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Efeitos Colaterais de uma Receita Explosiva: o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) – Princípio Ativo do Ingrediente Civil colaboracionista e sustentador do golpe de 1964 e do Regime Civil-Militar que perdurou por 21 anos Gustavo Esteves Lopes1
Sobre procedimentos em pesquisa
Cabe, primeiramente, ressaltar o quão complicado é pesquisar acerca de organizações gangsteristas, paramilitares, terroristas, como o CCC e correlatas. Por se tratar de organizações clandestinas – clandestinas – ainda ainda que tivessem, por exemplo, como seus portavozes alguns meios de comunicação, sobretudo através da publicitação de seus manifestos e atos perpetrados – , no interesse de se pesquisar quanto a este tema, diversas categorias de fonte documental podem ser válidas para tal empreitada, desde que selecionadas e analisadas com devida cautela, e mediatizadas, se preciso, por procedimentos específicos, específicos, como a história oral. oral. Pode-se recorrer, por exemplo, a fontes escritas impressas e manuscritas tradicionais, como documentos de natureza oficial e/ou institucional, materiais produzidos por meios de comunicação, relatos memorialísticos e testemunhais, pesquisas pesquisas em história do tempo presente (tanto as publicadas no calor dos acontecimentos, acontecimentos, e suas revisões histográficas), e produções literárias afeitas ou sensíveis a temas de natureza política-ideológica; assim como se pode recorrer a fontes visuais, audiovisuais e iconográficas, a partir das quais se sobressaem fotografias, registros orais e audiovisuais, além produções artísticas propriamente ditas. Outrossim, nos tempos atuais, a pesquisa historiográfica está a passar por singular momento de alcance de resultados mais aprofundados, em vista do sistemático avanço dos meios de reprodução e catalogação arquivística digitais. Vale também dizer que o diálogo e o cotejamento destas fontes documentais são sempre caminhos capazes de possibilitar uma elucidação a contento deste e de outros temas deveras ardilosos, como a presença de organizações paramilitares emanadas de frações civis colaboracionista, para com o golpe de 1964 e a sustentação do conseguinte regime de exceção. Para esta oportunidade, o presente autor recorreu, principalmente, a acervos e 1 Historador,
e servidor público concursado no cargo de Agente Cultural/Pesquisador do Centro de Memória de Hortolândia “Professor Leovigildo Duarte Junior”. Bacharel em História, e Mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Realiza o Doutoramento em Estudos Contemporâneos no Centro de Estudos Insterdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20-UC). É pesquisador colaborador do Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade de São Paulo (NEHO-USP).
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catálogos digitais, disponíveis ao público via internet, tanto para o acesso a documentos referentes ao assunto e ao período, assim como de bibliografia, outrossim pertinente a esta pesquisa, também digitalizada – além além de retomar diversos aspectos apontados na obra “ Ensaios de Terrorismo: história oral da atuação do Comando de Caça aos Comunistas”, pesquisa
acadêmica realizada pelo presente autor entre 2000 e 2007, e
publicada em agosto de 2014. 2014. 2 O princípio ativo de uma receita explosiva: O CCC, o Golpe de 1964, e antecedentes para o Ato e o Fato
A memória histórica, assim como memórias coletivas e individuais, em suas mais diversas interfaces narrativas, acerca dos 21 anos de regime autoritário, imposto no Brasil entre 1964 e 1985, foi condicionada a relembrar e se referir a este período como um “regime militar”, ou uma “ditadura militar”. Não deixam estas d e ser denominação, de fato, adequada; contudo estas decorram de um juízo um tanto parcial, no que tange à caracterização e organicidade de tal regime ou ditadura, uma vez que houve significativa parcela da sociedade civil, não menos interessada em sua instauração e consolidação, representante da classe média, de instituições religiosas e de ensino e do médio-grande empresariado brasileiros (e estrangeiros), dos conservadores aos mais reacionários.3 Tal imagem e significado retidos à memória histórica, quanto ao presente tema e seus acontecimentos de maior relevância socioeconômica e institucional, têm como suas raízes mais profundas a própria liderança e/ou interferência das forças armadas na trajetória política republicana, principalmente em momentos sentidos como críticos à sobrevivência sobrevivência do Estado-Nação. Desde antes dos contextos e acontecimentos acontecimentos vinculados à existência da Primeira República (1889-1930), e mesmo durante a primeira Era Vargas (1930-1945), as forças armadas, outrossim, assumiram para si a 2 Cf.,
LOPES, Gustavo Esteves. Ensaios de Terrorismo: Historia Oral da Atuação do Comando de Caça aos Comunistas. Salvador: Editora Pontocom, 2014. Disponível em: http://www.editorapontocom.com.br/l/26/Ensaios-de-Terrorismo%3A-hist%C3%B3ria-oral-daatua%C3%A7%C3%A3o-do-CCC. Último atua%C3%A7%C3%A3o-do-CCC. Último acesso em 23 de março de 2015. Sobre a história oral da qual o presente autor comunga e pratica, pr atica, cf. MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral . São Paulo. Edições Loyola, 5ª edição, 2005. 3 Dentro da vasta bibliografia acerca do golpe de Estado de 1964 e do regime civil-militar vigente até 1985, o presente autor tem sempre a predileção de nomear duas obras capitais para o presente tema e outros correlatos: GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas: Das Ilusões Perdidas à Luta Armada .São Paulo, Ática, 6ª edição, 2000; RIDENTI, Marcelo. O Fantasma da Revolução Brasileira . São Paulo: Editora da UNESP, 1993. Cabe destacar que, para Ja cob Gorender, houve um “golpe preventivo”, cujo regime acabou por perdurar longos 21 anos devido ao processo de “militarização do Estado Burguês”. Marcelo Ridenti, por sua vez, prefere denominar denominar o regime de exceção como “civil -militar”, como assim o presente autor também o qualifica, qualifica, e que neste se espelha para tanto.
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res ponsabilidade de “salvaguarda” do Estado ou do regime republicano, sempre mais à custa da espada do que da balança .
No mais, com alguma mudança de postura, tanto
ideológica bem como estratégica, dado a radicalização de um anticomunismo gestado desde os anos 1930 (e tendo como ápice a deflagrada “Intentona Comunista”) , no plano geral, as forças armadas se mantiveram atentas e partícipes nos rumos do país, do mesmo modo, ao longo do período democrático em vigor, entre o fecho do referido período anterior, em 1945/1946, até seu ocaso, com o golpe de Estado consumado entre 31 de março e 1º de abril de 1964. 4 Até que este golpe de Estado se consumasse em 1964, e desde o segundo conturbado governo (desta feita, democrático) de Getúlio Vargas (1950-1954) – governo este encerrado com o suicídio do outrora ditador retornado ao poder pelo sufrágio popular – em diversas ocasiões, o intervencionismo, declarado ou conspiratório, de frações conservadoras e reacionárias das forças armadas, quanto à estabilidade do Estado Democrático de Direito, fez-se presente, com maior evidência, durante o governo Café Filho e a partir das eleições presidenciais das quais saíram vitoriosos o pessedista Juscelino Kubistchek de Oliveira e seu vice, o petebista João Belchior Marques Goulart, em finais de 1955 – atribulado período este no qual tampouco Café Filho se sustentou no cargo, e cujo posto de presidente transitou entre os naturais sucessores (o deputado federal Carlos Luz, durante 3 dias; e o senador Nereu Ramos, que o encerrou), até a posse de JK em 1956. Após a morte de Getúlio Vargas, passaram-se dez anos nos quais o posto de mandatário da República dos Estados Unidos do Brasil esteve
constantemente abalado por tendências golpistas alimentadas no meio
de frações militares conservadoras e reacionárias – ainda que houvessem outras frações, ditas “legalistas” ou “nacionalistas” (até então dispostas a defender o Estado Democrático de Direito, amparado pela Constituição Federal de 1946, por sinal, muito tolhida ao longo de sua existência, exemplificada na ilegalidade do antigo PCB), por sua vez, representadas por oficiais como o ex-Ministro da Guerra de Café Filho e candidato à sucessão presidencial apoiado por JK, o Marechal Henrique Teixeira Lott. Um sucesso mais precoce destas tentativas golpistas, partidas de frações militares conservadoras e reacionárias, possivelmente não tenha ocorrido, durante o 4 Sobre
a presença das Forças Armadas no cenário político brasileiro republicano, cf., CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005; STEPAN, Alfred. The Military in Politics: Changing Patterns in B razil . Princeton: Princeton University Press, 1971.
