Jacques Le Goff com a colaboração de Jean-Maurice de Montremy
Em busca da Idade Média TRADUÇÃO Marcos de Castro
CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Rio de Janeiro 2005
Esta obra tem sua origem numa série de conversas entre Jacques Le Goff e Jean-Maurice de Montremy. O texto foi inteiramente revisto por Jacques Le Goff.
Sumário
PRÓLOGO
11
1. Tornar-se medievalista
15
IDADE MÉDIA SOMBRIA, IDADE MÉDIA CLARA: LUGARES-COMUNS UMA REVOLUÇÃO: 0 LIVRO. UM PROBLEMA: AS FONTES
2. Uma longa Idade Média
SI
A NOÇÃO DE "RENASCIMENTO"
57
UM MILÊNIO E SEUS PERÍODOS
63
1 2 1 5 : LATRÃO IV, O CONCÍLIO CAPITAL
73
3. Mercadores, banqueiros e intelectuais A INVENÇÃO DA ECONOMIA
96
UM OUTRO ESPAÇO: 0 PENSAMENTO
104
FRANCISCO DE ASSIS. MENDICANTES NA CIDADE
4. Uma civilização toma corpo O CÉU DESCE SOBRE A TERRA
125
INFERNO, PURGATÓRIO, PARAÍSO 139 EUROPA OU OCIDENTE? A FEUDALIDADE
147
156
O PRESTÍGIO DO DIREITO
87
161
9
121
110
34
22
SUMÁRIO
5. Na terra como no céu o HUMANISMO MEDIEVAL
169 176
HEREGES, JUDEUS, EXCLUÍDOS OS ANJOS E OS DEMÔNIOS
186
193
QUANDO MARIA PROTEGE. A "BOA MORTE"
EPÍLOGO
211
BIBLIOGRAFIA
219
202
Prólogo
Jacques Le Goff — ver-se-á no início destas conversas — partiu muito cedo em busca da Idade Média. O começo de tudo foi a emoção de um jovem leitor: a floresta de Ivanhoé, figuras arrebatadoras, Walter Scott, o romance histórico... Claro, o pequeno tolosino ainda não sabia que as duas palavras (romance, história) carregavam em si mesmas uma longa aventura humana, espiritual e concreta. Entretanto já se desenhava uma paisagem interior, cuja exploração até agora continua sendo o "encanto" do erudito, do sábio, do professor, do chefe de equipe, irremediável e incuravelmente curioso. Curioso para perceber a emoção, a poesia, o que está por trás das coisas. Curioso para compreender aqueles homens, aquelas mulheres, aquelas sensibilidades desaparecidas. Mas curioso, principalmente, ao viver o tempo presente, cujos choques e violências são objeto de seu interesse apaixonado tanto quanto o passado. A investigação, para Jacques Le Goff, nunca cessou. Quase se poderia dizer: a busca. Porque a Idade Média, cujo estudo ele empreendeu, era bem mais do que um período. Le Goff teve rapidamente a intuição de encontrar um mundo, uma civilização, muito próximos e muito longínquos. Apesar do intenso trabalho de esquecimento — às vezes de negação — que leva nossa cultura a se afirmar contra as suas origens (até
mesmo a criar essa expressão cruel, a "Idade Média"), os intensos mil anos que apaixonam Le Goff nos falam muito de perto. E exatamente o nosso problema: somos freqüentementes medievais quando nos vangloriamos de sermos modernos; e freqüentemente não passamos de "apreciadores da Idade Média" quando cremos nos enraizar no tempo das catedrais, dos cavaleiros, dos lavradores e dos comerciantes. Os códigos e os valores desse longínquo passado-próximo são bem mais estranhos a nós do que habitualmente pensamos. Mas lhes devemos bem mais do que queremos admitir. Curioso, por isso mesmo sempre buscando, Jacques Le Goff compreendeu — e fez compreender — a que ponto a própria Idade Média buscava alguma coisa. O historiador o reconhece de bom grado: se ele contribuiu para mudar nossa visão da Idade Média, a Idade Média contribuiu para mudar sua própria visão do presente. No correr destas entrevistas, o grande medievalista propõe uma síntese de seus trabalhos. Conta como foram escritos seus livros, e como se desenhou pouco a pouco uma visão global dessa civilização que modelou a cultura "ocidental", em suas qualidades como em seus defeitos. Fernand Braudel falava de economia-mundo. Jacques Le Goff nos convida a descobrir uma civilização-continente. Porque é bem a Europa que se desenha pouco a pouco a partir dessas pesquisas no espaço e no tempo. Uma Europa de fronteiras mais culturais do que geográficas. Uma Europa que jamais foi inteiramente uma "cristandade", ainda que, durante séculos, tenha se imaginado como tal. Jacques Le Goff mostra com clareza como esse ideal permitiu à Idade Média construir-se — antes de gerar o nosso próprio tempo, não sem dilacerações. A própria "cristandade" evoluiu paralelamente, surgindo de um
modelo territorial, o Ocidente, que não era o seu originariamente. A cidade celeste caminha na cidade terrestre. Não pode se fixar nesta, nem se confundir com ela. A cidade celeste atravessa a cidade terrestre. Porque a cidade aqui de baixo está decadente, enquanto que a cidade lá de cima ignora os achaques do tempo. Esse foi o ensinamento de Santo Agostinho, incansavelmente retomado e discutido pelo pensamento medieval. Esses homens, essas mulheres, pensavam que o m u n d o estava no fim de sua caminhada, a humanidade desgastada, declinante. De todo modo, não deixaram de inventar, de melhorar, de aperfeiçoar. Esses homens, essas mulheres, imaginavam um universo fechado, os valores solidamente encarnados nos lugares e nos objetos. Peregrinavam, contudo, de passagem para um outro mundo, no sentido de um outro espaço, na esperança de um outro tempo. Criaram o novo, ainda que o próprio princípio de "novidade" lhes parecesse detestável. Quanto a nós, podemos nos perguntar se nossa pretensão de sermos sempre mais "novos" não trai, ao contrário, imobilismo e embotamento. Assim projetamos sobre a Idade Média as nossas sombras, sem lhe ver as luzes. Revisitar a civilização medieval com Jacques Le Goff é descobrir o dinamismo e o otimismo racional próprios de nossos predecessores. Sem para isso idealizá-los. Neste início do século XXI, claramente aberto a "grandes medos", esses reencontros podem nos reservar agradáveis surpresas.
BI
Estas conversas se deram a cada 15 dias, de 21 de fevereiro a 24 de julho de 2002. Jacques Le Goff reviu, enriqueceu e desenvolveu o texto durante os meses de agosto e setembro. As questões apresentadas, quase sempre reduzidas ao mínimo, foram mantidas para conservar — na lógica própria da escrita — o ritmo e a amplitude que fazem de Jacques Le Goff um digno herdeiro dos mestres medievais, sempre preocupados em atrair a atenção de seu público.
Na vasta floresta que cobre "a maior parte das pitorescas colinas e vales entre Sheffield e a graciosa cidade de Doncaster", dois homens conversam neste ano de 1194: o porqueiro Gurth e o bufão Wamba, as primeiras personagens com que topa o leitor de Ivanhoé (1819). A paisagem leva a sonhar. Walter Scott tem prazer em descrevê-la: "O sol iluminava com seus últimos raios uma das belas e verdes clareiras [...] Carvalhos de ampla copa, grosso tronco, grandes galhadas, testemunhas talvez da marcha dominadora dos soldados romanos, estendiam às centenas seus galhos nodosos sobre um lindo tapete de relva..." Foi dessa maneira, em 1936, que descobri a Idade Média. Tinha doze anos, vivia em Toulon, onde meu pai ensinava inglês. Já tinha paixão pela história — a idéia de estudá-la me veio desde a idade de 10 anos. Não me lembro infelizmente por quê... Lendo Walter Scott, não restou qualquer dúvida: a história confirmava sua influência sobre mim. E assumia os traços da Idade Média. Uma Idade Média situada num cenário material de encantamento: a floresta, claro, depois o castelo de Torquilstone cujo cerco e assalto ocupam uma boa parte da narrativa; e mais ainda, talvez, a justa de Ashby, com suas barracas, suas tendas, seu tumulto, suas cores, suas tribunas,
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BUSCA
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IDADE
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ocasião em que se misturavam o povinho, mercadores, damas nobres, cavaleiros, monges, sacerdotes. Não pretendo ter descoberto, em idade tão tenra, a importância da civilização material; menos ainda, tendo me apaixonado pelo romance lvanhoé, posso dizer que tenha criticado os programas escolares, freqüentemente reduzidos à narrativa política, aos "grandes homens" e aos acontecimentos. E claro, eu ignorava que, desde 1929, existia um certo movimento denominado Annales, tão importante para mim, mais tarde. Igual paixão me arrebatou, uns quarenta anos mais tarde, lendo a Bataille de Bouvines (1973), na qual Georges Duby me fez reviver as lembranças do torneio de Ashby. Tive a mesma sensação, vendo Duby a valorizar o complexo "militar-industrial" das justas e batalhas, tive o mesmo prazer que sentira outrora com a formidável aparição do cavaleiro desconhecido — armadura de ouro e aço — trazendo sobre o escudo a inscrição "Desdichado", o Infortunado, o homem que desafia o selvagem templário Briand de Bois-Guilbert... Um torneio era verdadeiramente uma coisa enorme. Seria possível compará-lo com uma corrida de Fórmula 1: investimentos financeiros e técnicos, bases comerciais, vasta rede de subempreitadas, etc. A essas imagens, que nada tinham perdido de seu poder de encantamento, Duby acrescentava suas demonstrações de historiador — explicar em profundidade o que de saída não parece passar do pitoresco e de casos. Nesse meio-tempo eu me tornei medievalista. Essa leitura teve, de imediato, uma conseqüência inesperada. Comovido com os sofrimentos dos judeus, causados pelos normandos, em particular as provações pelas quais passa a bela Rebeca — Bois-Guilbert, decididamente repugnan-
TORNAR-SE
MEOIE
te, a acusa de feitiçaria — logo desejei passar à ação contra o anti-semitismo e o racismo. Mas alguns de nossos amigos suspeitavam das organizações que combatiam o anti-semitismo e o racismo, acusando-as de maçónicas e anticatólicas, o que inquietava minha mãe, descendente, por um lado, de italianos e altamente piedosa. Mandou-me ela consultar o arcipreste* da catedral de Toulon, que me garantiu: eu podia militar em tais movimentos. Rebeca, decididamente deslumbrante, foi um dos primeiros papéis de Elisabeth Taylor no soberbo lvanhoé de Richard Thorpe, de 1952. Perdido no tempo, esse pequeno caso me parece revelador. O estudo da Idade Média tem suscitado sempre, em minha vida pessoal, "efeitos paralelos". Freqüentemente, depois de ter abordado tal ou qual tema da história ou da cultura medievais encarei de modo diferente as questões de hoje: questões graves, como as da guerra ou da violência; questões aparentemente mais superficiais, como a cozinha. Ainda que eu nunca tenha encarado a cozinha de modo superficial! A Idade Média certamente não me trouxe soluções para o tempo presente. Em compensação, ela trabalhou em mim tanto quanto eu trabalhei nela — e trabalhou em mim como homem militante tanto no século XX como agora no XXI. Para adaptar uma fórmula de Stanislas Fumet, há uma história da Idade Média em minha vida, nas "dádivas" que a história faz ao historiador. A história me empurrou para a ação. Jamais eu poderia separar minha leitura de lvanhoé do entusiasmo que suscitava em mim o Front Populaire naquele mesmo ano de *Era o pároco de uma catedral ao qual habitualmente o bispo delegava funções. O título náo existe mais ína formação da palavra, preste é uma contração do latim presbyter, vocábulo originário do grego presbúteros, que significa "mais velho" e, por extensão, "sacerdote"). (N. do T.)
1936.* Não me lembro de acontecimento que me tenha provocado o mesmo entusiasmo. A Libertação* * não me deu essa felicidade, pois não apagava nem a derrota nem a amargura dos anos negros, nem a descoberta do horror. Ah, mas 1936! Robin des Bois*** de um lado. Do outro as experiências sociais... Compreendi mais tarde que eu transferia minhas emoções (meus problemas, inconscientemente) do presente para o passado, que eu transformava em coisas vivas as coisas do passado. A Idade Média só me conquistou por seu poder quase mágico de me transportar para um ambiente novo, de me arrancar das inquietações e das mediocridades do presente e, ao mesmo tempo, de tornar o presente para mim mais ardente e mais claro. Notre-Dame de Paris não teve, sobre o senhor, o mesmo efeito ? Li mais tarde, com prazer, o romance de Hugo. Era um dever escolar. Não teve para mim o mesmo sentido de liberto nome sofreu influência direta da Frente Popular da Espanha, cuja mítica guerra civil se iniciava naquele ano. Foi a coalizão dos partidos de esquerda (comunistas, socialistas e radicais) que ganhou as eleições de 1936 na França, empolgando o povo com a palavra de ordem "Pão, Paz e Liberdade". O sucesso, particularmente dos socialistas, levou Léon Blum à chefia do governo. Mas os desentendimentos dentro das próprias facções da esquerda e a confusão do período pré-Segunda Guerra Mundial não permitiram que o governo do Fror.t Popuiaire durasse muito e Léon Blum foi constrangido a demitir-se em 1937. Num breve período ce menos de um mês (março-abril de 1938), Blum voltou à chefia do governo, mas a exigência do fim das greves, por Daladier, e os problemas exteriores do país puseram fim ao espírito do Front Popuiaire. {N. do T.) **Libertação da França do jugo nazista na Segunda Guerra. (N. do T.) ***Walter Scott, como se sabe, inspirou-se, para escrever Ivanhoé, nas histórias de Robin Hood, que os franceses também chamam de Robin des Bois (Robin dos Bosques). (N. do T.)
dade. Acho, também, que o fato de ser muito bem escrito cria um paradoxo para Notre-Dame de Paris: sua soberba linguagem supera o conteúdo. E o conteúdo, em Hugo, não é a Idade Média, nem mesmo quando trata da vida de uma catedral. O conteúdo é o próprio livro, a formidável visão. Claro, Hugo tem como referência Walter Scott. Entretanto não se trata — não se trata mais — de um romance histórico. E uma visão. De t o d o modo, não quereria deixar a impressão de que lvanhoé foi a causa única de minha opção pela Idade Média. Esse período histórico ainda era estudado no programa da Quatrième* Tive a sorte de ter nessa série um professor de História excepcional, Henri Michel. Ainda que não fosse um medievalista, ele sabia contar, sabia interessar os alunos e tratar de maneira imparcial os assuntos mais delicados; não se contentava em descrever: dedicava-se a explicar. Militante socialista, agnóstico, Henri Michel contudo falava muito bem da Igreja, o que não deixava de me seduzir, porque eu era um menino católico praticante, como o desejava minha mãe — enquanto meu pai era anticlerical, até mesmo anti-religioso. Dando o pontapé inicial, Henri Michel já anunciava o essencial do jogo: "Na Idade Média, a Igreja domina tudo." Minha devoção de então — relativa, certamente, porém sincera — estava seduzida. Sensibilizava-me o fato de que um leigo tratasse do assunto com competência e respeito. Grande resistente durante a Segunda Guerra, Henri Michel tornou-se um especialista dos mais conhecidos sobre esse período.
IDADE MÉDIA SOMBRIA, IDADE MÉDIA CLARA: LUGARES-COMUNS
Que visão se deve propor,; então, da Idade Média? O que eu achava então já mudou muito — praticamente a seqüência de meus trabalhos alterou tudo em mim. Mas, à época, digamos que duas imagens se superpunham: uma Idade Média "negra" e uma Idade Média idealizada. Tive a sorte, graças a Henri Michel e depois a outros mestres, de escapar dessas imagens. Que continuam a ter seu peso, ai de nós, sobre as mentalidades de hoje. A rica escola medieval francesa, apesar de seus sucessos científicos, parece não ter mudado nada nos meios de comunicação e nas idéias transmitidas. Às vezes me sinto desencorajado ao reencontrar intactos os dois clichês vindos dos séculos XVIII e XIX: de um lado a Idade Média obscurantista e, como contraste, a Idade Média "dos trovadores", suave. Fica-lhes a visão dos filmes, dos romances históricos, das publicidades. Recentemente, Carla dei Ponte — procuradora geral do Tribunal Penal Internacional — denunciava a "purificação étnica" empreendida por Slobodan Milosevic como uma prática "medievalista"\ Já nem falo da visão depreciativa, pois se trata de uma visão burlesca, propos-
ta pelo filme Os visitantes... A concepção subjacente a esses julgamentos pré-fabricados revela, além de tudo, uma idéia falsa e primária do progresso e da história em geral. Até mesmo pessoas cultas permanecem com uma visáo dessas aproximações, já extemporâneas na minha juventude. "Não estamos mais na Idade Média", clamavam os melhores espíritos diante das violências, dos atos bárbaros, dos movimentos de multidão incontrolados. Em contrapartida, propunha-se uma outra versão, estilizada, procedente do romantismo: a Idade Média era, para retomar um recente refrão de sucesso, deturpando a obra de um grande historiador, "o tempo das catedrais", a fé simples e bela. Sonhava-se com uma época artesanal e erudita, numa escala simultaneamente humana e divina. A primeira dessas tradições, a negra, remonta ao humanismo, ao autodenominado Renascimento (o primeiro a "envolver em trevas a Idade Média" é Petrarca), e foi infelizmente retomada, como num revezamento, pelas Luzes. Estava bem instalada nos círculos influentes da III República. A segunda versão, "catedrais", constrói-se, por sua vez, depois da Revolução Francesa, quando Chateaubriand, contestando as Luzes, redigiu seu O gênio do cristianismo (1802), com o elogio da natureza e do gótico, da simplicidade, do ideal — grande livro poético, de resto. Retomada e aprofundada por Charles Péguy, essa Idade Média popular, à francesa, seduzia antes da guerra tanto a esquerda como a direita. Isso permitia, é certo, grandes sucessos corno a apresentação das companhias de teatro itinerantes, com que uni Jacques Copeau depois um Jean Vilar percorriam as estradas desde antes da guerra. Daí sairão o Festival de Avignon e, lá, a espetacular utilização do famoso
pátio do Palácio dos Papas. Mas isso não é a Idade Média. Com as melhores intenções, um grande cineasta como Mareei Carne recria em Os visitantes da noite u m a Idade Média de segunda classe (1942). Acrescentem-se os devaneios das corporações, o espírito cavaleiroso, as pieguices do espírito cortesão, a bonomia rabelaisiana das trovas. Um espetáculo medíocre representado por atores em andrajos, nisso se transformou a Idade Média "enorme e delicada" de que falava Verlaine — tempo heróico, às vezes violento, bárbaro; simplesmente belo. Gide confessava que não pôde ler a Chanson de Roland* (o romantismo dela não guardava mais do que a trombeta de Roncevaux). Afinal, não se freqüentava a extraordinária literatura medieval, difícil de penetrar, mas, quando o conseguíamos, ah, como era compensador! Q u e seria da cultura européia sem as canções de gesta, os romances arturianos, El cantar de mio Cid, Dante e Chaucer? Essa literatura — nem negra nem dourada — exprime esse tempo, esses homens e essas mulheres, cheios de força e de vida, incrivelmente criadores, distantes da verdade frouxa, do moralismo reacionário ou da estética são-sulpiciana.**
A insistência do regime de Vichy em explorar o filão desacreditou essas visões sempre mais regressivas, até acabar com elas. A versão "dourada", se assim posso dizer, contenta-se, na verdade, em ir contra a versão "negra", tomando o sentido inverso. Para acertar suas contas com as Luzes (ou com a idéia que fazia das Luzes), o regime de Pétain louvava em "sua" Idade Média um espírito de ordem e de fé dóceis, de um jeito muito pessoal. Tudo isso, seria preciso compreender, já vinha viciado desde os modernos e minado por agentes corruptores estrangeiros. Essa Idade Média me foi oferecida — mas eu a rejeitei. Na época em que eu lia Walter Scott e me enriquecia com os cursos de Henri Michel, via a Idade Média, apesar de seus ecos contemporâneos, como um mundo longínquo, diferente do nosso. Nela conviviam práticas bárbaras e figuras sublimes, impressionantes. Essa Idade Média já não vivia entre nós: tinha desaparecido. Era um sonho que se esfumava. Minha única lembrança medieval de então, aquela do monte Saint-Michel, vista com a idade de nove anos, confirmava essa distância. Saint-Michel "sob a ameaça do mar", diziam os homens da Idade Média! Para eles, o mar era alguma coisa de inquietante, de selvagem, ainda próxima do caos bíblico, que de certa forma tinha escapado da organização inacabada da Criação. Talvez eu tenha então percebido confusamente esse espírito aventuroso: desafiar com pobres meios o desconhecido, a imensidão... A verdadeira descoberta da Idade Média "concreta" deuse portanto mais tarde, em 1939, eu tinha quinze anos. Afinal, vi vestígios medievais. Não foi em Toulon, cujo desenvolvimento é bem mais recente. Por ocasião de uma viagem aos Pireneus, mudamos de trem em Toulouse. As poucas horas 2 5
de tempo disponíveis aproveitei-as para visitar lugares. Assim tive a revelação da igreja abacial de Saint-Serain, a maior igreja romana da França. Fiquei profundamente emocionado. Pareceu-me evidente que se tratava de um outro mundo, muito distante daquela primeira metade do século XX na qual eu vivia. Quem então tinha construído aquilo e para quem? Como conhecer esses homens, essas mulheres? Evidentemente, eu estava muito feliz por não viver na "Idade Média". Adivinhava-a desprovida de muitas das comodidades cotidianas de que dispunha em minha vida já naquele finzinho dos anos 1930. Senti, entretanto, uma certa nostalgia, como se esse surgimento da Idade Média não fosse tão antigo, como se os laços rompidos nos privassem de alguma coisa, nos afastassem de homens que eu teria desejado ouvir. O torneio de Ashby construía sua pompa a partir do povo que lá se comprimia, tão próximo, entretanto tão diferente. Sentia essa multidão como coisa muito diferente de um público de um jogo de futebol ou de rugby. Eu era jovem. Muitas coisas desapareciam, outras nasciam. Quando o cinema se tornou falado eu tinha seis anos. Nossa família ainda não tinha telefone, embora o aparelho já existisse. Via claramente as mudanças que se processavam na relação espaço-tempo. O mesmo se p o d e dizer quanto ao automóvel (também não tínhamos um, aliás) e a tudo que se referia à vida do dia-a-dia. Só mais tarde apareceram os refrigeradores: durante anos vivemos no ritmo venerável das geladeiras nas quais púnhamos blocos de gelo comprados nos entrepostos ou de vendedores ambulantes. De repente, podíamos controlar o frio, enganar o tempo. Tive o "sentido da história" — o único que mais tarde não seria abalado; e ainda...
Sentia muito claramente nossa entrada numa outra era. Adivinhava que essas mudanças materiais, cotidianas, eram um dos componentes fundamentais da História. Que a História, ainda uma vez, não se limitava às batalhas, aos reis, aos governos. Uma certa maneira de ser e de pensar tornava-se ultrapassada. Mais tarde, chamaria esse movimento de mudança de mentalidade — mudança que acompanharia as trocas materiais. Certamente, eu não distinguia todos os estratos depositados em nossas vidas pelos séculos sucessivos. Entretanto, via perfeitamente que ficava um pouco da Idade Média em nosso mundo e em nossas existências e que essa Idade Média tinha passado, definitivamente — mas deixava heranças. Parecia-me, para encerrar, que o desaparecimento se tinha precipitado, acelerado, liquidado, com a guerra de 1418, cujas marcas, faltas, vazios permaneciam onipresentes em torno de mim. Por ocasião da derrota de 1940, eu tinha dezesseis anos. Vivi a Segunda Guerra. Mas não sentia durante esse período a sensação do fim de um mundo que antes me sugeria a lembrança de 14-18 conservada por meus próximos e seus contemporâneos. A História, para mim, nos anos 30, também se passava do outro lado de um muro — a Grande Guerra, de que todos falavam — para reencontrar essa vida tão diferente, essas "pessoas médias", como nós, já quase exóticas, embora só vinte anos se tivessem passado. A juventude de meus pais a meus olhos tinha transcorrido num outro mundo. Com a irrupção espantosa de um futuro: o cinema.
O senhor falou de nostalgia... Sim, ainda que haja necessidade de ser claro. Minha Idade Média não devia nada aos modos neomedievais de que acabo de falar. Nela eu descobria, contudo, um prazer nostálgico, indissociável da História em geral, e que, acredito, todos os historiadores sentem: o prazer nostálgico de uma luta contra a morte. A História mergulha na vida do passado, prolonga essa vida desaparecida, e a ressuscita—ou, pelo menos, é como se a ressuscitasse, sabendo, entretanto, obscuramente, que essa ressurreição arrisca-se a ser apenas provisória. O ofício de historiador situava-se, assim, para o adolescente que eu era, entre os ofícios que o homem tinha inventado para viver e fazer viver. Eu me sentia próximo dos médicos e dos artistas — sem dúvida, quanto a este último ponto, por causa de minha mãe, que me ensinava piano. Eu via, eu ouvia, que bastava correr os dedos sobre o teclado para que obras antigas revivessem, para que épocas passadas ressoassem entre nós... Um professor de história (não me ocorria então tomarme um pesquisador) aos meus olhos era de certo modo parecido com um pianista. Tinha de decifrar, aprender, transmitir, restituindo a vida. Os documentos eram partituras e, em relação aos médicos, o passado era um organismo humano ao qual era preciso dar vida, alguma espécie de vida... Não me passavam pela cabeça nomes técnicos quanto às coisas que me atraíam, mas hoje posso dizer que desde cedo tive interesse por dois tipos de história: a história social e a história cultural. Duas histórias que se cruzavam, na minha inegável curiosidade pelos rituais e pela liturgia. Quer se trate dos torneios, quer se trate, igualmente, da Igreja. Como disse, não me dominava — ao contrário de minha mãe — um sentimento religioso intenso, mas eu era sensível
à religião que se expressava, para um menino de Toulon, sob a forma do catolicismo pós-tridentino, meridional. O Concílio Vaticano II, a revolução [da Igreja] dos anos 1960-1970, sacudiram tudo isso como que criando um outro mundo. As pessoas nascidas nos anos 50 só fazem disso uma idéia nebulosa. Para as gerações posteriores a 1960, isso é chinês. Minhas lembranças foram como que reconstruídas. Creio, porém, que o distanciamento já existia nos anos 1930. Distanciamento, mas não estranheza. Eu observava as velhas liturgias sem nelas me integrar, seja nos gestos, seja na emoção. Essas liturgias, afinal, não eram tão velhas assim: enraizavam-se no século XVII e, mais ainda, no ardente esforço de restauração que o século XIX representou. Pouco restava da Igreja medieval. Mas, seja como for, havia ainda uma presença forte dos velhos rituais, diante dos quais, a exemplo de tantas outras pessoas, eu me via como na soleira de uma porta: um pé para dentro, outro para fora. Poderia dizer as mesmas coisas de outros costumes, como a distribuição dos prêmios de íim de ano: os professores, de beca, a interminável litania das leituras de relações de premiados, a entrega de livros e de diplomas... Desde a classe de Quatrième, tais cerimônias me pareciam estranhas, tão fascinantes e "medievais" como esse famoso torneio de Ashby. Inconscientemente, eusentia a necessidade de ir além de Jules Ferry* para ver a Escola sair da História.
Vem, então, desde o secundário, sua decisão, senão de tornar-se historiador; pe/o menos de ensinar história. Não é tão simples assim... Os estudos, em si mesmos, nunca foram um problema maior para mim. Seu conteúdo, isso sim, me trouxe mais problemas. Eu fazia o bacharelado.* Era a primavera de 1940. Estava compondo uma redação em latim para o concurso final, quando o inspetor de sala saiu por um momento, anunciando-me, ao voltar, que Hitler tinha invadido a Bélgica. Os bombardeios italianos sobre Toulon, em maio, nos levaram a sair da cidade (meu pai, por motivos de saúde, não podia descer para os abrigos). Refugiamo-nos nas proximidades de Sète,** num sítio posto à nossa disposição por parentes. Candidato-me então, para terminar o bacharelado, à prova oral em Montpellier, no distrito-sede da Academia. Quando estava na famosa praça "do Ovo", alto-falantes transmitem o discurso de Pétain, anunciando que solicitara de Hitler o armistício. Um militar que passava pela praça tira seu uniforme e clama, em roupa de baixo, que não vestirá mais uma farda que tinha sido desonrada. Para mim, a França, que será minoritariamente a da Resistência e maioritariamente a cortesã vil do velho cuja voz vergonhosa e trêmula eu ouço, será sempre, até que eu venha a
saber da declaração de De Gaulle de 18 de junho,* a do protesto público daquele simples soldado. Tendo completado o bacharelado, fiz, na Marselha em guerra, os preparatórios para a Escola Normal Superior e depois o início do curso na própria Escola Normal Superior, com admiráveis professores e condiscípulos, alguns dos quais continuaram pela vida afora meus amigos mais queridos. Chegou o tempo em que eu teria de dar meu "trabalho obrigatório" para a Alemanha, o STO.** Foram alguns meses que passei num maquis alpino. Depois, no fim de 1944, Paris libertada, um curso no liceu Louis le Grand. Era um curso menos vivo, menos inspirado que o de Marselha, porém terrivelmente eficaz. Entrei para a Escola Normal em julho de 1945. Acredito que essa experiência modesta e marginal da Segunda Guerra, acrescentando-se a minhas reflexões já antigas sobre a história como ciência concreta, humana, me tornou incapaz de suportar uma história poeirenta, aquela a respeito da qual Lucien Febvre disse, como vim a aprender mais tarde, que os camponeses só lavravam a terra como cartulários, cuidavam apenas dos forais e títulos da terra. Tive de seguir, paralelamente, cursos na Sorbonne, como era rotina então. Minha decepção foi cruel. Com raras exceções, cs historiadores sorboneses me deixaram oprimido, a tal ponto que pensei em abandonar a História. Não encon-
trava em parte alguma as coisas que tinha começado a aprender em Toulon e em Marselha. Houve um momento em que estive tentado a bifurcar para o estudo da língua e da civilização alemãs. Esse conceito de "civilização" me atraía. A abordagem cultural, a própria noção de civilização, cruzando as disciplinas, prometedora de vida, de ressurreição dos homens e da vida social, parecia na verdade ausente da história historiadora praticada naqueles anos. Tinha sido, no curso secundário, apaixonado pela língua e literatura alemãs. De um modo que surpreendeu a mim mesmo, consegui estabelecer a diferença entre a Alemanha e os nazistas. Nos preparatórios em Marselha, um admirável professor (depois dos ótimos que eu tinha tido em Toulon), Henri Pizard, abriu-me a visão para o m u n d o maravilhoso de Goethe, Heine, Rilke, Thomas Mann. Esse professor foi morto durante a libertação de Marselha (morte acidental, terrível acaso). Estudando alemão e a civilização alemã de certa forma eu prestaria uma homenagem à sua memória. De novo, porém, a decepção não tardou. Por trás da bela palavra "civilização" só se viam fórmulas estreitas. E a filologia perturbava tudo. Voltei-me então para a História, especialmente por causa dos cursos de história antiga que me pareciam os mais interessantes. Mas nesse caso faltavam competências — especialmente técnicas (arqueologia, epigrafia) — que eu não tinha e que não me atraíam. Contudo, dirigi minha atenção para essas técnicas. Com elas, amarrei-me afinal ao problema maior do historiador: o da documentação. Disse que havia um prazer nostálgico em nossa atividade. Esse prazer é a única recompensa final. Antes disso está a exigência básica: empregar e pesquisar os documentos. Não é possível entregar-se a este
ofício sem as fontes, e sem saber utilizar essas fontes, com um rigor verdadeiramente científico. Assim descobri a paleografia, que é a ciência da leitura das escritas antigas. Leitura nos dois sentidos do termo: a decifração e a interpretação. O contato com o manuscrito me apaixonou. Trata-se, na maioria das vezes, de peles de animais, de pergaminhos, matéria agradável de ser tocada. Sente-se, então, materialmente, o trabalho do escriba. Sua tinta, sua pena, seus códigos, suas pequenas manias, seu trabalho. A paleografia, afinal, confirmou meu gosto pela Idade Média. Sem dúvida, ela é que me orientou definitivamente para a pesquisa. Isso não me impediu de gostar de ensinar, ainda que tenha sido breve minha passagem ensinando num curso secundário (um ano em Amiens, 1950-1951), depois na Faculdade de Letras de Lille (1954-1959). Guardei, de minha vocação inicial —retomar a chama de meu pai ou de um mestre como Henri Michel —, o prazer de comunicar o resultado de minhas pesquisas, de partilhálos e de cooperar com outros pesquisadores. Falarei mais adiante do grande sábio, do mestre rigoroso e humano que me manteve definitivamente na Sorbonne e que, nela, definitivamente me conduziu à Idade Média, Charles Edmond Perrin — sem que nós partilhássemos da mesma concepção da história. E mais adiante ainda, dos dois medievalistas que me abriram os grandes espaços da história medieval: Maurice Lombard, na Escola de Altos Estudos, e Michel Mollat du Jourdain, na Universidade de Lille.
