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PÉROLAS E PORCOS: ESSÊNCIA E APARÊNCIA DO GOSTO BARROCO
«foram bois foram porcos e eu palácios e pérolas» Adília Lopes, Meteorológica
RESUMO li ttérature de l’âge baroque en France: Circé Circ é et Tendo por base a leitura de La littérature le paon de
Jean Rousset, propus-me pensar a estética barroca a partir de dados sobre o
teatro francês do século XVII (ponto I), opondo-lhe as críticas neoclassicistas presentes em Verdadeiro método de estudar de de Luis António Verney (ponto II), de forma a pôr em relevo a postura repressiva que cada geração assume para se posicionar relativamente à anterior: a crítica pressupõe que o outro tem de ser aquilo que dele achamos – fascismo fascismo de linguagem que não proíbe, obriga. Ainda que considere que o estudo do Barroco beneficia de uma leitura interartes para ficar mais perto de abarcar toda a sua complexidade, parto de dois pressupostos teóricos: não podendo discorrer sobre todas as formas de arte, o teatro é a mais intrinsecamente interartes, exemplo paradigmático portanto da hibridez barroca; o Barroco é por natureza uma mundividência de aporia que não pode nunca ser completamente encerrada numa definição, por isso qualquer leitura que dele seja feita será sempre a possível, como o é aliás todo o conhecimento. quinta-feira, 15 de setembro, 2011
Paulo Jorge Ferreira Brás – MELCI MELCI
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A primeira versão deste trabalho data de 7 de janeiro de 2010 no âmbito da Teoria do gosto literário, unidade curricular então lecionada pelos professores Luís Adriano Carlos e Joana Matos Frias pertencente ao plano da licenciatura em Estudos portugueses e lusófonos.
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I. Fim
do século XVI. Um pouco por toda a Europa, um novo estilo começa a
jorrar da ditadura classicista; centrado (ou, melhor dizendo, descentrado) num leitmotif de efemeridade, mudança e ilusão, e apoiado num hermetismo formal de miscigenação de figuras, ganha relevo em várias formas de expressão artística. Precedido em Portugal pelo Maneirismo, o Barroco instaura assim a mundividência do horror vacui, «tous les métiers, tous les monstres, toutes les fantaisies» 2, numa rutura com o equilíbrio e a simetria caracteristicamente clássicos. Com esta mudança radical de paradigma, o grotesco ganha um novo vigor como categoria estética (que será validada, de forma definitiva, no Romantismo). Segundo Montaigne, por grotesco entende-se um corpo monstruoso, sem ordem, contiguidade ou proporção3. De facto, se desde Copérnico o Homem havia sido confrontado com o seu despejo do centro do universo, o Barroco vem instaurar a democracia estética da pluralidade de focos. «Ce monde incohérent n’a -t-il d’autre loi que son incohérence? (…) Quel est le dieu de cet univers (…)?»4
Em suma, e seguindo de perto a obra de Jean Rousset em que assenta este primeiro ponto, podemos apontar como essência do Barroco uma profana dualidade: conceptismo e cultismo. Por um lado, Circe, signo da metamorfose e da transferência dos significados; por outro lado, o pavão, sinal da riqueza do decor dos significantes. Contudo, ainda que o Barroco não tenha assumido uma postura vincadamente herética, contrária ao catolicismo, neste jogo circeu (mas também circense) de aparências, ela, mais do que o deus ( símbolo) de um universo, é um demónio ( diabolo)5. Enquanto Circe altera o outro, Proteu altera-se a si próprio, encarnando um homem multiforme num mundo em metamorfose, e esta constante nuvem do não-saber demonstra o quão fugitiva é a vida. Aliás, dos quatro elementos da natureza definidos pelos pré-socráticos, embora a água e o fogo também estejam presentes, o ar é certamente o mais importante neste período (a bola de sabão, a neve, o arco-íris, os astros e tudo o que habite por breves momentos na atmosfera) porque nada é mais semelhante ao homem do que o que se move.
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Jean Rousset, La littérature de l’âge baroque en France: Circé et le paon , Paris, Librairie José Corti, 1954, p. 14. 3 Idem, p. 255, nota 1. 4 Idem, p. 14. 5 Em vez de transferir para uma vara de porcos suicidas uma legião de demónios (do latim daemon, -onis), Circe transforma em suínos o próprio povo (do grego dêmos, -ou) que ela possui.
