ANÍSIO TEIXEIRA
EDUCAÇÃO eo MUNDO MODERNO
NOTA EXPLICATIVA
Estudos e ensaios escritos entre 53 e 64 são aqui reunidos em livro. Foram antes publicados na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, de circulação restrita e fora do comércio. Quatro deles foram incluídos em Educação e a Crise Brasileira e agora transcritos para esta edição. Como foram conferências ou contribuições a congressos e reuniões, distribuídos por mais de uma década, não escapam a redundâncias e repetições e, às vezes, a um tom de prédica e quase-polêmica que, sem dúvida, lhes retira o ar imparcial e desapaixonado que se pede em trabalhos acadêmicos. Em sua essência, são observações e reflexões sobre problemas humanos do nosso tempo, todos eles em marcha para uma solução possível, mas ainda envoltos em perplexidades e controvérsias. A fé que os conduz é a fé no homem e na sua incipiente experiência de saber e de democracia. O A. se coloca francamente numa linha utópica, no sentido em que Riesman usa a expressão. As suas proposições são as de quem não possui a verdade, mas crê na capacidade imaginativa do homem e nas meias-verdades que lhe dá a ciência, para o guiarem em sua aventura de vida. Tudo que fazemos pode sempre ser feito de forma diferente e muitas vezes melhor. A nossa existência é uma experiência aberta. O passado é extremamente importante, mas como uma luz que ilumina o presente e nos ajuda a vê-lo melhor, e a evitar os erros e omissões da experiência anterior. Estamos, pela primeira vez, a ver, como possível, uma sociedade de que todos participem e em que todos e cada um possam desenvolver-se dentro de suas potencialidades individuais. Esta sociedade fraterna e individualista, nesse novo sentido de individualismo, não já de alguns, mas de cada um, é a sociedade que nos cabe construir. Os ensaios aqui publicados são uma apagada contribuição a essa nova visão da vida humana. Anísio Teixeira
1 FILOSOFIA E EDUCAÇÃO
AS RELAÇÕES ENTRE filosofia e educação são tão intrínsecas que John Dewey pôde afirmar que as filosofias são, em essência, teorias gerais de educação. Está claro que se referia à filosofia como filosofia de vida. Sendo a educação o processo pelo qual os jovens adquirem ou formam "as atitudes e disposições fundamentais, não só intelectuais como emocionais, para com a natureza e o homem", é evidente que a educação constitui o campo de aplicação das filosofias, e, como tal, também de sua elaboração e revisão. Muito antes, com efeito, que as filosofias viessem expressamente a ser formuladas em sistemas, já a educação, como processo de perpetuação da cultura, nada mais era do que o meio de se transmitir a visão do mundo e do homem, que a respectiva sociedade honrasse e cultivasse. E, como que para confirmá-lo, não deixa, por isto mesmo, de ser significativo o fato de a primeira grande formulação filosófica, no Ocidente, se iniciar com os mais evidentes propósitos educativos. Os primeiros filósofos são também os primeiros mestres, procurando reformular os valores da sociedade e, na realidade, reformar a educação corrente. Eram, pois, filósofos e reformadores. Os estudos filosóficos formais nascem, assim, como estudos de educação. Os sofistas foram os "primeiros educadores profissionais" da civilização ocidental. O traço distintivo dessa civilização, na frase de André Siegfried, desde então consistiu no "hábito de tratar os problemas à luz da razão, liberta do mágico, do supersticioso e do irracional". Daí por diante, a mentalidade ocidental não mais se afastou dessa tradição, buscando subordinar a própria religião à razão e, na realidade, toda a vida humana a um esquema coerente de idéias, compreendendo teorias do homem, do conhecimento, da sociedade e do mundo. Como tais teorias são todas elas fundadas na teoria do conhecimento, faz-se esta a teoria-chave, não só para iluminar e esclarecer as demais, como, sobretudo, para comandar as conseqüências da filosofia, como um todo, sobre o processo educativo. Já mencionamos que, antes de quaisquer formulações explícitas de filosofia, a humanidade havia elaborado as culturas em que vivia imersa e que lhe davam os instrumentos para a ação e para a fantasia, para o trabalho e para o consumo, para o prazer e para o sofrimento. Tais culturas continham em estado de suspensão, digamos assim, as teorias que viriam depois a ser formuladas expressamente. Baseadas em costumes e rotinas imemoriais, as culturas, quando a história delas nos deu conhecimento, já apenas podiam mudar por acidente ou por pressões externas, por choques e conflitos, desprovida a prática dos atos humanos de qualquer elemento intencional e, mesmo, de qualquer plasticidade para mudança ou progresso percebidos e ordenados. 1
Tudo leva a crer que nem sempre foi assim e que períodos houve em que a humanidade praticou e aprendeu pela experiência, com poder criador considerável. A domesticação dos animais, a produção de animais híbridos, a construção de ferramentas e instrumentos, a organização social e religiosa, com toda a complexidade de ritos e instituições, demonstram que o homem usou amplamente a inteligência e a usou com eficácia e corretamente. Com o apogeu das "civilizações" é que vamos encontrar os homens mergulhados em um estágio de triunfo e estagnação, mais devotados ao lazer e à suntuosidade do que à criação, endurecidos e cristalizados em intrincados contextos de costumes, ritos e rotinas. Os sofistas e Platão não eram, assim, os reveladores da vida grega, mas os reformadores. Ao investirem contra os costumes e as práticas correntes, tão hirtos e mortos que pareciam decorrer da adaptação cega do homem aos seus rudes apetites e necessidades, criaram virtualmente a sociedade dinâmica que se iria fundar na mudança e no cultivo da mudança. Dispondo de uma língua excepcionalmente avançada para o tempo, contavam os gregos não somente com este instrumento verbal de alta perfeição como também com a disposição especial para criar figuras e simbolizações intelectuais para a especulação nos campos da geometria e da matemática. Se a isto acrescermos a peculiaridade helênica de não estar a sua civilização, tanto quanto outras civilizações contemporâneas, acorrentada ao poder sacerdotal, detentor habitual e cioso do saber tradicional, teremos alguns elementos para esclarecer a mudança de direção na aventura humana, a que Renan veio chamar de "milagre grego". Capacidade especulativa, decorrente do desenvolvimento da língua e da simbolização geométrica, aliada ao secularismo da civilização grega, deu a esse momento histórico oportunidade para a formulação do pensamento filosófico da humanidade em condições jamais até então imaginadas. Tão profundas se revelaram certas formulações, que A. N. Whithead pôde afirmar ser “a mais segura
caracterização geral da tradição filosófica do Ocidente consistir a mesma em uma série de notas" – notas de pé de página, diz ele – "ao pensamento de Platão". Não se pode, pois, analisar a filosofia da educação de nossa época sem que antes nos detenhamos nesses recuados primórdios da civilização. A construção filosófica então erguida pelo homem é um prodígio de bom senso e de capacidade especulativa, dentro das limitações de conhecimento do tempo. A experiência, antes criadora, se havia tornado rotina ou acidente e, esvaziada do conteúdo plástico, já não oferecia condições para progresso contínuo ou ordenado. A razão, pelo contrário, recém-descoberta, estava em pleno esplendor de criação especulativa, extasiando a imaginação grega com a maravilha das proporções, do ritmo, da simetria, da harmonia, do completo, do acabado, do ordenado, do perfeito. Não há como admirar haver chegado Platão à concepção de um mundo racional supra-sensível, mais real que o mundo das coisas desordenadas e passageiras, e de que este último seria apenas a sombra fugaz e ilusória. A alegoria da caverna consagrou, sob forma literária, essa concepção de um mundo de idéias, real, eterno e imutável, a que o homem tentava chegar pela educação da mente e do espírito. A descoberta do conhecimento racional, como algo em que se pudesse apoiar o homem, constituiu aquisição de tal modo segura que daí por diante as filosofias 2
flutuaram e oscilaram, mas dificilmente se puderam libertar e, ainda hoje incompletamente, dos quadros com que as balizou o gênio de Platão. Duas ordens de conhecimentos eram possíveis, o empírico, fundado em experiência e erro e, por conseguinte, insuscetível de produzir a certeza, e o racional, fundado na especulação matemática e filosófica, nas leis da harmonia e da simetria, construção intelectual do espírito em sua intuição reveladora do real, do perene e do imutável. Dar a este segundo conhecimento, que se elaboraria na contemplação e no lazer, a nobreza e a dignidade da única realidade que importava, era algo como uma conclusão lógica, tanto mais conseqüente quanto a sociedade grega, aristocrática e baseada na desigualdade entre homens livres e escravos, veria nessa conclusão uma justificação do seu próprio regime social. Estavam aí os elementos para as teorias do homem e da sociedade, que Platão desenvolve na República, propondo a organização de um Estado que, mais do que nenhum outro, se iria fundar na educação e no treinamento dos indivíduos para atender às diferentes funções sociais que lhes fossem reservadas pelas respectivas ordens de sua natureza humana. Filosofia e educação se fazem campos correlatos de estudo e de prática, e em nenhum outro período da história se registra afirmação mais decisiva, primeiro, quanto à função da educação na formação e distribuição dos indivíduos pela sociedade e, em segundo lugar, quanto ao reconhecimento de que sociedade ordenada e feliz será aquela em que o indivíduo esteja a fazer aquilo a que o destinou sua natureza. Como se distribuiriam os homens? A observação do senso comum estava a mostrar que se escalonavam eles em graus diversos de capacidade mental, alguns mal se libertando dos apetites e necessidades do corpo, outros alcançando a coragem e a generosidade, e outros ascendendo, afinal, à contemplação intelectual e ao gosto das idéias e das formas do espírito. Com tais elementos não seria difícil a fórmula especulativa pela qual se ordenasse o complexo do mundo e do homem. O pressuposto fundamental aí estava: tudo que existe se divide em Formas e Aparências, as primeiras reais, eternas, e, só elas, suscetíveis de conhecimento, e as últimas, passageiras, mutáveis, em processo de ser mas não chegando a ser, suscetíveis apenas de produzirem opiniões e crenças, sem valor de saber, isto é, saber racional. O conhecimento das Formas é uma intuição mediata do intelecto sob a provocação dos sentidos, e o fim do homem é a contemplação dessas Formas. Composto de alma e corpo, substâncias diversas e, de certo modo, independentes, o homem, pela alma, que não é propriamente Forma, mas aparentada com as Formas e aprisionada no corpo, vive num aspirar ao mundo das Formas, que é o seu verdadeiro mundo. Como o corpo pertence ao mundo das aparências, cabe-lhe subordinar-se à alma e ser atendido apenas em seus apetites "necessários", e em grau mínimo. Alcança o homem o seu destino na medida em que se liberta das ilusões e aparências e depara com o mundo das realidades ou das formas, que vem a conhecer pela atividade intelectual e a amar pela sua harmonia e beleza. A natureza e a sociedade decorrem desses pressupostos, distribuindo-se os homens na medida em que se libertam do corpo e ascendem na capacidade de contemplação da verdade, do bem e do belo, isto é, do conhecimento, que produz a 3
virtude como uma conseqüência. Aos filósofos, que seriam por excelência tais homens, competiria a função de governo, descendo depois a hierarquia aos capazes de generosidade e coragem (defensores), até aos artesãos e produtores, dominados pelos apetites e sentidos. A sociedade é, assim, rigorosamente aristocrática e se funda na desigualdade em que os homens se distribuem por esses três degraus da escala humana. Temos nessa filosofia, aí toscamente esboçada, uma teoria do universo, uma teoria do homem e uma teoria da sociedade, que vêm governando a vida humana e a educação no Ocidente até quase os nossos dias. Absorve-a, depois de longos séculos de confusão, o cristianismo, que lhe acrescenta as teorias da criação e do pecado original. Compreende-se a fascinação dos primeiros filósofos da Igreja pelo pensamento platônico. Parecia uma antecipação ao pensamento teológico em elaboração e uma fundamentação teórica para os pressupostos orientais da religião nascente. Pela teoria platônica, a natureza não chegava a ser digna de estudo e os homens estavam todos distribuídos em três classes apenas de indivíduos, conforme atingissem os dois únicos níveis de desenvolvimento além do nível dos simples apetites do corpo. Aos deste último grupo caberia o trabalho, para atender às necessidades da matéria; aos que, ultrapassando os apetites, alcançassem a coragem e a generosidade, competia a defesa da sociedade; e, finalmente, aos que se elevassem ao estádio da razão e da visão universal, o poder e o governo. A educação seria o processo pelo qual os indivíduos desvendariam suas potencialidades e se distribuiriam pelas diferentes classes, formulando o filósofo grego deste modo a mais perfeita teoria das funções do processo educativo. Não lhe foi, porém, intelectualmente possível prever nem a unidade de cada indivíduo, nem a extrema variedade de suas potencialidades, o que o levou a um conceito aristocrático de sociedade, e em rigor, depois de realizado, a uma forma limitada e estática para essa mesma sociedade. A idéia da criação do mundo e a do pecado original, trazidas pelos cristãos e oriundas da tradição judaica, viriam, por um lado, tornar a "natureza" respeitável, por haver sido criada por Deus, e, por outro, dar nova explicação aos elementos constitutivos do homem, já agora carne e espírito, os quais, longe de suscetíveis de controle pelo desenvolvimento do espírito, se encontrariam em luta permanente, não sendo a vitória do espírito sobre a carne o privilégio de alguns, mas a luta de todos os homens, do mais humilde ao mais bem dotado. Não se alteram as grandes estruturas do mundo, do homem, da natureza e da sociedade, mas surgem duas novas linhas de desenvolvimento. A primeira é o fermento democrático, decorrente da igualdade substancial de todos os homens; a segunda é a do estudo da "natureza", como algo em que se esconderiam as formas, pois já não era a natureza a extravagância de um demiurgo, mas a criação de Deus. O dualismo de forma e matéria, assim tomado aos gregos na formulação aristotélica, viria, mais tarde, sofrer a reformulação tomista e reconciliar-se com a doutrina judaico-cristã, dando origem ao desenvolvimento moderno e às filosofias de Bacon, Descartes, Locke, Kant, Fichte e Hegel, todas oriundas e, no fundo, destinadas
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apenas a complementar Platão, em face da evolução da sociedade e dos conhecimentos humanos. Ainda na Idade Média, os primeiros estudiosos da "natureza" já se chamam de platonistas, pois estão a buscar, além das aparências e bom senso, o segredo das formas, de que a natureza seria a cópia ou a imitação. Por outro lado, os homens passaram a ser julgados pelo esforço com que lutavam pela vitória do espírito sobre a carne, e o mérito humano, em oposição ao critério grego, a se medir pela sinceridade na luta e não pelas vitórias alcançadas. São dois elementos quase-novos, a vontade do homem na luta entre o bem e o mal e o julgamento do homem pelas intenções. O grego virtuoso e sábio era um vitorioso de fato. Havia-se desenvolvido até alcançar o saber e a virtude. O cristão virtuoso era um lutador, sempre vencido e sempre em luta, a ser julgado não pelos resultados, mas pelas intenções e pela intensidade da vontade de luta. Por isto mesmo, a fórmula platônica era intelectualista e aristocrática e a fórmula cristã "voluntarística" e (potencialmente) democrática, na expressão de W. H. Walsh, resumindo-se nestes pontos as diferenças mais substanciais, originárias em essência da distinção entre a concepção grega de alma e corpo e a cristã de espírito e carne. Recordemos que para Santo Tomás, corpo e espírito constituiriam uma certa unidade, o que dificulta o conceito de imortalidade, e leva os cristãos ao dogma da ressurreição dos corpos, proeza de raciocínio que, de certo modo, santifica o corpo na luta do espírito sobre a carne e ameniza os rigores do ascetismo helênico. É com estes novos elementos que elabora Bacon a primeira revolta, com a reformulação da teoria do conhecimento racional. Legitimado o estudo da natureza, e dignificado o corpo humano, de um lado sob a inspiração platônica, de que a natureza escondia as formas do real, e, de outro, sob a inspiração cristã, de que a natureza era obra de Deus, o novo filósofo lança as bases da experimentação como processo do conhecimento e cria o novo conhecimento racional, o das leis da natureza reveladas, não pela simples especulação intelectual fundada na observação do bom senso, mas pela especulação intelectual fundada nos novos processos de experimentação. A formulação medieval da filosofia platônica, mantendo o mesmo critério do racional que recebera dos gregos, "antecipava a natureza", emprestando-lhe características arbitrárias e fundadas em opiniões humanas, que importava substituir pela descoberta de suas verdadeiras leis. Para tais descobertas se inventara o método experimental, que mais não era que o método imemorial de observar e manipular as coisas, a fim de ver o que se podia fazer com elas; ao fim de contas, o método do trabalho humano. O encontro entre o trabalho e o conhecimento, desde que, dezenove séculos antes se dera o encontro entre a razão e o conhecimento, constitui a segunda grande revolução da inteligência humana. Platão substituíra o mágico, o supersticioso, o "empírico", no sentido de acidental, o costume, a rotina, pela reflexão especulativa racional, mas tal reflexão revelaria uma verdade estática e puramente lógica. Rompendo com a natureza e com os processos empíricos de trabalho, que não julgava sequer dignos de estudo, achara a solução para sociedades aristocráticas e reduzidas, capazes de viver de literatura e de lazer. 5
Somente Bacon abre as portas para as sociedades numerosas e ricas, em perpétuo desenvolvimento, ao trazer o conhecimento racional para o campo do prático, com o que inaugura uma nova era de criação e originalidade permanentes para a espécie humana. As sociedades destinadas a mudar e agora devotadas ao culto da mudança ressurgiram afinal sob o céu. A volta à observação, que as concepções platônicas, de certo modo, haviam tornado possível interromper, religa o espírito científico aos períodos anteriores à época de Platão e de Aristóteles, restaurando a cosmologia anteriormente descoberta e criando, com o método experimental, uma nova física e uma nova ciência da natureza. As estruturas do pensamento lógico e filosófico são as mesmas de Platão, mas abre-se um campo novo de estudos e se refazem, pela experimentação, os métodos de observação, antes os do senso comum e, agora, os da pesquisa e da descoberta. São estas estruturas de pensamento que retoma Descartes, no século XVIII, para reformular o que se veio chamar de filosofia moderna. A sua posição, entretanto, ainda é a de um platonismo cristão. Conserva o dualismo de res cogitans e res extensa, em substituição ao de formas e aparências; recria o conceito platônico de conhecimento pela "intuição intelectual"; recomenda a observação antes com o olho da mente do que com os olhos dos sentidos; e antecipa os conceitos de Leibniz de " cognitio intuitiva" como base da "cognitio symbolica", ou descritiva. Acrescenta, contudo, para mostrar a origem cristã de sua posição, a idéia da alma dotada das faculdades de compreender e de querer, esta mais extensa do que aquela, dando origem ao primado da vontade, que vai encontrar em Kant a sua expressão mais decisiva. Com efeito, Descartes consolida a liberdade para o estudo da ciência física, separando as esferas de influência entre o mecânico e o espiritual. Deixa este para os teólogos e moralistas e o mundo físico para os cientistas, de certo modo reconciliando os esforços de uns e outros. É Kant, porém, que tenta a última pacificação, com o seu dualismo, ainda platônico, entre númeno e fenômeno. Todo conhecimento é conhecimento de fenômeno, ou de aparências. O categórico absoluto só é possível no campo da razão prática. Substituiu-se pela fé o conhecimento. "Pura fé prática" é, afinal, o motor da ação humana. O homem progride nesse campo, não pelo conhecimento mas pela vontade e pela experiência ancestral da vida humana. O primado do prático sobre o teórico faz dele, já o disse alguém, o filósofo do protestantismo, e mostra as suas raízes cristãs. A estrutura dualista do seu pensamento é platônica, mas as conseqüências são "voluntarísticas" e cristãs. Toda essa tradição filosófica se reflete na educação, com a sua organização intelectualística e a sua prevenção contra o técnico. Seja o sistema inglês, seja o francês, seja o alemão, são organizações educativas fundadas na teoria do conhecimento pela intuição intelectual, na teoria moral do treino da vontade, na nobreza dos estudos literários e na prevenção contra o prático e o técnico. Bacon ficará, ainda por muito tempo, simples profeta da ciência. Até nos tipos de escolas encontra-se a hierarquia platônica, com a maior dignidade assegurada às formas contemplativas do saber, depois, em uma segunda 6
ordem, às do conhecimento científico experimental e, afinal, às de ensino prático ou técnico, como último escalão da ordem educacional. Quase que até o fim do século XIX pode-se considerar pacífica essa classificação, sendo as instituições educativas mais famosas instituições em que Platão facilmente se reconheceria, com alguns rápidos esclarecimentos sobre modificações de detalhes em suas concepções. Os próprios empiricistas, a despeito de divergências aparentes, não repudiavam os pressupostos básicos de Descartes, e deste modo também se ligavam a Platão. Só recentemente essa tradição entrou em real ataque, com o repúdio ao cartesianismo e ao kantismo, mas não se pode dizer que os novos filósofos já estejam influindo decisivamente nas instituições educativas. Estas vêm de origem demasiada remota para se transformarem rapidamente, e os professores, em sua esmagadora maioria, refletem a posição filosófica tradicional e não a que começa a se esboçar em face da nova ciência das culturas e dos novos desenvolvimentos da filosofia científica. A filosofia mais recente repele o conceito cartesiano de alma e o seu conceito de conhecimento. "Alma" passa a ser um nome para designar certas formas de comportamento humano, suscetíveis de explicação natural e o conhecimento, a descoberta muito mais do como são as coisas do que do que são elas. A busca da certeza, que moveu Descartes, continua a motivar os filósofos, mas estes se mostram bem mais modestos e começam a se contentar com a garantia provisória da prova experimental em constante processo de renovação. Do lado lógico, o progresso tem sido sensível, considerando-se diversas formas de lógica, fundadas em convenções diversas, válidas segundo os casos a que se aplicam. A ciência toda se vem fazendo convencional, em sua parte matemática, e experimental, na parte física, com reflexos poderosos sobre as filosofias. Assim que se generalizarem os novos conceitos sobre a natureza do homem, a natureza do conhecimento e a natureza do comportamento social e moral do homem, a educação refletirá nos novos conceitos, que, depois, se verão institucionalizados nas escolas. Com efeito, o método desenvolvido pela pesquisa científica – originário do retorno à experiência recomendado inicialmente por Bacon, depois de séculos de pensamento puramente especulativo e racional – constituiu algo de tão característico e amplo que veio a refletir-se sobre a filosofia, produzindo primeiro os “empiricistas", depois, em contraste com estes, os "racionalistas", e afinal os "pragmatistas", "instrumentalistas" ou "experimentalistas", que buscam reconciliar as posições dos dois primeiros mediante uma reconstrução fundamental dos conceitos de experiência e de razão, à luz desse novo método científico. A reformulação desses conceitos se fez em face da alteração real sofrida pela natureza do ato de experiência e das modificações introduzidas na psicologia pelo progresso das ciências biológicas. A mudança do caráter da experiência pode ser condensada na diferença entre os termos “empírico" e "experimental". A experiência, no conceito tradicional, consistia
no processo de tentativa e erro, só podendo produzir o saber por acidente, saber que se consubstanciava em hábitos e procedimentos cegos, os quais, por sua vez, se 7
cristalizavam em costumes e rotinas hirtos e duros. Daí ser a experiência um instrumento de escravização ao passado e não de renovação e progresso. A experiência, como a concebeu Bacon, seria a Experimentação, o produzir-se voluntariamente a experiência para se conseguir o resultado novo e o novo conhecimento. A psicologia dos séculos dezessete e dezoito retardou, se não impediu, que se extraísse desse novo conceito da experiência uma teoria experimental do conhecimento. O atomismo associacionista dos “empiricistas” teve, por certo, a sua
eficácia no desencorajamento das racionalizações especulativas, mas não forneceu os elementos para uma teoria satisfatória do saber, dando assim lugar ao surgimento dos "racionalistas", que buscaram completar o vácuo produzido pela psicologia inadequada dos sensacionalistas, com os conceitos e categorias a priori de Kant e dos pós-Kant. Foi a abordagem, antes biológica do que psicológica, já no século XIX, do fenômeno da experiência humana que permitiu desenvolver-se o conceito de experiência como interação do organismo vivo com o meio, e elaborar-se uma teoria psicológica adequada à explicação do comportamento humano face à experiência e ao conhecimento. Segundo essa teoria, o processo de vida é uma seqüência de ações e reações, coordenadas pelo organismo para o seu ajustamento e reajustamento ao meio. Os sentidos e as sensações não são meios ou caminhos do conhecimento, mas estímulos, provocações e sugestões de ação, mediante os quais o organismo age e reage, ajustando-se às condições ou modificando as condições para esse reajustamento. Conhecimento ou saber é um resultado, um derivado dessa atividade, quando conduzida inteligentemente. A mente não é algo de passivo em que se imprima o conhecimento, nem a razão uma faculdade superior e isolada que elabore as categorias, os conceitos. Estes conceitos ou categorias resultam da percepção das conexões e coordenações dos elementos constitutivos dos processos de experiência e constituem normas de ação ou padrões de julgamento. A integração desses novos conceitos na filosofia veio permitir a sua reformulação, com a elaboração de uma teoria geral do conhecimento fundada no método do conhecimento científico, uma teoria da sociedade adaptada aos novos meios de trabalho industrial criados pela ciência e uma nova teoria política da democracia, a qual essa mesma ciência veio afinal tornar possível. Em nosso continente, de forma mais marcante, contribuíram para essa reconstrução os pensadores William James, C. S. Pierce e John Dewey. A designação mais corrente dessa filosofia como "pragmatismo" e a identificação de pragmatismo com a frase saber é o que é útil concorreram para incompreensões, deformações e críticas as mais lamentáveis. John Dewey, a quem coube a formulação mais demorada e mais completa desse método de filosofia (mais do que sistema filosófico), muito se esforçou para afastar as confusões e desinteligências, e a sua contribuição foi decerto das maiores, se não a maior, na empresa de integrar os estudos filosóficos de nossa época no campo dos estudos de natureza científica, isto é, fundados na observação e na experiência, na hipótese, na verificação e na revisão constante de suas conclusões. 8
Coube a Dewey a formulação do método, o método da "inteligência", como prefere ele chamá-lo, para caracterizar a sua revisão do conceito de razão e experiência. Mas o que será a filosofia do nosso tempo ainda irá depender do trabalho de inúmeras pessoas que, devotando-se à filosofia, realizem, nessa esfera, o que os cientistas realizaram e vêm realizando no campo da ciência. A generalização do novo método do conhecimento humano ao campo da política, da moral e da organização social, em geral, será a grande tarefa das próximas décadas. John Dewey marcou os rumos e balizou as linhas para essa marcha da inteligência experimental por esses novos campos, marcha que nos há de dar uma nova ordem, mais humana do que tudo que até hoje tenhamos conhecido. Nenhum grande filósofo moderno foi mais explícito do que Dewey na necessidade dessa transformação educacional, imposta pela filosofia fundada na nova ciência do mundo físico e nova ciência do humano e do social. Chegou ele a formular toda uma filosofia da educação, destinada a conciliar os velhos dualismos e a dirigir o processo educativo com espírito de continuidade, num permanente movimento de revisão e reconstrução, em busca da unidade básica da personalidade em desenvolvimento. Dewey, cujo centenário de nascimento se celebrou no ano de 1959, continua a ser um simples precursor, não se revelando sua influência no sistema educacional dos Estados Unidos, onde nasceu e viveu, nem muito menos em outros países, senão em aspectos superficiais e secundários. Não há maior erro do que supô-lo seguido, e ainda menos, dominante no sistema escolar norte-americano. Sem dúvida, foi profundíssima a influência da vida americana, do caráter prático de sua civilização, sobre o pensamento de John Dewey. Este pensamento, porém, na sua mais fecunda parte original, no seu esforço de conciliação das contradições e conflitos da vida moderna, ainda não logrou implantar-se e está mesmo ameaçado de se ver ali e na parte que lhe é oposta do mundo, submergido por um refluxo das velhas doutrinas dualistas, de origem platônica, hoje em franca popularidade no leste e no oeste. Antes que a influência de Dewey se possa estabelecer com qualquer extensão e profundidade, ter-se-á de resolver o problema que se poderia considerar o do materialismo ou naturalismo cultural, isto é, se a conduta humana será suscetível de estudo científico. Para Dewey, isto será essencial a fim de restabelecer a eficácia da formação moral pela escola. De certo modo, Dewey, neste ponto, volta a uma concepção que não se distancia da de Platão, não no aspecto dualista de sua doutrina, mas no aspecto em que une o conhecimento e a virtude. O comportamento moral para Dewey é aquele que leva o indivíduo a crescer, e crescer é realizar-se mais amplamente em suas potencialidades. E como tais potencialidades somente se desenvolvem em sociedade, o indivíduo cresce tanto mais quanto todos os membros da sociedade crescerem, não podendo o seu comportamento prejudicar o dos demais porque com isto o seu crescimento se prejudica.
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Com este critério naturalístico de moral, abre-se a possibilidade de seu estudo científico, e com ele o da generalização de processos de conduzir a educação de forma objetiva ou científica. Discordam os filósofos ingleses atuais dessa possibilidade, reabrindo a velha questão e, de certo modo, insinuando o dualismo kantiano de razão pura e razão prática. Mas a correção se fará se prevalecer o conceito integrado do social, como a mais ampla categoria do real, em que o indivíduo encontra as suas formas de desenvolvimento. Por isto mesmo, mais do que o exame de aspectos mais recentes dos desdobramentos filosóficos e de suas repercussões inevitáveis sobre a educação, cabe analisar mais demoradamente o fenômeno da democracia como forma do social, o qual recomeçou a medrar, depois das ruínas das civilizações antigas, com a filosofia cristã medieval, vindo afinal, na época moderna, a implantar-se definitivamente e impor a mais ampla reconstrução educacional. Já afirmamos que os filósofos cristãos, com a identificação do corpo e da alma em uma só unidade e a teoria da virtude como resultado da luta voluntária do homem contra a carne e pelo espírito, haviam criado a possibilidade da democracia, dando a cada homem o valor da medida em que lograsse triunfar moralmente. O cristianismo constituiu-se, assim, uma teoria potencialmente democrática. Em sua pureza doutrinária, permitiria a democracia. O exemplo das ordens religiosas é bem eloqüente. Na realidade, entretanto, não produziu a democracia e se ajustou a condições sociais as mais contraditórias, até que o Renascimento e a Reforma protestantes vieram, aparentemente, renovar as esperanças de se estabelecer a democracia. Com os fatos novos do "livre-exame" religioso e a revolução científica baconiana, a democracia se faria efetivamente possível, de um lado pela revolução industrial, que Bacon profetizara e que de fato veio a confirmar-se, e, de outro, pela liberdade religiosa. As forças da tradição foram, porém, mais fortes, reduzindo-se a liberdade religiosa a controvérsias baseadas nas velhas formas de argumentação da Idade Média exatamente do tipo da atividade intelectual que Bacon condenava, e a experimentação científica conservando-se extremamente reduzida e limitada, aproveitados os seus resultados pelos que estavam em condições econômicas de explorá-los em seu proveito. Embora estivesse superada a teoria do conhecimento que justificaria a preeminência do conhecimento de natureza puramente intelectual ou literária, o fato de não ser a cultura européia nativa mas, na sua parte mais significativa, herdada das civilizações antigas, concorria para que a educação, sob o pretexto de humanismo, se fizesse sobretudo por meio das letras gregas e latinas, incluindo-se entre elas, quando muito, a matemática e a filosofia natural. Será impossível exagerar o vigor da resistência das tradições escolásticas da Idade Média no sistema escolar da época moderna e mesmo contemporânea, sobretudo no ensino secundário e superior. A cultura chamada "acadêmica", isto é, de letras, domina ainda na segunda metade do século XIX as universidades inglesas, e somente na Alemanha e na França 10
já tem então certa, mas pequena, influência o ensino de ciências e da tecnologia científica. À maneira de Platão, pululam os dualismos, sendo um dos mais influentes o do espírito e matéria, considerada a ciência como estudo da matéria, e continuando a mente como algo de puramente subjetivo, confiado o seu estudo às especulações filosóficas. Até o século XIX, com efeito, a ciência não vai além do mecânico, e a própria biologia está ainda a aguardar Darwin para revolucioná-la com a Origem das Espécies. A despeito, pois, do novo método do conhecimento científico e a despeito da riqueza crescente produzida pela revolução industrial, acelerada pela revolução científica a partir dos fins do século XVIII, continua a dominar a civilização chamada modema uma filosofia de tipo platônico, cujo dualismo fundamental se vê multiplicado nos dualismos de atividade e conhecimento, atividade e mente, autoridade e liberdade, corpo e espírito, cultura e eficiência, disciplina e interesse, fazer e saber, subjetivo e objetivo, físico e psíquico, prática e teoria, homem e natureza, intelectual e prático, etc. – que continuam a impedir a constituição da sociedade democrática, definida como sociedade em que haja o máximo de participação dos indivíduos entre si e entre os diferentes grupos sociais em que se subdivide a sociedade complexa, diversificada e múltipla em que se vem transformando a associação humana. Não cabe nos limites deste artigo estendermo-nos sobre as deformações geradas por todos aqueles dualismos, pela natureza puramente mecânica do progresso material e pelo grau em que se viu frustrado o individualismo, mais econômico do que humano, dos séculos dezoito e dezenove. De qualquer modo, porém, todo o grande problema contemporâneo continua a ser o da organização da sociedade democrática, com uma filosofia adequada, em face dos novos conhecimentos científicos, das novas teorias do conhecimento, da natureza, do homem e da própria sociedade democrática. Essa filosofia, que irá determinar a educação adequada à nova sociedade democrática em processo de formação, já se acha esboçada na grande obra de John Dewey, que a traçou tendo em vista, mais especialmente, a sociedade americana, a qual, por um conjunto de circunstâncias, constitui a sociedade que, historicamente, mais se viu sob a influência direta do espírito oriundo dos movimentos pré-democráticos dos séculos XVII e XVIII e mais liberta das influências do feudalismo e da Idade Média. Como as filosofias, em suas formulações teóricas, ocorrem sempre a posteriori , mais como explicações ou justificações das culturas existentes, ou predicações para sua reforma, revisão e reconstrução, não se consegue a sua implantação senão depois de longos esforços e lutas. A educação institucionalizada em escolas resiste, de todos os modos, à ação das novas idéias e novas teorias, e só lentamente se irá transformando, até chegar a constituir verdadeira aplicação da nova filosofia democrática da sociedade moderna. No Brasil, onde se desenvolve, em novas condições, a mesma civilização ocidental que estivemos analisando, a educação, de modo geral, reflete os modelos de que se originou, só recentemente apresentando os primeiros sinais de desenvolvimento autônomo. 11
Em linhas gerais, a filosofia de educação dominante é a mesma que nos veio da Europa e que ali começa agora a modificar-se, sob o impacto das novas condições científicas e sociais e das formulações mais recentes da filosofia geral contemporânea. Também aqui, na medida em que nos fizermos autenticamente nacionais e tomarmos plena consciência de nossa experiência, iremos elaborando a mentalidade brasileira e com ela a nossa filosofia e a nossa educação.
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CIÊNCIA E HUMANISMO
As ÉPOCAS DE CONFUSÃO e conflito no campo das idéias são também as épocas de discriminação, de análise, de reformulação dos problemas e, deste modo, de reclarificação dos objetivos e diretrizes do espírito humano. É neste sentido que Whitehead afirma ser todo choque de doutrinas uma oportunidade. Ora, o meu propósito, aqui, é o de encarar o nosso tempo a essa luz. E creio não me levarão a mal a tranqüilidade com que proclamo a convicção de que as nossas divisões e contradições presentes são muito menos um flagelo, que uma oportunidade. Mais ainda: somente graças a elas poderemos ver quais os nossos reais problemas, poderemos redescobrir os pressupostos tácitos em que nos apoiávamos e, assim, trazer à luz os elementos necessários à análise e à reformulação indispensável, para uma nova integração. Divisões e contradições não são, aliás, algo de estático, para serem estudadas em si mesmas; mas indicações de formas diversas de compreender, que coexistiam mal evidenciadas e que afinal explodem em conflitos inevitáveis, impondo uma solução ampla, senão de integração, ao menos de nova conciliação e harmonia. A divisão que o nosso tema traz a debate é a divisão entre o "humano" e o "científico" e o "humano” e o "técnico", divisão e conflito que chegam a se manifest ar, com tamanha intensidade, em certos meios ou certos grupos, a ponto de sugerirem soluções extremadas, que se inspiram menos em quaisquer filosofias, que em elementares revoltas contra a ciência e a técnica, e retornos sentimentais aos estudos literários e lingüísticos que, em outros tempos, constituíram os chamados estudos humanísticos. O exame desse conflito e das concepções nele envolvidas parece-me que pode ser fecundo em esclarecimentos, suscetíveis talvez, de dirimir o antagonismo. Não irei, mais uma vez, caracterizar a nossa civilização, a civilização dos nossos dias. Basta lembrar que a chamam de “material", "científica" e "técnica", em oposição explícita ou subentendida a "espiritual", "moral" e “humana". Acentuamos que o homem está progredindo materialmente e se deteriorando espiritualmente,
acrescentando muitos que isto se vem dando pelo abandono alarmante dos valores morais e humanos. Tais valores “espirituais" seriam os desenvolvidos pela literatura,
enquanto os valores "materiais" à ciência se filiariam. Daí a revolta contra a ciência e a exaltação dos estudos lingüísticos e literários, como os verdadeiros estudos humanísticos. A ciência "materializou" a vida humana. Salvar-nos-emos voltando aos estudos exclusivamente literários que marcaram as culturas pré-científicas... Por mais espantoso que pareça, não é outra a atitude de certas correntes, cada vez mais pressionantes nos dias de nossa ainda adolescente civilização industrial. Os novos "humanistas" não pretendem humanizar a ciência, responsável pela civilização tecnológica e industrial, em que vamos ingressando, mas humanizar o homem 13
desumanizado pela ciência, por meio de doses intensivas de estudos lingüísticos e literários que, só eles, teriam o dom de reumanizá-lo. Não apresentam tal sugestão como algo de original e novo – que poderia sê-lo, na verdade – e sim, como lição a tomar e repetir de épocas passadas, em que os únicos estudos então suscetíveis de coordenação e sistematização teriam criado as civilizações "espirituais", de que se recordam com inexaurível nostalgia. Ora, o que foram realmente essas civilizações "espirituais"? Os "neo-humanistas" que hoje nos acotovelam não escondem que os seus mais lídimos e autênticos delineamentos estariam aquém da era cristã, na Grécia do período chamado clássico, ou – alternativa de viagem mais curta contra o tempo – nas revivescências do Renascimento, não devendo, entretanto, ser esquecido o longo período medieval, em que, de qualquer modo, os seus intelectuais (muito poucos), não sendo "científicos", alimentavam-se, de conserva, bem ou mal, daquela parte do saber miraculoso, que foi possível ou foi conveniente salvar da antiga civilização pagã. Para curar a desidratação espiritual e moral da época e os sustos e os alarmas que ela está provocando, convenhamos que a panacéia... é forte, forte e heróica! Mas foram realmente "espirituais" essas civilizações ou tais períodos de nossa comum civilização ocidental? E se o foram, por que e em quê consistia a sua "espiritualidade"? Se bem refletirmos, veremos que a dita "espiritualidade" decorria de um sistema já bem marcado de classes, em que certo grupo de indivíduos dispunha de suficiente lazer para se entregar a atividades intelectuais, estéticas ou recreativas, que chamavam de "espirituais", por serem livres ou espontâneas – ou não produtivas. O "espiritual" seria o que estivesse suficientemente desligado de condições materiais forçadas, para poder ser praticado... "livremente". Os gregos, já então alicerçados em um regime escravocrata, chegaram, efetivamente, a desenvolver toda uma filosofia para esse tipo especial de homem "livre" e "espiritual". Aceita que fosse a teoria de que certos homens são "escravos", até por “natureza", a teoria social conseqüente importaria em um conceito de "homem
livre" à maneira grega, isto é, de homem cujas necessidades materiais seriam atendidas por "escravos" e que se entregaria às delícias da vida mental, como um "quase-espírito", que passaria a ser, assim, cada um dos privilegiados, desde que não o assustasse, como então não o assustava, qualquer estalido da paz social em seu derredor, como em Roma veio a acontecer, com Espártaco – um grande susto, a cujo registro, bem ou mal, não pode fugir a História. No fundo, os gregos alimentavam o sonho de uma sociedade que tivesse as "virtudes" ou o determinismo que emprestamos às sociedades de formigas, com as suas castas de trabalho e de lazer biologicamente estabelecidas, ou seja por "natureza", ficando às classes de lazer a tarefa ou missão de homens, no sentido amplo e estético de criaturas semi-espirituais. Não é sem razão o reconhecimento de que a utopia da república de Platão nos levaria a uma sociedade totalitária do gênero fascista. A filosofia e a teoria do conhecimento elaboradas por e para uma civilização baseada na divisão entre atividade material e atividade espiritual, havia de ser coerente com seus pressupostos sociais e imaginar a vida perfeita como uma vida devotada ao 14
conhecimento pelo conhecimento, ao conhecer para contemplar e participar das delícias da vida das idéias e pelas idéias. O homem assim é que era o animal racional, perfeito, o animal que concebia o conhecimento e se deleitava no saber. Mas, ao lado dos semi-espíritos "livres", da Grécia clássica, uma classe semilivre, ou cada vez menos livre de trabalhadores, inclusive até mesmo os artesãos, e toda uma classe de puros escravos labutavam e pelejavam na velha lida humana, material e dura, em que os homens não são a ficção do animal racional, mas, animais de ação, criaturas de propósitos e hábitos, de desejos e medos, de paixões e indiferenças, para quem o conhecimento não pode ser nunca um artigo de contemplação e de êxtase, mas instrumento de trabalho, modo de fazer as coisas, regra para o comportamento, conjunto de dados para a solução de múltiplos e permanentes (e humanos, muito humanos) problemas. O tão apregoado ideal de cultura grega era, pois – reconheçamos a indiscutível verdade – o ideal particular, parcialíssimo de uma classe ou casta de sibaritas da inteligência, tão especial e tão limitada quanto o ideal de vida monástica, que lhe sucedeu e que da fórmula grega se originou, com a inclusão a mais, tão somente, de uma falsa atitude de sacrifício, que os helenos ignoravam, pois já se julgavam, aqui na Terra, em plena beatitude espiritual. Não fosse a divisão em castas da sociedade grega, pela primeira vez posta e alcandorada em filosofia, e o lazer assegurado aos homens "livres" – isto é, livres de trabalhar – e não seria possível a sua teoria do conhecimento, nem a sua teoria da vida perfeita. Longe de mim insinuar que sua contribuição não foi grande. Foi grande e mesmo imensa, em sua exaltação da faculdade humana de conhecer, a ponto de resumir o homem à inexaurível curiosidade e à busca incessante do saber pelo saber, o saber de contemplação e fruição, primacialmente, com discutíveis possibilidades de aplicação, secundariamente. Mas, nenhuma sociedade moderna, fundada em concepções completamente diversas, pode ser atendida pela tão linda fórmula grega. Como, igualmente, nenhuma sociedade moderna pode encontrar nas fórmulas medievais a solução para os seus problemas de organização e bem-estar humanos. A velha idéia de separação entre o material e o mental, transformada na Idade Média em separação do homem e do mundo, fundada aquela numa sociedade de homens "livres" e de escravos, os "livres" encarregados do espírito e os escravos da matéria e a separação do homem e do mundo, em duas vidas, uma terrena outra supraterrena; somente uma tão velha idéia é que podia sustentar a concepção de mente ou espírito como algo que se pudesse ter e cultivar, separadamente, à margem ou acima das atividades materiais, correntes e absorventes de toda a vida humana, como ela é, para a grande maioria ou a maioria crescente dos seres humanos. Vistos os antigos e superados períodos da evolução humana à luz das suas próprias condições, as suas respectivas filosofias nos surgem como esforços de racionalização perfeitamente coerentes e, se quiserem, admiráveis; mas, tão intransplantáveis para a nossa época quanto as armaduras dos cavaleiros medievais ou a consulta aos oráculos na Grécia. A filosofia e o "espírito" de cada época são produtos, quiçá subprodutos de sua cultura, não sendo possível "espiritualizar" uma civilização com tais produtos ou subprodutos de outras. 15
Um velho amigo meu, encanecido no estudo da História e das vicissitudes da cultura humana, imaginara, a esse respeito, uma peça de teatro em que satirizasse a nossa confusão filosófica moderna, obrigando os homens a se vestirem de acordo com a idade de suas idéias. A sátira lembraria o teatro grego e, talvez, fosse mais eficiente do que qualquer outra argumentação para curar os que pensam salvar a cultura "espiritual" da humanidade, já obrigando a todos a aprender latim, já, segundo métodos mais sofisticados, obrigando a todos a lerem uma prateleira de livros clássicos. E certas prudências ainda recomendariam que uns poderiam ir tais como se salvaram do tempo (quando integralmente foram salvos), para o acervo da prateleira recomendada, mas outros, só em extratos, por antologias ou seletas, deveriam lá figurar... * A realidade é que em ambos os períodos em que prevaleceu uma filosofia mais contemplativa do que ativa para a vida humana, isto é, na Grécia e na Idade Média, e que, por isto, se consideram mais "espirituais", o que se deu foi uma dualidade de sociedades, nítida e real entre os gregos, com a divisão, afinal, sem disfarces, entre homens "livres" e escravos, e amenizada ou disfarçada na Idade Média, com a idéia de secular e religioso, ou mundo e Deus, temporal e espiritual, esta vida e a outra. Em ambos os casos, o dualismo filosófico de matéria e espírito concretizava-se efetivamente em uma dualidade de classes, de instituições, ou de formas de vida tanto quanto possível apartadas, como era mais particularmente a situação na I dade Média. O caso da sociedade moderna é, sob muitos aspectos, o oposto da sociedade grega e, mesmo, da medieval. Estamos, desde o aparecimento da ciência, como é ela concebida hoje, a tentar uma organização social em que todos os homens tenham oportunidades iguais para se desenvolverem segundo as suas aptidões individuais e viverem aqui e agora uma vida decente e de progressivo bem-estar, fundada no trabalho e em uma organização social justa. O ideal do homem "livre" grego chega a ser uma das mais condenáveis formas de viver na sociedade moderna e o ideal monástico da Idade Média, a rigor somente sobrevive nas ordens religiosas ativas e de trabalho, ou neste sentido evoluídas. Se alguma coisa, aliás, caracteriza, em síntese, a sociedade moderna é o ideal de trabalho, devendo vir a ser esta a atividade por excelência honorífica do nosso tempo. Como poderia, assim, a "espiritualidade" típica dos homens de prol, gregos ou medievais, fundada na contemplação e na supressão das atividades materiais, ser o remédio para a nossa “materialidade"? E como poderia a ciência, cujos frutos são as tecnologias – as novas técnicas de cunho ou caráter científico – que estão a
recondicionar o trabalho humano, ser considerada culpada do "materialismo" moderno? Nunca poderíamos ensaiar o nosso modo atual de vida, sem as transformações tecnológicas que a ciência moderna nos trouxe. E nunca teríamos chegado a tal ciência sem a revisão da "fórmula" grega do conhecimento. Essa revisão se operou
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com a ênfase dada à observação e o impacto desta observação, renovada, melhorada e ampliada, sobre os conceitos do mundo especulativo helênico e medieval. Com os progressos da observação e da experimentação científicas, passamos a uma nova teoria do conhecimento. Este já não é o resultado da pura atividade mental a que se referiam os gregos, mas o produto de uma série de operações materiais e concretas, inclusive as operações mentais, também elas materiais e corpóreas. Não só a teoria do conhecimento, mas tambérn o seu objeto foram modificados, pois, o material e não apenas o mental, o mutável e não apenas o imutável, o temporal e não apenas o eterno passaram a ser os novos e verdadeiros objetos do conhecimento humano. Salvo na pura especulação matemática (e mesmo nesta os aparelhos começam a ingressar, e com eles os processos concretos), em toda a demais atividade intelectual humana a identificação desta atividade com os métodos concretos de trabalho material já se estabeleceu quase por completo. A distinção entre os laboratórios – este próprio nome seria inconcebível na Grécia – e os ateliers e oficinas ou, as fábricas e, hoje, os grandes "combinados" fabris, é uma distinção apenas de grau ou de fins imediatos, e nunca da qualidade do trabalho empreendido. O trabalho para produzir coisas e o trabalho para produzir conhecimentos sobre as coisas (este quando em nível verdadeiramente científico) são idênticos. Em um e outro, os processos de observação, ação e controle são equivalentes, com simples diferenças de ênfase e refinamento, quanto aos alvos e à planificação, aliás conectados em interação e interdependência constantes. Com esta nova teoria do conhecimento que, quando não existente ou não de todo elaborada, deveria ser urgentemente formulada ou aperfeiçoada, seria impossível a filosofia do "espírito" elaborada, com a adequação que já salientamos, pelos gregos, para a sua sociedade e o estágio do seu desenvolvimento. Mas, assim como eram humanos, humanizantes e humanísticas, pela forma que focalizamos, a filosofia e a ciência gregas, assim deveriam ser consideradas humanas, humanizantes e humanísticas a ciência moderna e, como ela, os seus frutos – as tecnologias – que multiplicaram de modo tão espantoso os resultados do esforço humano, com uma economia deste nunca antes possibilitada, e oportunidades de lazer e de aperfeiçoamento espiritual, como nunca sonhadas, para todos os que trabalhem (ou desde que todos trabalhem e produzam), tudo a depender, apenas, de simples reajustamentos sociais. Como se pode conceber que alguém venha a considerar inumanos esses desenvolvimentos e a buscar em filosofias peremptas os segredos do humanismo, a não ser que este alguém conserve realmente da vida a antiga idéia grega de que só a contemplação intelectual e estética, privilégio de poucos, seja fim digno do homem? Só a paradoxal conservação desse "ideal" em amplos grupos de intelectuais e a recusa da nova ciência (para sobreviver) em elaborar a sua própria filosofia explicam o recrudescimento intermitente das tendências de manter os dualismos, em que se apoiavam a filosofia e a ciência grega e medieval. Toda tentativa de "espiritualizar" a vida moderna, mediante superfetações culturais clássicas ou medievais, funda-se na conservação do dualismo grego entre vida material e vida mental, dualismo que o conhecimento científico, a nova teoria do conhecimento científico, o método do conhecimento científico destruiu e aboliu. Somente será possível "espiritualizar" e "humanizar" a vida moderna, humanizando e espiritualizando a ciência, o trabalho e a organização social de nossos 17
dias, senão para agora, para o mais ou menos próximo futuro. O divórcio entre o material e o espiritual é inconcebível, salvo como aspectos da mesma atividade geral, que é, simultaneamente, material e espiritual ou espiritual e material. * Historicamente, todos sabemos que o saber científico, como o concebemos, hoje, se elaborou por saltos e não sem luta e esforço, para vencer resistências obstinadas. Para que o método experimental se aplicasse ao mundo físico, primeiro, e depois, ao mundo fisiológico, houve perseguição e martírio... E porventura já estará superada a era dos perseguidos e dos mártires do progresso humano?!... Tais conhecimentos eram considerados perigosos, porque ameaçavam interesses criados e abalavam os fundamentos de uma ordem social inspirada em um saber unificado e pretensamente comum a toda a civilização vigente. Como viemos, depois, a considerar tais conhecimentos "materiais" e estranhos aos dominantes aspectos sociais e "humanos" da vida ? É que, conquistado o progresso científico moderno, as velhas idéias não se consideraram derrotadas, mas apenas se retiraram para trincheiras mais profundas. O conhecimento do mundo físico, o conhecimento do mundo biológico deixaram como que intactas ainda as regiões do social, do político, do moral e do religioso. Nessas áreas, onde se decidem afinal, por tradição, os interesses considerados máximos da vida humana, nem sequer teve entrada ainda a ciência, efetivamente. É este o mundo dos "valores", que continuam a ser governados por um outro tipo de saber – o saber filosófico, ou o saber revelado – ao tácito influxo da tradição, ou pela pura e simples pressão de grupos e classes. Os velhos dualismos irredutíveis aí se refugiam, mantendo a separação entre meios e fins, entre o mecânico e baixo e o moral e alto, o supérfluo e espiritual e o prático e útil. Não se trata de algo sem conseqüências, pois, devido a tais dualismos é que a nossa civilização, sob o impacto cada vez mais imperioso da ciência se faz material e inumana, com negação ou exclusão de outros valores, digamos morais, que não são pela ciência dela apartados, mas sim pelos que da ciência usam e abusam, pondo-a ao serviço não da humanidade, mas dos seus próprios fins e interesses. Concebida a ciência como uma fabricante de meios sem jamais poder alçar-se aos fins, pode ela ser utilizada para construir ou destruir a vida, sem que em nada isto a afete. Ora, a crise de nossa época é exatamente esta. A ciência, que praticamente já conquistou o mundo físico, que está a progredir a olhos vistos no mundo biológico, aurnentando com suas vitórias a praticabilidade dos propósitos e objetivos mais humanos, tem de agora estender os seus métodos e processos de conhecimento ao mundo dos propósitos e dos fins verdadeiramente humanos. O tratamento diverso desses graves problemas humanos, pretendendo subtraí-los aos métodos da ciência, é que vem permitindo que a vida humana se torne o joguete dos interesses desencontrados e em conflito da nossa época em desenvolvimento, ao sabor de doutrinas absolutistas que, grosso modo, na 18
extrema-esquerda ou na extrema-direita, erguem princípios dogmáticos anteriores e superiores à ciência, para entravar-lhe, justamente, a ação renovadora, construtiva. O problema de humanismo e ciência tem, assim e por tudo isso, importância fundamental. E o conflito que vimos analisando é a oportunidade de trazer à baila questões já esquecidas e esclarecimentos necessários para a sua gradual e adequada solução. * Na Grécia, ou na Idade Média, ou no Renascimento, ou nos séculos dezessete e, em parte, até mesmo no dezoito, religião, filosofia e ciência andavam ainda, mais ou menos, de mãos dadas, de regra apoiando-se em um corpo aparentemente unificado de crenças, doutrinas e verdades. O fato da separação entre religião e filosofia e filosofia e ciência é relativamente recente (mal se esboçou no século XVII, acentuando-se no XVIII... ) e foi menos o resultado de efetiva decisão intelectual a respeito, que um arranjo de trégua, na guerra real em que entraram esses três campos de conhecimento, desde que a ciência elaborou definitivamente seus métodos de trabalho, isto é, a investigação científica. A luta que esse novo conhecimento empreendeu para se afirmar foi, tinha que ser, a princípio, exatamente uma luta de revisão dos conhecimentos religiosos e filosóficos, que se baseavam em especulações ou tradições superadas pelo método do conhecimento natural, realista, voltando da conceituação abstrata à contraprova da experiência, – numa palavra, científico. Se o desenvolvimento intelectual da espécie fosse algo de retilíneo e harmonioso, o método científico, acabaria se afirmando em todos os campos e teríamos, hoje, uma religião, uma filosofia e uma arte em que prevaleceriam os mesmos ou equivalentes métodos, que dominam o campo da ciência, e permitem que os seus conhecimentos sejam garantidos, embora falíveis, e sobretudo sejam progressivos, por isto mesmo que auto-retificáveis. Mas, o método científico, por um lado demasiado revolucionário e, por outro lado, ainda em sua infância não se podia revelar desde logo igualmente eficaz em todos os campos e, para sobreviver, teve que aceitar um modus vivendi , restringindo seu campo de ataque ao mundo físico, abdicando de outros fins e propósitos além da busca de verdades limitadas, propositadamente limitadas, sem um pensamento posto, de antemão, nos efeitos e alcance das aplicações. Foi a época, gloriosa e relativamente pacífica, da "ciência pura"... Esta circunstância é que levou a ciência a abdicar, aparentemente, de seu caráter de conhecimento humano, ou seja social, e se fazer um sistema de "conhecimentos especiais", isto é, sobretudo relativos aos aspectos físicos, materiais do universo. A filosofia, por sua vez, em sua revolta contra o pensamento religioso dominante, arranjou a sua trégua ou modus vivendi não em aliança com a ciência, mas, compondo-se em um outro campo de estudo, independente do religioso e 19
serni-independente do científico, o campo de estudo do "ser" ou do "real", ou do “mistério" epistemológico, cujo conhecimento seria de natureza diversa do cient ífico. A religião, por sua vez, perdendo muito e cada vez mais o poder temporal, passou a "comportar-se" e, ignorando o conhecimento científico e o conhecimento filosófico, aos quais admitiu não combater expressamente, fixou-se em suas bases reveladas e supra-racionais, o que, afinal seria talvez uma boa estratégia, se não fosse simples tática, de variável aplicação em tempo e lugar. Assim chegamos ao último quartel do século XIX e entramos no século XX com a cidade humana dividida entre esses três campos de atividade intelectual e de desiguais progressos humanos. Em ciência, avançamos tremendamente, graças aos métodos de pesquisa cada vez mais refinados e eficazes. Em filosofia, entramos em algo de anárquico, com filosofias e filósofos pluralizados, em substiuição a um corpo unificado de crenças e saber filosófico. Em religião, marcamos passo, conservando as religiões reveladas ou modalidades ecléticas de religiões "individuais" à nossa moda, ou regressamos, francamente, a superstições já de muito – ao que parecia – superadas. A trégua sem vitória do grande conflito intelectual que, sob certos aspectos, podemos remontar aos séculos quinze e dezesseis, deixa-nos, assim, até o século XX, em plena confusão. Mas, não só confusão. O avanço do conhecimento científico e os seus frutos, as tecnologias, de base científica, transformaram a vida humana em todos os seus aspectos – econômicos, sociais, morais e políticos. Mas, não prevalecendo em nenhum desses campos o método científico de estudo, observação e controle, e sim os métodos tradicionais e pré-científicos de direção e governo, os resultados dos progressos da ciência não puderam ser orientados, vindo a provocar desordens, deslocamentos e confusões. A aplicação da ciência – esta totalmente indiferente aos resultados das aplicações – gerou desintegrações e fragmentações as mais lamentáveis, muitas vezes, para a vida humana em conjunto considerada, infundindo-lhe desequilíbrios e artificiais desigualdades, muito acima de tudo quanto se reconhecia como desigualdades humanas naturais. Mesmo onde os grandes dualismos surgiram ou foram sistematizados pela filosofia; mesmo ali, mesmo na Grécia, poderíamos conceber presenciarmos o que ora presenciamos, no mundo dividido de hoje? Nunca seria possível na Grécia considerar-se que à ciência fosse indiferente usar a energia atômica na destruição da humanidade, ou no progresso do seu bem-estar. Ora, isto, exatamente, passou a ser possível em face da separação entre a ciência e a filosofia, recurso histórico de que se valeu a ciência para que a deixassem progredir. A inumanidade da ciência é algo de artificial, por certo, adotado como expediente de trégua na luta do espírito humano contra a tradição, e que importa agora abolir por isto mesmo que a ciência, embora julgasse inocente, talvez, o seu recurso de guerra fria, veio a se tornar, em virtude mesmo de sua conseqüente irresponsabilidade, perigosa e destrutiva. *
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Cabem aqui e agora algumas desenganadas indagações, mesmo que a todas não possamos responder, resumidamente e desde logo. Que temos feito, na verdade, desde o século dezenove, no campo da educação, no qual se formam os homens e onde se exemplificam as diretrizes reais de nossa civilização? Ou damos ao homem uma formação literária e filosófica, ou lhe damos uma formação científica, ou misturamos ambas as formações em currículos tumultuados, ecléticos e confusos. Pela formação literária, alienamos o homem de sua época, pois essa formação literária é, geralmente, clássica. Pela formação científica, o alienamos dos propósitos e fins humanos, declarando que estamos formando técnicos ou cientistas, isto é, homens que lidam com os meios e nada têm a ver com os fins humanos. Pela formação pseudo-eclética, perturbamo-lo ainda sem verdadeiramente formá-lo. Onde a formação do homem responsável, de referência, ao seu tempo e à sua civilização? Deixamos isto à religião? E que faz a religião? A religião, de fato, acrescenta-se, sobrepõe-se, adiciona-se à formação técnica ou à formação literária, às quais já não é possível contrapor-se – ambas, em rigor, senão imorais, amorais – sem integrar-se com nenhuma delas. Quando se iniciou o que se poderia chamar a revolta da razão contra as crenças de fundamento extra ou supra-racional, a Igreja mais de uma vez se insurgiu contra a teoria da dupla verdade, de que Pietro Pomponazzi, em 1518, foi um dos mais explícitos protagonistas, embora a sua ortodoxia parecesse sempre mais uma complacência com os tempos (já então!) do que uma convicção própria. Como cristão acreditava na imortalidade da alma individual, mas como filósofo, não. Hoje vivemos com a verdade já não dupla, mas, no mínimo, tripla. Há as verdades científicas, as filosóficas e as religiosas. E o resultado é não termos nenhuma verdade válida ou prevalente, e a vida se orientar pela tradição e pelo jogo das forças de pressão, mais ou menos poderosas, que surgem ou se mantêm em campo, usando de todas as armas. Não se julgue que esteja a defender algum corpo de crenças dogmáticas. Não há falta delas. O que falta, ao contrário, e o por que cumpre agora nos batermos, é um corpo de crenças científicas, isto é, fundadas na observação e experimentação, como já existe relativamente ao mundo físico, a ser estendido ao mundo social, moral, religioso e político, com a mesma validez reconhecida. O método científico, uma vez aí amplamente aplicado, com a inspiração e a audácia que caracterizaram sua aplicação ao mundo físico, virá transformar os conhecimentos e tradições pré-científicas ainda hoje reinantes neste outro mundo nosso, dos supremos interesses humanos. É devido à separação, entre esses dois mundos, que a ciência e a técnica são ensinadas como algo de especial e mecânico, sem as conexões com o mundo humano a que vão servir, e daí as suas oonseqüências desumanizantes. E a literatura e a filosofia, por sua vez, são ensinadas como disciplinas humanas separadas da ciência e da técnica, que nos estão transformando a vida e a nossa suposta natureza, e em conseqüência desintegrando, alienando o pressuposto humanista do seu tempo e do seu mundo. E a religião, por último, acrescenta-se a esse dualismo, produzindo um terceiro grupo de verdades, já agora mais ligado a uma outra vida do que às responsabilidades do 21
homem, agora e aqui, portanto, também alienantes. São, assim, três alienações, a da ciência, a da literatura e filosofia e a da religião. Como, pois, surpreendermo-nos de que o homem, hoje, em meio aos prodígios de sua época, se sinta mais do que nunca alheio ao seu tempo e, o que é muito pior, alheio ao seu semelhante? O remédio para tal situação não será, contudo, – destaque-se bem e a tempo esta ressalva indispensável – o regresso a nenhuma das verdades totalitárias de outras épocas, mas, a gradual introdução do método científico aos campos de que ele vem sendo banido e a reintegração da verdade científica no seu contexto humano, ensinando-se a verdade sobre os fatos, a verdade sobre os meios, a verdade em função dos fins a que deve servir. A divisão, com efeito, entre meios e fins é uma conseqüência do falso dualismo entre ciência e filosofia e ciência e religião. Não há meio que não seja um fim, nem fim que prescinda de meios. Dizer-se que a ciência dá os meios, mas não nos dá os fins, é algo que se custa a conceber, sendo, devendo ser a ciência um produto do homem e para o homem. A não ser que a ciência fosse cultivada por seres extra-humanos, indiferentes aos interesses e fins humanos, ninguém poderia imaginar que o homem estudasse o câncer... para melhor difundi-lo. Pois, a divisão entre a ciência-meios e a filosofia ou religião-fins produz nada menos do que isto. Os cientistas passaram a seres extra ou inumanos, e quando alguns, como Einstein ou Oppenheimer, se lembram de que são humanos, corre pelo mundo uma surpresa... Pois não é que esses operários da ciência estão a querer dirigir a vida? E sente-se, aí, em singular perversão, o resíduo da velha fórmula grega. Os cientistas, transformados em elaboradores apenas de meios, para fins que lhes são alheios, tomam o lugar de artesãos – técnicos nos dias de hoje – e, como tais, ficam subordinados aos elaboradores dos fins, que são a tradição e os que a interpretam e praticam, isto é, os legisladores e políticos, nem filósofos nem cientistas, mas, oportunistas e empíricos, bem pouco autônomos, aliás, porque nada dirigem, mas se deixam ir à deriva, sacudidos, aqui e ali, pelos empurrões e pressões das lutas e conflitos de grupos contra grupos, quer a eles se filiem, quer pretendam ser a esses estranhos ou não-subordinados. Confesso sentir certa dificuldade em analisar a situação presente, não porque lhe ache difícil explicar a extrema confusão, mas, exatamente, por achá-la demasiado óbvia e inevitável. Para o meu espírito, pelo menos, a chave de tudo está nessa estranha separação de meios e fins. Todo o nosso "progresso" está infectado pela desintegrante concepção dualista, a que mais destacadamente me estou referindo. Tomem-se as chamadas técnicas sociais, que deve, não a Universidade, mas a escola primária ensinar: ler, escrever e contar. São, sem dúvida, sociais, pois leio, escrevo e conto para poder conviver, trabalhar, comunicar-me e resolver os problemas, sem dúvida sociais, de minha vida. Pois não é que se pensa (e se pratica !) que se pode ensiná-las, separadamente, como técnicas, ou meios, e depois deixar ao indivíduo que aprenda por si como usá-las? 22
Com efeito, que faz a escola primária? Esforça-se o mais possível, nos primeiros anos do seu curso, a ensinar tais técnicas, como algo que se aprende independentemente, separadamente, isoladamente, e, depois, prossegue ensinando outras informações e outras técnicas, sem jamais, consciente e deliberadamente, ensinar para que, em que e como usá-las. Quando educadores esclarecidos lembram que isto é o começo do processo de desintegração do homem, e que todo ensino deve ser completado, ou, melhor, integrado em uma atividade inteiriça, em que a operação de saber se confunda com a de agir, chamam-nos de practicistas, utilitaristas, pragmatistas, destruidores de algo espiritual, quando não espiritual é, exatamente, essa possibilidade destrutiva de aprender meios e não aprender fins, isto é, como usar os meios. Estou convencido de que tanto se pode ensinar a ler como a ler bem, isto é, a ler e a escolher o que ler. Mas a falsa idéia de que posso ensinar a ler, porém não posso intervir no processo de escolha, porque tal processo é "livre" e pode ser governado por "imposição externa", e nunca por esclarecimento e ensino – essa idéia falsa levou a escola, sob o pretexto de ser liberal, a julgar que só pode ensinar técnicas, meios e nunca fins, isto é, usos. Ou seremos dogmáticos e imporemos os fins, ou nos detemos nos meios e retiramos qualquer sentido moral ao ensino. Ora, a solução não está em uma coisa nem outra, mas na boa doutrina de que os fins não são algo estranho ao contexto das situações, porque são objetivos e propósitos, fins em vista, da própria atividade humana, suscetíveis de serem estudados, esclarecidos, alargados e melhorados, tanto quanto as técnicas de que dependem e simultaneamente com elas. Dei, muito de propósito, um exemplo elementar. Mas, nele está contida toda a filosofia, que isola o homem do mundo e o julga um ser estranho ao mundo, insuscetível de se deixar governar pelas luzes da razão, essas mesmas luzes que, devidamente aplicadas, lhe estão permitindo descobrir a natureza do mundo externo e domesticá-lo para o seu uso. Se pusermos o método científico – que nos deu o corpo de conhecimentos positivos e provados a respeito do mundo físico – a serviço do estudo do homem, vamos progredir no carnpo dos chamados fins ou valores, do mesmo modo que progredimos em física e biologia. Antes, porém, cumpre-nos reinterpretar, ou melhor, redefinir o conhecimento humano, estabelecer as bases do conhecimento experimental como as bases de todo o conhecimento, seja científico, filosófico, moral ou religioso, e reintegrar o ensino das ciências no seu contexto humano, ensinando-as não como atividades de monstros extra-humanos, mas como uma das mais significativas e ricas atividades humanas, desde que exercidas com o vivo sentimento dos seus fins, seus usos e suas conseqüências humanas. Não serão estudos lingüísticos e literários que nos irão humanizar a civilização, mas, o estudo da ciência aliada ao da sua aplicação, o estudo da ciência em suas conexões com a filosofia e a vida, o estudo da ciência pelo seu método e seu espírito, que importa introduzir em todos os demais estudos e, mais do que isto, em nossa vida prática, em nossa vida moral, em nossa vida social e em nossa vida política. Não se trata de cientificismo, que seria ainda uma compreensão fragmentária da ciência, pois importa na aplicação apressada de resultados parciais da ciência, 23
concebida isoladamente, como ciência do físico, no mundo moral, político e social. Trata-se, como já disse, antes de uma ampliação do uso do método científico. Há vários modos de se entender o que seja ciência. Em sentido absolutamente restrito, apenas seriam ciência as ciências tidas com "exatas", sendo veteranas no merecerem o epíteto, as matemáticas e as ciências físicas que nelas se fundam. As próprias ciências biológicas seriam excluídas. Mas, em sentido lato, ciência é antes um método de se obter conhecimento razoavelmente seguro do que um corpo definitivo, imutável de conhecimentos. Tal método consiste na observação cuidadosa e objetiva e na verificação das conseqüências, no controle seguro desses processos de observação e verificação para o efeito de poderem ser repetidos por outrem, e na acumulação progressiva dos resultados apurados, a fim de poderem ser utilizados em novas observações e novas verificações das conseqüências. Sempre que se estiver utilizando esse método estar-se-á fazendo ciência e seguindo a grande trilha real do conhecimento experimental e progr essivo. Assim foi na matemática, assim na física, assim na biologia e assim será em todos os demais campos dos conhecimentos humanos. A aplicação universal do método científico e o abandono do fatal dualismo entre meios e fins, fazendo com que se faça e se estude ciência conjuntamente com (não tenhamos medo ao termo) filosofia, no sentido grego de sabedoria, isto é, a ciência do uso humano da ciência, não nos darão a felicidade imediata, mas nos encaminharão para a senda de um progresso integrado, harmônico, e então sim – humanístico, humanizante e humano.
