex ões, no terraço do Grand Caf é, decidi pois correr o risco de partir imediatamente, contentando-me com o que já fora preparado. Dei minha palavra a mim mesmo de n ão trabalhar em nada sério desde a minha partida da Fran ça até à volta, mas de comer bem, dormir o m áximo poss ível e só ler estritamente livros cujo conteúdo e estilo estivessem em conformidade com o esp írito e o car áter das histórias de Mullah Nassr Eddin. Estava pronto para tentar a aventura, porque come çava a esperar que meus alunos fossem agora capazes de organizar, na Am érica, sem minha participação, toda uma série de confer ências e demonstrações. Um dos riscos dessa repentina decis ão, destinada ao mesmo tempo a restaurar minha pr ópria saúde e a
restabelecer a situação material de meu Instituto - essa criança que concebera ao pre ço de incr íveis dificuldades e s ó agora começava a viver vida independente - provinha do fato de que, para ser bem sucedido, precisava levar comigo quarenta e seis pessoas que, tanto l á como na França, estariam, é claro, totalmente a meu cargo. Nisso estava o único meio de resolver esse problema angustiante, mas era imposs ível deixar de dar-me conta de que, no caso de fracasso, a situa ção geral agravar-se-ia mais ainda e poderia at é transformar-se em catástrofe. O que representa o financiamento de uma tourn ée com quarenta e seis pessoas na Am érica, vocês que têm a paixão de fazer freqüentes viagens à Europa, compreender ão sem dificuldade. E aquilatar ão melhor a gravidade desse empreendimento extravagante, se quiserem levar em consideração o simples fato de que, para essas viagens, trocam seus dólares por francos, enquanto para mim, era necess ário trocar meus francos por dólares! 286 Quando tomei a decis ão de partir, tinha como reserva total os trezentos mil francos que havia separado com vistas ao vencimento de 15 de fevereiro, dia em que devia ser assinada a escritura definitiva de venda do castelo do Prieur é. Nem por isso deixei de resolver gastar esse dinheiro na viagem e apressei-me em organizar nossa partida. Enquanto me ocupava com os preparativos necess ários - comprar as passagens, pedir os vistos, comprar roupas, fazer trajes para as dan ças e assim por diante - concentrei toda minha atenção nas classes de movimentos multiplicando os ensaios, que tinham lugar na Study House finalmente terminada. Tendo observado, uma vez mais, o quanto ficavam perturbados os participantes, pela presen ça de espectadores estranhos, decidi, justo antes de embarcar, dar v árias representações públicas em Paris, no Teatro dos Champs Ely sees. Mas, por mais que suspeitasse de que tal iniciativa de última hora me custaria bastante dinheiro, estava longe de prever o abismo para o qual me arrastaria. " Finalmente, as demonstra ções de Paris, as passagens de navio, o pagamento das contas mais urgentes, o dinheiro destinado àqueles que ficavam na Europa, bem como certas despesas imprevistas, consumiram todos os trezentos mil francos, antes mesmo da partida. De maneira que, à última hora, encontrei-me numa situação "supertragicômica": estava tudo pronto para a partida e n ão podia partir. Como empreender tal viagem com tantas pessoas, sem ter a menor reserva para os casos de urg ência? Essa situação surgiu diante de mim, em todo o seu esplendor, tr ês dias antes do embarque. Foi então que surgiu um acontecimento imprevisto, como j á me havia acontecido mais de uma vez, nos momentos cr íticos de minha vida. Aparentemente, tratava-se a í de uma dessas interven ções que os homens capazes de pensar conscientemente têm, desde sempre, considerado