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Ao contrário das danças macabras medievais em que a Morte dança entre as pessoas da corte, no ballet barroco um só bailarino pode interpretar o seu eu jovem e o seu eu velho. Com efeito, há dois tipos de seres ambíguos: os duplos, em que dois indivíduos representam uma mesma figura, e os desdobrados, em que um só indivíduo representa duas figuras. Este fenómeno de desdobramento funciona em palco como um espelho deformador. «Quand le monde est à l’envers et qu’on veut le remettre à l’endroit, il faut le regarder dans un miroir»6.
O grotesco concretiza-se também pela apropriação da androginia, «uma forma arcaica e universal de exprimir a totalidade, a coincidência dos contrários, a coincidentia oppositorum (…); dizer de uma divindade que é andrógina é o equivalente de dizer que
se trata do ser absoluto, da realidade última» 7. Uma das maneiras de se conseguir este efeito em cena é recorrendo ao travestismo, que D. João V acabou por censurar, dizendo que cada um haveria de vestir a sua própria figura. Este teatro não podia deixar ainda de explorar o trompe-l’oeil na natureza, corporizado nos sósias. Da mostrança medieval à exuberância barroca de Luís XIV, o Rei Sol, o Homem tem dado inúmeros exemplos da meraviglia da vida. O mundo é, de facto, um teatro, instável como um cenário, mas não um qualquer tipo de teatro: «la vie une comédie»8. Contrário à catarse aristotélica, indelevelmente associada à tragédia, sempre existiu um outro tipo de fenómeno, marginalizado: a catarse pelo riso. Das comédias greco-latinas aos autos autóctones de Gil Vicente, a História tem vindo a escrever o segundo livro da Poética de Aristóteles. Neste período aparentemente sem regras (não esqueçamos, porém, que tudo aqui é aparência), as artes do tempo e do espaço fundem-se aleatoriamente, dando lugar a géneros híbridos. Mesmo quando se representa uma tragédia, esta é vista como «un peu moins de danse, un texte un peu plus cohérent, mais ce text n’es t là que pour soutenir le décor, la musique, l’action spectaculaire; (...) tout est pour les yeux»9.
Nos antípodas do
teatro barroco, encontramos Aristóteles, que desvaloriza o espetáculo cénico do conjunto das partes qualitativas da tragédia e condena a mistura de géneros.
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Jean Rousset, Op. cit., p. 24. Maria do Rosário Ferreira, «A estátua e o andrógino: do arquétipo à função», Notandum, II, 4, 1999, pp. 17-34. | Neste artigo, Rosário Ferreira evidencia ainda, nos dois textos literários que analisa, a superioridade do grotesco ao belo, pois, perante um mundo de hermafroditas e castrados, «surge Átis, um adolescente maravilhosamente belo» que não passa de «um pequeno deus sacrificial», o que vai ao encontro da ideia de que a beleza é vulgar (literalmente, ordinária) e não suscita grandes paixões. 8 Jean Rousset, Op. cit., p. 28. 9 Idem, p. 21. 7
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Segundo Jean Rousset, no que toca ao modo dramático, produções barrocas como tragicomédias, óperas ou burlescos podem ser divididas em dois grandes grupos: pastorais e dramas de horror. A pastoral é vista como modelo de conduta, relembrando à corte a artificialidade das suas convenções: «il faut se tourner vers la nature» 10 (ainda que esta natureza seja profundamente idealizada). Este género declara que a felicidade é possível nos corações puros e que, apesar dos amores não correspondidos, «ce monde-là n’est jamais tragique qu’en apparence»11.