UMA REVOLUÇÃO: O LIVRO. UM PROBLEMA: AS FONTES
Para o profano, falar de epigrafia, de manuscritos, de impressos — tudo parece a mesma coisa. Essas ciências são ciências da fonte. Mas requerem técnicas diferentes e se aplicam a períodos diferentes. Há uma lógica da epigrafia, há uma lógica do manuscrito, do impresso, da imagem, etc., que estruturam a abordagem do historiador. Fazer a história da Antigüidade sem arqueologia e sem epigrafia — a decifração das inscrições — seria uma brincadeira. De saída, o historiador da Antigüidade mantém com sua matéria uma relação diferente daquela mantida pelo historiador do mundo contemporâneo com seus arquivos. A natureza dos documentos de que dispomos influi sobre nossa maneira de pensar os períodos estudados. Um historiador da Revolução Francesa raciocina a partir de materiais que não "funcionam", se assim posso dizer, do mesmo modo que aqueles a que recorre um especialista em Primeira Guerra. Quanto à Idade Média, é inseparável dos manuscritos. Ela os produziu. E também foi produzida por eles. A Antigüidade se expressava através de rolos — o que supõe uma relação com o texto particular: as idas e vindas para diante e para trás exigem uma manipulação mais longa. 0 enquadramento das linhas e dos parágrafos depende da superfície sobre a qual o escriba, ou o leitor, pode se apoiar; a noção de frase e de pontuação não é a nossa. E assim por diante. Enfim, o rolo quase não favorece a leitura silenciosa. Ainda que soubessem perfeitamente ler e escrever, os poderosos e os sábios da Antigüidade tinham o hábito de dizer o texto, porque os leitores especialistas manipulam rapidamente
os rolos, libertando seus donos (ou mestres) de todo constrangimento material. Assim, quase sempre os mestres preferem ditar. A generalização do códex (nosso livro, com páginas e cadernos) marca uma passagem. O livro-códex seria um ótimo modo de situar o nascimento da Idade Média, desde o fim do século IV. O livro-códex favorece a leitura pessoal, interiorizada, mesmo que a leitura totalmente silenciosa só venha a se generalizar no século XIII. Até então, ainda é preciso imaginar os leitores — mesmo solitários — murmurando os textos ou, pelo menos, mexendo os lábios. O advento definitivo da leitura silenciosa, ainda mais interiorizada, corresponde, afinal, a um novo período da Idade Média. Supõe uma profunda modificação da memória, uma vez que a facilidade do emprego do códex e o desenvolvimento das margens permitem um jogo de localização ou de remissão. A Antigüidade, certamente, conhecia a margem, as notas explicativas, etc. Faltava, contudo, um espaço racionalmente distribuído. Com o códex, surgiu esse espaço. E o indivíduo, lendo sem necessidade de auxílio, afirma-se. Seja dito de passagem, afastei-me da história inglesa, que entretanto me era muito querida, em parte porque a chancelaria real da Inglaterra foi a única a manter longamente o venerável uso do rolo. Isso torna a consulta penosa e incômoda. Por fim, há a própria escrita. Diga-me como tu escreves e eu te direi quem és. A que escritório o escriba pertence, a que corte, a que grupo, a que meio. A reforma da escrita durante o reinado de Carlos Magno é um momento fundador, carregado de conseqüências. Por volta do ano 800, os scriptoria — esses escritórios dos escribas, na maioria das vezes monásticos — impõem o domínio de
uma pequena escrita caligráfica, a "minúscula" carolina. A palavra "carolina" vem de Carolus, Carlos; a "minúscula" designa, claro, uma distinção fundamental em relação à maiúscula. Sabe-se que a Antigüidade, especialmente as epigrafias, privilegiava a maiúscula, claramente legível, mas necessariamente mais esquemática. Essa carolina responde a uma exigência religiosa e política: Carlos Magno e o seu círculo mais próximo querem uma edição confiável, uniformizada, dos velhos manuscritos, especialmente os dos Evangelhos e dos Padres da Igreja, cujo texto é antes de mais nada restabelecido a partir dos mais antigos e mais fiéis manuscritos então conhecidos. A constituição desse corpus corresponde à utilização de novo instrumento gráfico. Todos os textos serão escritos em latim, todos da mesma maneira. É a base de uma civilização, um movimento que altera pouco a pouco a maneira de transmitir e de ensinar. A constituição das Universidades, nos séculos XII e XIII, já se acha potencialmente nessa profunda reorganização da escrita. Depois disso é possível julgar fisicamente, à só visão dos manuscritos, a importante virada que são os séculos XII e XIII. A minúscula carolina desaparece. A escrita torna-se irregular, personalizada, com um sistema de abreviações. E a prova de que se escreve rapidamente e de que se penetra na palavra viva. Há de agora em diante numerosos estudantes e mestres. Há os que anotam e os que têm autoridade para se dirigir a um grande número de pessoas. A rapidez da escrita permite fixar a mobilidade do pensamento, as intuições, as variações. Cresce ainda mais a interioridade. A memória se modifica de novo. Uma grande parte dos tratados do século XIII, sem exceção daqueles provindos das mais altas autori-
dades, como Tomás de Aquino, foi redigida a partir de notas tomadas durante os cursos. O próprio Tomás nos deixou muitos traços de sua própria escrita — uma terrível escrita resumida — na qual se sente a louca rapidez do pensamento no momento de nascer, engendrando-se ele próprio. E o tempo do cursivo e das abreviações. Uma nova ordem, uma nova regulamentação, chega com os humanistas dos séculos XV e XVI, especialmente com Erasmo. Prova de que há uma mudança de época, não de civilização. A impressão começa, de fato, a expandir um novo tipo de texto. Haverá evidentemente, e ainda por muito tempo, manuscritos e algumas fontes continuam sendo apenas manuscritos. Porém manuscritos que não têm mais exatamente o mesmo papel. Diante das fontes impressas o historiador não pode reagir da mesma maneira que em face do manuscrito. Hoje uma alteração essencial se produz com o computador. A felicidade que tive de descobrir os manuscritos medievais foi grande, ainda que com muitos deles eu só travasse conhecimento através de fac-símiles, de fotografias. Isso foi fundamental. Em seguida, estive atento a desenvolver o conhecimento de outras fontes: especialmente a arqueologia medieval e o estudo das fontes artísticas, iconográficas. Esse contato com o documento cria a distinção fundamental entre o "verdadeiro" historiador, o historiador de ofício, e o historiador de segunda mão, que, por maiores que sejam suas qualidades, não passa de um historiador amador, um ersatz de historiador. Pode-se dizer que toda a história se situa na produção de documentos e na decifração dos documentos a que denominamos fontes. Dá-se, assim, um movimento no sentido da história que se faz para a história que se conta, se anota e
constitui a memória escrita, grande necessidade da humanidade que não quer desaparecer; esse movimento leva os homens e mulheres vivos ao historiador, e o historiador os impede de morrer. Quanto ao termo fonte, ele me incomoda. Por um lado, a palavra me seduz, porque faz do documento alguma coisa viva, uma fonte de vida. Mas, por outro lado, pode levar — e levou alguns historiadores — a pensar que a história "escorre da fonte", sai toda pronta dos documentos. Para os historiadores "positivistas" do século XIX e do início do século XX, era suficiente reunir documentos, fazer-lhes a crítica do ponto de vista da autenticidade (provar que não eram falsos — a história dos falsos é uma bela página da historiografia) e a obra histórica estava pronta. Aprendi com meus mestres dos Annales que é o historiador que cria o documento, que confere a traços, a vestígios, como diria Carlo Ginzburg, o status de fonte. O questionário do historiador — as questões que levanta para si e que levanta em relação ao documento (uma parte essencial de seu ofício) — constitui a base da historiografia, da História. Por longo tempo subestimou-se a arqueologia medieval, uma vez que os traços desse período freqüentemente se tornam complexos com as adições e remanejamentos posteriores — enquanto que os restos da Antigüidade parecem mais facilmente visíveis: são as ruínas, as pegadas nos campos, restos recobertos por outros restos muito diferentes. Durante longo tempo, considerou-se, principalmente, a arqueologia como um documento de segunda ordem. Para a Antigüidade, havia a necessidade de se servir dela, por falta de textos. De acordo com a concepção preguiçosa do historiador que deve deixar "falar" suas fontes, a fonte arqueológica parecia me-
nos clara do que a fonte textual... ainda que freqüentemente a escrita seja produzida mais para mentir do que para dizer a verdade! Conheci nos anos 1950 e 1960 uma regulamentação da atividade arqueológica na França que suspendia (em particular para as escavações) a arqueologia identificada com o ano 800. Carlos Magno foi coroado, o texto venceu, suspenda-se a arqueologia. Nunca vi concepções tão estúpidas e burlescas. Felizmente há hoje em toda a Europa uma arqueologia medieval ativa e fecunda. Por fim, e principalmente, a arqueologia não se limita mais à escavação e ao estudo dos monumentos, nem à pesquisa exclusiva dos belos objetos. Interessa-se pelos sítios globais: cidades e aldeias. A escavação das "aldeias abandonadas" trouxe muitos conhecimentos novos sobre a vida rural medieval. A arqueologia também se interessa pelo que chamamos de "cultura material", capítulo agora importante da história. Descurava-se, enfim, o mais visível, o mais evidente: refiro-me à imagem medieval. Onipresente, essa imagem foi durante longo tempo interpretada sob seu ângulo artístico — o que é necessário —, mas subestimava-se, de saída, sua contribuição documental, seu valor de testemunho, de expressão. Saídos do romantismo, ou hostis ao romantismo (ousaria dizer que nesse domínio os dois partidos se parecem), os historiadores nem sempre souberam ver que a obra de arte, ou de artesanato, não se resumia à bela invenção feita por um autor artista. Não via que ela também reflete regras, códigos, costumes, encomendas. Em resumo, que o indivíduo — noção cara aos séculos XIX e XX, que pouco tem a ver com o espírito medieval — da época se exprimia certamente com sua sensibilidade pessoal, mas também e em primeiro lugar
em função de um certo número de convenções próprias da época. E isto era significativo. A tradição romântica está ligada à beleza. O que se procura nesse caso é o homem, o gênio, sob regras impostas. Acaba-se, de saída, por diminuir a importância dessas regras, tomadas como tal. A imagem é um outro jeito de ser de um texto. Essas regras têm por finalidade comunicar uma mensagem ao público f Um "grande público" a ser convencido pela vulgarização e produções em massa — tudo isso é uma idéia moderna. A questão não se situava assim na Idade Média. O primeiro destinatário (ou o destinatário final, como se queira) era Deus. Toda obra a que chamamos obra de arte (a expressão não existia na Idade Média) era uma imitação da criação divina ou da natureza, ela própria criatura de Deus. Havia comanditários e comandos: a Igreja, os poderosos, os notáveis, as comunidades instituídas. O nível, essencialmente, era esse. O dos comanditários com aquilo que eles tinham necessidade de expressar. Por muito tempo o artista medieval não foi mais do que um artesão que trabalhava sob comando. A obra de arte, a imagem e seus temas são uma fonte para o historiador por duas razões: seu conteúdo significativo ultrapassa a sensibilidade do artista, do comanditário e daqueles que o recebem. Assim como o historiador dispôs de recursos para chegar à noção de mentalidade no domínio das idéias, também tem de recorrer à noção de sensibilidade coletiva para dar conta do significado histórico de uma obra de arte. O historiador não deve esquecer que uma parte significativa da criação artística se endereça de modo definitivo ao conjun-
to do povo cristão — que essa criação constitui um elemento essencial da liturgia, força estruturante da comunidade medieval. Desse modo, o documento artístico, a imagem se concentram nos lugares, nos monumentos em que se desenvolve mais fortemente, mais freqüentemente essa liturgia: a igreja, a praça comunal. Há certamente a imagem reservada a uns poucos, ou a Deus: as esculturas que não podem ser vistas, as pinturas de manuscrito, os tesouros de igreja. Mas acabam sempre por se tornarem objetos de exibições, de ostensões* — ainda que raríssimas, tanto mais fortes, por isso mesmo. O século XIX nos trouxe muitas contribuições. Adquiriu, entretanto, nesse domínio, um peso às vezes muito pesado, se assim se pode dizer. Nossa famosa Ecole des Chartes ilustra bem essa inflexão. Criada em 1821 por Luís XVIII, na esteira da moda "trovador" (Chateaubriand, de novo!), reformada em 1846, a Ecole des Chartes devia salvar e reabilitar os documentos escritos em baixo latim e em francês antigo — memória posta em perigo pelo desprezo das Luzes e depois da Revolução por esses documentos antigos. Esse prestígio novo da Ecole des Chartes faz parte de um movimento mais geral, em que se combinam o imaginário que inspira H u g o (ou Michelet) e um desejo de conhecimento específico do passado, impregnado de uma inspiração nacionalista. Nesse momento nasce a noção de patrimônio, tão característica do século XIX. É no início do século, igualmente,
que Alexandre Lenoir, fundador em 1796 do Museu dos Monumentos francês, reúne os conjuntos ornamentais salvos da Revolução. Lenoir publica, em 1804, o Musée des Monuments de France. Também funda a Comissão dos Monumentos Históricos, que terá por ilustrador Prosper Mérimée. No mesmo momento, edifica-se no Cemitério de Père-Lachaise um túmulo para Abelardo e Heloísa. Logo virá o genial Violletle-Duc (1814-1879), teórico rigoroso do gótico (em Carcassone, em Notre-Dame de Paris), que vê nessa arte o produto de um imaginário espírito democrático medieval. Devemos a essas iniciativas, retomadas pela Terceira República, um trabalho admirável, semelhante ao trabalho feito na mesma época pela grande escola filológica alemã. Infelizmente, essa volta às fontes, aos manuscritos, à paleografia, dirigia-se essencialmente aos escritos jurídicos: as cbartes.* O próprio regime de Luís XVIII não se baseou numa Carta? Com a Ecole des Cbartes, já se vê, focalizou-se longamente apenas uma parte do acervo medieval. As intenções foram as melhores possíveis, mas, não apenas em relação à Idade Média, como à História em geral, os estudos ficaram restritos às instituições. Os chartistes [os estudiosos da equipe da Escola] compreenderam bem que a Idade Média formava um sistema, um todo. Mas nela não viram uma civilização. Retomaram, dando-lhe uma acepção neutra, o termo com o qual os
juristas das Luzes condenavam a Idade Média: o feudalismo. Mais adiante (no capítulo IV deste livro), voltarei a essa palavra, que ainda confunde nossa percepção da Idade Média. Digamos, por ora, que a noção de feudalismo é essencialmente jurídica, refere-se à posse e transmissão — regidas por um contrato — de um bem, de um feudo. Para os juristas das Luzes, o sistema medieval que desejaram destruir (o que a Revolução Francesa acabou por fazer) ordenava-se em torno desse feudo e a ele se resumia. Ampliavam esse elemento jurídico, de uma importância secundária (que só existia em relação à ligação social do senhor e do vassalo), para formar sua visão global da Idade Média. Conhece-se o ardor que punham os revolucionários em pisotear tudo aquilo que lembrasse de perto ou de longe os "horrores" feudais. Havia nisso, se ouso dizê-lo, alguma coisa de psicodrama: as estruturas jurídicas, econômicas e sociais herdeiras do absolutismo já não tinham muito a ver com as do feudalismo. Na verdade, estavam bem distantes delas. Os historiadores modernos, conservando os termos, deram-lhes um conteúdo muito mais complexo e mais rico, de natureza mais social e antropológica do que jurídica. Hoje, fazemos a história da Idade Média quase sem recorrer à noção de feudo — o que mostra a extensão das mudanças. Para deixar essa abordagem excessivamente jurídica, foi preciso ampliar o estudo das fontes; foi preciso consultar tudo aquilo que os historiadores não liam no século XIX, ou não julgavam digno de ser lido: sermões, manuais de confissão, teologia prática, contas comerciais, etc. Descobre-se assim uma Idade Média diferente. E uma História diferente.
O senhor deixou subentendido: com a difusão da imprensa, as fontes mudam. Haverá a seguir a multiplicação mecânica das imagens, depois a do som, depois a do audiovisual, acrescentando-se a isso a conservação crescente de arquivos de todos os gêneros. Isso muda o trabalho do historiador? O medievalista tem sorte, de verdade. Seus métodos, mesmo ampliados, permanecem na medida de seu assunto. Em compensação, não acredito que a história moderna e — menos ainda — a história contemporânea possam conservar imutáveis seus métodos. Lucien Febvre (1878-1956) e Mare Bloch (1886-1944), depois Fernand Braudel (1902-1985), Georges Duby (19191996) ou eu próprio somos todos especialistas, seja em Idade Média seja nesse outro período "medieval" que é também, na minha opinião, o Renascimento. Há coisa semelhante nas importantes escolas alemãs, italianas e anglo-saxônicas, para citar só estas. Não estávamos sozinhos. O historiador dependente das fontes, em sua relação com elas desempenha um papel importante nas escolhas que faz desse período. Idade Média e século XVI oferecem um feliz equilíbrio quantitativo de fontes entre a penúria antiga e a pletora moderna, sobretudo contemporânea. Devo essa orientação ao movimento dos Annales, que descobri quando preparava a agregação.* Fui favorecido por uma grande sorte. No ano de 1950, em que passei no concurso, houve uma grande revolução. O ministro da Educação
nacional tinha, no outono de 1949, mudado radicalmente os membros da banca. A agregação no setor de história tornavase coisa dos historiadores dos Annales. Fernand Braudel tornou-se o presidente. 0 historiador sem dúvida mais inovador no grupo era o medievalista, pouco conhecido, notável para Lucien Febvre, Maurice Lombard, um especialista em Islam medieval, que ensinava na marginal Ecole Pratique des Hautes Etudes. Essa escola foi fundada pelo último ministro da Instrução Pública de Napoleão III, o historiador Victor Duruy, em 1868, com o sentido de criar, ao lado dos cursos de professores de uma Sorbonne mais retórica do que científica, um ensino superior com base no seminário, quer dizer, num grupo de trabalho e não mais num anfiteatro de ouvintes passivos. Imitava-se nesse caso a Prússia, da qual se sentia a preeminente modernidade, que a guerra de 1870 iria comprovar. Essa audácia na forma não tinha, entretanto, confirmação imediata no conteúdo. O ensino da seção histórica — a IV seção, voltada para as ciências históricas e filosóficas — não era muito diferente em sua concepção daquele da Ecole des Chartes. Além da nova e notável V seção — a das Ciências Religiosas, concebida num espírito à maneira de Renan —, Victor Duruy tinha previsto uma VI seção para as Ciências Econômicas e Sociais. Tratava-se de inovação tão grande que não havia historiadores suficientes para dirigir cursos lá e desenvolver seminários. Assim, a VI seção não chegou a ser criada. Foi preciso esperar 1947 para que Lucien Febvre, professor no Collège de France e presidente da IV seção dos Altos Estudos, criasse a VI seção, que de pronto se tornou uma sensação, provocando vivas hostilidades. Tive a sorte de começar nesse contexto. Os primeiros tempos de uma revolução são, de um modo geral, entusiasmantes
e fecundos. Esse caso não foi exceção. Participei da vida dos candidatos à agregação na escada e nas pequenas salas de uma ala isolada da Sorbonne, que abrigava os Altos Estudos (até 1968, quando a IV seção expulsou a VI de lá). E aquilo foi um deslumbramento. Fiquei encantado por dois grandes historiadores, Fernand Braudel e Maurice Lombard. Aprendi que havia uma história nova e, sobretudo, que a história com que eu sonhava existia. Descobri que tinha razão ao querer "fazer história" e mais particularmente história medieval. Entrei num ofício que foi uma das grandes alegrias da minha existência e até hoje ainda o é. Conhece-se a frase célebre de Mare Bloch: ttO historiador é como o ogro da fábula: onde sente cheiro de carne humana, sabe que lá está sua presa." Os Annales, dessa forma, me ensinaram que a história decorre de uma certa maneira de levantar os problemas diante dos documentos e dos fatos. Comportamo-nos assim: situamos as questões a partir de nossas fontes. Em compensação, as fontes nos obrigam à vigilância crítica quanto ao funcionamento de nosso próprio espírito. Desse período nasceu o que então chamamos de "Nova História" (que agora, claro, já não é tão nova assim...). Tratava-se de uma novatio — como diziam, com pavor, os clérigos medievais, que escondiam o novo porque a Igreja não o via com simpatia, achando que o mundo a partir do pecado original estava em declínio constante. Essa novatio marcou o conjunto da disciplina. A História se estendeu à vida privada, aos costumes, às mentalidades, às sensibilidades, etc. Não vou ficar me lamentando. Penso, todavia, que a História dos tempos modernos (tradicionalmente fixados do "Renascimento" à Revolução Francesa) e, mais ainda, a do mundo contemporâneo (depois de 1789...) — para retomar uma periodização
pouco convincente —elevem ter seus métodos de estudo repensados, construir outras técnicas de abordagem. Adotar problemáticas diferentes, para usar uma palavra enjoada. O senhor duvida daquilo que se chama a História do Tempo Presente? Absolutamente, não duvido. Faço parte daqueles que, no Centro Nacional da Pesquisa Científica (CNRS, pela sigla francesa), apadrinharam o Instituto de História do Tempo Presente (IHTP), de influência fecunda, considerável, e foi um amigo muito querido que lhe foi o primeiro e admirável diretor, François Bédarida. Interrogo-me, contudo, quanto a essa noção, agora que o tempo passou, e que nossa percepção do "tempo presente" evoluiu. Compreenda bem: a história contemporânea permanece um imenso canteiro de obras, apaixonante, cheio de riscos. Será preciso, porém, uma outra abordagem, exclusivamente por causa do engarrafamento e da natureza das fontes. Enquanto eu disponho de dezenas de documentos, às vezes sobre muitos séculos, os historiadores do Tempo Presente se vêem às voltas com algumas dezenas, centenas, milhares, até mesmo dezenas de milhares de fontes: escritas, sonoras, iconográficas, arquiteturais, cadastrais, urbanas, etc. A esta altura, a ferramenta já não se adapta mais ao terreno. Não digo que seria impossível estudar o Tempo Presente. Penso, uma vez mais, que é preciso estudá-lo de outra forma. E portanto repensar as regras. Quando a relação com os documentos muda, o historiador muda de período. E, afinal, a relação do historiador com esse passado próximo a que chamamos presente é diferente.
Para escrever sua História da Revolução Francesa (18471853), Michelet — meio século depois d o s fatos — ainda teve condições de dominar seus arquivos, entretanto consideráveis. A partir do século XX, o arquivo explode. Novos caminhos foram abertos: constituíram-se equipes, partiu-se para o tratamento quantitativo informatizado dos dados, novos ângulos passaram a ser explorados, etc. Essas técnicas não são próprias à história do Tempo Presente. O senhor mesmo procedeu desse modo para a Idade Média. Trata-se de um efeito bumerangue. Os medievalistas constataram que se deparavam às vezes com dificuldades comparáveis às que encontram pela frente os historiadores contemporâneos. Tomaram, então, seus métodos de empréstimo, uma vez que o diálogo é constante entre especialistas dos diversos períodos. Durante muito tempo, por exemplo, viu-se com desprezo a importante produção de sermões acumulada ao longo da Idade Média. Apesar de todos os sermões que não foram deixados por escrito, e dos numerosos manuscritos perdidos, a quantidade permanece enorme. O medievalista neles se afoga. Neste caso é preciso achar um modo de tratamento adaptado ao quantitativo: estudo estatístico do vocabulário, cálculo das ocorrências, repartição geográfica, etc. Mas isso continua sendo uma coisa rara, para o período, e dá-se sobretudo na área da história cultural, e ainda na história das mentalidades. Entretanto, para o econômico ou o político, quase não lidamos com coisas assim. Antes do século XII, na verdade, a Idade Média não faz contas, ou pelo menos não gosta de contar. Quando falam
em números, os homens da Idade Média usam símbolos: 3, 7, 12 e todos os seus múltiplos, ou, quando se quer assinalar quantidades significativas, mil, às vezes um milhão. A história, ainda hoje, se atrapalha com o uso do termo Millenium, tomado de empréstimo à confusão do Apocalipse (com razão denunciada por Nietzsche e por D. H. Lawrence). 1 Millenium, na Idade Média, não significa mais do que "período muito longo". Mas isso suscita, desde então, devaneios sobre o milenarismo, especulações sobre o fim do mundo. Exemplo espetacular: os "terrores" que teria suscitado a aproximação do Ano Mil — idéia tipicamente... romântica. 2 Nesses números medievais temos, na melhor das hipóteses, ordens de grandeza. Os medievais queriam dizer que tal epidemia tinha feito devastações, que tal batalha tinha sido importante, etc. E verdade que os historiadores quase não trabalham, salvo exceções, usando o quantitativo. Nós nos deparamos mesmo, freqüentemente, é com a ausência de documentos ou com o silêncio dos textos. É um dos limites da medievalística, uma situação que somos obrigados a enfrentar com métodos particulares. Os camponeses da Idade Média não escrevem. Só aparecem indiretamente, em nossas fontes, pelo que deles dizem os clérigos. Ora, mais de 80% da Europa medieval é camponesa. Entre as mulheres que, logicamente, representam a metade da população, a coisa não melhora: elas não deixaram
manuscritos, salvo raras exceções — o que não quer dizer, claro, que as mulheres e camponeses fossem mudos, inativos e sem influência durante todo esse período! Os historiadores, são, de resto, capazes de fazê-los falar, dentro de certos limites. Somos ainda historiadores da falta e das lacunas, mais próximos, nesse caso, de nossos confrades historiadores da Antigüidade ou pré-hisroriadores do que dos "contemporanistas". Com grandes esforços de método e respeitáveis esforços de imaginação, podemos, entretanto, fazer com que as lacunas falem. É uma das tarefas dos medievalistas que virão, fazer falar os silêncios acuais da Idade Média.
Todo medievalista vê-se diante da questão do seu período. Não escapei à regra. No início dos anos 1950, o corte tradicional ainda mantinha sua autoridade: a Idade Média — implicitamente concebida como ocidental — começa em 476 e acaba em 1492. Em 476, Odoacro, rei dos hérulos, depõe o jovem Rómulo Augústulo,* "imperador'' rigorosamente formal do Ocidente, então com a idade de uma quinzena de anos. Os hérulos, longínquos descendentes de povos escandinavos, viviam à beira do Mar Negro. O acontecimento de 476 parece não passar de um simples episódio. O verdadeiro Imperador era na verdade o de Bizâncio, Zenon, que, como tal, continua sendo o homem de influência das intrigas regionais que são, por essa época, os negócios romanos. Eis o acontecimento fundador. Passemos ao ano de 1492. Cristóvão Colombo descobre a América. A Espanha cristã derrota os muçulmanos em Granada e completa assim sua reconquista. Como disse Alphonse Aliais: o homem de 1492 sabia, ao deitar-se para dormir no dia 31 de dezembro na noite da Idade Média, que acordaria
no dia seguinte, I o de janeiro de 1493, na manhã do Renascimento? Já tenho dito que, no meu modo de ver, um fato histórico é sempre construído por um historiador. Da mesma forma o são os períodos — e estes mais ainda. Não há nada a nos assinalar que se entra numa época, nem que se sai de outra. Como historiador, herdo uma periodização, modelada pelo passado — mas devo também me interrogar sobre esses cortes artificiais do tempo, às vezes nocivos à boa percepção dos fenômenos. Quando se vê generalizar-se, sob Carlos Magno, o códex e a letra conhecida como minúscula carolina, definitivamente não estamos mais na Antigüidade. Isso não impede que alguns traços da Antigüidade persistam aqui e ali em outras faces da mesma civilização. Ao invés, traços, para nós, medievalistas, afloram já no curso da Antigüidade tardia, que há algum tempo os historiadores tiveram a tendência, a justo título na minha opinião, de espichar, como Henri Irénée Marrou propôs recentemente. Esta precisão: Antigüidade tardia, me parece essencial. Não se fala mais, hoje, de Baixo Império — subentendido: decadente. Isso suporia um Alto Império pretensamente mais "evoluído", estendendo-se de Augusto a Constantino. Compreenda-se: o Império foi "alto" antes de sua cristianização por Constantino. Depois "baixo" desde que o paganismo — o não-cristianismo — reflui. Ora, tudo indica um poderio em seu apogeu, estendendo-se de Constantino (início do século IV) até Justiniano (século VI) o que corresponde pelo menos a 300 anos... Digo imediatamente: privilegio a dupla continuidade/virada em prejuízo da noção de ruptura A história transcorre de modo contínuo. Uma série de mudanças — que freqüen-
temente não são simultâneas — delimitam evoluções. Quando um certo número dessas mudanças afeta domínios tão diferentes como a economia, os costumes, a política ou as ciências; quando essas trocas acabam por interagir umas sobre as outras até constituir um sistema, ou, em todo caso, uma paisagem nova, então, sim, podemos falar de uma mudança de período. Nenhuma troca, porém, tem como referência uma única data, um único fato, um único lugar, num único domínio de atividade humana. Para nós, franceses, a Segunda Guerra Mundial começa em 1939. Para os americanos e os russos, começa em 1941, mas para os tchecos ela terá começado antes, em 1938. Da mesma forma, façamos desaparecer o Antigo Regime político em 1789. Ideologicamente, se posso dizer, o Antigo Regime sem dúvida estava morto há quase um século, com a querela quente do jansenismo. Culturalmente, persiste em amplas características do século XIX, e bastaria o empreendimento napoleónico para prová-lo. François Furet mostrou claramente que a Revolução Francesa prosseguiu durante uma boa parte do século XIX. Afinal, não se empregam mais expressões como Baixo Império ou Alta Idade Média. Os Baixos Alpes se tornaram os Alpes da Aira Provença, e os Baixos Pireneus agora se chamam Pireneus Atlânticos... Podemos, portanto, evitar essa terminologia alto/baixo, que — em História — não é inocente. Esse tipo de nomenclatura remete a um raciocínio essencialmente medieval, segundo o qual o alto é o antigo, o passado venerável, que cria autoridade, enquanto que o baixo é o recente, imperfeito, decadente. Para um homem da Idade Média, o tempo presente resulta de
uma longa degringolada, longe das perfeições do passado. É preciso, no entanto, voltar à própria Idade Média para compreender melhor o paradoxo. A expressão e a noção de "Idade Média" surge no século XVI, com Petrarca e os humanistas italianos. Falam eles de um médium ternpus (idade do meio) ou, no plural, de media têmpora. Está muito clara essa idéia de "meio" no inglês, com Middle Ages, no espanhol EàadL Media ou no Mittelalter alemão — ainda que os alemães, com Alter, introduzam, mais que a noção de idade, uma conotação "venerável": a palavra alt (antigo) induz uin certo prestígio. Observa-se, ao contrário, em francês, a evolução depreciativa da palavra Moyen [média]. A conotação estritamente formal de "médio" — intermediário— quase desapareceu: fala-se com um certo desprezo de um resultado médio, de um espetáculo médio, de um nível médio, etc. Reconhecemos imediatamente em Petrarca um espírito medieval. Como muitos humanistas, ele pretende reencontrar a Antigüidade em toda a sua pureza, uma vez que a Antigüidade é a idade "alta", da qual os homens, ai de nós, não deixaram de se afastar. Petrarca tem a impressão de que um verdadeiro Renascimento está surgindo, que a cristandade poderá ver o fim do túnel medieval. E se ele quer reencontrar esse verdadeiro e grande passado, livre das críticas acumuladas ao longo do tempo, é também para reformar uma Igreja católica comprometida com o século, carregando o peso da cidade terrestre, muito afastada daquela CivitasDei que Santo Agostinho celebrava. Buscar a reforma através de um retorno às fontes é uma constante na Idade Média. Impondo a letra carolina, a revisão das Escrituras, Carlos Magno pensava em reformar: voltar aos bons textos da Escritura, às fontes não corrompidas.
A NOÇÃO DE "RENASCIMENTO"
Médium tempus, portanto, Idade do meio. Mas em relação a quê? Em relação à Antigüidade, por um lado. Em relação ao futuro, por outro lado. Os humanistas julgavam que estavam saindo de um período sem nome, de um intermédio. Os sábios dos séculos XIII e XIV julgam, aliás — retomando uma teoria judia das Idades do Mundo —, que a humanidade se acha justamente na sexta e última Idade, ponto final de um declínio contínuo. Alguns até dizem, contra toda a evidência, que os homens se apequenavam e "envelheciam": seriam anões em relação aos "gigantes" dos tempos heróicos, intrinsecamente gastos. Outros chegavam a pretender que nascemos mais "velhos" do que nossos ancestrais. Dar uma dimensão magnífica ao passado entretanto trazia problemas. A Antigüidade — d a Idade Média até o século XVII — tem seu valor a partir do Cristo, dos apóstolos e dos Padres da Igreja. É o tempo da fundação do cristianismo. Mas é também o tempo dos deuses, dos autores não cristãos, dos pagãos e dos idólatras. Isso só em parte incomodava os cristãos da Idade Média. Porque a Antigüidade tinha se convertido: todos os grandes autores greco-romanos de certa forma anunciavam a revelação que estava para chegar. Eram precursores — sem dúvida ainda insuficientemente esclarecidos, mas de qualquer forma esclarecidos. Por isso é que personalidades como Cícero e depois Aristóteles, quando este foi elevado a um lugar de honra, tornaram-se referência, sem que se visse contradição nisso em relação aos Padres da Igreja.
Santo Agostinho, aliás, não tinha ele próprio reciclado de maneira brilhante os autores pagãos e o sistema das sete "artes liberais" que resumia a totalidade do saber? Resta o problema do futuro. A que conduz esse período vago e incerto, esse tempo do meio, que vivem os homens da Idade Média? A um "renascimento", claramente. Ou antes, como vamos ver, a "renascimentos". Este renascimento, para os humanistas, não passa de uma volta da Antigüidade: brilhará para nós, ao contrário, como uma Antigüidade que virá — um tempo análogo ao da Antigüidade, mas não a repetição inútil da Antigüidade. O cristianismo nesse tempo encontrará afinal sua perfeição primeira. No Evangelho, o fariseu Nicodemus pergunta a Jesus: "Como pode um homem nascer sendo velho? Pode ele entrar uma segunda vez no seio de sua mãe e voltara nascer?" (João, capítulo 3). Jesus lhe responde que esse homem fruto de um renascimento será "nascido da água e do espírito". E um renascimento desse tipo, um renascimento em espírito que os cristãos da Idade Média esperam. Por isso eles se julgam descoloridos — situados entre duas épocas coloridas. A própria Idade Média, assim, se autodeprecia Mas não abusemos das palavras. A "Idade Média" não existe antes do início do século XVII e o "Renascimento" só se constitui plenamente no século XIX... Foi em 1676 que Christoph Cellarius (latinização do nome alemão Keller) publicou em Iena,em latim, uma história medieval. Em lugar de médium tempos, como se tinha tornado um hábito, ele emprega a expressão médium aeium. A nuança tem seu valor: aevum, "a época", substitui tetnpus, "o tempo". Alguns anos mais tarde, em 1688, Charles du Cange, em seu Glossariumy retoma uma terminologia similar. Isso se radicaliza no século
XVni — esse século que se institui a si mesmo como das Luzes, lançando outra vez a Idade Média na escuridão. Os ingleses dirão mesmo DarkAges, "Idades Sombrias". A Idade Média não é mais, depois do século XVIII, o período incolor que os medievais pensavam viver, mas um período sombrio, enfeixado entre o passado esplendoroso da Antigüidade e o futuro luminoso dos Filósofos. E um tempo oco, caracterizado pela ausência da razão e ausência de gosto. A palavra gótico — antes da reabilitação feita por Walter Scott e Chateaubriand — torna-se sinônimo de feiúra, de esquisitice, de falta de jeito... Essa depreciação buscava, claro, atingir a Igreja. Voltaire o diz explicitamente em seu Ensaio sobre os costumes, 1756: obscurantismo clerical e Idade Média são uma só e única coisa. Leibnitz o tinha dito, antes de Voltaire. Observa-se, por fim, que o futuro segundo as Luzes parece-se pouco com esse "renascimento" vago, próximo do fim do Tempo, que era a visão dos medievais. O futuro de agora em diante se inscreve dentro de uma perspectiva, a do progresso. História e progresso logo se confundirão: esse seria o risco do século XIX, para o qual a História tem um sentido, tendendo para o melhor e o bom. Enquanto na Idade Média o próprio progresso parece o fim da História, a transfiguração, a caminhada para fora do tempo. Dito isso, a ambigüidade persiste. Quando os homens de 1789 se querem latinos, quando se julgam romanos e celebram a Antigüidade, retomam os temas caros às Luzes. Também reatam — mais do que se imagina hoje e mais do que eles pensavam, então — uma tradição medieval. Citarei apenas a aventura de Cola di Rienzo (1313-1354). Esse filho de artesãos, grande leitor de Tito Lívio, quis instaurar uma "re-
pública" em Roma, atraindo a simpatia de Petrarca e até, durante algum tempo, do papado que então se achava em Avignon. Cola di Rienzo citava o direito romano, referia-se a textos da Antigüidade, opunha-se aos baroni romani, os grandes proprietários de terras, sonhava com uma renovação universal do cristianismo. Não entro no caso de sua "comuna", indossociável do desenvolvimento da Itália do século XIV. É o imaginário que me interessa. E esse imaginário, profundamente medieval, também se liga à Antigüidade. Cola quer restabelecer a velha Roma, para que a verdadeira Igreja desabroche. Em 1841, o jovem Wagner cantará esse episódio em sua ópera Rienzi, interessante conjunção de espírito revolucionário "burguês", de inquietudes germânicas e de Idade Média reinventada. Porque a Idade Média revive no século XIX, a um tempo terrível e maravilhosa, violenta e familiar. Fascinante. O que não é forçosamente um trunfo. Para nós, medievalistas, aparece então, de fato, uma grande e desagradável personagem: o suíço alemão Jakob Burckhardt (1818-1897). Historiador da arte e da civilização, próximo de Nietzsche, amoroso da Grécia, Burckhardt— pioneiro — instaura firmemente a periodização a que estamos amarrados até hoje. Apoiando-se em sua paixão pelos Antigos, entusiasmado pela arte italiana do Quatrocentto (nosso século XV), ele estabelece a teoria da ruptura. E ele que inventa o Renascimento, com R maiúsculo, isola-o da Idade Média e estabelece esse corte definitivo. Burckhardt joga com a antítese. Opõe esse período — o Renascimento — ao tempo das trevas, que ainda não estava claramente circunscrito, nem datado. Sua Civilização do Renascimento na Itália (1860), de resto um grande livro, cria um corte decisivo.
Uma velha palavra medieval, a palavra "moderno" — que significava "recente", "presente" — assume assim um valor que havia provocado na virada do século XVII para o XVIII a Querela dos Antigos e dos Modernos. Ser "moderno" não é mais apenas pertencer ao período atual, mas ser melhor, despontar com mais força, estar à frente do progresso. Procurou-se então o moderno por toda parte no passado, embaralhando as cartas sem proveito. (Inventou-se depois o pós-moderno, mas esta é uma outra história...) A partir de Burckhardt, o Moderno coroa a evolução, pula por cima de mil anos de errâncias (nossa Idade Média). Marca o início das coisas sérias, da civilização plena e total, com seus progressos, sua Razão, seu saber incomparável, etc. Antigüidade perseguida por outros meios, o Moderno, como que por acaso, representa o fim da História. Os europeus não precisarão, daí em diante, mais do que aperfeiçoar as descobertas "modernas" e completar seu sistema político, evidentemente universal. E o que impera nos anos 1860-1880: uma mistura de ecletismo neoclássico e de modelos aparentemente italianos. Parece, então, que se chegou a um ponto que não pode ser ultrapassado. Não contesto Burckhardt quanto à sua estatura intelectual, nem quanto à sua erudição, nem quanto às suas qualidades em relação ao método. Apenas considero seu sucesso como uma catástrofe. Não só ele confirma a idéia de uma Idade Média negra, mas dá uma importância exemplar a uma região: a Itália, certamente brilhante, certamente muitas vezes culturalmente andando à frente, mas que seguiu muito tardiamente a evolução política. Confunde, com isso, a percepção européia que é preciso ter sempre da Idade Média. Numerosos contra-exemplos pocem se opor à tese de Burckhardt. Persiste, contudo,
nos espíritos, a idéia de que haveria uma zona "avançada" e zonas "retardatárias", que nisso estaria um perfeito equilíbrio, um ideal impossível de ser ultrapassado, etc. Essa visão da história segundo Burckhardt corresponde, com toda a certeza, às expectativas da cultura germânica do século XIX: a Grécia dividida mas genial; a Itália repartida em fatias mas genial, anunciavam uma Alemanha genial, da Prússia à Áustria, superando suas divisões, nova Roma e nova Atenas. Não nos esqueçamos que o Sacro-Império RomanoGermânico só desapareceu em 1806, não mais do que meio século antes da obra de Burckhardt. Burckhardt empurra a Alemanha e a Europa para o sul, inspirando-lhe uma nostalgia (Sehnsucht nacb Süden) pesada de desequilíbrios. Digamo-lo, aliás, sem rebuços: Burckhardt, com gênio, tudo que fez foi erigir em sistema um movimento geral, o da pesquisa apaixonada das origens, da paixão pela História, fundamento do nacionalismo. As burguesias nacionais européias afastam-se da Antigüidade que por longo tempo as fascinou, deixam em segundo plano o culto efêmero de uma Idade Média imaginária proposta pelo romantismo, e descobrem na História a narrativa fundadora da nação e a legitimação de sua eventual preeminência. Muitos, finalmente, escolhem como ano zero o Renascimento: Lutero na Alemanha, a Reforma na Inglaterra... Isso fica muito claro, na França, com Michelet. Depois de ter por muito tempo passeado por uma Idade Média que o entusiasma e o enternece, porque ele encontra o povo verdadeiro na pessoa de Joana d'Are ou de Jacques Bonhomme — camponês imaginário, simbólico —, Michelet faz o prefácio em 1869 do tomo VII de sua História da França com um espírito totalmente novo. Ruptura violenta com o primeiro romantismo. Não existe nada de verdadeiramente bom, diz
ele, antes do Renascimento, aurora dos tempos presentes, cujos símbolos são dois gigantes: Rabelais e Lutero. 1 Se o século XIX se debruçou sobre a Idade Média com mais interesse do que os séculos XVII e XVIII nem por isso chegou a produzir — salvo casos isolados — mais do que uma reabilitação relativa. A Idade Média tornou-se um folclore, uma espécie de infância da nação, felizmente atingindo a idade adulta com o Renascimento. A cada nação, então, convinha mostrar que era a nova Itália, o ápice do moderno, etc. Nesses tempos de expansão colonial, construiu-se a imagem do indígena. Sob essa óptica, os africanos perpetuavam de maneira imemorial os primitivos. Os árabes e os asiáticos, por sua vez, descobrem-se aplicando todo tipo de metáfora medievalística, especialmente o vocabulário da cavalaria e da feudalidade. Colonizando esses primitivos e esses feudais, nós lhes demos as Luzes e os acordamos de seu longo sono medieval...