um sinal da justa provid ência das for ças superiores. Quanto a mim, direi que era o resultado, conforme às leis, da perseveran ça inabalável de que um homem dá prova, para afinar todas as suas manifesta ções com os princ ípios aos quais se submete conscientemente, com vistas a alcan çar uma determinada meta. " Eis como as coisas se passaram: 287 Estava sentado em meu quarto no Prieur é, buscando uma sa ída para a incr ível situação que se tinha criado, quando, de repente, a porta se abriu e minha velha m ãe entrou. Ela chegara há pouco tempo, com alguns membros de minha fam ília, que tinham ficado no C áucaso, após minha partida da R ússia; só recentemente tinha conseguido fazer com que viessem. Minha m ãe aproximou-se de mim e estendeu-me um pacotinho, dizendo: "Peço-te que me livres deste objeto; estou cansada de lev á-lo sempre comigo." A princípio, não compreendi o que queria dizer e abri maquinalmente o pacote. Mas, ao ver seu conte údo, tive que me conter para n ão me pôr a dançar de alegria. Antes de lhes explicar o que era o objeto que, nesse momento desesperado, era capaz de provocar tal em o ção em mim, devo dizerlhes que, na época em que me fixei em Essentuki, a agitação que se apoderara de toda a R ússia provocava, no consciente de todo homem sensato, o pressentimento de iminente perigo; tinha, pois, feito vir minha velha m ãe, de Alexandr ópolis, para tê-la junto a mim e, ao empreender, pouco mais tarde, a expedição
científica de que falei, confiei-a aos que ficavam em Essentuki. Por outro lado, nesse ano de 1918, tanto no C áucaso como em toda a R ússia, o valor do rublo diminuía de dia para dia e todos aqueles que possu íam dinheiro procuravam convertê-lo em valores seguros e apreciados universalmente, tais como pedras e metais preciosos, antig üidades raras, etc. Converti também todo o meu capital em objetos desse gênero, que levava sempre comigo. Mas, na véspera da partida da expedi ção, como imperasse a pilhagem em quase toda parte, a pretexto de sindicâncias e requisições e como teria sido arriscado conservar comigo todos esses valores, distribu í uma parte aos meus companheiros, na esperan ça de que, mesmo no caso de não escaparmos à pilhagem, um de nós tivesse a chance de salvar alguma coisa. A seguir, reparti o resto entre aqueles que n ão podiam deixar o pa ís. Entre os objetos entregues à minha m ãe, encontrava-se um broche que comprara, pouco tempo antes, de uma gr ã-duquesa que necessitava urgentemente de dinheiro. Dando esse broche à minha m ãe, recomendei-lhe particularmente, pois era de grande valor. Estava persuadido de que, premida pela necessidade, ela vendera a j óia há muito tempo ou, então, tinham-na roubado, durante seus 288 289 constantes deslocamentos, pois cada localidade estava ent ão à mercê de um bando de assaltantes, que n ão dependiam de nada nem de ningu ém - a menos que simplesmente a tivesse perdido, o que poderia ter ocorrido mais de vinte vezes durante o trajeto. Em resumo, tinha-me esquecido completamente desse broche e nunca poderia ter surgido, em canto algum de meu cérebro, a idéia de incluí-lo em meus cálculos. Minha mãe, por ém, quando lhe tinha confiado o broche, pedindo-lhe para tomar o m áximo cuidado com ele, pensara que se tratava, para mim, de uma lembrança pessoal muito preciosa, que ela devia conservar a fim de poder devolv ê-la a mim. Durante todos esses anos, tinha-o guardado como à menina dos olhos, n ão o mostrando mesmo a quaisquer dos seus, levando-o sempre consigo, como um talism ã, cosido num saquinho. E, agora, estava contente de poder, entregando-o a mim, livrar-se