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próprio 2º governo Vargas, não apenas devido à expressiva mobilização popular e sindical em defesa da democracia e das políticas sociais propostas e em implementação; mas também pela situação frações conservadoras e reacionárias da classe média, de instituições religiosas e de ensino, e o grande empresariado brasileiros, todos interessados na maior abertura econômica liberal e de mercado,
não tenham se
articulado o bastante para fazer frente a uma estratégia político-econômica delineada com feições nacionalistas e atentas ao discurso democrático-sindical – contudo as posições udenistas, e aliados direitistas, estivessem sempre a postos para o embate com as posições governistas e democráticas de esquerda. 5 A difusão do anticomunismo, o elo golpista primordial, ocorreu, pois, em dois polos distintos que não isolados entre si: a hierarquia militar e a sociedade civil. Entre as forças armadas, o tradicional pensamento político positivista e autoritário, e a Doutrina da Segurança Nacional
importada dos aliados militares estadunidenses (e
adaptada, para o plano interno, pela Escola Superior de Guerra, a ESG, e nomeadamente pelo General Golbery do Couto e Silva), foram ingredientes essenciais para se elaborar uma explosiva receita,
à brasileira; a qual, quando exitosa, ganhou o ar da graça como
“A Redentora” ou “Revolução Democrática”, todavia sendo hoje mais conhecida como o Golpe Civil-Militar de 1964.6 Paripassu ao anticomunismo difundido dentro da hierarquia militar, partido da sociedade civil, os ataques dos principais meios de comunicação conservadores e reacionários da época, contra supostas tentativas de “comunização” ou “cubanização” do Brasil , e contra supostos atos de corrupção, que envolviam, direta ou indiretamente, governos federal e das outras esferas públicas, alentaram substancialmente a brizância (isto é, a capacidade de um artefato explosivo em produzir destruição em sua volta) desta receita explosiva, como se pode aferir pelo impacto e seus desdobramentos, verificados desde os atos preparativos até o consumado golpe de Estado de 1964. 7
5 Sobre
a fragilidade da democracia brasileira entre 1945 e 1964, cf., AGGIO, Alberto; BARBOSA, Agnaldo; COELHO, Hercídia. Política e Sociedade no Brasil (1930-1964). São Paulo: Annablume, 2002. pp.49-80. 6 Quanto à adaptação da Doutrina de Segurança Nacional, pela ESG, para o contexto brasileiro, cf. FERNANDES, Ananda Simões. A Reformulação da Doutrina de Segurança Nacional pela Escola Superior de Guerra: a geopolítica de Golbery do Couto e Silva; in; Antíteses, vol.2, nº4, jul.-dez de 2009, Universidade Estadual de Londrina. pp. 831-56. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/2668/3937. Último acesso em 23 de março de 2015. 7 Sobre a grande imprensa brasileira, tanto contrária como a favorável aos sucessivos governos democráticos de então, cf., ABREU, Alzira Alves de. 1964: A Imprensa ajudou a derrubar João Goulart;
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Percebe-se que, enquanto não houve maior adesão das frações conservadoras e reacionárias da sociedade civil, representantes da classe média, de instituições religiosas e de ensino e do médio-grande empresariado brasileiros (e do capital estrangeiro presente no país), as tentativas de golpe de Estado foram frustradas. A associação de ideologias propugnadoras do Estado autoritário (dito, Positivista) e do cabal liberalismo econômico foi a chave para que a receita de golpe de Estado pudesse ser levada a cabo com maior chance de sucesso, dado as numerosas tentativas falhas, principalmente entre os anos de 1954 e 1964, pela essencial falta de articulação ideológica entre as frações golpistas; mas foi também a intensa combinação de ingredientes – (ou interesses práticos), medidos entre frações conservadoras e reacionárias das forças armadas, da classe média, de instituições religiosas e de ensino e do médio-grande empresariado brasileiros – o que deu substância a esta explosiva receita, acionada à madrugada do dia 31 de março para o 1º de abril de 1964. Tratam-se de interesses práticos, conservadores e reacionários, como: imposição de um poder político autoritário e centralizador nas mãos de militares e civis; aumento do poder de compra em benefício de uma classe média enfeitiçada pelo consumismo; reafirmação do tradicionalismo de combate a ideias e condutas progressistas, por parte setores de instituições religiosas e de ensino; e crescimento indiscriminado do lucro patronal advindo da mais-valia, fundamentado na mão-de-obra parcamente especializada e na baixa inovação tecnológica nacional (pois investir no país e socialmente era coisa de comunista, e se ainda esta mentalidade não está a vigorar nos tempos atuais…). 8 Para que esta receita explosiva ocorresse com tamanha eficácia, foram precisos que princípios ativos dos ingredientes golpistas estivessem aptos ao uso. As frações conservadoras e reacionárias entre as forças armadas fizeram, mais uma vez, o seu escopo belicista planejado desde outrora, assim como as correlatas frações provenientes da sociedade civil também fizeram a sua, por meio da mídia e da mobilização classista. Outra importância do ingrediente civil desta receita explosiva foi também o de suscitar algum senso legitimador para este golpe de Estado, gestado entre 1954 e 1964 – tanto que foi a sociedade civil conservadora e reacionária a primeira a cunhar denominações como “Revolução”, para o golpe civil-militar de 1964 e conseguinte o regime de in: FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). João Goulart: Entre a Memória e a História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 8 Sobre o anticomunismo vicejado no Brasil ao longo da história republicana brasileira, e mais especificamente entre os anos de 1945 e 1964, cf. MOTTA, Rodrigo Patto. Em Guarda contra o perigo Vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002.
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exceção, na pessoa no longevo Francisco Campos (principal elaborador textual do Ato Institucional n°1).9 A partir do elenco abaixo, pode-se perceber que, para o golpe de 1964, de modo algum bastaria a exclusividade do ingrediente militar para seu êxito. O elenco de iniciativas e ações poderia ser bem mais extenso, mas vale destacar, no mínimo: a intensa veiculação de propaganda anticomunista e antigovernista em grandes meios de comunicação impressos e radiofônicos (principalmente, os privados), como os grupos “Jornal do Brasil”, “Globo”, “Tribuna da Imprensa”, “Folha da Manhã” e o “Estado de S. Paulo”, e mais outros, país afora; a criação e o financiamento (co m fundos internacionais, além dos brasileiros) de instituições “think tankers”, aparentemente voltadas para estudos econômicos e estratégicos nacionais, mas que serviram, de fato, como covis de conspiração anticomunista, e como mediadores do repasse de donativos a grupos terceiros, igualmente conspiradores, para realizar iniciativas e ações de mobilização classista, conservadora e reacionária, como assim transcorreu com o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES)10; o envolvimento de setores, por exemplo, da Igreja Católica e de outros matizes cristãos, na mobilização da classe média temerosa de uma “cubanização” do país, e que colaboraram na organização de entidades como a preexistente “Liga das Senhoras Católicas” (criada nos anos 1930), e as então recém- criadas “Sociedade Brasileira em Defesa da Tradição, Família e Propriedade” (TFP) em 1960 11, e a “Campanha da Mulher pela Democrática” (CAMDE), e que foram fundamentais para a realização das “Marchas da Família com Deus e Pela Liberdade”, ocorridas em diversas capitais e outras cidades brasileiras (destacando-se, dentre todas, a de São Paulo, ocorrida em 19 de março de 1964, em resposta ao Comício de Jango pelas “Reformas de
9 Sobre
a participação de Francisco Campos nos primeiros momentos pós-golpe de Estado de 1964, e na criação do “Comando Supremo da Revolução”, cf., DOCKHORN, Gilvan Veiga . Quando a Ordem é Segurança e Próigresso é Desenvolvimento (1964-1974 ). Porto Alegre: Editora PUCRS, 2002. p.130. 10 Sobre os órgãos privados conspiradores IBAD e IPES, além de se constatar que foi mais um “movimento de classe” quie um mero “golpe militar”, cf. DREIFFUSS, René Armand. 1964: A Conquista do Estado: Ação Política, Poder e Golpe de Classe . Petrópolis: Vozes, 1981. 11 sobre a TFP, cf., ZANOTTO, Gizele. Tradição, Família e Propriedade (TFP): As Idiossincrasias de um Movimento Católico. Florianópolis, UFSC, 2007 – Tese de Doutorado, disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/89747, cujo último acesso foi em 23 de março de 2015. Vale também ressaltar que se encontra disponível a consulta online de prontuários sobre a TFP no Arquivo do Estado de São Paulo (APESP), a partir de: http://www.arquivoestado.sp.gov.br/memoriapolitica/fichas.php?pesq=1&nome=TFP&ano_inicial=&ano _final=&prontuario=&organizacao=&acervo=&Reset2=Buscar.