UM MILÊNIO E SEUS PERÍODOS
A periodização que ainda usamos (476-1492) é portanto muito recente. Vem do século XIX. Responde às necessidades de um ensino escolar e universitário em expansão. Esse ensino tem ne'Tentei mostrar em meu artigo "Les Moyen Age de Michelet", publicado no tomo I da Histoire de France, editada nas 0euvres complètes de Michelet por Paul Viallaneix, Paris, Flammarion, 1974, pp. 45-63 — texto republicado em J. Le Goff, Pour un autre Moyen Age, Paris, Gallimard, 1977, pp. 19-45 — que Michelet ánha passado de uma concepção da "bela Idade Média em 18331844" para uma concepção da "Idade Média sombria de 1855", que ainda aparece no célebre Prefácio de 1869 da Histoire de France.
cessidade de datas, de quadros, de balizas. Quer-se estruturar — e isso não é mau. Mas essa estruturação nunca é inocente. O grande negócio então era menos datar o fim da Antigüidade do que demarcar ou balizar a Idade Média e estabelecer o começo do mundo moderno, com o Renascimento. Muitos defendem, como fim da Idade Média, o ano de 1453, queda de Bizâncio, fim do Império Romano, se bem que os europeus do século X\[ salvo exceção, não viveram o acontecimento como um traumatismo. Mas isso permitia equilibrar a data de 476. Ao fim do Império do Ocidente, quando começa a Idade Média, corresponderia, assim, o fim do Império do Oriente, quando começa... o Renascimento! A queda de Bizâncio, de fato, despeja na Europa muitos sábios, impregnados de cultura grega. Trazem a Grécia até nós. Nós nos tornamos seus herdeiros. A volta está completa. Essa passagem de um testemunho permite estabelecer a economia da Idade Média. Os modernos recebem a Grécia diretamente, sem nada dever, em relação a isso, aos clérigos da Idade Média, que, na verdade, pouco praticaram a cultura grega. A Grécia se torna, assim, a Antigüidade por excelência. Esses distinguos* estão nas idéias preconcebidas acompanhando o aprendizado das "línguas mortas". A Idade Média foi antes de tudo latina: consideramos, entretanto, grosseira a cultura latina, sobretudo o chamado latim "da Igreja". O bom latim é o que vai de Cícero a Tácito. Quer dizer, do século I antes de nossa era ao século II de nossa era. Depois
disso, essa língua entraria, afirma-se, em decadência. Isso permite eliminar a maior parte dos autores — especialmente os Padres — que alimentaram os estudos medievais. Em compensação, o grego, situado em posto de honra pelos humanistas, é refinado, sutil, audacioso. Há de um lado o latim de cozinha balbuciado pelos párocos, de outro o grego aristocrático praticado pelos espíritos livres... Baste-nos lembrar o que mostraram tão bem historiadores como Henri-Irénée Marrou, Paul Veyne ou Peter Brown: desde o fim da República romana, a cultura mediterrânea tornou-se totalmente helenística. É uma cultura essencialmente bilíngüe: não se pode opor pensamento latino e pensamento grego. O século XV se beneficia igualmente do prestígio da imprensa. Posta em condições por Gutenberg (c. de 1400-1463), afinal fixou-se arbitrariamente 1450 como o ano de criação da imprensa. A personagem Gutenberg goza de grande reputação na Alemanha. Imprimir a Bíblia pouco antes de que Lutero a tornasse, com sua tradução, o livro fundador da língua alemã, eis o que dá papel importante à terra germânica. Finalmente, esboça-se um acordo em torno de 1492. Descoberta por um italiano a serviço da Espanha, a América coroa o dinamismo do Ocidente. Os próprios Estados Unidos, ao se tornarem grande potência no século XIX, são sensíveis a essa solução. O fim do reino muçulmano de Granada, nesse mesmo ano de 1492, também funciona como um bom argumento, pois naqueles tempos o Islam surge aos olhos da Europa imperialista como um agente conservador de hábitos "medievalistas". Os franceses também gostam dessa data, uma vez que em 1492 Carlos VIII inicia as guerras da Irália — essa famosa Itália cuja importância foi descoberta por Burckhardt.
Essa periodização é perturbadora. Se se procurar na Itália, por exemplo, obras de arte, movimentos intelectuais ou monumentos que rompam radicalmente com a Idade Média não se vai achar. Ou melhor, vamos achá-los desde o século XIII. Os púlpitos dos Nicolao Pisano, pai e filho (1260-1310), as portas do batistério de Florença no início do século XV, Petrarca (1304-1374), a cúpula do domo de Florença, de Brunelleschi (1420-1436), isso seria Idade Média ou seria Renascimento? Se se examinar a cultura dos Conquistadores e a cristianização dos "índios" é ainda a Idade Média que encontramos. E as próprias guerras da Itália, famosas, não inovam do ponto de vista militar. As técnicas e as estratégias são as da Idade Média. Uma evolução só se desenha a partir dos anos 1520-1530. Eu mesmo ouvi um especialista em história militar afirmar que o comandante guerreiro Wallenstein (1583-1634), um dos protagonistas da guerra dos Trinta Anos, foi o último grande capitão da Idade Média. Em resumo, mas voltaremos a isso: as mudanças não se dão jamais de golpe, simultaneamente em todos os setores e em todos os lugares. Eis porque falei de uma longa Idade Média, uma Idade Média que — em certos aspectos de nossa civilização — perdura ainda e, às vezes, desabrocha bem depois das datas oficiais. O mesmo se pode dizer em relação à economia, não se pode falar de mercado antes do século XVIII. A economia rural só consegue fazer desaparecer a fome no século XIX (salvo na Rússia). O vocabulário da política e da economia só muda definitivamente — sinal de mudança das instituições, dos modos de produção e das mentalidades que correspondem a essas alterações — com a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. E também o momento em que se
chega à construção de uma nova ciência que já não é medieval (Galileu, Harvey, Newton, etc...). O Renascimento é seu inimigo? O Renascimento como máquina de engolir a História, sim. O Renascimento como momento da civilização, não, claro que não! Pelo contrário, desde os trabalhos de Erwin Panofsky (1892-1968) Renaissance and Renascenses in Western Art (1960) — todos os historiadores concordam em que não há mais um Renascimento, mas Renascimentos, e que a própria lógica de renascimento" é indissociável da história medieval. Não se compreenderá a Idade Média se não a integrarmos à idéia de renascimentos sucessivos, e de reformas sucessivas são necessidades constantes, pelo menos desde o tempo de Carlos Magno! A Reforma de Lutero se inscreve numa longa seqüência de reformas. A Idade Média iria se estender por mais de um milênio. Como estabelecer unia periodização dentro desses mil anos? A Idade Média foi dinâmica, fortemente criadora. Mas não o declara. Se nossas sociedades qualificam alegremente de históricos os acontecimentos mais desimportantes (um score de futebol, uma baixa na Bolsa), a Idade Média evita de modo absoluto celebrar as novidades. Ao contrário, na Igreja e a Igreja abrange então toda a vida intelectual — a palavra novitas, novidade, enche de medo e de hostilidade aquele que a ouve. Dizer de um autor que é um novo significa condená-lo: ou acusá-lo de heresia malfazeja. Os criadores, numerosos na Idade Média, recusam essa suspeita. Afirmam
que são imitadores de autoridades veneráveis. Retomam, dizem eles, idéias antigas, limpam-lhes a poeira e as fazem renascer. Santo Tomás de Aquino, imenso inventor de idéias, escandalizar-se-ia se fosse celebrado como inovador. Tudo aquilo que fazia, segundo ele próprio, era voltar às fontes. Novo, novus, é coisa apocalíptica, só alguns audaciosos, alguns provocadores recorriam à novidade entendida de maneira positiva. Por exemplo, os primeiros frades mendicantes, os dominicanos e os franciscanos no início do século XIII. A biografia oficial de São Domingos está cheia de novus, novitas, etc. É portanto — seguindo os exemplos de Etienne Gilson e de Erwin Panofsky — descobrindo renascimentos que é preciso periodizar, no caso. O primeiro desses renascimentos é com toda a evidência o Renascimento carolíngio (fim do século VIH-século IX). Assinalaram-no muito cedo historiadores como Jean-Jacques Ampère (1800-1864), filho do célebre físico Ampère, em sua Histoire littéraire de la France sous Charlemagne 1839). Paralelamente os alemães, na mesma época, começavam a publicar metodicamente os documentos. Dos dois lados do Reno, houve talvez o mesmo exagero sobre esse momento carolíngio, por motivos nacionais: Carlos Magno é francês ou alemão? A questão para nós praticamente não tem sentido. Mas no século XIX ela era importante; mais ainda, sem dúvida, para os alemães: germanizar Carlos Magno permitiria tornar a Alemanha o centro do primeiro Renascimento. Vimos, entretanto, que o tempo de Carlos Magno — caracterizado pela busca de uma edição autêntica da Bíblia e pela reforma da escrita — constrói os fundamentos de uma civilização. Temos a exegese, de um lado. De outro, a arte de 6 8
UMA
LONGA
IDADE
MÉDIA
ler e de escrever. A Idade Média será o tempo do Livro e dos livros. Isso suscita um outro choque, cuja mensuração só hoje os historiadores alcançam: a importância da imagem muda. A imagem reflete a relação que se instaura desse momento em diante com o Livro e os livros. Sabe-se da grave crise que dilacera por duas vezes o Império Bizantino: a iconoclastias a destruição das imagens, tornada doutrina religiosa oficial entre 730 e 787, depois entre 815 e 843. Não se trata absolutamente de uma discussão "bizantina ', especiosa e sofística, mas de uma revolução cultural, seguida de uma contra-revolução, assumindo às vezes o aspecto de uma guerra civil, arrastando a sublevação de regiões inteiras. O Ocidente, graças a Carlos Magno, seu grupo e seus prelados, criou a economia sobre a questão. Carlos Magno não tomou partido pró ou contra a veneração das imagens. Recusa-se a entrar no debate sobre a aniconia — a proibição da representação por imagens. Ele preconiza a teoria do nemnemy para retornar uma forma que teve seu sucesso: nem proscrição de imagens, nem veneração. Apóia-se sobre uma tradição vinda do papa Gregório Magno (c. de 540-604), cuja Carta a Serenus de Marselha justificava o papel das imagens. Seus teólogos se equivocavam também quanto à tradução dos atos do concílio de Nicéia, de 787, que teve a presença da imperatriz Irene para justificar o culto dos ícones. É portanto de maneira parcialmente involuntária que se desenha uma posição original. Como quer que seja, a imagem se desdramatiza, seu uso está autonzado. Evitando a querela, Carlos Magno exclui todo bate-boca sobre a função litúrgica das imagens. As imagens, pensa-se, são intermediárias entre o homem e Deus. Representar Deus
por uma figura nada tem de pagão, nem de idolatria. Trata-se de um ato de devoção, não de culto. Tudo isso distingue o Ocidente de Bizâncio. Mas o Ocidente se distingue também das duas religiões anicônicas — judaísmo e islam —apresentando as imagens como um instrumento de salvação. A imagem não é mais do que um instrumento. Também não é menos do que isso. O cristianismo "romano" se afasta desde então, a um tempo, do judaísmo, do islam e do cristianismo "grego". Situa o debate em outros pontos. A não ser em algumas crises isoladas, não haverá controvérsia quanto a imagens até a Reforma luterana. A arte ocidental, que dá um lugar central ao homem e à figura humana, nasce dessa escolha. A adoção das imagens, afinal, desempenha um papel importante no desenvolvimento de um culto fundamental: o da Virgem Maria. A Virgem entra na piedade de maneira até então inédita porque está presente na Paixão de Cristo — e a própria representação da Paixão é favorecida em todas as camadas da sociedade pela difusão do crucifixo. Essas imagens acostumam os fiéis a ver Deus sob a forma humana. Isso decorre com toda a naturalidade do dogma da Encarnação, central no cristianismo: Deus se fez homem, viveu entre nós. Mas é preciso entender bem que a imagem, aqui, precede freqüentemente a reflexão teórica. A piedade se exprime primeiro pela imagem, depois pelo discurso. Picasso dizia: eu não procuro, eu acho. O mesmo se dá com esse momento capital. Acha-se, encontra-se pela imagem. Os discursos teológicos encontram depois. As imagens precedem freqüentemente os desenvolvimentos propostos pelos clérigos. Proporcionando uma visão dos textos bíblicos, induzem e antecipam o comentário que dali sairá.
Será preciso lembrar a importância da famosa narrativa do Gênesis segundo a qual o Homem foi criado à imagem de Deus? "Faciamiis hominem ad imaginem et similitudinem nostramw, diz o texto latino da Vulgata, que se tornou referência: "Façamos o Homem à nossa imagem e à nossa semelhança." A imagem representa, exprime a piedade dos fiéis. Dá-lhes a intuição daquilo que os raciocínios tornarão preciso em seguida. Depois do Renascimento carolíngio, temos um outro: o do século XII. Para falar a verdade, uma vez introduzida a noção de renascimento, alguns medievalistas a vêem por roda parte, tão constante é a aspiração por um renascimento, por uma reforma, na Idade Média. Contuco, para que a periodização seja prática — de outra forma, periodizar não serviria para nada —, exigências se impõem, pois há o risco de que os historiadores esquematizem, como sempre, evoluções cada vez mais sutis. O grande medievalista ítalo-americano Roberto Sabbatino López levantou há pouco a questão: "o século X seria também um Renascimento?" (The Tenth Century, still anotber Renaissancef). Tratava-se, para esse historiador, de situar a questão da "decolagem" do Ocidente por volta do Ano Mil, questão que recentemente suscitou discussões inúteis. Não houve nada no Ano Mil, mas, como Georges Duby mostrou com toda a evidência, o período 980-1040 é um momento de efervescência decisiva no domínio econômico e social (desenvolvimento acelerado dos arroteamentos, do cavaleiro, dos castelos, da aldeia e logo da senhoria), e no domínio espiritual (movi-
mento da paz de Deus, construção de igrejas, mito de Jerusalém preparando a cruzada). É razoável, então, levar em consideração as análises feitas, em 1927, pelo americano Charles Homer Haskins, e que foram em seguida objeto de numerosas pesquisas. Haskins lançava a idéia de um segundo Renascimento, no século XII. Esse Renascimento é muito mais importante, mais profundo do que o Renascimento carolíngio. Implica também o saber: a filosofia e a teologia. Confirma um retorno maciço às obras da Antigüidade latina — a Antigüidade grega por longo tempo ainda permaneceria ignorada, com a exceção notável de Aristóteles, parcialmente redescoberto no século XII —, o grande momento de sua redescoberta através dos árabes, sendo o século XIII o das traduções das obras latinas. A mudança atinge materialmente a vida social. Vê-se por toda parte a eclosão de escolas urbanas que, diante das antigas escolas monásticas, impõem-se como escolas leigas. Vê-se também o nascimento, paralelamente com os conventos, das corporações universitárias. Quando digo "leiga", entenda-se com clareza essa palavra no sentido cristão: os leigos são membros da Igreja não engajados no sacerdócio. Não passa pela cabeça de ninguém, então, não pertencer à Igreja! Por essa época nasce também uma literatura original — eu diria mesmo: a literatura, no sentido ocidental do termo. A palavra literatura, aliás, aparece no século XII. Essa literatura é antes de tudo poética; difunde a ideologia cortesã, cavaleirosa. Mas um gênero inédito se afirma, um gênero que não está na tradição greco-romana: o romance. Existem, claro, muitos textos narrativos, grandes textos narrativos, vindos da tradição helenística, designados depois como romances
(O Asno de Ouro, de Apuleio*; Os Etíopes, de Heliodoro, etc). Essas obras nada têm a ver com o romance existente na ocasião: um texto de ficção utilizando a língua corrente, por oposição ao latim. Seu conteúdo na maioria das vezes é profano, "leigo". Conhece-se a posteridade de um Chrétien de Troyes** (c. de 1135-c. de 1183)... As canções de gesta, épicas, eram estruturadas em torno da imagem de Carlos Magno, os romances cortesãos em torno da imagem de um rei lendário, Artur.
1 2 1 5 : LATRÃO IV, O CONCÍLIO CAPITAL
O que se deve entender por "leigo"? A palavra designa, na Idade Média, os cristãos não ordenados nem consagrados pela Igreja, em oposição aos "clérigos". Essa repartição dos poderes retoma uma dialética tão velha quanto o ensino de Jesus: "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deusn. De um lado a Igreja. De outro, os poderes leigos, especialmente o do Império Romano-Germânico, herdeiro parcial *Não será inútil para o leitor saber que temos uma excelente edição brasileira de Amor e Psique, que é uma das histórias contidas em O Asno de Ouro. Tratase de: Lúcio Apuleio,Amore psique, tradução de Paulo Rónai e Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Rio, Civilização Brasileira, 1956. (N. do T.) **É o primeiro grande poeta do romanceiro francês. Começou traduzindo Ovídio, mas depois dedicou-se a temas bretões e lendas celtas (Erec e Enide é o primeiro romance arturiano da literatura francesa). Deixou incompleto Lancelote ou O Cavaleiro da carreta, terminado por Geoffroy de Lagny. O u tra história não terminada (interrompida por sua morte), Percival ou 0 Conto do Graal, embora inacabada é considerada sua obra-prima, na qual o amor atinge o misticismo. (N. do T.)
de Carlos Magno. São dois poderes distintos, que se afrontam vivamente para assegurar a preeminência de um sobre o outro. Também a aspiração à reforma da Igreja responde a uma velha exigência: livrar a Igreja de seu enfeudamento ao temporal. Esse movimento assume uma importância excepcional com a reforma gregoriana, simbolizada em Gregório VII, papa de 1073 a 1085. Reforma que se realiza ao longo de todo o século XII. Gregório, segundo as práticas consagradas, pretende purificar a Igreja de seus compromissos com o dinheiro e de suas diversas "impurezas", especialmente resguardá-la da mancha dos líqíiidos impuros: o esperma e o sangue — o celibato freqüentemente violado pelos clérigos é-lhes imposto definitivamente e a atividade guerreira lhes é firmemente proibida. Para ele, essa volta ao ideal deve livrar a Igreja dos poderes temporais, a fim de que o Papado exerça plenamente o poder espiritual — mas, claro, há nisso uma ambigüidade: quando o papa insiste na necessária distinção entre Deus e César, evidentemente espera elevar a Igreja a um plano acima de César. A Igreja encarnaria assim o verdadeiro poder, subempreitando a gestão temporal ao poder subordinado, menos eminente, dos leigos reduzidos ao papel de "braço secular". As conseqüências sociais sáo pesadas: todo mundo é chamado a reformar-se, leigos inclusive, que se tornam, certamente, em relação ao clero, cristãos de segunda classe. Já estavam habituados a isso. Aceitavam essa superioridade desde que a vida monástica tinha imposto seu prestígio, ao longo dos séculos VII e VIII, fixando como valores últimos o retirar-se do mundo, o celibato, a castidade e a pobreza. A reforma gregoriana mantém os leigos um grau abaixo. Dá-lhes, entretanto, uma dignidade nova. Eles se tornam cristãos to-
tais cujos deveres e responsabilidade vão crescendo, como interlocutores claramente definidos diante dos clérigos. O essencial para a civilização ocidental foi que a Europa escapou da teocracia e permitiu que se estabelecesse um laicato coexistente com a prática religiosa. Uma série de concílios "ecumênicos" — europeus, na verdade, uma vez que se perdeu o contato com as Igrejas orientais — levam ao quarto concílio de Latrão, dito Latrão IV (1215), o concílio capital. Realizado em Roma, sede de um Papado que assumira a cabeça do Ocidente, Latrão IV mexe com a vida cotidiana e espiritual dos leigos. Os Padres conciliares instauram a prática anual da confissão auricular para todos os cristãos de mais de 14 anos. Dão importância maior ao casamento impondo o consentimento mútuo e a publicação dos banhos. Até então depreciado, abandonado aos diversos arranjos entre os clãs, o casamento se torna uma instituição verdadeiramente cristã, um ideal de vida. Também condenam a heresia, a usura e os judeus. O Concílio é representativo de um momento histórico em que a Igreja apóia o grande impulso da cristandade do século XI ao século X i n , mas também encoraja o movimento de repressão que pretende guardar a pureza da reforma (condenação dos hereges, dos judeus, dos homossexuais, dos leprosos). Abre as portas à Inquisição. Nunca se insistirá suficientemente na revolução introduzida pela confissão auricular obrigatória: uma confissão dita individualmente ao ouvido do padre, e com a cobertura do segredo. Isso acabava com as confissões públicas, raras, necessariamente espetaculares e ligadas exclusivamente aos atos públicos.
Trata-se agora de entrar em si mesmo, de fazer seu exame de consciência. Abre-se um espaço interior, que será o da psicologia, depois o da psicanálise. Um dia, encontrando Michel Foucault na biblioteca parisiense dos dominicanos de Saulchoir, discutimos apaixonadamente Latrão IV Eu próprio arrisquei uma fórmula: "A psicanálise fez o confessionário deitar-se horizontalmente; o confessionário tornou-se o divã." Minha fórmula não era exata, confesso, pois o confessionário, fisicamente, só apareceu no século XVI. Até então, confessava-se individualmente, sentado junto do padre, exatamente como ainda se vê nas grandes manifestações públicas da Igreja, hoje: peregrinações, Dias Mundiais da Juventude, etc. Mantenho, entretanto, a idéia de uma afirmação vertical: a confissão une o alto e o baixo, o lá e o aqui. Interessamna menos os atos do que as intenções levando ao ato. As conseqüências são consideráveis. O Renascimento dos séculos XV e XV7, tal como o definimos, não passa então do terceiro... Considero o "grande" Renascimento, você compreendeu bem, como um dos renascimentos medievais. O mesmo em relação a essa reforma que foi a Reforma protestante. A grande questão é saber quando esse Renascimento se torna outra coisa, e quando a Idade Média, verdadeiramente, acaba. Como eu dizia, não há necessidade de buscar um momento, nem uma grande data, mas uma série de momentos. Não existe um fim da Idade Média. Importa mais meu sentimento. Gostaria de voltar por um momento a falar do século XVI, grande Renascimento medieval.
Politicamente, pode-se pensar que a Idade Média acaba com o correr das guerras de Religião. O célebre princípio: Cu jus régio, ejus religio (falou no lugar, falou na religião)* nada mais faz do que homologar um hábito medieval. Cada lugar, cada senhor, seus costumes. Num tempo em que Roma, apesar de suas pretensões, é uma realidade longínqua, o príncipe e os bispos fixam um certo número de usos. Eu diria mesmo que a separação do cristianismo em dois grupos (os Reformados e os Romanos) fere o homem medieval, mas não o surpreende: já tinha havido momentos de dois ou três papas concomitantes, reinos eram excomungados, havia guerras contra o papa, etc. Desse ponto de vista, portanto, não houve uma verdadeira ruptura, mesmo que se saiba que se trata de um corte definitivo. Em compensação, aparece nesse momento a palavra religião, absolutamente estranha à Idade Média. Tudo era religião, mas o termo era restrito àsignificação de ordem religiosa: entrar na religião significava professar os votos monásticos. O grande economista americano Karl Polanyi (18861964) mostrou, por exemplo, que a economia das sociedades primitivas até a época moderna não existia de maneira independente mas era embutida no que chamamos religião" (ver capítulo 3, p. 7, da obra de Polanyi em tradução francesa citada pouco adiante, no subtítulo "A invenção da economia"). A acepção atual da palavra remonta ao século XVI. Esse surgimento do conceito de religião marca — ele marca — uma verdadeira ruptura, uma vez que convida a pensar even-
tualmente fora da religião, considerada então como um fenômeno, senão relativo, pelo menos posto à distância. Pode-se "escolher Como "visão do mundo", a Idade Média persiste, ao contrário, nos dois campos. Só se desfaz com o impulso do espírito científico, a partir de Copérnico (1473-1543) e até Newton (1642-1727). Se se considerar, por fim, a tecnologia e a vida social, a Idade Média dura até o século XVIII. Cede progressivamente, então, lugar à revolução industrial, quando se acentua a ruptura cora a economia rural. O surgimento da noção de mercado, a tomada de consciência de fenômenos especificamente econômicos anunciam uma reviravolta. Até então, a economia respondia em primeiro lugar a questões morais: como pensar a riqueza e a pobreza? No século XVIII, encontra sua autonomia. Torna-se um instrumento, que se quer tornar causa e finalidade. Resta um último problema: o da Itália. Tradicionalmente, desde Burckhardt — já o vimos — o Renascimento quase se confunde com a Itália. Isso não me satisfaz. A Itália é, certamente, o lugar onde se realiza a excelência de cada período medieval. Mas é também o lugar que se afasta constantemente dessa civilização, produzindo exceções consideráveis. Excelência na Idade Média: o sucesso do avanço urbano, o dinamismo do movimento religioso, a eclosão de gigantes como Dante (1265-1321) ou Giotto (c. de 1266-1337)... Exceção na Idade Média: a ausência de monarquia, a ausência de uma verdadeira arte gótica; e, principalmente, a fragmentação das cidades, a estrutura estranha das guerras intestinas. Há alguma coisa de anacrônico para estudar uma Itália Medieval. Trata-se de uma noção abstrata, fabricada a posteriori. O que há são Itálias, no plural.
As mesmas interrogações pesam sobre o Renascimento italiano. Na Península, o século XV freqüentemente parece atípico. Citarei apenas o caso de Maquiavel (1469-1527). O Florentino é medieval, sob muitos pontos de vista; talvez mais do que os italianos de seu tempo. Sob outros pontos de vista, vai adiante de sua época, e já trata da questão política do "príncipe" e do absolutismo como ela viria a ocorrer no século XVII. Depois de ter situado a Itália no coração da Idade Média em seguida ao Renascimento, seria absurdo excluí-la desse período. Quero simplesmente lembrar como é difícil tomar o caso italiano como modelo e medir por ele o conjunto da Europa. Difícil demarcar o fim da Idade Média. Aías quando ela começa? Tínhamos ficado em Rómulo Augústulo, Odoacro e 476... A idéia de um fim brutal da Antigüidade greco-romana felizmente foi abandonada. Fala-se de Antigüidade tardia. Esse grande período, ainda imperial, leva à Idade Média ocidental, certamente, mas igualmente às civilizações do Oriente bizantino e do islam — que talvez seja preciso parar de designar como medievais. Porque não basta falar de uma cronologia (do século VI ao século XV) para falar de Idade Média, a partir do momento em que deixamos o Ocidente. A Arábia medieval, a índia medieval, o Japão medieval nem sempre são noções pertinentes. Em relação a que periodização podese falar em "Idade Média" no Islam, na índia, no Japão? Haveria nisso uma extensão abusiva de um ponto de vista ocidental. Quanto à América: quem estudaria os astecas sob o ângulo
EM
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DA IDADE
MÍDIA
da Idade Média? Mas a periodização ocidental que produziu a Idade Média foi geralmente aceita até aqui. Existe até o fim da Antigüidade tardia uma cultura própria a todo Mediterrâneo. Lá se edificaram em seguida — sem apagar tudo — outras entidades geopolíticas. Algumas delas ligadas ao continente europeu: é o caso de nossa Idade Média, que nada tem de universal. Outras dessas entidades políticas ligam-se à Arábia ou à África do Norte: é o caso da conquista muçulmana. Outras, ainda, interagem com a Ásia Central: caso dos fenômenos turcos e mongóis, muçulmanos mas muito pouco árabes. É o caso igualmente de Bizâncio, cujo encadeamento cedo seria com a Rússia. Quanto à Europa, vamos esquecer Rómulo Augústulo, que não é significativo. Eliminemos também a imagem — não menos ideológica — das "Grandes Invasões". Augusto e Tibério já repelem os "invasores": pertencem sem contestação à Antigüidade. A Grécia antiga tinha combatido os "bárbaros", termo criado por ela com o sucesso conhecido. Também Carlos Magno guerreia contra os "invasores" do Sul ou do Norte. Situa-se, entretanto, e isso é uma evidência, na cultura medieval. A mudança, para nós, tem a ver coma cristianização: fazse pouco a pouco, a partir de dentro. O Império se cristianiza, depois cristianiza seus invasores, ainda que ele próprio desapareça na nova configuração. Em compensação, para o Oriente Próximo e o Médio, a mudança nasce da islamização, progressiva, que neste caso vem do exterior: da Arábia. A Idade Média ocidental não é programada. Nasce de uma aculturação na qual se confundem pouco a pouco os usos e costumes greco-romanos com os dos "bárbaros". Nasce também da confrontação com o Islam. Na origem, de fato, nada predispunha o Império do Ocidente — que englobava a Áfri-
ca do Norte — a se torrar "europeu". Da conquista muçulmana na Espanha (século VIII) até a hegemonia otomana nos Bálcãs (século XIV), o Ocidente não se concebe em si mesmo como entidade geopolítica. Estrutura-se apenas por sua existência diante de um mundo que se mostra hostil. Sua periodização supõe um tempo longo: a Idade Média perfaz mais de mil anos, foi dito. Dentro desse tempo longo, encontram-se entretanto períodos mais curtos: duzentos anos ou trezentos anos de um Renascimento a outro. Quanto mais nos aproxi?namos do tempo presente, mais curtos parecem os períodos: vai-se da Revolução Francesa (1789) até o fim do Império (1815), da Restauração até a Revolução de 1848 ou, para algunss até a queda do Segundo Império (1870), etc. Essa periodização, porém, concerne apenas à França. Mais o passado se aproxima, mais os períodos diminuem... É o paradoxo, de fato. Multiplicamos o período pelo tempo recente, como se isso nos permitisse dominá-lo, como se nos propuséssemos assim uma leitura dele. A tendência seria, aqui, o conceito equívoco de "geração''. A geração da guerra (subentendido, a Segunda), a geração do baby boom, a geração de 1968... O que representa períodos de vinte ou vinte e cinco anos, mais ou menos. E um modo de corresponder a isso a que chamamos "a aceleração da história". A priori, esse instrumento apresenta alguns méritos. Estabelece balizas. Resta um problema de fundo: quando começa uma "geração"? Para mim, as pessoas de minha geração são as nascidas em 1924. A elas se segue uma nova geração quando seus filhos vierem ao mundo — ponhamos aí, os anos 1950.
Mas, para os homens e as mulheres de 1934, com toda a certeza será muito diferente: uma diferença de dez anos já apresenta nuanças na maneira de viver e de proceder. E para as pessoas nascidas em 1920, em 1917, em 1913? Em 1944, em 1950, em 1958? Ainda é possível tomar as duas grandes guerras como pontos de balizamento. Conscientes desse aspecto mais do que aleatório, os utilizadores do conceito de geração o que tentam é ligá-lo a grandes acontecimentos — o que depende, claro, da experiência de cada país. Falar de "geração Mitterrand (1981) só tem sentido para a França, não diz nada ao resto da Europa. Poder-se-ia, na melhor das hipóteses, dizer que há uma geração da Primeira Guerra, uma geração da Segunda Guerra e uma geração de 1968, porque esses são três momentos marcantes para o conjunto do Ocidente. Os americanos poderiam, porém, dar 1917 como um marco forte, sua primeira intervenção no Velho Continente, ou ver uma reviravolta na grande crise de 1929, e os alemães podem destacar o terrível ano de 1933, quando Hitler chega ao poder... Para dizer a verdade, essa noção de geração foi forjada para valorizar os acontecimentos de 1968. Foram os atores de 1968 que a criaram. A "geração de 68" corresponde, do ponto de vista demográfico, a uma substituição de classes etárias e a crise se estende ao conjunto do mundo ocidental, dos Estados Unidos aos países do Leste. u Sessenta-e-oitista" é termo formado sobre "Quarenta-e-oitista" palavra que também serve para toda a Europa —, referente aos grandes movimentos de 1848. Como o quarenta-e-oitista, o sessentae-oitista é um velho rebelde, aburguesado (ou re-aburguesado) que se integra às e l i t e s dirigentes, exceção feita a alguns irredutíveis, às vezes infelizes quanto ao destino. Será isso sufi-
ciente para marcar um período? Digamos que isso definiu, seja como for, de modo aceitável o momento 1968. Eu ousaria dizer, contudo, que a noção de "geração" vale só para essa vez, e talvez essa vez apenas. A partir da idéia de "geração" pode-se, entretanto, partir para uma questão diferente: a do enfrentamento pais/filhos, que não é a mesma coisa que o enfrentamento jovens/velhos. Essa estrutura me pareceria mais importante para a evolução histórica. Permitiria periodizações mais amplas: o estabelecimento, por exemplo, de um período 1848-1968, eventualmente pertinente na transmissão de valores e da educação, mas não obrigatoriamente no domínio político. Volto à minha observação precedente: os diferentes domínios da atividade humana não se periodizam da mesma maneira. Pode-se falar de conflitos de gerações em relação à Idade Médiai De conflitos entre pais e filhos, sim — mas a título privado. A noção de geração é inconcebível para o espírito medieval. Sem dúvida é preciso esperar a Fronda* para achar um conflito de características geracionais, com o surgimento das "barricadas", e da própria palavra com essa acepção — que continuará a mesma até maio de 1968... As primeiras "barricadas" foram erguidas em 1648. Tratar-se-ia já de "quarentae-oitistas"? De qualquer maneira, não vejo nada semelhante na Idade Média. Salvo, talvez, em alguns pontos, o movimento dos
Pastoureaux (Pastorinhos), ainda que este tenha tido um papel antes de tudo marginal. Trata-se de um movimento de "cruzada" que, por três vezes, mobilizou pastores e jovens, até mesmo jovens muito jovens, pobres. Uma primeira onda se formou em 1212, uma segunda em 1251 — no momento em que São Luis estava prisioneiro no Oriente —, uma terceira em 1320. Os Pastoureaux queriam tomar o lugar dos cavaleiros, incapazes de libertar a Terra Santa. Puseram-se a caminho. Rapidamente, sua ação se tornou violenta. Por onde passavam, apoderavam-se dos judeus e das riquezas do clero. Aos judeus, criticavam-nos por não se converterem — ora, sua conversão maciça seria o sinal dos Últimos Dias precedendo a vinda do Cristo. Ao clero "pervertido", criticavam por conspurcar a Igreja, pois a purificação da Igreja seria, também isso, o meio de provocar a Parusia.* Tolerados, no início, os Pastoureaux logo passaram a ser combatidos, dispersados. Alguns, porém, integram os exércitos reais. Mas o movimento se desfaz. Não pode ser interpretado como um conflito de gerações, nem mesmo como um conflito social (pobres contra ricos), porque se trata, à evidência, de um movimento religioso, ligado às esperanças messiânicas. Na verdade, faltam-nos documentos sobre os jovens na Idade Média. Numa sociedade amplamente camponesa, analfabeta, eles deixaram poucos traços. De maneira significativa, Georges Duby só pôde estudar uma categoria deles; e só poderia ser uma: a dos cavaleiros. Esses jovens nobres são privados de terras e de mulheres por causa do crescimento
demográfico. Não podem mais usufruir de eventuais benefícios eclesiásticos. Não há mais lugares para todo mundo. São empurrados para a Cruzada. O Papado desvia, assim, em proveito próprio, os "vencidos" pelo crescimento econômico e demográfico dos séculos X e XI. Eis um belo exemplo de influências conjuntas do material e do espiritual: os Cruzados (e o Papado) acreditam verdadeiramente na Cruzada. Mas o que não falta às Cruzadas, também, é base material. Poder-se-ia, com toda a boa-fé, buscar a salvação e enriquecer-se em nome de um ideal. Tudo isso situando-se numa perspectiva escatológica do fim dos Tempos, ou, melhor ainda, do Fim do Tempo. Mas nos afastamos com isso de toda noção historiográfica de longa duração...