de um objeto que nunca deixara de causar-lhe apreens ão. Podem visualizar qual foi o meu al ívio, quando reconheci esse broche e compreendi o partido que poderia tirar dele? No dia seguinte, com a j óia no bolso, n ão hesitei em pedir emprestados dois mil d ólares a um amigo e levei o objeto para a Am érica, visto que em Paris ofereciam-me por ele apenas cento e vinte e cinco mil francos, enquanto na minha opini ão, valia muito mais, como tive a prova ao vendê-lo em Nova Iorque. O Sr. Gurdjieff interrompeu aí seu relato e, no sil êncio reinante, pôs-se a fumar um cigarro, com o sorriso que lhe era peculiar. O Sr. H. . . levantou-se então de seu lugar, veio at é ele e disse: "Sr. Gurdjieff, depois de todas as brincadeiras que o senhor fez, a prop ósito da questão material, não sei mais se isto se deve à ordem particular que deu ao seu relato ou à minha ingenuidade ou à minha sugestionabilidade, mas n ão há dúvida de que estou pronto a fazer qualquer coisa para aliviar o fardo que o senhor assumiu voluntariamente. "E devo confessar-lhe que me sinto levado a isso pela impress ão que senti, ao longo de todo o seu relato, de que, nessa tarefa, que ultrapassa as for ças de um homem ordinário, o senhor esteve, até hoje, absolutamente só. "Permita-me que lhe entregue este cheque, que representa aquilo de que posso dispor neste momento. Comprometo-me, ao mesmo tempo, diante de todos os que aqui est ão, a dar-lhe anualmente a mesma quantia, onde quer que o senhor esteja e sejam quais forem as circunst âncias." O Sr. H. .. enxugou a testa, visivelmente emocionado. O Sr. Gurdjieff levantou-se, por sua vez, pousou a mão sobre o ombro dele e considerando-o com esse olhar inesquecível, ao mesmo tempo bom e penetrante, dissê-lhe, simplesmente: "Obrigado ao irmão que Deus me envia hoje!" Um exemplo inesperado, da forte impress ão produzida pelo relato do Sr. Gurdjieff, foi a intervenção de certa
Lady L... que, de passagem em Nova Iorque, a convite do Sr. R. ... encontrava-se entre nós nessa noite. Declarou de s úbito, com muita sinceridade: "Sr. Gurdjieff, é um pouco por acaso que assisto a esta reuni ão e pude ouvir seu relato, que me interessou apaixonadamente. Tive, por ém, freqüentes ocasiões de ouvir falar de suas atividades e das id éias salutares às quais seu Instituto deu vida; tive at é a chance de ser admitida a uma das demonstrações que o Sr. organizava, todas as semanas, no Study House, no parque do Prieur é e de ver com meus pr óprios olhos, algumas de suas realizações. Não ficar á, pois, surpreso se disser que pensei muitas vezes no seu trabalho e sempre tive o desejo de lhe ser útil, de uma ou de outra maneira. E agora, após ter ouvido o relato de seus esfor ços e sentido, com toda a intuição pr ópria às mulheres, a verdade daquilo que o senhor traz para a humanidade, compreendo at é que ponto sua atividade fica paralisada pela falta de dinheiro, este móvel essencial da vida dos homens, e decidi dar tamb ém minha contribuição à sua obra. "Se me comparar com a maioria das pessoas, meus recursos s ão, sem dúvida, superiores à média e deveriam permitir que lhe propusesse uma quantia bastante importante. Na realidade, bastam apenas para fazer frente às exigências da vida de maneira correspondente à minha posição social. Perguntei-me, a noite toda, o que poderia fazer pelo senhor e pensei numa quantia que economizei pouco a pouco e depositei num banco, com vistas a tempos dif íceis. Enquanto espero poder fazer mais, decidi p ôr a metade à sua disposição, sem pedir juros, até que um acontecimento grave me obrigue a recorrer a essas economias . . . pois sabe Deus o que o futuro me reserva!" Enquanto Lady L... expressava assim seus sentimentos, o Sr, Gurdjieff escutava-a gravemente. A seguir, respondeu-lhe: 290 291 "Obrigado, muito estimada Lady L.. . Aprecio sua franqueza. E, dado que aceitei agora a id éia de ser ajudado, na realização material de minha obra, aceito o seu empr éstimo, que me ser á de grande valia nas minhas atividades atuais. Como aludiu ao futuro, Vou falar-lhe francamente, por minha vez: posso predizer-lhe que lhe devolverei este dinheiro dentro de exatamente oito anos, num momento em que, embora em perfeita sa úde, ter á a maior necessidade daquilo que constitui hoje em dia, como tão bem o viu, o m óvel essencial da vida dos homens." (O Sr. Gurdjieff ficou silencioso por longo tempo, como que absorto em graves pensamentos. Parecia cansado, de repente. Seu olhar pousou-se em cada um de n ós .. .) Estou revendo este relato, redigido por meus alunos, sentado num bar-restaurante da cidade de Nova Iorque, denominado Child"s, na esquina da 5.a Avenida com a rua 56, nas condições em que sempre escrevi, nestes últimos seis anos - pois os bares, restaurantes, clubes ou dancings, devido às manifestações contr árias à minha natureza e indignas do homem, habituais nesse g ênero de lugar, têm, evidentemente, influência benéfica sobre a produtividade do meu trabalho. E queria comunicar-lhes um fato singular (têm liberdade de consider á-lo pura coincidência ou efeito de uma provid ência sobrenatural): ocorre que, sem tê-lo procurado, termino hoje a revisão deste texto, nesta mesma cidade, sete anos, exatamente, depois da noite que acaba de ser descrita. Para completar este relato, direi apenas isto: embora essa primeira viagem à América fosse um empreendimento arriscado - se se lembrarem de que minha troupe era composta de pessoas que n ão tinham um tostão no bolso e não falavam uma simples palavra da l íngua local, de que o programa das demonstra ções previstas ainda n ão estava completamente no ponto e de que, al ém disto, fora impossível organizar a menor campanha de publicidade - o sucesso dessa tourn ée de representações, destinada a fazer conhecer os resultados do trabalho do Instituto, ultrapassou em muito todas as minhas previs ões. Ouso afirmar que, se um grave acidente, sobrevindo alguns dias depois de minha volta à França, não me tivesse impedido de voltar seis meses mais tarde à Am érica, como tinha a inten ção, tudo o que j á havia empreendido nesse continente, com o aux ílio daqueles que me haviam acompanhado, ter-me-ia permitido, não só reembolsar a totalidade de minhas d ívidas, mas assegurar para o futuro a exist ência de todos os ramos do Instituto para o Desenvolvimento Harmonioso do Homem - tanto os que j á estavam em atividade como os que contava inaugurar no ano seguinte.
Mas... vale a pena falar nisso agora? Ao evocar esse per íodo de minha vida, volta-me involuntariamente à mem ória esta sentença de nosso caro Mullah Nassr Eddin: De que vale derramar lágrimas à lembrança da bela cabeleira do condenado à morte? Enquanto escrevia estas últimas palavras, alguém veio sentar-se à minha mesa. Todos os meus amigos conhecem a condição imposta a quem quer que deseje falar comigo, que é a de esperar que tenha acabado de escrever e que eu mesmo entabule a conversa. Seja dito, de passagem, que, embora essa regra tenha sido sempre respeitada, freqüentemente senti, entretanto, que apesar de se conformarem escrupulosamente a ela, alguns deles rangiam os dentes, como se estivessem prestes a me afogar numa colherada do último medicamento da moda. Quando acabei de