Assim descrita, notamos que se trata da face apolínea do teatro barroco, a tradição do locus amoenus do gosto clássico impregnada na arte. «La beauté de la vie est dans sa jeunesse et sa première fleur , la grande douleur est qu’elle passe et cède à la laideur. L’homme est misérable non parce qu’il meurt, mais parce qu’il se dégrade; la mort n’est pas sa condamnation, mais son secours: elle vient au bon moment mettre fin
à son avilissement, le tirer de l a laideur et des maladies menaçantes (…); elle est comme un retour au matin, au jeune soleil» 12. Mais barroca, embora de inspiração medieval, como já pudemos verificar 13, é a face dionisíaca, cujo tema fulcral é a vingança. Enquanto Eurípides não põe Medeia a matar os filhos em cena, o drama de horror mancha-se de sangue. Se a morte é encarada como uma visão de suplício, por oposição ao posta em sossego do Classicismo, então ela mesma se organiza no cenário, semeando esqueletos e caveiras neste teatro macabro de maquinarias. (Reparar que o apetite pela ilusão e pelo fantástico é anterior à criação de técnicas cinematográficas verdadeiramente apropriadas.) Desta arte, chegamos à aporia teórica de um período caracterizado pela oscilação e pelo exagero: «toute forme exige fermeté et arrêt, et le Baroque se définit par le mouvement et l’instabilité»14. Antes do nascimento da estética como disciplina, antes da
desvinculação da beleza da moral, antes mesmo da fragmentação do gosto literário, ou seja, em pleno contexto clássico de valorização, não da imaginação, mas da imitação da harmonia, da pureza, do equilíbrio e da unidade naturais como preceito essencial para um ato criador de decoro. Fim do século XVI. 10
Jean Rousset, Op. cit., p. 32. Idem, p. 33. 12 Idem, p. 94. 13 Ambas reproduzem de forma bela o feio, todavia dois pontos distinguem a arte medieval da barroca. Primeiramente, na Idade Média a morte é estática, no Barroco dinâmica: Jesus na cruz não está morto, mas em agonia, a morrer . Por último, enquanto o Barroco faz a apologia da arte pela arte e a forma ganha vida própria, o decor medieval tem sempre um objetivo (a pedra de toque da arte gótica é o Cristo encarnado em chagas nas fachadas das catedrais, como forma de despertar comoção em fiéis e infiéis). 14 Jean Rousset, Op. cit., p. 231. 11
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«O primeiro postulado que se põe no princípio dos tratados modernos é que o leitor se dispa de todo o género de prejuízos e paixões, e que examine as razões como merecem.»
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II. Como vimos, as principais características do discurso engenhoso do Barroco
são, por um lado, os tropos (principalmente metáforas, hipérboles e antíteses), os conceitos agudos, as relações insólitas entre as palavras e, por outro, a abordagem de temáticas quer sacras (menos do que no Maneirismo) quer profanas de exaltação tanto da vida como da morte. A este período segue-se no eixo diacrónico o Neoclassicismo, época de atualização dos princípios de «proporção, eleição, disposição» 16 da Antiguidade Clássica e do Classicismo. Com efeito, embora ainda viessem a ser posteriormente publicados cancioneiros barrocos17, o surgimento do Verdadeiro método de estudar de Luís António Verney em 1746 denotava já um pensamento neoclássico dominante (cujos parâmetros de bom gosto seriam dez anos mais tarde definidos pela Arcádia Lusitana): clareza discursiva, modernidade do léxico, «método, critério» 18, decoro e utilidade. Verney utiliza a forma epistolar de caráter doutrinário para nas cartas V a VII ensinar «o verdadeiro uso da Retórica e artificio da verdadeira eloquência»19. A poesia nada mais é do que «uma Retórica mais florida» 20, e em Portugal esta desvalorização ainda se intensifica, já que nenhuma dela é regida, como deveria, pela boa razão porque «os que se metem a compor não sabem que coisa é compor» 21. Já não basta copiar os modelos clássicos (não nos esqueçamos que «Séneca foi o primeiro que começou a perverter o bom gosto da latinidade» 22), é preciso torná-los relevantes no tempo da escrita, para se não cair em anacronismos ininteligíveis que repugnam a boa razão: «inverosimilidades, oscuridades e frialdades» 23.
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Luís António Verney, Verdadeiro método de estudar: cartas sobre retórica e poética (intro e notas de Maria Lucília Gonçalves Pires), Lisboa, Presença, 1991, p. 86. 16 Idem, p. 76. 17 A segunda edição da Fénix renascida é de 1746 e a primeira do Postilhão de Apolo de 1761. 18 Luís António Verney, Op. cit., p. 129. 19 Idem, p. 73. 20 Idem, p. 142. 21 Idem, p. 125. 22 Idem, p. 92. 23 Idem, p. 153.