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Base”, em frente ao I Exérci to e à Central do Brasil, Rio de Janeiro) 12; a criação de truculentas chapas estudantis de direita (sejam secundaristas e/ou universitárias), em variadas agremiações (tradicionalmente de hegemonia à esquerda), como forma de estimular o empastelamento do debate e da práxis internos a esses setores progressistas organizados; além de outras várias iniciativas e ações que, passado o êxito golpista de 1964, paulatinamente, esvaneceram-se ou tomaram outras feições. O ingrediente civil do golpe de 1964, como se percebe, não apenas buscou legitimá-lo, como uma “ação democrática” refletida, por exemplo, nas “Marchas da Família...”; mas alguns de seus agentes, mais afoitos e radicais, resolveram tomar para si atitudes mais truculentas e belicistas. E algo importante a se afirmar, como é sabido, é que houve sim tentativa de resistência democrática, tanto civil como também militar, contra a ação golpista, contudo fosse tarde demais para retomar a situação, em vista de que as direitas, desta vez, planejaram e puseram em prática, com maior acuidade, seu intento – diferentemente das prévias tentativas frustradas. O diferencial, em 1964, quanto ao planejamento (em termos de iniciativa e ação), foi a contundente presença do ingrediente civil conservador e reacionário no ato e fato golpista. 13 Sucedeu-se que, sorrateiramente, e por vezes às claras, iniciativas e ações partidas de frações civis conservadoras e reacionárias favoreceram o germinar e a proliferação de organizações com tendências e práticas eminentemente paramilitares (tendo muitas destas o apoio e associação de elementos militares/policiais em seus quadros). Quer dizer, para esta receita explosiva de golpe de Estado, além do óbvio ingrediente militar, porque, teoricamente, preparado para qualquer eventual confronto, e do “resguardo legitimador” pactuado pelo ingrediente civil conservador e reacionário, foram adicionados princípios ativos de alta periculosidade, que foram tais organizações de extrema-direita, gangsteristas e paramilitares, obviamente afeitas a atos de 12.
No que se refere à CAMDE, cf., CORDEIRO, Janaína Martins. Direitas em Movimento: A Campanha da Mulher pela Democracia e a Ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. Cabe também destacar que se encontrar disponoveis para consulta online de todo os prontuários sobre a CAMDE sob a guarda do Arquivo Nacional no Rio de Janeiro. Para a consulta desta e de outras documentações e catálogos, acessar http://www.an.gov.br/sian/inicial.asp. Aliás, para se conhecer mais sobre outros acrônimos direitistas, tão ou mais reracionários que a CAMDE e a TFP, como a carioca Liga Democrática Radical (LIDER), a mineira Liga da Mulher Democrata, e a paulista União Cívica Feminina (UCF), segue um link para o prontuário BRANRIOPE0036, ora digitalizado, e sob a guarda do Arquivo Nacional: http://imagem.arquivonacional.gov.br/sian/arquivos/1013194_3671.pdf (último acesso em 23 de março de 2015). 13 As tentativas frustradas de resistência ao golpe de 1964 partiram, principalmente, de parcas unidades mecanizadas do III Exército e da Brigada MIlitar, no Rio Grande do Sul. Movimentos sociais e sindicais, como as Ligas Camponesas, localizadas principalmente na Região Nordeste, e a Central Geral dos Trabalhadores (CGT), não ofereceram qualquer resistência armada imediata ao golpe de Estado.
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intimidação e terrorismo, como o conhecido Comando de Caça aos Comunistas (CCC), criado anteriormente ao golpe de 1964, e outras organizações correlatas. 14 O CCC não foi um caso isolado no contexto que antecedeu ao golpe de 1964 – tampouco a organização mais antiga do período democrático até então vigente. O Rio de Janeiro, que já se “preparava” para deixar de ser a capital da República a partir de 1960, foi o principal palco de tentativas golpistas entre 1954 e 1964, e onde se suscitou a criação de algumas das mais destacadas organizações de extrema-direita daquele período, como a pregressa Cruzada Brasileira Anticomunista (CBA), fundada em 1952, pelo então contra-almirante Carlos Pena Boto, militar e militante histórico da extremadireita; e que também manteve estreito vínculo, pessoal e/ou financeiro para com o Movimento Anticomunista (MAC), fundado em 1961 15. Assim como se suspeitava do ativo apoio de Pena Boto para com o MAC, também se suspeitava que o então governador da Guanabara, o jornalista Carlos Lacerda, acobertaria as ações perpetradas por esta organização. O MAC, composto basicamente por civis anticomunistas, desde o ano de sua fundação, até os o auge das iniciativas e ações – durante a consumação do golpe de 1964 – , recebeu significativa cobertura da imprensa carioca e fluminense, tanto em seu repúdio, como o impresso “Última Hora”, democrático e governista; como outros oportunamente anticomunistas, como o “Jornal do Brasil”, ainda assim, que noticiava contrariamente a ascensão de grupos de extrema-direita, nomeadamente o MAC (que supostamente já havia estendido seus tentáculos a outras partes do país. Dentre os primeiros e mais notórios atos terroristas perpetrados pelo MAC, cite-se o ataque à sede da UNE, na Praia do Flamengo, Rio de Janeiro, na madrugada do sábado, dia 6 de janeiro de 1962. O extinto “Última Hora”, meio de comunicação favorável à legalidade do governo (à época, parlamentarista) de João Goulart, acompanhou o andamento das investigações quanto a este caso. Esta foi apenas mais uma da ampla cobertura conferida aos ataques da extrema-direita contra o governo democrático e entidades da sociedade civil acusadas de serem células comunistas; e na qual se lê na reportagem abaixo: 14 Já
entre as décadas de 1940 e 1960, intelectuais distintos, como Hannah Arendt e Anatol Rosenfeld, já discutiam os vínculos do terrorismo e ganggsterismo. Cf.; ARENDT, Hannah. The Origns of the Totalitarianism. Orlando: Harvest Books, 1968. p. 407; ROSENFELD, Anatol. A Cultura de Gang; in: Texto/Contexto II . São Paulo: Perspectiva, 1974. pp. 229-30. 15 Sobre o Almirante Carlos Pena Boto e sua Cruzada Brasileira Anticomunistas, cf., respectivamente os verbetes “Boto, Pena” e “Cruzada Brasileira Anticomunista (CBA)”; in: http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx?id=busca_rapida . Último acesso em 23 de março de 2015.
