Prólogo Este livro nasceu de uma constatação: perguntei a mim mesma por que, após cem anos de existência e de result resultado adoss clínic clínicos os incont incontest estáve áveis, is, a psican psicanáli álise se era tão violen violentam tament entee ataca atacada da hoje hoje em dia pelos pelos que pretendem substituíla por tratamentos químicos, julgados mais e!ica"es porque atingiriam as chamadas causas cerebrais das dilaceraç#es da alma$ %onge de contestar a utilidade dessas subst&ncias subst&ncias e de despre"ar o con!orto que elas tra"em, pretendi mostrar que elas não podem curar o homem de seus so!rimentos psíquicos, sejam estes normais ou patológicos$ ' morte, as paix#es, a sexualidade, a loucura, o inconsciente e a relação com o outro moldam a subjetividade de cada um, e nenhuma ciência digna desse nome jamais conseguirá p(r termo a isso, !eli"mente$ ' psicanálise atesta um avanço da civili"ação sobre a barbárie$ Ela restaura a id)ia de que o homem ) livre por sua !ala e de que seu destino não se restringe a seu ser biológico$ *or isso, no !uturo, ela deverá conservar integralmente o seu lugar, ao lado das outras ciências, para lutar contra as pretens#es obscurantistas que alme almeja jam m redu redu"i "irr o pens pensam amen ento to a um neur neur(n (nio io ou con! con!un undi dirr o dese desejo jo com com uma uma secr secreç eção ão quím químic ica$ a$
CAPÍTULOS *+-E+' *'+.E
A sociedade depressiva /$ ' derrota do sujeito 0$ 1s medicamentos do espírito 2$ ' alma não ) uma coisa 3$ 1 homem comportamental 4E5678' *'+.E
A grande querela do inconsciente /$ 1 c)rebro de 9ranenstein 0$ ' ;carta do equinócio< 2$ 9reud está morto na 'm)rica 3$ 6m cienti!icismo !rancês .E+=E+' *'+.E
O futuro da psicanálise /$ ' ciência e a psicanálise 0$ 1 homem trágico 2$ 1 universal, a di!erença, a exclusão 3$ =rítica das instituiç#es psicanalíticas
PRI!IRA PART! A Sociedade "epressiva A derrota do su#eito 1 so!rimento psíquico mani!estase atualmente sob a !orma da depressão$ 'tingido no corpo e na alma por essa estranha síndrome em que se misturam a triste"a e a apatia, a busca da identidade identidade e o culto de si mesmo, o homem deprimido não acredita mais na validade de nenhuma terapia$ 7o entanto, antes de rejeitar todos os tratamentos, ele busca desesperadamente vencer o va"io de seu desejo$ *or isso, passa da psicanálise para a psico!armacologia e da psicoterapia para a homeopatia, sem se dar tempo de re!letir sobre a origem de sua in!elicidade$ 'liás, 'liás, ele já não tem tempo para nada, > medida que se alongam o tempo de vida e o do la"er, o tempo do desemprego e o tempo do t)dio$ 1 indivíduo depressivo so!re ainda mais com as liberdades conquistadas por já não saber como utili"álas$ ?uanto mais a sociedade apregoa a emancipação, sublinhando a igualdade de todos perante a lei, mais ela acentua as di!erenças$ 7o cerne desse dispositivo, cada um reivindica sua singularidade, recusandose a se identi!icar com as imagens da universalidade, julgadas caducas$ 'ssim, a era da individualidade substituiu a da subjetividade: $%& dando a si mesmo a ilusão de uma liberdade irrestrita, de uma independência sem desejo e de uma historicidade sem história, o homem de hoje trans!ormouse no contrário de um sujeito$ %onge de construir seu ser a partir da consciência das determinaç#es inconscientes que o perpassam > sua revelia, longe de ser uma individualidade biológica, $'& longe de pretenderse um sujeito livre, desvinculado de suas raí"es e de sua coletividade, ele se toma por senhor de um destino cuja signi!icação redu" a uma reivindicação normativa$ *or isso, ligase a redes, a grupos, a coletivos e a comunidades, sem conseguir a!irmar sua verdadeira di!erença$ @ justamente a existência do sujeito que determina não somente as prescriç#es psico!armacológicas atuais, $(& mas tamb)m os comportamentos ligados ao so!rimento psíquico$ =ada paciente ) tratado como um ser an(nimo, pertencente a uma totalidade org&nica$ merso numa massa em que todos são criados > imagem de um clone, ele vê serlhe receitada a mesma gama de medicamentos, seja qual !or o seu sintoma$ 'o mesmo tempo, no entanto, busca outra saída para seu in!ortAnio$ 8e um lado, entregase > medicina cientí!ica, e de outro, aspira a uma terapia que julga mais apropriada para o reconhecimento de sua identidade$ 'ssim, perdese no labirinto das medicinas paralelas$ paralelas$ @ por isso que assistimos, nas sociedades ocidentais, a um crescimento inacreditável do mundinho dos curandeiros, dos !eiticeiros, dos videntes e dos magneti"adores$ 9rente ao cienti!icismo erigido em religião e diante das ciências cognitivas, que valori"am o homemmáquina em detrimento do homem desejante, vemos !lorescer, em contrapartida, toda sorte de práticas, ora surgidas da pr)história do !reudismo, ora de uma concepção ocultista do corpo e da mente: magnetismo, so!rologia, naturopatia, iridologia, auriculoterapia, energ)tica transpessoal, sugestologia, mediunidade etc$ 'o contrário do que se poderia supor, essas práticas sedu"em mais a classe m)dia !uncionários, pro!issionais liberais e executivos B do que os meios populares, ainda apegados, apesar da precariedade da vida social, a uma concepção concepção republicana da medicina cientí!ica$ Essas práticas têm como denominador comum o o!erecimento de uma crença e portanto, de uma ilusão de cura B a pessoas mais abastadas, mais desestabili"adas pela crise econ(mica, e que ora se sentem vítimas de uma tecnologia m)dica demasiadamente distanciada de seu so!rimento, ora vítimas da impotência real da L’Expres? publicou medicina para curar certos distArbios !uncionais$ 'ssim ) que L’Expres? publicou uma pesquisa que revela que 25% dos !ranceses passaram a buscar na reencarnação e na crença em vidas anteriores uma solução para seus problemas existenciais$
$%& Essa trans!ormação !oi saudada, #á se vão de" anos, por 'lain +enaut, em L’Ere L’Ere de l’zndividu, *aris, 5alli 5a llima mard rd,, /CDC /CDC$$ $'& 7o sent sentid idoo como como esse esse term termoo ) empr empreg egad adoo por por 5e 5eor orge gess =ang =angui uilh lhem em,, em La Connaissance de la vie, *aris, rin, rin, /CFG$ 3 Emprego aqui o termo ;di!erença< no sentido que lhe ) dado por Hacques 8errida$ er a terceira parte deste livro, capítulo 2$ $(& ' psico!armacologia ) uma disciplina que se
dedica ao estudo das subst&ncias químicas no psiquismo humano$ ?uanto > história da ciência cognitiva e das neurociências, ver a segunda parte deste livro, capítulo /$ I Numa Numa obra instigante, Les Charlatans de la sant, !aris, !a"ot, #$$, o psi&uiatra 'ean()arie *bgrall deu o nome de +paramedic +paramedicina ina a todas todas as medicinas paralelas paralelas &ue pretendem pretendem substituir substituir a chamada chamada medicina cient-.ica, propondo uma vis/o +holista da doen0a, ou, em outras palavras, levando em conta sua dimens/o ps-&uica1J ps-&uica1J ' sociedade democrática moderna quer banir de seu hori"onte a realidade do in!ortAnio, da morte e da violência, ao mesmo tempo procurando integrar num sistema Anico as di!erenças e as resistências$ Em nome da globali"ação e do sucesso econ(mico, ela tem tentado abolir a id)ia de con!lito social$ 8o mesmo modo, tende a criminali"ar as revoluç#es e a retirar o heroísmo da guerra, a !im de substituir a política pela )tica e o julgamento histórico pela sanção judicial$ 'ssim, ela passou da era do con!ronto para a era da evitação, e do culto da glória para a revalori"ação dos covardes$ Koje em dia, não ) chocante pre!erir ichL > +esistência ou trans!ormar os heróis em traidores, como se !e" recentemente a propósito de Hean -oulin ou de %ucie e +aLmond 'ubrac$ 7unca se celebrou tanto o dever da memória, nunca houve tanta preocupação com a 4hoah $)& e o exte exterm rmín ínio io dos dos jude judeus us e, no enta entant nto, o, nunc nuncaa a revi revisã sãoo da hist histór ória ia !oi !oi tão tão long longe$ e$ 8aí uma concepção da norma e da patologia que repousa num princípio intangível: todo indivíduo tem o direito
vítima$ 4e o ódio pelo outro ), inicial mente, o ódio a si mesmo, ele repousa, como todo masoquismo, na negação imaginária da alteridade$ 1 outro passa então a ser sempre uma vítima, e ) por isso que se gera a intoler&ncia, pela vontade de instaurar no outro a coerência soberana de um eu narcísico, cujo ideal seria destruílo antes mesmo que ele pudesse existir$
$)& .ermo hebraico que designa o genocídio perpetrado pelos na"istas contra os judeus na 4egunda 5uerra -undial$ I7$.$J *osto que a neurobiologia parece a!irmar que todos os distArbios psíquicos estão ligados a uma anomalia do !uncionamento das c)lulas nervosas, e já que existe o medicamento adequado, por que haveríamos de nos preocuparN 'gora já não se trata de entrar em luta com o mundo, mas de evitar o litígio, aplicando uma estrat)gia de normali"ação$ 7ão surpreende, portanto, que a in!elicidade que !ingimos exorci"ar retorne de maneira !ulminante no campo das relaç#es sociais e a!etivas: recurso ao irracional, culto das pequenas di!erenças, valori"ação do va"io e da estupide" etc$ ' violência violência da calmaria,< >s ve"es, ) mais terrível do que a travessia das tempestades$ 9orma atenuada da antiga melancolia, a depressão domina a subjetividade contempor&nea, tal como a histeria do !im do s)culo OO imperava em iena atrav)s de 'nna 1$, a !amosa paciente de Hoseph Preuer, ou em *aris com 'ugustine, 'ugustine, a c)lebre louca de =harcot na 4alpêtriQre$ Rs v)speras do terceiro milênio, a depressão tornouse a epidemia psíquica das sociedades democráticas, ao mesmo tempo que se multiplicam os tratamentos para o!erecer a cada consumidor uma solução honrosa$ @ claro que a histeria não desapareceu, por)m ela ) cada ve" mais vivida vivida e tratada como uma depressão$ depressão$ 1ra, essa substituição substituição de um paradigma por outro não ) inocente$ er a esse respeito o brilhante artigo de 9rançoise K)ritier, ;%es matrices de lSintol)rance et de la violence<, e la violence ii, *aris, 1dile Hacob, /CCC, p$20l3G$ er iviane 9orrester, La 3iolence du calme, *aris, 4euil, /CDT$
pensamento, o con4unto das representa0es representa0es ou o modelo espec-.ico IChamamos de paradigma o contexto do pensamento, &ue s/o pr6prios de uma poca e a partir dos &uais se constr6i a re.lex/o1 7oda revolu0/o cient-.ica traduz( se numa mudan0a de paradigma1 N/o obstante, no campo &ue nos interessa, na medicina, na psi&uiatria e na psican8lise, o advento de um novo paradigma paradigma n/o exclui os da gera0/o anterior9 ele o abarca, abarca, dando(lhe uma nova signi.ica0/o1J signi.ica0/o1J ' substituição ) acompanhada, com e!eito, por uma valori"ação dos processos psicológicos de normali"ação, em detrimento das di!erentes !ormas de exploração do inconsciente$ .ratado como uma depressão, o con!lito neurótico contempor&neo parece já não decorrer de nenhuma causalidade psíquica oriunda do inconsciente$ 7o entanto, o inconsciente ressurge atrav)s do corpo, opondo uma !orte resistência >s disciplinas e >s práticas que visam a repelilo$ 8aí o relativo !racasso das terapias que proli!eram$ *or mais que estas se debrucem com compaixão sobre a cabeceira do sujeito depressivo, não conseguem curálo nem apreender as verdadeiras causas de seu tormento$ 4ó !a"em melhorar seu estado, deixandoo esperar por dias melhores: ;1s deprimidos so!rem por todos os lados<, escreve o reumatologista -arcel 9rancis Uahn, ;isso ) sabido$ -as o que não se sabe tão bem ) que tamb)m tamb)m vemos síndromes síndromes de conversão conversão tão espetacu espetaculares lares quanto quanto as observad observadas as por =harcot e 9reud$ 9reud$ ' histeria sempre p(s em primeiro primeiro plano plano o aparelho aparelho locomotor locomotor$ 9icamos 9icamos impressionados ao ver como se pode esquecêla$ E tamb)m o quanto o !ato de evocála desperta, no pessoal m)dico e não m)dico, inquietação, recusa ou mesmo agressividade em relação ao paciente, assim como por parte daquele ou daquela que recebe recebe esse diagnóstico$< 4abemos que a invenção !reudiana de uma nova imagem da psique pressup(s a existência de um sujeito capa" de internali"ar as proibiç#es$ merso no inconsciente e dílacerado por uma consciência pesada, esse sujeito, entregue a suas puls#es pela morte de 8eus, está sempre em guerra consigo mesmo$ 8aí decorre a concep con cepçã çãoo !reudi !reudiana ana da neu neuros rose, e, centra centrada da na discór discórdia dia,, na ang angAst Astia, ia, na culpa culpa Uuh Uuhn, n, La :tructure des rvolutions scienti.l&ues I=hicago, /CV0J, *aris, 9lammarion, /CFT$ )arcel ;rancis , outubro de #$$, p1 #># J 1ra, ) essa id)ia da subjetividade, tão característica do advento das sociedades democráticas, elas próprias baseadas no con!ronto permanente entre o mesmo e o outro, que tende a se apagar da organi"ação organi"ação mental contempor&nea, em prol da noção psicológica de personalidade depressiva$ 4aída da neurastenia, noção abandonada por 9reud, e da psicastenia descrita por Hanet, a depressão não ) uma neurose nem uma psicose nem uma melancolia, mas uma entidade nova, que remete a um ;estado< pensado em termo termoss de ;!adig ;!adiga<, a<, ;d)!ic ;d)!icit< it< ou ;en!ra ;en!raque quecim ciment entoo da person personali alida dade< de<$$ 1 cresce crescente nte sucess sucessoo dessa dessa designação deixa bem claro que as sociedades democráticas do !im do s)culo OO deixaram de privilegiar o con!lito como nAcleo normativo da !ormação subjetiva$ Em outras palavras, a concepção !reudiana de um sujeito do inconsciente, consciente de sua liberdade, mas atormentado pelo sexo, pela morte e pela proibição, !oi substituída pela concepção mais psicológica de um indivíduo depressivo, que !oge de seu inconsciente e está preocupado em retirar de si a essência de todo con!lito$ $*+&
$*+& -arcel 5auchet assinalou esse !en(meno e se !elicita pelo !ato de ele permitir anunciar o !im da onipotência do modelo !reudiano$ er ;Essai de psLchologie contemporaine$ /: 6n nouvel &ge de a personnalit)<, Le personnalit)<, Le bat, nW /TT, maioagosto de /CCD$ 1 !ilóso!o canadense =harles .aLlor tamb)m analisa esse !en(meno, em Les em Les :ources do moi1 moi1 La .ormation de l’,dentit moderne I/CDCJ, *aris, 4euil, /CCD$ Emancipado das proibiç#es pela igualdade de direitos e pelo nivelamento de condiç#es, o deprimido deste !im de s)culo s)culo ) herdeiro herdeiro de uma dependênci dependênciaa viciada viciada do mundo$ mundo$ =ond =ondenad enadoo ao esgotamento esgotamento pela !alta de
uma perspectiva revolucionária, ele busca na droga ou na religiosidade, no higienismo ou no culto de um corpo per!eito o ideal de uma !elicidade impossível: ;*or essa ra"ão<, constata 'lain Ehrenberg, ;o drogado ) hoje a !igura simbólica empregada para de!inir as .ei0es do antisujeito$ 'ntigamente, era o louco que ocupava esse lugar$ 4e a depressão ) a história de um sujeito inencontrável, a drogadição ) a nostalgia de um sujeito perdido$< $*(& Em ve" de combater esse !echamento, que leva > abolição da subjetividade, a sociedade liberal depressiva compra"se em desenvolver sua lógica$ @ assim que, atualmente, os consumidores de tabaco, álcool e psicotrópicos são assemelhados a toxic(manos, considerados perigosos para eles mesmos e para a coletividade$ 1ra, dentre esses novos ;doentes<, os tabagistas e os alcoólatras são tratados como deprimidos a quem se receitam psicotrópicos$ -as, que medicamentos do espírito será preciso inventar, no !uturo, para tratar da dependência dos que se houverem ;curado< de seu alcoolismo, seu tabagismo ou algum outro vício Io sexo, a comida, o esporte etc$J, substituindo um abuso por outroN
$*(& 'lain Ehrenberg, La ;atigue d’@tre soi, *aris, 1dile Hacob, CCD, pHF$ 1bservese tamb)m que o 8r$ %oXenstein, especialista em toxicomania e diretor do =entro -onre=hristo do hospital %a)nnec, levantou a hipótese de uma ligação estrutural entre o esporte de alto nível, a depressão e o vício em drogas Adopin,g9 ;*or que ) tão di!ícil, para os desportistas, interromper o esporteN *orque ele desempenha o papel de um curativo antidepressivo e ansiolítico$ ' pessoa tem uma porçáo de coisas a !a"er: treinar, comer, tomar vitaminas I$$$J$ ?uando isso ) suprimido, o desportista torna a se ver diante daquilo que há de mais doloroso: voltar a pensar$< ALibration, /0 de outubro de /CCD$J Os medicamentos do espírito
' partir de /CGT, as subst&ncias químicas B ou psicotrópicos modi!icaram a paisagem da loucura$ Esva"iaram os manic(mios e substituíram a camisade!orça e os tratamentos de choque pela redoma medicamentosa$/ Embora não curem nenhuma doença mental ou nervosa, elas revolucionaram as representaç#es do psiquismo, !abricando um novo homem, polido e sem humor, esgotado pela evitação de suas paix#es, envergonhado por não ser con!orme ao ideal que lhe ) proposto$ +eceitados tanto por clínicos gerais quanto pelos especialistas em psicopatologia, os psicotrópicos têm o e!eito de normali"ar comportamentos e eliminar os sintomas mais dolorosos do so!rimento psíquico, sem lhes buscar a signi!icação$ 1s psicotrópicos são classi!icados em três grupos: os psicol)pticos, os psicoanal)pticos e os psicodisl)pticos$ 7o primeiro grupo encontramse os medicamentos hipnóticos, que tratam os distArbios do sono, bem como os ansiolíticos e os tranqMili"antes, que eliminam os sinais de angAstia, ansiedade, !obia e de diversas outras neuroses e, por !im, os neurol)pticos Iou antipsicóticosJ, que são medicamentos especí!icos para a psicose e todas as !ormas de delírios cr(nicos ou agudos$ 7o segundo grupo reAnemse os estimulantes e os antidepressivos, e no terceiro, os medicamentos alucinógenos, os estupe!acientes e os reguladores do humor$ ' princípio, a psico!armacologia deu ao homem uma recuperação da liberdade$ *ostos em circulação em /CG0 por dois psiquiatras !ranceses, Hean 8elaL e *ierre 8enier, os neurol)pticos devolveram a !ala ao louco$ *ermitiram sua reintegração na cidade$ 5raças a eles, os tratamentos bárbaros e ine!ica"es !oram abandonados$ ?uanto aos ansiolíticos e aos antidepressivos, trouxeram aos neuróticos e aos deprimidos uma tranqMilidade maior$ 7o entanto, > !orça de acreditar no poder de suas poç#es, a psico!armacologia acabou perdendo parte de seu prestígio, a despeito de sua impressionante e!icácia$ 7a verdade, ela encerrou o sujeito numa nova alienação ao pretender curálo da própria essência da condição humana$ *or isso, atrav)s de suas ilus#es, alimentou um novo irracionalismo$ , que, quanto mais se promete o ;!im< do so!rimento psíquico atrav)s da ingestão de pílulas, que nunca !a"em mais do que suspender sintomas ou trans!ormar uma personalidade, mais o sujeito, decepcionado, voltase em seguida para tratamentos corporais ou mágicos$
7ão surpreende, portanto, que os excessos da !armacologia tenham sido denunciados justamente por aqueles que a haviam enaltecido, e que hoje reivindicam que os rem)dios da mente sejam administrados de maneira mais racional e em coordenação com outras !ormas de tratamento: psicoterapia e psicanálise$ Essa já era a opinião de Hean 8elaL, principal representante !rancês da psiquiatria biológica, que a!irmou, em /CGV: ;=onv)m lembrar que, em psiquiatria, os medicamentos nunca são mais do que um momento do tratamento de uma doença mental, e que o tratamento básico continua a ser a psicoterapia$< ?uanto ao inventor desses medicamentos, Kenri %aborit, sempre declarou que a psico!armacologia não era, como tal, a solução para todos os problemas: ;*or que !icamos contentes por dispor de psicotrópicosN *orque a sociedade em que vivemos ) insuportável$ 's pessoas não conseguem mais dormir, !icam angustiadas e necessitam ser tranqMili"adas, mais nas megalópoles do que noutros lugares$ Rs ve"es me censuram por haver inventado a camisade!orça química$ -as, sem dAvida, esqueceramse da )poca eni que, quando plantonista na marinha, eu entrava no pavilhão dos agitados com um revólver e dois en!ermeiros parrudos, porque os doentes morriam dentro das camisasde!orça, transpirando e berrando $---&- ' humanidade, ao longo de sua evolução, !oi obrigada a passar pelas drogas$ 4em os psicotrópicos, talve" tivesse havido uma revolução na consciência humana, di"endo: Y7ão podemos mais suportar issoZS -as !oi possível continuar a suportálo, graças aos psicotrópicos$ 7um !uturo distante, a !armacologia talve" tenha menos interesse, a não ser, provavelmente, na traumatologia, e ) a/) concebível que desapareça$< Koje em dia, entretanto, a psico!armacologia tornouse, a despeito dela mesma, o estandarte de uma esp)cie de imperialismo$ 8e !ato, ela permite que todos os m)dicos B em especial os clínicos gerais abordem da mesma maneira todo tipo de a!ecç#es, sem que jamais se saiba de que tratamento elas dependem$ 'ssim, psicoses, neuroses, !obias, melancolias e depress#es são tratadas pela psico!armacologia como um punhado de estados ansiosos, decorrentes de lutos, crises de p&nico passageiras, ou de um nervosismo extremo, devido a um ambiente di!ícil: ;1 medicamento psicotrópico só se trans!ormou no que )<, escreveu @douard [ari!ian, ;por ter aparecido num momento oportuno$ .ornouse então o símbolo da ciência triun!ante B aquela que explica o irracional e cura o incurável I$$$J$1 psicotrópico simboli"ou a vitória do pragmatismo e do materialismo sobre as enevoadas elucubraç#es psicológicas e !ilosó!icas que tentavam de!inir o homem$< 1 poder da ideologia medicamentosa ) tamanho que, quando ela alega restituir ao homem os atributos de sua virilidade, chega a cheirar a loucura$ 'ssim, o sujeito que se julga impotente toma iagra3 para p(r !im a sua angAstia sem jamais saber de que causalidade psíquica decorre seu sintoma, ao passo que, por outro lado, o homem cujo membro ) realmente de!iciente tamb)m toma o mesmo medicamento, para melhorar seu desempenho, mas sem jamais apreender de que causa org&nica decorre sua impotência$ 1 mesmo se aplica > utili"ação dos ansiolíticos e dos antidepressivos$ 6ma dada pessoa ;normal<, atingida por uma s)rie de in!ortAnios B perda de uma pessoa próxima, abandono, desemprego, acidente B, vê serlhe receitado, em caso de angAstia ou de uma situação de luto, o mesmo medicamento receitado a outra que não tem nenhum drama para en!rentar, mas apresenta distArbios idênticos em virtude de sua estrutura psíquica melancólica ou depressiva: ;?uantos m)dicos<, escreveu @douard [ari!ian, ;receitam tratamentos antidepressivos a pessoas que estão simplesmente tristes e desiludidas, e cuja ansiedade levou a uma di!iculdade de dormirZ< ' histeria de outrora tradu"ia uma contestação da ordem burguesa que passava pelo corpo das mulheres$ ' essa revolta impotente, mas !ortemente signi!icativa por seus conteAdos sexuais, 9reud atribuiu um valor emancipatório do qual todas as mulheres se bene!iciaram$ =em anos depois desse gesto inaugural, assistimos a uma regressão$ 7os países democráticos, tudo se passa como se já não !osse possível haver nenhuma rebelião, como se a própria id)ia de subversão social ou intelectual se houvesse tornado ilusória, como se o con!ormismo e o higienismo próprios da nova barbárie do biopoderV tivessem ganho a partida$ 8aí a triste"a da alma e a impotência do sexo, daí o paradigma da depressão$ 8e" anos depois da comemoração mundial do bicentenário da +evolução 9rancesa, o ideal revolucionário tende a ser suprimido dos discursos e das representaç#es$ *oderia ele continuar a exercer o mesmo !ascínio
depois da queda do muro de Perlim e do !racasso do sistema comunistaN A= psi&uiatra .ranc@s Bdouard ari.ian denunciou os excessos da psico.armacologia em Le !rix du bien( @tre1 !s"chotrope et socit@, !aris, =dile 'acob, #$$D1 3er tambm es paradis piem ia t@te A#$$F, !aris, =dile 'acob, #$$, col1 +=pus, p>G1F AComercializado em #$$ como a +p-lula da .elicidade, primeiro nos Estados Hnidos e, depois, no resto do mundo, o 3iagra um vasodilatador n/o a.todis-aco e sem nenhum e.eito sobre o dese4o sexual1 *ge apenas sobre as dis.un0es ercteis ligadas a causas orgInicas precisas1F A)ichel ;oucault deu o nome de biopoder a uma pol-tica &ue pretende governar o corpo e a menre em nome de uma biologia erigida em sistema totalizante, e &ue assume o lugar da religi/o1 3er )ichel ;oucault, +B preciso de.ender a sociedade, in Jesumo dos cursos do CollKge de ;rance A#$>(#$2F, Jio de 'aneiro, 'orge ahar, #$$>1F AN/o se diz com .re&@ncia su.iciente &ue os antidepressivos t@m, muitas vezes, o e.eito secund8rio de reduzir o apetite sexual1 Em alguns homens, eles provocam .enMmenos de impot@ncia1F 4e a emergência do paradigma da depressão realmente signi!ica que a reivindicação de uma norma prevaleceu sobre a valori"ação do con!lito, isso tamb)m quer di"er que a psicanálise perdeu sua !orça de subversão$ 8epois de haver contribuído amplamente, ao longo de todo o s)culo OO, não apenas para a emancipação das mulheres e das minorias oprimidas, mas para a invenção de novas !ormas de liberdade, ela !oi desalojada, tal como a histeria, da posição central que ocupava tanto nos saberes de orientação terapêutica e clínica Ipsiquiatria, psicoterapia, psicologia clínicaJ quanto nas grandes disciplinas em que supostamente investia Ipsicologia, psicopatologiaJ$ 1 paradoxo dessa nova situação ) que a psicanálise passou a ser con!undida com o conjunto das práticas sobre as quais, no passado, exerceu sua supremacia$ .estemunho disso ) a utili"ação generali"ada do termo ;psi< para designar, con!undindo todas as tendências, tanto a ciência da mente quanto as práticas terapêuticas que estão ligadas a ela$ ' palavra ;psicanálise< !e" sua aparição em /DCV, num texto de 4igmund 9reud redigido em !rancês$ 6m ano antes, com seu amigo Hose! Preuer, ele havia publicado seus !amosos Estudos sobre a histeria, livro em que se relatava o caso de uma moça judia e vienense que so!ria de uma estranha doença de origem psíquica, na qual eram postas em cena !antasias sexuais atrav)s de contorç#es do corpo$ ' paciente chamavase Perta *appenheim, e seu m)dico, Preuer, que vinha cuidando dela pelo chamado m)todo ;catártico<, deulhe o nome de 'nna 1$ ' história dessa paciente viria a se tornar lendária, pois ) a 'nna 1$, isto ), a uma mulher, e não a um cientista, que se atribui a invenção do m)todo psicanalítico: um tratamento baseado na !ala, um tratamento em que o !ato de se verbali"ar o so!rimento, de encontrar palavras para expressálo, permite, se não curálo, ao menos tomar consciência de sua origem e, portanto, assumilo$ =onsultando os arquivos, os historiadores modernos demonstraram que o !amoso caso de 'nna 1$, apresentado por 9reud e Preuer como o protótipo da cura catártica, não levou, na realidade$ > cura da paciente$ Em todo caso, 9reud e Preuer decidiram publicar a história dessa mulher e exp(la como um caso princeps, para melhor reivindicar, em oposição ao psicólogo !rancês *ierre Hanet, a prioridade da descoberta do m)todo catártico$C ?uanto a Perta *appenheim, se não !oi curada de seus sintomas, certamente se trans!ormou numa outra mulher1 -ilitante !eminista, devota e rígida, consagrou sua vida aos ór!ãos e >s vítimas do antisemitismo, sem jamais evocar o tratamento psíquico que recebeu na juventude e que !e" dela um mito$