escrever, voltei-me para o rec ém-vindo e, desde as primeiras palavras que me dirigiu, desencadeou-se em mim toda uma série de reflexões, que me levaram a uma decis ão categórica. Se me abstivesse de falar aqui desta decis ão e das reflex ões que a fizeram nascer, seria verdadeiramente agir contrariamente a todos os princípios fundamentais, cujo rasto se pode seguir, como uma linha vermelha, ao longo deste relato. Para bem compreender minha situação no momento, cumpre saber que a pessoa que viera sentar-se à minha mesa não era senão meu sócio secreto em meus neg ócios de antig üidade. Disse "secreto", porque ninguém, nem mesmo entre os meus pr óximos, conhecia essa esp écie de relação. Entrei em contato com ele seis anos antes, v ários meses depois do meu acidente. Nessa época, estava ainda muito fraco fisicamente, mas minha faculdade habitual de pensar retomava, pouco a pouco, seus direitos e eu come çava a considerar, em toda sua nudez, minha situa ção material, devida em parte às enormes despesas da viagem à América, em parte às despesas que haviam acarretado as graves doen ças de minha m ãe e de minha mulher. Como essa longa permanência na cama tornava-se para mim um tormento cada vez mais insuport ável, empreendi viajar de autom óvel, para tentar atenuar esse sofrimento com impressões variadas e para tentar também desencavar algum negócio comercial, compat ível com meu estado do momento. 292 Acompanhado de algumas pessoas, vistas sempre ao m eu lado, circulei, pois, por quase t oda parte, o mais das vezes em Paris, nos locais freq üentados pelos refugiados russos. Foi assim que um dia, num desses famosos caf és de Paris, um homem dirigiu-se a mim. Não o reconheci de imediato e foi somente durante a conversação que me lembrei de tê-lo encontrado muitas vezes, em diversas cidades do C áucaso, da Transcaucasia e da Transcaspiana. Especializado no com ércio de antigüidades e viajando de cidade em cidade, entrara em rela ção comigo porque eu era conhecido, na Ásia, como perito em objetos antigos e excelente negociante de tapetes, porcelanas da China e de biombos. Informou-me, entre outras coisas, que conseguira salvar, do desastre russo, certo capital e, aproveitando-se de seu conhecimento de ingl ês, tinha continuado com o seu negócio na Europa. Falando-me de seus neg ócios, queixava-se da dificuldade do mercado europeu, inundado de imita ções de toda espécie e, de repente, perguntou-me: "Mas, por falar nisto, meu caro compatriota, que diria de associar-se a mim, por exemplo, para periciar e avaliar os objetos?" Fizemos, finalmente, um acordo que me fazia participar de seus neg ócios, durante quatro anos. Antes de comprar definitivamente um objeto antigo, devia traz ê-lo para que eu fizesse a per ícia. Se isso n ão modificasse em demasia o itiner ário das viagens, que minhas atividades de escritor me obrigavam a fazer, eu iria ver os objetos no local e far-lhe-ia saber minha opinião, de maneira convencionada de antem ão. As coisas correram assim, durante certo t empo. Passava ele o ano inteir o percorrendo a Europa, descobrindo e comprando toda esp écie de objetos raros, que trazia para aqui, na Am érica, onde os revendia a antiquarios, principalmente em Nova Iorque. Quanto a mim, s ó agia sempre na qualidade de perito. No ano passado, entretanto, num momento em que a crise de minha situa ção material atingiu o ponto culminante, como esse neg ócio continuava indo bem, como haviam sido encontradas numerosas sa ídas e a Europa regurgitava de mercadorias dessa esp écie, tive a idéia de servir-me desse com ércio para refazer minhas finanças.