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GOVERNO DESCOBRE DIRIGENTES DO MAC Ministro da Justiça já tem tôdas as informações: 1 Milhão de Dólares para o Terror O Ministro Alfredo Nasser já tem mãos os nomes dos dirigentes e integrantes do MAC, seus financiadores, a origem e o total de sua verba, sua organização, seu ponto de reunião e seus objetivos. Êsses dados resultam de uma minuciosa investigação feita pelo Ministério da Justiça, em colaboração com a polícia de Brasília, cujo chefe, Coronel Carlos Cairoli que já estêve no sul investigando as ramificações da organização terrorista no Paraná e no Rio Grande do Sul. Da documentação em poder do Ministro Nasser consta inclusive a descrição de um encontro realizado em um apartamento, no Rio, por iniciativa de “uma pessoa atuante da política”. O organizador da reunião começou a fazer uma exposição sôbre a infiltração comunista no país, notadamente no Congresso Nacional e na administração pública. Propôs a criação de uma entidade para “enfrentar o comunismo”, cujas atividades compreenderiam atuação junto ao Congresso Nacional através de métodos que iriam desde o subôrno de deputados para fazer aprovar projetos que o movimento julgar necessários à luta anticomunista. O plano da organização – que é nada menos que o Movimento Anticomunista, o MAC – compreenderia também a ação de rua, a guerra psicológica, etc., etc. A certa altura da reunião, um dos participantes argumentou que para tôda essa atividade, o MAC necessitaria de muito dinheiro, ao que o organizador da reunião respondeu que já contava para isso com um milhão de dólares, cuja origem também é de conhecimento das autoridades federais. O conhecimento de tôdos esses fatos se deve a um padre e um coronel que,presentes à reunião, não concordaram com os métodos terroristas e se recusaram a participar do MAC. Êstes dois denunciantes, cujos nomes vêm sendo mantidos em segredo, estão dispostos a sustentar de público a denúncia e completar com novos detalhes da ação terrorista. 16
Deste período que já se evidenciava franca oposição ou ataque ao governo João Goulart, até o golpe de 1964, o MAC veio a ser um dos mais obscuros e famigerados algozes do Estado Democrático de Direito, representado pelo governo e por sua base de sustentação política, tanto na sociedade civil, e nas frações militares “legalistas”, assim como no âmbito institucional e parlamentar. Mais que isto, esta organização se tornou, de algum modo, referência ou modelo, mais de ação que propriamente ideológico, para outros grupos correlatos país afora – em especial, o já mencionado CCC. Algo que diferenciava, não obstante, em origem, um CCC de um MAC, e de outros correlatos, era a situação de não se tratava de mais um grupo afeito a práticas gangteristas e paramilitares de postura anticomunista tão somente de perfil policialesco e militar: tratava-se de uma organização heterogênea, composta por indivíduos mais jovens, em sua maior civis, relativamente bem instruídos academicamente e de confortável situação financeira, tendo muitos dos quais com 16 ÚLTIMA
HORA. GOVERNO DESCOBRE DIRIGENTES DO MAC . 19 de Janeiro de 1962, página 4. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=386030&PagFis=80450&Pesq=movimento%20an ticomunista. Último acesso em 23 de março de 2015. O presente autor manteve a ortografia da época.
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pregressa formação anticomunista, desde a época em que frequentavam colégios e cursos pré-vestibulares. A ação crescente do CCC entre 1964 e 1968
Foi recorrente, a partir de 1964, em capitais e outras localidades brasileiras, a adoção do acrônimo CCC para denominar grupamentos de extrema-direita ora em ação – algo que, na prática, suscitou a preocupação de que poderia realmente haver, tal como o MAC, um CCC organizado em nível nacional (algo que nunca se comprovou), dado o modo como que se noticiava seus manifestos e ações perpetradas – exemplo maior, foi de publicitar a responsabilidade de um CCC no incêndio da sede da UNE, no Rio de Janeiro, na madrugada do 31 de março de 1964 17. No mínimo, parece óbvio que usar dos meios de comunicação para propaganda anticomunista e de intimidação fazia parte de sua tática de intimidação, como o MAC e outros grupos pregressos ao CCC já empregavam anteriormente ao golpe. Vale também notar que, enquanto as ações perpetradas pelo carioca MAC iriam paulatinamente se silenciar após o golpe de 1964, o CCC viria a ser um princípio ativo de intermitente destaque, como parte do ingrediente civil colaboracionista e sustentador do regime de exceção, por anos a fio. Originário do movimento estudantil conservador e reacionário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, localizada no Largo São Francisco, na capital paulista, o Comando de Caça aos Comunistas certamente havia sido germinado anteriormente a março de 1963, pois bandos de estudantes de extrema-direita já agiam com relativa coordenação, quando do anúncio das Reformas de Base propugnadas pelo governo João Goulart. O fato inaugural do CCC – ainda sem o uso deste acrônimo, mas agindo como um princípio ativo estudantil do ingrediente civil preparativo ao golpe que estaria por vir, foi quando do truculento impedimento de uma conferência do então ministro-chefe da Superintendência de Reforma Agrária (SUPRA) do governo João Goulart, o mineiro e petebista João Pinheiro Neto, que seria realizada no Centro Acadêmico XI de Agosto da na Faculdade de Direito da USP, em 17 de março de 196318. So b as “Arcadas” e arredores do Largo São Francisco, há muito, era recorrente a 17 Sobre
a associação do acrônimo CCC ao incêndio da sede da UNE, cf., ARNS, Dom Paulo Evaristo (pref.). Brasil: Nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 132. Cf., também, toda a documentação digitalizada do Projeto “Brasil: Nunca Mais” em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/#!/ . Ùltimo acesso em 23 de março de 2015. 18 Pesquisas quanto a este incidente, assim como de outros, produzidas ao longo de décadas, confirmam que o CCC já havia se preparado com bastante antecedência para o golpe de 1964; e o contato direto com ex-membros do CCC, e testemunhas da época, também confirmam estes fatos quanto à sua origem – como se sucedeu entre o presente autor e um de seus fundadores da organização, o advogado Cassio
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situação de se deflagrar em violência física, por vezes generalizada, disputas por território, debates político-ideológicos e a usual esbórnia que dava o tom mundano aos acadêmicos do curso de Direito; de modo que a violência física era algo que fazia parte do cotidiano daquela estudantada, em suas subsequentes gerações. Durante sua gestação, já entre os idos de março de 1963, até o março seguinte, que precedeu o golpe de 1964, o CCC não somente atuou com a truculência que lhe era inerente, isoladamente ou em conjunto a grupos correlatos, como também se articulou a outras organizações conservadoras e reacionárias, muitas das quais legalmente em atividade. Estando ou não em ação enquanto membros do CCC, esses estudantes também participavam regularmente de reuniões acadêmicas, passeatas cívicas de matriz anticomunista; mas sempre dispostos ao confronto físico com seus adversários diretos, ou contra quem lhes fizesse despertar o sentimento de intolerância, caso considerassem isto necessário. Grupos como o CCC conquistavam cada vez mais terreno em espaços de confronto direto e/ou indireto com seus adversários (sobretudo, estudantes), à medida que o discurso anticomunista também ganhava coro entre as frações conservadoras e reacionárias da classe média, de instituições religiosas e de ensino e do médio-grande empresariado brasileiros (e com o decisivo alento dos meios de comunicação, sejam estes favoráveis ou contrários a suas iniciativas e ações). 19 Com efeito, por exemplo, não se sabe quem se assumiu como CCC no atentado contra a sede da UNE, no Rio de Janeiro (possivelmente, o mesmo pessoal do MAC), ocorrido na madrugada do 31 de março de 1964. Sabe-se, não obstante, quais foram os principais alvos do CCC em São Paulo, além de se suspeitar quem dentre seus membros estiveram presentes nos atos perpetrados naquela data. Os principais alvos do CCC em São Paulo, durante o calor do golpe de 1964, obviamente, foram grupos estudantis de esquerda, e progressistas em geral, do próprio Largo São Francisco, no qual havia o Partido Acadêmico Renovador (PAR) na gestão do Centro Acadêmico XI de Agosto; e
Scatena, embora este afirme que o nome CCC se firmou, enquanto tal, somente nos principais acontecimentos da “Revolução” (LOPES, 2014, p. 137). A partir de um ponto de vista ângulo mais “anárquico” sobre essa época, do também colaborad or para com as pesquisas do presente autor, o já falecido advogado e publicitário, e colega de faculdade de diversos ex-membros do CCC, Paulo Azevedo Gonçalves dos Santos (LOPES, Idem, pp.95-6), seria mais preciso dizer que o Comando de Caça aos Comunistas nasceu pelos idos de 1962, a partir de frações internas da famosa “Canalha Acadêmica”, multidão esta que extrapolava o posicionamento político-ideológico dos estudantes de direito da USP, para além de seus “partidos acadêmicos”, como o Partido Acadêmico R enovador (PAR), e outros mais conservadores, como o Partido de Representação Acadêmica (PRA). 19 Para este parágrafo, é interessante a leitura integral do relato de Gustavo Augusto de Carvalho Andrade, em LOPES, Gustavo. Esteves. Op. Cit , pp. 117-32.