Kagiogra!icamente celebrada pelos herdeiros de 9reud, 'nna 1$ voltou a se trans!ormar em Pertha, na pena da historiogra!ia cientí!ica$ E, retomando postumamente sua verdadeira identidade, reencontrou seu verdadeiro destino B o de uma mulher trágica do !im do s)culo OO, que deu sentido > sua vida engajando se numa grande causa$ -as nem por isso Pertha deixou de ser o personagem lendário cuja rebeldia Preuer e 9reud saudaram$ Enquanto o corpo das mulheres tornouse depressivo e a antiga bele"a convulsiva da histeria, tão admirada pelos surrealistas, deu lugar a uma nosogra!iaSW insigni!icante, a psicanálise !oi atingida pelo mesmo sintoma e já não parece adaptarse > sociedade depressiva, que pre!ere a ela a psicologia clínica$ Ela tende a se trans!ormar numa disciplina de notáveis, numa psicanálise para psicanalistas$ Em /CCD, jeanPertrand *ontalis !e" essa constatação com amargura: ;8entro em breve, a psicanálise só interessará a uma !aixa cada ve" mais restrita da população$ *orventura não haverá senão psicanalistas no divã dos psicanalistasN< 3er Ernest 'ones, * vida e a obra de :igmund ;reud, G vois1, Jio de 'aneiro, mago, #$O Penri ;1 Ellenberger, Pistoire de la dcouverte de l’inconscient ANova QorRSLondres, #$>O 3illeurbanne, #$>F, !aris, ;a"ard, #$$, e )decines de l’Ime1 Essais d’histoire de la .olie et des gurisons ps"chi&ues, !aris, ;a"ard, #$$5O *lbrecht Pirschmller, 'ose. Treuer ATerna, #$>F, !aris, !H;, #$$#1 ' nosologia ) a disciplina que estuda as características distintivas das doenças, com vistas a uma classi!icação$ ' nosogra!ia ) a disciplina ligada > classi!icação e > descriçáo das doenças$ ?uanto mais as instituiç#es psicanalíticas implodem, mais a psicanálise está presente nas di!erentes es!eras da sociedade e mais serve de re!erência histórica para a psicologia clínica que, no entanto, veio substituíla$ ' língua da psicanálise trans!ormouse num idioma comum, !alado tanto pelas massas quanto pelas elites e, pelo menos, por todos os praticantes do continente ;psi<$ Koje em dia, ningu)m mais desconhece o vocabulário !reudiano: !antasia, supereu, desejo, libido, sexualidade etc$ *or toda parte, a psicanálise reina soberana, mas em toda parte ) colocada em concorrência com a !armacologia, a ponto, aliás, de ela mesma ser utili"ada como uma pílula$ ?uanto a esse aspecto, Hacques 8errida teve ra"ão de sublinhar, num texto recente, que a psicanálise ) atualmente assimilada a um ;rem)dio ultrapassado, relegado ao !undo das !armácias<: ;4empre pode servir, num caso de urgência ou de !alta, mas já se !e" coisa melhor depois disso$< 4abemos, no entanto, que o medicamento em si não se op#e ao tratamento pela !ala$ ' 9rança ) hoje o país da Europa em que ) mais elevado o consumo de psicotrópicos Icom exceção dos neurol)pticosJ, e em que, simultaneamente, a psicanálise se implantou melhor, tanto pela via m)dica e assistencial Ipsiquiatria, psicoterapiaJ quanto pela via cultural Iliteratura, !iloso!iaJ$ *ortanto, se hoje a psicanálise ) posta em concorrência com a psico!armacologia, ) tamb)m porque os próprios pacientes, submetidos > barbárie da biopolítica, passaram a exigir que seus sintomas psíquicos tenham uma causalidade org&nica$ -uitas ve"es, aliás, sentem se in!eriori"ados quando o m)dico tenta apontarlhes uma outra via de abordagem$ Cent ans aprKs, 'ean(Luc onnet, *ndr Ureen, 'ean Laplanche, 'ean(Claude Lavie, 'o"ce )cougall, )ichel de )’Hzan, 'ean(Tertrand !ontalis, 'ean(!aul 3alabrega, aniel Vidliicher, entrevistas com !atric ;ror, !aris, Uallimard, #$$, p15251 :obre a &uest/o das institui0es psicanal-ticas, ver a terceira parte deste livro, cap-tulo 1 Em conseqMência disso, entre os psicotrópicos, os antidepressivos são os mais receitados, sem que se possa a!irmar que os estados depressivos vêm aumentando$ 1corre apenas que a medicina de hoje tamb)m responde ao paradigma da depressão$ *or conseguinte, cuida de quase todos os so!rimentos psíquicos como
se se tratasse de estados simultaneamente ansiosos e depressivos$S3 sso ) atestado por diversos estudos publicados em /CCF no Tuiletin de l*cadmie Nationale de )decine ;'tualmente receitados, em sua maioria, por clínicos gerais<, escreve *ierre Huillet, ;os antidepressivos parecem aplicarse aos distArbios do humor de vários níveis, quase sempre de maneira adequada, mas com uma corrente tríplice: por um lado, apesar dos indiscutíveis progressos diagnósticos, especialmente os obtidos por nossos colegas clínicos, eles são prescritos em aproximadamente metade dos estados depressivos recenseados no nível da população geral\ por outro lado, assistimos a uma ampliação da de!inição da depressão e a sua medicali"ação I$$$J$ *odemos presumir que a atual evolução sociocultural contribua para tornar mais numerosas as pessoas comuns, em geral chamadas de neuróricas normais, que tiveram redu"ido o seu limiar de toler&ncia aos inelutáveis so!rimentos habituais, >s di!iculdades e >s provaç#es da vida$< I *ssim &ue, nos Estados Hnidos, inventou(se uma nova epidemia para designar a histeria9 a s-ndrome de .adiga crMnica1 Ligada W idia de personalidade mXltipla Aver cap-tulo GF, essa s-ndrome tratada com medicamentos, e os1 mdicos a.irmam &ue sua causa um v-rus ainda desconhecido1 3er Elaine :holYater, P"stories9 P"steri cal Epidemics and )odern Culture, Nova QorR, Columbia Hniversit" !ress, #$$>1 # = consumo de tran&ilizantes e hipn6ticos na ;ran0a atinge >% da popula0/o, e o de antidepressivos, em constante aumento, 22%1 Nos Estados Hnidos, os estimulantes ps-&uicos t@m a mesma .un0/o dos antidepressivos na ;ran0a1 = consumo de neurolpticos Areservado Ws psicosesF est8vel em &uase todos os pa-ses, mas deve aumentar ligeiramente no ano 2, com o aparecimento de novas molculas de melhor desempenho1 3er )arcel Legrain e 7hrKse Lecomte, +La consommation des ps"chotropes en ;rance et dans &uel&ues pa"s europens, TulSe4(4n de l’,cadmze Nationale de )decine, ##, D, p1l >G(>, sess8o de #> de 4unho de #$$>1 3er tambm !hilippe !ignarre, !uissance des ps"chotropes, pouvoir des patzents, !aris, !H;, #$$$1J .odos os estudos sociológicos mostram igualmente que a sociedade depressiva tende a romper a essência da vida humana$ Entre o medo da desordem e a valori"ação de uma competitividade baseada unicamente no sucesso material, muitos são os sujeitos que pre!erem entregarse voluntariamente a subst&ncias químicas a !alar de seus so!rimentos íntimos$ 1 poder dos rem)dios do espírito, portanto, ) o sintoma de uma modernidade que tende a abolir no homem não apenas o desejo de liberdade, mas tamb)m a própria id)ia de en!rentar a prova dele, 1 silêncio passa então a ser pre!erível > linguagem, !onte de angAstia e vergonha$ 4e o limiar de toler&ncia dos pacientes baixou e se seu desejo de liberdade diminuiu, o mesmo acontece com os m)dicos que receitam ansiolíticos e antidepressivos$ 6ma pesquisa recente, publicada pelo jornal Le )onde,#D mostra que inAmeros clínicos !ranceses, sobretudo os que cuidam de emergências, não estão em melhores condiç#es do que seus pacientes$ nquietos, insatis!eitos, atormentados pelos laboratórios e impotentes para curar, ou, pelo menos, para escutar uma dor psíquica que os transcende cotidianamente, parecem não ter outra solução senão atender > demanda maciça de psicotrópicos$ ?uem se atreveria a culpá losN A alma não é uma coisa
7essa situação, não nos surpreende que a psicanálise seja permanentemente violentada por um discurso tecnicista que não pára de invocar sua pretensa ;ine!icácia experimental<$ -as, que ;ine!icácia< ) essaN 8evemos nós con!iar em Hacques =hirac quando este declara: ;1bservei os e!eitos da psicanálise e não !iquei convencido a priori a ponto de me perguntar se tudo isso, na realidade, não depende muito mais da química que da psicologia
condu"ida ensina aos que lhe pedem socorro$ ' partir de /CG0, reali"ouse um grande nAmero de pesquisas nos Estados 6nidos para avaliar a e!icácia dos tratamentos psicanalíticos e das psicoterapias$ ' maior di!iculdade residiu na escolha dos par&metros$ *rimeiro, era preciso testar a di!erença entre a inexistência e a existência de tratamento, a !im de poder comparar o e!eito da passagem do tempo Iou da evolução espont&neaJ com a e!icácia de um tratamento$ Em seguida, era necessário !a"er intervir o princípio da aliança terapêutica Isugestão, trans!erência etc$J, a !im de compreender por que alguns terapeutas, qualquer que !osse sua competência, entendiamse per!eitamente com alguns pacientes e nem um pouco com outros$ *or Altimo, era indispensável levar em conta a subjetividade das pessoas interrogadas$ 8aí a id)ia de p(r em dAvida a autenticidade de seus depoimentos e descon!iar da in!luência do terapeuta$ Em todos os casos ilustrativos, os pacientes nunca se di"iam curados de seus sintomas, por)m trans.ormados IDT] dos casosJ por sua experiência do tratamento$ Em outras palavras, quando esta era ben)!ica, eles sentiam um bemestar ou uma melhora em suas relaç#es com os outros tanto no campo social e pro!issional quanto em mat)ria amorosa, a!etiva e sexual$ Em suma, todas essas pesquisas demonstraram a e!icácia extraordinária do conjunto das psicoterapias$ Entretanto, nenhuma delas permitiu provar estatisticamente a superioridade ou a in!erioridade da psicanálise em relação aos demais tratamentos$ 1 grande de!eito dessas avaliaç#es ) que elas sempre se assentam num princípio experimental pouco adaptado > situação do tratamento$ 1ra !ornecem a prova de que basta que um ser em so!rimento consulte um terapeuta por algum tempo para que sua situação melhore, ora dão a entender que o sujeito interrogado pode ser in!luenciado por seu terapeuta e, portanto, ser vítima de um e!eito placebo$ *ortanto, ) justamente por rejeitar a própria id)ia de que a experimentação seja possível por interm)dio desses interrogatórios que a chamada avaliação ;experimental< dos resultados terapêuticos quase não tem valor na psicanálise: ela sempre redu" a alma a uma coisa$ =onsultado sobre esse assunto em /C23 pelo psicólogo 4aul +osen"Xeig, que lhe enviou resultados experimentais que provavam a validade da teoria do recalcamento, 9reud mostrouse honesto e prudente$ 7ão rejeitou a id)ia da experimentação, mas lembrou que os resultados obtidos eram, ao mesmo tempo, sup)r!luos e redundantes diante da abund&ncia das experiências clínicas já bem estabelecidas pela psicanálise e conhecidas atrav)s das numerosas publicaç#es de casos$ ' um outro psicólogo norteamericano que lhe prop(s ;medir< a libido e dar seu nome Ium .reudF > unidade de medida, ele tamb)m respondeu: ;7ão entendo de !ísica o su!iciente para !ormular um juí"o con!iável nessa mat)ria$ -as, se o senhor me permite pedirlhe um !avor, não dê meu nome > sua unidade$ Espero poder morrer, um dia, com uma libido que não tenha sido medida$ ?uanto > maneira como !oram condu"idas as pesquisas, estas devem ser criticadas$ 4e muitas !oram !eitas com seriedade, em especial nos Estados 6nidos, elas tamb)m !oram objeto de mAltiplas controv)rsias$ 1utras a!iguramse !rancamente ridículas hoje em dia$ =om e!eito, constatase que, muitas ve"es, as perguntas !ormuladas determinavam as respostas, como mostram os chamados protocolos ;experimentais<, que consistem, por exemplo, em testar a existência do complexo de @dipo perguntando a crianças de 2 a C anos se elas são ou não hostis para com o genitor do sexo oposto$ 't) porque ) evidente que, nessas condiç#es, a quase totalidade das crianças responde que acha seus pais ;muito bon"inhos<$ ' psicanálise parece ser ainda mais atacada hoje em dia por haver conquistado o mundo atrav)s da singularidade de uma experiência subjetiva que coloca o inconsciente, a morte e a sexualidade no cerne da alma humana$ 7a 9rança, já são incontáveis os dossiês inspirados no discurso das neurociências, do cognitivismo ou da gen)tica que não têm outro objetivo senão abrir guerra contra o pensamento !reudiano$
Entretanto, ao ler os detalhes das intervenç#es reunidas sob essas rubricas, percebese que elas di"em algo inteiramente di!erente$ Em geral, os dossiês dão a palavra a especialistas de toda sorte Ipsicólogos, psicanalistas com !ormação psiquiátrica, psicoterapeutas, neurologistas, neurobiologistas, intelectuais etc$J e o diálogo se instaura, >s ve"es, sem dAvida, de maneira bastante simplista Ia !avor ou contra 9reud e a psicanáliseJ, mas tamb)m, com bastante !reqMência, numa perspectiva crítica e respeitando as di!erentes disciplinas$ 7a maioria das ve"es, os cientistas dão mostras de prudência$ 4alvo alguns irredutíveis, os investigadores interrogados nunca desejam ;queimar< coisa alguma$ -as, por que a psicanálise suscita tanto opróbrioN ?ue aconteceu para que, ao mesmo tempo, ela esteja tão presente nos debates sobre o !uturo do homem e seja tão pouco atraente aos olhos dos que a consideram envelhecida, ultrapassada e ine!ica"NS ' signi!icação desse descr)dito deve ser buscada na recente trans!ormação dos modelos de pensamento desenvolvidos pela psiquiatria din&mica e nos quais repousa, há dois s)culos, a apreensão do status da loucura e da doença psíquica nas sociedades ocidentais$ =hamase psiquiatria din&mica< o conjunto das correntes e escolas que associam uma descrição das doenças da alma IloucuraJ, dos nervos IneuroseJ e do humor ImelancoliaJ a um tratamento psíquico de nature"a din&mica, isto ), que !aça intervir uma relação trans!erencial entre o m)dico e o doente$ 1riunda da medicina, a psiquiatria din&mica privilegia a psicogênese Icausalidade psíquicaJ em relação > organogênese Icausalidade org&nicaJ, mas sem excluir esta Altima, e se apóia em quatro grandes modelos de explicação da psique humana: um modelo nosográ!ico nascido da psiquiatria, que permite ao mesmo tempo uma classi!icação universal das doenças e uma de!inição da clínica em termos da norma e da patologia\ um modelo psicoterapêutico herdado dos antigos curandeiros, que presume uma e!icácia terapêutica ligada a um poder de sugestão\ um modelo !ilosó!ico ou !enomenológico que permite captar a signi!icação do distArbio psíquico ou mental a partir da vivência existencial Iconsciente e inconscienteJ do sujeito\ e um modelo cultural que prop#e descobrir na diversidade das mentalidades, das sociedades e das religi#es uma explicação antropológica do homem baseada no contexto social ou na di!erença$ Em geral, as escolas e as correntes têm privilegiado um ou dois modelos de interpretação do psiquismo, con!orme os países ou as de modelo de re!erencia: ;*ragmáticas e mensuráveis, aos poucos elas vão tirando de moda a velha psicanálise, atualmente quase abandonada$< ' revolução pineliana consistiu em ver o iouco não mais como um insensato cujo discurso seria desprovido de sentido, mas como um alienado, ou, em outras palavras, um sujeito estranho a si mesmo: não um animalS3 enjaulado e despojado de sua humanidade porque estivesse privado de qualquer ra"ão, mas um homem reconhecido como tal$ 8erivado do alienismo, o modelo nosográ!ico organi"a o psiquismo humano a partir de grandes estruturas signi!icativas Ipsicoses, neuroses, pervers#es, !obia, histeria etc$J que de!inem o princípio de uma norma e de uma patologia e delimitam as !ronteiras entre a ra"ão e a desra"ão$ Esse modelo está ligado ao da psicoterapia, cuja origem remonta a 9ran" 'nton -esmer$ Komem do luminismo, este queria arrancar da religião a parte obscura da alma humana apoiandose na !alsa teoria do magnetismo animal, que viria a ser abandonada por seus sucessores$ Ele cuidava de hist)ricas e de possessas sem a ajuda da magia, unicamente pela !orça de um poder de sugestão$ *or seu lado, >s v)speras da +evolução, *inel inventou o tratamento moral ao mesmo tempo que ^illiam .ue, o quacre inglês$ +e!ormou a clínica mostrando que sempre subsiste no alienado um resto de ra"ão que permite a relação terapêutica$
4e o saber psicanalítico organi"ouse, largamente, associando uma classi!icação racional das doenças mentais a um tratamento moral, as escolas de psicoterapia, ao contrário, apregoaram ora uma t)cnica relacional, da qual a nosogra!ia era excluída, ora uma etnopsicologiaS0 que recondu" o paciente, e o homem em geral, a suas raí"es, seu gueto, sua comunidade ou sua origem$S 7ascido com *hilippe *inel, o modelo nosológico desenvolveuse ao longo do s)culo xix reivindicando o !amoso mito da abolição das correntes, inventado durante a +estauração pelo !ilho do pai !undador e por seu principal aluno, @tienne Esquirol$ ?ue vem a ser issoN 4ob o regime do .error, pouco depois de sua nomeação para o hospital de Picêtre I// de setembro de /FC2J, *inel recebeu a visita de =outhon, membro do =omitê de 4aAde *Ablica, que estava procurando suspeitos entre os loucos$ .odos tremiam diante desse devoto de +obespierre que havia abandonado sua cadeira de paralítico para se !a"er carregar nos braços de outros homens$ *inel levouo at) a !rente das celas, onde a visão dos agitados lhe causou um medo intenso$ +ecebido com insultos, voltouse para o alienista e perguntou: ;=idadão, tu tamb)m )s louco, para querer libertar tamanhos animaisN< 1 m)dico respondeu que os insanos !icavam ainda mais intratáveis por serem privados de ar e de liberdade$ =outhon concordou em que se eliminassem as correntes, mas advertiu *inel contra sua presunção$ E então o !ilantropo iniciou sua obra: tirou os grilh#es dos loucos e, com isso, deu origem ao alienismo e, mais tarde, > psiquiatria$ 4eparada das outras !ormas de desra"ão Ivadiagem, mendic&ncia, desvioJ, a loucura, segundo *inel, tornou se uma doença$ ' partir daí, o louco p(de ser tratado com a ajuda de uma nosogra!ia adequada e um tratamento apropriado$ =riouse para ele o manic(mio e, mais tarde, o hospital psiquiátrico B a !im de a!astálo do hospital geral, símbolo do encarceramento nas monarquias da Europa$ Em seguida, Esquirol deu aos ensinamentos de *inel um conteAdo dogmático que, em /D2D, desembocou na o!iciali"ação do sistema asilar$ Entre o mesmerismo e a revolução pineliana, a primeira psiquiatria din&mica associava um modelo nosográ!ico IpsiquiatriaJ a um modelo psicoterápico Imagnetismo, sugestãoJ que separava a loucura asilar Idoenças da alma, psicosesJ da loucura comum Idoenças dos nervos, nevrosesJ$ 6m s)culo depois, Hean -artin =harcot, seu Altimo grande representante, anexou a neurose Iessa semiloucuraJ ao modelo nosográ!ico, !a"endo dela uma doença !uncional$ 1 manic(mio, no entanto, continuaria dominante, com seu cortejo de mis)rias, gritos e crueldades$ 'tingindo uma grande so!isticação, a psiquiatria do !im do s)culo OO desinteressouse do sujeito e o abandonou a tratamentos bárbaros, nos quais a !ala não tinha nenhum lugar$ 'ssim pre!erindo a classi!icação das doenças > escuta do so!rimento, ela mergulhou numa esp)cie de niilismo terapêutico$ Kerdeira de =harcot, a segunda psiquiatria din&mica alçou v(o reivindicando em alto e bom tom o gesto inaugural de *inel$ 4em renunciar ao modelo nosográ!ico, reinventou um modelo psicoterapêutico, dando a palavra ao homem doente, como !i"eram KippolLte Pernheim em 7ancL e, mais tarde, Eugen Pleuler em [urique$ 8epois, ela encontrou sua !orma consumada nas escolas modernas de psicologia I9reud e HanetJ$ 'o contrário desse movimento, assistimos hoje ao desmembramento dos quatro grandes modelos e ao rompimento do equilíbrio que permitia organi"ar sua diversidade$ 8iante do impulso da psico!armacologia, a psiquiatria abandonou o modelo nosográ!ico em prol de uma classi!icação dos comportamentos$ Em conseqMência disso, redu"iu a psicoterapia a uma t)cnica de supressão dos sintomas$ 8aí a valori"ação empírica e ateórica dos tratamentos de emergência$ 1 medicamento sempre atende, seja qual !or a duração da receita, a uma situação de crise, a um estado sintomático$ ?uer se trate de angAstia, agitação, melancolia ou simples ansiedade, ) preciso, inicialmente, tratar o traço visível da doença, depois suprimilo e, por !im, evitar a investigação de sua causa de maneira a orientar o paciente para uma posição cada ve" menos con!lituosa e, portando, cada ve" mais depressiva$ Em lugar das paix#es, a calmaria, em lugar do desejo, a ausência de desejo, em lugar do sujeito, o nada, e em lugar da história, o !im da história, 1 moderno pro!issional de saAde B psicólogo, psiquiatra, en!ermeiro ou
m)dico B já não tem tempo para se ocupar da longa duração do psiquismo, porque, na sociedade liberal depressiva, seu tempo ) contado$ O homem comportamental
nscrita no movimento de uma globali"ação econ(mica que trans!orma os homens em objetos, a sociedade depressiva não quer mais ouvir !alar de culpa nem de sentido íntimo, nem de consciência nem de desejo nem de inconsciente$ ?uanto mais ela se encerra na lógica narcísica, mais !oge da id)ia de subjetividade$ 4ó se interessa pelo indivíduo, portanto, para contabili"ar seus sucessos, e só se interessa pelo sujeito so!redor para encarálo como uma vítima$ E, se procura incessantemente codi!icar o d)!icit, medir a de!iciência ou quanti!icar o trauma, ) para nunca mais ter que se interrogar sobre a origem deles$ 'ssim, o homem doente da sociedade depressiva ) literalmente ;possuído< por um sistema biopolítico que rege seu pensamento > maneira de um grande !eiticeiro$ 7ão apenas ele não ) responsável por coisa alguma em sua vida, como tamb)m já não tem o direito de imaginar que sua morte possa ser um ato decorrente de sua consciência ou de seu inconsciente$ +ecentemente, por exemplo, na ausência da mais ín!ima prova e a despeito de vivos protestos de inAmeros psiquiatras, um pesquisador norteamericano teve a pretensão de a!irmar que a causa exclusiva do suicídio residiria não numa decisão subjetiva, numa passagem ao ato ou no contexto histórico, mas numa produção anormal de serotonina$ =om isso se eliminaria, em nome de uma pura lógica químico biológica, o caráter trágico de um ato intrinsecamente humano, de =leópatra a =atão de _tica, de 4ócrates a -ishima, de ^erther a Emma PovarL$ 4eriam igualmente aniquilados, em virtude de uma simples mol)cula, todos os trabalhos sociológicos, históricos, !ilosó!icos, literários e psicanalíticos, de @mile 8urheim a -aurice *inguet, que deram uma signi!icação )tica e não química > longa trag)dia da morte voluntária$ @ pela adoção de princípios idênticos que alguns geneticistas pretendem explicar a origem da maioria dos comportamentos humanos$ 8esde /CCT, eles vêm tentando evidenciar o que denominam de mecanismos ;gen)ticos< da homossexualidade, da violência social, do alcoolismo ou da esqui"o!renia$ Em /CC/, 4imon %eaL pretendeu ter descoberto no hipotálamo o segredo da homossexualidade$ 8ois anos depois, !oi a ve" de 8ean Kamer, outro estudioso norteamericano, que a!irmou tamb)m haver isolado o cromossomo da homossexualidade a partir da observação de uns quarenta irmãos gêmeos$ ?uanto a Kan Prunner, geneticista holandês, não hesitou, em /CC2, em estabelecer uma relação entre o comportamento anormal dos membros de uma mesma !amília acusados de estupro ou de piromania B e a mutação de um gene que estaria encarregado de programar uma en"ima do c)rebro Ia monoamina oxidase 'J$ = artigo de 'ohn )ann .oi publicado na revista Nature )edicine em 4aneiro de #$$1 3er Le ;,aro de ## de .evereiro de #$$, onde tambm se podem ler os protestos dc Bdouard ari.ian1 * serotomna uma substIncia aminada, produzida pelo tecido intestinal e cerebral, &ue desempenha um papel de neurotransmissor1 *lguns antidepressivos (os J:, ou inibidores da reabsor0/o da serotoninaF aumentam sua atividade1 LFa- a idia de &ue a depress/o se deveria apenas a uma &ueda da atividade da seroronina1 2 :obre essa &uest/o, ver Blisabeth Joudinesco e )ichel !lon, icion8rio de psican8lise, Jio de 'aneiro, 'orge ahar, #$$, verbete +:uic-dio1 E, a prop6sito das imagens antigas e modernas da suicidologia, ver )aurice !inguet, La )ort volontaire ali 'apon, !aris, Uallimard, #$1 *ublicados na revista :cience, esses trabalhos !oram divulgados na imprensa internacional, muito embora !ossem violentamente taxados de ;reducionismo neurogen)tico< por outros estudiosos$ .estemunho disso !oi a corajosa intervenção de 4teven +ose, um eminente neurobiologista brit&nico: ;Essas id)ias, hoje em dia, ganham import&ncia em certos países, como os Estados 6nidos ou a 5rãPretanha, porque os governos deles, pro!undamente direitistas, procuram desesperadamente encontrar soluç#es individuais para problemas sociais $---&- 8epois do artigo de 8ean Kamer sobre os genes ga", inAmeras críticas !oram publicadas e, at) o momento, seus dados não puderam ser reprodu"idos nem por ele nem por outras pessoas $---&- 8e maneira geral, ) interessante observar que algumas revistas cientí!icas publicam sobre o homem pesquisas tão ruins que elas mesmas haveriam de rejeitálas se dissessem respeito aos animais $---&- .odas essas pesquisas são uma conseqMência da perda catastró!ica que tem a!etado o mundo ocidental nestes Altimos anos$ *erda da esperança de encontrar soluç#es sociais para problemas sociais$ 8esaparecimento das democracias socialistas
e da crença de alguns em que existia uma sociedade melhor no %este europeu $---&- +ecentemente, a título de pilh)ria, escrevi na revista Nature que, com esse tipo de pesquisa, logo se iria a!irmar que a guerra da Pósnia !oi conseqMência de um problema de serotonina no c)rebro do 8r$ Uarad"ic, e que poderia ser detida mediante uma prescrição maciça de *ro"ac$< $'& 1 recurso sistemático ao círculo vicioso da causalidade externa B genes, neur(nios, horm(nios etc$ teve como conseqMência o deslocamento da psiquiatria din&mica e sua substituição por um sistema comportamental em que subsistem apenas dois modelos explicativos: a organicidade, por um lado, portadora de uma universalidade simplista, e por outro, a di!erença, portadora de um culturalismo empírico$ 8aí resulta uma clivagem reducionista entre o mundo da ra"ão e o universo das mentalidades, entre as a!ecç#es do corpo e as do espírito, entre o universal e o particular$
$'& Entrevista com 4teven +ose, Libration, 0/ de março de /CCG$ , essa clivagem que se encontra na origem da atual valori"ação da explicação )tnica Iou identitáriaJ $+& que vem instalarse no lugar da re!erência ao psiquismo$ $(& 8esvinculado dos outros grandes modelos da psiquiatria din&mica, o modelo culturalista, na verdade, parece p(r em prática uma humani"ação do so!rimento, embora, na realidade, leve o paciente a acreditar que seu malestar não prov)m dele ou de suas relaç#es com os outros, mas de espíritos mal)!icos, dos astros, das pessoas que lhe deitam mauolhado ou, numa palavra, da ;cultura< e da chamada pertença )tnica: um ;alhures< que ) sempre substituído por um outro alhures$ ' explicação atrav)s do cultural, portanto, associase > causalidade org&nica e remete o sujeito ao universo da possessão$ 7o !im da vida, 9reud tinha consciência de que, um dia, os avanços da !armacologia imporiam limites > t)cnica do tratamento pela !ala: “O futuro”, escreveu ele, “talvez nos ensine a agir diretamente, com a ajuda de algumas substncias !uímicas, sobre as !uantidades de energia e sua distribui"ão no aparelho psí!uico# $averemos n%s de descobrir, talvez, outras possibilidades terap&uticas insuspeitadas'
$+& 4obre a crítica a tal posição, ver terceira parte deste livro, capítulo 2$ $(& ?uanto a essa questão, ver 9ethi Penslama, ;?uSestce quSune clinique de SexilN<, cahzers ntersignes, nG /3, /CCC$ *or ora, no entanto, dispomos somente da t)cnica psicanalítica$ E ) por isso que, a despeito de todas as suas limitaç#es, conv)m não despre"ála$ 4e 9reud não estava enganado, estava longe de imaginar que o saber psiquiátrico seria aniquilado pela psico!armacologia$ 8o mesmo modo, não imaginava que a generali"ação da prática psicanalítica na maioria dos países ocidentais seria contempor&nea dessa aniquilação progressiva e do emprego de subst&ncias químicas no tratamento das doenças da alma$ @ que não apenas o pharmaRon não se op#e > psique, como um e outro estão historicamente ligados, como sublinhou muito bem 5ladLs 4Xain: ;1 momento em que a panóplia completa dos neurol)pticos e dos antidepressivos se in!iltrar maciçamente na prática psiquiátrica, trans!ormandoa, será tamb)m o momento em que a orientação psicanalítica e a opção institucional tornarseão dominantes nela$