Mercadores, banqueiros e intelectuais
A Idade Média é portanto um continente. Quando eu começava a viagem, no alvorecer dos anos 1950, esse continente nada tinha de uma terra virgem. Muitas gerações de historiadores tinham produzido milhares de trabalhos sobre ele. Eu próprio o abordava sem plano, nem programa, com exceção de minha tese, que eu esperava consagrar às Universidades medievais — tese jamais terminada, mas da qual são encontrados traços em meus trabalhos, especialmente meu livro sobre os "intelectuais" da Idade Média.* O acaso, uma breve carreira de docente (um ano no ginásio de Amiens, 19501951;** cinco anos na Faculdade de Letras de Lille, 19541959) e as mudanças no mundo editorial francês levaram-me, com efeito, a temas que eu não teria abordado por iniciativa própria — especialmente o dos mercadores e dos banqueiros, ao qual foi consagrado meu primeiro livro em 1956. É preciso insistir sobre o momento particular que foram os anos 1950-1960. Até então os historiadores escreviam sobretudo para seus pares — salvo algumas exceções. Seus leitores pertenciam a instituições de eruditos. Os trabalhos
tinham como objetivo fazer a ciência avançar sobre pontos muito precisos, necessários ao conhecimento, mas dificilmente assimiláveis pelo grande público. Grande público, que, afinal, não era seu objetivo. E insisto em dar como indispensáveis as memórias, os artigos ou as comunicações eruditas. Constituem a base das pesquisas, seu terreno de lavoura Continuam a ser a pedra de toque para verificar ou invalidar as sínteses que apresentamos ao público não especializado. Os anos 1950-1960 vêem então desabrochar, em muitos países da Europa, e em particular na França, um gênero novo. Editores, freqüentemente historiadores eles próprios, nos encomendam obras cuja lógica não é universitária. Ao acolher alguns de nossos projetos, esses editores se apresentam principalmente com uma força de propósitos até então desconhecida. Nosso mundo era tradicionalmente regido pelos assuntos de tese e pelas grandes questões decurso, destinadas ao programa de agregação. Surgiram, cora os editores, expectativas imprevistas. Faziam-nos um pedido, com o qual já quebravam a ordem convencional, obrigando-nos a uni tratamento diferente dos problemas. É um momento importante da história cultural. Os diretores de coleções, os novos tipos de obra, as abordagens diferentes suscitavam de nossa parte um texto diferente, e portanto necessariamente a abertura de campos até então inexplorados. Entre esses editores-historiadores, Pierre Nora é figura exemplar. Criador da coleção "Archives" na editora Julliard (1964), diretor nas edições Gallimard da "Bibliothèque des Histoires" desde 1970, foi ele o mestre-de-obra, especialmente, do vasto empreendimento dos Lieux de Mémoire (19841993). Manteve-se, todavia, prudente e adequadamente um
tanto à margem daquilo que se chamou "a nova história". Esse rótulo um tanto provocante e com sentido publicitário serviu para muitas maneiras de fazer história. Exprimia o sentimento de uma profunda renovação da história (da cultura material às mentalidades, da história seriada à antropologia histórica). Nessa renovação, Pierre Nora tomou parte ativa. A "Bibliothèque des Histoires" cobre um amplo campo. Propõe a retomada de obras clássicas (1924), como Os reis taumaturgos* de Mare Bloch, mas desconhecidas porque adiante da historiografia de seu tempo, assim como pesquisas recentes. Nessa coleção encontramos Michel de Certeau, Georges Duby, François Furet, Emmanuel Le Roy Ladurie... muitos outros. Eu próprio, com Pierre Nora, coordenei nessa coleção três volumes coletivos: Faire de Vhistoire, que apresentavam os novos problemas; as novas abordagens; os novos objetos. Nela publiquei muitos livros de importância particular para mim: Pour nn autre Moyen Age (1978), La Naissance du Purgatoire (1981), Llmagmaire médieval (1985) e Saint Louis (1996).** O jovem historiador que eu era nos anos 1950 não previa nada disso. Sobretudo, eu tinha curiosidades; fazia-me perguntas: não sabia exatamente para onde iria. Prudentemente, havia me inscrito para uma tese na Sorbonne. Tinha, segundo o costume, "depositado" meu assunto. Pensava, já o disse, numa tese sobre as universidades medievais no prolongamento de meus
estudos superiores (hoje uma aplicação de magistério). Eu a tinha elaborado e redigido em Praga, onde obtivera uma bolsa. Essa escolha nascera de um acaso. Depois de minha entrada na Escola Normal, no verão de 1945, tinha participado de uma viagem de alunos dessa escola na zona de ocupação do Exército francês pela Alemanha (região do lago de Constança) e pela Áustria (Tirol) por iniciativa de uma divisão militar. Em Innsbruck, um tenente francês estudante da Escola Normal pediu-me que eu entregasse um pacote a seu irmão que trabalhava na Direção das Relações Culturais do Quai d'Orsay.* Esse rapaz do Quai dOrsay é que me encorajou a pensar em uma bolsa na Tchecoslováquia, país no qual a França se esforçava para fazer esquecer o rancor provocado pela sua atitude em Munique. Segui o curso de língua tcheca naquilo que chamávamos então de Línguas O (Escola das Línguas Orientais Vivas, hoje INÀLCO). A instituição da cortina de ferro e a guerra fria me impediram, depois daquele ano ern Praga excepcional, de prosseguir nas pesquisas sobre a Boêmia medieval. Mas consegui um diploma s o b r e i fundação da Universidade Carlos de Praga em 1347-1348 e passei a ter uma viva atração pelos países eslavos, fascinado por sua cultura "européia". Esse horizonte oriental continuava fechado, mas por um outro acaso reabrese dez anos depois, desta vez na Polônia. Nessa Europa, por cuja união milito hoje em dia, a Europa centro-oriental, me fala particularmente ao coração. À Tchecoslováquia transformada em República Tcheca eà Eslováquia (que não se pode
esquecer), acrescentou-se nos anos 70 a Hungria, sempre cara a meu coração. Não sou particularmente apegado a honrarias. Não desejei ser membro do instituto mas tenho orgulho e fico feliz com o fato de que alguns colegas estrangeiros me concederam um título de doutor honoris causa. Pois sou doutor H.C. das universidades de Varsóvia, de Cracóvia, de Praga, de Budapeste, de Bucareste e de Cluj (Romênia). É uma alegria. O assunto da tese que depositei nos anos 1950 naSorbonne era, entretanto, muito difícil. Quando de minha temporada na Escola Francesa de Roma, em 1952-1953, da qual voltarei a falar, o capelão da Escola Normal, padre Brien, que me honrava com sua amizade, orientou-me para uma espécie de fonte, os manuais do confessor do século XIII. Neles descobri um tema de pesquisa que me cativou mais. Pretendi estudar "as atitudes a respeito do trabalho". Observei, na verdade, que a constituição das universidades no século XIII inspirava-se em parte em uma nova concepção do "mestre". O mestre universitário diferia do mestre monástico, que era tradicionalmente o modelo. Percebi que nesse século XIII se tinham desenvolvido — acompanhando o avanço urbano (e as cidades tinham um lugar eminente no conjunto cultural e social que me fascinava) — reflexões e conflitos a respeito do trabalho. Por um lado, o trabalho se confrontava com a mendicância; por outro, com o "lazer" (
fato, como uma das realidades principais das mudanças da sociedade atual. Também devo evocar agora — talvez devesse tê-lo feito mais cedo — um mestre que desempenhou um papel importantíssimo em minha vida profissional e em minha carreira: o medievalista Charles-Edmond Perrin, professor da Sorbonne, do qual fui aluno e discípulo. Perrin era um historiador do tipo tradicional, mas por seu saber, sua consciência, seu prestígio justificado, sua humanidade, emergia acima de seus entristecedores colegas. Ensinou-me o rigor científico, deu-me uma formação sem se opor a minhas orientações que entretanto freqüentemente o desconcertavam. Ocupa um lugar importante no pequeno mundo de mestres que quero saudar e aos quais quero fazer um agradecimento. Foi ele que aceitou meu assunto proposto e a evolução de meu tema de tese. Minha "carreira'' me levou portanto em primeiro lugar ao ginásio de Amiens (1950-1951). Beneficiei-me, em seguida, para minhas pesquisas, de urna temporada em Oxford, Lincoln College, onde vi que a Idade Média universitária não estava morta (1951-1952), depois veio a Escola Francesa de Roma (1952-1953). Em 1954 tornei-me assistente na Faculdade de Letras de Lille. Aí encontrei um grande patrono, ao qual me ligaram laços de afeição: Michel Mollatdu Jourdain. Excelente medievalista, era um apaixonado, paralelamente, de maneira inovadora, pela história da Marinha. Todas essas atividades não o impediam de militar sem alarde, mas muito concretamente, com uma grande abertura de espírito, em favor das causas que lhe pareciam indissociáveis de suas convicções cristãs — em particular o movimento ATD-Quarto Mundo, voltado para os mais despossufdos. Quero renderlhe homenagem também pelo seguinte: eu me encontrava di-
ante de um historiador fechado sobre o saber único e a erudição única. Jourdain foi um desses numerosos cristãos engajados, leigos ou sacerdotes, que me apoiaram — a mim, um agnóstico — em meus trabalhos, indicando-me ou me abrindo caminhos para a pesquisarem nunca buscar me influenciar, nem me impor seu ponto de vista e sua própria experiência interior. Michel Mollat du Jourdain, assim, confiou-me um de seus seminários cujo assunto parecia técnico: o comércio do sal na Idade Média. O assunto, porém, é apaixonante. O sal é, por essa época, o único meio de salvar os víveres. Estudar o sal, desse modo, era estudar um dos mais importantes e principais objetos de comércio desde o início da Idade Média, até mesmo numa época em que o comércio praticamente não existe. Até os séculos XI e XII, as trocas eram muito reduzidas. Exceção feita a esse indispensável agente de conservação, necessário, fundamentalmente, para a alimentação dos homens e dos animais de criação e para o tratamento dos solos. Encomendaram-me então um pequeno volume para a famosa coleção "Que sais-je?" (PressesUniversitairesde France), que começava naquele momento a sua expansão. Era necessário tratar do comércio na Idade Média. Mas, como sempre preferi os homens às abstrações, ampliei o assunto. Com isso, o volumezinho tornou-se Marchanis et Banquiers du Moyen Age 1956.* Eu tinha trinta e dois anos.
A INVENÇÁO DA ECONOMIA
Que o comércio seja negócio dos mercadores não surpreende. Em compensação, por que insistir, quanto a esse ponto, sobre os banqueiros? Porque a Idade Média faz surgir uma categoria social nova: o m e r c a d o r - b a n q u e i r o . Os dois ofícios são então indissociáveis. Até o século XI, o comércio permanecia pouco desenvolvido. Algumas trocas, entretanto, eram feitas através dos monges e, sobretudo, por duas categorias de estrangeiros": os judeus e os sírios, nome genérico para os orientais do Oriente Próximo.* Havia poucos comerciantes especializados. Como já acontecia na Antigüidade, onde o comércio não constituía, em Roma, por exemplo, mais do que uma das funções da classe eqüestre, a dos "cavaleiros . Ora, eis que aparece, no século XII, o mercador, cuja atividade apresenta rapidamente uma outra face: o banco. O mercador, quando circula, precisa mesmo trocar sua moeda, torná-la reconhecida, etc. Essa atividade de troca, que tira seu nome do balcão onde a pessoa se instala (banco, em italiano), permite aos mercadores jogar com a diferença de cotação. Intensificando-se o comércio, os mercadores evitam o transporte de numerário graças a invenção da letra de câmbio. Essa letra permite a um mercador pedir emprestado a um outro mercador, por documento escrito, uma soma que lhe será reembolsada mais tarde em algum lugar. Esse merca-
dor cria, portanto, o crédito a termo. Intervém também num outro lugar com uma outra moeda. O crédito se cruza numa operação de troca. Essas duas operações produzem um juro. As próprias letras de câmbio podem ser objeto de um mercado, desse modo: são compradas, revendidas, trocadas, etc. O historiador pode acompanhar nos séculos XIII e XIV a rápida expansão de uma nova realidade. O mercador tornase um especialista era escrituração. Redigem-se para ele manuais de prática comercial. E um intelectual prático. Caminha de par em par com o universitário. O mercador-banqueiro confronta-se, porém, com um difícil caso de consciência. A Igreja medieval, marcada pelo ascetismo dos monges, e que leu nas Escrituras a condenação do empréstimo a juros, ensinava a desprezar o dinheiro. E eis que esses mercadores, não contentes de fazer aparecer o dinheiro na vida social, nele encontram um interesse profissional e humano. Nova categoria social, os mercadores devem, além disso, sua fortuna a uma atividade arriscada, com sucessos frágeis. Bons cristãos, querem justificar esse dinheiro. Compensam esse contato "impuro" com um dinamismo cultural que os eleva à altura das duas únicas categorias sociais prestigiosas até o século XI: os nobres e os prelados mecenas e comanditários daquilo a que chamamos obra de arte (a expressão não existe na Idade Média, a arte no sentido moderno aparece no século XIX). Certamente estudou-se antes de mim a aparição dos mercadores-banqueiros. Mas com menor interesse, com exceção de um pequeno número de historiadores — entre os quais gostaria de citar os que me ajudaram, o francês Yves Renouard e o italiano Armando Sapori —, quanto a seu papel cultural, que deixa marcas na religião, mas também nas idéias, nas ar-
tes, etc. Porque os próprios mercadores tentaram cristianizar sua atividade. Iam à missa, mandavam rezar missas, observavam as obrigações quanto aos sacramentos; assim como a Igreja constatava sua existência, sem hostilidade particular. N ã o lhes indicava, entretanto, os parâmetros necessários. Não havia pensamento muito elaborado quanto à sua ação, fora a desconfiança tradicional diante do dinheiro. Limitando-se a repetir a condenação de "Mamon"* — o dinheiro enganador —, a Igreja comportava-se de modo instável, uma vez que, de alguma forma, deixava livres para agir esses mercadores que ela não sabia como enquadrar. O problema da usura finalmente permitiu desenvolver a reflexão. Quando há benefício legítimo? Quando há usura? Como se distingue um caso do outro? Até onde a especulação pode ser aceita? Quando a especulação se torna um pecado? Essas interrogações remetem à questão de duração: os mercadores vendem tempo, mas o tempo só pertence a Deus. Essas questões assumiram grande importância na vida intelectual da Idade Média. Os manuais de confessores são um eco preciso dos problemas de consciência dos mercadores e da perturbação dos homens da Igreja. Pude, aliás, explorar
outros aspectos, trinta anos depois de Marchands et banquiers, com um novo livro: la Bourse et la Vie (1986).* Devo antecipar alguma coisa. Na Ecole des Hautes Etudes, onde ensinei a partir de 1962, tive a possibilidade de dirigir uma pequena equipe de pesquisa e de reunir essa pesquisa a meu ensino de seminário. Tratava-se mais uma vez das cidades, lugares de grandes intercâmbios econômicos, sociais, culturais e religiosos. Eu estava particularmente interessado em um novo tipo de religiosos: os mendicantes", que não viviam dos benefícios de um mosteiro ou de uma terra cultivada, mas da esmola, da livre doação. Tinham transferido seu apostolado do meio rural e solitário dos monges para a ação, no coração da sociedade. As duas principais ordens mendicantes — os dominicanos, oficialmente chamados "pregadores", como os franciscanos eram chamados "menores", humildes — conheceram desde o início do século XIII um sucesso fulgurante. O número de seus conventos cresceu mesmo levando-se em conta a demografia e a economia das cidades. Pude traçar um mapa urbano incluindouma hierarquia das cidades a partir do número de conventos de mendicantes — que comprovava a existência de uma nova sociedade medieval. Participei também de uma pesquisa que me apaixonava, sobre as relações entre a história e a geografia, os lugares e as redes onde se fazia história. Na esteira desses primeiros trabalhos, elaborei um segundo campo. Os frades mendicantes eram pregadores po-
bres. A palavra — ainda que eles também se exprimissem através do livro — foi um dos principais instrumentos de sua ação. Falamos, Jean-Claude Schmitt e eu, de "palavra nova" no século XIII. Consideramos o texto de numerosíssimos sermões, efetivamente pronunciados, ou anotados de maneira esquemática, e como modelos. Para tornar essa pregação viva, atraente, eles a recheavam de historinhas da vida cotidiana. Essa vida concreta dos homens e das mulheres da Idade Média, sem exclusão das pessoas modestas — e era isso que eu procurava —, aparecia nas histórias, as quais denominamos por seu nome medieval: os exempla. Na pesquisa coletiva e nos seminários sobre os exempla, hoje tendo seqüência de maneira notável através de Jacques Berlioz e Marianne Polo de Beaulieu, apareciam numerosos frades mendicantes, freqüentemente apresentados em suas relações com os usurários! Retomo então o problema da usura medieval. Tratei concretamente das relações entre economia e religião. Pude utilizar conceitos do grande economista Karl Polanyi (Les Systèmes économiques dans Vhistoire et la théorie, tradução francesa, 1975). Abordei assim a maneira pela qual os homens da Idade Média compreendiam essa atividade que não sabiam ainda chamar de economia. Essa palavra grega, muito erudita, foi tomada de empréstimo a Aristóteles a partir do século XIII: designava então apenas a economia doméstica, a boa gestão do patrimônio. Muitos concílios condenam severamente a usura. Reis perseguiam os usurários,, como Filipe Augusto (1211) ou São Luís (1254). Acenava-se para os usurários com horríveis sofrimen-
tos no inferno. Pensar-se-ia, assim, em uma oposição violenta: a Igreja contra os mercadores. A desconfiança em relação ao dinheiro persiste, é verdade. Afinal, ela dura até hoje. A fórmula de François Mitterrand contestando os ganhos na bolsa, os lucros daqueles que "enriquecem dormindo", poderia ter saído de um sermão da Idade Média. Houve, de fato, repetidas condenações pela usura. Também se exerceram violências contra os usurários, fossem judeus ou cristãos. Não se pode, por isso, falar de um enfrentamento: Igreja contra mercadores. O lugar-comum segundo o qual a Igreja se oporia à economia e ao progresso é parte do velho arsenal das Luzes, retomado no século XIX. A verdade é totalmente outra: a partir dos séculos XI e XII desenvolve-se uma legitimação do dinheiro. Há uma consciência do perigo que o dinheiro representa, há uma consciência do obstáculo em que ele se constitui no caminho da salvação, mas não se deixa de reconhecer cada vez mais sua legitimidade embutida numa verdadeira "economia" moral. Michel Albert distinguia recentemente dois estilos de capitalismo. O capitalismo americano veria, segundo ele, o dinheiro como um valor em si, enquanto que o capitalismo renano enquadraria o dinheiro sob uma visão mais " m o r a r . Esse capitalismo renano, que se estenderia da Suíça aos Países Baixos, passando pela Alemanha e o Leste da França, dá uma idéia muito exata do equilíbrio a que mercadores e teólogos se esforçavam para chegar na Idade Média.
Como se dá a legitimação? A riqueza desponta. É mais abundante e diversificada, e diferente da riqueza tradicional dos poderosos. Sem ceder a um pseudomarxismo, segundo o qual a mudança material introduz uma mudança na sociedade, é preciso admitir este peso dos fatos: o comércio se desenvolve e facilita o desenvolvimento. Todo mundo, de um modo ou de outro, sem exclusão dos clérigos, tira proveito desse fato— e não apenas um proveito material. Esse sucesso é, em si, uma forma de legitimação. E vem acompanhado de um importante trabalho teórico. A crítica dirigida pela Igreja contra a usura (quer dizer, também contra o princípio dos juros) era relativamente fácil de ser mantida enquanto a usura permanecia majoritariamente um fato só dos judeus, sobre os quais a cristandade descarregava uma atividade tão indispensável quanto "impura". Ao longo do século XII, entretanto, o comércio cresce. As riquezas circulam. As operações de câmbio se multiplicam. A própria natureza do câmbio se modifica. A usura cada vez menos é um negócio só dos judeus. De maneira empírica, os homens dos séculos XII e XIII logo percebem que é possível fazer uma distinção entre juro e usura. Os judeus se especializam progressivamente no empréstimo para consumo, que se faz de maneira sempre muito local, de vizinho para vizinho. Os devedores vivem pior à medida que esse empréstimo de proximidade se refere a necessidades imediatas: compra de víveres, de roupas, de material, até mesmo sobreviver. Economicamente, aliás, essa usura não pesa muito. Ela é clara, infamante, mas marginal.
Não é a mesma coisa com os mercadores cristãos, que manipulam somas consideráveis. Os clérigos então passam a se esforçar para legitimar esse novo tipo de usurários — que pouco a pouco vão deixando de ser designados como tais, e se tornam aquilo a que chamamos "mercadores-banqueiros". Reconhece-se em primeiro lugar que eles exercem um trabalho. Não, eles não enriquecem "dormindo": eles trabalham! Disse São Paulo: "A quem dá seu trabalho (merces [ofício] na Vulgata), o salário não é favor: é-lhe devido" (Romanos 4,4). Daí o adágio famoso: "Torfo trabalho merece salário". O trabalho é que o legitima. E isso deve ser creditado, se posso dizê-lo, aos mercadores. Mercadores que também se beneficiam do princípio de utilidade. Importam bens que a cristandade não produz, e que são indispensáveis. Desde que o comércio ganha impulso, os homens da Idade Média têm consciência de seu caráter "internacional"; quer dizer, essencialmente, persistem as ligações entre Ocidente e Oriente. A essas duas legitimações dos mercadores pela Igreja, acrescenta-se uma terceira, que parte dos próprios mercadores. Rapidamente eles se distinguem por seu mecenato na arte e na cultura — dois domínios então estreitamente unidos à vida cristã. Esse mecenato permite aos mercadores a "remissão" de seus pecados. Permite-lhes também exprimir seu gosto, suas expectativas, tanto na ordem do espiritual como na ordem do imaginário. E significativo que os parceiros dos mercadores-banqueiros na execução das encomendas tornem-se pouco a pouco artistas, pessoas que até então não se distinguiam dos outros entregando-se às "artes", quer dizer, às atividades profissionais manuais. E, por exemplo, o caso claríssimo de Ciotto (c. de 1266-1337). Os mercadores florentinos, seus
"patrões", o consideram perfeitamente um artista no sentido moderno da palavra. Utilizam-no. Ele os serve. Chiara Frugoni mostrou magistralmente, através do estudo da iconografia de São Francisco, como Giotto, manipulado por seus comanditários, torna adocicada a imagem fascinante, mas ambígua, do santo — inimigo do dinheiro, porém celebrado pelos homens de negócios.
UM OUTRO ESPAÇO: 0 PENSAMENTO
O senhor acaba de usar muitas vezes a palavra "intelectualque de resto figura no título de seu segundo livro: Os Intelectuais na Idade Média, aparecido em 1957. Isso pode surpreender; uma vez que o conceito de "intelectual", no sentido em que o senhor emprega a palavra, nasce ali pelo meio do século XIX e só se difunde verdadeiramente a partir do Caso Dreyfus. A palavra — que voluntariamente tenho usado deslocada no tempo — pareceu-me impor-se à medida que eu trabalhava no assunto mercadores-banqueiros. Havia, nesse caso também, um novo grupo surgindo. Esse grupo pretendia corresponder às preocupações da nova sociedade urbana. Falar de "clérigos" seria insuficiente. O termo indica muitas espécies de eruditos, sacerdotes ou não, na maioria das vezes pessoas que ensinam. Falar de "universitários" ou de "teólogos" seria muito restritivo. Como eu tinha conhecido Praga e me interessava pelos países que chamávamos de países do Leste, tornara-me sensível ao papel específico desempenhado, lá, pela constelação da intelligentsiay mais vasta,
mais diversificada que entre os franceses — constelação herdeira, também, apesar das violências políticas, de uma corrente ininterrompida desde o século XIX. Esses "intelectuais" europeus pareciam-me corresponder ao papel que desempenhavam os novos atores da vida medieval. Dante (1265-1321), por exemplo, não era nem padre nem universitário: exprime, entretanto, melhor que muitos clérigos, a nova visão cristã do mundo. É um grande intelectual. Sua influência será forte. Gostaria de voltar a falar de minha dívida, quanto à minha orientação de pesquisa, para com um outro homem notável: o padre André Brien, cujo nome já citei, antigo capelão da Escola Normal que mais tarde seria reitor do Instituto Católico de Paris. Eu o tinha encontrado em Roma, onde ele fazia pesquisas teológicas. Quando de um passeio a Tivoli, nas ruínas da casa de Cícero, como eu lhe falasse dos valores morais caros aos mercadores-banqueiros, ele me sugeriu estudar mais amplamente a atitude do cristianismo medieval em face das diversas profissões. Desse modo ele atraiu minha atenção para os manuais redigidos com o objetivo de serem usados pelos confessores — uma produção considerável a partir do século XIII, de interesse fabuloso. Comecei uma investigação sobre as diferentes formas de trabalho: trabalho comercial, trabalho intelectual. Instituindo a confissão anual obrigatória, o concílio de Latrão IV (1215) criava uma importante necessidade. Os padres não tinham então a experiência da confissão pessoal generalizada para a massa dos fiéis. Necessitam então de manuais para se guiar e guiar suas ovelhas. Nesses manuais há um repertório de perguntas, de respostas e de conselhos. Encontrei muitos deles com dezenas de perguntas por "estados", isto é, por ofícios, em Sena, em Florença e em Pádua. Pude fazer aí
o levantamento de várias enumerações sobre a moral profissional, uma vez que os redatores estabeleciam com precisão o que o confessor deveria perguntar a seus interlocutores no caso de se tratar de um camponês, de um sapateiro, de um tecelão, de um tintureiro,* etc. Os mercadores, de início, são muito pouco mencionados nesses manuais, prova de que não eram considerados trabalhadores nem fornecedores de trabalho. No correr dos anos, entretanto, essa relação com o trabalho lhes é pouco a pouco reconhecida e eles se tornam uma consideração de primeiro plano nos manuais. Os guias de confissão me ajudaram a aprofundar o estudo dos mercadores-banqueiros. Ao mesmo tempo eu descobria esse outro meio, do qual vinham especialmente os autores de manuais — um meio que me parece corresponder à definição de intelectual: esses homens (as mulheres, mesmo a grande abadessa Hildegard Bingen do século XII, não vão além do saber monástico) combinam a elaboração dos saberes e da ação sobre a sociedade. Quando se fala da escolástica e de sua difusão, pensa-se na alta filosofia ou na grande teologia. Esquece-se que ela se difundiu na sociedade por todo tipo de caminho. Também quando Michel Chodikiewicz — que mais tarde se tornou executivo das edições du Seuil — me convidou para escrever um livro para uma nova coleção, apresentei-lhe o projeto de um livro na linha dcMarchands et banquiers. Tratava-se de Les Intellectuels au Moyert Age. Continuava, assim, as pesquisas iniciadas para minha tese não completada sobre as Universidades.
A esses intelectuais, como aos mercadores, falta-lhes na origem uma certa legitimidade. Na verdade, eles representam algo novo num tempo em que, nunca é demais relembrar, a novidade é suspeita. Como os mercadores, os intelectuais construíram com o trabalho sua legitimidade — só que agora se trata de um trabalho intelectual. A questão surge à medida que as cidades se desenvolvem. Até então, são essencialmente os mosteiros — mas também os bispados e alguns cursos de grande alcance — que mantêm centros especializados na escrita e no estudo, os scriptoria. Ora, as cidades passam a suscitar a um tempo seus próprios mercados e suas próprias escolas, nas quais se ensinam a gramática, a técnica cartorial e o direito. Os mestres dessas escolas urbanas são eruditos, mas quase sempre não sacerdotes, isto é, são leigos. Assim, não são reconhecidos de imediato. São Bernardo, no início do século XII, não criticava apenas os banqueiros por venderem o tempo, que só pertence a Deus. Também fazia carga contra os professores das escolas que vendiam o saber por dinheiro, porque os estudantes tinham que pagar pelo ensino deles. Para o santo, a ciência, que, também ela, só pertence a Deus, deve ser gratuita. Contra esse ponto de vista, a legitimação se fará através de argumentos já utilizados para o banco: esses novos profissionais, especializados no conhecimento, entram com um tipo de trabalho. Merecem um salário. C o m o os mercadores, eles dão com isso prova de sua utilidade. Conquistam então seu lugar como trabalhadores remunerados. Evolução progressiva, como se vê, porém rápida, entre 1130 e 1230.
Ligado aos mosteiros e às catedrais, o ensino — até o século XII — baseia-se no comentário e na exegese das Escrituras. De modo que o ensino, ainda que leigo, vai buscar seus métodos na pregação, enquanto os pregadores difundem pelo grande público das cidades um trabalho originalmente dedicado aos estudantes. Antes mesmo de constituídas as Universidades — e isso desde os scriptoria de Carlos Magno, o saber se enraíza numa prática original da exegese. Enquanto que, entre os muçulmanos, os comentários do Alcorão são rapidamente dominados por um tradicionalismo rigoroso, a exegese européia desenvolveu métodos críticos nos quais já reconhecemos princípios científicos. Na raiz da nova vida intelectual estão o raciocínio e a discussão. O método escolástico se faz pela discussão de uma quaestio entre mestre e estudante. Essa "disputa", disputatio, desemboca na conclusão, na decisão do mestre: a determinatio* Um curso universitário se estende do bacharelado à licença (licencia docendi, autorização para ensinar). O doutorado coroa tudo. Não mudamos muito desde essa época... Dos scriptoria da primeira Idade Média às Universidades dos séculos XII e XIII há um "salto". Quando redige suas Sentençasy o teólogo Pierre Lombard (c. de 1100-1160), que ensina na escola catedral parisiense de Notre Dame, propõe um manual estruturado com extratos e condensações da Bíblia. N ã o se limita a compilar e repetir os comentários anteriores. Interessa-se pela lógica interna dos textos, por seu conteúdo. Suas Sentenças, ensinamento de base da universi-
dade, serão, desse modo, matéria obrigatória de todo ensinamento teológico até o século XV Há nelas um método — aquele mesmo método que encontramos na base das Sumas do século XIII, da qual a mais famosa é a do italiano Tomás de Aquino, professor na Universidade de Paris. A diferença se prende ao objeto estudado. Pierre Lombard vai se dedicar às Escrituras. Transforma as Escrituras num sistema organizado de citações exprimindo as verdades. Indo mais além, os grandes escolásticos do século XIII articulam o conjunto do saber (cristão —não existe outro, ainda que esse saber cristão se integre ao saber "pagão" antigo, judeu, árabe) em um corpo completo racionalmente construído, como a teologia. É uma suma — termo que mostra bem a ambição de caráter enciclopédico (o século XIII é também um século de enciclopédias). Tomás de Aquino, no terceiro quartel do século XIII, construiu portanto a mais notável dessas sumas. Na sua Suma ele integra, cristianizando-a, a mais racional filosofia da Antigüidade, a de Aristóteles, durante muito tempo um autor suspeito nas universidades. Também flerta com as teorias de um comentarista árabe, o andaluz Averroés (1126-1198), teórico da "dupla verdade" segundo a qual os mesmos fenômenos revestem-se simultaneamente de uma verdade terrestre humana e de uma verdade divina, que não são da mesma ordem, mas são ambas legítimas. Tomás de Aquino não chega a ir tão longe. Rejeita Averroés. Todavia o cita, leva-o em consideração. A própria palavra "escolástica"—retomando o latim scola, a escola — significa um saber que se ensina. Impõe todavia a idéia mais ampla de um método pedagógico "universal", próprio dessa nova instituição a que damos o nome de "universi-
dade": um "corpo" de mestres, uma corporação, uma "totalidade" dedicada ao saber. O padre Marie-Dominique Chenu resumiu essa mudança em duas obras publicadas em 1957. A primeira apresentava A teologia no século XII \ a segunda prosseguia: A teologia como ciência no século X11V "Como ciência": tudo está nisso. De resto, a palavra 'teologia" é uma invenção do século XII, a obra de Abelardo, grande mestre pré-universitário. Só a cidade — e uma ordem mendicante que fica fixa nas cidades, a Ordem dos Pregadores (dominicanos), fundada em 1215 — podia marcar essa nova etapa, pois a ela o quadro mais antigo dos conventos e das escolas episcopais não se adapta.
FRANCISCO DE ASSIS. MENDICANTES NA CIDADE
Deve-ses então3 falar de uma revolução do século XIII? Não. Em primeiro lugar — já disse isso — porque a noção de revolução permanece absolutamente estranha ao espírito medieval, que prefere os renascimentos. E principalmente porque as origens desse renascimento são antigas: o século XIII não rompe com seus predecessores. Já dei o exemplo de Pierre Lombard. Mas também poderia mencionar o admirável Pierre le Chantre (morto ern 1197), outro que ensinou por longo tempo em Notre-Dame de Paris. John Baldwin disse, com propriedade, que Pierre le Chantre reuniu em volta 'Encontrei-me regularmente como padre Chenu a partir de 1957, época em que ele era objeto da desconfiança vaticana, e não saberia como dizer tudo que devo a esse intelectual cristão extraordinário como teólogo e como homem e que me honrou com a sua amizade.
de si um "círculo", próximo de nossos atuais círculos de intelectuais — não uma corte, nem um salão, mas um pólo informal de estudos e debates. E antes dele um outro parisiense, Pierre le Mangeur (o comedor, o devorador de livros) escreveu uma História escolástica na qual faz da Bíblia um livro de história para os estudantes. Pierre le Chanrre dizia que, estudando as Escrituras e ensinando, observava essa cidade dinâmica na qual vivia e para a qual pregava. Nada lhe escapava. Interessava-se particularmente pelos ofícios e profissões: os homens das leis, os homens de guerra, os mercadores e até os jograis. Aborda todos os problemas práticos, quer se trate da guerra, dos impostos, do comércio ou dos preços. Sua influência é especialmente clara na redação dos primeiros manuais de confessores. Vêse bem, através dele, como se cria uma rede que vai dos estudantes até o povo em geral, passando por todas as categorias. Com dois grandes instrumentos: o sermão e o livro. Entre as funções do intelectual está também, para nós, a função critica. Parece difícil ser crítico no século XIII. Quando me decidi por empregar a palavra intelectual, em 1957, não pensava apenas na intelligentsia dos países do Leste no século XIX mas também nos trabalhos realizados nos anos 1930 por Antonio Gramsci, que era um marxista inteligente. Gramsci distinguia duas espécies de intelectuais: os intelectuais críticos e os intelectuais orgânicos. Os intelectuais orgânicos são os que servem os poderes estabelecidos. Excetuando-se alguns criadores de heresias, poucos e obrigatoriamente marginais, os intelectuais da Idade Média são por natureza orgânicos: trabalham integrados a um conjun-
to, movidos por uma preocupação de utilidade. Estão reunidos aqui esses dois valores — trabalho e utilidade — que legitimam simultaneamente os mercadores e os intelectuais. A crítica tem, contudo, seu lugar. E esse lugar é reconhecido. O que, naquele tempo, constitui uma novidade. Desde o século XII, Abelardo tinha dito que os novos teólogos (sem dúvida, ele criou a palavra) deviam utilizar o método da dúvida, de Aristóteles. Isso, cinco séculos antes de Descartes. Tomás de Aquino, para ficarmos num único exemplo, por mais prestigioso que seja, deixa muita gente confusa. A ordem dos Pregadores, à qual ele pertence, contesta freqüentemente suas teses. O triste e vaidoso Etienne Tempier, bispo de Paris, critica-o em vida (1270) e o condena francamente três anos depois de sua morte (1277). Claro, a evidente fidelidade de Tomás à Igreja e a chama mística de seus últimos anos impedem que caia sobre ele a acusação de heresia, que é a arma mais terrível da Idade Média — ainda que raramente empregada, ao contrário do que tantas vezes se acredita. Na impossibilidade de criticar diretamente sua teologia, seus adversários atacam seu sistema de pensamento, seu método. Prova, se houvesse necessidade disso, de que o intelectual medieval não é uma simples peça a serviço de uma máquina. Esse intelectual vive tensões, suscita tensões, mas quer ser um membro do corpo que é, para ele, a sociedade com a qual a Igreja se confunde. Com os mercadores e intelectuais, a cidade se torna então o cadinho de uma civilização. A prova vem de uma personagem imensa: Francisco de Assis, Francesco di Bernardone (1181 ou 82-1226), filho de
um mercador de tecidos, nasce no momento em que as cidades se tornam pólos de poder. Um conflito recorrente marca sua juventude: a luta de Assis, sua cidade natal, contra a cidade de Perúsia. Em 1198, ele participa como cavaleiro na guerra em que se lançam as duas comunas. É feito prisioneiro. Em 1205, quer combater outra vez, contra os partidários do Império. Cai doente. Depois disso é que rompe espetacularmente com seu pai e seu meio. Em 1209, com alguns companheiros, funda uma ordem mendicante, portanto móvel, radicalmente diferente dos monges, que são por definição sedentários. Francisco reagiu, dessa maneira, à aparição daqueles "novos pobres" que são os miseráveis das cidades. E levanta, desse modo, muito logicamente, a questão central do universo mercador de que saiu: a do dinheiro. 4i Vai-se mais rapidamente ao céu de uma cabana do que de um paláciodizia ele, instalando-se numa pequena fatia de terra ao lado da humilde capela da Porciúncula. Francisco prefere as ruas, as praças, as pequenas habitações. Quando redigiu, depois das difíceis relações com a Cúria pontifícia, sua Regra de 1221, que a Cúria mandou que ele refizesse, Francisco anunciou sua vontade de viver como irmão "menor" — quer dizer: humilde, pequenino. Abre o Evangelho a "todas as crianças e criancinhas, pobres e ricos, reis e príncipes, trabalhadores e agricultores, servos e senhores; a todas as virgens, às castas e às casadasy aos leigos, homens e mulheres, a todas as criancinhas, adolescentes, jovens e velhos, sadios e doentes, a todos os humildes e grandes, e a todos os povos, famílias, tribos e línguas, a todas as nações e a todos os homens, por toda a terra". Inventa também, com aquilo que virá a ser a "Ordem Terceira", uma forma inédita, adaptável e nova, de vida religiosa no século, na cidade. A Ordem
Terceira (haverá a mesma coisa entre os dominicanos e os outros mendicantes) acolhe, de fato, pessoas desejosas de seguir a espiritualidade franciscana sem para isso viver em comunidade, sem romper com sua vida de família ou profissional. Francisco populariza uma vida religiosa não clerical, leiga. Sem dúvida, Francisco não tem doutrina econômica. Tem, contudo, uma consciência da economia. Rompendo com sua família e os mercadores de tecidos, considera estar aplicando ao pé da letra o capítulo 10 do Evangelho segundo Mateus: "O que recebestes de graça, dai de graça. Não carregueis nem ouro, nem prata em vosso cinto, nem saco de viagem, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado [...] Em qualquer cidade ou aldeia em que entrardes, informai-vos sobre quem é digno de vos receber e permanecei com ele até vossa partida. Entrando nessa casa, façai vossa saudação dizendo: 'Paz para esta casa!'". Francisco se insurge contra aquilo que recentemente alguns chamaram de "horror econômico". Faz isso com um rigor e uma inteligência dos quais não encontramos equivalente entre os atuais adversários da mundialização. Porque não se limita a rejeitar. Ele se interroga. Escolheu a pobreza, mas não põe em causa a sinceridade, a fé muito real dos mercadores. Conserva, diante do dinheiro, o princípio que manterá em todos os domínios: não impõe sua regra a não ser a si próprio e a seus irmãos. Não a estende a todo o corpo social. Vai até as últimas conseqüências em sua vocação. Permite aos outros que o ouçam e daí tirem suas conseqüências. Assim se explica o prestígio dos frades menores, e sua popularidade entre as ordens mendicantes. Esses irmãos freqüentam o rico e o pobre, o poderoso e o fraco, mas estão no mundo sem pertencer ao mundo, esperando que a mu*
dança — a conversão — se faça de dentro, entre aqueles que os ouvem. A Francisco repugna o exercício do poder, a um ponto tal que ele hesitou muito para fundar sua ordem. Não propõe outro programa além da bem-aventurança da pobreza, o louvor e a admiração diante da Criação. Nenhuma utopia em Francisco, nenhuma espera milenarista de uma grande noite ou de uma sociedade perfeita. Os franciscanos, segundo Francisco, não têm vocação para governar. São um fermento na ascensão para o bem-estar, o testemunho constante de uma inquietude que deve lembrar aos ricos e aos sábios o seu dever. Dois religiosos ilustram a fecundidade dessas instituições. O primeiro é um franciscano convicto: Pierre de Jean Olivi* (c. de 1248-1296). Se bem que tenha sido venerado depois de sua morte, algumas de suas teses foram condenadas, em 1326. Teórico da pobreza absoluta, Pierre Olivi clamava contra a corrupção da Igreja. Interrogava-se sobre a riqueza, perguntando-se como poderiam os ricos chegar à salvação. Abriu, com isso, um caminho seguido por numerosos mendicantes. Dante, sem dúvida, seguiu seu ensinamento em Florença. A segunda personagem, essencial, situa-se em parte na posteridade de Olivi. Trata-se de Santo Antonino, arcebispo e padroeiro de Florença (1389-1459), um dominicano. Observe-se que aqui reencontramos a grande cidade econômica, a grande cidade artística: Florença. Antonino, aliás, está muito próximo do gênio político e financeiro que era Cosme de Médicis. Nada o preocupa tanto quanto a caridade, a oração, a miséria e a penitência. Reforma com zelo a Igreja florentina.