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grupos da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (FFCL-USP), onde havia forte presença de entidades como a UNE e a UEE. 20 A esta altura de 1964, o CCC já havia se espalhado para outros centros universitários da capital paulista, sobretudo nos cursos mais tradicionais – com quadros diretores, docentes e discentes tidos como conservadores e reacionários – , como o curso de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (vizinha da antiga FFCL-USP), e possivelmente na atual Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, antigamente conhecida como a “Católica”). Dentre seus membros mais conhecidos, e que possivelmente estiveram presentes nos atos ocorridos durante a consumação do golpe de 1964, podem ser citados (inclusive, estão todos mortos): João Marcos Monteiro Flaquer, Otávio Gonçalves Moreira Júnior, da (FD-USP); e Raul Nogueira de Lima, e Ricardo Osni (FDMackenzie).21 Passado o exitoso golpe de 1964, e ao longo de sucessivos Atos Institucionais baixados pelo regime civil-militar, e de outras leis e/ou decretos-leis que fecharam o cerco às liberdades políticas individuais e coletivas de setores contrários ao então vigente Estado autoritário (como, por exemplo a Lei nº4.464/1964, a Lei Suplicy, que pôs a UNE e outros órgãos estudantis na ilegalidade, e além de impor outras medidas austeras a esta categoria), diversas entidades representantes
de frações civis
conservadoras e reacionárias (algumas das quais colaboracionistas para com atos gangsteristas, paramilitares, terroristas), por demais ativas até a derrubada do governo democrático, vieram paulatinamente a desaparecer ou permanecer no limbo a partir de então. É o caso da “assistencialista” CAMDE, que encerrou suas atividades em 1972; assim como do “estratégico” IPES, também fechado no mesmo ano, o qual, ao fechar suas portas, cedeu integralmente ao Serviço Nacional de Informações (SNI) todo o seu acervo e documental, contudo tenha perdido severamente seu destaque no contexto 20 Sobre
incidentes ocorridos, respectivamente, às Faculdade dee Filosofia d a USP, quando do Golpe de 1964, cf. CARDOSO, Irene. Para uma Crítica do Presente. São Paulo: Editora 34, 2001. p. 101. Cf., também, MELLO e SOUZA, Antonio Candido de (Coord). Os Acontecimentos da Rua Maria Antonia (2 e 3 de outubro de 1968), São Paulo: FFLCH-USP, 1988. p.8. Para o mesmo, quanto aos incidentes na Faculdade de Direito da USP, vale mencionar uma obra ficcional: COELHO, Teixeira. História Natural da Ditadura . São Paulo: Iluminuras, 2006. p. 146 21 No Acervo DEOPS do APESP, encontram-se fichas e prontuários em nome de João Marcos Flaquer, Raul Nogueira de Lima e otávio Gonçalves Moreira Júnior. No livro “Ensaios de Terrorismo...”, do presente autor, entre as páginas 72 e 74, foi reproduzido integralmente o relatório de João Marcos Flaquer, incluído no prontuário nº8.233, em nome de Fernando Piza, Para o catálogo, bem como para qualquer documentação digitalizada, basta acessar: http://www.arquivoestado.sp.gov.br/memoriapolitica/pesquisa.php. Último acesso em 23 de março de 2015.
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político desde o êxito golpista de 1964. Ainda assim, à medida que as esquerdas estudantis tornavam a se articular e retomar as atividades de suas antigas entidades – ineficazmente extinguidas pela Lei Suplicy, sobretudo após a celebração dos diversos acordos e convênios MEC-USAID (para a reforma do sistema universitário brasileiro) 22 – o CCC voltava a agir com mais agressividade. Desde sua incerta gênese truculência, ideológica e praticada, tal organização já não se direcionava apenas contra seus tradicionais adversários estudantis, mas também a outras categorias sempre visadas, como professores universitários, intelectuais de esquerda, o clérigo progressista, artistas e partícipes da cena sociocultural brasileira em oposição à tudo aquilo. Desde os fatos ocorridos contra o ex-ministro da SUPRA, João Pinheiro Neto, em março de 1963, o CCC já demonstrava que atacaria a quem lhe despertasse a ira e a intolerância. Além dos recorrentes quebra-quebras em espaços propícios ao enfretamento entre direitas e esquerdas estudantis, o CCC se infiltrava e empastelava atividades acadêmicas e socioculturais sem qualquer recalque, como o fizeram em uma palestra de Mário Schemberg, físico, crítico de arte e professor universitário da antiga FFCL-USP, a ser proferida à também antiga Faculdade de Ciências Econômicas da USP (atual FEA Faculdade de Economia e Administração), ainda em 1966, e cancelada a pedido da direção, por temor a algo pior que poderia ocorrer. 23 Este CCC, que deve ser considerado paulistano e “quatrocentão”, quando agia com truculência, de fato, reunia sem muita distinção social seus membros estudantes universitários (sejam do Largo São Francisco ou mackenzistas) e com aqueles que já haviam vínculos oficiais ou oficiosos para com o aparato de repressão. Dada sua disseminada fama alcançada pela covardia de seus membros em agredir pessoas despreparadas e desarmadas – em geral mulheres (inclusive, grávidas), rapazes avessos a lutas e artes marciais, e mesmo idosos, apesar de existentes, óbvio – é possível que não havia a necessidade destes elaborarem táticas de intimidação e de terrorismo demasiado detalhadas, pois a certeza da omissão das forças de segurança em conter ou coagir sua voracidade gângster contava muito a seu favor. Entretanto, fora do 22 Sobre
a reforma universitária iniciada por meio da Lei Suplicy e dos acordos e convênios MEC USAID, cf., CUNHA, Luís Antônio Cunha. A Universidade Reformanda: O Golpe de 1964 e a Modernização do Ensino Superior . São Paulo: Francisco Alves, 1988. 23 Difícil de se encontrar notícias de jornal precisas quanto ao episódio contra Mário Schenberg. No mais, vale buscar em LOPES, Gustavo Esteves. Op. Cit ., p.139, a paritr do relato de Cassio Scatena, exmembro fundador do CCC. Outrossim, em relato de Paul Israel Singer faz referência indireta a este incidente, nomeadamente relacionado ao CCC, em MANTEGA, Guido; REGO, José Márcio . Conversas com Economistas Brasileiros II : São Paulo: Editora 34, 1999. p.65.
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contexto da atuação prática, os membros “ideólogos” do CCC, entre si, tinham predileção em se distinguir do restante mais truculento, como o referido em nota Cassio Scatena, e muitos de seus colegas citados em reportagens de época e em outros relatos – além de personalidades do alto escalão universitário uspiano e do regime civil-militar, como o reitor e ministro da Justiça, o professor doutor Luís Antonio da Gama e Silva Filho (vulgo, “Gaminha”). Entre estes ex-membros do CCC tidos a “ideólogos”, narram-se estas e outras histórias (e memórias) em que havia maior predominância das rusgas e contextos próprios ao Largo São Francisco (talvez, de modo a memorizar sua própria responsabilidade no contexto mais amplo); como, por exemplo, o impedimento da entrada de membros do CCC, por parte da esquerda alocada no Partido Acadêmico Renovador (PSR) e de ex-alunos militantes desta agremiação acadêmica, em tentar participar (com a finalidade clara de empastelar) a “Tomada” (isto é, uma ocupação estudantil) da Faculdade de Direito da USP em protesto à reforma universitária e ao regime de exceção, em agosto de 1968. Como o sucedido, durante a “Tomada”, deu-se que em tal ambiente acadêmico disputas políticas mais “equilibradas” – inclusive, fisicamente, quanto ao embate, tête-a-tête, entre as forças resistentes à presença da extrema-direita – , nesta oportunidade, o CCC saiu derrotado, pela esquerda estudantil, que já havia estabelecido, inclusive, contato direto e associação a organizações armadas de esquerda, como a Ação Libertadora Nacional, fundada em 1967. Para os ex-membros “ideólogos” do CCC, esse é um dos fatos históricos e componentes de seus repertórios mnemômicos dos mais vivazes – diferentemente de casos mais graves, e dos quais tendem a se furtar – , talvez porque, neste episódio, foram derrotados. 24 Quanto mais tidos como “ideólogos”, mais se percebe a dificuldade desses se assumirem como membros do CCC, enquanto o serviço sujo se resume poucos sujeitos, ainda no tempo corrente. Diferentemente do que se passou com ex-membros “ideólogos” do CCC, desde a época de sua atuação mais contundente até o tempo corrente, salvo exceções, o acrônimo ainda se mantém tenazmente vinculado a seus conhecidos e falecidos ex-membros policiais, como Raul Careca, Otavinho, Ricardo Osni, além de seu “líder” João Marcos Flaquer . Obviamente, a esta exceção, soma-se o 24 Relatos
divergentes, como o de Cassio Scatena e Percival Menon Maricato (advogado, ex-extudante da FD-USP e ex-membro da ALN), assim como o de Gustavo Augusto de Carvalho Andrade, em LOPES, Gustavo Esteves. Idem..., podem elucidar sobre esta “Tomada da Faculdade de Direito”. Outro: notícias, ora digitalizadas, de acervos impressos podem também ser consultadas, para o mês de junho a agosto de de 1968 em: acervo.estadao.com.br e acervo.folha.uol.com.br.