Decidi, pois, ampliar ao máximo a escala das opera ções conduzidas por meu s ócio. 293 Desde então, em vez de me conceder algum repouso, antes e depois de minhas cansativas viagens, como havia adquirido o h ábito nesses últimos anos, foi-me necess ário consagrar todas as horas dispon íveis a pedir dinheiro emprestado a diferentes pessoas que confiavam em mim e com quem estava em contato por uma ou outra raz ão. Depois de ter conseguido um empr éstimo de vários milhões de francos, investi-os totalmente no neg ócio. Encorajado pelo desenvolvimento de nosso empreendimento e pela perspectiva de lucros substanciais, meu sócio trabalhara, sem poupar esfor ços, para conseguir as mercadorias e, como fora convencionado, chegara à Am érica, com toda a sua cole ção, seis semanas antes de mim. Infelizmente, a crise geral tinha-se desencadeado nesse meio tempo e, como tocava particularmente esse campo, não podíamos mais contar com qualquer lucro, nem mesmo esperar recuperar nosso capital. Fora isso, precisamente, que tinha vindo dizer-me. Que termos poderia empregar, para descrever essa situa ção imprevista, quando j á defini a crise do ano passado como tendo atingido seu "ponto culminante"? Não poderia encontrar melhor expressão que uma senten ça de Mullah Nassr Eddin que me veio imediatamente à memória: Que uma filha careca tenha nascido da anci ã da aldeia e desse malandro de Mullah, n ão há por que gritar por milagre. Mas que uma cabeça de elefante e um rabo de macaco cres çam no corpo de um percevejo, eis o que seria surpreendente. Pois, para poder compreender por que minha situação material passava então por tal crise, não é necessário ser formado por uma grande escola. No ano passado, ao tomar a decis ão de desenvolver, em grande escala, meu com ércio de antigüidades na América, calculava que os lucros deviam permitir-me, não só liquidar todas as minhas d ívidas acumuladas, mas ainda publicar, sem depender mais de ningu ém, a primeira série de minhas obras, que contava ter terminado nesse momento e dedicar todo o meu tempo à segunda série. Infelizmente, essa crise americana imprevista afunda-me hoje, como teria dito Mullah Nassr Eddin, numa galocha tão profunda que é a custo que, de vez em quando, chega um filete de luz at é a mim. Durante seis anos, para ser capaz de preparar o material destinado às tr ês séries de livros que tinha a intenção de escrever, tive que, sempre e em qualquer lugar, em quaisquer condi ções e circunstâncias, 294 lembrar-me de mim mesmo e lembrar-me da tarefa que me fixara - tarefa pela realiza ção da qual queria e quero ainda justificar a meta e o sentido da minha vida. Tive que me manter sem desfalecimento, através dos sentimentos mais variados, num n ível de atividade interior de extrema intensidade, a fim de não me identificar com coisa alguma. Tive de me opor, por uma atitude impiedosa para comigo mesmo, a qualquer mudan ça no desenrolar autom ático das associações mentais e emocionais correspondentes aos temas de pensamentos, que me tinha fixado para esse per íodo. Tive, enfim, que me esfor çar por nada omitir, nem deixar de lado o que pudesse referir-se, corresponder logicamente ou contradizer alguma das inumer áveis séries de idéias distintas, cujo conjunto constitui a subst ância das minhas obras. No meu cuidado de expor meu pensamento, sob forma acess ível aos outros, minha concentra ção psíquica atingia, em certos momentos, tal grau, que me acontecia, durante tempo excepcionalmente longo, esquecer at é minhas necessidades mais essenciais. Mas o que havia de mais objetivamente injusto e de mais doloroso para mim, era que, durante esses per íodos de concentração interior de todas as minhas for ças, com vistas a transmitir aos homens um verdadeiro conhecimento, devia freq üentemente arrancar-me a esse estado e, ao preço de minhas últimas reservas de energia, acumuladas a duras penas, durante curtos intervalos, entre os momentos de trabalho intenso, elaborar planos complicados para adiar um pagamento ou quitar certas dívidas. Durante esses seis anos, cansei-me at é ao esgotamento e isto n ão à for ça de escrever, reescrever e fazer novas mudanças nas pilhas de manuscritos depositados no por ão especialmente instalado para meus arquivos, mas à for ça de virar e revirar, em minha cabeça, toda espécie de combinações, destinadas a adiar os vencimentos de dívidas crescentes sem cessar. Até hoje, cada vez que, para realizar minha tarefa, tinha necessidade desse aux ílio tão bem concretizado pela