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Na sua opinião, o poeta precisa de dois elementos para compor bem: «engenho, para saber inventar e unir ideias semelhantes e agradáveis; juízo, para as saber aplicar onde deve»24. Ainda que diga que «o discurso de um homem despido de todo o artifício não pode menos que ser um caos» 25, é preciso saber dispô-lo com ordem, pois a boa disposição das partes valoriza a sua proporção face ao todo. Tal como as pedras preciosas, se bem dispostas refletem a sua beleza, se mal parecem pedras grosseiras, «figuras mui desusadas, tropos mui estudados» 26. Por sua vez, o engenho pode também ser bom ou mau, bom quando se trata de uma semelhança de ideias, mau quando semelhança de significantes. Esta distinção serve para valorizar a língua nacional e, acima de tudo, um registo de língua referencial, em detrimento da linguagem poética, uma vez que as ideias podem ser traduzidas, mas os significantes perdem o pico na tradução. Por isso, para o Neoclassicismo, «se o conceito, traduzido em outra língua, conserva a mesma força, pode-se chamar pensamento ou agudo ou engenhoso» 27. Tem ainda de estar de acordo com o estilo que pretende: se sublime como a Eneida de
Virgílio, expressões grandiosas; se humilde como as Bucólicas, um «modo
de falar natural e sem ornamentos, mas com palavras próprias e puras» 28; se medíocre como as Geórgicas, então uma mistura de características dos dois estilos anteriores. (Notar como a mediania é aqui associada à miscigenação ou imperfeita definição.) Contudo, mesmo a poesia fruto de engenho, juízo e decoro tem como único objetivo o deleite, não é necessária. Para si, uma das maiores falhas da poesia portuguesa é o facto de não ter visto até então um «livro português que ensinasse um homem a inventar e julgar bem» 29. Pois, tal como afirmado por Maria Lucília Gonçalves Pires, «dois anos depois da publicação do V.M.E., Francisco José Freire irá colmatar esta lacuna (…) publicando a sua Arte poética ou Regras da verdadeira poesia »30. Este frade oratoriano, mais conhecido pelo pseudónimo de Cândido Lusitano, ajudou a impulsionar o movimento antibarroco dos árcades.
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Luís António Verney, Op. cit., p. 127. Idem, p. 46. 26 Idem, p. 74. 27 Idem, p. 138. 28 Idem, p. 85. 29 Idem, p. 126. 30 Idem, p. 125, nota 6. 25
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Na sua obra, Freire considera que pela mimesis a poesia deleita, mas que, ao estar próxima da retórica, tem como intento prático ensinar o povo, e neste ponto dirige-se explicitamente a Verney porque, ainda que aceite a relação da poesia com a retórica, discorda que o prazer seja o seu único fim. (Assim comparados, ironicamente é Verney quem mais deve ao Barroco: «se é certo que (…) é processo constante no panegírico barroco, note- se como Verney recorre à hiperbolização (…) para caricaturizar tal tipo de discurso» 31.) Freire aponta ainda dois processos para a criação poética que, sinteticamente, passam ou pelo tratamento de temas novos ( matéria) ou pelo tratamento de temas antigos de uma forma original ( artifício). No final, ambos conotam com o bom gosto a mesma harmonia e simplicidade com que a verdade aparece ornada nos textos clássicos. Como diz Verney, «a verdade é que um conceito que não é (…) fundado sobre a natureza das coisas não pode ser belo» 32, «querer ensinar a dizer (…) agudezas é (…) querer ensinar a mudar a natureza» 33. O Neoclassicismo sintetiza assim a sua visão unilateral do mundo, mas em Portugal as críticas feitas ao Barroco, nem sempre objetivas, atingem mais a sua aparência do que a sua essência (se António Vieira é conceituoso, António Verney é o que o precede). É certo que para se viver este período se esbanjou o ouro brasileiro e todas as riquezas que os Descobrimentos recolheram, assim como é certo que o Barroco será sempre associado à perda da independência da coroa e à fase de monarquia dual. Acontecimentos como estes podem deturpar a visão da História. Por fim, resta acrescentar que me parece que a discussão arcádica do bom gosto, embora tenha levantado questões importantes que certamente abriram caminho para a revolução estética do Romantismo, não foi mais do que um pretexto para uma querela religiosa, no rescaldo da Contrarreforma. Verney conseguiu assim atacar os «hebreus idiotas»34 e os que «são judeus, mais por génio depravado, que por erudição» 35, ao mesmo tempo que criticava o mau gosto dos «poetas tolos do século XVI e XVII» 36, «séculos da ignorância» 37. 31
Luís António Verney, Op. cit., p. 48, nota 12. | Mesmo as expressões que usa, «juízo nos cotovelos» para o ato de falar muito sobre nada ou «partos monstruosos» para tropos barrocos como jogos de sinónimos ou palavras da mesma família, denotam que Verney não deixou de educar a sua agudeza. 32 Idem, p. 128. 33 Idem, p. 137. 34 Idem, p. 56. 35 Idem, p. 55. 36 Idem, p. 129. 37 Idem, p. 133.