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nome do conhecido jornalista Boris Casoy, que foi um ex-membro mackenzista desta organização, que havia mais o perfil propagandista que o de truculento ou mesmo “ideólogo” (ainda mais, por haver alguma dificuldade em função problemas físicos), mas que sempre negou o fato 25. Outro a que, recorrentemente, faz-se referência é quanto ao advogado e ex-deputado federal José Roberto Batochio, o qual, quando estudante de Direito da Universidade Mackenzie, esteve em conluio às diretrizes impostas pela então reitora, professora doutora Esther Figueiredo Ferraz, quanto à política estudantil – e por isto foi tachado, ad eternum, como ex-membro do CCC. 26 E não se pode deixar de mencionar o advogado e artista plástico, João Parisi Filho, ex-membro do CCC que conheceu de perto a violência do oprimido (no caso, dos estudantes que defenderam a todo custo a antiga FFCL-USP – que, após quase linchá-lo durante os acontecimentos da Rua Maria Antonia (a 2 e 3 de outubro de 1968), chegaram a sequestrá-lo e deixá-lo em cárcere privado em apartamento do Conjunto Residencial da USP, o CRUSP. 27 Às costas destes ex-membros já falecidos, e por conta da dificuldade jurídica de se apontar, irrefutavelmente, a responsabilidade de outros sujeitos como coautores de toda a desgraça, contabiliza-se nestes, principalmente, alguns dos maiores atos perpetrados pelo CCC: como a destruição do Teatro Galpão (Ruth Escobar), o empastelamento da peça “Roda Viva” (de Chico Buarque de Holanda), e a agressão física a todo elenco e produção e ao público presente, ocorrido a 18 de julho de 1968; os acontecimentos de 2 e 3 de outubro de 1968 à Rua Maria Antonia, entre membros do CCC e estudantes direitistas da Universidade Mackenzie contra a resistência estudantil da FFCL-USP, que resultou em graves avarias e no fechamento definitivo do edifício, além de dezenas de feridos e um morto (o estudante secundarista José Guimarães); a 25 A
historiadora, Beatriz Kushnir, que entrevistou o jornalista Boris Casoy, no verbete de nomes dos principais elencados em seu livro, reproduz do entrevistado sua mágoa com relação a seu suposto vínculo com o CCC. Cf., KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI -5 à Constituição de 1988, São Paulo: Boitempo, 2012. pp.370-1. Cassio Scatena afirma que Boris Casoy era sim “um membro efetivo membro do CCC”, em LOPES, Gustavo Esteves. Idem., p. 181. O que seria, pois, um membro efetivo do CCC? 26 Formado em 1967, reitera que jamais participou dissenções estudantis mais truculentas, como outros colegas seus de convicção anticomunista. Buscar seu relato em LOPES, Gustavo Esteves. Idem. pp.179186. 27 João Parisi Filho, à época devotado pintor e quadrinista anti-abstracionista, recebia elogios de gente “sagrada” para a cultura contemporânea brasileira, como Jorge Henrique Mautner e Mário Schenberg. Depois dos trágicos acontecimentos da Rua Maria Antonia em 1968, este artista veio a passar um permanente obscurantismo, ainda que em a produzir. Vale também fazer referência a uma crítica de Mário Schenberg datada de 1969, e reproduzida pelo “Centro Mário Schenberg de Documentação e Pesquisa em Artes”, da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), a partir de http://www2.eca.usp.br/cms/index.php?option=com_content&view=article&id=88:joao-parisifilho-&catid=17:artigos-de-mario-shenberg&Itemid=15. Último acesso em 23 de março de 2015.
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participação oficiosa de membros do CCC na desocupação do CRUSP, a 7 de dezembro de 1968, também precedido por atentado a fuzil contra o alojamento feminino; e depredação do “Monumento a Federico García Lorca”, a 20 de julho de 1969, após 1 de sua inauguração, à Praça das Guianas, também em São Paulo. 28 A partir de 1968, à medida que o recrudescimento entre direitas e esquerdas estudantis se aprofundava, o acrônimo CCC também se espalhava por diversas localidades De qualquer forma, tratar de outro CCC que não seja o paulistano, e eventuais ligações por demais estreitas para com unidades militares, ainda nos idos de 1968, são debates que fogem ao de que fato lhe é imputado, pois demanda profícua averiguação. 29 E no sentido de demonstrar que, de fato, o CCC era uma organização restrita à capital paulista, dado seu caráter provinciano (contudo perigoso, uma vez sendo um princípio ativo do ingrediente civil da receita explosiva golpista, gestada antes mesmo de 1964), serão apresentados alguns excertos de narrativas de vítimas, testemunhas e perpetradores 30 (no caso, de suposto ex-membro do CCC, ainda que não comprovado), extraídos da obra “ Ensaios de Terrorismo: história oral da atuação do Comando de Caça aos Comunistas ”;
mais especificamente sobre os “Acontecimentos
da Rua Maria Antonia a 2 e 3 de outubro de 1968 ” – inclusive, por ser assunto que provoca consideravelmente a memória afetiva do presente autor, porque ex-estudante da 28
A reportagem “CCC, ou o Comando do Terror”, em nome de Pedro Medeiros, da extinta revista do grupo “Diários Associados”, “O Cruzeiro” (9 de novembro de 1968, Ano XL, nº 45, p. 19 -23), ainda é o principal documento impresso que trata da atuação do Comando de Caça aos Comunistas, no calor dos acontecimentos daquele ano. Não obstante, vale lembrar que, ininterruptamente, as subsequentes edições, até 12 de dezembro de 1968, tentam esgotar o tema “CCC” – até que, em sua última reportagem “Um Pintor da Extrema-Direita”, foi publicada entrevista com o referido artista e ex -estudante mackenzista João Parisi Filho ((6 de dezembro de 1968, Ano XL, nº49. p. 132-4). Quanto à desocupação do CRUSP, interessante a leitura do Inquérito Policial Militar conhecido como “IPM -CRUSP”, disponível em: http://movebr.wikidot.com/crusp:ipm-68 (último acesso em 23 de março de 2015. Interessante ler, tam bem em LOPES, Gustavo Esteves. Idem., o relato da historiadora e professora universitária Elaine Faria Veloso Hirata, sobre os incidentes relacionados ao CRUSP, enquanto vítima direta. Quanto à depredação do “Monumento a Lorca”, buscar relato de Gabriel Fernández Otamendí (pp. 209 -18), ex-membro antigo Centro Democrático Espanhol (CDE), também na última referida obra. Em acervos digitalizados sobre jornais impressos, em sites acima citados, há bastante documentação a se ler, contudo seja disponibilizada apenas a assinantes. 29 Sobre organizações que se denominavam como CCC país afora, interessante também consultar um artigo do presente autor. Cf., LOPES: Gustavo Esteves . Intimidação e Terrorismo: História Oral do Comando de caça aos Comunistas (1962-1968); in: Anais do XVII Encontro Regional de História – O lugar da História. São Paulo: ANPUH/SP-UNICAMP, 2004. Disponível em: http://www.anpuhsp.org.br/sp/downloads/CD%20XVII/ST%20XXVIII/Gustavo%20Esteves%20Lopes.p df. Último acesso em 23 de março de 2015. 30 Acerca do entendomento do presente autor sobre os conceitos de perpetrador e vítima, cf., LOPES, Gustavo Esteves. Aportes Teóricos à História Oral: os Conceitos de “Perpetrador” e “Vítima”; in: Oralidades – Revista , de História Oral . São Paulo: Universidade de São Paulo (USP) , v. 9, p. 155-186, 2011.