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CIÊNCIA E ARTE DE EDUCAR
A ARTE DE EDUCAR – a educação – nos últimos cem anos, passou por um desenvolvimento que se caracteriza por uma revisão de conceitos e de técnicas de estudo, à maneira, dir-se-ia, da transformação operada na arte de curar – a medicina – quando se emancipou da tradição, do acidente, da simples "intuição" e do empirismo e se fez, como ainda se vem fazendo, cada vez mais científica. Todos sabemos que isto se deu com a medicina devido aos progressos dos métodos de investigação e de prova. O desenvolvimento das ciências que lhe iam servir de base e das técnicas científicas de que iria cada vez mais utilizar-se e, mesmo, apropriar-se, levaram a medicina a um progresso crescente, com a aplicação cada vez mais consciente de métodos próprios de investigação e de prova. São desse tipo – claro que sob os influxos dos progressos mais recentes ainda de outras ciências – os desenvolvimentos que desejamos suscitar na educação, com o cultivo, nos centros de pesquisas, que se estão fundando no Brasil, de métodos próprios de investigação e prova no campo educacional. Como a medicina, a educação é uma arte. E arte é algo de muito mais complexo e de muito mais completo que uma ciência. Convém, portanto, deixar quanto possível claro de que modo as artes se podem fazer científicas. Arte consiste em modos de fazer. Modos de fazer implicam no conhecimento da matéria com que se está lidando, em métodos de operar com ela e em um estilo pessoal de exercer a atividade artística. Nas belas-artes, ao estilo pessoal chegamos a atribuir tamanha importância que, muitas vezes, exagerando, consideramos que a personalidade artística é tudo que é necessário e suficiente para produzir arte. Não é verdade. Mesmo nas belas-artes, o domínio do conhecimento e o domínio das técnicas, se por si não bastam, são, contudo, imprescindíveis à obra artística. A educação pode, com alguns raros expoentes, atingir o nível das belas-artes, mas, em sua generalidade, quase sempre, não chega a essa perfeição, conservando-se no nível das artes mecânicas ou práticas, entendidos os termos no sentido humano e não no sentido de maquinal, restritivo apenas quanto ao belo estético. O progresso nas artes – sejam belas ou práticas – se fará um progresso científico, na medida em que os métodos de estudo e investigação para este progresso se inspirem naquelas mesmas regras que fizeram e hão de manter o progresso no campo das ciências, ou seja as regras – para usar expressão que não mais se precisa definir – do "método científico". A passagem, no campo dos conhecimentos humanos, do empirismo para a ciência foi e é uma mudança de métodos de estudo, graças à qual passamos a observar e descobrir de modo que outros possam repetir o que observarmos e descobrirmos e, pois, confirmar os nossos achados, que assim se irão acumulando e 25
levando a novas buscas e novas descobertas. Se esta foi a mudança que originou os corpos sistematizados de conhecimentos a que chamamos de ciência, um outro movimento, paralelo ao das ciências e dele conseqüente mas, de certo modo autônomo, foi o da mudança das "práticas" humanas pela aplicação do conhecimento científico. Ao conhecimento empírico correspondiam as práticas empíricas, ao conhecimento científico passaram a corresponder as práticas científicas. Com efeito, as práticas fundadas no que a ciência observou, descobriu e acumulou, e, por seu turno, obedecendo aos mesmos métodos científicos, se transformaram em práticas tecnológicas e deste modo renovadas, elas próprias se constituíram em fontes de novos problemas, novas buscas e novos progressos. Com o desenvolvimento das ciências físicas e matemáticas e, depois, das ciências biológicas, as artes da engenharia e da medicina, obedecendo em suas "práticas" às regras científicas da observação, da descoberta e da prova puderam frutificar nos espantosos progressos modernos. Algo de semelhante é que se terá de introduzir na arte de educar, a fim de se lhe darem as condições de desenvolvimento inteligente, controlado, contínuo e sistemático, que caracterizam o progresso científico. Não se trata, pois, de criar propriamente uma "ciência da educação", que, no sentido restrito do termo, como ciência autônoma, não existe nem poderá existir; mas de dar condições científicas à atividade educacional, nos seus três aspectos fundamentais – de seleção de material para o currículo, de métodos de ensino e disciplina, e de organização e administração das escolas. Por outras palavras: trata-se de levar a educação para o campo das grandes artes já científicas – como a engenharia e a medicina – e de dar aos seus métodos, processos e materiais a segurança inteligente, a eficácia controlada e a capacidade de progresso já asseguradas às suas predecessoras relativamente menos complexas. Está claro que essa inteligência da arte de educar a afasta radicalmente das artes predominantemente formais, como a do direito, por exemplo, com a qual, aliás, temos, como país, uma irresistível inclinação a identificar a educação. Com efeito, embora não caiba aqui a análise aprofundada dessa inclinação, os sinais são muito evidentes de que ainda consideramos educar antes como uma arte dominantemente formal, à maneira do direito( 1), do que como uma arte material, à maneira da medicina ou da engenharia. Fora essa tendência distorsiva, mais entranhada quiçá do que o imaginamos e que importa evitar, a introdução de métodos científicos no estudo da educação não irá determinar nada de imediatamente revolucionário. As artes sempre progrediram. Mas, antes do método científico, progrediram por tradição, por acidente, pela pressão de certas influências e pelo poder "criador" dos artistas. Com o método científico, vamos submeter as "tradições" ou as chamadas "escolas" ao crivo do estudo objetivo, os acidentes, às investigações e verificações confirmadoras e o poder criador do artista, às análises reveladoras dos seus segredos, para a multiplicação de suas descobertas; ou seja, vamos examinar rotinas e variações progressivas, ordená-las, sistematizá-Ias e promover, deliberadamente, o desenvolvimento contínuo e cumulativo da arte de educar.
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Também o direito não é puramente uma arte formal, mas, não faltam os que o julgam algo de meramente convencional, se não de arbitrário. 26
Não se diga, entretanto, que tenha sido sempre este o entendimento do que se vem chamando de ciência da educação, à qual já aludimos com as devidas reservas. Pelo contrário, o que assistimos nas primeiras décadas deste século e que só ultimamente se vem procurando corrigir foi a aplicação precipitada ao processo educativo de experiências científicas que poderiam ter sido psicológicas, ou sociológicas, mas não eram educacionais, nem haviam sido devidamente transformadas ou elaboradas para a aplicação educacional. De outro lado, tomaram-se de empréstimo técnicas de medida e experiência das ciências físicas e se pretendeu aplicá-las aos fenômenos psicológicos e mentais, julgando-se científicos os resultados porque as técnicas – tomadas de empréstimo – eram científicas e podiam os tais resultados ser formulados quantitativamente. Houve, assim, precipitação em aplicar diretamente na escola "conhecimentos" isolados de psicologia ou sociologia e, além disto, precipitação em considerar esses "conhecimentos" verdadeiros conhecimentos. A realidade é que não há ciência enquanto não houver um corpo sistemático de conhecimentos, baseados em princípios e leis gerais, que lhe dêem coerência e eficácia. Aí estão as ciências matemáticas e físicas com todo o seu lento evoluir até que pudessem florescer nas grandes searas das tecnologias, que correspondem à sua aplicação aos problemas práticos da vida humana. Logo após vem o ainda mais lento progresso das ciências biológicas e a agronomia, a veterinária e a medicina como campos de aplicação tecnológica. Para que as "práticas" educativas possam também beneficiar-se de progresso semelhante, será preciso antes de tudo que as ciências que lhe irão servir de fontes se desenvolvam e ganhem a maturidade das grandes ciências já organizadas. Até aí, há que aceitar não só que o progresso seja lento mas também algo incerto e, sobretudo, não suscetível de generalização. Antes, porém, progredir assim, tateando, sentindo os problemas em toda a sua complexidade, mantendo em suspenso os julgamentos, do que julgar que podemos simplificar a situação, considerá-la puramente física ou biológica e aplicar métodos e técnicas aceitáveis para tais campos, mas inadequados para o campo educativo, pela sua amplitude, variedade e complexidade. Convém insistir, realmente, na distinção entre o campo da ciência e do conhecimento em si e o campo da aplicação do conhecimento e da prática ou da arte. Bastaria, talvez, dizer que a ciência é abstrata, isto é, que busca conhecer o seu objeto num sistema tão amplo de relações, que o conhecimento científico, como tal, desborda de qualquer sistema particular, para se integrar num sistema tão geral, que nele só contam as relações dos conhecimentos entre si; e que a "prática" é um sistema concreto e limitado, em que aqueles conhecimentos se aplicam com as modificações, alterações e transformações necessárias à sua adaptação à situação. Por isto mesmo, não produz a ciência, não produz o conhecimento científico, por si mesmos, uma regra de arte, ou seja, uma regra de prática. Leis e fatos, que são os produtos das ciências, ministram ao prático não propriamente regras de operação, mas recursos intelectuais para melhor observar e melhor guiar a sua ação no campo mais vasto, mais complexo, com maior número de variáveis da sua indústria ou da sua arte. A velha expressão: "Na prática é diferente", é um modo simples de indicar essa verdade essencial de que a ciência é um recurso indireto, é um intermediário e nunca uma regra direta de ação e de arte. A ciência é uma condição – e mesmo uma condição básica – para a descoberta tecnológica ou 27
artística, mas não é, ou ainda não é essa descoberta. Quando se trata de tecnologia das ciências físicas, o processo prático não chega à exatidão do processo de laboratório, mas pode chegar a graus apreciáveis de precisão. Todavia, se a tecnologia reporta-se a um processo de educação, podemos bem imaginar quanto as condições de laboratório são realmente impossíveis de transplantação para a situação infinitamente mais complexa da atividade educativa. Não quer isto dizer que ciência seja inútil, mas que a sua aplicação exige cuidados e atenções todo especiais, valendo o conhecimento científico como um ingrediente a ser levado em conta, sem perder de vista, todos os demais fatores. Em educação, muita coisa se fez em oposição a esse princípio tão óbvio, com a aplicação precipitada de conhecimentos científicos – ou supostamente científicos – diretamente como regras de prática educativa e a transplantação de técnicas quantitativas das ciências físicas para os processos mentais, quando não educativos, importando tudo isto em certo descrédito da própria ciência. Para tal situação concorreu, sem dúvida, o fato de nem sempre haverem sido as "práticas educativas" as fornecedoras dos "dados" do problema, como deverá ser, se tivermos de contar com a ciência para nos ajudar a progredir na arte de educar. E em segundo lugar, concorre certa impaciência de resultados positivos que aflige tanto – hélas! – as ciências sociais ou humanas que servem de fonte e base a uma possível arte de educar menos empírica e mais científica. Com efeito, tais ciências não nos irão dar regras de arte mas conhecimentos intelectuais para rever e reconstruir, com mais inteligência e maior segurança, as nossas atuais regras de arte, criar, se possível, outras e progredir em nossas práticas educacionais isto é, nas práticas mais complexas da mais complexa arte humana. Tudo, na realidade, entra nessa prática. A nossa filosofia, concebida como o conjunto de valores e aspirações, as ciências biológicas, psicológicas e sociais, todas as demais ciências como conteúdo do ensino, enfim, a cultura, a civilização e todo o pensamento humano em seus métodos e em seus resultados. Prática desta natureza e desta amplitude não vai buscar suas regras em nenhuma ciência isolada, seja mesmo a psicologia, a antropologia ou a sociologia; mas em todo o saber humano e, por isto mesmo, será sempre uma arte em que todas as aplicações técnicas terão de ser transformadas, imaginativa e criadoramente, em algo de plástico e sensível suscetível de ser considerado antes sabedoria do que saber – opostos tais termos um ao outro no sentido de que sabedoria é, antes de tudo, a subordinação do saber ao interesse humano e não ao próprio interesse do saber pelo saber (ciência) e muito menos a interesses apenas parciais ou de certos grupos humanos. Mas toda essa dificuldade não será pretexto para que o educador se entregue à rotina, ao acidente ou ao capricho, mas estímulo a buscar cooperar na transição da educação do seu atual empirismo para um estado progressivamente científico. Dois problemas diversos avultam nessa transição. O primeiro, é o do desenvolvimento das ciências – fonte da educação. Assim como as ciências matemáticas e físicas são as ciências-fonte principais da engenharia, assim como as ciências biológicas são as ciências-fonte principais da medicina, assim a psicologia, a antropologia e a sociologia são as ciências-fonte principais da educação. Enquanto estas últimas não se desenvolverem até um mais alto grau de maturidade e segurança, não poderão dar à educação os elementos intelectuais 28
necessários para a elaboração de técnicas e processos que possam constituir o conteúdo de uma possível "ciência de educação". E este é o segundo problema. Porque ainda que as ciências-fonte quanto à educação estivessem completamente desenvolvidas, nem por isto teríamos automaticamente a educação renovada cientificamente, pois, conforme vimos, nenhuma conclusão científica é diretamente transformável em regra operatória no processo de educação. Todo um outro trabalho tem de ser feito para que os fatos, princípios e leis descobertas pela ciência possam ser aplicados na prática educacional. Na própria medicina, com efeito, atrevo-me a afirmar, os princípios e leis da ciência servem antes para guiar e iluminar a observação, o diagnóstico e a terapêutica, não se impondo rigidamente como regras à arte médica, regras de clínica, regras imperativas da arte de curar. A ciência oferece, assim, a possibilidade de um primeiro desenvolvimento tecnológico, que fornece à arte melhores recursos para a investigação dos seus próprios problemas e, deste modo, sua melhor solução. Num segundo desenvolvimento também tecnológico, oferece recursos novos para o tratamento e a cura, mas a arte clínica continua sendo uma arte de certo modo autônoma, a ser aprendida à parte, envolvendo métodos próprios de investigação e análise, de registro dos casos, de comparações e analogias, de experiência e tirocínio, em que, além de um conteúdo próprio mais amplo do que os puros fatos científicos, sobressaem sempre o estilo pessoal do médico, a sua originalidade e o seu poder criador. A ciência, aliás, longe de mecanizar o artista ou o profissional, arma a sua imaginação com os instrumentos e recursos necessários para seus maiores vôos e audácias. Ora, o mesmo é o que há de ocorrer no domínio da educação – da arte de educar. Neste, o campo precípuo ou específico – atelier , laboratório ou oficina – é a sala de aulas, onde oficiam os mestres, eles próprios também investigadores, desde o jardim de infância até a universidade. São as escolas o campo de ação dos educadores, como os hospitais e as clínicas são o dos médicos. Os especialistas de ciências autônomas são grandes contribuintes para a chamada ciência médica, como serão para a que vier a se chamar de ciência da educação, mas nenhum resultado científico, isto é, o conhecimento de cada ciência, mesmo ciência básica ou ciência-fonte, é por si um conhecimento educacional ou médico, nem dará diretamente uma regra de ação médica ou educacional. Tais conhecimentos ajudarão o médico ou o educador a observar melhor, a diagnosticar melhor e, assim, a elaborar uma melhor arte de educar. Tomemos uma ilustração qualquer. Sejam, por exemplo, os testes de inteligência, que se constituíram, por certo, um dos mais destacados recursos novos da "ciência" para a técnica escolar. Para que servem eles? – Para diagnosticar com maior segurança limites de capacidade de aprender do aluno. Se os tomarmos apenas para isto, aumentaremos sem dúvida os nossos recursos de observação e conhecimento do aluno e melhor poderemos lidar com as situações de aprendizagem, sem perder de vista as demais condições e fatores de tais situações. Se, porém, ao contrário, tomarmos esse recurso parcial de diagnóstico mental como uma regra educativa e quisermos homogeneizar rigidamente os grupos de Q.I. idêntico ou aproximado e proceder uniformemente com todos os seus componentes, não estaremos obedecendo à complexidade total da situação prática educativa e muito menos a nenhuma "ciência de educação" , pois esta não reconheceria tal classificação 29
como válida, reconhecendo hoje que a situação é totalmente empírica, incluindo fatores entre os quais o Q.I. é apenas um no complexo da situção "aluno-professor-grupo-meio" em que se encontra o aprendiz. Nem por isto será, entretanto, inútil o conhecimento do Q.I., pois a alteração da capacidade de aprender do aluno passa, em face dos dados do Q.I., a ser vista e estudada sob outra luz. A ciência, assim, como já afirmamos, não oferece senão um dado básico e jamais a regra final de operação. Esta há que ser descoberta no complexo da situação de prática educativa, em que se encontrem professor e aluno, levando-se em conta todos os conhecimentos científicos existentes, mas agindo-se autonomamente à luz dos resultados educativos propriamente ditos, isto é, a formação, o progresso, o desenvolvimento humano do indivíduo em questão, ou seja, o aluno. Nesta fase é que vimos entrando ultimamente. Há um real amadurecimento entre as ciências especiais, fontes da educação, superados os entusiasmos das primeiras descobertas. Com relação aos testes de inteligência, até o nome vem sendo hoje evitado, preferindo-se o nome de testes de aptidões diferenciais, pois já se reconhece que estamos longe de medir o famoso g ou fator geral, mas medimos apenas uma série de aptidões decorrentes da cultura em que se acha imersa a criança e não inteiramente independente da educação anterior. Não é isto nenhum descrédito para os testes chamados de inteligência, mas pelo contrário, um progresso, uma nova precisão. Prejudicial, talvez, foi antes o excessivo entusiasmo anterior. A precipitada aplicação de produtos ainda inacabados de "ciência" à escola parece haver exacerbado certos aspectos quantitativos e mecanizantes, conduzindo ao tratamento do aluno como algo abstrato a ser manipulado por critérios de classificação em grupos supostamente homogêneos, dando ao professor a falsa esperança de poder ensinar por meio de receitas, muitas das quais de científicas só tinham a etiqueta. Com relação à "ciência" do ato de aprendizagem o mesmo novo desenvolvimento se pode observar. Compreende-se melhor que "aprender" é algo de muito mais complexo do que se poderia supor e francamente uma atividade prática a ser governada, se possível, por uma psicotécnica amadurecida e não pela psicologia. Ora, quanto isto nos distancia das "leis" de aprendizagem, em que se ignoravam, além de muito mais, as relações professor-aluno-colegas e se imaginava o aprendiz como um ser isolado e especial que operasse abstratamente, como abstratas haviam sido e não podiam deixar de ser as experiências de laboratório que haviam conduzido às supostas leis de aprendizagem! Para essa precipitada aplicação na escola de resultados fragmentários e imaturos da ciência, concorreu também – e merece isto registro especial – uma peculiar prevenção, digamos assim, da ciência para com a filosofia, ou um dissídio entre uma e outra, de alcance e efeito negativos. Explico o que desejo significar. Como toda ciência foi primeiro filosofia e como seu progresso geralmente se processou com o distanciamento cada vez maior daquela filosofia originária, pode parecer e parece que ciência e filosofia se opõem e os conhecimentos serão tanto mais científicos quanto menos filosóficos. Ora, tal erro é grave, mesmo em domínios como da matemática e da física. E em educação é bem mais grave. Com efeito, se historicamente o progresso das 30
ciências se fez com o seu distanciamento dos métodos puramente dedutivos da filosofia, não quer isto dizer que as ciências não operem realmente sobre uma filosofia. O seu afastamento foi antes um afastamento de determinada filosofia exclusivamente especulativa, ou melhor, "livremente" especulativa, para a adesão a uma nova filosofia de base científica. Como esta nova filosofia foi quase sempre uma filosofia implícita e não explícita, o equívoco pôde se estabelecer e durar. A realidade é que filosofia e ciência são dois pólos do conhecimento humano, a filosofia representando o mais alto grau de conhecimento geral e a ciência tendendo para o mais alto grau de conhecimento especial. Entre ambas tem de existir um comércio permanente, a ciência se revendo à luz dos pressupostos e conceitos generalizadores da filosofia. Neste sentido, a filosofia nutre permanentemente a ciência com as suas integrações e visões de conjunto e a ciência nutre a filosofia, forçando-a a combinações e sínteses mais fundadas, menos inseguras e mais ricas. Não se trata do quase equívoco de que a filosofia elabora os fins e a ciência os meios, mas da verdade de que ambas elaboram, criticam e refinam os fins e os meios, pois uns e outros sofrem e precisam sofrer tais processos de crítica e revisão, a ciência criando muitas vezes novos fins com as suas descobertas e a filosofia criticando permanentemente os meios à luz dos fins que lhe caiba descobrir e propor à investigação científica. A não-existência dessa cooperação ou interação, entre a ciência e a filosofia, levou a chamada "ciência da educação" a não ter filosofia, o que corresponde realmente a aceitar a filosofia do status quo e a trabalhar no sentido da tradição escolar, a que efetivamente obedeceu, agravando em muitos casos, com a eficiência nova que lhes veio trazer, os aspectos quantitativos e mecânicos da escola, que lhe teriam de parecer – et pour cause – os mais científicos aspectos da escola. Hoje, felizmente, estamos bem mais amadurecidos e os estudos de educação não desdenham das contribuições que lhes terá de trazer a filosofia, também ela cada vez mais de base científica, e começam a ser feitos à luz da situação global escolar e de suas "práticas", que urge rever e tornar progressivas em face dos conhecimentos que vimos adquirindo no campo das ciências especiais, ciências-fonte da educação – principalmente a antropologia, a psicologia e a sociologia – não já para aplicar na escola, diretamente, os resultados da investigação científica no campo destas ciências, mas para – tomando tais resultados como instrumentos intelectuais – elaborar técnicas, processos e modos de operação apropriados à f unção prática de educação. Os Centros de Pesquisa Educacional( 2) se organizam, assim, num momento de revisão e tomada de consciência dos progressos do tratamento científico da função educativa e, por isto mesmo, têm certa originalidade. Pela primeira vez, busca-se aproximar uns dos outros os trabalhadores das ciências especiais, fontes de uma possível "ciência" da educação e os trabalhadores de educação, ou seja, os dessa possível "ciência" aplicada da educação. Esta aproximação visa antes de tudo, levar o cientista especial, o psicólogo, o antropólogo, o sociólogo, a buscar no campo da "prática escolar" os seus problemas. Note-se que os problemas das ciências biológicas humanas originaram-se e ainda hoje se originam na medicina. 2
Referência aos Centros de Pesquisas Educacionais criados pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos. Este trabalho foi escrito para a sessão de encerramento de um dos seus seminários. 31
É preciso que as ciências sociais, além de outros problemas que lhes sejam expressamente próprios, busquem nas atuais situações de prática educativa vários e não poucos problemas, que também lhes são próprios. Como na medicina, ou na engenharia, não há, stricto sensu, uma ciência de curar nem de construir, mas, artes de curar e de construir, fundadas em conhecimentos de várias ciências. Assim os problemas da arte de educar, quando constituírem problemas de psicologia, de sociologia e de antropologia, serão estudados por essas ciências especiais e as soluções encontradas irão ajudar o educador a melhorar a sua arte e, deste modo, provar o acerto final daquelas soluções ou conhecimentos. Ou, em caso contrário, obrigar o especialista a novos estudos ou a nova colocação do problema. A originalidade dos Centros está em sublinhar especialmente essa nova relação entre o cientista social e o educador. Até ontem o educador julgava dispor de uma ciência autônoma, por meio da qual iria criar simultaneamente um conhecimento educacional e uma arte educacional. E o cientista social estudava outros problemas e nada tinha diretamente a ver com a educação. Quando resolvia cooperar com o educador, despia-se de sua qualidade de cientista e se fazia também educador. Os Centros vêm tentar associá-los em uma obra conjunta, porém com uma perfeita distinção de campos de ação. O sociólogo, o antropólogo e o psicólogo social não são sociólogos-educacionais, ou antropólogos-educacionais, ou psicólogos-educacionaís, mas sociólogos, antropólogos e psicólogos estudando problemas de sua especialidade, embora originários das "práticas educacionais". Os educadores – sejam professores, especialistas de currículo, de métodos ou de disciplina, ou administradores – não são, repitamos, cientistas, mas, artistas, profissionais, práticos (no sentido do practioner inglês), excercendo, com métodos e técnicas tão científicas quanto possível, a sua grande arte, o seu grande ministério. Serão cientistas, como são cientistas os clínicos; mas sabemos que só em linguagem lata podemos efetivamente chamar o clínico de cientista. Acreditamos que esse encontro entre cientistas sociais e educadores "científicos" – usemos o termo – será da maior fertilidade e, sobretudo, que evitará os equívocos ainda tão recentes da aplicação precipitada de certos resultados de pesquisas científicas nas escolas, sem levar em conta o caráter próprio da obra educativa. Com os dados que lhe fornecerá a escola, o cientista irá colocar o problema muito mais acertadamente e submeter os resultados à prova da prática escolar, aceitando com maior compreensão este teste final . Tenho confiança de que bem esclarecida e estudada essa posição, de que estou a tentar aqui os fundamentos teóricos, ser-nos-á possível ver surgir o sociólogo estudioso da escola, o antropólogo estudioso da escola, o psicólogo estudioso do escolar, não já como esses híbridos que são, tantas vezes, os psicólogos, sociólogos e antropologistas educacionais, nem bem cientistas nem também educadores, mas como cientistas especializados, fazendo verdadeiramente ciência, isto é, sociologia, antropologia e psicologia, e ajudando os educadores, ou sejam os clínicos de educação, assim como os cientistas da biologia ajudam os clínicos da medicina. Parece-me não ser uma simples nuance a distinção. Por outro lado, isto é o que já se faz, sempre que se distingue o conhecimento teórico, objeto da ciência, da regra prática, produto da tecnologia e da arte. A confusão entre os dois campos é que é prejudicial. É preciso que o cientista trabalhe com o desprendimento e o "desinteresse" do cientista, que não se julgue ele um educador espicaçado a resolver problemas 32
práticos, mas o investigador que vai pesquisar pelo interesse da pesquisa. O seu problema originou-se de uma situação de prática educacional, mas é um problema de ciência, no sentido de estar desligado de qualquer interesse imediato e visar estabelecer uma teoria, isto é, o problema é um problema abstrato, pois abstração é essencial para o estudo científico que vise a formulação de princípios e leis de um sistema coerente e integrado de relações. Os chamados estudos "desinteressados" ou "puros" não são mais do que isto. São estudos das coisas em si mesmas, isto é, nas suas mais amplas relações possíveis. As teorias científicas do calor, da luz, da cor ou da eletricidade são resultados do estudo desses fenômenos em si mesmos, desligados de qualquer interesse ou uso imediato. No fim de contas, a teoria é, como se diz, a mais prática das coisas, porque, tendo sido o resultado do estudo das coisas no aspecto mais geral possível, acaba por se tornar de utilidade universal. Assim terão de ser e nem poderão deixar de ser os estudos dos cientistas sociais destinados a contribuir para o progresso das práticas educativas, pois, do contrário, estariam os cientistas aplicando conhecimentos e não buscando descobri-los. Armados que sejam os problemas, originários da prática educacional mas não de prática educacional, deve o pesquisador despreocupar-se de qualquer interesse imediato e alargar os seus estudos até os mais amplos limites, visando descobrir os "fatos" e as suas relações, dentro dos mais amplos contextos, para a eventual formulação dos "princípios" e "leis" que os rejam. Tais "fatos", "princípios" e "leis" não irão, porém, fornecer ao educador, repitamos, nenhuma regra de ação ou de prática, mas idéias, conceitos, instrumentos intelectuais para lidar com a experiência educacional em sua complexidade e variedade e permitir-lhe elaborar, por sua vez, as técnicas flexíveis e elásticas de operação e os modos de proceder inteligentes e plásticos, indispensáveis à condução da difícil e suprema arte humana – a de ensinar e educar. Cientistas e educadores trabalharão juntos, mas, uns e outros, respeitando o campo de ação de cada um dos respectivos grupos profissionais e mutuamente se auxiliando na obra comum de descobrir o conhecimento e descobrir as possibilidades de sua aplicação. O método geral de ação de uns e outros será o mesmo, isto é, o método "científico" e, nesse sentido, é que todos se podem considerar homens de ciência. O educador, com efeito, estudando e resolvendo os problemas da prática educacional, obedecerá às regras do método científico, do mesmo modo que o médico resolve, com disciplina científica, os problemas práticos da medicina: observando com inteligência e precisão, registrando essas observações, descrevendo os procedimentos seguidos e os resultados obtidos, para que possam ser apreciados por outrem e repetidos, confirmados ou negados, de modo que a sua própria prática da medicina se faça também pesquisa e os resultados se acumulem e multipliquem. Os registros escolares de professores e administradores, as fichas de alunos, as histórias de casos educativos, ou descrições de situações e de pessoas constituirão o estoque, sempre em crescimento, de dados, devidamente observados e anotados. Tais dados irão permitir o desenvolvimento das práticas educacionais e, conforme já dissemos, suscitar os problemas para os cientistas, que aí escolherão aqueles suscetíveis de tratamento científico, para a elaboração das futuras teorias destinadas a dar à educação o status de prática e arte científicas como já são hoje a medicina e a engenharia. No curso destas considerações, insistimos – pela necessidade de demonstração de nossa posição -, na analogia entre medicina e educação. Não sirva 33
isto, contudo, para que se pense que a prática educativa possa alcançar a segurança científica da prática médica: não creio que jamais se chegue a tanto. A situação educativa é muito mais complexa do que a médica. O número de variáveis da primeira ainda é mais vasto do que o da segunda. Embora já haja médicos com o sentimento de que o doente é um todo único e, mais, que esse todo compreende não só o doente mas o doente e o "meio", ou o seu "mundo", o que os aproxima dos educadores, a situação educativa ainda é mais permanentemente ampla, envolvendo o indivíduo em sua totalidade, com todas as variáveis dele próprio e de sua história e de sua cultura e da história dessa cultura, e mais as da situação concreta, com os seus contemporâneos e os seus pares, seu professor e sua família. A prática educativa exige que o educador leve em conta um tão vasto e diverso grupo de variáveis, que, provavelmente, nenhum procedimento científico poderá jamais ser rigorosamente nela aplicado. Ainda o mais perfeito método de aquisição, digamos, de uma habilidade, não poderá ser aplicado rigidamente. O educador terá de levar em conta que o aluno não aprende nunca uma habilidade isolada; que, simultaneamente, estará aprendendo outras coisas no gênero de gostos, aversões, desejos, inibições, inabilidades, enfim que toda a situação é um complexo de "radiações, expansões e contrações", na linguagem de Dewey, não permitindo nem comportamento uniforme nem rígido. É importante conhecer todos os métodos e recursos já experimentados e provados de ensinar a ler, mas a sua aplicação envolve tanta coisa a mais, que o mestre, nas situações concretas, é que irá saber até que ponto poderá aplicar o que a ciência lhe recomenda, não no sentido de negá-la, mas, no sentido de coordená-la e articulá-la com o outro mundo de fatores que entram na situação educativa. Sendo assim, podemos ver quanto a função do educador é mais ampla do que toda a ciência de que se possa utilizar. É que o processo educativo identifica-se com um processo de vida, não tendo outro fim, como insiste Dewey, senão o próprio crescimento do indivíduo, entendido esse crescimento como um desenvolvimento, um refinamento ou uma modificação no seu comportamento, como ser humano. Em rigor, pois, o processo educativo não pode ter fins elaborados fora dele próprio. Os seus objetivos se contêm dentro do processo e são eles que o fazem educativo. Não podem, portanto, ser elaborados senão pelas próprias pessoas que participam do processo. O educador, o mestre é uma delas. A sua participação na elaboração desses objetivos não é um privilégio, mas a conseqüência de ser, naquele processo educativo, o participante mais experimentado, e, esperemos, mais sábio. Desse modo, a educação não é uma ciência autônoma, pois não existe um conhecimento autônomo de educação, mas é autônoma ela própria, como autônomas são as artes e, sobretudo, as belas-artes, uma delas podendo ser, ouso dizer e mesmo pretender – a educação. A "ciência" da educação, usando o termo com todas as reservas já referidas, será constituída, na frase de Dewey, de toda e qualquer porção de conhecimento científico e seguro que entre no coração, na cabeça e nas mãos dos educadores e, assim assimilada, torne o exercício da função educacional mais esclarecido, mais humano, mais verdadeiramente educativo do que antes. Os Centros de Pesquisas Educacionais foram criados para ajudar a aumentar os conhecimentos científicos que assim possam ser utilizados pelos educadores – isto é, pelos mestres, especialistas e administradores educacionais – para melhor 34
realizarem a sua tarefa de guiar a formação humana, na espiral sem fim do seu indefinido desenvolvimento. O Seminário que ora se encerra foi um primeiro contacto entre os professores e mestres que trabalham nas classes e os que trabalham no Centro. Esta aproximação tem um sentido: o de associar à pesquisa educacional o mestre de classe. Na classe é que se realiza a função educativa. E dentro da classe, na cabeça, no coração e nas mãos do aluno. Todo o trabalho do Centro visa, em última análíse, tornar mais rica, mais lúcida e mais eficaz essa ação educativa. Nada podemos fazer sem o professor e a pesquisa educacional não pode prescindir do seu concurso. Se o trabalho do mestre se libertar do caráter de trabalho de rotina, de acidente ou de capricho e começar ele a registrar por escrito o seu esforço, a manter fichas cumulativas, descritivas e inteligentes dos alunos, casos-história de experiências educativas, todo esse material poderá ser nos Centros estudado, para tornar possível ajudar aos mestres em sua tarefa que continuará autônoma e, além disto, mais consciente, mais controlada e mais suscetível de ser repetida e, deste modo, de se acumular e progredir. Não será de desejar que sejam os pesquisadores no Centro um estado-maior a elaborar planos para serem cumpridos por autômatos ou semi-autômatos, rnas um grupo de colegas a estudar com os mestres os problemas escolares, com o objetivo de conseguir conhecimentos para que todo o magistério possa conduzir com mais autonomia a sua grande tarefa. Não terá o Centro regras nem receitas a oferecer mas buscará ajudá-lo no instrumental intelectual indispensável à execução de uma das belas-artes e a maior: a de educar.
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4 BASES DA TEORIA LÓGlCA DE DEWEY(1)
ESTÁ CLARO QUE NÃO ME ANIMA o propósito de apreciar, no espaço de uma conferência, toda a filosofia de John Dewey. Um dos seus críticos, procurando examinar os pressupostos dessa filosofia, não se arreceia de enumerar nada menos de dez – organicismo, ernpiricismo, temporalismo, darwinismo, praticalismo, futurismo, inteligência criadora e evolução emergente, continuidade, moralismo, educacionalismo – cada um dos quais exigiria pelo menos toda a nossa hora para ser sumariamente analisado. Como uma das formas de análise das filosofias seria, na verdade, a análise dos pressupostos em que se fundam e de onde partem as coordenadas do seu horizonte intelectual, para analisar toda a filosofia de Dewey teríamos de examinar cada um daqueles pressupostos e os múltiplos ou, pelo menos, diversificados universos que, de todos aqueles pontos de vista, se poderia divisar. Na impossibilidade de realizar tal tarefa, procurei fazer uma exposição das “bases da teoria lógica de Dewey”, examinando, assim, uma das maiores contrib uições do
filósofo americano, de onde justamente decorre toda uma nova teoria da educação, que vem revolucionando, desde que foi formulada, os processos educativos de nossa época. A filosofia, para John Dewey, é um esforço de continuada conciliação (ou reconciliação) e ajustamento (ou reajustamento) entre a tradição e o conhecimento científico, entre as bases culturais do passado, ameaçadas de outro modo de dissociação e estancamento, e o presente que flui, cada vez mais rápido e rico, para um futuro cada vez mais precípite e amplo, ou seja entre o que já foi e o que vir a ser, de modo a permitir e até assegurar integrações e reintegrações necessárias do velho no novo, já operante quando não ainda dominante, – e isso, tudo isso, por meio de uma crítica pertinente e percuciente, que distinga, selecione e ponha em relevo os elementos fundamentais da situação ou do momento histórico, sempre no propósito de formular (ou reformular) não tanto verdades, como perspectivas, ou sejam interpretações, valorizações e orientações que nos guiem a aventura da civilização e da própria vida. Não falta quem afirme vivermos em uma época de confusão filosófica, sem diretrizes unificadas, perdidos entre múltiplos caminhos. No entanto, como diz Dewey, as brigas dos filósofos são brigas de família. Todos se encontram na premissa comum, em que se firmam, de uma "realidade" superior à precariedade e contingência do universo. Divorciados, assim, do caráter essencialmente contingente e temporal desse mesmo universo, os filósofos, por isso mesmo e em última análise, se perdem nos particularismos dos seus respectivos temperamentos.
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Conferência no Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife. 36
A filosofia de John Dewey (como a de James e a de Peirce, e na Europa, até certo ponto a de Bergson) refoge a essa comum obsessão dos filósofos e, pelo contrário, apóia-se na própria contingência e precariedade do mundo, fundando a interpretação do homem e do seu meio e o sentido da vida humana no próprio risco e aventura do tempo e da mudança. A contingência mesma do mundo faz dele um mundo de oportunidades, um mundo em permanente reconstrução, um mundo em marcha, com suas repetições e suas novidades, coisas acabadas e coisas incompletas, uniformidades e variedades, em que o presente é uma junção entre um "teimoso passado" e um "insistente futuro". Nesse imenso processo há, ao lado do determinado, regular e irrecorrível, o indeterminado, o irregular, o recorrível; ao lado do fatal, o eventual; e daí ser possível a ação e a direção. O homem constitui um dos agentes, entre os muitos outros agentes – cósmicos, físicos e biológicos – da transformação do universo. O instrumento dessa contínua transformação é a experiência concebida como uma ocorrência cósmica. O inorgânico, o orgânico e o humano agem e reagem, pela experiência, num amplo, múltiplo e indefinido processo de repetições e renovações, de ires e vires, de uniformidades e variedades, de fatalidades e imprevistos, graças a cujo processo se tornam possíveis, de um lado, a predição e o controle e, de outro, a oportunidade e a aventura. Todos os seres vivos agem e reagem em seu meio, alterando-se e alterando o universo. E o homem exalta esse processo de interação e experiência. Graças à linguagem, torna a experiência cumulativa e, com o auxílio do seu registro simbólico, ela mesma objeto da experiência. Essa experiência da experiência o leva à descoberta das suas leis, com o que acrescenta uma dimensão nova ao universo – a da direção da experiência, abrindo as portas a desenvolvimentos insuspeitados nas ordens e desordens, harmonias e confusões, seguranças e incertezas do mundo, que constitui o seu meio e que ele passa a transformar em seu benefício. As leis da experiência, obtidas pela reflexão sobre a experiência, são as próprias leis do conhecimento e do saber, que o homem traz ao mundo como um fator novo para a sua evolução. Daí dar Dewey à sua filosofia da experiência e à teoria da indagação ou da investigação – ("theory of inquiry"), que representa a lógica da experiência e da descoberta, a importância que lhe dá, considerando a sua hipótese ou teoria lógica, ou outra que a substitua com idêntica amplitude e finalidade, não o suficiente para harmonizar a casa dividida do pensamento humano, mas a condição necessária para se tornar possível a restauração da unidade e integração que, em outras épocas, teria podido o homem gozar em sua vida no planeta, então em condições simples e limitadas, agora em condições de culminante complexidade e amplitude. A essência da hipótese ou teoria lógica de Dewey consiste, em última análise, na generalização do chamado método científico, não só a todas as áreas do conhecimento humano, como também ao próprio comportamento usual e costumeiro do homem. A lógica ou teoria do conhecimento de Dewey, ("Logic – theory of inquiry"), funda-se, com efeito, no exame do processo de adquirir o conhecimento. Como conseguimos nós o conhecimento? Não parte ele do conhecimento como um produto acabado, para indagar de sua validez ou de sua possibilidade, mas dos fatos crus da existência: que faz e como faz o homem para obter o 37
conhecimento? Se for possível descrever a experiência humana do conhecimento, aí se deverão encontrar os elementos para uma teoria dessa experiência, isto é, a teoria da investigação, da busca do conhecimento, que seria a própria lógica, no seu objetivo último. Ora, o conhecimento, diz Dewey, é o resultado de uma atividade que se origina em uma situação de perplexidade e que se encerra com a resolução desta situação. A perplexidade é uma situação indeterminada e o conhecimento é o elemento de controle, de determinação da situação. Se tudo na existência transcorre em perfeito equilíbrio, não há, propriamente, que buscar saber ou conhecer, mas, quando muito, um re-conhecer automático. Quebrou-se, porém, o equilíbrio. Ouço, digamos, um ruído estranho, ou significativo, ou inesperado. Algo sucedeu e o meu mundo se perturbou. Procuro ver o que é. Observo, indago, investigo, apuro e verifico. Sei, então, o que se deu. Restabelece-se o equilíbrio em minha atividade. Conhecer, saber, é, assim, uma operação, uma ação que transforma o mundo e lhe restaura o equilíbrio. Estou agora seguro, sei, voltei à tranqüilidade e posso dar livre curso à vida. A situação indeterminada tornou-se determinada, ficou sob controle, em virtude do conhecimento que adquiri. Saber, assim, não é aprender noções já sabidas, não é familiarizar-se com a bagagem anterior de informações e conhecimentos; mas, descobri-Ias de novo, operando como se fôssemos seus descobridores originais. "Tomar o conhecimento já formulado ou apontar para este conhecimento não é, diz expressamente Dewey, um caso de conhecimento, tanto quanto tomar um formão de uma caixa de ferramentas não é fazer este formão." O conhecimento, pois, é o resultado de um processo de indagação. É a marcha deste processo de pesquisa é o que Dewey chama de lógica. Vale dizer: lógica é o processo do pensamento reflexivo; "conhecimento" é o resultado desse processo; o "já conhecido" é o "material", que usamos no operar a investigação ou a pesquisa. Mas este material só será devidamente, adequadamente utilizado, se, no processo pelo qual o tivermos adquirido ou aprendido, tivermos operado como se ele houvesse sido descoberto por nós próprios. Não escondo que, à primeira vista, a hipótese de Dewey chega a parecer desconcertante, de tal modo se alteram os conceitos usuais a respeito do que é saber, aprender, estudar, etc. Sempre que observamos, entretanto, alguém que sabe e como procede este alguém, seja um grande matemático, um grande artista, ou o nosso serralheiro, veremos que somente sabe porque resolve – e do modo por que Dewey procura descrever – os problemas que seu campo de conhecimento lhe oferece. O seu saber significa capacidade de localizar e definir a dificuldade, capacidade de descobrir e utilizar os "dados" da situação para chegar a conclusões fundadas, por que verificadas ou comprovadas. Fora disso, não há saber , mas apenas hábitos, mais e menos felizes, de usar palavras, de falar sobre as coisas, de descrever e classificar fatos e idéias, podendo levar, nos melhores casos, a certas satisfações de natureza estética, a estimular a imaginação para certos estados agradáveis de meia-compreensão. Saber , porém, no sentido da linguagem comum ou da linguagem dos sábios – que é a mesma – não haverá em tais casos. Daí não ser raro, sobretudo entre nós, considerarem-se os triunfos intelectuais como triunfos estéticos: "Saiu-se admiravelmente!", "Impressionou muito bem", "Você esteve ótimo", "Falou muito bonito", etc., etc. Há 38
uma deliciosa ironia e uma penetrante intuição nesta nossa forma, tão popular, de se julgarem os triunfos do conhecimento sobre as coisas a que nos levam os hábitos da lógica tradicional, de definição e demonstração apenas. A lógica de Dewey e sua correspondente teoria do conhecimento, pelo contrário, tornam a operação experimental essencial ao processo do conhecimento. Lógica não é a teoria do “conhecimento adquirido" nem a da sua "demonstração";
mas, sim, a teoria do "processo de adquirir o conhecimento", no qual o "conhecimento adquirido" é o termo limite, o termo final. A filosofia, para Dewey, é um processo de crítica, isto é, de discriminação, seleção e ênfase, peIo qual se descubram os elementos e critérios de direção e orientação da vida humana, em toda a sua extensão e complexidade. A filosofia é uma teoria da vida. E a lógica, em última análise, uma teoria da vida intelectual, isto é uma teoria do pensamento, da experiência reflexiva. O escolho geral das teorias filosóficas do conhecimento consiste em seleções e ênfases falazes. E é para evitá-lo que parte Dewey da análise e do processo mais primitivo da tentativa de pensar do homem – "dúvida – investigação" – e constrói, à luz desta análise, o seu sistema de "formas" e critérios lógicos. Todos os termos do processo lógico sofrem uma reformulação. E essa reformulação não a reputa Dewey mais verdadeira do que outras, pois, a questão, nas teorias, como são hoje concebidas, não é de verdade, mas de plausibilidade, de validade, de eficácia. Consegue a sua hipótese cobrir todo o campo dos fatos e explicar as suas dificuldades? A realidade é que a sua teoria pode não ser explicitamente aceita, mas é efetivamente praticada, tanto no processo empírico de obtenção do conhecimento, quanto no processo científico, que corresponde a um refinamento e enriquecimento do processo empírico, não havendo entre ambos senão diferenças de grau, de precisão e de segurança. Para Dewey as próprias "formas" lógicas se originam de e no processo de indagação, inquérito ou investigação. Não preexistem ao processo de indagação; mas, formam-se no e pelo processo mesmo de indagação, e são os instrumentos de direção e controle desse processo. Foi a necessidade humana de indagar , de inquirir , de pesquisar que produziu as formas lógicas, de que nos utilizamos em nosso modo de pensar e em que nos fundamos para nos conduzir inteligentemente na vida e obter os conhecimentos e o saber. A teoria lógica de Dewey funda-se, nos seus próprio termos, “em que todas as formas lógicas (com as suas características próprias) originam-se da operação de investigação e dizem respeito ao controle desse processo de investigação, de modo a levá-lo a produzir asserções garantidas.” * Dewey identifica, assim, a lógica com a metodologia e com o método científico. Sua hipótese é a de que o método experimental ou científico de pesquisa é a própria lógica. Esta, a hipótese que Dewey opõe às demais hipóteses ou teorias das formas lógicas. Para ele estas formas decorrem e resultam da atividade de 39
investigação, na qual se podem encontrar os princípios e critérios necessários à direção orientada e eficaz de nossas atividades intelectuais. A primeira objeção seria, como admite o próprio Dewey, a de que o processo de investigação pressupõe a lógica e não pode ser ele próprio a fons et origo das formas lógicas. Por menos provável que o pareça, entretanto, a realidade é que o processo elaborou e está a elaborar estas "formas" lógicas. Todo avanço no processo de obter o conhecimento proveio de autocorreção deste mesmo processo. Todo o processo científico moderno – "experimental" – é um progresso por autocorreção do processo de investigação. Desde o começo, o homem é o animal que pergunta, que indaga, que busca – e que responde e acha. O processo pelo qual conduziu sua busca constituiu a história do pensamento humano. E tal história é também a história das formas lógicas, que não são exteriores ao processo de pensar, por isto mesmo que originárias e originadas da própria experiência de pensar. Que é pensar, senão indagar e buscar a solução de um problema, de uma dificuldade? Se a indagação é o início, o fim, como objetivo em vista e como término, é o estabelecimento de uma situação que responde à indagação, que resolve a dúvida, dando lugar à crença e ao conhecimento que Dewey prefere chamar "assertibilidade garantida" (warranted assertibility) ou "asserção garantida" (warranted assertion), preferindo a primeira forma, potencial, para indicar que todo conhecimento é um produto provisório de investigações competentes e não algo que exista por si e seja, por uma vez, definitivamente estabelecido( 2). Racionalidade, razoabilidade ou razão significa apenas relação, adequação entre meios e fins, como é aliás o seu sentido usual. Transformou-se esta relação em uma faculdade – a "Razão", pela qual o homem conquistaria as verdades primeiras, os axiomas, as evidências por si mesmas. Hoje, sabe-se que todas as evidências são postulados, são apenas definições, nem falsas nem verdadeiras, que têm de ser julgadas em face das conseqüências que se lhes seguem ou que lhes são implícitas. Tanto em matemática quanto em física, hoje, fórmulas e postulados servem de base a deduções desenvolvidas de acordo com regras precisas de implicação. Mas, o valor da dedução não é determinado pela correção do método dedutivo, que se lhe aplica, e sim pelas operações de observação experimental que vão, no final, determinar o valor científico do princípio deduzido. A hipótese de Dewey consiste na generalização da relação "meios-conseqüências", característica da pesquisa matemática e física. Todas as formas lógicas são exemplos da relação entre meios e conseqüências, orientadora da investigação adequadamente “controlada", controle correspondendo a métodos de pesquisa
desenvolvidos e aperfeiçoados no próprio processo, permanentemente repetido e renovado, da contínua pesquisa, em que se transformou o esforço intelectual do homem. Tomemos os próprios "primeiros princípios" – de identidade, de contradição e do terço excluído. Segundo Dewey, esses princípios representam tão-somente condições que vieram a se estabelecer no curso imemorial da indefinida indagação humana. Praticamente, isto significa que tais princípios são os invariantes dos 2
Dewey prefere a expressão " warranted assertibility" a crença e saber , porque julga estas últimas expressões ambíguas. "Crença " porque significa estado mental e o que é acreditado, e "saber", porque significa o resultado de investigação competente e controlada, é " saber " como algo independente de correção e referência com investigação. 40
objetos ou situações com que lidam os processos de investigação. Teoricamente, a
posição de Dewey, ao considerar tais primeiros princípios como resultados formulados do próprio processo empírico de inquérito, elimina o desconcertante “problema" da sua existência a prior i ou da sua externalidade ao processo de pesquisa, e abre caminho para novos desenvolvimentos lógicos. Acompanhando Peirce, considera-os "primeiros" porque são os princípios orientadores, ou de direção. Resultaram da formulação de hábitos de operação em relação a inferências, capazes de produzir conclusões seguras no processo de pesquisa ou investigação, frutuosos para novas investigações ou pesquisas. São "princípios", porque correspondem a formulações tão amplas e gerais que se aplicam a qualquer objeto particular, sendo por isto formais e não materiais, embora sejam formas da matéria sujeita, em cada caso, à investigação ou pesquisa. E sua validade decorre da coerência das conseqüências produzidas por tais hábitos de inferência, de que são a expressão articulada. Se hábitos são modos ou maneiras de agir, hábitos devidamente formulados transformam-se em "princípios" ou "leis" de ação. Não são premissas, mas condições a serem atendidas e obedecidas. O conhecimento dessas condições permite orientar-nos, ter à mão um começo de direção e de prova, no tratamento dos elementos da investigação. A hipótese de Dewey, cujos fundamentos vamos passar a examinar, faz da lógica uma ciência experimental e, como tal, progressiva, cujo objeto é determinado operacionalmente (operações com material existencial e operações com símbolos) e cujas "formas" são postulados, isto é, convenções construídas especulativamente e comprovadas pela experiência, podendo assim mudar. Sendo uma ciência natural, contínua com as teorias físicas e biológicas, nem por isto deixa de ser social, porque lida com o humano e o humano é naturalmente social. Além disto, a lógica é uma ciência autônoma, no sentido de que suas "formas", princípios, normas ou leis decorrem do estudo da "investigação ou indagação ou inquérito", como tal, e não de algo externo, sejam intuições apriorísticas ou pressupostos metafísicos. Não é possível, numa conferência, reproduzir todo o tratado da lógica da investigação e da descoberta, que Dewey desenvolve em seu Logic – Theory of Inquiry , fundado em sua nova hipótese. Desejamos aqui tão-somente mostrar, seguindo o nosso autor tão de perto quanto possível, as bases naturalísticas – biológicas e culturais – da sua teoria experimental da lógica e indicar algumas de suas conseqüências na unificação dos processos usuais e científicos de investigação, ou seja da busca do conhecimento de ordem prática e do saber de natureza científica. * Todo o universo é um conjunto de processos de interação, de atividades associadas, de histórias e de história, em que há começos, operações intermediárias e conclusões, que iniciam, por sua vez, outros processos, e assim indefinidamente. Uniformidades, variedades, seqüências e conseqüências constituem, portanto, característicos do próprio cosmos, da própria natureza. Neste 41
mesmo universo, os seres vivos, dotados de energia organizada, ainda mais acentuam os traços aludidos, constituindo-se em outros e novos núcleos de ação e reação com o meio em que vivem e por que vivem. Os organismos, com efeito, não vivem em um meio – mas por meio de seus respectivos meios. Graças a uma tão sinérgica participação de uns nos outros, ambos se modif icam, organismos e meios, fazendo-se e se refazendo, neste e por este intercâmbio. E tal atividade em comum, partilhada ou conjugada, já contém, de logo seja dito, os elementos que, na vida superior, vão produzir o que chamamos de pensamento, de lógica, de razão e de inteligência, no plano humano e social. O comportamento do ser vivo, com efeito, consiste num conjunto de atividades em série, pelas quais mantêm o seu estado de adequação com o ambiente. Mesmo nos níveis mais elementares de vida vamos encontrar os elementos espaciais e temporais do processo ou norma fundamental: equilíbrio ou integração – distúrbio, tensão ou desequilíbrio – busca, manipulação ou operação – satisfação ou reintegração. Nesta seqüência, cada passo corresponde a uma situação real entre o organismo e o meio, envolvendo manipulações do meio e alterações do organismo, em interações que redundam em uma nova relação, não simplesmente restauradora, mas reintegradora. Dewey insiste neste ponto, de real importância teórica, pois o ser vivo não tende nunca ao estacionário, mas a uma nova integração, contigente a um processo de desenvolvimento ou de crescimento, que nos seres superiores vai-se transformar em um processo praticamente indefinido. Quando o ser vivo é de ordem superior e dispõe de órgãos de locomoção e de receptores à distância, isto é, sentidos, as suas relações com o meio se fazem cada vez mais complexas, envolvendo as funções da vida atos iniciais ou preparatórios, atos intermediários e atos finais, com alternativas, solicitações contraditórias ou mesmo antagônicas, escolha e utilização deste ou daquele recurso, eliminação deste ou daquele obstáculo, enfim um comportamento, em que se prenuncia já a série – previsão, plano, experimentação, conclusão – que vamos encontrar mais tarde no homem. O circuito do comportamento biológico compreende, assim, uma fase inicial ou "aberta", como diz Dewey, que corresponde a um estado geral de tensão do organismo, e uma fase final ou "fechada", que é a restauração da interação (integrada) do organismo com o ambiente, com alterações reais de um e outro (pelo menos no caso dos organismos superiores); do primeiro, pela reintegração do seu equilíbrio dinâmico, e do segundo (o ambiente), pelo estabelecimento de condições satisfatórias. A modificação operada no organismo constitui o que chamamos de hábito, que consiste em mudanças de estruturas e é a base da aprendizagem orgânica. O hábito é a aquisição pelo organismo de certa propensão ou predisposição a atuar de certo modo, para chegar mais facilmente ou mais diretamente à fase consumatória do comportamento. Não é essencialmente uma inclinação à repetição, que se dá apenas quando o ambiente se conserva idêntico. Se houver alteração no ambiente, já o hábito se apresenta como a disposição para se reintegrar na nova situação, com as alterações de reajustamento indispensáveis. Temos, pois, na própria atividade dos seres vivos em geral, a matriz do comportamento lógico. A norma do comportamento biológico prefigura, segundo Dewey, a norma da atividade inquiridora que, no homem, vai se transformar em 42
uma atividade em si mesma, na busca, na indagação, na investigação, no processo de obter o conhecimento pelo conhecimento, sem, entretanto, deixar de ser também o seu processo usual de permanente reajustamento, de ser vivo, primeiro, e, afinal, de ser humano. A lógica da investigação ou da busca do conhecimento é a réplica, em nível mais alto, da lógica germinal da atividade biológica. A investigação, pois, a indagação, o perguntar, a pesquisa, a "busca inquieta da verdade", como dizemos, não é algo que sucede na "mente", nem sequer no organismo, isoladamente; mas algo que caracteriza uma situação real do organismo e do meio, uma situação de desequilíbrio, indeterminação, distúrbio, dúvida ou perplexidade, e que suscita o processo de inquirição ou pesquisa, que este é o processo pelo qual se opera a restauração do equilíbrio e a determinação da situação indeterminada que lhe deu origem. Organismo e mundo não existem independentemente, desde que o "mundo" se faz o "meio" de um ser vivo, isto é, o conjunto de condições pelas quais ele vive. Organismo-meio constitui um todo. Os dois só existem independentemente nas fases de desintegração, que se resolvem com a reintegração, se a vida continua. Na realidade, insistimos, a estrutura e o curso do comportamento consuetudinário do ser vivo seguem um itinerário especial e temporal, que prefigura já as fases do processo consciente de pesquisa. Com efeito, de um estado de ajustamento que entra em perturbação, nasce uma situação problemática, indeterminada, que provoca no organismo atividades de inquietação, de indagação, de busca, de exploração, de manipulação, as quais, se bem sucedidas, conduzem o organismo à sua reintegração nas condições ajustadas de vida, pela resolução da indeterminação ou satisfação da necessidade. E a análise desse processo usual de reajustamento do organismo, em face das exigências da vida, revela-nos pelo menos três aspectos que antecipam a configuração do processo de investigação, como o concebe Dewey, na vida humana: Primeiro: o curso completo do processo "necessidade – tensão – satisfação" determina sempre alguma mudança nas condições do meio especial do organismo e do próprio organismo; Segundo: todo o processo segue um curso seriado ou conseqüente, implicando previsão de fins ou objetivos, recordação de situações anteriores, etc., etc.; Terceiro: as atividades e operações por meio das quais atinge o ser vivo a fase consumatória do processo são, por definição, intermediárias, instrumentais, e este aspecto do comportamento biológico antecipa o caráter das operações de inferência e de discurso do processo de investigação ou pesquisa propriamente dito, em relação com os juízos conclusivos e finais.