palavra "dinheiro" e n ão o encontrava, era-me ainda possível resignar-me a isso, pois compreendia que o alcance real de minhas diversas atividades n ão podia ser reconhecido por todos. Mas, depois do que realizei, durante esses seis últimos anos, agora que minha meta se torna evidente para todos, n ão tenho a inten ção de me resignar a isto por mais tempo e acho que, ao contr ário, com toda tranqüilidade de consci ência, tenho o direito de exigir, de cada um dos que se aproximam de mim, sem distinção de raça, crença nem de situa ção material ou social, que 295 vele, como à menina de seus olhos, para que minha for ça e meu tempo possam ser reservados a atividades que correspondam ao verdadeiro sentido de minha individualidade. Para voltar à decisão categórica que tomei, depois que meu s ócio secreto deixou o Child's, eis em que consistia: enquanto estou aqui, entre pessoas que n ão sofreram as conseq üências catastr óficas da última grande guerra, que hoje vão arrastar-me com elas, sem o querer, é claro, a perdas consider áveis, quero, no entanto, uma vez mais, por mim mesmo, sozinho, sem que outros tomem a iniciativa (e, naturalmente, sem recorrer a nenhum meio que possa um dia suscitar em mim remorsos de consci ência), servir-me de certas faculdades, cujos dados se constitu íram em mim, devido à educação correta que recebi em minha inf ância, para adquirir uma soma de dinheiro que me permitir á, ao mesmo tempo, liquidar todas as minhas d ívidas e voltar para minha casa, no continente da Europa e viver ao abrigo da necessidade, durante dois ou tr ês meses. Demonstrando uma vez mais pela pr ática a verdade das id éias expostas no relato que acabo de rever, terei merecido experimentar novamente a mais alta satisfa ção que seja concedida ao homem pelo Nosso Pai Comum - antigamente definida pelo sacerdote eg ípcio que foi o primeiro mestre de São Moisés como satisfação de si, engendrada pela realização engenhosa de sua pr ópria meta, na certeza de uma consci ência pura. Hoje é o dia 10 de janeiro. Dentro de tr ês dias, segundo o calend ário estilo antigo, ser á celebrado o Ano Novo à meia-noite, hora memor ável para mim por ser a da minha vinda ao mundo. - Ora, segundo um costume estabelecido desde a minha inf ância, sempre comecei, a partir dessa hora, a conformar minha vida a um novo programa, invariavelmente baseado sobre um princípio bem definido, o de me lembrar de mim mesmo o mais possível em todas as coisas, a fim de dirigir voluntariamente minhas manifestações, bem como minhas reações às manifestações dos outros, de uma maneira que me permita atingir as metas escolhidas por mim para o ano vindouro. Neste ano, fixar-me-ei a tarefa de concentrar todas as faculdades presentes em minha individualidade, a fim de ser capaz, até à minha partida, prevista para meados de mar ço, de constituir honestamente, por meus pr óprios meios, a quantia de que necessito para liquidar todas as minhas dívidas. Quando de volta à França, recomeçarei a escrever, mas s ó com a única condição de, para o futuro, ficar liberado 296 de qualquer preocupa ção material e poder estabelecer meu modo de vida numa determinada escala. Se, entretanto, por qualquer razão, não conseguir cumprir com a tarefa que tomei a mim, ver-me-ei for çado a reconhecer o car áter ilusório de todas as id éias expostas neste relato, bem como as extravag âncias de minha imaginação e, fiel a meus princípios, ir refugiarme, com o rabo entre as pernas, como teria dito Mullah Nassr Eddin, na mais profunda das velhas galochas que j á tenham sido usadas por p és suados. E, se assim for, tomarei a decisão categórica de s ó fazer aparecer os textos, cuja revis ão terminei, isto é, a primeira série de minhas obras e dois cap ítulos da segunda; de cessar para sempre de escrever e, uma vez de volta à minha casa, acender, sob minhas janelas, uma enorme fogueira no meio do canteiro, para ali jogar de qualquer modo todo o resto de meus escritos. Depois do que, começarei uma vida nova, servindo-me das faculdades que possuo para a única satisfação de meu egoísmo pessoal. Já se esboça um plano, em meu cérebro louco, para minhas futuras atividades. Vejo-me organizar um novo Instituto, com numerosas sucursais, desta vez n ão mais para o Desenvolvimento Harmonioso do Homem, mas para a aprendizagem de meios in éditos