inspirados na psicanálise, !oram violentamente atacados em nome do avanço espetacular da psico!armacologia, a tal ponto que os próprios psiquiatras, como já a!irmei, sentemse hoje inquietos e criticam duramente seus aspectos nocivos e perversos$ =om e!eito, eles temem ver sua disciplina desaparecer em prol de uma prática híbrida que, por um lado, reservaria a hospitali"ação para a loucura cr(nica, pensada em termos de doença org&nica e ligada > medicina, e por outro, encaminharia aos psicólogos clínicos os pacientes que não !ossem su!icientemente loucos para depender de um saber psiquiátrico inteiramente dominado pelos psicotrópicos e pelas neurociências$ *ara avaliar o impacto dessa mutação mundial, basta estudar a evolução do !amoso )anual diagn6stico e estat-stico dos distXrbios mentais As)F, cuja primeira versão A:) #F !oi elaborada pela 'merican *sLchiatric 'ssociation I'*'J em /CG0$ 7essa ocasião, o )anual levava em conta as conquistas da psicanálise e da psiquiatria din&mica$ 8e!endia a id)ia de que os distArbios psíquicos e mentais decorriam essencialmente da história inconsciente do sujeito, de seu lugar na !amília e de sua relação com o meio social$ Em outras palavras, mesclava uma abordagem tríplice: o cultural Iou socialJ, o existencial e o patológico, correlacionado com uma norma$ *or essa perspectiva, a noção de causalidade org&nica não era despre"ada, e a psico!armacologia, então em plena expansão, era utili"ada em associação com o tratamento pela !ala ou com outras terapias din&micas$ .odavia, com o desenvolvimento de uma abordagem liberal dos tratamentos, que submete a clínica a um crit)rio de rentabilidade, as teses !reudianas !oram julgadas ;ine!ica"es< no plano terapêutico: o tratamento, di"iase, era longo demais e dispendioso demais$ E isso, sem levar em conta que seus resultados não eram mensuráveis: quando se interrogava um sujeito que houvesse passado pelo divã, não costumava este responder que, embora tivesse sido ;trans!ormado< por sua experiência, nem por isso podia di"erse ;curado própria de!inição do status da cura em psicanálise$ =om e!eito, como já recordei, no campo do psiquismo não existe cura no sentido como esta ) constatada no campo das doenças somáticas, sejam elas gen)ticas ou org&nicas$ 7a medicina cientí!ica, a e!icácia apóiase no modelo sinaisdiagnósticotratamento$ =onstatamse os sintomas I!ebreJ, dáse um nome > doença I!ebre ti!óideJ e se administra um tratamento Imedicamento antibióticoJ$ 1 doente !ica então ;curado< do mecanismo biológico da doença$C Em outras palavras, ao contrário das medicinas tradicionais, para as quais a alma e o corpo !ormam uma totalidade incluída numa cosmogonia, a medicina cientí!ica repousa numa separação entre esses dois campos$ 7o que concerne ao psiquismo, os sintomas não remetem a uma Anica doença e esta não ) exatamente uma doença Ino sentido somáticoJ, mas um estado$ *or isso, a cura não ) outra coisa senão uma trans!ormação existencial do sujeito$ 8epois de /CG0, o )anual .oi revisado pela '*' em diversas ocasi#es, sempre no sentido de um abandono radical da síntese e!etuada pela psiquiatria din&mica$ =alcado no esquema sinal diagnósticotratamento, ele acabou eliminando de suas classi!icaç#es a própria subjetividade$ Kouve quatro revis#es: em /CVD A:)ZF, em /CDT A:)ZF, em /CDF A:)(JF e em /CC3 A:)7vF1 1 resultado dessa operação progressiva de limpe"a, dita ;ateórica<, !oi um desastre$ 9undamentalmente, ela visou a demonstrar que o distArbio da alma e do psiquismo devia ser redu"ido ao equivalente > pane de um motor$ 8aí a eliminação de toda a terminologia elaborada pela psiquiatria e pela psicanálise$ 1s conceitos Ipsicose, neurose, perversãoJ !oram substituídos pela noção !rouxa de ;distArbio< Adisorder distArbio, desordemJ, e as entidades clínicas !oram abandonadas em !avor de uma caracteri"ação sintomática desses !amosos distArbios$ 'ssim, a histeria !oi redu"ida a um distArbio dissociativo ou ;conversivo<, passível de ser tratado como um distArbio depressivo, e a esqui"o!renia !oi assimilada a uma perturbação do curso do pensamento etc$
*or outro lado, na tentativa de evitar qualquer polêmica, as di!erentes vers#es do :) acabaram por abolir a própria id)ia de doença$ ' expressão ;distArbio mental< serviu para contornar o problema delicado da in!eriori"ação do paciente, que, se !osse tratado como doente, imporia o risco de exigir ;indeni"aç#es< do praticante do :) e at) de mover processos judiciais contra ele$ 8entro dessa mesma perspectiva, o adjetivo ;alcoólatra< !oi substituído por ;dependente de álcool<, al)m de se haver pre!erido renunciar > id)ia de ;esqui"o!renia< em bene!ício de uma perí!rase: .afetado por dist/r0ios que re1ete1 a u1a pertur0a23o de tipo esqui4ofr5nico6 $ gualmente preocupados em preservar as di!erenças culturais, os autores do :) debateram a questão de saber se as condutas políticas, religiosas ou sexuais chamadas ;desviantes< deveriam ou não ser assimiladas a distArbios do comportamento$ =oncluíram pela negativa, mas a!irmaram tamb)m que o crit)rio de ;agnóstico< só teria valor se o paciente pertencesse a um grupo )tnico di!erente do do examinador$ST R medida que se !oram sucedendo as di!erentes revis#es, os promotores do :) !oram caindo um pouco mais no ridículo$ Entre /CF2 e /CFG, chegaram at) a se esquecer dos princípios !undamentais da ciência$ io @douard [ari!ian descreveu muito bem essa deriva em es paradis111 op$ cit4ubstituíram ;homossexualidade< por ;homossexualidade egodist(nica<, expressão designativa daqueles que são mergulhados na depressão por suas puls#es$ .ratouse, na verdade, como assinalou %aXrence Kartmann, de eliminar uma entidade nosográ!ica para substituíla pela descrição de um estado depressivo ou ansioso passível de ser tratado pela psico!armacologia ou pelo comportamentalismo: ;'cho pre!erível<, disse ele, ;não utili"ar a palavra YhomossexualS, que pode prejudicar a pessoa$ ' palavra depress/o não cria problemas, nem tampouco neurose de angXstia I$$$J$ 6tili"o as categorias mais vagas e mais gen)ricas, desde que sejam compatíveis com minha preocupação com a verdade$ 's companhias de seguros estão convenientemente in!ormadas de que os rótulos diagnósticos que lhes são comunicados são suavi"ados para não prejudicar o paciente$< Em /CFG, uma comissão de psiquiatras negros exigiu a inclusão do racismo entre os distArbios mentais$ *rincipal redator do )anual, +obert 4pit"er rejeitou essa sugestão justi!icadamente, mas deu ao racismo uma de!inição absurda: ;7o &mbito do :) , deveríamos citar o racismo como bom exemplo de um estado correspondente a um !uncionamento psicológico não ótimo, que, em certas circunst&ncias, !ragili"a a pessoa e condu" ao aparecimento de sintomas$< 1s princípios enunciados no )anual !oram tomados como !onte autori"ada de um extremo a outro do planeta a partir do momento em que !oram adotados pela 'ssociação -undial de *siquiatria IX*'J,S2 !undada por Kenri EL em /CGT, e, mais tarde, pela 1rgani"ação -undial de 4aAde I1-4J$ =om e!eito, na d)cima revisão de sua classi!icação das doenças I=-l1J, no capítulo 9, a 1-4 de!iniu os distArbios mentais e os distArbios do comportamento segundo os mesmos crit)rios do :)31 *or Altimo, depois de /CC3, na nova revisão do :) Iou :) 3(JF, os mesmos princípios B denominados ero(to(three Iou T2J B !oram acrescentados ao estudo dos comportamentos considerados dissociativos, traumáticos e depressivos do bebê e das crianças pequenas$ 1 desmembramento dos quatro grandes modelos, que haviam permitido > psiquiatria din&mica associar uma teoria do sujeito a uma nosologia e a uma antropologia, teve o e!eito, portanto, de separar a psicanálise da psiquiatria, de remeter esta Altima ao campo de uma medicina bio!isiológica que exclui a subjetividade e, mais tarde, de !avorecer uma extraordinária exploração das reivindicaç#es de identidade e das escolas de psicoterapia, primeiro nos Estados 6nidos e, depois, em todos os países da Europa$ 7ascidas ao mesmo tempo que a psicanálise, essas escolas de psicoterapia têm como ponto comum contornar três conceitos !reudianos, a saber, os de inconsciente, sexualidade e trans!erência$ Elas op#em ao inconsciente !reudiano um subconsciente cerebral, biológico ou automático\ > sexualidade, no sentido !reudiano Icon!lito psíquicoJ, ora pre!erem uma teoria culturalista da di!erença entre os sexos ou gêneros, ora
uma teoria dos instintos$ *or Altimo, op#em > trans!erência como motor do tratamento clínico uma relação terapêutica derivada da sugestão$ 'ssim, quase todas essas escolas prop#em ao sujeito, saturado de medicamentos, de causalidades externas, de astrologia e de :), uma relação terapêutica mais humanista e mais adaptada > sua demanda$ E, sem dAvida, a progressão das psicoterapias, em tal contexto, ) inelutável ou at) necessária$ 8ito de outra maneira, se o s)culo OO !oi realmente o s)culo da psiquiatria, e se o s)culo OO !oi o da psicanálise, podemos perguntarnos se o próximo não será o s)culo das psicoterapias$ Entretanto, devese que constatar que somente a psicanálise !oi capa", desde suas origens, de reali"ar a síntese dos quatro grandes modelos da psiquiatria din&mica que são necessários a uma apreensão racional da loucura e da doença psíquica$ =om e!eito, ela tomou emprestado da psiquiatria o modelo nosográ!ico, da psicoterapia o modelo de tratamento psíquico, da !iloso!ia uma teoria do sujeito, e da antropologia uma concepção de cultura !undamentada na id)ia de uma universalidade do gênero humano que respeita as di!erenças$ ' menos que venha a se desonrar, portanto, ela não pode, como tal contribuir para a id)ia, hoje dominante, de uma redução da organi"ação psíquica a comportamentos$ 4e o termo ;sujeito< tem algum sentido, a subjetividade não ) mensurável nem quanti!icável: ela ) a prova, ao mesmo tempo visível e invisível, consciente e inconsciente, pela qual se a!irma a essência da experiência humana$
S!7U8"A PART! A 7rande 9uerela do Inconsciente O cérebro de ran)enstein
7uma c)lebre con!erência, ;1 c)rebro e o pensamento<, pro!erida em de"embro de /CDT, 5eorges =anguilhem rea!irmou sua hostilidade de /CGV contra a psicologia, acusandoa de se apoiar na biologia e na !isiologia para a!irmar que o pensamento não seria mais do que o e!eito de uma secreção do c)rebro$ 7essa con!erência, a psicologia não !oi apenas designada como ;uma !iloso!ia sem rigor<, uma ;)tica sem exigência< e uma ;medicina sem controle<, mas assimilada a uma verdadeira barbárie$ 4em pronunciar a palavra ;cognitivismo<, que apareceria em /CD/, =anguilhem atacou com !erocidade a crença que impulsiona o ideal cognitivo: a pretensão de querer criar uma ;ciência do espírito< baseada na correlação entre os estados mentais e os estados cerebrais$ ' re!erência aos trabalhos de 'lan .uring, 7orbert ^iener e 7oam =homsL !oi clara, e =anguilhem criticou dura5eorges =anguilhem, ;%e cerveau et la pens)e< I/CDTJ, in Ueorges Uanguilhem1 !hilosophe, historien de5 sczences, *aris, 'lbin -ichel, /CC0, p$l /22$ IUeorges Canguilhem, +[u’est(&ue la ps"chologie? A#$5DF, in Etudes d’histoire de la philosophie des sciences, !aris, 3rin, #$D1 * respeito desse texto, ver Blisabeth Joudinesco, +:ituation d’un texte9 &u’estcc &ue la ps"chologie?, in Ueorges Uanguilhem, op1 cir1, p#G5(1F mente o imperialismo das doutrinas que, desde a !renologia, contribuíram, quaisquer que !ossem suas di!erenças, para o avanço dessa ciência do espírito: ;Em suma<, declarou, ;antes da !renologia, julgavase 8escartes um pensador, um autor responsável por seu sistema !ilosó!ico$ 4egundo a !renologia, 8escartes era portador de um c)rebro que pensava sob o nome de +en) 8escartes $---&- Em suma, a partir da imagem do
cr&nio de 8escartes, o estudioso !renologista concluiu que a totalidade de 8escartes, biogra!ia e !iloso!ia, estava num c)rebro que convinha chamar de seu crebro, o crebro de escartes, uma vez &ue o crebro contm a .aculdade de perceber as a0es &ue est/o nele, mas, em &ual ele, a!inalN Eisnos no cerne da ambigMidade$ ?uem ou o que di" eu? 7ão satis!eito em !ustigar todos os que queriam redu"ir a sede do pensamento a um conjunto de imagens cerebrais, =anguilhem sublinhou o ridículo que havia em a!irmar, como !a"iam os teóricos da chamada inteligência ;arti!icial<, que havia uma analogia entre o c)rebro e o computador, e que ela autori"ava a !a"er da produção do pensamento o equivalente de um !luxo saído da robótica: ;' já surrada metá!ora do c)rebro computador ) justi!icada na medida em que se entendam por pensamento as operaç#es de lógica, o cálculo, o raciocínio $---&- -as, quer se trate de máquinas analógicas ou de lógica, uma coisa ) o cálculo ou o tratamento de dados de acordo com instruç#es, e outra ) a invenção de um teorema$ =alcular a trajetória de um !oguete depende do computador$ 9ormular a lei da atração universal ) uma reali"ação que não depende dele$ 7ão há invenção sem a consciência de um va"io lógico, sem tensão rumo a um possível, sem o risco de se enganar$< E =anguilhem acrescentou: ., voluntariamente que não tratarei de uma questão que, pela lógica, deveria levar a nos interrogarmos sobre a possibilidade de um dia vermos, na vitrine de uma livraria, a *utobiogra.ia de um computador, na !alta de sua *utocr-tica15 7o !undo, =anguilhem só !e" remeter aqueles a quem criticava > c)lebre !rase de =laude Pernard: ;6ma mão habilidosa sem a cabeça que a dirige ) um instrumento cego\ a cabeça, sem a mão que reali"a, ) impotente$< 4e não podemos assimilar o c)rebro a uma máquina, e se não podemos explicar o pensamento sem !a"er re!erência a uma subjetividade consciente, ) tamb)m impossível, no di"er de =anguilhem, redu"ir o !uncionamento mental a uma atividade química$ , uma evidência di"er que sem a atividade cerebral não haveria pensamento, mas ) uma inverdade a!irmar que o c)rebro produ" pensamento unicamente em !unção de sua atividade química: ;*or conseguinte, malgrado a existência e os e!eitos !ortuitos de alguns mediadores químicos, malgrado as perspectivas descortinadas por algumas descobertas da neuroendocrinologia, ainda não parece haver chegado o momento de anunciarmos, > maneira de =abanis, que o c)rebro secretará pensamento como o !ígado secreta bile$< 4em se preocupar com as brigas entre behavioristas e cognitivistas, entre neurobiologistas e !isicalistas, =anguilhem combateu em bloco, nessa con!erência, não as ciências e seus avanços, não os trabalhos modernos sobre os neur(nios, os genes ou a atividade cerebral, mas uma abordagem ecl)tica na qual se misturavam o comportamentalismo, o experimentalismo, a ciência da cognição, a inteligência arti!icial etc$ Em suma, a seu ver, essa psicologia que pretendia extrair seus modelos da ciência não passava de um instrumento de poder, uma biotecnologia do comportamento humano, que despojava o homem de sua subjetividade e procurava roubarlhe a liberdade de pensar$ *ara combater essa psicologia, =anguilhem apoiouse em 9reud$ -ostrou que o pioneiro vienense !ora o Anico cientista de sua )poca a teori"ar a hipótese da existência do psiquismo a partir da noção de aparelho psíquico$ 'ssim, entre /DCG, ano em que redigiu seu !ro4eto para uma psicologia cienti.ica, e /C/G, data em que elaborou sua metapsicologia, 9reud registrou o !racasso dos projetos de sua )poca que tinham levado a !a"er com que os processos psíquicos decorressem da organi"ação das c)lulas nervosas$ *or isso, mais do que nunca, distanciouse da id)ia de uma semelhança entre uma organi"ação tópica do inconsciente e uma anatomia do c)rebro$ 4e citei longamente essa con!erência de 5eorges =anguilhem, !oi porque ela me parece ilustrar de maneira exemplar a grande querela que há um s)culo divide os partidários da possível constituição de uma ciência da mente, na qual o mental seria calcado no neural, e os adeptos de uma autonomia dos processos psíquicos$
7o centro dessa disputa, o inconsciente !reudiano ) objeto de uma controv)rsia particular, na medida em que sua de!inição escapa >s categorias próprias dos dois campos$ 7ão só esse inconsciente não ) assimilável a um sistema neural, como tamb)m não ) integrável numa concepção cognitiva ou experimental da psicologia$ E, no entanto, não !a" parte do campo do oculto ou do irracional$ Em outras palavras, em relação >s outras de!iniç#es do inconsciente, ele emerge primeiramente de maneira negativa: não ) hereditário nem cerebral, nem automático, nem neural, nem cognitivo, nem meta!ísico, nem metapsíquico, nem simbólico etc$ -as, então, qual ) a sua nature"a, e por que, repetidamente, ) objeto de polêmicas acerbasN Essa con!erência !oi exemplar por outra ra"ão$ 8e !ato, ela mostrou que, quase sempre, são os estudiosos mais positivistas e mais apegados aos princípios da ciência pura e exata que elaboram as teorias mais extravagantes e mais irracionais sobre o c)rebro e o psiquismo, a partir do momento em que pretendem aplicar seus resultados > totalidade dos processos humanos$ ' busca da racionali"ação integral, que, no !undo, visa a dominar a !abricação do homem, não passa de uma nova versão do mito de *rometeu$ 7a era moderna, !oi -arL 4helleL quem lhe deu a mais bela expressão, num !amoso romance publicado em /D/F: ;ranRenstein ou o !rometeu moderno1 7o livro, ela conta a história de um jovem cientista, ictor 9ranenstein, que resolve !abricar um ser humano sem alma, montando pedaços de cadáveres apanhados em cemit)rios ou c&maras mortuárias$ 6ma ve" criado, entretanto, o monstro se humani"a e so!re por ser desprovido da centelha divina, a Anica que seria capa" de lhe permitir viver$ *or isso, pede a seu criador que produ"a para ele uma mulher > sua imagem$ 'o cabo de dramas terríveis, o monstro desaparece no deserto gelado do 'rtico, depois de matar o cientista$ =omo -arL 4helleL não dera nome > criatura, os leitores e críticos sucessivos con!undiramna com o próprio cientista$ E !oi assim que 9ranenstein, essa coisa inominável e trágica, encarnou um grande pesadelo da ra"ão ocidental$
$83o :á nen:u1a dóvida de que; nessa data; 7eorges Canguil:e1 :avia lido cuidadosa1ente o s das quais as pessoas se esfor2ava1 por o0ter o aval da ci5ncia- ?er ic:el v>ne1ent6; -e .ébat, n +*; *)D-& 9oi entre /DFT e /DDT, e sob a in!luência do evolucionismo darXiniano, que se a!irmou o projeto de estender o discurso da ciência ao conjunto dos !en(menos humanos$ 8aí a generali"ação de todos os vocábulos terminados em ismo, que supostamente con!erem legitimidade cientí!ica tanto aos saberes racionais quanto a doutrinas duvidosas, inspiradas na ciência$ =omo teologia leiga, o cienti!icismo acompanha incessantemente o discurso da ciência e a evolução das ciências na pretensão de resolver todos os problemas humanos por uma crença na determinação absoluta da capacidade que tem * =iência de resolvêlos$ Em outras palavras, o cienti!icismo ) uma religião tanto quanto as que essa crença pretende combater$ Ela ) uma ilusão da ciência, no sentido como 9reud de!ine a religião como uma ilusão$< Penmais do que a religião, entretanto, a ilusão cienti!icista pretende preencher com mitologias ou delírios todas as incerte"as necessárias ao desdobramento de uma investigação cientí!ica$ 4e o discurso cienti!icista ) capa" de se apropriar do c)rebro de 9ranenstein a ponto de !a"er dele o emblema de uma racionalidade moderna, não ) de surpreender que alguns dos melhores especialistas atuais da biologia cerebral possam cair na mesma armadilha e, por conseguinte, acabem denunciando a psicanálise como uma doutrina mitológica, literária ou xamanística$ =omo levar a s)rio, por exemplo, as declaraç#es de Kenri Uorn, um neurobiologista !rancês, quando a!irma que a psicanálise não passaria de um ;xamanismo a que !alta uma teoria generali"ação absoluta de uma psiquiatria biológica, pautada no primado da !armacologia e livre
do ;imperialismo do discurso psicanalítico< ou das ;mitologias !reudianas<, pro!essadas por um ;certo meio dos ca!)s da +ive 5auche sua visão do inconsciente e do papel deste no comportamento$ -onod, que vinha de uma austera !amília protestante, respondia a isso di"endo: Y4ou inteiramente c(nscio de minhas motivaç#es e inteiramente responsável por meus atos$ .odos eles são conscientes$S Exasperado, um dia eu lhe retruquei: YHacques, vamos di"er, muito simplesmente, que tudo o que 9reud disse se aplica a mim e que nada se aplica a você$S YExatamente, meu caro amigoS, respondeu ele$< =omo Edelman, o neurobiologista !rancês 'jam *rochiant" sublinha, por seu turno, e contrariamente ajean *ierre =hangeux, que não existe nenhuma contradição entre a ciência do c)rebro, a gen)tica e a doutrina psicanalítica: ;4e os genes de!inem nossa pertença > esp)cie e nossa pertença !ísica, eles não são os Anicos a determinar nossa personalidade de seres pensantes$ 1 c)rebro não ) um computador cuja codi!icação seja ditada pelo aparelho gen)tico$< -uito apegado > ciência mais evoluída de sua )poca, 9reud queria !a"er da psicologia urna ciência natural$ 9oi por isso que, num manuscrito inacabado, !ebrilmente redigido em #$5,’ ele !ormulou um certo nAmero de correlaç#es entre as estruturas cerebrais e o aparelho psíquico, tentando representar os processos psíquicos como um punhado de estados quantitativamente determinados por partículas materiais, ou ;neur(nios<$ Ele as categori"ou em três sistemas distintos: percepção Ineur(nios IpJ, memória Ineur(nios Y/SJ e consciência Ineur(nios oJ$ ?uanto > energia transmitida IquantidadeJ, ela era regida, no di"er de 9reud, por dois princípios B um de in)rcia e um de const&ncia B e provinha quer do mundo externo, veiculada pelos órgãos dos sentidos, quer do mundo interno Iisto ), do corpoJ$ ' ambição de 9reud, nessa )poca, era redu"ir a esse modelo neuro!isiológico a totalidade do !uncionamento psíquico normal ou patológico: o desejo, os estados alucinatórios, as !unç#es do eu, o mecanismo do sonho etc$ Essa necessidade de ;neurologi"ar< o aparelho psíquico equivalia, na verdade, como sublinhou Kenri E El/enberger,S a obedecer a uma representação cienti!icista da !isiologia e a !abricar, mais uma ve", uma ;mitologia cerebral<$ !reud se conscienti"ou disso e renunciou a tal projeto para construir uma teoria puramente psíquica do inconsciente$ 7o entanto, ainda que tenha a!irmado, em /C/G, que ;todas as tentativas de adivinhar uma locali"ação dos processos psíquicos e todos os es!orços de pensar nas representaç#es como embutidas nas c)lulas nervosas !racassaram radicalmente<, ele nunca abandonou a id)ia de que, um dia, essa
locali"ação pudesse ser demonstrada: ;'s de!iciências de nossa descrição do psiquismo<, escreveu em /C0T, ;decerto desapareceriam se já estiv)ssemos em condição de substituir os termos psicológicos por termos da !isiologia ou da química$< 8esde sua publicação póstuma, em /CGT, o !ro4eto tem sido comentado muitas ve"es e já !e" correr muita tinta$ *ara os !reudianos clássicos, esse manuscrito representa apenas uma etapa na construção de uma verdadeira teoria do inconsciente, libertada de qualquer substrato cerebral$ E, se 9reud rejeitou o texto, a ponto de nunca mais pedilo de volta a seu amigo ^ilhelm 9liess, isso decerto signi!ica que, mesmo abandonandoa, ele sempre !oi atormentado pela tentação de uma ;naturali"ação< da ciência do psiquismo$ *or isso, o !ro4eto !icou como uma esp)cie de !antasma invisível, atravessando sem cessar todos os escritos !reudianos$ *ara os adversários da psicanálise, a publicação desse manuscrito !oi um golpe de sorte$ Ela os autori"ou a a!irmar que 9reud abandonara de!initivamente o campo da ciência verdadeira Idita ;naturals teses !reudianas havia começado bem antes que se tornasse conhecido o conteAdo do !ro4eto1 ' historiogra!ia cientí!ica mostrou que, a rigor, !reud não !oi nem o inventor da palavra ;inconsciente< nem o primeiro a descobrir sua existência$008esde a 'ntigMidade as pessoas já se interrogavam sobre a id)ia de uma atividade psíquica empenhada em algo di!erente da consciência$ Entretanto, !oi 8escartes o primeiro a !ormular o princípio de um dualismo entre o corpo e a alma$ sso o levou a !a"er do cogito o lugar da ra"ão, em contraste com o universo da desra"ão$ 1 pensamento inconsciente !oi então domesticado, quer para ser anexado > ra"ão, quer para ser rechaçado para a loucura$ ' primeira psiquiatria din&mica apoiavase na id)ia de que a consciência era ameaçada por !orças desconhecidas, perigosas e destrutivas, locali"adas num inconsciente meta!ísico Iou subliminarJ que podia ser atingido pelo espiritismo, isto ), atrav)s da !ala de um m)dium capa" de se comunicar com os mortos, !a"endo as mesas girarem$ 9oi por esse prisma, explorado pelas terapias baseadas no magnetismo, que o inconsciente passou então a ser visto não como uma !orça oculta, proveniente do al)m, mas como uma dissociação da consciência$ 9oi então descrito em termos de subconsciência, supraconsciência ou automatismo Imental ou psicológicoJ, atingível atrav)s da hipnose I=harcotJ ou da sugestão IKippolLte PernheimJ, isto ), do sono ou da relação de in!luência$ 'dotado no !im do s)culo OO pela maioria das escolas de psicologia, assim como pelos psicoterapeutas, esse inconsciente explicava racionalmente todos os !en(menos de dupla consciência, sonambulismo e personalidades mAltiplas$ 9oi assim que houve um empenho em observar, descrever ou tratar os distArbios da identidade que se tradu"iam na coexistência, num mesmo sujeito, de diversas personalidades separadas entre si, e que podiam !a"êlo viver vidas mAltiplas$ 7a mesma )poca, as di!erentes teorias da hereditariedade, tomadas de empr)stimo do darXinismo e do evolucionismo, deram origem a uma concepção do inconsciente adaptada aos princípios da psicologia dos povos$ Esse inconsciente hereditário, coletivo e individual, era tido como moldado por traços ou estigmas que determinavam, num sujeito, sua pertença a uma raça, uma etnia, um arqu)tipo, ou ainda a uma patologia pensada em termos de degeneração$ Essa concepção ) encontrada em numerosos campos do saber do !im do s)culo OO, tanto nas teorias sexológicas de +ichard von Ura!!tEbing, que tratam as pervers#es sexuais como taras, quanto nas teses de =esare %ombroso sobre o criminoso nato, ou ainda nas de 5ustave %e Pon, que assimilam as multid#es a massas hist)ricas e nocivas, ou as de 5eorges acher de %apouge, que apregoam a necessidade da eugenia$
1 surgimento dessa teoria de um inconsciente hereditário !oi per!eitamente descrito por -ichel 9oucault em * vontade de saber12 =ontempor&nea do !im da crença no privil)gio social, ela cultivou o ideal burguês da ;raça boa< e se apoiou no antisemitismo, no nãoigualitarismo e no ódio >s massas e aos marginais para propor uma nova representação das relaç#es entre o corpo social, o corpo individual e o ;mental<, concebidos como entidades org&nicas e descritos em termos de norma e patologia$ Essa concepção levou a duas ideologias antag(nicas$ 6ma tomou a degeneração ao p) da letra e anunciou a perda da humanidade, mergulhada em seus instintos$ 8esembocou na eugenia e no genocídio$ =ontra o mal radical, o rem)dio tem que ser ainda mais radical: seleção, por um lado, para preservar a raça boa, e extermínio, por outro, para !a"er desaparecer a ruim$ ' segunda via !oi a do higienismo$ Ela acreditava na cura do homem pelo homem e, sendo assim, prop(s lutar contra as taras atrav)s da pro!ilaxia, da psicologia e da pedagogia$ Em síntese, colocou as ciências humanas a serviço da reeducação das almas e dos corpos$ 1pondose > id)ia de queda e decadência, desenvolveu a da redenção do ser humano pela ciência, pelo conhecimento, pela autoanálise e pela introspecção$ ' esse inconsciente hereditário corresponde um inconsciente cerebral, proveniente da !isiologia do re!lexo$ ' id)ia veio da descrição proposta pelos neuro!isiologistas para a atividade espinhal e tamb)m c)rebro espinhal, que indu" no homem mudanças cerebrais, independentemente da consciência e da vontade$ Essa concepção do inconsciente, organi"ada em torno da !unção maior da memória, achase amplamente presente no !ro4eto, assim como nos trabalhos de .h)odule +ibot e de Pergson$ Ela se apóia na id)ia de que o c)rebro pode servir de suporte a uma desquali!icação da !unção clássica da consciência$ 'trav)s de 4chelling, 7iet"sche e 4chopenhauer, tamb)m a !iloso!ia alemã empenhouse, durante todo o s)culo OO, em !orjar sua própria concepção do inconsciente$ En!ati"ando o aspecto noturno da alma, !e" brotar a id)ia moderna de que a consciência ) como que determinada por um outro lugar da psique: sua !ace pro!unda e tenebrosa$ 9oi a partir dessa concepção !ilosó!ica do inconsciente, !ortemente tingida de romantismo, que se desenrolaram todos os trabalhos da !isiologia e da psicologia experimental em que 9reud iria inspirarse: de Kerbart a ^undt, passando por Kelmholt" e 9echner$ 9reud reali"ou a síntese dessas di!erentes concepç#es do inconsciente, mas, ao !a"êlo, inventou uma nova concepção$ =om ele, o inconsciente já não ) um automatismo, nem um subconsciente, nem uma mitologia cerebral articulada a um modelo neuro!isiológico: ) um lugar desligado da consciência, povoado por imagens e paix#es e perpassado por discord&ncias$ 8e !ato, o inconsciente !reudiano ) um inconsciente psíquico, din&mico e a!etivo, organi"ado em diversas inst&ncias Io eu, o isso e o supereuJ$ 'l)m dessa de!inição, a grande inovação !reudiana consistiu num rompimento com a id)ia de que o homem seria um perp)tuo alienado$ 7esse sentido, 9reud separouse tanto do alienismo pineliano quanto dos herdeiros de -esmer$ @ que, se o sujeito !reudiano já não ) assimilável ao animal insensato tão temido por =outhon, ele tampouco ) o homem estranho a si mesmo, de!inido por *inel, cuja alma deveria ser cuidada pela aplicação de um tratamento moral$ 1 sujeito !reudiano ) um sujeito livre, dotado de ra"ão, mas cuja ra"ão vacila no interior de si mesma$ @ de sua !ala e seus atos, e não de sua consciência alienada, que pode surgir o hori"onte de sua própria cura$ Esse sujeito não ) nem o aut(mato dos psicólogos nem o indivíduo c)rebroespinhal dos !isiologistas, nem tampouco o son&mbulo dos hipnoti"adores nem o animal )tnico dos teóricos da raça e da hereditariedade$ @ um ser !alante, capa" de analisar a signi!icação de seus sonhos, em ve" de encarálos como o vestígio de uma memória gen)tica$0F 4em dAvida, ele recebe seus limites de uma determinação !isiológica, química ou biológica, mas tamb)m de um inconsciente concebido em termos de universalidade e singularidade$ 9reud soube dotar o inconsciente de uma capacidade de rememoração e recalcamento no momento mesmo