A importância básica da relação serial, em lógica, está, assim, enraizada nas condições mesmas da própria vida. A atividade dos seres vivos importa em modificação das energias do organismo e em modificações do próprio, meio natural, antecipando, portanto, a aprendizagem e a descoberta. No simples processo de viver – processo biológico – há, pois, um fermento permanente, pelo qual as necessidades são atendidas de forma a que a reintegração não seja simplesmente a volta ao estado anterior, mas a criação de um novo estado ou situação, com suas novas necessidades e seus novos problemas. O que o organismo aprende coloca-o em condições de fazer novas exigências em relação ao ambiente. No 43
complexo estágio humano, a deliberada formulação de problemas se transforma em um objeto de atividade em si mesma e, deste modo, a investigação em uma atividade permanente e, teoricamente, indefinida... Admitido o postulado dessa continuidade entre interação e integração orgânica e o processo de investigação ou pesquisa, logo vemos que desaparecem os problemas do subjetivismo psicológico ou os das relações entre processos mentais e processos lógicos. O processo de investigação não é nenhum ato da mente em si e por si, mas, uma interação, ainda ou sempre, entre o organismo e o meio, tão material e física e funcionalmente em nada diferente da digestão, digamos. A psicologia é necessária ao seu estudo como a fisiologia é necessária ao estudo da digestão. E o objeto da lógica consiste em atividades de observação e de operação, em suma tão materiais, objetivas e concretas quanto os de qualquer outra ciência. Assim, como qualquer outra ciência, pode a lógica acertar e errar –pois há em toda investigação o risco de discrepância entre a situação existente e a sua manipulação, que são o presente, e as conseqüências decorrentes, que são o futuro. Seja o comportamento biológico, seja a investigação deliberada, isto é, o processo lógico, operam corretamente na medida em que 1) as condições existentes são semelhantes às que contribuíram no passado para a formação dos hábitos existentes de ação ou de investigação e 2) em que esses hábitos se conservam flexíveis para se readaptarem facilmente a novas condições que ocorram ou possam ocorrer. Desse modo se pode ver que, no comportamento biológico, já se insinuam todos os elementos essenciais da investigação deliberada que se vai encontrar no homem, até mesmo a necessidade que os próprios hábitos orgânicos, como as conclusões da pesquisa humana, sejam provisórios e condicionais, exigindo constante readaptação e revisão. O comportamento, pois, dos seres vivos, em relação com o seu meio físico, constitui a matriz biológica, repitamos, do comportamento inteligente, do ato de investigação lógica e racional do ser humano. * Os seres humanos, entretanto, não vivem somente em um meio físico, mas em uma "cultura", que impregna e transforma seus próprios comportamentos biológicos. Esse meio "cultural" consiste em todo um sistema de sinais, significações, símbolos, instrumentos, artes, instituições, tradições e crenças. O físico e orgânico se fazem agora, eles próprios, sociais. E não apenas sociais, como nas formigas e abelhas, que dispõem de estruturas orgânicas para se comportarem socialmente. Mas, sociais por aprendizagem, por aquisição, por herança social. Luz, fogo e som que, no nível biológico, constituem condições, diríamos, lineares, determinando comportamentos realísticos, no nível cultural transformam-se de realidades existenciais em realidades significativas, passando a ser iluminação, aquecimento, música... As relações dos homens entre si e com o seu meio adquirem um novo nível, dominado por símbolos e "sentidos", que têm de ser aprendidos e adquiridos, para a necessária integração social. Tal transformação importa em fazer que o comportamento biológico se torne um comportamento intelectual. E não só importa. O meio social, agora, o exige. 44
O comportamento puramente biológico indica, antecipa operações intelectuais, mas não as exemplifica. Com a cultura, com a linguagem, o comportamento humano se faz simbólico, e não há como usar símbolos sem que o conteúdo do comportamento se faça intelectual, pois os símbolos precisam ser compreendidos de maneira comum, isto é, corrente e geral, e de maneira objetiva, isto é, impessoal. Desde que meu comportamento é geral e objetivo, o meu comportamento é intelectual. Vejamos, com efeito, o que se passa no comportamento orgânico do homem, transformado pelo simbolismo da linguagem em seu sentido mais amplo. Em virtude dos novos elementos culturais que o passam a integrar, o comportamento humano já não é somente um processo de relações com o meio e com os outros indivíduos mas de associação com um sistema de símbolos e significações, de sentido e uso comum ou geral. Determina isto que os passos sucessivos do comportamento humano constituam atos partilhados pelos outros ou que tenham para os outros a mesma significação que para o indivíduo que os pratica, o que importa em atos de compreensão comum ou objetiva e na eliminação deliberada de emoções e desejos, suscetíveis de influir nos resultados a atingir, pois esses resultados têm de ser comuns, isto é, percebidos e partilhados por todos. O comportamento humano é, assim, especificamente intelectual, envolvendo objetividade, imparcialidade e, por isto que implica percepção de relações entre símbolos e significações, extratemporalidade. A transposição do orgânico para o simbólico, isto é, o intelectual, com as suas inevitáveis características lógicas, resulta, assim, de viverem os homens em uma "cultura", que os compele a integrar no seu comportamento, pela aprendizagem, os costumes, crenças, instituições, significados e símbolos, que são necessariamente gerais ou comuns e objetivos. Nessa transformação, a linguagem, já o indicamos, tem papel singular. Com efeito, embora, sob certo ponto de vista, seja apenas mais uma instituição, é por ela que as outras instituições e hábitos se transmitem. Deste jeito, a linguagem faz-se a forma e o instrumento de todas as atividades culturais e como, além disso, tem ela própria uma estrutura característica, que constitui por si mesma uma "forma", a linguagem, historicamente, influiu na formulação da teoria lógica. Em rigor, a lógica se fez a lógica da linguagem, a lógica do discurso. Considerada nos seus aspectos mais amplos, compreendendo não somente a linguagem falada e escrita, mas os gestos, os ritos, as cerimônias, os monumentos e os produtos das belas-artes e das artes industriais, a linguagem contitui não só a condição necessária, como também a condição suficiente para a existência de formas lógicas, e não apenas orgânicas, de atividade entre os homens. Pelo fato de exigir de cada indivíduo tomar o ponto de vista de outros indivíduos e passar a ver e agir de modo comum a eles, como participantes de um empreendimento entendido de maneira comum, a linguagem compele-o a um comportamento lógico, isto é, geral e objetivo. Geral, porque comum e não individual, e objetivo, porque não autístico. A linguagem é originariamente uma forma de comunicação, e não de refletir e raciocinar; mas, para que haja "comunicação", é indispensável que os seus símbolos e significados tenham sentido existencial comum e sejam percebidos como tais em relação a atividades reais e concretas. Ora, isto não é possível sem a percepção dos significado e sentidos comuns das palavras em suas relações e conexões com as coisas e as pessoas. A palavra não é, com efeito, algo em si 45
mesmo, mas o sinal ou símbolo de determinada operação, existencial ou possível, e de sentido comum. O seu uso, portanto, envolve a capacidade de um comportamento que transcende a direta reação ao meio físico, para responder a este meio levando em conta relações complexas, extra-individuais e extratemporais de símbolos, significados e sentidos. Além disto, não só a palavra é um símbolo representativo de algo mais do que ela própria, como seu sentido não depende apenas dela, mas do contexto em que estiver inserida, constituindo parcela de todo um sistema. Usar, pois, a fala é, de fato, comportar-se de um modo geral , objetivo e sistemático – características de um comportamento lógico. Usar a linguagem, diz Dewey, é usar um código e usar um código envolve operações do mais alto caráter lógico. A linguagem compreende sinais, ou sejam sinais naturais, e símbolos, ou sejam sinais artificiais. Os sinais naturais existem na vida animal: "isto" indica, denota "aquilo", "disto" se infere "aquilo"; fumo indica fogo... Mas, os símbolos ou sinais artificiais só existem na linguagem humana. "Isto" representa, quer dizer significa “aquilo"... O símbolo importa em um novo nível, uma nova transcendência: pode ser usado sem existência material da coisa ou fato, que simboliza ou lhe dá sentido; o que permite o discurso e libera a palavra das existências materiais. A relação sinal-indicação é uma relação de inferência, de algum modo possível na vida animal. A relação "símbolo-quer-dizer" é uma relação de implicação. As duas relações são diferentes e abrem caminho para todo um mundo novo de percepção e de conceituação. O jogo das relações dos símbolos entre si (relações), dos símbolos com existências (referências) e das coisas entre si (conexões), que permitem as inferências, vai tornar possíveis comportamentos humanos de requintada complexidade, conseqüentes ao multidimensionalismo que a palavra, assim, empresta à realidade de tais comportamentos. Nada mais natural, portanto, do que fazer-se o comportamento animal – concreto, prático e realístico – no nível humano, um comportamento "mágico", desviando o homem por tão longas idades para os estranhos mundos de sua vida de mitos e ritos e "irracionalismos". O nível simbólico do seu comportamento tanto o poderia levar para o progresso sobre o comportamento animal, como o poderia desviar da realidade e criar-lhe um mundo fantasmagórico, o seu novo poder era, como todos os poderes, um poder de que tinha de aprender a se defender. Toda uma série de lógicas criou ele até chegar à fórmula lógica da ciência, que mais não é que sistemas controlados de proposições simbólicas relacionadas entre si, e suscetíveis de desenvolvimento por si mesmas, mantendo, entretanto, relações com existências, e constituindo um sistema de referências, as quais se concretizam nas operações de aplicação, em que se comprova a validez das proposições, em virtude das conexões (relações) que existem entre as cousas. Tais conexões ou relações é que justificam as inferências; estas levam, por sua vez, à descoberta de novas relações; por seu turno as novas relações conduzem ainda a novas bases para inferência... E somente a linguagem permite jogar com todas essas relações em seus diferentes aspectos, de forma relativamente fácil e cômoda, determinando a elevação do comportamento animal ao nível de um comportamento intelectual, que, devidamente formulado, vem a constituir sua própria teoria lógica. A linguagem não, originou o comportamento associado e inteligente, mas deu-lhe novas "formas", de modo a dar à experiência uma nova dimensão e um novo nível. Não é difícil, em face do exposto, admitir, com Dewey, que o ato de investigação, isto é, o ato de conhecer e sua teoria lógica, tem na cultura, que 46
caracteriza o ambiente humano, a sua outra ou nova matriz – sua matriz cultural. Com efeito, resumindo o argumento, podemos notar que: 1) "Cultura", em oposição a "natureza", é sobretudo uma condição e um produto da linguagem. Como por ela é que se retêm e se transmitem às gerações subseqüentes as habilidades, informações e hábitos adquiridos, é uma condição da cultura. Mas, como os significados e sentidos das palavras diferem de cultura para cultura, a linguagem também é um produto da cultura. 2) Graças à cultura, as atividades orgânicas ou biológicas, ,já humanas a esta altura, ganham novas características. Comer faz-se festa; buscar alimento, a arte da agricultura e da troca; o amor, a instituição da família ... 3) Sem a linguagem ou os símbolos-significantes, os resultados da experiência anterior ficariam apenas retidos nas modificações, orgânicas, modificações que uma vez processadas tendem a se fixar. A existência de símbolos (da linguagem) permite recordar e esperar deliberadamente e, deste modo, criar novas combinações dos elementos componentes da experiência, revivida sob forma simbólica ou verbal. 4) As atividades orgânicas terminam em ação, que é irreversível. Mas, se uma atividade pode ser figurada em representação simbólica, não há um compromisso final. E se a representação da conseqüência não for agradável, pode-se evitar a ação ou replanejá-la, de modo a evitar o resultado indesejável. Essas transformações do comportamento basicamente biológico, graças à cultura e à linguagem, fornecem os requisitos para o comportamento intelectual do homem. O uso de símbolos nas operações de exame dos projetos ou fins em vista, como uma representação das atividades pelas quais os fins podem ser realizados, é, pelo menos, já uma forma rudimentar de raciocinar, que, uma vez instituída, é suscetível de desenvolvimento indefinido. E o ordenado desenvolvimento de símbolos, em sua relação uns com os outros, uma vez estabelecido, transforma-se em interesse em si mesmo. Então, as condições lógicas, implícitas nessas relações, tornam-se explícitas, e alguma forma de teoria lógica aparece. Este primeiro passo foi empreendido, quando alguém, refletindo sobre a linguagem em suas estruturas sintáticas, lhe descobriu a riqueza dos conteúdos e significações, e de suas relações mútuas. * A linguagem e o meio cultural fazem, por fim e assim, do homem o ser raciocinante, o animal racional de que falava Aristóteles. As suas necessidades e as suas dificuldades fazem-se problemas, que são resolvidos pelas instituições, pelos hábitos, pelas crenças, pelas artes e pelos conhecimentos, que construiu e obteve no seu processo de experiência, de tal modo transformado em um processo contínuo de investigação, aprendizagem e descoberta. Os problemas suscitados pela própria necessidade de viver não são ainda, entretanto, os problemas específicos do conhecimento pelo conhecimento, ou do saber pelo saber. São antes os problemas ordinários da vida, – embora já de uma 47
vida social evoluída, – problemas práticos de uso e gozo das coisas, das artes e mesmo das idéias correntes. Dewey distingue tais problemas dos problemas científicos e, conseqüentemente, a "investigação do senso comum" da "investigação do tipo científico". Tal distinção, cumpre notar, não significa dualismo. Tenha-se sempre presente que o princípio de continuidade é o grande princípio diretor do pensamento deweyano. O comportamento dos seres vivos superiores já é um comportamento, conforme acentuamos, que envolve situações indeterminadas e a solução dessas situações, sendo, portanto, operacionalmente lógica, embora sem possibilidade de formulação simbólica ou verbal. O comportamento humano, finalmente, processando-se em um ambiente cultural (meio físico + cultura) de que a linguagem, repitamos, é uma condição e um produto, faz-se então conscientemente lógico, expressando-se em termos de símbolos, sob a forma de problemas, de que a vida se tece e entretece, e cuja solução constitui a linha consumatória dessa própria vida. E a lógica surge, em último estágio, como resultado dessa atividade de pesquisa, sendo seus princípios e normas, fundamentalmente, os próprios hábitos bem sucedidos de operação na condução da pesquisa. Em virtude disso, a vida faz-se, por sua natureza um processo de aprendizagem: aprendizagem orgânica nos seres vivos em geral e aprendizagem intelectual entre os seres humanos. E intelectual porque, graças à linguagem, pode o comportamento humano ser antecipadamente representado, ensaiado verbalmente ou retardado em seu desfecho. É então e deste modo que se constitui, efetivamente, o que chamamos o "processo de inquirição, indagação ou investigação", o "processo de reflexão", o "processo de pesquisa", que evolve ao longo do curso da vida humana, tornando-se, por fim, o processo formulado e consciente do comportamento especificamente humano. Tal processo é a origem e a matriz dos princípios e "formas lógicas". Mas nem a lógica, repetimos, é uma estrutura do próprio mundo, que a "mente" descobre, nem é uma estrutura própria da "mente" humana, que por seu intermédio se revele... É ela, sim – mais uma vez insistimos – o próprio processo específico do comportamento humano em seu ajustamento ao ambiente, tornado formulável graças à linguagem. E uma vez formulado, faz-se, ele próprio, objeto, também do processo de investigação. Este investigar sobre como investigamos, este inquirir sobre como inquirimos vem a dar-nos os princípios e as normas do processo de inquirição, indagação, investigação ou pesquisa, e nos transforma o processo em um processo agora e para sempre progressivo, autocorretivo e autoperfectível. Podemos dizer também que surgiu, então, algo que se passou a chamar de ciência, isto é, a busca do conhecimento pelo conhecimento, do saber pelo saber e da verdade "racional" em oposição à verdade "empírica" – como uma forma nova do processo de investigação usual. Seria esta a possível origem histórica da diferenciação entre as duas formas de investigação: a investigação do senso comum, que produz as crenças e verdades do senso comum, e a investigação científica, que produz as verdades científicas. Se não são contraditórias e excludentes, como de fato não o são, que identidade e continuidade existem entre os dois processos e até que ponto são idênticas as lógicas a que os dois processos obedecem? 48
Lógica é o modo de conduzir o processo de pesquisa. O processo de pesquisa ou investigação é o processo pelo qual as situações indeterminadas, que se criam nas relações entre o organismo e o meio (melhor se diria as situações indeterminadas do todo organismo-meio), se resolvem. Esse processo compreende os seguinte passos: situação indeterminada (problemática), localização do problema, sugestão de solução, ensaio (experimentação), solução (satisfação) ou determinação da situação. A investigação do senso comum tem, assim, as condições lógicas em sua inteireza, e não é por aí que se a distinguirá da investigação científica. A distinção está no objeto da pesquisa. A investigação do senso comum visa os problemas da vida consuetudinária, que dizem respeito ao uso e gozo corrente das coisas, em suas relações entre si e com os homens. Visa a solução dos aspectos “práticos"
da vida. Daí utilizar-se da linguagem e dos símbolos da vida ordinária. Tal linguagem é sistemática, como a da ciência, mas o seu sistema é prático e não teórico ou abstrato. Compreende o sistema das tradições, ocupações, técnicas, interesses e condições estabelecidas da comunidade. Os símbolos e seus significados são os da vida usual e em relação com o uso e gozo dos objetos, atividades, produtos – materiais e ideológicos – do mundo em torno. Por isto mesmo, todo o sistema de símbolos e significados é um sistema concreto, local, que diz respeito a condições de um determinado meio cultural. Já a investigação científica, embora obedecendo às mesmas regras lógicas, tem por objeto a descoberta da verdade teórica e não prática e daí decorrem as suas diferenças em relação à investigação do senso comum. Os seus problemas não são os do uso e gozo das coisas, mas, os das relações entre os "significados" entre si, libertos de quaisquer ligações ou referências. Por isto é que se chama a ciência abstrata e não concreta, teórica e não prática. O concreto é o ligado diretamente ao meio, às condições existenciais das coisas e das pessoas. O abstrato é o desligado, o libertado das condições locais de cousas e pessoas. Na inquirição científica, o objeto são as relações das cousas e dos "significados" entre si. Na inquirição do senso comum o objeto são, o uso e gozo das coisas, significados e pessoas nos seus aspectos práticos ou qualitativos. A inquirição científica elimina o qualitativo, põe toda ênfase no não-qualitativo e "em grande parte, mas não exclusivamente, no quantitativo". A investigação do senso comum governa a vida de cada um de nós em todos os problemas práticos, praticamente comuns a todos. A investigação científica origina-se desses mesmos problemas práticos da vida e, em última análise, visa a solução deles, mas constitui uma fase nova da investigação humana, tomando por objeto o problema como problema, indagando das coisas em si e de suas relações, bem como o das relações dos seus "significados" entre si, descobrindo as leis sistemáticas que as regulam. Na investigação científica procuro conhecer por e para conhecer. Libertados de todas as suas ligações existenciais, estudo os objetos em si mesmos, em suas relações entre si e com os demais objetos. Como os estudo através dos símbolos da linguagem, que os representam, manipulo e investigo esses símbolos, descubro as relações entre eles, faço cálculos, elaboro hipóteses, imagino alternativas, deduzo conclusões, etc., etc. Todo este trabalho, porém, note-se bem, é intermediário, mediatório e não final. Final só é a sua aplicação. E se obtive o 49
conhecimento científico e o aplico, volto ao nível do senso comum, modifico algo na vida e esta modificação se incorpora ao cabedal do senso comum, alterando o modo dele lidar com os seus problemas específicos e práticos. Mas, o conhecimento de senso comum, o saber usual não é, releva notar, nenhuma constante, por que varia de povo a povo povo e de época época a época. Não só isto. Também perde a sua função, entra em desuso, "idealiza-se", fazendo-se, às vezes, lenda ou cultura residual, de sentido estético ou religioso. Quando isto se dá, o conhecimento de senso comum, embora prático na origem, faz-se tão remoto ou indireto em sua aplicação, que passa a constituir um conhecimento aparentemente abstrato e “superior", por motivos sociais, conforme adiante acentuaremos.
Os problemas científicos, por outro lado, nascem e se originam dos problemas do senso comum. São, até, a rigor, os mesmo problemas, libertados de suas condições concretas e existenciais e de suas finalidades interessadas, que se fazem problemas de certo modo puros ou gerais, no sentido em que um problema aritmético se liberta quando quando o formulamos algebricamente. algebricamente. A distinção, distinção, assim, assim, entre a inquirição do senso comum e a científica não encerra diferença epistemológica nem ontológica, mas, simplesmente, lógica, pois consiste numa formulação diversa dos problemas que, por isto mesmo, recebem tratamentos lógicos ou diferenciados. diferenciados. São os os mesmos objetos, processos processos e instrumentalidades do mundo do senso comum, que que se constituem em problemas problemas da ciência. A luz e a cor que a ciência estuda são a mesma luz e cor que enchem a nossa vida cotidiana. No campo do senso comum resolvemos os problemas de sua função nas ocupações, nas artes e nas atividades cotidianas. No campo científico, consideramo-las (a luz e a cor) isoladamente, como coisas em si, como objetos de conhecimento per se, estudando-lhe a causalidade, medindo o processo que as produz e estabelecendo as relações e conexões destes elementos em um todo sistemático e coerente. Todo o conhecimento científico e teórico visa, contudo, em última análise, aplicar-se no controle de condições existenciais e, por este modo, se religar ao mundo do senso comum. O conhecimento científico, portanto, é posterior ao conhecimento do senso comum, retira dele os seus mais refinados e abstratos problemas, e a ele volta, depois, com as suas novas aplicações e os seus novos controles. A investigação do senso comum, com seus processos práticos pr áticos e empíricos, elabora, entretanto, um corpo de informações, de técnicas, de maneiras e de instrumentalidades verbais e materais. E tais "conhecimentos" empíricos e não sistemáticos constituíram, nas suas origens, a ciência antiga. Desligados das condições em que foram elaborados, representavam produtos isolados da experiência humana, guardados e cultivados na consciência comum da espécie e, mais especialmente, por pessoas determinadas, que se faziam os seus peritos ou especialistas. A ciência e o senso comum eram, assim, a mesma coisa, constituindo ciência aqueles conhecimentos de aparência mais elaborada em virtude do seu desligamento das condições históricas que os haviam feito nascer e que os explicariam. Tudo que os antigos conheciam de astronomia, de metalurgia, de geometria e de artes, em geral, era assim conhecimento integrado nos processos de conhecimento do senso comum. 50
A esse tempo, cumpre notar, certas circunstâncias sociais muito influíram sobre a formulação dos conceitos usuais e, sobretudo, sobre certas hierarquias falsas do saber humano. Com efeito, eram eram diversos os homens que lidavam lidavam com as diferentes espécies espécies de conhecimento. Os conhecimentos necessários à vida diária dos seres humanos pertenciam às classes inferiores, inclusive à enorme massa de escravos, e os que se referiam à direção última da vida, aos poderes que a regiam e aos interesses dos senhores, às classes superiores. Embora uns e outros práticos e empíricos e igualmente necessários à existência humana, passaram, em virtude da sua posse por diferentes classes sociais, a serem, os primeiros, considerados "práticos ou inferiores" e, os segundos, "superiores ou espirituais". Distinções dessa natureza é que serviram de base ao dualismo, na Grécia, entre o conhecimento empírico e o racional. Com efeito, os gregos, embora mais livres do que quaisquer dos povos antigos do controle eclesiástico e mesmo autocrático, fixaram, entretanto, a distinção que herdamos de conhecimento racional e "puro" (ciência e filosofia) e conhecimento prático e "servil" (referente a satisfação de necessidades e apetites), competindo os primeiros aos filósofos (cientistas) e aos cidadãos livres, e os outros aos artífices e à massa massa escrava. A divisão social veio, assim, a refletir-se no campo intelectual, criando o dualismo de prática e teoria, experiência e razão, saber empírico e saber racional, o último acabando por se considerar não somente supraempírico, como supra-social, ligando os que o serviam e buscavam ao sobrenatural e ao divino. Durante longos séculos, por isso, mesmo os produtos do avançado conhecimento grego chegaram a constituir-se em motivos impeditivos para o progresso científico da humanidade, ao invés de fatores favoráveis como anteriormente haviam sido. Muito mais tarde, somente, já mesmo em pleno Renascimento, e a partir dele, é que certos homens retomaram aquele antigo saber venerável, "clássico", e o puseram de algum modo em contacto com as experiências e realidades ordinárias da vida e, desta sorte, lhe restauraram o vigor e a fertilidade, – até que fosse ele renovado ou substituído, e quase revolucionariamente, nos dois últimos séculos. Rompeu-se, assim é por fim, o divórcio entre artes práticas e ciências, e todo o instrumental das primeiras passou a ser usado nas operações da segunda, embora com objetivo diferente. O cadinho, o alambique, o filtro, etc., etc., entraram pelos laboratórios e permitiram a manipulação da matéria, não para a produção de bens para o uso e gozo humanos imediatos, mas para o estudo, a investigação, a produção do conhecimento e do saber. Ciência e experiência, já agora incluindo experimentação propositada e orientada, se uniram, como senso comum e experiência sempre estiveram unidos. Nessa nova manipulação, destinada a experimentar de forma controlada e com fins bem determinados o comportamento das cousas e, por tal meio, conhecê-las rigorosamente, os instrumentos usuais, fossem os da linguagem ou os da aparelhagem das artes e ofícios, foram sendo refinados e aperfeiçoados, à vista dos novos objetivos, mais amplos e mais profundos, pelo alcance social e o novo saber que implicavam. O importante, porém, porém, é notar que os conceitos formulados e desenvolvidos pelo discurso racional passaram a sofrer o teste da aplicabilidade às condições existenciais. Não mais eram verdadeiros por serem “racionais", porém 51
válidos ou inválidos conforme se revelassem ou não capazes de reorganizar o material qualitativo do senso comum e de o controlar. Aquelas construções semântico-conceptuais que melhor pudessem ser aplicadas na interpretação do comportamento da matéria seria m as mais verdadeiramente “racionais". A razão passou assim a sofrer o teste da experiência e o racional a ser o experimental. Uniram-se experiência e razão, teoria e prática, como unidos sempre foram nas atividades inteligentes do senso comum. Todas essas considerações visam, tão-somente, mostrar como – a despeito das diferenças de tratamento lógico entre o objeto da investigação do senso comum e objeto da investigação científica – o conhecimento humano é, de certo modo, um só, difereciando-se nas suas duas fases, científica ou teórica e prática ou de aplicação, por aspectos apenas relativos ao tipo dos problemas e não intrínsecos ou essenciais. Ressalta então o aspecto mediativo do conhecimento científico, fazendo com que ele verdadeiramente só se complete na aplicação. E não somente se evidencia assim a sua origem no senso comum, como se torna patente a necessidade mesma de voltar, em sua fase de aplicação, ao senso comum. Na aplicação e por meio dela faz o conhecimento científico a sua prova final de validade. Com esse retorno, as conclusões e os resultados da investigação científica (especializada e abstrata) fazem-se as novas tecnologias, ditas científicas, que vão revolucionando a indústria, a produção, a distribuição e toda a vida social e quotidiana dos homens, em extensões cada vez mais amplas do mundo habitado. Infelizmente, diz Dewey, essa profunda infiltração e incorporação dos produtos e resultados da ciência no mundo do senso comum não se vem fazendo de forma integrada e harmônica, como seria de desejar, mas, antes, sob forma desintegradora, produzindo o estado de confusão que caracteriza a nossa época, exatamente, porque não está aquela incorporação sendo acompanhada da mudança de atitudes, crenças e métodos intelectuais, que se faz necessária à luz dos novos níveis a que a ciência vem elevando a vida. Tal fato, de ordem social e não lógica, concorre sobremodo para que pareça "natural" a divisão, senão o conflito, que persiste e por alguns é até voluntariamente alimentado entre a lógica do senso comum e a lógica da investigação i nvestigação científica. Não negamos – diz ainda Dewey – as diferenças entre a pesquisa científica e a pesquisa de senso comum; mas tais diferenças não importam em conflito, senão em tratamento diferente dos objetos diferentes da investigação, num e noutro caso. Temos, com efeito, que a pesquisa científica, visando a descoberta de relações de grandeza e outras relações não qualitativas, eliminou, por isto mesmo, as chamadas "causas finais", operando somente em termos de "causalidade" próxima ou, digamos, de "condicionamento e relacionamento", e ignorando os fins que não encontra na natureza. Já a investigação de senso comum, visando mais ou antes o aspecto qualitativo das coisas, seu uso e gozo é, por excelência, teleológica. Esta diferença, que é real, não importa, porém, em oposição entre um e outro processo de investigação, um e outro saber. A pesquisa científica ignora os fins por uma questão de método, por abstração simplificadora, digamos, e como uma condição para a investigação científica e o seu rigor, a sua exatidão. A ciência suprimiu os "fins" chamados naturais, decorrentes da "natureza" das cousas, porque verificou não existirem os mesmos ou, caso existissem, serem irrelevantes para a sua pesquisa; mas não suprimiu os fins humanos a que não 52
pode e não deve contrapor-se. Muito pelo contrário, trabalha – deve trabalhar – em função destes fins, havendo já estendido enormemente a área em que os fins humanos podem ser atingidos. A ciência, em seus métodos, ignora fins e qualidades; mas produz , como resultado, uma imensa liberação de fins e qualidades, que, em última análise devem se destinar ao bem do homem –- de toda a humanidade. A segunda diferença real entre os dois inquéritos, as duas modalidades de inquirição ou indagação, pesquisa ou investigação, é a da linguagem usada em cada um dos processos. A ciência opera com uma série de dados e um sistema de símbolos e significados extensivamente diferenciados dos dados e da simbolística próprios das indagações de senso comum. Mas, tal diferença, que é suficiente para que não se possa chamar a ciência de "senso comum organizado e sistematizado", não basta para indicar oposição ou conflito. Ainda é uma diferença de método de trabalho e não de objetivos. Na realidade, há tamanha aproximação de objetivos, que a ciência não sendo o simples senso comum organizado, constitui uma força potencial para organizar (ou reorganizar) o próprio senso comum. Essa utilização da ciência na melhor organização do saber do senso comum, entretanto, vem sendo dificultada e bloqueada, socialmente, em virtude da crença em um imaginário conflito entre as duas ordens de conhecimento. Assim como a ciência já transformou os métodos de produção, deverá transformar os métodos de uso e consumo da mesma produção. Mas, por outro lado, a ciência praticamente ainda muito pouco, pôde fazer no campo da moral, da política e da religião. Crenças, concepções, costumes e instituições anteriores ao período moderno, ocupam ainda e quiçá indisputadamente o campo. Daí, o aparente conflito parecer real, chegando a suscitar movimentos de hostilidade maior ou menor à ciência e ao espírito científico e a fomentar dúvida ou negação quanto aos seus benefícios. A casa do senso comum é uma casa dividida contra si mesma. De um lado, conceitos, métodos, instituições que antedatam o aparecimento da ciência; de outro, a casa é hoje o que é devido à ciência. A integração não será conseguida simplesmente com uma teoria unificada da lógica, que governe um e outro campo, isto é, o científico e o do senso comum, mas a existência de uma teoria unificada de lógica é urna condição indispensável para aquela integração. E a teoria da "lógica da investigação" de Dewey, é a tentativa de uma lógica unificadora do espírito humano para a solução, justamente, desse problema. Nem a lógica tradicional, insuscetível de ajustamento à lógica científica moderna, nem o atual movimento de lógica simbólica, interessada apenas na descoberta das formas lingüísticas do pensamento matemático poderão resolver o dualismo se não conflito do pensamento humano científico e do senso comum. Só uma lógica da experiência, uma lógica da investigação e da descoberta, como é a de Dewey, podem ajudar-nos a vencer as falsas divisões, dualismos e conflitos que vêm criando e nutrindo a iniustificada Babel moderna. *
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Mas, o tempo já vai avançado e força é concluir. A teoria lógica de Dewey, note-se, foi aqui apenas enunciada. O seu desenvolvimento completo exigiria um curso e não uma conferência. Mais não desejei, porém, do que chamar a atenção dos nossos estudiosos de filosofia para a hipótese deweyana, tão rica de frutos e de promessas, em momento, como o de hoje, em que vejo em nossas Faculdades de Filosofia ou o deslumbramento por uma redescoberta feliz mas incrivelmente tardia de Aristóteles, ou a fascinação pela lógica simbólica, por certo provocante, mas tão distanciada da experiência, que não creio, com Dewey, se aplique a outra coisa senão a ela própria, ou apenas um setor do pensamento que, em si, não é senão método de inferência, o das matemáticas. A lógica da experiência de Dewey pode ter todos os defeitos, menos o da infertilidade. É a lógica da descoberta e para a descoberta, que deve guiar as nossas atividades usuais de pensamento e de ação, as atividades de aprendizagem da educação escolar e não-escolar, como já guia e ilumina as atividades da pesquisa científica em marcha para se estender aos campos da política, da moral e da própria religião, para os quais irá construir aparelhamento de controle semelhante ao que, nos últimos cento e cinqüenta anos, nos vem dando o domínio do mundo físico, e que, por seu turno, talvez nos possa dar o domínio, pelo conhecimento, do mundo social-humano.
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O ESPÍRITO CIENTÍFICO E O MUNDO ATUAL
DESDE AS ÉPOCAS IMEMORIAIS, pode-se admitir, no homem, um como duplo funcionamento do cérebro, levando-o já a ajustamentos realísticos com o meio, já a transfigurações de certos aspectos do meio para uma adaptação simbólica à existência. Para o ajustamento realístico dispunha do saber prático ou empírico; para o ajustamento simbólico ou espiritual, do saber mítico ou religioso. Pelo conhecimento prático, o seu cérebro modificava o meio em que vivia; e pelo conhecimento mítico, por um lado, o romantizava, para melhor suportá-lo e, por outro, dele, de certo modo, se evadia. Os dois processos intelectuais operavam, entretanto sem consciência de sua própria elaboração, num automatismo que tornava impossível a mudança ou o progresso, salvo por desvio inesperado. Produto de experiência e erro no campo prático e de algum acidente imemorial no campo mítico ou religioso, o saber dos homens se transmitia passivamente, por tradição sempre zelosamente guardada, e, no caso do saber religioso, agravado o zelo pelo caráter de intangibilidade que lhe conferia a atribuída qualidade de sagrado. Qualquer possibilidade de mudança em tal estado de cousas só poderia sobrevir se a criatura humana pudesse ser arrancada do estado de reverência com que se prendia às suas artes ou aos seus mitos, como algo que lhe tivesse sido inexplicavelmente legado ou revelado e cujo segredo jamais poderia desvendar. Tal estado de submissão era, aliás, nutrido e alimentado por toda sorte de temores, ante um mundo misterioso, inseguro e hostil. Como na evolução biológica, o progresso humano, intelectual e social, não é algo de sempre contínuo e fluente, mas um processo também de saltos e mutações. As fases do seu desenvolvimento constituem superações às condições dominantes, que abrem novos horizontes e novas visões. A superação ao prolongado estágio de marcha ao compasso da tradição veio, afinal, a processar-se, quando uma civilização material mais brilhante deu ao homem a parcela de segurança indispensável ao começo de libertação do seu poder mental. Esta nova segurança levou-o a questionar a tradição. Operou-se então, o que costumamos chamar o "milagre grego” O milagre resultou da ocorrência de uma classe intelectual liberta de maiores preocupações materiais e, deste modo, dos temores mais aflitivos, além de curiosamente desligada de vínculos sacerdotais. A "democracia" helênica, nessa atmosfera assim tranqüila e segura, produziu um grupo de intelectuais, marcados de singular independência em relação a certos aspectos da tradição, que empreende nada mais nada menos que a análise, a crítica e a classificação do saber humano, existente – não, entretanto, do saber prático, de logo o digamos, 55
que este não merecia sequer, para uma classe que não o praticava, o nome de saber – mas do saber representado pelos mitos, conceitos e interpretações predominantes entre os cidadãos livres das suas cidades. A contribuição grega consistiu em descobrir um critério para avaliar e sistematizar esse saber conceptual: o critério racional. Tal critério, antes de tudo estético, de proporção, harmonia, medida, constitui, na realidade, o traço que ainda ligaria os gregos a toda a tradição do espírito humano –- antes poético e mítico, que prático ou realístico. Biologicamente, os olhos existem para ver, mas, no homem, os olhos também contemplam e emprestam sigificação e importância simbólicas aos acontecimentos e às coisas. Tal "blasfêmia" biológica – "biologicamente, diz-nos Roger Fry, a arte é uma blasfêmia; temos olhos para ver e não para contemplar as coisas"(1) – parece-me constituir uma chave para interpretar a evolução do espírito humano. O homem, com efeito, já imemorialmente se caracteriza antes como animal estético, do que realista e prático. A sua lenta e penosa adaptação à vida não se fez senão parcialmente no nível prático: somente no que fosse absolutamente imprescindível à sobrevivência física imediata... No mais, a adaptação foi poética e mítica, pela interpretação do mundo ao gosto de seu terror ou de sua fantasia, ou ao peso das tradições que lhe vinham das profundidades do tempo. A faculdade poética do homem levou-o assim a transubstanciar imaginativamente o mundo em que realmente vivia, num mundo de conceitos, sonhos, mitos, costumes milenares, e só parcialmente no dos "fatos teimosos" – os "stubborn facts" de que nos fala William James – da sua existência material e concreta. Essa característica da evolução humana não se interrompe na Grécia. Mas alcança, ali, inesperado desenvolvimento, com a tomada de consciência da capacidade criadora da mente, a mesma mente humana que, por milênios sem conta, vinha, sem o saber, penosamente elaborando, conceitos e visões grosseiramente inexatos, mas romanticamente idealizados, do próprio, homem e do seu universo. Se tomarmos Tales, de Mileto, como o precursor da nova atitude do homem em face de sua própria mente, veremos que a especulação intelectual de uma classe de estudiosos, desligada de vínculos sacerdotais, isto é, do propósito de guardar e conservar cegamente a herança social, tanto quanto da necessidade de trabalhar materialmente, em pouco mais de duzentos anos, dá-nos Sócrates e Platão, este a erguer, ante o espírito humano, uma hipótese de interpretação do universo e do homem, cuja independência da tradição só é superada pela própria amplitude e que ofusca as precedentes criações místicas da mente humana, como um jorro de luz apaga as incertezas e sombras da obscuridade. Com ele, a independência do espírito humano se afirma. O processo contínuo de criação da mente, tomando consciência de si mesmo, faz-se intencional, voluntário, especulativamente experimental, e se critica e se revê nas suas hipóteses e tentativas. O incerto e obscuro pensamento humano faz-se, assim, nesse alvorecer da Academia, algo como um livre jogo feliz, independente e tolerante de 1
Roger Fry, Vision Design, pag. 47. 56
plausibilidades e alternativas. Era o pensamento especulativo que tomava posse de si mesmo. O homem, entretanto, continua dividido entre a necessidade de compreender o universo e a si próprio, para obter a sua integração estética ou religiosa, e a necessidade material, contingente de subsistir. Os problemas mentais para resolver as duas necessidades continuam distintos. As necessidades materiais da vida se valiam da inteligência realística, com a aceitação dos "fatos duros e teimosos" e com o exercício das artes mecânicas e plásticas. As necessidades de integração mais profunda ou mais alta – as necessidades da alma, no sentido em que Platão usa o termo – valiam-se do pensamento mítico; mas, já agora, graças ao mesmo Platão, transformado em especulação metafísica, consciente, deliberada, independente e, por isto mesmo, tolerante e progressiva, embora sem maior exame, baseada na observação do senso comum, cujos métodos – ao contrário dos especulativos – não pretende o novo saber grego desenvolver nem renovar. O passo dado foi, não obstante, imenso. E seria talvez absurdo desejá-lo então mais completo. Os gregos formularam, retificaram o processo especulativo da mente humana e o reajustaram à observação do senso comum. Não chegaram à revisão do processo de observação; mas aí não chegaram porque não lhes poderia ocorrer ainda questionar o próprio senso comum. A sua teoria do conhecimento. foi a teoria que John Dewey chamou do espectador, mais interessado em contemplar o universo, para de algum modo o explicar, do que em dominar-lhe os processos, para de algum modo o controlar. O primeiro passo, entretanto, fora dado, pois tentar deliberadamente esquemas de interpretação de si mesmo e do mundo era o caminho para novos esquemas. A descoberta não estava tanto na compreensão obtida, como na idéia de esquemas, tentativas, ensaios de compreensão e interpretação. A experiência intelectual grega vale, sobretudo, pelo caráter de hipóteses, de plausibilidades, que passou a dar às criações do espírito. A disciplinação do poder conceptual, assim obtida, mesmo como pura experiência especulativa, era a disciplinação do que havia de mais arbitrário, mais inconseqüente, mais obscuro na história da mente humana. Os gregos, por meio de seus jogos intelectuais com as figuras geométricas e as relações matemáticas, descobriram que certas proporções e certas medidas, achadas em suas manipulações com aquelas figuras e com os números, existiam no que lhes parecia belo e composto, e fundaram na equivalência encontrada as suas generalizações de harmonia, simetria e sistema. Por outro lado, as especulações lógicas desvendaram as relações semânticas e proposicionais e lhes permitiram formular a lógica do discurso, com os seus processos dedutivos e indutivos. Era especulação, sem dúvida, de escassa base empírica, mas, de qualquer modo, fundada, controlada, sistematizada e já muito afastada dos aspectos capricliosos ou fantasiosos do conceptualismo anterior, totalmente desligado de qualquer coerência com a observação mesmo grosseira dos sentidos. A observação continuava, em verdade, com as graves deficiências do passado. A ênfase estava na concepção, na descoberta de certas fórmulas matemáticas e lógicas de interpretação da realidade. A observação era utilizada tal 57
qual existia no senso comum da espécie. A mente, pela contemplação dos seres e das coisas, é que concebia, ou revelava o mundo. Não era a observação que estava sob reforma, e sim, insistamos, o processo de elaborar idéias, concepções, teorias plausíveis em face do critério racional, então desvendado, e da observação comum, esta não questionada ainda. Para as falhas possíveis desta observação, produzia a mente as suposições ou idéias, que se tornassem necessárias, naturalmente arbitrárias, por não julgarem possível voltar à observação para lhes rever os dados imediatos. Para ilustrar, basta recordar a teoria grega da gravidade, ou a sua cosmologia, ou as suas teorias de causalidade física. * Para se verificar quanto é difícil o ir e vir de hoje, entre o pensamento especulativo e a observação, que nos, produz o pensamento científico moderno, ensaiemos aqui, embora rapidamente, descrever o processo mental como presentemente o concebemos. Todo o comportamento inteligente de ajustamento às condições ambientes, no homem como nos animais, é um comportamento baseado na percepção de sinais, no seu sentido literal. O fundamento deste saber é a aceitação espontânea, no contacto direto com a realidade, do que parece ser fato. Sobre esta base, apreendida imediatamente pelos sentidos, erguem-se tantas outras suposições ou idéias, quantas necessárias para uma adaptação mental do homem à sua situação ambiente. A imediata e literal apreensão dos fatos ou sinais da existência não tem diferença essencial da percepção animal e produz o comportamento chamado inteligente, comum aos animais e ao homem. A distinção humana consiste não em ser inteligente, mas em pensar. E o pensamento é algo que parte daquele ponto de contacto, imediato com a experiência, em que os fatos são sinais que condicionam o comportamento, para chegar ao símbolo significativo, em que transforma e pelo qual interpreta aqueles sinais (ou seja a realidade imediata), elaborando, então, os conceitos e muitos que passam a determinar o comportamento, não já animal, mas propriamente humano. Por isso mesmo, o pensamento não é originariamente realístico, direto e prático, mas metafórico, poético, interpretativo e, afinal, mítico e mágico. Prático e realístico é o comportamento por ajustamento direto às condições da vida, como que anterior ao pensamento e, embora mais rico e flexível no homem, indiferenciado, em essência, do comportamento animal inteligente. Esse ajustamento produz o saber por familiaridade ( knowledge by acquaintance) e de que decorrem a maioria dos nossos hábitos e o nosso saber prático, derivado dos dados da experiência, aceitos em sua significação espontânea e direta. O pensamento propriamente dito, sucedendo à palavra ou nela se fundando, toma esses dados não como sinais, mas como símbolos significativos, isto é, sinais transformados pela faculdade de interpretação simbólica da mente humana, e com eles joga em busca de relações de coerência e lógica, que se afastam da realidade, 58
tanto mais, quanto o espírito humano estiver desligado das origens empíricas dos seus símbolos. A capacidade humana de transformação simbólica da experiência, entretanto, só amadurece, só se faz adulta e objetivamente eficaz, quando o homem a desenvolve até ao ponto de poder unir a sua percepção dos dados da experiência, como sinais, à percepção deles, como símbolos, retificando nestes toda a parte digamos metafórica e fazendo com que o pensamento simbólico se faça ele próprio realístico, reencontrando-se, assim, no campo do comportamento inteligente primitivo, porém armado já agora de significações muito mais complexas do que as que, originariamente, orientava a imediata conduta, ajustada, porém quase animal do homem. * A valer tão breve descrição do nosso processo mental, como ora o encaramos, já podemos compreender quanto havia de ser inevitável a demorada evolução da espécie humana até o pensamento realístico em que ela, hoje, começa apenas a ingressar. Todo o mecanismo simbólico do pensamento tendia a afastá-la da realidade e levá-la a viver entre as construções do seu espírito, erguidas sobre os símbolos de sua linguagem e desenvolvidas em outros símbolos derivados dos primeiros, numa série praticamente indefinida. Os fatos eram apenas aquelas Gestalten imediatas que lhes apresentavam os sentidos. E daí o espírito humano partia, com as palavras, já elas símbolos, para as interpretações que seu poder de transformação simbólica livremente criava, em face das necessidades lógicas, decorrentes elas próprias do mecanismo verbal e simbólico do pensamento. A saída desse círculo vicioso, que caracterizava o próprio pensamento humano, só podia começar com uma preliminar mudança de atitude dos homens em relação aos seus próprios símbolos, isto é, às suas palavras, aos seus mitos e aos seus ritos. Foi esta mudança que os gregos, inicialmente e em parte, nos trouxeram. Os homens entraram, então, a questionar os seus símbolos, as suas palavras, a indagar até que ponto podiam ser sistematizados, isto é, podiam ser descobertas as suas implicações e relações. Tal atitude de parar e indagar representou o primeiro passo de amadurecimento do espírito humano, o primeiro passo no processo de não se deixar levar pela sua própria capacidade de transformação simbólica, mas de vigiar essa força, de controlá-la, de verificar onde o levava. Com esse esforço, como já dissemos, não pretenderam os gregos rever os dados originais do pensamento humano, ou seja a experiência comum da espécie, mas rever o pensamento mesmo, em essência simbólico, interpretativo e irrealístico, destinado a construir uma interpretação do mundo, e não a conhecê-lo, no sentido moderno do termo e quiçá no sentido prático primitivo, para controlá-lo e transformá-lo. 59
De qualquer modo, chegamos, com os gregos, ao que já podemos considerar as origens do nosso mundo moderno. Começa, então, o homem a formular intelectualmente a sua experiência em uma filosofia e uma ciência, cujo desenvolvimento, a despeito de paradas, de parênteses e divagações, no fundo não mais se interrompe e vem, de estágio em estágio, que menos se negam do que se superam, reconstruindo a visão do mundo e dirigindo ou redirigindo a civilização humana. Devido a circunstâncias sociais e também ao caráter dominantemente especulativo da formulação grega da experiência humana, conservam-se, entretanto, distintos os dois campos do saber humano: o prático ou empírico e o racional ou teórico. Somente merecia o título de conhecimento, de saber – o segundo. O conhecimento prático só poderia fornecer opiniões. Em rigor, somente o conhecimento obtido pela mente, por meio de reflexões e concepções, que não envolvessem o corpo embora utilizassem os dados do senso comum, teria aquele grau de certeza que caracterizaria o saber filosófico-científico, teórico, racional. Para os gregos, note-se, pensamento era atividade; mas, atividade do espírito, não envolvendo o corpo, nem a matéria, e constituindo algo de superior às atividades que importassem em atos materiais de manipular e fazer. Pensar era parcela e atividade divina no homem, sendo Deus o "ato puro", sem mistura com a matéria. Os homens tanto melhor pensariam quanto mais usassem o espírito e mais distanciados ficassem das contingências materiais. Baseado nesse pressuposto, o senso de harmonia dos gregos, ajudado pelas circunstâncias históricas, levou-os a classificar como atividade perfeita a da mente em busca do conhecimento do imutável e eterno, em oposição à de procurar conhecer o mutável, efêmero e passageiro. A filosofia e a ciência eram o conhecimento e a contemplação do absoluto, que constituía a base perene e eterna do fluxo aparente das coisas. O outro saber, o saber mecânico das artes ou o saber prático dos homens, era saber imperfeito e inferior, contingente à condição humana, mas insuscetível de elevá-los ao quase divino da pura contemplação das idéias e das verdades puras. Deste modo substituíram os gregos, é certo, a linhagem cabalística, mítica e ritual dos sacerdotes, dos profetas e dos magos, mas para criar, não ainda a dos cientistas, como os entendemos hoje, e sim a dos escolásticos, antecessores dos nossos professores de hoje. A nova classe intelectual, já destacada da sacerdotal, está interessada no conhecimento pelo conhecimento; é uma nova espécie de contemplativos, cheios de curiosidade, no sentido alto da palavra, mas de curiosidade pelo reino do absoluto, do imutável e do eterno, e de desdém pelo mundo contingente, mutável e frustro dos mortais. (Um novo sacerdócio, o cristão, viria apoiar nesse dualismo a sua teologia e, por mais alguns séculos, retardar a marcha da inteligência humana, mumificando a filosofia e ciência dos gregos como algo definitivo e perene, de que o espírito humano não mais pudesse nem devesse libertar-se). Se havia tal dualismo e as suas conseqüências estão longe ainda de se haverem esgotado, convém, entretanto, assinalar que entre os gregos, não havia, contudo, o dualismo entre filosofia e ciência. Uma e outra eram a mesma coisa ou quando muito aspectos diversos, porém integrados do mesmo empreendimento humano. Fosse Platão, mais dominado pelas preocupações matemáticas, fosse 60
Aristóteles mais envolvido nas considerações lógicas e na classificação e demonstração das coisas, teríamos em ambos o filósofo e o cientista trabalhando de mãos dadas. O conhecimento filosófico fundava o conhecimento científico e ambos se integravam em uma só cosmologia e uma só metafísica. Afora a alegria de conhecer e certa submissão sábia às contingências da vida, que apesar de intelectualmente insignificantes e mesmo indignas de serem objeto do pensamento, eram entretanto implacáveis, – esse saber humano nada mais produzia, revelando-se, por um lado, impotente e, por outro lado, desinteressado, ante os problemas de transformação das condições do mundo. Este continuava a ser conformado, limitadamente e muito lentamente, pelo saber empírico, tradicional, ou de raro em raro ocorrente; pelo saber de experiência feito, pelos conhecimentos práticos e inexatos – assim julgados e na verdade imperfeitos – de "mestres" e "oficiais", dos artesãos, que já existiam na Grécia e continuaram pelo tempo adiante a progredir nas linhas restritas e apartadas da aprendizagem pela ação e pelo trabalho. Os descobrimentos e invenções não eram feitos pela filosofia ou pela ciência, mas por aqueles práticos. (Salvo o episódio de Arquimedes, ainda no tempo dos gregos, mas que não teve seqüência, nem conseqüência.) A filosofia e a ciência antigas estariam, com efeito, preocupadas talvez com a ordenação social da vida humana, porém nada tinham a ver com o seu progresso material. A realidade é que a ciência, como a concebemos hoje, somente pôde surgir e em verdade surge, com a vitória dos métodos da observação sobre os métodos da pura especulação, de que se fez símbolo a famosa e legendária experiência de Galileu na torre de Pisa. Nesse dia, encerram-se os "infindos debates" da Idade Média, a que se refere Whitehead, e, assim como os gregos criaram o "critério racional", para a avaliação e a crítica das nossas idéias e intuições, Galileu cria o "critério da experimentação", para guiar a nossa observação e rever as nossas intuições, conceitos, idéias e julgamentos. Era uma segunda superação, mutação ou salto no desenvolvimento humano, e com ele deveria ter-se operado, afinal, a unificação, sob certo aspecto, dos dois processos imemoriais de saber – o saber prático ou empírico e o saber racional ou especulativo. Porque este, para se confirmar, passou a exigir a observação, antes, e a experimentação depois, e observar ou experimentar não são processos exclusivamente “mentais", mas fundamentalmente operacionais, isto é, materiais, objetivos e concretos. Fazer, então, passou a ser essencial para o próprio ato de pensar. Aprendia-se, fazendo, no mundo do saber prático, empírico ou rotineiro; aprende-se, fazendo, no mundo do saber científico por mais "puro" ou "teórico", descobridor de leis gerais e criador de teorias, que ele seja e continue a ser. Graças à ênfase desse modo dada ao que mesmo Whitehead chama a Ordem da Observação, a Ordem Conceptual iria sofrer nova e verdadeira revolução. Se os gregos deram ao nosso modo intuitivo de conceber o Universo ou à Ordem Conceptual, as suas leis matemáticas e lógicas, Galileu e seus sucessores deram à Ordem da Observação os seus métodos, os seus instrumentos, a sua gradual a crescente exatidão. Nenhuma das duas Ordens poderia mais existir sozinha frutuosamente. Enquanto estiveram ou estejam isoladas, a observação não passa, entre os antigos, do nível do senso comum, isto é, é grosseira, defeituosa e inexata; e, entre os modernos, de estéril acumulação de fatos; e a 61
especulação conceptual, por seu lado, de racionalizadora e não realística, embora, muitas vezes, bela e harmoniosa. A aliança entre as duas ordens é que irá tornar ambas fecundas e produzir o progresso acelerado em que começamos a entrar do século dezesseis em diante, até os dias quase sem fôlego de hoje. * Mas, a despeito da aliança, afinal operada, entre a observação e a especulação, a experimentação e a concepção, por que não se processou até o ponto que já podia e devia ser atingido, a união entre as artes práticas e as artes do chamado saber racional, entre a prática e a teoria? Estabelecido o método experimental, identificado, em sua essência, o processo de obter o conhecimento e o saber com o método empírico, sistematizado, purificado e refinado, que sempre conduziu toda a ação prática humana e a aquisição pelo homem de suas artes e de seus modos de viver, – por que se mantém até hoje a distinção (na realidade, o dualismo), entre a prática e a teoria, o empírico e o racional, o manual e o intelectual, a ação e o pensamento, o útil e o espiritual? É que os hábitos humanos são difíceis de mudar. Afora a adaptação prática à vida, conseguida pelo saber prático, o homem, com o saber teológico ou filosófico buscou, acima de tudo, a sua integração pessoal em um estado de segurança e de certeza. Ora, entre a perfeita segurança – obtida no estágio chamado primitivo, pela aliança com os supostos ou acreditados poderes supremos do universo, por intermédio dos ritos e cerimoniais da religião e, no início de nossa época, pela participação na vida da razão, do sumo Espírito que tudo movia e envolvia e a segurança relativa, que as artes práticas anteriormente e depois a ciência, como a entendemos hoje, lhes podem oferecer, continuam os homens a flutuar, divididos entre os dois mundos, buscando agora os controles da ciência e logo mais a "salvação", ou seja a certeza absoluta que não encontram na segurança relativa e em constante perigo da vida terrena, governada pelas artes práticas ou pela ciência, mas na evasão das condições práticas da existência e no refúgio da religião, ou da filosofia. A vida do espírito, em oposição à vida de ação e trabalho, tal como a imaginaram os gregos, nunca mais pôde ser completamente abandonada, mantendo-se, ao contrário, como uma expressão superior da busca da certeza e do absoluto, que os primitivos punham na religião com o seu mundo sobrenatural, e a filosofia grega pôs na Razão como mundo ideal, liberto das contingências e perigos. Toda a vida humana é, com efeito, uma busca da segurança. Não a conseguindo na vida corrente, a engenhosidade grega procurou-a numa Realidade anterior e superior à realidade do mundo, considerando-a o só e único objeto digno do conhecimento. Em tal realidade, concebida pela mente por um processo de atividade própria, iniciado nos sentidos, por certo, mas somente aí iniciado e resolvendo-se depois em atividade mental pura, encontraria o homem o mundo seguro e absoluto do Ser e não das aparências do Ser. A apreensão intuitiva da essência das coisas, nas suas mais amplas generalizações, constituía o supremo 62
conhecimento, e este conhecimento, a Suprema Realidade. Em rigor, o saber digno de tal nome era assim o saber metafísico, que lidava com o Ser em sua última generalização, e os demais saberes, tanto mais imperfeitos quanto mais mutáveis fossem seus objetos, não passavam de opiniões, sem segurança nem importância, pois se referiam ao contingente, ao variável e diverso, a algo infectado, como observou Dewey, de não-ser, ou seja de não-realidade. O método da razão, apesar de tão harmonioso e tão original, não se destinava, portanto, a emancipar a humanidade do equívoco fundamental de sua existência, isto é, o equívoco de buscar a certeza e a segurança fora da realidade contingente ou do universo. Pelo contrário, era uma confirmação das velhas crenças da humanidade e a formulação intelectual do seu sonho de segurança e certeza fora do mundo, já não em algum céu, mas numa Realidade superior e absoluta, a ser atingida pela mente e pelo saber. É de crer que, se houvessem podido os gregos continuar as suas especulações, acabassem por chegar ao conhecimento científico, como o concebemos hoje, para sobre ele basear um novo conceito de certeza e de segurança. Mas, a queda de sua civilização, o período romano conseqüente, mais de dominação do que de liberdade, e toda a insegurança e confusão relativamente prolongadas da Idade Média não permitiram que se renovassem condições propícias à continuação da sua vigorosa aventura de inteligência. Somente com os grandes descobrimentos, reabrem-se os horizontes humanos e retomam os renascentistas o pensamento grego para lhe continuarem a carreira interrompida. Ainda no transcurso, entretanto, da Idade Média, certos homens estranhos andaram a pensar no verdadeiro saber como algo de semelhante ao saber prático, isto é, algo de poderoso, algo que ensinasse a fazer e refazer as coisas de modo diferente, algo que não fosse puramente estético e, de fato, estático, mas dinâmico, importando no controle das próprias coisas, ao revés da sua contemplação, tão-somente. Os matemáticos, por um lado, retomando a linha das melhores especulações gregas, e os alquimistas, por outro lado, acabaram por se fazer precursores da nova ciência, de que Bacon se faz o profeta. Eram os "fatos", e não os conceitos, a nova paixão... Mas, nem por isto, chegamos de logo à aplicação deliberada do conhecimento à vida. Toda a ciência dos séculos dezesseis, dezessete e dezoito ainda mantém o seu espírito de interpretação do universo, de busca da sua Realidade Verdadeira e não o da procura deliberada dos meios de o controlar. A vida do espírito, a vida do saber ainda são a contemplação, já agora da "natureza", concebida como algo de seguro, de definitivo, de permanente... O caráter ainda, de certo modo, religioso de toda a filosofia dessa fase relativamente recente do pensamento humano, lembra as origens desse mesmo pensamento: – mítico e sacerdotal na antigüidade, secularizado na Grécia, mas, em essência teológico, como teológico se conserva em toda a Idade Média e agora, com a ciência dos séculos dezessete e dezoito, ainda religioso, embora busque desprender-se da teologia, com o artifício de considerar a "natureza" – sistema fechado, mecanicista e materialista, de que Deus seria o motor ex-machina – como algo que pudesse ser objeto independente de conhecimento e contemplação... Continuamos, na realidade, em plena fórmula grega: saber é o conhecimento do definitivo, do absoluto, agora transferido à própria natureza – cujos segredos o 63
homem desvenda para melhor compreender a Realidade e aí encontrar a segurança absoluta porque anseia o seu espírito. A outra segurança, a relativa, a obtida pelo domínio das condições do meio, continua entregue às artes – práticas, liberais e sociais – que, ainda como na Grécia, não são plenamente ciência nem saber. O dualismo, pois perdura e responde a atitudes ancestrais do homem, em face do mundo e de si mesmo... A teoria da evolução, no século dezenove, e a teoria da relatividade, já no século vinte, pontos altos, talvez os mais altos, no desenvolvimento que estamos encarando, é que vêm, afinal, dar-nos as idéias modernas de hoje, pelas quais passamos a compreender o universo e o homem como processo dinâmico de criação permanente, em que natureza e homem não se distinguem, mas são partes do mesmo processo Nesse processo, há começos, continuidades, repetições, terminações – constantes e variáveis – que permitem plano e previsão. E isto é tudo que agora resta das idéias gregas de sistema, de harmonia, de acabado e de perfeito. De posse, afinal, do conhecimento científico das relações e inter-relações dos processos do mundo físico e do mundo biológico, entramos a produzir, voluntariamente, as condições necessárias para pô-los mais do que nunca a nosso serviço. E, então, a ciência deixa de ser apenas a explicação do universo para se fazer o instrumento do seu possível e progressivo controle. A velha profecia de Bacon de que o saber era poder fez-se realidade. Com a aplicação da ciência aos problemas humanos, por meio dos conhecimentos teóricos e técnicos que entrou ela a desenvolver, as artes empíricas se fizeram ou se fazem, em grande parte, obsoletas e, em seu lugar, surgiram e surgem as tecnologias científicas, operando-se, afinal, a real integração dos dois métodos de saber, o racional ou teórico e o prático ou empírico, em um só método, o científico. É a nova visão prática do mundo, em face dessa integração relativamente recente – na realidade de menos de cento e cinqüenta anos – dos dois processos intelectuais da mente humana, que está agora lutando por se afirmar. Os dualismos entre saber mítico e saber empírico, depois entre saber racional e saber prático, entre saber teórico e saber usual, encontram-se, por certo, em fase de desaparecimento, mas não sem choque, pois o espírito humano resiste muito à perda de hábitos milenares. A sobrevivência dos dualismos agora, por exemplo, se insinua, de forma sutil, no dualismo entre o saber científico (o dos fatos) e o saber moral e social, isto é, dos valores, fins e objetivos da vida humana. Costumamos dizer que a ciência nos dá os meios, o poder; mas nada pode dizer em relação aos fins com que aplicamos esses meios. Na realidade, ainda é a concepção do homem como algo de estranho à natureza ou ao universo. Quando muito se aceita que certos fins, como saúde, conforto, segurança física, os fins chamados práticos da vida, podem ser e são resolvidos pela ciência. Mas, os fins tidos como altos, nobres, superiores, sobre estes nada pode dizer a ciência...