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38 III. «Embellir, c’est compliquer, enrichir et (...) charger».
Se na visão
neoclássica embelezar é um ato de vã glória, no Barroco a maior preocupação é o presente e o que pode (não) fazer sentido para agradar ao seu público. Para Monléon, «la façon des Anciens et des humanistes est “trop nue pour le théâtre d’aujourd’huy”»39. Também Scudéry «voit dans la tragi-comédie le poème (...) le plus goûté du public parce que (...), tenant à la fois de la tragédie et de la comédie, “sans être ni l’une ni l’autre, (…) il est toutes les deux ensemble et quelque chose de plus”»40.
Relembremos que, em Portugal, as publicações barrocas continuam pelo Neoclassicismo adentro porque é precisamente isso que dá prazer aos seus contemporâneos, este gosto pela mudança e pelo luxo está aos seus olhos adaptado ao espírito moderno. Nas peças de teatro deste tempo, o cenário deambulatório absorve o público para o mesmo não-espaço dos atores, público esse que ganha um papel ativo 41: tal como o Cristo encarnado, passa de estático a extático. O Barroco assume-se como «un certain gothique flamboyant» 42. Por que não, então, falar numa estética barroca do feio? Do latim foedus, -a, um, este adjetivo deu lugar em português a termos relativos à
fealdade, à enfermidade, à
imoralidade e à sexualidade. Ora, na eterna luta maniqueísta do bem contra o mal, como já vimos com Circe, o gosto barroco é associado ao mal e feio e mal têm uma longa tradição de reciprocidade. O própr io nome “barroco”, pérola imperfeita, viu atribuído ao seu traço de imperfeição não o sema da permanente abertura e incompletude, mas do erro, do defeito e da pouca qualidade. No campo semântico do feio entra ainda a loucura, já que a alucinação de uma perceção viciada pode desfigurar não só o ambiente em redor como também a imagem do sujeito: «la folie, dans ce théâtre, est un agent de déguisement» 43. Esta tradição vem desde a sottie medieval francesa que em Portugal inspirou Gil Vicente, como prova o Parvo do Auto da Barca do Inferno . O público é convidado a duvidar do que vê, mergulhando no delírio da personagem, já que a representação se transforma no disfarce de uma vida de disfarce, por palavras platónicas, cópia da cópia.
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Jean Rousset, Op. cit., p. 75. Idem, ibidem. 40 Idem, pp. 75-76. 41 Não é por acaso que Bruno Tackels, que se tem dedicado aos escritores de palco contemporâneos, mencionou que já Molière o era. 42 Jean Rousset, Op. cit., p. 13. 43 Idem, p. 56. 39
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Levando ao expoente da loucura o que a Antiguidade poderia querer dizer com o verosímil da mimesis, o teatro remete para si mesmo, ganhando autonomia como a linguagem poética, não-referencial: «la transfiguration de la vie par le théâtre» 44. Assim como as suas personagens, é desdobrável em teatro-forma e teatro-conteúdo, pois, se a vida vivida é teatro, então a vida representada, imitação da vivida, tem de ser teatro, e, se o Homem real é ator, então o Homem ficcionado, imitação do real, tem de ser ator. Em espiral, «la volupté et le ve rtige d’un (…) plaisir de perdre pied»45. Unem-se neste ponto as várias expressões artísticas do Barroco. Na literatura, como na arquitetura, «le mouvement pour le mouvement» 46; uma fachada barroca é o reflexo de uma fachada renascentista em águas turbulentas, «pas une ligne droite» 47. Aqui se dá a passagem da circunferência à oval, em que não há um centro, mas vários. E esta descentralização é também, de certa forma, dissimulada, ambígua (literal e figurada), abuso de poder , já que para o Barroco convergem alguns elementos das tradições antecessoras (clássica, renascentista e medieval) que ele próprio rejeita. Ignorando as diferenças entre os períodos, aliás, as críticas estendem-se à Idade Média. Assim como os arquitetos barrocos de Itália foram considerados meros decoradores, os criadores da arte gótica, bárbaros, «não tendo sido instruídos nas boas artes, (…) e não podendo chegar à nobre simplicidade da antiga arquitetura, ornaram as
suas fábricas de tudo o que lhe ofereceu a sua mal regulada imaginação» 48. E, mesmo depois da destruição dos pré-conceitos em relação ao belo com o desenvolvimento da estética, um equívoco parece ter ficado. Numa última fase (consequentemente mais próxima do Neoclassicismo), o Barroco começou a entrar em mutação, provando um pouco do seu próprio veneno; nas artes plásticas deu-se-lhe o nome de Rococó. É um Barroco menor , estereotipado, cristalizado nas pedras preciosas, em vez de fluido. Como é óbvio, afetou igualmente a poesia e, pessoalmente, até pela imagem das pedras usada por Verney, penso que a crítica de superficialidade que o autor dirigiu a este período se relaciona mais com este tipo de Barroco do que propriamente com a essência do primeiro.