Esforça-se, por isso mesmo — a fim de compreender melhor seus interlocutores —, para analisar a economia como tal. Antonino propõe uma definição da noção de valor. Nesse sentido, trabalhei numa análise jamais terminada para um volume de homenagem a Pierre Vilar, grande historiador marxista, que fez o estudo da escolástica tardia, tal como era praticada em Salamanca no século XVI. Digamos, simplificando, que se chegou a uma idéia muito importante para o futuro do Ocidente: o homem de dinheiro sabe que figura na primeira fila entre os futuros danados; entretanto, um arrependimento permanente e a prática das obras de misericórdia autorizam a esperança de urn perdão. O rico investe assim — através da inquietude e da caridade — seu capital póstumo no Purgatório, essa grande invenção medieval, esse lugar onde as almas pecadoras purgam dolorosamente à espera do Paraíso, evitando assim o Inferno. Estabelece-se dessa maneira a idéia de uma riqueza tolerável. Um certo código do "justo preço" se afirma, assim como outros refletem na época sobre a definição de uma "justa guerra", no espírito de Santo Agostinho. Pode-se, como o senhor sugeriu, falar de uma ciência da economia desde os séculos XIII e XIV, e com mais forte razão no século XV? Os grandes escolásticos dos séculos XIII-XV só percebem a economia engastada na religião, para retomar uma expressão de Karl Polanyi. E preciso esperar pelos jesuítas de Salamanca do fim do século XVI para encontrarmos verdadeiros economistas. Os jesuítas que ensinavam na Universidade de Salamanca, o principal dos quais foi Francisco Suárez (1548-
1617), introduziram na tradição escolástica de Tomás de Aquino conceitos e raciocínios propriamente econômicos. Os metais preciosos da América e ouso que deles fazia a Casa de Contratación de Sevilha modernizaram uma ciência econômica que já não era medieval. O domínio específico da economia, entretanto, só aparecerá no século XVIII, com os fisiocratas* e a noção de mercado. Tratando-se da Idade Média, deixemos de lado a economia rural. Certamente, ela domina a sociedade. Mas se, em toda a Europa, desenvolve-se uma "técnica" agrícola, um sentido ampliado pelo bom rendimento, são entretanto todas as cidades que dão o tom desde o século X, mesmo que sua importância só seja verdadeiramente notada pelos medievais no século XI. As cidades criam o que pode existir como "mercado", se bem que o conceito, no sentido moderno da palavra mercado, ainda não esteja definido. A novidade da Idade Média seria antes o comércio, para o qual o mar tinha grande importância, no Sul (Itália) como no Norte (Alemanha e Báltico). Esses contatos com o exterior levam a um rernodelamento poderoso da rede interior. Fundamentam-se esses contatos em incessantes invenções tecnológicas. Quando os portugueses, depois os espanhóis, dão condições à caravela, consuma-se o salto. Na origem, tratava-se de um barco de pesca, dotado de uma grande qualidade: movimentava-se bem em águas rasas; podia, assim, aventurar-se por praias mal conhecidas. A partir desse modelo, os engenheiros desenvolveram embarcações cada vez mais
importantes, porém fiéis a sua origem: as caravelas eram baratas e dificilmente encalhavam. Foi com essas caravelas, não sem sacrifício, que Cristóvão Colombo acabou por alcançar as costas de Cuba e da Jamaica... Eis um paradoxo. Olivi e Antonino pertencem ambos a uma ordem mendicante. São grandes leitores, versados em matéria de saber. Ora, o "poverello"—o senhor dá especial importância a isso em seu São Francisco de Assis (1999) — recusava não apenas o dinheiro, mas também a ciência. É preciso compreender bem a desconfiança de Francisco em relação aos doutores eruditos. 0 que ele vê na ciência é uma forma de propriedade porque os livros custam caro. Tornar-se um erudito é assumir o risco de possuir, de chegar ao poder, ou de participar do exercício do poder. Francisco nunca teve boas relações com os príncipes da Igreja e com os mestres da Universidade os prelados. Dito isso, voltemos agora a sua atitude diante do dinheiro. Para lutar contra o espírito do luxo, Francisco considera que o saber pode ajudar. Autoriza então seu discípulo Antônio de Pádua a seguir estudos universitários. E logo encontraremos franciscanos entre os mestres mais eruditos e mais audaciosos. E eis uma das muitas ironias do destino de São Francisco: construir-se-á em seu nome, depois da grande basílica de Assis, uma suntuosa basílica sobre a pobre Porciúncula, que lhe servia de cabana, perto de Assis, e os mendicantes estarão instalados, tornar-se-ão poderosos...
O renascimento dos séculos XII e XIII parece, aos seus olhos, caracterizar-se por um cristianismo que se aproxima de nós. Esquematizemos. Até o século XII, Deus permanece em primeiro lugar como o Pai. Depois disso, a figura do Filho o supera: o Céu se encarna, desce sobre a Terra. Os valores tornam-se carne. Através dos mercadores-banqueiros e dos intelectuais, creio ter situado o quadro essencial de minha reflexão sobre a Idade Média. O aparecimento dessas duas novas categorias sociais "marca" a civilização medieval. Sua herança permanece produtora: estruturas econômicas, institucionais, mentais e religiosas. A Idade Média chega então ao equilíbrio entre a razão e a fé, entre as formas de razão e as formas de fé. Assim se concretiza o que podemos chamar o Ocidente. Esse equilíbrio permanece, hoje, a verdadeira conquista, mesmo para um agnóstico, como é o meu caso. Os grandes espíritos da Idade Média dominam nosso pensamento, ainda que as ciências modernas tenham suscitado uma verdadeira revolução. Sinto-me nascido em algum lugar entre Bolonha e Paris, Santiago de Compostela e Roma entre 1150 e 1250.
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4. Uma civilização toma corpo
No comecinho dos anos 1960, Raymond Bloch — que era, antes de mais nada, um grande especialista nos povos etruscos — me fez uma sugestão inquietante. Diretor, nas edições Arthaud, de uma coleção consagrada às grandes civilizações, propôs que eu escrevesse o volume sobre o Ocidente medieval: um livro de importante dimensão, apresentando uma iconografia original. Ura estudo sintético de conjunto, como o que me pediam, pressupunha um vasto saber assim como uma reflexão aprofundada. Na época, eu tinha 36 anos e não se podia considerar, com base em meus dois pequenos livros precedentes, que tivesse uma "obra". De modo que eu não estava certo de ter suficiente experiência para o desafio. Dois trunfos me levaram a bancar a aposta. Graças ao CNRS e a minhas temporadas no estrangeiro, tinha consagrado muitos anos à pesquisa, livre de qualquer preocupação de ensinar. Isso tinha permitido que eu esrudasse um número considerável de documentos, especialmente em Oxford (19511952) e em Roma (1952-1953). Além disso — como professor — tinha me dedicado a desenvolver entre os estudantes a noção de cultura geral, a fim de que eles não tivessem uma visão fragmentária ou seccionada desse longo período. Tinha lido, para esses cursos, muitos textos medievais, privilegiando a literatura, enquanto os medievalistas mergu-
lhavam tradicionalmente no domínio dos documentos: o jurídico, o administrativo. Também me interessavam as imagens e, mais amplamente, a arte. Em uma palavra, o projeto respondia, na minha opinião, às idéias dos Annales, segundo as quais a história para se renovar deve recorrer a documentos desconhecidos ou insuficientemente explorados. O pedido de Raymond Bloch coincidia com uma outra encomenda. Pierre Bordas tinha me confiado a redação de um manual de ensino para as classes de Quatrième — crianças de 12 ou 13 anos. Exatamente como Arthaud, o que Bordas visava, com a iconografia, não era "ilustrar" uma obra, mas fazer "compreender" através de uma visão mais ampla do mundo, fazer com que se penetrasse nas sensibilidades, nos códigos que fazem uma civilização. N ã o se tratava de mergulhar numa documentação já pronta e acabada: era preciso buscar, propor, produzir — e isso me parecia significativo. A necessidade de me dirigir a colegiais me levava ao esforço da síntese e da explicação. A palavra civilização não cobre uma área muito vasta? Falar de uma cultura do Ocidente medieval poderia ser uma possibilidade. Não, estamos diante de uma civilização; diante de um corpo com uma força coerente. Isso se organiza a partir dos séculos VI e VII,completa-se por volta do século XIII para se desfazer pouco a pouco no correr dos séculos XVII, XVIII e XIX. Prefiro, aliás, essa palavra corpo, muito medieval, à palavra sistema. As maneiras de sentir e de pensar, caras a Mare Bloch (meu grande mestre, ainda que eu não o tenha conhecido), a percepção do espaço e do tempo supõem, em relação
UMA
CIVILIZAÇÃO
T CM A
CORPO
a esse longo período, a adesão comum a uma concepção do mundo — uma Weltanschauung, para retomar o vocabulário de um Max Weber. Eventualmente, eu poderia adaptar essa expressão alemã, mas ela me parecia ao mesmo tempo muito filosófica, muito ideológica e muito limitada, tornando mais consistente essa "cultura material" que a arqueologia medieval nos permite conhecer melhor desde a segunda metade do século XX. Parecia-me também, mergulhando nos manuais de confissão, percorrendo os numerosos sermões dos pregadores, que a Idade Média tinha modelado noções de polidez, de códigos morais, até de urbanidãde extremamente novas, na medida em que essa expansão das cidades, dominada, não tinha precedente. Constituiu-se uma civilidade urbana, paralela à cortesia do mundo dos nobres. Só a palavra civilização integrava harmoniosamente os valores de cima e os valores de baixo. Lucien Febvre falava da importância dessa oposição: as visões à francesa falam de civilização;a ciência germânica fala de cultura.
O CÉU DESCE S03RE A TERRA
Há portanto um quadro tacitamente ou explicitamente admitido. A civilização do Ocidente medieval é profundamente, intimamente, marcada pela noção de Criação. Os homens e as mulheres da Idade Média crêem no Deus do Gênesis. O mundo e a humanidade existem porque Deus quis assim, através de um ato generoso.
Esses homens, essas mulheres, também querem saber mais. Sábios se põem a calcular a datada Criação, segundo um cômputo tirado das Escrituras. Até o século XVII, pensa-se generalizadamente que essa criação remonta a 4.000 ou 5.000 anos antes do nascimento do Salvador. Acrescento imediatamente que esse número não é entendido como o entendemos hoje. Quando se diz 5.000 anos, na Idade Média, isso vale como valem para nós milhões de anos. Trata-se de um tempo longuíssimo, inimaginável. Os sábios estabelecem, não sem debates, uma cronologia; situam os fatos, etc. Isso supõe uma leitura crítica. Não se fica na simples repetição da Bíblia, que é analisada como uma fonte "incontestável" de dados. Tudo começa pela narrativa da queda (Adão e Eva), Vem a seguir a lenta escalada — através da história dos patriarcas e de Israel — no sentido do nascimento do Salvador. Depois disso, cada episódio da vida de Jesus, cada um de seus ensinamentos, oferece o modelo que cada homem, cada mulher deve imitar. Por fim, fechando o conjunto das narrativas canónicas, o Apocalipse de João, de Patmos, oferece um completo material figurado, metafórico, com o objetivo de pensar o Juízo Final e o fim dos Tempos que se seguirá; numa tentativa de imaginar essa vida eterna, afinal plena e completa em uma Criação totalmente transfigurada. Sou dos que deploram que, com a escolha apocalíptica, esse pensamento do fim da história se perca em elocubrações, belas mas irracionais e mistificadoras. Em Cambridge, noséculo XVIII, ainda se ensinava que o mundo tinha sido criado 4.004 anos antes do nascimento de Cristo, em 26 de outubro, às 9 horas da manhã. Hoje rimos desses cálculos. Alguns fundamentalistas americanos, que se dizem criacionistas, mantêm contudo em nossos dias — apesar do absurdo científico — uma crença no texto ao pé da
letra. Claro, sem nenhuma concessão a seu sistema, podemos compreender-lhe a lógica, que repousa na idéia de que a Bíblia é um livro de história e o Gênesis uma cosmologia. Desse ponto de vista, os criacionistas refletem uma concepção dos textos sagrados muito próxima daquela partilhada pelos grandes espíritos durante séculos. Os exegetas medievais buscam sem dúvida o sentido segundo textos, suas interpretações alegóricas e espirituais. Consideram, entretanto, o sentido primeiro, literal, como um documento informativo. Para a Idade Média, e mesmo mais remotamente, a narrativa da Criação não trazia problemas como narrativa. Simplesmente continha pontos obscuros, elipses e contradições pretensamente aparentes — e havia um esforço no sentido de delas fazer um levantamento. A essa abordagem não faltava audácia. Tentar "fazer história" assim, com a Bíblia, antecipa alguns de nossos métodos modernos — ainda que as premissas sejam, como o são, equivocadas. O grande salto só se dá no fim do século XIX quando outros livros — mais antigos do que a Bíblia — são descobertos e quando os eruditos deixam de ver nas Escrituras uma base de dados. Antes que fossem conhecidos os primeiros avanços da egiptologia, persistia um acordo geral: a Bíblia é o livro mais velho do mundo, portanto o mais venerável e o mais verdadeiro, uma vez que o antigo por definição parece ser mais confiável do que o presente. É preciso então distinguir com clareza de que maneira se via a Criação, e a crença em um Deus criador. Porque afinal essa crença é que é central. A noção de criação se liga a uma concepção de Deus, da natureza e do homem. A coerência nesse caso é mantida, pensada, ordenada, reordenada, por um organismo coerente ele próprio: a Igreja. A isso corresponde uma sociedade hierár-
quica, centrada em torno do dominium: a dominação da senhoria. O dominium insere — encarna — a função divina na sociedade humana. Supõe uma visão hierárquica. Hierarquia que não deve ser compreendida como uma relação de forças unívoca: o rei no alto, o súdito embaixo. O movimento é recíproco. Deus se encarna, o homem se diviniza. Vemos aqui a descida do Céu sobre a Terra a que já nos referimos. O Céu vem viver entre nós. Isso reforça, claro, nossa deferência diante da Majestade. Mas se o Céu se põe no nível da Terra, isso também significa que há uma transfiguração da Terra, que nos vemos num movimento ascendente. Para os homens e as mulheres da Idade Média, a hierarquia n ã o tem a rigidez que terá no absolutismo e no Antigo Regime. Não esqueçamos, na verdade, que o "horror feudal" tão abominado pelos revolucionários — o Antigo Regime — não passa de um sistema de governo remodelado a partir dos anos 1600. O Estado monárquico e hierarquizado que precede, na França, o Antigo Regime não tem as mesmas características. Se o rei medieval está no alto, debruça-se sobre os súditos e os súditos podem subir até ele. O mais humilde habitante da aldeia está convencido de que pode falar com o rei, que o rei é acessível, como um bom pai, ou antes como Deus na terra. E os próprios reis se vêem como pais de seus povos ou antes como intermediários entre Deuse esses povos. Mais tarde tentei compreender, através de São Luís, o ordenamento de um corpo monárquico medieval —que os escolásticos consideram o melhor entre os corpos políticos possíveis, no sentido aristotélico. A Encarnação supõe igualmente a existência de uma História. Há uma História antes de Jesus e outra depois de Jesus. O tempo do Antigo Testamento se orienta no sentido da vinda do Cristo. Com a ascensão aos céus, o Cristo inaugura um n o v o t e m p o , também este com uma orientação: é o tempo
que leva ao fim do Tempo. Esse tempo que virá n ã o supõe realmente um progresso, no sentido em que o entendemos, uma vez que a sociedade medieval — já o vimos — praticamente não aprecia a novidade, mas fixa uma direção. A humanidade, depois da queda, recebeu a promessa de uma salvação. A salvação nos foi dada, num momento preciso, por alguém muito preciso: Deus feito homem. E t u d o se dirige, desde então, no sentido do momento de sua volta. Está nisso o fim do tempo cíclico caro à Antigüidade, ainda que esse tempo cíclico subsista absorvido pelo calendário litúrgico. O cristianismo medieval não subverte somente a relação com o tempo, os ciclos e a duração. Esforça-se por encarnara encarnação, se assim posso dizer, graças à eucaristia: cada missa, cada dia, em todo lugar, põe Deus entre os homens hic et nunc, aqui e agora. Receber a hóstia é se tornar membro do corpo de Cristo, participar do grande corpo místico formado pela totalidade dos homens, os vivos e os mortos. Tudo isso nada tem de uma longínqua teoria. A Igreja medieval — a sociedade medieval em seu conjunto — esforça-se para viver a prática, vivê-la concretamente. Chega a isso graças a um constante trabalho sobre a liturgia e os sacramentos. A própria eucaristia, a comunhão, só acha sua expressão "definitiva" no século XIII, com a instauração do dia de Corpus Christi. Desde as origens do cristianismo, a eucaristia é o modelo de t u d o que existe, de tudo que tem valor. Ela é o c o r p o de Cristo. Ela une o corpo de cada fiel a um c o r p o superior, místico. Melhor: a eucaristia antecipa a ressurreição. Presença do Cristo ressuscitado, ela introduz o crente na ressurreição, que ele só virá a conhecer plenamente depois da morte, quando será transfigurado em corpo glorioso, se preparou sua salvação através de um encontro de seu esforço pessoal com a graça de Deus. Sem dúvida, nunca houve idade t ã o carnal
como essa idade espiritual. A crença na ressurreição da carne, que é o contrário da reencarnação, estrutura essa sociedade de maneira totalmente inédita se comparada com outras religiões e outras sociedades do mesmo período. Forque o senhor faz menção especial da festa de Corpus Christin Corpus Christi — que a Igreja continua a celebrar hoje sob o nome de festa do Santíssimo Sacramento — tem lugar, em princípio, na quinta-feira que se segue ao domingo da Trindade (8 o domingo depois da Páscoa). Sua primeira celebração data de 1264, em Liège. O papa Urbano IV, nesse ano de 1264, estende a toda a Igreja essa festa do c o r p o de Cristo, marcada p o r unia procissão solene que cada cidade organiza, ou cada aldeia. O Santíssimo Sacramento tem, nessa festa, uma "entrada" verdadeiramente real, seguido pela comunidade urbana que se dá em espetáculo a si mesma em torno do Corpo de Deus. Porque uma procissão medieval põe em cena toda a hierarquia: cada um corn seu lugar, suas cores, suas insígnias, etc; dos mais importantes aos mais humildes. O poderoso dispositivo das festas e do calendário constitui o quadro temporal fundamental de toda a sociedade. Entre esses momentos excepcionais que são os dias feriados (do latim cristão feriatus, dia de festa), Corpus Christi coroa um longo esforço da Igreja. Urbano IV o instaura para marcar com clareza a importância da eucaristia, num tempo em que os fiéis só comungavam raramente. Antes do Corpus Christi, só os que comungavam freqüentemente viam o corpo de Cristo. Agora esse corpo passa a ser mostrado a todos de maneira suntuosa e gloriosa. E uma das conseqüências do famoso concílio de Latrão IV: generalização da confissão, importância destacada da comunhão.
Corpus Christi confirma assim de maneira forte a escolha feita pelo cristianismo ocidental. C o m o qualquer religião, o catolicismo dispunha de dois métodos contrários para garantir o culto e organizar a liturgia. Seja a ostensão, a "monstrancey\ como se dizia no francês antigo. Seja a ausência, o segredo. O Ocidente escolheu o primeiro caminho. Bizâncio e o cristianismo oriental preferem uma certa forma de retração, sob influência da pressão anicônica* que o judaísmo e depois o islam não cessavam de exercer. Na tradição ortodoxa, t u d o repousa sobre a revelação do que está oculto: dentro da igreja mesmo, o santuário não está imediatamente acessível nem visível. Está no coração da iconostase, pequena divisão fechada por três portas e decorada por ícones. Há certamente uma gradação comparável nas igrejas ocidentais. O fiel não tem acesso diretamente ao coro, e a hóstia consagrada fica depositada no interior do tabernáculo — mas no Ocidente tudo é imediatamente visível, mesmo do fundo da nave. Não há a sensação do mistério escondido e depois desvelado que caracteriza a liturgia ortodoxa. Os ocidentais nem hesitam em ajustar o Santíssimo Sacramento a um ostensório e depois sair com ele da igreja em procissão. No Oriente, as procissões são feitas em torno dos ícones. Da mesma forma o rei medieval mergulha simbolicamente no coração de seu povo, enquanto que o absolutismo do Antigo Regime inverte a tradição medieval. N e n h u m rei da Idade Média seria "isolado" c o m o Luís XIV foi em Versalhes. Para o Corpus Christi, instala-se o ostensório debaixo do objeto mais sacralizado — e mais sacralizante — da Idade M é d i a ocidental: o pálio. Percorrer a cidade sob um pálio, eis o a t o real por excelência. C o m p r e e n d a m o - n o s bem. N ã o se
adapta ao Corpo de Deus um rito real: é o rito real que se inspira no Corpus Christi, não o inverso. O rei, corpo físico e corpo místico, está presente sob um pálio porque o Santíssimo Sacramento o esteve antes dele. A primazia é da Encarnação. O Ocidente guardava uma memória, mais ou menos exata, dos ritos imperiais. E por muito tempo houve hesitação entre os que rodeavam os reis: o rei devia permanecer inacessível, à moda oriental, ou devia, ao contrário, mostrar-se? A festa de Corpus Christi determinou para que lado a balança se inclinaria: o rei se mostra. Até o fim da Idade Média política, prefere-se que ele permaneça em sua cidade, no meio de seu povo. Quando viaja, o rei de França "entra" em cada uma de suas cidades de maneira solene — "entradas" dignas de Corpus Christi — para deixar bem claro que está na cidade. Quando o povo de Paris vai procurar em Versalhes "o Padeiro, a Padeira e o Padeirinbo"* estamos diante de um velhíssimo sentimento: é preciso que o rei volte a viver na cidade, no meio dos seus. N ã o há nenhum acaso no fato de os parisienses terem escolhido a metáfora do pão de um modo simbólico, para além do medo concreto das fomes: o pão verdadeiro é a hóstia, na qual está a presença real. Não digo, evidentemente, que os revolucionários tenham tido um programa teológico. Seu simbolismo, entretanto, mergulhava profundamente nas raízes. E se sabe, graças a Mona Ozouf, a que ponto a festa revolucionária tenta reinventar, com finalidades republicanas, os velhos hábitos litúrgicos.
A derrota do utópico e poético calendário revolucionário é assim a contrario* a demonstração do brilhante sucesso do calendário ocidental cristão. Para "descristianizar" a França, julgaram os revolucionários que seria preciso desmantelar o instrumento que tir.ha sido adotado pela Igreja — Igreja que t i n h a feito do tempo simultaneamente um q u a d r o e um ensinamento. A Idade Média, até o concílio de Trento e o calendário gregoriano no século XVI, não pára de trabalhar sobre o calendário, sob a conduta da Igreja. Resulta disso uma remodelação completa da maneira de organizar e de viver o tempo. O tempo cristão medieval baseia-se n o s dois mais importantes calendários anteriores, os mais significativos na zona geográfica em que o cristianismo se instalou. Para a vida profana e cotidiana, adota-se o quadro do calendário pagão antigo instituído por Júlio César, o calendário juliano, com seus doze meses. Mas o calendário juliano sofre transformações profundas a partir do calendário judeu: a centralidade da data de Páscoa e a noção de semana, basicamente. O calendário cristão é decididamente solar, mas os especialistas cristãos do calendário, os computistas, não chegaram a dar uma data fixa para a Páscoa. Restou assim essa instabilidade do calendário que mostrou, no período contemporâneo, seus inconvenientes, especialmente em matéria de calendário escolar. A França, por exemplo, só recentemente desligou as datas das férias ditas de Páscoa do dia da festa de Páscoa. Considero a adoção da semana uma das grandes revoluções do calendário. O ritmo dos sete dias e a sacralização do domingo (sobre o modelo da criação), até hoje objeto de lutas sindi-
cais, deu u m a atenção particular ao trabalho e ao descanso (o respeito ao repouso dominical foi objeto de uma rigorosa regulamentação na época carolíngia). Essa divisão determina um ritmo de atividade econômica que, penso, foi muito favorável à boa produtividade do Ocidente medieval. Um problema importantíssimo era a determinação da data da criação, data do início da história e do calendário. A Igreja medieval adotou cálculos de iirn monge grego do século VI, Dionísio, o Pequeno, que se baseou sobre as raras observações nesse sentido do Novo Testamento. Fixa o nascimento de Jesus, a Encarnação, no ano 7 5 4 do calendário r o m a n o (que tomava como base a data suposta da fundação de Roma). E o ano I. A partir daí o calendário se divide em antes e depois de Jesus Cristo, não existindo ano 0, o que complica ainda hoje o cálculo dos séculos (divisão surgida no fim do século XVI) e dos milênios.*
UMA
C I V I L I Z A Ç Ã O
T O M A
C O R P O
Mas Dionísio se enganou. Pensa-se hoje que o nascimento de Jesus na realidade teve lugar por volta do ano 4 a.C. De qualquer maneira, esse calendário só m u i t o lentamente se estabeleceu na Cristandade. Só no século X sua difusão atinge a todas as elites. A lentidão dessa difusão foi uma das razões para que não se desse crédito aos pretensos "medos do ano Mil w , inventados pelo romantismo: só um pequeno núm e r o de clérigos sabia que se vivia o a n o 1000! A Antiguidade tardia e a Alta Idade Média também introduziram outras inovações importantes no domínio da medida do tempo e do tempo vivido. Nessa época em que o modelo monástico exercia influência forte, os monges adotaram uma divisão do tempo cotidiano em horas canónicas, desde o despertar matinal muito precoce (matinas) até o momento de se deitar. Além disso, para enquadrar a atividade da sociedade rural que os rodeava, inventaram no século VII um calendário sonoro, os sinos, o que levou à construção de numerosos campanários integrados ou não (avulsos) às igrejas. O ângelus da manhã e o ângelus do fim da tarde enquadraram a partir daí a vida cotidiana dos homens e das mulheres da Idade Média. Com esse tempo da Igreja entra em conflito freqüentemente a partir do século XIII um tempo leigo, tempo das cidades (toque de alarme, chamado toque a rebate), a que chamei tempo dos comerciantes, porque esse toque destinava-se sobretudo a marcar o t e m p o do trabalho. Finalmente, aparece no fim desse mesmo século XIII o relógio mecânico, marcando, apesar de um funcionamento muitas vezes defeituoso, a repartição do tempo em horas iguais. O relógio individual, coisa rara até o século XIX (o t e m p o individual não é um fenômeno medieval), só foi cria-
do no fim do século XV, em Milão. No século XV é que nasce, paralelamente com o emprego monástico do tempo, a partir daí t o r n a d o arcaico, um emprego do t e m p o leigo, o do mercador. Dois calendários paralelos funcionaram, distinguindo-se pela data do início do ano. Um era empregado nas chancelarias eclesiásticas e leigas, para datação dos documentos e dos atos oficiais. Testemunha da fragmentação institucional no interior da sociedade medieval, essa data foi variável, definindo o que chamamos de estilos, o que t o r n a difícil para os medievalistas o estabelecimento de uma cronologia medieval autorizada. A maioria desses "estilos" fixos situava-se nas proximidades da Páscoa. De modo que o a n o civil medieval começava com mais freqüência em março. O ano litúrgico, segundo a Igreja, resume e concretiza para cada um de n ó s a história da Salvação. Começa, a partir do século X, no primeiro domingo de dezembro. E o Advento, período em q u e se espera a vinda — a d v e n t u s — do dia de Natal, dia da Natividade, quer dizer, da Encarnação de Jesus, fixado em 25 de dezembro desde o ano 3 5 4 . O ano litúrgico culmina na Páscoa, dia da Ressurreição de Jesus, depois se estende por Pentecostes, quando os discípulos recebem o Espírito de Jesus que sobe aos céus. Esse calendário litúrgico insere o tempo cíclico no tempo linear do calendário civil. O u t r a grande inovação, depois da comemoração da vida de Jesus, é a introdução dos santos no calendário, o que confirma seu caráter de comemoração. A Igreja n ã o pára de fazer novos santos, instituindo, para celebrar a todos, a festa de Todos os Santos, que se torna muito popular no século IX. Como bem observou Peter Brown, os santos eram mortos privilegiados. No século XI, sancionando novas relações dos
vivos com os mortos, os mosteiros passam a ter livros de memórias, obituários (registros de datas reservadas para a celebração de uma missa em favor de tal ou qual falecido). Instituem-se linhagens dos ancestrais. Sob o impulso da ordem monástica de Cluny, a Igreja dobrou no século XI a festa de Todos os Santos com uma comemoração dos mortos a 2 de novembro — "Dia dos Mortos", hoje amplamente respeitado. Assim nasce na Idade Média uma Europa da memória e das comemorações — memória que se exacerba em nossa época, depois dos horrores memoráveis do século XX — a partir do cristianismo, cujo fundador, Jesus, tinha dito aos apóstolos instituindo a eucaristia na noite da Ceia: "Vocês farão isto em memória de mim" Desse m o d o foi cristianizado e reduzido a uma devoção o culto pagão dos mortos que, nos campos, sobrevivera de maneira teimosa. Desde os festejos de Halloween* longínqua adaptação muito comercial da festa celta dos defuntos, via americanização dos costumes, compreende-se melhor a energia e a tenacidade da Igreja medieval: o calendário já é um catecismo. Articula o tempo e a história sobre esses dois sustentáculos que são a Criação e a Encarnação (Encarnação que, de resto, é uma re-Criação). Une os vivos e os mortos no nível da família e dos diferentes corpos sociais, até a própria humanidade. Tratando-se da comemoração dos mortos, parece-me que, laicizada, a festa de 2 de novembro mantém um conteúdo de
sensibilidade e de memória completamente estranho a todas as criaturas do Halloween. Seria interessante, na perspectiva de história comparada que, parece-me, deve ser uma das preocupações maiores do historiador, buscar u m a compararação desses comportamentos com os dos mexicanos, entre os quais as evocações festivas dos mortos têm uma importância tão grande. Suponho que aí vinga o sincretismo, a partir do século XVI, misturando os costumes dos índios pré-colombianos tradicionais e a contribuição de um cristianismo importado da Europa sob formas medievais. Mas é possível que os mexicanos se voltem mais para a morte do que para os mortos. O século XIII completou a construção cristã do calendário. Foi em primeiro lugar a introdução da festa de Corpus Christi, de que já falei, o elemento essencial do sistema de calendário medieval. Em seguida, foi a instituição do jubileu — sobre o modelo do jubileu judeu do Antigo Testamento, festa da solidariedade e do perdão das dívidas a cada cinqüenta anos. O papa Bonifácio VIII foi o principal incentivador da criação do jubileu, em 1300. E o jubileu se tornou um grande sucesso que levou a Roma multidões de peregrinos, testemunha de uma volta às fontes e ao mesmo tempo afirmação de unidade de um cristianismo cada vez mais dividido, além de programa de paz para o futuro. Esta perspectiva não foi um grande sucesso mas, com a vontade de afirmar a autoridade suprema do papado, a Igreja manifestava que o calendário é um elemento de ligação, um instrumentos de solidariedade. Por fim, com o progresso da leitura individual, o século XHI conheceu a difusão dos Livros de Horas. Trata-se de manuais em que a devoção é repartida segundo as horas de cada dia. Exclusivos, claro, dos que sabem ler, destinam-se portan-
to a leigos poderosos e principalmente a suas mulheres. Testemunham também um c e r t o crescimento na importância dos leigos e das mulheres na sociedade cristã, crescimento enquadrado pelo calendário. Sabe-se, de resto, que esses Livros de Horas, muitas vezes ricamente ilustrados, forneceram algumas das mais belas obras-primas das miniaturas da Idade Média.