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Esta é a última forma que assume o velho dualismo, produzindo, como conseqüência, o progresso das técnicas chamadas materiais e a estagnação dos costumes sociais, morais e políticos. * Por certo que o conhecimento dos fatos e suas leis e o conhecimento dos valores, isto é, dos fins, objetivos e propósitos do homem, constituem campos diversos da investigação humana. Mas, não há razão porque o segundo não possa ser objeto do mesmo processo de descrição, análise e controle por que passaram os fatos do mundo físico. Conhecidos que sejam, cientificamente, aqueles valores, restará sem dúvida o problema de escolha e de preferência, isto é, o problema da aplicação de tal conhecimento, como, aliás, também no mundo físico, conhecidos os seus fatos e leis, resta o problema de sua aplicação aos fins humanos. A ciência da eletricidade não nos manda fazer uma lâmpada ou um motor elétrico, habilita-nos a fazê-los. E se os fazemos é para atender a uma necessidade humana. Ora, as necessidades humanas são também fatos, que podem ser estudados, como são estudados os do mundo físico. A ciência ou ciências dos fatos sociais, econômicos, políticos e morais irão habilitar-nos, como as ciências do mundo físico, a realizar os fins humanos. Mas, dizem-nos certos filósofos, esses fins são algo de arbitrário e inanalisável, são todo o mundo do bem e do mal, dos nossos gostos e desgostos, em toda a sua gama de caprichos, desejos e paixões, para sempre insuscetíveis de regularização e controle. Estamos aí na terra de ninguém do mundo moral, onde impera a força irreprimível da "liberdade" humana. A ciência aumenta o poder do homem sobre a natureza, mas não o ensina a governar as suas escolhas, as suas preferências, os seus fins. A realidade, porém, é que tais fins têm uma origem e uma história, surgem, afirmam-se, mudam e se desenvolvem, do mesmo modo que os processos do mundo físico. O homem tem crenças a respeito do mundo físico e a respeito dos fins por que luta, das diretrizes que deve adotar, dos bens que deseja atingir e dos males que pretende evitar. O estudo destas últimas crenças pode também ser feito cientificamente. A ciência também nos poderá dar a sua gênese e desenvolvimento, e revelar-nos o meio de as controlar. Do mesmo modo que damos como certos e seguros os fins mais óbvios da vida: saúde, alimentação, casa, vestuário, etc. – os chamados "fins materiais da vida" –, também haveremos de chegar a dar segurança e controle aos chamados fins superiores ou espirituais: o do governo da liberdade humana, o da realização da fraternidade e o da felicidade pessoal e coletiva. E, talvez, conforme lembra J. Dewey, esteja aí uma função específica da filosofia em nossa época. O homem nutre hoje crenças a respeito do mundo físico, que a ciência lhe confirma e garante, e está a começar a ter conhecimento a respeito dos valores que regulam a sua conduta; a ciência lhe vai mostrar a gênese, desenvolvimento e praticabilidade de tais valores e, deste modo, lhe dar o controle dos mesmos. A 65
função da filosofia seria a de mostrar como "esses dois modos de crer e conhecer – o dos fatos e o dos valores – podem mais eficaz e frutuosamente se relacionar um com outro" (Dewey), de jeito a permitir que o melhor conhecimento científico regule a nossa conduta prática, em todos os seus múltiplos aspectos. Para a filosofia se transformar nesta disciplina da conduta humana, à luz do melhor conhecimento científico existente e tomando-o como base, será, porém, necessário que se interrompa a milenar tradição que faz da filosofia a busca de uma realidade absoluta, transcendente, superior ou anterior ao mundo, em que a mente humana se refugie. Muito pelo contrário, a filosofia terá de se fazer a mais terrena das disciplinas, ocupando-se exatamente da aparentemente modesta, mas realmente essencial e imensa tarefa de ordenar e inspirar a "prática" da vida humana. Aliás, este teria sido o objetivo da religião, sempre que crenças religiosas tiveram real vitalidade... A filosofia seria hoje quiçá sua humilde substituta, devotando-se à tarefa de estudar como, em face do espantoso alargamento da praticabilidade dos desejos e aspirações humanas, resultante das conquistas e do progresso da ciência, pode cada um dos homens conduzir a sua vida para a plena realização de si mesmo e contribuir, ao mesmo tempo, para que todos os demais indivíduos da espécie logrem o mesmo desiderato. Tais considerações não nos afastam do nosso tema, antes sublinham a necessidade de vencer o último dualismo em que se debate o espírito humano. Estamos em pleno progresso de aplicação – diria antes integração – cada vez mais ampla da ciência à vida, e este fato vem transformando a cidade humana, com ímpeto que não seria exagerado chamar de revolucionário. Primeiro, acreditou-se demasiado candidamente, que a ciência de si e por si mesma traria seus corretivos. Todavia, a ciência, talvez para contornar o inevitável conflito, não com a religião, mas com a teologia e as filosofias dela decorrentes e nela inspiradas, refugiou-se no mundo dos fatos e suas leis, e por muito tempo ignorou e ainda faz por ignorar o mundo propriamente dos valores. E tanto isto fez, que não faltam hoje os que acreditam não haver saída senão na volta atrás aos cânones normativos da tradição clássica grega ou até medieval. A solução, entretanto, está em levar avante a ciência até a nova área, essa hoje terra de ninguém, onde impera a "vontade" humana e em elaborar, com a experiência de hoje e os métodos de hoje, de precisão e segurança, em relação aos valores do mundo moral, social e político, os conhecimentos científicos necessários para a formulação dos novos cânones que agora nos possam dirigir, como os cânones clássicos e medievais dirigiam o homem nessas passadas épocas. Seja em política e organização social e econômica, seja na vida pessoal e coletiva, o certo é que há necessidade de retomar os objetivos da vida e, em face das novas condições, mostrar como os valores – materiais e espirituais – podem ser mantidos e ampliados, para o maior enriquecimento possível da existência de cada um e de todos, no conjunto da espécie humana. Nenhum outro problema é maior, nem mais urgente e mais prático, do que este, e nenhum outro constitui desafio, e o mais poderoso à inteligência humana, no que tenha ela de melhor, mais fino e mais alto. Identificado o processo do saber prático e do saber científico, temos de elaborar uma filosofia que realmente os integre em um só corpo de crenças, 66
relativas ao mundo físico e ao mundo moral, capaz de nos conduzir e guiar nesta etapa convulsa a que chegamos de nosso desenvolvimento. * Sempre que a inteligência humana passa por um período de liberdade – e por liberdade se entenda a ausência de controle imposto e externo ao seu desenvolvimento – há como que uma safra miraculosa, e a mente humana explode em riquezas de imaginação e observação, que abrem novos horizontes à sua suprema aventura. Foi assim entre os gregos, no seu período áureo, e assim com Epicuro e os estóicos; e assim no Renascimento, com o Humanismo e a Reforma; e foi assim, no século dezessete, em movimento que se estendeu até o século dezenove. Agora, neste século vinte, de novo se reacende, e como nunca, a necessidade dessa liberdade para uma tomada de consciência e uma nova superação. A etapa de hoje será a definitiva consagração da visão prática da vida, em que o homem, integrado em seu mundo, busque a sua segurança e a sua certeza, não já em um outro mundo, seja o da razão absoluta dos gregos, seja o do sobrenatural da teologia, mas nos controles científicos que lhe permitam dirigir o mundo material e lhe comecem a dar efetivamente o controle do mundo social e moral. E nunca precisamos tanto de liberdade para o pensamento como nesta fase de crise e transição em que teremos de abrir ou dilatar o horizonte humano, na sua nova, mas ainda perturbada visão científica, isto é, prática do mundo. O próprio vigor da transformação em curso, entretanto, leva não poucos a voltar as costas até a franquias ou conquistas já admitidas e pressentir perigos na marcha livre do pensamento. São velhos terrenos que renascem e que, sob certos pontos de vista, não nos devem surpreender... Com efeito, a nossa espécie existe, digamos, há um milhão de anos, mas somente há pouco mais de seis mil anos descobriu a agricultura. Há apenas uns dois mil e quinhentos anos, descobriu a sua própria inteligência e criou a filosofia, Apenas há uns trezentos anos atrás, descobriu propriamente a ciência, como a concebemos hoje. E somente há uns cento e cinqüenta anos, aproximadamente, entrou a aplicá-la à vida, sob a forma de tecnologia e em substituição às práticas e artes empíricas das lentas civilizações anteriores. Será assim acaso estranhável que o homem ainda não tenha perdido seus velhos terrores e vacile antes os resultados de sua própria infância científica? Nesta infância, com efeito, estamos, com os nossos modestíssimos progressos, em ainda modestíssimas parcelas da humanidade... Onde estão a pequenina ciência de três séculos de idade e as ainda menores tecnologias de pouco mais de um século? – Circunscritas a parte da península européia, às ilhas Britânicas, à América do Norte, à União Soviética e, saltando aqui e ali, a pequeninas manchas, em todo o resto da terra. Dos dois bilhões e meio, se tanto, de seres humanos, talvez nem sequer meio bilhão já se possa plenamente considerar beneficiário das transformações que se vão operando 67
no sentido de ampliar a liberdade humana, isto é, a praticabilidade dos propósitos, desejos e aspirações do homem. Apesar de ser assim evidente o nosso estado de infância em relação à ciência, não faltam os que começam a assustar-se com o seu desenvolvimento e a necessidade de uma tomada de posição em face da revolução que vem provocando. Os novos processos de pensamento, que o método experimental introduziu, dando nova força e eficácia às nossas especulações conceptuais, suprimiram, de fato, muito dos pretendidos encantos pitorescos e poéticos do passado, e, do mesmo passo, deram ao homem poderes que ele ainda não sabe manipular devidamente. E isto o tem levado a descrer até de muitos dos valores que se já habituara a admirar e a amar. Tudo isto, porém, – salvo desarvorado pessimismo – nada mais é do que o resultado daquela mesma infância da ciência e de nossa remediável e conseqüente imaturidade intelectual. Estamos, com efeito, em uma fase de "exploração" dos resultados da ciência, que se poderia equiparar à dos "conquistadores" e piratas da era que se seguiu aos grandes descobrimentos, e que não data de um passado remoto. Deslumbrados com as possibilidades da produção, estamos a "explorá-la" anárquica e extravagantemente; deslumbrados com a possibilidade da distribuição, estamos a tentar "monopolizá-la" para proveito da alguns; deslumbrados com as possibilidades da comunicação, estamos a utilizá-la para fraudar a verdade, vender tolices, editar comercialmente o espírito humano, levando-a à busca ininteligente de falsos confortos e de formas elementares e gregárias de inépcia coletiva. Mas, nada disto é produto da ciência, e sim o resultado dos que a exploram, nesta fase inicial do enriquecimento humano, tomados do susto ainda primordial de que tal enriquecimento, como os anteriores, não passe de simples privilégio de alguns, que importa em conquistar, assim, de assalto, sob pena de desaparecer ou não chegar para eles... Confesso que contemplo toda essa impaciência não sem alguma apreensão, – seja a dos capitalistas que julgam que a riqueza lhes vai escapar das mãos, seja a dos comunistas, que julgam necessário impor à força o progresso material, – mas, não consigo que minha apreensão obscureça a crença em que estou de que o homem superará mais esta crise e se habituará à posse da ciência, saindo da fase de alquimia econômica e social, não para nenhum milênio, mas para enfrentar adequadamente os problemas bem mais interessantes que o esperam, quando o problema material básico (este terrível problema em que se vem esvaindo) ficar, afinal, resolvido, e, na progressiva e nova estabilidade em que ingressar, volte o homem a cuidar dos problemas da distinção humana, não já de uma classe nem de alguns indivíduos, mas de todos e cada um dos indivíduos componentes da sociedade. Não se creia que esteja aqui a manifestar a ingenuidade de um entusiasmo, de muito já superado nos tempos áridos e ácidos deste nosso século. Duas guerras mundiais, nazismo, fascismo, socialismo revolucionário ou comunismo, capitalismo re-exaltado, guerra fria, corrida armamentista sem igual, bombas atômicas e de hidrogênio, ameaças de retaliações maciças, nada disto seria, talvez, de ordem a permitir as considerações quiçá otimistas, que acabo de fazer.
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Desejo correr o risco de assim parecer ingênuo, mas, repito que, a despeito de tudo isso, continuo a julgar razoável o otimismo do nosso tempo. Examinemos, embora ligeiramente, os motivos que julgo haver para alimentar esse otimismo. Que os novos poderes de que o homem moderno se vê possuidor, e que a sua, sob certos aspectos, prodigiosa economia e a tremenda praticabilidade de todo e qualquer projeto de ordem material, entre as nações desenvolvidas, sejam resultado de maior conhecimento científico não há, creio, dúvida possível. Os Estados Unidos ou a União Soviética somente são o que são, em virtude de avanço tecnológico a que ambos chegaram. Tanto é isto verdade que os sistemas sociais e políticos são diversos ou até opostos, mas os resultados são semelhantes, – o que faz pensar, se não prova, que, para o progresso material, não importam tanto aqueles sistemas, quanto a aplicação maior ou menor da ciênci a... Ora, como conseqüência de uma tal verificação, lançou-se a humanidade no que podemos chamar um estado revolucionário. Toda humanidade passou a ver que este progresso, o progresso material, também lhe pode suceder. E a ebulição em que entraram os povos diante de tal fato – nesta nossa América, na África, Ásia e na Europa – é de tal ordem que, a despeito da imensa força dos países já desenvolvidos, a atitude geral destes países já não é de truculência, mas de certo respeito ante a espantosa inquietação. Numa época em que os fortes nunca foram tão fortes, os fracos estão revelando um poder que nunca tiveram... Assim, de modo geral, a despeito de todos os temores de catástrofe, o clima bem considerado da humanidade já não é o mesmo da antiga truculência colonialista, de que foi ainda incrível ilustração a trágica aventura de riqueza do rei Leopoldo da Bélgica, no Congo, já em fins do século passado e princípios deste século, para dar um exemplo somente. De modo geral, pois, a despeito das ameaças, que ninguém pode negar que existam, dos dias que correm, temos motivo de esperar que as coisas não sucedam pelo pior, mas que se conjure o imenso poder dos fortes com a imensa aspiração dos fracos, levando-nos a uma cooperação nova ou de nova espécie, para uma ordem mundial mais justa e mais eqüitativa. * Mas, se este é, propriamente, o clima mundial, já o clima dentro de cada nação poderá ser encarado com igual otimismo? E o clima pessoal de cada indivíduo, o estado de espírito de cada um de nós é igualmente, se não bom, promissor? Reconheço que a resposta, longe também de ser óbvia, já não é tão fácil, as forças liberadas pela ciência são demasiado amplas para o controle individual e não há negar que estamos vivendo um período em que o indivíduo se sente meio perdido, podendo desenvolver estados de espírito, ou de raiva impotente ou de indiferença passiva, ambos perigosos e talvez fatais para a civilização. 69
Esse, parece-me, o ponto crucial e realmente perigoso do nosso momento histórico. Vejamos como podemos focalizar tal perigo e se há sinais de saída para ele. O progresso científico criou técnicas de trabalho de caráter mais coletivo do que individual; tornou possíveis imensas concentrações humanas; propiciou, pelo transporte fácil, organizações de imensa amplitude e, de modo geral, está unificando as nações e, sob certo aspecto, o mundo inteiro, em uma gigantesca organização, manipulada por governos e forças econômicas, constituídos de pequenos grupos de pessoas, transformadas, assim, em seres extremamente poderosos... A nova ordem gigantesca e mecânica e a extrema interdependência humana colheram o homem moderno numa fase de educação individual extremamente limitada, mesmo nos países mais avançados, e de quase nula educação coletiva e política. Daí, dois efeitos e dois perigos. O cidadão passou a se sentir emaranhado em uma ordem tão complexa e de dinâmica tão remota para ele, que não consegue perceber o valor de sua atuação, individual ou de sua participação, quando participe se considere, assumindo então uma atitude de indiferença e irresponsabilidade, cujas conseqüências não podem deixar de ser maléficas para sua conduta individual e coletiva. Por outro lado, os governos e as forças econômicas, ou sejam os funcionários e os homens de empresa, transformados em forças poderosíssimas, também entraram a agir com certa irresponsabilidade, conseqüência, inclusive, de um real e fundamental estado de ignorância, em relação aos problemas que a nova ordem suscitou e suscita. Vejam bem que não estou a analisar o poder absoluto do funcionário público, por exemplo, num estado "totalitário", mas o seu poder inclusive no estado democrático. Mesmo no estado democrático, as condições de vida do homem são as de submissão a uma ordem que ele já não controla, dada a amplitude de seu alcance e aos detalhes de sua ingerência. Se essa ordem se fizer injusta e inumana, haverá meio de poder o homem dela se libertar ou de modificá-la pela sua atuação voluntária? Ou, não lhe restará outro meio senão submeter-se, como se vem submetendo? Duas grandes experiências sociais, uma recente e outra de cerca de dois séculos, vêm produzindo métodos capazes de dar eficácia à ação individual, sem a qual o homem deixará de ser homem para se fazer uma simples engrenagem da ordem coletiva. A mais recente foi a de Gandhi, na luta pela independência indiana: a resistência individual pela não-violência. A outra é a do governo democrático, como o conceberam os anglo-saxônicos, pelo autogoverno local, pela cooperação voluntária e pelo regime da maioria. A resistência não-violenta, a desobediência civil de Thoreau ou a satyagraha de Gandhi, representa o método de ação para situações de opressão e de força aparentemente invencíveis. Experimentado como já foi, tudo leva a admitir que pode vir a ser usado pelo homem, em casos novos, não havendo, assim, motivo para crer que seja impossível lutar contra a opressão e a força, mesmo quando tomam os tremendos aspectos da opressão e da força, nos dias de hoje. O governo democrático é o segundo método para corrigir os perigos da concentração de poder material e de poder econômico da vida moderna. Mas, o governo democrático para se conservar democrático e se aperfeiçoar como tal, 70
exige cuidados especiais dos governantes e dos governados. Exige, primeiro, a mais extrema divisão do poder político, por meio de um regime da maior descentralização possível. Tudo que puder ser confiado à responsabilidade local e à cooperação voluntária dos indivíduos, lhes deve ser confiado. E o regime eleitoral, por outro lado, deve ser de ordem a dar ao indivíduo o sentimento de que seu voto conta. De sorte que todo sistema em que isto não fique muito claro, como sucede com certas modalidades, por exemplo, do sistema proporcional, concorre para que a democracia, como regime de responsabilidade, perca a confiança que deve inspirar. No fundo do regime democrático de governo descansa o velho conselho kantiano: o homem é o fim de si mesmo. É necessário que não se sinta ele utilizado nem pelo Estado, nem por oligarquias, nem por outrem – mas, livre em sua devoção, em seu trabalho, em sua vida. Nesta medida, se sentirá responsável e, como tal um ser social e moral. Porque a moralidade não é uma questão destes ou daqueles costumes: são mesmo historicamente diversíssimos os costumes e instituições humanas. Mas é, sim, questão de como nos comportamos em face aos costumes, existentes ou em formação, da atitude leal e inteligente, à luz das conseqüências dos nossos atos, com que os defrontamos, buscando torná-los tão benéficos a nós e aos outros, quanto possível. Ora, para tal, – e o dizemos voltando ao fulcro de nossas considerações principais e ao segundo grande fundamento da democracia – nenhuma atitude será mais fecunda do que a atitude científica. Tal atitude significa, em essência, a negação de qualquer dogmatismo e a permanente confiança nos métodos organizados de usar a inteligência, tais como se apresentam no mundo da ciência; capazes de progresso e de perene autocorreção. A idéia de causalidade e o método de tudo julgar à luz das conseqüências constituem, na realidade, uma regra de confiante vigilância, que nos pode levar, na vida política, na vida social e na vida moral, aos mesmos progressos a que já nos levaram, na vida material. O aparente (só aparente) efeito desagregrador da ciência, em sua aplicação à vida, decorre de que adotamos (quando o adotamos) o método científico em nosso problema de ordem material, e métodos pré-científicos ou anticientíficos em nossos problemas sociais, políticos e morais. Se usássemos, quanto às nossas instituições de natureza social, o critério científico, poderíamos até tê-las mudado, em alguns casos, para pior; mas, o método depressa nos revelaria os erros e estaríamos em condições de progredir, quanto a elas, do mesmo modo que progredimos ou mudamos nas artes chamadas materiais da vida. O que não podemos é mudar as condições materiais da existência e fechar os olhos às mudanças inevitáveis, por conseqüentes, dos outros aspectos da vida. O que importa é analisar e estudar, para proceder, segundo o método aprovado da ciência, de acordo com o que melhor e mais perfeitamente tivermos apurado. Calcula-se hoje que estamos a progredir de uma década para outra na proporção de um para dois, no desenvolvimento de novas tecnologias. O quê significa isto? Que, se considerarmos igual a 1 o índice do progresso na década de 890 a 900, isto é, na última década do século XIX, o índice da nossa década de 50 a 60, será 64. Entre 1890 e 1960, teremos multiplicado o nosso progresso 64 vezes. E assim está acontecendo, na verdade, embora não em todo mundo e para toda a humanidade. Qual não seria o nosso progresso político e moral, no dia em que 71
adotássemos o mesmo caminho, nestes setores bem mais importantes para a vida humana? A ciência nos está dando o progresso material e também nos dá – o que é mais importante – um método de permanente revisão deste mesmo progresso. O impacto das mudanças ocorridas só não é integralmente benéfico, porque muitas das suas conseqüências não são analisadas e julgadas pelo mesmo método que as produziu. O problema não é, não deverá ser nunca, porém, o de voltar atrás, nem o de deblaterar contra a natureza humana, mas, o de buscar criar para o homem condições de conhecimento e responsabilidade suficientes para ele se comportar, hoje, reajustadamente, como se julga que se comportava antigamente, de acordo com os padrões e normas das respectivas épocas. A extensão da ciência ao mundo dos valores virá completar a obra da ciência, iluminando a visão prática e terrena da vida, que ela já produziu, ou está inspirando, com o sentimento das riquezas morais e espirituais da nova existência do homem num mundo por ele conquistado e domesticado. De todas as falácias de nosso tempo, nenhuma conheço mais grave do que a de dizer que a falta de verdades dogmáticas nos levaria ao ceticismo total e ao niilismo. A ciência não é cética, embora falível. A falibilidade é uma forma negativa de indicar a sua capacidade de acertar. A ciência, quando erra, tem, insisto, nos seus próprios métodos a sua própria correção. Logo, nenhuma outra direção pode ser menos cética e, ao mesmo tempo, mais humilde e mais vigilante. A generalização do espírito científico a todos os aspectos da vida é, nos dias de hoje, o mais seguro penhor do progresso político, social e moral do homem, e, em verdade, seu melhor guia, seu melhor conselheiro e seu melhor viático.
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6 MUDAR: CARACTERÍSTICO DA CULTURA CONTEMPORÂNEA(1)
ENTRE OS GRANDES CICLOS VITAIS da existência humana a que se referem os antropólogos, devemos, no Brasil, acrescentar o da "formatura". As próprias designações – "formatura", “formado", "doutor formado" – marcam o sentido final que emprestamos a este ciclo da vida. A cerimônia com que celebramos o seu encerramento sai do âmbito da escola e da própria universidade, para se fazer festa da comunidade inteira. É que a nossa sociedade se encontra entre aquelas que mais são motivadas pela educação escolar. Constituindo a escola, entre nós, o processo por excelência de seleção e classificação dos indivíduos, a "formatura" marca, com a terminação dos cursos, o ingresso do diplomado no quadro dos que vão inspirar e dirigir – e deste modo servir – o país. Somos algo como o “cavaleiro" da Idade Média, o "gentil -homem” do século dezoito, o "mandarim" da velha China... Queiramos ou não, uma espécie de nobreza doutorada. Nessa aristocracia, sois vós, os diplomados da Faculdade de Filosofia, um dos grupos mais jovens (ontem éramos todos ainda autodidatas!) dos profissionais de nível superior, os profissionais do magistério, incumbidos de transmitir, como mestres, a herança cultural da espécie, nos seus aspectos mais específicos e conscientes. A transmissão da cultura é, em grande parte, algo de automático. O característico de uma verdadeira cultura "tradicional" é um estado de aceitação e integração social tão completo e perfeito que, de certo modo, dela não se pode ter consciência. "Culturas", nesse estado, transmitem-se espontaneamente, pelo exemplo, pela convivência, por irradiação direta do contacto social. Há muito em nossa cultura de hoje que se transmite ainda assim. Por essa transmissão cultural é que somos de nosso país, de nosso tempo, de nossa gente, de nossa classe. Não são necessárias escolas para que o indígena reproduza culturalmente o indígena, o francês, o francês, o brasileiro, o brasileiro e assim por diante. A escola, e com ela o magistério, somente surgem quando a “cultura" passa a carecer de cuidados especiais para se reproduzir, ou seja, para guardar e conservar seus aspectos determinados e conscientes. Em rigor, a escola surge quando a cultura se faz assim intencional e voluntária e necessita de meios ou instrumentos artificiais, cujo uso tem de ser "aprendido", para se reproduzir e se conservar sem alteração.
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Discurso do Professor Anísio Teixeira, paraninfo da turma de professorandos de 1959 da Faculdade Nacional de Filosofia, no dia 19 de dezembro de 1959. 73
Vem daí que as primeiras formas conscientes de transmissão de cultura – ou seja, de escola – vamos encontrá-las em cerimônias de iniciação ou rituais destinados a gravar e fixar, com a necessária incandescência, certas atitudes e comportamentos, reputados importantes senão indispensáveis à sobrevivência cultural. Em contraste com a educação espontânea, a educação escolar, a escola, por mais rudimentar que seja, importa sempre em esforço consciente para conservar, para manter a identidade da cultura. O fato de assim buscar conservar-se revela já estar a cultura cônscia da possibilidade de ser modificada. Que busca a escola conservar? As invenções mais caras ao espírito humano: imagens, visões, esboços de formulação consciente da própria cultura, encarnados nas simbolizações mais significativas, nos ritos, cerimônias, histórias, lendas e sagas; e, em período muito posterior, os próprios meios materiais de registro dessas experiências humanas, meios que culminaram, finalmente, na escrita. De posse desses valores, em rigor espirituais, integrantes de sua cultura, um povo percebe quanto está aberta a possibilidade de sua modificação, seja pela perda desses valores conscientes, seja pela sua alteração ou renovação. A escola, criada para impedir a sua perda, ou modificação, não pode deixar de sentir-se, ao mesmo tempo, instrumento de sua possível modificação. Contra isto é que atua o propósito consciente de inércia, que domina toda sociedade, forçando a escola a se manter a mais conservadora das instituições, a instituição, por excelência, de defesa do status quo. Impossível será exagerar o vigor e a eficácia com que esse propósito se afirmou através da História. Graças a ele, a civilização neolítica ou seja a civilização da agricultura pôde ser conservada até os nossos dias, nela ainda se encontrando cerca de dois terços da humanidade, que vivem hoje no puro e simples esforço para a sobrevivência física, entre a vida e a morte, com intervalos de cerimônias religiosas, que lhe aliviam o imenso e contínuo desespero de viver. O instinto animal e grau considerável de inconsciência é que dão ao homem a sua vigorosa saúde mental e impedem o imenso rebanho humano de sucumbir a acessos neuróticos de suicídio em massa. Nos últimos séculos, entretanto, por entre mil obstáculos e vicissitudes e vencendo o secular conservadorismo humano, vem medrando um novo tipo de civilização, a civilização industrial, fundada na ciência. Esporádica e acidentalmente, essa ciência sempre existiu entre os homens e outra não foi a fonte de seus instrumentos de trabalho, de ação e de fantasia. Criados porém tais instrumentos, esqueceram os homens o segredo de sua descoberta, quase sempre aliás acidental, e se fecharam num tradicionalismo inerte e cego. Só recentemente logrou o homem reformular esse método milenar da descoberta pela experiência, dar-lhe a sistematização necessária e nele fundar a própria sociedade. Ao contrário da civilização anterior, que institucionalizara a não-modificação, a nova civilização institucionalizou a modificação. Somos, agora, uma civilização que muda de dia para dia e que se orgulha de mudar. Criou-se a "tradição" de mudar. Não nos apressemos, contudo. Há mudança e mudança. Indagando-se dos guardiães de nossa sociedade se está ela mudando, responderão que mais do que nunca se fundam suas estruturas em "verdades eternas e imutáveis", tão sagradas que nada menos do que traidores serão os que pretenderem modificá-Ias. 74
Para conciliar com o espírito tradicional da velha estabilidade, as terríveis mudanças ocorrentes, costumam os homens admitir como área suscetível de mudar a que chamariam do "material", nada podendo ser mudado no campo do "espiritual”. Em outras palavras, tudo pode mudar no caso da "natureza" e nada no campo do "homem", erguido este a nível acima e fora da “natureza".
A realidade, entretanto, é que a chamada "ciência" nada mais é que a formulação, sistematização e extremo refinamento do processo imemorial e inconsciente do aprender por experiência, ou seja, do processo de criar os instrumentos do conhecimento e do saber e à sua luz modificar o comportamento humano. Modificações outrora puramente acidentais e depois conservadas religiosamente e mesmo à força, primeiro pelo receio de perdê-las, e mais tarde, pelo receio de que se alterassem, passaram agora a ser promovidas sistematicamente e com tal ímpeto, que o maior episódio de nosso tempo é o da competição entre as grandes nações da terra na corrida de progressos e inovações. Este é o fato novo que lhes desejaria trazer hoje à lembrança. O método imemorial do conhecimento experimental atinge, enfim, a sua formulação definitiva e, pela primeira vez na História, é considerado suficientemente importante para dominar a atenção de todos os homens e, sobretudo, daqueles a quem a sociedade confiou a sua defesa e guarda. Desde o começo da história tiveram importância, sem dúvida, as invenções, mas já os inventores não tinham tamanha importância e o "processo de inventar", nenhuma importância. A novidade dos dias de hoje é que o "processo de inventar" tem importância máxima. Aonde nos poderá isto levar, não está em nosso poder dizê-lo. Todos sentem que é a revolução das revoluções. Até hoje, com efeito, o ato de pensar – matriz, sem dúvida, de todas as invenções – foi, entre os homens, o mais vigiado de todos os atos. Os grandes violadores do pensamento convencional, todos os grandes inovadores foram sacrificados pelos “guardiães" do rebanho. E sobretudo eram mortos os que julgassem possível um novo pensamento religioso, moral ou político. Sócrates morreu porque julgou possível a dúvida, o problema, a questão, a pergunta. Jesus morre porque deseja substituir a “r esposta" convencional por outra mais generosa. No sentido religioso e político até hoje não se escreveram documentos mais revolucionários do que os evangelhos, que nos dão conta de sua vida, sua mensagem, sua morte. A própria Igreja Católica, fundada, é verdade, mais na morte de Jesus do que em sua vida e mensagem, vê-se abalada nos seus alicerces quando um dos seus fiéis resolve iniciar um movimento pela leitura e interpretação independente dos evangelhos. Desencadeia o fato longo período de guerra civil na cristandade. Mas, afinal, as facções se recuperam e, de um lado e de outro, protestantes e católicos restabelecem a tradição e passam a guardá-la com o mesmo zelo antigo, protegidos pelo "braço secular" agora mais do Estado, ou seja do Império, do que da própria Igreja. Não me irei estender aqui na história antiga mas sempre comovente da repressão do impulso humano de rebeldia. Realmente é extraordinário que não tenha ainda morrido tal espírito. Costuma certa malícia muito velha da história, respondendo a sugestão de governo de Platão, indagar: "Qui custodiet custodes?" para significar que jamais poderá a humanidade confiar nos seus guardiães, ainda que filósofos, conforme a lembrança platônica, pois, quem os haveria de guardar? Bem sei que os guardiães podem corromper-se e tirar proveito de sua posição. Mas se interpretarmos 75
a frase como dúvida sobre a fidelidade de principio dos guardiães, toda a história humana a negaria, pois, nunca partiu deles a fagulha revolucionária e quando algum, dentre eles, a quis lançar foi prontamente destruído. Quem guardaria os guardiães? Eles próprios e seus interesses na conservação do status quo. De modo que a pergunta certa seria não quem guardaria os guardiães mas quem os despertaria, quem os impediria de guardar demais o que lhes tivesse sido confiado. Seja o sacerdote, seja o erudito, para indicar os dois mais significativos "guardiães" da história, nenhum dos dois precisa de ser guardado, pois guardarem-se guardam-se eles e com tal empenho e tamanho zelo, que o difícil será arrancá-los de sua apaixonada complacência pelo que existir. Ao apontar assim o gosto do homem pela conservação do seu pensamento e o receio de sua modificação, poderá parecer esquecimento não indicar a exceção, um como intermezzo de liberdade, que marcou o período entre o século XVIII e o século XIX, mas, sobretudo o da segunda metade deste último. Nesse período, viveu, com efeito, a humanidade uma extraordinária experiência de liberdade de pensamento, talvez a maior da História. Quase se admitira a possibilidade de a liberdade vir ser definitivamente institucionalizada. Grande número de constituições inscreveram o princípio em seus textos. Separaram-se as Igrejas dos Estados, proclamando-se que as crenças religiosas eram assuntos privados, em relação às quais o Estado apenas influiria no sentido de mantê-las livres. Os que ainda lêem a literatura desse período, e falo assim porque parece que muitos dos jovens de hoje já não a lêem, ficam maravilhados com a liberdade de espírito dos escritores dessa época. Aqui e ali, havia intolerância, mas o mundo considerado civilizado ria-se dessas estreitezas e os escritores e pensadores no campo da religião, da ciência, da estética, da política e da moral – sentiam-se livres para acompanhar as idéias até o fim, segundo o conselho de Platão, ou até onde o pensamento humano pudesse atingir, corno repetia G. B. Shaw. As intolerâncias somente vieram a ressurgir já em nosso século, depois da Primeira Guerra Mundial, anunciadas pelos profetas que, tão significativamente, passaram a chamar de estúpido o século XIX. Até hoje persistem elas, agora dramatizadas nesse conflito entre duas teorias econômicas ou talvez apenas entre duas políticas hegemônicas, conflito a que se quer dar caráter religioso, senão teológico, como que para melhor lembrar o conflito que dividiu protestantes e católicos, nos primeiros séculos de nossa era. De qualquer modo, vem este conflito suprimindo o espírito de liberdade, que a humanidade prelibou no interlúdio do século XIX. Todos vós, que aqui hoje colais o grau universitário, já nascestes e fostes criados numa atmosfera de dogma, de rudes certezas, de crenças apaixonadas e de desprezo pelo espírito de dúvida, de ceticismo científico, de verdade hipotética e provisória, de revisão, de razão, enfim, porque o característico dos períodos sem liberdade é a luta contra a razão e o racional. Será que estamos próximos a encerrar esse ciclo de paixão e estreiteza? Há indícios de que sim. Talvez possamos esperar que a guerra civil, em que se acha mergulhada a espécie, venha, pelo menos, a perder a intensidade. Assim que tal se der, o espírito de liberdade voltará a florescer entre os homens. E a nossa tarefa, de mestres e professores, poderá vir a ser a nova tarefa de transmitir não a tradição mas a revisão da tradição. Com os progressos efetivados, malgrado tudo, na arte de pensar – é certo que muito mais no chamado "mundo da natureza" do que no chamado 76
"mundo do homem" – temos motivo de afirmar que nenhum de nós estará em condições de prever até onde poderá ir o pensamento humano. Por menos que valham as analogias, é difícil evitar a comparação. Não será que estamos, neste fim do século XX, como outrora no século dezesseis, divididos entre conquistas incomensuráveis no campo do universo físico e uma melancólica luta político-religiosa? No século XVI, a contradição era entre as descobertas dos novos continentes, pelas quais ingressamos nós na História, e as guerras de religião; hoje seria entre as descobertas científicas, que definitivamente inauguram o processo pelo qual a miséria e a pobreza se tornarão tão obsoletas como os sacrifícios humanos do início da era neolítica e, do outro lado, a querela político-econômica entre os processos de desenvolvimento social, que se desejam erguer ao nível de duas religiões. Aqueles, entre nós, já de idade provecta, como este vosso humilde paraninfo, conheceram a liberdade e a paz espiritual entre os homens e podem dela recordar-se, recordando os autores e escritores do século dezenove. Foi toda uma plêiade de gigantes, de que resta um ou outro ainda vivo hoje. Daí por diante, não houve mais liberdade real de pensamento, nem mesmo para os pensadores e escritores. Faço esta reserva porque total liberdade de pensamento jamais houve na História. A liberdade que se registrou foi no pensamento escrito, e publicado em livros, pela simples razão, que os "guardiães" acabaram por aprender, de que os livros eram lidos por muito poucos, não constituindo assim perigo maior. Até hoje, no Brasil, por exemplo, goza-se de muito mais liberdade intelectual no livro do que na imprensa, no discurso ou na aula. Ora, se tais condições se modificarem e algo de parecido com o clima do século XIX – um clima de paz intelectual – se restabelecer na Terra, e a isso juntarmos os progressos realizados no campo da grande arte humana, que é a arte de pensar e de saber, que horizontes não se poderão abrir ao espírito humano? Pertencemos, queiramos ou não, ao grupo sempre crescente dos "guardiães". Somos os guardas e transmissores da cultura. Temos uma grande tradição de medo e de conformidade e uma pequena e sempre viva tradição de rebeldia e de inconformidade. Se a paz intelectual se restabelecer, a segunda tradição ganhará ascendência e, com os novos métodos, a nova disciplina e a nova segurança da arte de pensar, poderemos marchar com ousadia e coragem, sem nos assustarmos nem assustar os demais. A velha timidez e os velhos receios já não terão razão de ser. Conheceremos melhor a arte, poderemos exercê-la com mais equilíbrio e os nossos semelhantes continuarão a vigiar-nos, não para nos punir mas para nos estimular. São eles que nos perguntarão pelas nossas descobertas. Já estamos assim no campo das ciências físicas. No campo do econômico, marchamos para estádio semelhante. Os novos métodos de pensar depressa chegarão aos demais setores. E serviremos, então, à sociedade na medida em que colaborarmos na marcha desse pensamento humano, força que afinal estamos aprendendo a usar e que, por isto mesmo, haveremos de conquistar a liberdade de usar. Seremos, então, não apenas os guardiães do passado, mas os profetas, os videntes, os antecipadores do futuro e, no final de contas, os seus promotores. Voltando dessas considerações gerais sobre o nosso tempo para o exame do momento nacional, é fácil ver que estamos imersos no que se vem chamando "a 77
revolução das expectativas", a revolução da esperança, havendo perdido, ao que tudo indica definitivamente, o espírito de resignação e de aquiescência, tão indispensável para a manutenção do status quo. Estamos em marcha para nos organizarmos e produzir, no ritmo e com os métodos da civilização industrial, a fim de vencermos a miséria e o subdesenvolvimento. A nova civilização tem exigências educativas. A transformação é a mais radical que se pode conceber, até agora somente se encontrando em seus estádios avançados alguns poucos países globalmente industrializados. Um dos mais profundos resultados dessa nova civilização é a menor importância da riqueza individual, porquanto passarão a ser acessíveis a todos as coisas que a riqueza costumava trazer aos ricos e que dela faziam um privilégio. É evidente que a riqueza perde, com isto, a sua motivação natural e, em rigor, está a caminho de se tornar obsoleta. Já imaginastes o que será uma sociedade em que a riqueza individual seja um mal a evitar? Ouso dizer que talvez não estejamos assim tão longe desse estádio. E se isto vier a acontecer, pode-se bem prever o alargamento da tarefa educacional, da tarefa que afinal nos cabe de transmissores da cultura, de uma cultura, dia a dia, menos espontânea e mais artificial, especializada e complexa. Cerca de dois terços, se não mais, da humanidade, ainda vivem da mão para a boca, no esforço duro e cruel da sobrevivência física. Se conseguirmos o controle dos nascimentos como já vamos conseguindo o controle da morte prematura e se a todos for dado o necessário para a vida material, as perspectivas que se abrem para o homem, serão não já as de cuidar da morte, mas as de tornar a vida interessante e significativa. Até hoje o conseguimos, por mais paradoxal que isto possa ser, graças ao medo e a uma sombria economia da pobreza. Se conseguirmos a economia da abundância, que já se anuncia nos países desenvolvidos, teremos perdido aquelas forças, truculentas mas eficazes, que não deixam ao homem outra saída senão a formação e a disciplina. As necessidades da educação consciente e formal passarão daí por diante a ser muito maiores. Este é o desafio aos professores de amanhã. Este é o desafio que nos trazem os tempos presentes. Além do desenvolvimento econômico, em que estamos todos imersos, há uma extrema necessidade de desenvolvimento educacional. Sem desconhecer que essa educação, sob muitos aspectos, será uma educação que nos habilite a tomar sobre os ombros a tarefa dos novos métodos e processos da produção material, cabe-nos não esquecer que esse desenvolvimento traz consigo a necessidade de uma nova disciplina e um novo interesse para o homem assim liberto dos mestres – trágicos, por certo, mas sem iguais – que eram, para ele, a necessidade e o medo. A tarefa do educador, do mestre, do professor, longe de estar, como tantas outras, em declínio, é tarefa e missão que estão apenas a surgir. Não é só a complexidade da cultura a transmitir que nos enche de temor e respeito, mas sobretudo, o sentido de missão do nosso trabalho, pois, cabe-nos transmitir o gosto e o hábito por uma cultura dominantemente consciente e mutável, em oposição à fácil cultura anterior, toda ela inconsciente e uniforme. 78
Aliás, este é todo o perigo do nosso tempo. A nova civilização, ora em vias de substituir a antiga civilização agrícola poderá, mais ainda do que esta, ser puramente mecânica e lançar o homem em estados jamais vistos de passividade, ou sua contrapartida, a excitação vazia. Somente educação e cultura poderão salvá-lo. A batalha educacional será a grande batalha do dia de amanhã. Vencida a tarefa econômica, redimido o homem do seu invencível medo da pobreza e da necessidade, teremos a educação e a escola como o maior, o mais amplo, o mais crucial problema humano. Neste dia em que celebrais a vossa festa de formatura, venho trazer-vos, com o abraço de vossos mestres e o meu próprio, e por entre arremedos de previsões e profecia, esta advertência, cuja gravidade desejo amenizar com a saudação mais afetuosa e os melhores votos para que possamos sempre estar à altura da imensa tarefa, a fim de a transformarmos em missão e prazer.