em que a neuro!isiologia lançava as bases de um materialismo do corpo, concreti"ando a morte das representaç#es da alma centradas na imagem de 8eus$ %evada por essa id)ia do inconsciente, a psicanálise p(de trans!ormarse, no s)culo OO, no emblema de todas as !ormas contempor&neas de explicação da subjetividade$ 8aí seu impacto sobre as outras ciências, daí seu diálogo permanente com a religião e a !iloso!ia$ 9oi justamente por ter colocado a subjetividade no cerne de seu dispositivo que 9reud veio a conceituar uma determinação IinconscienteJ que obriga o sujeito a não mais se ver como senhor do mundo, mas como uma consciência de si externa > espiral das causalidades mec&nicas$ 7esse sentido, a teoria !reudiana ) realmente herdeira do romantismo e de uma !iloso!ia da liberdade crítica, proveniente de Uant e do luminismo$ *ois ela ) a AnicaB e nisso tamb)m se op#e a todas as que provêm da !isiologia Iinconsciente cerebralJ, da biologia Iinconsciente hereditárioJ e da psicologia Iautomatismo mentalJ B a instaurar o primado de um sujeito habitado pela consci@ncia de seu pr6prio inconsciente, ou ainda pela consci@ncia de seu pr6prio desapossamento1 Em outras palavras, o sujeito !reudiano só ) possível por pensar na existência de seu inconsciente: no que ) pr6prio de seu inconsciente$ 8o mesmo modo, só ) livre porque concorda em aceitar o desa!io dessa liberdade restritiva e porque reconstrói sua signi!icação$ 'ssim, a psicanálise !oi a Anica doutrina psicológica do !im do s)culo xix a associar uma !iloso!ia da liberdade a uma teoria do psiquismo$ Ela !oi, de certo modo, um avanço da civili"ação contra a barbárie$ 'liás, !oi por isso que alcançou tamanho sucesso durante um s)culo nos países marcados pela cultura ocidental: na Europa, nos Estados 6nidos e na 'm)rica %atina$ ' despeito dos ataques dos quais tem sido objeto e malgrado a esclerose de suas instituiç#es, ela deveria ainda hoje, nessas condiç#es, ser capa" de dar uma resposta humanista > selvageria surda e mortí!era de uma sociedade depressiva que tende a redu"ir o homem a uma máquina desprovida de pensamento e de a!eto$ A “carta do e!uin%cio”
1 inconsciente !reudiano repousa num paradoxo: o sujeito ) livre, mas perdeu o domínio de sua interioridade e já não ) ;senhor em sua própria casa<, segundo a !órmula consagradaJ 9reud separa o sujeito das di!erentes alienaç#es a que o ligam as outras concepç#es da psicologia$ 8o mesmo modo, constrói uma teoria da sexualidade muito di!erente de todas as que !oram !ormuladas pelos cientistas do !im do s)culo OO$0 ' novidade, podemos descobrila ao ler a c)lebre ;carta do equinócio<, redigida em 0/ de setembro de /DCF, na qual 9reud explica as ra"#es por que renunciou > chamada teoria da ;sedução<: ;7ão acredito mais em minha neurotica I$$$J Eisme obrigado a !icar sossegado, permanecer na mediocridade, !a"er economia, ser atormentado por preocupaç#es$ I$$$J +ebeca, tire o vestido, você não ) mais a noiva$< ' palavra sedu0/o remete, primeiramente, > id)ia de uma cena sexual em que um sujeito, geralmente um adulto, usa de seu poder real ou imaginário para abusar de outro sujeito, redu"ido a uma posição passiva: uma criança ou uma mulher, na maioria das ve"es$ 'ssim, ela ) carregada do peso de um ato baseado na violência moral e !ísica exercida sobre terceiros: carrasco e vítima, senhor e escravo, dominador e dominado$ 9oi justamente da hipótese de uma alienação traumática decorrente de uma coação que 9reud partiu, ao elaborar, entre /DCG e /DCF, a !amosa teoria de que a neurose teria por origem um abuso sexual real$ Ela se apóia tanto numa realidade social quanto numa evidência clínica$ 7as !amílias, e >s ve"es at) na rua, as crianças !reqMentemente são vítimas de ultrajes por parte dos adultos$ ' lembrança dessas brutalidades ) tão dolorosa que todos pre!erem esquecêlas, não vêlas ou recalcálas$ 'o escutar hist)ricas do !im do s)culo que lhe con!iavam essas histórias, 9reud contentouse com o discurso delas e construiu sua primeira hipótese: a do recalcamento e da causalidade sexual da histeria$ 'chou que, por terem sido realmente sedu"idas, as hist)ricas eram a!etadas por distArbios neuróticos$ E, de repente, p(s se a descon!iar dos pais em geral, de Hacob 9reud em particular, e at) de si mesmo: não teria ele sentido desejos culpados em relação > sua !ilha -athildeN
9oi no contato com ^ilhelm 9liess que 9reud abandonou progressivamente sua teoria da sedução$ Ele sabia que nem todos os pais eram estupradores, mas, ao mesmo tempo, admitia que do equinócio<, que 9reud anunciou esse abandono\ as hist)ricas não estavam mentindo ao se di"erem vítimas de uma iniciativa de sedução$ =omo explicar essas duas verdades contraditóriasN 9reud empenhouse nisso, distanciandose das evidências$ *ercebeu duas coisas: primeiro, que, com bastante !reqMência, as mulheres inventavam, sem mentira nem simulação, os atentados em causa, e segundo que, mesmo quando o !ato havia realmente acontecido, ele não explicava a eclosão da neurose$ 9reud então substituiu a teoria da sedução pela da !antasia e, num mesmo movimento, resolveu o enigma das causas sexuais: elas eram !antasísticas, mesmo quando existia um trauma real, uma ve" que o real da !antasia não ) da mesma nature"a da realidade material$1 abandono da id)ia de trauma como causalidade Anica aliou se > adoção de um inconsciente psíquico$ =om e!eito, a teoria !reudiana da sexualidade pressup#e a existência primária de uma atividade sexual pulsional e !antasística$ Ela repousa na id)ia de que o sujeito ), ao mesmo tempo, livre por sua sexualidade e coagido por ela$ E, acima de tudo, ela rejeita o projeto ilusório de que seja possível nos livrarmos disso como se se tratasse de um erro ou do e!eito de um trauma$ -unido dessa teoria, 9reud sempre se mostrou !ero" para com os que, como =arl 5ustav Hung, abandonavam a teoria sexual em prol da ;torrente de lama negra do ocultismo<: ;7ão espero um sucesso imediato<, escreveu ele a Ernest Hones, ;mas uma batalha incessante$ ?ualquer um que prometa > humanidade livrála das provaç#es do sexo será acolhido como herói e hão de deixálo !alar seja qual !or a asneira que ele diga$< 'ssim, !a"endo da sexualidade e do inconsciente a base da experiência subjetiva da liberdade, !reud rompeu tanto com a religião do testemunho ou da con!issão quanto com o ideal cienti!icista da sexologia: nem caça >s bruxas, nem classi!icação imperiosa, nem !ascínio por um erotismo qualquer de ba"ar, próprio do cienti!icismo ou do puritanismo religioso$ *ara ele, não se tratava de julgar o sexo nem de tornálo transparente ou espetacular, mas de deixar que ele se exprimisse da maneira mais normal e mais verdadeira$ 7ada mais estranho > concepção !reudiana do que a id)ia de que a sexualidade seria naturalmente malsã$ 'ssim, 9reud !oi o inventor de uma ciência da subjetividade que caminhou de mãos dadas com a instauração, nas sociedades ocidentais, das id)ias de vida privada e de sujeito do direito$ Em mat)ria de sexualidade, o escIndalo !reudiano consistiu, portanto, em inverter a ordem da normatividade e tomar a negatividade do homem como sua nature"a positiva: ;1 esc&ndalo<, escreveu -ichel 9oucault, ;não reside em o amor ser de nature"a ou de origem sexual, o que !ora dito antes de 9reud, mas em que, atrav)s da psicanálise, o amor, as relaç#es sociais e as !ormas de integração interhumanas aparecem como o elemento negativo da sexualidade na medida em que ela ) a positividade natural do homem$ teoria da sedução, três tendências desenharamse nos !reudianos e nos anti!reudianos$ ' primeira, dos ortodoxos do !reudismo, desinteressouse das seduç#es reais em prol de uma supervalori"ação da !antasia$ Ela levou a que eles nunca mais se ocupassem, na análise, dos abusos reais so!ridos pelos pacientes em sua in!&ncia ou em sua vida atual$ ' segunda, representada, por um lado, pelos adeptos da sexologia libertária, e por outro, pelos puritanos, tende a negar a existência da !antasia e a redu"ir
qualquer !orma de distArbio psíquico a um trauma realmente vivido$ *ara os libertários, a prática real do sexo ) um imperativo: ) necessária > expansão da saAde psíquica$ =onseqMentemente, o abuso ) uma pedagogia do go"o$ *ara os puritanos, ao contrário, toda a sexualidade redu"se a um ato abusivo$
$ic:el 1 considera que a psicanálise foi o instru1ento de u1a nova gest3o das rela2Ees incestuosas na fa1Flia 0urguesa- ?er .Os anor1ais6; in /esumo do0 cursos do 1oll2ge de rance, Rio de Ganeiro; Gorge Ha:ar; *))- io So0re a fa1Flia co1o 1odelo universal; ver a terceira parte deste livro; capFtulo *-& ?uanto > terceira tendência, a Anica con!orme ao pensamento psicanalítico e ao simples bom senso, consiste em aceitar, ao mesmo tempo, a existência da !antasia e a do trauma ligado ao abuso sexual$ 7o plano clínico, um psicanalista deve ser capa", portanto, de discernir essas duas ordens de realidade, !reqMentemente superpostas, e de compreender que as violências psíquicas ou as torturas morais podem ser sentidas como tão atro"es qua*i Y abusos sexuais$< 8ito de outra maneira, a negação da ordem da !and tra" o risco de provocar uma !erida tão mutilante num sujeito quanto a negação de um abuso real$ amos mais longe$ 4e continuarmos tributários da teoria da sedução, correremos o risco de considerar que um trauma ) responsável, em si mesmo, por uma destruição de!initiva para quem o so!re$ 7esse sentido, o culto das vítimas ) equivalente ao determinismo biológico que dá a entender que as crianças maltratadas por seu meio, ou violentadas em circunst&ncias extremas Iguerra, terrorismo etc$J, serão !orçosamente delinqMentes, ou se queixarão eternamente de uma !erida impossível de cicatri"ar$ 1ra, !oi contra esse preconceito tena" que 9reud se ergueu ao renunciar > sua teoria$ 7ada jamais ) decidido de antemão: a in!elicidade não está inscrita nos genes nem nos neur(nios$ =ada sujeito tem uma história singular, e esta o !a" reagir di!erentemente de outro em situaç#es idênticas$ *or conseguinte, um trauma real não ) em si mais mortí!ero do que um grave so!rimento psíquico$ (Observe3se !ue os )leinianos, sem negar a e4ist&ncia de abusos reais, tenderam a considerar !ue as sedu"5es imagin+rias de tipo s+dico podiam ser muito mais graves do !ue os traumas reais# 6uanto a 7andor erenczi e seus herdeiros, eles tornaram a valorizar, opondo3se aos ortodo4os da fantasia e sem negar a ordem fantasística, a idéia da importncia do trauma vivido#8
9oi justamente por associar uma teoria não genital da sexualidade a uma concepção não cerebral no inconsciente, e por distinguir o trauma da !antasia, para pensálos em sua di!erença, que a psicanálise !oi considerada um pansexualismo durante toda a primeira metade do s)culo OO$ 4eus adversários temiam seu impacto no corpo social e a acusavam de introdu"ir a desordem moral nas !amílias$ 4e, nos países latinos, ela era tratada como ciência bárbara, nascida da decadência ;teut(nica<, e se, nos países nórdicos, era tida como o sinal de uma degeneração ;latina<, nos países puritanos, sobretudo no =anadá e nos Estados 6nidos, ela !oi designada como uma doutrina sat&nica$ Em outras palavras, o ódio antisexual suscitado pela psicanálise !oi, ao mesmo tempo, o sintoma de seu crescente sucesso e o sinal da emancipação sexual e psíquica de que ela era a promessa$ ' essa acusação de pansexualismo alguns acrescentaram a de pansimbolismo: na verdade, censuraram 9reud por haver resgatado uma concepção espiritualista do inconsciente, pautada numa arte divinatória B a deci!ração dos símbolos e dos sonhos B muito distante da racionalidade cientí!ica$ reud est+ morto na América
-al encerrada a 4egunda 5uerra -undial, quando passava por um verdadeiro triun!o nos Estados 6nidos, uma renovação na 9rança e ganhava pleno impulso na 'm)rica %atina, a psicanálise continuou a ser atacada$
' tese do pansexualismo caiu em desuso > medida que se deram a trans!ormação das !amílias e a emancipação das mulheres$ -as, com o sucesso dos psicotrópicos e os progressos alcançados pela medicina, tornouse possível questionar o status do inconsciente !reudiano$ Em conseqMência disso, a!irmouse uma nova mitologia cerebral que tendia a demonstrar que a psicanálise não era uma ciência, mas um processo de introspecção literária, ou uma variação da antiga deci!ração dos sonhos$ Essa mitologia assumiu o nome de inconsciente cognitivo$S *ara seus adeptos, tratavase de restabelecer a id)ia de uma possível adequação entre o c)rebro e o pensamento, !undamentada na analogia entre o !uncionamento cerebral e o computador$ 4urgida nos Estados 6nidos por volta de /CGT, a ;ci)ncia< cogniriva atribuiuse prontamente a tare!a de descrever as disposiç#es e capacidades da mente humana IcogniçãoJ, tais como a linguagem, a percepção, o raciocínio, a coordenação motora e o planejamento$ Paseandose numa concepção da mente segundo a qual o mental e o neural seriam duas !aces de um mesmo !en(meno, essa ;ciência< apoiouse tamb)m eni várias disciplinas que estavam em plena expansão: a neurobiologia ou estudo dos mediadores químicos, que explicava o comportamento humano at) o nível mais !undamental do organismo humano, isto ), o gene\ a neuro!isiologia, que se interessava pela signi!icação !uncional das propriedades do c)rebro\ a inteligência arti!icial, que estudava o raciocínio considerando o computador como modelo do !uncionamento cerebral\ e a neuropsicologia, ou descrição dos !en(menos patológicos ligados ao !uncionamento da cognição$ .odas essas disciplinas visavam e continuam visando at) hoje a dar conta, dc maneira universal, do !uncionamento da atividade mental do homem a partir de urna caracteri"ação do sistema nervoso como sistema !ísicoBquímico$
1 objetivo primordial dessa psicologia cognitiva !oi comimbater primemramente o behaviorismo, mas sobretudo a psicanálise, considerada um verdadeiro !lagelo: ;Kavia tamb)m a embriague" com a psicanálise<, escreveu KoXard 5ardner$ ;Embora as intuiç#es de 9reud intrigassem muitos pesquisadores, eles eram de opinião que uma disciplina cientí!ica não podia !undamentarse em entrevistas clínicas e histórias pessoais, construídas retrospectívamente\ al)m disso, surpreendiamse com o !ato de que uma disciplina pretensamente cientí!ica não desse margem alguma > re!utação$ Era di!ícil situar processos da mente humana, num campo cientí!ico de estudo, entre, de um lado, o credo puro e simples do esta blishment behaviorista, e de outro, a desen!reada propensão dos !reudianos a conjecturar$<
$O0servese que Gean Piaget $*)D*)J&; pioneiro da psicologia cognitiva; interessouse e=clusiva1ente pelo caráter universal do desenvolvi1ento 1ental e da evolu23o das aptidEes intelectuais-& $O 0e:avioris1o > u1a corrente da psicologia que se difundiu nos !stados Unidos at> *)(J e que ta10>1 constituiu u1a grave 0arreira K psicanálise naquele paFs; antes de desnioroi=ar- Apótase na id>ia de que o co1porta1ento :u1ano o0edece ao princFpio do estF1uloresposta $LR&- Tratase; portanto; de u1a varia23o do co1portarnentalis1o; e10ora a c:a1ada psicologia cognitiva prcssupon:a; al>1 disso; u1a 1odelaini da atividade Interna- uitas ve4es; classificase o :e:avioris1o na psicologia cognitiva- "á u1a certa confus3o essa apreens3o das diferentes correntes-& 8e !ato, há uma di!erença importante entre a psicologia cognitiva, que se pretende cientí!ica em sua intenção de !a"er com que dependa do c)rebro não apenas a produção do pensamento, mas a organi"ação psíquica consciente e inconsciente, e as disciplinas cientí!icas Iou neurociênciasJ em que ela se apóia$ a 'lan .uring, o inventor genial da máquina que leva seu nome, que devemos a id)ia de que o que a mente !a" pode ser executado da mesma maneira por uma máquina Io computadorJ$ 1ra, como vimos, um bom nAmero de neurobiologistas rejeita essa hipótese aberrante, a qual, no entanto, ) a própria essência da nova mitologia cerebral própria dos cognitivistas: ;6m dia<, escreveu 5erald Edelman, ;os praticantes em maior evidência
na psicologia cognitiva e os mais arrogantes neurobiologistas empíricos compreenderão, !inalmente, que !oram vítimas, sem saber, de uma !raude intelectual$< 'qui estão alguns exemplos, dentre centenas de outros, das chamadas análises ;cientí!icas< propostas pelos adeptos do cognitivismo: 7uma comunicação de /CCV, que retomava parcialmente as teses de seu livro, o antropólogo norteamericano %aXrence +irsch!eld tentou resolver um suposto enigma: saber em virtude de que processos cognitivos as crianças norteamericanas da ;raça< branca internali"am, hoje em dia, a chamada regra da ;gota de sangue<, muito embora a noção de raça tenha sido banida desde /CGTD de todas as ciências naturais, humanas e sociais$ 6niversal mente compartilhada, essa regra correlaciona a id)ia imaginária de raça com a mani!estação de uma pura di!erença biológica: a cor da pele$ 'ssim, ela perpetua a crença em que a ;raça< seria um estigma inscrito no corpo sob a !orma de uma variação cut&nea$ *or conseguinte, o sangue negro presente numa criança branca nascida de um casamento misto tornálaia portadora, automaticamente, do traço invisível de uma negritude que, em seguida, ela poderia transmitir > sua descendência, gerando !ilhos de ;raça< negra$ Kirsch!eld distinguiu duas interpretaç#es da !amosa regra$ ' primeira ) ;categoria/< e se apóia numa concepção racial, e portanto, racista, do gênero humano\ a segunda ) ;biológica< e repousa na id)ia cientí!ica de que a esp)cie humana comp#ese não de raças, mas de grupos humanos !isicamente di!erentes entre si Ios negros, os brancos, os asiáticos etc$J$ -unido dessa interpretação e de uma bateria de testes, +irsch!eld dividiu então seus interlocutores Ibrancos e norteamericanosJ em três grupos: crianças de F anos, crianças de // anos e adultos$ 'presentou a cada grupo duas imagens, uma das quais mostrava casais ;uniraciais<, enquanto a outra exibia casais ;inter raciais<, ora compostos de um negro e uma branca, ora de um branco e uma negra$ nterrogados sobre a descendência desses casais, os interlocutores responderam, qualquer que !osse sua idade, que os !ilhos nascidos dos casais uniraciais pertenceriam !orçosa mente > mesma ;raça< dos pais e teriam os mesmos traços !ísicos de um e do outro$ nversamente, o questionário sobre os casais interraciais !orneceu respostas divergentes$ ncapa"es de se pronunciar sobre as semelhanças !ísicas, as crianças de > anos a!irmaram, contudo, em sua maioria, que o !ruto de um casal misto pertenceria, !orçosa mente, > mesma ;raça< da mãe$ 'o contrário, as crianças de // anos esperaram que esse mesmo rebento se assemelhasse !isicamente ao genitor negro Ipai ou mãeJ, por)m sem pertencer a uma raça precisa$ ?uanto aos adultos, eles acharam que todo !ilho nascido de um casal inter racial seria de raça negra, mesmo que se parecesse com seu genitor branco$ ' partir dessa experiência Kirsch!eld concluiu que a adoção da versão ;categorial< IracistaJ da regra da gota de sangue decorre de um processo sui generis, que se imp#e por si só > medida que a criança cresce e se trans!orma num adulto$ Em outras palavras, em ve" de se perguntar por que as crianças de > anos sempre privilegiam o poder materno, em detrimento da aparência !ísica, e por que, ao contrário, as crianças de // anos privilegiam o equilíbrio entre os dois pólos Imaterno e paternoJ, em detrimento da pertença racial, e, !inalmente, em ve" de se es!orçar por compreender porque os adultos brancos norteamericanos assimilam uma di!erença !isica a uma raça, Kirsch!eld contentase em a!irmar, com a ajuda de uma bateria de testes que não provam nada, que a percepção da raça seria um elemento natural da cognição humana$ *or conseguinte, a atitude racista seria uma estrutura imutável e universal, da qual decorreriam as escolhas políticas e culturais dos indivíduos$ 7ão ) de surpreender, portanto, que o c)lebre romance de 9annL Kurst,C magens da vida, no qual se
inspirou essa experiência, seja mais pertinente do que o jargão a!etado de Kirsch!eld para interpretar a signi!icação pro!unda do grande mito norteamericano da gota de sangue$ %onge de todas as pretensas experimentaç#es sobre o sentimento inato ou adquirido da raça, o livro narra a vida trágica de uma mulher branca, inconscientemente submetida > angAstia da poluição biológica, e que opta pela esterili"ação como solução para sua !antasia identitária para não ter que en!rentar o risco de transmitir > sua descendência os estigmas invisíveis da ;raça< odiada$ ?uanto > questão de por que uma crença perdura depois de ter sido invalidada pela ciência, hão de me permitir que eu não me detenha nisso$ 4e %aXrence Kirsch!eld aplica a ciência cognitiva ao campo da antropologia, KoXard 5ardner, o demolidor norteamericano da psicanálise, recorre > mesma doutrina para inventar uma pretensa ;ciência da excepcionalidade<$ 7um de seus estudos, publicado em /CCF, W ele tenciona explicar a gênese do talento em quatro grandes ;personalidades<, -o"art, 9reud, 5andhi e irginia ^ool!, construindo uma tipologia do comportamento e do caráter que diríamos haver saído diretamente de uma mistura de astrologia com psicologia das massas$ 'ssim, -o"art seria o protótipo do -estre, pois teria sabido, graças a suas !aculdades mentais, adquirir o ;domínio per!eito dos gêneros de sua )poca<\ 9reud seria o<=onstrutor-odelo< Iou =-J, pois terseia bene!iciado, atrav)s do amor de seus pais, de ;c(modas condiç#es de trabalho<\ e 5andhi seria o típico =arismático, pois teria sabido in!luenciar os que resistiam ao paci!ismo e convertêlos a suas id)ias$ *or Altimo, irginia ^ool! seria a melhor encarnação do ntrospectivo, pois, tendo so!rido sevícias na in!&ncia, teria sabido voltar os olhos para dentro de si mesma a !im de compreender o gênero humano$ 'ssim, com nAmeros comprobatórios e multiplicando toda sorte de esquemas, grá!icos e medidas, 5ardner constrói, com a máxima seriedade do mundo, sua psicologia dos per!is típicos a partir da qual imagina explicar os destinos excepcionais contrastandoos com os destinos comuns$ 1 que equivale a di"er que a ;ciência< de que se trata não tem nenhuma relação com o procedimento cientí!ico$ *or seu turno, =hristopher 9rith, um pesquisador inglês e pro!essor de neuropsicologia, prop#e explicar a gênese da esqui"o!renia< mostrando que esta seria ;uma alteração dos processos implicados na iniciação da ação<: uma motricidade !alha, ligada de algum modo a uma de!iciência no controle central IcerebralJ da comunicação Acentral monitorings"stemF1 =onhecida desde a noite dos tempos, mas descrita em /C// por Pleuler, essa !orma de loucura caracteri"ase pela incoerência do pensamento, da a!etividade e da ação Iou clivagemF, > qual se somam a atividade delirante e o ensimesmamento$ .odos esses sintomas reAnemse numa s-ndrome de in.lu@ncia, que leva o paciente a acreditar que seus pensamentos e seus atos são dominados por !orças demoníacas, externas a ele mesmo$ 4egundo 9rith, a esqui"o!renia nãó passaria, ao contrário, de uma !alta de ;mentali"ação<, indu"ida por processos !ísicoquímicos de!icientes e não relacionada a uma organi"ação delirante, mas, ainda assim, signi!icativa da realidade psíquica$ 1s adeptos dessas teses, que !lorescem nos laboratórios da pesquisa cientí!ica contempor&nea, parecem ignorar a !amosa história do louco que sai do manic(mio puxando um !unil amarrado num barbante$ 'o vigia simpático que lhe pergunta como vai seu cachorro, ele responde: ;1ra, não ) um cachorro, ) um !unilZ< 'lguns metros adiante, uma ve" ultrapassados os limites do hospital, ele se vira para o objeto e o interpela: ;7ós o tapeamos direitinho, não !oi, -ir"aN< .ouas essas teorias têm como denominador comum o !ato de !avorecerem uma visão reacionária e niilista do gênero humano$ E realmente inAtil combater o racismo, uma ve" que se trata de uma predisposição inata, inscrita nos neur(nios$ @ inAtil investigar a signi!icação da história singular de um sujeito genial, talentoso ou comum B, se ela decorre da necessidade$ , inAtil, en!im, nos preocuparmos com a signi!icação do discurso dos doentes mentais, se o sujeito a!etado pela loucura ) apenas um de!iciente cognitivo: para tratá lo, não bastaria situar seus sintomas na categoria mais apropriada do :)e, em seguida, administrarlhe os neurol)pticos correspondentesN ?uando muito, podemos tentar, com a ajuda de diversas injunç#es, convencêlo a parar de raciocinar mal$