INFERNO, PURGATÓRIO, PARAÍSO
Ainda que desconheça a idéia moderna do Progresso, a Idade Média pensa, porém, que a História tem um sentido? Poder-se-ia dizer que a Idade Média era pré-marxista, na medida em que o marxismo, como descendente do socialismo utópico, era um milenarismo ateu. N ã o se veja nessa afirmação uma simples frase de efeito. C o m o mostramos com clareza, existe, ao longo de t o d o o período medieval, uma tradição milenarista. Essa palavra não designa a espera de um fim do mundo para o a n o Mil, mas a idéia de que a humanidade deve atravessar um certo número de períodos — "enumerados" pelo Apocalipse — ao fim dos quais o sopro do Espírito Santo invadirá a Terra. Será a parusia, volta gloriosa do Cristo. Começaria então, sempre segundo o Apocalipse, um reinado de mil anos, antes da chegada do Juízo Final. Claro, cada milenarista lê nos "sinais dos tempos" um apelo à ação imediata: a humanidade acaba de entrar, ou logo entrará, no último período... Já combatido por Santo Agostinho, constantemente condenado pela Igreja, o milenarismo
assim mesmo "volta" numerosas vezes, sob formas simples, rapidamente eliminadas (movimentos populares, em geral), mas também sob formas elaboradas, que seduzirão os poderosos, o mais alto clero e alguns papas. Porque a tentação milenarista casa muitas vezes com a necessidade de reforma: os sinais dos tempos anunciam que, para a cristandade, aproxima-se a hora de corrigir seus vícios e de se preparar para os últimos dias— ousaria dizer: para a Grande Noite. O monge calabrês Gioacchino da Fiore (c. de 1132-1202) propôs a teologia mais ambiciosa, e a mais complexa desse milenarismo intelectual e místico. Sua obra ora é rejeitada ora é aceita, aqui é exaltada, ali é condenada (depois de sua morte), e afinal parcialmente reabilitada, se bem que em vida ele tenha sido constantemente submetido à obediência, na Igreja, chegando a redigir em 1200 um testamento reafirmando sua submissão e sua fidelidade. Gioacchino da Fiore tinha uma visão "histórica" da humanidade. Fiel à estrutura trinitária, descrevia a história do mundo como a sucessão de três Idades. A Idade do Pai ia da Criação até o nascimento de Jesus. A Idade do Filho começava, claro, com a Encarnação, julgando-se que duraria ainda, que essa Idade era o tempo presente. A essa Idade do Filho sucederia, em pouco tempo, uma Idade do Espírito, que seria uma Idade do desabrochar espiritual e da iluminação, consecutiva a uma profunda reforma na qual a humanidade "reformada" seria governada pelos santos. Essa Idade prepararia, assim, dignamente, a volta do Cristo, o Juízo Final, a ressurreição geral e o fim do Tempo. Henri de Lubac mostrou que se tratava de uma visão otimista da História. Visão que deixou traços duráveis, especialmente na filosofia romântica, em particular em Hegel e
conseqüentemente em M a r x . O "fim da História" postulado pelo primeiro e a "luta final" esperada pelos marxistas provavelmente não espantariam os homens da Idade Média. Se a Igreja não admite a teoria das Idades, como define o sentido que, contudo, encontra na História? Será a Providência. Tomás de Aquino, severíssimo com Gioacchino da Fiore, define a Providência c o m o "o plano segundo o qual as coisas foram ordenadas para seu fim". Por sua Providência, Deus vela para que a História se desenvolva no bom sencido. Evidentemente, essa tese se choca com uma dificuldade da qual Torr.ás de Aquino e todos os teólogos estão conscientes. Se Deus deixa a humanidade livre, se não há nem destino, nem fatalidade, Deus n ã o pode manipular a humanidade, ainda que seja para conduzi-la à salvação. Por um outro lado, não podemos fazer de Deus — desse Deus que se encarna — um ser longínquo, que se contentaria em regular uma máquina e observá-la, impotente, em seu bom ou mau funcionamento. *
E o problema da predestinação, que já tinha atormentado Santo Agostinho e que voltará de forma violenta com Lutero e a Reforma. Tomás de Aquino supera a objeção de um m o d o hábil, porém um pouco sutil demais. Na verdade, acrescenta que "a providência impõe a necessidade de certas coisas, mas não de todas". N ã o se pode, portanto, imputar à Providência fatos menores, acidentes secundários. A idéia seria mais no sentido de que há, segundo Tomás, um projeto de Deus, intrinsecamente bom: a Criação. O homem, a quem Deus deu o livrearbítrio, está livre para manchar essa bondade, reduzi-la,
obscurecê-la — mas só resta ao homem emendar-se, livremente, para mais se aproximar do soberano Bem. Isso, todavia, só se cumprirá na eternidade — não no tempo. É então que reencontraremos plena e inteira a Bondade de que somos feitos. Reconhece-se neste ponto uma das convicções profundas de Tomás, segundo a qual — para retomar uma fórmula de Jacques Maritain:* "tudo aquilo que é, é bom na própria medida em que é: o ser e o bem são termos convertíveis Inútil dizer q u e a visão de Tomás, em muitos pontos, não é acessível a todos. Seu pensamento não foi recebido com grande abertura, mesmo depois que a canonização (1323) o consagrou, nem depois de sua elevação ao grau excepcional de "doutor da Igreja'* (1567). Constata-se, ao invés, o vivo sucesso, em todos os meios, de um tema bem pouco cristão: o da Fortuna. Artes, literatura, discurso. Por toda parte está essa imagem da Fortuna fazendo a grande Roda girar. Assim a roda da vida alimenta a criança de peito, lá embaixo, depois leva a criança à idade adulta, depois consagra o homem maduro, antes de rejeitar o velho de novo lá embaixo, quando a vida acaba. Assim, n u m a visão do poder: Fortuna leva a poderio e
riqueza, depois — a roda gira — chega a hora da queda. Que a Fortuna seja às vezes representada sob a forma de Anjo, e que se tente aqui e ali substituí-la por Deus, nada consegue impedir que a Roda da Fortuna contradiga a idéia da Providência. Essa contradição jamais poderia ser, na Idade Média, objeto de um debate de fundo. Devia ser uma coisa tão forte que, parece, buscou-se evitá-la — porque há falhas e fugas nessa civilização tão controlada e táo voltada para a coerência. Aproveito para evocar aqui uma convicção que sustenta minha visão da história sem que eu queira falar de filosofia da história, tentação de que me defendo. Constato — é uma evidência —que em todas as épocas as sociedades não escapam disso que tentamos definir como incoerências. Essas contradições internas se devem em particular ao amálgama imperfeito dos estratos históricos que cada época herda e das diferenças de caminhada dos diversos elementos constituintes da civilização. Uma sociedade não caminha em tudo c o m o mesmo passo. O tempo concreto da história é heteróclito. E, mais que de contradições, as sociedades históricas parecem-me atravessadas por tensões cujos conflitos afinal constituem a dinâmica da sociedade. A Idade Média me parece tanto mais dinâmica quanto mais abriga numerosas e poderosas tensões. O tempo não existe sem o espaço. Talvez a Roda representasse melhoro tempo? Seria preciso, para isso, que a Idade Média tivesse uma concepção cíclica do tempo, e não é o caso, apesar da Roda da Fortuna. 0 ano litúrgico — se bem que fechando-se sobre
si mesmo — é paradoxalmente um instrumento para impor a idéia de um t e m p o linear. A Igreja se serve da volta cíclica das estações e das festas para repetir, a cada novo período, que a humanidade vai de um início a um fim, e que o fim não é um reinício mas um renascimento em um outro mundo, que será um mundo definitivo, sem tempo. Claro que p a r a os homens e as mulheres da Idade Média era difícil imaginar esse além que — não pertencendo mais ao tempo — n ã o transcorria num espaço visível. D o n d e o extraordinário trabalho para se representar os "lugares" do além: o paraíso, o inferno, depois — trabalho ainda mais sutil — essa invenção do purgatório, à qual consagrei um livro em 1981. O purgatório é, se assim se pode dizer, uma sala de espera destinada aos pecadores médios e ordinários (medíocres, em latim), que não podem ir diretamente para o paraíso, mas que também n ã o merecem o inferno. Quase t o d o cristão podia então pensar que passaria por esse purgatório para limpar-se de suas faltas. Era reconfortante. Todos supunham que poderiam escapar do inferno. Mas representava-se muito mal esse lugar vago e cinzento onde a alma suspirava por estar tão próxima de Deus, sem entretanto chegar até Ele. A visão que se construiu dele é a de um inferno menos terrível, porém de qualquer modo temporário. Vê-se a ambigüidade. O inferno é monstruosamente terrestre, tão terrestre que é subterrâneo. Isso não surpreende. Os malvados estão lá, punidos de acordo com o que pecaram. Estão condenados ao prolongamento perpétuo daquilo que há de pior no espaço-tempo, tornado mais pesado em conseqüência de seus atos. Ao invés, há um esforço para representar o paraíso de maneira sempre mais aérea, celeste,
inefável: sugere-se desse modo um espaço e um tempo tão desligados de si mesmos que só é possível dar-lhes expressão através de imagens. Se também se pensa que existe, depois da morte, uma recuperação possível, isso cria uma contradição. A idéia de purgatório obriga a definir uma certa f o r m a de espaço e uma certa forma de tempo lá onde a Igreja ensina, por outro lado, que não há mais espaço nem tempo. É preciso elaborar um espaço intermediário entre o mundo e o além, entre a morte individual ea Ressurreição coletiva. Quando se reza pelas almas do purgatório, quando se manda dizer missa pelos morros, quando se faz um esforço para obter indulgências, tudo isso a Igreja conta para os fiéis sob a forma de dias. Os cristãos obtêm assim, enquanto estão vivos, para si mesmo ou para os outros, uma redução em seu tempo de espera. Segundo as orações, as penitências ou as somas depositadas, pode-se diminuir essa purgação em dezenas, até em centenas de dias, longos c o m o sejam esses dias no além. Há tarifações precisas, das quais zombarão os protestantes. Que são dias em um tempo no qual, segundo professamos, não há mais dias, afinal? "M/7 dias são a teus olhos, diz o Salmo 90, como o dia de ontem que passa, como uma vigília na noite "... Essa espacialização do purgatório tinha conseqüências essenciais. Fazia crescer o poder da Igreja, cuja ajuda era necessária para diminuir a duração das temporadas num lugar, o purgatório, tão penoso quanto o inferno — com essa diferença de não ser eterno, mas de duração variável. Com a const r u ç ã o do purgatório, historicamente, o homem vivente dependia na terra do direito de jurisdição da Igreja, o foro eclesiástico. O homem morto, por sua vez, estava na depen-
dência única do foro divino. Mas, com o purgatório, as almas (humanas, dotadas de uma espécie de corpo) dependem daí em diante do foro conjunto de Deus e da Igreja. A Igreja faz transbordar seu poder, seu dominium, para além da morte. Meu estudo sobre o purgatório me fez compreender que uma civilização se definia essencialmente por seu domínio do espaço e do tempo. A civilização medieval só podia se tornar poderosa estendendo até o além o domínio do espaço e do tempo sobre a terra, cá embaixo. A civilização medieval repousava sobre a ausência de fronteira impermeável entre o natural e o sobrenatural. A eternidade que aboliria o espaço e o tempo era verdadeiramente jogada para fora da história. Sob outro ponto de vista, o purgatório modificava profundamente as relações entre os vivos e os mortos. Os mortos no purgatório não dispunham mais de nenhum poder sobre seu destino, sobre sua salvação, ainda que sua ida para esse lugar deixasse entrever uma acolhida final no paraíso. A duração dessa temporada — e dos tormentos que lá sofreriam — dependia dos vivos, de seus sufrágios. Antes do fim do século XII, os vivos rezavam, faziam doações à Igreja "pro anima", pela alma — pelas almas que lhes eram queridas, mas o mecanismo e a eficácia dessas devoções permaneciam vagos, misteriosos. O purgatório foi a explicação. Selou definitivamente a solidariedade da humanidade, unindo-a no espaço e no tempo. Descobre-se nesse episódio outra das falhas internas da Idade Média. Essa civilização ainda nesse caso evita o confronto. Fortemente utilizado pela Igreja, fortemente implantado nos espíritos, o purgatório mais traz problemas do que os resolve. É aliás essa fragilidade que Lutero utiliza ao se levantar em 1517 contra a venda das indulgências da qual a
Igreja, especialmente a Sé romana, tirava fundos consideráveis. Masum fato é inegável. Até surgir o purgatório, a vida e a morte separavam o foro eclesiástico e o foro divino, o poder de jurisdição da Igreja e o de Deus. Os vivos respondiam ao tribunal da Igreja, os mortos, ao de Deus. Com o purgatório, a jurisdição tornou-se mista A Igreja ultrapassava as fronteiras da morte.
EUROPA OU OCIDENTE?
A civilização medieval levou longe seus esforços para representar o invisível. E onde ficava o mundo visível? O mundo visível repartia-se entre isso a que chamarei microespaço, acessível à experiência comum, e um macroespaço, menos facilmente perceptível e mensurável. Porque ainda se dispõe de poucos instrumentos para representar o m u n d o real. Tratando-se do macroespaço, é impressionante constatar como circulam os homens da Idade Média. Desde a época de Carlos Magno, quando os contatos com o Oriente são reduzidos e o comércio ainda não tomara a importância que viria a tomar, as novidades já caminhavam rapidamente. As terras longínquas são vistas como realidades intrigantes. Os eruditos delas não têm mais do que uma concepção vaga e freqüentemente fabulosa. Os mapas são fantasiosos. Para d e m a r c a r a Europa central, a Polônia, a Ucrânia, alguns geógrafos contentam-se em anotar: Ibi sunt leones, "aqui estão os leões"! Mas, ainda assim, desde muito cedo, fazem-se explorações. Michel Mollat pôde consagrar um belo livro aos "exploradores" da Idade Média.
Correndo o risco de surpreender, devo dizer e repetir que a Idade Média é, em primeiro lugar, uma época rica de circulação marítima e fluvial. Não há bons meios de transporte terrestres. O Oriente árabe-muçulmano é que se utiliza das estradas e das caravanas. O Ocidente — muito cedo — escolheu o mar. Na verdade, não havia escolha. A situação geográfica impunha isso, apesar de uma desconfiança atávica. O mar é traiçoeiro, o mar dá medo. Tempestades, naufrágios, monstros que as profundezas vomitam, a baleia de Jonas e outros Leviatãs — seria uma longa lista que a iconografia nos propõe. Apesar disso, o pragmatismo se impõe. O Ocidente medieval tem necessidade do mar. Figura do caos, não-lugar, apesar disso o mar não pode deixar de ser dominado. Os avanços técnicos em matéria de navegação são consideráveis. Será preciso relembrar a importância precoce das grandes cidades marítimas italianas ou de alguma das duzentas cidades controladas pela Hansa,* que se estendem desde os Países Baixos até as costas da Finlândia? Esse domínio concreto contrasta com aperfeiçoamentos mais tardios em matéria de cartografia. Os mapas continentais, descrevendo o interior das terras, permanecem muito
vagos, já o vimos. Em compensação, o progresso d o s mapas marinhos é, dentro de toda lógica, mais sensível, tanto que, no fim do século XIII, os catalães atingem um ponto avançado em matéria de mapas costeiros — os portulanos —, cuja exatidão é crescente. E ver-se-á, com Cristóvão Colombo, que o Ocidente acaba por dominar o alto-mar. O Ocidente medieval tinha o sentimento de suas fronteiras? Tinha consciência de representar uma entidade? Essa civilização pretende-se uma cristandade, até, mais freqüentemente, "a" Cristandade — esquecendo, como sempre, da Igreja do Oriente. Pelo Oeste limita-se com um oceano, onde, portanto, termina. No sentido do Leste e do Sul encontram-se religiões diferentes, hostis e, no fundo, pagãs. O Ocidente medieval também não tem nenhum projeto de conquista, ao contrário do mundo muçulmano. Como o nome indica, a Reconquista espanhola é uma reconquista real, uma re-apropriação. Dá-se o mesmo quanto às Cruzadas. Os Ocidentais — que os bizantinos c h a m a m de francos e os muçulmanos de rumis (romanos) — não pretendem conquistar novos domínios. Acreditam reinstalar-se na terra das origens: a Palestina lhes parece tão naturalmente cristã quanto Roma. Se Bizâncio parece a muitos uma cidade estrangeira, o mesmo não acontece com Jerusalém, onde morreu e ressuscitou o Cristo. E Jerusalém, os mapas errôneos mostram isso da melhor maneira possível, é o centro do mundo. Existe portanto, com toda a clareza, uma Europa evidentemente cristã, tendo o sentimento de valores e de interesses comuns. Nascida do Império Romano do Ocidente, ela se
caracteriza por uma oscilação. Chamar de "rnare nostrum" o Mediterrâneo não tem nenhum sentido. O Mediterrâneo funciona como uma fronteira, enquanto que a civilização se espalha durante alguns séculos no sentido do Norte, muito além dos limites romanos. Em relação ao Leste, o Ocidente continua indeciso. Os eruditos medievais, retomando a tradição grega, fixam o limite da Europa no rio Tanaís, que é o nome antigo do Don. Não se trata, para retomar a fórmula do general De Gaulle, de uma Europa "do Atlântico aos Urais". A Rússia era duplamente excluída: tinha sido cristianizada por Bizâncio e sofria invasões tátaras.* Do p o n t o de vista geopolítico, a herança medieval permanece, como se vê, muito imprecisa. Essa imprecisão abre campo a conflitos e a noções de herança muito flutuantes. As futuras dificuldades da Europa central e da Europa oriental potencialmente já existem. E a Europa permanece implícita, em gestação, não consciente. Esse é meu principal tema de reflexão, hoje, quando uma Europa unida parece trilhar o caminho certo. No interior desse macroespaço, quando a atenção se volta para a própria Cristandade, a escala se altera. O senhor fala então de um microespaço. Se você se põe no interior da Cristandade, as coisas mudam, realmente. Seus microespaços (estados, cidades, princi-
pados, senhorias, bispados, etc) constituem um legado durável. São um dos fundamentos dessa coerência própria da civilização medieval. A nossa civilização lhe deve muito. Ao longo de toda a Idade Média, a Cristandade é a um tempo una e diversa, una e fragmentada. Essa é a Europa que a Idade Média nos legou. Opor a Europa unida e as nações é hoje um contra-senso histórico. Em primeiro lugar, é preciso estabelecer a relação mantida, na Cristandade, entre centro e periferia. A maior parte dos historiadores — sensíveis ao ideal hierárquico da Idade Média — vê a Europa se construir por um movimento de expansão do centro para as periferias: o ocidente medieval nasceria entre a íle-de-France e a Alemanha renana para se difundir no sentido do Norte e do Leste, tudo isso se combinando com os restos da Antigüidade, presentes nas regiões do Sul. De minha parte, fico mais atento à importância dessas periferias. Em primeiro lugar porque Roma, ascendência nobre do cristianismo ocidental, a partir desse m o m e n t o inicial, deixa de ser o coração do Mediterrâneo passando a constituir a fronteira que separa o Oriente do Ocidente. Geograficamente periférica, Roma está, entretanto, ideologicamente no coração dessa civilização. O cristianismo medieval não esqueceu a parábola da ovelha perdida: o bom pastor deixa seu rebanho para partir em busca da ovelha extraviada, porque não deseja ver nenhuma perdida. A Igreja medieval tem, assim, preocupação com a periferia, e é freqüentemente na periferia que estão os pastores do rebanho. A Irlanda, cujo cristianismo latino tinha sido preservado das grandes invasões, torna-se, no século VII, o núcleo da nova evangelização do continente. São Columbano (c. de 540-615), para ficarmos num exemplo único, prega a
reforma na Gália, funda numerosos mosteiros das regiões renanas até os Apeninos, onde morre, em Bobbio, no a n o de 615. Em seguida, os escandinavos, os eslavos ocidentais, os germânicos, os húngaros exercem uma forte atração sobre a cristandade, com incontáveis conseqüências como reflexo. E que dizer da influência constante dos espaços mediterrâneos onde os cristãos estavam em confronto com o islam: a Itália, a Sicília, Espanha, Portugal?* Não se pode ver, porém, em termos idênticos, essa coerência de atitude em toda a Cristandade, c o m o se se desenvolvessem "sentimentos nacionais". Os cortes e recortes da França durante a Guerra dos Cem Anos, ardentemente ideologizados no século XIX, não devem nos impressionar muito. Essa luta opõe duas monarquias. Muitos príncipes poderosos, como o duque de Borgonha, fazem da guerra o seu p r ó p r i o jogo. Trata-se de uma grande disputa de herança, com todos os problemas de sucessão, de patrimônio, de divisão, de troca, de reagrupamento de terras que se entrelaçam. As redes de propriedade territorial ou de fidelidade pessoal se fazem e se desfazem até encontrar um ponto de equilíbrio, com a expulsão dos ingleses do jogo. A última fase d o s conflitos dinásticos e entre príncipes, aberta com o t r a t a d o de Troyes (1420), depois a sagração de Carlos VII (1429), caracterizase na França por um profundo ódio contra os ingleses. Ódio que é apenas a outra face do amor à França. Combate-se pelo rei de uma pátria, não de uma nação. E o universo de Joana d'Arc.
No plural, a palavra "nações" designa as populações pagãs ou atéias, por oposição ao povo de Deus. No singular, uma "nação" representa um certo número de pessoas — estudantes, artesãos, mercadores — com origens e interesses comuns. Esses grupos são definidos de maneira às vezes surpreendente para quem conhece a história posterior do continente. Assim, a Universidade de Paris, em 1470, inclui os alemães na nação inglesa. Distingue, também, os picardos e os normandos dos franceses; franceses que englobam os espanhóis e os italianos...* Estamos, entretanto, na posteridade imediata da Guerra dos Cem Anos. As nações são, na verdade, uma realidade e um problema dos séculos XVIII e X I X . Em compensação, espaços geopolíticos se organizam nas terras do Ocidente. Espaços que só progressiva e desigualmente se tornam Estados. Assim se dá com as três grandes monarquias: França, Inglaterra e Espanha. Esta, afinal, unificada só no século XV, q u a n d o Castela e Aragão vão juntarse, assim como Leão e Navarra, já absorvidos ou marginais. Essas monarquias formam pólos dentro das redes que se vão constituindo, feitas de cidades mais ou menos poderosas e de senhorias. Desse ponto de vista, é preciso partir dos séculos IV e V. Porque t u d o começa nessa época, quando se desenvolve a veneração das relíquias — relíquias que se tornam ponto nuclear de um mundo que se procura a si próprio. O culto das relíquias suscita o primeiro balizamento daquilo que virá a ser a Europa.
As relíquias são restos físicos — corporais — dos homens ou mulheres reconhecidos como santos ou santas. Por extensão, um objeto que teve contato com o corpo do santo (ou santa) também constitui uma relíquia. A Antigüidade grecoromana dava valor apenas aos objetos que lembravam os heróis ou os grandes homens. Como o judaísmo, também a cultura helénica considerava o contato com um cadáver c o m o uma grave mancha. Com os cristãos, tudo se inverte. O santo ressuscitará. Figurará entre os eleitos na hora do Juízo Final. E poderá intervir em favor dos seus. É preciso entáo que permaneça encarnado na comunidade. Visita-se seu túmulo c o m o se visita um padroeiro (do latim patronus, o protetor, o defensor). Deseja-se ser enterrado perto desse túmulo. O c o r p o do santo, os objetos ligados a seu corpo são, na verdade, o próprio santo — intercessor junto de Deus, suscetível de obter de Deus, para os fiéis, um milagre nesta vida, indulgências no além. Em torno das relíquias erguem-se igrejas, muitas construções, mesmo. Os fiéis viajam até lá em peregrinação. Isso cria, em uma região, e freqüentemente no continente todo, caminhos, estradas, itinerários. O balizamento muito nítido desses pontos freqüentemente está fora dos caminhos romanos, e só em parte constitui uma ramificação deles. Até o século XI a Europa é antes de mais nada uma rede de santuários. O desenvolvimento das trocas comerciais se dá, às vezes, através dessa rede. Mas o comércio, com o passar dos anos, cria outros pontos nos quais se ancora, em volta de feiras e de portos — onde igualmente se desenvolvem as praças bancárias. A rede comercial desejará, claro, conquistar sua legitimidade, criando, ela também, relíquias. Que, nesse caso, permanecem, porém, como coisas secundárias. N ã o
criam o lugar, há essa diferença, mas o consagram. Aquisição, trasladação, roubo ou falsificação das relíquias não poucas vezes excitam os espíritos, ao longo de toda a Idade Média. A emergência das três grandes monarquias, dos poderes urbanos e das senhorias só se faz sentir verdadeiramente em função dessa dupla rede — das relíquias e do comércio. Esse reforço caminha junto com a derrota político-espacial da noção de Império, e isso apesar do prestígio de Carlos Magno, que nesse sentido tentou criar uma forma nova. Houve, é verdade, de 936 a 1002, o sonho dos três Otos que quase se realizou. Oto III colocou seu antigo preceptor Gerbert d'AuriIlac (papa Silvestre II)* no trono de São Pedro (999). Fez de Roma a sua capital. Com o apoio do papa, parecia reconstituir o império cristão. Sua morte prematura, aos 21 anos, fez abortar essa rápida experiência. Em 1075, o papa Gregório VII, o homem da reforma gregoriana, excomungou o imperador Henrique IV, constrangendo-o a tomar o caminho de Canossa para um humilhante pedido de perdão.** O Império,*** sem que se tivesse consciência disso, viveu, como
poder real. A área germânica entra no sistema complexo dos principados, grandes ou pequenos reinos e outros ducados. A França explicitamente, a Inglaterra de facto, ficam fora do Império, que mantém apenas uma soberania vacilante sobre a Itália desmembrada pelos principados, as cidades e o Papado que se recorta através dos territórios formadores do Estado pontifício, o patrimônio de São Pedro. O sonho resiste, uma vez que muitos monarcas pretendiam-se imperiais. N ã o esqueçamos o empreendimento napoleónico e o delírio hitleriano do Grande Reich.
A FEUDALIDADE
Entre as "redes que se vão constituindo" o senhor citou a das senhorias. Raramente o senhor emprega a palavra feudal, entretanto tão comum. Como você já viu, muitas palavras de que nos utilizamos para qualificar a Idade Média são de criação recente. Religião, no sentido ern que a entendemos, aparece no século XIV, Feudalidade aparece no século XVII e Cruzada no século XVIII... Isso não me impede de usar essas palavras e de introduzir outras nesse contexto, também elas "anacrônicas", como intelectuais, Senhoria, mais perto das concepções e da linguagem da época. A Idade Média—Georges Duby o lembrou de modo magnífico — repousa sobre a terra. A Idade Média é rural. E sobre essa ruralidade que se articula o conjunto das outras redes. No início, existia um conjunto de domínios romanos: as villae (vejam-se todos os nomes em ville da toponímia fran-
cesa). Por volta do ano mil, essas villae se estruturam de modo diferente. Fica clara a existência de duas entidades. Muitas casas de agricultores ou de artesãos ligados aos consertos e aos fornecimentos constituem, por um lado, uma cidade. Por outro lado, uni lugar forte se especializa na proteção e nas pequenas formas de arbitragem: a senhoria. A aldeia no século XI tem um centro: a igreja. Anexo a ela, o cemitério, uma vez que os mortos devem ficar o mais perto possível do ou dos santos padroeiros. Na aldeia, nem todos os habitantes são agricultores. Os artesãos nela representam uma força social importante. São os "galos da aldeia" ou, se se preferir, os notáveis entre as pessoas menores, que deixaram sua marca nos nones de família. Assim é em relação aos moleiros: Meunier, Müller, Miller...* Ou quanto aos ferreiros: Le Faivre, Lefèvre**, Fáber***, Smith, Schmidt****, etc, ou Le Goff, no dialeto bretão! Durante o século XI também se desenvolve um fenômeno a que Pierre Toubert denominou incastellamento (o encastelamento, se assim podemos dizer), tendo como referência a Itália, e que Robert Fossier descreve como o enclausuramento. A falência do modelo imperial, a ausência de poderes centralizadores fortes (as monarquias ainda são uma incerteza)
favorece o recurso aos superiores, sejam os que residem na cidade, c o m o na Itália, sejam os que vivem no campo, c o m o na França ou na Inglaterra. E em volta deles que se reúnem, em caso de necessidade, homens, animais, colheitas e instrumentos de trabalho. As cidades se fortificam. Os campos assistem ao aparecimento de pequenos outeiros naturais ou artificiais fortificados, depois torreões ou castelos fortes. Assim se firma a senhoria que exprime bem a f u n ç ã o exercida: dominação, autoridade. O senhor inferior, em contrapartida a serviços prestados a um superior, recebe um benefício, um feudo. Essa palavra, de origem germânica, designa a doação ou a contradoação que as partes trocam no termo de um conflito. Estão implícitos, portanto, pontos de troca. Sendo própria d o s senhores a tendência, como entre os modernos chefes de empresa, de transmitir o feudo a seus filhos, o feudo se t o r n a , progressivamente, sinônimo de domínio territorial ou de cobrança hereditária de foros. Os feudos se transformam em objeto de absorção ou partilha entre os senhores, o que supõe conflitos, eventualmente conflitos armados. Desenvolve-se a seguir em torno desses lugares sociais uma perfeita ideologia, até u m a mística cavaleirosa entre os senhores e seus súditos, ou entre os senhores e os outros senhores vassalos. Observemos apenas que o sistema dos feudos, a feudalidade, não é, como se tem dito freqüentemente, um fermento de destruição do poder. A feudalidade surge, ao contrário, p a r a responder aos poderes vacantes. Forma a unidade de base de u m a profunda reorganização dos sistemas de autoridade, o q u a d r o indispensável ao aparecimento dos Estados. A feudalidade conhece seu grande período do século X ao século XIII. Ao contrário da senhoria — que a precede e que
persiste depois dela—, a feudalidade, em sentido estrito, não se identifica com o conjunto da Idade Média. Mare Bloch, Georges Duby e mais recentemente Dominique Barthélemy distinguiram duas idades tanto da feudalidade quanto da senhoria. A primeira idade feudal concerne essencialmente às camadas superiores da sociedade rural: os senhores e seus vassalos que no século XI de modo geral são os cavaleiros. O fim dessa evolução a partir do século XI engloba, ao reagrupá-los, todos os habitantes da senhoria onde o poder do senhor repousa sobre o direito de ban* quer dizer de comando geral, nos domínios militar, econômico e jurídico. É a noção de domitiium, a senhoria. Quando o século XVIII rompeu violentamente com as práticas "feudais' 1 , estas não eram senão um resíduo longínquo, e desmembrado, de um sistema enfraquecido desde os séculos XIV e XV. O senhor insiste no fato de que há também senhores urbanos. O avanço das cidades subverte o uso do espaço. Essas novas cidades apresentam uma topografia original, que, exceto em
algumas que foram planejadas, pouco tem a ver com as cidades antigas, tanto no que diz respeito aos monumentos como no que diz respeito às casas, porque a função das cidades mudou. As cidades situam-se na verdade na interseção de muitas redes rurais. E também formam redes umas com as outras — ou contra as outras. Na Itália, mas também na Alemanha, elas exercem o essencial do poder — uma senhoria — por sistemas de alianças comerciais e políticas. Isso é particularmente claro na Itália, onde as cidades fazem oposição ao Império ou ao papa, e até contra os dois. Entre a cidade e os campos existem ainda zonas
tf
fora da
rede", excluídas do direito, como se diz hoje? Digamos que existe uma zona na qual o direito se exerce de forma prudente e negociada: a floresta. Na Inglaterra, especialmente, a floresta pertence à realeza como território à parte. A floresta dá medo. A escuridão, a profusão são coisas que fazem as pessoas perderem a orientação. Animais espreitam; e assaltantes nelas se refugiam — e também eremitas ou rebeldes, mais ou menos na linha de Robin Hood! Tive oportunidade de comparar o papel da floresta ocidental com o do deserto oriental. A Idade Média, contudo, explora a floresta de maneira ativa, e se entrega a grandes desflorestamentos, fazendo, assim, com que essa zona de incertezas recue em favor da agricultura. N ã o poderiam ficar esquecidos, também, esses outros espaços naturais — neste caso, perfeitamente controlados — que são os açudes. A civilização cristã tem necessidade de peixes para os períodos importantes em que a Igreja impõe a
comida w magra r ,* especialmente durante a Quaresma, que dura quarenta dias. Dadasas dificuldades de transporte e conservação, o peixe da Idade Média é principalmente o peixe de água doce. E preciso esperar pelo século XIV e pela técnica dos tonéis ou barricas, aperfeiçoada pela Europa do Norte, para que um peixe de mar, o arenque, seja transportado para longe no interior das terras. Muitos açudes são artificiais. Pertencem aos mosteiros — ou coletivamente às aldeias. Algumas regiões, como a do Franche-Comté, ainda hoje guardam esses açudes característicos.
O PRESTÍGIO DO DIREITO
O espaço, como o senhor o descreve, supõe o desenvolvimento de regras, de códigos e de leis. É, portanto, um espaço regido pelo Direito. Pouco versado nas coisas jurídicas, durante muito tempo não me dei conta suficientemente desse universo. Devo ao grande historiador do Direito que era Gabriel Le Bras — autor, especialmente, de importantes pesquisas sobre o casamento — o fato de ter superado essa desatenção. Os trabalhos de Le Bras levaram-me a sentir a que ponto o Direito nos informava sobre a vida intelectual e social, e dirigia tanto a vida urbana quanto a vida rural. *A expressão comida "magra" em francês não significa apenas comida sem gordura, mas basicamente constitui uma referência ao cardápio como um todo dos dias em que a Igreja manda guardar abstinência de carne vermelha Cjours maigres"), mesmo que nesses dias se coma, por exemplo, queijo gordo. (N. do I )
Espontaneamente, quem fala de Direito pensa de imediato no direito romano, pela herança imperial, tão forte no Ocidente. Subestima-se assim a importância e a criatividade do Direito na civilização medieval. Sem dúvida porque o direito romano se impõe como um direito escrito, enquanto que o direito medieval repousa sobre costumes e tradições orais. Oposição excessiva: a Idade Média — civilização do Livro — modelou constantemente, remodelou e deu f o r m a aos princípios consuetudinários. Porque o espírito medieval tende para o universal ao ligar-se totalmente, como se viu, à encarnação hic et nunc em um lugar e em uma pessoa. A partir do século XII — levado pelo movimento de renascimento dos estudos romanos — o direito consuetudinário passa a existir p o r escrito. Os poderes pré-estatais, as monarquias em via de instalação têm necessidade de textos c o m o referências, em particular de um bom conhecimento d o s diversos costumes próprios de cada região, cidade e aldeia. Essa ordenação coindde, como mostrou com clareza Gabriel Le Bras, com a elaboração da maior invenção jurídica medieval: o direito canónico (do grego kanóny "que serve de regra"), que rege o funcionamento da Igreja e as relações da Igreja com a sociedade. N ã o é preciso falar de sua importância num mundo em que a Igreja é onipresente, e é profunda a impregnação jurídica das mentalidades. Havia muito tempo a Igreja dispunha de referências necessárias para a organização do direito canónico: textos dos Padres, documentos pontifícios, as decretais antigas, freqüentemente falsas. Era portanto indispensável dar uma ordem a isso, acabar com as contradições, estabelecer princípios. Empenhou-se nessa obra por volta de 1140 um monge ou nela se empenharam muitos monges de Bolonha — a tradição fala
de um certo Graciano —, produzindo a Concordia discordantium canonum, a "concordância" (conciliação) dos textos contraditórios. Trata-se de uma antologia, se assim se pode dizer, realizada a partir de milhares de textos jurídicos saídos de diversas fontes, entre elas as Escrituras e os textos dos Padres da Igreja. Esses trechos escolhidos foram classificados e representam um esforço para responder às questões sobre as quais as autoridades pareciam divergir. Trata-se de um trabalho notável, vindo de uma das mais dinâmicas cidades italianas, e se impôs rapidamente. Ficou conhecido como Decreto de Graciano, o que testemunha seu prestígio: um decreto é, por essa época, uma decisão emanada do poder. O Decreto de Graciano foi, desde então, enriquecido ao longo de toda a Idade Média por adições devidas em sua maior parte aos papas: as decretais. A civilização medieval apóia-se, portanto, sobre o Direito para atacar os problemas, e para justificar as decisões. Responde, assim, à profunda preocupação com a segurança, preocupação que se manifesta em todos os domínios, assim na economia (o século XIV vê nascer os primeiros seguros) como na religião: a reorganização dos sacramentos é um meio de evitar a inquietação, de estabelecer referências. No poema Dies irae * o pecador define-se a si próprio como um acusado diante de um juiz, e joga constantemente com o vocabulário de um processo: Deus Pai, juiz temível
mas justo, acaso não é também Deus Filho, o melhor advogado da causa dos homens? Por terrível que seja, o "dia da ira" do Juízo Final — com suas imagens do Apocalipse — revelase tranqüilizador uma vez que nele funciona um sistema acusação/defesa e funciona com a certeza de que haverá boa justiça. O Purgatório, em particular, permite uma completa gradação das penas, evitando o tudo ou nada. Cada um, razoavelmente, pode esperar que não sofrerá a pena suprema que é o Inferno. O desenvolvimento do Direito acompanha também a emergência das monarquias, que respondem à expectativa de uma segurança política. Em torno de Filipe Augusto, que reinou de 1180 a 1223, encontramos alguns juristas. Em torno de Filipe, o Belo, um século mais tarde, os famosos Mlegistas do rei" são legião. A imagem célebre do carvalho de Vincennes, sob o qual São Luís distribui justiça, ilustra maravilhosamente essa evolução: o rei se esforça para manter o equilíbrio entre os novos homens de leis e os costumes tradicionais. Situando-se familiarmente à sombra do carvalho — e certamente não ignorando o caráter simbólico, tranqüilizador, dessa árvore—, São Luís combina as duas formas, jurídicas e não-jurídicas. Acolhe ele próprio os queixosos, escuta-os, mas não decide diretamente: volta-se para um de seus juristas e lhe pede uma decisão segundo o Direito. Há sem dúvida discussão entre eles a fim de esclarecer a situação e eliminar eventuais ambigüidades. De certa forma, o rei não emite julgamento: esforça-se para interpretar o Direito e adotar o procedimento de um especialista de acordo com o Direito, um direito que freqüentemente ainda não foi fixado. Nessa Idade Média criadora, também há efervescência jurídica.
Essa mesma judiciarização da vida cotidiana pode ser encontrada no domínio municipal. As cidades criam instituições encarregadas de administrar os litígios. Recorrem a numerosos homens de leis. E os formam. E os simples cidadãos podem sempre ter acesso a uma ou outra dessas personagens, a hierarquia das quais vai do simples especialista até os mestres da Universidade, passando pelos tabeliães, os legistas, etc. Claro, não sejamos ingênuos: o Direito medieval t e m suas carências, sua falta de sutilezas, suas injustiças — exatamente como o nosso. O espírito jurídico, aliás, não é estranho à instituição da Inquisição, instrumento de sindicância e pesquisa para erradicar a heresia. Q u a n d o Gregório IX (que reinou de 1227 a 1241), ele próprio jurista, faz da Inquisição o principal instrumento do papado em sua luta contra a heterodoxia, paradoxalmente consagra o triunfo do Direito. Conhece-se a tendência da Inquisição quanto a procedimentos e códigos, sem exclusão do uso da tortura. Sabe-se também que essa obsessão da heresia é uma das faces mais sombrias do cristianismo medieval. E seu sucesso foi limitado. Como explicar essa obsessão? Há uma lógica própria do cristianismo — sem dúvida ligada ao próprio monoteísmo — desde o surgimento da nova religião. Durante a Antigüidade tardia, houve violentos conflitos sobre importantes pontos do dogma, especialmente a definição da Trindade ou a natureza divina do Cristo. E rapidamente apareceu a noção de heresia, palavra grega q u e na origem significa "escolha sectária". A crise da iconoclastia, que foi sangrenta, encerrou-se com o triunfo, no Oriente, da ortodoxia, quer dizer, da "justa doutrina": os que não a acei-
tam são desde então heterodoxos, "pessoas que professam uma outra crença (e não a justa)". E, como a Igreja do Oriente se apóia no imperador, todo heterodoxo torna-se de facto politicamente suspeito. Encontramos um mecanismo comparável no Ocidente. Mas a separação de poderes neste caso alterou o desenvolvimento: a hierarquia eclesiástica é que devia definir quem era herege, e mais ainda o papado. Ficar-se-ia então no domínio da controvérsia religiosa, se a Igreja não representasse o próprio fundamento da ordem e da legitimidade. Assim, o herege comete um duplo crime de lesa-majestade: ofende a majestade divina, mas também a majestade do poder, religioso e leigo. É portanto, ele também, politicamente suspeito. E se cabe à Igreja identificá-lo, cabe depois ao "braço secular" — quer dizer, ao poder leigo — restabelecera ordem. Tratando-se de um crime identificado como de lesa-majestade, a sanção só pode ser extrema. Na prática, a luta contra a heresia provoca um enfrentamento de poderes. A Igreja faz pressão sobre os poderes leigos: se eles n ã o se comportarem como senhores "cristianíssimos", extirpando a heresia, sua legitimidade estará em jogo. Por sua vez, os poderes leigos, quando enfrentam dissidências sociais ou políticas, têm interesse em denunciá-las como heresias, constrangendo a Igreja a legitimar seus atos. O processo de Joana d'Are sob a pressão inglesa é disso uma das ilustrações mais chocantes. O q u e se vê, afinal, a partir do século XI, é a acusação de heresia servir cada vez mais freqüentemente para eliminar as críticas ao poder — ou aos poderes—, sem exclusão do poder eclesiástico. Nesse período de mobilização pela reforma da Igreja, os que denunciam radicalmente sua corrupção pas-
sam por hereges, ainda que sua adesão aos dogmas fundamentais do cristianismo pareça "ortodoxa". As heresias puramente doutrinais são, na verdade, muito pouco numerosas na Idade Média. A mais célebre delas, a dos cátaros, que mobilizou a nascente Inquisição e o poder real, não é, a bem dizer, uma heresia Seria antes uma religião diferente, não cristã, um maniqueísmo estrito. Nesse domínio, de todo modo, o historiador não p o d e se pronunciar. Não lhe cabe dizer se tal ou qual heresia está ou não está fundamentalmente em desacordo com a mensagem cristã. Deve-se limitar a constatar se a Igreja considerou alguém herege, e depois buscar compreender o que se passa — sabendo, além disso, que a documentação procede quase que exclusivamente dos poderes dominantes. Num olhar mais profundo, acredito que essa obsessão da heresia é a parte sombria do grande projeto medieval de darse urna identidade. Os textos, afinal, o declaram claramente: a Igreja, portanto o conjunto da cristandade, forma um corpo aparentemente harmonioso e hierarquicamente ordenado. Aquele que não se integra a esse corpo é a um tempo ameaçador e angustiante. Idealmente, o que a Inquisição deseja é salvar o herege, seguindo uma lógica irrefreável. Até o último momento, até o último segundo precedente à sua execução, espera-se do herege que confesse seu erro, que se reconheça em erro. N ã o deixará de morrer, mas ganhará a salvação. O suplício sofrido na terra permite então que ele evite o inferno e alcance, após a dose necessária de purgatório, o grande corpo da Cristandade celeste. Repetirei alegremente, com um o u t r o sentido, a parábola da ovelha perdida. Quando uma ovelha se extravia, o pastor
parte para procurá-la, a fim de reintegrá-la ao rebanho. Mas se a ovelha é teimosa ou ameaça a unidade do rebanho, então é rejeitada. Esse período no qual desabrocha um verdadeiro humanismo não soube evitar um dos mais perniciosos desvios de rumo. A exclusão — até à morte.