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A UNIVERSIDADE E A LIBERDADE HUMANA(1)
MUITO DA ANSIEDADE e sentimento de perigo de nossa época decorre de não querermos ver os problemas e crises do presente dentro da perspectiva histórica, como etapas de um desenvolvimento contínuo da espécie, na sua lenta adaptação ao novo tipo de tradição, que a formulação racional do pensamento vem, há dois mil e quatrocentos anos, procurando implantar e que, a despeito dos rápidos períodos de afirmação, está longe ainda de ser a generalizada e universal tradição da humanidade. Esta tradição é a tradição da liberdade e da razão, de que a Grécia se fez, por um extraordinário concerto de circunstâncias, um paradigma legendário. Tão legendário que Whitehead sugere, caso a nossa civilização devesse ter o seu livro sagrado, que aos três primeiros evangelhos cristãos se acrescentasse a oração fúnebre de Péricles, como o quarto evangelho, em substituição ao apocalíptico S. João. Com efeito, se de muito parece estar encerrada a evolução biológica do homem, a sua evolução como animal racional está apenas iniciada. Cento e vinte gerações nos distanciam das primeiras civilizações históricas, pouco mais de noventa do século de Péricles e apenas doze nos separam, melhor diria, nos unem a Descartes. A tradição intelectual, que os gregos tão exemplarmente iniciaram, é, portanto, uma tradição nova, cujas vicissitudes, nos últimos vinte e quatro séculos, são as vicissitudes da idade histórica, a culminarem, em nosso tempo, tão aparentemente tumultuoso, mas, na realidade, tão esplendidamente promissor. Se recuarmos, com efeito, aos últimos três mil anos, isto é, há cento e vinte gerações passadas, encontraremos o homem ainda imerso em sua fase de integração instintiva, conformado a uma rotina milenar, suscetível de progressos acidentais, decorrentes de lampejos passageiros de inteligência espontânea ou de rigores momentâneos de organização pela força. Somente por volta de quinhentos a quatrocentos anos antes da era cristã é que duas tentativas intelectuais marcam o aparecimento da possibilidade racional de organização da vida humana – a de Confúcio, na China, e a de Péricles, na Grécia. São dois momentos, entretanto, já de tamanha altura, representando, por certo, o desabrochar um tanto súbito de flor que séculos de germinação silenciosa e invisível vinham preparando, que, se a humanidade fosse algo de uniforme e homogêneo, a civilização, como a compreendemos hoje, teria ganho, desde então, a aceleração a que somente nos últimos três séculos estamos assistindo. Mas, o novo progresso, de que tanto a experiência de Confúcio quanto a de Péricles nos dão testemunho, a adaptação do homem à razão, não era um progresso biológico da espécie, e sim um progresso a ser aprendido pelos indivíduos, um a um, e
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Contribuição à Terceira Assembléia Geral da União de Universidades da América Latina 80
que só lentamente poderia ser traduzido em novas instituições, suscetíveis de concretizá-lo em uma organização social. Na realidade, este progresso decorria do aparecimento de uma nova arte, da grande arte descoberta para a tradição ocidental pelos gregos, a arte de pensar, de reformular os objetivos humanos, de criticar-lhes as premissas, de especular sobre os pressupostos em que estas se apoiavam e deduzir as conclusões, arte que se destinava a criar um novo homem e a fazer das civilizações não o resultado do jogo mais ou menos cego de acidentes históricos, mas a conseqüência do exercício lúcido dos seus recursos mentais, na melhor utilização dos recursos naturais. O problema da liberdade humana, isto é, do livre desenvolvimento do homem só então se ergue ante a sua consciência. Até aí, a vida humana participava do mesmo determinismo obscuro da vida dos animais, na realidade da de um primata mais desenvolvido, que se havia acrescentado de instrumentos e de linguagem, em sua luta com o ambiente e com a complexidade de sua própria vida mental. Na Suméria, no Egito, na Babilônia, ou mais para o Oriente, o homem não sabia se era livre ou tiranizado, aceitando a "organização" imposta à vida, do mesmo modo que aceitava o sol ou a lua. A sua vida mental, ainda instintiva, era parte desse conjunto de coisas que lhe moldava a existência e a fazia transcorrer entre satisfações, temores e sofrimentos. Podia essa vida mental, por intermédio de mitos e rituais, aplacar-lhe os medos primordiais, mas faltava-lhe todo e qualquer caráter especulativo – não lhe permitindo indagações, nem sugerindo alt ernativas. Se quisermos ir mais longe, poderemos dizer que toda a herança do Oriente, inclusive, de certo modo, até a de Confúcio e a de Buda e a dos hebreus, nunca passou da fase explanatória e não indagadora, buscando antes explicar porque a vida era assim, do que abrir-lhe uma perspectiva nova. O próprio Jesus – a não ser pela frase, talvez apenas circunstancial – "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" – não chegou a aflorar o problema da liberdade humana, no aspecto em que aqui o examinamos. E a sua doutrina do reino dos céus fez de toda a imensa experiência cristã uma experiência de evasão deste mundo; por conseguinte, de aceitação de suas condições, como se apresentassem. Naquela frase, entretanto, lançou as bases de uma dualidade de forças de organização, Deus e César, em que se pode lobrigar um principio de liberdade, implícito na limitação inevitável do poder de César. Com os gregos e a sua descoberta da especulação intelectual é que viemos, porém, a abrir reais alternativas para a organização da vida do homem, e, por conseguinte, a suscitar a possibilidade de sua liberdade e o problema de efetivá-la. Descobrindo a razão e formulando o conhecimento racional, os gregos criaram uma nova fonte de direção para o comportamento humano, independente, de certo modo, do determinismo dos costumes e dos hábitos e das condições imediatamente naturais, por isto que todas essas limitações passaram a sofrer a análise da mente humana e a serem traduzidas em idéias e modos deliberados de conduta e ação. O homem, com efeito, até então, sujeito ao império inelutável do que os próprios gregos designaram de "Destino", concepção a que já antes chegara o gênio helênico, ultrapassando a dos deuses, pois o Destino até a estes governava, o homem, em face da descoberta do racional, via-se em condições de dar um novo nível à sua adaptação 81
à vida e de estabelecer a "liberdade", que seria o direito de não sofrer outra submissão senão a submissão à "verdade", buscada à luz da razão. Nascera, na vida humana, uma nova força de organização, independente da força bruta, independente da tradição estabelecida, e são as vicissitudes dessa nova força e de sua luta para fundar um regime de liberdade humana que vão constituir a história da espécie nestes últimos vinte e quatro séculos. Nem a experiência do Oriente, nem a dos egípcios, nem a dos hebreus – a despeito de todo o saber empírico, mágico e religioso que vieram a possuir – chegou jamais a questionar-se a si mesma e a tentar analisar a própria validez e a das suas conclusões intelectuais. O pensamento humano até então foi sempre um simples e direto resultado das práticas existentes, com acidentais lampejos intuitivos e iluminantes sobre a natureza humana. A sua função era explanatória e não indagatória. Somente com os gregos, repetimos, é que o próprio pensamento passa a ser objeto de análise e se procura descobrir-lhe o método e discutir-lhe a validez. Voltado sobre si mesmo, o homem especula sobre a sua própria natureza, sobre a vida social, sobre o mundo, sobre os seus hábitos de pensar, de sentir e de agir e se arma de um poder novo: o de rever e reconstruir esse pensar, esse sentir e esse agir. Nascera, na realidade, a tecnologia das tecnologias, a arte de pensar voluntária e deliberadamente e de descobrir, assim, novos conceitos, novas idéias, novos modos de ver e de fazer, que transformariam o acidente da civilização no processo contínuo de civilização que daí, então, haveria de se tornar possível. A capacidade intelectual do homem passou a se exercer de modo diferente. Houve como uma sutil inversão na ordem mesma do pensamento, inversão que – tão fecunda na cerebração de um Platão – veio depois a ser, muitas vezes, pelo uso inadequado, um dos obstáculos ao progresso humano, retardando o aparecimento do pensamento experimental ou propriamente científico do mundo moderno. A inversão consistiu em especular primeiro e depois aplicar as hipóteses especulativas à interpretação dos fatos. Até então, todo conhecimento humano era empírico, prático, artístico, ampliado, quando muito, nas explanações míticas, mágicas e ritualísticas. Com os gregos, o próprio pensar se faz fonte de conhecimentos, de teorias, que iriam atuar na prática. Antes, as teorias, se teorias se podiam chamar, sucediam e explicavam a prática; agora a teoria antecedia e determinava, criava a prática. Se essa foi a grande contribuição da Grécia, obtida graças à sua análise do pensamento, pela qual tomou o pulso e deu direção a este mesmo pensamento, mostrando que podia ele iniciar e determinar a ação, e não apenas se seguir à ação, – daí o lhe reconhecermos a função sem par de agente supremo da liberdade humana – também aí é que se encontra a fonte de todos os desvios paralisantes sofridos pela humana capacidade de pensar no seguinte curso da História. O entusiasmo da descoberta levou o homem à efervescência intelectual tão fecunda da época. Jamais a fase especulativa do pensamento pôde atingir tamanho esplendor e, ao mesmo tempo, impregnar-se de tão alto sentido de tolerância. A própria novidade do pensamento especulativo, o seu caráter de consciente perplexidade explicam a serena e imprevista harmonia de um Sócrates e de um Platão. 82
Mas, se o pensamento especulativo e matemático, considerado ele próprio pela primeira vez, como objeto de estudo e de investigação, pôde deslumbrar os helenos a ponto de lhes inspirar uma filosofia de felicidade fundada na contemplação do próprio pensamento, não quer isto dizer que não soubessem os inovadores que o pensamento se origina da experiência e se destina, em última análise, à ação. Ainda no período helênico, Aristóteles pôde inclinar o pêndulo para o outro extremo e dar início à obra de observação e minúcia que se deve seguir à fase especulativa do pensamento. A experiência grega completa, assim, pelo menos em germe, a nova grande arte de pensar e traça-lhe o ritmo criador: observação, especulação, experimentação. Pensar deliberada e especulativamente passara a ser um dos ofícios humanos. Surgira um novo tipo de homem, o intelectual, o analista, o criador de pensamento e de saber, como algo distinto do estudioso do saber já feito. Não se pode negar, com efeito, a existência de saber antes da idade de ouro helênica e de estudiosos e cultores do saber. Todos, porém, eram de uma espécie muito mais velha e que se havia de revelar bem mais forte e resistente, do que o novo tipo surgido com a "mutação" intelectual ocorrida na Grécia. Eram e foram depois os "eruditos", isto é, homens que sabem o que já se soube e ignoram ou esqueceram o modo pelo qual o saber veio a ser adquirido. São guardiães úteis e fiéis, sem dúvida, do saber e até seus adoradores, mas não chegam a ser seus criadores. Por eles, o saber passa a ser um fim em si mesmo, ou se transforma em algo que se acumula inutilmente ou apenas para os deleites da extática contemplação. São eles que sucedem aos bravos e assistemáticos pensadores gregos e daí não havermos podido continuar a grande experiência e termos mergulhado no período chamado helenístico, em que ao vigor helênico se substitui um culto e uma influência sem a força do gênio criador original. A escola de Alexandria, contudo, cumpre a missão de guardar o novo saber e formar a sua tradição. Os seus eruditos colecionam – ainda e apenas – o saber, mas agora o saber herdado já é um novo saber. Sob a influência helenística, com os romanos, se elaboram a moral estóica, os rudimentos de ciência latina, certas técnicas de construção civil, o Direito romano, a interpretação paulina do cristianismo e, com Santo Agostinho, renasce a flama criadora nas suas especulações platônicas sobre a "doutrina da Graça". Mas, perdera-se o tom do pensamento grego, a sua independência e a sua tolerância, aquela extraordinária tolerância grega que fez com que Platão dissesse, no Timeu: "Se, portanto, Sócrates, nos deparamos em muitos pontos incapazes de dissertar sobre a origem dos deuses e do universo, de modo completamente consistente e exato, não vos deveis surpreender. Pelo contrário, devemos ficar contentes de apresentar uma descrição não menos provável do que a de outros; devemos lembrar que eu que falo e vós que me ouvis, não somos senão homens e devemos nos satisfazer em nada mais pedir que uma história provável"(2).
Nos períodos de academicismo, a verdade perde esse caráter e passa a ser algo que se sustenta com dogmatismo e até com violência. Mais de dois milênios hão de transcorrer, com efeito, até que pudéssemos assistir, no século dezessete, o início de um novo período, que lembra o poder criador helênico. O renascimento ainda não fora esse período. O renascimento é apenas o reencontro com o pensamento helênico e deste o eco. Já não é mera reprodução 2
The Timeus, trad. de A. A. Taylor, citado por Whitehead. 83
acadêmica, mas ainda é imitação de limitado alcance. A nova fase criadora vem, depois, com os pensadores dos séculos dezessete e dezoito e a fundação definitiva da ciência, como a concebemos hoje. Como na Grécia, temos então uma intensa e fecunda fase especulativa, seguida de uma fase experimental, inédita, cujos frutos ainda estão a cair, cada vez mais abundantes e sazonados. A fugaz adolescência grega vem a atingir a maioridade, afinal, nessa fase, de onde se vem encaminhando, não sem tropeços, mas deliberadamente, para a maturidade já anunciada, embora não de todo presente. O fator intelectual introduzido pelos gregos, na vida humana, constitui já agora a reconhecida condição para o seu progresso e a sua liberdade. O rígido determinismo dos costumes e da tradição, presos a inelutáveis condições econômicas, iria, não se desfazer, mas ganhar plasticidade e flexibilidade em face do solvente intelectual da grande descoberta helênica. A experiência intelectual grega, com efeito, a despeito da formulação magistral de Platão e Aristóteles, a princípio como que se esconde, refugiando-se na escola de Alexandria, e deixando de exercer a influência efetiva e maciça que se poderia dela esperar. A realidade é que o homem só gradualmente poderia evoluir do seu estágio de integração instintiva para o novo estágio de pensamento racional e de integração bem mais difícil, em virtude dos conflitos criados entre o instinto e a razão. A organização monolítica do hábito e da força continua, assim, a dominar e, salvo a obra de governo e de Direito que o poder romano produz, só viemos a reencontrar algo de novo, já do meio para o fim da Idade Média, com a instituição de organizações sociais independentes do poder dominante e destinadas a normalizar e, pelas normas, controlar as relações humanas, à margem do exclusivismo dos poderes senhoriais propriamente políticos, fossem profanos ou divinos. A transposição para o campo das instituições sociais das conseqüências do pensamento racional e deliberado, que virá realmente a constituir a integração da sociedade em sua nova fase de liberdade, parece ter logrado início nessa fase da Idade Média. A circunstância da idéia, da análise racional vir, assim, atuar no contexto da ação e criar novos modos de comportamento e de solução dos problemas humanos, revela os dois aspectos fundamentais da liberdade: o da espontaneidade e tolerância do próprio pensamento, isto é, a liberdade da especulação intelectual, e o da incorporação da idéia ao costume e à ação, mediante instituições sociais que promovem, sob nova forma e nova eficácia, os objetivos humanos. A primeira liberdade, embora suprema, é uma preliminar da segunda, a concretização da idéia nos costumes e instituições sociais, mas, como uns e outros são sempre suscetíveis de decadência, a primeira liberdade continua a ser necessária e suprema para a constante revisão e reconstrução dos próprios costumes e instituições sociais. A história da liberdade humana está sempre a oscilar entre esses dois pólos, já exagerando os aspectos puramente individuais da liberdade, já insistindo na reforma social que, por vezes, se opera com a supressão da liberdade individual. A conciliação parece estar na elucidação dos objetivos de cada um dos apontados aspectos da liberdade e dos modos efetivos de eles se realizarem. É indispensável a liberdade de pensar, não como simples diversão ou deleite individual, mas como condição para a organização do pensamento teórico e especulativo, destinado a exercer sempre sobre o próprio contexto da vida social, isto 84
é, as suas instituições, costumes e modos de comportamento, o influxo, a inspiração e o estímulo para a sua revisão e reconstrução, quando se fizerem impedientes ou restritivas da vida mais abundante e mais ampla. E é indispensável a liberdade de organização, isto é, a de poderem os homens organizar seus objetivos de vida de forma autônoma e pluralista, em diversas áreas de ação, baseados no enriquecimento progressivo de sua inteligência, suas idéias e seu saber, fora da área de compulsão necessariamente restrita do Estado, sujeitos tão-somente ao império da persuasão e da razão, que o novo conhecimento veio criar. É a marcha desses dois aspectos da liberdade que vamos procurar acompanhar em nossos comentários. Com efeito, talvez seja lícito reconhecer no período de crescimento institucional que marcou a Idade Média, como na obra jurídica anterior dos romanos, já o resultado da nova atitude intelectual assumida pelo homem, em face da descoberta de sua arte de pensar deliberada e refletidamente. Começaram as novas idéias a se traduzirem em costumes e instituições, determinando novas formas de ação coletiva, independente da ação todo-poderosa e exclusiva dos governos. A experiência da Idade Média é significativa, porque rompe com a exclusividade e supremacia do poder do Estado e cria a oportunidade de pluralismo, nas forças de governo e coordenação da vida humana. A Idade Média se caracteriza pelo feudalismo, pelas corporações, pelas universidades e pela Igreja, isto é, um extraordinário contexto de instituições independentes e variadas, a dar-nos a primeira civilização corporativa da História. Cada uma dessas instituições era uma forma nova de organização das "liberdades" humanas. Certos conjuntos de interesses ou de objetivos logravam "reconhecimento" e obtinham, em face desse reconhecimento, a "liberdade" de se auto-organizarem. A Igreja, como se constituíra antes, nem sempre é considerada como uma das "corporações", mas, na realidade, nada mais é do que a maior de todas elas, fornecendo o primeiro exemplo da pluralidade de forças organizadoras, a que a Idade Média iria dar origem. Não será que chegamos, afinal, ao gozo das conseqüências do aparecimento do "pensamento racional", que não se limita a explicar e justificar, mas a criar o novo e a introduzir novas forças no jogo dos elementos organizadores da existência humana? Pouco importa que não houvesse formulação explícita das intenções de incorporar idéias em instituições, mas a evolução era do homem e da vida modificados pelo fermento intelectual da experiência racional. A multiplicação e "independência" de forças de organização, que caracterizaram a Idade Média, com a Igreja, o poder feudal e as corporações, começaram a dar ao homem a intuição de que a vida não era a simples submissão a instintos, costumes e hábitos, mas a conseqüência das instituições existentes e criadas pelo próprio homem. O Renascimento, o Humanismo e a Reforma iniciaram, por isto mesmo, logo depois, um período de intensa e consciente revisão, em que o indivíduo ligado e religado na rede de instituições que lhe organizavam a vida e que se haviam tornado decadentes, na época medieval, se sente não libertado mas tolhido e empreende as suas jornadas libertarias, que culminam com a revolução inglesa, a americana e a francesa, todas baseadas em certo absolutismo individualista, que, entretanto, corrigiria o seu inevitável anarquismo por meio do hábil recurso criado pela descoberta rousseauniana da idéia de "contrato social". O individualismo da época é, sob certo 85
aspecto, um retrocesso, pois, permite a volta ao poder absorvente dos governos. Mas, temos, daí por diante, o homem cada vez mais consciente nos seus esforços deliberados de organização social, chegando, mais tarde, a querer reduzir a atos de vontade a própria criação do Estado. A revolução americana, por exemplo, é afirmação eloqüente dessa nova força das idéias sobre a tradição, os hábitos e os costumes, plasmando uma nação e logo um Estado, por ato expresso de um conjunto de vontades individuais. Da destruição, contudo, de todas aquelas corporações medievais, que de "libertadores" já se haviam tornado coatoras, a que se atirou o homem moderno, para sobre elas erguer o indivíduo racional, puro e sem peias, embriagado com a sua consciência de razão e de liberdade, salvou-se uma corporação: a universidade, talvez por ter tido evolução, afinal, inversa das demais corporações. A corporação era, como sugerimos, uma "liberdade" organizada. Na sociedade de artesãos e mercadores, que veio a configurar, por último, a Idade Média, as unidades corporativas eram o comércio e os ofícios (indústria), que se baseavam nas atividades e artes empíricas e tradicionais da espécie. O conhecimento artesanal não era "racional" ou "científico", mas de tirocínio, e se transmitia pelo aprendizado direto. E as atividades comerciais nem disto precisavam. A universidade, entretanto, era a corporacão das artes liberais, isto é, das artes baseadas no conhecimento racional conscientemente elaborado. Esta corporação é a que retraduzia, em linguagem medieval, a escola de Atenas e de Alexandria, e retomava a tradição do "saber racional", e o reinstalava nas condições de independência que o regime da Idade Média acabou por permitir e mesmo consagrar. A sobrevivência dessa corporação, a despeito do individualismo revolucionário do século XVIII, é muito significativa para o destino no mundo moderno daquele aspecto da liberdade, já antes sublinhado, isto é, o da "institucionalização" da liberdade, transformada, assim, em um modo de ação. Com efeito, a conservação da universidade de certo modo como corporação e a institucionalização das grandes profissões em outras tantas organizações gremiais, independentes e autônomas, e, ao lado, o movimento unionista ou sindicalista dos operários que sucederam aos artesãos, é que asseguram a liberdade no Estado moderno, superado que foi o romantismo da liberdade puramente individual, que não existe nas condições em que a idealizou o século dezoito, mas sim na liberdade de organização antevista pela Idade Média e restabelecida pelo nosso regime moderno, embora em moldes diversos e bem mais amplos. A condição essencial para a liberdade no Estado moderno está, com efeito, acima de tudo, na independência das instituições que guardam, aplicam e promovem o saber humano, isto é, as profissões chamadas liberais e a universidade, em face do Estado, ao qual cabe velar por elas, mas jamais interferir em sua área de ação ou na consciência profissional dos seus agentes. Formulado, com efeito, o pensamento racional e estabelecidas as bases para a descoberta e revisão constante do saber, o homem livre passou a ser o que realmente não se submete senão ao comando deste saber que opera pela persuasão e o convencimento, e ao do Estado, que detém o poder de compulsão, mas somente no limite em que este se subordina ao próprio saber e concretiza, pela lei, expressão do consenso coletivo, aquela experiência mais geral da espécie, que não se identifica propriamente com qualquer dos campos especializados do saber ou com as profissões 86
de base científica. O saber organizado constitui, verdadeiramente, a nova fonte do poder humano, dirigindo a ação e a conduta do homem, por intermédio das instituições sociais de sua criação. Pelo saber, pela ciência, obtém o homem poder para a consecução dos seus objetivos vitais e o põe em operação por meio das instituições sociais, cujo progresso promove por meio desse mesmo saber, autonomamente organizado e em condições de independência suficiente para se elaborar e renovar constantemente. Nenhum Estado moderno deixa de ter consciência dessa condição para a liberdade, mas nem sempre se formula explicitamente tal condição, nem se define o critério pelo qual se devam delimitar as duas áreas de governo – a do saber, como tal, com a sua força própria operando por esclarecimento e persuasão, e a da lei como norma coercitiva, imposta pela experiência geral da comunidade. A liberdade é a vida organizada legalmente, mas é sobretudo a limitação do âmbito da lei àquilo que representa o mínimo de condições para que ela, a liberdade, se exerça do seu modo supremo, isto é, pela força persuasiva do conhecimento elaborado pelos grupos de homens competentes, a quem sejam confiadas a sua guarda e o seu progresso. Todas as vezes que a lei se exceder e buscar se exercer em terreno ou área seja de atribuição precípua do conhecimento ou saber organizados, terá infrigido as condições atuais, não só ideológicas, como realistas, da liberdade. Somente quando as instituições do saber estão com a sua independência salvaguardada e a livre circulação desse saber assegura a conduta deliberada e refletida dos homens e a crítica e revisão constante de suas leis e instituições, é que teremos um regime de liberdade, como o concebeu a inteligência humana naquele minuto de esplendor em que teve, na Grécia, a revelação do seu poder não só de contemplar o mundo, mas de transformá-lo, pela força criadora do conhecimento e conseqüente invenção de instituições e instrumentos que, realmente, o concretizem e apliquem. As considerações até aqui feitas visam, mais do que tudo, sublinhar a emancipação humana da completa submissão aos instintos, costumes e tradições, pelo poder de organização obtido pela inteligência cultivada, e acentuar o caráter dinâmico adquirido pela civilização, desde que passou a ser o resultado do progresso do pensamento racional e científico. O "conhecimento racional", cujos métodos se esboçaram há mais de dois mil anos e que, após a Renascença, logrou o florescimento que todos conhecemos, quando deixou de ser objeto da adoração extática dos homens para se constituir no que realmente era, isto é, um método de indagação e de descoberta, já produziu, sob os nossos olhos, os melhores frutos. Sob o seu último impulso, provocado pelos grandes pensadores do século dezessete e dezoito, desenvolveram-se a revolução industrial, a política e a tecnológica, as quais, nos últimos cento e cinqüenta anos, transformaram a face material e social da vida humana. Com o progresso material vimos "organizando" a liberdade do homem no sentido de, dia a dia, tornar mais praticáveis as suas aspirações. O ritmo da evolução é sempre o da renovação institucional à luz das novas idéias que se vão, assim, incorporando à vida, o do crescimento e envelhecimento dessas instituições, que de renovadas se fazem decadentes e coatoras, e a seguinte renovação ou readaptação para a melhor concretização das aspirações humanas. Nesse processo, a garantia da constante renovação está na independência do 87
pensamento e do saber humanos, também eles hoje, institucionalizados, pois não se pensa mais apenas com a cabeça, mas com todo um imenso aparelhamento – meios de comunicação físicos e mentais, escrita, serviço de documentação, diversos modos de literatura, pensamento crítico, pensamento sistemático, pensamento construtivo, história, língua, simbolismo matemático e instrumentos e inventos técnicos de toda ordem. Assim, a manutenção do poder criador do espírito humano, em face da plasticidade crescente das coisas e dos homens, cada vez mais evoluídos no seu equipamento mental, exige que as instituições do saber e as corporações dos profissionais, que aplicam e respondem por esse saber na sociedade, gozem de condições de independência as mais altas, pois nelas é que se inspira toda a marcha dinâmica e progressiva da vida humana. Nessa nova forma de vida em transformação contínua, a direção – boa ou má – é e será, mais do que nunca, determinada pelo conhecimento e pelo saber, que tem, em si mesmo, força de governo e de controle, pois compele às mudanças, num jogo de informação e cooperação voluntárias, baseadas na predisposição de mudar, que o espírito humano adquiriu em face da consciência do seu próprio mecanismo de funcionamento. Para haver liberdade, a condição inicial é, portanto, a da autonomia dos grupos humanos que se devotem à transmissão, progresso e aplicação do sempre renovado e ampliado saber humano. E estes grupos são os dos professores e os dos profissionais das chamadas profissões divinas e liberais, hoje alargadas até incluir os engenheiros e técnicos de nível científico de toda espécie, que aplicam, além da religião, da lei e da medicina, o numeroso e complexo saber técnico-científico, de que já dispõe, cada vez mais, o mundo dos nossos dias, no seu acelerado curso histórico. A maior contribuição da Idade Média ao Estado moderno consistiu em haver originado a experiência do pluralismo de instituições destinadas a organizar a liberdade humana e, por este modo, a controlá-la. A idéia positiva de liberdade, como algo que se "organiza" para constituir-se em poder, que por sua vez é responsável e se autocontrola, é muito diferente do conceito negativo e romântico de uma simples e quimérica liberdade individual absoluta. O Estado moderno já vem assim, francamente evoluindo para compreender a liberdade como algo que se efetiva por meio de instituições, a se desenvolverem e se aperfeiçoarem em função dos próprios objetivos de liberdade que visam assegurar. Quando o século dezoito julgou poder pulverizar todas as corporações, para um retorno ao indivíduo, vimos como a universidade resistiu, um tanto inexplicavelmente, ao impacto e emergiu para a civilização contemporânea, guardando muito do seu caráter e, no mundo anglo-saxônio, guardando-o quase em sua totalidade, e salientamos quanto foi isto significativo para a redução do mito da soberania absoluta e a constituição do pluralismo institucional do Estado moderno, sobretudo na área de tradição anglo-saxônia, pluralismo que nos parece essencial para os aspectos de liberdade que estamos analisando. Com efeito, a universidade não surgiu na Idade Média com o objetivo de se constituir na sede da inteligência crítica para a reconstrução permanente da sociedade. Era, apenas, mais uma corporação entre as demais corporações medievais. E, a princípio, foi apenas a organização de mais uma tradição – a tradição da erudição trazida da escola alexandrina. Era a rotina do saber. E tão rotineira se fez, que os 88
verdadeiros promotores do progresso intelectual nos séculos dezessete e dezoito não estão com ela, mas sob a proteção dos príncipes e governos "esclarecidos". Mas, a energia da inteligência especulativa havendo encontrado em sua organização autônoma a sua própria força de liberação, depressa entra a atuar não somente como mecanismo estabilizador porém como revisor e reconstrutor, impondo, na fase nova de expansão que se abria, mais que sua manutenção, o seu revigoramento. Podemos, talvez, medir pelo modo por que foi tratada a universidade, a quantidade de liberdade subsistente, quando ao ímpeto revolucionário do século dezoito sucederam a onda reacionária e as tentativas restauradoras. E se, na Europa continental, a universidade muitas vezes perdeu em sua autonomia, é que foi no continente europeu que a liberdade sofreu, no mundo contemporâneo, os seus mais graves eclipses. Em nossa análise, entretanto, não queremos tanto acentuar as vicissitudes históricas da autonomia universitária, quanto salientar que o problema humano, desde que se formulou a experiência racional, passou a depender basicamente do modo pelo qual a inteligência pode funcionar na sociedade dos homens. Ora, essa inteligência, hoje, precisa de uma enorme aparelhagem para se exercer e está a depender, como nunca, de meios de riqueza, sem os quais o pensamento humano voltaria a um estado primitivo. A institucionalização, pois, dos objetivos e interesses do pensamento humano é uma necessidade da liberdade humana. A circunstância da universidade haver-se constituído, como a corporação que tomou a si essa tarefa, valendo-se dos modelos por que a vida então e por fim se organizara, em torno dos objetivos e interesses do comércio em crescendo e de sua produção artesanal, veio a fornecer ao Estado moderno uma das condições essenciais para o seu desenvolvimento. Daí a sobrevivência da universidade e a necessidade de transformá-la, em definitivo, na instituição básica do progresso humano, no mundo contemporâneo, estendendo os seus efeitos por todos os níveis da cul tura. A autonomia que estamos a procurar defender aqui não é, portanto, apenas a independência da instituição universitária, mas a do próprio saber humano e a de sua força própria de controle, distinta, por excelência, da do costume e tradição e da dos governos, por isso que age e atua por esclarecimento e persuasão. O desenvolvimento do saber aumentará constantemente a área da direção dos homens pela razão, constituindo-se desse modo o instrumento pelo qual ele virá atingir a sua esperada maturidade. Ora, como se há de organizar a sociedade, de modo que seja possível a autonomia do saber e, ao mesmo tempo, se promova o seu progresso constante e se assegure o seu prestígio, para que esse mesmo saber atue sobre o Estado, que é o detentor do poder coator legal, e sobre todas as demais instituições, e subordine Estado e instituições ao seu poder persuasivo? Este, o problema do nosso tempo. Poderemos não saber como resolvê-lo completamente, mas podemos encaminhar-nos para a sua solução, erguendo a universidade à sua posição de matriz da sociedade contemporânea. A universidade, como guardiã, transmissora e promotora do saber e da experiência, as igrejas e as profissões, como corpos autônomos de aplicação do saber, as uniões ou sindicatos, como sistemas de defesa 89
de interesses legitimos do trabalho, e o governo, como força vigilante, para que todo o. mecanismo institucional funcione, sob a égide da lei, em cuja elaboração se deve levar em conta ser vedado ao Estado e seu governo, interferir no campo já conquistado do saber e da consciência profissional, – tal será o regime livre e progressivo, que devemos buscar, para a implantação gradual e cada vez mais ampla da razão na vida humana. Dissemos, de começo, que segundo todas as probabilidades, um habitante de Nínive ou de Babilônia não saberia se era ou não governado despoticamente. Também nós, guardadas as proporções, não o sabemos, tão longas e tão antigas são as tradições de uma imaginária universalidade do âmbito da lei e de uma pretensa supremacia do poder do Estado, concretizada na noção de soberania ainda vigente. Opomo-nos a governos de força, mas só os consideramos tais quando infringem certos aspectos restritos de liberdades individuais. Precisamos opor-nos também à ampliação ilegítima do âmbito da lei. Afora uma vaga defesa da consciência religiosa, nunca desenvolvemos entre nós o sentimento de que, na área do saber humano, também não é possível a interferência da lei. Está claro que herdamos do Ocidente europeu boa parte dos hábitos de independência profissional e do saber, mas não chegamos a tornar perfeitamente consciente a herança, a ponto de possuirmos um critério capaz de denunciar as violações dessa aliás recente tradição. Vindos antes de uma tradição absolutista portuguesa, mais velha e renitente, e sofrendo depois, ainda por cima, a influência de uma França napoleônica, acabamos por tomar aos Estados Unidos a sua organização política e a misturamos com uma tradição legal, em essência cheia dos ranços afonsinos, filipinos e napoleônicos. Daí não termos, em nossa organização pública e legal, nada que lembre expressamente a separação entre o poder legal e de governo e o poder do saber e da persuasão, a não ser nos aspectos limitados da consciência religiosa, quando, proclamada a República, a separação entre o Estado e a Igreja, até com apoio desta, então se operou. No mais e em tudo, sempre se considerou o Estado livre, absolutamente livre para legislar: não somente sobre as garantias das profissões e do ensino, como sobre as profissões e o ensino determinando-lhes o que e o como fazer, como se esses campos não fossem os campos por excelência vedados à ação da lei e reservados ao autogoverno da consciência profissional e do saber. Escolas, universidades, profissões são governadas por leis e regulamentos elaborados pelo Estado e por autoridades menores, nomeadas pelo Estado, simples prepostos burocráticos, de qualificação e nível muito inferiores a qualquer professor de faculdade superior, quanto mais diretores e reitores, sob a complacência universal, havendo muitos que até se horrorizam com a idéia de autonomia e de governo pelos seus pares, preferindo antes a proteção do príncipe, que a liberdade organizada de suas próprias instituições. Não será que estamos, realmente, como aqueles cidadãos antigos que ignoravam a própria condição de súditos tiranizados? Se a isto não chegamos, talvez estejamos pelo menos como aqueles mestres de Alexandria, na segunda fase da escola, quando o simples guardar e analisar dos velhos conhecimentos os esvaziara de toda a inspiração e todo o poder criador... Repostos na idéia de que não progredimos pelo costume, mas pelo saber, será natural que nos voltemos para as nossas instituições de educação e de estudo, não como relíquias toleradas de uma tradição, porém como a força mesma da sociedade 90
moderna, que a inspira e a plasma e lhe promove o indefinido progresso. E dentre essas instituições, avulta a universidade, como eixo e cúpula, com as suas escolas de cultura geral, os seus cursos profissionais superiores, os seus estudos especializados, seus cursos de pós-graduação, de doutorado e de aperfeiçoamento, as suas pesquisas, as suas bibliotecas, – tão fundamentais, que somente elas, de certo modo já são a universidade e, sem elas, inconcebível se torna a idéia mesma da universidade, – os seus recursos de comunicação físicos e mentais, as suas tecnologias e a sua literatura e o seu pensamento, e todo um corpo de servidores da cultura, mestres e alunos, vivendo numa atmosfera de inspiração e de trabalho, devotados à tarefa suprema de conduzir a aventura humana pela inteligência e pelo espírito. Tal instituição tem que possuir, pelo menos, a mesma independência que reconhecemos às igrejas, não podendo ficar reduzida àquela noção restrita de liberdade de cátedra, porque, hoje, o pensamento humano não é uma simples atividade individual e subjetiva, mas o resultado de uma ação complexa e multiforme, envolvendo grandes recursos em pessoas, material e aparelhamento. A sua independência não é algo de negativo que se concretiza pela ausência de imposições, mas algo de positivo que se organiza em uma das maiores atividades corporativas da sociedade. Bem sabemos que, por mil e quatrocentos anos, pôde dormir, sob os tumultos e os desvios do império romano e da Idade Média, aquela "razão" que os gregos revelaram ao homem e que só do século onze em diante volta a luzir, primeiro para a "justificação" racional da crença católica, depois para o grande reencontro com o pensamento grego do fim da Idade Média e do Renascimento e os surtos especulativos da Reforma e do individualismo, até a fundação por Descartes do racionalismo científico, de que parte todo o progresso moderno. Sabemos que, naqueles mil e quatrocentos anos, não faltaram cultores extáticos do saber humano. Faltaram, sim, continuadores desse saber. Porque o saber não é somente algo que se guarda ou apenas se transmite, mas, sobretudo, algo que se continua e se renova, numa permanente reconstrução. Foi somente quando o homem perdeu a sua comovida surpresa ante o saber e não se deteve em sua veneração, mas passou a considerá-lo, simplesmente, como um apoio, um bordão para ir adiante na marcha sem fim da experiência da vida, que o progresso intelectual veio a ganhar seu intenso ritmo contemporâneo. Este, o significado da autonomia intelectual, que o homem conquista, afinal, a partir de Descartes. Naquela ocasião, como ao tempo da escola de Alexandria, não era, entretanto, com as universidades que estava a independência da inteligência humana. A tolerância do governo holandês era mais propícia a um Descartes do que o reacionarismo universitário de então, na Sorbonne e alhures. É que as universidades não serão o que devem ser se não cultivarem a consciência da independência do saber e se não souberem que a suprema virtude do saber, graças a essa independência, é levar a um novo saber. E para isto precisam de viver em uma atmosfera de autonomia e estímulos vigorosos de experimentação, ensaio e renovação. Não é por simples acidente que as universidades se constituem em comunidades de mestres e discípulos, casando a experiência de uns com o ardor e a mocidade dos outros. Elas não são, com efeito, apenas instituições de ensino e de pesquisa, mas sociedades devotadas ao livre, desinteressado e deliberado cultivo da inteligência e do espírito e fundadas na esperança do progresso humano pelo 91
progresso da razão. O seu clima é o da imaginação, no que tem de mais potente este aspecto de nossa vida mental. O seu ofício é a aventura intelectual, conduzida com o destemor e a bravura da experiência, estimulada e provocada pela juventude, que quer aprender para ir com o seu novo saber à base do velho, até o desafio deste. Mas, por isso mesmo que na universidade se misturam, não sem certa contradição, o saber dos mestres com o simples desejo de saber dos discípulos, a reverência ao saber adquirido com o desejo de superá-lo, a submissão ao método racional com a insubmissão aos seus resultados tidos por assentes, – a mesma universidade pode, no inevitável movimento pendular do espírito humano, tanto exceder-se na veneração das conquistas alcançadas e estagnar-se, quanto, no ardor de buscar a sua renovação, fazer-se ora puros centros de fácil erudição pedantesca, ora insofridos núcleos de inovações precárias e efêmeras. Para evitar tais escolhos, é que se impõe a sua independência de qualquer outra subordinação que não a do espírito humano impregnado de respeito pelo método científico e sempre pronto para a revisão de suas conclusões. Daí a universidade constituir-se em uma comunidade de objetivos mais amplos que os do ensino e o da pesquisa, pois os homens e mulheres que a compõem não visam apenas ensinar e aprender, investigar e descobrir, mas também viverem – num clima de fervor e devoção intelectual – a grande aventura do espírito humano na conquista da terra e de si mesmo. Comunidade, assim, é ou será a mais alta comunidade humana. Em uma sociedade medieval, pretendendo a edificação da "Cidade de Deus", podiam as ordens religiosas e a Igreja constituírem o apogeu de sua organização social; mas, na sociedade leiga e secular dos nossos dias, a suprema instituição humana é essa instituição em que se transmite e se elabora o saber, o instrumento pelo qual o homem tende a realizar o seu destino de animal razoável, senão racional. Assim compreendida, a universidade, que corporificará o espírito da investigação e do saber, baseados no método racional, ou científico, tem como tarefa essencial manter, entre os homens, a confiança no pensamento humano e no seu poder de organização e direção pacífica e progressiva da vida. Graças a esse pensamento, a vida evoluiu para a civilização industrial e democrática dos tempos modernos, com os seus inúmeros problemas de crescimento, desajustamentos e deslocamentos de toda ordem. Estamos a ser desafiados por esses problemas, que somente se resolverão pela criação de uma nova cultura, adaptada às condições novas de nossa época. Nenhum dos modelos passados de cultura de classes, ou, em rigor, de cultura aristocrática, pode servir de padrão à cultura que nos cumpre criar para os tempos democráticos de hoje, em que não uma classe, mas cada indivíduo deve adquirir a distinção que lhe for própria. É, assim, de suma importância que a universidade não só arme o homem com instrumentos indispensáveis ao seu novo poder mecânico e econômico, mas traduza em sentimento e imaginação a significação do novo tipo de vida, a que está ele sendo conduzido em face do progresso científico, cada vez mais amplo e m ais extenso. A questão tem suprema atualidade porque estamos no Brasil a entrar, exatamente, na fase correspondente de civilização industrial e democrática, em que temos de construir uma cultura para todos – esses todos a que chamamos de massa. 92
Começa a nossa sociedade a passar pelas mudanças, já ocorridas em outros meios: emigração para as cidades, urbanização intensiva, mobilidade social, vertical e horizontal, adaptação a novas condições de trabalho, senso de fronteira, senso de oportunidade e expansão, todo um processo de liberação de forças e de enfraquecimento de inibições, dando como -resultado a confusão e incerteza, características dos períodos de propulsão e de aventura. Tudo isto pode produzir apenas uma nova ordem de trabalho, enérgica mas mecânica, com perda sensível de certos valores mais delicados de ordem moral e espiritual, como poderá ir-nos levando gradualmente a nova integração em uma vida mais larga e mais geral, em que os valores de fraternidade e de cooperação sejam, dia a dia, mais eficazes e mais sentidos. Não se pode encomendar a nova cultura de que precisamos. Ela terá que vir como resultado de uma consciência mais aguda e mais inspirada do curso mesmo dos acontecimentos. E a universidade, especialmente, e, em rigor, toda a educação deverão esforçar-se por ajudar a trazer à luz o novo estado de espírito, e a nova interpretação da vida, necessária para as novas condições, novas contingências e novos progressos. À universidade cabe trazer a contribuição mais significativa para a elaboração dessa nova cultura. Responsável pelo saber existente e pelo seu progresso, no meio brasileiro, e refletindo todos os problemas da formação nacional, já pelo seu corpo discente, composto de candidatos a todas as vocações e profissões de nível superior do país, já pelos planos de estudos organizados para atender à variedade e multiplicidade dos conhecimentos indispensáveis à formação daqueles especialistas, a universidade, viva e dinâmica, pelos fins mesmos de sua missão intelectual e científica e pela projeção desses fins na formação dos quadros mais diversos das profissões, da ciência e da técnica, se constituirá a própria consciência nacional, no que ela tem de mais agudo e mais sensível, cooperando, assim, para a redireção da vida social, no sentido da formação democrática e moderna da cultura brasileira. Correspondendo, como vimos, à própria institucionalização da inteligência, a universidade, pelos seus mestres, pelos seus discípulos e pelos seus graduados ou ex-alunos, constituir-se-á uma extensa rede de pessoas, a atuar em toda a sociedade e a levar-lhe os resultados do saber e, melhor do que isto, o espírito do saber, misto de humildade e de audácia, pelo qual nenhum triunfo é realmente triunfo, nem nenhum insucesso realmente insucesso, mas condições, ambos, para mais ricas experiências e para a ampliação e reconstrução constantes da aventura da vida e do homem na Terra. Até o presente momento, os êxitos no mundo material têm obscurecido os seus ainda pequenos êxitos no campo social e moral. Tudo nos leva, entretanto, a crer que o homem venha, na segunda metade, já em curso, deste nosso século, a atingir a maturidade necessária para experimentar em sua vida social a emocional os métodos com que vem transformando a vida material, ou métodos de eficiência e alcance equivalentes. Esta será, provavelmente, a grande tarefa universitária das próximas décadas. Entre nós, no Brasil, contudo, muito temos ainda a fazer no campo material. As grandes e pequenas tecnologias de nossa época foram elaboradas, em grande parte, para as regiões temperadas do globo e a civilização se vem implantando em uma região tropical, para a qual faltam ainda inúmeros recursos tecnológicos. O saber no 93
campo desses recursos e a sua utilização pelo homem na adaptação desta terra à vida saudável e próspera do brasileiro, abrem perspectivas enormes para a investigação e a experimentação dentro das grandes linhas, já conhecidas, do desenvolvimento científico moderno. Os períodos de expansão humana são marcados pelo desafio dos continentes vazios a ocupar e dos problemas que a vida em novas condições provoca e suscita. Temos, em nosso país, um modesto exemplo desse caso. Somos de extensão continental, com uma população ainda diminuta, que começa a despertar, concentrando-se em grandes cidades e se agitando ao longo de todo o, país, à busca de novas condições de vida. São estes os requisitos para os períodos criadores. A tarefa imediata de nossas universidades, irmãs mais jovens das grandes universidades do mundo, onde se irá processar o esperado progresso, das ciências sociais e morais, é a do desenvolvimento científico e técnico, para alimentar a grande necessidade imediata de progresso material no Brasil contemporâneo. O importante é salientar-lhes, assim, a missão de instrumentos fundamentais do desenvolvimento brasileiro e humano e acentuar quanto é ainda incipiente o nosso desenvolvimento nacional. Estamos, apenas, experimentando as primícias da maioridade. O sussurrante agitar das chamadas "massas" nada mais é do que o alargamento daquela intuição de que o homem – a humanidade toda – pode, graças à razão, chegar a uma vida decente e significativa neste planeta. Não estamos desesperados, mas apenas embriagados de esperança. São naturais certas impaciências e não é tão absurdo que tais impaciências cheguem a degenerar em aparência de desordem e confusão. O momento é, porém, em todo o mundo, um momento de expansão, de libertação de forças, de novas composições e convergências para os grandes esforços humanos. Em tais momentos, é impossível exagerar a função das universidades, à luz das considerações que fizemos. Será por elas e graças a elas que poderá sempre vencer aquele senso do razoável, que é o fruto mais alto do novo conhecimento humano. O característico do uso da razão, que há dois e meio milênios tenta a humanidade aprender e praticar, é a tolerância. Todo saber é uma "experiência" de saber. Toda ciência é uma vitória da persuasão sobre a força. À medida que se estende a área do conhecimento racional e relativo, nesta medida se amplia a área de tolerância e de respeito pelo homem, e cresce a reverência pela sua missão de estender e desenvolver a aventura da vida sob o sol. O imenso poder que a sua pequena razão já lhe pôs nas mãos jovens não poderá ser lançado contra si próprio. A mestra da moderação e da tolerância, que é a mesma razão empreendedora, há de ser também a mestra da paz entre os homens. A guardiã dessa razão humana, origem e instrumento do saber, é a universidade, em cujo seio deve palpitar essa suprema esperança humana.
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MESTRES DE AMANHÃ
CREIO, no exame do tema que nos ocupa, que não me cumpre exprimir apenas ansiedades e esperanças a respeito dos mestres de amanhã, mas procurar antecipar, em face das condições e da situação de hoje, o que poderá ser o mestre dos dias vindouros. E entre os mestres buscarei, sobretudo, caracterizar os mestres do ensino comum, do ensino destinado a todos, ou seja, na fase contemporânea, os mestres da escola primária e da escola secundária. Deixarei de considerar o mestre de nível universitário, pois este não está a passar pelas mesmas mudanças, que começa a atingir o mestre da escola comum e, de certo modo, se está também a mudar, é muito mais dentro de linha que não apresenta ruptura com a situação anterior, mas a desenvolve e aperfeiçoa. É o mestre da escola elementar e da escola secundária que está em crise e se vê mais profundamente atingido e compelido a mudar pelas condições dos tempos presentes. E por quê? Porque estamos entrando em uma fase nova da civilização chamada industrial, com a explosão contemporânea dos conhecimentos, com o desenvolvimento da tecnologia e com a extrema complexidade conseqüente da sociedade moderna. Na realidade, o nosso esforço pela educação do homem, até muito recentemente, não chegou a ultrapassar os objetivos de prepará-lo para uma sociedade muito mais singela do que a sociedade hodierna. Tomando o exemplo das sociedades desenvolvidas, que chegaram, como no caso da América do Norte, a oferecer educação a todos até os dezoito anos, a escola elementar e a secundária constituíram-se escolas intelectualmente desambiciosas, destinadas a oferecer uma educação capaz de formar os jovens para o convívio político, social e econômico, de uma sociedade de trabalho competitivo mas, ao que se acreditava, relativamente singela e homogênea. A criação mais original da sociedade americana nesse campo foi a da comprehensive school de nível secundário, com a flexibilidade dos seus currículos e a concentração na mesma escola de alunos os mais diversos nas aptidões, nas opções de estudo, na intel igência e nos objetivos escolares. Esta escola, que resistiu ao severo estudo e análise de Conant( 1), representa, na realidade, uma inovação em seus aspectos fundamentais. Constitui uma antecipação, se considerarmos que sua filosofia importa em reconhecer certa unidade da cultura contemporânea, a despeito de sua aparente diversidade, e a equivalência das diferentes carreiras a que se iriam devotar os seus alunos. Correta, assim, na sua estrutura, não creio, entretanto, que tenha conseguido realmente oferecer uma educação à altura do desafio dos nossos tempos. O que os nossos tempos pediam era uma forte educação intelectual para o jovem moderno, a 1
Em The American High-School Today. McGraw-Hill Book Co., 1959. 96
despeito das diferentes aptidões que possuísse, dos diferentes interesses que revelasse e das diferentes carreiras a que se destinasse. A escola compreensiva reuniu todos os jovens na mesma escola e, para lhe dar a impressão de uma educação comum, diluiu o conteúdo dos diferentes programas a fim de lhes emprestar uma equivalência, que só por essa diluição se fazia verdadeira. Entremente, que se passava com a civilização contemporânea? Entrava ela em fase de desenvolvimento científico até certo ponto inesperado, levando-a na indústria à automação, na vida econômica a um grau espantoso de opulência e na vida política e social a um desenvolvimento de meios de comunicação de tal extensão e vigor que os órgãos de informação e de recreação viram-se subitamente com o poder de condicionar mentalmente o indivíduo, transformando-o em um joguete das forças de propaganda e algo de passivo no campo da recreação e do prazer. O desenvolvimento contemporâneo no campo dos processos de comunicação já foi comparado com o correspondente ao da descoberta da imprensa, que gerou também, conforme sabemos, um período de certa degradação na difusão do conhecimento semelhante ao que se observa hoje com a utilização dos meios de comunicação em massa. A verdade é que cada meio novo de comunicação, ao surgir, não produz imediatamente os resultados esperados mas, muitas vezes, a difusão do que há de menos interessante, embora mais aparentemente popular, na cultura comum. Não é apenas isto. Cada meio novo de comunicação alarga o espaço dentro do qual vive o homem e torna mais impessoal a comunicação, exigindo, em rigor, do cérebro humano, compreensão mais delicada do valor, do significado e das circunstâncias em que a nova comunicação lhe é feita. Se partirmos do período da simples comunicação oral de pessoa a pessoa que se conheçam mutuamente no pequeno meio local, para a comunicação com o estranho e depois para a comunicação escrita ainda entre pessoas que se conheçam (correspondência) e, a seguir, para a comunicação escrita pela texto e livro e pelo jornal, ainda locais, e, afinal, pelo telégrafo, pelo telefone, pelo cinema, pelo rádio, pela televisão, pela comunicação estendida a todo o planeta, que faz subitamente o homem comum não apenas o habitante de sua rua, sua cidade, seu Estado, sua nação, mas literalmente de todo o planeta e participante de uma cultura não apenas local e nacional mas mundial, podemos ver e sentir o grau de cultivo mental necessário para lhe ser possível submeter a informação, que lhe é assim trazida de todo o mundo, ao crivo de sua própria mente, a fim de compreendê-la e absorvê-Ia com o mesmo sentido de integração com que recebia a comunicação local e pessoal do seu período paroquial de vida. Não somente a comunicação se fez assim universal no espaço, como também com os novos recursos técnicos, estendeu-se através do tempo, podendo o homem em uma simples sessão de cinema visualizar as civilizações ao longo da história como sucede nos grandes espetáculos modernos em que a cultura antiga é apresentada de forma nem sequer sonhada pelos mais ambiciosos historiadores do passado. Toda essa imensa revolução dos meios de comunicação não poderia deixar de criar, em sua fase inicial, antes a confusão do que o esclarecimento, sobretudo porque esses meios não foram sequer conservados na posse dos grupos responsáveis pela educação do homem, como a escrita e a imprensa, por exemplo, de certo modo se 97
mantiveram, mas se fizeram recursos para a propaganda e a diversão comercializada, quando não para o condicionamento político e ideológico do homem. A educação para este período de nossa civilização ainda está para ser concebida e planejada e, depois disto, para executá-la, será preciso verdadeiramente um novo mestre, dotado de grau de cultura e de treino que apenas começamos a imaginar. Desde que surgiu a cultura escrita na história humana jamais faltaram guardiães, tanto quanto possível competentes, para conservá-la e defender-lhe, por vezes excessivamente, a sua pureza. Quando afinal surgiram as universidades, o engenho humano tudo fez para resguardar-lhes a liberdade a fim de que o saber humano pelos que soubessem fosse conservado e cultivado. Ao ampliar-se a universidade pelas escolas de cultura comum para todos, o preparo do mestre – ou seja o guardião e transmissor da cultura – se fez até o começo do nosso século com razoável proficiência. Tanto quanto possível era ele o transmissor de uma cultura cuja significação e limites conhecia e, sobretudo, era o mais importante transmissor dessa cultura, estando em seu poder comandar até certo ponto a formação do educando. Com a expansão dos meios de comunicação, o mestre perdeu esse antigo poder, passando a ser apenas um contribuinte para a formação do aluno, que recebe, em relativa desordem, por por esses novos meios de comunicação, imprensa, rádio e televisão, massa incrível de informações e sugestões provenientes de uma civilização agitada por extrema difusão cultural e em acelerado estado de mudança. A universidade conservou, a despeito de tudo, um certo controle dessa cultura extremamente difusa e em explosiva mudança, graças à alta qualidade dos seus professores e à vigorosa institucionalização de sua independência e sua liberdade, mas as escolas de cultura geral do homem comum ficaram com os mestres preparados para ministrar a cultura muito mais simples e paroquial do século passado. Bem sei que o preparo destes mestres se faz cada mais longo e nos países mais desenvolvidos já está francamente exigindo graus universitários. A tarefa, entretanto, é bem mais difícil e complexa. Recentemente, na Inglaterra, fez-se uma experiência de ensino universitário – o colégio universitário de Keele, que me parece merecer aqui uma referência. Como sabemos o "University College of North Staffordshire" surgiu em 1950, com a intenção de criar um novo tipo de ensino universitário. Não irei descrever em detalhe a experiência de Keele, mas apenas comentar o primeiro ano de estudos desse novo colégio universitário, que constitui um exemplo do tipo global de cultura que seria necessário ao homem moderno. O propósito desse ano inicial, chamado de fundamentos, é o de rever, discutir e ilustrar os fundamentos, a herança, as conquistas e os problemas da civilização ocidental. Tomo do relatório sobre o progresso dessa experiência, no Educational Yearbook de 1959, a seguinte formulação dos objetivos desse primeiro ano de estudos: O curso começa "levando os estudantes, pela contemplação dos céus, à luz da astronomia e da física moderna, a um sentimento de espanto, maravilha e beleza. Não somente o estudante de arte mas também o cientista vê sob essa nova luz a fé e os métodos do físico, numa súmula do progresso científico a partir de Kepler, Galileu e Newton até as excitantes especulações da moderna cosmologia. Acompanhando os passos da inquirição humana desde a indagação de Olbert "Por que é a noite escura?" até a teoria da criação contínua, sentir-se-á o 98
estudante a reproduzir essa extraordinária aventura da mente humana no seu esforço de imaginar e descobrir a natureza do universo. Segue-se o geólogo com a descrição da história da terra durante os 3.000.000.000 de anos ou mais que antecederam o aparecimento do homem. O geógrafo, depois, estuda o clima e os fatores do meio ambiente. O biólogo introduz os seres vivos e analisa as teorias da origem e da evolução do homem. Já aí os estudantes terão atingido a dose de humildade suficiente para apreciar as conquistas das primeiras civilizações, que lhes serão apresentadas pelos professores de saber clássico, pelo filósofo, pelo teólogo e pelo historiador. Daí prossegue o curso introduzindo o estudante na consideração das características e dos problemas da civilização ocidental numa era industrial, conforme os vêem os historiadores, os geógrafos, os cientistas políticos, os educadores e os economistas. A perspectiva já então é a dos dias de hoje, projetada sob esse fundo histórico, a fim de levar o estudante a sentir e apreciar os muitos e sérios problemas que hoje nos defrontam. A terceira parte do curso se detém nas realizações criadoras do homem – a língua, a literatura, as artes, a música, a arquitetura, as matemáticas, as ciências e a tecnologia e, por fim, o próprio homem e a sua crença serão estudados por filósofos, psicólogos, teólogos e biólogos" ( 2). Atrevo-me a considerar que este deverá ser amanhã o programa de educação comum do homem moderno e não apenas, como em Keele, a introdução aos estudos de nível superior. Com os recursos técnicos modernos, estamos em condições de oferecer a cada jovem, antes de terminar o nível secundário de estudos um quadro da cultura contemporânea, desde os seus primórdios até os problemas e complexidades dos dias presentes. Não teremos todos os professores especializados com que conta Keele para a sua experiência, mas, com os recursos da televisão, do cinema e do disco podemos levar todos os jovens a ver e ouvir, ou pelo menos, a ouvir, esses especialistas e, a seguir, com o professor da classe, desdobrar, discutir e completar as lições que grandes mestres desse modo lhe tenham oferecido. Mesmo assim, entretanto, será imensa a tarefa do professor secundário e grande deve ser o preparo, para que possa conduzir o jovem nessa tentativa de dar à sua cultura básica a largueza, a segurança e a perspectiva de uma visão global do esforço do homem sobre Terra. Os meios modernos de comunicação fizeram do nosso planeta um pequenino planeta e dos seus habitantes vizinhos uns dos outros. Por outro lado, as forças do 2
The course begins by enhancing the students sense of wonder, awe and beauty by the contemplation of the heavens as seen through the eyes of modern astronomy and physics. Not only the arts student, but the scientist also sees in a new light the faith and methods of the physicist after an outline of the progress from Kepler, Galileo and Newton to the exciting speculations of modern cosmology. Tracing the steps in the argument from Olbert's question "Why is it dark at night?" to the theory of continuous creation is "an imaginative adventure of the mind" much appreciated by students newly released from the advanced-level, syllabus. The geologist follows an account of the history of the earth during the 3.000.000.000 years or so before the emergence of man, and the geographer describes and discusses climate and other environmental factors. The biologist introduces living things and discusses theories of the origin and evolution of man. By nº 31, students have reached a sufficient rate of humility to appreciate the achievement achievement of early civilizations as pr esented by the classicist, philosopher, theologian, and historian. The next group of lectures p lunges straight into the characteristics and problems of Western society in an industrial age, as seen by historians, geographers, political scientists, members of the education department and economists. The outlook is that of today with sufficient historical background to give perspective and an appreciation of the many problems now facing us. The third group is concerned with the creative achievements of man – language, litterature, art, mousic, architecture, mathematics mathematics and science, and technology. There is a section on the study of man himself and his belief by philosophers, psychologists, sociologists, theologians and biologists." 99
desenvolvimento também nos aproximaram e criaram problemas comuns para o homem contemporâneo. Tudo está a indicar que não estamos longe de formas internacionais de governo. Se a isto juntarmos a explosão de conhecimentos e as mudanças que os novos conhecimentos, com as suas conseqüências tecnológicas, estão a trazer, podemos imaginar até que ponto as forças do costume, dos hábitos e das velhas crenças e preconceitos vão ser destruídas e quanto vai o homem depender de sua cultura formal e consciente, de seu conhecimento intelectual, simbólico e indireto, para se conduzir dentro da nova e desmesurada amplitude de sua vida pessoal. São portanto de assustar as responsabilidades que aguardam o mestre de amanhã. Sabemos o que se conseguiu, no passado, com a educação de grupos seletos de estudantes. Alguns estabelecimentos de educação secundária na Europa – refiro-me sobretudo ao esforço de educação seletiva acadêmica da França e da Alemanha e à educação intelectual e de caráter das English public schools – conseguiram dar, em nível secundário, formação humana significativa para a compreensão das civilizações clássicas e do seu ideal de homem culto. A nossa tarefa é hoje muito mais difícil. Primeiro porque precisamos fazer algo de semelhante para todos e não apenas para alguns e segundo porque já não estaremos ministrando a cultura clássica mas a complexa, vária e, sob muitos aspectos, abstrusa cultura científica moderna. Diante dos novos recursos tecnológicos, ouso crer ser possível a completa reformulação dos objetivos da cultura elementar e secundária do homem de hoje e, em conseqüência, alterar a formação do mestre para essa sua nova tarefa. Que haverá hoje que nos possa sugerir o que poderá vir a ser a escola de amanhã? Perdoem-me que lhes lembre as transformações operadas nos grandes empreendimentos que dirigem a informação e as diversões modernas: a imprensa, o cinema, o rádio e a televisão. Entregues à iniciativa privada e dominadas pelo espírito de competição, o jornal, a revista, a produção de filmes e as estações de rádio e televisão fizeram-se grandes serviços técnicos e desenvolveram tipos de profissionais especializados, dotados de extrema virtuosidade, que se empenharam em se pôr à altura dos recursos tecnológicos e do grau de expansão da cultura moderna. Algo de semelhante será o que irá suceder com a escola, com a classe e com o professor. Se a biblioteca, de certo modo já fizera o mestre um condutor dos estudos do aluno e não propriamente o transmissor da cultura, os novos recursos tecnológicos e os meios audiovisuais irão transformar o mestre no estimulador e assessor do estudante, cuja atividade de aprendizagem deve guiar, orientando-o em meio às dificuldades da aquisição das estruturas e modos de pensar fundamentais da cultura contemporânea de base científica em seus aspectos físicos e humanos. Mais do que o conteúdo do conhecimento em permanente expansão, cabe-lhe, com efeito, ensinar ao jovem aprendiz a aprender os métodos de pensar das ciências físico-matemáticas, biológicas e sociais, a fim de habilitá-lo a fazer de toda a sua vida uma vida de instrução e estudos. Talvez se possa dizer, embora represente uma grande simplificação, que a educação até há pouco tempo oferecida pela escola não passou, no nível elementar, da aprendizagem das artes de ler e escrever, como instrumento de comunicação e de trabalho, seguida de uma iniciação medíocre à vida cívica de sua nação; no nível secundário, do preparo do adolescente para as ocupações que requerem certo nível técnico e para a continuação dos seus estudos em nível superior, e no nível superior, do preparo do profissional de nível superior e o do scholar ou pesquisador. Fora disto,
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há que notar que as universidades se constituíram elas próprias centros de pesquisa, de descoberta do conhecimento e de sua expansão. Ora, somente este grupo último de pesquisadores está efetivamente de posse dos instrumentos e dos objetivos da cultura científica em que estamos imersos e que nos conduz, sem dela termos real e efetiva consciência. O próprio scholar e pesquisador, embora seja o maior contribuinte dessa cultura moderna, só raramente tem dela consciência adequada, pois o grau de especialização do seu trabalho o obriga a tal concentração de esforços e de interesse, que lhe dificulta, se não impede a visão global dessa cultura. O fato contudo de estar mais empenhado em descobrir, em aumentar o saber do que no saber existente propriamente dito, fá-lo o que há de mais próximo em nossa sociedade do que deveria ser cada um dos membros dessa sociedade. Longe de mim julgar possível que cada um de nós venha a ser um pesquisador no sentido acadêmico. Nem seria possível, nem resolveria a dificuldade da sociedade contemporânea. De certo modo, o que estou a insinuar é talvez até mais amplo, embora não me pareça tão difícil. Se a experiência de Keele pode constituir um exemplo do que se deveria fazer para dar ao cidadão do nosso tempo a Weltanschauung da cultura contemporânea, convém recordar que isto representaria somente a aquisição de uma visão adequada ao nosso tempo. Embora extremamente importante, esta visão não lhe bastará, se dela não emergir a atitude e o propósito profundos de se fazer um eterno estudante cujo interesse permanente e vivo seja o de aprender sempre e mais. E nisto lembrará ele o pesquisador. Mas, enquanto este é um profissional empenhado em um pequeno campo de conhecimento e devotado a ampliá-lo, o cidadão comum é um homem comum empenhado em compreender e em agir cada vez mais lucidamente e mais eficientemente em sua ocupação e em sua vida global, pois lhe cumpre sentir-se responsável pela sua sociedade. Acaso já refletimos que se considerarmos utópica essa aspiração, teremos lavrado a nossa condenação à civilização científica que o homem está criando, mas será incapaz de dirigir e comandar? O que nos leva a considerar utópico esta imaginada integração do homem com a sua criação científica é a situação ainda dominante na educação oferecida pela escola. H. G. Wells, um dos reconhecidos profetas dos primeiros tempos de nosso século, proclamou na década dos vinte, que nos achávamos então em um páreo entre educação e catástrofe. Já na outra década venceu a catástrofe, de que somente agora parece vamos emergindo. O nosso otimismo, entretanto, não pode ser grande, pois, se sentimos nos entendimentos recentes um alvorecer de sabedoria política, o que por certo nos conforta, por outro lado, no campo da educação, cumpre-nos registrar apenas alguns significativos progressos no preparo de novos cientistas. Na educação comum do homem comum os progressos são os mais modestos. O homem comum está caminhando para ser o escravo como o entendia Aristóteles, ou seja, o homem que está na sociedade mas não é da sociedade. O progresso científico está na sela e conduz o homem nenhum de nós sabe para onde. Ou melhor, todos sabemos, pois ninguém desconhece que se a educação é cada vez mais fraca, o anúncio e a propaganda são cada vez mais fortes e a nossa sociedade – sobretudo nos países em que já se fez afluente – é uma sociedade cujo objetivo se reduz ao de consumir cada vez maiores quantidades de bens materiais.