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Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Os Acontecimentos da Rua Maria Antonia (2 e 3 de outubro de 1968)
Lauro Pacheco Toledo de Ferraz - Advogado, ex-presidente do Diretório Acadêmico de Direito “João Mendes Junior”, da Universidade Mackenzie, e adversário direto do CCC: Aquilo foi, simplesmente, uma tentativa de retomar confrontos, de ressurgir a direita paramilitar; de revigorar – vamos dizer assim – o pensamento da direita que estava um pouco acanhada, no final de 1968, pelo crescimento social de absoluta rebeldia, de não aceitamento do movimento militar, e dos rumos do governo militar. Os grupos de direita retornaram no mesmo momento que tínhamos passeatas em São Paulo, no Rio de Janeiro, com grande mobilização da sociedade pela democracia. Houve um momento que surgiu um “entrevero” de secundaristas, que estavam cobrando um pedágio na rua Maria Antonia, para seu congresso, com alguns alunos do Mackenzie que tentaram impedi-los de fazer isto. E este início de briga entre secundaristas e alunos do Mackenzie terminou por gerar para o dia seguinte um confronto de dimensão absolutamente desproporcional. Nesta noite, a reitora chamou a polícia para dar proteção à Universidade, dizendo que a Universidade Mackenzie corria riscos. Abriu a Faculdade de Química para que fossem preparadas bombas, etc. – o que foi feito, e com a proteção da polícia e com as bombas preparadas na noite anterior. No dia seguinte cedo começou uma verdadeira batalha campal, onde alguns estudantes – aliás, poucos estudantes do Mackenzie, muito poucos – fizeram uso dessas bombas, atirando nos alunos da Faculdade de Filosofia e, obviamente, houve a reação. E neste processo acabamos tendo a morte de um estudante que estava do lado da Filosofia, atingido por uma bala disparada por um estudante da Faculdade de Direito do Mackenzie. Estudante este que, mais tarde, passou a trabalhar como agente de Polícia Federal, morrendo em um acidente automobilístico comum. Recebeu honras militares em seu enterro. Mas este episódio, podemos dizer que foi muito especial para aquela época, e que já era o início do agravamento do processo político no país. Era a demonstração de que havia um esforço para redefinir o processo político e levá-lo a uma situação de agravamento social para permitir que a ação militar, explícita e direta do Estado – inclusive com a queda do habeas corpus – implantassem-se. E digo que esta briga da Maria Antonia foi mais do que uma antessala. Foi um aviso de que as coisas realmente graves estavam por vir.31
31 LOPES,
Gustavo Esteves. Ensaios de Terrorismo: Historia Oral da Atuação do Comando de Caça aos Comunistas. Salvador: Editora Pontocom, 2014. pp. 160-1. Disponível em: http://www.editorapontocom.com.br/l/26/Ensaios-de-Terrorismo%3A-hist%C3%B3ria-oral-daatua%C3%A7%C3%A3o-do-CCC. Último acesso em 23 de março de 2015.
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José Roberto Batochio – advogado e político, membro de um triunvirato conservador, colocado pela então reitora mackenzista, para gerir o DA “João Mendes Junior”: Quero fazer desde já uma ressalva: quando houve a conflagração entre os estudantes, de um modo geral, da Universidade Mackenzie e os da Faculdade de Filosofia, que então era sediada na rua Maria Antonia em frente ao Campus do Mackenzie, eu não me encontrava mais na Faculdade de Direito. Não participei deste evento. Não estava lá presente. Só soube dele pela leitura dos jornais. Já estava advogando. Se não me engano foi em outubro de 1968. Portanto, fazia quase um ano que havia me formado. Esta conflagração motivou uma reportagem na revista O Cruzeiro , absolutamente inverídica, que não sei por quais motivos e não sei por que formas um determinado repórter, conhecido como Pedro Medeiros, que tinha o apelido de Pedro Louco pelo que fiquei sabendo depois, fez uma matéria leviana, totalmente gratuita, encarnando o nome de várias lideranças estudantis que não estavam alinhadas ao PC do B, à ALN, a essas organizações progressistas daquela época, e que tiveram qualquer liderança na Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, e também de outras universidades, e os catalogou como nomes de pessoas pertencentes ao CCC. E fez uma caricatura do CCC, dizendo que eram pessoas que treinavam jiu-jitsu, boxe, tiro ao alvo, aprendiam a manusear metralhadoras, e de formação nazista. (...) Lembro que duas ou três turmas abaixo da minha, existiam sim pessoas dadas a violência por razões políticas. Lembro-me de que havia notícias de esforços pessoais, físicos, do Raul Nogueira, chamado de Raul “Careca”, que era um policial. Lembro de um sujeito muito forte, halterofilista. Na verdade, não sei se participava, mas tinha fama. O nome dele era Parisi, se não estou enganado, porque são quarenta anos quase... Por exemplo, sobre o Parisi, eu não saberia dizer se ele se envolveu em algum ato de violência. O fato é que esta reportagem é totalmente falsa. Até hoje é utilizada contra pessoas de um plano mais dialético, que não tiveram participação alguma neste movimento chamado CCC, que teria, digamos assim, iniciado lá no Mackenzie em 1968, com essa conflagração da Maria Antonia, a despeito de existirem posições como a de Raul e outros. Além de ter uma formação absolutamente avessa a qualquer tipo de violência física, sempre achei, desde os tempos de estudante, que as ideias não podem ser combatidas por outro modo se não pelas ideias. A necessidade de se conviver com ideias opostas é a primeira de todas as virtudes democráticas – a outra verdade, a outra posição, a outra visão do mundo.32
Antonio Candido de Mello e Souza – Sociólogo, Crítico Literário, Professor Titular Aposentado da FFLCH-USP Era uma atmosfera bastante boa mas já se notava uma certa hostilidade vinda do lado do Mackenzie. Os estudantes da Maria Antonia fizeram uma coisa que irritou muito a todos – o tal pedágio. Fechavam a rua e cobravam o pedágio, se não me engano, para os fundos da campanha. Isso irritava muita gente que passava ali, 32 LOPES,
Gustavo Esteves. Op. Cit ., pp. 180-2.
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obviamente. Irritou muito o pessoal do Mackenzie, que também é da rua. Um desses pedágios gerou conflito entre os alunos da Faculdade e os do Mackenzie. Na Faculdade havia muito agitador político, que não era aluno e estava infiltrado ali. É normal nesses casos. E no lado do Mackenzie era o mesmo, só que no nosso caso era gente mais de esquerda, e no Mackenzie era essa gente de direita, provavelmente ligada ao CCC; de modo que aí sim se criou o antagonismo entre os dois lados da rua – essa é a impressão que eu tenho. A vida na rua Maria Antonia funcionou bem, até certo momento que houve então o ataque à Maria Antonia Eu não lembro bem que mês foi – outubro? Aí esse dia, as coisas estavam nesse pé; disputas dos dois lados, passeatas, entusiasmo. Lembro que disse a uma moça que me auxiliava: “Bom, hoje eu não venho à Faculdade”. E fui para casa. Daí ela me telefonou: “Professor, é bom o senhor vir porque a situação aqui está muito grave.” Fui, tomei um táxi, parei na esquina da Consolação, e andei a pé pela Maria Antonia. Quando cheguei, vi que já estava um conflito armado: bombas, corre-corre, um pelotão da Guarda Civil do lado de lá, da Dona Veridiana. Quem estava comigo, nesse momento, foi a professora Maria Isaura Pereira de Queiroz. Ficamos juntos nas ruas dali. Não pudemos entrar na Faculdade, um conflito grande na frente. Foi nesse momento, a certa altura, que eu vi esse rapaz que eu tinha esquecido o nome, Parisi, parece que é um artista, se não me engano. Na Dr. Vila Nova, fechou um pacote de gente em cima dele. A impressão que eu tive é que iriam linchá-lo, quando o José Dirceu, que era estudante não da Faculdade, mas da Universidade Católica, um dos líderes da ocupação, um dos chefes da ocupação dentro da Maria Antonia impediu a ação. Teve um gesto muito corajoso, muito bonito, mas digo que havia muita gente de fora da Maria Antonia – inclusive o José Dirceu. Não ouvi o que ele dizia, penso que deve ter dito que era um adversário mas não havia razão para linchá-lo. Salvou a vida desse Parisi, que se livrou de uma pancadaria. E mandou-o embora. Ficamos ali naquela coisa toda, e a situação foi se agravando. Barulhos de bombas. Tinha notícia de que alunos botaram fogo na Faculdade; quando, se não me engano, fui até a Cidade Universitária, porque a Diretoria já tinha mudado para lá – não era mais na Maria Antonia. Lembro que fui lá fazer um relato para o Diretor, e a Congregação da Faculdade de Filosofia, reunida na Cidade Universitária, decidiu vir toda para a Maria Antonia..33
“Os Acontecimentos da Rua Maria Antonia”, ocorridos entre 2 e 3 de outubro de 1968, que antecederam outros fatos como a prisão dos estudantes no XXIII Congresso da UNE e a desocupação do CRUSP, foram decisivos para que a “linha dura” do regime civil-militar se decidisse a repetir a receita explosiva, e dar mais um “golpe dentro do golpe”, e experimentá-la novamente – desta mão, por meio da edição do AI-5, ato institucional este que fechou o Congresso Nacional, suprimiu o direito civil ao habeas corpus, e permitiu que fossem cassados e caçados outros milhares de brasileiros, de modo mais sanguinário do ocorrido pós-golpe de 1964. Após o AI-5, o 33 LOPES,
Gustavo Esteves. Idem, pp.232-2.