Embora não haja uma ligação direta entre o desenvolvimento das ciências cognitivas e o desmantelamento dos quatro grandes modelos da psiquiatria din&mica pelo :), !oi em nome dos mesmos pressupostos que se e!etuou, tanto de um lado quanto do outro e durante o mesmo período, a grande operação de limpe"a que visou a erradicar da clínica e da re!lexão universitária e m)dica o conjunto das teorias da subjetividade$ E entre elas, a mais visada, evidentemente, !oi a psicanálise, na medida em que a concepção !reudiana do inconsciente era !undamentalmente incompatível com a nova mitologia cerebral$ 7esse aspecto, existe uma di!erença considerável entre a situação norteamericana da psicanálise e a situação !rancesa$ 4e a psicanálise p(de ser salva do na"ismo graças > emigração maciça dos !reudianos europeus para o continente americano entre /C2T e /C3T, isso se deu ao preço de uma trans!ormação radical de seus ideais, sua prática e sua teoria$ 8esde o começo do s)culo, ela !oi acolhida como uma teologia da expansão individual: um corpo são numa alma sã$ -uito pragmáticos, os terapeutas norteamericanos apoderaramse com ardor das id)ias !reudianas$ -as logo procuraram medir a energia sexual, provar a e!icácia dos tratamentos, multiplicando as estatísticas, e !a"er pesquisas para saber se os conceitos eram empiricamente aplicáveis aos problemas concretos dos indivíduos$ 7essas condiç#es, a psicanálise tornouse, do outro lado do 'tl&ntico, consideradas todas as tendências, o instrumento de uma adaptação do homem a uma utopia da !elicidade$ mp(sse muito menos por seu sistema de pensamento ou pelos questionamentos !ilosó!icos de que era portadora do que por sua capacidade de o!erecer uma solução imediata para a moral sexual da sociedade liberal e puritana$ 5raças a ela, o homem culpado deixou de !icar condenado ao in!erno de suas paix#es, tornandose passível de se libertar delas\ graças > psicanálise, ele não mais seria coagido por uma sexualidade diabólica, mas poderia desvincularse dela$ 1ra, como já sublinhei, nada ) mais alheio ao pensamento !reudiano do que o ideal higienista que pressup#e que a sexualidade ) malsã e que o indivíduo normal deve con!essála para apagar de sua mente o vestígio de um pecado original$ 9rit" ^ittels, discípulo vienense de 9reud que se naturali"ou norteamericano, dedicou a esse tema, em suas )em6rias, um capítulo de grande lucide": ;1 solo em que a psicanálise brotou e se desenvolveu !oi destruído por um s)culo$ 4eu !uturo depende inteiramente da 'm)rica, o que signi!ica que ou não haverá psicanálise no !uturo, ou ela terá que prosperar na 'm)rica $---&- ?ue me seja permitido, portanto, expressar alguns temores a respeito desse !uturo$ 1 magní!ico espírito cientí!ico da 'm)rica tem se dedicado, at) aqui, >s dimens#es, > mensuração e > pesagem, aos nAmeros e >s estatísticas $---&- 1s norteamericanos podem compreender conceber/0 como tais os mais altos edi!ícios, os mais longos aquedutos, as !endas mais pro!undas $---&- 8esejam ter os quadros mais caros nos maiores museus ou nos palácios dos homens mais ricos$ 4ão menos quali!icados para abordar cienti!icamente o mundo irracional da alma, seja porque o rejeitam como não sendo cientí!ico, seja porque o aceitam sob a !orma de doutrinas pseudocientí!icas tipicamente norteamericanas, como a Christian :cience ou o buchmanismo,S2 ou, mais para o oeste, como as doutrinas evang)licas que brotam dos lábios de sacerdotisas de mantos bran8epois de servir de cimento, durante cerca de trinta anos, para a elaboração da nosologia psiquiátrica, a psicanálise !oi !inalmente rejeitada: porventura os psicotrópicos e os outros modelos explicativos do psiquismo, baseados no :) 3 ou em novas mitologias cerebrais, não tra"iam soluç#es terapêuticas mais rápidas para as !amosas ;desordens< que encerravam o sujeito numa sintomatologia comportamentalN 9oi assim que, como observou muito bem o historiador 7athan Kale, os partidários do anti!reudismo norte americano dos anos de /CFTCT recorreram, em oposição > psicanálise, aos mesmos meios que os entusiásticos !reudianos do início do s)culo$S .amb)m eles propuseram avaliaç#es, provas e levantamentos da e!icácia: em suma, todo um arsenal experimentalista, inadequado para dar conta da realidade da prática e da teoria psicanalíticas$ =onsciente desses desvios, 9reud expressou sua hostilidade, em diversas ocasi#es, sob a !orma de um anti americanismo bastante primário: ;Esses primitivos<, declarou em /C0D, ;têm pouco interesse numa ciência que não pode ser diretamente convertida numa prática$ 1 que há de pior no modo de agir norteamericano ) sua chamada largue"a de hori"ontes, graças > qual eles chegam a ponto de se sentirem magn&nimos e superiores a nós, europeus de visão estreita I$$$J$ =ertamente, o norteamericano e a psicanálise são coisas que
combinam tão pouco que !a"em lembrar a comparação de 5rabbe: ) como se um corvo vestisse uma camisa branca$< ' atitude mais representativa da cru"ada cienti!icista de hoje ) a de 'dol! 5rMnbaum$ -)dico de renome, !ilóso!o e, posteriormente, pro!essor de psiquiatria, especiali"ouse no anti!reudismo por volta de /CFT$ Em seu livro de /CD3, =s .undamentos da psicana’lise, que teve enorme repercussão al)m'tl&ntico, retomou o argumento clássico dos adeptos da mitologia cerebral criticando 9reud por haver abandonado seu !ro4eto e renunciado a !a"er da psicanálise uma ciência natural$ *ara corroborar sua argumentação, 5rMnbaum atacou as teses de três !ilóso!os que, segundo ele, não haviam entendido nada do processo !reudiano: Uarl *opper, *aul +icoeur e HMrgen Kabermas$S 7o primeiro censurou a a!irmação de que a psicanálise seria ;irre!utável< em termos da ciência, jamais podendo ser submetida a testes de re!utabilidade como as outras ciências naturais$ 7o segundo criticou uma atitude err(nea em relação a 9reud$ ?uerendo !a"er da psicanálise uma ciência, +icoeur não teria compreendido que ela sempre continuaria a ser uma ;hermenêutica das pro!unde"as< associada a um m)todo de autore!lexão$ *or Altimo, 5rMnbaum acusou o terceiro de haver trans!ormado a psicanálise numa hermenêutica desvinculada de qualquer esteio experimental$ A*dol. UrDnbaum, Les ;ondements de la ps"chanal"se ALos *ngeles, #$F, !aris, !H;, #$$D1 = autor publicou, posreriormente a esse livro, uma +exposi0/o na &ual respondeu Ws cr-ticas &ue lhe .oram dirigidas1 Essa exposi0/o .oi publicada em .ranc@s antes do livro de #$, sob o t-tulo de La ;s"chanal"se W l’preuve, !aris, Bd1 e l’Eclat, #$$G1F Em suma, 5rMnbaum voltouse !uriosamente contra um discurso !ilosó!ico I*opper, +icoeur e KabermasJ que tivera a preocupação ora de criticar as ambivalências do cienti!icismo !reudiano, ora de valori"ar um modelo que excluía o sujeito do campo da ciência$ =omo já sublinhei, 9reud sempre teve a tentação, embora renunciasse a ela a partir de /DCV, de !a"er da psicanálise uma ciência natural em virtude da qual o inconsciente seria um puro produto do !uncionamento cerebral$ 1 !ato de haver abandonado esse projeto, embora continuasse a sonhar com ele, não signi!ica, evidentemente, que se recusasse a !a"er da psicanálise uma disciplina cientí!ica$ E !oi justamente por essa ra"ão, aliás, que 9reud adotou perante as mitologias cerebrais uma atitude crítica muito mais cientí!ica que a dos cientistas$S 1pondose a esse discurso !ilosó!ico, portanto, 5rMnbaum alegou que o sonho !reudiano devia ser tomado ao p) da letra$ -as, disse ele em essência, já que 9reud se atrevera a abandonar a verdadeira ciência antes mesmo de construir seu sistema de pensamento, a totalidade de sua conceituação deveria ser abandonada em ra"ão de sua não cienti!icidade$ 4eguiuse então uma demolição em regra de todas as hipóteses da psicanálise: seu m)todo clínico não passaria de uma !raude apoiada num e!eito placebo\ sua construção metapsicológica deixaria transparecer um vasto programa de totalitarismo interpretativo baseado na atribuição de uma signi!icação arbitrária a atos ou pensamentos\ por !im, suas brigas entre escolas não seriam outra coisa senão a expressão de !anatismos de igrejinhas desprovidos de validade intelectual\ 5rMnbaum, aliás, atacou tanto a 9reud quanto a seus sucessores I^innicott ou UohutJ, acusados, tal como seu mestre, de serem pseudocientistas$ 7a verdade, esse m)dico explorou tendenciosamente as pesquisas de avaliação da psicanálise reali"adas nos Estados 6nidos a partir de #$521 .ais pesquisas, como vimos,0T não permitem decidir se a psicanálise ) superior >s outras psicoterapias$ -as !ornecem a prova de que os tratamentos psíquicos, seja qual !or a tendência considerada, são de grande e!icácia IDT] de casos de ;sucesso
tomado ao p) da letra o dito do paciente e acreditado nesse episódio in!antil, que talve" nunca houvesse existido$ Em seguida, recriminou 9reud por estabelecer uma relação de causa e e!eito entre o medo dos ratos e a neurose obsessiva$ Em suma, acusouo de inventar um sistema de interpretação que não correspondia a nenhuma realidade$ *oderíamos, naturalmente, opor a 5rMnbaum um outro argumento, extraído de outra análise !reudiana, a do Komem dos %obos, cujo nome verdadeiro era 4erguei =onstantinovitch *aneje!!$ 7o decorrer dessa análise, 9reud reconstruiu uma cena primária, apoiandose num sonho de seu paciente$ 'os /D meses de idade, 4erguei teria visto os pais, ajoelhados em lençóis de cama brancos, entregarse por três ve"es ao coito a tergo1 nterrogado muitos anos depois, *aneje!! declarou que essa cena certamente nunca havia acontecido, uma ve" que, na +Assia, os !ilhos não dormiam no quarto dos pais$ -as acrescentou prontamente que a cena primária reconstruída por 9reud revestirase, para ele, de imenso valor de verdade$ *or !im, sublinhou que a psicanálise !ora o primeiro e Anico tratamento, após muitas passagens por clínicas, a aliviálo de suas angAstias e dar sentido > sua vida$ 4e esse exemplo mostra que 9reud, na ocasião, p(de construir uma cena imaginária para permitir que seu paciente tivesse acesso > signi!icação de sua história, um outro exemplo atesta que lhe sucedeu imaginar uma cena que havia realmente existido$ *or volta de /C0G, logo no início de sua análise, -arie Pona parte contou a 9reud um sonho em que se via em seu berço assistindo a cenas de coito$ R guisa de interpretação, 9reud a!irmou em tom peremptório que ela havia não apenas ouvido essas cenas, como a maioria das crianças que dormem no quarto dos pais, mas que as vira em plena iuz do dia1 .endo um caráter muito di!erente do de 4erguei *aneje!!, -arie Ponaparte rejeitou essa a!irmação e protestou que nunca tivera mãe$ 9reud se manteve !irme e objetou com a presença da babá$ *reocupada com provas experimentais, a princesa resolveu então interrogar o meio irmão de seu pai, que cuidava dos cavalos na casa de sua in!&ncia$ 8e tanto evocar diante dele a elevada import&ncia cientí!ica da psicanálise, ela o !e" con!essar sua antiga ligação com a babá$ E o velho contoulhe como, no passado, !i"era amor em pleno dia diante do berço de -arie$$$ Ela realmente assistira, portanto, a cenas de !elação, coito e cunilíngua$ Esses relatos clínicos indicam com clare"a a separação que 9reud !a"ia entre saber e verdade$ =omo 4ócrates, ele atuali"ou a id)ia de que ) no diálogo que o sujeito descobre o que está recalcado: a cena primária, tal como situada na origem de sua vida e da di!erença sexual$ *ouco importa, portanto, que essa cena seja inventada ou não, uma ve" que ela enuncia a verdade de uma estrutura original que coloca o homem !rente a seu destino e > trag)dia de seu desejo$ amos mais longe: essa cena extrai sua !orça signi!icante do !ato de ser construída$ 1ra, ) precisamente essa disjunção, apesar de veri!icável nos relatos de análise e nos depoimentos dos pacientes, que ) inadmissível para os adeptos do cienti!icismo, que sempre !a"em o intelecto coincidir com a coisa, e o conhecimento com a verdade$ *elas mesmas ra"#es, aliás, eles concebem o comportamento humano como um pattern e o c)rebro como produtor do cogito1
'o !a"êlo, cometem um erro cientí!ico$ =om e!eito, tomam a experimentação como prova Anica de uma verdade subjetiva, sem jamais perceber a di!erença entre as ciências da nature"a e as ciências do homem$
@ evidente que os biólogos ou os m)dicos não têm que !a"er intervir em seu trabalho a opinião do gene, do átomo ou da mol)cula$ 1ra, os adeptos do cienti!icismo e das mitologias cerebrais agem como se a !isiologia do c)rebro pudesse ser interrogada > maneira de um sujeito passível de di"er a verdade sobre uma vivência existencial$ *ara compreender a que impasse condu" esse procedimento, basta citar o testemunho de =orinne Kamon, psiquiatra e psicanalista !rancesa: ;6ma paciente veio me ver num estado depressivo muito antigo$ 9ora tratada por uma porção de clínicos gerais$ 9i" uma entrevista com ela e deilhe um antidepressivo$ 4eriam necessários cinco a de" dias para que esses medicamentos surtissem e!eito$ *ois bem, no dia seguinte,
seu marido me tele!onou para di"er que ela estava muito melhor$ Kavia recebido uma escuta que jamais tivera antes$ *(de deixar um pouco de sua depressão e se !a"er perguntas sobre si mesma que nunca se havia !ormulado$< 1 integrismo de 5rMnbaum levou > liquidação de qualquer !orma de argumentação que não se !undamentasse na constatação de um !ato$ E !oi por essa ra"ão que, no !im de seu livro, esse autor entregou se a uma especulação duvidosa sobre a questão da sedução$ *ara apreender a signi!icação dela, conv)m entendermos bem o que está em jogo na problemática !reudiana da sexualidade$ imos que a condição de surgimento de uma teoria !reudiana da liberdade subjetiva repousou tanto no abandono das diversas mitologias cerebrais elaboradas no !im do s)culo OO quanto na renAncia a uma explicação puramente traumática da causalidade psíquica$ 8aí o acontecimento de /DCF e a !amosa ;carta do equinócio<: o abandono !reudiano da teoria da sedução$ 1ra, no momento em que, nos Estados 6nidos, o desvio cienti!icista dos anos oitenta levou a que se es!acelasse o modelo !reudiano do inconsciente, uma outra loucura, esta puritana, atacou uma outra grande concepção do sistema !reudiano: a teoria da !antasia$
Em /CDT, Uurt Eissler, responsável pelos 4igmund 9reud 'rchives I49'J, e 'nna 9reud resolveram con!iar a publicação integral das cartas de 9reud a 9liess a um acadêmico norteamericano, devida mente !ormado no celeiro da nternational *sLchoanalLtical 'ssociation I*'J$ He!!reL -oussaie!! -asson tomou conhecimento dos arquivos interpretandoos de maneira selvagem, a partir da id)ia de que eles esconderiam uma verdade oculta, um segredo vergonhoso$ 9oi assim que a!irmou, sem a menor prova, que 9reud havia renunciado por covardia > teoria da sedução$ 7ão se atrevendo a revelar ao mundo as atrocidades cometidas por todos os adultos contra todas as crianças, 9reud teria inventado a noção de !antasia para mascarar a realidade traumática do abuso sexual que estaria na origem das neuroses$ *or conseguinte, seria simplesmente um !alsário$ Em /CD3, -asson publicou um livro sobre esse assunto, = real escamoteado, que !oi um dos maiores best( sellers psicanalíticos norteamericanos da segunda metade do s)culo$ 1pondose aos ortodoxos da teoria da !antasia, o livro veio rati!icar as teses da historiogra!ia revisionista$0V .ratavase, com e!eito, de mostrar que a mentira !reudiana teria pervertido a 'm)rica, tornandose aliada de um poder baseado na opressão: coloni"ação das mulheres pelos homens, das crianças pelos adultos, do impulso natural pelo conceito etc$ Embora tenha sido !ortemente criticada pela maioria dos movimentos !eministas, a tese da sedução traumática reapareceu como a Anica solução para o enigma de uma sexualidade retrans!ormada em algo brutal e odioso$ =omo -asson, a c)lebre advogada =atharina -acUinnon adotou a id)ia da mentira !reudiana$ Especiali"ouse em processos por ass)dio sexual sempre procurando impor o princípio de que todas as mulheres, na in!&ncia ou na vida adulta, teriam sido vítimas de algum abuso por parte dos homens$ =hegou at) a propor a utili"ação de diversos procedimentos B interrogatórios inquisitoriais, persuasão, hipnose, psico!armacologia etc$ B para descobrir, no inconsciente dos sujeitos, os vestígios da sedução recalcada$ 8aí a a!irmação de que a sexualidade seria, em si mesma e sempre, um ultraje imposto ao corpo das mulheres$ Em /CC0, Hudith Kerman publicou um livro que revisava a história da histeria no sentido de uma revalori"ação do trauma$ 7um primeiro momento, segundo a autora, a histeria teria surgido no discurso de =harcot como um eco ao republicanismo !rancês$ Em seguida, terseia emancipado, em /C0T, com o desmoronamento do culto da guerra e a mani!estação do paci!ismo, vindo en!im a se revelar, no &mbito do movimento !eminista, como pura violência sexual traumática$ 1 abandono da teoria da !antasia em prol de um retorno > da sedução caminhou de mãos dadas com a revalori"ação de um inconsciente pensado em termos de dissociação e automatismo mental$ *or conseguinte, a síndrome da ;personalidade mAltipla< teve uma ampliação considerável nos Estados 6nidos > medida que o :) e adotava uma nomenclatura da qual desaparecera a nosologia !reudobleuleriana$ 8e!inido como um distArbio da identidade, o !en(meno da personalidade mAltipla desenvolveuse no s)culo OO antes de desaparecer, por volta de /C/T, no momento em que, sob a in!luência da segunda psiquiatria din&mica e da concepção !reudiana da neurose, as mulheres, que eram majoritariamente a!etadas por ela, !oram
encaradas como sujeitos completos, e não mais como visionárias, vítimas de abuso sexual e entravadas por uma consciência desarticulada$ 7otavelmente descrita por Kenri E Ellenberger, essa síndrome deu margem a inAmeros relatos literários$ 7o plano clínico, tradu"iuse pela coexistência, num mesmo sujeito, de uma ou mais personalidades separadas umas das outras, e cada uma das quais podia assumir alternadamente o controle das demais$ Em /CF0, essa noção !igurava como uma curiosidade de outra )poca$ 'penas uma de"ena de casos !ora recenseada depois de /C0T$ *ois bem, a partir de /CDV, estimouse em V$TTT o nAmero de pacientes a!etadas por essa síndrome$ Em /CC0, considerouse que uma em cada vinte pessoas so!ria desse mesmo distArbio, a tal ponto que, em todas as cidades norteamericanas, clínicas se especiali"aram no tratamento da nova epidemia$ Esse crescimento absurdo ) uma boa prova da regressão da nosologia indu"ida pelas diversas revis#es do :)1 9oi justamente por não mais se enquadrarem numa classi!icação signi!icativa que as pacientes a!etadas por distArbios hist)ricos ou psicoses passaram a receber um diagnóstico de personalidade mAltipla$ Essa síndrome remete, na verdade, a um modelo de sociedade em que a mulher ) assimilada a uma vítima sexualmente maltratada, >s voltas com o desespero identitário$ 8epois do caso -asson, a corrente revisionista norteamericana entregouse a um despedaçamento da doutrina !reudiana e do próprio 9reud, retrans!ormado num cientista diabólico que carregava a culpa de se haver entregue a relaç#es abusivas dentro da própria !amília$ Há em /CD/, *eter 4Xales a!irmava, naturalmente sem a menor prova, que 9reud teria mantido relaç#es sexuais com sua cunhada, -inna PernaLs$ .êlaia at) engravidado, depois obrigandoa a !a"er um aborto$ 4urgida por volta de /CFD, a historiogra!ia revisionista !oi muito criativa num primeiro momento$ 1s historiadores que recorriam a ela, pretendendose herdeiros do grande historiador Kenri 9$ Ellenberger, produ"iram trabalhos notáveis: !oi o caso, em particular, de 9ran 4ulloXaL, autor de um livro monumental sobre as origens biológicas do pensamento !reudiano$2W Esses historiadores questionavam, justi!icadamente, os c&nones da história o!icial, herdados de Ernest Hones e sobretudo de Uurt Eissler, principal organi"ador, depois da 4egunda 5uerra -undial, dos 4igmund 9reud 'rchives Is9'J, depositados na %ibrarL o! =ongress I%ocJ de ^ashington$ .odavia, após alguns anos de encarniçado combate contra a ortodoxia !reudiana, a corrente revisionista tornouse tão anti!reudiana que renunciou aos estudos cientí!icos para se atirar com !anatismo ao debate das id)ias$ 7o contexto dos anos noventa, as hipóteses de alguns revisionistas !oram um verdadeiro achado para os adeptos do cienti!icismo, muito embora eles não as compartilhassem$ =om e!eito, elas corroboravam a id)ia de que um trauma, isto ), um traço vis-vele, portanto, supostamente registrado na memória, podia explicar as desordens subjetivas$ 8aí a possibilidade de junção entre uma prática clínica que aspirava a explorar o c)rebro humano, para nele descobrir a origem de uma patologia, e uma psicologia coercitiva ora !undamentada na hipnose, ora na psico!armacologia, que permitia substituir a psicanálise por uma tecnologia da con!issão ou por uma avaliação sintomatológica de tipo comportamental$ 8ois relatos de caso, dentre milhares de outros, atestam a amplitude adquirida pela busca maníaca do abuso sexual e da personalidade mAltipla no momento em que, com a queda do comunismo e na !alta de qualquer poder antag(nico, a sociedade norteamericana parecia entregarse de corpo e alma > empreitada tríplice do cienti!icismo, do liberalismo e da diaboli"ação do sexo$ 1 primeiro deles ) o de uma estudante de /C anos que tinha relaç#es con!lituosas com o pai e cuja vida trans!ormouse num calvário no !im do ano de /CDC$ 'presentando sintomas de depressão e bulimia, detestando bananas, queijo derretido e maionese, ela resolveu, com a concord&ncia dos pais, !a"er um
tratamento num centro m)dico parapessoas abastadas$ 'tendida por uma psicóloga encarregada das relaç#es com a !amília e por um psiquiatra, !oi imediatamente incluída na categoria das ;vítimas de abuso sexual<$ Esse diagnóstico !oi !eito pelo psiquiatra a partir da hipótese de que, em DT] dos casos, a bulimia seria sintoma de um abuso sexual ocorrido durante a in!&ncia ou a adolescência$ 1ra, essa hipótese ) inteiramente !alsa$ .odos os trabalhos sobre a bulimia demonstram que, corno um sintoma entre outros, ela pode, de acordo com sua gravidade, ser de origem psíquica, hormonal ou gen)tica$ 'l)m disso, aparece em mAltiplas situaç#es: em pacientes deprimidos hist)ricos, perversos, hipocondríacos, esqui"o!rênicos etc$, e em nenhum desses casos pressup#e, como tal, a existência de um abuso sexual$20 'pós algum tempo de tratamento, a moça evocou vagas lembranças de toques praticados por seu pai, sem maiores detalhes$ 1bcecado com a identi!icação de uma prova tangível do abuso sexual, o psiquiatra resolveu então administrar > sua paciente um soro da verdade Isódio amitalJ para !a"er emergirem as lembranças recalcadas$ 4ob o e!eito da droga, a moça contou cenas extravagantes: em sua in!&ncia, o pai a violentava, obrigavaa a lhe !a"er !elaç#es e a agir da mesma !orma com o cachorro da !amília$ 'rrebatados por seu delírio interpretativo, os dois terapeutas a!irmaram então que essas lembranças reencontradas explicavam a aversão da paciente por queijo derretido, bananas e maionese$ ' recusa desses tr@s alimentos, di"iam eles, era o sintoma patente do abuso sexual$ *ressionada pelos terapeutas, a moça con!essou a ;verdade< > sua mãe$ Esta obteve o divórcio e a guarda dos !ilhos, enquanto o pai, acabrunhado com essas ;revelaç#es< e com a boataria que !a"ia dele um pedó!ilo, perdeu seu emprego$ ' história terminou nos tribunais$ 1 pai moveu um processo contra os terapeutas, e seus advogados, pagos a peso de ouro, convocaram peritos especiali"ados na caça aos manipuladores de !alsas lembranças, conhecidos por haverem destruído a vida de uma boa de"ena de milhares de !amílias norte americanas$ 8e perícia em contraperícia, o jAri convenceuse, por de" votos contra dois, de que esse homem nunca mantivera relaç#es sexuais com a !ilha$ Esta, no entanto, apoiada pela mãe, con!irmou suas declaraç#es$ ?uanto ao tribunal, condenou o psiquiatra e a psicóloga a uma multa pesada por ;negligência grave<, praticada ;sem intenção de prejudicar<$ :em inten0/o de pre4udicar1 vemos aí como aprendi"es de !eiticeiro, carregados de diplomas e acossados pela loucura da experimentação e do abuso sexual, julgaramse autori"ados a penetrar invasivamente no inconsciente de outrem$ 1 resultado dessa história desastrosa, onde se embaralhou ao extremo a di!erença estabelecida por 9reud entre trauma e !antasia, !oi que nem a paciente nem seu círculo jamais poderão saber a verdade de sua história$ *or isso, ela continuará a ser vítima de um sistema que se baseia, ele mesmo, num delírio vitimológico e na banali"ação de uma ideologia cienti!icista$ ' segunda história, que remonta > mesma )poca, ) a de uma mulher em quem, com a ajuda do :), diagnosticouse um distArbio de personalidade mAltipla$ ?uando !oi sexualmente agredida por um homem e levou o caso aos tribunais, o promotor sustentou que a mulher tinha 0/ personalidades, nenhuma das quais havia consentido em manter relaç#es sexuais$ 1s juristas e os psiquiatras puseramse então a discutir se as di!erentes personalidades dessa mulher seriam capa"es de depor sob juramento e se cada uma delas tinha ou não suas próprias aventuras sexuais$ Em /CCT, o homem !oi julgado culpado, pois três das personalidades da vítima depuseram contra ele$ 'pós uma contraperícia, entretanto, reali"ouse um novo julgamento$ 'lguns psiquiatras a!irmaram, na verdade, que a mulher tinha 3V personalidades, e não 0/$ 'ssim, era preciso saber se essas novas personalidades tamb)m prestariam depoimento no processo$ =asos como esses tornaramse !reqMentes no continente americano$ Eles mostram com clare"a a que !anatismo pode levar a id)ia de que todo ato sexual ) em si um pecado, um estupro, um trauma, e de que todo inconsciente ) uma inst&ncia dissociada, sem dar margem alguma > subjetividade$ 'pesar desses desvios, nunca se deve esquecer que !oi tamb)m essa 'm)rica, tão detestada por 9reud, que deu > psicanálise seus mais belos dias de glória, depois de salvála do na"ismo$ 9oi nos Estados 6nidos, al)m
disso, que se publicaram os melhores trabalhos sobre a história do !reudismo e sobre o próprio 9reud, como atestam as obras de *eter 5aL, =ari 4chorse, 7athan +ale, `ose! KaLim `erushalmi e muitos outros ao lado deles$ 7unca nenhum país apaixonouse tanto pela invenção vienense, e nunca se viram mais adeptos do tratamento psíquico$ 4em dAvida, por outro lado, essa paixão não ) estranha > ira anti!reudiana que assim se mani!esta no alvorecer do novo s)culo$ *ara encerrar este capítulo, voltemos a 'dol! 5rMnbaum, principal representante norteamericano do anti!reudismo de inspiração cienti!icista$ Em seu livro, ele acaba tratando com imparcialidade os adeptos da sexologia libertária, !avoráveis aos pedó!ilos, e os puritanos, que redu"em o ato sexual a um abuso$ 7ão para destacar a estranha proximidade teórica de suas respectivas atitudes, mas para opor a eles a id)ia de que somente a experimentação, com cálculos e amostragens, permitiria di"er se os sujeitos que são vítimas de abuso na in!&ncia saemse ou não pior, na idade adulta, do que outros que não viveram esse drama$ 5rMnbaum nunca se pergunta qual ) a nature"a do malestar dos sujeitos que são vítimas de abusos, cotejado com o dos que não o são e que, con!orme o caso, podem apresentar sintomas bem mais perturbadores que os resultantes das sevícias sexuais$ Evidentemente, esses tipos de abordagens, nos quais se procura tirar a medida de um estado psíquico em ve" de compreender sua signi!icação especí!ica, não têm nenhum valor cientí!ico, uma ve" que não levam em conta a realidade do estado do sujeito$ *or)m há algo mais grave: ao adotar uma atitude tida como ;objetiva<, !icase condenado a observar da mesma maneira, e sem distinção, os crimes Ipedo!ilia, estuproJ, as transgress#es Iincesto entre adultosJ e as simples neuroses$ ' objetividade cienti!icista, portanto, não passa do anteparo atrás do qual se esconde o go"o pela abolição de qualquer relação do homem com a %ei e, portanto, com a *roibição$ *orventura um dia será preciso, para satis!a"er essa divagação, encerrar numa gaiola de laboratório um grupo de crianças pequenas, acompanhadas por pedó!ilos, e em outra, um segundo grupo, cercado de educadores acima de qualquer suspeitaN 4erá preciso, em seguida, esperar alguns anos para observar as di!erenças e medir os desvios a !im de concluir, após muitas hesitaç#es, pela existência ou inexistência de traumasN
U1 cientificis1o franc5s 7a 9rança, a hostilidade cienti!icista contra a psicanálise nunca assumiu a aparência de um con!lito tão encarniçado$ 8urante a primeira metade do s)culo, os ataques polari"aramse, essencial mente, em torno do ;pansexualismo< !reudiano, sempre assimilado a uma decadência ;teut(nica<$ 1s inimigos da nova doutrin gostavam de chamála de ;ciência boche< e julgavamna incapa de tradu"ir a sutile"a do espírito latino ou cartesiano$ 8iante dess situação, alguns pioneiros tentaram ;a!rancesar< a psicanálise$ 9o esse, notadamente, o caso de @douard *ichon, o Anico a dar cert coerência a esse projeto ilusório$ 1pondose ao chauvinismo, o surrealistas B encabeçados por 'ndr) Preton B reivindicaram su ligação com uma concepção rom&ntica do inconsciente$ Em todo caso, a resistência > psicanálise na 9rança não assumii a !orma exclusiva do cienti!icismo, e essa tendência permanecei minoritária a despeito de todos os es!orços dos representantes d psicologia, que não perderam uma só oportunidade de denuncia o caráter ;não experimental< do tratamento !reudiano$ ?uanto doutrina, ela nunca !oi recebida na 9rança como uma ideologia d !elicidade, mas como o instrumento crítico de todas as tentativ de normali"ação da subjetividade$ 8epois da 4egunda 5uerra -undial, a temática do pansexualismo e do !rancesismo caiu em desuso$ 1s debates que opunham partidários e adversários da psicanálise tomaram ent/o rumo ideológico, político ou !ilosó!ico$ iolentamente atacada pelo partido comunista entre /C3D e /CGV, a psicanálise tamb)m se tornou alvo da greja católica$ 8epois, a partir dos anos de #$D5(>, as hostilidades cessaram$ 'poiandose na re!lexão de %ouis 'lthusser, os comunistas !ranceses reviram sua posição$ ?uanto > greja católica, !oi obrigada a uma solução conciliatória em virtude da di!usão da prática da análise entre os padres$ *or outro lado, em parte graças ao ensino de Hacques %acan, as principais brigas desenrolaramse no terreno de uma