5. Na terra como no céu
Lendo a História de São Luís, que Jean, o senhor de Joinville, senescal de Champagne, companheiro e amigo desse rei de França, Luís IX, redigiu (de 1305 a 1309) nos seus dias de velhice, impressionou-me uma passagem curiosa. Os cruzados estão na cidade de Acre. O rei reúne um conselho para decidir uma grave questão: ficar na Terra Santa ou voltar para a França? Joinville é um dos raros a aconselhar ao rei que fique. Na refeição que se segue, o rei não dirige a palavra a Joinville. Joinville crê que ele tenha se aborrecido. E narra: Enquanto o rei entoava suas orações finais, fui a uma janela gradeada (...J e passei meus braços entre as grades da janela [...]. Enquanto estava ld, o rei veio apoiar-se às minhas costas e pôs as duas mãos sobre minha cabeça. Acreditei que fosse o senhor Philippe de Nemours, que muito tinha me atormentado nesse dia por causa do conselho que eu dera ao rei; e eu lhe disse: "Deixe-me em paz, senhor Philippe/" Por um acaso infeliz, fiz a mão do rei cair passando sobre o meu rosto; e reconheci que era o rei por uma esmeralda que ele tinha no dedo. Octogenário quando escreveu essas linhas, cerca de meio século depois dos acontecimentos, Joinville não consegue escon-
der a emoção. O rei o tocou. Em outras passagens, o senescal relembra breves contatos. Há entre ambos não apenas uma afetuosa familiaridade, talvez um pouco irônica, um pouco brincalhona por parte do rei, que, à semelhança de São Francisco de Assis, e contrariamente aos monges tradicionais, sabia rir. Canonizado desde 1297, Luís IX tornou-se São Luís — santidade da qual Joinville nunca duvidara. E portanto ele, Jean de Joinville, o homem que viu e tocou o santo rei: esteve ao lado de urna relíquia viva, aquele que ilumina ainda sua velhice. O gesto do rei, tal como Joinville o descreve, não se deveu ao acaso. Evoca a imposição das mãos, como Cristo fazia. Joinville testemunha, assim, a importância do tocar, no imaginário medieval: todos se lembram que Jesus, ressuscitado, deixou o incrédulo Tomé verificar suas chagas. Estamos de novo diante da Encarnação. As lembranças de Joinville mostram a que p o n t o ele teve a sensação, na terra, de proximidade com o céu. Porque esse rei, sem dúvida corajoso, sem dúvida devoto, sem dúvida cheio de majestade, também sabia viver entre os homens, de modo simples e jovial. Quando o pressionam a deixar o navio que ameaça ir a pique diante de Chipre, eis o que ele afirma: "Não há ninguém que ame tanto sua vida como eu amo a minha " Ao longo de meus anos de trabalho para o livro São Luís (1996), sempre topei, entre numerosas personagens, com esse amor pela vida na terra. Bons cristãos, acham essas pessoas que esta vida vale a pena de ser vivida e que a preparação da salvação eterna começa cá embaixo, n ã o apenas pela penitência, mas também pela alegria — comedida — neste mundo. Projetam valores do céu sobre a terra, corno Francisco de Assis, cuja espiritualidade marcou o rei Luís IX. Essa "descida", essa feliz proximidade de Deus, levou-me a falar de um humanismo
NA
TERRA
COMO
NO
CÉU
medieval, assim como da evolução da exegese bíblica e da teologia, de Abelardo a Tomás de Aquino. A noção de humanismo nascimento.
habitualmente
é restrita ao Re-
Nesse domínio, como em muitos outros, o Renascimento prolonga a Idade Média. Acabemos com a idéia de que o Humanismo seria uma atitude mais ou menos anti-religiosa ou hostil à Igreja. À parte o caso excepcional, complexo, de Giordano Bruno (1548-1600), a maior parte dos escritores, pensadores e artistas do Renascimento revela como são religiosos os fundamentos do humanismo. O gosto pelos mitos e pelas alegorias da Antigüidade se alia, entre eles, com o cristianismo. Desde a Idade Média, poetas e teólogos utilizam os deuses greco-romanos, helenísticos, para um "programa" cristão. A ruptura virá mais tarde, sem dúvida no século XVII. E foi só no século XIX que se criou o hábito, discutível, de opor humanismo e cristianismo. Esse gosto pelo concreto, próprio do espírito medieval, parece facilitara abordagem biográfica das personagens históricas. A biografia em si não me interessa. Nisso estou c o m Bourdieu,* que falou da ilusão biográfica. A biografia só me
atrai se eu puder — foi esse o caso de São Luís — reunir, em torno da personagem, uma documentação que traga luzes sobre uma sociedade, uma civilização, uma época. E o que chamamos, Pierre Toubert e eu, um tema globalizante. Como a Idade Média se interessava pouco pelo indivíduo (o século, XIII entretanto, interessou-se mais do que os séculos precedentes), o número de personagens "biografáveis" é limitadíssimo: Abelardo, São Bernardo, São Francisco de Assis, o imperador Frederico II, Sáo Luís... Numa etapa de meu estudo sobre a volumosa documentação de São Luís, levantei a questão provocadora: São Luís existiu? Em minhas fontes, eu não me deparava com uma única personagem, mas com uma seqüência de modelos estereotipados: Luís IX sendo tido como um bom rei e um santo, ninguém o descrevia como ele mesmo era, mas tal como se julgava que um santo rei devia ser descrito. Não se pode ver nisso um desejo de propaganda ou de fraude, mas um fato cultural: se se diz de alguém que é santo, sua vida só pode ser a expressão perfeita do código estabelecido para se falar de santos. Por fim, houve Joinville que, ao contrário dos clérigos autores de Vidas de santos obedientes ao código da hagiografia, escreveu suas memórias; ele se apresenta como testemunha que depõe no processo de canonização de seu amigo rei (que realmente o foi, de resto). "São Luís, tal como o conheci... O verdadeiro São Luís..." Desse modo, ele pôde dar um título a seu testemunho. Afinal, não o chamou, como os hagiógrafos patenteados, "Vida de São Luís", mas, para dar importância à verdade de que conhecia o rei: História de São Luís. Só então, depois de ter lido e meditado sobre o depoimento de Joinville, vi que podia tentar escrever um São Luís que, de certa maneira, é uma antibiografia.
Quando de uma discussão que tivemos, Bertrand Tavernier e eu, a propósito do filme dele La Passion Béatrice (1987), que se passa na Idade Média, Tavernier me fez esta observação: No f u n d o , disse-me ele, "compreendi, debruçandome sobre essa época, que a Idade Média era boa para o cinema, porque nela não há interesse pela psicologia dos homens e das mulheres, e o cinema não é feito para exprimir a psicologia. Pegamos os seres, as vozes, gestos, lugares, objetos, histórias, mas não podemos filmar a psicologia deles." Nesse momento, uma vez mais, compreendi a restrição do movimento dos Annales a respeito da biografia. Para falar com propriedade, nem meus ensaios sobre Francisco de Assis, nem meu São Luis são biografias. Antes, serão mesmo antibiografias. Procurando o verdadeiro'' de uma pessoa, deve-se globalizar um período completo com o conjunto de seus problemas mas evitar a psicologia, que é, para o medievalista, uma dimensão não utilizável, ainda que a Idade Média tenha inventado o "exame de consciência". Mare Bloch tirou a prova quanto a isso quando redigiu Os Reis Taumaturgos (1924). Para compreender o "verdadeiro" São Francisco ou o "verdadeiro São Luís porque estou convencido de q u e existe uma verdade como fim no trabalho do historiador — é preciso repensar as noções de tempo e de narrativa, as noções de imaginário e de cultura. Estão conosco nisso os antropólogos ou os etnólogos muito mais do que os psicólogos. Pude mostrar, em meu estudo feito com Pierre VidalNaquet e retomado noImaginaire medieval (1985), que a "loucura de que é vítima Yvain, o Chevalier au Lion de Chrétien de Troves expulso por sua esposa Laudine —, nos informa pouco sobre sua personalidade. C o m o conseqüência de uma promessa não cumprida, Yvain se vê proibido de voltar à "casa
de família" de sua esposa, quer dizer, à sociedade. Transforma-se num errante, perde-se na floresta, nu e comendo apenas alimentos crus (não cozidos). Vê-se então desenvolver-se a aventura de um cavaleiro degradado que passa a homem dos bosques, volta ao estado "selvagem", antes de se reinserir no mundo familiar, isto é, feudal. Esse romance nos oferece uma soberba variação sobre o sistema simbólico e social em que se inscreve a floresta na Idade Média, e sobre a fecundidade de um olhar antropológico para alcançar a "verdade" dessa época. Para compreender Chrétien de Troyes, é preciso ter lido Claude Lévi-Strauss,* ele próprio grande leitor de Chrétien.
O H U M A N I S M O MEDIEVAL
Os homens e as mulheres da Idade Média, é o que o senhor parece sugerir com o exemplo de Joinville, têm como modelo a imitação de Jesus, que é Deus entre nós. É nesse semido que se desenvolve o humanismo? Somos mal informados sobre a existência, na Idade Média, de ateus eventuais. Santo Anselmo, em textos teóricos, responde às objeções dos "insensatos" segundo as quais Deus
não existe. Esses insensatos são, nos seus textos, a réplica exata dos "insensatos" do Antigo Testamento — abstrações. Anselmo nunca cita uma pessoa real e concreta professando, ou tendo professado, o ateísmo. Quanto aos hereges, vimos que eram considerados culpados por crenças julgadas falsas: não uir.a eventual falta de crença. Na Idade Média, o homem está, portanto, necessariamente diante de Deus. Funda seu valor sobre Deus. Por outro lado, sendo a Encarnação o centro do cristianismo, a imitação de Jesus Cristo, Deus feito homerr., é a base obrigatória do humanismo medieval. Mas a humanidade medieval só lentamente chegou a essa conclusão. Desde o século VI dá-se importância à figura bíblica de Jó, como fez o papa Gregório I — Gregório Magno. Moralia injob ["Sobre as atitudes morais em Jó"], de Gregório Magno, um dos primeiros manuais do humanismo medieval, exerce uma forte influência sobre os espíritos ao longo de todo o período. Jó é um justo bruscamente envolvido n u m a seqüência inexplicável de infelicidades, até chegar à extrema indigência e conhecer o desprezo. É um dos predecessores do Cristo que o anunciam. Representa a humilhação completa do homem diante de Deus, mas é nessa humilhação — absorvida na humildade — que ele se eleva no sentido da reconciliação. À semelhança de Jó, o cristão do primeiro período da Idade Média se salva anulando-se diante de Deus. Eleva-se aos olhos de Deus quanto mais parece diminuir-se. Não é um escravo, mas um servidor: o "servidor que sofre". A imagem divina não se mostra aí tanto como a de Pai benévolo, mas temível: Jó está totalmente na sua mão. Essa mão nos é mostrada freqüentemente pela pintura ou a escultura. Sai das nuvens celestes para ditar sua lei, para trazer ordem. Trata-se de um
Deus ainda quase invisível que, como se viu, encarna-se sobretudo na imagem do Pai. Inegavelmente, os cristãos da Idade Média — sem exclusão dos clérigos — encontraram dificuldades ao pretender figurar, e sobretudo quando pensavam na Trindade. A definição das três Pessoas, que são um só e o mesmo Deus (Pai, Filho, Espírito) já suscitara vivos debates durante a Antigüidade tardia. Houve uma disputa selvagem, no caso da redação da profissão de fé (o Credo, "eu creio"), em torno de uma simples palavra: filioque .* Voltaremos a isso: essa disputa foi a causa, ou o pretexto, para a ruptura entre o Oriente e o Ocidente. Depois de violentos antagonismos sobre a definição da Trindade, os concílios de Nicéia (325) e de Constantinopla (381) definiram, contra as heresias, a natureza das relações entre as três Pessoas divinas. Esses concílios, ratificados pelo de Calcedônia (451), fixaram a fórmula do Credo. O Credo resume as doutrinas da fé cristã num texto curto recitado solenemente, hoje ainda, em todas as cerimônias maiores do cristianismo. É habitualmente empregado na liturgia católica sob o nome de "Símbolo de Nicéia-Constantinopla" — "símbolo" significando aqui "fé comum". Proclamava-se, na versão conciliar, que o Espírito (terceira Pessoa da Trindade)"procede do Pai". Tudo isso era redigido em grego, língua de referência do Império. Eis a equivalência
em latim, língua de Roma: Credo in spiritum sanctum (Creio no Espírito Santo), dominum et vivificantem (que é Senhor e dá a vida), qui ex Patre procedit (que procede, que emana do Pai). Muitos teólogos, todavia, quiseram precisar: "Creio no Espírito Santo, que procede do Pai e do Filho". Isso corresponde em latim a uma adição: "filioque" (e do Filho). O trecho então ficou assim: Qui ex Patre Filioque procedit. " Q u e procede do Pai e do Filho" Em t o r n o do Filioque desatou-se então uma viva querela. Carlos Magno acabou com a briga de modo infeliz em seguida a uma tradução ruim (nem ele, nem os que o rodeavam dominavam o grego). O Ocidente adotou então a palavra filioque no Credo, o Oriente a rejeitou. Isso serviu de pretexto para a ruptura oficial entre as duas Igrejas. Recentemente João Paulo II, em n o m e da Igreja romana, suspendeu no Credo romano a obrigação do lancinante filioque. Por enquanto, a medida não teve conseqüências sobre a atitude dos ortodoxos. O historiador não pode, nem quer, entrar nesse debate. Compreende apenas que o assunto seja explosivo. A Trindade e o Espírito Santo foram motivo constante de enfrentamentos, até de heresias. Para o medievalista, é forçoso reconhecer que, a despeito do dogma intangível de um Deus único, as três Pessoas divinas parecem conservar cada uma, ao longo da Idade Média, uma existência individual específica. Melhor: a importância relativa entre as três Pessoas, a maneira como os fiéis a " p o n deram", dá-nos uma idéia muito boa dessa descida do céu sobre a terra que me parece a chave do humanismo medieval. O Deus da primeira Idade Média não é o mesmo do século XII, n e m o d o s séculos XIV-XV — um p o u c o como se, apesar das condenações de Roma, a idéia de Gioacchino da
Fiore (Idade do Pai, Idade do Filho, Idade do Espírito Santo) tivesse raízes profundas no imaginário dos homens e das mulheres desse período. Dá-se, primeiro, ênfase maior ao Pai, depois o Filho é que é mais concreto, enquanto o Espírito é objeto de um trabalho considerável à medida que se aproximam as Reformas, luterana e calvinista. Simplificando a cronologia, que evidentemente é mais complexa, pode-se então ver Deus evoluir permanecendo Um do ponto de vista do dogma. Depois do ano Mil, Deus sai das nuvens. Afirma-se como majestade. E um rei, um imperador. Diante dele, o homem se toma um súdito; não desprovido, como todos os súditos, de identidade, de personalidade. Bem mais cedo, Boécio (c. de 480-c. de 524) — grande teólogo e ministro infeliz do rei Teodorico — já tinha lançado as bases da noção cristã de pessoa, alimentada pelas leituras que o impressionaram: Platão, Aristóteles, Séneca, Plotino, Agostinho... Uma nova e considerável evolução deu-se no século XII, quando a reflexão teológica já não vinha apenas dos mosteiros, mas também das escolas urbanas e das escolas episcopais, entre estas especialmente a de Chartres. Nesses centros inovadores, as relações entre o homem e Deus já não tinham a severidade própria das regras monásticas. Neles descobriase a Bíblia através de novas leituras — leituras que valorizavam a palavra criadora de Deus: "Faciamus homine?n ad imaginem et similitudinem nostram"Façamos o homem à nossa imagem e à nossa semelhança" (Gênesis 1, 6).* A noção de imagem torna-se preponderante.
Outros medievalistas notaram essa mudança de ângulo sem dar-lhe maior alcance, parece-me. Acho, de minha parte, que esse recentrar a teologia em torno do Gênesis fez c o m que houvesse uma evolução profunda da sociedade e da espiritualidade. Deus de agora em diante propõe, na pessoa de Jesus, um modelo com o qual o homem se assemelha, e se esforça p o r se assemelhar sempre mais. Essa espiritualidade vigorosa caminha e cresce ao longo de toda a Idade Média, para culminar na famosa Imitação de Jesus Cristo, do renano Thomas Kempis, redigida entre 1420 e 1441. Imitação, cópia de Deus, o homem (e a mulher, que se espelha antes em Maria) tem em si a chama divina. "Deus criou o homem à sua imagem, criou-o à imagem de Deus, criou-os homem e mulher" (Gênesis 1, 27). Os séculos XII e XIII oferecem magníficas representações de Jesus. Desde então, o humanismo medieval modifica sensivelmente a relação c o m o corpo, que deixa de ser o corpo humilhado do monaquismo. Imagem de Deus, o homem pode esperar transformar seu corpo sofredor em um corpo glorioso, como Francisco de Assis e, n u m grau menor, São Luís. Ainda que persista o cuidado de reprimir a fraqueza carnal, a pressão não é mais a mesma. Ter.tado, na juventude, pelo maniqueísmo, Santo Agostin h o tornou-se hostil a ele. A Igreja antiga já por essa época se opunha à oposição categórica do Bem e do Mal, e sobretudo à idéia de que pudesse haver uma Criação má: Deus t e n d o criado tudo criou apenas o Bem. Isso n ã o resolve totalmente o problema da existência do Mal e do pecado — mas o pecado original e a ação de Satã, tolerada por Deus, fornecem uma explicação. Esse risco de dualismo, Deus contra Satã, leva a Igreja a dar ênfase à união do corpo e da alma, q u e
serão salvos juntos. Assim a Igreja combate o dualismo que, ao contrário, opóe radicalmente a alma ao corpo. Mas Satã mantém uma tensão entre o Bem e o Mal. Chega-se ao catarismo, que se desenvolve no século XII. É uma reação contra o feudalismo e contra o otimismo do nascente humanismo. É portanto também uma volta do pessimismo. Esse rigorismo explica a ação violenta da Igreja e dos poderes leigos. Porém — já fiz alusão a isso — o catarismo é complexo, por suas implicações teológicas, ideológicas e políticas. Quando ele se espalha, pode ser visto por muitos homens e mulheres como uma reação salutar contra a corrupção da Igreja. Oferece uma mensagem mais simples e mais clara. Seu clero "reformado" estaria mais próximo, acreditase, da Igreja das origens, com perfeitos* que transcendem a oposição entre clérigos e leigos. Aqui não entrarei em detalhes. Seria preciso tratar não apenas do caso particular, o mais bem conhecido — o do Sul da França** —, mas também dos casos da Bulgária, da Bósnia e da Itália do Norte. Continuo a acreditar que na verdade não se trata de um desvio do cristianismo, mas de uma outra religião que utilizava eventualmente um vocabulário e ritos de aparência cristã. Sem aprovar no que quer que seja a repressão terrível de que foram objeto, é preciso reconhecer
que um sucesso dos cátaros teria levado o Ocidente a dias sombrios, dos quais alguns integrismos nos d ã o hoje alguma idéia... Um paradoxo subsiste. O humanismo se desenvolve, a "urbanidade cresce. Mas é também a época das Cruzadas, seja para a Terra Santa, seja contra os albigenses... Temo que haja nisso um fenômeno próprio de todas as civilizações. Há nelas o avesso de suas qualidades. O que é o século XX senão o século das juventudes, da expansão, dos avanços? Como contraponto, guerras, totalitarismos, violências e injustiças de uma gravidade proporcional ao crescimento de nossas capacidades. Não quero minorar, entretanto, as sombras da Idade Média cujas cruzadas são sem dúvida um dos aspectos mais condenáveis. A longa duração histórica revela h o j e o papel negativo das Cruzadas, como os muçulmanos, assim espero, terão a revelação do lado negativo do jihad e de seus desvios abusivos. As cruzadas, porém, explicam-se em parte — sem que isso as justifique — pelo esforço constante que a Igreja dirige no fim do século XI... em favor da paz! Quando o papa Urbano II reuniu o concílio de Clermont (1095), disse claramente: os cristãos do Ocidente-devem parar com suas incessantes guerras internas. Enquanto se construía o sistema das senhorias e dos feudos, enquanto o desenvolvimento do comércio amplificava a progressão demográfica, um excedente de juventude punha o equilíbrio da Cristandade em perigo. N u m a sociedade em que é fundamental o direito de primogenitura, que fazer de t o d o s esses cavaleiros irmãos mais moços, privados de terras por
seus irmãos mais velhos, mas também privados de mulheres? Antes q u e começassem a disputar a Europa entre si, prometese-lhes um patrimônio no berço da cristandade. Desvia-se sua vitalidade, sua violência, contra o abominável muçulmano, contra o Infiel. A Igreja alinhava então sua reflexão sobre a "guerra justa". E isso é ainda um paradoxo. Desenvolvendo uma doutrina formulada por Santo Agostinho, os teólogos realmente tentaram pensar sobre a guerra, atenuar-lhe os efeitos — e, em certos casos, justificá-la. O ideal cristão continua sendo a paz. A guerra é uma das numerosas conseqüências do pecado original. Só se legitima — ela n ã o é "justa" — se declarada por uma pessoa a quem Deus tenha concedido a auctoritas (a autoridade) e a potestas (o poder).* Agostinho determinava precisamente com isso que a "autoridade" reportava-se ao príncipe detentor do poder, e não a qualquer chefe de clã. A Igreja condena portanto todas as formas de guerra que não sejam decididas e conduzidas por aquilo que designaríamos como o Estado, o poder público. A Igreja se reserva igualmente o direito de aprovar ou condenar a guerra, uma vez que é ela a auctoritas suprema. Q u a n d o as monarquias se reforçaram, basearam sua argumentação na potestas para impedir as guerras senhoriais. São Luís, especialmente, será inflexível contra as guerras privadas. E durante a Guerra dos Cem Anos os reis de França não deixaram de apelar para a Igreja a fim de que ela condenasse os reis da Inglaterra em nome de sua auctoritas. O papado, embora propondo sua arbitragem, recusa-se afinal a se pronunciar sobre essa questão do erro dos franceses ou dos
ingleses, partindo do princípio de que toda guerra não controlada pela Igreja é sempre injusta, sobretudo quando opõe cristãos contra cristãos. Em última instância, o problema permanece sendo o dos critérios de quem dispõe daauctoritas. Como utilizaraauctoritas para decretar que uma guerra é justa ou injusta? Santo Agostinho tem uma resposta. Uma guerra é justa quando não é inspirada M pelo desejo de prejudicar, pela crueldade na vingança, pelo espirito implacável incontido, a vontade de dominar e outras atitudes semelhantes". Em resumo, a Igreja condena a guerra de conquista. Aceita a guerra defensiva. Tratando-se das Cruzadas, bastava afirmar que o agressor era o islam. A cristandade não pretendia conquistar a Terra Santa, mas retomar um território do qual tinha sido espoliada. As guerras justas vingam as injustiças", dizia ainda Agostinho. A atualidade mostra que, sobre esse ponto, a dificuldade continua a mesma: todos os que iniciam uma guerra o fazem em nome de sua concepção de justiça. Para cristianizar a guerra, e controlá-la — às vezes em proveito próprio , a Igreja age então no sentido de uma metamorfose do miles (o guerreiro), que se torna o miles Christin cavaleiro de Cristo. Bate-se pela boa causa: defensor de Deus, da viúva, do órfão, dos pobres. Um rito cavaleiroso, o ato de armar um cavaleiro, evolui no curso do século XI: a Igreja dá a esse ato um caráter litúrgico, aproximando-o de um ritual de investidura dos 4 defensores" a serviço dos fracos. Isso marca claramente uma vontade de humanizar os guerreiros cujos desmandos eram muito conhecidos. Lembro q u e Ricardo Coração-de-Leão infelizmente idealizado por meu querido Walter Scott — trazia, por ocasião da cruzada de 1191-1192, um colar de cabeças cortadas em volta do pescoço.
A Igreja continua seu esforço de "containment".* Institui entre 980 e 1040 a Paz de Deus (cuja forma principal é a "trégua de Deus"). Esse poderoso movimento mobiliza povo, clérigos e até senhores. Impõe a suspensão dos combates durante um certo tempo. Esses períodos de trégua podiam permitir eventuais negociações, que incluíam ritos penitenciais, pedidos de perdão e uma intensa celebração das relíquias. A Igreja organizou desse modo uma série de campanhas de paz, sistemáticas, que sempre reuniam multidões. O "povo", pela primeira vez, tem aí um papel mais ou menos estruturado, como ator no debate.
HEREGES, JUDEUS, EXCLUÍDOS...
Da 'guerra justa" à "guerra santa" há um passo apenas, ou não ? Remeto-o aos admiráveis estudos de Jean Flori. Contrariamente à "guerra justa", a noção de "guerra santa" não encontra nenhum fundamento entre os Padres, e menos ainda no Evangelho. Houve necessidade de muitos teólogos da Reconquista,** prelados de origem cavaleirosa c o m o o futuro papa Urbano II, ou pregadores populares como Pedro, o Eremita,*"* e muitos outras para considerar que existia
uma forma superior de guerra justa — a guerra dita "santa". Essa noção é muito posterior ao jihad muçulmano. N ã o creio, entretanto, que tenha havido influência direta do jihad sobre a guerra santa. Influência terá havido, antes, através dos descaminhos do "movimento da paz". A cruzada, já se vê, revivificou o jihad, que estava a ponto de apagar. E os islamitas, hoje ainda, encontram nisso um de seus argumentos.* Em sua vontade de manter a ordem e a pureza no interior da Cristandade, a Igreja por muitas vezes desencaminhou as conquistas de seu humanismo. Para estender a paz ao interior, sustentava guerras no exterior. Para enquadrar os excessos, definiu não conformistas e estranhos à Igreja a serem niarginalizados ou excluídos. Um movimento de perseguição (bem identificado por Robert Moore) se forma, preocupado em guardar uma Cristandade que se pretende tornar ideal, perfeita, limpa de qualquer mancha. Nesse caminho, a Espanha sairá na frente nos séculos XV e XVI com a teoria da "pureza do sangue", precursora do que no século XIX virá a ser o racismo. Paralelamente um movimento de conversão forçada (dos judeus, dos hereges)
prepara os excessos missionários que a c o m p a n h a r ã o o colonialismo a partir do século XVI. Já vimos o que eram os hereges. Poder-se-ia citar u m a atitude cada vez mais agressiva a respeito dos homossexuais homens, aos quais fica reservada a qualificação infamante de sodomitas, culpados de crime contra a natureza. Eis outra lógica paradoxal. O humanismo medieval promove, de fato, uma visão positiva da natureza e do lugar do homem na natureza. Mas exclui, neste caso, tudo o que seria, segundo seu julgamento, "antinatural". Os crimes "contra a natureza" são enquadrados então na categoria de heresia, com as conseqüências conhecidas. Não se pode, sob este ponto de vista, deixar de mencionar a evolução da atitude em face dos judeus. Essa atitude também está ligada ao avanço das cruzadas. Ainda que mantido à parte em relação ao Novo Testamento, o Velho Testamento permanece como o Livro sagrado dos cristãos, sua referência. Não esquecem eles que Deus elegeu um povo, o povo judeu; nem que Deus se encarnou na pessoa de um judeu. O antijudaísmo, sabe-se, repousa sobre a idéia de que os judeus, depois do desejo de abafar o cristianismo, teimavam em não se converter, não se fundir c o m o novo Israel: a Igreja. Recusavam-se os judeus a reconhecer em Jesus o Messias. Agir-se-á no sentido de torná-los os únicos responsáveis pela morte de Jesus. Far-se-á deles deicidas. A partir do século XII, eles serão acusados de assassinatos ritualísticos de crianças cristãs e de violação da hóstia. Enquanto se esperava a conversão deles, os judeus eram postos à parte corno uma espécie de povo conivente, povo fóssil, com todos os tipos de afrontas e de idéias preconcebidas. Conhecíamos os judeus de sobra. Afinal, os cristãos n ã o se
preocupavam com a questão de Jerusalém. Tratava-se muito evidentemente da cidade cristã por excelência. N ã o se considerava a possibilidade de que ela pudesse ser judia. Essa cristianização de Jerusalém manifesta seu caráter ambíguo à medida que se define o espírito de cruzada. A volta às fontes assume características de acerto de contas com os que também pretendem retomar sua origem na Cidade Santa. Se o povo cristão é o povo eleito, e Jerusalém sua cidade fundadora, os judeus querem fazer valer seus direitos indevidamente. Tornam-se, por uma estranha inversão, usurpadores. Os primeiros autênticos pogroms só começaram no século XI, na Europa central. Começaram ao longo das estradas pelas quais seguiam caminho os cruzados. E as perseguições crescem nos países de onde vinham esses mesmos cruzados: França, Inglaterra, Império germânico... São Luís, por exemplo, viu no antijudaísmo uma espécie de indispensável purificação necessária à cruzada. Por essa purificação — q u e atinge também as prostitutas, os hereges, etc — seu reino tornar-se-á digno da grande expedição, anunciada em 1244 e iniciada em Aigues-Mortes em 1248. Quando ele voltou vencido, em 1254, marcado por sua responsabilidade na derrota e pela necessidade de uma reforma política e moral, tornou-se mais tolerante. A atitude desse homem, a priori bem intencionado, nem p o r isso deixa de ser uma importante ilustração do fenômeno. São Luís se imagina como "Bispo externo" dos judeus, hesita entre proteção e perseguição. Só consentirá sob pressão, no último ano de seu reinado, em 1269,* a obrigar os judeus a usarem o sinal infamante da
"rodela", ancestral da estrela amarela, instituída pelo IV Concílio de Latrão (1215). Tem-se a impressão de que o humanismo religoso procede a um enquadramento... Tudo isso dura cerca de mi! anos, ou mais. As mentalidades, os critérios de julgamento e a situação material impedem uma comparação termo a termo; fica a tentação, claro, uma vez que a Igreja existe sempre. Bom número dos valores que ela defendia então — de um modo que nos parece estranho, chocante — não deve obliterar os valores que permaneceram positivos, mesmo para aqueles que não mais pertencem à Igreja, ou não crêem. Há controle, há fiscalização, há punição, é indiscutível. E preciso ver também o que liberta, o que pacifica, o que dá vontade de viver. São Luís não apenas respeitava os muitos dias de abstinência sexual que a Igreja impunha aos esposos, mas exigia essa ascese. Jean-Louis Flandrin, que fez um estudo inovador da sexualidade medieval, achava que as prescrições da Igreja, em parte, caminharam lado a lado com algumas tendências profundas da cultura e da mentalidade das massas: noção de tempo sagrado, atestado pelos calendários provinciais, sentido da impureza, respeito às proibições. Não se deve imaginar uma domesticação implacável do povo pelas elites clericais. Nada teria funcionado sem algum consentimento — e nada prova que tudo funcionou com o rigor obsessivo que deixam entrever os manuais de confessores. Testemunhas nos dizem que São Luís, em fase de continência, às vezes ficava dando voltas no seu quarto, perturbado pelo desejo, até que chegasse o momento autorizado. Precipitava-
se sem esperar mais, parece, para junto da rainha. Há numerosos outros casos de um tal prazer da existência. Esses homens e essas mulheres são cheios de vitalidade. Joinville fica deslumbrado quando encontra "seu" rei Luís IX pela primeira vez: roupas coloridas, nobreza de porte, brilho. No Egito, Joinville admira o guerreiro combatendo os sarracenos, "o mais belo cavaleiro" que jamais viu. E não deixa de considerar importante o fato de que esse homem dado à ascese e às mortificações — o cilício, as flagelações — sabe rir. Joinville o observa muitas vezes: "il rit rnoult dairement Conta até Joinville uma historinha saborosa. Foi quando São Luís acampou perto de Acre. Uma delegação de armênios cristãos quer se aproximar do rei, ao qual admiram. Joinville transmite o pedido: "Eles querem, senhor, que eu lhes mostre o santo rei, mas eu ainda não quero beijar vossos ossos " São Luís explode num frouxo de riso. É entretanto um homem que venera as relíquias, oferecendo à Sainte Chapelle, em Paris, esse relicário gigante que é a Coroa de Espinhos. Essa questão do riso o intrigou. A ela o senhor chegou a consagrar um ensaio: Rir na Idade Média. Rir a bom rir é próprio do homem, não sabemos c o m o se ria outrora. Paul Veyne observou certa vez que os mais eminentes especialistas da cultura antiga, se se achassem diante da Roma imperial, não saberiam como dizer bom-dia a alguém: como agir para fazer uma saudação, se só conheciam as fórmulas oficiais ou escritas? Na mesma linha de raciocínio pode-se perguntar: como se ria na Idade Média?
O riso, além de tudo, nos informa sobre a evolução desse humanismo medieval do qual tanto me tenho ocupado. Porque o rir faz a ligação entre o corpo e o espírito e suscitou vivas discussões na Idade Média, período entretanto rico em farsas e representações cômicas: rir é uma falta de respeito, uma grosseria, uma subversão? Os monges mais rigorosos tantas vezes pensavam assim. Lembravam como fato importante que nenhuma passagem do Novo Testamento menciona o riso de Jesus: se Satã e os malvados davam risinhos maldosos, Jesus chorou. Rompendo o silêncio, o riso cheira a enxofre. Como era de se esperar, os teólogos compulsaram seus arquivos. Neles encontraram autoridades. O grande Aristóteles, precisamente ele, fala do riso "próprio do homem . Na Bíblia, há o caso incontestável de Isaac, filho de Abraão e pai de Jacó: seu nome significa "Como Deus ri! , evocando a benevolência divina e a alegria que proporciona aos homens. Mas também estão nas Escrituras outras formas de riso, nas quais podem ser vistos o sarcasmo, a crueldade, a impiedade. Se bem que se estabelecem sutis gradações entre o sorriso angélico, o riso musical dos eleitos, e o abominável riso carnal da multidão zombando de Jesus crucificado. N e m falemos do riso venenoso de Lúcifer. Entre o riso jubilatório e o riso de zombaria introduz-se a ironia, que consiste, para os monges do século XIII, em dizer o contrário daquilo que se diz. É possível ser mais ambíguo? Tudo depende da nuança: às parábolas de Jesus não lhes falta ironia, São Luís e numerosos mestres, como Santo Tomás de Aquino, dão-se ao riso com todo o prazer. Os medievais sentem perfeitamente que há contudo uma outra ironia: depreciativa, rebelde, desrespeitosa.
Constata-se na própria Idade Média a evolução. O monge, representante da primeira Idade Média, quer-se antes de t u d o um homem que chora e se mantém em contrição. Purifica-se de um mundo mau. Em compensação, o religioso mendicante — seguindo o exemplo de Francisco de Assis — ri com alegria. E essa especialmente sua maneira de mostrar q u e não é um monge... Não será preciso, como fez Mikhail Bakhtin, n u m livro de resto soberbo, opor sistematicamente um Renascimento que ri a uma Idade Média que chora. A Idade Média soube rir e isso a que chamamos Renascimento n e m sempre é risonho, nem mesmo chega ao sorriso. No século XIII, o grande Santo Alberto Magno, o mestre de Santo Tomás de Aquino, afirmou que o riso terrestre podia ser a prefiguração do riso paradisíaco.