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CCC diminuiu consideravelmente sua atuação, sobretudo com o paulatino processo de institucionalização do terrorismo de Estado, que foi, consequentemente, o maior efeito colateral deste princípio ativo da receita explosiva golpista civil-militar. O que veio a ser feito por um órgão paramilitar oficioso como a Operação Bandeirante (OBAN) e mais tarde institucionalizado, no âmbito do Exército Brasileiro, pelo “Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna” (DOI-CODI), já havia sido
ensaiado pelo CCC e organizações correlatas, como o MAC. Ao longo da década de 1970, o acrônimo CCC saiu de cena, tendo retornado à ativa, de modo mais contundente, a partir do processo de abertura política mediatizada pela Lei de Anistia – não obstante, os “Esquadrões da Morte” de Sérgio Paranhos Fleury e seus sequazes estivessem em plena forma, quando não bastasse o serviço sujo feito nos DOI-CODI e em outros aparelhos de aprisionamento, tortura e extermínio. 34 Além de serem criadas novas células anticomunistas nos mesmos espaços acadêmicos de sempre (como o Largo São Francisco e a Universidade Mackenzie), o acrônimo CCC foi novamente empregado em conhecidos atentados perpetrados contra bancas de jornal e até a sedes de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa. Neste final de regime civil-militar havia a apreensão quanto ao revanchismo da extrema-direita – algo que se comprovou com o mal sucedido atentado a bomba no Riocentro, a 1º de maio de 1980, perpetrado por dois militares do exército. Encerrado o regime civil-militar, ex-membros do CCC, como seu “líder” João Marcos Flaquer até tentavam se reunir em grupos anticomunistas, como a Ação Nacionalista Democrática (AND) entretanto sem aquele fôlego comburente de outrora. Mesmo assim, grupelhos perigosos, como um Comando de Caça aos Comunistas de Santos (CCCS), chegaram a ser fichados pelo Departamento de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (DEOPS), dada a quantidade de ameaçaram e atos de intimidação e terrorismo perpetrados na referida localidade litorânea paulista. 35
34 Sobre
a OBAN, DOI-CODI e os “Esquadrões da Morte”, o presente autor recomenda: SOUZA, Percival de. Autópsia do Medo: Vida e Morte do Delegado Sérgio Paranhos Fleury . São Paulo: Globo, 2000; GORENDER, Jacob. Op Cit .; BICUDO, Hélio Pereira . Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte. São Paulo: Pontifícia Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, 1977; BIOCCA, Ettore. Strategia del Terrore: Il Modello Brasiliano . Bari: De Donato, 1974; ALARCÓN, Rodrigo. Brasil: Represión y Tortura. Santiago de Chile: Editorial Orbe, 1971. 35 Para tanto, no catálogo digital do APESP, buscar pela AND por meio de icha digitalizada em nome João Marcos Flaquer, além de se enconrtrar algo sobre o CCCS, a partir do próprio acrônimo. Segue o link: http://www.arquivoestado.sp.gov.br/memoriapolitica/fichas.php?pesq=1&nome=&ano_inicial=&ano_fin al=&prontuario=&organizacao=&acervo=&Reset2=Buscar. Ùltimo acesso em 23 de março de 2015.
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Por fim, vale dizer que o maior e mais problemático legado de grupos de extrema-direita, como o CCC e MAC (e correlatos), foi o de inspirar sucessivas gerações no combate a tudo que estes consideram “comunismo”, não obstante isto se comporte mais como escape para se extravasar ódio, intolerância e covardia. Outro (e que serve de estímulo para outro estudo): foi equívoco capital da Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada pela Lei 12.528/2011, ter como objetivo maior apurar a estrutura oficial golpista e de repressão, sem se preocupar devidamente com as frações colaboracionistas e partícipes do regime de exceção em questão – ainda que somente em comissões da verdade de vigência permanente poderia se esclarecer esta obscura face paramilitar e terrorista que precedeu e agiu conjuntamente ao terrorismo de Estado institucionalizado.36 Referências Bibliográficas ABREU, Alzira Alves de. 1964: A Imprensa ajudou a derrubar João Goulart; in: FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). João Goulart: Entre a Memória e a História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. AGGIO, Alberto; BARBOSA, Agnaldo; COELHO, Hercídia. Política e Sociedade no Brasil (19301964). São Paulo: Annablume, 2002. ALARCÓN, Rodrigo. Brasil: Represión y Tortura . Santiago de Chile: Editorial Orbe, 1971. ARENDT, Hannah. The Origns of the Totalitarianism . Orlando: Harvest Books, 1968. ARNS, Dom Paulo Evaristo (Pref.). Brasil: Nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985. BICUDO, Hélio Pereira . Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte . São Paulo: Pontifícia Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, 1977. BIOCCA, Ettore. Strategia del Terrore: Il Modello Brasiliano . Bari: De Donato, 1974. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade: Relatório – Volume I . Brasília: CNV, 2014. Link: http://www.cnv.gov.br/images/relatorio_final/Relatorio_Final_CNV_Volume_I_Tomo_I.pdf . CARVALHO, José Murilo de . Forças Armadas e Política no Brasil . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. CARDOSO, Irene. Para uma Crítica do Presente. São Paulo: Editora 34, 2001. COELHO, Teixeira. História Natural da Ditadura . São Paulo: Iluminuras, 2006. CORDEIRO, Janaína Martins. Direitas em Movimento: A Campanha da Mulher pela Democracia e a Ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. CUNHA, Luís Antônio. A Universidade Reformanda: O Golpe de 1964 e a Modernização do Ensino Superior . São Paulo: Francisco Alves, 1988. DOCKHORN, Gilvan Veiga . Quando a Ordem é Segurança e Próigresso é Desenvolvimento (19641974). Porto Alegre: Editora PUCRS, 2002. DREIFFUSS, René Armand. 1964: A Conquista do Estado: Ação Política, Poder e Golpe de Classe . Petrópolis: Vozes, 1981. FERNANDES, Ananda Simões. A Reformulação da Doutrina de Segurança Nacional pela Escola Superior de Guerra: a geopolítica de Golbery do Couto e Silva; in; Antíteses, vol.2, nº4, jul.-dez de 2009, Universidade Estadual de Londrina. pp. 831-56. Disponível em: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/2668/3937. Último acesso em 23 de março de 2015.
36 Quanto
ao parco conteúdo acerca do CCC e organizações correlatas, cf., BRASIL. Comissão Nacional da Verdade: Relatório – Volume I . Brasília: CNV, 2014. Link: http://www.cnv.gov.br/images/relatorio_final/Relatorio_Final_CNV_Volume_I_Tomo_I.pdf . Para o Relatório Final da CNV, acessar: http://www.cnv.gov.br/index.php/component/content/article/2uncategorised/585-home-cnv-antiga.Último acesso em 23 de março de 2015.
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