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Conseguimos condicionar o homem para essa carreira de consumo, inventando necessidades e lançando-o num delírio de busca ilimitada de excitação e falsos bens materiais. Ora, se o anúncio logrou isto obter foi porque os meios de influir e condicionar o homem se fizeram extremamente eficazes. Não será isto uma razão para não considerar utópico o nosso desejo de formar um homem capaz de ser responsável pela sua sociedade, não o seu joguete, ou o seu escravo no sentido aristotélico? Para isto, ouso pensar, tudo estaria em formar um mestre, esse mestre de amanhã, que fosse um pouco do que já são hoje certos jornalistas de revistas e páginas científicas, um pouco dos chamados por vezes injustamente popularizadores da ciência, um pouco dos cientistas que chegaram a escrever de m odo geral e humano sobre a ciência, um pouco dos autores de enciclopédias e livros de referência e, ao mesmo tempo, mais do que tudo isto. O mestre de amanhã teria com efeito de ser treinado para ensinar basicamente as disciplinas do pensamento científico, ou sejam, a disciplina do pensamento matemático, a do pensamento experimental, a do pensamento biológico, e a do pensamento das ciências sociais e, com fundamento nessa instrumentação da inteligência contribuir para que o homem ordinário se faça um aprendiz com o desejo de continuar sempre aprendendo, pois sua cultura não só é intrinsecamente dinâmica mas está constantemente a mudar-lhe a vida e a obrigá-lo a novos e delicados ajustamentos. Por que não será impossível este mestre? Porque são extraordinários os recursos tecnológicos que terá para se fazer um mestre da civilização científica, podendo para isto utilizar o cinema como forma descritiva e narrativa e a televisão como forma de acesso a mestres maiores que ele. O mestre seria algo como um operador dos recursos tecnológicos modernos para apresentação e o estudo da cultura moderna e como estaria, assim, rodeado e envolvido pelo equipamento e pela tecnologia produzida pela ciência, não lhe seria difícil ensinar o método e a disciplina intelectual do saber que tudo isso produziu e continua a produzir. A sua escola de amanhã lembrará muito mais um laboratório, uma oficina, uma estação de televisão do que a escola de ontem e ainda de hoje. Entre as coisas mais antigas, lembrará muito mais uma biblioteca e um museu do que o tradicional edifício de salas de aulas. E, como intelectual, o mestre de amanhã, nesse aspecto, lembrará muito mais o bibliotecário apaixonado pela sua biblioteca, o conservador de museu apaixonado pelo seu museu, e, no sentido mais moderno, o escritor de rádio, de cinema ou de televisão apaixonado pelos seus assuntos, o planejador de exposições científicas, do que o antigo mestre-escola a repetir nas classes um saber já superado. Não se diga que estou a apresentar observações que somente se aplicam às sociedades afluentes. O caso dos países subdesenvolvidos não é diverso, porque os recursos tecnológicos da propaganda e do anúncio também já lhe chegaram e não lhe será possível repetir a história dos sistemas escolares mas adaptar-se às formas mais recentes da escola de hoje. Está claro que concretamente seu problema é diverso. A sua luta não é ainda para comandar a produtividade mas para chegar à produtividade. A sua busca pelos bens materiais é muito mais imediata e dispensa os esforços da Madison Avenue. Paradoxalmente, entretanto o espírito do anúncio e da propaganda lhe chegam antes de haver podido mudar sua estrutura social para se fazer uma sociedade científica de alta produtividade. E, por isto mesmo, o anúncio ainda é mais tragicamente irônico. Somos pela propaganda condicionados para desejar o supérfluo, para atender necessidades inventadas, antes de haver atendido às nossas reais necessidades.
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Também, portanto, teremos de ter novas escolas e novos mestres, embora venham a ser eles aqui mais os iniciadores do método científico nas escolas do que os simples adaptadores das escolas das sociedades afluentes já em pleno domínio da produção e do progresso científico. Como marchamos, entretanto, para uma situação idêntica, cumpre-nos esforçar-nos para queimar as etapas e construir a sociedade moderna com uma escola ajustada ao tipo de cultura que ela representa. Todas essas considerações nascem de uma atitude de aceitação do progresso científico moderno, de aceitação das terríveis mudanças que este progresso está impondo à vida humana e da crença de que ainda não fizemos em educação o que deveria ser feito para preparar o homem para a época a que foi arrastado pelo seu próprio poder criador. Todo o nosso passado, os nossos mais caros preconceitos, os nossos hábitos mais queridos, a nossa agradável vida paroquial, tudo isto se levanta contra o tumulto e a confusão de uma mudança profunda de cultura, como a que estamos sofrendo. Contudo, a mocidade, está a aceitar esta mudança, é verdade que um tanto passivamente, mas sem nada que lembre a nossa inconformidade. A mudança, todos sabemos, é irreversível. Só conseguiremos restaurar-lhe a harmonia, se conseguirmos construir uma educação que a aceite, a ilumine e a conduza num sentido humano. O desafio moderno é sobretudo este: conseguir que todos os homens adquiram a disciplina intelectual de pensamento e estudo que, no passado, conseguimos dar aos poucos especialistas dotados para essa vida intelectual. O conhecimento e a vida adquiriram complexidade tamanha que só uma autêntica disciplina mental poderá ajudá-lo a se servir da ciência, a compreender a vida em sua moderna complexidade e amplitude e a dominá-la e submetê-la à uma ordem humana. Ao alvorecer da vida de pensamento racional que deu origem à nossa civilização ocidental, os primeiros professores tiveram em Sócrates o seu mais significativo modelo. Nada menos podemos pedir hoje ao professor de amanhã. Os mestres do futuro terão de ser familiares dos métodos e conquistas da ciência e desde a escola primária iniciar a criança e depois o adolescente na arte sempre difícil e hoje extremamente complexa de pensar objetiva e cientificamente, de utilizar os conhecimentos que a pesquisa lhe está a trazer constantemente e de escolher e julgar os valores, com que há de enriquecer a sua vida neste planeta e no espaço que está em vésperas de conquistar. Reunindo, assim, funções de preceptor e de sacerdote e profundamente integrado na cultura científica, o mestre do futuro será o sal da terra, capaz de ensinar-nos, a despeito da complexidade e confusão modernas, a arte de vida pessoal em uma sociedade extremamente impessoal.
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9 UTOPIA E IDEOLOGIA(1) (Variações sobre o tema da liberdade humana)
OS JOVENS COLEGAS que hoje se formam testemunharam o constrangimento com que recebi a honra, que tanto me sensibilizou, de ser eleito paraninfo nesta cerimônia. Nosso convívio havia sido curto. Era eu apenas um professor recém-chegado à Faculdade, a ela trazido por nímia bondade de meu eminente antecessor e mestre, professor Carneiro Leão e da colenda congregação. Um de vós se ergueu, então, para me dizer, à maneira de gentil provocação, que a escolha se fizera na esperança de ter eu, o professor, – e no tom ia a insinuação de idade – algo a dizer no momento em que um novo e jovem grupo de graduados se despede da Faculdade, para se dispersar pelo campo vasto e diverso da educação nacional. Cresceu por certo o constrangimento: como vos poderia eu faltar, sem faltar ao próprio compromisso de nossa profissão? A convocação para vos falar, hoje e aqui, se fez, assim, um imperativo profissional. E de que vos haveria de falar senão dos nossos tempos, dos nossos perturbados tempos, de que, por força do nosso ministério, somos os intérpretes e de que ireis ser os intérpretes, como futuros jovens mestres de outros ainda mais jovens brasileiros? Seja lá o que for que ensinardes, estareis, na verdade, ensinando, mal ou bem, o que consideramos a nossa civilização. Mas, ai de nós, que nossa civilização se fez, tão complexa, difícil, contraditória e vertiginosamente dinâmica, que compreendê-la e ensiná-la se vem constituindo tremenda tarefa. Há que buscar-lhe algo como a chave de sua interpretação. E tal chave há de ser encontrada na ciência, causa e efeito máximo da aceleração do progresso humano, e, ao mesmo tempo, via única de explicação e interpretação dos inúmeros problemas surpreendentes que a própria ciência vem criando. A princípio, foi irreprimível o otimismo provocado pela ciência, ou seja pela descoberta desse novo método de progresso humano. Tantos e tamanhos foram, contudo, os novos problemas criados pelo próprio progresso, que hoje nos vemos divididos, tomados uns ainda do mesmo otimismo e dominados outros por um senso de catástrofe, que raia pelo desespero. É diante dessa casa dividida, em que hoje vivemos, que procurarei aqui formular algumas observações, que me parecem úteis em nossa busca de um mínimo de compreensão desses nossos tempos de confusão e promessa.
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Oração de paraninfo pronunciada na formatura dos licenciandos e bacharelandos da Faculdade Nacional de Filosofia, 1957.
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* Digamos logo, entretanto, que não faltam os que julgam um tanto presunçosos estarmos sempre a caracterizar a nossa época como de crise e mudança, em relação a outros períodos da vida da espécie. Convencidos da imutabilidade da condição humana, alegam que o homem carrega consigo os elementos contraditórios de seu destino, que se repete nas servidões dos dramas individuais, cuja monotonia apenas quebramos pela nossa velha capacidade de idealizá-los. Nihil novi sub sole é a máxima de uma sabedoria milenar, muito mais corrente ainda do que se poderia supor. A verdade, porém, é que o novo existe em tamanha extensão e intensidade, que a máxima poderia ser hoje transposta para outro extremo: Omnia novi sub sole. Parece-me este um dos fatos básicos a levar em conta, para uma segura interpretação do nosso tempo. Tão lenta foi a evolução humana até os último seis mil anos, que a fórmula antiga tinha a sua razão de ser. Seria demais repetir que até 1400 de nossa era o homem lutava, para sobreviver e para civilizar-se, com as mesmas dificuldades quase com que lutava quinhentos ou quatrocentos anos antes de Cristo? Nos últimos quinhentos e poucos anos é que se processou a chamada civilização moderna. E a industrialização é um movimento ainda em suas fases iniciais, se considerarmos todo o globo. O novo, em verdade, existe e o temos pela frente, cada vez mais novo ou, em verdade, novíssimo. A nossa época é, sem dúvida, uma das épocas de transformação, na vida da espécie. Whitehead, em um dos seus livros, fixava as grandes mudanças, no mundo e no homem, até a nossa época, nos seguintes ciclos que, de certo modo, explicam porque agora os homens tanto se afligem com a modificação do estabelecido: mudança social fundada em alteração de condições básicas, meio milhão de anos; mudança devida a alterações de condições físicas menores, como as de clima, cinco mil anos; modificação tecnológica esporádica, quinhentos anos. E entre o ano 100 e 1400 não houve nenhuma grande modificação tecnológica. Até aí a estabilidade; a segura e tranqüila estabilidade. Mas, entre 1780 e 1830, com a introdução do vapor, já as mudanças ocorridas foram maiores do que em qualquer outro milênio anterior. E daí por diante, sobretudo a contar de 1890, as grandes modificações tecnológicas passaram a processar-se com celeridade que não deixa de ser para muitos particularmente incômoda. Ainda a partir do século XVIII cada um de nós disporia de toda a sua vida para se habituar a uma mudança social e tecnológica: uma transformação, cada sessenta ou setenta anos. Só depois de 1890, as mudanças passaram a processar-se ou a contar-se por décadas. E agora, nessa segunda metade do século XX, não sei se já não estaremos em ritmo de qüinqüênios... É em virtude dessas transformações que muitos de nós se sentem como que perdidos... Com efeito, a que nos deveria ter obrigado tal ritmo de mudança? A um tremendo esforço educacional, que habilitasse cada indivíduo a fazer ele próprio o que, em outras épocas, era conseguido por um ajustamento coletivo e em muito compulsório, resultante da própria homogeneidade social de algum modo operada na duração relativamente longa do processo de mudança.
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Recordemos, ainda, que considerada a estrutura social humana, nas suas diversas camadas, as transformações anteriores, na maior parte das vezes, somente atuavam nas camadas mais altas, mantendo-se, nos estratos inferiores, base estática e sólida capaz de dar apoio à parte dinâmica e, às vezes, até um certo lirismo à mudança social. Só muito recentemente é que o impacto do pensamento humano, da obra deliberada do homem na transformação do seu habitat e dos seus meios de trabalho veio a universalizar-se e a tornar possível a mudança na vida de todos e de cada homem no planeta. Não é difícil imaginar, assim, a extensão com que se libertaram, em toda a espécie, forças e esperanças e com que se reduziram inibições e resignações antes tão sólidas que pareceriam imutáveis. Ao tumulto material sucedeu então o tumulto social, em que nos achamos imersos e que suscita as vozes do desalento e desencanto tão características dos dias que correm. Mas, repetimos, tomamos em face da situação, as medidas necessárias para enfrentar o desafio do novo? Duas atitudes poderia provocar a conjuntura. A primeira, visaria a criar rapidamente novos condicionamentos sociais, substancialmente irracionais, capazes de ajustar o homem da mesma forma por que ele se ajustara antes às terríveis condições da opressão e pobreza antigas. A segunda, visaria a tornar todos os homens e cada homem capazes de se conduzirem racionalmente, como se conseguira com alguns raros indivíduos, ainda no período que chamamos da remota antigüidade e que foi, afinal, apenas ontem. Seria, sem dúvida, esta segura atitude o reconhecimento de algo que se poderia conceber como uma nova etapa na evolução do homem, etapa que fora vislumbrada pelos pensadores antigos, com a generalização do conhecimento humano e a aplicação do método científico a todos os setores da vida humana. Isto não se fez, entretanto, ou melhor, somente se fez no campo do conhecimento físico do mundo, o que nos vem permitindo colher os resultados que vimos colhendo em sua transformação material. Recusamo-nos, entretanto, a reconhecer como suscetível de ser generalizada a mesma atitude científica ao comportamento quotidiano e normal dos homens, insistindo aí na primeira posição – a de buscar de qualquer modo condicionar o homem à nova situação, mesmo com prejuízo de sua natureza e de seus valores. * As observações que desejaria fazer aqui convosco prendem-se a essas duas atitudes. Temos, em relação ao mundo físico, aplicado corajosamente o método científico. Mas em relação à conduta própria do homem, conservamos os velhos métodos pré-científicos de simples condicionamento mecânico e irracional. Parece-me que as aludidas atitudes tiveram seu reflexo no pensamento geral da humanidade nos últimos cem anos. A primeira atitude gerou, além do desenvolvimento científico moderno, as grandes correntes de pensamento utópico em relação à organização social e econômica. A segunda atitude, supostamente realista, gerou os movimentos ideológicos, que sucederam ao pensamento utópico e, ao meu ver, o
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deformaram e o tornaram substancialmente violento e irracional. Devo esclarecer que não tomo os termos utopia e ideologia no sentido preciso com que os emprega Manheim, mas com a alteração sugerida por David Riesman, jovem pensador americano, cuja lucidez me impressiona tanto mais quanto lhe faltam as consagrações acadêmicas do grupo, de certo modo, tão pouco original dos pensadores sociais de nossa época. Riesman define utopia "como um conjunto de crenças racionais, de interesse no fim de contas da pessoa que as alimenta, numa realidade potencial embora não existente; tais crenças não devem violar nada que saibamos sobre a natureza, inclusive a natureza humana, embora possam extrapolar a presente tecnologia e devam transcender a presente organização social". "Ideologia, ou o pensamento ideológico", define-o Ríesman, como "um sistema irracional de crenças, alheias no fundo ao interesse da pessoa que as aceita, mas a que esta pessoa adere sob a influência de algum grupo, em virtude de suas próprias necessidades irracionais, inclusive o desejo de submeter-se ao poder do grupo doutrinador". Toda utopia pode ter germes de erro, que a podem levar até à ideologia. E toda ideologia tem germes de verdade, que lhe emprestam a aparente plausibilidade, indispensável à obra de sua doutrinação. O pensamento utópico da humanidade corresponde, na verdade, à substituição da utopia supra-racional ou sobrenatural de outra vida, dominante em toda a Idade Média e ainda hoje corrente – nos E.U.A. 95% das pessoas declararam crer na sobrevivência do homem após a morte – por uma utopia natural e racional, aqui e agora, fundada nas virtualidades e potencialidades dos conhecimentos humanos existentes. Aldous Huxley acentua, em sua famosa caricatura do mundo de amanhã, que o perigo das utopias é que elas se tornaram realizáveis. Se a sua confiança no homem fosse outra, deveria concluir que este seria o seu valor, pois com a possibilidade da sua realização estaria aberto o caminho para as suas revisões e os seus progressos, no caso de resultados infelizes ou inesperados. No fundo, porém, Huxley no seu livro não estava tanto a desdobrar o plano de uma utopia quanto de uma ideologia, com o seu brutal e correlativo condicionamento mecânico do homem. O seu Brave New World é uma sátira aos movimentos ideológicos e não aos utópicos. Aliás o próprio Huxley dá-nos um exemplo de bom pensamento utópico no seu Science, Liberty and Peace. Caracteriza, com efeito, o pensamento utópico uma confiança especial no homem e na razão graças à qual não parece a tais pensadores tão intransponível quanto hoje nos querem fazer crer os criadores de ideologias a barreira dos mitos e das irracionalidades humanas. Jamais um pensador utópico idealizaria o Brave New World ou o 1984 de George Orwell. Tais caricaturas são caricaturas exatamente dos movimentos ideológicos, com os quais se busca condicionar mecanicamente o comportamento humano, com apoio na premissa de que esse comportamento humano não é racional . (A premissa dos pensadores utópicos seria a de que tal comportamento é potencialmente racional.) Na verdade, os estudos contemporâneos sobre as culturas humanas vêm sublinhando, como não podiam deixar de sublinhar, o determinismo da evolução social do homem e a incrível mistura de racional e irracional de que se tecem todas as diversíssimas culturas criadas pela espécie, na sua dispersão no tempo e no espaço, em nosso hoje pequenino planeta.
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Tais "culturas" se modificavam por acidente, constituindo processos históricos complexos, em lenta e laboriosa evolução. A mudança intencional e sistemática não se podia registrar, pois o homem, mergulhado em sua cultura, inclusive sua língua, deixara de ser capaz de procedimento propriamente individual e se fizera um ser gregário, socialmente condicionado. Em essência, os estudos antropológicos consideraram a sociedade como formigueiros humanos, a serem estudados à luz de determinismos sociais, processados praticamente sem qualquer racionalidade objetiva e consciente, e destinados a produzir estados de adaptação passiva do indivíduo ao seu meio. Nem de outro modo podia ser. Pois o uso deliberado da inteligência, como processo modificador, não estava em todas as sociedades estudadas, quase todas de nível primitivo ou semiprimitivo, desenvolvido além de certas habilidades de manipulação da palavra e de manipulação das artes ainda em píricas. Uma história natural do pensamento humano revelaria quanto o ato de pensar e sobretudo de pensar em larga escala é raro entre os homens e como a adaptação social humana se faz por ajustamentos rotineiros e tradicionais, insuscetíveis de modificação, salvo por acidente ou invenção esporádica. O aparecimento do pensamento como algo de voluntário e deliberado, a invenção da arte de pensar, como atividade autônoma, o gosto do problema pelo problema, a pesquisa e a ciência, a automotivação e o autocondicionamento nunca se fizeram atividade onímodas de nenhuma sociedade humana. Se a evolução histórica humana fosse linear e contínua, sem regressões nem destruições, se as civilizações não tivessem tido os ciclos que as levaram da expansão à decadência, poderíamos bem imaginar onde estaríamos hoje com a continuação dos progressos chineses e greco-romanos! Depois, entretanto, de todos aqueles desenvolvimentos nas artes da civilização e na arte da disciplinação do espírito humano, desenvolvimentos que nos deram os homens antigos, muitos deles mais interessantes do que os de hoje, a realidade é que regredimos a um período de recomeços e desordens, que exigiu treze séculos para nos permitir retomar a marcha dos antigos. Retomamo-Ia é certo, com ímpeto, e já no século XVII estávamos adiante do pensamento antigo. Mas, os ajustamentos entre o pensamento científico tão vigorosamente renascido e o pensamento usual ou tradicional continuaram fragmentários e imperfeitos e, sobretudo, fundados num conceito estático e mecanicista de "natureza" e num providencialismo com que procuramos substituir a dualidade helênica de mundo precário e realidade ideal, absoluta. Somente no século dezenove, com Darwin e no século XX, com Einstein, é que viemos a dar base relativista ao pensamento científico e adotar a sua conceituação contemporânea, segundo a qual vivemos em um mundo dinâmico, em perpétuo fluxo, de que nossos esquemas de pensamento são interpretações temporárias e relativas, válidas até o ponto em que nos permitam interferir, modificando-os, nos chamados processos da natureza, nela incluída o homem. De certo modo, estamos hoje mais próximos de certas interpretações básicas dos gregos do que da ciência dos séculos dezessete e dezoito. O mundo perdeu a segurança e estabilidade do materialismo mecanicista desses séculos, a nossa ciência se fez relativista e entramos a buscar novas realidades idealistas, para sobre elas nos apoiarmos em nossa necessidade de certeza. As revivescências religiosas são
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ilustrativas desse estado de espírito. As veleidades de voltar à Idade Média, outros exemplos. A despeito de todas as incertezas, entretanto, o que de fato vem ocorrendo no mundo a partir da segunda metade do século XIX é a revelação tornada evidente para o povo, senão para os filósofos, de que o mundo pode ser organizado voluntária e deliberadamente, com o aproveitamento inteligente de sua evolução histórica, ou, mesmo, em oposição a essa evolução. O Japão, a Rússia, de certo modo antes a Alemanha prussiana e, depois, a Alemanha nazista, sem falar nos Estados semi-voluntários criados pela revolução do século XVIII, não são mais Estados estritamente históricos, isto é, frutos da evolução espontânea e acidental mas produtos deliberados do pensamento humano, mais ou menos bem sucedidos, na parte intencional, embora ainda repletos de resultados não esperados. As contradições desses Estados decorrem de terem sido mais produtos dos resultados da ciência do que do espírito científico. Quando vinte e cinco anos atrás, Bertrand Russell escreveu os seus ensaios sobre as sociedades artificialmente criadas, ensaios que deram lugar às sátiras e caricaturas de Aldous Huxley e de George Orwell e aos ensaios de Burnhams ( Managerial Revolution) ou de Whyte ( Organization Man), recordo-me da indignação de H. G. Wells, – tão admirável representante do pensamento utópico! – com as previsões apaixonadas e deformantes de B. Russell. É que o filósofo inglês não estava fazendo utopia mas "realismo" e advertindo com a previsão do pior. Vede bem que os líderes que imagina B. Russell para as suas fantasias científicas não são pessoas de formação científica mas criaturas enérgicas e apaixonadas pelo poder, que reproduziam, com os novos meios científicos, os objetivos estreitos e egoístas de seus antecessores. De qualquer modo, não creio que B. Russell pudesse imaginar Jefferson ou Owen criando o Estado nazista ou o Estado estalinista. E se lhe fosse possível imaginar Marco Aurélio presidindo os Estados Unidos ou a Rússia, também não creio que a ciência mais poderosa dos nossos tempos fosse transformar Marco Aurélio e fazê-lo desejar uma catástrofe final para decidir quem seria o dominador do mundo. O pensamento utópico, desde que surgiu, com Platão, nunca imaginou que a utopia se realizasse assim que um Alexandre ou um Napoleão tivessem armas mais poderosas. O pensamento utópico sempre considerou essencial que Alexandre ou Napoleão pudessem ter as idéias de um Asoka ou de um Marco Aurélio. Já são velhas as idéias de que o progresso do pensamento humano levaria, dado o novo poder de que disporiam os homens, a um governo não de cientistas, mas de filósofos, ou seja, de cientistas do uso do saber humano e, talvez, a um só governo para o mundo ou, com certeza, a governos pequenos, sábios e harmonizados. Ora, nada disto se realizou. Muito pelo contrário, exacerbaram-se as concepções pré-científicas e os Estados-tribo com os seus governantes- gangsters continuaram a passear através da História, até os dias de hoje. Responsabilizar o progresso científico operado nos últimos tempos, entre os homens, por esse resultado parece-me realmente inexplicável. Já o arco havia permitido impérios. O ferro, o mesmo. A artilharia armou Napoleão. Com as armas antigas, poderíamos ter impérios e opressões como os de Genghis Khan, e o melhoramento não viria de melhores armas mas de melhores Khans. E que fizemos
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em toda a História moderna para educar os governantes, ou sejam, os Khans? Depois de experimentarmos a hereditariedade, experimentamos a eleição. A eleição envolvia realmente um ato de fé no homem comum, mas, baseado em que tivesse ele, o homem comum, educação e conhecimento suficiente do homem a eleger. Seria uma solução para as pequenas comunidades rurais do século dezoito. Não conseguimos inventar até hoje nada de melhor, a despeito do eleitor já não mais conhecer o eleito e persistirmos em não levar em conta o poder de deformação da opinião, com a propaganda manipulada e servida em massa ao público. O "realismo" de Russell tem o seu fundamento nesse fato assombroso: a contar do início de nossa era, prosseguimos no progresso científico, depois da parada de treze séculos, e desprezamos o progresso moral, na realidade, como teoria, pelo menos, muito mais avançado entre os antigos do que o progresso científico. Imaginemos, por absurdo, que toda a Idade Média fosse dominada pelo pensamento moral dos estóicos e que tivéssemos progredido na formação do homem a ponto de atingir até a classe dos governantes a cultura moral já existente entre os antigos. Qual seria então o mundo de hoje? Em vez disto, fizemos, em todo esse período, da perfeição moral um problema de penitência e de alienação deste mundo, deixando a sorte da humanidade entregue aos que tivessem estômago para o crime, a ausência de escrúpulos e o cinismo revoltante de um pseudo-realismo, que Maquiavel viria tão bem formular no primeiro tratado "realista" do crime como método supremo da Política. O Príncipe de Maquiavel é o retrato renascentista, o retrato "glamuroso" do gangster de hoje. O dualismo fundamental entre o homem do mundo e o homem de Deus continua através dos séculos até à nossa idade, reduzida a virtude a um investimento na cidade do céu. Toda a ciência se fez "materialista", com uma "natureza" casualmente determinada e indiferente e um "homem", dia a dia, mais hábil no domínio dessa natureza, mas também cada vez mais discípulo de sua ausência de propósito ou plano. A supressão das "causas finais" na "natureza", simples e justo expediente científico para melhor estudá-la objetivamente, levou o "homem" a se supor também sem fins ou com os fins que quisesse, originando-se daí o mundo sem arquiteto, sem propósito, sem plano, o mundo anárquico, cujo desenvolvimento hoje assistimos em nosso planeta, dividido entre dois "realismos", a lutar pela força para o predomínio. As repercussões desses "realismos" internacionais refletem-se no setor interno ou seja "nacional", criando os "realismos" de governo, os "realismos" de polícia, os "realismos" de juventude, tudo significando, verdadeiramente, processos moralmente cÍnicos e intelectualmente fragmentários para a conquista do poder, do dinheiro, dos prazeres ou das vantagens. Triste, sem dúvida, o espetáculo, mas seria tolice culpar a ciência, ou o método científico, ou os resultados da ciência. O erro tem a sua origem no dualismo entre homem e natureza, com o resultado, quase diria humorístico, de tornar o homo hominis lupus, isto é, capaz de esquecer a sua "natureza" e acompanhar a anarquia da "natureza", que à dele entretanto se oporia. Se o homem estivesse integrado na natureza seria tão científico perceber que a roseira não floresce por algum plano pré-estabelecido próprio de causas finais, como que no homem, ao contrário da "natureza", assim entendida como algo a ele estranho, o que vale é o plano pré-estabelecido. A natureza é uma série de processos com começos e terminações, sendo, do ponto de vista de sua "naturalidade", indiferentes os resultados ou fins desses processos. Tanto é natural que o resultado seja a morte como a vida. Para os seres vivos, porém, esses fins contam e mais do que tudo para o homem, que os pode
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esperar, prever e planejar. Há plano, portanto, na natureza porque os seres vivos e o homem são partes integrantes da natureza. Dentro da mesma natureza teríamos, pois, o mundo físico determinístico e sem plano próprio e o mundo vivo e humano igualmente determinístico, mas intencional, planejado. E do mesmo modo que o homem com a ciência aprenderia a mudar as rosas, a multiplicar as rosas, a evitar que as rosas não florescessem, assim lhe ensinaria a ciência a mudar os homens, a aperfeiçoá-los, a torná-los mais conscientes, mais inteligentes e melhores, perdido o receio de se fazer ele anticientífico por introduzir fins na natureza, pois esses fins eram os fins humanos, também eles natureza, pois gerados nas cabeças humanas partes integrantes da natureza, e incorporados em suas "culturas", com os erros, as aproximações e as cegueiras dos seus imperfeitos conhecimentos. Tais "culturas" humanas, por mais interessantes esteticamente que pudessem ser os resultados de sua formação cega e esporádica, seriam objetos de estudos, como quaisquer outros aspectos da natureza, para a sua alteração na medida em que se aperfeiçoassem os nossos conhecimentos. Assim como transformamos o mundo vegetal e o mundo animal, com a agricultura e a veterinária, assim como melhoramos no homem a alimentação e a saúde, assim lhe iríamos melhorar os demais aspectos de sua cultura, aceitando estudar os chamados valores, na mesma base em que estudamos as existências, umas e outros faces da mesma natureza física e humana. Para quê estudamos as existências nos mundos mineral, vegetal e animal, senão para as transformarmos, à luz dos propósitos, dos planos, dos fins humanos? Do mesmo modo, estudaríamos o homem para ficarmos capazes de realizar ainda melhor os seus próprios fins. E tais fins serão ainda por acaso, os fins do homem de neanderthal ? Os fins do homo hominis lupus? Será, por acaso, o homem incapaz de achar os seus fins? Muito pelo contrário, essa foi a primeira ciência humana. O progresso moral e social antecipou o progresso propriamente intelectual e muito antes de um Aristóteles tivemos os grandes moralistas e legisladores. Hamurabi, Moisés, em períodos quase lendários, souberam criar a lei para a convivência humana. Mais próximo de nós, Jesus de Nazaré. E no Oriente, Confúcio e Buda traçaram, muito antes mesmo de Jesus, as grandes leis humanas. Onde a razão de não ver nesses grandes formuladores dos valores humanos, os precursores de um pensamento científico tão legítimo quanto o dos que descobriram não ter a "natureza" outros fins senão os que os homens lhe emprestassem? Todo o fim intencional e consciente, neste mundo, teve a sua origem no homem e nas instituições por ele empiricamente criadas. O estudo científico do homem não foi interrompido, diga-se logo, para evitar qualquer equívoco, mas, recusamo-nos a reconhecer que a ciência acaso obtida pudesse ir além de lhe melhorar a saúde, a dieta e a residência. Em tudo mais, a lei seria a do arbítrio e da anarquia. Seria livre o homem de fazer tudo que não interferisse com igual liberdade alheia: regrinha que estaria muito bem numa pequena sociedade rural, sem trabalho organizado e em que o ato de cada um fosse do outro conhecido até as suas últimas conseqüências. Com a industrialização do trabalho humano, com o crescimento da organização, em virtude dos progressos da ciência física, esse homem livre fez-se capaz de causar, impunemente, os danos mais inenarráveis, e, como comenta B. Russell, não se sentir obrigado nem sequer à confissão perante o seu sacerdote, a que se deveria, entretanto, dirigir para ser absolvido no caso de qualquer trivial impropriedade sexual que viesse a praticar.
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A religião, em todos os tempos expressão mais alta do controle do comportamento humano, fez-se indiferente à organização econômica da sociedade e praticamente abençoou a lei da floresta, associando-se aos proventos da imensa iniqüidade. Com os resultados da ciência, o novo selvagem, o selvagem individualista, adotando como lei o vale-tudo da luta pela vida, o " struggle for life", tomado emprestado à lei da vida sub-humana, criou o mundo de miséria e riqueza, que explodiu nas duas grandes guerras mundiais. Hoje, começa, em grande parte, a ser limitada essa "liberdade" individual. A lei da floresta conserva-se mais no campo internacional do que no nacional. No campo interno, entretanto, a despeito de certos progressos de socialização, o aumento do poder dos governos, se vem fazendo tão imenso, com o crescimento de sua organização burocrática, que se tornaria indispensável a máxima competência por parte dos governantes, a fim de se evitar a injustiça ou a desordem. Ora, os governos continuam a ser ou governos militares revolucionários, ou governos eleitos segundo as regras das democracias rurais do século dezoito. De modo que, em sua grande maioria, são governos altamente incompetentes. Por isto mesmo, a correção única de que dispomos para o estágio atual do governo humano, é a da difusão do poder. Precisamos difundí-lo ao máximo para que nenhuma concentração de poder se faça suficientemente grande para atrair os grandes famintos de sua fruição. Quando o poder é pequeno, precisamos, às vezes, até de rogar às pessoas para aceitá-lo. As grandes fatias de poder é que geram as grandes tentações. Nos países civilizados e democráticos, esses poderes perigosos só existem ainda no campo das atividades internacionais. Dentro das nações, já o poder se acha difundido no grau necessário para se fazer seguro e sem perigo. Os países ainda inorganizados, porém, estão sob constante ameaça, tanto interna quanto internacionalmente, de caírem sob as concentrações de poder, geradoras da opressão e da irresponsabilidade. Parece que nos afastamos demais de nossa referência inicial a ideologia e utopia mas, na realidade, não estamos assim tão longe. A democracia dos séculos XVIII e XIX constituía, em seu início, algo de essencialmente utópico. O socialismo anterior a Lenine era de natureza utópica. Já o marxismo-leninismo parece-me essencialmente ideológico. E o neo-capitalismo, uma réplica ideológica ao marxismo-leninismo. A essência do pensamento ideológico ou das ideologias é a sua natureza irracional, a ser inculcada por doutrinação e realizada pela força. É a utilização dos resultados da ciência para a manipulação da opinião pública, segundo processos mais sutis mas essencialmente idênticos ao do passado pré-científico do homem, para a manutenção do status quo ou a realização de algum plano brutal de desenvolvimento inumano. O fascismo foi a sua primeira grande demonstração. Mas o comunismo, sempre que recusa crer na possibilidade do seu triunfo pacífico, pela persuasão e pela razão, e deposita sua fé nos meios de doutrinação e de força faz-se ideológico e não utópico, no sentido em que estamos procurando caracterizar esses termos. O comunismo somente seria aceitável se aceitasse os métodos da razão e da persuasão socialista. Vistas sob esse ângulo, não parece difícil discriminar na cena contemporânea as correntes utópicas e as correntes ideológicas. O relativo descrédito da corrente utópica provém de uma certa desilusão moderna a respeito da razão. Desilusão fundada na divisão do mundo entre duas grandes forças ideológicas. Além dos colossos ideológicos, temos, porém, os países que são antes socialistas do que comunistas ou capitalistas, os países nórdicos, a Índia e todos aqueles que estão a
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preferir a neutralidade, mesmo quando, como a Europa, não o podem declarar enfaticamente. São países divididos e ainda em luta entre as ideologias e a utopia, como gostaria de poder também classificar os países de nossa América do Sul. A democracia facilitou o capitalismo, mas este nunca foi de sua essência. As grandes e devastadoras críticas a essa fase econômica da humanidade foram feitas no século XIX e nos começos deste século. A própria América do Norte, que, nesse período, era a terra edênica de todo o mundo, graças à fronteira de progresso que o regime ali abrira, sofreu de Veblen, como economista, e de Mark Twain, como satírico, as críticas mais implacáveis que poderia sofrer. Como esse capitalismo não se havia ainda endurecido em ideologia, mas, era como uma utopia, com as amplitudes geográficas de sua conquista, amplitudes que redimiam as suas injustiças, nenhum McCarthy ali surgiu para abrir a inquisição de novo contra os Mark Twain ou os Veblen. A aceitação do capitalismo e de sua ética darwinista era algo de óbvio, enquanto as oportunidades fossem tantas, que a incrível teoria da vida como uma corrida com prêmios para uns poucos pudesse parecer algo de sensato. Os que perdessem tinham outras corridas a correr. E quando não tivessem era porque não era essa a vontade de Deus. Com o fechamento da "fronteira" para as sempre renovadas corridas, o capitalismo perdeu todo sentido utópico e se cristalizou em uma ideologia a ser defendida pela propaganda e, no fim de contas, pela força. A realidade é que o fim natural da democracia seria o socialismo. Os processos revolucionários e violentos de realizar o socialismo é que acabaram por galvanizar o capitalismo, justificando-lhe o uso da força como recurso de sobrevivência. Se ambos tinham de ser regime de força, a diferença entre os dois deixaria de ser substancial. E o homem, esmagado entre esses dois "realismos", perdeu a confiança no seu pensamento. Ou passou a ter medo de confiar na inteligência, pois já não era livre de usá-la vigorosa e audaciosamente. Desapareceram os pensadores utópicos, isto é, os pensadores capazes de especular livremente sobre as alternativas e possibilidades que os novos conhecimentos e as novas tecnologias abriam para a humanidade. Para essa especulação, fazia-se e faz-se indispensável o gosto pelo pensamento largo e generoso, uma atitude de simpatia e confiança no progresso dos conhecimentos humanos, uma capacidade criadora em imaginar ou antever as novas perspectivas que poderiam abrir, conforme o uso que deles se fizesse e, sobretudo, uma confiança no homem como ser capaz de escolhas inteligentes e de plasticidades insuspeitadas em seu desenvolvimento intelectual e em seu aperfeiçoamento afetivo e, espiritual. Toda essa forma de pensar se fez perigosa. As ideologias, brutalmente fundadas no que é e no que existe, dividiram dramaticamente o mundo. Pensar-se no que devia ser passou a ser uma forma de ingenuidade, no melhor dos casos, ou de simples escapismo. A ciência física audaciosamente renovadora, fazia do que é e do que existe uma simples referência para o que podia ser e, com o progresso tecnológico, criava devastadoramente o novo e o novíssimo, isto é, novas formas, novos corpos, novas realidades. Mas a ciência social, como Napoleão, só via e só acreditava no que existe, no que é. Qualquer saída daí, só se podia fazer violentamente. Ou o status quo, ou a revolução. E esta revolução não buscaria o que devia ser – de antemão condenado como impossível – mas o que podia ser , como na ciência física, esquecida de que o pode ser , no campo da física, é o deve ser de alguém que passou a ter o propósito daquilo realizar. O deve ser social era tanto uma escolha quanto o pode ser
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das tecnologias físicas. Estrangulado pelas ideologias, permiti que o repita, o pensamento humano científico e filosófico se fez ou especializado, isto é, competente apenas em pequenos campos, ou "realista", isto é, defensor do status quo, do mal menor, ou pura e simplesmente escapista. Generosidade de pensar, entusiasmo imaginativo passaram a não parecer "bem". Quanto mais educada seja a pessoa, tanto mais elegante, tanto mais próprio fica uma atitude da apatia, ou indiferença ou descrença. Pensar audaciosamente é, pelo menos, algo de leviano. Que sucedeu, então? Ficou com os tolos a elaboração dos planos largos e amplos a respeito do futuro. Daí os livros últimos sobre tecnocracias, revolução de gerentes, reinos de burocracias, etc., etc. Não é para tais planos, grandes, "realistas" e maus, como os chama Riesman, que desejo conclamar a vossa atenção, mas, para a utopia da Cidade Humana. O período obscuro da luta ideológica vai, ao meu ver, desaparecer. Voltaremos à velha luta racional e utópica do século XIX. Voltaremos a crer na inteligência e voltaremos a crer no homem. Voltaremos a crer no sonho humano. Nada mais capaz de sonho do que a inteligência humana. Desde que ela se fez articulada e científica, os seus sonhos entraram a se fazer realidade. A transformação do sonho humano no pesadelo dos dias de hoje é um episódio grotesco e passageiro, resultante do fato de haver a ciência marchado com tão inesperada rapidez que suas armas caíram em mãos ainda inexpertas para o seu uso. A exploração dos resultados da ciência ou o medo das suas conquistas são dois aspectos do mesmo fenômeno: a inadequação de nossas instituições econômicas e políticas para o uso da ciência já existente. A transformação dessas instituições não representa nenhum cataclisma. Foi ainda a ressurreição, em pleno século XX, da teoria maquiavélica da revolução social, que criou todo esse medo de nosso tempo. Restauremos o pensamento utópico, livre e razoável, fundado no conhecimento e nas potencialidades analisadas desse conhecimento – não se confunda, com efeito, utopia com escapismo (a utopia é um plano científico de possibilidades reais) confiemos no homem e no poder de esclarecimento do saber de natureza científica, ampliemos a área desse saber ao campo da economia, da política e da moral, criemos os métodos próprios desse novo saber e marchemos para a frente, sem medo nem cegueira, guiados pelo sonho humano de uma vida cada vez mais ampla, mais rica e mais harmoniosa, até onde o pensamento nos puder levar, nas vastidões hoje antevistas dos astros e das estrelas. A grande regra de ouro – hoje abandonada – dessa atitude é a da independência do pensamento humano. Engajado, sim, mas engajado nessa independência ou seja na exclusiva dependência das regras desse próprio pensamento, livre como o ar. Não tenhamos medo de pensar, nem permitamos que alguém nos ameace contra esse privilégio de pensar independente e livremente. Não receiemos combater as ideologias, sempre que estas julgarem que podem ser impostas pela força, ou pela chantagem de nos chamar de vendidos à ideologia adversária. O pensamento humano é demasiado sério para ser entregue à farsa desse conflito de interesses. Discriminemos nesses interesses o que for legítimo, ou mostremos o equivoco em que se acham ao se julgarem ameaçados. Não vejo em que os verdadeiros planos de um futuro melhor possam prejudicar os legítimos interesses de qualquer ser humano. Nem tão difícil será definir os interesses legítimos. Os maiores exploradores do mundo, os mais truculentos gozadores de prazeres são afinal criaturas humanas, apenas inquietas e pouco lúcidas, sonhando, em seus raros momentos de paz, como qualquer vivente, com uma felicidade quieta e prazeres
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sabiamente dosados, em ritmos diversos e múltiplos. E as utopias, e o pensamento utópico estariam profundamente interessados em dar-lhes oportunidade para isso realizarem. A promessa e as possibilidades do conhecimento humano abrem, com efeito, toda sorte de alternativas. Apostemos em descobrir as melhores, as mais harmoniosas, as mais felizes... Palavras como estas foram um sem número de vezes ditas nos tempos que antecederam o pesadelo das últimas transformações sociais do mundo. Cumpre-nos voltar a pronunciá-las e ouvir-lhes o apelo. O medo é uma paixão contagiante. Só começa a desaparecer, quando alguém se ergue para dizer que não o tem. O medo do nosso tempo provém da teoria da mudança social pela força. Se passarmos a pensar em realizá-la pela inteligência, se perdermos a idéia sinistra de que o homem é um ser condicionado, a ser manipulado por slogans mais ou menos irracionais, sem capacidade de resistência nem da razão e mantido em ordem pela conformidade mental e adaptação mecânica; se robustercermos a confiança na inteligência e no indivíduo, se o estimularmos a pensar e refletir e não a se conformar, se lhe dissermos que a organização é inevitável, mas sua resistência à organização é imprescindível e que sua vida há de ser sempre não a aquiescência mas a luta entre o sonho racional (ou seja a utopia) e a realidade, aquele sempre mais e mais próximo mas nunca atingido, então, sim, teremos restaurado as condições para progredir sem complacência, sonhar com eficácia e esperar com lucidez... Se este puder ser o sentido da caminhada humana, ele terá de se formar primeiro na mente e na imaginação dos mestres e dos educadores. Não será espontaneamente que haveremos de sair na estrada do medo e da catástrofe para a da segurança e do razoável. Os professores e a escola – cada vez mais importantes na civilização voluntária e inteligente que estamos criando – hão de ser os pioneiros nessa fronteira de progresso moral, que se terá de abrir de agora por diante, na conquista do verdadeiro poder não só material mas humano sobre a vida neste planeta. Professores de civilização, temos todos de reaprender o sentido desse termo, e nos fazermos mestres de urbanidade, de candura, e de independência, de tolerância e de saber, em um mundo cada vez mais sob o domínio do homem e cada vez mais digno deste mesmo homem. São estes os votos do vosso paraninfo, neste findar de ano, em que se descerram as portas do grande ministério a que jurastes servir!
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10 POLÍTICA, INDUSTRIALIZAÇÃO E EDUCAÇÃO1
UMA TRANSFORMAÇÃO, que se iniciou nos fins do século XVIII, na Grã-Bretanha e nos Países Baixos, de métodos de produção, vem criando, em todo o mundo, urna nova sociedade e uma nova civilização, a sociedade e a civilização industrial de nossos dias. Não se pode dizer que nação alguma tenha completado a transformação, mas há as que se acham próximas do que se poderia chamar de industrialização total, outras em estádios amadurecidos e avançados e outras ainda a iniciar a grande transição. Recentemente, essa grande mudança vem sendo objeto de estudos e tentativas de sistematização quanto ao processo de seu desenvolvimento, visando, de certo modo, retirar o assunto do campo da intuição ou profecia política e trazê-lo para o quadro objetivo dos estudos científicos. Dentre tais estudos, poucos serão mais importantes do que os produzidos pelo "lnter-University Study of Labor Problems in Economic Development", organização criada em 1954, pelos economistas Clark Kerr, John T. Dunlop, Frederick Harbinson e Charles A. Myers, destinada a investigar o fator humano no processo do desenvolvimento econômico. Doze livros e dezenas de artigos científicos já foram publicados, achando-se em impressão outros catorze livros e dezenas de monografias. As pesquisas até agora feitas estendem-se por 35 países e ocupam 78 especialistas e autores. Valho-me da oportunidade, que me oferece este "Encontro entre Educadores", para lhes oferecer um sumário dos resultados dessas pesquisas e análises, constantes do último volume publicado: O Industrialismo e o Homem Industrial( 2 ).
Trata-se de análise e interpretação tão objetiva quanto possível das diferentes estratégias que vêm conduzindo o processo de industrialização nos diferentes países, segundo o tipo de elite que passa a comandar a grande transformação. Reconhecem os autores do estudo que a industrialização leva a certo tipo de civilização de característicos próprios e traços comuns. Nem por isto, contudo, há um só caminho para se chegar à sociedade industrial. Pelo contrário, diferentes caminhos a ela nos conduzem e, sobretudo, há estratégias diferentes, conforme o tipo de elite que toma o comando de sua marcha. Além disto, a sociedade industrial não se desenvolve no vácuo, mas sucede a sociedades preexistentes, em diferentes condições geográficas e diferentes estádios históricos, o que a obriga a assumir aspectos distintos nos diversos países; 1
Rio de Janeiro, 1961, por ocasião dos “Encontros Regionais de Educadores Brasileiros”. Clark Kerr, John T. Dunlop, Frederick H. Harbinson e Charles A. Myers. Harvard University Press, Cambridge, Mass., 1960. 118 2
Industrialism and Industrial Man de
sem nos referirmos ao pluralismo e à diversificação do próprio processo de industrialização. A qualidade e tipo de elite que, em cada país, toma a direção do movimento e conduz a nação através as vicissitudes da transição, parecem resultar de acidente histórico. Conforme seja tal elite, como iremos ver, será a marcha, a estratégia, a velocidade e a harmonia da transformação. Os autores examinam cinco tipos de elites que, aqui e ali, vêm conduzindo, nos diversos países, a grande revolução: a elite dinástica, a da classe média, a dos intelectuais revolucionários, a dos administradores coloniais e a dos líderes nacionalistas. Está claro que se trata de tipos ideais, que não existem na prática em estado de pureza, mas de mistura uns com os outros, com o domínio desse ou daquele matiz. Nem esse domínio será necessariamente definitivo. A própria dinâmica do processo de industrialização poderá extinguir ou substituir a elite originariamente dominante. De todas, por exemplo, a dos administradores coloniais parece a de menor capacidade de sobrevivência. Mas, também as outras não têm a certeza da permanência. O processo de industrialização é terrivelmente dinâmico e, de certo modo, implacável o irreversível. Se a elite que o estiver comandando não se revelar capaz, será muito provavelmente destruída e substituída pela elite nova que se vier formando à sombra dos erros da primeira. Aliás, toda fase de transição é fase de luta entre o velho e o novo, e a arte de conduzir tais batalhas, extremamente difícil, em virtude das contradições que gera o próprio processo revolucionário de transformação. Cada uma daquelas elites, ou grupos de liderança, acima mencionados, está longe de possuir composição homogênea; constitui-se antes de figuras as mais diversas – ou sejam líderes políticos, industriais, militares, autoridades religiosas, administradores públicos ou de empresa privada. Correspondem as denominações, que lhes dá o estudo, muito mais à filosofia e orientação central de ação de cada uma do que às pessoas que as compõem. Para ser bem sucedida, terá a elite responsável de embarcar na tarefa de transformação da sociedade tradicional sem contudo destruir-lhe a contextura social, nem expô-la ao perigo de destruição. É de extrema importância, com efeito, que a transição se faça de forma tolerável e sem rupturas destrutivas, ressalvando-se, de qualquer modo, a integridade da contextura social; e por outro lado, é necessário que a transformação não se revele incompatível com a posição do país no quadro internacional, em que se acha ele inserido, a fim de que possa contar com a proteção e segurança necessárias. Embora repetindo, com os autores do estudo, que nenhum caso de desenvolvimento industrial corresponde integralmente a um único dos estilos de industrialização, vamos esboçar os aspectos típicos de cada um deles.
1. A elite di nástic a e a com un idad e paternalis ta A elite, que o prof. C. Kerr e seus colegas de estudo chamam de dinástica, recruta os seus membros dentre os elementos da aristocracia rural ou comercial – agricultura e comércio são as formas de produção preexistentes – e mais raramente
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na casta militar (os samurais no Japão), na hierarquia religiosa, ou burocrática, ou mesmo dentre chefes tribais ou feudais. O nexo que une essa elite é o do respeito à tradição. Embora possa aceitar um ou outro membro novo, de modo geral, corresponde a um sistema fechado, fundado na família e na classe, constituindo uma casta privilegiada – a raça dos governantes. Dentro dessa casta, devotada à ordem estabelecida e à tradição, a qual encarna o passado, o presente e o futuro, surge, ante a ameaça da industrialização, uma minoria suficientemente inteligente para não deixar escapar-lhe o controle da mudança inevitável. São os "realistas" que, em oposição aos "tradicionalistas", preparam-se para os compromissos necessários a fim de permitir a industrialização, desde que se processe sob sua direção. Mesmo nos casos clássicos da transformação industrial desse tipo – o da Alemanha e o do Japão – deve ter precedido ao início do movimento a luta entre o dois grupos da classe aristocrática e a vitória dos "realistas" é que evita a liquidação ou o desaparecimento desta classe. Nem por isto cessa a luta com outros grupos, dependendo a vitória final do vigor dos respectivos contendores. Não surgem, com efeito, na elite aristocrática apenas "realistas" e, "tradicionalistas" mas também outro grupo de todos os mais congênitos com essa classe – e que se poderia chamar o dos "decadentes". São estes a flor e o mimo da casta: cultivam o prazer pessoal, o ócio alto e fino, a vida dissipada, são os heróis da "doce vida", geralmente ligados a culturas estrangeiras pelo gosto e pelos investimentos. Os "realistas" não têm que vencer apenas os "tradicionalistas" mas também estes últimos, inimigos bem mais difíceis e fugidios. Se os vencerem, contudo, e tiverem o necessário vigor, podem enfr entar o processo de industrialização com estilo próprio, imprimindo-lhe o feitio autoritário que caracteriza a casta. Com ênfase no poder pessoal e na perpetuação das famílias "nascidas para o governo", entre as quais se efetivam as alianças necessárias, processa-se o recrutamento entre elas dos administradores e gerentes e o movimento de transformação tem início, num regime, na realidade, de força. Daí a facilidade do grupo tender ao fascismo. Escapando porém a esse perigo, estabelece-se um sistema de predomínio familiar patriarcal, servido por governo paternal e benevolente, dotado de relativo poder de sobrevivência. Repousam os ideais sociais do grupo nos símbolos e nas instituições do passado: a família, a igreja, a propriedade privada e o estado nacional. Tradicional por excelência, só aceita alteração da sociedade na medida em que a mudança constitui necessidade de sobrevivência. Por isto mesmo, é inerentemente hostil aos intelectuais, salvo aqueles que se fazem seus “mestres espirituais" interpretando e
reinterpretando a essência do passado e, à luz dessa essência, o próprio futuro. A ordem econômica, fundada na lei e na ordem, inclina-se para os cartéis e as sociedades de economia mista, numa mistura de "público" e "privado", constituindo a base de um sistema político paternalista. Entre o trabalhador e o patrão não deve haver luta, mas harmonia. A lei e o Estado aí estão para criar o clima de paz e amor entre o lobo e o cordeiro. O poder de estabelecer as regras do jogo não se distribui, mas fica com a lei e o governo. O clima do regime é o da lealdade e harmonia entre as fileiras e a hierarquia. O trabalhador faz-se um misto de "menor" e "funcionário público".
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A marcha da industrialização é comandada pela idéia de sobrevivência. É preciso não esquecer que a transformação não se faz pelo seu próprio mérito mas apenas para garantir a sobrevivência da sociedade tradicional. Toda alteração violenta é combatida com extremo rigor. A regra é: "nem mais depressa nem mais longe do que o necessário...”
A elite dinástica e o Estado paternalista devem
sobreviver. Corno o regime industrial ganha em ser planejado, esse estilo pode ser bem sucedido, dada a facilidade com que pode fixar metas e objetivos e a aplicação do dispositivo de força na sua conquista. Não se pense porém que tal forma de industrialização seja pacífica. Pressões externas e internas podem incentivá-la ou destruí-Ia. As pressões externas – sejam militares, políticas ou econômicas – são geralmente salutares e incrementam o progresso econômico. Já as pressões internas, sejam as da classe trabalhadora, ou de grupos intelectuais e independentes, não são de natureza a facilitar o progresso econômico, tendendo antes a criar instabilidade política, que poderá chegar a fazer cair a classe dirigente e levá-la a ser substituída. O poder de sobrevivência desse estilo de industrialização é questionável. A tendência será para constituir-se fase de transição para o comando de um dos demais grupos. No melhor dos casos, ao da elite de classe média, que passamos a analisar.