psiquiatria dominada pela clínica psicanalítica e num contexto em que os !ilóso!os e os antropólogos, de 4artre a -erleau*ontL e, depois, de %)vi4trauss a 8errida, tomaram a conceituação !reudiana como objeto de re!lexão$ *(de assim iniciarse um novo recorte das ciências humanas, que teve como principal desa!io elucidar a noção !reudiana de inconsciente$ *ara os !ilóso!os da existência, a interrogação re!eria se > compatibilidade entre a determinação inconsciente e a liberdade subjetiva, ao passo que, para os estruturalistas, a questão era saber se o inconsciente pulsional de 9reud podia ou não ser desvinculado da biologia para entrar no quadro de uma teoria geral dos sistemas simbólicos$
8urante esse período, o Anico livro !rancês comparável ao de 5rMnbaum B e que teve um sucesso considerável B !oi publicado por *ierre 8ebraL+it"en: * escol8stica .reuclia na1G *siquiatra in!antil e m)dico hospitalar, 8ebraL+it"en adotou contra a psicanálise uma postura tão !anática quanto a de seu homólogo norteamericano$ Em nome da ciência, criticou 9reud por haver abandonado o !ro4eto e as ciências da nature"a para se trans!ormar no artí!ice de uma nova hermenêutica, quali!icada de ;escolástica<$ =hamando a histeria de doença ;neuronal< e de ;esgar pro!undo<, e a!irmando que a esqui"o!renia redu"ia se a uma anomalia gen)tica, ele op(s ao inconsciente !reudiano o pattern dos culturalistas, e > teoria da !antasia a do trauma$ *or !im, a!irmou que os sonhos não têm nenhuma outra signi!icação senão a inventada pelo terapeuta para tapear o paciente$ 7ão satis!eito em chamar 9reud de charlatão, 8ebraL+it"en investiu contra -elanie Ulein Iquali!icada de ;louca extrema direita !rancesa, e sobretudo > 7ova 8ireita, 8ebraL +it"en en!eitou com uma ;moral< seu discurso cienti!icista: !ustigou, na verdade, tanto o divórcio e o aborto quanto a religião judaico cristã, hostil, a seu ver, > eclosão da verdadeira ciência materialista$ 8aí a reivindicação de um ateísmo !urioso, baseado no culto do paganismo$ 4e os argumentos de 8ebraL+it"en eram iguais aos dos adeptos do homem cerebral, eles não se assentavam nos mesmos !undamentos políticos$ E, por outro lado, nas mani!estaç#es anti!reudianas mais tardias B as de Hean*ierre =hangeux, -arcel 5auchet ou dos cognitivistas !ranceses B, nunca se encontra um es!acelamento tão radical da obra de 9reud$ 7a maioria das ve"es, as críticas voltamse contra a concepção psicanalítica do inconsciente$ -as, na !rança, tudo se passa como se !reud, o homem, !osse como que inatacável$ 1s partidários do cienti!icismo e da redução do psiquismo ao neurológico, entretanto, têm em comum de 5rMnbaum a =hangeux, passando por 8ebraL+it"en B uma rejeição absoluta da religião$ Esse ateísmo em nada se assemelha, como obviamente conv)m notar, ao de !reud ou dos herdeiros do luminismo$ .ampouco se inspira nos ideais do +enascimento$ =onsiste, antes, numa esp)cie de religião da ciência, que condu" a um !ranco obscurantismo, > !orça de negar aquilo que, no homem, decorre do psíquico, do espiritual, ou do imaginário e da !antasia$ 8aí a cegueira para os desvios irracionais nascidos do discurso cientí!ico$ Encontra se uma boa ilustração dessa atitude no diálogo que op(s =hangeux a +icoeur em /CCD$ 8urante a discussão, =hangeux criticou os adeptos protestantes do criacionismo$ 8epois de substituírem a teoria darXiniana pelo relato bíblico do 5ênesis, eles haviam conseguido, durante os anos oitenta, !a"er com que o ensino da teoria da evolução !osse proibido em diversas universidades dos Estados 6nidos$ 1ra, em sua argumentação, =hangeux op(s a religião > ciência de maneira incrivelmente simplista$ ' seu ver, a primeira seria sempre suspeita de desvios reacionários, e a segunda, sempre investida de um puro ideal de progresso$ 4em se deixar perturbar, +icoeur observoulhe então que o paradoxo, nessa história, era que os criacionistas haviam recebido o apoio de numerosos cientistas, enquanto teólogos renomados haviam assumido a de!esa do evolucionismo$
' di!erença entre a situação !rancesa da psicanálise e a norte americana não se explica pelas mentalidades nem pelos parricularismos, mas pela geopsicandlise,5 isto ), pela din&mica dos modos de implantação do !reudismo que ) própria de cada região do mundo$ ?uanto a esse aspecto, conv)m lembrar que a 9rança ) o Anico país do mundo em que, durante um s)culo, reuniramse as condiç#es necessárias a uma integração bemsucedida da psicanálise em todos os setores da vida cultural, tanto pela via psiquiátrica quanto pela via intelectual$ 7esse campo, portanto, existe uma a 0/o .rancesa1 Ela não se prende a nenhuma superioridade nacional, mas a uma experiência particular$ %igada a um grande acontecimento da história humana, essa exce0/o ) teoricamente universali"ável$ E !oi por essa ra"ão, aliás, que p(de servir de modelo de institucionali"ação dos princípios democráticos em inAmeros países$ 4ua origem remonta > +evolução de /FDC, que dotou de legitimidade cientí!ica e jurídica o olhar da ra"ão sobre a loucura, e tamb)m ao caso 8reL!us, que possibilitou o nascimento de uma consci@ncia de si da classe intelectual$ 4em a +evolução de /FDC, não haveria na 9rança saber psiquiátrico capa" de integrar o caráter universal da descoberta !reudiana, e, sem o caso 8reL!us, não se teria encontrado uma vanguarda intelectual capa" de sustentar uma representação subversiva da id)ia !reudiana de inconsciente$ ' esse respeito, podemos indagar se Kannah 'rendt teve ra"ão, em /CV2, ao valori"ar o modelo norte americano da +evolução contra o modelo !rancês, sublinhando que o primeiro se apoiara numa )tica da liberdade, enquanto o segundo privilegiara a prima"ia da igualdade$ 'inda que o igualitarismo !rancês tenha realmente desembocado no .error, renunciando provisorjamente > instauração da liberdade em bene!ício da !elicidade coletiva do povo, constatase, hoje em dia, que o !amoso modelo norteamericano da prima"ia da liberdade ) seriamente prejudicado tanto pelo puritanismo e pelo liberalismo quanto pelo cienti!icismo ou pelo comunjtarjsmo$ 'o contrário, parece que o modelo !rancês, liberto do igualitarismo, ) mais portador de um ideal de liberdade$ @ justamente essa exceção !rancesa que, ao mesmo tempo, incomoda os partidários da abolição do ideal revolucionário e os adeptos do homem comportamental$ .anto uns quanto outros deploram o !amoso ;atraso< !rancês, esperando que, um dia, a ciência do c)rebro consiga en!im derrotar os pretensos arcaísmos da doutrina !reudiana, mesmo com o risco de ressuscitar as antigas concepç#es do inconsciente Icerebral, hereditário ou automáticoJ$ 7essa deploração expressase a esperança secreta de que a antiga imagem do intelectual B sábio socrático, poeta visionário ou !ilóso!o engajado B possa um dia ser substituída pela do especialista ou do perito, encarregado de circunscrever a insipide" in!inita de um mundo redu"ido ao observável$ @ bem possível, aliás, que essa exceção esteja em vias de desaparecer, no exato momento em que o universalismo !reudiano do qual ela ) portadora des!a"se nos particularismos de escola$ E sem dAvida será preciso, para reavivála, que se reconstitua uma nova Europa do luminismo$
T!RC!IRA PART! O
liter8ria dos a!etos e dos desejos$ =onviria, portanto, quer excluíla do campo da ciência, junto com as outras disciplinas que não dependem da experimentação, quer repensar a organi"ação de todos esses campos Iantropologia, sociologia, história, lingMísrica etc$J em !unção de uma ;ciência cognitiva<, a Anica capa" de !a"êlos entrar na categoria de ;ciência verdadeira<$ Esse procedimento cienti!icista pressup#e que existiria uma separação radical entre as chamadas ciências ;exatas< e as chamadas ciências ;humanas<$ 's primeiras se baseariam na rejeição do irracional e na produção de provas materiais e resultados tangíveis, ao passo que as Altimas, ao contrário, teriam como ponto comum não poderem re!utar as hipóteses que prop#em nem materiali"ar os resultados que interpretam como provas da validade de um raciocínio$ Essa concepção da ciência leva a aberraç#es$ *rova disso, se necessário, no campo que nos interessa, ) a história da comemoração do centenário da psicanálise que se seguiu ao caso -asson$ Em de"embro de /CCG, no momento em que se organi"ava na %ibrarL o! =ongress I%ocJ de ^ashington uma grande exposição sobre 9reud, prevista desde longa data, uma petição assinada por 30 pesquisadores independentes, em sua maioria norteamericanos, !oi endereçada a Hames Pillington, diretor da %1=, a -ichael +oth, curador da exposição, e a Hames Kutson, responsável pelo departamento de manuscritos$ 1s signatários, dentre os quais !iguravam excelentes autores I*hLllis 5rossurt, Ele -Mhlleitner, Hohannes +eichmaLr, 7athan +ale etc$J, criticavam o caráter demasiadamente ;institucional< do !uturo catálogo e pleireavam que seus próprios trabalhos !i"essem parte dele$ 1ra, para respaldar esse processo coletivo e justi!icado, dois dos organi"adores da petição, cujo !anatismo já conhecemos B *eter 4Xales e 'dol! 5rMnbaum B, desencadearam uma virulenta campanha na imprensa contra 9reud, acusandoo de haver abusado sexualmente de sua cunhada e de ser culpado de charlatanismo$ 'ssustados com essa caça >s bruxas, os organi"adores da exposição pre!eriram adiála, muito embora inAmeros jornalistas e intelectuais norteamericanos mani!estassem na imprensa sua hostilidade a essas tomadas de posição extremistas$ =onv)m di"er que várias exposiç#es já tinham sido canceladas por ra"#es semelhantes$ 6ma delas, dedicada > vida dos escravos nas antigas !a"endas, !ora julgada ;chocante< pelos !uncionários negros da %1=, preocupados em apagar os vestígios de um passado tido como ;humilhante<$ ' exposição !oi modi!icada e trans!erida par a Piblioteca -artin %uther Uing$ 6ma outra exposição, sobre o Enola Ua", organi"ada pela 4mithsonian nstitution, levantara um concerto de protestos, porque veteranos da aeronáutica haviamna considerado demasiadamente !avorável >s vítimas de Kiroshima$ Ela teve que ser reconcebida em torno da id)ia de que a bomba tinha sido um mal necessário$ 9oi nesse contexto e por iniciativa de *hilippe 5arnier, psiquiatra e psicanalista !rancês, que se organi"ou, a partir da 9rança, uma outra petição, criticando simultaneamente os ;aiatolás< inquisidores e os organi"adores da exposição da %1=, incapa"es de impor sua autoridade$ 'ssinada por /DT intelectuais ou praticantes de todos os países, todas as tendências e todas as nacionalidades, essa segunda petição obteve um sucesso expressivo$0 Ela en!ati"ou a loucura puritana, comunitarista e persecutória que ameaçava tomar conta dos Estados 6nidos, incitando os grupos de pressão a exercerem uma censura sobre as grandes instituiç#es culturais$ ' o!ensiva anti!reudiana de 5rMnbaum e 4Xales teve como resultado marginali"ar os outros signatários e !avorecer o academicismo$ naugurada em outubro de /CCD, a exposição da %1= apresentou, na verdade, um 9reud cujas teorias já não tinham nenhuma import&ncia em relação > ciência ou > verdade: ;*ouco me importa que as id)ias de 9reud sejam verdadeiras ou !alsas<, declarou -ichael +oth$ ;1 importante ) que elas impregnaram toda a nossa cultura e a maneira de compreendermos o mundo atrav)s dos !ilmes, da arte, das histórias em quadrinhos ou da televisão$ 7este !inal do s)culo OO, e em nome de uma clivagem arbitrária instaurada entre ciência e cultura, comemorouse o centenário da psicanálise, portanto, exibindo em ^ashington um 9reud sem cheiro nem sabor, e limitado aos trabalhos de historiadores majoritariamente angló!onos ICT]J$ Em suma, !abricouse um 9reud per!eitamente correto e con!orme aos c&nones da sociedade depressiva$ 7a mesma )poca, !oram violentamente questionadas as pretensas ;imposturas< veiculadas pelo discurso das ciências humanas$
Em /CCV, 'lan 4oa, um !ísico norteamericano desejoso de se desvincular do jargão de uma corrente teórica chamada de ;pósmoderna<, redigiu integralmente um texto que questionava, em nome de uma crítica da meta!ísica ocidental, as verdades cientí!icas mais aceitas$ 8epois de conseguir publicar seu artigo na revista :ocial 7ext, ligada a essa corrente, ele revelou > imprensa e aos interessados que se tratara de uma piada destinada a desmascarar o relativismoG dessas chamadas ciências humanas, que se atreviam a utili"ar a conceituação das ciêncías rigorosas sem nada entender delas$ 1 episódio !oi um esc&ndalo$ 'licerçado nesse triun!o, 4oal publicou na 9rança um livro coredigido por Hean Pricmont, um !ísico belga, no qual chamou de impostores diversos autores !ranceses, dentre eles Hacques %acan, 5illes 8eleu"e, 9)lix 5uattari, -ichel 4erres e outros mais$ 9# /oth (org#8, reud, conflito e cultura, /io de :aneiro, :orge ;ahar, no prelo# O relativismo é uma atitude crítica !ue consiste em !uestionar sistematicamente todas as verdades aceitas, inclusive os fatos mais irrefut+veis, a fim de lhes opor a idéia de !ue toda verdade seria construída em fun"ão de uma cultura dominante# ricmont, =mposturas intelectuais, /io de :aneiro, /ecord, ?@@@#
1 interessante nesse livro ) que, ao opor ao relativismo um pretenso discurso cientí!ico racional, os dois cientistas !abricaram um jargão tão incompreensível quanto o que estavam !ustigando$ Executado em quator"e páginas, logo no primeiro capítulo do livro, %acan !oi acusado, mais ainda que os outros pensadores, principalmente de !alar de teorias que não conhecia, de importar noç#es cientí!icas !raudulentamente, de exibir uma erudição super!icial e de se compra"er com a manipulação de !rases desprovidas de sentido$ *ois bem, para corroborar sua demonstração, 4oal e Pricmont apoiaramse num texto de %acan que ) !rancamente problemático$ .ratase da !amosa con!erência pro!erida em outubro de /CVV, durante o grande simpósio organi"ado por +ichard -acseL, Eugenio 8onato e +en) 5irard no =entro de Kumanidades da 6niversídade Hohns Kopins, e na presença de %ucien 5oldmann, Hacques 8errida, ."vetan .odorov, Hean *ierre ernant etc$ 8iante dessa !esta estruturalista, em que se reuniram pela primeira ve" os melhores acadêmicos !ranceses e norteamericanos, %acan, angustiado por ter de en!rentar um novo pAblico, havia ;composto< um texto de sua lavra$ 4em !alar inglês, en!iara na cabeça a id)ia de redigir Ie sobretudo de pro!erirJ sua con!erência na língua de 4haespeare$ *ara ajudálo, deramlhe como assistente um jovem !ilóso!o, 'nthonL ^ilden, que não demoraria a soltar um grito de dor bem no meio do simpósio: ele estava encarregado de ;tradu"ir< o discurso de um orador ansioso que !alava alternadamente em !rancês e em ;inglês<$$$ Em /CFT, essa estranha con!erência !oi reprodu"ida Iem inglêsJ nas atas do =olóquio de Paltimore, sob a !orma de uma pará!rase daquilo que o orador havia enunciado em duas línguas$ .ra"ia um título absurdo: ;1! structure as an inmixing o! an otherness prerequisite to anL subject Xhatever< I;8a estrutura como imisção de uma alteridade que ) pr)requisito de qualquer sujeito ra"ão de quator"e linhas em cada citação$ Em seguida, declaram que %acan desenvolveu nesse texto ;publicamente, pela primeira ve", suas teses sobre a topologia<$ Erro grosseiro: demasiadamente ocupados em denunciar a impostura, os dois autores não souberam escolher nem situar em seu contexto uma obra que não sabem ler nem criticar$
7ão apenas %acan interessouse pela topologia desde /CGT, como !oi em /CVG, em sua con!erência sobre ;' ciência e a verdade<, e não em Paltimore, que ele mudou de orientação, expondo pela primeira ve", de maneira in)dita, id)ias que podemos quali!icar de topológicas !ormais Ilógica e matemáticaJ, as ciências naturais I!ísica, biologiaJ e as ciências humanas Isociologia, antropologia, história, psicologia, lingMística e psicanáliseJ$ nteiramente desconhecedores da obra lacaniana, eles a.irmam, erroneamente, &ue a vers/o .rancesa do texto n/o existe9 evidente &ue n/o conhecem as verses datilogra.adas1 Em sua bibliogra.ia, ali8s, mencionam incorretamente o t-tulo em ingl@s1 Nessas condi0es, incapazes de avaliar o recurso lacaniano W topologia e W matem8tica, :oRal e Tricmont passam ao largo dos reais impasses e da verdadeira genialidade de Lacan, atribuindo erros a textos .alsos e, em seguida, relendo .ragmentos de textos verdadeiros W luz de uma pretensa impostura1 Concluem da&ue o impostor seria o pro.eta de um +misticismo leigo, ou, melhor ainda, o .undador de uma nova religi/o1 Lendo tal livro, onde a manipula0/o e a ignorIncia dos textos autorizam a .abrica0/o de imposturas imagin8rias, l-cito perguntarmos &uem s/o os verdadeiros impostores1 ' esses discursos cienti!icistas, que alimentam os piores excessos de uma normati"ação policialesca do pensamento, ) preciso opor uma imagem completamente di!erente da ciência: não * =iência, concebida como uma abstração dogmática, que ocupa o lugar de 8eus ou de uma teologia repressiva, mas as ciências, organi"adas de maneira rigorosa, ancoradas numa história e concebidas de acordo com os modos de produção do saber$ Embora a ciência se de!ina, desde 5alileu, como o conhecimento das leis que regem os processos naturais, posteriormente ela deu origem a mAltiplas abordagens, que têm como ponto comum retirar a análise da realidade humana da antiga dominação das ciências ditas divinas, baseadas na +evelação$ 8aí a existência, a partir do !im do s)culo O, de uma pluralidade de campos, que !a"em intervir di!erentes tipos de conhecimento que podemos agrupar em três ramos: as ciências 'ssim como as ciências !ormais repousam na pura especulação, as ciências da nature"a são dotadas de um componente !ormal e de um componente experimental$ 's primeiras descobrem seu objeto ao construílo, enquanto as Altimas re!eremse a um objeto externo que corresponde a dados empíricos$ ?uanto >s ciências humanas, elas se distinguem das outras duas por se aterem a compreender os comportamentos individuais e coletivos a partir de três categorias !undamentais: a subjetividade, o simbólico e a signi!icação$ Entretanto, como mostrei a propósito do debate sobre o c)rebro e o pensamento, as ciências humanas oscilam entre duas atitudes$ 6ma tende a eliminar toda !orma de subjetividade, de signi!icação ou de simbólico, e a tomar como Anico modelo da realidade humana os processos !ísicoquímicos, biológicos ou cognitivos\ a outra, ao contrário, reivindica essa três categorias, pensandoas como estruturas universais$ *or um lado, uma abordagem do homem como máquina, e por outro, um estudo da complexidade humana que leva em consideração o corpo biológico e o comportamento subjetivo, quer em termos de intencionalidade ou de vivência Ia !enomenologiaJ, quer por interm)dio de uma teoria interpretativa dos processos simbólicos Ipsicanálise, antropologiaJ, na qual são postulados mecanismos inconscientes que !uncionam > revelia dos sujeitos$
comum, hoje em dia, falar3se de ci&ncias sociais para designar as ci&ncias humanas e, desse modo, distinguir as ci&ncias do homem, !ue incluem a dimensão da subjetividade, da!uelas !ue a e4cluem# Bambém podemos classificar as ci&ncias em dois ramosC ci&ncias da natureza e ci&ncias da cultura# *er a esse respeito 9a4 Deber, Essais sur la théorie de la science (FBuibingen, ?@0?8,
Essa distinção entre as ciências da nature"a e as ciências do homem não signi!ica que entre os dois conjuntos haja uma impermeabilidade absoluta$ 'ssim, as ciências naturais !reqMentemente cuidam de quest#es
individuais, assim como as ciências humanas podem recorrer aos componentes !ormais e experimentais presentes nos outros dois ramos da ciência$ *or outro lado, como vimos a propósito das mitologias cerebrais, nenhuma ciência está protegida dos desvios que caracteri"am o processo irracional$ 7um livro recente, 5illes 5aston 5ranger evidencia muito bem as três modalidades do irracional que são próprias da história das ciências$ ' primeira aparece quando um cientista tem de se con!rontar com o obstáculo constituído por um conjunto de doutrinas que regem o pensamento de uma )poca e que se tornaram dogmáticas, coercitivas ou est)reis$ *ara ele, nesse momento, trata se de inovar e contestar um modelo dominante, convocando temas insólitos ou submetendo ao olhar da ciência objetos que são esclarecidos de outra maneira$ *or exemplo, o inconsciente, a loucura, a desra"ão, o !eminino, o sagrado, em suma, tudo o que 5eorges Patailie chama de o heterogêneo ou a parte maldita$ 1 recurso ao irracional permite então ressuscitar uma imagem da ra"ão e partir novamente para a conquista de uma outra racionalidade$ ' segunda modalidade aparece quando um pensamento se !ixa num dogma ou num racionalismo muito restritivo$ Então ) preciso avançar contra ele mesmo no intuito de atingir resultados mais convincentes$ %onge de rejeitar o racional, ela prolonga o ato criador que lhe deu origem, insu!lando nele um vigor novo$ ' terceira concerne > adoção, por parte dos cientistas ou criadores, de um modo de pensar deliberadamente estranho > racionalidade$ 'ssistimos então a uma adesão a ciências !alsas e a atitudes de rejeição sistemática do saber dominante$ 8aí a valori"ação da magia e do religioso, associada a uma crença no al)m ou no poder de um ego não controlado$ Essas três modalidades do irracional perpassam todas as ciências e, portanto, estão presentes na história da psicanálise$ =ontudo, 9reud sempre se manteve dentro dos limites das duas primeiras$ 1 primeiro momento caracteri"ouse pelo abandono da teoria da sedução$ Entre /DDF e /CTT, 9reud construiu uma nova doutrina da sexualidade$ Em sua relação com 9liess, deparou então com um irracional biol6gico e adotou as teorias mais extravagantes de sua )poca antes de impor os enquadres de uma outra racionalidade$ 7um segundo tempo, de /C0T a #$G5, uma ve" instalada sua doutrina, ele introdu"iu a dAvida no cerne da racionalidade da psicanálise a !im de combater o positivismo que a ameaçava por dentro$ Essa segunda modalidade do irracional apareceu, primeiramente, na hipótese da pulsão de morte, que trans!ormou por completo seu sistema de pensamento, e depois sob a !orma de um debate em torno da telepatia$ 9reud passou então por um irracional especulativo, que depois o condu"iria a outras inovaç#es$ ' noção de pulsão de morte permitiu, no plano clínico, explicar como um sujeito se coloca, inconscientemente e de maneira repetitiva, em situaç#es dolorosas, extremas ou traumati"antes, que reatuali"am para ele experiências vividas anteriormente$ -as, do ponto de vista antropológico, serviu tamb)m para de!inir a essência do malestar da civili"ação, que se con!ronta permanentemente com os princípios de sua própria destruição$ 1 crime, a barbárie e o genocídio são aros que !a"em parte da própria humanidade, daquilo que ) característico do homem$ *or estarem inscritos no cerne do gênero humano, não podem ser eliminados do !uncionamento singular de cada sujeito nem da coletividade social, nem mesmo em nome de uma pretensa animalidade externa ao homem$ ' !amosa ;besta imunda< de Pertolt Precht não prov)m da animalidade, mas do próprio homem que ) habitado unicamente pela !orça da pulsão de morte, a mais cega, a mais compulsiva, a mais intrusiva$ Em outras palavras, Eichmann em Herusal)m não !oi um monstro desprovido de humanidade, mas um sujeito cuja normalidade con!inava com a loucura$ 8aí o horror que sentimos ao ouvir di"er que ele condenou o sistema na"ista ao mesmo tempo que reivindicava seu juramento de !idelidade a esse mesmo sistema, o qual !e" dele o instrumento consciente e servil de um crime abominável$S Examinando as imagens do processo,
vemos per!eitamente que, se existe a banalidade do mal, como a!irma Kannah 'rendt, ela ) a expressão não de um comportamento comum, mas de uma loucura assassina, cuja característica seria o excesso de normalidade$ 7ada ) mais próximo da patologia do que o culto da normalidade levada ao extremo$ =omo bem sabemos, ) nas !amílias aparentemente mais normais, com e!eito, que muitas ve"es surgem os comportamentos mais loucos, mais criminosos e mais desviantes$ *er o filme de /onH >rauman e EHal 7ival, -e 7pécialiste# $annah Arendt, Erchmann em :érusalem# Im relato sobre a banalidade do mal (?@GJ8, 7ão
4ob esse aspecto, a conceituação !reudiana permite apreender, muito melhor do que !a" 'rendt, a lógica de um Eichmann$SG 'ssim como não ) qualquer um que enlouquece, não ) qualquer um que se torna um exterminador, como sublinha muito bem =laude %an"mann: ;Eichmann certamente não era um pequeno !uncionário$ 4eu"eloantijudaico não tinhalimites$ Elesabiaper!eitamente que estava cometendo um crime incomensurável$ 4empre se pode di"er que o mal ) banal, que não há nada de mais banal do que trens para transportar vítimas$ -as os organi"adores e os executores do crime estavam conscientes do caráter extraordinário daquilo que estavam perpetrando$< ' loucura de Eichmann existe > imagem do pensamento na"ista, que utili"a a ciência como um delírio dando lhe ao mesmo tempo a aparência da mais completa normalidade$ 7o universo na"ista, tudo parece coerente, correto, lógico, apropriado, ordeiro e racional$ Em nome da ciência mais elaborada e com a ajuda de uma tecnologia das mais modernas, instaurouse a serviço de um genocídio a mais impressionante inversão da norma que se possa imaginar, já que essa própria inversão tornouse a imagem da norma$ 7ão importa que esta estivesse desligada de qualquer re!erência a uma ordem simbólica, pois o essencial, num universo assim, ) que a abolição da ra"ão tenhase trans!ormado na norma$ Essa lógica explica os ;tormentos< de Eichmann e de seus mestres no extermínio: eles estavam muito mais preocupados, em /C33, em racionali"ar o processo de aniquilação dos judeus do que em ganhar a guerra contra os 'liados$
*er :ac!ues -acan, “Kant com 7ade” (?@GJ8, in Escritos, op# clt#, p#LLG3MOJ#
9oi exatamente a essa pulsão de destruição, acentuada pelo domínio t)cnico das !orças da nature"a, que 9reud se re!eriu em /C0C, ao encerrar seu livro = mal(estar na cultura com esta !rase premonitória: ;1s homens de hoje levaram tão longe o domínio das !orças da nature"a que, com a ajuda delas, tornouselhes !ácil exterminar uns aos outros, at) o Altimo$ Eles o sabem muito bem, e ) isso que explica boa parte de sua atual agitação, de sua in!elicidade e de sua angAstia$< 7a história da psicanálise e de suas origens, classi!icase a telepatia na categoria dos !en(menos provenientes do ocultismo, isto ), do movimento neoespiritualista que reunia taumaturgos, !ilóso!os, magos e místicos, surgido no !im do s)culo OO numa reação contra o positivismo dos saberes lecionados nas universidades dos países ocidentais$ .ratavase de uma tentativa que almejava reunir num sincretismo popular, propagado por seitas di!erentes, temas comuns >s religi#es ocidentais e orientais$ 1 objetivo do movimento era a reabilitação dos chamados saberes ocultos ou recalcados tanto pela assim chamada ciência o!icial quanto pelas religi#es instituídas como grejas$ 1ra, se a psicanálise realmente se !ormou numa ruptura com os saberes o!iciais, ela extraiu sua !orça não de uma revalori"ação desses saberes ocultos e recalcados, mas do conhecimento racional de !en(menos outrora marginali"ados: por exemplo, o sonho$ *or essa ra"ão, ) compreensível que 9reud não se haja apaixonado
pela telepatia $*)&$ Ela constitui uma esp)cie de resíduo que escapa > ciência, e a seu respeito 9reud dialogou ora com 9erenc"i, ora com Hones$ (?@8 7extos de ;reud sobre a telepatia e o ocultismo9 +!sican8lise e telepatia, E:T, \3O +:onhos e ocultismo, Novas con.er@ncias introdut6rias sobre psican8lise, E:T, xxii, op1 cit1