OS ANJOS E OS DEMÔNIOS
A ambivalência berta?
persiste. Essa civilização escraviza ou li-
Evoluindo no correr dos séculos, a imagem que os cristãos medievais fazem de Deus nos informa sobre esse duplo movimento de sujeição e de desabrochar. A partir dos séculos X e XI, insiste-se sobre o Deus Filho, que continua sendo o Cristo, eventualmente temível, do Juízo. Pouco a pouco se afirmam, porém, as representações numerosas de um Jesus próximo e benevolente. O que não impede aquele Jesus da manhã de Páscoa, manhã primaveril, de ser também o Jesus pobre e sofredor da Paixão. Contraste que seria assumido em seu ponto mais alto por Francisco de Assis. Francisco louva o
riso, a alegria, a Criação, as criaturas. Também recebe os estigmas, reproduzindo em sua carne, nesta terra, as dores do Crucificado. "Pobres como Jó" — é o caso de dizer —, os primeiros Frades menores querem seguir nus o Cristo nu. Vimos o sucesso que tiveram. Chamo a atenção aqui para a atmosfera "angélica" que cercou os primeiros religiosos mendicantes: São Domingos, porém mais ainda Francisco. O Poverello tem muitas vezes contato com os anjos, e é de um anjo que recebe os estigmas. Mensageiros, enviados em missão, como seu nome indica (do grego angelos),* os anjos já estão presentes no Antigo e no Novo Testamento. Mas só foram objeto de tratados sistemáticos a partir do século IX, com o irlandês Joannes Scotus Erigena.*" No século XII, a literatura se torna florescente, especialmente a propósito dos anjos da guarda — esses anjos destinados a cada um de nós, anjos misteriosos mas muito próximos, maravilhosamente cotidianos; imagem, se fosse preciso isso, da presença do céu sobre a terra. Certamente, como dirá bem mais tarde Rainer Maria Rilke: todo anjo é terrível, porque vem de Deus. A Igreja agirá porém, também neste caso, no sentido de uma pacificação. Honorius Augustodunensis (c. de 1080-c. de 1157), um inglês instalado perto de Regensburgo,*** menciona os anjos da guarda em sua exposição das verdades da fé, o Elucidarium. Apresenta, contudo, como recente o conhecimento que exis-
te sobre o assunto. Sem dúvida, os anjos da guarda foram nomeados como parte específica da sutil hierarquia celeste por volta do ano 1000. Protetores invisíveis, os anjos da guarda são uma segurança complementar contra o diabo. Ajudam no difícil exame de consciência que os fiéis ainda não têm por hábito escrutar por si mesmos. Velam pessoalmente por cada um de nós, fazem observações ou críticas. Nesse sentido, podem exercer também as funções de delegados permanentes dos confessores... Começamos a conhecer esse duplo movimento do humanismo: abertura, porém controle. Antes de tudo, no entanto, os anjos trazem uma luz, uma familiaridade, às vezes até uma fantasia, a um mundo em que os focos de angústia são numerosos. Com os santos e a Virgem Maria, acrescentam um elo à cadeia dos intercessores. Não é por acaso que as duas estátuas mais representativas do gótico do século XIII são o "Deus Belo", da cidade de Amiens, e o "Anjo do sorriso*, da cidade de Reims. E o diabo? Hoje, ainda, para muitas pessoass a Idade Média é "gótica", quer dizer, cheia de diabos, de possessos, de feiticeiras, de fogueiras e de instrumentos de tortura. Ainda uma vez, é a tradição "negra" que persiste. Acrescentemos aí a abundância de representações diabólicas ou infernais produzidas desde o século IX. Parece até que essas imagens levaram alguns artistas a se divertir ou a forçar o traço. De passagem, assinalemos que um historiador do f u turo talvez tire conclusões apressadas se só retiver do m u n d o ocidental as imagens inquietantes — de vocação pedagógica
— produzidas para lutar contra o tabagismo, o álcool e os acidentes de estrada, ou para sensibilizar em relação às infelicidades do mundo (fomes, epidemias, genocídios, etc). N ã o podem ser esquecidas, no sentido contrário, as imagens de sonho, de conforto ou de agradável segurança, produzidas permanentemente. Dá-se o mesmo quanto à Idade Média. Os autores de sermões exageram quando falam do inferno, a fim de tornar mais atrativo o paraíso. Tinham consciência plena de que a descrição atraente das suavidades eternas toca menos os espíritos do que a evocação repulsiva de pavorosos tormentos. Na origem, entretanto, é verdade: o Diabo é uma criação do cristianismo, singularmente desenvolvida na primeira Idade Média. Há no Velho Testamento inúmeras menções a espíritos maus ou a potestades execráveis. Reencontramo-las no Novo Testamento: Jesus expulsa um bom número de espíritos, é tentado no deserto pelo diabo — didbolos em grego: o maldizente, o provocador de desordens — e os Evangelhos citam catorze vezes o nome de Satã, o Inimigo, sem precisarlhe a natureza. Os Evangelhos falam também de demônio(s) no singular e no plural, retomando uma concepção grega, bem conhecida dos filósofos: o daímon* caro a Sócrates, que nos remete à noção de uma "potestade" não nomeada, freqüentemente local.
*
E preciso, então, voltar aos Padres da Igreja para ordenar essa questão do Mau, tanto mais grave à medida q u e toca o problema do mal, a funesta serpente que, no Gênesis, leva ao pecado o casal primordial. Os teólogos procedem rapidamente a uma racionalização: diabos, demônios e outros espíritos maus tornam-se sinônimos; essas palavras passam a designar uma mesma entidade, vasto exército sob o comando de Satã, seu chefe. A primeira Idade Média prefere na maioria das vezes chamá-lo Lúcifer, etimologicamente aquele " q u e transporta a luz". Primeiro dos anjos, portanto criado p o r Deus, ele era livre e bom, como viriam a ser Adão e Eva. M a s quis igualar-se a Deus, o que provocou sua queda e a de seus partidários, evidentemente encarregados de levar os h o m e n s a segui-lo. Satã tem um papel eminente na história da Queda. Localizando Satã, mostrando-o inferior a Deus, e não preexistente ou existente, recusavam-se todas as f o r m a s de dualismo ou de maniqueísmo. Confirmava-se em seguida que a vitória de Deus era certa. Todos, entretanto, mostravam-se perdidos entre o grande diabo terrível e a confusa variedade de médios ou pequenos diabos — não sendo estes últimos, muitas vezes, a bem dizer, mais do que farsantes malvados, antes implicantes, especializados em louça quebrada, em erros de cópia numa escrita, etc. Seria preciso, então, saber que diabo nos perseguia, a fim de que a penitência ou exorcismo funcionasse. Porque havia sempre um remédio. Entre os espíritos impuros vencidos por Cristo há um que diz se chamar "Legião": "Legião é meu nome, responde ele a Jesus, porque somos muitos" (Mc 5, 9). Jesus ordena em seguida à Legião que passe para urna vara de porcos, q u e subitamente são dois mil e se precipitam sobre o mar. O caso resume bem a incerteza em que se acham os cristãos da Idade
Vlédia: uma personagem diz de si mesma u somos muitos Como um só pode ser dois mil? A tipologia e a hierarquia dos diabos permitem que se veja o caso com mais clareza. E principalmente: quanto mais desentocamos Satã e seus servidores, mais cresce o número e a força dos adversários de Satã: os anjos, os santos, a Virgem, o Cristo, mas também a Igreja e todos os sacramentos. Impõe-se aqui o espírito de combate. Há um Medo na Idade Média. Jean Delumeau, numa soberba série de estudos sobre a história do cristianismo e da Igreja, talvez tenha exagerado uma e outra vez, num primeiro momento, a importância desse medo, que entretanto não vence jamais a vontade de combater, mesmo se se tratar do mais humilde camponês. Será mais correto falar, então, de uma vigilância contínua, de um alerta permanente, mistura de medo e de esperança. O grande século das feiticeiras, dos possessos e dos terrores será o século de Descartes, não o de Tomás de Aquino... Deus escondido pelas nuvens, um Cristo ainda paternal do juízo, um Jesus mais fraternal dos séculos XI e XII. Sente-se, sem dúvida, crescera vontade de encarnar sobre a terra os valores celestes da Trindade. Onde se encaixa aí a terceira Pessoa ? O Espírito Santo, desde a Antigüidade, é representado sob a forma de uma pomba. Bela imagem, aliás: quando Deus recriou o mundo, depois de ter purificado sua primeira Criação através de um dilúvio, uma pomba leva a N o é seu ramo de oliveira, para significar o início dos tempos novos. Quando João batiza Jesus no Jordão, uma pomba desce do céu, enquanto a voz do Pai se faz ouvir, designando Jesus como seu Filho.
Desde o tempo dos primeiros cristãos, a pomba simboliza também a alma que voa para o paraíso. Os animais ocupam um lugar muito importante no humanismo medieval. Seu papel simbólico é essencial. Mas, como bem mostrou Jacques Voisenet, em geral estão do lado do diabo, do mal. Deus, no Gênesis, deu a Adão o poder de nomeá-los. E eles estão longe de obedecê-lo estritamente, de conduzi-lo sempre para a salvação. Se a pomba pode ser divina, vir do céu e mostrar o caminho da salvação, parece que os homens e as mulheres da Idade Média também tiveram dificuldade para imaginar Deus sob a forma de um pássaro. Deus lhes aparece essencialmente sob formas antropomórficas. A liturgia ordena bem as coisas. O Espírito Santo desce sobre os discípulos no dia de Pentecostes, quer dizer, cinqüenta dias depois da ressurreição e dez dias depois da Ascensão. Jesus está nos céus. Só voltará no fim dos tempos. Mas manda vir o Espírito que dinamiza a jovem Igreja, dá-lhe o d o m das línguas, o carisma, o poder de cura, a inspiração, o zelo e a chama da conversão. Os Aios dos Apóstolos
d ã o expressão
a isso evocando as línguas de fogo que ficam suspensas sobre cada discípulo — cena muito representada na Idade Média, mas era difícil utilizar a língua de fogo fora de Pentecostes. A pomba trazia um realismo simbólico mais forte, e mais adaptado a todas as manifestações do Espírito: quer se tratasse da Anunciação feita a Maria — é o Espírito que "vem" sobre a moça e gera Jesus — ou das representações mais abstratas da Trindade. Há mesmo uma utilização "política" da pomba do Espírito Santo. Os reis da França capetiana insistem com o batismo de Clóvis no qual a irrupção dessa pomba confere à dinastia um caráter sagrado.
Certamente, não é fácil compreender a Trindade; ainda menos fácil entrar no mistério muito abstrato do Espírito Santo, e muito difícil admitir a priori que uma Pessoa divina seja apresentada sob a forma de um pássaro, Os cristãos da Idade Média, porém, logo sentiram que a pomba trazia à realidade cotidiana a asa do sagrado. Não poucas vezes, afinal, o sopro de Pentecostes, o fogo do Espírito e a pureza da pomba mobilizaram as multidões. Porque o Espírito exprime o ardor dos profetas, o entusiasmo da reforma, a renovação da Igreja e o anúncio da última Idade, precedendo o Juízo. A Igreja medieval consagra, por isso, particular atenção a essa espiritualidade. Insiste sobre a presença do Espírito na liturgia dos grandes sacramentos: o batismo, a confirmação, a eucaristia e a ordenação. O que nos valeu orações que ficaram célebres, como o Veni Creator (século IX, "Vinde Espírito criador") e o Veni sancte Spiritus (século XII, "Vinde Espírito Santo"). É simultaneamente um modo de voltar às fontes —não há Igreja sem Pentecostes —, mas também, como sempre, de controlar. Os hereges, de fato, invocam freqüentemente o Espírito... Ao Espírito recorrem igualmente as velhas ordens religiosas em busca de uma renovação, mas também as numerosas ordens novas que se multiplicam. Entre elas as mendicantes, claro. O sopro do Espírito vem com a pomba, que dá asas à desconcertante Trindade. É preciso, então, notar o importante crescimento das confrarias do Espírito Santo, que conhecem um singular florescimento do século XIII ao século XV — fenômeno importante na concretização desse humanismo medieval, presente a par-
tir de então nos hospitais, nas instituições sociais urbanas. Porque a confraria — união de oração e ajuda mútua suscitada diretamente pelos próprios fiéis — é uma reação contra um sentimento de desestruturação que se começa a perceber nas cidades e nos campos: as solidariedades lentamente elaboradas desde o século XI buscam um novo "sopro". Sentimento de que dão testemunho, especialmente — mas não unicamente —, o medo de morrer só, sem receber a oração dos mortos, oração indispensável para ganhar, senão o paraíso, pelo menos o purgatório. Não penso, na verdade, q u e a expansão rápida das confrarias se explique, c o m o dizem alguns, pelo recrudescimento das pestes em 1348. Há também uma crise mais profunda do sistema, do corpo. Definido como o auxiliar do Pai e do Filho, o Espírito traz auxílio e força aos fiéis. Tem então um lugar de eleição, não apenas entre as confrarias que lhe são dedicadas, mas em todas aquelas que não param de aparecer sob a invocação de um ou de muitos santos padroeiros. Nelas uns rezam pelos outros, uns e outros se ajudam mutuamente e se cotizam para socorrer os pobres. Os poderes leigos desconfiam disso freqüentemente, porque os confrades são o seu próprio chefe, formando redes "de autogestão". A Igreja vela, por sua vez, para que as confrarias se mantenham na ordem do culto, das procissões e da caridade. Multiplicam-se nos séculos X I V e XV as representações da Trindade em imagem sob a f o r m a de uma Trindade em elevação: o Pai trazendo o filho crucificado e por cima a pomba do Espírito Santo — imagem teológica, se assim se pode dizer. Citarei apenas a admirável Trindade de Masaccio na igreja dos dominicanos de Florença, Santa Maria Novella.
Paralelamente, se bem que hostis às confrarias — cujo princípio supõe a crença no purgatório, nas indulgências —, os partidários de uma nova reforma, no século XV, desenvolverão uma teologia crítica da Igreja romana amplamente fundamentada no Espírito Santo. O caso é flagrante no século XVI com Lutero, porém mais ainda com o suíço Zuínglio (Huldrych Zwingli) e o francês João Calvino: estes dois últim o s fazem do Espírito Santo uma máquina de guerra contra a Igreja romana. Dito isso, avançarei uma outra idéia. E possível que ela suscite protestos. A saber: que a Trindade não foi suficiente e q u e a Idade Média a ela integrou uma quarta Pessoa, uma mulher: a Virgem. De resto, os Reformados não se enganar a m quanto a isso, denunciando a "mariolatria" da Igreja institucional.
Q U A N D O MARIA PROTEGE. A "BOA MORTE"
Entretanto a Igreja católica só afirmou verdadeiramente seus dogmas sobre a Virgem nos séculos XZX (Imaculada Conceição, 18S4) e XX (Assunção, 1950). E em ambos os casos sempre a subordinam a Deus. Sem estarem oficialmente formuladas sob a forma de dogmas, essas duas noções teológicas já estavam institucionalizadas. No século XII afirma-se a idéia segundo a qual a mãe do Salvador não pode, depois de sua morte, ter sofrido a corrupção corporal: ela subiu ao céu como corpo e alma (a Assunção). No século XIV, um debate apaixonado se desenvolve para saber se a Virgem tinha nascido, como todos os
seres humanos, marcada pelo pecado original, ou se Deus a tinha preservado disso — e dessa forma o Cristo, sem pecado, não nasce de uma pecadora (é isso a Imaculada Conceição de Maria). A liturgia, e sobretudo a devoção popular, inclinam-se em favor de uma pureza perfeita de Maria, desde a sua concepção. Antiga na cristandade, a devoção a Maria, vivíssima na ortodoxia grega bizantina, assume toda a sua amplitude no século XI. Desde então essa devoção não cessa de crescer: sermões, cânticos, liturgias, obras de artes, humildes imagens, redação da Ave Maria (século XII, "Ave Maria, cheia de graça..."), narrações de milagres, teatro... Citemos apenas o trecho final da Divina Comédia, em que Dante resume t o d o o paradoxo que fascinou a Idade Média: "Ó Virgem mãe, filha de teu Filho humilde e elevada mais que toda criatura fim determinado do desígnio eterno, és aquela que enobreceu de tal forma a natureza humana que Aquele que a fez não abriu mão de ter sido feito por ela Acha-se de saída aqui a contradição — aparentemente dominada, transcendida — entre a igualdade e a desigualdade (uMãe filha de teu filho"). Essa contradição está no coração do sistema feudal, mas também no conjunto das relações entre o alto e o baixo, o céu e a terra. O dominium divino de
Maria se exprime melhor na extraordinária coletânea de miniaturas que lhe consagrou, no século XIII, o rei de Castela Afonso X, o Sábio, as Cantigas de Santa Maria. É o manuscrito mais admirável da biblioteca do Escoriai. O homem se dirige à Virgem para que ela interceda junto a seu filho, que é Deus. Como resistir à tentação de se dirigir então diretamente a ela, especialmente para lhe pedir um milagre? A Igreja, que se dedica a evitar a transferência para os santos de um culto que só se presta a Deus, foi freqüentemente menos exigente tratando-se de Maria. Ninguém melhor do que uma moça simples como Joana d'Arc podia levar a bom termo, no imaginário e mesmo na crença, essa descida do céu sobre a terra, característica do humanismo medieval. Com a Assunção e a Imaculada Conceição, vemos cumprido o tema da Escada. Uma escada liga o céu à terra, a terra ao céu, como se vê no Gênesis (28,12), com o sonho de Jacó: "Eis que uma escada tinha sido construída na terra e que sua ponta atingia o céu, e anjos de Deus por ela subiam e desciam
. Essa Escada, servindo alternativamente para
subida ou descida, liga o que há de mais espiritual ao que há de mais carnal. Certamente, às vezes, diabos são soprados das entranhas da terra. Não podem, por mais que façam, chegar à Escada. Na pior das hipóteses, podem nos fazer cair, ou retardar a ascensão. A separação entre a realidade terrena e o além, rígida até os séculos X e XI, é abolida de maneira irreversível. A escolástica segue a mesma tendência: ela é a um tempo ciência de Deus e sabedoria dos homens, teologia e filosofia.
Com o advento das confrarias não se retoma, nesse fim da Idade Média, alguma coisa de lancinante: a morte, onipresente? Morria-se muito mais jovem e muito mais rapidamente na Idade Média —a morte podia ser mais imprevisível, mais maciça, mais misreriosa do que hoje. Os homens e as mulheres, em compensação, temiam menos a morte do que seu destino póstumo: preocupavam-se com sua salvação, selada em definitivo no último instante. Como dirá São Francisco de Sales, no século XVII, a propósito do suicídio de Judas, o discípulo traidor: entre o momento em que a corda se retesa e o momento em que ela estrangula, há ainda uma fração de tempo para que a presença de Jesus se faça sentir. Essa é uma idéia totalmente medieval. N ã o morrer só, de m o d o repentino, não preparado, receber a ajuda e a oração dos confrades — tudo isso oferece a segurança suplementar de ter uma boa morte, e receber o perdão in extremis, no último momento. Orientada no tempo para a espera do Juízo que se aproximava, essa civilização era escatológica: projetada para a frente, para os últimos fins. Isso dava, no fundo, uma razão de viver, de progredir. E o Purgatório reforçou essas aspirações. Essas preocupações individuais — a salvação pessoal — corriam paralelamente com outra grande preocupação: a solidariedade familial e, no modelo aristocrático, a solidariedade de linhagem. A relação muito forte entre os vivos se enraíza numa fidelidade aos mortos. A liturgia dos mortos o diz com ênfase: podemos ajudar os mortos, e os mortos podem ajudar os vivos. Isso não é obrigatoriamente mórbido. Temos visto, a Antigüidade depositava os mortos e sua impureza fora da Cidade, ao longo das estradas. Os vivos iam lá para honrá-los, para estar bem com eles também: os mor-
tos podiam ameaçar os vivos, se os vivos os esquecessem. Com o cristianismo, a partir do século IV, eis que os mortos ficam todos junto das igrejas, perto das relíquias, depois dentro das igrejas, dentro das cidades. A urbanização dos mortos caminha junto com o inurbamento da civilização medieval, descrito por Pierre Toubert. Lembremo-nos da emoção suscitada, ainda no século XVII, pela exclusão de Molière, ao qual o arcebispo de Paris recusa uma sepultura cristã. Mas há uma grande mudança no século XIV O medo do que vem depois da morte, do inferno, está de volta. E se fixa sobre o próprio momento da morte. As imagens que se impõem são a do cadáver, do esqueleto, da cabeça de morto. A sensibilidade é a do macabro e expandir-se-ão as representações das danças macabras, incluindo todos os "estados" da dança desenfreada e irrepressível para a morte. Compensando, de algum modo, a descida dos valores do Céu sobre a terra, a morte, no curso dessa crise geral marcada pela fome, a peste, a guerra, sobe do inferno para a terra. Porém consolam o homem a música e a dança que, c o m o nunca, fazem descer, em contraponto, o Paraíso sobre a terra. O universo medieval é um universo de música, de canto. Promove o órgão, inventa a polifonia. A devoção aos mortos não era um meio para a Igreja garantir sua dominação? N ã o há uma resposta nítida. A Igreja medieval não é um organismo frio, analisando friamente os meios de controlar a sociedade e determinando friamente uma política. Compartilha, isso sim, das crenças dos fiéis. Tira disso, certamente, poder e proveitos, mas concebe a si própria muito ampla-
mente c o m o u m a educadora e como uma prestadora de serviços indispensáveis. Vemos sem nenhuma dúvida na Igreja aproveitadores e cínicos, como em toda coletividade em qualquer serviço público. Toda instituição tem p o r finalidade reproduzir-se e exercer um d o m í n i o — o que nada tem de nocivo em si mesmo. A questão surge quando a instituição atrapalha mais do que ajuda. Daí a onipresença dos movimentos de reforma. Veja-se o que se diz hoje do Estado, que retomou para si numerosas tarefas, outrora assumidas pela Igreja. No século X I I , os donativos em baixa, o impulso do comércio, o avanço das cidades fragilizam o poder econômico dos mosteiros, que assim instituem numerosas devoções especiais que permitam aos vivos ajudar os mortos, ou q u e fossem eles próprios ajudados depois de sua morte: esmolas, donativos para orações, donativos para missas. Ficamos lhes devendo esses Libri memoriales, esses Livros de Memória, que trazem os n o m e s dos defuntos pelos quais devemos rezar, e as datas das missas ou ofícios a celebrar. Tudo isso serve de base a uma cultura da memória que muda a dimensão do homem. Já falei nisso. Para fazer memória, com efeito, há coisas se desenvolvendo mais do que os Libri: redigem-se crônicas relatando a vida dos que já desapareceram. Alguns deduziram disso que a Idade Média avançava no sentido da noção de História. Repudio essa idéia: os homens da Idade Média n ã o tinham n e m a técnica, nem mesmo o desejo da História. Distinguem, muito simplesmente, e n t r e a crônica que relata e a "história", uma crônica explicativa, com um fio condutor. Esse segundo gênero de crônica, as estórias, nada tem de histórico, no sentido moderno da palavra. Todas essas estórias recorrem invariavelmente, para explicar o destino deste ou daquele, a con-
venções c o m o a Providência, a Fortuna ou a loucura dos homens. Em compensação, é claramente de memória que se trata. A história como disciplina racional do saber só nascerá no fim do século XVIII e no século XIX. Na aristocracia, a questão da linhagem era primordial: sua ascendência, seus ancestrais justificam seu direito a beneficiar-se de um feudo. A presença dos mortos era portanto duplamente importante: por piedade, mas também por necessidade patrimonial. Os livros de memória reforçavam a devoção que vinha dos ancestrais. Essa devoção garantia, no percurso de volta, o prestígio dos ancestrais, prestígio mais forte exatamente por vir a título póstumo: isso dava mais autoridade aos vivos. Seguiu-se um grande movimento de fabricação de ancestrais, que se estende às vezes até a Antigüidade, até mesmo a antes do cristianismo. Assim, como o mostrou Colette Beaune, a monarquia francesa estava garantida, segundo os clérigos, por um heróico fundador troiano, companheiro de Enéias: Francião.* O prestígio da Eneida e de Virgílio nada tem de incompatível com o cristianismo: é Virgílio que guia Dante através do Inferno e do Purgatório, na Divina Comédia. Ao desenvolver-se a devoção do purgatório, reforçava-se a memória dos mortos. O purgatório dava à aristocracia, como belamente escreveu Pierre Chaunu, Uum suplemento de biografia". Essa preocupação ganhou rapidamente o conjunto das elites, especialmente entre os mercadores-banqueiros. Pelo
fim da Idade Média, ela se expandiu sob uma forma mais modesta, entre meios menos prestigiosos, como o dos artesãos. Também neste caso o papel das confrarias não é desprezível. Vê-se, com a memória, o homem ganhar um pouco mais de densidade. O humanismo, decididamente, não esperou pelo renascimento.
Epílogo
Ao terminar estas entrevistas, gostaria, no outono de minha vida, de tentar dizer em algumas poucas palavras como agi ao pesquisar a Idade Média e, para mim mesmo e para os amantes de história, onde essa pesquisa me levou. Essa busca, essa reflexão — que não terminaram — constituíram o essencial de meu ofício de historiador. Segundo uma fórmula vulgar, mas expressando bem o que vivi, trata-se de um belo porém difícil ofício. Tentei reconstruir, esclarecer e explicar uma longa faixa da história da civilização em que nasci e vivi, e da qual queria mostrar em que condições vai enfrentar um futuro que não adivinho — o historiador não é um adivinho. Esse futuro, eu o desejo europeu. Porque pertenço a essa humanidade que vive e se realiza numa série de círculos concêntricos: o círculo local/regional, o nacional, o europeu, o universal humano. Estamos num momento da história no qual devemos fazer emergir o círculo europeu e lhe dar a Idade Média como referência essencial, não como nostalgia, mas como trampolim para o futuro. A história se faz, ressaltei a importância disso, com os documentos através dos quais o historiador vai às suas fontes, e, se as formou, deve tê-lo feito no respeito à matéria documental em um trabalho racional e "científico" que tem de torná-lo humilde na consciência de sua dependência em relação ao material. 2 1 1
É nesse estado de espírito, nesse esforço profissional, que construí uma Idade Média com base no maior número de fontes possíveis. Permito-me imaginar que tenha enriquecido a documentação das fontes textuais interrogando em particular as fontes literárias e a literatura de massa quer se trate dos manuais de confessor ou dos exempla. Mas o trabalho do historiador é também, fundamentalmente, um trabalho de interpretação, de vivificação das fontes, e de imaginação. A Idade Média aqui apresentada é a minha Idade Média. Penso, entretanto, que todo historiador autêntico deve, como todo homem de saber, ter dentro de si um desejo de verdade. Se não creio que haja uma vercade histórica, creio que o historiador deve se esforçar para construir uma história verdadeira. O historiador tem de ser radicalmente diferente dos autores de ficção. O bom romance histórico pode se situar à margem da história "verdadeira": ele não faz parte do saber histórico. E se o imaginário é uma caça para o historiador, não pode tornar-se seu inspirador. Por fim, eu o senti: a história só se esclarece em uma longa duração. Também compreendi como o historiador de uma época só a compreende através de um vaivém com o presente. Vivi a Idade Média e meu presente, juntos. Como medievalista, pude viver mais intensamente meu presente. Porque, se toda época passada ainda vive no presente, acredito que a Idade Média está particularmente viva e é fundamental na sociedade de hoje. E estou certo de que inspirará mais fortemente ainda seu futuro. Minha Idade Média se formou através de uma reflexão comum sobre o passado, o presente e o futuro. Ainda que por vezes o exotismo medieval tenha sido para mim um refúgio, é sobretudo numa melhor compreensão do
presente, e como fonte rica e forte deste presente, que sua busca inacabada me traz um precioso alimento. Alain Guerreau criticou severamente qualquer tentativa para achar na Idade Média os inícios de hoje. 1 Também eu tenho sentido fortemente no curso de minha busca da Idade Média um vivo sentimento de exotismo ou, para usar o vocabulário de Guerreau, de alteridade. Para ele, a busca da Idade Média deve ser a busca de uma coerência global. Pessoalmente busquei, ao curso de minha longa reflexão (uma vida), essa coerência e a ela dei o nome de civilização. Continuo a pensar que foi construído, do século XI ao século XI\; um tipo de sociedade e um sistema de valores que caracterizaram "a civilização medieval". Desde alguns anos, estou cada vez mais impressionado pelas tensões existentes dentro do universo medieval (o homem e Deus, a razão e a fé, a alma e o corpo, a guerra e a paz, a dor e o prazer) e pelos limites dos poderes (Igreja, monarquias, senhorias, universidades). Mas considero sempre possível pensar a história do Ocidente (ou da Europa) a partir da era cristã na duração mais longa (a "longa Idade Média"), sem cair nos clichês e nas fantasias de u m a história feita de saltes, de estagnações e de declínios, ou ainda menos nos de uma história em migalhas. De m o d o que vejo a Idade Média se desfazer em uma multiplicidade de heranças.
'A. GUERREAU, "A la recherche de la cchérence globale et de la logique dominante de 1'Europe fíodale ia N. Frvde, P. Monnet, O. G. Oexle (editores), Die Gegenwart dei Feudalismus, Présence du féodalism et présence de la féodaliíé, The presentof feodalism, Frankfurt, Leipzig, 2002, especialmente p. 2 0 6 .
Acho que o erro de Guerreau é não explicar bem a relação entre a continuidade e a mudança, até mesmo a ruptura. Ele não chega a incluir a duração em seu modelo. Como é possível permitir que coabitem o próprio e o outro? Uma civilização está sempre em movimento. Quando nasce dela uma outra civilização e o que lega ela a essa outra civilização? E o longo parto que me esforço para seguir e definir atualmente através de uma reflexão sobre o lugar da Idade Média na construção da Europa. Levantou-se o problema de saber se a futura Constituição européia devia conter uma homenagem ao que a Europa atual deve ao cristianismo medieval — ou pelo menos que haja uma menção do papel desempenhado pelo cristianismo. Minha posição é clara: não acho que menções desse gênero devam ter lugar numa Constituição, que deve apenas reafirmar dois princípios: o caráter leigo das instituições, quer dizer, neutro, e o respeito à liberdade religiosa. Em compensação, nos textos evocando a maneira pela qual a Europa se fez e se faz — especialmente nos manuais de ensino — parece-me que deve ser obrigatório dizer tudo que nossa civilização deve a esse cristianismo. Que, lembro, não é todo o cristianismo, mesmo falando apenas do catolicismo Existia antes dele o cristianismo da Antigüidade, e — paralelamente — surgiu a imponente tradição oriental. A partir de então, vieram o tempo das Reformas, depois a Revolução Francesa e a marcha turbulenta no sentido da democracia que apenas marginalmente é cristã. Além disso — não se pensa muito nisso —, o centro de gravidade do cristianismo não se encontra mais na Europa, como não se encontrava no início da Idade Média.
A essa Europa medieval, nossa vida cotidiana deve a emergência de uma "civilização dos costumes", para retomar a fórmula de Norbert Elias. Quanto à nossa vida intelectual, ela deve à Europa medieval sua orientação e sua originalidade. Santo Anselmo (1033-1109) descrevia "<2 fé em busca da inteligência"
ifides quaerens
intellectum).
Expressava, com
isso, a grande aspiração de toda essa civilização ao racionalismo. Aspiração que desabrochará na escolástica, e permitirá o advento da filosofia moderna, ainda que esta n ã o se refira mais a Deus ou ao cristianismo. Continuo impressionado pelo contraste entre esse horror da novidade que os homens da primeira Idade Média demonstravam, especialmente os homens de Igreja, e sua forte capacidade de inovação. Longe de ver um progresso em seus próprios trabalhos, eles constroem — lembremo-nos disso — diversas teorias das Idades da Humanidade, afirmando sempre que teríamos chegado ao nível mais baixo, que a História declina, etc. Porém, ao mesmo tempo, a Igreja e a maior parte dos leigos, seguindo o exemplo de Agostinho, combatem os messianismos, os milenarismos, os grandes movimentos apocalípticos. A existência desses homens, dessas mulheres, mostra que em geral eles não acreditaram no Fim dos Tempos, que só as minorias — certamente ruidosas, berrantes, desestabilizadoras — levam regularmente ao primeiro plano da cena. Que exemplo pode ser mais belo do que as soberbas obras inspiradas pelo Apocalipse! Quando vejo as miniaturas que ilustram o Comentário
sobre o Apocalipse
do espanhol Beatus
de Liebana (século VIII), ou a tapeçaria da catedral de Angers (século XIV), sinto o reflexo dos grandes medos, mas nessas obras adivinho muito mais a comoção artística do que a emoção existencial.
Longe de mim a idéia de atribuir à Idade Média uma concepção do progresso que nela não aflorou. Constato contudo que papas e imperadores, até os camponeses, todos agiram como se acreditassem no progresso, como se o desejassem. Pelo esforço dos senhores e dos camponeses, a economia rural "decolou". Nas cidades, senhores, burgueses e os habitantes urbanos em geral buscaram obter mais higiene, mais limpeza, mais harmonia, mais beleza. Certamente também já o dissemos: mesmo onde a sociedade medieval é mais criticável, mesmo onde sua obra civilizadora falhou — mesmo nesses casos haverá sombras de sucesso e talvez de progresso. Entre o século XI e o século XIII nascem, como face oposta às estruturas de organização, sólidas estruturas de perseguição. Representam as páginas mais negras desse período: pogroms, encarceramento de leprosos, acusação e queima nas fogueiras dos "sodomitas", repressão desumana aos hereges, emprego generalizado da tortura pelos tribunais da Inquisição... Os medievais achavam, verdadeiramente, que a cristandade tivesse obtido incontestáveis êxitos, não sem dificuldades, não sem provações. Queriam defender a pureza dessas conquistas, preservá-las de tudo que viesse a ameaçar-lhes o equilíbrio. Mas o fim não justifica os meios. Essa lição amarga o mundo "ocidental", ainda triunfante, do século XXI, deve ter como lembrança. Quando se tem o sentimento, talvez legítimo, de ter atingido o ponto mais alto de florescimento, um coroamento do poder, a necessidade — a exigência — de se sentir em segurança gera os desvios que conhecemos. Reencontramos então essa tensão de que falei, própria de toda cultura. As fraquezas ou os erros da civilização medieval são como que o negativo de sua luz. Esse tempo
é também o tempo dos hospitais, apesar da fragilidade dos meios; dos montepios, da charitas, permanentemente invocada e preservada em seu sentido original de amor. Se bem que agnóstico, vejo na busca da salvação, que a Igreja medieval não cessa de inculcar, uma aspiração no sentido da esperança, um clamor. Conhece-se a famosa tríade das virtudes teologais: Fé, Esperança, Caridade. Um franciscano, Jacques-Guy Bougerol, falou com grande propriedade de u m a "teologia da esperançaVou
citá-lo:
"São Boaventura e Santo Tomás de Aquino surgem ao mesmo tempo no apogeu da Idade Média latina. Para Boaventura, a certeza da esperança é pessoal: espero para mim a beatitude prometida por Deus se eu perseverar até o fim, e essa certeza da esperança é minha, pessoal. Seu objeto é o difícil, o "árduo" e o grande, é o próprio Deus. Tomás de Aquino procede de outra forma. Estuda em primeiro lugar a paixãoesperança, e mostra c o m o o homem transcende sua própria natureza na magnanimidade, forma mais alta da esperança humana e da confiança em si. Com a ajuda da graça, a esperança se torna virtude teologal cujo objeto é o próprio Deus."
Eis a aspiração fundamental. Passando pela pobreza, pelas devastações dos cavalos do Apocalipse — a guerra, a fome, a peste... — e todas as violências das quais nosso tempo não tem muito que invejar, a esperança permanece a principal herança da Idade Média. Penso muito no usurário de Liège de que fala o Dialogus miraculorum (Diálogo dos milagres) do cisterciense Cesário de Heisterbach (1180-c. de 1240). Trata-se de um dos cerca de 800 exempla que compõem essa coletânea — essas narrativas breves de que se utilizavam os pregadores, narrativas
que eram apresentadas como verídicas e que convenciam os fiéis por se tratar sempre de uma lição salutar. O usurário morto aparece para sua mulher. Pede a ela que prove, que ponha à prova o amor que lhe tem. Para isso, precisa fazer uma penitência capaz de tirar o marido o mais rapidamente possível do purgatório. A mulher se instala então como que numa clausura, dentro do cemitério. Ao fim de sete anos, o usurário lhe aparece de novo. Veste uma túnica horizontalmente bicolor: metade branca, metade preta. Graças à mulher, diz ele, tem meio caminho andado rumo ao paraíso. Que ela continue por mais sete anos: ele lhe aparecerá no momento de passar para a feliz eternidade, vestido com uma túnica toda branca... E é o que acontece. Há nessa aritmética corporal alguns dos traços mais profundos da civilização medieval: o recurso ao simbolismo, a expressão pela imagem, o domínio do tempo, o casal do homem e da mulher inaugurado por Adão e Eva, e o trabalho da salvação. Há principalmente o sentido da esperança, na terra como no céu. Porque Cesário de Heisterbach acrescenta esta frase, que foi e continua a ser um dos meus espantos: a O purgatório é a esperança". Tenho vontade de dizer: a Idade Média é a esperança.
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diário, no qual Le Goff nos c o n v i d a a u m a v i a g e m por sua própria história e c o n t a c o m o s e t o r n o u medievalista, o s efeitos p a r a l e l o s suscitados em sua vida pessoal e c o m o o p e r í o d o o conquistou c o m o p o d e r q u a s e m á g i c o de tornar o p r e s e n t e a r d e n t e e m a i s claro, a r r a n c a n d o - o de suas i n q u i e t a ç õ e s e mediocridades. Mais do q u e a investigação sobre a Idade Média, Le Goff revela aqui a caça por si próprio. Revisitar a civilização medieval com ele é descobrir o d i n a m i s m o e o otimismo racional. Sem idealizações. Este livro retrata u m a Idade Média d e s c o n h e c i d a e cheia de e s p e r a n ç a . Nascida da d u a l i d a d e e n t r e saber divino e saber h u m a n o , o difícil equilíbrio de u m a d o u t r i n a q u e d e t e r m i n a v a a transcendência do m u n d o material e físico para o inalcançável e intangível. Jacques Le Goff d e m o n s t r a - n o s , com o seu imenso talento, q u e o h u m a n i s m o não esperou pelo Renascimento para aparecer. E q u e a Europa do f u t u r o n ã o conseguirá inventar-se e s q u e c e n d o o seu passado. Neste século XXI, q u e se d e s e n h a cheio de intolerâncias, estes d e p o i m e n t o s são perfeitos para a c o m p r e e n s ã o e discussão em t o r n o da natureza h u m a n a . Discípulo de Fernand Braudel, Jacques Le Goff é o atual presidente da célebre Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales e autDr de São Luís, São Francisco de Assis
(ambos publicados pela Record), Apogeu da cidade medieval,
Os intelectuais na Idade
Média, e n t r e outros.
capa Evelyn G r u m a c h e Carolina F e r m a n