2. A elite de clas se m é dia e a co m un idad e do m ercad o ab erto Não será preciso repetir como surge a classe média. Os seus membros se recrutam nos grupos comerciais ou artesanais, já existentes na sociedade anterior e sensíveis às possibilidades dos novos meios de produção. Sensíveis às oportunidades do lucro. A classe não pratica nenhuma rígida ideologia. O seu assalto à ordem velha não toma o aspecto global de uma revolução, mas fá-la ruir aos poucos, minando-a aqui e ali, construindo lentamente a nova sociedade. No seu conflito com o velho acaba contando, como aliados políticos, com intelectuais ansiosos por liberdade e operários em busca de oportunidades. A sua flexível ideologia é economicamente individualista e politicamente igualitária. Cada indivíduo é responsável por si mesmo, dentro dos limites da lei. A ele cabe tirar proveito das oportunidades que a sociedade lhe oferece. Nessa áspera livre competição, é ele o seu próprio senhor e a sociedade funda-se no seu interesse próprio (esclarecido se possível) em substituição ao "bem-estar da comunidade", que seria o objetivo professado da sociedade anterior. A mobilidade vertical dos indivíduos dentro da sociedade, em relação direta com o conhecimento das oportunidades existentes e a capacidade de fazer uso delas quebra a rigidez da classe. A família e o passado deixam por isto de ser importantes, salvo quando facilitam tal aproveitamento de oportunidades. O sistema baseia-se politicamente num regime de leis e regras consentidas, e, economicamente, na vantagem ou proveito próprio. Ninguém nasce para mandar, mas alguns são feitos para gerir e administrar. O empreendedor, o gerente é, em parte, um político, construindo por entre as pressões dos indivíduos, dos grupos e das instituições, em dinâmico e difícil ajustamento, uma sociedade dominada pela mobilidade e pelo interesse pessoal. Que ideais pratica essa sociedade? Algo de fugidio e difícil de caracterizar. Cultiva antes meios do que um fim: e os meios são o razoável, o interesse próprio, e
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a relativa embora ampla tolerância ao dissentimento. A pluralidade de centros de poder e decisão e um jogo de freios e contra-freios marcam o funcionamento social. Separação entre a Igreja e o Estado e neste, separação dos três poderes – separados e independentes – caracterizam o pluralismo político. O pluralismo econômico está na multiplicidade das empresas. De todo esse complexo jogo de influências e contra-influências decorrerão a ordem e a justiça. As relações entre o operário e o patrão são as de independência mútua. O operário ali está por uma transação comercial. Diz um autor: o operário "sabe que é politicamente igual ao patrão e não deseja subordinar-se a ele e incorrer em uma dívida de gratidão. Está na fábrica ou oficina em virtude de um contrato e não considera os demais colegas como uma família de que o empresário seja o chefe e o patriarca". Dessa independência, passa o trabalhador à fase em que se organiza em oposição aos empresários, e um novo pluralismo de poder se estabelece, com a participação crescente do trabalhador nas regras do jogo. O progresso nesse tipo de sociedade é tido como algo de natural. Decorre do complexo jogo de mil e um centros de poder, tomando decisões dia-a-dia. Não deve ser retardado mas também não deve ser forçado. Considera-se suficiente o incentivo do interesse próprio numa sociedade materialista e competitiva. Não há planejamento central. Assim, a velocidade do desenvolvimento fica entre a sociedade patriarcal que resiste ao progresso e a da sociedade de mobilização industrial forçada, que caracteriza o terceiro tipo a ser adiante examinado. A sociedade do tipo classe média não é homogênea nem uniforme. Seus característicos e distinções decorrem das suas origens. Na Europa e na América Latina surge como uma sociedade nova em luta contra a ordem estabelecida, a da classe aristocrática dominante e contra os hábitos de uma civilização anterior. Nos Estados Unidos, no Canadá, na Nova Zelândia, a classe média é quase a classe originária. Nem aristocratas nem peões. Acabam todos se julgando classe média. São essas sociedades os modelos mais puros da sociedade de classe média e do mercado aberto, onde melhor se pode sentir as tendências por assim dizer espontâneas desse tipo de organização social. Nestes países, o progresso marcha rapidamente e certa consistência cultural interna se processa sob a direção da classe industrial e comercial. Nos demais países, o desenvolvimento não é tão homogêneo: pelo menos três subculturas surgem, a da aristocracia, a da classe comercial e a dos trabalhadores. Ao lado desses países que iniciaram cedo o seu desenvolvimento e vêm lentamente aprendendo essa nova sociedade de classe média, temos hoje os países subdesenvolvidos e os novos que se estão rapidamente industrializando. Se o Estado não se transforma no empresário universal, há que recrutar os empreendedores entre os comerciantes... E a transição não é fácil: o comerciante trabalha com a mentalidade do lucro a curto prazo e custa a mudar para a mentalidade de industrial, de criador de riqueza, de lucro a longo prazo. Surge então o espírito de exploração, tanto mais grave quanto, não havendo também competição industrial, desaparece qualquer freio ao lucro. Falta de espírito industrial, falta de competição, auxílio do Estado – retiram a essas sociedades muito dos característicos da sociedade individualista de classe média. Dividida entre o mercado e o Estado, entre o consumidor e o burocrata, a "corrupção" e a "dissipação" passam a medrar e com elas o sentimento de "exploração". A luta pelo desenvolvimento faz-se difícil, penosa e tensa. O êxito somente poderá ser obtido, se a industrialização for tão rápida que consiga
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disciplinar os elementos em jogo e restaurar na sociedade aquele mínimo de saúde indispensável ao domínio do espírito do mercado e das forças autocorretivas da competição. A carreira da classe média desde o seu surgimento como mercadores, depois produtores e empreendedores, até a era dos administradores profissionais das sociedades altamente organizadas, representa uma longa carreira, com extrema variedade de tipos de ação e de empresa. Mas algo de comum sempre ficou: a busca do lucro, a confiança na iniciativa privada, o espírito de gradualidade nas mudanças... Eficiência gerencial, atitudes do trabalhador, relações entre operário e patrão variam, entretanto, de forma acentuada. A dinâmica desse tipo de sociedade está longe de estar encerrada e não é pequena a sua luta contra o terceiro estilo, que pisamos adiante a examinar.
3. Os in telectuais revo luc ion ário s e o Estado c entralizado Uma nova classe de intelectuais e seus seguidores ou ativistas, assume, neste caso o controle do processo da industrialização e da sociedade como um todo, substituindo a velha elite e a velha cultura por uma nova classe e uma nova cultura. Ao se atribuírem o poder de liderança, buscam justificá-la pela aceitação e adoção de uma teoria da História, que lhes ensina o lugar, o tempo e os meios de agir e os transforma em instrumentos do próprio inevitável processo histórico, do próprio processo de criar e fazer o futuro. Ao contrário da classe média, essa nova classe funda-se numa rígida ideologia, segundo a qual a nova sociedade é inevitável. Esta nova sociedade seria sociedade totalmente identificada com a nova tecnologia e com as relações econômicas e sociais mais compatíveis com o seu máximo desenvolvimento. Daí a elaboração de verdadeira ortodoxia, com os seus "sumossacerdotes" para interpretar e aplicar a ideologia e a "linha" para segui-los. Os novos membros são escolhidos na base de capacidade e confiança política. Com o desenvolvimento dessa sociedade, entretanto, os intelectuais revolucionários cedem crescentemente o lugar de líderes do sistema a administradores políticos de alto nível e a burocratas. Um novo grupo passa a controlar a nova sociedade mas de maneira diferente dos antigos revolucionários. De certo modo, esses novos burocratas são até opostos aos antigos apóstolos. Em vez da mudança constante são antes conservadores e em vez do debate político básico, discutem interpretações e reinterpretações da doutrina. De qualquer modo, porém, o intelectual revolucionário é substituído pela ideologia, pelo partido, pelo Estado: os revolucionários se vão, fica o Estado centralizado. Se a primeira elite tem sua origem no proprietário de terras, a segunda no comércio, esta terceira nasce com o "manifesto" político. O partido é o centro dessa sociedade. Os conflitos se resolvem na base da correção ortodoxa. O sistema repousa na coesão ideológica dos lideres; na manipulação dos interesses econômicos das massas; e no uso de força quando necessário. Pensamento coletivo e força coletiva marcam o desenvolvimento social, que é considerado um processo histórico, fundado na nova tecnologia. Não há assim objetivos sociais determinados, mas a marcha para a conquista absoluta dessa tecnologia –
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educação, organização do trabalho, arte, literatura, tudo é posto a serviço do sistema de produção. A sociedade é unitária, monolítica, sem distinção alguma entre as instituições econômicas, políticas e religiosas. O poder de estabelecer as regras fica com a hierarquia: o operário depende do gerente e este do Estado. O mais alto atributo do trabalhador é o senso do dever. É um "cidadão" com muitos deveres e poucos direitos. A sociedade é considerada perfeita, na medida em que se submete à lógica da industrialização e conquista assim o máximo de poder de sobrevivência. Toda a ênfase é posta no progresso econômico. A História é considerada um processo consciente e, dentro de certos limites, sujeito a controle central. A teoria é a de que a História marcha por avanços e saltos. Há constelações estratégicas de interesses de classe e estratégicos momentos de tempo a ser manipulados. A capacidade de mobilização industrial constitui, talvez, o seu maior poder de sobrevivência e o grande impacto histórico desse tipo de sociedade. A falha do sistema talvez esteja entre as exigências da ideologia e as aspirações das massas em seus ambientes históricos e geográficos. A versão ortodoxa (União Soviética e China) dá lugar a versões mais moderadas, com maiores concessões às massas (Polônia, Iugoslávia), à luz dessas circunstâncias históricas e geográficas. Os fiéis, entretanto, receiam essa marcha para a heterodoxia.
4. O adm inistrado r colo nial e a Metrópole Não precisamos nos deter muito neste tipo de industrialização, porque já não se aplica ao nosso caso. No interesse, contudo, da clareza, convém dizer que os autores do livro dão larga atenção ao caso da introdução do processo de industrialização por uma elite estrangeira, apresentando três tipos de colonialismo: o colonialismo temporário e de um segmento apenas da sociedade nativa; o colonialismo de colonos que se estabelecem permanentemente no território, e criam uma sociedade dual, de colonos e nativos; e o "colonialismo total" quando os agentes coloniais visam transformar totalmente a sociedade à sua imagem (Havaí, Moçambique, Hungria). Pela própria classificação, pode-se ver que cada tipo de colonialismo tem sua lógica histórica. O colonialismo "segmental" traz consigo a semente de sua destruição. É o criador e a vítima do progresso. O segundo é mais tenaz – mas não sabemos ainda se pode sobreviver. O terceiro – o colonialismo total – se bem sucedido deixa de ser colonialismo, e, neste sentido, tem maior poder de sobrevivência. Não fica, porém, apenas nisto. Conforme a Metrópole esteja dominada pela elite dinástica, ou de classe média, ou dos intelectuais revolucionários, o colonialismo assume aspectos diversos. Por isto mesmo, é o de mais difícil caracterização como tipo ideal. 5. O líder n acio nalis ta e o Est ado c om o g uia O quinto tipo de condução do processo de industrialização é o do líder nacionalista. Não se pode dizer que haja no caso um sistema de idéias. O movimento nacionalista pode servir para a conquista do poder, mas não encerra
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propriamente uma teoria de ação. Predispõe, entretanto, a certas direções: a revolta contra a velha ordem, a luta pela independência, a consagração de heróis nacionais. A falta de um programa coerente de ação lança a sociedade nos braços de personalidades carismáticas, e leva o povo a uma atitude de expectativa de milagres. Os objetivos são extravagantes, episódicos e espetaculares. Trata-se de "tomar de assalto as fortalezas da História", como já disse alguém. Por isto mesmo, a tendência do nacionalismo é de confiar ao Estado a direção do seu esforço. Daí a sua inclinação à economia planejada, ao investimento pelo Estado, ao controle estatal das organizações trabalhistas, à previdência estatal, à direção estatal da indústria e a dramáticos apelos do Estado para austeridade e o trabalho árduo. Toda essa orientação passará a assumir suas verdadeiras cores, num sentido ou noutro, para direita ou para a esquerda, conforme sejam os lideres que venham a assumir a direção. Daí serem os países nacionalistas um dos palcos da competição da guerra fria. Tais líderes poderão ser os da elite dinástica (Pérsi a), os da democracia liberal ou dos intelectuais quase-socialistas (Índia), ou os da hierarquia militar (Egito), e conforme as respectivas doutrinas, favorecerão a iniciativa privada ou a iniciativa do Estado, a liberdade individual e o livre debate ou a força, a disciplina, o dever e o governo pessoal. Sua economia tenderá também a ser uma economia mista, entre a da iniciativa privada preferida pela classe média e o controle estatal dos intelectuais revolucionários. O maior perigo desse estilo de industrialização está na conservação ou excesso dos seus aspectos negativos, os ódios e medos que deram origem ao movimento de independência. Quanto mais depressa se vencer essa fase, mais afortunadas serão as possibilidades de se não perderem o ímpeto e o dinamismo do movimento e de se conquistar aquela unidade nacional indispensável a um progresso firme e contínuo. De qualquer modo, o estilo nacionalista implica em líderes carismáticos, em massas na expectativas de milênios, e no Estado como instrumento do desenvolvimento econômico. * Demos, assim, em breves traços, uma idéia dos cinco estilos pelos quais se pode processar o movimento de industrialização em nossa época. Resta uma nota, para não me afastar do livro que estou procurando resumir, sobre as duas grandes forças oscilantes, de que depende, de certo, modo, o êxito de cada um desses estilos: os intelectuais e os generais, representando as idéias e o poder material. Essas forças inclinam-se já num sentido, já em outro e constituem, sem dúvida, fatores cruciais nos momentos críticos da grande transição. Quem tiver a força, comandará o movimento. De todos os estilos só o democrático-liberal pode se dar ao luxo de ignorar os generais. De modo geral, as duas forças – os intelectuais e os militares – comandam o processo de industrialização, sempre que a marcha for incerta e crítica. Só com certa normalidade é que forças mais estáveis poderão tomar a direção. Isto posto, e considerando que não levamos em conta o regime de colonização, temos que há quatro métodos paralelos de conduzir o processo de
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industrialização: o da elite dinástica, o da classe média, o dos revolucionários intelectuais e o dos líderes nacionalistas. As perguntas cujas respostas caracterizam tais métodos são as seguintes: 1) Quem conduz a marcha? 2) Qual o propósito da marcha? 3) Como se organiza a marcha? Quem conduz a marcha? a) A elite dinástica responde:
os que nasceram para mandar e que se identificam peles família e pela classe; o governo é pessoal, fundado na tradição e sustentado pela força, se necessário. b) A classe média responde:
os que por competitiva educação e competitiva experiência melhor merecem a responsabilidade da liderança; esta liderança funda-se no consentimento e se processa segundo certas regras gerais aprovadas do jogo. c)Os revolucionários intelectuais respondem:
os que possuírem uma teoria superior da História e uma estratégia superior para organizar a sociedade de acordo com as exigências da tecnologia industrial; a sua liderança apóia-se na força. d ) Os líderes nacionalistas respondem: os que pela sua "visão" e "coragem" encarnam o futuro da nação; o seu poder se funda no senso de patriotismo que logram despertar nos cidadãos da nação.
Qual o propósito da marcha? E como é a marcha organizada? a) a elite dinástica responde: preservar a ordem tradicional e a comunidade paternalista, ao mesmo tempo que manter o controle do novo método de produção. Para isto, precisa-se de um Estado forte, a fim de manter a ordem e a estabilidade interna; de deixar nas mãos dos patrões um poder substancial para regular as condições de trabalho e manter os trabalhadores na dependência da sua lealdade aos patrões. b) Para a classe média, o objetivo da marcha é o desenvolvimento de um método de ação que, a longo prazo, traga o máximo bem-estar aos indivíduos: o método do mercado aberto nos negócios econômicos e políticos. Este método importa em dar-se relevo ao esforço privado, na distribuição pluralística do poder na área das relações industriais entre a gerência, as organizações trabalhistas e o Estado. Os trabalhadores, por meio de organizações independentes, podem resolver seus conflitos com os empregadores. c ) Os revolucionários intelectuais consideram o objetivo a construção de uma nova sociedade completamente compatível com a nova tecnologia. Para isto, há que estabelecer um Estado centralizado, que detenha todo poder de fixar as regras e espere de cada trabalhador o cumprimento do dever e a aceitação, sem discutir, das decisões do Estado que, em teoria, age em seu interesse. d) Os líderes nacionalistas consideram o objetivo, a independência e o progresso da nação, a ser obtido sob a direção do Estado.
A elite dinástica oferece continuidade; a classe média, escolha individual; os intelectuais revolucionários, alta velocidade de industrialização; e os líderes nacionais, a integridade e o progresso da nação. Desenvolve-se assim em plena diversidade o processo de industrialização. A intensidade ideológica de nossa época marca o grau de conflito e de luta. Com a aceitação progressiva da industrialização, é de esperar a queda do tonus ideológico e o possível reencontro de todos esses diversos métodos num único industrialismo do futuro. Até esse remoto futuro, a variedade de condições culturais, históricas e econômicas fará do
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quadro industrial do mundo um quadro diversificado e múltiplo, mas, nem por isto, sem uma vigorosa lógica interna e certa unidade fundamental, que irá transformar o homem e sua sociedade como nenhum movimento da história jamais o transformou. * À luz desse quadro aí esboçado, não por ideólogos ou teóricos, mas por frios e objetivos economistas – onde poríamos nosso país e seu arranco inicial em prol da industrialização? Não é verdade que logo sentimos quanto nosso esforço participa de uma liderança eclética, com aspectos de liderança aristocrática, de liderança da classe média e de liderança nacionalista? Ora, cada uma dessas lideranças tem suas exigências específicas quanto à educação e quanto ao modo de conceber o fator humano no desenvolvimento industrial. Será que o exame dessas diversas posições poderá esclarecer-nos quanto à nossa confusão educacional e ao infindável debate em que nos perdemos e que já começa a ser objeto até do humorismo internacional? Um jornalista suíço em visita ao Brasil manifestou, ao voltar à pátria, sua surpresa: o país oferece o espetáculo de cinqüenta por cento de analfabetos ao lado do mais rico debate pedagógico que jamais lavrou em alguma nação. O processo de industrialização afeta a sociedade em quase todos os seus elementos: muda o sistema familiar (da família chamada extensa ou colateral para a família nuclear ou conjugal); mudam as estruturas de classe (de rígidas para flexíveis, de fechadas para abertas) e mudam com elas as relações entre trabalhador e empresários; mudam valores religiosos e éticos em relação ao trabalho, à economia e à satisfação de desejos materiais; e em relação à inovação, à mudança e à utilização da tecnologia moderna; mudam os conceitos jurídicos e legais, a respeito das relações de trabalhador e empresário e muda o conceito de Estado-nação, cujo poder sobre os grupos divididos da sociedade tradicional anterior se faz muito mais forte, conseguindo muitas vezes certo grau de unificação política e social. O interesse nacional torna-se mais consciente na sociedade em vias de industrialização, e certa mobilização coletiva de esforços mais viável. Essas rápidas indicações sugerem a natureza e a diversidade das resistências que a sociedade tradicional pode vir a opor ao processo de industrialização. Se juntarmos a esses fatores, já de si mesmos diversificados e contraditórios, a contradição entre as próprias formas de condução do movimento de industrialização, poderemos ver quanto é difícil a situação brasileira, no sentido de poder atuar em relação à sua nascente industrialização com a necessária unidade e o necessário ímpeto. Parece, com efeito, indiscutível o caráter misto de nosso processo de desenvolvimento. Temos o setor francamente aristocrático, pouco importando o aspecto humorístico de que alguns dos mais eminentes membros desse grupo sejam acabados e perfeitos novos-ricos do próprio movimento; temos o setor liberal democrático de classe média, e temos o grupo nacionalista. Desses três grupos, só o segundo tem doutrina, a doutrina liberal-democrática. Mas como essa doutrina é aberta e não dogmática, não se
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pode evitar certa confusão e obscuridade entre os líderes desse grupo, em contraste com os demais, dominados mais nitidamente por interesses e sentimentos. Entre a difícil doutrina liberal e o emocionalismo nem sempre lúcido do nacionalismo, o pensamento político brasileiro se refugia em expedientes intelectuais e conjurações de interesses. Falta à cena nitidez e definição. Por isto mesmo, o desenvolvimento brasileiro se vem fazendo com uma carga de contradições tão grande e resistências tão implacáveis ao seu funcionamento lógico que, se não receio a sua parada, receio a sua ruptura, devido ao jogo de progressos e regressos que vem provando e alimentando sua grande confusão ideológica. Vimos, na análise que reproduzimos, nas páginas anteriores, que somente as elites de classe média e as elites intelectuais marxistas têm certa bagagem de idéias para a condução, com unidade de propósitos, da transformação social em marcha no mundo. As elites dinásticas são contrárias à industrialização e apenas a admitem enquanto necessária à sobrevivência da ordem anterior; a elite colonial age no interesse da metrópole, salvo os casos do "colonialismo total", em que se confundem com as demais elites e suas respectivas doutrinas; a elite nacionalista, mais um movimento que uma doutrina, não tem método próprio de ação, salvando-a apenas o estado de consciência e de mobilização emocional que cria e lhe permite o programa de surpresas e esforços espetaculares, com que alimenta o famoso clima quiliástico em que arde! (Assuã, Brasília... ). Ora, achando-se nosso desenvolvimento sob a influência de três grupos, o aristocrático, o de classe média e o nacionalista, a salvação estaria em que a ênfase viesse a caber à elite de classe média, por ser a mais aparelhada em idéias específicas relativas à nova ordem industrial. Sucede, porém, que o debate político dos últimos cem anos, embora de modo algum encerrado, tem concorrido, entre nós, para emprestar à classe média apenas o caráter reacionário que, por vezes, assume, sempre aliás em aliança com a elite dinástica, esquecendo-se o seu passado revolucionário, de iniciativa da transfomação da sociedade pela industrialização, e a possibilidade de continuar ela seu destino inovador. A verdade é que a classe média somente conseguiu realmente estabelecer-se e controlar a nova sociedade em certas nações da Europa e na América do Norte, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Em todo o resto do mundo, prevalece a sociedade tradicional, com as suas formas feudais ou dinásticas, ou as elites revolucionárias comunistas, ou as ainda indefinidas elites nacionalistas. Em toda a chamada América Latina, estamos emergindo da fase feudal ou dinástica, e tentando criar as tradições da classe média mas sem o conseguirmos, sobretudo porque se perdeu o sentido revolucionário dessa classe e nos radicalizamos numa luta entre os extremos da direita ou da esquerda. Como estas duas sociedades extremadas são sociedades unitárias e planejadas, e como as críticas mais vivas à classe média foram sempre ao seu individualismo e ao seu laissez-faire, ambos hoje tão modificados e qualificados, tem-se procurado valer dessa contradição para considerar-se praticamente inviável a teoria da classe média: ou seja a do interesse próprio individual conjugado e disciplinado pelo pluralismo de organização e funcionamento.
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Considerando a classe média reacionária e assumindo que o que existe no país já é classe média, embora de modo algum se tenha conseguido criar a mentalidade de classe média, o grupo autocrático consegue firmar-se e, com o auxílio do grupo mais revolucionário (que se opõe acima de tudo aos aspectos revolucionários da mentalidade da classe média), criar as condições vigentes no Brasil de predomínio reacionário ou, pelo menos, dominantemente autoritário. Não julgo, com efeito, que seja preciso demonstrar que nosso desenvolvimento está, de fato, muito mais sob a influência do espírito dinástico e paternalista, que herdamos do Estado Novo e agora recebe a propulsão do combustível nacionalista, do que sob o comando das doutrinas da classe média, embora estas se ostentem na letra da Constituição, que nem sequer logramos complementar. Não seria preciso contradição maior para marcar a situação de confusão e de crise em que vivemos. A verdade é que estamos cada vez mais longe da formação do cidadão indispensável ao difícil funcionamento da democracia liberal. E por isto mesmo é que a análise da situação educacional é suscetível de tornar patente grande parte dessas contradições que, a meu ver, podem quebrar a coesão e a contextura de nossa sociedade. Como seria muito longo analisar, em face de cada tipo de elite, além das suas respectivas estratégias – que procuramos esboçar nas páginas anteriores – as respectivas atitudes em face dos conflitos culturais provocados pela industrialização, as respectivas políticas em face do chefe de empresa, do administrador e do gerente, do trabalhador, do seu protesto, de sua organização, do seu recrutamento e do seu treino, vamos limitar-nos a traduzir o quadro em que Kerr e os seus colegas definem, esquematicamente, as diferentes posições das elites em questão. A seguir voltaremos à situação brasileira, com respeito à educação, a fim de fazermos mais uma vez a advertência de que a confusão e obscuridade políticas da vida brasileira é que não permitem que esse eterno problema seja equacionado e resolvido. Não é difícil, percorrendo o quadro de págs. 198 a 200, indicar a posição do país em cada um dos pontos examinados e definidos. Mas somente iremos sublinhar os aspectos educacionais. Como é natural, cada elite estabelece a educação que melhor se ajuste à sua estratégia para a industrialização. A elite dinástica, visando, acima de tudo, preservar a tradição, oferece educação, apenas, aos poucos e, especialmente, a grupos seletos e destinados a constituir a elite governante. A ênfase é em educação humanística e na formação jurídica, com restritas facilidades para a educação científica. Os valores tradicionais e a religião são postos em relevo em todos os graus e níveis de ensino. Não têm as universidades participação no processo de industrialização. Há pouco interesse no treino dos trabalhadores, além da educação elementar e do aprendizado direto nas fábricas. Há alguma dificuldade em nos encontrarmos nesse retrato? Não se destina até hoje aos "poucos" a nossa educação? Não há uma constante pressão para que continue humanística e não científica? Têm as universidades algo a ver com o processo de industrialização? Com relação aos trabalhadores, deve-se reconhecer que fizemos o SENAI, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial. Mas, a despeito da alta qualidade deste serviço, não é difícil mostrar quanto ele, por um
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lado, reflete e, por outro, resiste à realidade do paternalismo efetivamente reinante em nossa sociedade. A verdade é que, de modo geral, nosso sistema educacional reproduz estruturalmente a educação dominante nas sociedades conduzidas aristocraticamente. Se voltarmos as nossas vistas para a posição das elites nacionalistas, veremos que também com ela temos as nossas indisfarçáveis afinidades, sobretudo no dilema entre educação comum e universal e educação de nível superior. Vivemos também dramaticamente esse dilema e quando o tentamos resolver é para expandir exatamente aquele ensino superior destinado à formação de elites de lazer e desprovido de claro propósito técnico de educação para a produtividade. Seremos assim aristocráticos e nacionalistas. Será que também somos ou começamos a ser uma sociedade de classe média? O característico do comportamento educacional da classe média é a sua crença na educação como instrumento fundamental de justiça social e de mobilidade vertical, com o enfraquecimento das fronteiras e divisões de classe. Das cinco elites, são a da classe média e a dos intelectuais revolucionários que efetivamente acreditam em educação. Ambas distribuem a educação a todos. Ambas consideram a educação essencial ao desenvolvimento econômico. Ambas ligam o processo educacional, as escolas e as universidades ao desenvolvimento industrial. Ambas fazem da educação o método de ascensão social. Já fizemos acaso algo disto? Nada, por certo. Apenas falamos e cansamos de falar em tudo isto. É verdade que há uns vagos sinais de que algo vai acontecendo. Aquele antigo dualismo de educação aristocrática e educação técnico-profissional vem se esbatendo, não porém sem recrudescências ocasionais. A equivalência, entre as diversas linhas, antes segregadas, do ensino médio, é indicação de certo processo de integração da sociedade brasileira. Mas não nos iludamos. O característico fundamental da educação aristocrática ou seja o caráter desinteressado da educação, tão desinteressado que chega a dispensar eficiência, a famosa educação-polimento, a educação-alisar-bancos-da-universidade, sem dúvida ótima para uma classe aristocrática e rica, entra mesmo agora em fase de expansão desvairada, com a proliferação de universidades e faculdades de fi losofia, inteiramente insuscetíveis de se poderem transformar em centros de educação tecnológica para a era moderna. Não sugere tudo isto que a marcha do desenvolvimento econômico brasileiro não está sendo realmente conduzida pela nascente classe média brasileira, mas pelos remanescentes do aristocratismo, ajudado pela emoção nacionalista? Não se reencontram ambos nessa expansão desordenada da educação destinada a produzir prestígio social e não eficiência científica ou tecnológica? Não se pode, com efeito, discutir educação como algo em si mesmo. Nada mais ela é do que epifenômeno de forças muito mais profundas, que controlam a sociedade.
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CONDUZEM O INDUSTRIALISMO DECISÕES BÁSICAS
DINÁSTICA
CLASSE MÉDIA
INTELECTUAIS ADMINISTRADORES LÍDERES REVOLUCIONÁ-RIO COLONIAIS NACIONALISTAS S
Velocidade da industrialização
Não mais rápida do que o necessário para preservar a elite tradicional e os seus valores. Necessidades militares podem, ocasionalmente determinar maior velocidade.
Velocidade determinada pelas perspectivas de ganho individual, escolhas individuais e ação limitada do governo. Marcha moderada.
A mais rápida possível, sob uma série extensa de controles.
Depende apenas da vantagem e interesse da metrópole colonizadora.
Altas aspirações e promessas, mas velocidade incerta.
Fontes dos recursos
Doações paternalistas e proteção governamental. A renda agrícola pode ser importante. A continuidade dos recursos depende dos favores do governo, que variam. As fontes internacionais raramente se fazem importantes.
Decisões de mercado, poupanças comerciais e pessoais voluntárias, crédito bancário e capital internacional. A continuidade depende das incertezas e variações do mercado. As fontes internacionais são às vezes importantes.
Restrição forçada do consumo por impostos e outros meios, a fim de assegurar uma grande parcela de renda nacional para a formação de capitais. Continuidade estável. Fundos dominantemente internos.
Fundos orçamentários da nação metrópole. A continuidade depende desses recursos orçamentários.
Tende a buscar grandes somas no estrangeiro para suplemen tar as economias internas mas as dificuldades são grandes, o atendimento variável e em prazos curtos.
Prioridades no desenvolvimento
Preserva e protege A agricultura A agricultura a agricultura; as comprimida pela comprimida pelo obras públicas, os competição recrutamento de monumentos e os internacional. A pessoal para indústria e projetos seqüência das pela proibição da paternalísticos, iniciativas depende agricultura individual. inclusive planos do mercado: o Violenta prioridade para residenciais, modelo tradicional e as indústrias básicas. hospitais... o movimento das Planos residenciais indústrias de restringidos. consumo para o das indústrias básicas. Projetos residenciais dependem do mercado.
Desenvolvem-se as indústrias que forneçam materiais ou bens de consumo à nação metrópole ou se destinem à exportação para produzir divisas.
Aspira alcançar ampla base industrial. Expande-se ao longo da linha anterior da administração colonial. Tem interesses por itens que produzam prestígio.
Pressão sobre os administradores de empresas
Pressão fraca: a competição internacional é reduzida com o sistema de cartéis e tarifas. As organizações trabalhistas têm pouco interesse em relação à produtividade.
Forte pressão: mercado competitivo tanto no plano interno como no externo. As organizações trabalhistas orientadas para a produção também pressionam os gerentes.
Forte pressão: a produção é burocraticamente determinada e as metas são sustentadas pelo partido, pelas organizações trabalhistas e pelos interesses profissionais.
Pressão fraca: nem os mercados – seja o interno ou externo – exercem influência nem as organizações trabalhistas são orientadas para a produção. Escassez de mão-de-obra pode ocorrer mas há métodos outros de recrutar trabalho barato, que são, então, aplicados.
Constitui problema complexo e difícil o de organizar o clima para o administrador de empresa. De modo geral, pequena a pressão exercida sobre o mesmo.
O sistema educacional
Preserva os valores tradicionais; educação superior reservada à elite; as universidades têm pequeno papel em relação à industrialização; os trabalhadores recebem apenas educação elementar.
Educação liberal; educação universal; o sistema educacional constitui o maior instrumento de mobilidade vertical para os trabalhadores e suas famílias.
Educação ligada à ideologia revolucionária; alta prioridade para a ciência e os setores especializados; os trabalhadores recebem treino especial.
Educação adaptada da metrópole, educação superior limitada a poucos nativos e dada muitas vezes somente no país metropolitano.
O sistema educacional planejado para promover a independência e dar prestígio. Dilema entre educação geral e treino de mão de obra de alto nível.
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Auto-suficiência Auto-suficiência ou ou integração econômica
Grau relativamente elevado de auto-suficiência, particularmente em relação a importantes aspectos militares.
Reflexos da A política política é a de industrialização sobre estimular o a população crescimento da população e desencorajar a imigração.
Os m ercados financeiros e de bens de consumo tendem a criar um alto grau de interdependência internacional.
Um alto grau de auto-suficiência com transações econômicas internacionais.
Integração com a metrópole.
Conflito entre as aspirações de auto-suficiência e a necessidade de integração para o desenvolvimento.
Não há política demográfica. O mercado, a renda, as despesas públicas com saúde influem sobre a população. A imigração é permitida.
Várias medidas são tomadas para constranger a tendência da população a crescer em virtude da industrialização. Não de permite a imigração.
Não há interesse pela população se a mão-de-obra for adequada. No caso contrário, recruta-se a mão-de-obra na própria colônia ou fora.
Conflito entre os meios de diminuir a mortalidade e os de impedir o crescimento da população nos países superpovoados.
CONSEQÜÊNCIAS PARA OS TRABALHADORES E GERENTES DECISÕES BÁSICAS
DINÁSTICA DINÁSTI CA
CLASSE MÉDIA
INTELECTUAI INTELECTUAIS S ADMINISTRADORE REVOLUCIONÁ-RIOS S COLONIAIS
LÍDERES NACIONALISTAS
Pressão para limitar o consumo
Pequenq, devido à lentidão da marcha pela civilização.
A poupança poupança é obtida obtida por meio de economias voluntárias e de impostos democraticamente planejados.
Limitação severa de consumo para acelerar a industrialização.
Depende das necessidades da metrópole.
Altas aspirações, aspirações, mas grandes dificuldades em aplicar as pressões.
Métodos de limitar o consumo.
Inflação.
Poupança privada.
Controles diretos em ampla frente.
Controles diretos em alguns itens, especialmente de importação.
Inflação.
Política em relação à agricultura.
Diminutas modificações de estrutura exceto para aumentar a exportação para as cidades.
Contração subordinada às forças do mercado.
Ampla reorganizaç reorganização ão para liberar recursos e aumentar a produção.
A agricultura agricultura é orientada orientada para servir à metrópole.
Tendência a negligenciar a agricultura em face do programa de desenvolvimento industrial.
Métodos de distribuição de força do trabalho
Laços de família e de comunidade limitam a mobilidade das forças de trabalho e tornam maior a necessidade de mobilidade do capital.
Confiaça no mercado de trabalho e no treino público.
Distribuição planejada e treino com ênfase em incentivos monetários.
Distribuição direta do trabalho nativo e importação do qualificado e de alto nível.
Treino de nacionais para substituir o estrangeiro.
Métodos de motivar a força de trabalho
Lealdade à A ética pessoal pessoal de tradição, à família trabalho duro e e á Igreja. recompensas em dinheiro.
Compulsão ideológica e recompensas em dinheiro.
Compulsão limitada e aceitaçãi limitada de alguns do grupo de governo.
Nacionalismo como ideal.
ADMINISTRAÇÃO E GERÊNCIA DECISÕES BÁSICAS
DINÁSTICA DINÁSTI CA
CLASSE MÉDIA
INTELECTUAI INTELECTUAIS S ADMINISTRADORE REVOLUCIONÁ-RIOS S COLONIAIS
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LÍDERES NACIONALISTAS
Acesso à gerência e administração
Acesso baseado baseado na família e os profissionais subordinados à autoridade da família.
Acesso na base de iniciativa e competência. Rápido desenvolvimento do conceito de adminsitração profissional.
No princípio, acesso na base de filiação política, depois, em padrões profissionais.
As posições posições importantes importantes reservadas para os filhos da metrópole.
Diversos, com ênfase em qualificações políticas e profissionais.
Caráter da autoridade da gerência sobre o trabalhador
Interesse paternalista no trabalhador, considerado um
Decorrente da lei e de estatutos das organizações industriais e trabalhistas ou ocasionalmente democráticas.
Ditatorial e autoritário, mas, depois, dentro de certo limite, baseada em leis e regulamentos.
Ditatorial ou paternalista.
Diversos, dependendo da natureza da classe de gerentes.
A autoridade autoridade Administradores Administradores são os decorre das funções servos do partido e do que têm de Estado. preencher.
Superioridade dos nacionais da metrópole.
Os administradores são considerados como instrumentos necessários ao desenvolvimento industrial.
Educação universal e educação funcional em tecnologia e administração.
Muito limitadas oportunidades de educação para os nativos.
Educação universal e prioridade para a educação superior.
“dependente”.
Base da autoridade do gerente
Conceito de que alguns são “chamados”a
mandar. Organização pessoal e não funcional. Educação e o desenvolvimento das fontes de onde deve sair a elite industrial.
Educação de uma pequena minoria selecionada (elite).
Alta prioridade prioridade para para a educação funcional em todos os níveis.
Educação para o desenvolvimento era o título do nosso trabalho. Quisemos, com a exposição das análises e fatos aqui sumariados, mostrar que não se pode nada dizer sobre educação para o desenvolvimento, sem primeiro responder às perguntas fundamentais aqui reproduzidas: que classe, que elite dirige o desenvolvimento? Com que propósito o dirige? Em que velocidade o faz marchar? A situação de transição em que se encontra o Brasil faz com que o seu desenvolvimento esteja sob a influência de forças, que não são as mais aptas para a sua integração na civilização tecnológica e industrial de amanhã. A própria nascente classe média, cuja doutrina do indivíduo, da competição individual e do pluralismo econômico, político e social poderia servir de lastro ideológico ao movimento, não tem conseguido exercer influência que se possa considerar importante. Mais fortes, no comando do Brasil, são as forças autoritárias ou as forças desaparelhadas de doutrina do nacionalismo. Antes que se estabeleça um ambiente de maior nitidez e claridade política e melhor definição da doutrina democrático-liberal, pouco se poderá fazer pela educação nacional. Continuarão os grandes desenvolvimentos de hoje, ou sejam, a expansão de ensino superior destinado a dar prestígio à nação, pelo número de escolas e universidades, e aos alunos, pelos diplomas com que os venham a agraciar; a expansão do ensino privado, a fim de permitir a educação dos filhos das classes favorecidas sem competição de matrícula; e as falsas campanhas de alfabetização para "dopar" a consciência nacional cada vez mais incomodamente desperta para a sua tragédia educacional. Quando outras forças, menos arcaicas, ou sejam as da classe média democrática, com fundamento em textos expressos de nossas Constituições, puderem vir a exercer a necessária influência, os nossos objetivos educacionais serão facilmente equacionados, à luz da doutrina democrático-liberal, que só tem segredos e obscuridades para os que, na realidade, não a aceitam.
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A minha conclusão funda-se, funda -se, pois, em uma preliminar. Enquanto o país não se decidir sobre as suas próprias instituições democráticas e, para ser específico, sobre o cumprimento de suas Constituições, tanto a federal quanto as estaduais, votadas em 46 e 47 e até hoje à espera de execução, pouco podemos fazer, nós educadores, para ajustar as arcaicas estruturas educacionais vigentes às novas estruturas econômicas, que o processo de industrialização, de qualquer modo, está construindo para o Brasil materialmente desenvolvido de amanhã.
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11 DEMOCRACIA E EDUCAÇÃO(1) (O p ro ce ss o d em o cr átic o da ed u cação)
DEVO ESCLARECER, de início, que não obedeço literalmente ao tema que me foi proposto. Ao plural "processos da educação democrática nos diversos graus do ensino e na vida extra-escolar" prefiro o singular "processo democrático de educação", como tese geral, que doutrina e orienta todas as atividades escolares "nos diversos graus de ensino e na vida extra-classe". 1. O po stu lado dem oc rático O ideal, a aspiração da democracia pressupõe um postulado fundamental ou básico, que liga indissoluvelmente educação e democracia. Esse postulado é o de que todos os homens são suficientemente educáveis, para conduzir a vida em sociedade, de forma a cada um e todos dela partilharem como iguais, a despeito das diferenças das respectivas histórias pessoais e das diferenças propriamente individuais.
Tal postulado foi e é, antes de tudo, uma afirmação política. Não foi, de princípio, e não será ainda, talvez, uma afirmação científica... Funda-se na observação comum, esta, confirmada pela ciência, de que o homem é um animal extremamente educável, quiçá o mais educável ou o único verdadeiramente educável, podendo, assim, atingir níveis ainda não atingidos, o que basta para justificar a sua aspiração de organizar a vida de modo a todos poderem dela participar, como indivíduos autônomos e iguais. A democracia é, pois, todo um programa evolutivo de vida humana, que, apenas há cerca de uns cento e oitenta anos, começou a ser tentado e, de algum modo, desenvolvido; mas está longe de ter completa consagração. Muito pelo contrário, ainda não conseguiu de todo vencer sequer a fase de controvérsia e negação, por que passa toda grande transformação histórica. Digo isto para tomarmos posição sem ilusões sobre a dificuldade do tema e conscientes do caráter iniludivelmente experimental de todos os esforços, até hoje ensaiados, para a realização plena da democracia. O postulado da democracia, acentuo, liga o programa de vida que representa a um programa de educação, sem o qual, uma organização democrática não poderia sequer ser sonhada. Deixada a si mesma, a vida humana não produz democracia, mas, como nos confirma toda a História, regimes de afirmação das desigualdades humanas, não somente das desigualdades individuais, reais e intransponíveis, mas, 1
Tema "C" da XII Conferência Nacional de Educação. Rio de Janeiro, 1956. 136
fundadas mais ou menos nelas, de desigualdades artificiais profundas e, do ponto de vista democrático, consideradas iníquas. A educação nas democracias, a educação intencional e organizada, não é apenas uma das necessidades desse tipo de vida social, mas a condição mesma de sua realização. Ou a educação se faz o processo das modificações necessárias na formação do homem para que se opere a democracia, ou o modo democrático de viver não se poderá efetivar. Daí ser a educação um dos fundamentos da crença democrática e, ao mesmo tempo, uma das razões de se descrer da democracia, por isto mesmo que não vem a escola sendo o desejado instrumento de sua realização, mas, tantas vezes, um outro meio de se confirmarem e se preservarem as desigualdades sociais. É que não é qualquer educação que produz democracia, mas, somente, insisto, aquela que for intencionalmente e lucidamente planejada para produzir esse regime político e social. 2. Origem his tórica da d e m o c r a c i a Não percamos de vista que a democracia surgiu, na evolução histórica, como uma reivindicação política e reivindicação, sobretudo, de ideais individualistas, em face da opressão da organização social ainda vigente no século dezoito. Tais reivindicações encontraram sua formulação teórica no liberalismo econômico, quanto à organização do trabalho ou da produção; no liberalismo político, para a organização do Estado, e o liberalismo ético-estético, nome que à falta de outro daria a uma teoria de libertarismo pessoal, em que, à base de certo rousseauísmo, se concebeu o indivíduo como algo que, deixado a si mesmo, se desenvolveria, se exprimiria em harmonia, bondade e beleza. As três teorias revelaram-se, devemos reconhecê-lo, úteis às forças sociais emergentes no século dezoito e permitiram ao indivíduo, expressão dessas novas forças sociais, usar os conhecimentos que lhe vinha proporcionando a ciência da época, para ensaiar, empreender e realizar, em condições desimpedidas, como jamais o estiveram, no campo econômico, e, de certo modo, também no campo político e no campo pessoal, a imensa obra da cultura material e espiritual do século dezenove, ou que nesse século se desenvolveu e culminou. A falha da teoria individualista era, porém, não ser suficientemente individualista. No extremado de sua formulação, esquecia-se de que o indivíduo, só por si, é impotente; de que sua força decorre do seu poder de realizar, e que este seu poder de realizar decorre do grau de educação e do volume dos seus meios econômicos. O individualismo – na realidade apenas de alguns e não de todos os indivíduos – da teoria individualista permitiu a ascensão dos que tinham os meios econômicos, isto é, posses, terras e bens, e que, deste modo, dispunham também dos meios de se apropriarem dos novos conhecimentos, a fim de aplicá-los livremente em seu proveito.
Os esplêndidos triunfos do século dezenove até às catástrofes do século vinte foram o resultado desse período de libertarismo econômico, político e estético-moral, em que se restabeleceu para a espécie humana e na vida humana a luta biológica, que Darwin viera a descobrir na vida das espécies, particularmente entre as espécies
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animais. Foi, de fato, a famosa struggle-for-life o estabelecimento da lei da floresta entre os homens. Nada haveria a admirar que desse os resultados que deu. De mim, espanto-me é de que não tenha sido pior. Afinal, chegamos a poder lembrar, sem forçar a comparação, o grande período dos répteis, antes do aparecimento dos mamíferos na face da Terra, em que os pequenos brontossauros dominavam a cena da vida, com liberdade e violência, ao lado da pacata estupidez dos gigantescos dinossauros. O fato, porém, é que evoluímos, ou estamos evoluindo, desse individualismo, na realidade apenas para alguns, para o novo individualismo para todos, reconhecendo que a vida social precisa institucionalizar-se de forma a permitir que não somente alguns, mas todos os indivíduos encontrem, ao lado de condições favoráveis para desenvolver as qualidades comuns e particulares, condições também favoráveis para aplicar estas qualidades comuns e particulares, isto é, que o que foi dado somente a alguns e no excesso que decorria de serem só eles os beneficiários, contando com os demais para servi-los – seja a todos estendido, com as limitações inevitáveis da participação geral. São estas as mudanças em curso na vida presente, e que produzem os atritos e desajustamentos que todos vemos e que ainda têm muito de explosivo, a despeito do real amadurecimento social que se vem processando para a conquista definitiva da justiça social, mediante a revolução por consentimento. Corrigido o equívoco das teorias individualistas nascidas no século dezoito e que importava, acima de tudo, na suposição de que o indivíduo possuía um conjunto de qualidades inatas capazes de, por si, levá-lo à ordenada felicidade na vida social e industrial, e não apenas uma extrema educabilidade que tanto pode levá-lo ao desastre como à ordem e à harmonia, vimos chegando aos dias mais graves de hoje, começando a perceber não só a necessidade de planejar muito mais rigorosamente a vida econômica e política da sociedade, como, sobretudo, a necessidade de educar muito melhor o indivíduo, para que lhe seja possível exercer o seu papel de participante da vida social complexa e organizada de uma sociedade avançada, e também o de modificador de sua rotina e organização, pela independência e liberdade de pensamento e de crítica. Não faltou aos ensaios democráticos, que se realizaram nas últimas quinze décadas, o propósito de educar o indivíduo. Mas, infelizmente, as experiências ditatoriais se revelaram muito mais conscientes dessa necessidade de educar intencionalmente, do que as democracias individualistas. Somente agora estamos despertando para a necessidade de completar a obra democrática, com um esforço educativo paralelo ao dos que, sensíveis aos aspectos de organização, vieram intensificar o trabalho das escolas mas o fizeram, sem o devido acento no papel único que continua a caber ao indivíduo, de ser a força de revisão e mudança, pelo pensamento livre, da extrema e complicada máquina organizativa da sociedade moderna. 3. Socied ade d em oc rátic a
A sociedade não é um todo único, mas, de fato, e sobretudo a moderna sociedade, uma constelação de "sociedades". Além da estratificação social, que nos
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dá as classes, há toda sorte de sociedades menores dentro da grande sociedade. A família, os amigos, companheiros de escola, companheiros de trabalho, de clubes, são outras tantas sociedades dentro da sociedade. E como tais micro-sociedades existem até mesmo dentro de cada classe temos, pelo menos, um múltiplo de todas elas. A sociedade democrática é a sociedade em que haja o máximo de comum entre todos os grupos e, por isto, todos se entrelacem com idêntico respeito mútuo e idêntico interesse. As relações entre todos os grupos e o sentimento de que todos têm algo a receber e algo a dar emprestam à grande sociedade o sentido democrático e lhe permitem fazer-se o meio do desenvolvimento de cada um e de todos. "Uma sociedade que consagre a participação em seus benefícios de todos os membros em termos iguais e que assegure o flexível reajustamento de suas instituições pela interação das diferentes formas de vida associada é, nessa medida, democrática", afirma Dewey (Democracy and Education, p. 115, ed. 1926).
A escola democrática é, por sua vez, a escola que põe em prática esse ideal democrático e procura torná-lo a atitude fundamental do professor, do aluno e da administração. À luz desse critério deveremos julgar cada um dos fatores da escola: currículo, métodos, organização, ou sejam, atividades, processos e relações entre os três grupos de trabalho da escola, alunos, professores, administradores. A escola é uma comunidade com seus membros, seus interesses, seu governo. Se esse governo não for um modelo de governo democrático, está claro que a escola não formará para a democracia. Diretores, professores e alunos devem organizar-se de forma a que todos participem da tarefa de governo, com a divisão de trabalho que se revelar mais recomendável. A participação de todos, o sentimento de interesse comum é essencial ao feliz desempenho da missão educativa da escola. 4. Ed u cação e p ro ces so de m oc rátic o
Com estas idéias iniciais, poderemos começar a analisar o tipo de processo educativo necessário à escola democrática. Esclarecidos de que o indivíduo não é o ser mítico dos "direitos naturais", saído puro das mãos de Deus e corrompido pelo pecado ou pela sociedade, mas o animal altamente evoluído, irrecorrivelmente candidato a homem, graças, justamente à sua educabilidade – estamos a procurar, sem romantismo, ver como devemos educá-lo para fazê-lo homem na plena significação social da palavra, ou seja homem democrático. Esta experiência não tem sido e não é ainda fácil, porque a própria escola não surgiu com a democracia, mas com e para a aristocracia, e está (ainda está) muito mais apta a formar aristocratas do que democratas. Além disto, a escola nunca assumiu senão uma função parcial na educação, deixando a real formação do homem para outras instituições, sobretudo a família. E como a família era, por excelência, uma instituição inigualitária na organização social anterior à democracia, a família realmente capaz de educar era somente a família de posses, ou seja, a família aristocrática, no sentido amplo em que estou usando as palavras aristocracia e aristocrático. Com efeito, a educação escolar de nível superior e médio foi, em todo o passado, a educação da classe dominante ou a educação de especialistas, com privilégios semelhantes aos das classes dominantes e, como tal, a educação de
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indivíduos para formarem a chamada elite social ou de espírito. Não será, pois, aí que iremos encontrar os métodos da formação democrática. Somente a escola primária, de constituição muito mais recente, buscou a formação do cidadão comum e orientou-se para a educação democrática. Como, porém, nenhuma instituição pode desprender-se do contexto social geral em que realmente se insere, a própria escola primária sofreu duas deformações: uma social, outra pedagógica. Socialmente, fez-se uma escola paternalista, destinada a educar os governados, os que iriam obedecer e fazer, em oposição aos que iriam mandar e pensar, falhando logo, deste modo, ao conceito democrático, que a deveria orientar, de escola de formação do povo, isto é, do soberano, numa democracia. Por outro lado, a escola primária na falta de outros modelos, copiou a pedagogia das demais escolas, que a precederam, fazendo-se, apesar de todos os bons esforços em contrário, uma escola intelectualista, vale dizer, de preparação de algum modo "especializada", cuja utilidade somente se fazia, assim, efetiva, com a continuação dos estudos nos graus posteriores ao primário. Por isto mesmo, a própria escola primária nem sempre conseguiu os seus objetivos de escola democrática, embora tudo que tenhamos de real democracia na vida moderna ainda venha dessa primeira instituição de educação para todos, que o movimento democrático, já no século passado, logrou criar nos países desenvolvidos. Hoje, esta escola está se ampliando até ao nível médio e renovando intensamente a sua pedagogia, para se fazer uma escola de formação humana, em que o indivíduo aprenda a afirmar a sua individualidade numa sociedade de classes abertas, em que a aptidão e o êxito lhe determinem o status – mais dependente de condições pessoais, do que propriamente de hierarquia social pré-estabelecida. Ao contrário das escolas do passado, todas destinadas à educação especial, suplementar à educação comum, que, esta, seria ministrada diretamente pela sociedade ou pela classe – a escola democrática ou para todos não se destina a oferecer uma educação suplementar e especializada, mas a própria educação comum que antes a vida espontaneamente oferecia, pela família, pela classe e pela participação na vida social. Não é só que essa educação comum, dada a complexidade social, tenha ficado difícil de ser haurida no seio das famílias e das classes, em mudança; mesmo que a família e a classe fossem, hoje, as instituições seguras ou incontrastáveis do passado, mesmo assim, seria necessário que a escola comum e democrática refizesse a educação, proporcionando ao indivíduo um meio apropriado à revisão e integração de suas experiências, no sentido de fazê-lo participante inteligente e ajustado de uma sociedade de todos e para todos, em que o respeito e o interesse pelos outros se estendam além das estratificações sociais e de grupo e se impregnem do espírito de que, antes de membro da família, do grupo ou da classe, o indivíduo é membro de sua comunidade, do seu país e de toda a humanidade. Tal escola tem assim de se fazer uma escola de vida, em que as matérias sejam as experiências e atividades da própria vida, conduzidas com o propósito de extrair delas todas as conseqüências educativas, por meio da reflexão e da formulação do que assim for aprendido. Nessa nova comunidade, que a própria escola já é, não se
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levam em conta as diferenças individuais ou da história de cada um, para o efeito de reconstruí-Ias e integrá-las em uma experiência mais larga, em que se destruam os isolamentos artificiais e as prevenções segregadoras, visando o estabelecimento de uma verdadeira fraternidade humana. Não se pense que tal escola não ensine. Tão arraigadas são as concepções que a instrução é algo de especial, que só as escolas produzem, que falar-se em aprender por experiência parece, às vezes, negar os aspectos instrutivos da escola. A concepção atual não é esta. Há um saber das coisas e um saber sobre as coisas. A escola tradicional julgava que lhe competia ministrar o segundo – o saber sobre as coisas, isto é, um saber que permitisse ao aluno, no melhor dos casos, falar sobre as coisas, revelar-se informado, emitir comentários inteligentes, etc. As raízes deste tipo de educação são, como se pode bem sentir, aristocráticas. Era a educação da elite, destinada a formar uma classe de lazer ou de mando, gentil, autoritária e, se possível, transigente... O saber que levava a fazer não era, dizia-se, de cultura geral. Seria quando muito de cultura prática e profissional, de que só especializadamente e à parte se cuidava. Pois esta educação de fazer é a que será dada pela escola democrática, cujo programa consiste nas atividades comuns de crianças e adolescentes, de acordo com as suas diferentes idades. Assim como antes da escola a criança aprendeu a andar, a falar, a brincar e a conviver, assim irá aprender, na classe, o comando da sua língua, falando-a, lendo-a e escrevendo-a e iniciar-se nas novas linguagens do desenho, do número, da ciência e nas combinações mais complexas da vida em grupo, participando do trabalho de aula, do recreio, das múltiplas organizações da vida extra-classe, em que a atividade escolar se distribuirá, para o fim de constituir-se a escola em uma comunidade integrada e completa. Como a escola visa formar o homem para o modo de vida democrático, toda ela deve procurar, desde o início, mostrar que o indivíduo, em si e por si, é somente necessidades e impotências; que só existe em função dos outros e por causa dos outros; que a sua ação é sempre uma trans-ação com as coisas e as pessoas e que saber é um conjunto de conceitos e operações destinados a atender àquelas necessidades, pela manipulação acertada e adequada das coisas e pela cooperação com os outros no trabalho que, hoje, é sempre de grupo, cada um dependendo de todos e todos dependendo de cada um. Fazendo compreender ao aluno que o saber não é, assim, algo de acumulado e inútil que tem ele de aprender, mas a própria arte de fazer as coisas, resolver os problemas humanos e tornar o indivíduo – aquela expectativa de homem – em um homem verdadeiro, a escola depressa o conquistará para a participação na sua admirável experiência de fazer dele o cidadão de uma democracia, eficiente em sua parcela de trabalho e no grande trabalho coletivo de todos, eficiente no comando de si próprio, dos seus desejos e impulsos, para coordená-los com os desejos e impulsos dos outros, e eficiente, assim, como bom parceiro, no jogo da vida, seja no pequeno grupo íntimo da família e dos amigos, seja no grande grupo regional, nacional, universal. A idéia fundamental de que toda ação humana é uma ação associada, começará a dar-lhe a consciência de que a individualidade não é algo a opor aos outros, mas a realizar-se pelos outros, tendo apenas um sentido que é o da medida de sua responsabilidade para com o grupo e para consigo mesmo. Este conceito, pelo
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qual o indivíduo não se opõe à sociedade e às instituições, mas se realiza por meio delas, que são os instrumentos de sua liberdade, como o saber, o conhecimento e a ciência são, por outro lado, novos instrumentos desta sua crescente liberdade – fará com que o aluno perceba a necessidade de sua lealdade às instituições e ao saber, que aprenderá a amar como condições do seu crescimento e de sua força. Desde que toda ação é um ato partilhado, a idéia de participação faz-se a matriz de toda atividade humana e a criança na escola deve poder sentir quanto o seu desenvolvimento é um desenvolvimento em conjunto, não podendo ela própria realizar-se a si mesma senão na medida em que se faz útil aos outros e os outros úteis a ela, medindo a sua capacidade peIo grau em que melhor realiza aquela parcela de atividade que lhe cabe, em virtude de suas aptidões particulares. Assim, mesmo o que é peculiar e próprio de cada um não se realiza senão em razão dos outros, sendo cada um devedor aos outros do que é, e credor dos outros do que os outros sejam. Esse existir em sociedade deve ser o quadro geral da escola, que, por isto mesmo, se organiza em comunidade de professores, alunos e pais, desenvolvendo o seu programa de atividades, em decorrência de tal viver associado, que marca toda a experiência escolar, transformada, assim, na experiência democrática por excelência. Com efeito, sem diferenças econômicas e sem conflitos outros de interesse dentro dela, a escola se faz um pequeno ideal de vida comunitária, com um plano de atividades em que o rigor exato do trabalho, a doce intimidade da família e a alegre animação do clube se casam, para produzir um ambiente capaz de conduzir com êxito a aventura do saber, do progresso social e da igualdade humana, que é a própria aventura da democracia. Nessa comunidade escolar, indivíduo e grupo trabalharão, distribuindo as suas funções, constituindo as suas associações, desde a da classe até a da sociedade de toda a escola, podendo a criança fazer as experiências de membro social em todos os níveis e graus, sendo aqui o companheiro de trabalho, ali o companheiro social, acolá o companheiro de jogo e de gostos, ou ainda o companheiro de política, no governo da escola, participando assim de todos os tipos de atividade e aprendendo o jogo da vida democrática nesta comunidade em miniatura que é a escola. A democracia, assim, não é algo especial que se acrescenta à vida, mas um modo próprio de viver que a escola lhe vai ensinar, fazendo-o um socius mais que um puro indivíduo, em sua experiência de vida, de sorte a que estudar, aprender, trabalhar, divertir-se, conviver, sejam aspectos diversos de participação, graças aos quais o indivíduo vai conquistar aquela autonomia e liberdade progressivas, que farão dele o cidadão útil e inteligente de uma sociedade realmente democrática. Tal atmosfera de participação fará com que nenhuma atividade escolar tenha aquele velho espírito de segregação e isolamento, que tanto dificulta depois a verdadeira formação democrática. Na escola tradicional, a segregação, que isola e aliena, manifesta-se de todas as formas, pelo ensino de culturas passadas sem articulação com o presente, pelo ensino abstrato sem ligação com os fatos, pelo ensino oral e livresco sem relação com a vida, pelo ensino de letras, sem referência com a existência, enfim por todos aqueles exercícios que rompem a continuidade entre o mundo e a experiência do aluno e a sua aprendizagem. A experiência do aluno é um todo continuo que se amplia com os novos interesses e novas aprendizagens, mantida, entretanto, a unidade nos novos desdobramentos a que o levam a instrução e o saber. O ensino de coisas ou noções
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alheias à experiência de aluno corre sempre o perigo de constituir algo de inútil ou de prejudicial ao seu desenvolvimento. A experiência educativa é sempre uma experiência pessoal, em que o passado se liga ao presente e se projeta no futuro, aumentando o poder de compreensão ou de operação do indivíduo em seu crescimento emocional, intelectual e moral. A cultura que isola, que "especializa", tende a estimular a formação de castas fechadas e é, em essência, aristocrática ou aristocratizante. A velha escola sempre teve essa tendência. Quando, porém, a sociedade é democrática, toda cultura deve conduzir à maior participação, e neste sentido é que é humana e geral. O saber e o trabalho ensinados como forma de comunicação e de participação do homem em algo de comum, em que todos se associam e por que todos se realizam, não isolam nem segregam, mas aproximam, unem e integram os homens na real fraternidade da vida, que só existe em função de todos e de cada um no controle social. Pelo saber e pela razão o indivíduo se faz humano entre humanos, conquistando o poder e a eficácia de pensamento e de ação, que são, por excelência, formas de interação, de socialização, de sua inserção no contexto social, que lhe irá nutrir e dirigir a existência. 5. Pr o ces so de m o cr átic o de ed uc ação
Tudo que temos dito até aqui são, entretanto, considerações abstratas, que podem valer como princípios, mas não indicam concretamente o que deve ser feito para que a educação se faça efetivamente democrática. Vamos, agora, entrar na escola. Se tomarmos a sua organização tradicional, veremos que a instituição é uma das mais especializadas de nossa sociedade, radicalmente diferente de qualquer outra em que também admitimos ocorrerem os processos educativos. Sobretudo, diferente do lar. Uma sala de aula, "matérias" para aprender, horários, notas, regras especiais de disciplinas... A sua "organização" é algo de distinto não só do lar, mas da oficina, do escritório, do quartel, da igreja, de tudo que existe na sociedade. A filosofia dessa escola é a de que é uma instituição especial para ensinar aos jovens certos conjuntos de conhecimentos, de técnicas e de regras morais, formuladas pela sabedoria humana e de que a criança precisará no futuro. O modo de aprender é artificial, a disciplina da escola é artificial e artificial ainda é o modo de julgar o progresso de cada um. Impossível evitar nessa organização o elemento autocrático. Toda ordem é externa e imposta, pois as crianças e jovens estão submetidos a um processo tão estranho aos interesses e necessidades reais da idade que somente completa docilidade por parte do aluno ou dura imposição por parte da escola poderão produzir a "ordem" escolar. Não julgo necessária maior análise para concluir que tal escola não poderá formar democratas. Só mesmo por milagre é que, depois dessa experiência escolar, alguém não sairá ou um perfeito e resignado conformista ou um perfeito e acabado rebelde. Nenhuma das duas disposições é útil para a democracia. Imaginemos, entretanto, que a organização da escola já seja a que se vem chamando hoje de escola progressiva. Aí o programa dos alunos é de atividades estreitamente correlacionadas com os seus interesses e necessidades, o professor,
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um guia experimentado e amadurecido nas artes necessárias à vida, o horário, uma distribuição de tempo entre observar, procurar informações, debater, escolher, planejar, distribuir tarefas, realizar e julgar os resultados. Está claro, que esta nova escola mais não está do que recuperando as boas condições educativas, que possuem as instituições naturais, digamos assim, de educação: as da família, da oficina, do escritório de trabalho, do clube e da igreja. As atividades já não são impostas ao aluno, mas oferecidas à sua participação; possuem interesse em si mesmas e não são algo que se deva fazer apenas por obrigação; o trabalho será julgado pela sua eficácia e não por meio de regras artificiais de mérito. Não direi que tal escola se faça – somente pela sua nova organização – uma escola democrática. Creio, porém, poder afirmar que meio caminho foi andado. As condições da escola são de ordem a permitir o jogo de experiências necessário para a formação democrática. O lado bom da democracia é o que se resume na afirmação: "eu sou tão bom quanto você". E o lado mau, diz Bertrand Russell, é o que diz: "você não é melhor do que eu". Pela primeira, afirmo o meu amor-próprio, meu respeito por mim mesmo. Pela segunda, afirmo minha inveja, minha insegurança e daí a possível tirania contra os melhores. Se a escola transformada cria as condições necessárias para um trabalho real e eficaz e este trabalho se vai fazer em comum, com divisão de tarefas, participação de todos, sentido de responsabilidade e cooperação; e se a sua organização, isto é, as relações entre alunos, professores e administração é a de um time, em que todos se sintam "tão bons quanto os outros" – então, a formação democrática será quase inevitável. Se a atitude – "Você não é melhor do que eu" – surgir, não haverá como não ser corrigida pelo grupo. As condições de prova se apresentarão na primeira oportunidade e a afirmaçãozinha tirânica depressa passará a ser um estímulo para o "sou tão bom quanto você" ou para um sadio reconhecimento da superioridade alheia, superioridade que nunca será tão universal que não permita ao menos dotado aceitá-la sem destruição do seu amor-próprio. Os processos democráticos de educação requerem, assim, antes de tudo, a transformação da escola em uma instituição educativa onde existam condições reais para as experiências formadoras. A escola somente de informação e de disciplina imposta, como a dos quartéis, pode adestrar e ensinar, mas não educa. Nesta escola, a democracia, se houver, será a dos corredores, do recreio, dos intervalos de aula, desordenada, ruidosa e deformadora. Mas, não basta a transformação da escola. É necessário que professores, diretores e toda a administração escolar aceitem o princípio democrático, que consiste no postulado de que cada um dos participantes da experiência escolar tem mérito pessoal bastante para ter voz no capítulo. Ninguém é tão desprovido que possa ser apenas mandado. Também ele deve saber o que está fazendo e porque está fazendo. Algo ficará mais difícil; nem tudo será tão bem feito – mas a grande experiência de participação, como igual, nas atividades, esforços, durezas e alegrias do trabalho escolar, se estará fazendo, e, com ela, a aquisição das disposições fundamentais de cooperação, de responsabilidade, de reconhecimento dos méritos de cada um, de participação integradora na vida comum e de sentimento de sua utilidade no conjunto.