1pondose ao primeiro, que acreditava !erreamente na existência de uma transmissão de pensamento, ele mudou de id)ia sem cessar, acabando por interpretar o !en(meno com os utensílios conceituais da psicanálise: chamouo de ;trans!erência de pensamento< e pretendeu explicálo racionalmente$ 8iante de Hones, que lhe exigia renunciar a seu pendor para o ocultismo a !im de salvar a doutrina da acusação de charlatanismo, ele a!irmou sua recusa a ver a psicanálise encerrada numa abordagem demasiadamente positivista$ .odas essas oscilaç#es mostram que 9reud aderiu apenas >s duas primeiras modalidades do irracional$ @ que existe em sua doutrina um pacto original que liga a psicanálise > !iloso!ia do luminismo e, portanto, a uma de!inição de um sujeito !undamentado na ra"ão$ -uito di!erente dessa abordagem, a terceira modalidade do irracional aparece na história da psicanálise, durante a própria vida de 9reud, a partir do momento em que esta retorna a práticas que negam ao mesmo tempo o poder do pacto !undador e a desconstrução desse pacto$ Esse !en(meno ) patente, hoje em dia, em algumas escolas de psicoterapia que renunciaram > própria id)ia de uma explicação racional do psiquismo$ ' nos atermos ao que !oi dito at) aqui, a psicanálise parece ser realmente uma ciência do homem$ E, se 9reud teve a tentação permanente de integrála nas ciências da nature"a, ele nunca deu esse passo, acabando por elaborar um modelo mais especulativo, passível de dar conta de uma conceituação não diretamente ligada > experiência clínica$ ' esse modelo ele deu o nome de metapsicologia, numa re!erência > meta!ísica, ramo da !iloso!ia que trata das coisas especulativas, do ser ou da imortalidade da alma$ 7essa metapsicologia ele introdu"iu, entre outras coisas, o inconsciente, as puls#es, o recalcamento, o narcisismo, o eu e o isso$ 9oi atrav)s dela que a nova doutrina do inconsciente rompeu com a psicologia clássica$ 'ssim, em ve" de criticar 9reud, ora por haver renunciado > ciência, ora por não ter entendido nada da !iloso!ia, não seria mais pertinente compreender a maneira como ele tradu"iu a meta!ísica numa metapsicologia e como inventou um sistema interpretativo que permitia desconstruir0o os mitos !undadores da religião monoteísta e da sociedade ocidentalN ;*oderíamos atribuirnos a tare!a<, escreveu ele, ;de decompor, colocandonos nesse ponto de vista, os mitos relativos ao paraíso e ao pecado original, ao mal e ao bem, > imortalidade etc$, e de tradu"ir a meta!ísica em metapsicologia$< 6m programa e tanto$ O conceito de desconstru"o foi introduzido por :ac!ues .errida# *er a terceira parte deste livro, capítulo N# O homem tr+gico
*or sua ambição metapsicológica, a psicanálise adquire seu status especí!ico$ @ ele que lhe permite opor o homem tr8gico, verdadeiro cadinho da consciência moderna, ao homem comportamental reles criatura cienti!icista inventada pelos adeptos do c)rebromáquina$ 'o monstro sem nome, !abricado por um cientista mega/omaníaco a psicanálise op#e o destino de ictor 9ranenstein, isto ), a trajetória de um sujeito perpassado por seus sonhos e utopias, mas limitado em suas paix#es mortí!eras pela sanção da lei$ 8esse homem trágico encontramos a estrutura em @dipo e Kamlet$ 'ssim como o tirano de 4ó!ocles so!re seu destino como um !lagelo que o torna di.erente de si mesmo, o príncipe de 4haespeare o internali"a como uma imagem repetitiva do mesmo1 .rag)dia do desvelamento, de um lado, drama do recalcamento, do
outro: ;Kerói antigo<, escreveu Hean 4tarobinsi, ;@dipo simboli"a o universal do inconsciente dis!arçado como destino\ herói moderno, Kamlet remete ao nascimento de uma subjetividade culpada, contempor&nea de uma )poca em que se des!a" a imagem tradicional do cosmo$< Hean 4tarobinsi, ;Kamier er 9reud<, in Ernest Hones, Pamlet et =edzpe I%ondres, /C3DJ, *aris, 5allimard, /CVF$ 4e 9reud houvesse continuado tributário de um modelo neuro!isiológico, nunca teria conseguido atuali"ar os grandes mitos da literatura para construir uma teoria dos comportamentos humanos$ Em outras palavras, sem a reinterpretação !reudiana das narrativas !undadoras, @dipo seria apenas um personagem de !icção, e não um modelo universal do !uncionamento psíquico: não haveria complexo de @dipo nem organi"ação edziana da !amília ocidental$ 8o mesmo modo, se 9reud não houvesse inventado a pulsão de morte, por certo !icaríamos privados de uma representação trágica dos desa!ios históricos que a consciência moderna tem de en!rentar$ ?uanto > psicologia, ela se haveria perdido no culto hedonista do poder identitário para promover um sujeito liso e sem rebarbas, inteiramente encerrado num modelo !ísicoquímico$ 6m dos grandes argumentos opostos ao sistema !reudiano, em especial por Uarl *opper e seus herdeiros, ) o caráter não !alseável, não veri!icável ou irre!utável que ele tem$ ncapa" de questionar seus próprios !undamentos, a psicanálise não atenderia aos crit)rios que permitiriam !a"êla ingressar no mundo das ciências$ Essa análise ) sedutora, mas reducionista$ 7a verdade, baseiase na hipótese de que existe uma oposição irredutível entre a ci@ncia, de um lado, e aspseudoci@ncias, de outro$ 1ra, essa divisão não dá conta nem dos laços que unem a ciência ao cienti!icismo, nem dos desvios do irracional, nem do status dos saberes racionais cujos m)todos aparentamse com os da ciência, nem da inclusão da subjetividade no campo das ciências do homem$ Karl
Em outras palavras, para compreender o que pode ser a racionalidade em psicanálise, ) preciso nos a!astarmos dessa hipótese e mostrarmos que o crit)rio de cienti!icidade de uma teoria depende tanto de sua aptidão para inventar novos modelos explicativos quanto de sua capacidade permanente de reinterpretar os modelos antigos em !unção de uma experiência adquirida$ 9reud não parou de re!ormular seus próprios conceitos$ 7ão apenas modi!icou sua teoria da sexualidade em !unção de sua experiência clínica B com as mulheres, em particular B, como tamb)m trans!ormou de ponta a ponta sua doutrina, passando da primeira tópica Iconsciente, inconsciente, pr)conscienteJ para a segunda Ieu, isso, supereuJ e, posteriormente, !orjando a id)ia da pulsão de morte$ 'l)m disso, como sistema de pensamento, a psicanálise deu origem a correntes teóricas distintas umas das outras, e que !oram a expressão de consideráveis re!ormulaç#es$ 4e o !reudismo inclui o conjunto das correntes2 que recorrem, simultaneamente, a um m)todo clínico centrado no tratamento pela !ala Ia psicanáliseJ e a uma teoria que pressup#e uma re!erência comum > sexualidade, ao inconsciente e > trans!erência, as divergências entre as tendências são de import&ncia capital$ Elas assinalam a que ponto a história da psicanálise con!undese com a das sucessivas interpretaç#es que se !i"eram da doutrina original construída por 9reud$ E ) justamente por ter dado origem a todos esses componentes que o !reudismo produ"iu, ao mesmo tempo, um dogmatismo e as condiç#es de uma crítica desse dogmatismo, uma hístoriogra!ia o!icial, apoiada na ideali"ação de suas próprias origens Iidolatria do mestre !undadorJ, e uma historiogra!ia !ormal, capa" de revisar esse dogma$ .icion+rio de psican+lise, op- cit-; fi4e1os o recensea1ento de seis grandes escolasM annafreudis1o; Nleinis1o; ego psHchologH psicologia do ego; Independentes; selfpsHchologH psicologia do seli e
lacanis1o*or Altimo, como todas as inovaç#es cientí!icas, ele suscitou resistências, con!litos, ódios e atitudes revisionistas, 1 anti!reudjsmo mais virulento B de 5rMnbaum a 4Xales B ) tamb)m um produto do !reudismo$ 1 !reudismo clássico B aquele que !oi elaborado em iena por 9reud B repousa, portanto, no duplo modelo de dipo e Kamlet: a trag)dia inconsciente do incesto e do crime se repete no drama da consciência culpada$ 7o cerne dessa con!iguração, 9reud atribuiu ao patriarcado um lugar !undamental$ -as sabia que ele estava em declínio$ *or isso, sua teoria da !amília edipiana repousa, como mostrou em /C/0 em 7otem e tabu, na id)ia da possível revalori"ação simbólica de uma paternidade irremediavelmente decaída$ Em 9reud, o pai, como o ^otan de ^agner, ) uma !igura abolida, !racassada, esmagada pelo poderio crescente da emancipação !eminina$ 8i!erentemente de Pacho!en ou de ^eininger, 9reud nunca recai no anti!eminismo$ %onge de opor o passado ao presente, ou o ;bom patriarcado< aos perigos vindouros de uma chamada !emini"ação ;matriarcal< do corpo social, ele !a" da derrota da tirania paterna uma condição necessária do advento das sociedades democráticas$ E, para ilustrar sua tese, toma emprestado de 8arXin o mito da horda selvagem$ Eis o essencial dele: numa era primitiva, os homens viviam no seio de pequenas hordas, cada qual submetida ao poder despótico de um macho que se apropriava das mulheres$ 6m dia, os !ilhos da tribo, rebelandose contra o pai, puseram !im ao imp)rio da horda selvagem$ 7um ato de violência coletiva, mataram o pai e comeram seu cadáver$ Entretanto, depois do assassinato, sentiram remorsos, renegaram sua perversidade e, em seguida, inventaram uma nova ordem social, instaurando simultaneamenre a exogamia, a proibição do incesto e o totemismo$ 9oi esse o modelo comum a todas as religi#es, sobretudo ao monoteísmo$ 1 complexo de @dipo não ) outra coisa, no di"er de 9reud, senão a expressão de dois desejos recalcados Idesejo de incesto e desejo de matar o paiJ contidos nos dois tabus característicos do totemismo: a proibição do incesto e a proibição de matar o paitotem$ *or conseguinte, ele ) universal, uma ve" que exprime as duas grandes proibiç#es !undadoras de todas as sociedades humanas$ 8ito de outra maneira, 9reud introdu" duas temáticas na antropologia: a lei moral e a culpa$ Em lugar da origem, um ato real: o assassinato necessário\ em lugar do horror do incesto, um ato simbólico: a internali"ação da proibição$ .oda sociedade, portanto, !undamentase num regicídio, mas só se emancipa da anarquia mortí!era quando o assassinato ) acompanhado de uma sanção e de uma reconciliação com a imagem do pai$ 'ssim, 7otem e tabu pode ser lido como um iivro mais político do que antropológico$ Ele prop#e, com e!eito, uma teoria do poder democrático centrada em três exigências: ato !undador, instituição da lei e renAncia ao despotismo$ Esse modelo edipiano clássico !oi contestado, durante o período do entreguerras, por -elanie Ulein e a escola inglesa$ R concepção de uma !amília patriarcal, na qual o pai era despojado das marcas de sua tirania, sucedeuse a visão leiniana de uma organi"ação !amiliar da qual o pai era como que descartado$ Em /C03, Uarl 'braham revisou a teoria !reudiana das !ases e introdu"iu a id)ia de que o sujeito era moldado por sua relação imaginária com os objetos$ 'briuse assim o caminho para uma inversão radical da perspectiva !reudiana$ Em ve" de pensar a evolução do sujeito em !unção da passagem por estágios biológicos, procurouse, antes, mostrar como se organi"ava a atividade !antasística precoce de acordo com os tipos de relaç#es objetais$ *er a esse respeito Eug2ne Enri!uez, .a horda ao Estado (
Em /C23, -elanie Ulein recentrou toda a clínica !reudiana nos próprios objetos, vividos como bons ou maus, !rustrantes ou satis!atórios, persecutórios ou valori"adores etc$ =om esse gesto, !e" a psicanálise das crianças
sair do campo da educação e retirou a do adulto do campo da neurose$ Em ve" de analisar as crianças por interm)dio de um dos pais, como !i"era 9reud, e em ve" de se recusar a aceitálos em tratamento antes dos quatro anos de idade, como preconi"ava 'nna 9reud, -elanie Ulein aboliu todas as barreiras que proibiam o acesso direto ao inconsciente in!antil$ *or isso, concebeu o enquadre necessário > expressão verbal e não verbal da atividade psíquica das crianças: brinquedos, animais, bolas, bolas de gude, lápis, massa de modelar, móveis de pequenas dimens#es etc$ 4e 9reud !oi o primeiro a descobrir no adulto a criança recalcada, -elanie Ulein !oi a primeira a revelar na criança o que 48 estava recalcado: o bebê$ 1 estudo da relação arcaica com a mãe permitiu, então, apreender melhor a origem das psicoses, que em geral decorrem de uma !usão destrutiva com o corpo materno, vivido como um objeto persecutório$ 'o modelo edipiano clássico, portanto, os ldeinianos opuseram um modelo pr)edipiano, que remete ao universo angustiante de uma grande simbiose com a mãe: um mundo selvagem, inacessível > lei, entregue não mais ao despotismo paterno, mas > crueldade do caos materno$ 'ssim, > imagem do homem trágico !reudiano, >s voltas com o con!lito neurótico e com a necessidade de uma reconciliação com a consciência culpada, sucedeuse a visão do homem trágico leiniano: um sujeito no limite da loucura e devorado internamente por suas próprias !antasias antes mesmo de poder entrar em con!lito com o mundo$ ' batalha teórica e clínica que op(s os !reudianos clássicos aos leinianos, a partir de /C23, aparentase com a querela entre 'ntigos e -odernos$ 9orjado por 9reud, o modelo edipiano tinha como pano de !undo a sociedade vienense do !im do s)culo, atormentada por sua própria agonia, por sua sensualidade envergonhada e pelo culto da intemporalidade$G 7ão apenas o pai estava perdendo sua autoridade > medida que a monarquia dos Kabsburgo desmoronava sob o peso de sua arrog&ncia, como tamb)m o corpo das mulheres parecia ameaçado pela irrupção de um poderoso desejo de go"o$ E essa inclinação impunha o grande risco de abolir a ordem antiga, acusada de imobilismo, e !avorecer a instituição do Estado moderno, onde o lugar do pai, símbolo de unidade, desapareceria progressivamente$ 5erada pelo declínio dessa !unção paterna, a psicanálise tentou, com 9reud, revalori"ar simbolicamente o pai decaído atrav)s de uma nova teoria da !amília, centrada na !igura de @dipo$ %onge de ser saudosista, ela permitia que o sujeito, voltado para sua intimidade, se emancipasse da antiga hierarquia e tivesse acesso > liberdade$ ?uanto > re!ormulação ieiniana, teve como cenário, ao contrário, a sociedade inglesa do período entre guerras, cujos ideais re!letiu$ 7esse mundo democrático, onde a emancipação das mulheres estava mais avançada do que em iena, a re!lexão sobre o lugar onipresente da mãe na educação dos !ilhos pareceu mais importante do que a tentativa vienense de restaurar uma hipot)tica !unção paterna, ainda que !osse ao preço de uma simboli"ação$ 4ob esse aspecto, o modelo deiniano !oi mais ;moderno< que o de 9reud e mais voltado para os problemas suscitados pela evolução da sociedade ocidental da segunda metade do s)culo OO$ *or isso teve um impulso considerável no movimento psicanalítico, a ponto de se tornar a grande re!erência da *' tanto na Europa Icom exceção da 9rançaJ quanto nos países latinoamericanos$ 7a esteira do leinismo, a escola inglesa ampliou ainda mais sua in!luência no mundo inteiro, em virtude da qualidade clínica das obras de seus principais representantes, sobretudo a de 8onald ^oods ^innicott$ 4e o leinismo !e" a totalidade da teoria psicanalítica pender para o lado da criança que estaria >s voltas com o poderio materno, as teses da sel.ps"cholog", que se desenvolveram essencialmente nos Estados 6nidos, tamb)m empreenderam uma revisão do !reudismo clássico$ @ a Kein" Uohut, psicanalista norteamericano de origem vienense, que devemos a elaboração mais requintada dessas teses, cujos vestígios encontramos em
diversos outros componentes do !reudismo$ -embro da *', mas revoltado com o conservadorismo dos notáveis da psicanálise que encerrava o tratamento num ritual cristali"ado, Uohut procurou dar um novo vigor ao !reudismo norteamericano, atolado no pragmatismo e no dogma$ Kerdeiro, ao mesmo tempo, da tendência vienense e da re!ormulação deiniana, ele inventou uma terceira via que consistia em pensar os distArbios da subjetividade em !unção dos problemas relacionais ligados > evolução da sociedade$ Em sua opinião, de !ato, o eu Iou sel.F tinhase trans!ormado no objeto de todos os investimentos narcísicos, num mundo em que o desmoronamento dos grandes valores patriarcais levava > ideali"ação de uma !igura da individualidade imersa na contemplação de sua imagem$ 8aí a id)ia de que o mito de 7arciso era mais apropriado que o de @dipo para explicar o novo malestar da civili"ação$ Uohut constatou que a de!iciência arcaica do sujeito era imputável a uma !alta de a!eição materna que o incapacitava para manter uma relação com o outro$ 4entindose va"io, ele mascarava sua mutilação sob a !achada de um eu de !ancariaV Ium si mesmo ou sel.]1 4egundo Uohut, o sujeito reconstrói um ;eu grandioso<, estruturado por uma imagoF parental ideali"ada$ 7essa perspectiva, Kamlet trans!ormase num herói narcísico cujo sel. en!raquecido não resiste >s trag)dias de uma sociedade que perdeu todos os seus re!erenciais$ Essa passagem de @dipo a 7arciso deixa claro como a psicanálise dos anos sessenta tentou resolver os problemas de uma subjetividade entregue ao individualismo e >s subst&ncias químicas$ +edu"ido a se mirar na in!elicidade in!inita de sua imagem, o homem trágico dessa psicanálise do sel. !oi a expressão máxima de uma preocupação consigo mesmo que não demoraria a soçobrar no nada de uma sociedade convertida ao paradigma da depressão$ 8epois de assimilar a revisão leiniana, Hacques %acan tamb)m prop(s uma revisão do modelo edipiano clássico$ Há em /C2D, num c)lebre artigo dedicado aos complexos !amiliares,D ele pintou um quadro sombrio do universo da !amília ocidental, perpassada, a seu ver, por todas as torpe"as sociais, todas as violências subjetivas e todos os con!ormismos$ ' temática do sagrado e o niilismo anti burguês que moviam sua pluma não o impediram de !icar c)tico diante da +evolução de 1utubro$ 'ssim, ele julgou ne!astas as tentativas comunistas de abolição da !amília$ *rovenientes da utopia, elas tra"iam o risco, a seu ver, de condu"ir a um autoritarismo mais grave do que o imposto pela legitimidade !amiliar$ Dinnicott falou, a prop%sito disso, num “falso self, em “.istor"ão do eu em fun"ão do verdadeiro e do falso self (?@GP8, in O ambiente e os processos de matura"ão,
Rs v)speras da guerra, portanto, ele de!endeu os valores de um conservadorismo esclarecido, inspirado em .ocqueville$ -as apoiouse tamb)m nas teses de 5eorges Pataille e -arcel -auss, ao mesmo tempo que apregoava o culto de um !reudismo subversivo, o Anico capa" de servir de instrumento a uma re!lexão sobre o vínculo social, o imaginário, o sagrado e o sujeito$ 4ob esse aspecto, %acan !oi mais !reudiano do que os deinianos e os partidários da psicanálise do sel. =om e!eito, inspirouse na tese edipiana clássica para revalori"ar a !unção paterna$ Em seguida, !oi ao ler *s estruturas elementares de parentesco,$ de =laude %)vi4trauss, que ele descobriu o instrumento teórico que lhe permitiu pensar essa !unção de maneira estrutural$ 'poiandose nos princípios da lingMística saussuriana, !e" da linguagem a condição do inconsciente, renunciando > id)ia !reudiana do substrato biológico, herdado do darXinismo$ *or essa
perspectiva, elaborou de!initivamente sua nova tópica Isimbólico, imaginário, realJ e sua teoria da nomeação$ 'ssim, o pai desapossado, humilhado e des!eito que atormentara a consciência ocidental do !im do s)culo ressurgiu, com %acan, como investido de um poder de linguagem$ 8e certo modo, ele !oi reconstruído no conceito de 7omedo*ai e limitado a um poder de nomeação, > medida que se decompunha na realidade social das novas !ormas de organi"ação !amiliar$ Qome3do
%acan !oi, sem sombra de dAvida, o maior teórico do !reudismo da segunda metade do s)culo OO$ 4ua concepção do homem trágico derivou diretamente da que prevalecia na escola de 9ran!urt$ 8e UojQve, em primeiro lugar, e depois de 'dorno e Korheimer,< ele tomou emprestada a temática da crítica do luminismo e da negatividade da história$ *or isso, trouxe para a psicanálise o sopro da tradição !ilosó!ica alemã$ 'trav)s dessa retomada, produ"iuse em solo !rancês um ato de subversão com que 9reud jamais teria sonhado, ele que havia edi!icado sua teoria sobre um modelo biológico recusandose a levar em conta o discurso !ilosó!ico$ 'o reinterpretar o modelo edipiano > lu" da antropologia estrutural, %acan !e" da paternidade, como dissemos, uma construção simbólica$ =omo tal, e não em virtude de qualquer essência natural, ela era, em sua opinião, tão universal quanto a !amília$ ?uanto a esse ponto, %acan aproximouse de %)vi4trauss, que escrevera em /CGV: ;' vida !amiliar apresentase praticamente em toda parte nas sociedades humanas, mesmo naquelas em que os costumes sexuais e educativos são muito distantes dos nossos$ 8epois de haverem a!irmado durante aproximadamente cinqMenta anos que a !amília, tal como conhecida pelas sociedades modernas, só podia ser um !en(meno recente, resultado de uma longa e lenta evolução, os antropólogos inclinamse agora para a convicção oposta, ou seja, a de que a !amília, repousando na união mais ou menos duradoura e socialmente aprovada entre um homem e uma mulher e seus !ilhos, ) um !en(meno universal, presente em todos os tipos de sociedades$< ' elaboração dos di!erentes modelos de organi"ação do psiquismo mostra claramente que a concepção psicanalítica da !amília e da identidade sexual evoluiu em !unção das trans!ormaç#es da sociedade ocidental$ 8epois de tentar dar conta de uma triangulação clássica, na qual o pai, já decadente, ainda assim ocupava um lugar preponderante, o modelo !reudiano !oi revisado por -elanie Ulein, que con!eriu > posição materna um lugar determinante$ ?uanto > óptica lacaniana, ela pereni"ou esse reino, atribuindo > mulher um poder in!inito$ 'trav)s de seu go"o, ela seria, segundo %acan, ;sem limites<, e atrav)s da maternidade, exerce sobre a criança e sobre o pai um poder considerável$ ' teoria lacaniana remetia, assim, a um ideal segundo o qual a mulher, havendo atingido um grau in!inito de liberdade, pode decidir por si mesma, graças aos anticoncepcionais, sobre a opção de procriar, com ou sem o consentimento dos homens$ 8aí o poder incontrolável que lhe permite retirar do pai o direito de se apropriar do processo de !iliação$ =omentando, em /CGF, o caso de uma mulher norteamericana que havia recorrido > inseminação arti!icial post mortem, graças ao esperma congelado de seu marido, %acan previu, aliás, que a onipotência materna corria realmente o risco de vir um dia a ser erigida em !etiche: ;8eixolhes a preocupação de extrapolar: a partir do momento em que enveredarmos por esse caminho, !aremos nas mulheres, dentro de centenas de anos, crianças que serão !ilhos diretos dos homens de talento que vivem atualmente, e que, daqui at) lá, terão sido preciosamente conservados em vidrinhos$ 7essa ocasião, cortaram alguma coisa do pai, e da maneira mais radical: inclusive a palavra$ ' questão agora ) saber como, por que caminho, de que maneira, se inscreverá no psiquismo da criança a palavra do ancestral, do qual a mãe será o Anico representante e o Anico veículo$ =omo irá ela !a"er !alar o ancestral enlatadoN<
-odelo universal, a !amília ) uma entidade indestrutível como reali"ação concreta das estruturas de parentesco, isto ), da aliança e da !iliação$ 9onte de normalidade, ela tamb)m está como sabemos graças > psicanálise B na origem de todas as !ormas de patologias psíquicas: psicoses, pervers#es, neuroses etc$ 'ssim, não há ra"ão para nos inquietarmos com seu !uturo, como !a"em periodicamente os moralistas e os representantes das diversas religi#es que temem que ela seja destruída pela generali"ação do divórcio$ 's diversas modalidades de união livre e de !amília recomposta, aliás, mostram que esse modelo se perpetua sob !ormas sempre renovadas$ ?uanto a seu poder de atração, ele ) medido pelo !ato de que quem ) excluído dele pela impossibilidade de contrair matrim(nio Ios homossexuaisJ quer, doravante, ser incluído no modelo a !im de poder adotar crianças$ :ac!ues -acan, O 7emindrio, livro N, A rela"ão de objeto (?@0G3?@0L8, /io de :aneiro, :orge ;ahar, ?@@0#
=on!rontada com esse desejo de !ilhos por parte dos casais homossexuais, a psicanálise de hoje tem bastante di!iculdade de dar respostas coerentes$ ' bem da verdade, enquanto a homossexualidade era considerada uma degeneração, a questão de sua integração na norma não !oi seriamente considerada$ =ontudo, a partir do momento em que 9reud se recusou a classi!icála entre as taras !a"endo dela uma predisposição sexual derivada da bissexualidade, !oi aberto o caminho para todas as interrogaç#es que surgem hoje em dia$ 1s herdeiros de 9reud, no entanto, sobretudo Ernest Hones e 'nna 9reud, tenderam a considerála uma patologia sexual passível de ser ;curada< por uma análise bem condu"ida$ 8aí a vã tentativa de trans!ormar os homossexuais em heterossexuais, que teve como saldo um !racasso contundente$ ' despeito dessa experiência, obedecendo a uma decisão de /C0/, a direção da *' sempre se recusou a aceitar o!icialmente praticantes homossexuais nas !ileiras das sociedades que a comp#em$ Em !unção disso, atrasouse em relação > evolução dos costumes e das leis, assim como em relação >s outras associaç#es psicanalíticas Isobretudo lacanianasJ que há muito tempo rejeitam qualquer !orma de discriminação$ 4e a homossexualidade já não ) encarada como uma perversão sexual, em parte graças > psicanálise, há todas as ra"#es para achar que outros ;anormais< não tardarão a encarnar o ideal transgressivo do homem tr8gico’5 tomando o lugar dos que tiverem sido incluídos na norma: os celibatários sem !ilhos Ihomossexuais ou heterossexuaisJ, os "oó!ilos, os homossexuais ;a!eminados<, os libertinos, as prostitutas ou prostitutos, os travestis, os transexuais etc$ 7obre esse assunto, ver 9ichel oucault, “Os anormais”, in /esumo dos cursos###, op# cir# E .idier Eribon, /efie4ions sur la !uestion gaH,
*ara al)m da reivindicação legítima dos homossexuais de terem acesso > paternidade ou > maternidade atrav)s da adoção, cabe nos perguntar, portanto, quem serão os =harlus e os 1scar ^ilde de amanhã$ O universal, a diferen"a, a e4clusão
4e os modelos elaborados pela psicanálise evoluem em !unção da sociedade em que se mani!estam, tamb)m se mostram de!asados em relação a ela$ 7a maioria dos países em que a psicanálise se implantou, e a despeito do progresso ligado aos movimentos de emancipação, as mulheres, por exemplo, ainda são vítimas de desigualdade, in!eriori"adas e pouco representadas nas altas es!eras do poder político, particularmente na 9rança$ 'l)m disso, o direito > contracepção e ao aborto ) !reqMentemente menospre"ado pelos representantes do integrismo moral e religioso$ Entretanto, nos países onde a psicanálise não se implantou, a situação ) pior, uma ve" que as mulheres Icomo, de resto, os homossexuaisJ nem sequer são consideradas sujeitos plenos$ Há tive oportunidade de mostrar que as condiç#es invariantes necessáriasS > implantação das id)ias !reudianas e de um movimento psicanalítico são, por um lado, a constituição de um saber psiquiátrico, isto ), de um olhar para a loucura que seja capa" de conceituar a id)ia de doença mental em detrimento de qualquer id)ia