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Jean Rousset, Op. cit., p. 71. Idem, p. 74. | «O poema ensina a cair», escreveu Luiza Neto Jorge. 46 Idem, p. 167. 47 Idem, p. 163. 48 Luís António Verney, Op. cit., p. 137. | David Hume explicará depois na sua obra Of the standard of taste que o bárbaro é sempre o que se opõe à nossa perceção do mundo. 45
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É afirmado que da falta de inuentio, ou seja, falta de conteúdo, «nascem todos os outros defeitos que impedem o bom gosto da eloquência» 49, e isto pressupõe a ideia de que Barroco é exclusivamente forma. A ostentação da autonomia da fachada é tomada como dissimulação, mas, «dans ce théâtre où tout est décor, perdre son apparence c’est
se perdre soi-même puisqu’on ne s’y soucie pas d’être, mais de paraître» 50. Há, aliás, a falácia deliciosa de que «Dieu lui- même eut pour premier soin “d’accorder à toutes choses le don de paraître, puisqu’il a créé d’abord la lumière”» 51.
O equívoco reside na ignorância do simples facto de que para o Barroco, o verdadeiro método do Barroco, essência e aparência fundem-se 52 porque,
para parecer,
é preciso na verdade o ser, as aparências do exterior não são mais do que imagens da realidade interior: «le moi est une intimité qui se montre» 53. Pelo contrário, refletindo, um sistema que se alimenta unicamente do monismo do belo e o associa incondicionalmente ao bem é que se deixa seduzir pela aparência – qual cronótopo, o Barroco limitou-se a espelhar o espírito do tempo sobre o qual se impôs. Para concluir, o gosto só existe com um padrão, sem ele não haveria senso comum. O problema que lhe é intrínseco é que, embora tudo questione, o sensus communis não
pode ser questionado. Ora, se o gosto vive exclusivamente do padrão,
saboreia-se a si próprio e destrói-se (o gosto pressupõe a destruição) porque não há mais nada para padronizar . Então, torna-se urgente cultivar vários gostos para que o padrão sobreviva. De resto, «nous aimons souvent les choses qui n’ont ni proport ion
ni
ordre»54. «Nous ne sommes pas des antiques, dit Mareschal» 55. A estética nasceu no século XVIII para valorizar o pluralismo de categorias, associando elementos distintivos a cada uma delas, e transferi-los dos objetos para a perceção do sujeito, que é tanto maior quanto mais este educar a delicadeza do seu gosto. Transferido e fragmentado o belo, num processo de descentralização que, lidas estas páginas, poderíamos chamar “barroco”, o Homem é realojado no centro do
universo devoluto, com a única certeza de que, em espiral, nunca se volta ao mesmo ponto.
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Luís António Verney, Op. cit., p. 69. Jean Rousset, Op. cit., p. 63. 51 Idem, p. 220. 52 Circe representa o conteúdo e o pavão a forma, mas ela tem o poder de mudar o que é material e ele incorpora uma ideia. 53 Jean Rousset, Op. cit., p. 154. 54 Idem, p. 149. 55 Idem, p. 77. 50
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BIBILIOGRAFIA
FERREIRA, Maria do Rosário, «A estátua e o andrógino: do arquétipo à função», Notandum,
II, 4, 1999, pp. 17-34. (Última visualização a 15 de setembro de
2011: http://www.hottopos.com.br/notand4/estatua.htm.) FREIRE, Francisco José, Arte poética ou Regras da verdadeira poesia, Lisboa, Francisco Luís Ameno, 1748. ROUSSET, Jean, La littérature de l’âge baroque en France: Circé et le paon, Paris, Librairie José Corti, 1954. VERNEY, Luís António, Verdadeiro método de estudar: cartas sobre retórica e poética (intro e
notas de Maria Lucília Gonçalves Pires), Lisboa, Presença, 1991.
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