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O processo democrático de educação surgirá, naturalmente, nessa nova organização escolar, como algo de intrínseco à própria atividade do aluno: em classe ou fora de classe, sugerindo, analisando, decidindo, estudando ou buscando informações e conhecimento, planejando, realizando, julgando, corrigindo, refazendo e tornando a planejar – estará ele crescendo, como crescia antes da escola, em capacidade física, intelectual e moral e formando as disposições fundamentais necessárias à vida democrática: iniciativa, cooperação, espírito de equipe, isto é, de reconhecimento do próprio mérito e do mérito dos outros. * A ligeira análise que acabamos de fazer da educação para a democracia importou em reformular a tese que me foi proposta: "os processos de educação democrática nos diversos graus de ensino e na vida extra-escolar" fizeram-se "o processo de educação democrática". Havia no plural da primeira formulação e na discriminação dos graus de ensino e da vida extra-escolar, uma sugestão de que os processos de educação democrática seriam algo que se acrescentaria a esses dois campos. Se se tratasse de "informação" democrática estaria muito bem, mas, educação democrática não é, repetimos, mais uma atividade a acrescentar aos graus de ensino ou à vida extra-classe, mas uma "qualidade", um "modo" de conduzir as atividades do ensino e da vida extra-classe para a formação do indivíduo na sociedade democrática. de mocrática. 6. Súmula A sociedade democrática é uma sociedade de pares, em que os indivíduos, a despeito de diferenças individuais de talento, aptidão, ocupação, dinheiro, raça, religião e, mesmo, posição social, se encontrem associados, como seres humanos fundamentalmente iguais, independentes mas solidários.
De tal modo, a sociedade democrática não é algo que exista ou tenha existido, nem algo a que tenda o homem por evolução natural; vale dizer que a democracia não é um fato histórico pretérito, que estejamos a procurar repetir, nem uma previsão rigorosamente científica a que possamos chegar com fatal exatidão determinística, mas, antes de tudo, uma afirmação política, uma aspiração, um ideal ou, talvez, uma profecia... A profecia pr ofecia distingue-se da predição, porque esta, quando científica, importa em certeza ou alta probabilidade, enquanto a profecia é um misto de desejo e de predição, o que a torna condicional... A predição é previsão de acontecimentos. A profecia é programa de ação. A profecia democrática é um programa de sociedade igualitária, fundado na afirmação política de que os homens, a despeito de suas diferenças individuais, se adequadamente educados, adquirirão uma capacidade básica comum de entendimento e ação, suscetível de levá-los a uma vida associada, de que todos partilhem igualmente. Historicamente, nunca houve essa sociedade. E, deixados a si mesmos, os homens desenvolverão as suas diferenças individuais e se distribuirão por classes,
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senão por castas, cada grupo tendendo a segregar-se e explorar ou deixar-se explorar pelos demais. A sociedade democrática não pode, por natureza, ser espontânea. Nenhuma organização social o é... Foi e é uma opção, e só se realiza, se é que chegará um dia a realizar-se, por um tremendo esforço educativo. Por isto é que se afirma que a relação entre democracia e educação é intrínseca e não extrínseca, como sucede em outras formas de sociedade. A aristocracia, a autocracia, o regime de castas, etc., todos podem existir sem educação intencional para todos. Ao contrário, não só prescindem dela, como precisam que ela não haja e velam por impedi-Ia. A democracia não pode existir sem educação para todos e cada um, pois importa em transformar, não alguns homens, mas todos os homens para – contra tendências hereditárias, sociais, se não biológicas – rematar, por evolução consciente, a obra que as sucessivas civilizações, desde o começo dos séculos vêm realizando pela injustiça e conseqüente violência. Todas as outras formas de sociedade precisam de alguma educação, mas só a democracia precisa de educação para todos e na maior quantidade possível ... ... A opção democrática que os povos do mundo vêm fazendo desde o século dezoito tem encontrado em cada país as resistências maiores ou menores do seu passado histórico. Embora a revolução industrial e, sobretudo, a tecnológica concorressem, por um lado, para tornar a democracia possível, sabemos hoje que nenhuma das duas revoluções nos trouxe, de presente, a democracia. Muito pelo contrário, tanto facilitarão elas uma civilização de térmitas para os homens – e isto é que vêm, de certo modo, realmente promovendo – como poderão facilitar a civilização democrática, se lograr o homem se convencer da tremenda importância da educação intencional para a construção da democracia. * Buscando fazer da escola, como instituição voluntária e intencional, essa comunidade – ainda meio utopia e meio profecia – que é a comunidade democrática, teremos criado para as crianças e os adolescentes, vale dizer para os futuros homens, não só o mais eficiente instrumento de educação, como o melhor presságio de uma possível verdadeira sociedade democrática.
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A UNIVERSIDADE DE ONTEM E DE HOJE
EM SUA EVOLUÇÃO, das mais lentas da História, a universidade, originariamente, misto de claustro e de guildas medievais, procurou mais isolar-se do que participar do tumulto dos tempos. O seu espírito de segregação ainda era manifestamente acentuado nos meados do século XIX, apesar de se haver iniciado na pesquisa desde o começo do século. Mas, seja com Humboldt ou com Newman, pesquisa pela pesquisa, para se atingir o saber pelo saber. A casa do intelecto partia do saber do passado para o saber do futuro, mas conservava o objetivo da harmoniosa cultura clássica, a coroar-se com o prazer supremo de buscar o saber e nele deleitar-se em olímpica contemplação. O saber aplicado e utilitário era olhado com desdém e considerado um abastardamento dos objetivos da instituição, que visava antes de tudo à vida do espírito. Não percamos de vista que a universidade de preparo de profissionais, ou mesmo de cultura geral para a formação da elite, já seria uma universidade de certo modo prática. Com a pesquisa, como foi inicialmente concebida, voltou-se à preocupação pela busca do saber pelo saber, pela torre de marfim, pelo mandarinato de eruditos e pesquisadores. Pouco importa que a busca do saber pelo saber acabasse por ser a mais prática das buscas e deflagrasse as aplicações sem conta que marcaram o fim do século XIX e começos do vigésimo. A realidade é que isto não fazia com que a universidade se sentisse responsável pela aplicação do conhecimento, cuja marcha se fazia graças ao seu trabalho de profundidade mas sem a sua participação. A comunidade de mestres e estudantes do fim da Idade Média continuava em sua independência e isolamento. o culto do saber do passado, ou a busca do saber do futuro era a forma leiga de convento, de alheamento aos negócios do mundo e de entrega da vida aos prazeres do espírito. É verdade que essa atitude de puro isolamento de algum modo se corrigia com a formação do profissional, em pequeníssimo grau com a formação do clero, um pouco mais com a formação do bacharel em Direito, substancialmente com a formação do médico e, muito depois, em grau mais acentuado, com a formação do engenheiro. Atentemos, contudo, que essa formação profissional não constituía o coração da universidade, mas sua extensão ou desenvolvimento, pois, onde se guardou a tradição da cultura geral, a formação universitária era a da cultura clássica, seguida da pesquisa, primeiro relativa a essa cultura clássica e somente mais tarde relativa à ciência experimental. Mesmo depois que a universidade aceitou a ciência experimental, nem por isto se rendeu à pesquisa da ciência aplicada e se deixou envolver nos negócios do
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mundo, mas insistiu em acentuar o caráter "desinteressado" de sua busca e os objetivos "nobres" do saber pelo saber, do saber como fim em si mesmo. Assim viveu a universidade até fins do século XIX, com a exceção talvez da universidade americana, cujo desenvolvimento se fez em linhas um tanto diversas, sobretudo em relação aos land-grant colleges, os quais já no período de Newman cultivavam o objetivo de serviço e davam à pesquisa o caráter prático de saber aplicado, ou seja, na linguagem de Newman, um "deal of trash", jogo pobre e de curta visada. Até aí a missão da universidade era a da guarda e transmissão do saber, como condição para a ordem e a civilização. Eminentemente seletiva, orgulhava-se de seus poucos alunos e da alta qualidade dos seus intelectuais e eruditos. Era a casa do intelecto, a torre de marfim de uma cultura fora do tempo. Foi essa universidade que começou a transformar-se com as três revoluções do nosso tempo: a revolução científica, a revolução industrial e a revolução democrática.
* Não é meu desejo repetir mais uma vez as habituais considerações sobre a missão da universidade, mas, admitindo que todos dela tenhamos consciência, buscar examinar, embora brevemente, os modos por que nos últimos cento e poucos anos, a antiga instituição se vem transformando e, para alguns, perdendo até sua unidade e seu senso de missão. Procurarei limitar-me a certos exemplos mais significativos e ainda recentes da experiência universitária. Acredito que tomando o exemplo de Oxford, o de Berlim e o do Trinity College de Dublin, daí passando a Manchester e, afinal, chegando às universidades de hoje, teremos coberto a parte mais substancial do processo histórico de transformação. Fundamentalmente, a universidade é a reunião de adultos já avançados na experiência intelectual e profissional com jovens à busca de sua formação e seu preparo para atividades dentro e fora dela e, ao mesmo tempo, a instituição devotada à guarda e o cuidado da cultura humana, que lhe cabe zelar e lavrar como seu campo especial de trabalho. Como essa cultura constitui o equipamento maior da vida da própria sociedade, a sua responsabilidade por essa sociedade está sempre presente. Entre esses três objetivos – formação e ensino, pesquisa e serviço – divide-se assim a sua faina. A sua história é, sob vários aspectos, uma mudança de ênfase em relação à maior e menor importância de cada um. Como estamos a viver um período revolucionário do conhecimento humano e de conseqüente transformação social, perdemos, ao que me parece, um pouco o senso do passado e, por isto mesmo, não será mau que comecemos o nosso passeio pelas vicissitudes da idéia de universidade, com uma vista de olhos sobre Oxford, a universidade talvez mais fiel ao passado, embora tenha, de certo modo, presidido o curso da primeira e, até os começos deste século, maior nação industrial do mundo.
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Afinal, a cultura ocidental é um desenvolvimento da cultura greco-latina e em nenhuma outra universidade podemos encontrar – sem o espírito de controvérsia que, paradoxalmente, marca as universidades latinas – a fidelidade às nossas origens e a confiança de que para formar o homem nada de melhor se criou que uma imersão do jovem nessa literatura que Cassiodoro salvou do naufrágio da invasão dos bárbaros e ainda hoje nutre o nosso espantoso desenvolvimento intelectual. É curioso observar-se como a nação em que, até muito recentemente, mais se haviam desenvolvido a indústria e a democracia e tão alta contribuição ofereceu à ciência, conseguiu sustentar-se com essa cultura clássica. Este fato torna Oxford e Cambridge – a despeito de suas diversidades – particularmente importantes para nos esclarecer sobre a missão da Universidade. Como desempenhava Oxford essa missão ? Como a compreendia e em que postulados se baseava o seu grande trabalho ? Para que não ocorra a alguém que esteja exagerando em minha descrição, vou utilizar-me de um oxoniano, educado entre os muros de Balliol e hoje professor de filosofia, W. B. Gallie, para qualificar a formação pela universidade que foi, até o século XIX e começos do século XX a universidade por excelência de ensino e a universidade por excelência não-vocacional, ou seja, não-profissional. Nessa universidade, segundo Gallie, "postulava-se, de modo geral sem discussão, que um jovem que tivesse aprendido a escrever em elegantes versos ou cortante prosa nas duas línguas clássicas – grego e latim – e possuísse conhecimento particularizado de dois importantes períodos da civilização pré-cristã e de algumas doutrinas de Platão, Aristóteles, Kant e Mill, estaria qualificado para começar sua carreira como administrador, político, diplomata, critico social ou educador". O ideal universitário consubstanciado por Oxford representava, assim, a forma mais radical de formação não-utilítária. A universidade não era sequer um centro de transmissão do saber, mas de exercício mental, capaz de formar intelectualmente o jovem como um centro atlético o formaria para a vida esportiva. Por toda a vida, iria ele ser o homem capaz de refletir com precisão e conversar com graça e facilidade e dispor daquele famoso e inteligente senso de humor, que lhe valeria como o melhor substitutivo até então descoberto para a sabedoria. O contacto com os mestres verdadeiramente grandes do passado lhe teria dado um senso de proporção e medida que, se verdadeiramente assimilado, o teria curado para sempre de qualquer presunção intelectual. A prática das duas línguas clássicas, por outro lado, lhe teria dado aquela segurança intelectual e hábito de precisão que nenhum outro método talvez que poderia, do ,mesmo modo, inculcar. Com a insistência pela qualidade do estudante e pela qualidade dos seus estudos, Oxford e Cambridge formaram longamente a elite britânica e nos deram o povo que mais inteligentemente tem sabido lidar com as vicissitudes de sua grandeza e de suas transformações sociais, sendo, de certo modo, o povo que mais próximo se acha do que se poderia chamar a arte de governar a sociedade humana. Embora a evolução de Oxford não resultasse de nenhum plano mas das pressões dos concursos para o serviço civil inglês, acabou por traduzir uma implícita filosofia da educação, a que se acrescentou método de ensino quase individual, com o sistema de pequenos colégios, os tutores e o internato dos alunos. Como seus estudantes provinham das public-schools, a Inglaterra completava com Oxford um
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sistema de educação peculiar e único, que lembrava Esparta, pairando acima do tempo, como se fosse o próprio método perene de formação da elite humana. Essa elite, a princípio aristocrática, fez-se, depois, pela seleção do aluno, uma espécie de elite de mérito. Se a missão da universidade é a formação de uma elite para o governo e o serviço público, não creio que tenhamos exemplo mais bem sucedido. Foi buscando imitá-la que Newman, em 1852, fundou a universidade de Dublin e em seu livro A idéia de uma Universidade, afirmou que, se o objeto da universidade fosse a descoberta científica e filosófica (ou seja, a pesquisa), não saberia por que teria ela estudantes. Ao tempo que, assim, excluía a pesquisa, também condenava qualquer caráter utilitário no seu ensino, devendo o saber constituir o seu próprio fim. Muito mais tarde, Whitehead, de certo modo, fazia-se eco dessa filosofia, ao acentuar que pesquisa se pode fazer sem universidade, a essência desta devendo ser o ensino e a cultura do espírito. A essa concepção da universidade sucedeu o que Flexner chamou de Universidade Moderna, uma universidade que "não existe fora mas dentro da contextura geral da sociedade de determinada época (... ) Não é algo de à parte, algo de histórico, algo que não se renda senão no mínimo possível às forças e influências mais ou menos novas. Ao contrário, é uma expressão da época, tanto quanto uma influência a operar em seu presente e em seu futuro". Essa universidade já é a universidade de Berlim de Humboldt e a universidade de Manchester, na Inglaterra, dominada uma pelo espírito de pesquisa pura e a outra pelo da pesquisa aplicada, mas ambas devotadas à ciência e ao seu tempo. Seria muito longo referir a extrema luta que se desenvolveu para essa inclusão da pesquisa e da ciência na universidade e a extraordinária expansão que isto representou, primeiro no desenvolvimento dos estudos de pós-graduação, depois na educação de adultos e, por fim, na multiplicação de escolas profissionais de todo gênero. Outra transformação, contudo, aguardava a universidade, ao se fazer também uma instituição de serviço nacional, devotada à solução de problemas, à apreciação crítica das conquistas realizadas e não já apenas à pesquisa pura ou básica, mas à pesquisa dirigida e aplicada para o desenvolvimento e a defesa nacional. Acompanhar essa transformação, desde 1852 até 1914, depois até 1930 e, com a Segunda Guerra Mundial, até os dias de hoje, corresponde a assistir a história de uma instituição que, entre mil resistências, rompe com o seu isolamento e se vai, aos poucos, misturando com a vida presente até se fazer, talvez, instituição completamente nova pela sua complexidade, pela sua variedade, pelo seu pluralismo, e, por que não dizer, pela sua extrema confusão e divisionismo. São inúmeras as vozes a chorar pela antiga unidade, pela antiga homogeneidade, pela antiga qualidade, mas a força do tempo é maior e a universidade fez-se não a torre de marfim mas talvez a de Babel, com atividades intelectuais dos mais diversos níveis, com a mais extrema mistura de cultura teórica e prática e com tamanha população de professores e alunos que já não é mais uma comunidade mas várias e contraditórias comunidades, lembrando mais a cidade que o antigo claustro conventual da velha Oxford. O Presidente Kerr, da Universidade de Califórnia, analisou, em três conferências, na Universidade de Harvard, essa imensa transformação da
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universidade, que hoje se deveria talvez chamar, segundo sua sugestão, multiversidade(1). Nem Humboldt, nem Newman, nem Flexner reconheceriam mais as suas respectivas universidades. A população de alunos que a procura é já muitas e muitas vezes superior a tudo que se pode imaginar. A fa mosa qualidade do estudante superior perdeu-se e com ela a qualidade dos estudos. O número de cursos e de ocupações para que prepara raia pelo inconcebível. A população de adultos, dos que voltam à universidade, para cursos e retreinamento, sobe a dezenas de milhares. Sobretudo a pesquisa atingiu proporções desmedidas e os grandes projetos da segurança, da defesa e do desenvolvimento nacional começam a ser, em muito, tarefas da universidade. A antiga instituição – distante e isolada – destinada a educar os jovens, vem-se fazendo a força mais profunda do desenvolvimento nacional. A realidade é que a pesquisa, cuja entrada na universidade tanta luta custou veio, nos últimos tempos, a crescer esmagadoramente. Longe vai o tempo em que o bispo de Ripon aconselhava a ciência a tomar férias por dez anos, diante da expansão que lhe parecia precipitada e maléfica, em que Aldous Huxley escrevia sua sátira sobre o Brave New World. Hoje, a ciência fez-se a grande mola de competição do mundo desenvolvido e nenhuma força lhe é igualada em importância e em alcance. As cidadelas de resistência, primeiro a do humanismo clássico, depois a da ciência pela ciência e do saber pelo saber, acabaram por se render. A definitiva aceitação da ciência transferiu o debate do campo mais ou menos recalcitrante e negativo do período encerrado na década de 30, para o campo positivo da busca de soluções para uma sociedade totalmente industrializada, penetrada de ciência e tecnologia e coletivamente organizada sob a forma de grandes grupos, com interesses diversos e muitas vezes contraditórios. É para essa nova e confusa sociedade que se tem de preparar a universidade, tanto mais lhe sendo difícil a liderança quanto nela própria se registram os fenômenos de coletivização, de deslocamento, de contradição e de relativa perda de unidade. Ao homem de cultura liberal sucedeu o especialista e ao especialista, o homem de organização. Este ainda é em muito um mecânico, procurando suprir a deficiência essencial de unidade da sociedade contemporânea com os substitutivos de relações públicas e de espírito de serviço, que, mal ou bem, mantêm a aparência não direi de harmonia mas de mútua tolerância. A universidade reflete essa sociedade e, arrastada por ela, distanciou-se da idéia de universidade como a concebia Abraham Flexner, para quem "o coração de uma universidade moderna seria uma escola de pós-graduação de artes e ciências, as sólidas escolas profissionais e alguns institutos de pesquisa", tudo dentro de um "organismo caracterizado pela elevação e precisão de fim e unidade de espírito e de propósito". Não existem Newmans, nem Humboldts, nem Flexners para a multiversidade presente, de que o primeiro a tratar é Clark Kerr, presidente da Universidade de Califórnia e, como economista, livre para descrevê-la como um fato social sem ainda querer julgá-la. Kerr, depois de mostrar como aquelas diferentes idéias de universidade – a de educação e formação do homem pela residência comum e a imersão em uma atmosfera intelectual, a do intelectualismo e pesquisa livres e 1
The Uses of the University, Harvard University Press, 1963. 152
independentes para o preparo de estudiosos, de serviço pela participação na sociedade e solução dos seus problemas, em que se revelaram mais notáveis respectivamente os ingleses com Oxford e Cambridge, os alemães com Berlim, Halle e Gottingen e os americanos com Wisconsin sobretudo, mas também, com Harvard e os land-grant colleges – entraram em jogo na universidade americana e, ajudadas pela liberdade de experimentar e tentar, característica de sua civilização pluralista e democrática, criaram uma espécie de laissez-faire universitário, observa que, deste modo, se instituiu a moderna universidade americana, conjunto de "fragmentos, experimentos e conflitos" que acabam por entrar em acordo num inesperado equilíbrio e por resultar em uma instituição excepcionalmente eficaz. E conclui "que nenhuma universidade pode visar mais alto do que ser tão britânica quanto possível, em relação aos seus graduandos, tão germânica quanto possível para os pós-graduados e pesquisadores e tão americana quanto possível para o público em geral (...) e tão confusa quanto possível para poder preservar o instável equilíbrio". Para uma idéia concreta dessa universidade dos tempos presentes, a multiversidade, ouçamos Nathan Pusey presidente de Harvard e Kerr presidente da Universidade da Califórnia. Pusey, em seu último relatório, depois de acentuar que a partir de 1924 – período de graduação dos membros do seu Conselho de Administração – metade dos edifícios de Harvard são novos, o quadro de professores quintuplicou e o orçamento aumentou quinze vezes, assim se exprime: "Pode-se ver em qualquer dos lados para que se olhe exemplos semelhantes de crescimento e mudança, quanto ao currículo e quanto à natureza da universidade contemporânea, conseqüentes do alargamento de sua área internacional de interesse, do avanço do saber e da crescente renovação e extrema complexidade dos métodos de pesquisa (...) Ásia, África, rádio-telescópios, equipamento inimaginável em 1924 para exploração interplanetária – estes e outros desenvolvimentos determinaram tais enormes mudanças na orientação intelectual e nas aspirações da universidade contemporânea que fazem parecer-nos a universidade que conhecemos como estudantes uma instituição extremamente atrasada, na realidade algo de muito simples e quase nenhuma importância. E o ritmo da mudança continua". Sobre a Universidade de Califórnia, assim se exprime o presidente Kerr: "A Universidade de Califórnia no último ano (l963) despendeu em recursos de todas as fontes perto de meio bilhão de dólares e mais 100 milhões em construções; o seu quadro total de empregados foi superior a 40.000, mais do que a IBM, e distribuídos em maior variedade de esforços; suas operações estenderam-se por cerca de cem locais diferentes, compreendendo campus, estações experimentais, centros de extensão agrícola e urbana e programas no estrangeiro envolvendo mais de cincoenta países; ofereceu nos seus catálogos perto de 10.000 cursos diferentes; manteve contactos, sob alguma forma, com quase todas as indústrias, com quase todos os níveis de governo, com quase todas as pessoas da região. Vasta quantidade de custosos equipamentos foram utilizados e mantidos. Quatro mil crianças nasceram nos seus hospitais. Constituiu-se a maior distribuidora de ratos brancos no mundo. Está em vias de contar com a maior colônia de primatas do mundo. Contará em pouco com 100.000 estudantes, dos quais 30.000 em nível de pós-graduação, apesar de menos de um terço de suas despesas serem relativas a ensino. já conta com 200.000 estudantes de cursos de extensão, incluindo 1 de cada três advogados e 1 de cada seis médicos no Estado". Harvard e Califórnia são apenas dois exemplos de
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multiversidade. Pelo menos mais umas 20 já existem e, lembremo-nos, toda a Inglaterra conta apenas com 30 universidades. Esta é a universidade que sucedeu à universidade moderna de Flexner que, por sua vez, sucedeu à universidade de Newman. A primeira, segundo Kerr, "era uma aldeia com seus monges, como as nossas reduções jesuíticas ao tempo da colônia, a segunda, uma vila industrial com a sua oligarquia intelectual, a multiversidade, uma grande cidade, com a sua infinita variedade e seus inúmeros bairros e subculturas. Há menos senso de comunidade, mas também menos confinamento. Menos propósito comum, mais possibilidades, mais caminhos para o refúgio ou a criação". Lembra a civilização total em que se integra, com seus riscos e suas oportunidades. Deixou de ser à parte e fez-se força atuante e, talvez, máxima, da sociedade industrial total que começa a ser a sociedade contemporânea. Nessa cidade, que lembra a metrópole, mas é de certo, modo única, agitam-se e trabalham os mesmos dois antigos subgrupos, os estudantes e os professores, mas não só muito aumentados como muito diferenciados. Além das duas culturas ou três – a dos humanistas, a dos cientistas e a dos tecnologistas – há uma variedade de subculturas. Entre os estudantes, segundo uma tipologia, há o grupo mais típico do colégio, com seus clubes, seu atletismo e suas atividades; o acadêmico, constituído dos estudantes sérios, de pura vida intelectual; o vocacional dos estudantes em busca de treinamento específico; e o não-conformista, dos políticos ativistas, dos intelectuais agressivos e dos boêmios. Vagamente inserido nesses diferentes grupos, o estudante individual enfrenta a extrema diversidade de oportunidades que lhe oferece um currículo que chega, como vimos na Califórnia, a contar com 10.000 cursos diferentes. A liberdade do estudante é um desafio mas também uma tortura. Muitos se perdem e muitos se machucam por entre os riscos dessa floresta heterogênea como as tropicais, e, hoje, sem sequer a harmonia e a homogeneidade das florestas temperadas. Sobre ele, e cada vez mais distante, move-se o mundo dos professores, hoje também diversificado, compreendendo, pelo menos, essas quatro categorias – mestres, pesquisadores, consultores e administradores -, que ensinam, pesquisam, aconselham e supervisionam e administram. A pesquisa já é a mais importante das funções. E essa mudança é algo copérnica. É, de fato, uma mudança de centro. Já se diz que, quanto mais sobe um professor, menos terá ele contacto com o estudante. A estrutura de classe do professor compreende, hoje, a dos que se dedicam à pesquisa, a dos que só se dedicam ao ensino e a dos que ainda fazem as duas coisas. Na Califórnia, no nível de doutoramento ou seu equivalente, a proporção já é de 1 pesquisador para 2 mestres e para 4 que fazem uma e outra coisa. Ainda há os consultores e os administradores, que dão parecer e administram seus institutos e projetos, e constituem uma nova forma dos "capitães da erudição" a que se referia Veblen. São os novos-ricos, os homens de empresa da ciência e da cultura, cujas vidas transcorrem, em boa parte, fora do campus, em viagens, conferências, consultas, negociações e, quando no campus, em agitada vida de direção e de administração. Essa multiversidade americana não tem parelha ainda no mundo. Só a América poderia produzi-Ia com a sua confiança na liberdade de ação e conseqüente
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diversidade de experiência e seu apego ao teste das conseqüências. Essa confiança funda-se implicitamente num postulado, o postulado de que o homem melhor age em liberdade e se conduz à luz das conseqüências, revendo, corrigindo, reconstruindo indefinidamente sua ação. Lernfreiheit e Lehrfreiheit (liberdade de aprender e liberdade de ensinar) são as duas forças que, definidas na Alemanha em suas livres origens, encontraram na América seu clima, seu estilo, seu apoio, até agora, incontestes. Nenhuma outra universidade, em nenhum outro país, levou tão longe o espírito de participação na civilização contemporânea. Embora as suas mais antigas universidades tivessem surgido com o espírito da reforma e lembrassem as universidades da Europa, as universidades estaduais, criadas no século XIX, na crise mesma da guerra de Secessão, nasceram traduzindo um novo espírito o espírito de serviço e de pesquisa aplicada, aquele mesmo espírito que iria fazer surgir na Alemanha os technicum, e na Inglaterra os colégios e universidades tecnológicas. Era a idéia da universidade, moderna de Flexner, mas com o acréscimo da ciência aplicada e da participação nos problemas da região. A esse tempo a ciência e a tecnologia estavam a realizar os seus primeiros milagres. A exposição de Paris (1850) estimulara sobremodo os ingleses, que se descobriram atrasados em relação à indústria francesa; a Alemanha com a pesquisa nas universidades e a tecnologia dos institutos tecnológicos entrava valentemente na era industrial e os Estados Unidos constituíam, deste lado do Atlântico, a fronteira nova e ilimitada da aplicação da ciência. É pouco depois que Lincoln assina a lei Morrill (em 1862) ( 2) e nenhum outro ato seria de maior alcance para a educação superior na jovem república. O movimento das universidades estaduais surgia em resposta à industrialização nascente, que nos Estados Unidos não se circunscrevia à indústria urbana mas também à agricultura. Desde o início, a expansão da aplicação da ciência na jovem república se manifestava nas duas áreas, para servir à república de mecânicos e agricultores que se contituira ao norte em oposição à civilização de senhores do sul. A nova universidade seria a universidade que, além do gentleman, do padre, do advogado e do médico, iria devotar-se à pesquisa tecnológica, à pesquisa econômica e à pesquisa em todos os aspectos políticos e sociais da democracia populista e igualitária que sucedera à democracia jeffersoniana. A universidade rompia com as tradições originárias de formadora da elite, para se abrir a todos e ser o grande instrumento de igualdade de oportunidade para todos. A influência da universidade alemã, também muito atuante na época, impediu fazer-se a aventura algo de extravagante. Misturaram-se, como diz Kerr, o intelectualismo germânico com o populismo americano e a aliança se constituiu espantoso sucesso. A mais famosa universidade, entre as antigas, Harvard, e uma das mais novas, a de Michigan, depararam-se executando programas idênticos e atingindo igual excelência, tanto no campo das humanidades quanto no das ciências, criando-se deste modo novo tipo de universidade, abertas, populares, profundamente 2
The Morrill Act – (Lei
do Congresso Americano apresentada por Justin Smith Morrill) lei de 1862, que doou terras publicas em diversos Estados e territórios para a criação de colégios para agricultura e artes mecânicas. O principal objetivo dos novos colégios era, nos termos da lei, "sem excluir outros estudos clássicos e científicos e incluindo instrução militar, ensinar os ramos do saber referentes à agricultura e artes mecânicas (...) a fim de promover a educação liberal e prática das classes industriais nas diversas atividades e profissões da vida".
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participantes do progresso e, ao mesmo tempo, de tão alto prestígio intelectual que rivalizavam – se não excediam – as suas congêneres européias. Quase oitenta anos depois, algo como uma nova lei Morrill veio acontecer, com o programa de financiamento da pesquisa científica para a defesa nacional, a que a Segunda Guerra Mundial levou o governo federal americano. Como na guerra da Secessão, o movimento surgiu sem plano, sem propósito, como simples resultado das circunstâncias e da necessidade. O velho princípio do laissez-faíre tudo permitia e as universidades estavam aí já crescidas, mas ainda sem nenhuma esclerose, prontas para novo surto de crescimento. Em 1862 era a industrialização ainda em grande parte empírica, em 1940 era a ciência já todo-poderosa que iria determinar a expansão da universidade como força suprema, ao mesmo tempo, de saber novo e de nova tecnologia. A separação entre ciência e aplicações da ciência quase deixara de existir. O átomo unira os dois grupos de cientistas, emprestando-se ao tecnologista um prestígio novo, se não maior, pois os segredos da ciência atingiam menos a ciência básica do que as últimas conquistas tecnológicas. Por outro lado, a própria organização industrial, com o seu crescimento, fez-se também científica, pelo menos nos aspectos mais complicados de utilização de dados e de processos mecânicos de sua computação. A resposta da universidade americana às novas necessidades foi pronta e irresistível. Não resisto à tentação de citar Kerr: "É interessante", escreve ele, "que as universidades americanas, que tanto se orgulham de sua autonomia, venham a ter o seu caráter definido tanto ou mais pelas pressões do meio do que pelos seus desejos próprios; que, identificando-se como instituições privadas ou estaduais recebam seu maior estímulo da iniciativa federal; que, constituindo parcelas de um sistema de ensino superior variado e altamente descentralizado, tenham respondido às necessidades nacionais com tamanha fidelidade e alacridade; que, formadas originariamente para a educação do gentleman, se tenham entregue tão decididamente ao serviço da brutal tecnologia". E deste modo é que surgiu a nova universidade federal americana. Assim como a University Grants Commission inglesa vem tornando possível o casamento da autonomia com o planejamento na universidade inglesa, assim o financiamento federal de programas científicos na universidade americana vem dando lugar ao aparecimento de um nova sistemática no ensino superior dos Estados Unidos. Quanto melhor e mais autônoma a universidade, mais se vem ela fazendo a federal grant university de que nos fala Kerr. O movimento lançado com a lei Morrill em 1862, suplementado, em 1890, com a segunda lei Morrill, e antes com a lei Hatch de 1887 e com a lei Smith Lever de 1914, ambas relativas à agricultura, vem, com a Primeira Guerra Mundial, depois com a Depressão e, afinal, com a Segunda Guerra Mundial, entrar em fase espetacular. Em 1960, a educação superior americana recebia 1 e meio bilhão de dólares do governo federal, cem vezes mais do que 20 anos antes: quinhentos milhões para centros de pesquisa nas universidades, quinhentos para projetos de pesquisas dentro das universidades e quinhentos milhões para residências de estudantes, bolsas e programas de ensino. Embora o bilhão para pesquisas seja apenas 1/10 do que o governo federal gasta em pesquisa e desenvolvimento, representa 75% de todas as despesas para pesquisa das universidades e 15% do total dos orçamentos universitários. Essas cifras não incluem as despesas dos centros federais de pesqui-sas operados pelas universidades.
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Os recursos federais são aplicados dominantemente em atividades relacionadas com a defesa (40%), com o progresso científíco e tecnológico (20%) e com a saúde (37%), abrangendo os setores de ciências físicas, bio-médicas e engenharia, com apenas 3% para as ciências sociais e quase nada para as humanidades. Apenas cerca de 20 universidades são contempladas pelo auxílio federal e representam elas apenas dez por cento das universidades americanas. O programa compreende centros especializados de pesquisa (14 em 1963), projetos de pesquisa e treinamento pós-graduado e pós-doutoral nos campos de inter esse nacional. Em nenhum tempo da História viu-se a universidade tão fortemente solicitada para dar a sua contribuição científica ao progresso da civilização. Embora, desde 1850, não tivessem faltado torrentes de retórica para dizer que o progresso científico era a causa do progresso nacional, somente depois de cem anos, na segunda metade do século XX, a ciência faz-se em verdade preocupação central dos governos. O novo equilíbrio que estão a buscar as universidades, em face do impacto desses novos recursos e de novas funções como fábricas de conhecimentos e de tecnologias, que as arrancam da sua segregação de instituições de formação de homens e de busca desinteressada e lenta do saber para as lançarem no redemoinho da competição internacional e dos conflitos do poder, não é fácil e inúmeros problemas está criando para a universidade, que já não é o antigo claustro e a antiga torre de marfim – hélas! já tão distantes e tão esquecidos – mas deseja continuar a ser universidade, ou seja, centro de educação, de ensino e de saber desinteressado e livre. As relações do governo federal com as universidades devem e estão entrando em nova fase, em que esse mais amplo problema do ensino superior começará a ser sentido em toda a sua plenitude para que, sem que se perca o ímpeto pelo aumento de conhecimento e de tecnologias, que marcou a primeira fase, possa o governo federal juntar a sua contribuição aos objetivos perenes da universidade: a liberdade do saber, o alargamento dos horizontes da igualdade de oportunidades, e o aperfeiçoamento da formação humana. Elliot já dizia, no início da primeira transformação da universidade americana, que essa universidade não iria ser a imitação de alguma universidade européia mas uma nova universidade, em consonância com as novas condições da cultura americana. E a evolução ainda está em processo. As novas condições contemporâneas estão transformando a universidade. As grandes fases de caracterização da universidade processaram-se em consonância com os grandes períodos históricos – o apogeu helênlco, a consolidação da herança greco-latina na Idade Média a partir do século XII, o Renascimento no século XVI, o segundo Renascimento com o século XVIII, o inicio da industrialização e o surto científico no século XIX e hoje a industrialização total e a maturidade do desenvolvimento científico. Em cada um desses períodos, registrasse o progresso em certo ponto da Terra e daí se expande às demais área do desenvolvimento. E temos, então, a Grécia, as cidades italianas, a França, a Espanha, a Inglaterra, a Alemanha e hoje os Estados Unidos. A educação está intrinsecamente relacionada com o caráter da civilização de cada país. Estima-se hoje que nos últimos trinta anos perto de metade do
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desenvolvimento nacional dos Estados Unidos se explica pela melhor educação e melhor tecnologia do seu povo, ambas decorrentes do seu sistema de educação. Com a aceleração atual da produção de conhecimento e com a sua difusão também extraordinariamente aumentada, calcula-se que 29% do crescimento do produto bruto nacional dos Estados Unidos provêm do aumento da produção, distribuição e consumo do "saber", em todas as suas formas. E o crescimento desse "saber" faz-se em proporção de duas vezes o crescimento da economia. A indústria do conhecimento é, hoje, segundo Kerr, o fator central do crescimento nacional dos Estados Unidos. Estamos realmente, pela primeira vez, vivendo a fase da produção, que chamaria normal, da ciência. Essa produção quebrou todos os antigos ritmos de gradual acomodação entre o passado e o futuro. A camada de saber comum – lentamente adquirido e consolidado faz-se, como diz Oppenheimer, cada vez mais tênue, em virtude da rapidez da chegada do novo saber e com isto perde-se o senso de unidade entre o passado, o presente e o futuro. Nunca o presente foi tão produtivo e tão difícil estabelecer-se o equilíbrio entre os três períodos. Tudo isto reflete-se na universidade, com a sua população cada vez mais ampla, com a sua atuação no curso mesmo dos acontecimentos cada vez maior, com as suas relações com a indústria intensificadas e dominantes, com o crescimento explosivo dos conhecimentos e com a multidão e variedade dos seus interesses, dos seus programas, de suas descobertas. Quanto à população, já não serve apenas a elites, nem apenas à classe média, mas a todas as classes e todo o povo. Quanto ao saber, identifica-se com todos os saberes, de todas as áreas, todos os níveis e todas as ocupações. Quanto ao espaço, não é algo de isolado mas estende-se à agricultura, à indústria, à cidade e multiplica-se em mil pontos diversos. Tudo que a isolava e a protegia, todos os "muros" caíram e a universidade está hoje em contacto e mistura com todas as forças da sociedade. Sobretudo sua semelhança com a indústria faz-se cada vez maior. O próprio crescimento do saber não se faz hoje mais apenas por indivíduos, mas por equipes, e há tendência para a concentração desse crescimento por áreas e não mais por pessoas. A universidade, já de si imensa, tem de associar-se a outras universidades. Kerr mostra como isto é visível nas cadeias de montanhas do saber – e não picos de saber – no Leste, no Centro e no Oeste dos Estados Unidos. E então cada universidade tem de federar-se a várias outras em certos campos de saber, com programas próprios e intercâmbios de professores e alunos, o que deixa entrever no futuro, além da multiversidade, constelações de multiversidades. O saber sempre foi extremamente importante mas nunca essa importância foi tão violentamente visível. O poder dos interesses adquiridos ainda parece a muitos a grande força que move a Terra, mas jamais os interesses adquiridos estiveram em maior perigo. As mudanças ocorreram independente deles, os problemas surgem, o saber abre oportunidade para soluções e não há como deter a marcha, salvo se se pudesse deter o saber ou, pelo menos, a sua difusão. Nem uma nem outra coisa são fáceis, desde que a unidade se fez a encruzilhada que hoje é de alunos, provindos de todas as classes, de professores de todas as especialidades e campos de saber, de industriais de todas as atividades humanas, e de políticos, de comerciantes, de empreendedores, de todos enfim que têm problemas e necessitam saber e conselho para resolvê-los. A universidade é hoje o centro de toda a sociedade e, apesar disto,
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tem de manter seus velhos ideais e não só manter-se em equilíbrio, mas constituir-se a força maior do equilíbrio de toda a sociedade. Está claro que tudo isto é difícil e que os perigos não são pequenos, mas, a quem está acostumado a acompanhar a idéia até onde ela o leve, o que se está dando é a marcha da idéia da busca de saber e de sua aplicação até as suas conseqüências naturais. Afinal, com a multiversidade de hoje, temos o velho Francis Bacon vindicado e afinal, 350 anos depois, estamos a seguir-lhe os conselhos tão extraordinariamente antecipados. Muitos conflitos se encerraram – entre o saber contemplativo e o saber utilitário, entre ciência básica e ciência aplicada, entre teoria e prática, entre preparação e consumação, entre cultura aristocrática e cultura comum – e não é possível que o homem não consiga resolver os novos problemas que a remoção desses obstáculos tenha podido trazer. Estamos em caminho para uma nova cultura e o preconceito a vencer é o de que uma cultura comum, uma cultura da maioria não possa ser uma grande e alta cultura. Marchamos para essa cultura comum ou então para a confusão e a anarquia. * Desejei proceder a todo esse passeio pelos caminhos do desenvolvimento da universidade moderna para afinal chegarmos ao Brasil. Onde estamos nessa marcha da idéia de universidade? Que tem sido o ensino superior entre nós? Keynes termina o seu livro General Theory com as seguintes palavras: "As idéias de economistas e filósofos políticos, estejam certos ou errados, são mais poderosas do que comumente pensamos. Na realidade o mundo é governado por bem pouco mais. Homens práticos, que se julgam inteiramente isentos de qualquer influência intelectual, são ordinariamente os escravos de algum defunto economista. Doidos no poder, a ouvir vozes, estão apenas distilando, em seus frenesis, algum escrevinhador acadêmico de anos atrás. Estou certo de que o poder dos interesses adquiridos é vastamente exagerado em comparação com esse gradual assalto das idéias". Assim não é apenas com idéias econômicas. Também as idéias de universidade têm o mesmo poder. O que andamos fazendo com o nosso ensino superior nunca representou originalidade, mas cópia ou eco dessas idéias de universidade que, em diferentes épocas, flutuaram e dominaram em seus respectivos tempos. Até a Independência, a nossa universidade era a de Coimbra e esta vinha de suas origens medievais e refletia Bolonha e depois Paris, e com os jesuítas voltou a ser o claustro de formação do clero, deste modo estendendo-se no Brasil por todo o longo período colonial. Com a Independência, viemos a ter as escolas profissionais de Direito, de Medicina e de arte militares e de Engenharia. Com relação à formação humanística ficamos, segundo a lição francesa, com o ensino secundário. Quando, já no século XX, depois da Primeira Guerra Mundial, viemos a pensar em universidade, essa continuou a ser uma federação de escolas profissionais. Em 1930, tivemos copiosa retórica sobre universidade, mas a estrutura não mudou. Continuamos a ter uma série de escolas profissionais frouxamente coordenadas por uma reitoria mais simbólica do que real. As escolas, à maneira napoleônica, eram
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escolas do governo, pelo governo mantidas e dirigidas. Sabíamos como Napoleão fizera o mesmo com a Universidade de Paris e esperávamos que, como em Paris, os professores, as congregações conseguissem ou mantivessem a sua independência. De origens mais remotas conservamos as idéias da independência da cátedra. Essas idéias mais remotas ressurgem da década de 30 em diante como eructações de autonomismo. E celebramos uma carta de autonomia tanto mais divertida quanto por ela o professor continuava funcionário do Estado, por ele nomeado e por ele mantido, e o seu orçamento no mais extremo detalhe fixado pelo Executivo e Legislativo do Estado. De qualquer modo, porém, mantivemos a universidade como um conjunto de escolas profissionais independentes entre si, lembrando embora de longe, a Universidade de Paris, com vestígios germânicos nas escolas de Medicina a respeito de vagas idéias de pesquisa. Na década de 30, surgem as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras destinadas, ao que parecia, a ampliar afinal o quadro universitário com os estudos de filosofia, letras e ciências, até então mantidos em nível secundário, e que passariam a ser elevados a nível superior para o preparo básico às escolas profissionais e, depois, seria de esperar, ao preparo de especialistas de filosofia, letras e ciências. A força do velho superou entretanto o que desejaria ser novo, e as escolas fizeram-se dominantemente escolas de preparo do professor secundário. Em algumas, o estudo de letras e ciências, ganhou nível acadêmico. Ao lado desse desenvolvimento, tivemos, mais, a ampliação de escolas profissionais e semiprofissionais, com variedade de cursos de engenharia, de veterinária, de agronomia, de economia e contabilidade, de enfermagem, de belas-artes, de serviço social, etc., etc. Em rigor, a universidade, entre nós, nunca foi propriamente humanística nem de pesquisa científica, mas simplesmente profissional, à maneira de algumas das universidades mais antigas. Em relação aos progressos científicos do século XIX e princípios do século XX, observaram-se, nas escolas de medicina, certos avanços da biologia e da medicina e, na de engenharia, avanços na matemática e na tecnologia, mas muito mais com pruridos matemáticos do que tecnológicos. As nossas politécnicas imitavam não Manchester, mas Paris. Na realidade, nem influência inglesa, nem influência americana, mas França e certos lampejos germânicos são as forças mais visíveis. No fundo, o substrato português e talvez ibérico. A resistência da estrutura de escolas profissionais independentes – até a medicina, a farmácia e a odontologia não se aglutinam mas conservam-se isoladas – traduz a idéia primitiva de sindicato ou guildas, pela qual se nota que a unidade constitutiva da universidade é a congregação de professores, que, deste modo, revive a estrutura corporativa medieval. A própria reunião sob forma universitária faz-se com visível resistência. Hutchins descreveu certa vez a universidade como uma série de escolas e departamentos separados e unidos por um comum sistema de aquecimento central. Kerr, em nossos tempos, com a menor importância do aquecimento central e a maior do automóvel,
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chama-a de um grupo de empresários-professores unidos por uma reivindicação comum em torno de espaço para estacionar. No Brasil temos uma série de oligarquias (congregações) isoladas e independentes, unidas por uma reivindicação comum em torno do orçamento, que é federal e feito e votado fora da universidade. Mas, se as estruturas são diferentes e diferentes a organização das escolas, no comportamento dos estudantes, dos professores, das congregações e dos reitores há traços sem conta que lembram a tradição universitária e as vicissitudes da idéia universitária. Nesses procedimentos individuais, encontramos exemplos, entre os estudantes, do estudante de classe a sonhar na formação do gentleman, do estudante sério e apaixonado pelos estudos, do estudante inconformado, militante político ou boêmio e do estudante prático a se preparar para a profissão; no professor, o autoritário à maneira germânica, o displicente e humano encantado com o contacto da mocidade, o conservador preso aos livros e ao passado e, até, o inquieto por pesquisa e busca do saber; entre os diretores e reitores, o político apenas preocupado com a harmonia e o equilíbrio instável da instituição dividida e contraditória, o construtor devotado à grandeza material da universidade ou escola, o burocrata, complicando, para aumento do seu poder, os embaraços sempre existentes do funcionamento meio impossível da casa de Orates, que é a sua escola ou sua universidade, ou o fidalgo a dedicar-se à vida de cerimônia e ritual da instituição inoperante mas prestigiosa. É mais pelo procedimento individual, assim, de alunos, professores e diretores e reitores que, de qualquer modo, também temos universidades e nos ligamos aos problemas e sofrimentos comuns da antiga instituição. Não sei qual era o professor inglês que costumava dizer que a universidade deve ser dirigida com o máximo de anarquia compatível com o seu funcionamento. Era, por certo, um colega de outro professor que dizia: "nada deve ser feito pela primeira vez", acrescentando, "nada jamais é feito antes que cada um se convence de que deve ser feito. e disto está convencido há tanto tempo que já agora é tempo de fazer qualquer coisa diferente". Assim, podemos não ter universidade, mas temos professores, que é, afinal, aquilo de que são feitas as universidades. Foi, talvez, na Alemanha, com Humboldt, que o professor se caracterizou afinal como essa figura especial, independente e livre, algo divina, como uma espécie de motor imóvel. Mas a imagem, assim criada, percorre todo o planeta e por toda parte se vai encontrar. Já vimos, na análise geral que fizemos da universidade, que nenhuma outra instituição parece tão natural como esta e evolui, como as coisas naturais, por leis próprias ou sem lei nenhuma. Deixa-se levar e, deste modo, se transforma, sem saber bem como se está transformando. O mesmo se está dando conosco. As nossas escolas superiores deixam-se ir e se vão, assim mudando, aos trancos e barrancos, e de repente se vêem diferentes ... A de Medicina sempre foi, sob o aspecto científico, a mais importante. Não é que ela se vem fazendo uma universidade de ciências biológicas e médicas ? Não é nela que estão começando a medrar os institutos e a pesquisa científica, lembrando a Alemanha dos meados do século XIX ? As escolas politécnicas, por sua vez, não estão começando a ampliar-se, podendo dar origem aos institutos tecnológicos ? A física não está acabando por encontrar um lugar nas Faculdades de Filosofia ? E os institutos agronômicos e biológicos não acabarão por integrar as escolas de Agricultura ? Fora disto, temos tido expansão quantitativa. Com a independência quase absoluta de cada
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escola, não tem havido, resistência à sua multiplicação. Aí desaparece o ciúme e desaparecem os padrões. Tudo pode nascer e viver. Escolas de Economia, que não chegam às vezes a ser escolas técnicas de nível médio, escolas de serviço social, que não se sabe o que sejam. Escolas de música de toda ordem. E de belas-artes, educação física, de enfermagem, etc. Assim viemos até a década de 60, quando, com o movimento pela Universidade de Brasília, assistimos ao aglutinar-se das três idéias a respeito da universidade e surgir, afinal, a lei de fundação daquela universidade, que consubstancia a função formadora e de cultura básica, a função de preparo do especialista, o curso pós-graduado e a pesquisa, e a idéia de serviço e integração na sociedade brasileira e nos seus problemas. Na ordem dos fatos mais generalizados, contudo, o que temos de mais significativo e de mais operante é um reflexo do movimento pela inclusão da pesquisa na universidade, que marcou o aparecimento das novas universidades alemãs do século XIX e se refletiu depois na Inglaterra e nos Estados Unidos, e o interesse pela engenharia e tecnologia, que lembra o movimento das universidades cívicas da Inglaterra, também do século XIX. A idéia de serviço, da universidade integrada na sociedade e nos seus problemas está apenas a esboçar-se. Esta reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência é a continuada demonstração de uma tradição, cuja lição fomos buscar na Inglaterra. Também ali a resistência das universidades foi vencida pelas Sociedades privadas organizadas em prol da ciência. A idéia da universidade humanista e de formação clássica não chegou a se caracterizar entre nós. As faculdades de filosofia, no seu pensamento original de faculdade para integração de toda a universidade, não lograram êxito. A idéia de universidade moderna organizada para a pesquisa, integrada no presente e voltada para o futuro, apenas agora começa a medrar. A universidade de serviço, devotada aos problemas práticos de sua sociedade e à educação, somente na Universidade de Brasília deu os primeiros vagidos. A idéia da multiversidade ligada à indústria, à defesa e ao desenvolvimento nacional ainda está para ser sentida e compreendida. Mas se a instituição é, assim, ainda a instituição pequenina e relativamente sem importância dos princípios do século XIX, não se pode dizer que não consiga, como as grandes universidades do nosso tempo, ser um tanto incômoda à complacência e à resistência nacional a tudo que possa mesmo remotamente constituir-se fator de mudança social. E, assim como quando não tínhamos universidade, já tínhamos o professor com suas qualidades e os seus defeitos, agora, quando ainda não temos a universidade operante e eficaz nas transformações da sociedade, já temos o medo de que ela assim se faça e os movimentos, tão penosamente patéticos, contra sua própria fraqueza e sua própria ineficiência, tanto é verdade que mudar não é afinal difícil, não fosse o medo antecipado e irracional contra a mudança. Diante dessas considerações, como deixar de refletir melancolicamente sobre o que seria a imagem, entre nós, da missão da universidade? Não seria essa imagem a de nada fazer? Não seria, paradoxalmente, a idéia entre nós ainda dominante a da universidade de Oxford no século XIX ? Nunca tivemos, é claro, nenhuma Oxford entre nós. Mas não ocorrerá que o que os bem-pensantes do Brasil pensam quanto à universidade seja exatamente a formação de rapazes polidos, bem educados, capazes
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