de possessão de origem divina, e, por outro, a existência de um estado de direito passível de garantir a livre transmissão do saber$ 1ra, como mostrou o surgimento do paradigma da histeria no !im do s)culo OO, essa conceituação passou por uma nova apreensão do corpo das mulheres$ Em outras palavras, para que a psicanálise existisse e para que a racionalidade destronasse a id)ia de possessão, !oi necessário que as mulheres se tornassem o vetor de uma contestação das !ormas de dominação que entravavam sua subjetividade$ 4empre houve o !eminino na origem da psicanálise, e tudo aconteceu como se a emergência desse !eminino !osse necessária para a reali"ação de uma trans!ormação da subjetividade universal$ Em geral, ) a ausência de um desses elementos Iconstituição de um saber psiquiátrico ou estado de direitoJ, ou de ambos ao mesmo tempo, e não as ;mentalidades<, que explica a não implantação ou o desaparecimento do !reudismo tanto nos países de ditadura totalitária Ina"ismofcomunismoJ como nas regi#es do mundo marcadas pelo islamismo e por uma organi"ação comunitária ainda tribal$ 7esse aspecto, conv)m sublinhar que as ditaduras militares não impediram a expansão da psicanálise na 'm)rica %atina Isobretudo no Prasil e na 'rgentinaJ$ sso se prende > nature"a delas, que !oi di!erente da dos dois sistemas totalitários que a destruíram na Europa$ 1s regimes de tipo ;caudilhista< não !oram ;exterminadores<$ 7ão eliminaram o !reudismo como ;ciência judaica<, como aconteceu com o na"ismo entre /C22 e /C33, nem como ;ciência burguesa<, como aconteceu como comunismo entre /C3G e /CDC$ 1s regimes militares perseguiram adversários e massacraram populaç#es civis, mas não procuraram destruir nenhuma ciência como tal$ 'ssim, podemos enunciar a hipótese de que, para !a"er a psicanálise desaparecer inteiramente de uma região do mundo, ou para impedila de se implantar nos lugares onde ela não existe, ) preciso eliminála, como se extermina uma raça, um povo, uma classe ou um !lagelo, ou então perpetuar modalidades de interpretação do psiquismo anteriores ao surgimento da medicina cientí!ica I!eitiçaria, medicinas tradicionais, in!luência religiosa etc$J$ 7o primeiro caso, a erradicação ) destrutiva, porque ) em nome de uma di!erença que se abole uma outra di!erença, ao passo que, no segundo, ) simplesmente regressiva, porque ) invocando a relatividade das culturas que se pretende redu"ir o gênero humano a uma soma de particularismos$ Erigida > condição de !etiche, a di!erença tornase então !onte de exclusão$ E ) justamente esse !en(meno de !etichi"ação das di!erenças que tende a condu"ir ao desaparecimento da psicanálise nos países onde se haviam reunido, cem anos atrás, todas as condiç#es de uma implantação per!eitamente bemsucedida, em especial os Estados 6nidos$ ' constatação da existência de uma identidade sexual Igênero ou genderF desvinculada da realidade org&nica ou !isicoquímica não impede que a anatomia, a !isiologia e o !uncionamento hormonal dos homens e mulheres sejam distintos$ ' di!erença biológica existe e deve ser levada em conta, mas nem toda ela o )$ Essa di!erença tamb)m não impede que cada sujeito seja sempre di.erente Iou outroF na relação que mant)m com um outro ou com sua própria identidade$ @ que todo ser humano parte mascarado para sua relação com seu semelhante, de ve" que ) perpassado pelo desejo de se !a"er amar ou reconhecer$ Existe, pois, uma in!inidade de di!erenças que, consideradas em conjunto, são constitutivas do universal do gênero humano$ @ por isso que, numa sociedade igualitárta, a lei tem que ser a mesma para todos os sujeitos, seja qual !or a cultura, a religião ou a identidade a que cada um, por outro lado, deseja vincularse$ ?uanto > proibição, isto )$ > internali"ação subjetiva de uma lei simbólica Icomo a proibição do incesto, por exemploJ, ela ) absolutamente necessária ao !uncionamento de todas as sociedades humanas$ Em outras palavras, ) tão err(neo valori"ar o universalismo em nome da recusa da di!erença quanto rejeitar o universalismo em nome da valori"ação arbitrária de uma Anica di!erença: a anatomia, por exemplo, mas tamb)m o gênero, a cor da pele, a idade, a identidade etc$ ' re!erência a princípios abstratos Ios conceitos, a lei, o simbólico, as estruturas, os invariantes etc$J ) tão necessária > humanidade inteira quanto a consideração da realidade concreta das vidas concretas: a sexualidade, a vida privada, a situação social, a mis)ria econ(mica, a doença, a solidão, a loucura, o so!rimento psíquico etc$
1ra, aquilo a que estamos assistindo, com a !etichi"ação atual de todas as dz.rren0as B :) iv, inconscientes dissociados, personalidades mAltiplas, polari"ação a respeito do trauma sexual, política sexual baseada em categorias simplistas, sujeito psíquico redu"ido a um neur(nio ou > dependência de um vício etc$ B, ) uma o!ensiva que visa a substituir o duplo ideal do universal e do di!erente por uma di!erenciação em cadeia na qual todos se trans!ormam em vítima expiatória de um erro sempre imputável a um outro1(R8 (R8 Qoma confer&ncia proferida em mar"o de ?@@@, Alain in)iel)raut resumiu essa situa"ão numa f%rmula cativanteC “7ofro, logo acuso#”
nventada nos Estados 6nidos há trinta e cinco anos, essa !etichi"ação da di!erença levou a uma política de discrimina0/o positiva Aa..irmatzve actionF, que consiste em dar legalmente um tratamento pre!erencial a !avor dos grupos humanos que são vítimas de injustiças: os negros, os hisp&nicos, as mulheres, os homossexuais e outros$ Ela se assenta na id)ia de que, para reparar uma desigualdade, conv)m valori"ar uma di!erença em relação a outra di!erença$ 1ra, a aplicação desse princípio, que vimos em ação a propósito do caso da exposição sobre 9reud na %ibrarL o! =ongress, ) cada ve" mais contestada hoje em dia, uma ve" que não !avoreceu a igualdade$ E ) !ácil compreender por quê: uma discriminação nunca pode ser positiva, pois sempre pressup#e a existência de uma outra vítima que serve de bode expiatório por sua própria di!erença$3 7as sociedades europ)ias, onde o multiculturalismo não tem a mesma import&ncia que nos Estados 6nidos, na 'ustrália ou no =anadá, ) essencialmente com as lutas das mulheres que a reivindicação de igualdade corre o risco de se trans!ormar num culto da di!erença, na reivindicação de uma discrimina0/o positiva, e por !im, num verdadeiro processo de exclusão em cadeia$ R exclusão do homem do exercício da paternidade corresponde, por outro para o psíquico$ ' pergunta decisiva ): conseguiremos I$$$J reconlado, a exigência da presença masculina nas tare!as dom)sticas ou ciliar os homens com os sacri!ícios que continuarão a ser necessários na prestação de cuidados aos bebês$ E, do mesmo modo, > exclusão e recompensálos por elesN 1 autor mostra como o racismo se alimenta das ambivalências entre um pensamento rígido de inclusão e um pensamento igualmente rígido da di!erença do outro como di!erente corresponde uma intensa vontade de reinventar categorias, tipologias ou patterns que permitam distinguir os ;bons< e os ;maus< sujeitos, em !unção de uma nova ;psicologia dos povos<, das etnias e dos gêneros$ ' redução do pensamento a um mecanismo cerebral !avorece, evidentemente, a proli!eração desses modos de !etichi"ação: o cienti!icismo condu" ao etnicismo do mesmíssimo modo que o universalismo rígido leva ao comunitarismo$ @ que nada ) mais destrutivo para o sujeito do que ser redu"ido a seu sistema !ísico químico, e nada ) mais humilhante para esse mesmo sujeito do que ver seu so!rimento íntimo rebaixado > !alsa di!erença de uma origem ;)tnica<$ 4e a serotonina viesse a ser considerada a causa Anica do suicídio, se o ato sexual passasse a ser assimilado a um estupro, se o migrante dos arrabaldes passasse a não ser encarado senão como a soma de seus ;amuletos<, e se, por !im, a imagem do homem tr8gico !osse redu"ida ao exercício mec&nico das !unç#es vitais, ao mesmo tempo que * -ulher, tornada onipotente, se identi!icasse mais com sua di!erença do que com um sujeito completo, nossas sociedades estariam >s v)speras de mergulhar numa nova barbárie, tão temível quanto a que 9reud denunciou em /C0F ao se conscienti"ar de que a civili"ação ocidental não estava em condiç#es de impor > humanidade a limitação de suas puls#es destrutivas: ;' princípio, podíamos pensar<, escreveu ele, ;que o essencial era a conquista da nature"a no intuito de adquirir recursos vitais, e que os perigos que ameaçavam a civili"ação seriam eliminados por uma distribuição apropriada dos bens assim conquistados entre os homens$
=rítica das instituiç#es psicanalíticas nventada por judeus do luminismo herdeiros da Kasalah, a psicanálise pretendeu, desde sua origem, tornarse um grande movimento de libertação$ 'os olhos de seus !undadores, reunidos na 4ociedade *sicológica das ?uartas9eiras, a exploração do inconsciente deveria permitir que a humanidade aplacasse seus so!rimentos$ =omo revolução do sentido íntimo, a psicanálise tinha como vocação primária, por .im, modi!icar o homem mostrando que ;1 eu ) outro<$ 'ssim ) que, desde muito cedo, ela pretendeu dotarse de uma instituição capa" de tradu"ir numa política sua concepção do mundo$ Esta remetia, por outro lado, > sociedade em que viviam os primeiros !reudianos: um imp)rio em declínio, mas cujas minorias eram protegidas por uma autoridade imperial que as reunia a despeito de suas di!erenças, impedindo que elas desintegrassem umas >s outras$ 9oi nesse modelo que 9reud e 9erenc"i se apoiaram, em /C/T, para !undar a nternational *sLchoanalLtical 'ssociation I*'J$ 9reud recusouse a assumir sua direção para encarnar nela !igura socrática de um mestre sem mando$ mpulsionada por -ax Eitingon, inicialmente, e depois por Ernest Hones, a *' trans!ormouse, no entre guerras, numa organi"ação centrali"ada dotada de regras que almejavam normati"ar a análise e a!astar da !ormação os analistas ;selvagens<, transgressivos ou julgados carismáticos demais para praticar convenientemente a psicanálise$ 9oram igualmente proibidos os chamados costumes ;incestuosos<: proibição de que os praticantes analisassem membros de sua própria !amília ou mantivessem relaç#es sexuais com seus pacientes$ Essa pro!issionali"ação do o!ício de psicanalista, necessária > expansão mundial do !reudismo, caminhou pari passu com a supressão da !igura do mestre$ 7ão apenas o movimento psicanalítico renunciou a que essa imagem !osse encarnada por um pensador !ora do comum, como rejeitou tamb)m qualquer possibilidade de que um che!e de escola pudesse assemelharse a 9reud$ 1 pai !undador tinha que continuar Anico e inimitável$ 4e esse longo processo de normati"ação !oi ben)!ico > psicanálise, teve tamb)m o e!eito de trans!ormar a *' numa máquina de !abricar notáveis$ 'o espírito internacionalista que regeu sua criação sucedeuse a globali"ação que permite que a *' de hoje exporte para cada país, ;com a chave na mão<, seus modelos de !ormação, > maneira como as sociedades comerciais instalam em terra estrangeira seus produtos e suas !ábricas$ -as, > !orça de cultivar mais a norma do que a originalidade, e de cultivar a globali"ação em detrimento do internacionalismo, a psicanálise dos notáveis desertou do terreno do debate político e intelectual$ 7ão soube aceitar o desa!io da ciência nem as mudanças da sociedade$ Hulgandose intocável, não mais se preocupou a despeito da coragem individual de inAmeros de seus praticantes an(nimos B com a realidade social, com a mis)ria, o desemprego, os abusos sexuais e as novas reivindicaç#es provenientes das trans!ormaç#es da !amília patriarcaZ: sobretudo as dos homossexuais, a quem, como sublinhei, ela continua a recusar o direito de se tornarem psicanalistas$ Em suma, ela se desinteressoti do mundo real para se voltar para suas !antasias de onipotência$ *or isso, abandonou os jovens clínicos que havia !ormado e que acabaram não mais acreditando no valor das instituiç#es !reudianas$ @ por isso que eles as criticam vivamente e tentam conceber novas instituiç#es, mais adaptadas ao mundo moderno$ Essa capacidade crítica ) exercida mais ou menos em todas as partes do mundo$ -as ) certo que os países latinoamericanos Io Prasil e a 'rgentina, em especialJ estão hoje na vanguarda do renascimento do !reudismo, em virtude, em primeiro lugar, da !orça particular dos departamentos de psicologia instalados nas universidades, lugares onde se privilegia o ensino da psicanálise em detrimento das outras disciplinas$ =omo em toda parte, a comunidade psicanalítica !rancesa atravessa uma situação di!ícil ligada > crise geral das sociedades ocidentais: crise econ(mica, crise dos valores democráticos$ crise social, !alta de esperança e de ilus#es$ 1 desemprego, a queda da renda, a precariedade dos empregos e do trabalho, a vigorosa ascensão das psicoterapias corporais e dos tratamentos !armacológicos, mais rápidos e menos dispendiosos, levaram a uma perda da con!iança no m)todo !reudiano > medida que !oram sendo es!aceladas as grandes instituiç#es de vocação universal$ Em suma, o tecido social e político em que, a partir do !im da 4egunda 5uerra -undial, o !reudismo havia conseguido implantarse na 9rança tornouse menos receptivo > prática clínica
da psicanálise$ *or conseguinte, as grandes instituiç#es republicanas escola ou órgãos de saAde mental Ihospitais psiquiátricos, centros m)di copsicológico etc$J B passaram a !icar submetidas a imperativos econ(micos pouco compatíveis com a longa duração que caracteri"a a análise !reudiana, ao mesmo tempo que sua desintegração progressiva vai dando lugar a situaç#es incontroláveis de violência e delinqMência$ 'pesar de tudo, no entanto, a comunidade psicanalítica !rancesa continua sólida$ ' 9rança conta, de !ato, com cinco mil psicanalistas, distribuídos em mais de vinte associaç#es, ou seja, um índice de DV psicanalistas por cada milhão de habitantes: o mais alto do mundo, > !rente da 'rgentina e da 4uíça$ 1itocentos a novecentos deles, aproximadamente Iincluindo os alunosJ, !a"em parte das duas sociedades !iliadas > *': a 4ociedade *sicanalítica de *aris Is**J, de um lado, e a 'ssociação *sicanalítica da 9rança I'*9J, de outro$ 1s demais psicanalistas, em sua maioria, pertencem a grupos ou associaç#es provenientes da antiga Escola 9reudiana de *aris IE9*J, !undada por Hacques %acan em /CV3 e dissolvida durante a vida dele, em /CDT$ 1s historiadores do movimento adquiriram o hábito de classi!icar os grupos e os indivíduos em !unção da geração a que eles pertencem$ =onservam duas !ormas de numeração: uma, de orientação internacional, di" respeito aos membros da diáspora !reudiana espalhados pelo mundo, e a outra, de orientação nacional, permite inscrever a !iliação trans!erencial de cada praticante Iquem analisou quemJ a partir de um grupo pioneiro Ique, em alguns países, pode ser redu"ido a uma Anica pessoaJ$ 7a 9rança, três geraç#es se sucederam$ ' primeira comp(sse dos que !undaram a 4** em /C0V$ .rês deles desempenharam nessa sociedade um papel preponderante: -arie Ponaparte, +en) %a!orgue e +udolph %oeXenstein$ Em virtude de sua ami"ade com 9reud, de sua !ama e de sua atividade permanente como tradutora e militante dedicada > causa !reudiana, -arie Ponaparte !oi a principal organi"adora do movimento$ 8iante dela, %a!orgue e %oeXenstein tornaramse os dois didatas principais da 4**$ 9oram eles que, durante o entreguerras, !ormaram a segunda geração !rancesa, em especial aqueles que viriam a ser os líderes do movimento depois de /C3G: 8aniel %agache, Hacques %acan, 9rançoise 8olto, 4acha 7acht e -aurice Pouvet$ Em seguida veio a terceira geração, nascida entre /C0T e /C2T e !ormada pela segunda$ Ela teve que en!rentar duas cis#es, a primeira em /CG2, em torno da questão da análise leiga, e a segunda de" anos depois I/CV2J, quando %acan não !oi aceito como didata nas !ileiras da *' em virtude de sua recusa a se submeter >s regras vigentes a respeito da duração das sess#es e da !ormação dos analistas$2 %acan recusavase, de !ato, a se curvar ao imperativo da sessão de GG minutos, e propunha interrompêla por pontuaç#es signi!icativas que dessem um sentido > !ala do paciente$ 'l)m disso, criticava a id)ia da dissolução da trans!erência como momento terminal da análise$ ' seu ver, a análise era mantida por uma relação trans!erencial que nunca se acabava$ *or Altimo, rejeitou o princípio de uma separação radical entre a chamada análise didática e a chamada análise terapêutica Iou pessoalJ: por conseguinte, o candidato deveria !icar livre para escolher seu analista, sem ser obrigado a recorrer > lista dos titulares autori"ados$ *or outro lado, B e essa !oi, sem dAvida, a ra"ão pro!unda desse rompimento B, %acan restabeleceu, atrav)s de seu ensino e seu estilo, a imagem !reudiana do mestre socrático numa )poca em que ela era julgada ne!asta pela *', mais preocupada em !ormar bons pro!issionais da psicanálise do que em reavivar as ambiç#es elitistas que havia no seio do movimento$ (1hama3se an+lise leiga a an+lise praticada por não médicos#8
' segunda cisão, de longe a mais grave, !oi um drama, primeiro para o próprio %acan, que nunca havia pensado em abandonar a legitimidade !reudiana, e depois para toda a terceira geração !rancesa$ 4eus membros mais brilhantes tinham sido analisados por ele e, de repente, viramse em campos opostos: uns agrupados na '*9, !iliada > *' em /CVG, outros reunidos na E9* e de!initivamente rejeitados das inst&ncias legítimas do !reudismo, muito embora se considerassem muito mais !reudianos que seus homólogos da *', trans!ormados em rivais$
'o contrário de seus colegas norteamericanos ou ingleses, os psicanalistas !ranceses da terceira geração que pertenciam > *' nunca !ormaram uma escola homogênea$ 's grandes correntes do !reudismo internacional, aliás, não se implantaram na 9rança: nem a ego ps"cholog", nem o deinismo, nem o anna!reudismo, nem a sel.ps"cholog", nem as teorias pósleinianas de ^il!red +uprecht Pion$ 9oi o lacanismo, portanto, e somente ele, que dividiu em dois pólos, há mais de trinta anos, o campo psicanalítico !rancês: os não lacanianos I>s ve"es chamados de ;!reudianos ortodoxos de -elanie Ulein na escola inglesa, embora suas teses sejam mais próximas das posiç#es de 'nna 9reud$ 1ra, em /CV2, durante a segunda cisão, 8olto tamb)m não !oi aceita nas !ileiras da *'$ 's ra"#es invocadas para justi!icar essa recusa !oram o inverso das que tinham sido !ormuladas contra %acan: 8olto !oi criticada não por suas sess#es curtas Ias dela eram regulamentaresJ, mas por uma prática da análise didática demasiadamente carismática e, segundo se di"ia, incompatível com os padr#es da !ormação clássica$ 7a verdade, 8olto herdou a hostilidade que a direção da *' sempre havia mani!estado a respeito de seu analista, +en) %a!orgue, cuja t)cnica e prática eram consideradas desviantes, isto ), excessivamente próximas das de um 9erenc"i ou um +an$ Em conseqMência disso, a partir de /CV3, as duas principais !iguras !rancesas da psicanálise, 9rançoise 8olto e Hacques %acan, passaram a dispensar seu ensino !ora da *'$ 1s con!litos que dividiram a terceira geração tiveram repercuss#es consideráveis nas duas geraç#es seguintes, nascidas entre /C2G e /CGT$ 8urante quin"e anos, de !ato, elas tiveram que suportar as querelas e as !eridas narcísicas de seus brilhantes pares mais velhos$ 'dmiravamnos por sua obra e por sua competência como didatas, mas tamb)m os viam dilacerarse constantemente em torno de um mestre onipresente: Hacques %acan$ =ondenado por sua prática, ignorado por sua doutrina e diaboli"ado pelas duas sociedades da *', este começou a ser idolatrado em sua própria escola$ =omo conseqMência, em cada um dos campos, as duas novas geraç#es B a quarta e a quinta B herdaram uma história con!lituosa, legada tanto pelos companheiros de estrada de %acan, que com !reqMência imitavam o estilo do mestre, como pelos adversários dele, que o detestavam e caricaturavam seu personagem$ Enquanto as duas sociedades da *' denunciavam os lacanianos como não !reudianos, os lacanianos encaravam seus colegas da *' como burocratas que haviam traído a psicanálise em prol de uma psicologia adaptativa a serviço do capitalismo triun!ante$ Em suma, os primeiros viam estes Altimos como aprendi"es de !eiticeiro, adeptos das chamadas sess#es ;de cinco minutos< e incapa"es de empregar um enquadre psicanalítico s)rio, ao passo que estes encaravam os primeiros como ortodoxos desintelectuali"ados a serviço de uma psicanálise dita ;americana<$ Essa compartimentali"ação eclodiu no !im da d)cada de /CFT, quando +en) -ajor, um didata da 4** aberto > cultura e > clínica lacanianas, e 4erge %eclaire, lacaniano !iel, mas dedicado a um vasto projeto de ;+epAblica 9reudiana<, uniram seus es!orços para que os clínicos das novas geraç#es pudessem !inalmente !reqMentarse !ora de suas respectivas associaç#es$ 9oi a )poca da ;=on!rontação<, que permitiu aos praticantes de todas as !acetas criticarem suas instituiç#es e trocarem id)ias, especialmente quanto > maneira de exercer a psicanálise$ @ que, se as duas sociedades da *' eram perpassadas por con!litos a propósito da !ormação dos analistas, a E9* vinha atravessando uma grave crise, provocada pelo !racasso da experiência do passe$ nventado por %acan em /CVF e posto em prática em /CVC, esse processo de ;passagem< consistia em que um analisando Iou ;passante
decisão de eleger ou rejeitar o candidato$ 1 processo almejava substituir o sistema clássico de !ormação dos psicanalistas por uma verdadeira interrogação sobre o status do didata$ 9oi nesse contexto que %acan pro!eriu um dito que !e" correr muita tinta: ;1 psicanalista só se autori"a por si mesmo$< =om essa !rase, ele indicava que a passagem ao ser(analista depende de uma experiência subjetiva ligada > trans!erência$ 8aí surgir, tanto para o candidato quanto para o didata, uma situação de perda, de castração ou at) de melancolia$ ' id)ia de estudar o !uncionamento real dessa !amosa passagem iniciática era notável$ Entretanto, o processo do passe não surtiu o e!eito esperado$ %evou a E9* ao !racasso e, mais tarde, > dissolução, depois de haver provocado, em /CVC, uma terceira cisão: a saída de diversos clínicos, dentre eles 9rançois *errier e *iera 'ulagnier$ +eunidos num ;?uarto 5rupo<, eles !undaram a 1rgani"ação *sicanalítica de %íngua 9rancesa I1*%9J$ 's duas Altimas geraç#es psicanalíticas !rancesas !oram então levadas a pensar em seu !uturo institucional em novos termos$ 8e maneira geral, os jovens lacanianos sentiamse mais livres em relação aos mestres que os haviam !ormado do que os membros de ambos os grupos da *'$ Em virtude da dissolução da E9* e da !ragmentação do lacanismo em di!erentes correntes Ipóslacanianos e neolacanianosJ, essa nova geração multiplicou as associaç#es$ %ivre de qualquer relação de submissão aos mestres da terceira geração, hoje ela já !e" o luto da instituição ideal ao renunciar > Escola outrora desejada por %acan$ *or outro lado, os analistas das Altimas geraç#es da 4** e da '*9 carregam mais o peso das querelas e das decepç#es dos antigos$ 4ão mais submissos aos didatas que os !ormaram e que continuam a ser os líderes de suas associaç#es, muito apegados a suas prerrogativas e seus privil)gios$ *or isso, são mais propensos > revolta quando eclode um con!lito$ 8aí a violência institucional, !reqMentemente mascarada, que perpassa as duas sociedades da *'$ 9echada em si mesma há trinta anos e cultivando sua ;di!erença< e seu estetismo, a '*9 não quis abrir suas !ileiras aos numerosos ;alunos< que seguem seus ensinamentos, e que quase já não têm esperança, aos cinqMenta anos de idade, de progredir na hierarquia$ ' decepção deles tradu"se num certo escárnio em relação a qualquer poder institucional$ Espalhados por duas de"enas de associaç#es, os antigos lacanianos passaram a se dividir quanto > prática e > !ormação dos analistas, o que não os impede de manterem relaç#es cordiais entre si$ 4e a maioria dos grupos conservou o procedimento do passe, eles o trans!ormaram num ritual sem grande peso$ 7o que concerne > duração das sess#es, quase todos adotaram a id)ia da pontuação, mas mantendo o princípio da liberdade de escolha do analista pelo analisando$ .odavia, nenhum deles redu"iu o tempo da sessão a cinco minutos, ou mesmo a um minuto, como !i"era %acan em seus Altimos cinco anos de vida$ Essa prática só ) imitada, hoje em dia, por um nAmero restrito de praticantes, que podem ser contados nos dedos$ *ersiste, entretanto, uma grande di!erença entre a prática clínica dos !reudianos lacanianos e a dos !reudianos que são membros da *' ou aparentados com ela$ 7os primeiros, a duração da sessão não ) !ixa, enquanto, para os Altimos, a !ixide" continua a ser obrigatória e !a" parte do enquadre da análise: quarenta e cinco a cinqMenta minutos$ 'l)m disso, nas duas componentes !rancesas da *', as hierarquias e os currículos obedecem aos padr#es internacionais$ @ !orçoso constatar que existem, em todos os grupos psicanalíticos !ranceses, bons e maus praticantes$ =om e!eito e esse ) um !en(meno novo hoje em dia B já nenhuma sociedade det)m o monopólio da boa clínica$ .odas !oram en!raquecidas pelas cis#es, pelos con!litos e pela esclerose institucional, e todas perderam
prestígio a tal ponto que inAmeros terapeutas já não procuram aderir a elas, ou, ao contrário, não hesitam em ser membros de duas Iou trêsJ instituiç#es ao mesmo tempo$ ' reorgani"ação do campo psicanalítico tradu"iuse, entre /CCV e /CCC, num processo duplo: multiplicação das cis#es, de um lado, e !ederalismo, de outro$ 'ssim, a 'ssociação -undial de *sicanálise I'-*J, criada por Hacques'lain -iller, implodiu e deu origem a uma diversidade de movimentos aut(nomos$ 's instituiç#es centrali"adoras passaram a ser muito menos dignas de cr)dito do que as unidades pequenas, mais vivas, mais criativas e sempre prontas a se !ederar, para melhor trocar entre si a experiência clínica e os saberes$ .estemunho disso !oi a criação em Parcelona, em outubro de /CCD, de um -ovimento de =onvergência I=onvergenciaJ que agrupa !ederativamente 5 associaç#es lacanianas$ 7uma perspectiva mais ampla, a iniciativa de criação dos Estados 5erais da *sicanálise por +en) -ajor, em junho de /CCF, ) uma clara indicação de que o !reudismo do ano 0TTT deverá orientarse para um novo modo de entendimento o das redes associativas atendendo >s novas demandas da sociedade civil$ 4em dAvida, assistiremos tamb)m, nos anos vindouros, a um s)rio questionamento do imperialismo classi!icatório do :) e das ciências cognitivas, cuja ine!icácia vem começando a ser avaliada enquanto elas estão no auge$ ' 9rança não teve de en!rentar a onda de anti!reudismo que tem varrido os Estados 6nidos$ 7em 9reud nem a psicanálise são atacados com tanta virulência na Europa$ Entretanto, a despeito de sua incontestável utilidade, as escolas psicanalíticas ainda so!rem de um verdadeiro descr)dito em ra"ão de sua propensão ao dogmatismo$ ?uanto aos pacientes da d)cada de /CCT, eles não se parecem com os de antigamente$ 8e maneira geral, são con!ormes > imagem da sociedade depressiva em que vivem$ mpregnados do niilismo contempor&neo, apresentam distArbios narcísicos ou depressivos e so!rem de solidão e de sintomas de perda de identidade$ -uitas ve"es, não tendo energia para se submeterem a tratamentos longos nem o desejo de !a"êlo, têm di!iculdade de !reqMentar o consultório dos psicanalistas regularmente$ 9altam com !acilidade >s sess#es e, >s ve"es, não suportam mais de uma ou duas por semana$ 7a !alta de recursos !inanceiros, tendem a suspender o tratamento assim que constatam uma melhora em seu estado, mesmo que seja para retomálo quando os sintomas reaparecem$ Essa resistência a entrar no dispositivo trans!erencial signi!ica que, se a economia de mercado trata os sujeitos como mercadorias, os pacientes tamb)m tendem, por sua ve", a utili"ar a psicanálise como um medicamento, e o analista, como um receptáculo de seus so!rimentos$ 1 modelo do tratamentopadrão B transmitido de geração em geração atrav)s da imagem mítica da poltrona e do divã B está agora reservado aos privilegiados$ ' maioria dos jovens terapeutas já não exerce a psicanálise em horário integral e tende a substituir o dispositivo clássico por uma ;situação analítica< !ace a !ace, que tem a aparência de uma psicoterapia$ ?uanto a esse aspecto, vale notar que os lacanianos aceitam mais !acilmente essas trans!ormaç#es, investidos como são pelos desa!ios doutrinais da psicanálise, enquanto seus colegas da 4** e da '*9 pre!erem dar o nome de ;psicoterapia analítica< a essa nova situação, para melhor distinguila do modelo do tratamentopadrão, julgado intocável$ 4e os pacientes mudaram, os psicanalistas das novas geraç#es tamb)m não se parecem com os mais velhos$ ' esse respeito, há menos di!erença do que antigamente entre os lacanianos e os outros !reudianos$ .odos !i"eram os mesmos estudos de psicologia e muitos exercem outra atividade que não a de psicanalistas: em geral, são psicólogos clínicos$ 4eja qual !or o grupo a que pertencem, têm poucos pacientes particulares e trabalham principalmente em instituiç#es onde utili"am outras t)cnicas: psicodrama, psicoterapia !amiliar e de grupo$ .odos exercem !unç#es nos serviços de saAde: assistência a toxic(manos, prostitutas, delinqMentes, doentes de '84, cuidados paliativos etc$